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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE LIBERTADA
AMANTE LIBERTADA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 28

As presas de Vishous alongaram-se quando um círculo de assassinos foi formado na entrada do beco. A quantidade já era conhecida, pensou. Pelo menos meia dúzia... e com certeza receberam as coordenadas daquela localização por meio de seus amigos assassinos mutilados. Caso contrário, o mhis teria escondido a carnificina deles.

Considerando seu estado de espírito, uma conversinha prévia seria bem interessante para eles.

O problema era que a estrutura do beco sugeria que havia apenas uma saída... e estava além das linhas inimigas... e aquilo significava que teriam de desaparecer. Normalmente, isso não seria um problema; como lutadores experientes, mesmo no auge de uma batalha, poderiam ficar calmos o suficiente para se concentrarem e se desmaterializarem... mas teriam de estar relativamente bem e não poderiam levar ninguém ao partir.

Então, Butch estaria ferrado se algo saísse do controle. Como mestiço, o cara estava de castigo, literalmente incapaz de dispersar suas moléculas como medida de segurança.

V. murmurou baixinho:

– Não seja um herói, tira. Vamos lidar com isso.

– Está brincando comigo, certo? – O olhar foi imediato e fixo. – Só se preocupa consigo mesmo.

Impossível. Não estava perdendo os únicos dois pontos cardeais de sua vida na mesma noite.

– Ei, rapazes – Hollywood gritou para o inimigo. – Vão ficar aí parados ou começar logo com isso?

E... isso fez com que o sino da luta soasse. Os redutores avançaram e encararam a Irmandade face a face, mano a mano. Para se certificar de que havia a privacidade necessária, V. dobrou a barreira visual, criando uma miragem de que nada estava acontecendo caso seres humanos passassem por ali.

Quando começou a lutar com o inimigo, manteve os olhos em Butch. É claro que o filho da mãe estava indo bem ali, alto e magro, lançando-se contra o alvo com as mãos desprotegidas... mas Vishous realmente desejava que o desgraçado saísse de lá pulando um muro ou, melhor ainda, se enfiasse num lança-foguetes, direto para o telhado. Dessa maneira, permaneceria longe da luta. Detestava o fato de que o tira ficasse tão perto daquilo, pois sabia o que poderia acontecer se precisasse usar sua mão ou o dano que uma arma de fogo poderia causar ao cara...

O golpe veio do nada, surpreendendo por trás como uma bigorna, atingindo diretamente a lateral do tronco de V. Quando ele voou para trás e bateu na parede de tijolos, lembrou-se do que havia aprendido nos treinos: regra número um na luta? Preste atenção em seu inimigo.

Afinal, poderia ter o melhor punhal do mundo, mas se não tivesse noção do que estava acontecendo... acabaria sendo lançado por todos os lados como uma bola de pingue-pongue. Ou ainda pior.

V. encheu os pulmões inalando profundamente e usou o oxigênio para saltar para frente e pegar o segundo pontapé pelo tornozelo. Porém, o redutor tinha habilidades espetaculares e fez um movimento ao estilo Matrix*, usando as mãos de V. como uma âncora para dar um giro no meio do ar. A bota de combate do inimigo atingiu V. em cheio na orelha, a cabeça foi atirada com força para o lado assim como todos os tendões e músculos. Ainda bem que a dor sempre o concentrava.

A gravidade era um fato, o golpe do assassino atingiu seu tórax e, depois disso, caiu, apoiando os braços no asfalto para impedir que o rosto acertasse o chão em cheio. E era evidente que o desgraçado esperava que o adversário soltasse seu pé, graças ao balão que o crânio de V. parecia agora de tão inchado.

Não. Desculpe, querido.

Mesmo com as consequências desagradáveis do golpe, V. firmou suas mãos no tornozelo e puxou-o na direção oposta do giro do inimigo.

Estalo.

Alguma coisa foi quebrada ou deslocada e considerando o fato de que V. estava segurando o pé e os ossos inferiores, sabia que provavelmente tinha sido o joelho, a fíbula ou a tíbia.

O Sr. Chute Alto soltou um grito, mas V. não terminou quando o bastardo caiu no chão.

Tirando uma de suas adagas, cortou o músculo na parte de trás da perna e, em seguida, pensou em Butch. Dirigiu-se para o corpo que se contorcia, pegou um pouco de cabelo, puxou para cima e produziu no filho da mãe um colar bem interessante com sua lâmina.

Incapacitação parcial não era suficiente naquela noite.

Girando, com a faca pingando sangue nas mãos, avaliou as lutas que aconteciam no momento. Z. e Phury estavam lidando com dois redutores... Tohr lutava com outro... Rhage brincava com um dos inimigos... Onde estava Butch...?

Em um canto, o tira tinha levado um assassino ao chão e estava inclinado sobre sua face. Os dois se encaravam e a boca aberta e ensanguentada do redutor movia-se como a de um peixe, abrindo e fechando lentamente, como se soubesse que o próximo movimento não lhe traria boas notícias.

A bênção e maldição de Butch foi ativada quando ele começou a respirar, inspirando profundamente. A transferência começou com um fio de fumaça que passava da boca do assassino para a de Butch, mas logo cresceu e fluía como um grande rio, a essência de Ômega era canalizada de um para outro em um arremesso doentio.

Quando terminou, o assassino estava prestes a se tornar nada além de resíduo de cinzas. E Butch ficaria debilitado como um cão e relativamente inútil. V. correu, esquivando-se de uma arma em forma de estrela e empurrou um redutor que saiu girando com um peão da zona de espancamento de Hollywood.

– Que droga é essa que está fazendo? – reclamou quando puxou Butch do pavimento e o arrastou da zona de sucção. – Precisa esperar até terminarem.

Butch curvou-se para o lado e teve alguns espasmos. Já estava semipoluído, o fedor do inimigo exalando de seus poros, seu corpo lutando contra a carga de veneno. Precisava ser curado naquele exato momento, mas não teria como V. fazer isso agora...

Mais tarde, ficaria impressionado por ter sido surpreendido duas vezes em uma luta. Mas tal introspecção aconteceria em uma hora vaga, depois que acabassem com aquilo.

O taco de beisebol pegou na lateral do joelho e a queda que veio logo em seguida foi tremenda, no mau sentido. Caiu com força, as pernas entrelaçando-se sob seu peso considerável formando um ângulo que fez seu quadril gritar de agonia... o que sugeria que aquele carma não era tanto sobre vingança, mas sobre a luta contra devaneios: quando caiu por ter sido ferido da mesma maneira que tinha acabado de fazer com a outra criatura, amaldiçoou a si mesmo e ao filho da mãe com o bastão.

Hora de pensar rápido. Estava deitado de costas com uma perna que zumbia como um motor superacelerado. E a intenção do bastão era fazer muito dano... Butch veio do nada, vacilando com toda a graça de um búfalo ferido, o corpo pesado do desgraçado lançou-se contra o redutor no mesmo momento que o bastão atingiu um dos ombros de V., sendo que o objetivo era a cabeça dele. Os dois se chocaram contra os tijolos e depois de um momento sem se moverem, o maldito redutor idiota deslizou o tronco e ofegou.

Era como observar ovos quebrados escorrendo de um balcão de cozinha: os ossos do assassino liquefizeram-se e a coisa caiu no pavimento, deixando Butch deitado de costas sozinho entrando em colapso com o punhal cheio de sangue negro nas mãos.

Tinha destruído o filho da mãe.

– Você... está bem...? – o policial gemeu.

Tudo o que V. conseguia fazer era olhar seu melhor amigo.

Enquanto os outros continuavam a lutar, os dois apenas se encaravam em meio a uma trilha sonora de fundo cheia de ruídos de metal, grunhidos e palavrões criativos. Deveria haver algo para ser dito um ao outro, V. pensou. Havia tanta coisa... para ser dita.

– Quero aquilo de você – V. exclamou. – Preciso.

Butch assentiu.

– Eu sei.

– Quando?

O tira balançou a cabeça em direção à perna de V.

– Fique bom primeiro. – Butch gemeu e se levantou. – Por falar nisso, vou para o carro.

– Cuidado. Leve um dos Irmãos com...

– Pare com essa baboseira, e fique parado.

– Não vou a lugar algum com esse joelho, tira.

Butch saiu, seu andar era apenas um pouco melhor que o de V. Esticando o pescoço, olhou para os outros. Estavam a todo vapor. Devagar, mas com toda certeza, a maré estava virando a favor deles.

Até cinco minutos depois.

Quando mais sete assassinos apareceram no beco.

Estava claro que tinham atraído reforços e aqueles também eram novos recrutas que não sabiam muito bem como lidar com o mhis: era evidente que tinham sido levados até o endereço por causa de seus comparsas, mas os olhos não conseguiam ver nada além de um beco vazio; contudo, aquela hesitação não duraria muito e romperiam a barreira.

Movendo-se o mais rápido possível, V. apoiou as mãos no chão e arrastou-se até uma porta. A dor era tanta que sua visão lhe faltou momentaneamente, mas isso não o impediu de tirar sua luva e colocar a peça dentro de sua jaqueta.

Esperava que Butch não tivesse voltado a lutar. Precisariam de transporte quando tudo acabasse.

Quando a leva seguinte de inimigos avançou, deixou a cabeça cair sobre o peito e respirou tão superficialmente que sua caixa torácica mal se movia. Com o cabelo caindo sobre o rosto, os olhos estavam protegidos, mas foi capaz de observar, através do véu negro, o ataque dos assassinos. Considerando o incrível número de novos recrutas, percebeu que a Sociedade devia estar recrutando psicopatas e outros membros de Manhattan... as possibilidades em Caldwell não eram tão grandes para que surgissem tantos reforços.

O que seria favorável à Irmandade.

E estava certo.

Quatro dos redutores lançaram-se direto à luta, mas um deles, um buldogue com ombros e braços enormes que andava como um gorila, veio até V., provavelmente para checar suas armas.

Vishous esperou com paciência, parado, preparando-se para o ataque.

Mesmo quando o filho da mãe inclinou-se para baixo, V. ficou onde estava... Um pouco mais... Um... Pouco... Mais...

– Surpresa, seu filho da mãe – falou. Então, pegou o pulso do redutor que estava mais próximo dele e puxou com força.

Parecia que o assassino estava prestes a desabar, bem em cima da perna ruim de V. Mas não importava... a adrenalina era um tremendo analgésico e não só lhe deu forças para suportar a agonia, como também para manter o filho da mãe no lugar.

Erguendo a mão brilhante, Vishous colocou sua maldição logo abaixo do rosto do sujeito, não havia razão para golpeá-lo ou bater nele... um simples contato era suficiente, e pouco antes de aterrissar com aquele toque, seus olhos abriram-se e fixaram-se na iluminação fluorescente.

– Sim, isso vai doer – V. rosnou.

O ruído da mão de V. e o grito foram altos, mas só o primeiro persistiu. No lugar do último surgiu um cheiro desagradável, como de queijo queimado emanando junto à fumaça cheia de fuligem. Levou menos de um segundo para que o poder daquela mão consumisse o idiota do assassino por completo, a carne e os ossos foram corroídos enquanto as pernas do bastardo balançavam e os braços se agitavam.

Quando tudo aquilo parecia mais um filme de terror, V. soltou a mão e cedeu. Teria sido ótimo conseguir tirar o peso do joelho machucado, mas simplesmente não tinha forças.

Seu último pensamento, antes de desmaiar, foi rezar para que os garotos dessem uma rápida lição em todos eles. O mhis não ia durar muito se não estivesse ali para sustentá-lo... e isso significava que estariam lutando frente a um grande público.

Tudo. Apagou.

Matrix é um filme de ação e ficção científica, dirigido pelos irmãos Wachowski. (N.E.)


CAPÍTULO 29

Quando Payne pendurou os pés para fora da cama, flexionou um e depois o outro várias vezes, maravilhada com o milagre de pensar alguma coisa e seus membros obedecerem ao comando.

– Aqui, coloque isso.

Olhando para cima, distraiu-se por um momento com a visão da boca de seu curandeiro. Não conseguia acreditar que eles tinham... que ele tinha... até que ela...

Sim, vestir um robe seria bom, pensou.

– Não vou deixá-la cair – disse Manny enquanto a ajudava a vestir-se. – Pode apostar sua vida nisso.

Ela acreditava nele.

– Obrigada.

– Sem problemas – Ele movimentou o braço. – Vamos lá... vamos fazer isso.

Só que a gratidão que Payne sentia era tão complexa que não pôde deixar de expressá-la.

– Por tudo, curandeiro. Tudo.

Ele sorriu brevemente.

– Estou aqui para fazer com que se sinta melhor.

– Sim, está.

Com isso, apoiou-se com cuidado sobre os pés.

A primeira coisa que notou foi que o chão sob seus pés era frio... e, em seguida, seu peso foi transferido para as pernas e as coisas se descontrolaram com isso: seus músculos tiveram espasmos sob a carga, e as pernas foram flexionadas. No entanto, seu curandeiro estava lá quando precisou dele, colocando o braço em volta de sua cintura para apoiá-la.

– Estou... – ela respirou com força. – Estou em pé.

– Com certeza está.

A parte inferior de seu corpo já não era mais a mesma, as coxas e panturrilhas tremiam tanto que seus joelhos se chocavam. Mas estava em pé.

– Vamos andar agora – ela disse, rangendo os dentes quando as sensações de calor e frio dispararam por entre seus ossos.

– Talvez, se for devagar seja...

– Vamos ao banheiro – ela exigiu. – Com isso, poderei aliviar minhas necessidades sozinha.

A independência era absolutamente vital. A permissão de ter a dignidade simples e profunda de atender às necessidades de seu corpo parecia uma dádiva dos céus, prova de que as bênçãos, assim como o tempo, eram relativas.

Só que quando tentou dar um passo adiante, não conseguiu erguer o pé.

– Transfira seu peso – o curandeiro disse quando ela girou e movimentou-se atrás dele. – Eu cuido do resto.

Quando apertou-lhe sobre a cintura, Payne fez como ele havia dito e sentiu uma de suas mãos segurar a parte de trás de sua coxa e levantá-la. Sem precisar de qualquer dica, inclinou-se para frente e administrou seu peso gentilmente enquanto ele colocava o joelho na posição correta, restringindo a curvatura da articulação enquanto alisava sua perna.

O milagre teve uma expressão mecânica, mas dar esses pequenos passos não foi menos emocionante: caminhou até o banheiro.

Quando o objetivo foi alcançado, seu curandeiro deu-lhe a privacidade necessária e ela usou a barra parafusada na parede para auxiliar seus movimentos.

Ela sorria o tempo todo, o que era totalmente ridículo.

Depois que terminou, ficou em pé sozinha usando a barra e abriu a porta. Seu curandeiro estava ali e ela o alcançou no mesmo momento que ele estendeu os braços para ela.

– Vamos voltar para a cama – ele disse, e era um comando. – Vou examiná-la e dar-lhe muletas.

Ela assentiu e percorreram o caminho até o colchão lentamente. Estava ofegante quando se deitou, mas mais do que satisfeita. Poderia lidar com isso. Dormência, frio e ser impedida de ir a qualquer lugar? Era uma sentença de morte.

Fechando os olhos, engoliu em seco em meio às profundas respirações enquanto Manny checava seus sinais vitais com eficiência.

– Sua pressão arterial está alta – disse enquanto colocava de lado o objeto com feitio de algema com o qual ela já estava bem familiarizada. – Mas isso pode ser devido ao que... hã, fizemos – limpou a garganta, algo que parecia fazer com frequência. – Vamos checar suas pernas. Quero que relaxe e feche os olhos. Não olhe, por favor.

Depois que fez o que ele pediu, disse:

– Pode sentir isso?

Franzindo a testa, tentou ordenar as várias sensações em seu corpo, desde a suavidade do colchão, o ar fresco sobre o rosto, até os lençóis sobre os quais ela apoiava as mãos.

Nada. Não sentia...

Sentando-se em pânico, olhou para suas pernas... apenas para verificar que ele não a estava tocando: as mãos estavam estendidas nas laterais do corpo dele.

– Você me enganou.

– Não. Não estou presumindo nada... é isso que estou fazendo.

Quando ela retomou a posição e fechou os olhos outra vez, quis xingar, mas conseguia entender o argumento dele.

– E agora?

Abaixo do joelho, houve um peso sutil. Conseguia sentir isso claro como o dia.

– Sua mão... está sobre a minha perna... – Abriu um pouco uma de suas pálpebras e viu que estava certa. – Sim, você está me tocando.

– Alguma diferença de antes?

Ela franziu a testa.

– Está um pouco... mais fácil de sentir.

– Essa melhora é muito boa.

Ele apalpou o outro lado. Em seguida, subiu até chegar perto do quadril. Depois, tocou a sola do pé e, então, na parte interna da coxa... e sobre o joelho.

– E agora? – perguntou uma última vez.

Em meio à escuridão, esforçou-se para perceber a sensação.

– Não sinto nada... agora.

– Certo. Terminamos.

Quando ela abriu os olhos, fitou-o e sentiu um calafrio estranho percorrê-la. Qual seria o futuro deles?, pensou. Após aquele período isolado de convalescença? Sua incapacidade simplificava muito as coisas para eles; mas isso acabaria se ficasse bem. Será que poderia tê-la então?

Payne estendeu a mão e apertou a dele.

– Você é uma bênção para mim.

– Por causa disso? – ele balançou a cabeça. – Foi você, bambina. Seu corpo está se recuperando sozinho. É a única explicação. – Curvando-se sobre ela, acariciou o cabelo solto e pressionou um beijo casto sobre sua testa. – Precisa dormir agora. Está exausta.

– Não vai embora, vai?

– Não. – Olhou para a cadeira que usou para alcançar o equipamento no teto. – Vou ficar bem aqui.

– Esta cama... é grande o suficiente para nós dois.

Quando hesitou, Payne teve a impressão de que algo havia mudado para ele. Mas tinha acabado de tratá-la com tamanha perfeição erótica... e seu aroma exalava, de maneira que ela sabia que estava excitado.

Ainda assim... havia uma distância sutil agora.

– Junte-se a mim – pediu. – Por favor.

Ele se sentou ao lado dela na cama e acariciou-lhe o braço lentamente, com um ritmo constante... e a bondade que mostrou deixou-a nervosa.

– Não acho que seja uma boa ideia – murmurou.

– Por que não?

– Acho que será mais fácil para todos se seu novo tratamento ficar apenas entre nós.

– Ah.

– Seu irmão me trouxe aqui porque faria qualquer coisa para deixá-la melhor. Mas há uma diferença entre teoria e prática. Se ele entrar aqui e nos encontrar na cama juntos... Vamos apenas adicionar mais um item na pilha de problemas que já temos.

– E se eu lhe disser para não se importar com o que ele pensa?

– Pediria que facilitasse para o cara – seu curandeiro deu de ombros. – Vou ser honesto com você. Não sou fã dele... mas, por outro lado, seu irmão teve que assistir todo seu sofrimento.

Payne respirou fundo e pensou “Oh, se isso fosse ao menos a metade da história”.

– A culpa é minha.

– Não pediu para sofrer um acidente.

– Não pela minha lesão... Mas pela desolação do meu irmão. Antes de sua chegada, pedi-lhe algo que não deveria e, depois, isso foi agravado com... – cortou o ar com a mão. – Sou uma maldição para ele e sua companheira. De fato, sou uma maldição.

Que tivesse perdido a fé na benevolência do destino era compreensível, mas o que fez ao pedir para Jane ajudá-la foi imperdoável. O interlúdio com seu curandeiro era uma revelação e uma bênção sem medida; mas tudo o que conseguia pensar agora era em seu irmão e sua shellan... e nas repercussões de sua covardia egoísta.

Praguejando, estremeceu.

– Preciso falar com meu irmão.

– Certo. Vou trazê-lo aqui para você.

– Por favor.

Seu curandeiro ergueu-se e caminhou para a saída. Com a mão na maçaneta, fez uma pausa.

– Preciso saber uma coisa.

– Pergunte e eu prometo responder qualquer coisa.

– O que aconteceu um pouco antes de me trazerem até você? Por que seu irmão saiu para me buscar?

A frase não foi formulada exatamente como uma pergunta. O que a fez suspeitar que ele conseguiria adivinhar.

– Isso é entre ele e eu.

Os olhos do curandeiro estreitaram-se.

– O que você fez?

Ela suspirou e mexeu no cobertor.

– Diga-me, curandeiro, se não tivesse esperança de se levantar da cama outra vez e não tivesse uma arma, o que faria?

As pálpebras de Manny fecharam-se com força por um breve momento. Então, abriu a porta.

– Vou encontrar seu irmão agora mesmo.

Quando Payne foi deixada sozinha com seus lamentos, resistiu ao impulso de amaldiçoar, jogar coisas, gritar com as paredes. Naquela noite de sua ressurreição, deveria estar em êxtase, mas seu curandeiro estava distante, seu irmão furioso, e ela sentia muito medo do futuro. No entanto, aquela sensação não durou muito.

Mesmo com sua mente agitada, seu esgotamento físico logo cancelou sua atividade cognitiva e foi sugada por um buraco negro sem sonhos que a consumiu, corpo e alma.

Seu último pensamento, antes de tudo escurecer e silenciar, foi a esperança de conseguir consertar as coisas.

E, de alguma forma, ficar com seu curandeiro para sempre.

No corredor, Manny jogou as costas contra a parede de concreto e esfregou o rosto.

Não era um idiota; então, no fundo, tinha uma ideia do que havia acontecido: somente sentindo um pouco do sabor do desespero na boca aquele vampiro idiota seria capaz de se abalar até o mundo humano para buscá-lo.

Mas Cristo... e se não o tivesse encontrado a tempo? E se o irmão dela tivesse esperado mais ou...

– Droga.

Afastando-se da parede, entrou na sala de suprimentos e pegou uniformes novos, colocando suas roupas usadas no cesto de roupa suja depois de trocá-las. A sala de exames foi sua primeira parada, mas Jane não estava lá, então, caminhou mais adiante, em direção àquele escritório com portas de vidro.

Não havia ninguém ali.

De volta ao corredor, ouviu o mesmo barulho de antes vindo da sala de musculação e olhou para dentro, recebendo o olhar de um cara de cabelos muito curtos que corria feito um louco na esteira. O suor literalmente escorria do filho da mãe, seu corpo era tão magro que era quase doloroso de se olhar.

Manny esquivou-se saindo da sala. Não havia razão alguma para perguntar qualquer coisa ao filho da mãe.

– Está procurando por mim?

Manny virou-se.

– Chegou em boa hora... Payne precisa ver o irmão. Sabe onde ele está?

– Está fora, lutando, mas volta antes do amanhecer. Tem alguma coisa errada?

Sentiu a tentação de dizer “Você é quem pode me dizer”, mas resistiu.

– É entre eles. Não sei muito bem por que ela quer vê-lo.

Os olhos de Jane se afastaram.

– Certo. Bem, darei o recado. Como ela está?

– Ela andou.

Jane virou a cabeça com rapidez.

– Sozinha?

– Com apenas um pequeno auxílio. Você tem algum equipamento? Muletas? Esse tipo de coisa?

– Venha comigo.

Ela o levou a um ginásio profissional e o atravessaram até chegarem a uma sala de equipamentos; Entretanto, não havia nenhuma bola de basquete, vôlei ou cordas ali. Centenas de armas estavam colocadas sobre as prateleiras: facas, shurikens*, espadas, matracas**.

– Que tipo de aulas de ginástica vocês têm aqui?

– Isso é para o programa de treinamento.

– Devem ter sido acumuladas ao longo de gerações, hein?

– Foram... pelo menos até começarem os ataques.

Passando por todo aquele cenário de filme de ação, ela empurrou uma porta identificada como “FISIO” e mostrou-lhe uma bela sala de reabilitação, muito bem equipada com tudo o que um atleta profissional precisaria para se manter flexível, seguro e muito ágil.

– Ataques?

– A Sociedade Redutora abateu dezenas de famílias – disse. – E o que restava da população fugiu de Caldwell. Estão voltando lentamente, mas os últimos tempos têm sido muito difíceis.

Manny franziu a testa.

– Que diabos é essa Sociedade Redutora?

– Os humanos não são a verdadeira ameaça. – Abriu a porta de um armário e passou a mão sobre todo o tipo de apoios, muletas, bengalas e suportes. – O que está procurando?

– É contra isso que seu marido luta todas as noites?

– Sim, é. Agora, o que acha que precisa?

Manny olhou para o perfil de Jane e somou dois mais dois.

– Ela pediu para que lhe ajudasse a se matar, não foi?

Os olhos de Jane fecharam-se.

– Manny... sem ofensas, mas não tenho forças para essa conversa.

– Foi o que aconteceu?

– Mais ou menos. Grande parte.

– Ela está melhor agora – disse ele asperamente. – Vai ficar bem.

– Então, está funcionando – Jane sorriu um pouco. – Um toque mágico e pronto.

Limpou a garganta e resistiu à vontade de pisar duro como um adolescente de catorze anos que tinha sido pego no maior amasso.

– Sim. Acho que sim. Hã, acho que vou levar um par de suportes para pernas e muletas de braços... acho que vai funcionar com ela.

Quando ele pegou os equipamentos, os olhos de Jane permaneceram fixos nele, a ponto dele ter de murmurar:

– Antes que pergunte, a resposta é não.

Ela riu baixinho.

– Não ia perguntar nada.

– Não vou ficar. Vou fazer com que fique em pé, ande e, então, vou voltar.

– Na verdade, não era isso que estava passando pela minha cabeça. – Ela franziu a testa. – Mas você poderia dar um jeito, sabe? Já aconteceu antes. Comigo. Butch. Beth. E pensei que gostasse dela.

– Gostar é pouco – disse em voz baixa.

– Então, não faça planos até que tudo esteja acabado.

Ele balançou a cabeça.

– Tenho uma carreira que está indo pelo ralo... a causa disso, aliás, foi as lavagens que fizeram no meu cérebro. Tenho uma mãe que não é muito afeiçoada a mim, mas como ela não se afastaria ao se perguntar por que não teve notícias minhas nem em feriados. E tenho um cavalo que está muito mal. Está me dizendo que seu garoto e a turma dele são como eu, com um pé em cada mundo? Não penso assim. Além disso, o que diabos eu faria? Cuidar dela é um prazer, posso garantir... mas não gostaria de fazer disso uma profissão ou perceber, com o tempo, que ela não gosta de mim.

– O que há de errado com você? – Jane cruzou os braços sobre o peito. – Não é por nada, mas você é um grande homem.

– Faz bem em fugir dos detalhes sobre isso.

– As coisas poderiam dar certo.

– Certo, digamos que isso aconteça. Agora, responda-me... por quanto tempo eles vivem?

– Como?

– A expectativa de vida dos vampiros. Quanto tempo.

– Isso varia.

– Varia décadas ou séculos? – quando ela não respondeu, ele assentiu. – Foi exatamente o que pensei... provavelmente poderei viver mais uns... quarenta anos? E as rugas começarão a aparecer em dez. Já tenho dores todas as manhãs e um início de artrite nos meus dois quadris. Ela precisa de alguém da mesma espécie para se apaixonar, não um humano que vai se tornar um paciente geriátrico em um piscar de olhos. – Ele balançou a cabeça outra vez. – O amor pode conquistar tudo, mas sejamos realistas. E essa realidade vai prevalecer sempre.

Agora, a risada dela foi alta.

– De alguma maneira, não posso argumentar contra isso.

Ele olhou para os suportes.

– Obrigado por isso.

– Por nada – disse lentamente. – E darei o recado a V.

– Ótimo.

De volta ao quarto de Payne, entrou silenciosamente e parou assim que passou pela porta. Ela estava dormindo profundamente na penumbra, o brilho havia desaparecido de sua pele. Será que acordaria paralisada outra vez? Ou o progresso que fez permaneceria?

Concluiu que teriam de descobrir.

Apoiando as muletas e os suportes contra a parede, foi até a cadeira dura perto da cama e sentou-se, cruzando as pernas e tentando ficar em uma posição confortável. Não conseguiria dormir de jeito nenhum; queria apenas observá-la...

– Junte-se a mim – disse ela no silêncio. – Por favor. Preciso do seu calor agora.

Ao permanecer onde estava, percebeu que a rotina de ficar sentado não dependia de fato do irmão dela. Era um mecanismo de sobrevivência que tinha de manter ativo para mantê-los separados o máximo possível. Com certeza teriam relações sexuais outra vez... provavelmente em breve. E ficaria com ela por horas se fosse preciso. Mas não poderia se dar ao luxo de cultivar alguma fantasia sobre uma relação duradoura.

Eram dois mundos diferentes; simplesmente, não pertencia ao dela.

Manny inclinou-se para frente, colocou sua mão na dela e apertou seu braço.

– Shhh... estou bem aqui.

Quando ela virou a cabeça em direção a ele, seus olhos estavam fechados e ele teve a impressão de que estava falando enquanto dormia.

– Não me deixe, curandeiro.

– Meu nome é Manny – ele sussurrou. – Manuel Manello... Médico.

Estrela-ninja. (N.P.) Também conhecidos como “nunchaku” ou apenas “chaku”. (N.P.)


CAPÍTULO 30

O assovio foi forte e alto, e ao percorrer todo o saguão de entrada da mansão, Qhuinn soube que a demanda estridente havia sido feita por John Matthew.

Só Deus sabia o quanto tinha ouvido aquilo nos últimos três anos.

Aparecendo no pé da grande escadaria, enxugou o rosto suado com a camiseta e apoiou-se no corrimão esculpido em madeira maciça. A cabeça, após o treino, estava leve e macia como um travesseiro... contrastando completamente com o resto do corpo: as pernas e nádegas pareciam pesar tanto quanto a mansão.

Quando ouviu o assovio outra vez, pensou “Oh, certo, alguém está conversando com ele”. Virando-se, deu uma olhada em John Matthew parado entre os batentes ornamentados da porta da sala de jantar.

Que diabos fez a si mesmo?, o cara gesticulou antes de apontar para a própria cabeça.

Bem, cuide da sua vida, Qhuinn pensou. No passado, uma pergunta como aquela englobaria muito mais do que uma maldita mudança no estilo do cabelo.

– Chama-se corte de cabelo.

Tem certeza? Acho que parece mais uma baita desordem.

Qhuinn esfregou o penteado que havia feito.

– Não é grande coisa.

Pelo menos sabe que perucas são uma opção, não é? Os olhos de John se estreitaram. E onde está todo seu aparato de metal?

– No meu armário de armas.

Não suas armas, a porcaria que coloca no rosto.

Qhuinn apenas balançou a cabeça e virou-se para sair, sem interesse em discutir sobre todos os piercings que havia tirado. Seu cérebro estava confuso e seu corpo estava exausto, muito tenso e dolorido devido às corridas diárias...

Ouviu o assovio outra vez, e quase soltou um palavrão sobre o ombro. Contudo, resolveu dar um fim àquela babaquice, pois economizaria tempo: John nunca o deixava em paz quando estava com aquele humor.

Olhando para trás, rosnou:

– O quê?

Precisa comer mais; seja junto aos outros ou sozinho. Está se transformando em um esqueleto...

– Estou bem.

Bem, então, ou você começa a mastigar ou vou trancar aquele ginásio e não lhe darei a chave. A escolha é sua. E vou chamar Layla. Ela está no seu quarto lhe esperando.

Qhuinn virou-se rapidamente. Foi uma má ideia: o saguão transformou-se em um carrossel. Agarrando o corrimão de novo, exclamou:

– Eu poderia ter feito isso.

Mas não fez, então, fiz por você... quase como abater uma dúzia de redutores, será minha boa ação da semana.

– Quer se candidatar a Madre Teresa? Vai ter mais sorte se praticar isso com outra pessoa.

Desculpe. Escolhi você e é melhor agilizar... não vai querer deixar a moça esperando. Ah, e enquanto Xhex e eu estávamos na cozinha, pedi para Fritz preparar uma refeição para você e entregá-la no seu quarto. Mais tarde.

Quando o cara saiu na direção da despensa, Qhuinn gritou:

– Não estou interessado em ser salvo, idiota. Posso cuidar de mim mesmo.

A resposta de John foi um dedo do meio erguido sobre sua cabeça.

– Oh, pelo amor de Deus – Qhuinn murmurou.

Não estava nem um pouco afim de lidar com Layla naquele momento. Nada contra a Escolhida, mas a ideia de estar em um espaço fechado com alguém interessado em sexo simplesmente o sufocava – o que era muito irônico. Até bem pouco tempo, o sexo não apenas fazia parte de sua vida – definia-o. Na última semana? A ideia de estar com alguém lhe dava náuseas.

Cristo, tal pensamento o deteve, e a última pessoa com quem gostaria de estar era com uma ruiva.

Muuuito engraçado: estava claro que a Virgem Escriba tinha um tremendo senso de humor.

Forçando seu peso morto a subir as escadas, estava pronto para dizer a Layla, da maneira mais educada possível, que deveria cuidar da vida dela...

A tontura que o atingiu no segundo patamar da escada impediu-o de continuar seu caminho.

Nas últimas sete noites, acostumou-se com a sensação de um flutuar constante que surgiu quando começou a correr o máximo e a comer o mínimo possível, e ficava esperando pelo momento em que as coisas se dissociavam. Pelo amor de Deus, era mais barato do que beber e não parava nunca... ao menos, não até comer.

Mas aquilo era diferente. Sentia como se alguém tivesse lhe dado uma rasteira por trás e levado suas pernas embora... só que sua linha de visão lhe dizia que ainda estava em pé. Assim como o fato de que os quadris estavam contra o corrimão...

Sem aviso, um de seus joelhos se dobrou e Qhuinn caiu como um livro da prateleira.

Estendendo uma das mãos, ergueu-se sobre o maldito degrau, até ficar praticamente pendurado no corrimão. Olhando para a perna, golpeou-a algumas vezes e respirou fundo, desejando que seu corpo obedecesse ao programa.

Não aconteceu.

Em vez disso, deslizou lentamente na vertical e teve de se virar para fazer parecer que estava apenas agachando-se sobre o tapete vermelho-sangue. Não conseguia respirar... ou melhor, estava respirando, mas era horrível. Deus... Caramba... Vamos lá...

Que droga.

– Senhor? – uma voz veio do alto.

Fazendo daquilo um inferno duplo.

Quando fechou os olhos, pensou que o fato de Layla ter aparecido naquele momento era a maldita lei de Murphy ao vivo e em cores.

– Senhor, posso ajudá-lo?

Por sua vez, aquilo talvez pudesse ter seu lado bom: melhor que um dos Irmãos.

– Sim. Meu joelho falhou. Machuquei correndo.

Olhou para cima enquanto a Escolhida flutuava até ele, a túnica branca era um choque contra a cor intensa do carpete e o brilho dourado e ressonante dos trabalhos artísticos no saguão.

Sentindo-se um completo idiota quando ela se abaixou até ele, tentou erguer-se sozinho... apenas para chegar a lugar nenhum.

– Eu, hã... devo avisar que peso muito.

Sua mão adorável agarrou a dele e ficou impressionado em ver que seus dedos tremiam quando aceitou a ajuda. Ficou surpreso também quando foi transportado com um único puxão.

– Você é forte – disse ele quando o braço de Layla envolveu sua cintura e o ergueu.

– Vamos caminhar juntos.

– Desculpe, estou suado.

– Não me importo.

Com isso, eles saíram. Movendo-se lentamente, avançaram até as escadas e dirigiram-se ao corredor do segundo andar, passando por várias portas fechadas: pelo escritório de Wrath. Pelo quarto de Tohrment. Pelo de Blay... não olhou para esse. Pelo quarto de Saxton... nem considerou o fato de jogar o puxa-saco do seu primo pela janela. Passaram também pelo quarto de John Matthew e Xhex.

– Vou abrir a porta – a Escolhida disse quando pararam em frente a seu quarto.

Tiveram de virar de lado para passar os batentes por causa do seu tamanho, e ele ficou muito grato quando a Escolhida fechou a porta e o levou para a cama. Ninguém precisava saber o que estava acontecendo e havia uma grande possibilidade da Escolhida aceitar suas desculpas.

Sentar-se era o plano. Só que no instante em que ela o soltou, caiu para trás sobre o colchão feito um tapete de boas-vindas. Olhando para seu corpo em direção aos tênis de corrida, perguntou-se por que não conseguia ver o carro que estava estacionado em cima dele. Definitivamente não era um carro pequeno. Parecia mais uma caminhonete.

Que seja, algo grande.

– Hã... ouça, poderia ir até meu casaco de couro? Tenho uma barra de cereais lá.

De repente, ouviu um ruído de metal sobre porcelana perto da porta. E, então, o cheiro de algo que havia sido preparado no jantar.

– Talvez goste deste rosbife, senhor.

Seu estômago apertou como um punho fechado.

– Deus... não...

– Tem arroz.

– Apenas... uma daquelas barras...

Um ruído sutil sugeriu que ela estava carregando uma bandeja e, um segundo depois, sentiu muito mais do que um simples aroma de qualquer coisa que Fritz havia planejado.

– Pare... Pare com isso, droga... – inclinou-se e tentou vomitar dentro de um cesto de lixo. – Nada... de comida...

– Precisa comer – veio uma resposta que soou forte, foi surpreendente. – E devo alimentá-lo.

– Não se atreva...

– Aqui – Em vez de carne ou arroz, apresentou-lhe um pequeno pedaço de pão. – Abra. Precisa de comida, senhor. Seu amigo John Matthew foi quem disse.

Afundando-se contra os travesseiros, colocou o braço sobre o rosto. Seu coração pulava dentro do peito e, de alguma maneira obscura, percebeu que poderia realmente se matar se continuasse agindo assim.

Engraçado, a ideia não lhe pareceu tão ruim, especialmente quando o rosto de Blay surgiu em sua mente.

Tão lindo. Muito, muito lindo. Parecia bobo e desestimulante chamar o cara assim, mas ele era. Aqueles malditos lábios eram o problema... belos e macios na parte inferior. Ou será que eram os olhos?

Tão azuis.

Tinha beijado aquela boca e amou isso. Encarado aqueles olhos e enlouquecido.

Poderia ter tido Blay primeiro... e para sempre. Mas em vez disso? Foi seu primo quem conseguiu...

– Oh, Deus... – ele gemeu.

– Senhor. Coma.

Sem energia para lutar contra qualquer coisa, fez como lhe pediu, mastigando mecanicamente, engolindo pela garganta seca. E fez outra vez. E outra vez. Descobriu que os carboidratos apaziguavam o terremoto em seu estômago e, mais rápido do que poderia imaginar, viu que ansiava por algo um pouco mais substancial. Em seguida, bebeu um pouco da água que Layla lhe oferecia e tomou goles breves.

– Talvez devêssemos fazer uma pausa – disse ele, segurando outro pão apenas no caso da maré mudar.

Quando virou para o lado, sentiu os ossos de suas pernas se chocarem e percebeu que seu braço estava pendurado de forma diferente... havia menos peitoral no caminho. Sua bermuda esportiva também estava diferente... mais larga na cintura.

Tinha feito todo aquele estrago em sete dias.

Nesse ritmo, sua aparência não seria mais a mesma em pouco tempo. Já não tinha mais piercings, como John Matthew bem tinha notado; não só havia raspado a cabeça como também retirado os acessórios metálicos da sobrancelha, do lábio inferior e uma dúzia ou mais deles das orelhas. As argolas em seus mamilos também se foram. Ainda tinha um pino na língua e em seu órgão genital, mas tudo que era visível havia desaparecido.

Estava farto de si mesmo, de muitas maneiras. Enjoado e cansado de ser o homem estranho fora de propósito, exausto da sua reputação de vadio, e sem interesse algum em se rebelar contra os mortos. Pelo amor de Deus, não precisava de um profissional para explicar a psicologia que lhe havia moldado: sua família era o retrato da família perfeita, faziam parte da glymera conservadora... em contrapartida era um bissexual prostituto, cheio de piercings pelo corpo, vestindo um estilo gótico e com um fetiche por agulhas. Mas quanto disso realmente partia dele e quanto fazia parte de uma vingança olho por olho?

Quem era de fato?

– Quer mais? – Layla perguntou.

Quando a Escolhida posicionou-se na frente dele com a baguete, Qhuinn decidiu parar com sua atitude.

Abrindo a boca, deu uma de filhote de passarinho e comeu a maldita coisa. E mais um pouco. E, então, como se ela tivesse lido sua mente, levou um garfo de prata com um pedaço de carne assada até seus lábios.

– Vamos tentar, senhor... Mas, mastigue devagar.

Era a possibilidade de comer um pouco de gordura. “Fome” tornou-se imediatamente o nome do jogo e ele parecia um tiranossauro com a carne, quase mordendo o garfo com a pressa. Mas Layla não parou, oferecendo uma rodada mais rápido do que conseguiria processar.

– Espere... pare – ele murmurou, com medo de vomitar.

Deitou-se de costas outra vez e deixou uma das mãos descansando sobre o peito. A respiração superficial foi sua salvação. Se fizesse um pouco mais de esforço, iria abrir a boca e esparramar resíduos de todas as cores pelo corpo inteiro.

O rosto de Layla apareceu sobre o dele.

– Senhor... talvez devêssemos parar.

Qhuinn estreitou o olhar nela e observou-a de maneira mais atenta pela primeira vez desde que tinha aparecido.

Deus, era uma visão, com todo aquele cabelo loiro pálido caindo do alto de sua cabeça e seu rosto de uma perfeição impressionante. Com lábios de morango e olhos verdes que brilhavam à luz das lâmpadas, era tudo o que a raça valorizava em termos de DNA... nenhum defeito visível.

Ele estendeu a mão a acariciou o coque. Tão macio. Não precisava de qualquer fixador de cabelo naqueles fios; era como se as ondas soubessem que sua função era emoldurar seus traços e estavam ansiosas para fazer o melhor que podiam nisso.

– Senhor? – ela disse ao ficar tensa.

Ele sabia o que estava sob o manto: seus seios eram absolutamente deslumbrantes e seu abdômen liso como uma tábua... aqueles quadris e aquele sexo macio como seda entre suas coxas eram o tipo de coisa pelas quais um homem nu se despedaçaria.

Sabia desses detalhes, pois já tinha visto tudo, tocado em boa parte de seu corpo e colocado a boca em alguns lugares.

Contudo, ainda não a tinha possuído. Não tinha ido muito longe também. Por ser uma ehros, havia sido treinada para o sexo, mas como não havia um Primale para auxiliar a Escolhida nesse sentido, era uma aprendiz acadêmica, nada de aprender saindo “em campo”, por assim dizer. E, por um tempo, Qhuinn ficou feliz em mostrar-lhe algumas regras do jogo.

Só que não parecia certo.

Bem, parecia que algo estava certo ali, mas havia coisas demais nos olhos dela e o coração de Qhuinn era pequeno demais para que as coisas continuassem.

– Vai tomar da minha veia, senhor? – ela sussurrou com voz rouca.

Ele apenas a olhou.

Os lábios vermelhos da Escolhida se separaram.

– Senhor, vai... tomar de mim?

Fechando os olhos, viu o rosto de Blay outra vez... mas não como agora, não o desconhecido frio que Qhuinn havia criado. O velho Blay, com aqueles olhos azuis que, de alguma forma, estavam sempre olhando em sua direção.

– Senhor... Sou sua para que me tome. Apesar de tudo. Eternamente.

Quando finalmente olhou para Layla outra vez, os dedos dela tinham alcançado a gola do manto e aberto bem as duas metades, exibindo o pescoço longo e elegante, as asas de sua clavícula e aquele colo glorioso.

– Senhor... quero servi-lo. – Afastando o tecido de cetim mesmo já bem disperso, oferecia não apenas sua veia, mas seu corpo. – Possua-me...

Qhuinn deteve as mãos dela quando se dirigiram para o laço em volta de sua cintura.

– Pare.

Seus olhos repousaram sobre o edredom e ela pareceu ter se transformado em pedra. Ao menos até se afastar dele e arrumar o manto grosseiramente.

– Então, deve tomar meu pulso. – A mão dela tremia quando puxou uma das mangas e prendeu-a mais acima do braço.

– Tome do meu pulso aquilo que necessita de maneira tão evidente.

Não olhava para ele. Provavelmente não conseguia, e, ainda assim, lá estava ela... encerrada em uma desgraça que nunca mereceu e a qual Qhuinn nunca teve a intenção de evocar para ela... ainda assim, oferecia-se para ele... só que não de uma maneira patética, mas por que havia nascido e sido criada para servir a um propósito que não tinha qualquer relação com o que ela queria, e tudo a ver com uma expectativa social... e estava determinada a viver de acordo com os padrões, mesmo se não fosse desejada por quem ela queria.

Cristo, sabia como era aquilo.

– Layla...

– Não se desculpe, senhor. Isso me humilha.

Ele pegou seu braço, pois teve a impressão de que Layla estava prestes a cair.

– Olhe, é culpa minha. Nunca deveria ter começado com essas coisas de sexo com você...

– E digo outra vez: “pare”. – Suas costas estavam rígidas e sua voz, estridente. – Deixe-me ir, senhor.

Ele franziu a testa.

– Caramba... você está fria.

– Estou?

– Sim. – Percorreu a mão sobre seu braço. – Precisa se alimentar? Layla? Ei?

– Sou alimentada do Outro Lado, no Santuário, então, não.

Certo, acreditava nisso. Se uma Escolhida estava lá, era por que existia sem existir, sua necessidade de sangue era suspensa... e parecia que estava sempre bem: nos últimos anos, Layla era a única que servia os Irmãos que não podiam se alimentar de suas shellans. Era a Escolhida pela qual todos optavam.

E, então, deu-se conta.

– Espere, você não chegou a ir para o norte?

Agora que Phury havia libertado as Escolhidas de sua existência rígida e confinada, a maioria delas deixou o Santuário onde ficavam presas por toda eternidade e dirigiram-se para os grandes campos de Adirondack para aprender sobre as liberdades que existiam na vida deste lado.

– Layla?

– Não, não vou mais para lá.

– Por quê?

– Não posso. – Ela interrompeu a conversa e puxou a manga de seu manto outra vez. – Senhor? Vai tomar da minha veia?

– Por que não vai para lá?

Os olhos dela finalmente encontraram os de Qhuinn e mostravam-se muito irritados. Algo que produziu um estranho alívio. A mansa aceitação de tudo fazia com que ele questionasse sua inteligência. Mas considerando sua expressão agora? Havia muita coisa sob o manto que ela usava... e não estava falando apenas de seu corpo perfeito.

– Layla. Responda-me. Por que não?

– Não posso.

– Quem disse? – Qhuinn não era muito próximo de Phury, mas o conhecia o suficiente para causar um problema ao Irmão. – Quem?

– Não se trata de uma pessoa e não se preocupe. – Apontou para o pulso. – Alimente-se para que fique tão forte quanto precisa estar e, então, eu lhe deixarei em paz.

– Tudo bem, se quer as palavras certas... O que é, então?

A frustração queimou em seu rosto.

– Não é problema seu.

– Eu decido o que é problema meu. – Não costumava ameaçar fêmeas, mas parecia que seu cavalheiro dormente tinha saído da zona neutra de ação e resolvido jogar tudo para o ar. – Fale comigo.

Ele era a última pessoa que pedia para colocar as cartas na mesa; ainda assim, lá estava ele, começando o jogo. Contudo, a questão era que não poderia deixar nada machucar aquela fêmea.

– Tudo bem. – Ela ergueu as mãos. – Se eu for para o norte, não poderei lhes servir quando precisarem de sangue. Por isso, vou ao Santuário para me recuperar e fico no aguardo de ser convocada novamente. Venho a este lado, sirvo-lhes e tenho que voltar em seguida; então, não, não posso ir para as montanhas.

– Jesus... – eles eram muitos. Deveriam ter previsto esse problema... ou Phury deveria. A menos que... – Já conversou com o Primale?

– Sobre o que, exatamente? – ela retrucou. – Diga-me, senhor, teria pressa de apresentar as falhas que cometeu no campo de batalha diante de seu rei?

– Onde, diabos, está falhando? Está mantendo, mais ou menos, quatro de nós vivos.

– Exatamente. E estou servindo todos vocês dentro de uma capacidade muito limitada.

Layla levantou-se em um salto e caminhou até a janela. Quando olhou para fora, ele a desejou: naquele momento, teria dado qualquer coisa para sentir por ela o mesmo que ela sentia por ele... afinal, ela era tudo que sua família valorizava, ocupava o topo social para uma fêmea. E ela o desejava.

Mas quando Qhuinn olhava para dentro, havia um outro nome em seu coração. E nada mudaria isso. Nunca... temia.

– Não sei quem ou o que sou exatamente – Layla disse, como se estivesse falando consigo mesma.

Bem, parecia que os dois estavam no mesmo trem que levava a lugar algum quando o destino era essa questão.

– Não vai descobrir até que deixe aquele Santuário...

– Impossível se eu tiver que servir...

– Nós podemos chamar outra pessoa. Simples assim.

Houve uma inspiração profunda e, então, ela disse:

– Mas é claro. Deve fazer como deseja.

Qhuinn observou a linha bem definida de seu queixo.

– Isso deveria ajudá-la.

Ela olhou por cima do ombro.

– Não ajuda... pois isso me deixaria sem nada. Sua escolha, meu destino.

– A vida é sua. Pode escolher.

– Não vamos mais falar disso. – Ela ergueu as mãos. – Pelo amor da Virgem Escriba, você não faz ideia do que é desejar coisas que não está destinado a ter.

Qhuinn soltou uma risada dura.

– Até parece que eu não sei. – Quando as sobrancelhas dela se ergueram, ele revirou os olhos. – Você e eu temos mais em comum do que imagina.

– Você tem toda liberdade do mundo. O que poderia desejar?

– Confie em mim.

– Bem, eu o quero e não posso tê-lo, isso não é minha escolha. Ao menos, servindo você e aos outros, tenho um propósito além de lamentar a perda de algo que sonhei.

Quando Qhuinn respirou fundo, teve de respeitar a fêmea. Não havia qualquer sinal de piedade, parada diante daquela janela. Estava expondo os fatos como os conhecia.

Droga, era mesmo exatamente o tipo de shellan que sempre desejou. Mesmo sendo um nada ambulante, no fundo sempre visualizou a si mesmo com uma fêmea, num relacionamento a longo prazo. Alguém com uma linhagem impecável e muita classe... uma fêmea a qual seus pais não só aprovariam, como talvez o respeitassem um pouco por tê-la a seu lado.

Aquele tinha sido seu sonho; no entanto agora que parecia poder se tornar realidade... agora, que estava em seu quarto, olhando para seu rosto... Agora, queria outra pessoa totalmente diferente.

– Gostaria de sentir algo profundo por você – disse de maneira rude, oferecendo a verdade em troca da verdade. – Faria quase qualquer coisa para sentir o que deveria por você. Você é... a minha fantasia em termos de fêmea, tudo o que sempre desejei, mas que pensei que nunca poderia ter.

Seus olhos se abriram tanto que pareciam duas luas, belos e brilhantes.

– Então, por quê...?

Ele esfregou o rosto e perguntou-se o que diabos estava dizendo, o que diabos estava fazendo.

Quando abaixou as mãos, sentiu que deixou algo úmido e escorregadio para trás e recusava-se a pensar muito sobre isso.

– Estou apaixonado – disse com voz rouca. – Por outra pessoa. É por isso.


CAPÍTULO 31

Comoção no corredor. Uma confusão de passos... palavrões ditos em voz baixa... um ruído inoportuno em dado momento.

Todo aquele barulho acordou Manny e ele passou de um estado meio adormecido para a plena consciência em um piscar de olhos, como se um desfile de sons estivesse passando pelo corredor. A barulheira continuou até ser interrompida drasticamente, como se uma porta tivesse sido fechada naquele espetáculo, seja lá o que tenha sido.

Arrumando o local onde havia apoiado sua cabeça na cama de Payne, olhou para a paciente. Linda, simplesmente linda. E dormia tranquila...

Um raio de luz atingiu o rosto de Manny.

A voz de Jane soou tensa; quando parou no batente da porta, via-se apenas o recorte escuro do perfil de seu corpo.

– Preciso de mais um par de mãos aqui. Agora.

Não precisou pedir duas vezes. Manny correu para a porta, o cirurgião dentro dele estava pronto para trabalhar, sem fazer perguntas.

– O que temos?

Enquanto se apressavam pelo corredor, Jane passou a mão sobre seu uniforme manchado de vermelho.

– Traumas múltiplos. A maioria de facas, um tiro. E estão trazendo outro.

Invadiram a sala de exames e, meu Deus... caramba... havia homens feridos por toda parte... nos cantos, apoiados sobre a mesa, inclinados no balcão, xingando enquanto andavam impacientes pela sala. Elena ou Elaina, a enfermeira, estava ocupada pegando bisturis, linhas e outros acessórios, e também havia um pequeno homem idoso servindo água para todos em uma bandeja de prata.

– Ainda não avaliei todos – Jane disse. – São muitos.

– Onde encontro um estetoscópio e um aparelho de pressão extras?

Jane foi até um armário, abriu uma gaveta e puxou os dois.

– A pressão é muito mais baixa do que está acostumado a ouvir. O batimento cardíaco também.

O que significava que, mesmo sendo um profissional da medicina, não tinha como julgar de fato se aqueles pacientes estavam mal ou não.

Colocou o equipamento de lado.

– É melhor você e a enfermeira fazerem as avaliações. Vou fazer a preparação.

– Deve ser melhor mesmo – Jane concordou.

Manny aproximou-se da enfermeira loira que estava trabalhando de maneira eficiente com os suprimentos.

– Vou assumir a partir daqui. Ajude Jane com as leituras.

Ela assentiu brevemente e foi direto medir os sinais vitais.

Manny abriu as gavetas com rapidez e tirou kits cirúrgicos, alinhando-os sobre os balcões. Os analgésicos estavam em um armário vertical; encontrou as seringas mais embaixo. Quando terminou de vasculhar tudo, estava impressionado com a qualidade profissional: não sabia como Jane fizera aquilo, mas havia tudo o que um hospital precisava.

Dez minutos depois, Jane, ele e a enfermeira encontraram-se no meio da sala.

– Temos dois muito mal – disse Jane. – Rhage e Phury estão perdendo muito sangue... temo que as artérias tenham sido cortadas pois os cortes são muito profundos. Z. e Tohr precisam tirar radiografias e acho que Blaylock está com uma concussão juntamente com uma ferida terrível no estômago.

Manny foi até a pia e iniciou o procedimento de higienização.

– Vamos fazer isso. – Olhou ao redor e apontou para o mamute loiro com uma poça de sangue sob a bota esquerda. – Eu cuido dele.

– Certo, eu vou cuidar de Phury. Ehlena, comece a tirar as radiografias dos ossos quebrados.

Considerando que aquela era uma situação urgente, Manny assumiu o comando do seu paciente que estava estendido no chão, exatamente onde ele havia caído mais cedo. O grande bastardo vestia couro preto da cabeça aos pés e estava com muita dor, sua cabeça caiu para trás e apertava os dentes.

– Vou começar a trabalhar em você – disse Manny. – Tem algum problema com isso.

– Não se conseguir impedir meu sangramento.

– Considere feito. – Manny pegou uma tesoura. – Vou cortar a perna da calça primeiro e tirar a bota.

– Botas de combate – o cara gemeu.

– Tudo bem. Seja lá como a chama, está sendo retirada.

Nada de desamarrar... cortou o cordão entrelaçado na frente da maldita coisa e tirou aquilo de um pé que tinha o tamanho de uma mala. Em seguida, o couro deslizou facilmente saindo do caminho até o quadril, caindo para os lados como uma segunda pele.

– O que temos, doutor?

– Um peru de Natal, amigo.

– Tão fundo assim?

– Sim. – Não havia necessidade de mencionar que o osso estava exposto e que o sangue estava escorrendo num fluxo constante. – Tenho que me limpar outra vez. Já volto.

Depois que saiu da pia, Manny colocou um par de luvas, sentou-se e pegou um frasco de lidocaína.

O cara grande, loiro e ensanguentado o deteve.

– Não se preocupe com a dor, doutor. Costure-me e cuide dos meus Irmãos, eles precisam mais do que eu. Eu cuidaria disso sozinho, mas Jane não vai permitir.

Manny parou.

– Você costuraria a si mesmo?

– Faço isso há décadas, antes mesmo do senhor ter nascido, doutor.

Manny balançou a cabeça e murmurou:

– Desculpe, fortão. Não vou correr o risco de você se repuxar enquanto eu estiver trabalhando no seu vazamento.

– Doutor...

Manny apontou a seringa direto no belo rosto do seu paciente.

– Cale-se e deite-se. Deve apagar com isso, então, não se preocupe... haverá muito para contar e bancar o herói.

Outra pausa.

– Tudo bem, doutor, tudo bem. Não fique chateado. Pode apenas me pular... e ajudá-los.

Era difícil não respeitar a lealdade do cara.

Trabalhando rápido, Manny anestesiou a área da melhor maneira possível, empurrando a agulha contra a carne sobre um círculo definido. Cristo, aquilo o levava de volta à faculdade de medicina e, de uma maneira estranha, trouxe-lhe de volta à vida, produzindo um efeito que as operações que vinha realizando ultimamente não produziam mais.

Aquilo era... a realidade no volume máximo, e seria um imbecil se não gostasse do som.

Agarrando uma pilha de toalhas limpas, empurrou-as sob a perna e enxaguou o ferimento com um líquido antisséptico. Quando o paciente assoviou e enrijeceu, disse:

– Calma, garotão. Estamos apenas limpando o ferimento.

– Sem... problema.

Até parece. Manny desejava poder fazer mais para controlar a dor, mas não havia tempo. Havia fraturas expostas para lidar. Estabilizar. Seguir em frente.

Quando alguém gemeu e houve outra série de xingamentos soando a sua esquerda, Manny cuidou mais um pouco da artéria; em seguida, cobriu o músculo e dirigiu-se para o tecido da coxa.

– Está indo bem – murmurou quando notou que os punhos do paciente estavam fechados com força.

– Não se preocupe comigo.

– Certo, certo... seus irmãos – Manny parou por um segundo. – Você está bem, sabe disso.

– Caramba... – o lutador sorriu, mostrando as presas. – Estou... perfeito.

Então, o cara fechou os olhos e recostou-se, a mandíbula estava tão tensa que era um milagre conseguir engolir a saliva.

Manny trabalhou o mais rápido que pôde sem sacrificar a qualidade. E quando começou a limpar a linha de sutura com o auxílio de uma gaze, ouviu Jane gritar.

Virando a cabeça, murmurou:

– Droga.

Na porta de entrada da sala de exames, o marido de Jane estava envolvido nos braços pelo cara do boné do Red Sox, parecendo que tinha sido atropelado por um carro: a pele estava pálida, os olhos eram minúsculos na cabeça e... santo Deus, sua bota – bota de combate – estava apontando para o lado errado.

Manny gritou para a enfermeira.

– Pode fazer um curativo nisso? – olhando para seu atual paciente, disse: – Tenho que dar uma olhada no...

– Vá – o cara deu um tapa no ombro dele. – E obrigado, doutor. Não vou esquecer isso.

Enquanto se dirigia para o recém-chegado, Manny teve de se perguntar se o cara do cavanhaque de boca grande permitiria que ele o operasse. Porque aquela perna... Parecia completamente destruída mesmo observando rapidamente do outro lado da sala.

A consciência de Vishous oscilava no momento em que Butch entrou na sala de exame, carregando-o.

Aquela combinação de ferimentos no joelho e no quadril ia além da agonia, adentrava outro território, e as sensações esmagadoras minavam suas forças e seu processo cognitivo. Entretanto, não era o único que estava mal. Quando Butch entrou cambaleando fraco pela porta, bateu a cabeça de V. contra o batente.

– Que inferno!

– Droga... desculpe.

– Não... é nada demais – V. disse ofegante quando a dor de cabeça começou a gritar, o cara poderia até harmonizá-la com um rock pesado estilo Welcome to the Jungle.

Para calar o concerto do inferno, abriu os olhos e esperou uma distração.

Jane estava bem na frente dele, havia uma agulha de sutura em sua mão ensanguentada e envolta por uma luva, seus cabelos estavam puxados para trás por uma faixa.

– Ela não – gemeu. – Ela... não...

Médicos nunca deveriam tratar seus companheiros; era a receita para o desastre. Se seu joelho ou quadril tivesse sofrido um dano permanente, não queria que aquilo pesasse na consciência dela. Deus era testemunha de que já tinham problemas suficientes.

Manny parou em frente a sua shellan.

– Então, sou sua única opção. Não precisa agradecer.

Vishous revirou os olhos. Ótimo; que bela escolha.

– Você consente? – o humano perguntou. – Talvez queira pensar sobre isso um pouco, assim, suas articulações podem se recuperar assumindo a forma da perna de um flamingo. Ou talvez sua perna gangrene e caia.

– Bem, que seja... não é... uma negociação.

– E a resposta é...?

– Tudo bem. Sim.

– Coloque-o sobre a mesa.

Butch foi cuidadoso ao deitá-lo, mas mesmo assim, V. quase vomitou sobre os dois quando seu peso foi redistribuído.

– Filho da mãe... – Assim que o xingamento saiu dos seus lábios, o rosto do cirurgião apareceu sobre o dele. – Desculpe, Manello... não acho que queira... ser tão próximo a mim...

– Quer me dar um soco? Tudo bem, mas espere até eu dar um jeito na sua perna.

– Não, estou... enjoado.

Manello balançou a cabeça.

– Preciso de analgésico aqui. Tragam-me um pouco de Demer...

– Demerol não – V. e Jane disseram juntos.

Os olhos de V. dispararam na direção dela. Estava do outro lado, no chão, inclinada sobre o estômago de Blaylock, costurando um corte médio. Suas mãos eram firmes e seu trabalho absolutamente perfeito; tudo nela traduzia a imagem da competência profissional, menos as lágrimas que escorriam em seu rosto.

Com um gemido, olhou para o lustre acima dele.

– Pode ser morfina? – Manello perguntou enquanto cortava a manga da jaqueta de motoqueiro. – E não se incomode em ser durão. A última coisa que preciso é de você bufando enquanto vasculho o que há aqui embaixo.

Jane não respondeu dessa vez, então, V. o fez.

– Sim. Não tem problema.

Quando uma seringa foi preenchida, Butch aproximou-se do cirurgião. Mesmo com a respiração debilitada, o tira foi totalmente ameaçador quando falou:

– Não preciso dizer para não ferrar com o meu amigo, certo?

O cirurgião voltou-se para sua rotina de frasco, agulha e seringa.

– Não estou interessado em sexo no momento, muito obrigado. Mas se estivesse, com certeza não seria com ele. Então, em vez de se preocupar com quem estou pegando, por que não faz um favor a todos nós e vai tomar um banho? Está fedendo.

Butch piscou. Então, sorriu um pouco.

– Você honra as calças que veste.

– E elas cobrem duas bolas feitas de bronze, tão grandes quanto os sinos de uma igreja.

A próxima coisa que V. soube foi que alguma coisa fria estava sendo esfregada na junção do seu braço, em seguida, houve uma picada e, depois, começou a fazer um pequeno passeio, seu corpo transformou-se em uma bola de algodão, muito leve e arejada. De vez em quando, a dor irrompia, balançando-se em seu intestino e cravando as garras em seu coração. Mas nada estava ligado àquilo que Manny fazia em sua lesão: V. não conseguia tirar os olhos de sua companheira enquanto tratava dos Irmãos.

Através do painel ondulado de sua visão, observou quando ela lidou com Blay e depois com Tohrment. Não conseguia ouvir o que ela dizia, pois seus ouvidos não estavam funcionando muito bem, mas era evidente que Blay estava grato e Tohr pareceu se acalmar apenas por sua presença. De tempos em tempos, Manello perguntava-lhe alguma coisa, ou Ehlena a detinha com uma pergunta, ou Tohr estremecia e ela fazia uma pausa para acalmá-lo.

Aquela era sua vida, não? Aquele processo de cura, a busca por excelência, a devoção permanente a seus pacientes.

Seu dever para com eles a definia, não era isso?

E enxergá-la assim fez com que repensasse o que tinha acontecido entre ela e Payne. Se Payne estava tão disposta a tirar a própria vida, com certeza Jane teria tentado impedi-la. E, então, quando ficou evidente que não conseguiria...

De repente, como se soubesse que estava olhando para ela, os olhos de Jane fixaram-se nos dele. Estavam tão obscurecidos que não conseguia dizer qual era a cor deles e, por um momento, ela perdeu sua forma corpórea, como se ele tivesse sugado a vontade de viver de dentro dela.

O rosto daquele cirurgião entrou no caminho.

– Precisa de mais analgésico?

– O quê? – V. perguntou com a sensação de que a língua estava grossa e seca.

– Você gemeu.

– Não... é... o joelho.

– Não é apenas o joelho.

– O quê...?

– Acho que deslocou o quadril. Vou tirar totalmente as calças do caminho.

– Que seja...

Quando V. voltou a olhar para Jane, tinha apenas a vaga impressão de que uma tesoura cortava os dois lados da sua calça, mas soube exatamente quando o cirurgião tirou o couro por completo. O cara soltou um silvo agudo... que foi rapidamente encoberto.

Com certeza aquela reação não estava relacionada aos avisos tatuados no Antigo Idioma.

– Desculpe, doutor – V. resmungou, sem ter certeza do porquê estava se desculpando pela confusão que havia abaixo da sua cintura.

– Eu vou, hã... Vou cobri-lo. – O humano saiu e voltou com um cobertor que colocou sobre a parte inferior do abdômen de V. – Só preciso examinar suas articulações.

– Bem... faça isso.

Os olhos de Vishous voltaram para Jane e viu-se pensando... se ela não tivesse morrido e sido trazida de volta como foi, será que chegariam a tentar ter um filho? Duvidava que pudesse gerar alguma coisa além de um orgasmo se considerasse o dano que seu pai havia lhe feito. E ele nunca quis ter filhos... ainda não queria.

No entanto, ela teria sido uma ótima mãe. Era boa em tudo que fazia.

Será que sentia falta de estar viva?

Por que nunca havia perguntado isso a ela?

A volta do rosto do cirurgião interrompeu seus pensamentos.

– Seu quadril está deslocado. Vou ter que cuidar disso antes de trabalhar no joelho, pois estou preocupado com sua circulação. Certo?

– Apenas me conserte – V. gemeu. – Não importa o que for preciso.

– Bom. Vou colocar o joelho em um suporte temporário. – O humano olhou para Butch que, apesar do pedido do banho, tinha se apoiado contra a parede a pouco mais de meio metro de distância. – Preciso da sua ajuda. Não há mais ninguém por perto com as mãos livres.

O tira mostrou-se bem disposto, juntando suas forças e se aproximando.

– O que quer que eu faça?

– Segure a bacia dele no lugar. – O homem pulou sobre a mesa de aço inoxidável colocando-se em cima das pernas de V., agachando-se para evitar bater a cabeça no lustre. – Vai ser um trabalho braçal... não existe outra maneira de fazer isso. Quero que olhe para mim, e vou lhe mostrar onde deve colocar as mãos.

Butch seguiu as instruções, deslizando e descendo as mãos.

– Onde?

– Aqui. – V. teve a vaga sensação de um peso quente dos dois lados do quadril. – Um pouco mais para fora... direita. Bom.

Butch olhou para V. sobre o ombro.

– Está pronto para isso?

Que pergunta tola. Era como perguntar se alguém estava pronto para uma colisão frontal.

– Vai fundo – V. murmurou.

– Apenas concentre-se em mim.

E V. concentrou-se... observando as nódoas esverdeadas nos olhos cor de avelã do tira, os contornos daquele nariz quebrado e a barba por fazer.

Quando o humano agarrou a parte inferior da coxa de V. e começou a levantar, V. ergueu-se contra a mesa, sua cabeça caiu para trás, esticando o queixo.

– Calma – o tira disse. – Concentre-se em mim.

Uh-hum, certo. Sentiu dor e, em seguida, mais DOR. Aquilo era DOR.

Vishous esforçou-se para respirar, seus caminhos neurológicos estavam repletos de sinais, seu corpo explodia mesmo com a pele intacta.

– Diga a ele para respirar – alguém disse. Provavelmente o humano.

Sim, aquilo ia acontecer mesmo. Ou não.

– Certo, no três, eu vou forçar a articulação de volta no lugar, pronto?

V. não fazia ideia com quem o cara estava falando, mas se fosse com ele, não tinha como responder. Seu coração pulava, os pulmões eram como pedras e seu cérebro parecia Las Vegas com suas luzes noturnas e...

– Três.

Vishous berrou.

A única coisa que soou mais alto foi o estalo do quadril sendo recolocado, por assim dizer. E a última coisa que viu antes de se hospedar no Hotel da Inconsciência foi Jane virando-se em pânico. Havia horror puro nos olhos dela, como se a pior coisa que ela pudesse imaginar fosse vê-lo em agonia...

E foi então que V. soube que ainda a amava.


CAPÍTULO 32

Na mansão, no quarto de Qhuinn, não havia nada além de um silêncio avassalador... o que era normal quando se jogava uma bomba, fosse real ou metafórica.

Deus do céu, não conseguia acreditar que havia dito aquelas palavras: mesmo sabendo que apenas ele e Layla estavam ali, sentiu como se tivesse subido no topo de um edifício no centro de Caldwell e anunciado aos gritos a novidade.

– Seu amigo – sussurrou Layla. – Blaylock.

O coração de Qhuinn congelou, mas depois de um momento, forçou-se a concordar.

– Sim. É ele.

Esperou por algum tipo de nojo ou careta ou... mesmo um choque. Por vir de onde vinha, sabia muito bem o que era homofobia... e Layla era uma Escolhida, pelo amor de Deus, aquilo faria todo aquele bando mais tradicional da glymera ficar completamente encantado.

Aquele belo olhar permaneceu em seu rosto.

– Acho que já sabia. Vi como ele olhou para você.

Bem, aquilo não existia mais. E...

– Não lhe incomoda? Que seja outro macho?

Houve uma pequena pausa, e, então, a resposta que lhe deu transformou-o de maneira curiosa:

– Nem um pouco. Por quê?

Qhuinn teve de desviar o olhar. Pois temia que seus olhos estivessem brilhando.

– Obrigado.

– Pelo quê?

Tudo o que ele conseguiu fazer foi encolher os ombros.

Quem diria que a aceitação seria curiosamente tão dolorosa quanto toda a rejeição que sempre sofreu?

– Acho melhor ir – disse asperamente.

– Por quê?

Porque estava considerando seriamente a ideia de encharcar o quarto e não queria dar uma de salgueiro chorão na frente de ninguém, nem mesmo dela.

– Senhor, está tudo bem – soava uma seriedade tremenda em sua voz. – Não o julgo se a pessoa por quem está apaixonado é macho ou fêmea... mas pela forma como a ama.

– Então, deve me odiar – Deus, por que será que sua boca ainda estava se mexendo? –, pois parti seu coração.

– Então... ele não sabe o que o senhor sente por ele?

– Não – Qhuinn estreitou os olhos na direção dela. – E não vai saber, ficou claro? Ninguém sabe.

Ela inclinou a cabeça.

– Seu segredo está seguro comigo. Mas sei bem como ele olhou para o senhor. Talvez devesse dizer a ele que...

– Deixe-me poupá-la de uma lição que aprendi da maneira mais difícil: algumas vezes é tarde demais. Ele está feliz agora... e merece isso. Dane-se, quero que ele tenha amor, mesmo que eu esteja apenas observando isso de longe.

– Mas e quanto a você?

– Quanto a mim? – Passou os dedos ao longo do cabelo e percebeu que tinha raspado tudo. – Ouça, chega... Só lhe disse isso tudo para que saiba que essa coisa entre você e eu não é por não ser boa ou atraente o suficiente. Sinceramente? Estou farto de estar com outra pessoa para fins sexuais. Não vou fazer mais isso. Não me leva a lugar nenhum... sim. Parei com isso.

Que irônico. Agora que não estava com Blay, estava sendo fiel ao filho da mãe.

Layla atravessou o quarto, aproximando-se dele, e sentou-se na cama, posicionando as pernas e alisando o manto com mãos pálidas e elegantes.

– Fico feliz por ter me contado.

– Sabe... eu também. – Estendeu a mão e segurou a dela. – E eu tenho uma ideia.

– Mesmo?

– Amigos. Você e eu. Você vem até aqui, eu a alimento e ficamos juntos. Como amigos.

O sorriso dela foi incrivelmente triste.

– Devo dizer que... sempre soube que não se interessava por mim de uma maneira especial. Foi muito contido ao me tocar e mostrou-me coisas que me deixaram extasiada... mas sob a onda de paixão que senti, eu sabia...

– Também não está apaixonada por mim, Layla; simplesmente não está. Sente muita coisa física e isso faz com que pense que é emocional. O problema é que o corpo precisa de muito menos que a alma para se conectar.

Ela colocou a mão livre sobre o coração.

– A dor está aqui.

– Porque você tem uma queda por mim. Mas vai passar, especialmente quando conhecer o cara certo.

Deus, dê só uma olhada nisso; de prostituto a conselheiro de acampamento religioso em apenas uma semana. Próximo passo: ser convidado por algum programa de variedades dedicado ao público feminino.

Ele estendeu o braço.

– Tome da minha veia, assim, poderá ficar mais deste lado e descobrir o que deseja na vida... não o que deve ser ou fazer, mas o que realmente quer. Posso até ajudá-la, se puder. Deus sabe que sei muito bem como é estar perdido.

Houve um longo momento, e, então, aqueles olhos verdes voltaram-se para os dele.

– Blaylock... não sabe o que está perdendo.

Qhuinn balançou a cabeça com tristeza.

– Oh, ele sabe muito bem. Pode acreditar.

Não foi fácil limpar tudo.

Enquanto Jane tirava um balde e um esfregão do armário de limpeza, deu uma olhada no que precisavam obter para repor todo o material necessário: utilizaram centenas de pacotes de gaze, o número de agulhas restantes era uma piada, e estavam quase sem curativos...

Abrindo a porta da sala de exames com o quadril, virou o balde com o esfregão e fez uma pausa. Havia sangue por todo o chão e também nas paredes. Chumaços de gaze branca manchadas de vermelho eram como cotões do Freddy Krueger. Três sacos de lixo de risco biológico estavam tão cheios ao ponto de parecer que precisavam de um antiácido para o inchaço.

Meeeeeu Deus...

Observando aquilo tudo, percebeu que se Manny não estivesse com ela, poderiam ter perdido um dos Irmãos. Rhage, por exemplo, poderia ter sangrado demais. Ou Tohr... pois o que parecia apenas uma lesão no ombro acabou mostrando ser muito, muito mais.

Manny acabou tendo de operá-lo. Depois de terminar a cirurgia em Vishous.

Fechando os olhos, apoiou a cabeça contra o cabo do esfregão. Como fantasma, não ficava exausta da maneira como costumava: nada mais de dores nem da sensação de que alguém tinha amarrado pesos de musculação em seus dois tornozelos. Agora era sua mente que se cansava, a ponto de ter de fechar os olhos para não ter de ver, nem fazer absolutamente nada... como se a placa-mãe de seu cérebro precisasse ser desligada para esfriar. E ela dormia em seguida. E sonhava.

Ou... como provavelmente seria o caso de hoje... não. De tempos em tempos a insônia ainda era um problema...

– Vai precisar varrer primeiro.

Levantando a cabeça, tentou sorrir para Manny.

– Acho que você está certo.

– Que tal deixar que eu cuide disso?

Sem chance. Não estava com pressa de se fechar na sala de recuperação e ficar olhando para o teto. Além disso, Manny devia estar tão cansado quanto ela.

– Quanto tempo se passou desde que se alimentou pela última vez? – ela perguntou.

– Que horas são?

Ela olhou para o relógio.

– Uma hora.

– Da tarde?

– Sim.

– Umas doze horas ou mais – ele pareceu ficar surpreso com isso.

Pegou o telefone sobre a mesa.

– Vou ligar para Fritz.

– Ouça, não precisa...

– Deve estar quase desmaiando.

– Na verdade, estou ótimo.

O ser humano não era assim. A menos que... Ora, droga, ele parecia energizado em vez de esgotado. Que fosse; ainda assim iria alimentá-lo.

O pedido que fez não demorou mais que um minuto e Fritz ficou emocionado com a ordem. Geralmente, depois da Última Refeição, o mordomo e sua equipe retiravam-se para um breve descanso antes da limpeza diária começar, mas preferiam continuar trabalhando.

– Onde fica o armário da limpeza? – Manny perguntou.

– No corredor. À sua esquerda.

Enquanto ela enchia o balde com água sanitária e água, ele encontrou uma vassoura, voltou à sala e começou a cuidar das coisas.

Enquanto trabalhavam juntos, ela só conseguia pensar em Vishous. Durante a correria em tratar os Irmãos, havia tanto em que se concentrar; mas agora, passando as tiras do esfregão pelo chão, era como se toda a angústia que havia tido nos bastidores de seu cérebro se libertasse e corresse contra as suas grades de proteção mental.

Qualquer pessoa menos ela.

Ela o ouviu dizer isso várias vezes; viu seu rosto pálido, seus olhos gélidos e a maneira como a deixou de fora.

Engraçado... a eternidade que lhe tinha sido concedida parecia ser a maior bênção de todas. Até pensar nas eras que viveria sem o homem que amava.

Agora, era uma maldição.

Para onde iria? Não poderia continuar no complexo. Não se continuassem como estranhos. Seria muito difícil para todos...

– Aqui.

Jane pulou quando um tecido flutuou na frente de seu rosto. O pequeno quadrado branco estava pendurado nas pontas dos dedos firmes de Manny e ele o balançou outra vez quando percebeu que ela apenas olhava para a coisa.

– Está chorando – ouviu ele dizer.

Apoiando a alça do esfregão na curva do cotovelo, apanhou o que tinha lhe oferecido e ficou surpresa ao descobrir que ele estava certo: quando retirou de seus olhos o lenço de papel e o observou, estava úmido.

– Sabe? – Manny falou lentamente. – Vê-la assim me dá vontade de amputar a maldita perna dele.

– Isso é culpa dele apenas em parte.

– Isso é o que você diz. Posso olhar para a situação da maneira que eu quiser.

Ela ergueu o olhar.

– Tem outro desses?

Ele estendeu uma caixa e tirou mais alguns. Enxugou. Enxugou. Um delicado assoar de nariz. Enxugou. Ela terminou a rápida crise de choro com um... dois... três... lenços jogados no lixo.

– Obrigada por me ajudar. – Quando ela olhou para cima, havia um olhar furioso em seu rosto e teve de sorrir. – Senti falta disso.

– Falta do quê?

– Dessa expressão enfurecida que usa com tanta frequência. Lembro-me dos bons e velhos tempos. – Ela o encarou com firmeza. – V. vai ficar bem?

– Se eu não acabar com ele por sua causa... sim.

– Tão gentil – e ela estava sendo sincera. – Você foi incrível hoje.

Estava sendo sincera também.

Manny colocou os lenços de papel ao lado, sobre o balcão.

– Você também. Isso acontece muito?

– Na verdade, não. Mas tenho a impressão de que as coisas podem mudar.

Voltando ao trabalho, deu algumas passadas superficiais com o esfregão, sem conseguir melhorar de fato a situação do piso, mas apenas espalhando o sangue pelo local. Daquela forma, teria mais sorte se esguichasse o local com uma mangueira.

Poucos minutos depois, houve uma batida na porta e Fritz colocou a cabeça para dentro.

– Sua refeição está pronta. Onde gostaria de jantar?

– Ele vai comer no escritório – Jane respondeu. – Na mesa. – Olhou para o antigo colega. – Melhor ir antes que esfrie.

O olhar de Manny foi o equivalente a um dedo do meio estendido, mas ela apenas acenou, dando um tchauzinho.

– Vá. E descanse um pouco depois.

Só que ninguém dizia a Manny Manello o que fazer.

– Vou para lá em um minuto – disse para o mordomo.

Quando Fritz saiu, o antigo chefe de Jane colocou as mãos sobre os quadris. E apesar dela já se preparar para uma discussão, tudo o que ele disse foi:

– Onde está minha maleta? – Quando Jane piscou, ele deu de ombros. – Não vou forçá-la a conversar comigo.

– Então, virou uma nova página.

– Ponto para mim – ele acenou com a cabeça em direção ao telefone instalado na parede. – Tenho que verificar minhas mensagens e quero meu maldito celular de volta.

– Ah... certo. Seu carro deve estar estacionado na garagem. Basta seguir pelo corredor. Talvez esteja no Porsche.

– Obrigado...

– Está pensando em ir embora?

– O tempo todo. – Ele virou-se e foi para a porta. – Só consigo pensar nisso.

Bem... eram dois. Mas Jane nunca imaginou não estar ali, prova inegável de que não era muito útil formular um monte de ideias brilhantes sobre o futuro.


CAPÍTULO 33

Tradicionalmente, na e entre os membros da glymera, quando alguém entra na casa de outra pessoa, um cartão de visitas é colocado sobre uma bandeja de prata, que é levada por um doggen até o anfitrião. O cartão deveria ter um único nome e a linhagem listada, e o propósito era anunciar o visitante, enquanto, ao mesmo tempo, prestava-se uma homenagem aos costumes sociais que moldavam e definiam as classes mais altas.

Mas, e quando alguém não conseguia escrever ou ler... ou, mais objetivamente, quando alguém preferia métodos de comunicação mais diretos e menos formais?

Bem, então, esse alguém deixava corpos mortos que ele mesmo havia assassinado em um beco para seu “anfitrião” encontrar.

Xcor levantou-se da mesa em que estava sentado e levou sua caneca de café com ele. Os outros estavam dormindo e sabia que deveria se juntar a eles, mas não haveria descanso. Não naquele dia. Talvez, nem no dia seguinte.

Deixar aqueles redutores cortados ao meio e contorcendo-se para trás foi um risco calculado. Se os humanos os encontrassem? Problemas, e mesmo assim, tinha valido a pena. Wrath e a Irmandade governavam aquele continente há muito tempo e para que fim? A Sociedade Redutora ainda persistia. A população de vampiros tinha se dispersado, e aqueles seres arrogantes, flácidos e irresponsáveis estavam por toda parte.

Xcor parou nas escadas do corredor e olhou em torno de suas acomodações permanentes. A casa que Throe havia providenciado era de fato apropriada. Feita de pedra, era velha e afastada, dois itens importantes que eram muito apropriados para seus propósitos. Em algum momento da história, aquela casa deve ter sido palco de muitos eventos, mas esse tempo havia passado assim como sua distinção. Agora, era a sombra do que havia sido e tudo de que ele precisava: paredes fortes, telhado resistente e com espaço mais do que suficiente para abrigar seus homens.

Não que alguém fosse frequentar aquelas salas do andar de cima ou os sete quartos do segundo andar; apesar das pesadas cortinas puxadas sobre as janelas, os incontáveis painéis de vidro precisavam ser revestidos de tijolos para que as coisas ficassem realmente seguras durante o dia.

Na verdade, todos ficaram no subsolo, na adega.

Era como nos bons e velhos tempos, ele pensou, pois só nos tempos modernos que a concepção de acomodações separadas tinha criado raiz. Antes, comiam juntos, transavam juntos e repousavam como um grupo, como soldados deveriam fazer.

Talvez os obrigasse a permanecer debaixo da terra. Juntos.

Ainda assim, não estava lá com eles, nem tinha estado. Impaciente e agitado, pronto para prosseguir, mas sem vítimas no momento, passava de quarto em quarto, todos vazios, espalhando a poeira com seu desejo de conquistar aquele novo mundo.

– Eu os encontrei. Todos eles.

Xcor parou. Deu mais um gole em sua caneca. Virou-se.

– Como você é inteligente.

Throe entrou no que antes havia sido um grande salão, mas que agora não era nada além de um lugar frio e vazio. O lutador ainda estava vestido com roupas de couro, só que, de alguma maneira, tinha uma aparência elegante. Não era surpresa: ao contrário dos outros, seu pedigree era tão perfeito quanto seus cabelos dourados e seus olhos azul cor de céu. Assim também era seu corpo e seu semblante: sem defeitos visíveis por dentro ou por fora.

No entanto, era um dos bastardos.

Quando o macho limpou a garganta, Xcor sorriu. Mesmo após todos esses anos juntos, Throe ainda não se sentia à vontade em sua presença. Que curioso.

– E... – Xcor solicitou.

– Há remanescentes de duas famílias em Caldwell no presente momento. O que resta das outras quatro principais linhagens está espalhado por onde chamam de Nova Inglaterra. Assim, talvez alguns estejam de oitocentos a mil quilômetros de distância.

– De quantas você é parente?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Cinco.

– Cinco? Isso preencheria sua agenda social rapidamente... planeja fazer algumas visitas?

– Sabe que não posso.

– Oh... é verdade. – Xcor terminou seu café. – Esqueci-me que foi denunciado. Acho que terá que permanecer aqui conosco, meros pagãos.

– Sim. Terei.

– Hummm – Xcor levou um momento para desfrutar do silêncio constrangedor. Só que, em seguida, o outro macho estragou tudo.

– Não temos motivos para continuar – Throe disse. – Não somos da glymera.

As presas de Xcor foram expostas quando deu um sorriso.

– Preocupa-se demais com as regras, meu amigo.

– Não pode convocar uma reunião com o Conselho. Não tem apoio.

– É verdade; no entanto, outra história pode lhes ser apresentada com um motivo para a convocação. Não foi você mesmo quem disse que alguns boatos sobre o Rei começaram a circular após as invasões?

– Sim. Mas tenho plena consciência do que procura e o objetivo final, na melhor das hipóteses, é uma traição... e suicídio, na pior.

– Que mentalidade estreita, Throe. Mesmo com toda sua educação, tem uma grande falta de visão.

– Não pode depor o Rei... e com certeza não está pensando em tentar matá-lo.

– Matá-lo? – Xcor ergueu uma sobrancelha. – Não quero um caixão como cama para ele. Não mesmo. Desejo-lhe uma longa vida... assim, poderá se revirar na lama de seu fracasso.

Throe balançou a cabeça.

– Não sei por que o odeia tanto.

– Por favor – Xcor revirou os olhos. – Não tenho nada pessoal contra ele. É seu status que cobiço, pura e simplesmente. Vê-lo vivo enquanto sento-me no trono é apenas um tempero adicional a minha refeição.

– Às vezes... temo que esteja louco.

Xcor estreitou os olhos.

– Garanto-lhe... Não estou nem furioso, nem louco. E pense com cuidado quando for expor comentários como esse.

Era plenamente capaz de matar seu velho amigo. Hoje. Naquela noite. Amanhã. Seu pai o ensinou que soldados não eram diferentes de nenhuma outra arma... e quando havia um risco de falharem? Tinham de desaparecer.

– Perdoe-me – Throe fez uma pequena reverência. – Minha dívida com você ainda permanece, assim como minha lealdade.

Que coisa triste e patética. Apesar de ser verdade o fato de Xcor ter assassinado o macho que havia contaminado a irmã de Throe, aquilo havia sido um investimento muito rentável em termos de tempo e força em campo, pois isso amarrou aquele lutador com firmeza e fidelidade junto a ele. Para sempre.

Throe vendeu-se para Xcor para que o ato fosse realizado. Naquela época, o macho era covarde demais para cometer o assassinato com as próprias mãos e, assim, infiltrou-se nas sombras para procurar o que nunca teria convidado para entrar sequer pela porta de serviço de sua mansão. Ficou chocado quando o dinheiro oferecido foi recusado e já estava saindo quando Xcor fez sua exigência.

A rápida lembrança de como a irmã dele havia sido encontrada foi o suficiente para que ele se comprometesse.

E o treinamento subsequente tinha feito maravilhas. Sob a tutela de Xcor, Throe fortaleceu-se ao longo do tempo, como aço forjado no fogo. Agora era um assassino, e útil para fazer algo diferente além de brincar de estátua social em jantares e bailes.

Era uma vergonha que sua linhagem não visse a transformação como uma melhoria... apesar do fato de seu pai ter sido um Irmão, pelo amor de Deus. A família deveria ficar grata. Infelizmente, negaram o pobre filho da mãe.

Isso fez com que Xcor lamentasse muito todas as vezes que pensava sobre a situação.

– Vai escrever para ele – Xcor sorriu outra vez, as presas formigando, sentia o mesmo no pênis. – Vai escrever para todos eles e vai anunciar nossa chegada. Vai apontar suas perdas, lembrando-lhes das crianças e mulheres que foram mortas naquela noite de verão. Vai lembrar-lhes todas as reuniões que não tiveram com seu Rei. Expressará a devida indignação por conta disso e fará isso de uma maneira que irão entender... pois é um deles. E, então, vamos aguardar... até sermos convocados.

Throe curvou-se.

– Sim, meu lídher.

– Enquanto isso, vamos caçar redutores e manter um registro de nossa matança. De modo que, quando perguntarem sobre nossa saúde e bem-estar, o que a aristocracia certamente fará, poderemos informar que apesar de terem muitos cavalos de raça nos estábulos... um bando de lobos é o que precisam para guardar suas portas.

A glymera era inútil de muitas maneiras, mas tão previsível quanto um relógio de bolso: a autopreservação era o que movia suas mãos, grandes e pequenas, a fazer o que fosse preciso, sempre... e várias vezes.

– Melhor descansar – Xcor disse lentamente. – Ou já vai iniciar a caça de um de seus desviados? – Quando não houve resposta, franziu a testa para a resposta implícita no silêncio. – Você tem um propósito que vai além de passar horas lutando. Os mortos humanos são uma preocupação muito menos importante do que a vida de nossos inimigos.

– Sim.

Leia-se: Não.

– Não tarde buscando outras coisas, prejudicando assim o alcance de nossos objetivos.

– Já o deixei alguma vez?

– Ainda há tempo, velho amigo. – Xcor olhou para o macho por baixo das pálpebras semicerradas. – Há sempre tempo para que a natureza de seu coração mole o coloque em apuros, e antes que discorde, posso lembrá-lo das circunstâncias em que se encontra nos últimos dois séculos.

Throe enrijeceu.

– Não. Não precisa. Tenho plena consciência de onde estou.

– Bom – Xcor assentiu. – Isso é muito importante nesta vida. Vá.

Throe inclinou-se em reverência.

– Desejo-lhe um bom descanso, meu lídher.

Xcor assistiu à partida do macho e, quando se viu sozinho outra vez, o calor intenso em seu corpo o irritou. A necessidade sexual era uma perda de tempo tão grande, pois nem assassinava nem alimentava, mas em intervalos regulares, seu pênis precisava de alguma coisa diferente de uma sessão de luta.

Quando a escuridão preenchesse a noite, Throe teria de providenciar outra coisa para o grupo de bastardos e, dessa vez, Xcor também seria forçado a utilizar-se disso.

Além do mais, iriam precisar de sangue. De preferência que não fosse humano, mas se tivessem de se contentar com isso por enquanto...

Bem, teriam apenas que se livrar dos corpos, não é mesmo?


CAPÍTULO 34

No centro de treinamento, Manny acordou na cama do hospital, não na cadeira. Depois de uma confusão momentânea, as lembranças nebulosas voltaram todas de uma vez: depois que o mordomo tinha aparecido com a comida, Manny comeu no escritório, como Jane disse para que fizesse... e lá, e não em seu carro, estavam seu celular, carteira, chaves e maleta. A pequena coleção de acessórios do Dr. Mannelo estava bem diante dele, sobre uma cadeira, e a ausência de segurança o surpreendeu, considerando como tudo estava trancado.

Só que quando tentou ligar o celular, percebeu que seu chip havia desaparecido.

Estava disposto a apostar que precisaria de uma bomba atômica para entrar ou sair daquela garagem sem a permissão deles. Então, suas chaves eram inúteis.

Maleta? Não havia nada dentro dela além de uma barra de cereais e alguns papéis que não tinham nada a ver com as instalações subterrâneas, com os vampiros, ou com Payne.

Achava que toda essa ausência de informação explicava o fato de ter apagado.

Estava prestes a desistir de encontrar alguma explicação para tudo aquilo quando pensou em checar as mensagens de voz, mas decidiu usar o telefone do escritório que estava perto de seu cotovelo. Pegando o aparelho, discou 9... o ruído do tom de discagem foi um choque total. Porém, quais eram as chances de alguém ser deixado ali sozinho sem vigilância? Quase nenhuma.

Exceto em um dia, quando noventa por cento dos moradores tinham sido feridos em uma luta e os outros dez por cento preocupados com seus irmãos.

Em pouco tempo, Manny executou três sistemas de mensagem de voz: casa, celular e escritório. A primeira tinha duas mensagens de sua mãe. Nada específico... estava precisando de reparos na casa e tinha acertado o tão complicado nono buraco no golfe. Havia uma mensagem do veterinário no celular, que ele ouviu duas vezes. E do escritório... as mensagens foram tão desanimadoras quanto as notícias de Glory: havia sete mensagens de colegas de todo o país com um tom devastadoramente normal. Queriam que tirasse uma licença e fizesse consultas ou escrevesse artigos para conferências ou abrisse um espaço no seu programa de residência para encaixar os filhos ou algum amigo da família.

A triste verdade era que aqueles pedidos ficaram para trás, onde sua vida realmente estava; como bancaria o maioral para os pobres bastardos que ligavam para ele agora? E se aqueles vampiros dessem um jeito no cérebro dele outra vez, não fazia ideia se restaria alguma coisa para pensar além de contar até dez, quanto mais se conseguiria operar um paciente ou administrar o departamento cirúrgico. Não tinha como saber em quais condições ficaria quando saísse daquela situação...

O som de uma descarga fez com que se levantasse rapidamente.

Quando a porta do banheiro se abriu, viu a silhueta de Payne ser contornada pela luz atrás dela, seu corpo maravilhoso estava envolto para nada mais do que um lençol transparente.

Santo... Deus...

Sua ereção matinal começou a pulsar e aquilo fez com que desejasse ter dormido na maldita cadeira. O problema era que quando finalmente voltou para cuidar dela, não teve forças para dizer não quando pediu para se juntar a ela.

– Você acordou – disse ela com voz rouca.

– E você está em pé. – Ele sorriu um pouco. – Como estão as pernas?

– Fracas. Mas funcionam. – Olhou por cima do ombro. – Gostaria de tomar um banho...

Droga, do jeito que a coisa soou, ela estava procurando ajuda... e a mente dele pensou logo nos dois separados apenas por uma camada de sabão.

– Acho que tem um banco lá dentro para se sentar. – Ele saiu pelo outro lado da cama para que pudesse conter sua ereção na cintura de seu uniforme.

Aproximando-se dela, tentou lhe dar o máximo de espaço possível ao olhar a banheira.

– Sim, bem aqui.

Estendeu a mão e ligou a água, então, ajeitou o banco.

– Vou arrumar isso...

Ao olhar por cima do ombro, congelou. Payne tinha desfeito os laços de sua bata de hospital e lenta e inexoravelmente... deixou cair... de seus ombros.

Quando a ducha atingiu seu braço e começou a ensopar seu uniforme, engoliu em seco... e teve vontade de gritar quando ela ergueu as mãos e protegeu os seios.

Ela ficou assim, como se estivesse esperando para ver o que ele ia dizer, e quando seus olhos se encontraram, seu pênis ficou tão enrijecido que foi um milagre não ter rasgado suas calças.

– Pode soltar, bambina – ouviu-se dizendo.

E ela soltou.

Maldição, nunca pensou antes em adorar a lei da gravidade, mas poderia fazer isso agora: gostaria de se prostrar diante do altar de Newton e chorar com gratidão pela bênção que fazia todas as coisas caírem no chão.

– Olhe para você – ele rosnou, observando os mamilos rosados ficarem excitados.

Sem seguir qualquer estímulo ou pensamento consciente, estendeu o braço molhado e a agarrou, puxando-a contra sua boca, segurando-a com força enquanto sugava seu mamilo em sua boca. Mas não precisava se preocupar em tê-la ofendido. As mãos de Payne mergulharam nos cabelos dele e o aninhou contra ela, curvando as costas até que ele a envolveu por completo e ela mostrou-se toda nua e pronta para ser devorada.

Girando-a, desviou-a do foco de luz em que se encontrava e levou os dois para debaixo da ducha quente do chuveiro. Com o corpo dela iluminado, ele abaixou-se, capturando com a língua a água quente que jorrava entre os seios e escorria pelo abdômen de Payne.

Quando ela estendeu a mão para se equilibrar, Manny a segurou, guiando-a para que ficasse segura sentada no banco. Arqueando-se, envolveu a nuca dela com a palma da mão e beijou-a profundamente enquanto pegava o sabonete e preparava-se para assegurar que ela ficasse muito, muito limpa. Quando a língua dela encontrou a dele, estava tão perdido na sensação dos mamilos roçando contra seu peito e seus lábios contra os dele que sequer notou ou se importou que o cabelo estivesse emboçado em seu crânio de tanta água ou que sua roupa cirúrgica estivesse enrolada nele como um filme plástico, colado ao corpo.

– Curandeiro... – ela arfou quando ele começou a ensaboar sua pele.

A parte superior de seu corpo ficava cada vez mais escorregadia e quente enquanto as mãos dele deslizavam por toda parte, do pescoço à base da coluna. E, então, começou a percorrer as pernas; em seguida, lavou os delicados pés e tornozelos, voltando a subir, passando pelas panturrilhas e atrás dos joelhos.

A água os envolvia por toda parte, caindo entre eles, enxaguando-a assim que ele a ensaboava, o som do jato caindo sobre o ladrilho abafado apenas pelos gemidos de Payne.

Cara, aquilo só ia ficar mais alto.

Chupando seu pescoço, ele separou os joelhos dela cada vez mais, para colocar-se entre eles.

– Eu disse – ele a mordeu de leve – que ia gostar da hora do banho.

Como resposta, as mãos dela lançaram-se sobre os ombros dele e as unhas foram cravadas na pele fazendo com que imaginasse se não era hora de pensar em estatísticas de beisebol, códigos postais... preço de automóveis.

Eleanor Roosevelt.

– Estava certo, curandeiro – disse ela, ofegante. – Adoro isso, mas você está vestido demais.

Manny fechou os olhos ao estremecer, e, então, conseguiu assumir controle suficiente sobre si para dizer.

– Não... estou bem assim. Apenas incline-se para trás e deixe-me cuidar disso.

Antes que ela pudesse responder, selou a boca sobre a dela e empurrou-a contra a parede com seu peito. Para distanciá-la do assunto sobre ele ficar nu, deslizou as duas mãos por dentro de suas coxas e correu a ponta dos dedos sobre seu sexo.

Quando sentiu o quanto estava molhada – e molhada de uma maneira que não tinha nada a ver com a água e tudo a ver com o que ele desejava envolver com a língua – afastou-se um pouco e olhou para baixo.

Que... inferno... estava tão pronta para ele, e, cara, a aparência dela... estava toda curvada para trás, com a água fazendo seus seios brilharem, lábios entreabertos e um pouco vermelhos por tê-la beijado e as pernas bem abertas.

– Vai me possuir agora? – ela gemeu com os olhos cintilando e as presas se alongando.

– Sim...

Manny agarrou os joelhos dela e desceu, colocando a boca onde seus olhos já estavam fixos. Quando ela gritou, começou a agir com mais firmeza e mais rápido, engolindo o sexo dela, conduzindo-a com força, sem pedir desculpas por desejá-la tanto. Quando ela explodiu, sua língua entrou e sentiu tudo, os impulsos, a maneira como ela se movimentava contra seu queixo e nariz, o aperto rígido das mãos dela sobre sua cabeça.

Não havia razão para parar por aí.

Com ela, tinha uma energia sem fim e sabia que, desde que suas roupas permanecessem sobre sua pele, poderia continuar assim com ela... para sempre.

Vishous acordou em uma cama que não era a sua, mas não precisou de mais que um nanossegundo para saber onde estava: na clínica. Em uma das salas de recuperação.

Depois de esfregar bem os olhos, observou ao redor. A luz do banheiro estava acesa e a porta, aberta, então, havia espaço suficiente para ver... e a primeira coisa que se destacava era a mochila no chão do outro lado do local.

Uma das suas mochilas. Especificamente, a que havia dado para Jane; no entanto, ela não estava ali – pelo menos não naquele quarto.

Quando se sentou, sentiu como se tivesse sofrido um acidente de carro; as dores se espalhavam por todo o corpo como se fosse uma antena e todos os sinais de rádio do mundo estivessem sendo emitidos para seu sistema nervoso. Com um gemido, mudou de posição de maneira que suas pernas penderam para fora da cama... e, então, teve de respirar um pouco.

Alguns minutos depois, foi o caso de impulsionar e rezar: impulsionou seu peso para fora do colchão e esperou que...

Bingo. As pernas aguentaram.

O lado que Manello havia tratado não estava exatamente pronto para correr uma maratona, mas quando V. arrancou os curativos e fez algumas flexões, teve de ficar impressionado. As cicatrizes da cirurgia no joelho já estavam quase completamente curadas, não havia nada exceto uma linha de um tom rosa-claro deixada para trás. Mas, mais importante, o que havia sob isso era totalmente mágico: a articulação estava fantástica. Mesmo com a rigidez que ainda persistia, poderia dizer que estava funcionando perfeitamente bem.

O quadril também parecia novo.

Aquele maldito cirurgião humano era um profissional milagroso.

Seguindo o caminho até o banheiro, seus olhos passaram pela mochila. As memórias de sua viagem à base de morfina voltaram e ficaram muito mais claras do que a verdadeira experiência tinha sido. Deus, Jane era uma médica espetacular. Na confusão das lutas noite após noite, tinha esquecido de que não observava isso há algum tempo. Ela sempre ia mais além por seus pacientes. Sempre. E não tratava os Irmãos tão bem por serem ligados a ele; não tinha nada a ver com ele... aquelas pessoas lhe pertenciam naqueles momentos. Ela trataria exatamente da mesma maneira civis, membros da glymera... até mesmo humanos.

Dentro do banheiro, entrou no chuveiro e, cara, o box parecia pequeno demais. Ao pensar sobre Jane e sua irmã, teve a terrível sensação de ter sido simplista demais com o que havia acontecido há duas noites. Não tinha parado para considerar que poderia haver outro tipo de relacionamento entre as duas fêmeas. Pensou apenas nele e em sua irmã... e nada sobre o relacionamento médico/paciente.

Risque essa parte: pensou apenas nele. Não considerou nem um pouco Payne e o que ela desejava para sua vida. Ou o que Jane havia feito ou não para sua paciente.

Em pé com a cabeça baixa e a água batendo na nuca, olhou para o ralo entre seus pés.

Não era bom em pedir desculpas, ou conversar; mas também não era um covarde.

Dez minutos depois, vestiu uma bata hospitalar e saiu mancando pelo corredor em direção ao escritório. Se sua Jane estivesse ali, achava que estaria dormindo debruçada sobre a mesa, considerando a quantidade de camas que estavam ocupadas pelos Irmãos nas salas de recuperação.

Ainda não fazia ideia do que lhe dizer sobre as roupas de couro, mas poderia, ao menos, tentar fazer algo sobre Payne.

Só que o escritório estava vazio.

Sentando-se em frente ao computador, levou menos de quinze segundos para encontrar sua shellan. Quando ele instalou o sistema de segurança da mansão, do Buraco e de suas instalações, colocou câmeras em cada quarto que havia ali... exceto a suíte da Primeira Família. Naturalmente, o equipamento poderia ser desconectado facilmente retirando-o da tomada e, como era de se esperar, os quartos de seus Irmãos exibiam uma tela preta no monitor do computador.

O que era bom. Não havia necessidade de assistir as relações sexuais deles.

Contudo, o quarto de hóspedes decorado de azul da mansão ainda estava sendo monitorado e, sob a luz do abajur dos criados-mudos, viu a figura encolhida de sua companheira. Jane tinha morrido para o mundo, mas estava muito claro que não descansava em paz: suas sobrancelhas estavam cerradas como se seu cérebro tentasse desesperadamente mantê-la dormindo como estava. Ou talvez estivesse sonhando com coisas que a assustavam em vez de algo prazeroso.

Seu primeiro instinto foi ir até lá, mas quanto mais pensava sobre isso, mais percebia que a coisa mais gentil que poderia fazer era permitir que ela continuasse deitada onde estava e deixá-la descansar. Ela e Manello tinham trabalhado por muitas horas seguidas, englobando toda a manhã. Além disso, ficaria em casa naquela noite: Wrath havia dado folga a todos em função de todos aqueles ferimentos.

Cristo... aquela maldita Sociedade Redutora. Não tinham visto tantos assassinos em anos... e não estava pensando naquela dúzia que tinha aparecido na noite passada. Ao longo das últimas duas semanas, estava disposto a apostar que Ômega havia transformado uma centena daquelas coisas malditas... e tinha a impressão de que eram como baratas: para cada um que via, havia outros dez escondidos.

O bom era que os Irmãos eram letais. E Butch curou-se com relativa facilidade após cumprir suas tarefas como Dhestroyer... inferno, Vishous sequer tinha sido capaz de cuidar do tira depois da operação. Não que tivesse se lembrado de fazer isso, mas mesmo assim.

Sufocado por tudo aquilo, apalpou os bolsos procurando seus cigarros artesanais... e percebeu que estava usando uma bata hospitalar: nenhuma possibilidade de fumar.

Levantou-se da cadeira. Voltou ao corredor. E seguiu para onde estava.

A porta do quarto de Payne estava fechada e não hesitou em abri-la. Havia grandes chances de que o cirurgião humano estivesse lá com ela, mas não tinha como o cara ficar para fora. Tinha salvado a pele dele.

Quando Vishous entrou, deveria ter prestado mais atenção no cheiro que havia no ar. E talvez devesse fazer o mesmo para perceber que o chuveiro estava ligado. Mas estava chocado demais ao ver que a cama estava vazia... e que havia suportes e muletas em um canto do quarto.

Se algum paciente estivesse paralisado... Precisaria de cadeiras de rodas, não de um equipamento que auxiliava a mobilidade. Então... será que ela estava andando?

– Payne?

Aumentou o tom de voz:

– Payne?

A resposta que teve de volta foi um gemido. Um gemido profundo e satisfeito...

O que não era o tipo de coisa que se evocava nem mesmo no melhor banho possível.

V. atravessou o quarto e quase quebrou a porta quando invadiu o banheiro quente e úmido. Mas que inferno, a cena diante dele era muito pior do que pensava.

Entretanto, a ironia era que o que estavam... Oh, Deus, não conseguia sequer expressar em palavras o que estavam fazendo... Mas aquilo salvava a vida do cirurgião: V. ficou tão horrorizado que teve de desviar o olhar e a rotina de avestruz o impediu de rasgar um buraco do tamanho de um cano de esgoto no pescoço de Manello.

Quando Vishous tropeçou ao sair, ouviu uma variedade de ruídos confusos no banheiro. E, então, percebeu que era o caso de debandar o mais rápido possível: bateu na cama, levantou-se outra vez, derrubou uma cadeira, apoiou-a na parede.

Nesse ritmo, encontraria a saída em uma semana. Ou mais.

– Vishous...

Quando Payne aproximou-se dele, V. manteve os olhos no chão e acabou tendo uma visão dos pés descalços de sua irmã gêmea. Então, ela havia recuperado a sensação nas pernas.

Uhúúúú!

– Por favor, poupe-me de uma explicação – exclamou antes de olhar para Manello. O filho da mãe estava ensopado, cabelos grudados na cabeça, uniforme agarrado ao corpo. – E não se afeiçoe a ela. Está aqui apenas até o momento de não precisar mais de você... e se considerarmos como ela está bem? Não ficará por muito mais tempo...

– Como ousa... eu escolho com quem me acasalar.

Ele balançou a cabeça para sua irmã.

– Então, escolha outra pessoa que não seja um humano que tem a metade de seu tamanho e um quarto de sua força. A vida aqui não é como nas nuvens, querida... e a Sociedade Redutora marcou um alvo em seu peito assim como no resto de nós. Ele é fraco, arrisca nossa segurança e precisa voltar para onde pertence... e permanecer lá.

Bem, parece que aquilo deixou sua irmã furiosa: seus olhos ficaram muito centrados, as sobrancelhas negras caíram sobre os olhos, estreitando-se.

– Saia. Daqui.

– Pergunte a ele o que fez durante toda a manhã – V. exigiu. – Espere... eu lhe digo. Ele costurou a mim e à Irmandade, pois estávamos tentando defender nossas fêmeas e nossa raça. Esse humano? Na minha opinião, ele é um redutor em potencial... nada mais, nada menos.

– Como ousa! Não sabe nada sobre ele.

V. inclinou-se para ela.

– E nem você. Esse é o ponto.

Antes que a coisa saísse de controle, virou-se para sair, apenas para visualizar uma cena deles no espelho da parede. Que bela imagem formavam: sua irmã, nua e sem qualquer timidez; o humano, ensopado e sombrio; e ele, com um olhar selvagem e pronto para matar alguém.

A raiva cresceu tão rapidamente e chegou a um ponto tão alto que se liberou antes mesmo que ele pudesse reconhecer a emoção.

Vishous deu dois passos a frente, colocou a cabeça para trás e bateu o rosto no vidro, quebrando o maldito reflexo e indo embora.

Quando sua irmã berrou e o cirurgião gritou, deixou-os à própria sorte e saiu.

No corredor, sabia exatamente para onde estava indo.

No túnel, bastante ciente do que estava prestes a fazer.

Enquanto caminhava, o sangue escorria pelo rosto até o queixo, as lágrimas vermelhas caíam pelo peito e abdômen.

Não sentia dor alguma.

Mas, com um pouco de sorte, sentiria. Muito em breve.


CONTINUA

CAPÍTULO 28

As presas de Vishous alongaram-se quando um círculo de assassinos foi formado na entrada do beco. A quantidade já era conhecida, pensou. Pelo menos meia dúzia... e com certeza receberam as coordenadas daquela localização por meio de seus amigos assassinos mutilados. Caso contrário, o mhis teria escondido a carnificina deles.

Considerando seu estado de espírito, uma conversinha prévia seria bem interessante para eles.

O problema era que a estrutura do beco sugeria que havia apenas uma saída... e estava além das linhas inimigas... e aquilo significava que teriam de desaparecer. Normalmente, isso não seria um problema; como lutadores experientes, mesmo no auge de uma batalha, poderiam ficar calmos o suficiente para se concentrarem e se desmaterializarem... mas teriam de estar relativamente bem e não poderiam levar ninguém ao partir.

Então, Butch estaria ferrado se algo saísse do controle. Como mestiço, o cara estava de castigo, literalmente incapaz de dispersar suas moléculas como medida de segurança.

V. murmurou baixinho:

– Não seja um herói, tira. Vamos lidar com isso.

– Está brincando comigo, certo? – O olhar foi imediato e fixo. – Só se preocupa consigo mesmo.

Impossível. Não estava perdendo os únicos dois pontos cardeais de sua vida na mesma noite.

– Ei, rapazes – Hollywood gritou para o inimigo. – Vão ficar aí parados ou começar logo com isso?

E... isso fez com que o sino da luta soasse. Os redutores avançaram e encararam a Irmandade face a face, mano a mano. Para se certificar de que havia a privacidade necessária, V. dobrou a barreira visual, criando uma miragem de que nada estava acontecendo caso seres humanos passassem por ali.

Quando começou a lutar com o inimigo, manteve os olhos em Butch. É claro que o filho da mãe estava indo bem ali, alto e magro, lançando-se contra o alvo com as mãos desprotegidas... mas Vishous realmente desejava que o desgraçado saísse de lá pulando um muro ou, melhor ainda, se enfiasse num lança-foguetes, direto para o telhado. Dessa maneira, permaneceria longe da luta. Detestava o fato de que o tira ficasse tão perto daquilo, pois sabia o que poderia acontecer se precisasse usar sua mão ou o dano que uma arma de fogo poderia causar ao cara...

O golpe veio do nada, surpreendendo por trás como uma bigorna, atingindo diretamente a lateral do tronco de V. Quando ele voou para trás e bateu na parede de tijolos, lembrou-se do que havia aprendido nos treinos: regra número um na luta? Preste atenção em seu inimigo.

Afinal, poderia ter o melhor punhal do mundo, mas se não tivesse noção do que estava acontecendo... acabaria sendo lançado por todos os lados como uma bola de pingue-pongue. Ou ainda pior.

V. encheu os pulmões inalando profundamente e usou o oxigênio para saltar para frente e pegar o segundo pontapé pelo tornozelo. Porém, o redutor tinha habilidades espetaculares e fez um movimento ao estilo Matrix*, usando as mãos de V. como uma âncora para dar um giro no meio do ar. A bota de combate do inimigo atingiu V. em cheio na orelha, a cabeça foi atirada com força para o lado assim como todos os tendões e músculos. Ainda bem que a dor sempre o concentrava.

A gravidade era um fato, o golpe do assassino atingiu seu tórax e, depois disso, caiu, apoiando os braços no asfalto para impedir que o rosto acertasse o chão em cheio. E era evidente que o desgraçado esperava que o adversário soltasse seu pé, graças ao balão que o crânio de V. parecia agora de tão inchado.

Não. Desculpe, querido.

Mesmo com as consequências desagradáveis do golpe, V. firmou suas mãos no tornozelo e puxou-o na direção oposta do giro do inimigo.

Estalo.

Alguma coisa foi quebrada ou deslocada e considerando o fato de que V. estava segurando o pé e os ossos inferiores, sabia que provavelmente tinha sido o joelho, a fíbula ou a tíbia.

O Sr. Chute Alto soltou um grito, mas V. não terminou quando o bastardo caiu no chão.

Tirando uma de suas adagas, cortou o músculo na parte de trás da perna e, em seguida, pensou em Butch. Dirigiu-se para o corpo que se contorcia, pegou um pouco de cabelo, puxou para cima e produziu no filho da mãe um colar bem interessante com sua lâmina.

Incapacitação parcial não era suficiente naquela noite.

Girando, com a faca pingando sangue nas mãos, avaliou as lutas que aconteciam no momento. Z. e Phury estavam lidando com dois redutores... Tohr lutava com outro... Rhage brincava com um dos inimigos... Onde estava Butch...?

Em um canto, o tira tinha levado um assassino ao chão e estava inclinado sobre sua face. Os dois se encaravam e a boca aberta e ensanguentada do redutor movia-se como a de um peixe, abrindo e fechando lentamente, como se soubesse que o próximo movimento não lhe traria boas notícias.

A bênção e maldição de Butch foi ativada quando ele começou a respirar, inspirando profundamente. A transferência começou com um fio de fumaça que passava da boca do assassino para a de Butch, mas logo cresceu e fluía como um grande rio, a essência de Ômega era canalizada de um para outro em um arremesso doentio.

Quando terminou, o assassino estava prestes a se tornar nada além de resíduo de cinzas. E Butch ficaria debilitado como um cão e relativamente inútil. V. correu, esquivando-se de uma arma em forma de estrela e empurrou um redutor que saiu girando com um peão da zona de espancamento de Hollywood.

– Que droga é essa que está fazendo? – reclamou quando puxou Butch do pavimento e o arrastou da zona de sucção. – Precisa esperar até terminarem.

Butch curvou-se para o lado e teve alguns espasmos. Já estava semipoluído, o fedor do inimigo exalando de seus poros, seu corpo lutando contra a carga de veneno. Precisava ser curado naquele exato momento, mas não teria como V. fazer isso agora...

Mais tarde, ficaria impressionado por ter sido surpreendido duas vezes em uma luta. Mas tal introspecção aconteceria em uma hora vaga, depois que acabassem com aquilo.

O taco de beisebol pegou na lateral do joelho e a queda que veio logo em seguida foi tremenda, no mau sentido. Caiu com força, as pernas entrelaçando-se sob seu peso considerável formando um ângulo que fez seu quadril gritar de agonia... o que sugeria que aquele carma não era tanto sobre vingança, mas sobre a luta contra devaneios: quando caiu por ter sido ferido da mesma maneira que tinha acabado de fazer com a outra criatura, amaldiçoou a si mesmo e ao filho da mãe com o bastão.

Hora de pensar rápido. Estava deitado de costas com uma perna que zumbia como um motor superacelerado. E a intenção do bastão era fazer muito dano... Butch veio do nada, vacilando com toda a graça de um búfalo ferido, o corpo pesado do desgraçado lançou-se contra o redutor no mesmo momento que o bastão atingiu um dos ombros de V., sendo que o objetivo era a cabeça dele. Os dois se chocaram contra os tijolos e depois de um momento sem se moverem, o maldito redutor idiota deslizou o tronco e ofegou.

Era como observar ovos quebrados escorrendo de um balcão de cozinha: os ossos do assassino liquefizeram-se e a coisa caiu no pavimento, deixando Butch deitado de costas sozinho entrando em colapso com o punhal cheio de sangue negro nas mãos.

Tinha destruído o filho da mãe.

– Você... está bem...? – o policial gemeu.

Tudo o que V. conseguia fazer era olhar seu melhor amigo.

Enquanto os outros continuavam a lutar, os dois apenas se encaravam em meio a uma trilha sonora de fundo cheia de ruídos de metal, grunhidos e palavrões criativos. Deveria haver algo para ser dito um ao outro, V. pensou. Havia tanta coisa... para ser dita.

– Quero aquilo de você – V. exclamou. – Preciso.

Butch assentiu.

– Eu sei.

– Quando?

O tira balançou a cabeça em direção à perna de V.

– Fique bom primeiro. – Butch gemeu e se levantou. – Por falar nisso, vou para o carro.

– Cuidado. Leve um dos Irmãos com...

– Pare com essa baboseira, e fique parado.

– Não vou a lugar algum com esse joelho, tira.

Butch saiu, seu andar era apenas um pouco melhor que o de V. Esticando o pescoço, olhou para os outros. Estavam a todo vapor. Devagar, mas com toda certeza, a maré estava virando a favor deles.

Até cinco minutos depois.

Quando mais sete assassinos apareceram no beco.

Estava claro que tinham atraído reforços e aqueles também eram novos recrutas que não sabiam muito bem como lidar com o mhis: era evidente que tinham sido levados até o endereço por causa de seus comparsas, mas os olhos não conseguiam ver nada além de um beco vazio; contudo, aquela hesitação não duraria muito e romperiam a barreira.

Movendo-se o mais rápido possível, V. apoiou as mãos no chão e arrastou-se até uma porta. A dor era tanta que sua visão lhe faltou momentaneamente, mas isso não o impediu de tirar sua luva e colocar a peça dentro de sua jaqueta.

Esperava que Butch não tivesse voltado a lutar. Precisariam de transporte quando tudo acabasse.

Quando a leva seguinte de inimigos avançou, deixou a cabeça cair sobre o peito e respirou tão superficialmente que sua caixa torácica mal se movia. Com o cabelo caindo sobre o rosto, os olhos estavam protegidos, mas foi capaz de observar, através do véu negro, o ataque dos assassinos. Considerando o incrível número de novos recrutas, percebeu que a Sociedade devia estar recrutando psicopatas e outros membros de Manhattan... as possibilidades em Caldwell não eram tão grandes para que surgissem tantos reforços.

O que seria favorável à Irmandade.

E estava certo.

Quatro dos redutores lançaram-se direto à luta, mas um deles, um buldogue com ombros e braços enormes que andava como um gorila, veio até V., provavelmente para checar suas armas.

Vishous esperou com paciência, parado, preparando-se para o ataque.

Mesmo quando o filho da mãe inclinou-se para baixo, V. ficou onde estava... Um pouco mais... Um... Pouco... Mais...

– Surpresa, seu filho da mãe – falou. Então, pegou o pulso do redutor que estava mais próximo dele e puxou com força.

Parecia que o assassino estava prestes a desabar, bem em cima da perna ruim de V. Mas não importava... a adrenalina era um tremendo analgésico e não só lhe deu forças para suportar a agonia, como também para manter o filho da mãe no lugar.

Erguendo a mão brilhante, Vishous colocou sua maldição logo abaixo do rosto do sujeito, não havia razão para golpeá-lo ou bater nele... um simples contato era suficiente, e pouco antes de aterrissar com aquele toque, seus olhos abriram-se e fixaram-se na iluminação fluorescente.

– Sim, isso vai doer – V. rosnou.

O ruído da mão de V. e o grito foram altos, mas só o primeiro persistiu. No lugar do último surgiu um cheiro desagradável, como de queijo queimado emanando junto à fumaça cheia de fuligem. Levou menos de um segundo para que o poder daquela mão consumisse o idiota do assassino por completo, a carne e os ossos foram corroídos enquanto as pernas do bastardo balançavam e os braços se agitavam.

Quando tudo aquilo parecia mais um filme de terror, V. soltou a mão e cedeu. Teria sido ótimo conseguir tirar o peso do joelho machucado, mas simplesmente não tinha forças.

Seu último pensamento, antes de desmaiar, foi rezar para que os garotos dessem uma rápida lição em todos eles. O mhis não ia durar muito se não estivesse ali para sustentá-lo... e isso significava que estariam lutando frente a um grande público.

Tudo. Apagou.

Matrix é um filme de ação e ficção científica, dirigido pelos irmãos Wachowski. (N.E.)


CAPÍTULO 29

Quando Payne pendurou os pés para fora da cama, flexionou um e depois o outro várias vezes, maravilhada com o milagre de pensar alguma coisa e seus membros obedecerem ao comando.

– Aqui, coloque isso.

Olhando para cima, distraiu-se por um momento com a visão da boca de seu curandeiro. Não conseguia acreditar que eles tinham... que ele tinha... até que ela...

Sim, vestir um robe seria bom, pensou.

– Não vou deixá-la cair – disse Manny enquanto a ajudava a vestir-se. – Pode apostar sua vida nisso.

Ela acreditava nele.

– Obrigada.

– Sem problemas – Ele movimentou o braço. – Vamos lá... vamos fazer isso.

Só que a gratidão que Payne sentia era tão complexa que não pôde deixar de expressá-la.

– Por tudo, curandeiro. Tudo.

Ele sorriu brevemente.

– Estou aqui para fazer com que se sinta melhor.

– Sim, está.

Com isso, apoiou-se com cuidado sobre os pés.

A primeira coisa que notou foi que o chão sob seus pés era frio... e, em seguida, seu peso foi transferido para as pernas e as coisas se descontrolaram com isso: seus músculos tiveram espasmos sob a carga, e as pernas foram flexionadas. No entanto, seu curandeiro estava lá quando precisou dele, colocando o braço em volta de sua cintura para apoiá-la.

– Estou... – ela respirou com força. – Estou em pé.

– Com certeza está.

A parte inferior de seu corpo já não era mais a mesma, as coxas e panturrilhas tremiam tanto que seus joelhos se chocavam. Mas estava em pé.

– Vamos andar agora – ela disse, rangendo os dentes quando as sensações de calor e frio dispararam por entre seus ossos.

– Talvez, se for devagar seja...

– Vamos ao banheiro – ela exigiu. – Com isso, poderei aliviar minhas necessidades sozinha.

A independência era absolutamente vital. A permissão de ter a dignidade simples e profunda de atender às necessidades de seu corpo parecia uma dádiva dos céus, prova de que as bênçãos, assim como o tempo, eram relativas.

Só que quando tentou dar um passo adiante, não conseguiu erguer o pé.

– Transfira seu peso – o curandeiro disse quando ela girou e movimentou-se atrás dele. – Eu cuido do resto.

Quando apertou-lhe sobre a cintura, Payne fez como ele havia dito e sentiu uma de suas mãos segurar a parte de trás de sua coxa e levantá-la. Sem precisar de qualquer dica, inclinou-se para frente e administrou seu peso gentilmente enquanto ele colocava o joelho na posição correta, restringindo a curvatura da articulação enquanto alisava sua perna.

O milagre teve uma expressão mecânica, mas dar esses pequenos passos não foi menos emocionante: caminhou até o banheiro.

Quando o objetivo foi alcançado, seu curandeiro deu-lhe a privacidade necessária e ela usou a barra parafusada na parede para auxiliar seus movimentos.

Ela sorria o tempo todo, o que era totalmente ridículo.

Depois que terminou, ficou em pé sozinha usando a barra e abriu a porta. Seu curandeiro estava ali e ela o alcançou no mesmo momento que ele estendeu os braços para ela.

– Vamos voltar para a cama – ele disse, e era um comando. – Vou examiná-la e dar-lhe muletas.

Ela assentiu e percorreram o caminho até o colchão lentamente. Estava ofegante quando se deitou, mas mais do que satisfeita. Poderia lidar com isso. Dormência, frio e ser impedida de ir a qualquer lugar? Era uma sentença de morte.

Fechando os olhos, engoliu em seco em meio às profundas respirações enquanto Manny checava seus sinais vitais com eficiência.

– Sua pressão arterial está alta – disse enquanto colocava de lado o objeto com feitio de algema com o qual ela já estava bem familiarizada. – Mas isso pode ser devido ao que... hã, fizemos – limpou a garganta, algo que parecia fazer com frequência. – Vamos checar suas pernas. Quero que relaxe e feche os olhos. Não olhe, por favor.

Depois que fez o que ele pediu, disse:

– Pode sentir isso?

Franzindo a testa, tentou ordenar as várias sensações em seu corpo, desde a suavidade do colchão, o ar fresco sobre o rosto, até os lençóis sobre os quais ela apoiava as mãos.

Nada. Não sentia...

Sentando-se em pânico, olhou para suas pernas... apenas para verificar que ele não a estava tocando: as mãos estavam estendidas nas laterais do corpo dele.

– Você me enganou.

– Não. Não estou presumindo nada... é isso que estou fazendo.

Quando ela retomou a posição e fechou os olhos outra vez, quis xingar, mas conseguia entender o argumento dele.

– E agora?

Abaixo do joelho, houve um peso sutil. Conseguia sentir isso claro como o dia.

– Sua mão... está sobre a minha perna... – Abriu um pouco uma de suas pálpebras e viu que estava certa. – Sim, você está me tocando.

– Alguma diferença de antes?

Ela franziu a testa.

– Está um pouco... mais fácil de sentir.

– Essa melhora é muito boa.

Ele apalpou o outro lado. Em seguida, subiu até chegar perto do quadril. Depois, tocou a sola do pé e, então, na parte interna da coxa... e sobre o joelho.

– E agora? – perguntou uma última vez.

Em meio à escuridão, esforçou-se para perceber a sensação.

– Não sinto nada... agora.

– Certo. Terminamos.

Quando ela abriu os olhos, fitou-o e sentiu um calafrio estranho percorrê-la. Qual seria o futuro deles?, pensou. Após aquele período isolado de convalescença? Sua incapacidade simplificava muito as coisas para eles; mas isso acabaria se ficasse bem. Será que poderia tê-la então?

Payne estendeu a mão e apertou a dele.

– Você é uma bênção para mim.

– Por causa disso? – ele balançou a cabeça. – Foi você, bambina. Seu corpo está se recuperando sozinho. É a única explicação. – Curvando-se sobre ela, acariciou o cabelo solto e pressionou um beijo casto sobre sua testa. – Precisa dormir agora. Está exausta.

– Não vai embora, vai?

– Não. – Olhou para a cadeira que usou para alcançar o equipamento no teto. – Vou ficar bem aqui.

– Esta cama... é grande o suficiente para nós dois.

Quando hesitou, Payne teve a impressão de que algo havia mudado para ele. Mas tinha acabado de tratá-la com tamanha perfeição erótica... e seu aroma exalava, de maneira que ela sabia que estava excitado.

Ainda assim... havia uma distância sutil agora.

– Junte-se a mim – pediu. – Por favor.

Ele se sentou ao lado dela na cama e acariciou-lhe o braço lentamente, com um ritmo constante... e a bondade que mostrou deixou-a nervosa.

– Não acho que seja uma boa ideia – murmurou.

– Por que não?

– Acho que será mais fácil para todos se seu novo tratamento ficar apenas entre nós.

– Ah.

– Seu irmão me trouxe aqui porque faria qualquer coisa para deixá-la melhor. Mas há uma diferença entre teoria e prática. Se ele entrar aqui e nos encontrar na cama juntos... Vamos apenas adicionar mais um item na pilha de problemas que já temos.

– E se eu lhe disser para não se importar com o que ele pensa?

– Pediria que facilitasse para o cara – seu curandeiro deu de ombros. – Vou ser honesto com você. Não sou fã dele... mas, por outro lado, seu irmão teve que assistir todo seu sofrimento.

Payne respirou fundo e pensou “Oh, se isso fosse ao menos a metade da história”.

– A culpa é minha.

– Não pediu para sofrer um acidente.

– Não pela minha lesão... Mas pela desolação do meu irmão. Antes de sua chegada, pedi-lhe algo que não deveria e, depois, isso foi agravado com... – cortou o ar com a mão. – Sou uma maldição para ele e sua companheira. De fato, sou uma maldição.

Que tivesse perdido a fé na benevolência do destino era compreensível, mas o que fez ao pedir para Jane ajudá-la foi imperdoável. O interlúdio com seu curandeiro era uma revelação e uma bênção sem medida; mas tudo o que conseguia pensar agora era em seu irmão e sua shellan... e nas repercussões de sua covardia egoísta.

Praguejando, estremeceu.

– Preciso falar com meu irmão.

– Certo. Vou trazê-lo aqui para você.

– Por favor.

Seu curandeiro ergueu-se e caminhou para a saída. Com a mão na maçaneta, fez uma pausa.

– Preciso saber uma coisa.

– Pergunte e eu prometo responder qualquer coisa.

– O que aconteceu um pouco antes de me trazerem até você? Por que seu irmão saiu para me buscar?

A frase não foi formulada exatamente como uma pergunta. O que a fez suspeitar que ele conseguiria adivinhar.

– Isso é entre ele e eu.

Os olhos do curandeiro estreitaram-se.

– O que você fez?

Ela suspirou e mexeu no cobertor.

– Diga-me, curandeiro, se não tivesse esperança de se levantar da cama outra vez e não tivesse uma arma, o que faria?

As pálpebras de Manny fecharam-se com força por um breve momento. Então, abriu a porta.

– Vou encontrar seu irmão agora mesmo.

Quando Payne foi deixada sozinha com seus lamentos, resistiu ao impulso de amaldiçoar, jogar coisas, gritar com as paredes. Naquela noite de sua ressurreição, deveria estar em êxtase, mas seu curandeiro estava distante, seu irmão furioso, e ela sentia muito medo do futuro. No entanto, aquela sensação não durou muito.

Mesmo com sua mente agitada, seu esgotamento físico logo cancelou sua atividade cognitiva e foi sugada por um buraco negro sem sonhos que a consumiu, corpo e alma.

Seu último pensamento, antes de tudo escurecer e silenciar, foi a esperança de conseguir consertar as coisas.

E, de alguma forma, ficar com seu curandeiro para sempre.

No corredor, Manny jogou as costas contra a parede de concreto e esfregou o rosto.

Não era um idiota; então, no fundo, tinha uma ideia do que havia acontecido: somente sentindo um pouco do sabor do desespero na boca aquele vampiro idiota seria capaz de se abalar até o mundo humano para buscá-lo.

Mas Cristo... e se não o tivesse encontrado a tempo? E se o irmão dela tivesse esperado mais ou...

– Droga.

Afastando-se da parede, entrou na sala de suprimentos e pegou uniformes novos, colocando suas roupas usadas no cesto de roupa suja depois de trocá-las. A sala de exames foi sua primeira parada, mas Jane não estava lá, então, caminhou mais adiante, em direção àquele escritório com portas de vidro.

Não havia ninguém ali.

De volta ao corredor, ouviu o mesmo barulho de antes vindo da sala de musculação e olhou para dentro, recebendo o olhar de um cara de cabelos muito curtos que corria feito um louco na esteira. O suor literalmente escorria do filho da mãe, seu corpo era tão magro que era quase doloroso de se olhar.

Manny esquivou-se saindo da sala. Não havia razão alguma para perguntar qualquer coisa ao filho da mãe.

– Está procurando por mim?

Manny virou-se.

– Chegou em boa hora... Payne precisa ver o irmão. Sabe onde ele está?

– Está fora, lutando, mas volta antes do amanhecer. Tem alguma coisa errada?

Sentiu a tentação de dizer “Você é quem pode me dizer”, mas resistiu.

– É entre eles. Não sei muito bem por que ela quer vê-lo.

Os olhos de Jane se afastaram.

– Certo. Bem, darei o recado. Como ela está?

– Ela andou.

Jane virou a cabeça com rapidez.

– Sozinha?

– Com apenas um pequeno auxílio. Você tem algum equipamento? Muletas? Esse tipo de coisa?

– Venha comigo.

Ela o levou a um ginásio profissional e o atravessaram até chegarem a uma sala de equipamentos; Entretanto, não havia nenhuma bola de basquete, vôlei ou cordas ali. Centenas de armas estavam colocadas sobre as prateleiras: facas, shurikens*, espadas, matracas**.

– Que tipo de aulas de ginástica vocês têm aqui?

– Isso é para o programa de treinamento.

– Devem ter sido acumuladas ao longo de gerações, hein?

– Foram... pelo menos até começarem os ataques.

Passando por todo aquele cenário de filme de ação, ela empurrou uma porta identificada como “FISIO” e mostrou-lhe uma bela sala de reabilitação, muito bem equipada com tudo o que um atleta profissional precisaria para se manter flexível, seguro e muito ágil.

– Ataques?

– A Sociedade Redutora abateu dezenas de famílias – disse. – E o que restava da população fugiu de Caldwell. Estão voltando lentamente, mas os últimos tempos têm sido muito difíceis.

Manny franziu a testa.

– Que diabos é essa Sociedade Redutora?

– Os humanos não são a verdadeira ameaça. – Abriu a porta de um armário e passou a mão sobre todo o tipo de apoios, muletas, bengalas e suportes. – O que está procurando?

– É contra isso que seu marido luta todas as noites?

– Sim, é. Agora, o que acha que precisa?

Manny olhou para o perfil de Jane e somou dois mais dois.

– Ela pediu para que lhe ajudasse a se matar, não foi?

Os olhos de Jane fecharam-se.

– Manny... sem ofensas, mas não tenho forças para essa conversa.

– Foi o que aconteceu?

– Mais ou menos. Grande parte.

– Ela está melhor agora – disse ele asperamente. – Vai ficar bem.

– Então, está funcionando – Jane sorriu um pouco. – Um toque mágico e pronto.

Limpou a garganta e resistiu à vontade de pisar duro como um adolescente de catorze anos que tinha sido pego no maior amasso.

– Sim. Acho que sim. Hã, acho que vou levar um par de suportes para pernas e muletas de braços... acho que vai funcionar com ela.

Quando ele pegou os equipamentos, os olhos de Jane permaneceram fixos nele, a ponto dele ter de murmurar:

– Antes que pergunte, a resposta é não.

Ela riu baixinho.

– Não ia perguntar nada.

– Não vou ficar. Vou fazer com que fique em pé, ande e, então, vou voltar.

– Na verdade, não era isso que estava passando pela minha cabeça. – Ela franziu a testa. – Mas você poderia dar um jeito, sabe? Já aconteceu antes. Comigo. Butch. Beth. E pensei que gostasse dela.

– Gostar é pouco – disse em voz baixa.

– Então, não faça planos até que tudo esteja acabado.

Ele balançou a cabeça.

– Tenho uma carreira que está indo pelo ralo... a causa disso, aliás, foi as lavagens que fizeram no meu cérebro. Tenho uma mãe que não é muito afeiçoada a mim, mas como ela não se afastaria ao se perguntar por que não teve notícias minhas nem em feriados. E tenho um cavalo que está muito mal. Está me dizendo que seu garoto e a turma dele são como eu, com um pé em cada mundo? Não penso assim. Além disso, o que diabos eu faria? Cuidar dela é um prazer, posso garantir... mas não gostaria de fazer disso uma profissão ou perceber, com o tempo, que ela não gosta de mim.

– O que há de errado com você? – Jane cruzou os braços sobre o peito. – Não é por nada, mas você é um grande homem.

– Faz bem em fugir dos detalhes sobre isso.

– As coisas poderiam dar certo.

– Certo, digamos que isso aconteça. Agora, responda-me... por quanto tempo eles vivem?

– Como?

– A expectativa de vida dos vampiros. Quanto tempo.

– Isso varia.

– Varia décadas ou séculos? – quando ela não respondeu, ele assentiu. – Foi exatamente o que pensei... provavelmente poderei viver mais uns... quarenta anos? E as rugas começarão a aparecer em dez. Já tenho dores todas as manhãs e um início de artrite nos meus dois quadris. Ela precisa de alguém da mesma espécie para se apaixonar, não um humano que vai se tornar um paciente geriátrico em um piscar de olhos. – Ele balançou a cabeça outra vez. – O amor pode conquistar tudo, mas sejamos realistas. E essa realidade vai prevalecer sempre.

Agora, a risada dela foi alta.

– De alguma maneira, não posso argumentar contra isso.

Ele olhou para os suportes.

– Obrigado por isso.

– Por nada – disse lentamente. – E darei o recado a V.

– Ótimo.

De volta ao quarto de Payne, entrou silenciosamente e parou assim que passou pela porta. Ela estava dormindo profundamente na penumbra, o brilho havia desaparecido de sua pele. Será que acordaria paralisada outra vez? Ou o progresso que fez permaneceria?

Concluiu que teriam de descobrir.

Apoiando as muletas e os suportes contra a parede, foi até a cadeira dura perto da cama e sentou-se, cruzando as pernas e tentando ficar em uma posição confortável. Não conseguiria dormir de jeito nenhum; queria apenas observá-la...

– Junte-se a mim – disse ela no silêncio. – Por favor. Preciso do seu calor agora.

Ao permanecer onde estava, percebeu que a rotina de ficar sentado não dependia de fato do irmão dela. Era um mecanismo de sobrevivência que tinha de manter ativo para mantê-los separados o máximo possível. Com certeza teriam relações sexuais outra vez... provavelmente em breve. E ficaria com ela por horas se fosse preciso. Mas não poderia se dar ao luxo de cultivar alguma fantasia sobre uma relação duradoura.

Eram dois mundos diferentes; simplesmente, não pertencia ao dela.

Manny inclinou-se para frente, colocou sua mão na dela e apertou seu braço.

– Shhh... estou bem aqui.

Quando ela virou a cabeça em direção a ele, seus olhos estavam fechados e ele teve a impressão de que estava falando enquanto dormia.

– Não me deixe, curandeiro.

– Meu nome é Manny – ele sussurrou. – Manuel Manello... Médico.

Estrela-ninja. (N.P.) Também conhecidos como “nunchaku” ou apenas “chaku”. (N.P.)


CAPÍTULO 30

O assovio foi forte e alto, e ao percorrer todo o saguão de entrada da mansão, Qhuinn soube que a demanda estridente havia sido feita por John Matthew.

Só Deus sabia o quanto tinha ouvido aquilo nos últimos três anos.

Aparecendo no pé da grande escadaria, enxugou o rosto suado com a camiseta e apoiou-se no corrimão esculpido em madeira maciça. A cabeça, após o treino, estava leve e macia como um travesseiro... contrastando completamente com o resto do corpo: as pernas e nádegas pareciam pesar tanto quanto a mansão.

Quando ouviu o assovio outra vez, pensou “Oh, certo, alguém está conversando com ele”. Virando-se, deu uma olhada em John Matthew parado entre os batentes ornamentados da porta da sala de jantar.

Que diabos fez a si mesmo?, o cara gesticulou antes de apontar para a própria cabeça.

Bem, cuide da sua vida, Qhuinn pensou. No passado, uma pergunta como aquela englobaria muito mais do que uma maldita mudança no estilo do cabelo.

– Chama-se corte de cabelo.

Tem certeza? Acho que parece mais uma baita desordem.

Qhuinn esfregou o penteado que havia feito.

– Não é grande coisa.

Pelo menos sabe que perucas são uma opção, não é? Os olhos de John se estreitaram. E onde está todo seu aparato de metal?

– No meu armário de armas.

Não suas armas, a porcaria que coloca no rosto.

Qhuinn apenas balançou a cabeça e virou-se para sair, sem interesse em discutir sobre todos os piercings que havia tirado. Seu cérebro estava confuso e seu corpo estava exausto, muito tenso e dolorido devido às corridas diárias...

Ouviu o assovio outra vez, e quase soltou um palavrão sobre o ombro. Contudo, resolveu dar um fim àquela babaquice, pois economizaria tempo: John nunca o deixava em paz quando estava com aquele humor.

Olhando para trás, rosnou:

– O quê?

Precisa comer mais; seja junto aos outros ou sozinho. Está se transformando em um esqueleto...

– Estou bem.

Bem, então, ou você começa a mastigar ou vou trancar aquele ginásio e não lhe darei a chave. A escolha é sua. E vou chamar Layla. Ela está no seu quarto lhe esperando.

Qhuinn virou-se rapidamente. Foi uma má ideia: o saguão transformou-se em um carrossel. Agarrando o corrimão de novo, exclamou:

– Eu poderia ter feito isso.

Mas não fez, então, fiz por você... quase como abater uma dúzia de redutores, será minha boa ação da semana.

– Quer se candidatar a Madre Teresa? Vai ter mais sorte se praticar isso com outra pessoa.

Desculpe. Escolhi você e é melhor agilizar... não vai querer deixar a moça esperando. Ah, e enquanto Xhex e eu estávamos na cozinha, pedi para Fritz preparar uma refeição para você e entregá-la no seu quarto. Mais tarde.

Quando o cara saiu na direção da despensa, Qhuinn gritou:

– Não estou interessado em ser salvo, idiota. Posso cuidar de mim mesmo.

A resposta de John foi um dedo do meio erguido sobre sua cabeça.

– Oh, pelo amor de Deus – Qhuinn murmurou.

Não estava nem um pouco afim de lidar com Layla naquele momento. Nada contra a Escolhida, mas a ideia de estar em um espaço fechado com alguém interessado em sexo simplesmente o sufocava – o que era muito irônico. Até bem pouco tempo, o sexo não apenas fazia parte de sua vida – definia-o. Na última semana? A ideia de estar com alguém lhe dava náuseas.

Cristo, tal pensamento o deteve, e a última pessoa com quem gostaria de estar era com uma ruiva.

Muuuito engraçado: estava claro que a Virgem Escriba tinha um tremendo senso de humor.

Forçando seu peso morto a subir as escadas, estava pronto para dizer a Layla, da maneira mais educada possível, que deveria cuidar da vida dela...

A tontura que o atingiu no segundo patamar da escada impediu-o de continuar seu caminho.

Nas últimas sete noites, acostumou-se com a sensação de um flutuar constante que surgiu quando começou a correr o máximo e a comer o mínimo possível, e ficava esperando pelo momento em que as coisas se dissociavam. Pelo amor de Deus, era mais barato do que beber e não parava nunca... ao menos, não até comer.

Mas aquilo era diferente. Sentia como se alguém tivesse lhe dado uma rasteira por trás e levado suas pernas embora... só que sua linha de visão lhe dizia que ainda estava em pé. Assim como o fato de que os quadris estavam contra o corrimão...

Sem aviso, um de seus joelhos se dobrou e Qhuinn caiu como um livro da prateleira.

Estendendo uma das mãos, ergueu-se sobre o maldito degrau, até ficar praticamente pendurado no corrimão. Olhando para a perna, golpeou-a algumas vezes e respirou fundo, desejando que seu corpo obedecesse ao programa.

Não aconteceu.

Em vez disso, deslizou lentamente na vertical e teve de se virar para fazer parecer que estava apenas agachando-se sobre o tapete vermelho-sangue. Não conseguia respirar... ou melhor, estava respirando, mas era horrível. Deus... Caramba... Vamos lá...

Que droga.

– Senhor? – uma voz veio do alto.

Fazendo daquilo um inferno duplo.

Quando fechou os olhos, pensou que o fato de Layla ter aparecido naquele momento era a maldita lei de Murphy ao vivo e em cores.

– Senhor, posso ajudá-lo?

Por sua vez, aquilo talvez pudesse ter seu lado bom: melhor que um dos Irmãos.

– Sim. Meu joelho falhou. Machuquei correndo.

Olhou para cima enquanto a Escolhida flutuava até ele, a túnica branca era um choque contra a cor intensa do carpete e o brilho dourado e ressonante dos trabalhos artísticos no saguão.

Sentindo-se um completo idiota quando ela se abaixou até ele, tentou erguer-se sozinho... apenas para chegar a lugar nenhum.

– Eu, hã... devo avisar que peso muito.

Sua mão adorável agarrou a dele e ficou impressionado em ver que seus dedos tremiam quando aceitou a ajuda. Ficou surpreso também quando foi transportado com um único puxão.

– Você é forte – disse ele quando o braço de Layla envolveu sua cintura e o ergueu.

– Vamos caminhar juntos.

– Desculpe, estou suado.

– Não me importo.

Com isso, eles saíram. Movendo-se lentamente, avançaram até as escadas e dirigiram-se ao corredor do segundo andar, passando por várias portas fechadas: pelo escritório de Wrath. Pelo quarto de Tohrment. Pelo de Blay... não olhou para esse. Pelo quarto de Saxton... nem considerou o fato de jogar o puxa-saco do seu primo pela janela. Passaram também pelo quarto de John Matthew e Xhex.

– Vou abrir a porta – a Escolhida disse quando pararam em frente a seu quarto.

Tiveram de virar de lado para passar os batentes por causa do seu tamanho, e ele ficou muito grato quando a Escolhida fechou a porta e o levou para a cama. Ninguém precisava saber o que estava acontecendo e havia uma grande possibilidade da Escolhida aceitar suas desculpas.

Sentar-se era o plano. Só que no instante em que ela o soltou, caiu para trás sobre o colchão feito um tapete de boas-vindas. Olhando para seu corpo em direção aos tênis de corrida, perguntou-se por que não conseguia ver o carro que estava estacionado em cima dele. Definitivamente não era um carro pequeno. Parecia mais uma caminhonete.

Que seja, algo grande.

– Hã... ouça, poderia ir até meu casaco de couro? Tenho uma barra de cereais lá.

De repente, ouviu um ruído de metal sobre porcelana perto da porta. E, então, o cheiro de algo que havia sido preparado no jantar.

– Talvez goste deste rosbife, senhor.

Seu estômago apertou como um punho fechado.

– Deus... não...

– Tem arroz.

– Apenas... uma daquelas barras...

Um ruído sutil sugeriu que ela estava carregando uma bandeja e, um segundo depois, sentiu muito mais do que um simples aroma de qualquer coisa que Fritz havia planejado.

– Pare... Pare com isso, droga... – inclinou-se e tentou vomitar dentro de um cesto de lixo. – Nada... de comida...

– Precisa comer – veio uma resposta que soou forte, foi surpreendente. – E devo alimentá-lo.

– Não se atreva...

– Aqui – Em vez de carne ou arroz, apresentou-lhe um pequeno pedaço de pão. – Abra. Precisa de comida, senhor. Seu amigo John Matthew foi quem disse.

Afundando-se contra os travesseiros, colocou o braço sobre o rosto. Seu coração pulava dentro do peito e, de alguma maneira obscura, percebeu que poderia realmente se matar se continuasse agindo assim.

Engraçado, a ideia não lhe pareceu tão ruim, especialmente quando o rosto de Blay surgiu em sua mente.

Tão lindo. Muito, muito lindo. Parecia bobo e desestimulante chamar o cara assim, mas ele era. Aqueles malditos lábios eram o problema... belos e macios na parte inferior. Ou será que eram os olhos?

Tão azuis.

Tinha beijado aquela boca e amou isso. Encarado aqueles olhos e enlouquecido.

Poderia ter tido Blay primeiro... e para sempre. Mas em vez disso? Foi seu primo quem conseguiu...

– Oh, Deus... – ele gemeu.

– Senhor. Coma.

Sem energia para lutar contra qualquer coisa, fez como lhe pediu, mastigando mecanicamente, engolindo pela garganta seca. E fez outra vez. E outra vez. Descobriu que os carboidratos apaziguavam o terremoto em seu estômago e, mais rápido do que poderia imaginar, viu que ansiava por algo um pouco mais substancial. Em seguida, bebeu um pouco da água que Layla lhe oferecia e tomou goles breves.

– Talvez devêssemos fazer uma pausa – disse ele, segurando outro pão apenas no caso da maré mudar.

Quando virou para o lado, sentiu os ossos de suas pernas se chocarem e percebeu que seu braço estava pendurado de forma diferente... havia menos peitoral no caminho. Sua bermuda esportiva também estava diferente... mais larga na cintura.

Tinha feito todo aquele estrago em sete dias.

Nesse ritmo, sua aparência não seria mais a mesma em pouco tempo. Já não tinha mais piercings, como John Matthew bem tinha notado; não só havia raspado a cabeça como também retirado os acessórios metálicos da sobrancelha, do lábio inferior e uma dúzia ou mais deles das orelhas. As argolas em seus mamilos também se foram. Ainda tinha um pino na língua e em seu órgão genital, mas tudo que era visível havia desaparecido.

Estava farto de si mesmo, de muitas maneiras. Enjoado e cansado de ser o homem estranho fora de propósito, exausto da sua reputação de vadio, e sem interesse algum em se rebelar contra os mortos. Pelo amor de Deus, não precisava de um profissional para explicar a psicologia que lhe havia moldado: sua família era o retrato da família perfeita, faziam parte da glymera conservadora... em contrapartida era um bissexual prostituto, cheio de piercings pelo corpo, vestindo um estilo gótico e com um fetiche por agulhas. Mas quanto disso realmente partia dele e quanto fazia parte de uma vingança olho por olho?

Quem era de fato?

– Quer mais? – Layla perguntou.

Quando a Escolhida posicionou-se na frente dele com a baguete, Qhuinn decidiu parar com sua atitude.

Abrindo a boca, deu uma de filhote de passarinho e comeu a maldita coisa. E mais um pouco. E, então, como se ela tivesse lido sua mente, levou um garfo de prata com um pedaço de carne assada até seus lábios.

– Vamos tentar, senhor... Mas, mastigue devagar.

Era a possibilidade de comer um pouco de gordura. “Fome” tornou-se imediatamente o nome do jogo e ele parecia um tiranossauro com a carne, quase mordendo o garfo com a pressa. Mas Layla não parou, oferecendo uma rodada mais rápido do que conseguiria processar.

– Espere... pare – ele murmurou, com medo de vomitar.

Deitou-se de costas outra vez e deixou uma das mãos descansando sobre o peito. A respiração superficial foi sua salvação. Se fizesse um pouco mais de esforço, iria abrir a boca e esparramar resíduos de todas as cores pelo corpo inteiro.

O rosto de Layla apareceu sobre o dele.

– Senhor... talvez devêssemos parar.

Qhuinn estreitou o olhar nela e observou-a de maneira mais atenta pela primeira vez desde que tinha aparecido.

Deus, era uma visão, com todo aquele cabelo loiro pálido caindo do alto de sua cabeça e seu rosto de uma perfeição impressionante. Com lábios de morango e olhos verdes que brilhavam à luz das lâmpadas, era tudo o que a raça valorizava em termos de DNA... nenhum defeito visível.

Ele estendeu a mão a acariciou o coque. Tão macio. Não precisava de qualquer fixador de cabelo naqueles fios; era como se as ondas soubessem que sua função era emoldurar seus traços e estavam ansiosas para fazer o melhor que podiam nisso.

– Senhor? – ela disse ao ficar tensa.

Ele sabia o que estava sob o manto: seus seios eram absolutamente deslumbrantes e seu abdômen liso como uma tábua... aqueles quadris e aquele sexo macio como seda entre suas coxas eram o tipo de coisa pelas quais um homem nu se despedaçaria.

Sabia desses detalhes, pois já tinha visto tudo, tocado em boa parte de seu corpo e colocado a boca em alguns lugares.

Contudo, ainda não a tinha possuído. Não tinha ido muito longe também. Por ser uma ehros, havia sido treinada para o sexo, mas como não havia um Primale para auxiliar a Escolhida nesse sentido, era uma aprendiz acadêmica, nada de aprender saindo “em campo”, por assim dizer. E, por um tempo, Qhuinn ficou feliz em mostrar-lhe algumas regras do jogo.

Só que não parecia certo.

Bem, parecia que algo estava certo ali, mas havia coisas demais nos olhos dela e o coração de Qhuinn era pequeno demais para que as coisas continuassem.

– Vai tomar da minha veia, senhor? – ela sussurrou com voz rouca.

Ele apenas a olhou.

Os lábios vermelhos da Escolhida se separaram.

– Senhor, vai... tomar de mim?

Fechando os olhos, viu o rosto de Blay outra vez... mas não como agora, não o desconhecido frio que Qhuinn havia criado. O velho Blay, com aqueles olhos azuis que, de alguma forma, estavam sempre olhando em sua direção.

– Senhor... Sou sua para que me tome. Apesar de tudo. Eternamente.

Quando finalmente olhou para Layla outra vez, os dedos dela tinham alcançado a gola do manto e aberto bem as duas metades, exibindo o pescoço longo e elegante, as asas de sua clavícula e aquele colo glorioso.

– Senhor... quero servi-lo. – Afastando o tecido de cetim mesmo já bem disperso, oferecia não apenas sua veia, mas seu corpo. – Possua-me...

Qhuinn deteve as mãos dela quando se dirigiram para o laço em volta de sua cintura.

– Pare.

Seus olhos repousaram sobre o edredom e ela pareceu ter se transformado em pedra. Ao menos até se afastar dele e arrumar o manto grosseiramente.

– Então, deve tomar meu pulso. – A mão dela tremia quando puxou uma das mangas e prendeu-a mais acima do braço.

– Tome do meu pulso aquilo que necessita de maneira tão evidente.

Não olhava para ele. Provavelmente não conseguia, e, ainda assim, lá estava ela... encerrada em uma desgraça que nunca mereceu e a qual Qhuinn nunca teve a intenção de evocar para ela... ainda assim, oferecia-se para ele... só que não de uma maneira patética, mas por que havia nascido e sido criada para servir a um propósito que não tinha qualquer relação com o que ela queria, e tudo a ver com uma expectativa social... e estava determinada a viver de acordo com os padrões, mesmo se não fosse desejada por quem ela queria.

Cristo, sabia como era aquilo.

– Layla...

– Não se desculpe, senhor. Isso me humilha.

Ele pegou seu braço, pois teve a impressão de que Layla estava prestes a cair.

– Olhe, é culpa minha. Nunca deveria ter começado com essas coisas de sexo com você...

– E digo outra vez: “pare”. – Suas costas estavam rígidas e sua voz, estridente. – Deixe-me ir, senhor.

Ele franziu a testa.

– Caramba... você está fria.

– Estou?

– Sim. – Percorreu a mão sobre seu braço. – Precisa se alimentar? Layla? Ei?

– Sou alimentada do Outro Lado, no Santuário, então, não.

Certo, acreditava nisso. Se uma Escolhida estava lá, era por que existia sem existir, sua necessidade de sangue era suspensa... e parecia que estava sempre bem: nos últimos anos, Layla era a única que servia os Irmãos que não podiam se alimentar de suas shellans. Era a Escolhida pela qual todos optavam.

E, então, deu-se conta.

– Espere, você não chegou a ir para o norte?

Agora que Phury havia libertado as Escolhidas de sua existência rígida e confinada, a maioria delas deixou o Santuário onde ficavam presas por toda eternidade e dirigiram-se para os grandes campos de Adirondack para aprender sobre as liberdades que existiam na vida deste lado.

– Layla?

– Não, não vou mais para lá.

– Por quê?

– Não posso. – Ela interrompeu a conversa e puxou a manga de seu manto outra vez. – Senhor? Vai tomar da minha veia?

– Por que não vai para lá?

Os olhos dela finalmente encontraram os de Qhuinn e mostravam-se muito irritados. Algo que produziu um estranho alívio. A mansa aceitação de tudo fazia com que ele questionasse sua inteligência. Mas considerando sua expressão agora? Havia muita coisa sob o manto que ela usava... e não estava falando apenas de seu corpo perfeito.

– Layla. Responda-me. Por que não?

– Não posso.

– Quem disse? – Qhuinn não era muito próximo de Phury, mas o conhecia o suficiente para causar um problema ao Irmão. – Quem?

– Não se trata de uma pessoa e não se preocupe. – Apontou para o pulso. – Alimente-se para que fique tão forte quanto precisa estar e, então, eu lhe deixarei em paz.

– Tudo bem, se quer as palavras certas... O que é, então?

A frustração queimou em seu rosto.

– Não é problema seu.

– Eu decido o que é problema meu. – Não costumava ameaçar fêmeas, mas parecia que seu cavalheiro dormente tinha saído da zona neutra de ação e resolvido jogar tudo para o ar. – Fale comigo.

Ele era a última pessoa que pedia para colocar as cartas na mesa; ainda assim, lá estava ele, começando o jogo. Contudo, a questão era que não poderia deixar nada machucar aquela fêmea.

– Tudo bem. – Ela ergueu as mãos. – Se eu for para o norte, não poderei lhes servir quando precisarem de sangue. Por isso, vou ao Santuário para me recuperar e fico no aguardo de ser convocada novamente. Venho a este lado, sirvo-lhes e tenho que voltar em seguida; então, não, não posso ir para as montanhas.

– Jesus... – eles eram muitos. Deveriam ter previsto esse problema... ou Phury deveria. A menos que... – Já conversou com o Primale?

– Sobre o que, exatamente? – ela retrucou. – Diga-me, senhor, teria pressa de apresentar as falhas que cometeu no campo de batalha diante de seu rei?

– Onde, diabos, está falhando? Está mantendo, mais ou menos, quatro de nós vivos.

– Exatamente. E estou servindo todos vocês dentro de uma capacidade muito limitada.

Layla levantou-se em um salto e caminhou até a janela. Quando olhou para fora, ele a desejou: naquele momento, teria dado qualquer coisa para sentir por ela o mesmo que ela sentia por ele... afinal, ela era tudo que sua família valorizava, ocupava o topo social para uma fêmea. E ela o desejava.

Mas quando Qhuinn olhava para dentro, havia um outro nome em seu coração. E nada mudaria isso. Nunca... temia.

– Não sei quem ou o que sou exatamente – Layla disse, como se estivesse falando consigo mesma.

Bem, parecia que os dois estavam no mesmo trem que levava a lugar algum quando o destino era essa questão.

– Não vai descobrir até que deixe aquele Santuário...

– Impossível se eu tiver que servir...

– Nós podemos chamar outra pessoa. Simples assim.

Houve uma inspiração profunda e, então, ela disse:

– Mas é claro. Deve fazer como deseja.

Qhuinn observou a linha bem definida de seu queixo.

– Isso deveria ajudá-la.

Ela olhou por cima do ombro.

– Não ajuda... pois isso me deixaria sem nada. Sua escolha, meu destino.

– A vida é sua. Pode escolher.

– Não vamos mais falar disso. – Ela ergueu as mãos. – Pelo amor da Virgem Escriba, você não faz ideia do que é desejar coisas que não está destinado a ter.

Qhuinn soltou uma risada dura.

– Até parece que eu não sei. – Quando as sobrancelhas dela se ergueram, ele revirou os olhos. – Você e eu temos mais em comum do que imagina.

– Você tem toda liberdade do mundo. O que poderia desejar?

– Confie em mim.

– Bem, eu o quero e não posso tê-lo, isso não é minha escolha. Ao menos, servindo você e aos outros, tenho um propósito além de lamentar a perda de algo que sonhei.

Quando Qhuinn respirou fundo, teve de respeitar a fêmea. Não havia qualquer sinal de piedade, parada diante daquela janela. Estava expondo os fatos como os conhecia.

Droga, era mesmo exatamente o tipo de shellan que sempre desejou. Mesmo sendo um nada ambulante, no fundo sempre visualizou a si mesmo com uma fêmea, num relacionamento a longo prazo. Alguém com uma linhagem impecável e muita classe... uma fêmea a qual seus pais não só aprovariam, como talvez o respeitassem um pouco por tê-la a seu lado.

Aquele tinha sido seu sonho; no entanto agora que parecia poder se tornar realidade... agora, que estava em seu quarto, olhando para seu rosto... Agora, queria outra pessoa totalmente diferente.

– Gostaria de sentir algo profundo por você – disse de maneira rude, oferecendo a verdade em troca da verdade. – Faria quase qualquer coisa para sentir o que deveria por você. Você é... a minha fantasia em termos de fêmea, tudo o que sempre desejei, mas que pensei que nunca poderia ter.

Seus olhos se abriram tanto que pareciam duas luas, belos e brilhantes.

– Então, por quê...?

Ele esfregou o rosto e perguntou-se o que diabos estava dizendo, o que diabos estava fazendo.

Quando abaixou as mãos, sentiu que deixou algo úmido e escorregadio para trás e recusava-se a pensar muito sobre isso.

– Estou apaixonado – disse com voz rouca. – Por outra pessoa. É por isso.


CAPÍTULO 31

Comoção no corredor. Uma confusão de passos... palavrões ditos em voz baixa... um ruído inoportuno em dado momento.

Todo aquele barulho acordou Manny e ele passou de um estado meio adormecido para a plena consciência em um piscar de olhos, como se um desfile de sons estivesse passando pelo corredor. A barulheira continuou até ser interrompida drasticamente, como se uma porta tivesse sido fechada naquele espetáculo, seja lá o que tenha sido.

Arrumando o local onde havia apoiado sua cabeça na cama de Payne, olhou para a paciente. Linda, simplesmente linda. E dormia tranquila...

Um raio de luz atingiu o rosto de Manny.

A voz de Jane soou tensa; quando parou no batente da porta, via-se apenas o recorte escuro do perfil de seu corpo.

– Preciso de mais um par de mãos aqui. Agora.

Não precisou pedir duas vezes. Manny correu para a porta, o cirurgião dentro dele estava pronto para trabalhar, sem fazer perguntas.

– O que temos?

Enquanto se apressavam pelo corredor, Jane passou a mão sobre seu uniforme manchado de vermelho.

– Traumas múltiplos. A maioria de facas, um tiro. E estão trazendo outro.

Invadiram a sala de exames e, meu Deus... caramba... havia homens feridos por toda parte... nos cantos, apoiados sobre a mesa, inclinados no balcão, xingando enquanto andavam impacientes pela sala. Elena ou Elaina, a enfermeira, estava ocupada pegando bisturis, linhas e outros acessórios, e também havia um pequeno homem idoso servindo água para todos em uma bandeja de prata.

– Ainda não avaliei todos – Jane disse. – São muitos.

– Onde encontro um estetoscópio e um aparelho de pressão extras?

Jane foi até um armário, abriu uma gaveta e puxou os dois.

– A pressão é muito mais baixa do que está acostumado a ouvir. O batimento cardíaco também.

O que significava que, mesmo sendo um profissional da medicina, não tinha como julgar de fato se aqueles pacientes estavam mal ou não.

Colocou o equipamento de lado.

– É melhor você e a enfermeira fazerem as avaliações. Vou fazer a preparação.

– Deve ser melhor mesmo – Jane concordou.

Manny aproximou-se da enfermeira loira que estava trabalhando de maneira eficiente com os suprimentos.

– Vou assumir a partir daqui. Ajude Jane com as leituras.

Ela assentiu brevemente e foi direto medir os sinais vitais.

Manny abriu as gavetas com rapidez e tirou kits cirúrgicos, alinhando-os sobre os balcões. Os analgésicos estavam em um armário vertical; encontrou as seringas mais embaixo. Quando terminou de vasculhar tudo, estava impressionado com a qualidade profissional: não sabia como Jane fizera aquilo, mas havia tudo o que um hospital precisava.

Dez minutos depois, Jane, ele e a enfermeira encontraram-se no meio da sala.

– Temos dois muito mal – disse Jane. – Rhage e Phury estão perdendo muito sangue... temo que as artérias tenham sido cortadas pois os cortes são muito profundos. Z. e Tohr precisam tirar radiografias e acho que Blaylock está com uma concussão juntamente com uma ferida terrível no estômago.

Manny foi até a pia e iniciou o procedimento de higienização.

– Vamos fazer isso. – Olhou ao redor e apontou para o mamute loiro com uma poça de sangue sob a bota esquerda. – Eu cuido dele.

– Certo, eu vou cuidar de Phury. Ehlena, comece a tirar as radiografias dos ossos quebrados.

Considerando que aquela era uma situação urgente, Manny assumiu o comando do seu paciente que estava estendido no chão, exatamente onde ele havia caído mais cedo. O grande bastardo vestia couro preto da cabeça aos pés e estava com muita dor, sua cabeça caiu para trás e apertava os dentes.

– Vou começar a trabalhar em você – disse Manny. – Tem algum problema com isso.

– Não se conseguir impedir meu sangramento.

– Considere feito. – Manny pegou uma tesoura. – Vou cortar a perna da calça primeiro e tirar a bota.

– Botas de combate – o cara gemeu.

– Tudo bem. Seja lá como a chama, está sendo retirada.

Nada de desamarrar... cortou o cordão entrelaçado na frente da maldita coisa e tirou aquilo de um pé que tinha o tamanho de uma mala. Em seguida, o couro deslizou facilmente saindo do caminho até o quadril, caindo para os lados como uma segunda pele.

– O que temos, doutor?

– Um peru de Natal, amigo.

– Tão fundo assim?

– Sim. – Não havia necessidade de mencionar que o osso estava exposto e que o sangue estava escorrendo num fluxo constante. – Tenho que me limpar outra vez. Já volto.

Depois que saiu da pia, Manny colocou um par de luvas, sentou-se e pegou um frasco de lidocaína.

O cara grande, loiro e ensanguentado o deteve.

– Não se preocupe com a dor, doutor. Costure-me e cuide dos meus Irmãos, eles precisam mais do que eu. Eu cuidaria disso sozinho, mas Jane não vai permitir.

Manny parou.

– Você costuraria a si mesmo?

– Faço isso há décadas, antes mesmo do senhor ter nascido, doutor.

Manny balançou a cabeça e murmurou:

– Desculpe, fortão. Não vou correr o risco de você se repuxar enquanto eu estiver trabalhando no seu vazamento.

– Doutor...

Manny apontou a seringa direto no belo rosto do seu paciente.

– Cale-se e deite-se. Deve apagar com isso, então, não se preocupe... haverá muito para contar e bancar o herói.

Outra pausa.

– Tudo bem, doutor, tudo bem. Não fique chateado. Pode apenas me pular... e ajudá-los.

Era difícil não respeitar a lealdade do cara.

Trabalhando rápido, Manny anestesiou a área da melhor maneira possível, empurrando a agulha contra a carne sobre um círculo definido. Cristo, aquilo o levava de volta à faculdade de medicina e, de uma maneira estranha, trouxe-lhe de volta à vida, produzindo um efeito que as operações que vinha realizando ultimamente não produziam mais.

Aquilo era... a realidade no volume máximo, e seria um imbecil se não gostasse do som.

Agarrando uma pilha de toalhas limpas, empurrou-as sob a perna e enxaguou o ferimento com um líquido antisséptico. Quando o paciente assoviou e enrijeceu, disse:

– Calma, garotão. Estamos apenas limpando o ferimento.

– Sem... problema.

Até parece. Manny desejava poder fazer mais para controlar a dor, mas não havia tempo. Havia fraturas expostas para lidar. Estabilizar. Seguir em frente.

Quando alguém gemeu e houve outra série de xingamentos soando a sua esquerda, Manny cuidou mais um pouco da artéria; em seguida, cobriu o músculo e dirigiu-se para o tecido da coxa.

– Está indo bem – murmurou quando notou que os punhos do paciente estavam fechados com força.

– Não se preocupe comigo.

– Certo, certo... seus irmãos – Manny parou por um segundo. – Você está bem, sabe disso.

– Caramba... – o lutador sorriu, mostrando as presas. – Estou... perfeito.

Então, o cara fechou os olhos e recostou-se, a mandíbula estava tão tensa que era um milagre conseguir engolir a saliva.

Manny trabalhou o mais rápido que pôde sem sacrificar a qualidade. E quando começou a limpar a linha de sutura com o auxílio de uma gaze, ouviu Jane gritar.

Virando a cabeça, murmurou:

– Droga.

Na porta de entrada da sala de exames, o marido de Jane estava envolvido nos braços pelo cara do boné do Red Sox, parecendo que tinha sido atropelado por um carro: a pele estava pálida, os olhos eram minúsculos na cabeça e... santo Deus, sua bota – bota de combate – estava apontando para o lado errado.

Manny gritou para a enfermeira.

– Pode fazer um curativo nisso? – olhando para seu atual paciente, disse: – Tenho que dar uma olhada no...

– Vá – o cara deu um tapa no ombro dele. – E obrigado, doutor. Não vou esquecer isso.

Enquanto se dirigia para o recém-chegado, Manny teve de se perguntar se o cara do cavanhaque de boca grande permitiria que ele o operasse. Porque aquela perna... Parecia completamente destruída mesmo observando rapidamente do outro lado da sala.

A consciência de Vishous oscilava no momento em que Butch entrou na sala de exame, carregando-o.

Aquela combinação de ferimentos no joelho e no quadril ia além da agonia, adentrava outro território, e as sensações esmagadoras minavam suas forças e seu processo cognitivo. Entretanto, não era o único que estava mal. Quando Butch entrou cambaleando fraco pela porta, bateu a cabeça de V. contra o batente.

– Que inferno!

– Droga... desculpe.

– Não... é nada demais – V. disse ofegante quando a dor de cabeça começou a gritar, o cara poderia até harmonizá-la com um rock pesado estilo Welcome to the Jungle.

Para calar o concerto do inferno, abriu os olhos e esperou uma distração.

Jane estava bem na frente dele, havia uma agulha de sutura em sua mão ensanguentada e envolta por uma luva, seus cabelos estavam puxados para trás por uma faixa.

– Ela não – gemeu. – Ela... não...

Médicos nunca deveriam tratar seus companheiros; era a receita para o desastre. Se seu joelho ou quadril tivesse sofrido um dano permanente, não queria que aquilo pesasse na consciência dela. Deus era testemunha de que já tinham problemas suficientes.

Manny parou em frente a sua shellan.

– Então, sou sua única opção. Não precisa agradecer.

Vishous revirou os olhos. Ótimo; que bela escolha.

– Você consente? – o humano perguntou. – Talvez queira pensar sobre isso um pouco, assim, suas articulações podem se recuperar assumindo a forma da perna de um flamingo. Ou talvez sua perna gangrene e caia.

– Bem, que seja... não é... uma negociação.

– E a resposta é...?

– Tudo bem. Sim.

– Coloque-o sobre a mesa.

Butch foi cuidadoso ao deitá-lo, mas mesmo assim, V. quase vomitou sobre os dois quando seu peso foi redistribuído.

– Filho da mãe... – Assim que o xingamento saiu dos seus lábios, o rosto do cirurgião apareceu sobre o dele. – Desculpe, Manello... não acho que queira... ser tão próximo a mim...

– Quer me dar um soco? Tudo bem, mas espere até eu dar um jeito na sua perna.

– Não, estou... enjoado.

Manello balançou a cabeça.

– Preciso de analgésico aqui. Tragam-me um pouco de Demer...

– Demerol não – V. e Jane disseram juntos.

Os olhos de V. dispararam na direção dela. Estava do outro lado, no chão, inclinada sobre o estômago de Blaylock, costurando um corte médio. Suas mãos eram firmes e seu trabalho absolutamente perfeito; tudo nela traduzia a imagem da competência profissional, menos as lágrimas que escorriam em seu rosto.

Com um gemido, olhou para o lustre acima dele.

– Pode ser morfina? – Manello perguntou enquanto cortava a manga da jaqueta de motoqueiro. – E não se incomode em ser durão. A última coisa que preciso é de você bufando enquanto vasculho o que há aqui embaixo.

Jane não respondeu dessa vez, então, V. o fez.

– Sim. Não tem problema.

Quando uma seringa foi preenchida, Butch aproximou-se do cirurgião. Mesmo com a respiração debilitada, o tira foi totalmente ameaçador quando falou:

– Não preciso dizer para não ferrar com o meu amigo, certo?

O cirurgião voltou-se para sua rotina de frasco, agulha e seringa.

– Não estou interessado em sexo no momento, muito obrigado. Mas se estivesse, com certeza não seria com ele. Então, em vez de se preocupar com quem estou pegando, por que não faz um favor a todos nós e vai tomar um banho? Está fedendo.

Butch piscou. Então, sorriu um pouco.

– Você honra as calças que veste.

– E elas cobrem duas bolas feitas de bronze, tão grandes quanto os sinos de uma igreja.

A próxima coisa que V. soube foi que alguma coisa fria estava sendo esfregada na junção do seu braço, em seguida, houve uma picada e, depois, começou a fazer um pequeno passeio, seu corpo transformou-se em uma bola de algodão, muito leve e arejada. De vez em quando, a dor irrompia, balançando-se em seu intestino e cravando as garras em seu coração. Mas nada estava ligado àquilo que Manny fazia em sua lesão: V. não conseguia tirar os olhos de sua companheira enquanto tratava dos Irmãos.

Através do painel ondulado de sua visão, observou quando ela lidou com Blay e depois com Tohrment. Não conseguia ouvir o que ela dizia, pois seus ouvidos não estavam funcionando muito bem, mas era evidente que Blay estava grato e Tohr pareceu se acalmar apenas por sua presença. De tempos em tempos, Manello perguntava-lhe alguma coisa, ou Ehlena a detinha com uma pergunta, ou Tohr estremecia e ela fazia uma pausa para acalmá-lo.

Aquela era sua vida, não? Aquele processo de cura, a busca por excelência, a devoção permanente a seus pacientes.

Seu dever para com eles a definia, não era isso?

E enxergá-la assim fez com que repensasse o que tinha acontecido entre ela e Payne. Se Payne estava tão disposta a tirar a própria vida, com certeza Jane teria tentado impedi-la. E, então, quando ficou evidente que não conseguiria...

De repente, como se soubesse que estava olhando para ela, os olhos de Jane fixaram-se nos dele. Estavam tão obscurecidos que não conseguia dizer qual era a cor deles e, por um momento, ela perdeu sua forma corpórea, como se ele tivesse sugado a vontade de viver de dentro dela.

O rosto daquele cirurgião entrou no caminho.

– Precisa de mais analgésico?

– O quê? – V. perguntou com a sensação de que a língua estava grossa e seca.

– Você gemeu.

– Não... é... o joelho.

– Não é apenas o joelho.

– O quê...?

– Acho que deslocou o quadril. Vou tirar totalmente as calças do caminho.

– Que seja...

Quando V. voltou a olhar para Jane, tinha apenas a vaga impressão de que uma tesoura cortava os dois lados da sua calça, mas soube exatamente quando o cirurgião tirou o couro por completo. O cara soltou um silvo agudo... que foi rapidamente encoberto.

Com certeza aquela reação não estava relacionada aos avisos tatuados no Antigo Idioma.

– Desculpe, doutor – V. resmungou, sem ter certeza do porquê estava se desculpando pela confusão que havia abaixo da sua cintura.

– Eu vou, hã... Vou cobri-lo. – O humano saiu e voltou com um cobertor que colocou sobre a parte inferior do abdômen de V. – Só preciso examinar suas articulações.

– Bem... faça isso.

Os olhos de Vishous voltaram para Jane e viu-se pensando... se ela não tivesse morrido e sido trazida de volta como foi, será que chegariam a tentar ter um filho? Duvidava que pudesse gerar alguma coisa além de um orgasmo se considerasse o dano que seu pai havia lhe feito. E ele nunca quis ter filhos... ainda não queria.

No entanto, ela teria sido uma ótima mãe. Era boa em tudo que fazia.

Será que sentia falta de estar viva?

Por que nunca havia perguntado isso a ela?

A volta do rosto do cirurgião interrompeu seus pensamentos.

– Seu quadril está deslocado. Vou ter que cuidar disso antes de trabalhar no joelho, pois estou preocupado com sua circulação. Certo?

– Apenas me conserte – V. gemeu. – Não importa o que for preciso.

– Bom. Vou colocar o joelho em um suporte temporário. – O humano olhou para Butch que, apesar do pedido do banho, tinha se apoiado contra a parede a pouco mais de meio metro de distância. – Preciso da sua ajuda. Não há mais ninguém por perto com as mãos livres.

O tira mostrou-se bem disposto, juntando suas forças e se aproximando.

– O que quer que eu faça?

– Segure a bacia dele no lugar. – O homem pulou sobre a mesa de aço inoxidável colocando-se em cima das pernas de V., agachando-se para evitar bater a cabeça no lustre. – Vai ser um trabalho braçal... não existe outra maneira de fazer isso. Quero que olhe para mim, e vou lhe mostrar onde deve colocar as mãos.

Butch seguiu as instruções, deslizando e descendo as mãos.

– Onde?

– Aqui. – V. teve a vaga sensação de um peso quente dos dois lados do quadril. – Um pouco mais para fora... direita. Bom.

Butch olhou para V. sobre o ombro.

– Está pronto para isso?

Que pergunta tola. Era como perguntar se alguém estava pronto para uma colisão frontal.

– Vai fundo – V. murmurou.

– Apenas concentre-se em mim.

E V. concentrou-se... observando as nódoas esverdeadas nos olhos cor de avelã do tira, os contornos daquele nariz quebrado e a barba por fazer.

Quando o humano agarrou a parte inferior da coxa de V. e começou a levantar, V. ergueu-se contra a mesa, sua cabeça caiu para trás, esticando o queixo.

– Calma – o tira disse. – Concentre-se em mim.

Uh-hum, certo. Sentiu dor e, em seguida, mais DOR. Aquilo era DOR.

Vishous esforçou-se para respirar, seus caminhos neurológicos estavam repletos de sinais, seu corpo explodia mesmo com a pele intacta.

– Diga a ele para respirar – alguém disse. Provavelmente o humano.

Sim, aquilo ia acontecer mesmo. Ou não.

– Certo, no três, eu vou forçar a articulação de volta no lugar, pronto?

V. não fazia ideia com quem o cara estava falando, mas se fosse com ele, não tinha como responder. Seu coração pulava, os pulmões eram como pedras e seu cérebro parecia Las Vegas com suas luzes noturnas e...

– Três.

Vishous berrou.

A única coisa que soou mais alto foi o estalo do quadril sendo recolocado, por assim dizer. E a última coisa que viu antes de se hospedar no Hotel da Inconsciência foi Jane virando-se em pânico. Havia horror puro nos olhos dela, como se a pior coisa que ela pudesse imaginar fosse vê-lo em agonia...

E foi então que V. soube que ainda a amava.


CAPÍTULO 32

Na mansão, no quarto de Qhuinn, não havia nada além de um silêncio avassalador... o que era normal quando se jogava uma bomba, fosse real ou metafórica.

Deus do céu, não conseguia acreditar que havia dito aquelas palavras: mesmo sabendo que apenas ele e Layla estavam ali, sentiu como se tivesse subido no topo de um edifício no centro de Caldwell e anunciado aos gritos a novidade.

– Seu amigo – sussurrou Layla. – Blaylock.

O coração de Qhuinn congelou, mas depois de um momento, forçou-se a concordar.

– Sim. É ele.

Esperou por algum tipo de nojo ou careta ou... mesmo um choque. Por vir de onde vinha, sabia muito bem o que era homofobia... e Layla era uma Escolhida, pelo amor de Deus, aquilo faria todo aquele bando mais tradicional da glymera ficar completamente encantado.

Aquele belo olhar permaneceu em seu rosto.

– Acho que já sabia. Vi como ele olhou para você.

Bem, aquilo não existia mais. E...

– Não lhe incomoda? Que seja outro macho?

Houve uma pequena pausa, e, então, a resposta que lhe deu transformou-o de maneira curiosa:

– Nem um pouco. Por quê?

Qhuinn teve de desviar o olhar. Pois temia que seus olhos estivessem brilhando.

– Obrigado.

– Pelo quê?

Tudo o que ele conseguiu fazer foi encolher os ombros.

Quem diria que a aceitação seria curiosamente tão dolorosa quanto toda a rejeição que sempre sofreu?

– Acho melhor ir – disse asperamente.

– Por quê?

Porque estava considerando seriamente a ideia de encharcar o quarto e não queria dar uma de salgueiro chorão na frente de ninguém, nem mesmo dela.

– Senhor, está tudo bem – soava uma seriedade tremenda em sua voz. – Não o julgo se a pessoa por quem está apaixonado é macho ou fêmea... mas pela forma como a ama.

– Então, deve me odiar – Deus, por que será que sua boca ainda estava se mexendo? –, pois parti seu coração.

– Então... ele não sabe o que o senhor sente por ele?

– Não – Qhuinn estreitou os olhos na direção dela. – E não vai saber, ficou claro? Ninguém sabe.

Ela inclinou a cabeça.

– Seu segredo está seguro comigo. Mas sei bem como ele olhou para o senhor. Talvez devesse dizer a ele que...

– Deixe-me poupá-la de uma lição que aprendi da maneira mais difícil: algumas vezes é tarde demais. Ele está feliz agora... e merece isso. Dane-se, quero que ele tenha amor, mesmo que eu esteja apenas observando isso de longe.

– Mas e quanto a você?

– Quanto a mim? – Passou os dedos ao longo do cabelo e percebeu que tinha raspado tudo. – Ouça, chega... Só lhe disse isso tudo para que saiba que essa coisa entre você e eu não é por não ser boa ou atraente o suficiente. Sinceramente? Estou farto de estar com outra pessoa para fins sexuais. Não vou fazer mais isso. Não me leva a lugar nenhum... sim. Parei com isso.

Que irônico. Agora que não estava com Blay, estava sendo fiel ao filho da mãe.

Layla atravessou o quarto, aproximando-se dele, e sentou-se na cama, posicionando as pernas e alisando o manto com mãos pálidas e elegantes.

– Fico feliz por ter me contado.

– Sabe... eu também. – Estendeu a mão e segurou a dela. – E eu tenho uma ideia.

– Mesmo?

– Amigos. Você e eu. Você vem até aqui, eu a alimento e ficamos juntos. Como amigos.

O sorriso dela foi incrivelmente triste.

– Devo dizer que... sempre soube que não se interessava por mim de uma maneira especial. Foi muito contido ao me tocar e mostrou-me coisas que me deixaram extasiada... mas sob a onda de paixão que senti, eu sabia...

– Também não está apaixonada por mim, Layla; simplesmente não está. Sente muita coisa física e isso faz com que pense que é emocional. O problema é que o corpo precisa de muito menos que a alma para se conectar.

Ela colocou a mão livre sobre o coração.

– A dor está aqui.

– Porque você tem uma queda por mim. Mas vai passar, especialmente quando conhecer o cara certo.

Deus, dê só uma olhada nisso; de prostituto a conselheiro de acampamento religioso em apenas uma semana. Próximo passo: ser convidado por algum programa de variedades dedicado ao público feminino.

Ele estendeu o braço.

– Tome da minha veia, assim, poderá ficar mais deste lado e descobrir o que deseja na vida... não o que deve ser ou fazer, mas o que realmente quer. Posso até ajudá-la, se puder. Deus sabe que sei muito bem como é estar perdido.

Houve um longo momento, e, então, aqueles olhos verdes voltaram-se para os dele.

– Blaylock... não sabe o que está perdendo.

Qhuinn balançou a cabeça com tristeza.

– Oh, ele sabe muito bem. Pode acreditar.

Não foi fácil limpar tudo.

Enquanto Jane tirava um balde e um esfregão do armário de limpeza, deu uma olhada no que precisavam obter para repor todo o material necessário: utilizaram centenas de pacotes de gaze, o número de agulhas restantes era uma piada, e estavam quase sem curativos...

Abrindo a porta da sala de exames com o quadril, virou o balde com o esfregão e fez uma pausa. Havia sangue por todo o chão e também nas paredes. Chumaços de gaze branca manchadas de vermelho eram como cotões do Freddy Krueger. Três sacos de lixo de risco biológico estavam tão cheios ao ponto de parecer que precisavam de um antiácido para o inchaço.

Meeeeeu Deus...

Observando aquilo tudo, percebeu que se Manny não estivesse com ela, poderiam ter perdido um dos Irmãos. Rhage, por exemplo, poderia ter sangrado demais. Ou Tohr... pois o que parecia apenas uma lesão no ombro acabou mostrando ser muito, muito mais.

Manny acabou tendo de operá-lo. Depois de terminar a cirurgia em Vishous.

Fechando os olhos, apoiou a cabeça contra o cabo do esfregão. Como fantasma, não ficava exausta da maneira como costumava: nada mais de dores nem da sensação de que alguém tinha amarrado pesos de musculação em seus dois tornozelos. Agora era sua mente que se cansava, a ponto de ter de fechar os olhos para não ter de ver, nem fazer absolutamente nada... como se a placa-mãe de seu cérebro precisasse ser desligada para esfriar. E ela dormia em seguida. E sonhava.

Ou... como provavelmente seria o caso de hoje... não. De tempos em tempos a insônia ainda era um problema...

– Vai precisar varrer primeiro.

Levantando a cabeça, tentou sorrir para Manny.

– Acho que você está certo.

– Que tal deixar que eu cuide disso?

Sem chance. Não estava com pressa de se fechar na sala de recuperação e ficar olhando para o teto. Além disso, Manny devia estar tão cansado quanto ela.

– Quanto tempo se passou desde que se alimentou pela última vez? – ela perguntou.

– Que horas são?

Ela olhou para o relógio.

– Uma hora.

– Da tarde?

– Sim.

– Umas doze horas ou mais – ele pareceu ficar surpreso com isso.

Pegou o telefone sobre a mesa.

– Vou ligar para Fritz.

– Ouça, não precisa...

– Deve estar quase desmaiando.

– Na verdade, estou ótimo.

O ser humano não era assim. A menos que... Ora, droga, ele parecia energizado em vez de esgotado. Que fosse; ainda assim iria alimentá-lo.

O pedido que fez não demorou mais que um minuto e Fritz ficou emocionado com a ordem. Geralmente, depois da Última Refeição, o mordomo e sua equipe retiravam-se para um breve descanso antes da limpeza diária começar, mas preferiam continuar trabalhando.

– Onde fica o armário da limpeza? – Manny perguntou.

– No corredor. À sua esquerda.

Enquanto ela enchia o balde com água sanitária e água, ele encontrou uma vassoura, voltou à sala e começou a cuidar das coisas.

Enquanto trabalhavam juntos, ela só conseguia pensar em Vishous. Durante a correria em tratar os Irmãos, havia tanto em que se concentrar; mas agora, passando as tiras do esfregão pelo chão, era como se toda a angústia que havia tido nos bastidores de seu cérebro se libertasse e corresse contra as suas grades de proteção mental.

Qualquer pessoa menos ela.

Ela o ouviu dizer isso várias vezes; viu seu rosto pálido, seus olhos gélidos e a maneira como a deixou de fora.

Engraçado... a eternidade que lhe tinha sido concedida parecia ser a maior bênção de todas. Até pensar nas eras que viveria sem o homem que amava.

Agora, era uma maldição.

Para onde iria? Não poderia continuar no complexo. Não se continuassem como estranhos. Seria muito difícil para todos...

– Aqui.

Jane pulou quando um tecido flutuou na frente de seu rosto. O pequeno quadrado branco estava pendurado nas pontas dos dedos firmes de Manny e ele o balançou outra vez quando percebeu que ela apenas olhava para a coisa.

– Está chorando – ouviu ele dizer.

Apoiando a alça do esfregão na curva do cotovelo, apanhou o que tinha lhe oferecido e ficou surpresa ao descobrir que ele estava certo: quando retirou de seus olhos o lenço de papel e o observou, estava úmido.

– Sabe? – Manny falou lentamente. – Vê-la assim me dá vontade de amputar a maldita perna dele.

– Isso é culpa dele apenas em parte.

– Isso é o que você diz. Posso olhar para a situação da maneira que eu quiser.

Ela ergueu o olhar.

– Tem outro desses?

Ele estendeu uma caixa e tirou mais alguns. Enxugou. Enxugou. Um delicado assoar de nariz. Enxugou. Ela terminou a rápida crise de choro com um... dois... três... lenços jogados no lixo.

– Obrigada por me ajudar. – Quando ela olhou para cima, havia um olhar furioso em seu rosto e teve de sorrir. – Senti falta disso.

– Falta do quê?

– Dessa expressão enfurecida que usa com tanta frequência. Lembro-me dos bons e velhos tempos. – Ela o encarou com firmeza. – V. vai ficar bem?

– Se eu não acabar com ele por sua causa... sim.

– Tão gentil – e ela estava sendo sincera. – Você foi incrível hoje.

Estava sendo sincera também.

Manny colocou os lenços de papel ao lado, sobre o balcão.

– Você também. Isso acontece muito?

– Na verdade, não. Mas tenho a impressão de que as coisas podem mudar.

Voltando ao trabalho, deu algumas passadas superficiais com o esfregão, sem conseguir melhorar de fato a situação do piso, mas apenas espalhando o sangue pelo local. Daquela forma, teria mais sorte se esguichasse o local com uma mangueira.

Poucos minutos depois, houve uma batida na porta e Fritz colocou a cabeça para dentro.

– Sua refeição está pronta. Onde gostaria de jantar?

– Ele vai comer no escritório – Jane respondeu. – Na mesa. – Olhou para o antigo colega. – Melhor ir antes que esfrie.

O olhar de Manny foi o equivalente a um dedo do meio estendido, mas ela apenas acenou, dando um tchauzinho.

– Vá. E descanse um pouco depois.

Só que ninguém dizia a Manny Manello o que fazer.

– Vou para lá em um minuto – disse para o mordomo.

Quando Fritz saiu, o antigo chefe de Jane colocou as mãos sobre os quadris. E apesar dela já se preparar para uma discussão, tudo o que ele disse foi:

– Onde está minha maleta? – Quando Jane piscou, ele deu de ombros. – Não vou forçá-la a conversar comigo.

– Então, virou uma nova página.

– Ponto para mim – ele acenou com a cabeça em direção ao telefone instalado na parede. – Tenho que verificar minhas mensagens e quero meu maldito celular de volta.

– Ah... certo. Seu carro deve estar estacionado na garagem. Basta seguir pelo corredor. Talvez esteja no Porsche.

– Obrigado...

– Está pensando em ir embora?

– O tempo todo. – Ele virou-se e foi para a porta. – Só consigo pensar nisso.

Bem... eram dois. Mas Jane nunca imaginou não estar ali, prova inegável de que não era muito útil formular um monte de ideias brilhantes sobre o futuro.


CAPÍTULO 33

Tradicionalmente, na e entre os membros da glymera, quando alguém entra na casa de outra pessoa, um cartão de visitas é colocado sobre uma bandeja de prata, que é levada por um doggen até o anfitrião. O cartão deveria ter um único nome e a linhagem listada, e o propósito era anunciar o visitante, enquanto, ao mesmo tempo, prestava-se uma homenagem aos costumes sociais que moldavam e definiam as classes mais altas.

Mas, e quando alguém não conseguia escrever ou ler... ou, mais objetivamente, quando alguém preferia métodos de comunicação mais diretos e menos formais?

Bem, então, esse alguém deixava corpos mortos que ele mesmo havia assassinado em um beco para seu “anfitrião” encontrar.

Xcor levantou-se da mesa em que estava sentado e levou sua caneca de café com ele. Os outros estavam dormindo e sabia que deveria se juntar a eles, mas não haveria descanso. Não naquele dia. Talvez, nem no dia seguinte.

Deixar aqueles redutores cortados ao meio e contorcendo-se para trás foi um risco calculado. Se os humanos os encontrassem? Problemas, e mesmo assim, tinha valido a pena. Wrath e a Irmandade governavam aquele continente há muito tempo e para que fim? A Sociedade Redutora ainda persistia. A população de vampiros tinha se dispersado, e aqueles seres arrogantes, flácidos e irresponsáveis estavam por toda parte.

Xcor parou nas escadas do corredor e olhou em torno de suas acomodações permanentes. A casa que Throe havia providenciado era de fato apropriada. Feita de pedra, era velha e afastada, dois itens importantes que eram muito apropriados para seus propósitos. Em algum momento da história, aquela casa deve ter sido palco de muitos eventos, mas esse tempo havia passado assim como sua distinção. Agora, era a sombra do que havia sido e tudo de que ele precisava: paredes fortes, telhado resistente e com espaço mais do que suficiente para abrigar seus homens.

Não que alguém fosse frequentar aquelas salas do andar de cima ou os sete quartos do segundo andar; apesar das pesadas cortinas puxadas sobre as janelas, os incontáveis painéis de vidro precisavam ser revestidos de tijolos para que as coisas ficassem realmente seguras durante o dia.

Na verdade, todos ficaram no subsolo, na adega.

Era como nos bons e velhos tempos, ele pensou, pois só nos tempos modernos que a concepção de acomodações separadas tinha criado raiz. Antes, comiam juntos, transavam juntos e repousavam como um grupo, como soldados deveriam fazer.

Talvez os obrigasse a permanecer debaixo da terra. Juntos.

Ainda assim, não estava lá com eles, nem tinha estado. Impaciente e agitado, pronto para prosseguir, mas sem vítimas no momento, passava de quarto em quarto, todos vazios, espalhando a poeira com seu desejo de conquistar aquele novo mundo.

– Eu os encontrei. Todos eles.

Xcor parou. Deu mais um gole em sua caneca. Virou-se.

– Como você é inteligente.

Throe entrou no que antes havia sido um grande salão, mas que agora não era nada além de um lugar frio e vazio. O lutador ainda estava vestido com roupas de couro, só que, de alguma maneira, tinha uma aparência elegante. Não era surpresa: ao contrário dos outros, seu pedigree era tão perfeito quanto seus cabelos dourados e seus olhos azul cor de céu. Assim também era seu corpo e seu semblante: sem defeitos visíveis por dentro ou por fora.

No entanto, era um dos bastardos.

Quando o macho limpou a garganta, Xcor sorriu. Mesmo após todos esses anos juntos, Throe ainda não se sentia à vontade em sua presença. Que curioso.

– E... – Xcor solicitou.

– Há remanescentes de duas famílias em Caldwell no presente momento. O que resta das outras quatro principais linhagens está espalhado por onde chamam de Nova Inglaterra. Assim, talvez alguns estejam de oitocentos a mil quilômetros de distância.

– De quantas você é parente?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Cinco.

– Cinco? Isso preencheria sua agenda social rapidamente... planeja fazer algumas visitas?

– Sabe que não posso.

– Oh... é verdade. – Xcor terminou seu café. – Esqueci-me que foi denunciado. Acho que terá que permanecer aqui conosco, meros pagãos.

– Sim. Terei.

– Hummm – Xcor levou um momento para desfrutar do silêncio constrangedor. Só que, em seguida, o outro macho estragou tudo.

– Não temos motivos para continuar – Throe disse. – Não somos da glymera.

As presas de Xcor foram expostas quando deu um sorriso.

– Preocupa-se demais com as regras, meu amigo.

– Não pode convocar uma reunião com o Conselho. Não tem apoio.

– É verdade; no entanto, outra história pode lhes ser apresentada com um motivo para a convocação. Não foi você mesmo quem disse que alguns boatos sobre o Rei começaram a circular após as invasões?

– Sim. Mas tenho plena consciência do que procura e o objetivo final, na melhor das hipóteses, é uma traição... e suicídio, na pior.

– Que mentalidade estreita, Throe. Mesmo com toda sua educação, tem uma grande falta de visão.

– Não pode depor o Rei... e com certeza não está pensando em tentar matá-lo.

– Matá-lo? – Xcor ergueu uma sobrancelha. – Não quero um caixão como cama para ele. Não mesmo. Desejo-lhe uma longa vida... assim, poderá se revirar na lama de seu fracasso.

Throe balançou a cabeça.

– Não sei por que o odeia tanto.

– Por favor – Xcor revirou os olhos. – Não tenho nada pessoal contra ele. É seu status que cobiço, pura e simplesmente. Vê-lo vivo enquanto sento-me no trono é apenas um tempero adicional a minha refeição.

– Às vezes... temo que esteja louco.

Xcor estreitou os olhos.

– Garanto-lhe... Não estou nem furioso, nem louco. E pense com cuidado quando for expor comentários como esse.

Era plenamente capaz de matar seu velho amigo. Hoje. Naquela noite. Amanhã. Seu pai o ensinou que soldados não eram diferentes de nenhuma outra arma... e quando havia um risco de falharem? Tinham de desaparecer.

– Perdoe-me – Throe fez uma pequena reverência. – Minha dívida com você ainda permanece, assim como minha lealdade.

Que coisa triste e patética. Apesar de ser verdade o fato de Xcor ter assassinado o macho que havia contaminado a irmã de Throe, aquilo havia sido um investimento muito rentável em termos de tempo e força em campo, pois isso amarrou aquele lutador com firmeza e fidelidade junto a ele. Para sempre.

Throe vendeu-se para Xcor para que o ato fosse realizado. Naquela época, o macho era covarde demais para cometer o assassinato com as próprias mãos e, assim, infiltrou-se nas sombras para procurar o que nunca teria convidado para entrar sequer pela porta de serviço de sua mansão. Ficou chocado quando o dinheiro oferecido foi recusado e já estava saindo quando Xcor fez sua exigência.

A rápida lembrança de como a irmã dele havia sido encontrada foi o suficiente para que ele se comprometesse.

E o treinamento subsequente tinha feito maravilhas. Sob a tutela de Xcor, Throe fortaleceu-se ao longo do tempo, como aço forjado no fogo. Agora era um assassino, e útil para fazer algo diferente além de brincar de estátua social em jantares e bailes.

Era uma vergonha que sua linhagem não visse a transformação como uma melhoria... apesar do fato de seu pai ter sido um Irmão, pelo amor de Deus. A família deveria ficar grata. Infelizmente, negaram o pobre filho da mãe.

Isso fez com que Xcor lamentasse muito todas as vezes que pensava sobre a situação.

– Vai escrever para ele – Xcor sorriu outra vez, as presas formigando, sentia o mesmo no pênis. – Vai escrever para todos eles e vai anunciar nossa chegada. Vai apontar suas perdas, lembrando-lhes das crianças e mulheres que foram mortas naquela noite de verão. Vai lembrar-lhes todas as reuniões que não tiveram com seu Rei. Expressará a devida indignação por conta disso e fará isso de uma maneira que irão entender... pois é um deles. E, então, vamos aguardar... até sermos convocados.

Throe curvou-se.

– Sim, meu lídher.

– Enquanto isso, vamos caçar redutores e manter um registro de nossa matança. De modo que, quando perguntarem sobre nossa saúde e bem-estar, o que a aristocracia certamente fará, poderemos informar que apesar de terem muitos cavalos de raça nos estábulos... um bando de lobos é o que precisam para guardar suas portas.

A glymera era inútil de muitas maneiras, mas tão previsível quanto um relógio de bolso: a autopreservação era o que movia suas mãos, grandes e pequenas, a fazer o que fosse preciso, sempre... e várias vezes.

– Melhor descansar – Xcor disse lentamente. – Ou já vai iniciar a caça de um de seus desviados? – Quando não houve resposta, franziu a testa para a resposta implícita no silêncio. – Você tem um propósito que vai além de passar horas lutando. Os mortos humanos são uma preocupação muito menos importante do que a vida de nossos inimigos.

– Sim.

Leia-se: Não.

– Não tarde buscando outras coisas, prejudicando assim o alcance de nossos objetivos.

– Já o deixei alguma vez?

– Ainda há tempo, velho amigo. – Xcor olhou para o macho por baixo das pálpebras semicerradas. – Há sempre tempo para que a natureza de seu coração mole o coloque em apuros, e antes que discorde, posso lembrá-lo das circunstâncias em que se encontra nos últimos dois séculos.

Throe enrijeceu.

– Não. Não precisa. Tenho plena consciência de onde estou.

– Bom – Xcor assentiu. – Isso é muito importante nesta vida. Vá.

Throe inclinou-se em reverência.

– Desejo-lhe um bom descanso, meu lídher.

Xcor assistiu à partida do macho e, quando se viu sozinho outra vez, o calor intenso em seu corpo o irritou. A necessidade sexual era uma perda de tempo tão grande, pois nem assassinava nem alimentava, mas em intervalos regulares, seu pênis precisava de alguma coisa diferente de uma sessão de luta.

Quando a escuridão preenchesse a noite, Throe teria de providenciar outra coisa para o grupo de bastardos e, dessa vez, Xcor também seria forçado a utilizar-se disso.

Além do mais, iriam precisar de sangue. De preferência que não fosse humano, mas se tivessem de se contentar com isso por enquanto...

Bem, teriam apenas que se livrar dos corpos, não é mesmo?


CAPÍTULO 34

No centro de treinamento, Manny acordou na cama do hospital, não na cadeira. Depois de uma confusão momentânea, as lembranças nebulosas voltaram todas de uma vez: depois que o mordomo tinha aparecido com a comida, Manny comeu no escritório, como Jane disse para que fizesse... e lá, e não em seu carro, estavam seu celular, carteira, chaves e maleta. A pequena coleção de acessórios do Dr. Mannelo estava bem diante dele, sobre uma cadeira, e a ausência de segurança o surpreendeu, considerando como tudo estava trancado.

Só que quando tentou ligar o celular, percebeu que seu chip havia desaparecido.

Estava disposto a apostar que precisaria de uma bomba atômica para entrar ou sair daquela garagem sem a permissão deles. Então, suas chaves eram inúteis.

Maleta? Não havia nada dentro dela além de uma barra de cereais e alguns papéis que não tinham nada a ver com as instalações subterrâneas, com os vampiros, ou com Payne.

Achava que toda essa ausência de informação explicava o fato de ter apagado.

Estava prestes a desistir de encontrar alguma explicação para tudo aquilo quando pensou em checar as mensagens de voz, mas decidiu usar o telefone do escritório que estava perto de seu cotovelo. Pegando o aparelho, discou 9... o ruído do tom de discagem foi um choque total. Porém, quais eram as chances de alguém ser deixado ali sozinho sem vigilância? Quase nenhuma.

Exceto em um dia, quando noventa por cento dos moradores tinham sido feridos em uma luta e os outros dez por cento preocupados com seus irmãos.

Em pouco tempo, Manny executou três sistemas de mensagem de voz: casa, celular e escritório. A primeira tinha duas mensagens de sua mãe. Nada específico... estava precisando de reparos na casa e tinha acertado o tão complicado nono buraco no golfe. Havia uma mensagem do veterinário no celular, que ele ouviu duas vezes. E do escritório... as mensagens foram tão desanimadoras quanto as notícias de Glory: havia sete mensagens de colegas de todo o país com um tom devastadoramente normal. Queriam que tirasse uma licença e fizesse consultas ou escrevesse artigos para conferências ou abrisse um espaço no seu programa de residência para encaixar os filhos ou algum amigo da família.

A triste verdade era que aqueles pedidos ficaram para trás, onde sua vida realmente estava; como bancaria o maioral para os pobres bastardos que ligavam para ele agora? E se aqueles vampiros dessem um jeito no cérebro dele outra vez, não fazia ideia se restaria alguma coisa para pensar além de contar até dez, quanto mais se conseguiria operar um paciente ou administrar o departamento cirúrgico. Não tinha como saber em quais condições ficaria quando saísse daquela situação...

O som de uma descarga fez com que se levantasse rapidamente.

Quando a porta do banheiro se abriu, viu a silhueta de Payne ser contornada pela luz atrás dela, seu corpo maravilhoso estava envolto para nada mais do que um lençol transparente.

Santo... Deus...

Sua ereção matinal começou a pulsar e aquilo fez com que desejasse ter dormido na maldita cadeira. O problema era que quando finalmente voltou para cuidar dela, não teve forças para dizer não quando pediu para se juntar a ela.

– Você acordou – disse ela com voz rouca.

– E você está em pé. – Ele sorriu um pouco. – Como estão as pernas?

– Fracas. Mas funcionam. – Olhou por cima do ombro. – Gostaria de tomar um banho...

Droga, do jeito que a coisa soou, ela estava procurando ajuda... e a mente dele pensou logo nos dois separados apenas por uma camada de sabão.

– Acho que tem um banco lá dentro para se sentar. – Ele saiu pelo outro lado da cama para que pudesse conter sua ereção na cintura de seu uniforme.

Aproximando-se dela, tentou lhe dar o máximo de espaço possível ao olhar a banheira.

– Sim, bem aqui.

Estendeu a mão e ligou a água, então, ajeitou o banco.

– Vou arrumar isso...

Ao olhar por cima do ombro, congelou. Payne tinha desfeito os laços de sua bata de hospital e lenta e inexoravelmente... deixou cair... de seus ombros.

Quando a ducha atingiu seu braço e começou a ensopar seu uniforme, engoliu em seco... e teve vontade de gritar quando ela ergueu as mãos e protegeu os seios.

Ela ficou assim, como se estivesse esperando para ver o que ele ia dizer, e quando seus olhos se encontraram, seu pênis ficou tão enrijecido que foi um milagre não ter rasgado suas calças.

– Pode soltar, bambina – ouviu-se dizendo.

E ela soltou.

Maldição, nunca pensou antes em adorar a lei da gravidade, mas poderia fazer isso agora: gostaria de se prostrar diante do altar de Newton e chorar com gratidão pela bênção que fazia todas as coisas caírem no chão.

– Olhe para você – ele rosnou, observando os mamilos rosados ficarem excitados.

Sem seguir qualquer estímulo ou pensamento consciente, estendeu o braço molhado e a agarrou, puxando-a contra sua boca, segurando-a com força enquanto sugava seu mamilo em sua boca. Mas não precisava se preocupar em tê-la ofendido. As mãos de Payne mergulharam nos cabelos dele e o aninhou contra ela, curvando as costas até que ele a envolveu por completo e ela mostrou-se toda nua e pronta para ser devorada.

Girando-a, desviou-a do foco de luz em que se encontrava e levou os dois para debaixo da ducha quente do chuveiro. Com o corpo dela iluminado, ele abaixou-se, capturando com a língua a água quente que jorrava entre os seios e escorria pelo abdômen de Payne.

Quando ela estendeu a mão para se equilibrar, Manny a segurou, guiando-a para que ficasse segura sentada no banco. Arqueando-se, envolveu a nuca dela com a palma da mão e beijou-a profundamente enquanto pegava o sabonete e preparava-se para assegurar que ela ficasse muito, muito limpa. Quando a língua dela encontrou a dele, estava tão perdido na sensação dos mamilos roçando contra seu peito e seus lábios contra os dele que sequer notou ou se importou que o cabelo estivesse emboçado em seu crânio de tanta água ou que sua roupa cirúrgica estivesse enrolada nele como um filme plástico, colado ao corpo.

– Curandeiro... – ela arfou quando ele começou a ensaboar sua pele.

A parte superior de seu corpo ficava cada vez mais escorregadia e quente enquanto as mãos dele deslizavam por toda parte, do pescoço à base da coluna. E, então, começou a percorrer as pernas; em seguida, lavou os delicados pés e tornozelos, voltando a subir, passando pelas panturrilhas e atrás dos joelhos.

A água os envolvia por toda parte, caindo entre eles, enxaguando-a assim que ele a ensaboava, o som do jato caindo sobre o ladrilho abafado apenas pelos gemidos de Payne.

Cara, aquilo só ia ficar mais alto.

Chupando seu pescoço, ele separou os joelhos dela cada vez mais, para colocar-se entre eles.

– Eu disse – ele a mordeu de leve – que ia gostar da hora do banho.

Como resposta, as mãos dela lançaram-se sobre os ombros dele e as unhas foram cravadas na pele fazendo com que imaginasse se não era hora de pensar em estatísticas de beisebol, códigos postais... preço de automóveis.

Eleanor Roosevelt.

– Estava certo, curandeiro – disse ela, ofegante. – Adoro isso, mas você está vestido demais.

Manny fechou os olhos ao estremecer, e, então, conseguiu assumir controle suficiente sobre si para dizer.

– Não... estou bem assim. Apenas incline-se para trás e deixe-me cuidar disso.

Antes que ela pudesse responder, selou a boca sobre a dela e empurrou-a contra a parede com seu peito. Para distanciá-la do assunto sobre ele ficar nu, deslizou as duas mãos por dentro de suas coxas e correu a ponta dos dedos sobre seu sexo.

Quando sentiu o quanto estava molhada – e molhada de uma maneira que não tinha nada a ver com a água e tudo a ver com o que ele desejava envolver com a língua – afastou-se um pouco e olhou para baixo.

Que... inferno... estava tão pronta para ele, e, cara, a aparência dela... estava toda curvada para trás, com a água fazendo seus seios brilharem, lábios entreabertos e um pouco vermelhos por tê-la beijado e as pernas bem abertas.

– Vai me possuir agora? – ela gemeu com os olhos cintilando e as presas se alongando.

– Sim...

Manny agarrou os joelhos dela e desceu, colocando a boca onde seus olhos já estavam fixos. Quando ela gritou, começou a agir com mais firmeza e mais rápido, engolindo o sexo dela, conduzindo-a com força, sem pedir desculpas por desejá-la tanto. Quando ela explodiu, sua língua entrou e sentiu tudo, os impulsos, a maneira como ela se movimentava contra seu queixo e nariz, o aperto rígido das mãos dela sobre sua cabeça.

Não havia razão para parar por aí.

Com ela, tinha uma energia sem fim e sabia que, desde que suas roupas permanecessem sobre sua pele, poderia continuar assim com ela... para sempre.

Vishous acordou em uma cama que não era a sua, mas não precisou de mais que um nanossegundo para saber onde estava: na clínica. Em uma das salas de recuperação.

Depois de esfregar bem os olhos, observou ao redor. A luz do banheiro estava acesa e a porta, aberta, então, havia espaço suficiente para ver... e a primeira coisa que se destacava era a mochila no chão do outro lado do local.

Uma das suas mochilas. Especificamente, a que havia dado para Jane; no entanto, ela não estava ali – pelo menos não naquele quarto.

Quando se sentou, sentiu como se tivesse sofrido um acidente de carro; as dores se espalhavam por todo o corpo como se fosse uma antena e todos os sinais de rádio do mundo estivessem sendo emitidos para seu sistema nervoso. Com um gemido, mudou de posição de maneira que suas pernas penderam para fora da cama... e, então, teve de respirar um pouco.

Alguns minutos depois, foi o caso de impulsionar e rezar: impulsionou seu peso para fora do colchão e esperou que...

Bingo. As pernas aguentaram.

O lado que Manello havia tratado não estava exatamente pronto para correr uma maratona, mas quando V. arrancou os curativos e fez algumas flexões, teve de ficar impressionado. As cicatrizes da cirurgia no joelho já estavam quase completamente curadas, não havia nada exceto uma linha de um tom rosa-claro deixada para trás. Mas, mais importante, o que havia sob isso era totalmente mágico: a articulação estava fantástica. Mesmo com a rigidez que ainda persistia, poderia dizer que estava funcionando perfeitamente bem.

O quadril também parecia novo.

Aquele maldito cirurgião humano era um profissional milagroso.

Seguindo o caminho até o banheiro, seus olhos passaram pela mochila. As memórias de sua viagem à base de morfina voltaram e ficaram muito mais claras do que a verdadeira experiência tinha sido. Deus, Jane era uma médica espetacular. Na confusão das lutas noite após noite, tinha esquecido de que não observava isso há algum tempo. Ela sempre ia mais além por seus pacientes. Sempre. E não tratava os Irmãos tão bem por serem ligados a ele; não tinha nada a ver com ele... aquelas pessoas lhe pertenciam naqueles momentos. Ela trataria exatamente da mesma maneira civis, membros da glymera... até mesmo humanos.

Dentro do banheiro, entrou no chuveiro e, cara, o box parecia pequeno demais. Ao pensar sobre Jane e sua irmã, teve a terrível sensação de ter sido simplista demais com o que havia acontecido há duas noites. Não tinha parado para considerar que poderia haver outro tipo de relacionamento entre as duas fêmeas. Pensou apenas nele e em sua irmã... e nada sobre o relacionamento médico/paciente.

Risque essa parte: pensou apenas nele. Não considerou nem um pouco Payne e o que ela desejava para sua vida. Ou o que Jane havia feito ou não para sua paciente.

Em pé com a cabeça baixa e a água batendo na nuca, olhou para o ralo entre seus pés.

Não era bom em pedir desculpas, ou conversar; mas também não era um covarde.

Dez minutos depois, vestiu uma bata hospitalar e saiu mancando pelo corredor em direção ao escritório. Se sua Jane estivesse ali, achava que estaria dormindo debruçada sobre a mesa, considerando a quantidade de camas que estavam ocupadas pelos Irmãos nas salas de recuperação.

Ainda não fazia ideia do que lhe dizer sobre as roupas de couro, mas poderia, ao menos, tentar fazer algo sobre Payne.

Só que o escritório estava vazio.

Sentando-se em frente ao computador, levou menos de quinze segundos para encontrar sua shellan. Quando ele instalou o sistema de segurança da mansão, do Buraco e de suas instalações, colocou câmeras em cada quarto que havia ali... exceto a suíte da Primeira Família. Naturalmente, o equipamento poderia ser desconectado facilmente retirando-o da tomada e, como era de se esperar, os quartos de seus Irmãos exibiam uma tela preta no monitor do computador.

O que era bom. Não havia necessidade de assistir as relações sexuais deles.

Contudo, o quarto de hóspedes decorado de azul da mansão ainda estava sendo monitorado e, sob a luz do abajur dos criados-mudos, viu a figura encolhida de sua companheira. Jane tinha morrido para o mundo, mas estava muito claro que não descansava em paz: suas sobrancelhas estavam cerradas como se seu cérebro tentasse desesperadamente mantê-la dormindo como estava. Ou talvez estivesse sonhando com coisas que a assustavam em vez de algo prazeroso.

Seu primeiro instinto foi ir até lá, mas quanto mais pensava sobre isso, mais percebia que a coisa mais gentil que poderia fazer era permitir que ela continuasse deitada onde estava e deixá-la descansar. Ela e Manello tinham trabalhado por muitas horas seguidas, englobando toda a manhã. Além disso, ficaria em casa naquela noite: Wrath havia dado folga a todos em função de todos aqueles ferimentos.

Cristo... aquela maldita Sociedade Redutora. Não tinham visto tantos assassinos em anos... e não estava pensando naquela dúzia que tinha aparecido na noite passada. Ao longo das últimas duas semanas, estava disposto a apostar que Ômega havia transformado uma centena daquelas coisas malditas... e tinha a impressão de que eram como baratas: para cada um que via, havia outros dez escondidos.

O bom era que os Irmãos eram letais. E Butch curou-se com relativa facilidade após cumprir suas tarefas como Dhestroyer... inferno, Vishous sequer tinha sido capaz de cuidar do tira depois da operação. Não que tivesse se lembrado de fazer isso, mas mesmo assim.

Sufocado por tudo aquilo, apalpou os bolsos procurando seus cigarros artesanais... e percebeu que estava usando uma bata hospitalar: nenhuma possibilidade de fumar.

Levantou-se da cadeira. Voltou ao corredor. E seguiu para onde estava.

A porta do quarto de Payne estava fechada e não hesitou em abri-la. Havia grandes chances de que o cirurgião humano estivesse lá com ela, mas não tinha como o cara ficar para fora. Tinha salvado a pele dele.

Quando Vishous entrou, deveria ter prestado mais atenção no cheiro que havia no ar. E talvez devesse fazer o mesmo para perceber que o chuveiro estava ligado. Mas estava chocado demais ao ver que a cama estava vazia... e que havia suportes e muletas em um canto do quarto.

Se algum paciente estivesse paralisado... Precisaria de cadeiras de rodas, não de um equipamento que auxiliava a mobilidade. Então... será que ela estava andando?

– Payne?

Aumentou o tom de voz:

– Payne?

A resposta que teve de volta foi um gemido. Um gemido profundo e satisfeito...

O que não era o tipo de coisa que se evocava nem mesmo no melhor banho possível.

V. atravessou o quarto e quase quebrou a porta quando invadiu o banheiro quente e úmido. Mas que inferno, a cena diante dele era muito pior do que pensava.

Entretanto, a ironia era que o que estavam... Oh, Deus, não conseguia sequer expressar em palavras o que estavam fazendo... Mas aquilo salvava a vida do cirurgião: V. ficou tão horrorizado que teve de desviar o olhar e a rotina de avestruz o impediu de rasgar um buraco do tamanho de um cano de esgoto no pescoço de Manello.

Quando Vishous tropeçou ao sair, ouviu uma variedade de ruídos confusos no banheiro. E, então, percebeu que era o caso de debandar o mais rápido possível: bateu na cama, levantou-se outra vez, derrubou uma cadeira, apoiou-a na parede.

Nesse ritmo, encontraria a saída em uma semana. Ou mais.

– Vishous...

Quando Payne aproximou-se dele, V. manteve os olhos no chão e acabou tendo uma visão dos pés descalços de sua irmã gêmea. Então, ela havia recuperado a sensação nas pernas.

Uhúúúú!

– Por favor, poupe-me de uma explicação – exclamou antes de olhar para Manello. O filho da mãe estava ensopado, cabelos grudados na cabeça, uniforme agarrado ao corpo. – E não se afeiçoe a ela. Está aqui apenas até o momento de não precisar mais de você... e se considerarmos como ela está bem? Não ficará por muito mais tempo...

– Como ousa... eu escolho com quem me acasalar.

Ele balançou a cabeça para sua irmã.

– Então, escolha outra pessoa que não seja um humano que tem a metade de seu tamanho e um quarto de sua força. A vida aqui não é como nas nuvens, querida... e a Sociedade Redutora marcou um alvo em seu peito assim como no resto de nós. Ele é fraco, arrisca nossa segurança e precisa voltar para onde pertence... e permanecer lá.

Bem, parece que aquilo deixou sua irmã furiosa: seus olhos ficaram muito centrados, as sobrancelhas negras caíram sobre os olhos, estreitando-se.

– Saia. Daqui.

– Pergunte a ele o que fez durante toda a manhã – V. exigiu. – Espere... eu lhe digo. Ele costurou a mim e à Irmandade, pois estávamos tentando defender nossas fêmeas e nossa raça. Esse humano? Na minha opinião, ele é um redutor em potencial... nada mais, nada menos.

– Como ousa! Não sabe nada sobre ele.

V. inclinou-se para ela.

– E nem você. Esse é o ponto.

Antes que a coisa saísse de controle, virou-se para sair, apenas para visualizar uma cena deles no espelho da parede. Que bela imagem formavam: sua irmã, nua e sem qualquer timidez; o humano, ensopado e sombrio; e ele, com um olhar selvagem e pronto para matar alguém.

A raiva cresceu tão rapidamente e chegou a um ponto tão alto que se liberou antes mesmo que ele pudesse reconhecer a emoção.

Vishous deu dois passos a frente, colocou a cabeça para trás e bateu o rosto no vidro, quebrando o maldito reflexo e indo embora.

Quando sua irmã berrou e o cirurgião gritou, deixou-os à própria sorte e saiu.

No corredor, sabia exatamente para onde estava indo.

No túnel, bastante ciente do que estava prestes a fazer.

Enquanto caminhava, o sangue escorria pelo rosto até o queixo, as lágrimas vermelhas caíam pelo peito e abdômen.

Não sentia dor alguma.

Mas, com um pouco de sorte, sentiria. Muito em breve.


CONTINUA

CAPÍTULO 28

As presas de Vishous alongaram-se quando um círculo de assassinos foi formado na entrada do beco. A quantidade já era conhecida, pensou. Pelo menos meia dúzia... e com certeza receberam as coordenadas daquela localização por meio de seus amigos assassinos mutilados. Caso contrário, o mhis teria escondido a carnificina deles.

Considerando seu estado de espírito, uma conversinha prévia seria bem interessante para eles.

O problema era que a estrutura do beco sugeria que havia apenas uma saída... e estava além das linhas inimigas... e aquilo significava que teriam de desaparecer. Normalmente, isso não seria um problema; como lutadores experientes, mesmo no auge de uma batalha, poderiam ficar calmos o suficiente para se concentrarem e se desmaterializarem... mas teriam de estar relativamente bem e não poderiam levar ninguém ao partir.

Então, Butch estaria ferrado se algo saísse do controle. Como mestiço, o cara estava de castigo, literalmente incapaz de dispersar suas moléculas como medida de segurança.

V. murmurou baixinho:

– Não seja um herói, tira. Vamos lidar com isso.

– Está brincando comigo, certo? – O olhar foi imediato e fixo. – Só se preocupa consigo mesmo.

Impossível. Não estava perdendo os únicos dois pontos cardeais de sua vida na mesma noite.

– Ei, rapazes – Hollywood gritou para o inimigo. – Vão ficar aí parados ou começar logo com isso?

E... isso fez com que o sino da luta soasse. Os redutores avançaram e encararam a Irmandade face a face, mano a mano. Para se certificar de que havia a privacidade necessária, V. dobrou a barreira visual, criando uma miragem de que nada estava acontecendo caso seres humanos passassem por ali.

Quando começou a lutar com o inimigo, manteve os olhos em Butch. É claro que o filho da mãe estava indo bem ali, alto e magro, lançando-se contra o alvo com as mãos desprotegidas... mas Vishous realmente desejava que o desgraçado saísse de lá pulando um muro ou, melhor ainda, se enfiasse num lança-foguetes, direto para o telhado. Dessa maneira, permaneceria longe da luta. Detestava o fato de que o tira ficasse tão perto daquilo, pois sabia o que poderia acontecer se precisasse usar sua mão ou o dano que uma arma de fogo poderia causar ao cara...

O golpe veio do nada, surpreendendo por trás como uma bigorna, atingindo diretamente a lateral do tronco de V. Quando ele voou para trás e bateu na parede de tijolos, lembrou-se do que havia aprendido nos treinos: regra número um na luta? Preste atenção em seu inimigo.

Afinal, poderia ter o melhor punhal do mundo, mas se não tivesse noção do que estava acontecendo... acabaria sendo lançado por todos os lados como uma bola de pingue-pongue. Ou ainda pior.

V. encheu os pulmões inalando profundamente e usou o oxigênio para saltar para frente e pegar o segundo pontapé pelo tornozelo. Porém, o redutor tinha habilidades espetaculares e fez um movimento ao estilo Matrix*, usando as mãos de V. como uma âncora para dar um giro no meio do ar. A bota de combate do inimigo atingiu V. em cheio na orelha, a cabeça foi atirada com força para o lado assim como todos os tendões e músculos. Ainda bem que a dor sempre o concentrava.

A gravidade era um fato, o golpe do assassino atingiu seu tórax e, depois disso, caiu, apoiando os braços no asfalto para impedir que o rosto acertasse o chão em cheio. E era evidente que o desgraçado esperava que o adversário soltasse seu pé, graças ao balão que o crânio de V. parecia agora de tão inchado.

Não. Desculpe, querido.

Mesmo com as consequências desagradáveis do golpe, V. firmou suas mãos no tornozelo e puxou-o na direção oposta do giro do inimigo.

Estalo.

Alguma coisa foi quebrada ou deslocada e considerando o fato de que V. estava segurando o pé e os ossos inferiores, sabia que provavelmente tinha sido o joelho, a fíbula ou a tíbia.

O Sr. Chute Alto soltou um grito, mas V. não terminou quando o bastardo caiu no chão.

Tirando uma de suas adagas, cortou o músculo na parte de trás da perna e, em seguida, pensou em Butch. Dirigiu-se para o corpo que se contorcia, pegou um pouco de cabelo, puxou para cima e produziu no filho da mãe um colar bem interessante com sua lâmina.

Incapacitação parcial não era suficiente naquela noite.

Girando, com a faca pingando sangue nas mãos, avaliou as lutas que aconteciam no momento. Z. e Phury estavam lidando com dois redutores... Tohr lutava com outro... Rhage brincava com um dos inimigos... Onde estava Butch...?

Em um canto, o tira tinha levado um assassino ao chão e estava inclinado sobre sua face. Os dois se encaravam e a boca aberta e ensanguentada do redutor movia-se como a de um peixe, abrindo e fechando lentamente, como se soubesse que o próximo movimento não lhe traria boas notícias.

A bênção e maldição de Butch foi ativada quando ele começou a respirar, inspirando profundamente. A transferência começou com um fio de fumaça que passava da boca do assassino para a de Butch, mas logo cresceu e fluía como um grande rio, a essência de Ômega era canalizada de um para outro em um arremesso doentio.

Quando terminou, o assassino estava prestes a se tornar nada além de resíduo de cinzas. E Butch ficaria debilitado como um cão e relativamente inútil. V. correu, esquivando-se de uma arma em forma de estrela e empurrou um redutor que saiu girando com um peão da zona de espancamento de Hollywood.

– Que droga é essa que está fazendo? – reclamou quando puxou Butch do pavimento e o arrastou da zona de sucção. – Precisa esperar até terminarem.

Butch curvou-se para o lado e teve alguns espasmos. Já estava semipoluído, o fedor do inimigo exalando de seus poros, seu corpo lutando contra a carga de veneno. Precisava ser curado naquele exato momento, mas não teria como V. fazer isso agora...

Mais tarde, ficaria impressionado por ter sido surpreendido duas vezes em uma luta. Mas tal introspecção aconteceria em uma hora vaga, depois que acabassem com aquilo.

O taco de beisebol pegou na lateral do joelho e a queda que veio logo em seguida foi tremenda, no mau sentido. Caiu com força, as pernas entrelaçando-se sob seu peso considerável formando um ângulo que fez seu quadril gritar de agonia... o que sugeria que aquele carma não era tanto sobre vingança, mas sobre a luta contra devaneios: quando caiu por ter sido ferido da mesma maneira que tinha acabado de fazer com a outra criatura, amaldiçoou a si mesmo e ao filho da mãe com o bastão.

Hora de pensar rápido. Estava deitado de costas com uma perna que zumbia como um motor superacelerado. E a intenção do bastão era fazer muito dano... Butch veio do nada, vacilando com toda a graça de um búfalo ferido, o corpo pesado do desgraçado lançou-se contra o redutor no mesmo momento que o bastão atingiu um dos ombros de V., sendo que o objetivo era a cabeça dele. Os dois se chocaram contra os tijolos e depois de um momento sem se moverem, o maldito redutor idiota deslizou o tronco e ofegou.

Era como observar ovos quebrados escorrendo de um balcão de cozinha: os ossos do assassino liquefizeram-se e a coisa caiu no pavimento, deixando Butch deitado de costas sozinho entrando em colapso com o punhal cheio de sangue negro nas mãos.

Tinha destruído o filho da mãe.

– Você... está bem...? – o policial gemeu.

Tudo o que V. conseguia fazer era olhar seu melhor amigo.

Enquanto os outros continuavam a lutar, os dois apenas se encaravam em meio a uma trilha sonora de fundo cheia de ruídos de metal, grunhidos e palavrões criativos. Deveria haver algo para ser dito um ao outro, V. pensou. Havia tanta coisa... para ser dita.

– Quero aquilo de você – V. exclamou. – Preciso.

Butch assentiu.

– Eu sei.

– Quando?

O tira balançou a cabeça em direção à perna de V.

– Fique bom primeiro. – Butch gemeu e se levantou. – Por falar nisso, vou para o carro.

– Cuidado. Leve um dos Irmãos com...

– Pare com essa baboseira, e fique parado.

– Não vou a lugar algum com esse joelho, tira.

Butch saiu, seu andar era apenas um pouco melhor que o de V. Esticando o pescoço, olhou para os outros. Estavam a todo vapor. Devagar, mas com toda certeza, a maré estava virando a favor deles.

Até cinco minutos depois.

Quando mais sete assassinos apareceram no beco.

Estava claro que tinham atraído reforços e aqueles também eram novos recrutas que não sabiam muito bem como lidar com o mhis: era evidente que tinham sido levados até o endereço por causa de seus comparsas, mas os olhos não conseguiam ver nada além de um beco vazio; contudo, aquela hesitação não duraria muito e romperiam a barreira.

Movendo-se o mais rápido possível, V. apoiou as mãos no chão e arrastou-se até uma porta. A dor era tanta que sua visão lhe faltou momentaneamente, mas isso não o impediu de tirar sua luva e colocar a peça dentro de sua jaqueta.

Esperava que Butch não tivesse voltado a lutar. Precisariam de transporte quando tudo acabasse.

Quando a leva seguinte de inimigos avançou, deixou a cabeça cair sobre o peito e respirou tão superficialmente que sua caixa torácica mal se movia. Com o cabelo caindo sobre o rosto, os olhos estavam protegidos, mas foi capaz de observar, através do véu negro, o ataque dos assassinos. Considerando o incrível número de novos recrutas, percebeu que a Sociedade devia estar recrutando psicopatas e outros membros de Manhattan... as possibilidades em Caldwell não eram tão grandes para que surgissem tantos reforços.

O que seria favorável à Irmandade.

E estava certo.

Quatro dos redutores lançaram-se direto à luta, mas um deles, um buldogue com ombros e braços enormes que andava como um gorila, veio até V., provavelmente para checar suas armas.

Vishous esperou com paciência, parado, preparando-se para o ataque.

Mesmo quando o filho da mãe inclinou-se para baixo, V. ficou onde estava... Um pouco mais... Um... Pouco... Mais...

– Surpresa, seu filho da mãe – falou. Então, pegou o pulso do redutor que estava mais próximo dele e puxou com força.

Parecia que o assassino estava prestes a desabar, bem em cima da perna ruim de V. Mas não importava... a adrenalina era um tremendo analgésico e não só lhe deu forças para suportar a agonia, como também para manter o filho da mãe no lugar.

Erguendo a mão brilhante, Vishous colocou sua maldição logo abaixo do rosto do sujeito, não havia razão para golpeá-lo ou bater nele... um simples contato era suficiente, e pouco antes de aterrissar com aquele toque, seus olhos abriram-se e fixaram-se na iluminação fluorescente.

– Sim, isso vai doer – V. rosnou.

O ruído da mão de V. e o grito foram altos, mas só o primeiro persistiu. No lugar do último surgiu um cheiro desagradável, como de queijo queimado emanando junto à fumaça cheia de fuligem. Levou menos de um segundo para que o poder daquela mão consumisse o idiota do assassino por completo, a carne e os ossos foram corroídos enquanto as pernas do bastardo balançavam e os braços se agitavam.

Quando tudo aquilo parecia mais um filme de terror, V. soltou a mão e cedeu. Teria sido ótimo conseguir tirar o peso do joelho machucado, mas simplesmente não tinha forças.

Seu último pensamento, antes de desmaiar, foi rezar para que os garotos dessem uma rápida lição em todos eles. O mhis não ia durar muito se não estivesse ali para sustentá-lo... e isso significava que estariam lutando frente a um grande público.

Tudo. Apagou.

Matrix é um filme de ação e ficção científica, dirigido pelos irmãos Wachowski. (N.E.)


CAPÍTULO 29

Quando Payne pendurou os pés para fora da cama, flexionou um e depois o outro várias vezes, maravilhada com o milagre de pensar alguma coisa e seus membros obedecerem ao comando.

– Aqui, coloque isso.

Olhando para cima, distraiu-se por um momento com a visão da boca de seu curandeiro. Não conseguia acreditar que eles tinham... que ele tinha... até que ela...

Sim, vestir um robe seria bom, pensou.

– Não vou deixá-la cair – disse Manny enquanto a ajudava a vestir-se. – Pode apostar sua vida nisso.

Ela acreditava nele.

– Obrigada.

– Sem problemas – Ele movimentou o braço. – Vamos lá... vamos fazer isso.

Só que a gratidão que Payne sentia era tão complexa que não pôde deixar de expressá-la.

– Por tudo, curandeiro. Tudo.

Ele sorriu brevemente.

– Estou aqui para fazer com que se sinta melhor.

– Sim, está.

Com isso, apoiou-se com cuidado sobre os pés.

A primeira coisa que notou foi que o chão sob seus pés era frio... e, em seguida, seu peso foi transferido para as pernas e as coisas se descontrolaram com isso: seus músculos tiveram espasmos sob a carga, e as pernas foram flexionadas. No entanto, seu curandeiro estava lá quando precisou dele, colocando o braço em volta de sua cintura para apoiá-la.

– Estou... – ela respirou com força. – Estou em pé.

– Com certeza está.

A parte inferior de seu corpo já não era mais a mesma, as coxas e panturrilhas tremiam tanto que seus joelhos se chocavam. Mas estava em pé.

– Vamos andar agora – ela disse, rangendo os dentes quando as sensações de calor e frio dispararam por entre seus ossos.

– Talvez, se for devagar seja...

– Vamos ao banheiro – ela exigiu. – Com isso, poderei aliviar minhas necessidades sozinha.

A independência era absolutamente vital. A permissão de ter a dignidade simples e profunda de atender às necessidades de seu corpo parecia uma dádiva dos céus, prova de que as bênçãos, assim como o tempo, eram relativas.

Só que quando tentou dar um passo adiante, não conseguiu erguer o pé.

– Transfira seu peso – o curandeiro disse quando ela girou e movimentou-se atrás dele. – Eu cuido do resto.

Quando apertou-lhe sobre a cintura, Payne fez como ele havia dito e sentiu uma de suas mãos segurar a parte de trás de sua coxa e levantá-la. Sem precisar de qualquer dica, inclinou-se para frente e administrou seu peso gentilmente enquanto ele colocava o joelho na posição correta, restringindo a curvatura da articulação enquanto alisava sua perna.

O milagre teve uma expressão mecânica, mas dar esses pequenos passos não foi menos emocionante: caminhou até o banheiro.

Quando o objetivo foi alcançado, seu curandeiro deu-lhe a privacidade necessária e ela usou a barra parafusada na parede para auxiliar seus movimentos.

Ela sorria o tempo todo, o que era totalmente ridículo.

Depois que terminou, ficou em pé sozinha usando a barra e abriu a porta. Seu curandeiro estava ali e ela o alcançou no mesmo momento que ele estendeu os braços para ela.

– Vamos voltar para a cama – ele disse, e era um comando. – Vou examiná-la e dar-lhe muletas.

Ela assentiu e percorreram o caminho até o colchão lentamente. Estava ofegante quando se deitou, mas mais do que satisfeita. Poderia lidar com isso. Dormência, frio e ser impedida de ir a qualquer lugar? Era uma sentença de morte.

Fechando os olhos, engoliu em seco em meio às profundas respirações enquanto Manny checava seus sinais vitais com eficiência.

– Sua pressão arterial está alta – disse enquanto colocava de lado o objeto com feitio de algema com o qual ela já estava bem familiarizada. – Mas isso pode ser devido ao que... hã, fizemos – limpou a garganta, algo que parecia fazer com frequência. – Vamos checar suas pernas. Quero que relaxe e feche os olhos. Não olhe, por favor.

Depois que fez o que ele pediu, disse:

– Pode sentir isso?

Franzindo a testa, tentou ordenar as várias sensações em seu corpo, desde a suavidade do colchão, o ar fresco sobre o rosto, até os lençóis sobre os quais ela apoiava as mãos.

Nada. Não sentia...

Sentando-se em pânico, olhou para suas pernas... apenas para verificar que ele não a estava tocando: as mãos estavam estendidas nas laterais do corpo dele.

– Você me enganou.

– Não. Não estou presumindo nada... é isso que estou fazendo.

Quando ela retomou a posição e fechou os olhos outra vez, quis xingar, mas conseguia entender o argumento dele.

– E agora?

Abaixo do joelho, houve um peso sutil. Conseguia sentir isso claro como o dia.

– Sua mão... está sobre a minha perna... – Abriu um pouco uma de suas pálpebras e viu que estava certa. – Sim, você está me tocando.

– Alguma diferença de antes?

Ela franziu a testa.

– Está um pouco... mais fácil de sentir.

– Essa melhora é muito boa.

Ele apalpou o outro lado. Em seguida, subiu até chegar perto do quadril. Depois, tocou a sola do pé e, então, na parte interna da coxa... e sobre o joelho.

– E agora? – perguntou uma última vez.

Em meio à escuridão, esforçou-se para perceber a sensação.

– Não sinto nada... agora.

– Certo. Terminamos.

Quando ela abriu os olhos, fitou-o e sentiu um calafrio estranho percorrê-la. Qual seria o futuro deles?, pensou. Após aquele período isolado de convalescença? Sua incapacidade simplificava muito as coisas para eles; mas isso acabaria se ficasse bem. Será que poderia tê-la então?

Payne estendeu a mão e apertou a dele.

– Você é uma bênção para mim.

– Por causa disso? – ele balançou a cabeça. – Foi você, bambina. Seu corpo está se recuperando sozinho. É a única explicação. – Curvando-se sobre ela, acariciou o cabelo solto e pressionou um beijo casto sobre sua testa. – Precisa dormir agora. Está exausta.

– Não vai embora, vai?

– Não. – Olhou para a cadeira que usou para alcançar o equipamento no teto. – Vou ficar bem aqui.

– Esta cama... é grande o suficiente para nós dois.

Quando hesitou, Payne teve a impressão de que algo havia mudado para ele. Mas tinha acabado de tratá-la com tamanha perfeição erótica... e seu aroma exalava, de maneira que ela sabia que estava excitado.

Ainda assim... havia uma distância sutil agora.

– Junte-se a mim – pediu. – Por favor.

Ele se sentou ao lado dela na cama e acariciou-lhe o braço lentamente, com um ritmo constante... e a bondade que mostrou deixou-a nervosa.

– Não acho que seja uma boa ideia – murmurou.

– Por que não?

– Acho que será mais fácil para todos se seu novo tratamento ficar apenas entre nós.

– Ah.

– Seu irmão me trouxe aqui porque faria qualquer coisa para deixá-la melhor. Mas há uma diferença entre teoria e prática. Se ele entrar aqui e nos encontrar na cama juntos... Vamos apenas adicionar mais um item na pilha de problemas que já temos.

– E se eu lhe disser para não se importar com o que ele pensa?

– Pediria que facilitasse para o cara – seu curandeiro deu de ombros. – Vou ser honesto com você. Não sou fã dele... mas, por outro lado, seu irmão teve que assistir todo seu sofrimento.

Payne respirou fundo e pensou “Oh, se isso fosse ao menos a metade da história”.

– A culpa é minha.

– Não pediu para sofrer um acidente.

– Não pela minha lesão... Mas pela desolação do meu irmão. Antes de sua chegada, pedi-lhe algo que não deveria e, depois, isso foi agravado com... – cortou o ar com a mão. – Sou uma maldição para ele e sua companheira. De fato, sou uma maldição.

Que tivesse perdido a fé na benevolência do destino era compreensível, mas o que fez ao pedir para Jane ajudá-la foi imperdoável. O interlúdio com seu curandeiro era uma revelação e uma bênção sem medida; mas tudo o que conseguia pensar agora era em seu irmão e sua shellan... e nas repercussões de sua covardia egoísta.

Praguejando, estremeceu.

– Preciso falar com meu irmão.

– Certo. Vou trazê-lo aqui para você.

– Por favor.

Seu curandeiro ergueu-se e caminhou para a saída. Com a mão na maçaneta, fez uma pausa.

– Preciso saber uma coisa.

– Pergunte e eu prometo responder qualquer coisa.

– O que aconteceu um pouco antes de me trazerem até você? Por que seu irmão saiu para me buscar?

A frase não foi formulada exatamente como uma pergunta. O que a fez suspeitar que ele conseguiria adivinhar.

– Isso é entre ele e eu.

Os olhos do curandeiro estreitaram-se.

– O que você fez?

Ela suspirou e mexeu no cobertor.

– Diga-me, curandeiro, se não tivesse esperança de se levantar da cama outra vez e não tivesse uma arma, o que faria?

As pálpebras de Manny fecharam-se com força por um breve momento. Então, abriu a porta.

– Vou encontrar seu irmão agora mesmo.

Quando Payne foi deixada sozinha com seus lamentos, resistiu ao impulso de amaldiçoar, jogar coisas, gritar com as paredes. Naquela noite de sua ressurreição, deveria estar em êxtase, mas seu curandeiro estava distante, seu irmão furioso, e ela sentia muito medo do futuro. No entanto, aquela sensação não durou muito.

Mesmo com sua mente agitada, seu esgotamento físico logo cancelou sua atividade cognitiva e foi sugada por um buraco negro sem sonhos que a consumiu, corpo e alma.

Seu último pensamento, antes de tudo escurecer e silenciar, foi a esperança de conseguir consertar as coisas.

E, de alguma forma, ficar com seu curandeiro para sempre.

No corredor, Manny jogou as costas contra a parede de concreto e esfregou o rosto.

Não era um idiota; então, no fundo, tinha uma ideia do que havia acontecido: somente sentindo um pouco do sabor do desespero na boca aquele vampiro idiota seria capaz de se abalar até o mundo humano para buscá-lo.

Mas Cristo... e se não o tivesse encontrado a tempo? E se o irmão dela tivesse esperado mais ou...

– Droga.

Afastando-se da parede, entrou na sala de suprimentos e pegou uniformes novos, colocando suas roupas usadas no cesto de roupa suja depois de trocá-las. A sala de exames foi sua primeira parada, mas Jane não estava lá, então, caminhou mais adiante, em direção àquele escritório com portas de vidro.

Não havia ninguém ali.

De volta ao corredor, ouviu o mesmo barulho de antes vindo da sala de musculação e olhou para dentro, recebendo o olhar de um cara de cabelos muito curtos que corria feito um louco na esteira. O suor literalmente escorria do filho da mãe, seu corpo era tão magro que era quase doloroso de se olhar.

Manny esquivou-se saindo da sala. Não havia razão alguma para perguntar qualquer coisa ao filho da mãe.

– Está procurando por mim?

Manny virou-se.

– Chegou em boa hora... Payne precisa ver o irmão. Sabe onde ele está?

– Está fora, lutando, mas volta antes do amanhecer. Tem alguma coisa errada?

Sentiu a tentação de dizer “Você é quem pode me dizer”, mas resistiu.

– É entre eles. Não sei muito bem por que ela quer vê-lo.

Os olhos de Jane se afastaram.

– Certo. Bem, darei o recado. Como ela está?

– Ela andou.

Jane virou a cabeça com rapidez.

– Sozinha?

– Com apenas um pequeno auxílio. Você tem algum equipamento? Muletas? Esse tipo de coisa?

– Venha comigo.

Ela o levou a um ginásio profissional e o atravessaram até chegarem a uma sala de equipamentos; Entretanto, não havia nenhuma bola de basquete, vôlei ou cordas ali. Centenas de armas estavam colocadas sobre as prateleiras: facas, shurikens*, espadas, matracas**.

– Que tipo de aulas de ginástica vocês têm aqui?

– Isso é para o programa de treinamento.

– Devem ter sido acumuladas ao longo de gerações, hein?

– Foram... pelo menos até começarem os ataques.

Passando por todo aquele cenário de filme de ação, ela empurrou uma porta identificada como “FISIO” e mostrou-lhe uma bela sala de reabilitação, muito bem equipada com tudo o que um atleta profissional precisaria para se manter flexível, seguro e muito ágil.

– Ataques?

– A Sociedade Redutora abateu dezenas de famílias – disse. – E o que restava da população fugiu de Caldwell. Estão voltando lentamente, mas os últimos tempos têm sido muito difíceis.

Manny franziu a testa.

– Que diabos é essa Sociedade Redutora?

– Os humanos não são a verdadeira ameaça. – Abriu a porta de um armário e passou a mão sobre todo o tipo de apoios, muletas, bengalas e suportes. – O que está procurando?

– É contra isso que seu marido luta todas as noites?

– Sim, é. Agora, o que acha que precisa?

Manny olhou para o perfil de Jane e somou dois mais dois.

– Ela pediu para que lhe ajudasse a se matar, não foi?

Os olhos de Jane fecharam-se.

– Manny... sem ofensas, mas não tenho forças para essa conversa.

– Foi o que aconteceu?

– Mais ou menos. Grande parte.

– Ela está melhor agora – disse ele asperamente. – Vai ficar bem.

– Então, está funcionando – Jane sorriu um pouco. – Um toque mágico e pronto.

Limpou a garganta e resistiu à vontade de pisar duro como um adolescente de catorze anos que tinha sido pego no maior amasso.

– Sim. Acho que sim. Hã, acho que vou levar um par de suportes para pernas e muletas de braços... acho que vai funcionar com ela.

Quando ele pegou os equipamentos, os olhos de Jane permaneceram fixos nele, a ponto dele ter de murmurar:

– Antes que pergunte, a resposta é não.

Ela riu baixinho.

– Não ia perguntar nada.

– Não vou ficar. Vou fazer com que fique em pé, ande e, então, vou voltar.

– Na verdade, não era isso que estava passando pela minha cabeça. – Ela franziu a testa. – Mas você poderia dar um jeito, sabe? Já aconteceu antes. Comigo. Butch. Beth. E pensei que gostasse dela.

– Gostar é pouco – disse em voz baixa.

– Então, não faça planos até que tudo esteja acabado.

Ele balançou a cabeça.

– Tenho uma carreira que está indo pelo ralo... a causa disso, aliás, foi as lavagens que fizeram no meu cérebro. Tenho uma mãe que não é muito afeiçoada a mim, mas como ela não se afastaria ao se perguntar por que não teve notícias minhas nem em feriados. E tenho um cavalo que está muito mal. Está me dizendo que seu garoto e a turma dele são como eu, com um pé em cada mundo? Não penso assim. Além disso, o que diabos eu faria? Cuidar dela é um prazer, posso garantir... mas não gostaria de fazer disso uma profissão ou perceber, com o tempo, que ela não gosta de mim.

– O que há de errado com você? – Jane cruzou os braços sobre o peito. – Não é por nada, mas você é um grande homem.

– Faz bem em fugir dos detalhes sobre isso.

– As coisas poderiam dar certo.

– Certo, digamos que isso aconteça. Agora, responda-me... por quanto tempo eles vivem?

– Como?

– A expectativa de vida dos vampiros. Quanto tempo.

– Isso varia.

– Varia décadas ou séculos? – quando ela não respondeu, ele assentiu. – Foi exatamente o que pensei... provavelmente poderei viver mais uns... quarenta anos? E as rugas começarão a aparecer em dez. Já tenho dores todas as manhãs e um início de artrite nos meus dois quadris. Ela precisa de alguém da mesma espécie para se apaixonar, não um humano que vai se tornar um paciente geriátrico em um piscar de olhos. – Ele balançou a cabeça outra vez. – O amor pode conquistar tudo, mas sejamos realistas. E essa realidade vai prevalecer sempre.

Agora, a risada dela foi alta.

– De alguma maneira, não posso argumentar contra isso.

Ele olhou para os suportes.

– Obrigado por isso.

– Por nada – disse lentamente. – E darei o recado a V.

– Ótimo.

De volta ao quarto de Payne, entrou silenciosamente e parou assim que passou pela porta. Ela estava dormindo profundamente na penumbra, o brilho havia desaparecido de sua pele. Será que acordaria paralisada outra vez? Ou o progresso que fez permaneceria?

Concluiu que teriam de descobrir.

Apoiando as muletas e os suportes contra a parede, foi até a cadeira dura perto da cama e sentou-se, cruzando as pernas e tentando ficar em uma posição confortável. Não conseguiria dormir de jeito nenhum; queria apenas observá-la...

– Junte-se a mim – disse ela no silêncio. – Por favor. Preciso do seu calor agora.

Ao permanecer onde estava, percebeu que a rotina de ficar sentado não dependia de fato do irmão dela. Era um mecanismo de sobrevivência que tinha de manter ativo para mantê-los separados o máximo possível. Com certeza teriam relações sexuais outra vez... provavelmente em breve. E ficaria com ela por horas se fosse preciso. Mas não poderia se dar ao luxo de cultivar alguma fantasia sobre uma relação duradoura.

Eram dois mundos diferentes; simplesmente, não pertencia ao dela.

Manny inclinou-se para frente, colocou sua mão na dela e apertou seu braço.

– Shhh... estou bem aqui.

Quando ela virou a cabeça em direção a ele, seus olhos estavam fechados e ele teve a impressão de que estava falando enquanto dormia.

– Não me deixe, curandeiro.

– Meu nome é Manny – ele sussurrou. – Manuel Manello... Médico.

Estrela-ninja. (N.P.) Também conhecidos como “nunchaku” ou apenas “chaku”. (N.P.)


CAPÍTULO 30

O assovio foi forte e alto, e ao percorrer todo o saguão de entrada da mansão, Qhuinn soube que a demanda estridente havia sido feita por John Matthew.

Só Deus sabia o quanto tinha ouvido aquilo nos últimos três anos.

Aparecendo no pé da grande escadaria, enxugou o rosto suado com a camiseta e apoiou-se no corrimão esculpido em madeira maciça. A cabeça, após o treino, estava leve e macia como um travesseiro... contrastando completamente com o resto do corpo: as pernas e nádegas pareciam pesar tanto quanto a mansão.

Quando ouviu o assovio outra vez, pensou “Oh, certo, alguém está conversando com ele”. Virando-se, deu uma olhada em John Matthew parado entre os batentes ornamentados da porta da sala de jantar.

Que diabos fez a si mesmo?, o cara gesticulou antes de apontar para a própria cabeça.

Bem, cuide da sua vida, Qhuinn pensou. No passado, uma pergunta como aquela englobaria muito mais do que uma maldita mudança no estilo do cabelo.

– Chama-se corte de cabelo.

Tem certeza? Acho que parece mais uma baita desordem.

Qhuinn esfregou o penteado que havia feito.

– Não é grande coisa.

Pelo menos sabe que perucas são uma opção, não é? Os olhos de John se estreitaram. E onde está todo seu aparato de metal?

– No meu armário de armas.

Não suas armas, a porcaria que coloca no rosto.

Qhuinn apenas balançou a cabeça e virou-se para sair, sem interesse em discutir sobre todos os piercings que havia tirado. Seu cérebro estava confuso e seu corpo estava exausto, muito tenso e dolorido devido às corridas diárias...

Ouviu o assovio outra vez, e quase soltou um palavrão sobre o ombro. Contudo, resolveu dar um fim àquela babaquice, pois economizaria tempo: John nunca o deixava em paz quando estava com aquele humor.

Olhando para trás, rosnou:

– O quê?

Precisa comer mais; seja junto aos outros ou sozinho. Está se transformando em um esqueleto...

– Estou bem.

Bem, então, ou você começa a mastigar ou vou trancar aquele ginásio e não lhe darei a chave. A escolha é sua. E vou chamar Layla. Ela está no seu quarto lhe esperando.

Qhuinn virou-se rapidamente. Foi uma má ideia: o saguão transformou-se em um carrossel. Agarrando o corrimão de novo, exclamou:

– Eu poderia ter feito isso.

Mas não fez, então, fiz por você... quase como abater uma dúzia de redutores, será minha boa ação da semana.

– Quer se candidatar a Madre Teresa? Vai ter mais sorte se praticar isso com outra pessoa.

Desculpe. Escolhi você e é melhor agilizar... não vai querer deixar a moça esperando. Ah, e enquanto Xhex e eu estávamos na cozinha, pedi para Fritz preparar uma refeição para você e entregá-la no seu quarto. Mais tarde.

Quando o cara saiu na direção da despensa, Qhuinn gritou:

– Não estou interessado em ser salvo, idiota. Posso cuidar de mim mesmo.

A resposta de John foi um dedo do meio erguido sobre sua cabeça.

– Oh, pelo amor de Deus – Qhuinn murmurou.

Não estava nem um pouco afim de lidar com Layla naquele momento. Nada contra a Escolhida, mas a ideia de estar em um espaço fechado com alguém interessado em sexo simplesmente o sufocava – o que era muito irônico. Até bem pouco tempo, o sexo não apenas fazia parte de sua vida – definia-o. Na última semana? A ideia de estar com alguém lhe dava náuseas.

Cristo, tal pensamento o deteve, e a última pessoa com quem gostaria de estar era com uma ruiva.

Muuuito engraçado: estava claro que a Virgem Escriba tinha um tremendo senso de humor.

Forçando seu peso morto a subir as escadas, estava pronto para dizer a Layla, da maneira mais educada possível, que deveria cuidar da vida dela...

A tontura que o atingiu no segundo patamar da escada impediu-o de continuar seu caminho.

Nas últimas sete noites, acostumou-se com a sensação de um flutuar constante que surgiu quando começou a correr o máximo e a comer o mínimo possível, e ficava esperando pelo momento em que as coisas se dissociavam. Pelo amor de Deus, era mais barato do que beber e não parava nunca... ao menos, não até comer.

Mas aquilo era diferente. Sentia como se alguém tivesse lhe dado uma rasteira por trás e levado suas pernas embora... só que sua linha de visão lhe dizia que ainda estava em pé. Assim como o fato de que os quadris estavam contra o corrimão...

Sem aviso, um de seus joelhos se dobrou e Qhuinn caiu como um livro da prateleira.

Estendendo uma das mãos, ergueu-se sobre o maldito degrau, até ficar praticamente pendurado no corrimão. Olhando para a perna, golpeou-a algumas vezes e respirou fundo, desejando que seu corpo obedecesse ao programa.

Não aconteceu.

Em vez disso, deslizou lentamente na vertical e teve de se virar para fazer parecer que estava apenas agachando-se sobre o tapete vermelho-sangue. Não conseguia respirar... ou melhor, estava respirando, mas era horrível. Deus... Caramba... Vamos lá...

Que droga.

– Senhor? – uma voz veio do alto.

Fazendo daquilo um inferno duplo.

Quando fechou os olhos, pensou que o fato de Layla ter aparecido naquele momento era a maldita lei de Murphy ao vivo e em cores.

– Senhor, posso ajudá-lo?

Por sua vez, aquilo talvez pudesse ter seu lado bom: melhor que um dos Irmãos.

– Sim. Meu joelho falhou. Machuquei correndo.

Olhou para cima enquanto a Escolhida flutuava até ele, a túnica branca era um choque contra a cor intensa do carpete e o brilho dourado e ressonante dos trabalhos artísticos no saguão.

Sentindo-se um completo idiota quando ela se abaixou até ele, tentou erguer-se sozinho... apenas para chegar a lugar nenhum.

– Eu, hã... devo avisar que peso muito.

Sua mão adorável agarrou a dele e ficou impressionado em ver que seus dedos tremiam quando aceitou a ajuda. Ficou surpreso também quando foi transportado com um único puxão.

– Você é forte – disse ele quando o braço de Layla envolveu sua cintura e o ergueu.

– Vamos caminhar juntos.

– Desculpe, estou suado.

– Não me importo.

Com isso, eles saíram. Movendo-se lentamente, avançaram até as escadas e dirigiram-se ao corredor do segundo andar, passando por várias portas fechadas: pelo escritório de Wrath. Pelo quarto de Tohrment. Pelo de Blay... não olhou para esse. Pelo quarto de Saxton... nem considerou o fato de jogar o puxa-saco do seu primo pela janela. Passaram também pelo quarto de John Matthew e Xhex.

– Vou abrir a porta – a Escolhida disse quando pararam em frente a seu quarto.

Tiveram de virar de lado para passar os batentes por causa do seu tamanho, e ele ficou muito grato quando a Escolhida fechou a porta e o levou para a cama. Ninguém precisava saber o que estava acontecendo e havia uma grande possibilidade da Escolhida aceitar suas desculpas.

Sentar-se era o plano. Só que no instante em que ela o soltou, caiu para trás sobre o colchão feito um tapete de boas-vindas. Olhando para seu corpo em direção aos tênis de corrida, perguntou-se por que não conseguia ver o carro que estava estacionado em cima dele. Definitivamente não era um carro pequeno. Parecia mais uma caminhonete.

Que seja, algo grande.

– Hã... ouça, poderia ir até meu casaco de couro? Tenho uma barra de cereais lá.

De repente, ouviu um ruído de metal sobre porcelana perto da porta. E, então, o cheiro de algo que havia sido preparado no jantar.

– Talvez goste deste rosbife, senhor.

Seu estômago apertou como um punho fechado.

– Deus... não...

– Tem arroz.

– Apenas... uma daquelas barras...

Um ruído sutil sugeriu que ela estava carregando uma bandeja e, um segundo depois, sentiu muito mais do que um simples aroma de qualquer coisa que Fritz havia planejado.

– Pare... Pare com isso, droga... – inclinou-se e tentou vomitar dentro de um cesto de lixo. – Nada... de comida...

– Precisa comer – veio uma resposta que soou forte, foi surpreendente. – E devo alimentá-lo.

– Não se atreva...

– Aqui – Em vez de carne ou arroz, apresentou-lhe um pequeno pedaço de pão. – Abra. Precisa de comida, senhor. Seu amigo John Matthew foi quem disse.

Afundando-se contra os travesseiros, colocou o braço sobre o rosto. Seu coração pulava dentro do peito e, de alguma maneira obscura, percebeu que poderia realmente se matar se continuasse agindo assim.

Engraçado, a ideia não lhe pareceu tão ruim, especialmente quando o rosto de Blay surgiu em sua mente.

Tão lindo. Muito, muito lindo. Parecia bobo e desestimulante chamar o cara assim, mas ele era. Aqueles malditos lábios eram o problema... belos e macios na parte inferior. Ou será que eram os olhos?

Tão azuis.

Tinha beijado aquela boca e amou isso. Encarado aqueles olhos e enlouquecido.

Poderia ter tido Blay primeiro... e para sempre. Mas em vez disso? Foi seu primo quem conseguiu...

– Oh, Deus... – ele gemeu.

– Senhor. Coma.

Sem energia para lutar contra qualquer coisa, fez como lhe pediu, mastigando mecanicamente, engolindo pela garganta seca. E fez outra vez. E outra vez. Descobriu que os carboidratos apaziguavam o terremoto em seu estômago e, mais rápido do que poderia imaginar, viu que ansiava por algo um pouco mais substancial. Em seguida, bebeu um pouco da água que Layla lhe oferecia e tomou goles breves.

– Talvez devêssemos fazer uma pausa – disse ele, segurando outro pão apenas no caso da maré mudar.

Quando virou para o lado, sentiu os ossos de suas pernas se chocarem e percebeu que seu braço estava pendurado de forma diferente... havia menos peitoral no caminho. Sua bermuda esportiva também estava diferente... mais larga na cintura.

Tinha feito todo aquele estrago em sete dias.

Nesse ritmo, sua aparência não seria mais a mesma em pouco tempo. Já não tinha mais piercings, como John Matthew bem tinha notado; não só havia raspado a cabeça como também retirado os acessórios metálicos da sobrancelha, do lábio inferior e uma dúzia ou mais deles das orelhas. As argolas em seus mamilos também se foram. Ainda tinha um pino na língua e em seu órgão genital, mas tudo que era visível havia desaparecido.

Estava farto de si mesmo, de muitas maneiras. Enjoado e cansado de ser o homem estranho fora de propósito, exausto da sua reputação de vadio, e sem interesse algum em se rebelar contra os mortos. Pelo amor de Deus, não precisava de um profissional para explicar a psicologia que lhe havia moldado: sua família era o retrato da família perfeita, faziam parte da glymera conservadora... em contrapartida era um bissexual prostituto, cheio de piercings pelo corpo, vestindo um estilo gótico e com um fetiche por agulhas. Mas quanto disso realmente partia dele e quanto fazia parte de uma vingança olho por olho?

Quem era de fato?

– Quer mais? – Layla perguntou.

Quando a Escolhida posicionou-se na frente dele com a baguete, Qhuinn decidiu parar com sua atitude.

Abrindo a boca, deu uma de filhote de passarinho e comeu a maldita coisa. E mais um pouco. E, então, como se ela tivesse lido sua mente, levou um garfo de prata com um pedaço de carne assada até seus lábios.

– Vamos tentar, senhor... Mas, mastigue devagar.

Era a possibilidade de comer um pouco de gordura. “Fome” tornou-se imediatamente o nome do jogo e ele parecia um tiranossauro com a carne, quase mordendo o garfo com a pressa. Mas Layla não parou, oferecendo uma rodada mais rápido do que conseguiria processar.

– Espere... pare – ele murmurou, com medo de vomitar.

Deitou-se de costas outra vez e deixou uma das mãos descansando sobre o peito. A respiração superficial foi sua salvação. Se fizesse um pouco mais de esforço, iria abrir a boca e esparramar resíduos de todas as cores pelo corpo inteiro.

O rosto de Layla apareceu sobre o dele.

– Senhor... talvez devêssemos parar.

Qhuinn estreitou o olhar nela e observou-a de maneira mais atenta pela primeira vez desde que tinha aparecido.

Deus, era uma visão, com todo aquele cabelo loiro pálido caindo do alto de sua cabeça e seu rosto de uma perfeição impressionante. Com lábios de morango e olhos verdes que brilhavam à luz das lâmpadas, era tudo o que a raça valorizava em termos de DNA... nenhum defeito visível.

Ele estendeu a mão a acariciou o coque. Tão macio. Não precisava de qualquer fixador de cabelo naqueles fios; era como se as ondas soubessem que sua função era emoldurar seus traços e estavam ansiosas para fazer o melhor que podiam nisso.

– Senhor? – ela disse ao ficar tensa.

Ele sabia o que estava sob o manto: seus seios eram absolutamente deslumbrantes e seu abdômen liso como uma tábua... aqueles quadris e aquele sexo macio como seda entre suas coxas eram o tipo de coisa pelas quais um homem nu se despedaçaria.

Sabia desses detalhes, pois já tinha visto tudo, tocado em boa parte de seu corpo e colocado a boca em alguns lugares.

Contudo, ainda não a tinha possuído. Não tinha ido muito longe também. Por ser uma ehros, havia sido treinada para o sexo, mas como não havia um Primale para auxiliar a Escolhida nesse sentido, era uma aprendiz acadêmica, nada de aprender saindo “em campo”, por assim dizer. E, por um tempo, Qhuinn ficou feliz em mostrar-lhe algumas regras do jogo.

Só que não parecia certo.

Bem, parecia que algo estava certo ali, mas havia coisas demais nos olhos dela e o coração de Qhuinn era pequeno demais para que as coisas continuassem.

– Vai tomar da minha veia, senhor? – ela sussurrou com voz rouca.

Ele apenas a olhou.

Os lábios vermelhos da Escolhida se separaram.

– Senhor, vai... tomar de mim?

Fechando os olhos, viu o rosto de Blay outra vez... mas não como agora, não o desconhecido frio que Qhuinn havia criado. O velho Blay, com aqueles olhos azuis que, de alguma forma, estavam sempre olhando em sua direção.

– Senhor... Sou sua para que me tome. Apesar de tudo. Eternamente.

Quando finalmente olhou para Layla outra vez, os dedos dela tinham alcançado a gola do manto e aberto bem as duas metades, exibindo o pescoço longo e elegante, as asas de sua clavícula e aquele colo glorioso.

– Senhor... quero servi-lo. – Afastando o tecido de cetim mesmo já bem disperso, oferecia não apenas sua veia, mas seu corpo. – Possua-me...

Qhuinn deteve as mãos dela quando se dirigiram para o laço em volta de sua cintura.

– Pare.

Seus olhos repousaram sobre o edredom e ela pareceu ter se transformado em pedra. Ao menos até se afastar dele e arrumar o manto grosseiramente.

– Então, deve tomar meu pulso. – A mão dela tremia quando puxou uma das mangas e prendeu-a mais acima do braço.

– Tome do meu pulso aquilo que necessita de maneira tão evidente.

Não olhava para ele. Provavelmente não conseguia, e, ainda assim, lá estava ela... encerrada em uma desgraça que nunca mereceu e a qual Qhuinn nunca teve a intenção de evocar para ela... ainda assim, oferecia-se para ele... só que não de uma maneira patética, mas por que havia nascido e sido criada para servir a um propósito que não tinha qualquer relação com o que ela queria, e tudo a ver com uma expectativa social... e estava determinada a viver de acordo com os padrões, mesmo se não fosse desejada por quem ela queria.

Cristo, sabia como era aquilo.

– Layla...

– Não se desculpe, senhor. Isso me humilha.

Ele pegou seu braço, pois teve a impressão de que Layla estava prestes a cair.

– Olhe, é culpa minha. Nunca deveria ter começado com essas coisas de sexo com você...

– E digo outra vez: “pare”. – Suas costas estavam rígidas e sua voz, estridente. – Deixe-me ir, senhor.

Ele franziu a testa.

– Caramba... você está fria.

– Estou?

– Sim. – Percorreu a mão sobre seu braço. – Precisa se alimentar? Layla? Ei?

– Sou alimentada do Outro Lado, no Santuário, então, não.

Certo, acreditava nisso. Se uma Escolhida estava lá, era por que existia sem existir, sua necessidade de sangue era suspensa... e parecia que estava sempre bem: nos últimos anos, Layla era a única que servia os Irmãos que não podiam se alimentar de suas shellans. Era a Escolhida pela qual todos optavam.

E, então, deu-se conta.

– Espere, você não chegou a ir para o norte?

Agora que Phury havia libertado as Escolhidas de sua existência rígida e confinada, a maioria delas deixou o Santuário onde ficavam presas por toda eternidade e dirigiram-se para os grandes campos de Adirondack para aprender sobre as liberdades que existiam na vida deste lado.

– Layla?

– Não, não vou mais para lá.

– Por quê?

– Não posso. – Ela interrompeu a conversa e puxou a manga de seu manto outra vez. – Senhor? Vai tomar da minha veia?

– Por que não vai para lá?

Os olhos dela finalmente encontraram os de Qhuinn e mostravam-se muito irritados. Algo que produziu um estranho alívio. A mansa aceitação de tudo fazia com que ele questionasse sua inteligência. Mas considerando sua expressão agora? Havia muita coisa sob o manto que ela usava... e não estava falando apenas de seu corpo perfeito.

– Layla. Responda-me. Por que não?

– Não posso.

– Quem disse? – Qhuinn não era muito próximo de Phury, mas o conhecia o suficiente para causar um problema ao Irmão. – Quem?

– Não se trata de uma pessoa e não se preocupe. – Apontou para o pulso. – Alimente-se para que fique tão forte quanto precisa estar e, então, eu lhe deixarei em paz.

– Tudo bem, se quer as palavras certas... O que é, então?

A frustração queimou em seu rosto.

– Não é problema seu.

– Eu decido o que é problema meu. – Não costumava ameaçar fêmeas, mas parecia que seu cavalheiro dormente tinha saído da zona neutra de ação e resolvido jogar tudo para o ar. – Fale comigo.

Ele era a última pessoa que pedia para colocar as cartas na mesa; ainda assim, lá estava ele, começando o jogo. Contudo, a questão era que não poderia deixar nada machucar aquela fêmea.

– Tudo bem. – Ela ergueu as mãos. – Se eu for para o norte, não poderei lhes servir quando precisarem de sangue. Por isso, vou ao Santuário para me recuperar e fico no aguardo de ser convocada novamente. Venho a este lado, sirvo-lhes e tenho que voltar em seguida; então, não, não posso ir para as montanhas.

– Jesus... – eles eram muitos. Deveriam ter previsto esse problema... ou Phury deveria. A menos que... – Já conversou com o Primale?

– Sobre o que, exatamente? – ela retrucou. – Diga-me, senhor, teria pressa de apresentar as falhas que cometeu no campo de batalha diante de seu rei?

– Onde, diabos, está falhando? Está mantendo, mais ou menos, quatro de nós vivos.

– Exatamente. E estou servindo todos vocês dentro de uma capacidade muito limitada.

Layla levantou-se em um salto e caminhou até a janela. Quando olhou para fora, ele a desejou: naquele momento, teria dado qualquer coisa para sentir por ela o mesmo que ela sentia por ele... afinal, ela era tudo que sua família valorizava, ocupava o topo social para uma fêmea. E ela o desejava.

Mas quando Qhuinn olhava para dentro, havia um outro nome em seu coração. E nada mudaria isso. Nunca... temia.

– Não sei quem ou o que sou exatamente – Layla disse, como se estivesse falando consigo mesma.

Bem, parecia que os dois estavam no mesmo trem que levava a lugar algum quando o destino era essa questão.

– Não vai descobrir até que deixe aquele Santuário...

– Impossível se eu tiver que servir...

– Nós podemos chamar outra pessoa. Simples assim.

Houve uma inspiração profunda e, então, ela disse:

– Mas é claro. Deve fazer como deseja.

Qhuinn observou a linha bem definida de seu queixo.

– Isso deveria ajudá-la.

Ela olhou por cima do ombro.

– Não ajuda... pois isso me deixaria sem nada. Sua escolha, meu destino.

– A vida é sua. Pode escolher.

– Não vamos mais falar disso. – Ela ergueu as mãos. – Pelo amor da Virgem Escriba, você não faz ideia do que é desejar coisas que não está destinado a ter.

Qhuinn soltou uma risada dura.

– Até parece que eu não sei. – Quando as sobrancelhas dela se ergueram, ele revirou os olhos. – Você e eu temos mais em comum do que imagina.

– Você tem toda liberdade do mundo. O que poderia desejar?

– Confie em mim.

– Bem, eu o quero e não posso tê-lo, isso não é minha escolha. Ao menos, servindo você e aos outros, tenho um propósito além de lamentar a perda de algo que sonhei.

Quando Qhuinn respirou fundo, teve de respeitar a fêmea. Não havia qualquer sinal de piedade, parada diante daquela janela. Estava expondo os fatos como os conhecia.

Droga, era mesmo exatamente o tipo de shellan que sempre desejou. Mesmo sendo um nada ambulante, no fundo sempre visualizou a si mesmo com uma fêmea, num relacionamento a longo prazo. Alguém com uma linhagem impecável e muita classe... uma fêmea a qual seus pais não só aprovariam, como talvez o respeitassem um pouco por tê-la a seu lado.

Aquele tinha sido seu sonho; no entanto agora que parecia poder se tornar realidade... agora, que estava em seu quarto, olhando para seu rosto... Agora, queria outra pessoa totalmente diferente.

– Gostaria de sentir algo profundo por você – disse de maneira rude, oferecendo a verdade em troca da verdade. – Faria quase qualquer coisa para sentir o que deveria por você. Você é... a minha fantasia em termos de fêmea, tudo o que sempre desejei, mas que pensei que nunca poderia ter.

Seus olhos se abriram tanto que pareciam duas luas, belos e brilhantes.

– Então, por quê...?

Ele esfregou o rosto e perguntou-se o que diabos estava dizendo, o que diabos estava fazendo.

Quando abaixou as mãos, sentiu que deixou algo úmido e escorregadio para trás e recusava-se a pensar muito sobre isso.

– Estou apaixonado – disse com voz rouca. – Por outra pessoa. É por isso.


CAPÍTULO 31

Comoção no corredor. Uma confusão de passos... palavrões ditos em voz baixa... um ruído inoportuno em dado momento.

Todo aquele barulho acordou Manny e ele passou de um estado meio adormecido para a plena consciência em um piscar de olhos, como se um desfile de sons estivesse passando pelo corredor. A barulheira continuou até ser interrompida drasticamente, como se uma porta tivesse sido fechada naquele espetáculo, seja lá o que tenha sido.

Arrumando o local onde havia apoiado sua cabeça na cama de Payne, olhou para a paciente. Linda, simplesmente linda. E dormia tranquila...

Um raio de luz atingiu o rosto de Manny.

A voz de Jane soou tensa; quando parou no batente da porta, via-se apenas o recorte escuro do perfil de seu corpo.

– Preciso de mais um par de mãos aqui. Agora.

Não precisou pedir duas vezes. Manny correu para a porta, o cirurgião dentro dele estava pronto para trabalhar, sem fazer perguntas.

– O que temos?

Enquanto se apressavam pelo corredor, Jane passou a mão sobre seu uniforme manchado de vermelho.

– Traumas múltiplos. A maioria de facas, um tiro. E estão trazendo outro.

Invadiram a sala de exames e, meu Deus... caramba... havia homens feridos por toda parte... nos cantos, apoiados sobre a mesa, inclinados no balcão, xingando enquanto andavam impacientes pela sala. Elena ou Elaina, a enfermeira, estava ocupada pegando bisturis, linhas e outros acessórios, e também havia um pequeno homem idoso servindo água para todos em uma bandeja de prata.

– Ainda não avaliei todos – Jane disse. – São muitos.

– Onde encontro um estetoscópio e um aparelho de pressão extras?

Jane foi até um armário, abriu uma gaveta e puxou os dois.

– A pressão é muito mais baixa do que está acostumado a ouvir. O batimento cardíaco também.

O que significava que, mesmo sendo um profissional da medicina, não tinha como julgar de fato se aqueles pacientes estavam mal ou não.

Colocou o equipamento de lado.

– É melhor você e a enfermeira fazerem as avaliações. Vou fazer a preparação.

– Deve ser melhor mesmo – Jane concordou.

Manny aproximou-se da enfermeira loira que estava trabalhando de maneira eficiente com os suprimentos.

– Vou assumir a partir daqui. Ajude Jane com as leituras.

Ela assentiu brevemente e foi direto medir os sinais vitais.

Manny abriu as gavetas com rapidez e tirou kits cirúrgicos, alinhando-os sobre os balcões. Os analgésicos estavam em um armário vertical; encontrou as seringas mais embaixo. Quando terminou de vasculhar tudo, estava impressionado com a qualidade profissional: não sabia como Jane fizera aquilo, mas havia tudo o que um hospital precisava.

Dez minutos depois, Jane, ele e a enfermeira encontraram-se no meio da sala.

– Temos dois muito mal – disse Jane. – Rhage e Phury estão perdendo muito sangue... temo que as artérias tenham sido cortadas pois os cortes são muito profundos. Z. e Tohr precisam tirar radiografias e acho que Blaylock está com uma concussão juntamente com uma ferida terrível no estômago.

Manny foi até a pia e iniciou o procedimento de higienização.

– Vamos fazer isso. – Olhou ao redor e apontou para o mamute loiro com uma poça de sangue sob a bota esquerda. – Eu cuido dele.

– Certo, eu vou cuidar de Phury. Ehlena, comece a tirar as radiografias dos ossos quebrados.

Considerando que aquela era uma situação urgente, Manny assumiu o comando do seu paciente que estava estendido no chão, exatamente onde ele havia caído mais cedo. O grande bastardo vestia couro preto da cabeça aos pés e estava com muita dor, sua cabeça caiu para trás e apertava os dentes.

– Vou começar a trabalhar em você – disse Manny. – Tem algum problema com isso.

– Não se conseguir impedir meu sangramento.

– Considere feito. – Manny pegou uma tesoura. – Vou cortar a perna da calça primeiro e tirar a bota.

– Botas de combate – o cara gemeu.

– Tudo bem. Seja lá como a chama, está sendo retirada.

Nada de desamarrar... cortou o cordão entrelaçado na frente da maldita coisa e tirou aquilo de um pé que tinha o tamanho de uma mala. Em seguida, o couro deslizou facilmente saindo do caminho até o quadril, caindo para os lados como uma segunda pele.

– O que temos, doutor?

– Um peru de Natal, amigo.

– Tão fundo assim?

– Sim. – Não havia necessidade de mencionar que o osso estava exposto e que o sangue estava escorrendo num fluxo constante. – Tenho que me limpar outra vez. Já volto.

Depois que saiu da pia, Manny colocou um par de luvas, sentou-se e pegou um frasco de lidocaína.

O cara grande, loiro e ensanguentado o deteve.

– Não se preocupe com a dor, doutor. Costure-me e cuide dos meus Irmãos, eles precisam mais do que eu. Eu cuidaria disso sozinho, mas Jane não vai permitir.

Manny parou.

– Você costuraria a si mesmo?

– Faço isso há décadas, antes mesmo do senhor ter nascido, doutor.

Manny balançou a cabeça e murmurou:

– Desculpe, fortão. Não vou correr o risco de você se repuxar enquanto eu estiver trabalhando no seu vazamento.

– Doutor...

Manny apontou a seringa direto no belo rosto do seu paciente.

– Cale-se e deite-se. Deve apagar com isso, então, não se preocupe... haverá muito para contar e bancar o herói.

Outra pausa.

– Tudo bem, doutor, tudo bem. Não fique chateado. Pode apenas me pular... e ajudá-los.

Era difícil não respeitar a lealdade do cara.

Trabalhando rápido, Manny anestesiou a área da melhor maneira possível, empurrando a agulha contra a carne sobre um círculo definido. Cristo, aquilo o levava de volta à faculdade de medicina e, de uma maneira estranha, trouxe-lhe de volta à vida, produzindo um efeito que as operações que vinha realizando ultimamente não produziam mais.

Aquilo era... a realidade no volume máximo, e seria um imbecil se não gostasse do som.

Agarrando uma pilha de toalhas limpas, empurrou-as sob a perna e enxaguou o ferimento com um líquido antisséptico. Quando o paciente assoviou e enrijeceu, disse:

– Calma, garotão. Estamos apenas limpando o ferimento.

– Sem... problema.

Até parece. Manny desejava poder fazer mais para controlar a dor, mas não havia tempo. Havia fraturas expostas para lidar. Estabilizar. Seguir em frente.

Quando alguém gemeu e houve outra série de xingamentos soando a sua esquerda, Manny cuidou mais um pouco da artéria; em seguida, cobriu o músculo e dirigiu-se para o tecido da coxa.

– Está indo bem – murmurou quando notou que os punhos do paciente estavam fechados com força.

– Não se preocupe comigo.

– Certo, certo... seus irmãos – Manny parou por um segundo. – Você está bem, sabe disso.

– Caramba... – o lutador sorriu, mostrando as presas. – Estou... perfeito.

Então, o cara fechou os olhos e recostou-se, a mandíbula estava tão tensa que era um milagre conseguir engolir a saliva.

Manny trabalhou o mais rápido que pôde sem sacrificar a qualidade. E quando começou a limpar a linha de sutura com o auxílio de uma gaze, ouviu Jane gritar.

Virando a cabeça, murmurou:

– Droga.

Na porta de entrada da sala de exames, o marido de Jane estava envolvido nos braços pelo cara do boné do Red Sox, parecendo que tinha sido atropelado por um carro: a pele estava pálida, os olhos eram minúsculos na cabeça e... santo Deus, sua bota – bota de combate – estava apontando para o lado errado.

Manny gritou para a enfermeira.

– Pode fazer um curativo nisso? – olhando para seu atual paciente, disse: – Tenho que dar uma olhada no...

– Vá – o cara deu um tapa no ombro dele. – E obrigado, doutor. Não vou esquecer isso.

Enquanto se dirigia para o recém-chegado, Manny teve de se perguntar se o cara do cavanhaque de boca grande permitiria que ele o operasse. Porque aquela perna... Parecia completamente destruída mesmo observando rapidamente do outro lado da sala.

A consciência de Vishous oscilava no momento em que Butch entrou na sala de exame, carregando-o.

Aquela combinação de ferimentos no joelho e no quadril ia além da agonia, adentrava outro território, e as sensações esmagadoras minavam suas forças e seu processo cognitivo. Entretanto, não era o único que estava mal. Quando Butch entrou cambaleando fraco pela porta, bateu a cabeça de V. contra o batente.

– Que inferno!

– Droga... desculpe.

– Não... é nada demais – V. disse ofegante quando a dor de cabeça começou a gritar, o cara poderia até harmonizá-la com um rock pesado estilo Welcome to the Jungle.

Para calar o concerto do inferno, abriu os olhos e esperou uma distração.

Jane estava bem na frente dele, havia uma agulha de sutura em sua mão ensanguentada e envolta por uma luva, seus cabelos estavam puxados para trás por uma faixa.

– Ela não – gemeu. – Ela... não...

Médicos nunca deveriam tratar seus companheiros; era a receita para o desastre. Se seu joelho ou quadril tivesse sofrido um dano permanente, não queria que aquilo pesasse na consciência dela. Deus era testemunha de que já tinham problemas suficientes.

Manny parou em frente a sua shellan.

– Então, sou sua única opção. Não precisa agradecer.

Vishous revirou os olhos. Ótimo; que bela escolha.

– Você consente? – o humano perguntou. – Talvez queira pensar sobre isso um pouco, assim, suas articulações podem se recuperar assumindo a forma da perna de um flamingo. Ou talvez sua perna gangrene e caia.

– Bem, que seja... não é... uma negociação.

– E a resposta é...?

– Tudo bem. Sim.

– Coloque-o sobre a mesa.

Butch foi cuidadoso ao deitá-lo, mas mesmo assim, V. quase vomitou sobre os dois quando seu peso foi redistribuído.

– Filho da mãe... – Assim que o xingamento saiu dos seus lábios, o rosto do cirurgião apareceu sobre o dele. – Desculpe, Manello... não acho que queira... ser tão próximo a mim...

– Quer me dar um soco? Tudo bem, mas espere até eu dar um jeito na sua perna.

– Não, estou... enjoado.

Manello balançou a cabeça.

– Preciso de analgésico aqui. Tragam-me um pouco de Demer...

– Demerol não – V. e Jane disseram juntos.

Os olhos de V. dispararam na direção dela. Estava do outro lado, no chão, inclinada sobre o estômago de Blaylock, costurando um corte médio. Suas mãos eram firmes e seu trabalho absolutamente perfeito; tudo nela traduzia a imagem da competência profissional, menos as lágrimas que escorriam em seu rosto.

Com um gemido, olhou para o lustre acima dele.

– Pode ser morfina? – Manello perguntou enquanto cortava a manga da jaqueta de motoqueiro. – E não se incomode em ser durão. A última coisa que preciso é de você bufando enquanto vasculho o que há aqui embaixo.

Jane não respondeu dessa vez, então, V. o fez.

– Sim. Não tem problema.

Quando uma seringa foi preenchida, Butch aproximou-se do cirurgião. Mesmo com a respiração debilitada, o tira foi totalmente ameaçador quando falou:

– Não preciso dizer para não ferrar com o meu amigo, certo?

O cirurgião voltou-se para sua rotina de frasco, agulha e seringa.

– Não estou interessado em sexo no momento, muito obrigado. Mas se estivesse, com certeza não seria com ele. Então, em vez de se preocupar com quem estou pegando, por que não faz um favor a todos nós e vai tomar um banho? Está fedendo.

Butch piscou. Então, sorriu um pouco.

– Você honra as calças que veste.

– E elas cobrem duas bolas feitas de bronze, tão grandes quanto os sinos de uma igreja.

A próxima coisa que V. soube foi que alguma coisa fria estava sendo esfregada na junção do seu braço, em seguida, houve uma picada e, depois, começou a fazer um pequeno passeio, seu corpo transformou-se em uma bola de algodão, muito leve e arejada. De vez em quando, a dor irrompia, balançando-se em seu intestino e cravando as garras em seu coração. Mas nada estava ligado àquilo que Manny fazia em sua lesão: V. não conseguia tirar os olhos de sua companheira enquanto tratava dos Irmãos.

Através do painel ondulado de sua visão, observou quando ela lidou com Blay e depois com Tohrment. Não conseguia ouvir o que ela dizia, pois seus ouvidos não estavam funcionando muito bem, mas era evidente que Blay estava grato e Tohr pareceu se acalmar apenas por sua presença. De tempos em tempos, Manello perguntava-lhe alguma coisa, ou Ehlena a detinha com uma pergunta, ou Tohr estremecia e ela fazia uma pausa para acalmá-lo.

Aquela era sua vida, não? Aquele processo de cura, a busca por excelência, a devoção permanente a seus pacientes.

Seu dever para com eles a definia, não era isso?

E enxergá-la assim fez com que repensasse o que tinha acontecido entre ela e Payne. Se Payne estava tão disposta a tirar a própria vida, com certeza Jane teria tentado impedi-la. E, então, quando ficou evidente que não conseguiria...

De repente, como se soubesse que estava olhando para ela, os olhos de Jane fixaram-se nos dele. Estavam tão obscurecidos que não conseguia dizer qual era a cor deles e, por um momento, ela perdeu sua forma corpórea, como se ele tivesse sugado a vontade de viver de dentro dela.

O rosto daquele cirurgião entrou no caminho.

– Precisa de mais analgésico?

– O quê? – V. perguntou com a sensação de que a língua estava grossa e seca.

– Você gemeu.

– Não... é... o joelho.

– Não é apenas o joelho.

– O quê...?

– Acho que deslocou o quadril. Vou tirar totalmente as calças do caminho.

– Que seja...

Quando V. voltou a olhar para Jane, tinha apenas a vaga impressão de que uma tesoura cortava os dois lados da sua calça, mas soube exatamente quando o cirurgião tirou o couro por completo. O cara soltou um silvo agudo... que foi rapidamente encoberto.

Com certeza aquela reação não estava relacionada aos avisos tatuados no Antigo Idioma.

– Desculpe, doutor – V. resmungou, sem ter certeza do porquê estava se desculpando pela confusão que havia abaixo da sua cintura.

– Eu vou, hã... Vou cobri-lo. – O humano saiu e voltou com um cobertor que colocou sobre a parte inferior do abdômen de V. – Só preciso examinar suas articulações.

– Bem... faça isso.

Os olhos de Vishous voltaram para Jane e viu-se pensando... se ela não tivesse morrido e sido trazida de volta como foi, será que chegariam a tentar ter um filho? Duvidava que pudesse gerar alguma coisa além de um orgasmo se considerasse o dano que seu pai havia lhe feito. E ele nunca quis ter filhos... ainda não queria.

No entanto, ela teria sido uma ótima mãe. Era boa em tudo que fazia.

Será que sentia falta de estar viva?

Por que nunca havia perguntado isso a ela?

A volta do rosto do cirurgião interrompeu seus pensamentos.

– Seu quadril está deslocado. Vou ter que cuidar disso antes de trabalhar no joelho, pois estou preocupado com sua circulação. Certo?

– Apenas me conserte – V. gemeu. – Não importa o que for preciso.

– Bom. Vou colocar o joelho em um suporte temporário. – O humano olhou para Butch que, apesar do pedido do banho, tinha se apoiado contra a parede a pouco mais de meio metro de distância. – Preciso da sua ajuda. Não há mais ninguém por perto com as mãos livres.

O tira mostrou-se bem disposto, juntando suas forças e se aproximando.

– O que quer que eu faça?

– Segure a bacia dele no lugar. – O homem pulou sobre a mesa de aço inoxidável colocando-se em cima das pernas de V., agachando-se para evitar bater a cabeça no lustre. – Vai ser um trabalho braçal... não existe outra maneira de fazer isso. Quero que olhe para mim, e vou lhe mostrar onde deve colocar as mãos.

Butch seguiu as instruções, deslizando e descendo as mãos.

– Onde?

– Aqui. – V. teve a vaga sensação de um peso quente dos dois lados do quadril. – Um pouco mais para fora... direita. Bom.

Butch olhou para V. sobre o ombro.

– Está pronto para isso?

Que pergunta tola. Era como perguntar se alguém estava pronto para uma colisão frontal.

– Vai fundo – V. murmurou.

– Apenas concentre-se em mim.

E V. concentrou-se... observando as nódoas esverdeadas nos olhos cor de avelã do tira, os contornos daquele nariz quebrado e a barba por fazer.

Quando o humano agarrou a parte inferior da coxa de V. e começou a levantar, V. ergueu-se contra a mesa, sua cabeça caiu para trás, esticando o queixo.

– Calma – o tira disse. – Concentre-se em mim.

Uh-hum, certo. Sentiu dor e, em seguida, mais DOR. Aquilo era DOR.

Vishous esforçou-se para respirar, seus caminhos neurológicos estavam repletos de sinais, seu corpo explodia mesmo com a pele intacta.

– Diga a ele para respirar – alguém disse. Provavelmente o humano.

Sim, aquilo ia acontecer mesmo. Ou não.

– Certo, no três, eu vou forçar a articulação de volta no lugar, pronto?

V. não fazia ideia com quem o cara estava falando, mas se fosse com ele, não tinha como responder. Seu coração pulava, os pulmões eram como pedras e seu cérebro parecia Las Vegas com suas luzes noturnas e...

– Três.

Vishous berrou.

A única coisa que soou mais alto foi o estalo do quadril sendo recolocado, por assim dizer. E a última coisa que viu antes de se hospedar no Hotel da Inconsciência foi Jane virando-se em pânico. Havia horror puro nos olhos dela, como se a pior coisa que ela pudesse imaginar fosse vê-lo em agonia...

E foi então que V. soube que ainda a amava.


CAPÍTULO 32

Na mansão, no quarto de Qhuinn, não havia nada além de um silêncio avassalador... o que era normal quando se jogava uma bomba, fosse real ou metafórica.

Deus do céu, não conseguia acreditar que havia dito aquelas palavras: mesmo sabendo que apenas ele e Layla estavam ali, sentiu como se tivesse subido no topo de um edifício no centro de Caldwell e anunciado aos gritos a novidade.

– Seu amigo – sussurrou Layla. – Blaylock.

O coração de Qhuinn congelou, mas depois de um momento, forçou-se a concordar.

– Sim. É ele.

Esperou por algum tipo de nojo ou careta ou... mesmo um choque. Por vir de onde vinha, sabia muito bem o que era homofobia... e Layla era uma Escolhida, pelo amor de Deus, aquilo faria todo aquele bando mais tradicional da glymera ficar completamente encantado.

Aquele belo olhar permaneceu em seu rosto.

– Acho que já sabia. Vi como ele olhou para você.

Bem, aquilo não existia mais. E...

– Não lhe incomoda? Que seja outro macho?

Houve uma pequena pausa, e, então, a resposta que lhe deu transformou-o de maneira curiosa:

– Nem um pouco. Por quê?

Qhuinn teve de desviar o olhar. Pois temia que seus olhos estivessem brilhando.

– Obrigado.

– Pelo quê?

Tudo o que ele conseguiu fazer foi encolher os ombros.

Quem diria que a aceitação seria curiosamente tão dolorosa quanto toda a rejeição que sempre sofreu?

– Acho melhor ir – disse asperamente.

– Por quê?

Porque estava considerando seriamente a ideia de encharcar o quarto e não queria dar uma de salgueiro chorão na frente de ninguém, nem mesmo dela.

– Senhor, está tudo bem – soava uma seriedade tremenda em sua voz. – Não o julgo se a pessoa por quem está apaixonado é macho ou fêmea... mas pela forma como a ama.

– Então, deve me odiar – Deus, por que será que sua boca ainda estava se mexendo? –, pois parti seu coração.

– Então... ele não sabe o que o senhor sente por ele?

– Não – Qhuinn estreitou os olhos na direção dela. – E não vai saber, ficou claro? Ninguém sabe.

Ela inclinou a cabeça.

– Seu segredo está seguro comigo. Mas sei bem como ele olhou para o senhor. Talvez devesse dizer a ele que...

– Deixe-me poupá-la de uma lição que aprendi da maneira mais difícil: algumas vezes é tarde demais. Ele está feliz agora... e merece isso. Dane-se, quero que ele tenha amor, mesmo que eu esteja apenas observando isso de longe.

– Mas e quanto a você?

– Quanto a mim? – Passou os dedos ao longo do cabelo e percebeu que tinha raspado tudo. – Ouça, chega... Só lhe disse isso tudo para que saiba que essa coisa entre você e eu não é por não ser boa ou atraente o suficiente. Sinceramente? Estou farto de estar com outra pessoa para fins sexuais. Não vou fazer mais isso. Não me leva a lugar nenhum... sim. Parei com isso.

Que irônico. Agora que não estava com Blay, estava sendo fiel ao filho da mãe.

Layla atravessou o quarto, aproximando-se dele, e sentou-se na cama, posicionando as pernas e alisando o manto com mãos pálidas e elegantes.

– Fico feliz por ter me contado.

– Sabe... eu também. – Estendeu a mão e segurou a dela. – E eu tenho uma ideia.

– Mesmo?

– Amigos. Você e eu. Você vem até aqui, eu a alimento e ficamos juntos. Como amigos.

O sorriso dela foi incrivelmente triste.

– Devo dizer que... sempre soube que não se interessava por mim de uma maneira especial. Foi muito contido ao me tocar e mostrou-me coisas que me deixaram extasiada... mas sob a onda de paixão que senti, eu sabia...

– Também não está apaixonada por mim, Layla; simplesmente não está. Sente muita coisa física e isso faz com que pense que é emocional. O problema é que o corpo precisa de muito menos que a alma para se conectar.

Ela colocou a mão livre sobre o coração.

– A dor está aqui.

– Porque você tem uma queda por mim. Mas vai passar, especialmente quando conhecer o cara certo.

Deus, dê só uma olhada nisso; de prostituto a conselheiro de acampamento religioso em apenas uma semana. Próximo passo: ser convidado por algum programa de variedades dedicado ao público feminino.

Ele estendeu o braço.

– Tome da minha veia, assim, poderá ficar mais deste lado e descobrir o que deseja na vida... não o que deve ser ou fazer, mas o que realmente quer. Posso até ajudá-la, se puder. Deus sabe que sei muito bem como é estar perdido.

Houve um longo momento, e, então, aqueles olhos verdes voltaram-se para os dele.

– Blaylock... não sabe o que está perdendo.

Qhuinn balançou a cabeça com tristeza.

– Oh, ele sabe muito bem. Pode acreditar.

Não foi fácil limpar tudo.

Enquanto Jane tirava um balde e um esfregão do armário de limpeza, deu uma olhada no que precisavam obter para repor todo o material necessário: utilizaram centenas de pacotes de gaze, o número de agulhas restantes era uma piada, e estavam quase sem curativos...

Abrindo a porta da sala de exames com o quadril, virou o balde com o esfregão e fez uma pausa. Havia sangue por todo o chão e também nas paredes. Chumaços de gaze branca manchadas de vermelho eram como cotões do Freddy Krueger. Três sacos de lixo de risco biológico estavam tão cheios ao ponto de parecer que precisavam de um antiácido para o inchaço.

Meeeeeu Deus...

Observando aquilo tudo, percebeu que se Manny não estivesse com ela, poderiam ter perdido um dos Irmãos. Rhage, por exemplo, poderia ter sangrado demais. Ou Tohr... pois o que parecia apenas uma lesão no ombro acabou mostrando ser muito, muito mais.

Manny acabou tendo de operá-lo. Depois de terminar a cirurgia em Vishous.

Fechando os olhos, apoiou a cabeça contra o cabo do esfregão. Como fantasma, não ficava exausta da maneira como costumava: nada mais de dores nem da sensação de que alguém tinha amarrado pesos de musculação em seus dois tornozelos. Agora era sua mente que se cansava, a ponto de ter de fechar os olhos para não ter de ver, nem fazer absolutamente nada... como se a placa-mãe de seu cérebro precisasse ser desligada para esfriar. E ela dormia em seguida. E sonhava.

Ou... como provavelmente seria o caso de hoje... não. De tempos em tempos a insônia ainda era um problema...

– Vai precisar varrer primeiro.

Levantando a cabeça, tentou sorrir para Manny.

– Acho que você está certo.

– Que tal deixar que eu cuide disso?

Sem chance. Não estava com pressa de se fechar na sala de recuperação e ficar olhando para o teto. Além disso, Manny devia estar tão cansado quanto ela.

– Quanto tempo se passou desde que se alimentou pela última vez? – ela perguntou.

– Que horas são?

Ela olhou para o relógio.

– Uma hora.

– Da tarde?

– Sim.

– Umas doze horas ou mais – ele pareceu ficar surpreso com isso.

Pegou o telefone sobre a mesa.

– Vou ligar para Fritz.

– Ouça, não precisa...

– Deve estar quase desmaiando.

– Na verdade, estou ótimo.

O ser humano não era assim. A menos que... Ora, droga, ele parecia energizado em vez de esgotado. Que fosse; ainda assim iria alimentá-lo.

O pedido que fez não demorou mais que um minuto e Fritz ficou emocionado com a ordem. Geralmente, depois da Última Refeição, o mordomo e sua equipe retiravam-se para um breve descanso antes da limpeza diária começar, mas preferiam continuar trabalhando.

– Onde fica o armário da limpeza? – Manny perguntou.

– No corredor. À sua esquerda.

Enquanto ela enchia o balde com água sanitária e água, ele encontrou uma vassoura, voltou à sala e começou a cuidar das coisas.

Enquanto trabalhavam juntos, ela só conseguia pensar em Vishous. Durante a correria em tratar os Irmãos, havia tanto em que se concentrar; mas agora, passando as tiras do esfregão pelo chão, era como se toda a angústia que havia tido nos bastidores de seu cérebro se libertasse e corresse contra as suas grades de proteção mental.

Qualquer pessoa menos ela.

Ela o ouviu dizer isso várias vezes; viu seu rosto pálido, seus olhos gélidos e a maneira como a deixou de fora.

Engraçado... a eternidade que lhe tinha sido concedida parecia ser a maior bênção de todas. Até pensar nas eras que viveria sem o homem que amava.

Agora, era uma maldição.

Para onde iria? Não poderia continuar no complexo. Não se continuassem como estranhos. Seria muito difícil para todos...

– Aqui.

Jane pulou quando um tecido flutuou na frente de seu rosto. O pequeno quadrado branco estava pendurado nas pontas dos dedos firmes de Manny e ele o balançou outra vez quando percebeu que ela apenas olhava para a coisa.

– Está chorando – ouviu ele dizer.

Apoiando a alça do esfregão na curva do cotovelo, apanhou o que tinha lhe oferecido e ficou surpresa ao descobrir que ele estava certo: quando retirou de seus olhos o lenço de papel e o observou, estava úmido.

– Sabe? – Manny falou lentamente. – Vê-la assim me dá vontade de amputar a maldita perna dele.

– Isso é culpa dele apenas em parte.

– Isso é o que você diz. Posso olhar para a situação da maneira que eu quiser.

Ela ergueu o olhar.

– Tem outro desses?

Ele estendeu uma caixa e tirou mais alguns. Enxugou. Enxugou. Um delicado assoar de nariz. Enxugou. Ela terminou a rápida crise de choro com um... dois... três... lenços jogados no lixo.

– Obrigada por me ajudar. – Quando ela olhou para cima, havia um olhar furioso em seu rosto e teve de sorrir. – Senti falta disso.

– Falta do quê?

– Dessa expressão enfurecida que usa com tanta frequência. Lembro-me dos bons e velhos tempos. – Ela o encarou com firmeza. – V. vai ficar bem?

– Se eu não acabar com ele por sua causa... sim.

– Tão gentil – e ela estava sendo sincera. – Você foi incrível hoje.

Estava sendo sincera também.

Manny colocou os lenços de papel ao lado, sobre o balcão.

– Você também. Isso acontece muito?

– Na verdade, não. Mas tenho a impressão de que as coisas podem mudar.

Voltando ao trabalho, deu algumas passadas superficiais com o esfregão, sem conseguir melhorar de fato a situação do piso, mas apenas espalhando o sangue pelo local. Daquela forma, teria mais sorte se esguichasse o local com uma mangueira.

Poucos minutos depois, houve uma batida na porta e Fritz colocou a cabeça para dentro.

– Sua refeição está pronta. Onde gostaria de jantar?

– Ele vai comer no escritório – Jane respondeu. – Na mesa. – Olhou para o antigo colega. – Melhor ir antes que esfrie.

O olhar de Manny foi o equivalente a um dedo do meio estendido, mas ela apenas acenou, dando um tchauzinho.

– Vá. E descanse um pouco depois.

Só que ninguém dizia a Manny Manello o que fazer.

– Vou para lá em um minuto – disse para o mordomo.

Quando Fritz saiu, o antigo chefe de Jane colocou as mãos sobre os quadris. E apesar dela já se preparar para uma discussão, tudo o que ele disse foi:

– Onde está minha maleta? – Quando Jane piscou, ele deu de ombros. – Não vou forçá-la a conversar comigo.

– Então, virou uma nova página.

– Ponto para mim – ele acenou com a cabeça em direção ao telefone instalado na parede. – Tenho que verificar minhas mensagens e quero meu maldito celular de volta.

– Ah... certo. Seu carro deve estar estacionado na garagem. Basta seguir pelo corredor. Talvez esteja no Porsche.

– Obrigado...

– Está pensando em ir embora?

– O tempo todo. – Ele virou-se e foi para a porta. – Só consigo pensar nisso.

Bem... eram dois. Mas Jane nunca imaginou não estar ali, prova inegável de que não era muito útil formular um monte de ideias brilhantes sobre o futuro.


CAPÍTULO 33

Tradicionalmente, na e entre os membros da glymera, quando alguém entra na casa de outra pessoa, um cartão de visitas é colocado sobre uma bandeja de prata, que é levada por um doggen até o anfitrião. O cartão deveria ter um único nome e a linhagem listada, e o propósito era anunciar o visitante, enquanto, ao mesmo tempo, prestava-se uma homenagem aos costumes sociais que moldavam e definiam as classes mais altas.

Mas, e quando alguém não conseguia escrever ou ler... ou, mais objetivamente, quando alguém preferia métodos de comunicação mais diretos e menos formais?

Bem, então, esse alguém deixava corpos mortos que ele mesmo havia assassinado em um beco para seu “anfitrião” encontrar.

Xcor levantou-se da mesa em que estava sentado e levou sua caneca de café com ele. Os outros estavam dormindo e sabia que deveria se juntar a eles, mas não haveria descanso. Não naquele dia. Talvez, nem no dia seguinte.

Deixar aqueles redutores cortados ao meio e contorcendo-se para trás foi um risco calculado. Se os humanos os encontrassem? Problemas, e mesmo assim, tinha valido a pena. Wrath e a Irmandade governavam aquele continente há muito tempo e para que fim? A Sociedade Redutora ainda persistia. A população de vampiros tinha se dispersado, e aqueles seres arrogantes, flácidos e irresponsáveis estavam por toda parte.

Xcor parou nas escadas do corredor e olhou em torno de suas acomodações permanentes. A casa que Throe havia providenciado era de fato apropriada. Feita de pedra, era velha e afastada, dois itens importantes que eram muito apropriados para seus propósitos. Em algum momento da história, aquela casa deve ter sido palco de muitos eventos, mas esse tempo havia passado assim como sua distinção. Agora, era a sombra do que havia sido e tudo de que ele precisava: paredes fortes, telhado resistente e com espaço mais do que suficiente para abrigar seus homens.

Não que alguém fosse frequentar aquelas salas do andar de cima ou os sete quartos do segundo andar; apesar das pesadas cortinas puxadas sobre as janelas, os incontáveis painéis de vidro precisavam ser revestidos de tijolos para que as coisas ficassem realmente seguras durante o dia.

Na verdade, todos ficaram no subsolo, na adega.

Era como nos bons e velhos tempos, ele pensou, pois só nos tempos modernos que a concepção de acomodações separadas tinha criado raiz. Antes, comiam juntos, transavam juntos e repousavam como um grupo, como soldados deveriam fazer.

Talvez os obrigasse a permanecer debaixo da terra. Juntos.

Ainda assim, não estava lá com eles, nem tinha estado. Impaciente e agitado, pronto para prosseguir, mas sem vítimas no momento, passava de quarto em quarto, todos vazios, espalhando a poeira com seu desejo de conquistar aquele novo mundo.

– Eu os encontrei. Todos eles.

Xcor parou. Deu mais um gole em sua caneca. Virou-se.

– Como você é inteligente.

Throe entrou no que antes havia sido um grande salão, mas que agora não era nada além de um lugar frio e vazio. O lutador ainda estava vestido com roupas de couro, só que, de alguma maneira, tinha uma aparência elegante. Não era surpresa: ao contrário dos outros, seu pedigree era tão perfeito quanto seus cabelos dourados e seus olhos azul cor de céu. Assim também era seu corpo e seu semblante: sem defeitos visíveis por dentro ou por fora.

No entanto, era um dos bastardos.

Quando o macho limpou a garganta, Xcor sorriu. Mesmo após todos esses anos juntos, Throe ainda não se sentia à vontade em sua presença. Que curioso.

– E... – Xcor solicitou.

– Há remanescentes de duas famílias em Caldwell no presente momento. O que resta das outras quatro principais linhagens está espalhado por onde chamam de Nova Inglaterra. Assim, talvez alguns estejam de oitocentos a mil quilômetros de distância.

– De quantas você é parente?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Cinco.

– Cinco? Isso preencheria sua agenda social rapidamente... planeja fazer algumas visitas?

– Sabe que não posso.

– Oh... é verdade. – Xcor terminou seu café. – Esqueci-me que foi denunciado. Acho que terá que permanecer aqui conosco, meros pagãos.

– Sim. Terei.

– Hummm – Xcor levou um momento para desfrutar do silêncio constrangedor. Só que, em seguida, o outro macho estragou tudo.

– Não temos motivos para continuar – Throe disse. – Não somos da glymera.

As presas de Xcor foram expostas quando deu um sorriso.

– Preocupa-se demais com as regras, meu amigo.

– Não pode convocar uma reunião com o Conselho. Não tem apoio.

– É verdade; no entanto, outra história pode lhes ser apresentada com um motivo para a convocação. Não foi você mesmo quem disse que alguns boatos sobre o Rei começaram a circular após as invasões?

– Sim. Mas tenho plena consciência do que procura e o objetivo final, na melhor das hipóteses, é uma traição... e suicídio, na pior.

– Que mentalidade estreita, Throe. Mesmo com toda sua educação, tem uma grande falta de visão.

– Não pode depor o Rei... e com certeza não está pensando em tentar matá-lo.

– Matá-lo? – Xcor ergueu uma sobrancelha. – Não quero um caixão como cama para ele. Não mesmo. Desejo-lhe uma longa vida... assim, poderá se revirar na lama de seu fracasso.

Throe balançou a cabeça.

– Não sei por que o odeia tanto.

– Por favor – Xcor revirou os olhos. – Não tenho nada pessoal contra ele. É seu status que cobiço, pura e simplesmente. Vê-lo vivo enquanto sento-me no trono é apenas um tempero adicional a minha refeição.

– Às vezes... temo que esteja louco.

Xcor estreitou os olhos.

– Garanto-lhe... Não estou nem furioso, nem louco. E pense com cuidado quando for expor comentários como esse.

Era plenamente capaz de matar seu velho amigo. Hoje. Naquela noite. Amanhã. Seu pai o ensinou que soldados não eram diferentes de nenhuma outra arma... e quando havia um risco de falharem? Tinham de desaparecer.

– Perdoe-me – Throe fez uma pequena reverência. – Minha dívida com você ainda permanece, assim como minha lealdade.

Que coisa triste e patética. Apesar de ser verdade o fato de Xcor ter assassinado o macho que havia contaminado a irmã de Throe, aquilo havia sido um investimento muito rentável em termos de tempo e força em campo, pois isso amarrou aquele lutador com firmeza e fidelidade junto a ele. Para sempre.

Throe vendeu-se para Xcor para que o ato fosse realizado. Naquela época, o macho era covarde demais para cometer o assassinato com as próprias mãos e, assim, infiltrou-se nas sombras para procurar o que nunca teria convidado para entrar sequer pela porta de serviço de sua mansão. Ficou chocado quando o dinheiro oferecido foi recusado e já estava saindo quando Xcor fez sua exigência.

A rápida lembrança de como a irmã dele havia sido encontrada foi o suficiente para que ele se comprometesse.

E o treinamento subsequente tinha feito maravilhas. Sob a tutela de Xcor, Throe fortaleceu-se ao longo do tempo, como aço forjado no fogo. Agora era um assassino, e útil para fazer algo diferente além de brincar de estátua social em jantares e bailes.

Era uma vergonha que sua linhagem não visse a transformação como uma melhoria... apesar do fato de seu pai ter sido um Irmão, pelo amor de Deus. A família deveria ficar grata. Infelizmente, negaram o pobre filho da mãe.

Isso fez com que Xcor lamentasse muito todas as vezes que pensava sobre a situação.

– Vai escrever para ele – Xcor sorriu outra vez, as presas formigando, sentia o mesmo no pênis. – Vai escrever para todos eles e vai anunciar nossa chegada. Vai apontar suas perdas, lembrando-lhes das crianças e mulheres que foram mortas naquela noite de verão. Vai lembrar-lhes todas as reuniões que não tiveram com seu Rei. Expressará a devida indignação por conta disso e fará isso de uma maneira que irão entender... pois é um deles. E, então, vamos aguardar... até sermos convocados.

Throe curvou-se.

– Sim, meu lídher.

– Enquanto isso, vamos caçar redutores e manter um registro de nossa matança. De modo que, quando perguntarem sobre nossa saúde e bem-estar, o que a aristocracia certamente fará, poderemos informar que apesar de terem muitos cavalos de raça nos estábulos... um bando de lobos é o que precisam para guardar suas portas.

A glymera era inútil de muitas maneiras, mas tão previsível quanto um relógio de bolso: a autopreservação era o que movia suas mãos, grandes e pequenas, a fazer o que fosse preciso, sempre... e várias vezes.

– Melhor descansar – Xcor disse lentamente. – Ou já vai iniciar a caça de um de seus desviados? – Quando não houve resposta, franziu a testa para a resposta implícita no silêncio. – Você tem um propósito que vai além de passar horas lutando. Os mortos humanos são uma preocupação muito menos importante do que a vida de nossos inimigos.

– Sim.

Leia-se: Não.

– Não tarde buscando outras coisas, prejudicando assim o alcance de nossos objetivos.

– Já o deixei alguma vez?

– Ainda há tempo, velho amigo. – Xcor olhou para o macho por baixo das pálpebras semicerradas. – Há sempre tempo para que a natureza de seu coração mole o coloque em apuros, e antes que discorde, posso lembrá-lo das circunstâncias em que se encontra nos últimos dois séculos.

Throe enrijeceu.

– Não. Não precisa. Tenho plena consciência de onde estou.

– Bom – Xcor assentiu. – Isso é muito importante nesta vida. Vá.

Throe inclinou-se em reverência.

– Desejo-lhe um bom descanso, meu lídher.

Xcor assistiu à partida do macho e, quando se viu sozinho outra vez, o calor intenso em seu corpo o irritou. A necessidade sexual era uma perda de tempo tão grande, pois nem assassinava nem alimentava, mas em intervalos regulares, seu pênis precisava de alguma coisa diferente de uma sessão de luta.

Quando a escuridão preenchesse a noite, Throe teria de providenciar outra coisa para o grupo de bastardos e, dessa vez, Xcor também seria forçado a utilizar-se disso.

Além do mais, iriam precisar de sangue. De preferência que não fosse humano, mas se tivessem de se contentar com isso por enquanto...

Bem, teriam apenas que se livrar dos corpos, não é mesmo?


CAPÍTULO 34

No centro de treinamento, Manny acordou na cama do hospital, não na cadeira. Depois de uma confusão momentânea, as lembranças nebulosas voltaram todas de uma vez: depois que o mordomo tinha aparecido com a comida, Manny comeu no escritório, como Jane disse para que fizesse... e lá, e não em seu carro, estavam seu celular, carteira, chaves e maleta. A pequena coleção de acessórios do Dr. Mannelo estava bem diante dele, sobre uma cadeira, e a ausência de segurança o surpreendeu, considerando como tudo estava trancado.

Só que quando tentou ligar o celular, percebeu que seu chip havia desaparecido.

Estava disposto a apostar que precisaria de uma bomba atômica para entrar ou sair daquela garagem sem a permissão deles. Então, suas chaves eram inúteis.

Maleta? Não havia nada dentro dela além de uma barra de cereais e alguns papéis que não tinham nada a ver com as instalações subterrâneas, com os vampiros, ou com Payne.

Achava que toda essa ausência de informação explicava o fato de ter apagado.

Estava prestes a desistir de encontrar alguma explicação para tudo aquilo quando pensou em checar as mensagens de voz, mas decidiu usar o telefone do escritório que estava perto de seu cotovelo. Pegando o aparelho, discou 9... o ruído do tom de discagem foi um choque total. Porém, quais eram as chances de alguém ser deixado ali sozinho sem vigilância? Quase nenhuma.

Exceto em um dia, quando noventa por cento dos moradores tinham sido feridos em uma luta e os outros dez por cento preocupados com seus irmãos.

Em pouco tempo, Manny executou três sistemas de mensagem de voz: casa, celular e escritório. A primeira tinha duas mensagens de sua mãe. Nada específico... estava precisando de reparos na casa e tinha acertado o tão complicado nono buraco no golfe. Havia uma mensagem do veterinário no celular, que ele ouviu duas vezes. E do escritório... as mensagens foram tão desanimadoras quanto as notícias de Glory: havia sete mensagens de colegas de todo o país com um tom devastadoramente normal. Queriam que tirasse uma licença e fizesse consultas ou escrevesse artigos para conferências ou abrisse um espaço no seu programa de residência para encaixar os filhos ou algum amigo da família.

A triste verdade era que aqueles pedidos ficaram para trás, onde sua vida realmente estava; como bancaria o maioral para os pobres bastardos que ligavam para ele agora? E se aqueles vampiros dessem um jeito no cérebro dele outra vez, não fazia ideia se restaria alguma coisa para pensar além de contar até dez, quanto mais se conseguiria operar um paciente ou administrar o departamento cirúrgico. Não tinha como saber em quais condições ficaria quando saísse daquela situação...

O som de uma descarga fez com que se levantasse rapidamente.

Quando a porta do banheiro se abriu, viu a silhueta de Payne ser contornada pela luz atrás dela, seu corpo maravilhoso estava envolto para nada mais do que um lençol transparente.

Santo... Deus...

Sua ereção matinal começou a pulsar e aquilo fez com que desejasse ter dormido na maldita cadeira. O problema era que quando finalmente voltou para cuidar dela, não teve forças para dizer não quando pediu para se juntar a ela.

– Você acordou – disse ela com voz rouca.

– E você está em pé. – Ele sorriu um pouco. – Como estão as pernas?

– Fracas. Mas funcionam. – Olhou por cima do ombro. – Gostaria de tomar um banho...

Droga, do jeito que a coisa soou, ela estava procurando ajuda... e a mente dele pensou logo nos dois separados apenas por uma camada de sabão.

– Acho que tem um banco lá dentro para se sentar. – Ele saiu pelo outro lado da cama para que pudesse conter sua ereção na cintura de seu uniforme.

Aproximando-se dela, tentou lhe dar o máximo de espaço possível ao olhar a banheira.

– Sim, bem aqui.

Estendeu a mão e ligou a água, então, ajeitou o banco.

– Vou arrumar isso...

Ao olhar por cima do ombro, congelou. Payne tinha desfeito os laços de sua bata de hospital e lenta e inexoravelmente... deixou cair... de seus ombros.

Quando a ducha atingiu seu braço e começou a ensopar seu uniforme, engoliu em seco... e teve vontade de gritar quando ela ergueu as mãos e protegeu os seios.

Ela ficou assim, como se estivesse esperando para ver o que ele ia dizer, e quando seus olhos se encontraram, seu pênis ficou tão enrijecido que foi um milagre não ter rasgado suas calças.

– Pode soltar, bambina – ouviu-se dizendo.

E ela soltou.

Maldição, nunca pensou antes em adorar a lei da gravidade, mas poderia fazer isso agora: gostaria de se prostrar diante do altar de Newton e chorar com gratidão pela bênção que fazia todas as coisas caírem no chão.

– Olhe para você – ele rosnou, observando os mamilos rosados ficarem excitados.

Sem seguir qualquer estímulo ou pensamento consciente, estendeu o braço molhado e a agarrou, puxando-a contra sua boca, segurando-a com força enquanto sugava seu mamilo em sua boca. Mas não precisava se preocupar em tê-la ofendido. As mãos de Payne mergulharam nos cabelos dele e o aninhou contra ela, curvando as costas até que ele a envolveu por completo e ela mostrou-se toda nua e pronta para ser devorada.

Girando-a, desviou-a do foco de luz em que se encontrava e levou os dois para debaixo da ducha quente do chuveiro. Com o corpo dela iluminado, ele abaixou-se, capturando com a língua a água quente que jorrava entre os seios e escorria pelo abdômen de Payne.

Quando ela estendeu a mão para se equilibrar, Manny a segurou, guiando-a para que ficasse segura sentada no banco. Arqueando-se, envolveu a nuca dela com a palma da mão e beijou-a profundamente enquanto pegava o sabonete e preparava-se para assegurar que ela ficasse muito, muito limpa. Quando a língua dela encontrou a dele, estava tão perdido na sensação dos mamilos roçando contra seu peito e seus lábios contra os dele que sequer notou ou se importou que o cabelo estivesse emboçado em seu crânio de tanta água ou que sua roupa cirúrgica estivesse enrolada nele como um filme plástico, colado ao corpo.

– Curandeiro... – ela arfou quando ele começou a ensaboar sua pele.

A parte superior de seu corpo ficava cada vez mais escorregadia e quente enquanto as mãos dele deslizavam por toda parte, do pescoço à base da coluna. E, então, começou a percorrer as pernas; em seguida, lavou os delicados pés e tornozelos, voltando a subir, passando pelas panturrilhas e atrás dos joelhos.

A água os envolvia por toda parte, caindo entre eles, enxaguando-a assim que ele a ensaboava, o som do jato caindo sobre o ladrilho abafado apenas pelos gemidos de Payne.

Cara, aquilo só ia ficar mais alto.

Chupando seu pescoço, ele separou os joelhos dela cada vez mais, para colocar-se entre eles.

– Eu disse – ele a mordeu de leve – que ia gostar da hora do banho.

Como resposta, as mãos dela lançaram-se sobre os ombros dele e as unhas foram cravadas na pele fazendo com que imaginasse se não era hora de pensar em estatísticas de beisebol, códigos postais... preço de automóveis.

Eleanor Roosevelt.

– Estava certo, curandeiro – disse ela, ofegante. – Adoro isso, mas você está vestido demais.

Manny fechou os olhos ao estremecer, e, então, conseguiu assumir controle suficiente sobre si para dizer.

– Não... estou bem assim. Apenas incline-se para trás e deixe-me cuidar disso.

Antes que ela pudesse responder, selou a boca sobre a dela e empurrou-a contra a parede com seu peito. Para distanciá-la do assunto sobre ele ficar nu, deslizou as duas mãos por dentro de suas coxas e correu a ponta dos dedos sobre seu sexo.

Quando sentiu o quanto estava molhada – e molhada de uma maneira que não tinha nada a ver com a água e tudo a ver com o que ele desejava envolver com a língua – afastou-se um pouco e olhou para baixo.

Que... inferno... estava tão pronta para ele, e, cara, a aparência dela... estava toda curvada para trás, com a água fazendo seus seios brilharem, lábios entreabertos e um pouco vermelhos por tê-la beijado e as pernas bem abertas.

– Vai me possuir agora? – ela gemeu com os olhos cintilando e as presas se alongando.

– Sim...

Manny agarrou os joelhos dela e desceu, colocando a boca onde seus olhos já estavam fixos. Quando ela gritou, começou a agir com mais firmeza e mais rápido, engolindo o sexo dela, conduzindo-a com força, sem pedir desculpas por desejá-la tanto. Quando ela explodiu, sua língua entrou e sentiu tudo, os impulsos, a maneira como ela se movimentava contra seu queixo e nariz, o aperto rígido das mãos dela sobre sua cabeça.

Não havia razão para parar por aí.

Com ela, tinha uma energia sem fim e sabia que, desde que suas roupas permanecessem sobre sua pele, poderia continuar assim com ela... para sempre.

Vishous acordou em uma cama que não era a sua, mas não precisou de mais que um nanossegundo para saber onde estava: na clínica. Em uma das salas de recuperação.

Depois de esfregar bem os olhos, observou ao redor. A luz do banheiro estava acesa e a porta, aberta, então, havia espaço suficiente para ver... e a primeira coisa que se destacava era a mochila no chão do outro lado do local.

Uma das suas mochilas. Especificamente, a que havia dado para Jane; no entanto, ela não estava ali – pelo menos não naquele quarto.

Quando se sentou, sentiu como se tivesse sofrido um acidente de carro; as dores se espalhavam por todo o corpo como se fosse uma antena e todos os sinais de rádio do mundo estivessem sendo emitidos para seu sistema nervoso. Com um gemido, mudou de posição de maneira que suas pernas penderam para fora da cama... e, então, teve de respirar um pouco.

Alguns minutos depois, foi o caso de impulsionar e rezar: impulsionou seu peso para fora do colchão e esperou que...

Bingo. As pernas aguentaram.

O lado que Manello havia tratado não estava exatamente pronto para correr uma maratona, mas quando V. arrancou os curativos e fez algumas flexões, teve de ficar impressionado. As cicatrizes da cirurgia no joelho já estavam quase completamente curadas, não havia nada exceto uma linha de um tom rosa-claro deixada para trás. Mas, mais importante, o que havia sob isso era totalmente mágico: a articulação estava fantástica. Mesmo com a rigidez que ainda persistia, poderia dizer que estava funcionando perfeitamente bem.

O quadril também parecia novo.

Aquele maldito cirurgião humano era um profissional milagroso.

Seguindo o caminho até o banheiro, seus olhos passaram pela mochila. As memórias de sua viagem à base de morfina voltaram e ficaram muito mais claras do que a verdadeira experiência tinha sido. Deus, Jane era uma médica espetacular. Na confusão das lutas noite após noite, tinha esquecido de que não observava isso há algum tempo. Ela sempre ia mais além por seus pacientes. Sempre. E não tratava os Irmãos tão bem por serem ligados a ele; não tinha nada a ver com ele... aquelas pessoas lhe pertenciam naqueles momentos. Ela trataria exatamente da mesma maneira civis, membros da glymera... até mesmo humanos.

Dentro do banheiro, entrou no chuveiro e, cara, o box parecia pequeno demais. Ao pensar sobre Jane e sua irmã, teve a terrível sensação de ter sido simplista demais com o que havia acontecido há duas noites. Não tinha parado para considerar que poderia haver outro tipo de relacionamento entre as duas fêmeas. Pensou apenas nele e em sua irmã... e nada sobre o relacionamento médico/paciente.

Risque essa parte: pensou apenas nele. Não considerou nem um pouco Payne e o que ela desejava para sua vida. Ou o que Jane havia feito ou não para sua paciente.

Em pé com a cabeça baixa e a água batendo na nuca, olhou para o ralo entre seus pés.

Não era bom em pedir desculpas, ou conversar; mas também não era um covarde.

Dez minutos depois, vestiu uma bata hospitalar e saiu mancando pelo corredor em direção ao escritório. Se sua Jane estivesse ali, achava que estaria dormindo debruçada sobre a mesa, considerando a quantidade de camas que estavam ocupadas pelos Irmãos nas salas de recuperação.

Ainda não fazia ideia do que lhe dizer sobre as roupas de couro, mas poderia, ao menos, tentar fazer algo sobre Payne.

Só que o escritório estava vazio.

Sentando-se em frente ao computador, levou menos de quinze segundos para encontrar sua shellan. Quando ele instalou o sistema de segurança da mansão, do Buraco e de suas instalações, colocou câmeras em cada quarto que havia ali... exceto a suíte da Primeira Família. Naturalmente, o equipamento poderia ser desconectado facilmente retirando-o da tomada e, como era de se esperar, os quartos de seus Irmãos exibiam uma tela preta no monitor do computador.

O que era bom. Não havia necessidade de assistir as relações sexuais deles.

Contudo, o quarto de hóspedes decorado de azul da mansão ainda estava sendo monitorado e, sob a luz do abajur dos criados-mudos, viu a figura encolhida de sua companheira. Jane tinha morrido para o mundo, mas estava muito claro que não descansava em paz: suas sobrancelhas estavam cerradas como se seu cérebro tentasse desesperadamente mantê-la dormindo como estava. Ou talvez estivesse sonhando com coisas que a assustavam em vez de algo prazeroso.

Seu primeiro instinto foi ir até lá, mas quanto mais pensava sobre isso, mais percebia que a coisa mais gentil que poderia fazer era permitir que ela continuasse deitada onde estava e deixá-la descansar. Ela e Manello tinham trabalhado por muitas horas seguidas, englobando toda a manhã. Além disso, ficaria em casa naquela noite: Wrath havia dado folga a todos em função de todos aqueles ferimentos.

Cristo... aquela maldita Sociedade Redutora. Não tinham visto tantos assassinos em anos... e não estava pensando naquela dúzia que tinha aparecido na noite passada. Ao longo das últimas duas semanas, estava disposto a apostar que Ômega havia transformado uma centena daquelas coisas malditas... e tinha a impressão de que eram como baratas: para cada um que via, havia outros dez escondidos.

O bom era que os Irmãos eram letais. E Butch curou-se com relativa facilidade após cumprir suas tarefas como Dhestroyer... inferno, Vishous sequer tinha sido capaz de cuidar do tira depois da operação. Não que tivesse se lembrado de fazer isso, mas mesmo assim.

Sufocado por tudo aquilo, apalpou os bolsos procurando seus cigarros artesanais... e percebeu que estava usando uma bata hospitalar: nenhuma possibilidade de fumar.

Levantou-se da cadeira. Voltou ao corredor. E seguiu para onde estava.

A porta do quarto de Payne estava fechada e não hesitou em abri-la. Havia grandes chances de que o cirurgião humano estivesse lá com ela, mas não tinha como o cara ficar para fora. Tinha salvado a pele dele.

Quando Vishous entrou, deveria ter prestado mais atenção no cheiro que havia no ar. E talvez devesse fazer o mesmo para perceber que o chuveiro estava ligado. Mas estava chocado demais ao ver que a cama estava vazia... e que havia suportes e muletas em um canto do quarto.

Se algum paciente estivesse paralisado... Precisaria de cadeiras de rodas, não de um equipamento que auxiliava a mobilidade. Então... será que ela estava andando?

– Payne?

Aumentou o tom de voz:

– Payne?

A resposta que teve de volta foi um gemido. Um gemido profundo e satisfeito...

O que não era o tipo de coisa que se evocava nem mesmo no melhor banho possível.

V. atravessou o quarto e quase quebrou a porta quando invadiu o banheiro quente e úmido. Mas que inferno, a cena diante dele era muito pior do que pensava.

Entretanto, a ironia era que o que estavam... Oh, Deus, não conseguia sequer expressar em palavras o que estavam fazendo... Mas aquilo salvava a vida do cirurgião: V. ficou tão horrorizado que teve de desviar o olhar e a rotina de avestruz o impediu de rasgar um buraco do tamanho de um cano de esgoto no pescoço de Manello.

Quando Vishous tropeçou ao sair, ouviu uma variedade de ruídos confusos no banheiro. E, então, percebeu que era o caso de debandar o mais rápido possível: bateu na cama, levantou-se outra vez, derrubou uma cadeira, apoiou-a na parede.

Nesse ritmo, encontraria a saída em uma semana. Ou mais.

– Vishous...

Quando Payne aproximou-se dele, V. manteve os olhos no chão e acabou tendo uma visão dos pés descalços de sua irmã gêmea. Então, ela havia recuperado a sensação nas pernas.

Uhúúúú!

– Por favor, poupe-me de uma explicação – exclamou antes de olhar para Manello. O filho da mãe estava ensopado, cabelos grudados na cabeça, uniforme agarrado ao corpo. – E não se afeiçoe a ela. Está aqui apenas até o momento de não precisar mais de você... e se considerarmos como ela está bem? Não ficará por muito mais tempo...

– Como ousa... eu escolho com quem me acasalar.

Ele balançou a cabeça para sua irmã.

– Então, escolha outra pessoa que não seja um humano que tem a metade de seu tamanho e um quarto de sua força. A vida aqui não é como nas nuvens, querida... e a Sociedade Redutora marcou um alvo em seu peito assim como no resto de nós. Ele é fraco, arrisca nossa segurança e precisa voltar para onde pertence... e permanecer lá.

Bem, parece que aquilo deixou sua irmã furiosa: seus olhos ficaram muito centrados, as sobrancelhas negras caíram sobre os olhos, estreitando-se.

– Saia. Daqui.

– Pergunte a ele o que fez durante toda a manhã – V. exigiu. – Espere... eu lhe digo. Ele costurou a mim e à Irmandade, pois estávamos tentando defender nossas fêmeas e nossa raça. Esse humano? Na minha opinião, ele é um redutor em potencial... nada mais, nada menos.

– Como ousa! Não sabe nada sobre ele.

V. inclinou-se para ela.

– E nem você. Esse é o ponto.

Antes que a coisa saísse de controle, virou-se para sair, apenas para visualizar uma cena deles no espelho da parede. Que bela imagem formavam: sua irmã, nua e sem qualquer timidez; o humano, ensopado e sombrio; e ele, com um olhar selvagem e pronto para matar alguém.

A raiva cresceu tão rapidamente e chegou a um ponto tão alto que se liberou antes mesmo que ele pudesse reconhecer a emoção.

Vishous deu dois passos a frente, colocou a cabeça para trás e bateu o rosto no vidro, quebrando o maldito reflexo e indo embora.

Quando sua irmã berrou e o cirurgião gritou, deixou-os à própria sorte e saiu.

No corredor, sabia exatamente para onde estava indo.

No túnel, bastante ciente do que estava prestes a fazer.

Enquanto caminhava, o sangue escorria pelo rosto até o queixo, as lágrimas vermelhas caíam pelo peito e abdômen.

Não sentia dor alguma.

Mas, com um pouco de sorte, sentiria. Muito em breve.

 


                                        CONTINUA