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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE LIBERTADA
AMANTE LIBERTADA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 13

Qhuinn entrou na mansão pela sala principal, o que foi um erro.

Deveria ter entrado na mansão pela garagem, mas a verdade é que aqueles caixões empilhados o assustavam. Sempre achava que as tampas seriam abertas e alguma coisa ao estilo Noite dos Mortos Vivos sairia dali para matá-lo.

Ainda assim, precisava muito superar essa covardia.

Graças ao relacionamento que tinha com os gays da casa, assim que abriu caminho pelo saguão de entrada, teve a visão clara de Blaylock e Saxton descendo a escadaria; os dois pareciam modelos ao se dirigirem à Última Refeição. Usavam calças, mas não eram jeans; blusas, não blusões, e sapatos, não botas de combate. Estavam limpos, bem barbeados, perfumados e penteados, mas não eram nem um pouco afeminados.

Na verdade, isso facilitaria muito as coisas. Pelo amor de Deus, desejava que um dos filhos da mãe se tornasse drag queen, enchesse-se de plumas e fizesse as unhas, mas não: continuavam a parecer dois machos muito atraentes que sabiam como gastar o dinheiro em lojas de grife... enquanto ele, por outro lado, serpenteava em seus couros e camisetas regatas... e, naquela noite em particular, ostentava cabelos desgrenhados por causa do sexo violento e perfume, se é que poderia chamar assim, da mesma linha de produtos de cuidados de uma vagabunda.

Por outro lado, poderia apostar que o que os separava do estado em que ele se encontrava era apenas um banho quente, cheio de sabão e uma visita ao armário: lamberia dinheiro se eles não haviam estado se pegando a noite toda. Pareciam muito satisfeitos e, ao mesmo tempo, famintos ao caminharem para o local onde faziam as refeições.

Quando atingiram o mosaico onde havia a representação de uma macieira em plena floração, os olhos azuis de Blay movimentaram-se e encararam Qhuinn dos pés à cabeça. O rosto do rapaz não demonstrou qualquer reação. Não mais.

A velha chama de dor não estava mais exposta... e isso não se devia ao fato de que o entretenimento que Qhuinn tinha acabado de ter era totalmente óbvio.

Saxton disse alguma coisa e Blay desviou o olhar... e lá estava. Um rubor naquele rosto adorável ao encontrar aqueles olhos cinza.

Não posso fazer isso, Qhuinn pensou. Não esta noite.

Evitando a cena na sala de jantar, encaminhou-se à porta abaixo das escadas e passou pela coisa. No instante em que se fechou, a conversa das pessoas foi interrompida e a escuridão silenciosa correu para cumprimentá-lo. Estava mais disposto a isso.

Desceu as escadas rasas, passou por outra porta codificada, entrou no túnel subterrâneo que ligava a casa principal ao centro de treinamento. Quando ficou sozinho, correu a todo vapor. Faltando pouco para suas pernas pararem de funcionar, teve de se inclinar contra a parede lisa. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos... e desejou colocar uma arma no meio dos olhos.

Ficou com o ruivo no Iron Mask.

Conseguiu deixar o hétero bem excitado.

E aconteceu exatamente do jeito que tinha previsto, começando com os dois conversando no bar e paquerando as garotas. Pouco depois, uma mulher de seios enormes aproximou-se deles com botas de plataforma pretas. Conversaram com ela, beberam com ela... com a amiga dela. Uma hora depois? Os quatro estavam em um banheiro, bem espremidos.

Essa tinha sido a parte dois do plano. As mãos atuavam em espaços reduzidos e quando havia muitas delas se movendo e arranhando, não se podia ter certeza daquilo que tocava. Ou que lhe acariciava. Ou sentia.

Em todo o tempo que esteve com as garotas, Qhuinn ficou pensando em uma estratégia para se livrar das fêmeas e isso levou muuuito mais tempo do que desejava. Depois do sexo, as garotas queriam algo mais... trocar telefones, dar uma volta, perguntaram se não queriam sair para comer alguma coisa.

Sim, claro. Não precisava de dígito algum, pois jamais ligaria para elas, não ia bater perna mesmo com pessoas que gostava, e o tipo de comida que poderia oferecer a elas não tinha nada a ver com um jantar gorduroso.

Após preencher os requisitos da vadia dentro dele, foi forçado a fazer uma lavagem cerebral nelas... o que o levou a um raro momento de compaixão pelos machos humanos que não podiam se dar a esse luxo.

E, então, ele e sua presa estavam sozinhos, o macho humano recostou-se contra a pia para se recuperar. Qhuinn fingiu estar fazendo isso ao encostar-se contra a porta. Eventualmente, seus olhos se encontraram. De maneira casual para o macho humano, de um jeito muito sério da parte de Qhuinn.

– O que foi? – o homem perguntou. Mas já sabia... pois as sobrancelhas franziram com força.

Qhuinn estendeu as mãos para trás e girou a chave, assim, não seriam perturbados.

– Ainda estou com fome.

De repente, o ruivo encarou a porta como se quisesse sair... mas seu pênis contava uma história totalmente diferente. Por trás do zíper daquele jeans... estava excitado.

– Ninguém nunca vai saber – Qhuinn disse de maneira sombria. Inferno, poderia fazer aquilo sem que o ruivo se lembrasse... contudo, se o cara não soubesse de nada sobre a questão vampira, não havia razão para remexer seu crânio e limpar as coisas lá dentro.

– Pensei que tinha dito que não era gay... – o tom foi um tanto melancólico, como se o cara não estivesse totalmente confortável com aquilo que seu corpo queria.

Qhuinn diminuiu a distância entre eles, colocando seu peito contra o do ruivo. Então, agarrou a nuca do cara e puxou-o contra sua boca. O beijo produziu o efeito planejado: tirou todo raciocínio lógico do banheiro e não deixou nada além das sensações para trás.

A coisa toda aconteceu a partir daí. Duas vezes.

Quando acabou, o cara não ofereceu seu número de telefone. Foi um espetáculo, mas era evidente que tinha sido algo experimental, uma primeira e única vez. Algo que não tinha problema algum para Qhuinn. Partiram sem dizer uma palavra, cada um seguindo sua vida, com o ruivo voltando para o bar... e Qhuinn saindo para passear nas ruas de Caldwell sozinho.

Apenas a chegada iminente do amanhecer o fez retornar.

– Que inferno... – disse a si mesmo.

A noite toda foi uma lição que o incomodou como um veneno de urtiga... Sim, havia momentos na vida em que um substituto funcionava: em uma reunião de conselho, por exemplo, quando enviava alguém para representar seu voto. Ou quando precisava de alguma coisa do mercado e dava sua lista a um doggen. Ou quando prometia jogar bilhar, mas ficava bêbado demais para segurar o taco e arrumava alguém para acertar suas bolas.

Infelizmente, a teoria do substituto não funcionava tão bem quando se queria ser o único a tirar a virgindade de alguém e a melhor ideia que tinha era ir a um clube, encontrar alguém com traços físicos semelhantes como... oh, digamos... mesma cor de cabelo... e transar com ele ao invés da pessoa desejada.

Em tal caso de substituição, você acabava se sentido vazio e não por que tinha gozado muito e estivesse flutuando em uma nuvem de pós-transa dizendo ahhh, sim.

Parado naquele túnel, sozinho, Qhuinn estava totalmente vazio. Uma cidade fantasma por dentro.

Pena que sua libido estava cheia de ideias brilhantes. Na silenciosa solidão, começou a imaginar como teria sido se fosse ele ao invés de seu primo a descer com Blay para o jantar. Se fosse ele quem estivesse dividindo não apenas uma cama, mas o quarto com o cara. Se conseguisse se levantar diante de todos e dizer: “Ei, esse é meu companheiro...”.

O bloqueio mental que se seguiu após essa breve canção foi tão completo que temeu ter levado um soco na cabeça.

E esse era o problema, não era?

Ao esfregar seus olhos díspares, pensou no quanto sua família o odiava: foi criado para acreditar que o defeito genético de ter uma íris azul e outra verde significava que era uma maldita aberração e o trataram como uma vergonha para a linhagem.

Bem, na verdade, foi pior que isso: acabaram chutando Qhuinn para fora de casa e enviaram um guarda de honra para ensinar-lhe uma lição. E foi assim que acabou tornando-se um viajante.

Para pensar que nunca saberiam sobre as outras “anomalias” que nutria.

Como desejar estar com seu melhor amigo.

Cristo, ele não precisava de um espelho para ver o covarde e a fraude que era... mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Estava trancado em uma jaula sem que pudesse encontrar a chave, os anos de escárnio de sua família golpeavam-no e davam-lhe cólicas: a verdade por trás de seu lado selvagem é que era um maricas total. Blay, por outro lado, declarou quem era e encontrou outra pessoa.

Maldição, aquilo doía...

Com um palavrão, interrompeu o monólogo pré-menstrual e obrigou-se a continuar andando. Recuperava-se a cada passo, dando um jeito em sua bagunça interna ao consertar e fortificar os canos que vazavam.

A vida era feita de mudanças. Blay tinha mudado. John tinha mudado.

E, aparentemente, ele era o próximo da lista, por que não poderia continuar assim.

Ao entrar no centro de treinamento pelos fundos do escritório, decidiu que se Blay conseguiu virar a página, então, ele também conseguiria. A vida era como as pessoas determinavam que fosse, independentemente de onde o destino as colocava, a lógica e o livre-arbítrio significavam que poderiam definir seu caminho da maneira que achassem melhor.

E não queria estar onde estava: nada de sexo anônimo. Nada de estupidez desesperada. Nada de arder em ciúmes e daquelas lamentações irritantes que não o levavam a lugar algum.

O vestiário estava vazio, já que não havia aulas de treinamento acontecendo, e ele se trocou, ficando nu antes de colocar a bermuda preta esportiva e um par de tênis da mesma cor. A sala de ginástica também funcionava como uma câmara de eco, o que era bom também.

Ligando o sistema de som, passou as músicas com o controle remoto. Quando a música “Clint Eastwood”, dos Gorillaz, tocou, subiu em uma esteira e ligou o aparelho. Odiava fazer exercícios... simplesmente desprezava a natureza roedora daquilo tudo. Era melhor transar e lutar, era o que sempre dizia.

No entanto, quando se estava preso dentro de casa por causa da madrugada e determinado a tentar dar uma chance ao celibato, correr para chegar a lugar algum parecia bem interessante para consumir as energias.

Calibrando a máquina, posicionou-se sobre ela e cantou junto com a música.

Concentrando-se no concreto pintado de branco ao longo do local, deu uma passada após a outra, de novo e de novo, e mais outra vez, até não haver nada em sua mente nem em seu corpo além de passos repetitivos, a batida do coração e o suor que se formava no peito nu, no estômago e nas costas.

Pela primeira vez na vida, não acionou um ritmo alucinante: a velocidade foi calibrada para que o ritmo obedecesse a uma rotatividade constante, o tipo de ritmo que poderia manter durante horas.

Quando se está tentando fugir de si mesmo, gravita-se para situações fortes e desagradáveis, para os extremos, para a imprudência, para que seja forçado a lutar e agarrar com as unhas os terrenos acidentados de sua autoinvenção.

Assim como Blay era quem mostrava ser, Qhuinn fazia o mesmo: apesar de desejar estar lá fora com o... macho... que amava, não poderia fazer isso.

Mas, por Deus, ia parar de fugir da covardia. Tinha de dominar a si mesmo – mesmo se acabasse se odiando com todas as forças. Talvez, se fizesse isso, pararia de tentar distrair-se com sexo e bebida e descobriria o que realmente queria.

Além de Blay, é claro.


CAPÍTULO 14

Sentando-se ao lado de Butch no Escalade, Vishous tinha machucados distribuídos por seus quase dois metros de altura e seus mais de cem quilos.

Enquanto corriam a toda velocidade de volta ao complexo da Irmandade, cada centímetro latejava, a dor formava uma névoa que acalmava o grito dentro dele.

Logo, tinha conseguido alguma coisa de que precisava.

O problema era que o alívio já estava começando a desaparecer e o deixava furioso com o Bom Samaritano atrás do volante. Não que o tira parecesse se importar; ele discava aquele celular dele e desligava, discava de novo e desligava outra vez, como se os dedos em sua mão direita tivessem algum tique nervoso.

Provavelmente estava ligando para Jane e pensando melhor sobre isso. Ainda bem que...

– Sim, gostaria de comunicar um corpo – ouviu o tira dizer. – Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

Enquanto Butch continuava a falar assim com a atendente, V. movimentou o traseiro no banco e sentiu as costelas quebradas em seu lado direito uivarem. Nada mal; se precisasse de outra surra para acalmá-lo, poderia fazer algumas flexões e a agonia voltaria com força total outra vez...

Butch jogou o celular no painel. Praguejou. Praguejou novamente.

Então, decidiu dividir os problemas:

– Até onde ia deixar aquilo chegar, V.? Até que o esfaqueassem? Deixassem você caído para queimar ao sol? O que seria ir longe o suficiente?

V. falou com os lábios inchados:

– Não muito adiante, é verdade.

– Adiante? – Butch balançou a cabeça, seus olhos estavam muito violentos. – Como é que é?

– Não finja... não sabe como é isso. Já o vi em uma bebedeira... Já o vi... – ele tossiu. – Já o vi completamente bêbado com um copo nas duas mãos. Então, não me venha com essa de que é “mais inocente que eu” pra cima de mim.

Butch voltou a se concentrar na estrada.

– Você é um filho da mãe miserável.

– Que seja.

Sim, a conversa pararia por aí.

No momento em que Butch estacionou em frente à mansão, os dois estavam retraindo-se e piscando como se estivessem sendo golpeados por um bastão: o sol ainda estava oculto no lado mais distante do horizonte, mas era o suficiente para espalhar um rubor no céu que estava apenas a alguns centímetros de distância de dizimar um vampiro.

Não cruzaram a entrada principal; sem chance. A Última Refeição estava preste a começar e, considerando o humor daqueles dois, não havia razão para alimentar a fábrica de fofocas.

Sem dizer nada, V. entrou no Buraco e fez o caminho mais curto até seu quarto. Não veria Jane ou sua irmã daquele jeito, não mesmo. Inferno, se considerasse as dores no rosto, não tinha como vê-las sem antes tomar um banho.

No banheiro, ligou a água e desarmou-se no escuro – isso envolveu apenas tirar sua adaga do coldre em volta da cintura e colocá-la sobre o balcão. Suas roupas estavam imundas, cobertas de sangue, cera e outras porcarias, e deixou-as cair no chão, sem saber ao certo o que faria com elas.

Então, colocou-se debaixo da ducha antes de ficar quente. Quando a água quente atingiu seu rosto e peitoral, silvou; o impacto desceu até seu pênis e o enrijeceu – não que ele tivesse qualquer interesse em fazer alguma coisa com a ereção. Apenas fechou os olhos enquanto seu sangue e o do inimigo escorriam de seu corpo e eram escoados para o ralo.

Cara, quando conseguisse terminar de lavar tudo aquilo, estaria pronto para colocar uma blusa de gola alta. Seu rosto estava terrível, mas talvez pudesse explicar isso com o fato de que esteve na rua lutando com o inimigo. Mas era suficiente para transformá-lo em um quadro preto e azul da cabeça aos pés?

Nem tanto.

Abaixando a cabeça, deixou a água cair no nariz e no queixo; tentou desesperadamente voltar para os carros alegóricos do entorpecimento que sentiu no carro, mas com a dor desaparecendo, sua opção alucinógena estava perdendo o controle sobre ele, e o mundo estava ficando nítido demais outra vez.

Deus, a sensação de estar fora de controle e irritado o sufocava, como se houvessem mãos em volta de sua garganta.

Maldito Butch. Metido a benfeitor, barulhento, que interferia na vida dos outros como um filho da mãe.

Dez minutos depois, ele saiu, pegou uma toalha preta, enrolou-se no tecido felpudo e entrou no quarto. Parando para abrir o armário, desejou uma vela negra em... deu uma olhada nas roupas de sua esposa. Além disso, só havia roupas de couro. Era o que acontecia com seu guarda-roupa quando se lutava para sobreviver e dormia nu.

Nenhuma blusa de gola alta à vista.

Bem, talvez não estivesse tão ruim assim...

Um rápido giro em direção ao espelho atrás da porta, e teve de fazer uma pausa. Parecia que tinha sido agarrado pelo monstro do Rhage, grandes faixas com vergões vermelhos envolviam seu tronco e estendiam-se sobre seus ombros e peitorais. Seu rosto era uma piada, um dos olhos estava tão inchado que a pálpebra estava quase inoperante... o lábio inferior profundamente rachado... o queixo parecia um esquilo escondendo nozes.

Ótimo: parecia um dos garotos de Dana White.*

Depois disso, pegou suas roupas sujas e enfiou-as no fundo do armário, em seguida, colocou a cabeça inchada como um balão para fora do quarto, no corredor, e ouviu. O canal de esportes estava tagarelando lá embaixo à esquerda, e alguma coisa líquida estava sendo servida à direita.

Dirigiu-se para o quarto de Butch e Marissa nu. Não havia razão para esconder os machucados de Butch... o filho da mãe viu tudo acontecer.

Quando entrou pela porta, encontrou o tira sentado na ponta da cama, cotovelos sobre os joelhos, um copo de uísque nas mãos e uma garrafa entre os sapatos.

– Sabe no que estou pensando agora? – o cara disse sem erguer os olhos.

V. poderia pensar em uma lista infernal de coisas.

– Diga-me.

– Na noite em que o vi se jogar da varanda do Commodore. Na noite em que eu pensei que tinha morrido – Butch tomou um gole do que estava no copo. – Achei que tínhamos superado aquilo.

– Se serve de consolo... eu também.

– Por que não vai ver sua mãe? Falar sobre essas porcarias com ela?

Como se houvesse alguma coisa que a fêmea pudesse dizer naquele momento...

– Eu a mataria, tira. Não sei como faria isso... mas eu a mataria por isso. Ela me deixou com aquele pai sociopata... sabendo exatamente como ele era, porque, afinal, ela vê tudo. Então, manteve um segredo relacionado a mim por trezentos anos, antes disso aparece no meu aniversário, tentando me colocar como uma referência para sua religião burra e estúpida. Mas eu poderia ter deixado tudo isso para lá, não é mesmo? Porém, minha irmã, minha irmã gêmea? Ela afastou Payne de mim, tira; manteve-a junto dela contra sua vontade. Por séculos. E nunca sequer me contou que eu tinha uma irmã. Isso é demais. Para mim chega. – V. encarou o uísque. – Tem um pouco disso aí sobrando?

Butch tirou a rolha da garrafa e estendeu a bebida. Quando V. a pegou, o tira disse:

– Mas acordar os mortos não é a resposta, e nem tentar se destruir como está fazendo.

– Você se habilita a fazer isso por mim? Porque estou enlouquecendo e preciso sair, Butch. De verdade. Sou perigoso aqui... – V. deu um gole na bebida e amaldiçoou quando a coisa deslizou em seus lábios, dando a sensação de que estava fumando um cigarro do lado errado. – E não consigo pensar em uma maneira de tirar isso de mim... Mas com certeza não vou voltar a praticar meus velhos hábitos.

– Não se sente tentado?

V. preparou-se e deu outro gole. Com uma careta, disse:

– Quero o prazer, mas não vou fazer isso com ninguém além de Jane. De jeito nenhum vou voltar para nossa cama com o fedor de alguma vadia em meu pênis... isso estragaria tudo, não apenas para ela, mas para mim também. Além disso, o que preciso agora é de um dominante e não de um submisso... e não há ninguém em quem eu possa confiar. – Exceto, talvez, por Butch, mas isso ultrapassaria muitos limites. – Então, estou preso: tenho um monstro gritando na minha cabeça e lugar algum para ir com essa besta... e isso está me enlouquecendo.

Meu Deus... ele disse isso. Tudo isso.

É isso aí, cara.

E o prêmio foi outro gole da garrafa.

– Caramba, meus lábios estão doendo.

– Sem ofensas, mas é benfeito... Você merece. – Os olhos castanhos de Butch se ergueram e, depois de um momento, sorriu um pouco, exibindo aquela coroa no dente da frente, bem como suas presas. – Sabe? Eu estava quase odiando você um minuto atrás, estava mesmo. E antes que me peça, as blusas de gola alta estão dobradas no final daquela fileira de cabides. Pegue uma calça de moletom também. Parece que bateram um martelo nas suas pernas e que suas bolas estão prestes a explodir.

– Obrigado, cara. – V. aproximou-se da fileira de roupas que estavam suspensas em cabides de cedro fino. Uma coisa que se podia dizer de Butch era que seu guarda-roupa era cheio de opções. – Nunca pensei que ficaria contente por seu armário parecer o de uma maníaca por roupas.

– Acho que o termo é “especialista em vestir-se bem”.

Com aquele sotaque de Boston as palavras soaram diferentes e V. se perguntou se alguma vez na vida chegou a não ouvir aquele sotaque de Boston em seu ouvido.

– O que vai fazer em relação a Jane?

V. colocou a garrafa no chão, puxou uma gola alta de caxemira sobre a cabeça e ficou decepcionado em ver que mal cobria seu umbigo.

– Ela já tem problemas suficientes. Nenhuma shellan precisa ouvir que seu macho saiu para levar uma boa surra... e não quero que diga a ela.

– Como vai explicar esses machucados, espertinho?

– O inchaço vai diminuir.

– Mas não rápido o suficiente... vai visitar Payne assim...

– Ela também não precisa ter o prazer dessa visão. Só vou me esquivar durante um dia. Payne está em recuperação e estável... pelo menos, foi o que Jane me disse... por isso, vou para minha oficina de ferragens.

Butch estendeu o copo.

– Importa-se?

– Entendido. – V. serviu seu amigo, tomou outro gole e, em seguida, vestiu uma calça. Erguendo os braços para os lados, deu uma volta. – Melhor?

– Tudo o que vejo são tornozelos e pulsos... e, para sua informação, está parecendo uma Miley Cyrus muito esquisita com essa barriga de fora. Nada atraente.

– Vá se ferrar! – Quando V. pegou a garrafa e deu outro gole, decidiu que ficar bêbado era seu novo plano. – Não posso fazer nada se você parece um maldito anão.

Butch riu com satisfação e, em seguida, voltou a ficar sério.

– Se fizer isso outra vez...

– Vai pedir para que eu tire suas roupas.

– Não é disso que estou falando.

V. puxou as mangas da blusa e não conseguiu nada com isso.

– Não precisa intervir, tira, não vou me matar. Não é esse o ponto. Sei onde está o limite.

Butch praguejou, seu rosto assumiu uma expressão sombria.

– Você diz isso e acredita que seja verdade. Mas as situações podem entrar em um turbilhão... especialmente as que está vivendo. Pode entrar na onda de... seja lá o que acha ser necessário... e a maré pode acabar virando contra você.

V. flexionou sua mão enluvada.

– Impossível. Não com isso... E não quero mesmo que fale com minha garota sobre isso. Prometa-me. Precisa ficar fora disso.

– Então, vai precisar falar com ela.

– Como posso dizer a ela... – sua voz ficou entrecortada e teve de limpar a garganta. – Como diabos posso explicar isso a ela?

– Como não explicar? Ela o ama.

V. apenas balançou a cabeça. Não conseguia imaginar-se dizendo a sua shellan que queria ser machucado fisicamente. Isso a mataria, e ele não tinha a menor intenção de que ela o visse daquela maneira.

– Olha só, vou dar um jeito nisso sozinho. Em tudo isso.

– É disso que tenho medo, V. – Butch consumiu o resto de sua bebida em um só gole. – Esse... é nosso maior problema.

Jane estava observando sua paciente dormir quando o celular soou em seu bolso. Não era uma ligação, mas uma mensagem de texto de V.: To em casa. Vou p ofic. trab. Como ta P.? E vc?

Seu suspiro não foi de alívio. Tinha chegado apenas dez minutos antes do sol erguer-se totalmente e não procurou vê-la ou visitar sua irmã?

Dane-se, ela pensou, ao se levantar e sair do quarto de recuperação.

Depois de passar algumas orientações a Ehlena, que estava na sala de exames da clínica atualizando os arquivos dos Irmãos, Jane andou decidida pelo corredor, virou à esquerda perto do escritório e passou pelos fundos do armário da despensa. Não havia razão para lidar com os códigos de bloqueio; simplesmente atravessou...

E lá estava ele, a pouco menos de vinte metros de distância do túnel, afastando-se dela... passou pelo centro de treinamento e caminhou, entrando ainda mais fundo na montanha.

As luzes fluorescentes no teto o iluminavam, atingindo seus ombros enormes e a parte inferior de seu corpo pesado. Passando pelo brilho daquelas luzes, seu cabelo parecia estar molhado e o aroma persistente do sabonete que sempre usava era a confirmação de que havia acabado de tomar banho.

– Vishous.

Disse o nome dele apenas uma vez, mas o túnel era uma câmara de ecos que fez com que as sílabas golpeassem as paredes e retornassem várias vezes, multiplicando-as.

Ele parou.

Foi a única resposta que ela recebeu.

Depois de esperar que ele dissesse alguma coisa, que se virasse... que a reconhecesse... descobriu algo novo sobre seu estado fantasmagórico: mesmo que, tecnicamente, não estivesse mais viva, seus pulmões ainda queimavam como se estivesse sufocando.

– Aonde foi esta noite? – ela disse, sem esperar uma resposta.

E, de fato, não a obteve. Mas ele parou bem debaixo de uma luminária, então, mesmo à distância, pôde ver seus ombros ficando tensos.

– Por que não se vira, Vishous?

Bom Deus... o que ele fez no Commodore? Oh, meu Deus...

Engraçado, havia uma razão pela qual as pessoas “construíam” suas vidas juntos. As escolhas que fazem como marido e mulher não são tijolos e o tempo não é uma argamassa, mas, ainda assim, elas constroem algo tangível e real. E, naquele momento, quando seu hellren recusava-se a se virar em direção a ela... inferno, apenas para mostrar seu rosto... ocorria um estrondoso terremoto, que abalava o que ela acreditava ser terra firme.

– O que fez esta noite? – ela disse sufocada.

Nesse momento, ele virou-se e deu dois grandes passos em direção a ela. Mas não foi para se aproximar. Foi para sair da luz. Mesmo assim...

– Seu rosto – ela engasgou.

– Lutei com alguns redutores. – Quando ela se aproximou, ele ergueu a palma de uma de suas mãos. – Estou bem. Só preciso de um pouco de espaço agora.

Tinha alguma coisa errada, ela pensou. E odiou o questionamento que surgiu em sua mente... a ponto de recusar-se a pronunciá-lo.

Só que tudo o que tinham ali era silêncio.

– Como está minha irmã? – ele disse de repente.

Com um nó na garganta, respondeu:

– Está descansando ainda. Ehlena está com ela.

– Deveria tirar uma folga e descansar.

– Eu vou. – Uh-hum, certo. Com as coisas entre eles como estavam, nunca mais conseguiria dormir de novo.

V. passou sua mão enluvada pelo cabelo.

– Não sei o que dizer agora.

– Esteve com outra pessoa?

Ele não hesitou nessa:

– Não.

Jane o encarou... e, então, suspirou lentamente. Uma coisa era certa sobre seu hellren, algo com a qual poderia sempre contar: Vishous não mentia. Tinha muitos defeitos, mas esse não era um deles.

– Certo – ela disse. – Sabe onde me encontrar. Estarei em nossa cama.

Foi ela quem se virou e começou a andar na direção oposta. Mesmo a distância partindo seu coração, não iria atormentá-lo com algo que não era capaz de fazer e se ele precisava de espaço... bem, daria isso a ele.

Mas não para sempre, com certeza.

Mais cedo ou mais tarde, o macho viria conversar com ela. Tinha de fazer isso ou ela iria... Deus, não sabia o que seria capaz de fazer.

Contudo, seu amor não sobreviveria para sempre nesse vácuo. Simplesmente não sobreviveria.

Presidente do UFC – Ultimate Fighting Championship. (N.P.)


CAPÍTULO 15

O fato de José de la Cruz parar em um drive-thru para comprar alguma porcaria no centro de Caldwell era um clichê total. Todos sabiam que os detetives de homicídios bebiam café e comiam doces, mas isso nem sempre era verdade .

Algumas vezes, não havia tempo para fazer uma parada.

E, cara, dane-se o que esses programas de televisão e romances policiais dizem por aí... A realidade era que ele funcionava melhor com cafeína e um pouco de açúcar em sua corrente sanguínea. Além disso, vivia pelas rosquinhas; portanto, que o processassem.

A ligação que acordou a ele e a sua esposa aconteceu perto das seis da manhã, um horário que, se considerasse o número que observou ao atender a ligação, era quase civilizado: cadáveres, assim como aqueles que ficavam doentes, não seguiam as regras do horário comercial. Então, o horário quase tolerável era uma bênção.

E não era a única coisa boa em seu caminho: felizmente, por ser domingo, as estradas e rodovias estavam vazias, e seu carro sem identificação oficial fazia um trabalho excelente para sair dos subúrbios em uma situação assim... então, seu café ainda estava bem quente enquanto ele se dirigia para o distrito comercial, passando com cuidado pelos sinais vermelhos.

A fila de viaturas anunciou a localização onde o corpo havia sido encontrado, mais do que a fita de aviso amarela que tinha sido estendida por toda parte, como se fosse um laço sobre um maldito presente de Natal. Praguejando, estacionou paralelamente à parede de tijolos do beco e saiu, bebendo seu café e andando em direção ao amontoado de uniformes azuis.

– Ei, Detetive.

– E aí, Detetive?

– Oi, Detetive.

Assentiu para os garotos.

– Bom dia a todos. O que temos aqui?

– Não tocamos nela – Rodriguez fez um aceno com a cabeça em direção à caçamba. – Está lá, e Jones está tirando as primeiras fotos. O médico legista e o pessoal da perícia criminal estão a caminho. O misógino às avessas também.

Ah, sim, o fiel fotógrafo deles.

– Obrigado.

– Onde está seu novo parceiro?

– Chegando.

– Ele está pronto para isso?

– Vamos ver. – Sem dúvida, aquele beco sujo estava bem familiarizado com pessoas botando para fora aquilo que tinham comido; então, se o novato perdesse o almoço, não tinha problema.

José abaixou-se sob a faixa amarela e andou em direção à caçamba. Como sempre, quando se aproximava de um corpo, percebia que sua audição estava tão aguda que chegava a ser insuportável: a conversa mole dos homens atrás dele, o som das solas dos próprios sapatos no asfalto, a brisa fria vinda do rio que assoviava... tudo estava alto demais, como se o volume do mundo inteiro tivesse sido aumentado ao máximo.

E claro, a ironia era que o propósito dele estar ali, naquela manhã, naquele beco... o propósito de todos aqueles carros, homens e fitas de advertência estarem ali... estava perfeitamente em silêncio.

José segurou seu copo de isopor enquanto espiava por cima da tampa enferrujada da caçamba. A mão da moça foi a primeira coisa que viu, uma linha pálida de dedos com unhas quebradas e havia alguma coisa marrom embaixo delas.

Uma lutadora, não importava quem fosse.

Ao se deparar com outra garota morta, desejou profundamente que seu trabalho fosse tranquilo por um mês ou uma semana... ou, pelo amor de Deus, ao menos por uma noite. Caramba, dar uma desacelerada na carreira era o que estava pensando em fazer: quando se atua em tal área profissional, é difícil ficar satisfeito com o que se faz. Mesmo quando um caso era resolvido, ainda assim alguém estaria enterrando um ente querido.

O policial perto dele parecia ter um megafone quando falou.

– Quer que eu abra a outra metade?

José quase disse para o cara diminuir o volume, mas havia uma grande possibilidade de que estivesse falando como em uma biblioteca.

– Sim. Obrigado.

O policial usou um cassetete para levantar a tampa o suficiente para que a luz pudesse entrar, mas o cara não olhou para o que havia dentro. Apenas permaneceu ali, em pé, como um daqueles soldados da realeza britânica, dirigindo o olhar para o outro lado do beco, sem focar em nada.

Quando José ergueu-se na ponta dos pés e deu uma espiada, não culpou o policial por sua reticência.

Deitada em uma cama de metais retorcidos, a mulher estava nua, sua pele cinza e manchada exibia uma luminosidade estranha sob a luz do amanhecer. Considerando seu rosto e corpo, parecia estar no final da adolescência, uns vinte anos. Branca. O cabelo tinha sido cortado pela raiz, tão rente à pele que o couro cabeludo estava dilacerado em alguns lugares. Olhos...? Tinham sido removidos de suas órbitas.

José tirou uma caneta do bolso, esticou o corpo ao aproximar-se e separou cuidadosamente os lábios da garota. Sem dentes... não restou sequer algum nas gengivas irregulares.

Movendo-se para a direita, ergueu uma das mãos para ver a parte inferior da ponta dos dedos. Completamente removidas.

E a desfiguração não se limitava à cabeça e às mãos... Havia ranhuras profundas na pele, uma no alto de sua coxa, outra na parte inferior do braço e duas na parte de dentro de seus pulsos.

José amaldiçoou em voz baixa, pois tinha certeza de que ela havia sido desovada ali. Não havia privacidade suficiente no local para realizar esse tipo de trabalho... aquela porcaria exigia tempo e ferramentas... e equipamentos de contenção para mantê-la deitada.

– O que temos aí, Detetive? – seu novo parceiro disse atrás dele.

José olhou para Thomas DelVecchio Jr. sobre o ombro.

– Já tomou café da manhã?

– Não.

– Que bom.

Recuou um pouco para que Veck pudesse dar uma olhada. Como o cara era quinze centímetros mais alto do que ele, não teve de se esticar para ver o que havia lá dentro. Tudo o que fez foi dobrar os quadris. E, então, apenas olhou. Nada de inclinar-se contra a parede para vomitar. Nada de engasgos. Também não houve qualquer mudança drástica na expressão do rosto.

– O corpo foi desovado aqui – Veck disse. – Só pode ser.

– Ela.

Veck olhou para ele, seus olhos azuis-escuros eram inteligentes e imperturbáveis.

– Como?

– Ela foi desovada aqui: é uma pessoa, não uma coisa, DelVecchio.

– Certo. Desculpe. Ela. – O cara inclinou-se outra vez. – Acho que temos um colecionador de troféus.

– Talvez.

As sobrancelhas escuras se ergueram.

– Há muita coisa faltando... nela.

– Tem assistido aos noticiários ultimamente? – José limpou a caneta em um tecido.

– Não tenho tempo para TV.

– Onze mulheres foram encontradas assim no ano passado. Nas cidades de Chicago, Cleveland e Philly.

– Caraaamba – Veck colocou um pedaço de chiclete na boca e mastigou com força. – Então, deve estar se perguntando se este pode ser o início para nós.

Quando o cara rangeu os molares, José esfregou os olhos para dissipar as memórias que surgiram.

– Quando parou?

Veck limpou a garganta.

– De fumar? Mais ou menos há um mês.

– Como está indo?

– É um saco.

– Aposto que sim.

José colocou as mãos sobre os quadris e voltou a se concentrar. Como iriam fazer para descobrir quem era aquela garota? Havia inúmeras mulheres jovens desaparecidas no estado de Nova York... e isso considerando que o assassino não tinha feito aquilo em Vermont ou Massachusetts ou Connecticut e tenha dirigido até ali para depositá-la naquela caçamba.

Uma coisa era certa: nem morto permitiria que aquele filho da mãe começasse a atacar as garotas da cidade. Não ia acontecer enquanto estivesse no comando.

Quando se virou, bateu no ombro de seu parceiro.

– Dez dias, amigo.

– Para quê?

– Para voltar a montar na sela de um Marlboro.

– Não subestime minha força de vontade, detetive.

– Não subestime o que vai sentir quando for para casa e tentar dormir esta noite.

– Não durmo muito, mesmo.

– Esse trabalho não vai ajudar.

Nesse momento, a fotógrafa chegou com seus cliques, flashes e mau humor.

José indicou a direção oposta com a cabeça.

– Vamos sair daqui e deixá-la fazer seu trabalho.

Veck deu uma olhada e ficou surpreso quando a encarou melhor. A péssima receptividade foi uma novidade para ele... As mulheres gravitavam ao redor de homens como Veck; as duas últimas semanas provaram isso: elas ficavam sempre por perto na delegacia.

– Vamos, DelVecchio, vamos começar a procurar as peças desse quebra-cabeça.

– Entendido, detetive.

Normalmente, José pediria para que o cara o chamasse de de la Cruz, mas nenhum de seus “novos” parceiros duravam mais do que um mês, então, de que adiantaria? “José” estava fora de cogitação, claro... apenas uma pessoa chamou-o assim naquele trabalho e o desgraçado tinha desaparecido há três anos.

Levou mais ou menos uma hora para que ele e Veck investigassem o local e acabassem não conseguindo absolutamente nenhum material. Não havia nenhuma câmera de segurança no exterior dos prédios nem testemunhas tinham se apresentado, mas os caras da investigação criminal iriam rastrear tudo com seus distintivos, bolsinhas plásticas e pinças. Talvez aparecesse algo.

O médico legista chegou às nove, fez seu trabalho, e o corpo foi liberado para ser removido mais ou menos uma hora depois disso. E quando o pessoal precisou de uma ajuda com o cadáver, José ficou surpreso em ver que Veck colocou um par de luvas de látex e pulou naquela caçamba.

Um pouco antes do médico legista removê-la do local, José perguntou sobre a hora da morte e foi informado que tinha acontecido por volta do meio-dia do dia anterior.

Ótimo, ele pensou enquanto os carros e as vans começavam a partir. Quase vinte e quatro horas morta antes de encontrá-la. Poderia muito bem ter sido conduzida para fora do estado.

– Hora de acionar o banco de dados – disse a Veck.

– Estou nessa.

Quando o cara se virou e seguiu em direção a uma motocicleta, José gritou:

– Chiclete não é comida.

Veck parou e olhou sobre o ombro.

– Está me convidando para tomar café da manhã, detetive?

– Só não quero que desmaie no trabalho. Isso o deixaria constrangido e eu seria obrigado a examinar outro corpo.

– Que amável, detetive.

Talvez costumasse ser; mas agora só estava nervoso consigo mesmo e não sentia a menor vontade de comer sozinho.

– Encontro você no Vinte e quatro em cinco minutos.

– Vinte e quatro?

Certo, ele não era dali.

– Riverside Diner, na Eighth Street. Fica aberto vinte e quatro horas.

– Entendi. – O cara colocou um capacete preto e alavancou uma das pernas sobre algum tipo de engenhoca que parecia fazer parte do motor. – Eu pago.

– Faça como quiser.

Veck pisou a alavanca com força e ligou o motor.

– Sempre faço, detetive. Sempre.

Quando arrancou, deixou um rastro de testosterona no beco e, enquanto José arrastava-se preguiçosamente em direção a seu automóvel bege sem identificação, sentiu-se como um tiozinho de meia-idade em comparação a Veck. Deslizando para trás do volante, colocou seu copo quase vazio e completamente frio no porta-copos, e seu olhar deslocou-se da faixa para aquela caçamba.

Tirando o celular do paletó, ligou para a delegacia.

– Ei, é o de la Cruz. Pode passar a ligação para a Mary Ellen? – O tempo de espera foi de menos de um minuto. – Mary Ellen? Como vai? Bem... bem. Ouça, quero ouvir a ligação que denunciou o corpo que havia próximo ao Commodore. Sim. Claro... só preciso que a reproduza. Obrigado... não precisa correr.

José colocou a chave na ignição.

– Ótimo. Obrigado, Mary Ellen.

Sim, gostaria de comunicar um corpo. Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

José apertou o telefone e começou a tremer.

O sotaque de Boston era tão claro e familiar que foi como se o tempo tivesse se envolvido em um acidente de carro e ricocheteado para trás.

– Detetive? Quer ouvir outra vez? – ouviu Mary Ellen dizer em seu ouvido.

Fechando os olhos, resmungou.

– Sim, por favor...

Quando a gravação terminou, ouviu-se agradecendo a Mary Ellen e sentiu que pressionou o polegar sobre o botão end do celular para finalizar a ligação.

Tão claro como água cristalina, estava sendo sugado para um pesadelo de dois anos atrás... quando entrou naquele apartamento fedorento e decaído, cheio de garrafas de uísque vazias e caixas de pizza. Lembrou-se de sua mão estendendo-se em direção à porta fechada de um banheiro, aquela maldita parte de seu corpo tremia por inteiro.

Estava convencido de que iria encontrar um corpo do outro lado. Pendurado no chuveiro por um cinto... ou talvez mergulhado em sangue ao invés de um banho de espuma.

Butch O’Neal teve uma vida difícil ao buscar realizar-se profissionalmente no departamento de homicídios. Bebia até altas horas e não só tinha fobia de relacionamentos como também era incapaz de estabelecer laços afetivos.

Só que ele e José eram próximos. Tão próximos quanto Butch foi capaz de ser com alguém um dia.

Contudo, nada de suicídio. Nada de corpo. Nada. Em uma noite, ele estava ali; na outra... havia sumido.

No primeiro mês, e até no segundo, José esperou ter alguma notícia... do próprio cara ou sobre um cadáver de nariz quebrado e um dente da frente com uma coroa mal feita aparecendo em algum lugar.

No entanto, dias transformaram-se em semanas que, por sua vez, tornaram-se estações do ano, e sentiu-se como um médico que descobriu ter uma doença terminal: finalmente soube como as famílias de pessoas desaparecidas se sentiam. E, Deus, nunca pensou que passaria por aquela longa, terrível e fria espera. Jamais imaginou que percorreria aquele território do “Não Saber de Nada”... Mas com o desaparecimento de seu parceiro, não só percorreu o maldito território como comprou um terreno, construiu uma casa e mudou-se para lá.

Agora, porém, depois de ter perdido todas as esperanças, depois de não acordar mais no meio da noite pensando onde o cara poderia estar... agora... tinha ouvido aquela gravação.

Claro, milhões de pessoas tinham aquele sotaque de Boston. Mas O’Neal possuía uma rouquidão reveladora em sua voz que não poderia ser replicada.

De repente, José perdeu a vontade de ir ao Vinte e quatro, não queria comer nada. Mas colocou seu carro sem identificação oficial em funcionamento e pisou no acelerador.

No momento em que olhou para a caçamba e viu aqueles olhos arrancados e aquele trabalho odontológico, soube que estava indo à procura de um serial killer. Mas não poderia imaginar que iniciaria outra busca.

Hora de encontrar Butch O’Neal.

Se fosse capaz.


CAPÍTULO 16

Uma semana depois, Manny acordou em sua cama com as dores latejantes de uma ressaca. A boa notícia era que pelo menos aquela dor poderia ser explicada: quando chegou em casa, tomou uísque até ficar chapado. E a bebida desempenhou seu papel, derrubando-o com força total como em um nocaute.

A primeira coisa que fez foi estender a mão e pegar o telefone. Com os olhos embaçados, ligou para o celular do veterinário. Os dois tinham combinado um ritual matinal e Manny agradecia a Deus pelo fato do cara também ser um insone.

O veterinário atendeu no segundo toque.

– Alô?

– Como está minha garota? – a pausa que se seguiu disse-lhe tudo o que tinha de saber. – Tão mal assim?

– Bem, os sinais vitais permanecem bons e ela continua tão estável quanto possível com a sedação, mas estou preocupado com uma possível inflamação nos cascos.

– Mantenha-me informado.

– Sempre.

Nesse momento, desligar era a única coisa que poderia fazer. A conversa tinha acabado e não era uma pessoa que jogava conversa fora... mesmo que fosse, um bate-papo não o ajudaria a conseguir aquilo que desejava: um cavalo saudável.

Antes do despertador disparar às seis e meia para que ele começasse a dura rotina, deu um tapa no rádio-relógio para que continuasse em silêncio e pensou: exercícios. Café. Voltar ao hospital.

Espere. Café, exercícios, hospital.

Definitivamente, precisava de cafeína primeiro. Não conseguiria correr ou levantar pesos naquela condição... e também não poderia operar máquinas pesadas – como um elevador, por exemplo.

Ao levar os pés ao chão e ficar na posição vertical, sua cabeça tinha um ritmo próprio de batidas e revoltou-se com a ideia de que talvez, apenas talvez, a dor não tivesse relação com a bebida: não estava doente nem desenvolvendo um tumor cerebral... Contudo, mesmo se estivesse, iria do mesmo jeito para o hospital; estava em sua natureza. Caramba, quando era jovem, lutava para ir à escola mesmo doente... mesmo quando teve catapora e ficou parecendo um desenho de ligar pontos, insistiu em pegar o ônibus.

Sua mãe ganhou aquela batalha em particular, e reclamou por ele ser exatamente como o pai.

Não foi um elogio, e ouviu isso a vida inteira... mas também não significava nada, pois nunca conheceu o cara. Tudo o que tinha era uma foto desbotada dele. A única coisa que acabou colocando em um porta-retrato... Por que diabos estava pensando sobre isso naquela manhã?

O café foi uma mistura instantânea suave. Vestiu as roupas esportivas enquanto a bebida ficava pronta e tomou duas canecas sobre a pia ao observar a fila do tráfego matutino sob a penumbra da madrugada nas proximidades da estrada que ia para o norte. A última coisa que fez foi pegar seu iPod e colocá-lo nos ouvidos. Claro que não era um tipo de cara falante, mas que Deus o ajudasse a não encontrar uma garota tagarela pela frente naquele dia.

Na sala de musculação, o local estava bem vazio, o que foi um grande alívio, mas isso não ia durar muito. Saltando na esteira mais próxima da porta, desligou o noticiário que estava passando na TV instalada no alto da parede e começou a malhar.

O som de Judas Priest em seu iPod embalou seus passos, sua mente desconectou-se e seu corpo rígido e dolorido teve o que precisava. Considerando tudo, estava melhor agora se comparado ao fim de semana anterior. As dores de cabeça ainda estavam lá, mas continuava a manter o ritmo de trabalho, a atender seus pacientes em dia e a administrar tudo.

No entanto, isso o fez pensar. Um pouco antes de Jane ter batido naquela árvore, teve dores de cabeça também. Então, se tivessem sido capazes de fazer uma autópsia no corpo dela, será que teriam encontrado um aneurisma? Por outro lado, qual seria a probabilidade dos dois sofrerem a mesma...

Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Não tenho tempo para explicar agora. Por favor. Sei que é pedir muito. Mas há uma paciente que precisa de você, desesperadamente... já estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada.

– Droga. – Manny colocou os pés rapidamente na beirada da esteira e cerrou os dentes contra a agonia. Dobrando a parte superior do corpo sobre o painel do aparelho, respirou lenta e equilibradamente... ou pelo menos tentou o máximo possível que uma pessoa correndo a dez quilômetros por hora poderia conseguir.

Nos últimos sete dias, aprendeu por meio do método de tentativa e erro que, quando a dor o atingia, o melhor a fazer era tentar deixar a mente em branco e focar em nada. E o fato de que o simples truque cognitivo funcionava tranquilizava-o quanto à questão do aneurisma: se a parede de uma artéria cerebral estivesse prestes a explodir e formar um buraco em sua cabeça, não era uma estratégia de respiração ao estilo da ioga que em pouco tempo faria diferença.

Mas havia um padrão. Surgia com pensamentos sobre Jane... ou sobre aquele sonho erótico que continuava a ter.

Minha nossa, durante o sono teve orgasmos suficientes para aliviar toda sua libido. E, sendo o filho da mãe doente que era, a quase certeza de voltar a estar com aquela fêmea em suas fantasias o fazia ansiar pelo momento de colocar a cabeça no travesseiro pela primeira vez na vida.

Mesmo não podendo explicar o motivo pelo qual algumas cognições traziam as dores de cabeça, a boa notícia era que ele estava melhorando. Cada dia após aquele fim de semana, que parecia ser um buraco negro bizarro, sentia que voltava um pouco a ser o que era.

Quando restou pouco mais que uma dor incômoda, Manny voltou para a esteira e terminou o treino. No caminho para a saída, acenou para os retardatários do início da manhã que chegavam e escapou antes que alguém viesse com um “Oh, meu Deus, você está bem?”, se visse que tentava controlar a respiração.

No apartamento, tomou um banho, colocou um uniforme limpo e um jaleco branco e, em seguida, agarrou sua maleta e seguiu para o elevador. Para evitar o trânsito pegou as ruas adjacentes que cortavam a cidade. A estrada estava lotada àquela hora do dia e teve bons momentos ouvindo a tradicional banda My Chemical Romance.

“I’m not okay” era uma música que, por algum motivo, não se cansava de ouvir.

Quando virou em direção ao complexo do Hospital São Francisco, a luz do amanhecer ainda não tinha surgido completamente, o que sugeria que o dia seria nublado. Não que isso importasse para ele; quando entrava no local, a menos que houvesse um tornado, o que nunca tinha acontecido em Caldwell, o tempo não o afetava nem um pouco. Inferno, já tinha ido trabalhar várias vezes ainda no escuro, indo embora quando escurecia novamente, mas nunca se sentiu como se estivesse perdendo seu tempo na vida, pois não era muito de “curtir a natureza”.

Engraçado. Agora, porém, sentia-se um tanto deslocado.

Trabalhava naquele hospital desde que terminara sua residência cirúrgica pela Escola de Medicina de Yale e pretendia seguir para Boston, Manhattan ou Chicago. Em vez disso, deixou sua marca ali e, mais de dez anos depois, ainda estava onde tinha começado. Claro, ocupava o topo da pirâmide administrativa, por assim dizer, tinha salvado e melhorado vidas e já tinha ensinado uma geração de cirurgiões.

O problema era que, ao descer a rampa para a garagem, tudo aquilo, de alguma forma, parecia sem sentido.

Tinha quarenta e cinco anos de idade, com pelo menos metade do seu tempo útil dentro de uma caixa. O que tinha para mostrar? Um apartamento cheio de tênis Nike e um trabalho que tinha tomado conta das partes mais remotas de seu ser. Nada de esposa. Nada de filhos. As festas de Natal, Ano Novo e feriados nacionais eram passadas no hospital... Com sua mãe dando um jeito de comemorar essas datas sem ele e, sem dúvida, esperando por netos. Coisa que era melhor ela esperar sentada.

Cristo, com quantas mulheres tinha transado aleatoriamente ao longo dos anos? Centenas. Devia ser.

A voz de sua mãe veio como um tiro em sua cabeça: Você é igual ao seu pai.

Verdade. Seu pai também tinha sido um cirurgião. Com um traço errante.

Na verdade, foi por isso que Manny tinha escolhido Caldwell. Sua mãe havia trabalhado no São Francisco como enfermeira da UTI; batalhou para mantê-lo anos e anos estudando. E o que aconteceu quando se formou em medicina? Ao invés de orgulho, havia distância e reserva no rosto dela... Quanto mais próximo ficava do que havia sido seu pai, mais ela expressava aquela distância no olhar. A ideia dele era de que se estivessem na mesma cidade, estreitariam a relação ou algo assim. No entanto, não foi desse jeito.

Mas ela estava bem. Morava na Flórida naquele momento, em uma casa de repouso em um campo de golfe que ele pagava, jogando partidas de baralho com senhoras da mesma idade, jantando com as amigas de carteado e discutindo sobre quem esnobou quem nas festinhas agitadas do local. Ele estava muito feliz em poder ampará-la e essa era toda a extensão do relacionamento que mantinham.

Seu pai estava em um túmulo no cemitério Bosque dos Pinheiros. Morrera em 1983 em um acidente de carro.

Que coisa perigosa é um carro.

Estacionando o Porsche, desceu do veículo e foi pelas escadas ao invés do elevador para se exercitar. Em seguida, usou a passagem de pedestres para entrar no hospital, no terceiro andar. Quando passou pelos médicos e enfermeiras, apenas acenou e continuou andando. Geralmente, dirigia-se a seu escritório primeiro, mas não importava o que dissesse para seus pés, aquele não foi o lugar para onde acabou indo naquele dia.

Estava indo para os quartos de recuperação.

Disse a si mesmo que era para ver como os pacientes estavam, mas aquilo era besteira. Enquanto sua mente ficava cada vez mais difusa, ele ignorou o nevoeiro conscienciosamente. Inferno, aquilo era pior que a dor... e provavelmente estava hipoglicêmico por ter se exercitado e não se alimentado depois disso.

Paciente... estava procurando sua paciente... Sem nome. Ele não tinha um nome em mente, mas sabia qual era a sala.

Quando chegou à suíte mais próxima da escada de incêndio no fim do corredor, uma onda de excitação percorreu seu corpo. Certificou-se de que o jaleco branco estava colocado sobre os ombros e passou a mão pelos cabelos para ajeitá-los.

Limpando a garganta, preparou-se, entrou e...

O senhor de oitenta anos de idade deitado sobre a cama estava dormindo, mas não estava descansando, tubos entravam e saíam dele como se fosse um carro recebendo uma chupeta para recarregar a bateria.

Uma dor pungente socou a cabeça de Manny enquanto encarava o homem.

– Dr. Manello?

A voz de Goldberg atrás dele foi um alívio, pois deu-lhe algo concreto em que se agarrar... a borda de uma piscina, digamos assim.

Virou-se.

– Ei. Bom dia.

As sobrancelhas do cara se ergueram e, então, franziu a testa.

– Hã... o que está fazendo aqui?

– O que acha? Verificando um paciente. – Deus, talvez todos estivessem enlouquecendo.

– Pensei que ia tirar uma semana de folga.

– Como?

– Isso... hã... foi isso que me disse quando saiu esta manhã. Depois que... encontramos você aqui no quarto.

– Do que está falando? – Então, Manny acenou com a mão num gesto vago. – Ouça, deixe-me tomar café da manhã primeiro...

– É hora do jantar, Dr. Manello. São seis da tarde. Saiu daqui há doze horas.

A excitação que tinha aquecido seu corpo saiu correndo de dentro dele e foi substituída imediatamente por um banho frio de algo que nunca, jamais, havia sentido antes.

Um medo glacial percorreu-o e deu uma reviravolta em seus neurônios.

O silêncio constrangedor que se seguiu foi interrompido por uma agitação no corredor: pessoas passavam com sapatos baixos e confortáveis, apressando-se para atender pacientes ou empurrando carrinhos de roupa suja para a lavanderia ou levando refeições... jantar, naturalmente... de quarto em quarto.

– Eu vou... voltar para casa agora – Manny disse.

Sua voz era ainda mais forte do que nunca, mas a expressão no rosto de seu colega revelava a verdade sobre a situação: não importava o que dizia a si mesmo sobre sentir-se melhor, não era mais o mesmo. Parecia o mesmo; a voz soava como se fosse a mesma pessoa; andava da mesma maneira. Tentou até convencer a si mesmo de que era o mesmo.

Mas alguma coisa tinha mudado naquele fim de semana e temia que não houvesse volta.

– Gostaria que alguém o levasse para casa? – Goldberg perguntou timidamente.

– Não. Estou bem.

Precisou de todo o orgulho que tinha para não começar a correr quando se virou para sair: com muita força de vontade, ergueu a cabeça, endireitou a coluna e colocou um pé em frente ao outro calmamente.

Foi estranho, mas, ao sair, pensou em seu professor de cirurgia... o que tinha sido “aposentado” pela administração da escola quando fez setenta anos. Na época, Manny estava no segundo ano.

Dr. Theodore Benedict Stanford III.

O cara era um filho da mãe em sala de aula, o tipo de desgraçado que gostava mais quando os alunos davam respostas erradas, pois lhe proporcionava a oportunidade de repreender as pessoas. Quando a escola anunciou sua saída, Manny e seus colegas de classe fizeram uma festa de despedida para o pobre coitado, todos eles embebedaram-se celebrando o fato de serem a última geração a ser submetida às babaquices dele.

Manny estava trabalhando como zelador na escola naquele verão para conseguir algum dinheiro e estava esfregando o chão do corredor quando o carregador remanescente saiu levando as caixas finais do escritório de Stanford... e, em seguida, foi o velho quem saiu e desapareceu no final do corredor, passando por ali pela última vez.

Saiu com a cabeça erguida, descendo as escadas de mármore e partindo pela majestosa porta da frente com o queixo empinado.

Manny tinha rido da arrogância do homem, que não baixou a cabeça mesmo em face da idade e do fato de reduzirem seu valor a algo obsoleto.

Agora, caminhando da mesma maneira, perguntou-se se poderia ser verdade.

Era muito provável que Stanford tenha tido a mesma sensação que Manny experimentava naquele momento: a sensação de ser descartado.


CAPÍTULO 17

Jane ouviu uma agitação vindo do centro de treinamento. O barulho a acordou. Ergueu sua cabeça do travesseiro apoiando-se no antebraço e sua coluna estralou, pois estava curvada sobre a mesa.

Rompendo... e batendo...

A princípio, achou que era uma rajada de vento, mas houve um estalo em seu cérebro em seguida. Não havia janelas ali no subsolo. E seria necessária uma tempestade terrível para criar aquela quantidade de barulho.

Erguendo-se rapidamente da cadeira, deu a volta na mesa e saiu correndo pelo corredor em direção ao quarto de Payne. Tinha um motivo para que todas as portas estivessem abertas: havia apenas uma paciente e embora Payne fosse muito tranquila, se alguma coisa acontecesse...

Que diabos era aquele estardalhaço? Havia gemidos também...

Jane deslizou através do batente da porta da sala de recuperação e quase gritou. Ah, Deus... todo aquele sangue.

– Payne! – ela correu para a cama.

A irmã gêmea de V. estava em um descontrole selvagem, balançando os braços para todos os lados, os dedos agarravam os lençóis e a si mesma, as unhas afiadas arranhavam a pele dos braços, dos ombros e das clavículas.

– Não consigo sentir isso! – a fêmea gritou, presas expostas, olhos tão abertos que exibia claramente uma borda branca ao redor deles. – Não consigo sentir nada!

Jane aproximou-se com rapidez e agarrou um dos braços, mas seu aperto deslizou no instante em que o contato foi feito, afastando-a de todos aqueles arranhões escorregadios.

– Payne! – Se ela continuasse, as feridas ficariam tão profundas que os ossos seriam expostos. – Pare...

– Não consigo sentir nada!

A caneta Bic apareceu na mão de Payne do nada... só que, não, não foi mágica... A caneta era de Jane, aquela que guardava no bolso lateral de seu jaleco branco. No instante em que viu o objeto, todos aqueles golpes furiosos transformaram-se em uma sequência de imagens em câmera lenta enquanto a mão de Payne se erguia.

A punhalada era tão forte e decidida que nada poderia detê-la.

A ponta afiada trespassou o coração da fêmea, matando-a, e seu corpo lançou-se para frente, o suspiro da morte exalado por sua boca aberta.

Jane gritou:

– Nããããão...

– Jane... acorde!

O som da voz de Vishous não fazia sentido. Só que, então, ela abriu os olhos... para visualizar a completa escuridão. A clínica, o sangue e a respiração ofegante de Payne foram substituídos por uma mortalha visual negra que...

O brilho da chama de velas surgiu em seu campo de visão. A primeira coisa que viu foi o rosto tenso de Vishous; ele estava ao seu lado, mas não tinham ido para a cama juntos.

– Jane, foi só um sonho...

– Estou bem – ela deixou escapar, afastando o cabelo do rosto. – Estou...

Enquanto apoiava-se em seus braços e ofegava, não distinguia o que era sonho e realidade. Especialmente se levasse em conta que Vishous estava ao lado dela; não era apenas uma questão de não irem para a cama juntos ultimamente. Não estavam acordando juntos também. Achou que ele tinha dormido na oficina, mas talvez não tivesse sido o caso.

Esperava que não tivesse mesmo sido o caso.

– Jane...

No silêncio sombrio, ouviu na palavra toda a tristeza que V. nunca deixou transparecer antes em nenhuma outra situação. E ela se sentia da mesma maneira. Aqueles dias em que não tinham se falado muito, o estresse por causa da recuperação de Payne, a distância... a maldita distância... tudo era triste demais.

Porém, ali, à luz das velas, na cama deles, tudo aquilo enfraqueceu um pouco.

Com um suspiro, virou-se para o corpo quente e pesado de V. e o contato a transformou: sem intenção de assumir sua forma sólida, tornou-se corpórea, o calor fluía entre eles, ampliava-se e a deixava tão real quanto ele. Levantando o olhar, observou aquele rosto belo e feroz com a tatuagem sobre a têmpora, o cabelo negro que sempre penteava para trás, a sobrancelha com falhas e aqueles olhos pálidos e gélidos.

Durante a última semana, ela pensou e repensou sobre a noite em que as coisas tinham ficado tão difíceis. E apesar de boa parte daquilo ser decepção e ansiedade, havia uma coisa que não fazia sentido.

Quando se encontraram no túnel, Vishous estava usando uma blusa de gola alta. E ele nunca usava blusas assim. Odiava tais peças, pois achava que elas o sufocavam... o que era irônico, considerando o que o aliviava algumas vezes. Normalmente, vestia regatas ou andava nu, e ela não era estúpida. Poderia ser um cara durão, mas os hematomas surgiam em sua pele com a mesma facilidade de qualquer outra pessoa.

Disse que tinha lutado, mas era um mestre no combate mano a mano. Então, se estava todo roxo da cabeça aos pés, só havia uma razão para isso: havia permitido.

E ela teve de se perguntar quem tinha feito aquilo com ele.

– Você está bem? – V. perguntou.

Ela estendeu a mão e a colocou sobre o rosto dele.

– E você? Está bem?

Será que eles estavam bem?

Ele não hesitou.

– Com o que sonhou?

– Vamos ter que conversar sobre algumas coisas, V.

Os lábios dele se contraíram. E ficaram ainda mais tensos enquanto ela esperava. Finalmente, ele disse:

– Payne está como está. Faz apenas uma semana e...

– Não é sobre ela. É sobre o que aconteceu naquela noite quando saiu sozinho.

Nesse momento, ele se recostou, mergulhando nos travesseiros e unindo as duas mãos sobre o abdômen definido. Na penumbra, os músculos contraíram-se e suas veias projetaram sombras no pescoço.

– Está me acusando de ter ficado com outra pessoa? Pensei que já tínhamos resolvido isso.

– Pare de mudar de assunto – ela olhou para ele com firmeza. – E se quiser comprar uma briga, procure alguns redutores para isso.

Qualquer outro macho teria reagido com um rápido contra-argumento, com direito a toda uma carga dramática.

Em vez disso, Vishous virou-se para ela e sorriu.

– Quero ouvi-la.

– Prefiro que você fale comigo.

Aquela chama sensual com a qual estava tão familiarizada, mas que não tinha visto na última semana, borbulhou nos olhos dele enquanto movimentou-se em direção a ela. Em seguida, baixou o olhar e observou o sutiã que havia sob a camiseta simples com a qual havia adormecido.

Ela colocou o rosto no caminho do olhar dele, mas estava sorrindo também. As coisas tinham sido tão duras e tensas entre eles. Aquilo parecia normal.

– Não vou me distrair.

Quando um calor emanou do corpo dele em ondas, seu companheiro estendeu a ponta do dedo e deslizou ao longo de seu ombro. Então, abriu a boca, as pontas brancas de suas presas foram expostas e ficaram ainda mais longas quando lambeu os lábios.

De alguma maneira, o lençol que o cobria foi sendo puxado de seu abdômen. Escorregou mais, e mais. Era sua mão enluvada cumprindo seu dever e a cada centímetro exposto, os olhos de Jane tinham mais dificuldade em focar outra coisa. Ele parou um pouco antes da sua grande ereção ser exposta, mas deu a ela uma pequena amostra do que havia ali: as tatuagens em torno de sua virilha esticaram-se e movimentaram-se enquanto os quadris contraíam-se e relaxavam, contraíam-se e relaxavam.

– Vishous...

– O quê?

Sua mão enluvada mergulhou sob o cetim preto e ela não precisou ver para onde se direcionava para saber que envolveria seu pênis: o fato de que arqueava as costas disse-lhe tudo o que precisava saber.

Isso e a maneira como mordeu o lábio inferior.

– Jane...

– O quê?

– Vai ficar só olhando, não é mesmo?

Deus, Jane lembrava-se da primeira vez que o viu assim, estirado em uma cama, rijo, pronto. Estava lhe dando um banho de esponja e conseguiu lê-la como um livro: por mais que ela não quisesse admitir, estava desesperada para observar como ele se tocava até gozar.

E ela se certificou de que ele o fizesse.

Sentindo-se aquecida, inclinou-se para ele e aproximou tanto sua boca que quase tocou a dele.

– Ainda está desviando do assunto...

Em um piscar de olhos, a mão livre de Vishous agarrou-a pela nuca, prendendo-a. E toda aquela força passou pelo corpo dele, sendo direcionada entre as coxas dela.

– Sim. Estou. – Estendeu a língua e passou sobre os lábios dela. – Mas sempre podemos conversar depois. Sabe que nunca minto.

– Achei que sua linha de discurso estava baseada mais em... nunca estar errado.

– Bem, isso também é verdade. – Um rosnado escapou de dentro dele. – E, nesse momento... você e eu precisamos disso.

Aquela última parte foi dita com nada da paixão e toda a seriedade que ela precisava ouvir. E, quer saber, ele tinha razão. Os dois estavam andando em círculos nos últimos sete dias, pisando em ovos, evitando a mina terrestre que havia no centro do relacionamento. Conectar-se daquela maneira, pele com pele, iria ajudá-los a superar as palavras que tinham de ser ditas.

– Então, o que me diz? – ele murmurou.

– O que está esperando?

A risada que soltou foi baixa e satisfeita e seu braço contraía-se e relaxava quando começou a se acariciar.

– Puxe o lençol, Jane.

O comando saiu rouco, mas claro, e ela entendeu bem. Como sempre.

– Faça isso, Jane. Observe.

Colocou a mão sobre os músculos do peitoral dele e desceu-a sentindo seu abdômen definido, ouvindo o arfar de sua respiração entre os dentes. Ao puxar o lençol, engoliu em seco quando viu o pênis ultrapassando a altura do punho, oferecendo-se com uma lágrima singela e cristalina.

Quando ela estendeu a mão para tocá-lo, ele agarrou seu pulso, segurando-a.

– Olhe para mim, Jane... – ele gemeu. – Mas não me toque.

Filho da mãe. Odiava quando fazia aquilo. Adorava também.

Vishous não a soltou enquanto trabalhava em sua ereção com a mão enluvada, seu corpo ficou tão lindo quando encontrou um ritmo para movimentar a palma. A luz das velas envolveu a cena em um tom de mistério, mas... era sempre assim com V. Nunca sabia o que esperar com ele e não só por ser o filho de uma divindade. Estava pronto para o sexo o tempo todo; era durão, astuto, depravado e exigente.

E sabia que conhecia apenas uma versão diluída dele.

Havia cavernas profundas em seu labirinto subterrâneo, as quais ela nunca tinha visitado e nem poderia fazer isso um dia.

– Jane... – disse ele asperamente. – Seja lá o que estiver pensando, deixe para lá... Fique comigo aqui e agora e não continue pensando assim.

Fechou os olhos. Sabia com quem tinha se casado e quem amava. Quando se comprometeu com ele para a eternidade, tinha plena consciência de todos os homens e mulheres com quem esteve e da maneira como os possuiu. Só nunca imaginou que aquele passado ficaria entre eles...

– Não estava com ninguém – sua voz era forte e decidida. – Naquela noite. Juro.

Os olhos de Jane se abriram. Ele parou de tocar a si mesmo e permaneceu deitado.

De repente, a visão dela ficou turva pelas lágrimas.

– Sinto muito – ela resmungou. – Só precisava ouvir isso. Confio em você, de verdade, mas eu...

– Shh... está tudo bem. Estendeu a mão enluvada e limpou a lágrima de seu rosto. – Está tudo bem. Por que não pergunta o que está acontecendo comigo?

– É errado.

– Não, eu é que estou errado. – Respirou fundo. – Passei a última semana tentando forçar as coisas a saírem da minha boca. Odeio essa droga, mas não sabia o que dizer para que as coisas não se tornassem piores.

De alguma maneira, ela estava surpresa com a compaixão e compreensão. Os dois eram tão independentes, e era por isso que o relacionamento funcionava: ele era reservado e ela não precisava de muito apoio emocional e, normalmente, aquela matemática somava muito bem. Porém, não naquela semana.

– Também sinto muito – ele murmurou. – E gostaria de ser um macho diferente.

De alguma forma, ela sabia que estava falando sobre muito mais do que sua natureza reservada.

– Não há nada que não possa falar comigo, V. – Quando tudo o que obteve como resposta foi um “hmmm”, ela disse: – Está muito estressado agora. Sei disso, e faria qualquer coisa para ajudá-lo.

– Eu amo você.

– Então, precisa conversar comigo. A única coisa que, com certeza, não vai funcionar é o silêncio.

– Eu sei. Mas é como observar um quarto escuro. Quero lhe dizer alguma coisa, mas não consigo... Não consigo entender nada do que sinto.

Ela acreditava nisso... e reconhecia que aquilo era algo com que as vítimas de abuso infantil tendem a lutar na idade adulta. O mecanismo de sobrevivência inicial que os ajudava a passar por tudo era a compartimentalização: quando tinham de lidar com coisas demais, dividiam o seu interior e armazenavam as emoções em um local muito, muito distante.

O perigo, claro, era a pressão invariavelmente construída sobre isso.

No entanto, ao menos o gelo entre eles fora quebrado, e encontravam-se naquele espaço calmo e semipacífico.

Como se tivessem vontade própria, os olhos de Jane repousaram sobre a ereção de V., que estava deitada sobre sua barriga e ia além de seu umbigo. De repente, o desejou tanto que mal conseguia falar.

– Possua-me, Jane – ele sussurrou. – Faça o que quiser comigo.

O que ela desejava fazer era chupá-lo e foi o que fez, curvando os quadris, tomando-o com sua boca, e sugando-o até o fundo de sua garganta. O som que reproduziu foi animalesco e seus quadris se ergueram, empurrando aquela extensão excitada do corpo dele contra seu rosto. Então, um dos joelhos dobrou-se de repente e já não estava apenas deitado, mas esparramado, quando se entregou a ela completamente, acariciando a parte de trás da cabeça de Jane enquanto encontrava um ritmo que o levasse...

O movimento do corpo dela era rápido e suave.

Com sua força tremenda, V. reposicionou-a em um piscar de olhos, girando-a e tirando os lençóis do caminho para que pudesse erguer seus quadris e colocá-la sobre o tronco dele. As coxas dela abriram-se diante de seu rosto e...

– Vishous – ela disse com os lábios sobre sua ereção.

A boca dele estava escorregadia, quente e direcionada bem ao alvo. Fundindo-se com o sexo dela, agarrou-a e sugou antes que a língua serpenteasse para fora e lambesse dentro dela. O cérebro dela não desligou, explodiu, e, sem nada para pensar, perdeu-se alegremente no que estava acontecendo agora e não no que tinha acontecido antes. Tinha a sensação de que V. sentia o mesmo... Ele acariciava, lambia e chupava, com as mãos entre suas coxas, enquanto gemia seu nome contra seu núcleo. Era difícil se concentrar no que ele fazia, pois estava fazendo o mesmo com ele. Sua ereção estava dura e quente em sua boca e havia puro prazer entre as pernas – aquelas sensações eram prova de que mesmo sendo um fantasma, suas reações físicas eram iguais às de quando estava “viva”.

– Dane-se, preciso de você – ele amaldiçoou.

Em outra rápida explosão de energia, Vishous ergueu-a como se não pesasse mais do que um lençol e a mudança de posição não foi uma surpresa. Ele sempre preferiu gozar dentro dela, bem em seu interior, e abriu-lhe bem as pernas antes de colocá-la sobre seus quadris e meter a cabeça arredondada... e penetrou profundamente.

A invasão não foi apenas sexo, ele a reivindicava e ela adorava isso. Era assim que tinha de ser.

Jogando-se para frente e apoiando-se sobre os ombros dele, olhou em seus olhos enquanto moviam-se juntos, o ritmo aumentava até que gozaram juntos – os dois ficaram rígidos quando ele ainda arremetia contra a fenda de Jane, e o sexo dela o banhou com o orgasmo. Então, V. virou-a para que ficasse com as costas sobre a cama e se abaixou, voltando para onde havia começado com a boca, fundindo-a sobre ela, segurando as coxas enquanto a chupava.

Quando ela gozou com força, não houve interrupção ou pausa. Ele continuou, estendendo as duas pernas de Jane, separando-as e penetrando-a com um golpe firme de língua. O corpo dele era uma máquina de movimentos intensos sobre o dela, o forte aroma de vinculação espalhou-se pelo quarto durante o orgasmo dele, a semana de abstinência transformou-se em pó durante aquela gloriosa transa.

Quando o orgasmo subiu-lhe como a lava de um vulcão, ela o observou enquanto gozava, amando todas as partes de seu corpo, mesmo aquelas que às vezes ela se esforçava para entender.

Então, ele continuou. Mais sexo. E ainda mais.

Quase uma hora depois, estavam finalmente saciados, deitados sem se moverem e respirando fundo à luz das velas.

Vishous rolou os dois pela cama, mantendo-os unidos e seus olhos percorreram o rosto dela por um longo momento.

– Não tenho palavras. Dezesseis línguas, mas nenhuma palavra.

Havia amor e desespero na voz dele. Ficava mesmo um tanto deficiente quando se tratava de emoções e o fato de se apaixonar não tinha mudado isso... ao menos, não quando as coisas mostravam-se tão estressantes como agora. Mas tudo bem... depois desse tempo que passaram juntos, estava tudo bem.

– Está tudo bem. – Ela beijou seu peito. – Eu compreendo você.

– Queria tanto que você não precisasse disso.

– Você me entende.

– Sim, mas você é fácil.

Jane se apoiou.

– Sou a aberração de um fantasma. No caso de ainda não ter notado. Não é algo com que os homens costumam se empolgar muito.

V. puxou-a para lhe dar um beijo rápido e firme.

– Mas eu a terei pelo resto da minha vida.

– Terá mesmo. – Afinal, seres humanos não duram um décimo do que vivem os vampiros.

Quando o alarme disparou ao lado deles, V. encarou a coisa.

– Agora sei por que durmo com uma arma debaixo do meu travesseiro.

Quando ele estendeu a mão para silenciar o relógio, ela teve de concordar.

– Sabe? Poderia simplesmente atirar nele.

– Não, Butch viria até aqui encher o saco, e não quero estar com uma arma em mãos se ele vir você nua.

Jane sorriu e deitou-se quando ele saiu da cama e andou até o banheiro. Na porta, parou e olhou sobre o ombro.

– Eu vim ficar com você, Jane. Vim e fiquei com você todas as noites dessa semana. Não queria que ficasse sozinha, e não queria dormir sem você.

Com isso, entrou no banheiro e, momentos depois, ela ouviu o chuveiro ser aberto.

Ele era melhor com as palavras do que imaginava.

Espreguiçando-se satisfeita, sabia que tinha de levantar e se arrumar também... estava na hora de liberar Ehlena de seu turno na clínica. Cara, gostaria de ficar ali a noite toda. Talvez apenas um pouco mais...

Vishous saiu dez minutos depois para encontrar-se com Wrath e a Irmandade, e beijou-a quando estava saindo. Duas vezes.

Saindo da cama, ela usou o banheiro e, depois, foi até o armário e abriu as portas duplas. Pendurado no guarda roupas havia peças de couro... dele; blusas brancas simples... dela; jalecos brancos... dela; e jaquetas de motoqueiro... dele. As armas estavam trancadas num cofre à prova de fogo e os sapatos, no chão.

De muitas maneiras, sua vida era incompreensível. Uma fantasma casada com um vampiro? Até parece.

Mas olhando para aquele armário tão agradável e organizado, com suas vidas loucas repousando ali dentre as roupas e sapatos tão bem posicionados, sentiu-se bem sobre onde estavam. Ser “normal” não era tão ruim naquele mundo maluco; não era mesmo. Não importava como tal conceito passara a ser definido.


CAPÍTULO 18

No centro de fisioterapia da clínica, Payne estava fazendo seus exercícios – era assim que gostava de pensar que eram.

Deitada na cama do hospital com travesseiros apoiando a lateral de seu corpo, ela cruzou os braços sobre o peito e contraiu o estômago, puxando o tronco para cima em uma subida lenta. Quando colocou-se perpendicular ao colchão, esticou os braços e os manteve assim enquanto se deitava.

Depois de apenas uma sequência, seu coração estava batendo forte e sua respiração estava curta, mas permitiu-se apenas um breve momento para se recuperar e repetiu. E repetiu. E repetiu.

O esforço ficava cada vez mais exaustivo, até que o suor brotou em sua testa e os músculos de seu estômago começaram a doer. Jane havia lhe mostrado como fazer aquilo e acreditava ser algo bom... contudo, comparado com o que era capaz de fazer, isso era uma faísca em relação a uma fogueira.

De fato, Jane tentou que fizesse muito mais... trouxera até uma cadeira de rodas para ela se sentar e se locomover, mas Payne não conseguia suportar a visão da coisa ou a ideia de passar a vida “rolando” de um lugar a outro.

Na última semana, fechara sumariamente todas as avenidas da acomodação na esperança de um único milagre... que nunca se concretizou.

Parecia que séculos haviam se passado desde que havia lutado com Wrath... desde que havia conhecido a coordenação e força de seus membros. Havia tomado tanta coisa por certa e agora sentia falta de quem tinha sido, com uma tristeza que achava só ser possível expressar pelos que falecem.

Então, achou que tinha morrido. Seu corpo apenas não foi inteligente o suficiente para parar de funcionar.

Com uma maldição no Antigo Idioma, caiu para trás e permaneceu ali deitada. Quando foi capaz, encontrou a tira de couro que havia amarrado embaixo das coxas. A coisa estava muito apertada, sabia que prendia sua circulação, mas não sentia nem o aperto do laço, nem o doce alívio quando soltou o fecho e o couro pulou solto.

Tinha sido assim desde a noite que havia retornado àquele local.

Nenhuma mudança.

Fechando os olhos, entrou outra vez em uma guerra interna, depois que seus medos lançaram as espadas contra sua mente e os resultados foram ainda mais trágicos. Após sete ciclos de dias e noites, seu exército de racionalidade estava sofrendo pela falta de munição e por uma fadiga profunda. Assim, a maré estava virando. Primeiro, tinha sido impulsionada pelo otimismo, mas ele havia desaparecido; depois, houve um período de resoluta paciência, que não durou muito. Desde então, permanecia naquela estrada árida de esperanças infundadas.

Sozinha.

Na verdade, a solidão era a pior parte da provação: estava completamente separada de todas as pessoas que eram livres para ir e vir, dentro e fora do quarto, mesmo quando elas se sentavam e conversavam com ela ou atendiam as suas necessidades básicas. Confinada àquela cama, estava em outro plano da realidade deles, separados por um deserto vasto e invisível que conseguia visualizar claramente, mas era incapaz de atravessá-lo.

E era estranho. Tudo o que tinha perdido aguçava-se ainda mais quando pensava em seu curandeiro humano... algo tão frequente que não conseguia mais enumerar a quantidade de vezes que havia acontecido.

Oh, como sentia falta daquele homem. Muitas foram as horas que havia passado lembrando-se da sua voz, de seu rosto e daquele último momento entre eles... até as memórias transformarem-se em um cobertor com o qual se aquecia durante os longos e frios momentos de temores e preocupações.

Infelizmente, porém, muito parecido com o que aconteceu com seu lado racional, aquele cobertor foi se desgastando por excesso de uso e não havia como repará-lo.

Seu curandeiro não pertencia ao seu mundo e jamais retornaria... não foi nada além de um sonho breve e vívido, que se desintegrara em filamentos e fragmentos agora que havia acordado.

– Chega – disse a si mesma em voz alta.

Tentando manter-se com a força da parte superior do corpo, virou-se para o lado em direção aos dois travesseiros, lutando contra o peso morto que era a parte inferior do corpo enquanto se esforçava para...

O equilíbrio falhou por um momento e a fez cambalear mesmo estando de bruços, seu braço derrubou o copo de água que havia na mesa próxima a ela.

E, infelizmente, aquele não era um objeto adequado para impacto.

Quando se quebrou, Payne fechou a boca, que era a única maneira que conhecia para manter seus gritos dentro dos pulmões. Caso contrário, violariam o selo de seus lábios e não cessariam.

Quando achou que já dispunha de autocontrole suficiente, olhou para a lateral da cama em direção à bagunça no chão. Normalmente, seria uma coisa simples... algo foi derramado, alguém limparia.

Antes, tudo o que teria feito seria curvar-se e dar um jeito naquilo.

Agora? Tinha duas escolhas: ficar deitada ali e pedir ajuda como uma inválida. Ou pensar, elaborar uma estratégia e fazer uma tentativa de ser independente.

Levou um tempo para descobrir os pontos de apoio para suas mãos e, então, avaliar a distância até o chão. Felizmente, havia sido desconectada de todos os plugues que havia em seu braço, mas um cateter ainda permanecia... então, talvez, fazer aquilo sozinha fosse uma má ideia.

Ainda assim, não conseguia suportar a indignidade de ficar ali deitada. Tinha sido uma guerreira; agora, era uma criança incapaz de cuidar de si mesma.

Era insuportável.

Pegando alguns lenços de papel “Kleenex”, como as pessoas os chamavam, baixou a grade da cama, agarrou a parte de cima e curvou-se sobre a lateral do corpo. A torção fez com que suas pernas sacudissem como as de uma marionete, um movimento muito sem graça, mas, ao menos, conseguiu alcançar o chão liso com a coisa branca e macia na palma da mão.

Ao se estender, tentando manter o precário equilíbrio na beirada da cama, sentiu-se cansada de ter assistência para tudo, ser cuidada, lavada e enrolada como um bebê recém-chegado ao mundo.

Seu corpo foi em direção ao vidro.

Sem perceber, escorregou a mão da aderência lisa da grade e com os quadris tão longe do colchão caiu de cabeça no chão, a força da gravidade foi muito forte para que pudesse vencê-la. Lançando as mãos para se apoiar, foi surpreendida pelo chão molhado, suas palmas escorregaram para baixo de seu corpo, que vacilou, e ela sentiu a força do impacto na lateral do rosto, a respiração explodiu em seus pulmões.

Então, não havia movimento.

Estava presa, a cama apoiando seus membros inúteis, colocando o tronco e a cabeça sobre os braços, esmagando-os contra o chão.

Puxando o ar em sua garganta, gritou:

– Socorro... socooorro...

Com o rosto espremido, os braços começando a ficar dormentes e os pulmões queimando por asfixia, a raiva acendeu dentro de si até seu corpo estremecer...

Primeiro veio um chiado. Em seguida, o barulho transformou-se em movimento quando seu rosto começou a escorregar sobre o ladrilho, a pele ficou tão tensa e fina que parecia estar sendo descascada. E, então, a pressão cresceu em sua nuca, a grossa trança puxava sua cabeça para trás ao mesmo tempo em que a estranha posição levava-a para frente.

Reunindo todas as forças, decidiu concentrar a raiva e manobrou os braços para que as mãos voltassem a espalmar sobre o chão. Após inalar o ar com força, empurrou e conseguiu girar o corpo para ficar de costas para cima...

A trança de cabelos caiu entre os suportes da grade da cama e prendeu-se com força ali, a espessa extensão manteve-a no lugar, enquanto repuxava dolorosamente do pescoço ao ombro. Presa e sem poder ir a lugar algum, poderia ver apenas suas pernas de onde estava, suas longas e esbeltas pernas sobre as quais nunca havia dispensado qualquer atenção.

Quando o sangue foi se acumulando gradualmente em seu tronco, observou a pele de suas panturrilhas ficarem brancas como papel.

Com os punhos fechados, enviou o comando para que os dedos dos pés se movessem.

– Maldição... mexa-se... – teria fechado os olhos para se concentrar, mas não queria perder o milagre caso acontecesse.

Não aconteceu.

Não tinha acontecido antes.

E estava começando a perceber que... não aconteceria.

Quando as unhas dos pés foram do rosa ao cinza, soube que tinha de entrar em um acordo com sua situação. E aquela parecia uma boa analogia para sua posição física atual.

Quebrada. Inútil. Um peso morto.

O colapso que finalmente se seguiu não trouxe consigo lágrimas ou soluços. Em vez disso, o estalo foi demarcado por uma sombria decisão.

– Payne!

Ao som da voz de Jane, fechou os olhos. Não era o salvador que desejava. Seu irmão... precisava do seu irmão gêmeo para fazer o que tinha de ser feito.

– Por favor, chame Vishous – disse com voz rouca. – Por favor.

A voz de Jane chegou bem perto.

– Vamos erguê-la do chão.

– Vishous.

Houve um clique e soube que o alarme que tinha sido incapaz de alcançar havia sido acionado.

– Por favor – ela gemeu. – Chame o Vishous.

– Vamos...

– Vishous.

Silêncio. Até que a porta foi aberta.

– Ajude-me, Ehlena – ouviu Jane dizer.

Payne tinha consciência de que sua boca estava se movendo, mas ficou surda quando as duas fêmeas ergueram suas costas até a cama e as pernas foram reinstaladas, alinhando-as paralelamente entre si, antes de cobri-las com lençóis brancos.

Enquanto diversos esforços de limpeza aconteciam tanto sobre a cama quanto no chão, Payne concentrou-se do outro lado do quarto, na parede branca, que havia encarado durante uma eternidade desde que tinha sido transferida para aquele espaço.

– Payne?

Quando não respondeu, Jane repetiu:

– Payne. Olhe para mim.

Moveu os olhos e não sentiu nada ao observar o rosto preocupado da shellan de seu irmão gêmeo.

– Preciso do meu irmão.

– Claro, vou buscá-lo. Está em uma reunião agora, mas vou fazer com que venha até aqui antes de sair. – Houve uma longa pausa. – Posso perguntar por que deseja vê-lo?

As palavras firmes e equilibradas diziam-lhe claramente que a boa curandeira não era boba.

– Payne?

Payne fechou os olhos com força e ouviu-se dizer:

– Ele me fez uma promessa quando tudo isso começou, e preciso que ele a cumpra.

Apesar de ser um fantasma, o coração de Jane ainda era capaz de parar dentro do peito, e quando se inclinou sobre a beirada da cama hospitalar, não havia nada se movendo por trás de sua caixa torácica.

– Que promessa foi essa? – questionou sua paciente.

– É um problema que diz respeito apenas a nós dois.

Até parece, Jane pensou, concluindo que estava entendendo direito.

– Payne, deve haver mais alguma coisa que possamos fazer.

Porém não fazia ideia do que seria. As radiografias mostravam que os ossos foram alinhados da maneira adequada, as habilidades de Manny consertaram tudo perfeitamente; no entanto, a espinha dorsal... essa era a parte imprevisível, um coringa. Tinha esperança de que alguma regeneração dos nervos fosse possível... ainda estava aprendendo sobre as capacidades físicas dos vampiros, muitas delas pareciam pura mágica comparadas com o que os humanos desempenhavam em termos de cura.

Mas estavam sem sorte; aquele não era o caso.

E não precisava ser um gênio para descobrir o que Payne estava buscando.

– Seja honesta comigo, shellan do meu irmão gêmeo. – Os olhos de cristal de Payne fixaram-se nos de Jane. – Seja honesta consigo mesma.

Se havia uma coisa que Jane odiava por ser médica era que lhe pedissem uma opinião subjetiva. Havia muitos incidentes mesmo quando a situação estava clara: um cara aparece na emergência com a mão arrancada dentro de uma bolsa de gelo e um torniquete ao redor do braço? Era preciso religar o membro e colocar os nervos de volta onde precisavam estar. Uma mulher em trabalho de parto com uma ocorrência anterior por problemas com o cordão umbilical do bebê? Cesariana. Fratura exposta? Abrir o local e consertar o ligamento.

Mas nem tudo era tão “simples”. Geralmente, a névoa cinzenta do “talvez isso”, “talvez aquilo” aproximava-se, e Jane tinha de encarar a situação nublada e obscura...

Oh, a quem ela estava enganando?

O aspecto clínico daquela equação tinha chegado a um resultado correto. Só não queria acreditar na resposta.

– Payne, deixe-me buscar Mary...

– Não queria falar com a fêmea conselheira há duas noites e não desejo falar com ela agora. Está acabado para mim, curandeira. E por mais que me doa chamar meu irmão gêmeo, por favor, vá e traga-o aqui. É uma boa fêmea e não é você que deve enfrentar isso.

Jane olhou para suas mãos. Nunca usou-as para matar. Nunca. Era um ato antiético não apenas com relação a sua vocação e compromisso profissional como também a seus valores pessoais.

E, ainda assim, enquanto pensava sobre seu hellren e o tempo que passaram juntos após acordar com ele, sabia que não poderia permitir que viesse até ali e fizesse o que Payne queria: Vishous havia dado um pequeno passo na direção oposta do precipício no qual estava prestes a se jogar e não havia nada que Jane não faria para impedi-lo de voltar àquele limite.

– Não posso buscá-lo – ela disse. – Desculpe. Mas simplesmente não vou colocá-lo nessa situação.

O gemido que surgiu da garganta de Payne era o desespero em seu coração que criava asas e começava a ser libertado.

– Curandeira, essa é a minha escolha. Minha vida. Não sua. Deseja ser uma verdadeira salvadora, então, faça parecer um acidente ou consiga-me uma arma e eu mesma faço isso. Mas não me deixe neste estado. Não consigo suportar e não vai fazer bem algum a sua paciente se eu continuar assim.

De alguma maneira, Jane sabia que isso aconteceria. Tinha visto claramente nas sombras pálidas sobre as imagens escuras da radiografia, aquelas que lhe deveriam dizer que tudo estava dando certo... e que, se não estivesse, a coluna vertebral tinha sido lesionada de forma irreparável.

Observou aquelas pernas tão imóveis sob o lençol e pensou sobre o juramento de Hipócrates que havia feito anos atrás: “Nunca causar dano ou mal a alguém” era o primeiro mandamento.

Era difícil achar que Payne não estava sendo prejudicada sendo mantida daquela maneira... especialmente porque não quis seguir o procedimento em um primeiro momento. Jane tinha sido a única a insistir por uma alternativa de salvação, transferindo seus motivos para a fêmea... e com V. foi a mesma coisa.

– Encontrarei um jeito – Payne disse. – De alguma forma, encontrarei um jeito.

Difícil não acreditar.

E havia uma grande chance de sucesso se Jane a ajudasse... Payne estava fraca e qualquer arma em sua mão seria um desastre esperando para acontecer.

– Não sei se consigo fazer isso – as palavras deixaram a boca de Jane lentamente. – Você é irmã dele. Não sei se ele me perdoaria.

– Ele não precisa saber.

Deus, que situação difícil. Se fosse ela presa naquela cama, sentiria a mesma coisa que Payne e gostaria que alguém executasse sua última vontade. Mas e o fardo de manter algo daquela magnitude oculto de V.? Como poderia fazer isso?

Só que... a única coisa pior do que isso seria se ele não voltasse daquele lado obscuro que havia dentro dele. E matar sua irmã? Bem, era como um trem expresso com destino ao que ele costumava fazer, não?

A mão de sua paciente encontrou a dela.

– Ajude-me, Jane. Ajude-me...

Quando Vishous deixou a reunião noturna com a Irmandade e dirigiu-se para a clínica no centro de treinamento, sentia-se mais como ele mesmo... e não no mau sentido. O sexo com sua shellan era uma missão importante para os dois, uma maneira de reiniciar tudo e não se limitava à questão física.

Deus, era muito bom ter voltado a se acertar com sua fêmea. Sim, claro, ainda havia problemas esperando por ele... e, bem, droga... quanto mais próximo chegava da clínica, mais o manto de estresse retornava, atingindo seus ombros como um par de carros: havia visitado sua irmã no começo de cada noite e, depois, novamente, ao amanhecer. Nos primeiros dias, houve muita esperança, mas agora... a maior parte daquele sentimento havia passado.

Entretanto, não importava. Ela precisava sair daquele quarto e era isso o que ele faria naquela noite. Estava fora da escala de trabalho e daria um passeio com ela pela mansão para mostrar que havia algo diferente além da gaiola branca de uma sala de recuperação para se viver.

Ela não estava melhorando fisicamente; então, a parte psicológica seria o que a levaria adiante. Tinha de levar.

Moral da história? Não estava preparado para perdê-la agora. Sim, esteve perto dela por uma semana, mas não significava que a conhecia melhor do que quando tudo começou... e achava que precisavam um do outro. Ninguém mais constituía a descendência direta daquela maldita divindade que era a mãe deles e, talvez, juntos pudessem resolver todas as porcarias que acompanhavam o nascimento dos dois. Pelo amor de Deus, não era como se houvesse uma sequência de estágios que ensinasse a ser filho da Virgem Escriba:

Oi, meu nome é Vishous. Sou filho da Virgem Escriba há trezentos anos.

OI, VISHOUS.

Ela me ferrou outra vez e estou tentando não ir até o Outro Lado para gritar e cometer um assassinato sangrento contra ela.

NÓS ENTENDEMOS, VISHOUS.

E por falar em sangue, gostaria de desenterrar meu pai e matá-lo outra vez, mas não posso. Então, vou apenas tentar manter minha irmã viva, mesmo estando paralisada, e tentar lutar contra o impulso de buscar um pouco de dor para conseguir lidar melhor com a dor dela.

VOCÊ É UM COVARDE, VISHOUS, MAS APOIAMOS ESSE SEU JEITO PATÉTICO.

Saindo do túnel e entrando no escritório, cruzou a porta de vidro e, então, caminhou a passos largos pelo corredor. Quando passou pela sala de exercícios, ouviu que alguém estava correndo como se os tênis estivessem pegando fogo, mas, fora isso, não havia ninguém por ali... e tinha a impressão de que Jane ainda deveria estar na cama, descansando, após ter cuidado muito bem dela.

Algo que deu ao macho vinculado nele uma boa dose de satisfação. De verdade.

Quando chegou à sala de recuperação, não bateu, mas...

Quando entrou, a primeira coisa que viu foi a agulha hipodérmica. A segunda visão foi de que o objeto estava sendo trocado de mãos, passando das de sua shellan e para as de sua irmã gêmea.

Não havia um motivo terapêutico para isso.

– O que está fazendo? – ele suspirou, subitamente aterrorizado.

A cabeça de Jane girou, mas Payne não olhou para ele. Seu olhar estava fixo na agulha, como se fosse a chave para o cadeado de sua cela.

E com certeza aquilo lhe ajudaria a sair daquela cama... direto para um caixão.

– Que diabos está fazendo? – Não era uma pergunta. Ele já sabia.

– É minha escolha – Payne disse severamente.

Sua shellan o encarou.

– Sinto muito, V.

Uma névoa branca nublou sua visão, mas não fez nada para reduzir a velocidade do seu corpo ao se lançar para frente. Quando alcançou a beirada do leito, seus olhos clarearam e viu que sua mão enluvada agarrava com força o punho de sua shellan.

Seu toque da morte era a única coisa que mantinha sua irmã distante da morte. E dirigiu-se a ela, não a sua companheira.

– Não ouse fazer isso!

Os olhos de Payne estavam furiosos ao encontrar os dele.

– Você que não ouse!

V. recuou por um momento. Havia olhado no rosto de muitos inimigos, descartado muitos submissos sexuais e esquecido muitos amantes, tanto machos quanto fêmeas, mas nunca tinha visto um ódio tão profundo antes.

Nunca.

– Não é meu deus! – ela gritou para ele. – Não é nada além de meu irmão! E não vai mais me acorrentar neste corpo como nossa mahmen faria!

A fúria dos dois era tanta que, pela primeira vez na vida, havia perdido. Afinal, não fazia sentido entrar em conflito se seu oponente tinha força equivalente à sua.

O problema era que, se saísse de campo agora, voltaria para um funeral.

V. queria andar ao redor da sala para diminuir sua irritação, mas estaria perdido se se afastasse por um décimo de segundo sequer.

– Quero duas horas – ele disse. – Não posso detê-la, mas posso pedir que me dê cento e vinte minutos.

Os olhos de Payne se estreitaram.

– Para quê?

Ia fazer algo que seria inconcebível quando toda aquela coisa começou. Mas aquilo era um tipo de guerra e, consequentemente, não tinha como se dar ao luxo de escolher as armas... tinha de usar o que estava disponível em suas mãos, mesmo que odiasse a ideia.

– Vou lhe dizer exatamente o motivo. – V. tirou a agulha das mãos de Jane. – Vai fazer isso para que a culpa não me assombre pelo resto da minha maldita vida. O que acha desse motivo? Bom o suficiente?

As pálpebras de Payne cederam e houve um longo silêncio, interrompido quando ela disse:

– Vou lhe dar o que me pede, mas não vou mudar de ideia com relação a permanecer nesta cama. Certifique-se de suas expectativas antes de continuar... e fique ciente de que não vai adiantar argumentar com nossa mahmen. Não vou trocar essa prisão por outra ao lado dela, no mundo dela.

Vishous enfiou a agulha no bolso e desembainhou a faca de caça que ficava permanentemente presa ao cinto de sua calça de couro.

– Dê-me sua mão.

Quando ela a ofereceu, ele cortou a palma da mão com a lâmina e fez o mesmo com a própria carne. Então, V. uniu as feridas.

– Jure. Pelo sangue que compartilhamos, fará um juramento a mim.

A boca de Payne se contraiu como se, mais uma vez, ela tivesse sorrido se fosse uma circunstância diferente.

– Não confia em mim?

– Não – disse ele com voz rouca. – Nem um pouco, querida.

Um pouco depois, a mão dela agarrou a dele e um brilho de lágrimas formou-se sobre seus olhos.

– Eu juro.

Os pulmões de Vishous relaxaram e ele respirou fundo.

– Muito bem.

Soltou a mão, virou-se e caminhou até a porta. Assim que chegou ao corredor, não perdeu tempo ao se dirigir para o túnel.

– Vishous.

Ao som da voz de Jane, volveu-se e quis soltar um palavrão. Balançando a cabeça, disse:

– Não me siga, não ligue para mim. Nada de bom vai sair de mim se ouvir sua voz neste momento.

Jane cruzou os braços sobre o peito.

– Ela é minha paciente, V.

– Ela é meu sangue, Jane. – Frustrado, golpeou o ar com a mão. – Não tenho tempo para isso. Estou saindo.

Com isso, começou a correr. Deixando-a para trás.


CAPÍTULO 19

Quando Manny chegou em casa, fechou a porta, trancou... e ficou ali. Como uma peça da mobília. Com sua maleta na mão.

É incrível como, quando você enlouquece, sente que não consegue lidar com as opções do que fazer. Sua vontade não havia mudado; ainda queria assumir o controle de si mesmo... não importava o que estivesse acontecendo em sua vida. Mas não havia nada em que se agarrar, nada de rédeas naquela fera.

Droga, deveria ser assim que os pacientes de Alzheimer sentiam-se: a personalidade e o intelecto estavam intactos... mas estavam cercados por um mundo que não fazia mais sentido, pois não podiam se firmar nas memórias, associações e inferências.

Estava tudo ligado àquele final de semana... ou, ao menos, havia começado ali. Mas o que tinha mudado exatamente? Perdeu, no mínimo, a memória de uma daquelas noites, era só isso que podia dizer. Lembrou-se da pista de corrida, da queda de Glory e do veterinário. Em seguida, a viagem de volta a Caldwell, quando ele foi ao...

O prévio aviso de uma dor de cabeça surgindo fez com que xingasse e desistisse.

Andando até a cozinha, soltou a maleta e começou a encarar a cafeteira. Deixou-a ligada ao sair para o hospital. Ótimo. Seu café matinal ficou fervendo a noite inteira e era um milagre não ter queimado a droga do apartamento inteiro.

Sentando-se em uma das banquetas ao redor do balcão de granito, encarou a parede de vidro a sua frente. A cidade do outro lado da varanda brilhava como uma dama indo ao teatro com todos os seus diamantes; as luzes nos arranha-céus cintilavam e faziam com que ele se sentisse real e verdadeiramente sozinho.

Silêncio. Vazio.

O apartamento parecia-se mais com um caixão.

Deus, se não pudesse mais operar, o que faria...

A sombra surgiu do nada em seu terraço. Só que não era uma sombra... não havia nada translúcido na coisa. Era como se as luzes, as pontes e os arranha-céus fossem uma pintura em que alguém havia cortado um buraco no meio.

Um buraco que assumia a forma de um homem grande.

Manny levantou-se da banqueta, olhos fixos na figura. No fundo de sua mente, na sede de seu tronco cerebral, sabia que aquela era a causa de tudo, seu “tumor” estava ali, em pé, e caminhava... vindo até ele.

Como se tivesse sido convidado, aproximou-se e abriu a porta corrediça de vidro; o vento atingiu seu rosto com força, seu cabelo foi jogado para trás.

Estava frio. Oh, muito frio... mas o choque álgido não se devia apenas à noite gelada de abril. A baixa temperatura emanava da figura que permanecia em pé, imóvel e letal, a alguns metros de distância dele. Tinha a nítida impressão de que a explosão ártica era porque o filho da mãe vestido com roupas de couro o odiava demais; mas Manny não tinha medo. A resposta para o que estava acontecendo com ele estava ligada àquele homem enorme que havia aparecido do nada, a uns vinte andares acima do chão...

Uma fêmea... uma com cabelos escuros trançados... esse era o...

A dor de cabeça o impactou com força, atingindo-o na nuca e penetrando em direção ao crânio para golpear com força seu maldito lóbulo frontal.

Quando seu corpo cedeu, precisou apoiar-se na borda do balcão da cozinha e perdeu a paciência.

– Caramba, pelo amor de Deus, não fique aí parado. Fale comigo ou me mate, mas faça alguma coisa.

Mais vento no rosto.

E, então, uma voz profunda:

– Não deveria ter vindo aqui.

– Sim, deveria – Manny gemeu de dor. – Por que estou enlouquecendo e você sabe disse, não é? Que diabos fez comigo?

Aquele sonho... com a mulher que desejava, mas não conseguia ter...

Os joelhos de Manny começaram a falhar, mas para o inferno com isso.

– Leve-me até ela... e não brinque comigo. Sei que ela existe... Consigo vê-la todas as noites em meus sonhos.

– Não gosto nada disso.

– Sim, e eu estou curtindo uma festa aqui. – O filho da mãe ficou em silêncio. Quando percebeu que havia a possibilidade do bastardo misterioso agredi-lo, posicionou-se; Manny ia investir contra o cara e faria algum estrago nele. Ele certamente seria estraçalhado, mas não deixaria que ele o derrubasse sem lutar.

– Vamos lá – Manny disparou. – Faça isso.

Houve uma risada contida.

– Você me faz lembrar um amigo meu.

– Quer dizer que há outro idiota perdido na vida por sua causa? Ótimo. Podemos iniciar um grupo de apoio.

– Maldição...

O cara ergueu uma das mãos e então... as memórias explodiram na mente de Manny e fluíram através de seu corpo, as imagens e sons de seu fim de semana perdido voltaram com uma vingança.

Tropeçando para trás, colocou as mãos na cabeça.

Jane. Um local secreto. Cirurgia.

Vampira.

Um punho de ferro em seus bíceps foi tudo o que o impediu de cair no chão, o irmão de sua paciente o segurava.

– Precisa vir e cuidar da minha irmã. Ela vai morrer se não fizer isso.

Manny respirou pela boca e engoliu em seco. A paciente... sua paciente...

– Ela ainda está paralisada? – ele gemeu.

– Sim.

– Leve-me – exclamou. – Agora.

Se fosse o caso da medula espinhal ter sofrido um dano permanente, não havia nada clinicamente possível a fazer por ela, mas isso não importava. Tinha de vê-la.

– Onde está seu carro? – o filho da mãe de cavanhaque perguntou.

– Lá embaixo.

Manny desvencilhou-se e correu em direção à maleta. Havia deixado as chaves sobre o balcão da cozinha. Quando tropeçou e caiu, seu cérebro ficou confuso de uma maneira que o aterrorizou. Se houvesse mais um pouco desse “liga e desliga” de sua placa-mãe mental ia acabar sofrendo prejuízos permanentes. Mas essa era uma discussão para outro momento.

Tinha de ir até sua fêmea.

Quando alcançou a porta da frente, o vampiro estava bem atrás dele e Manny trocou suas coisas para a mão esquerda.

Com um giro rápido, lançou seu punho direito, que se encaixou em um arco perfeitamente calculado para golpear o queixo do cara.

Crack. O impacto foi sólido e a cabeça do desgraçado foi arremessada para trás.

Quando o vampiro voltou a olhar para ele e levantou o canto da boca em um rosnado, Manny não se intimidou.

– Isso é por brincar comigo.

O macho passou as costas da mão pela boca sangrenta.

– Belo gancho.

– Está à disposição – Manny disse ao sair do apartamento.

– Eu poderia tê-lo impedido a qualquer momento. Só para deixar claro.

Verdade, sem dúvida.

– Sim, mas não foi o que fez, certo? – Manny caminhou até o elevador, pressionou o botão para descer e olhou sobre o ombro. – Assim, isso faz de você um idiota ou um masoquista. A escolha é sua.

O vampiro se aproximou.

– Cuidado, humano... só está vivo por ser útil para mim.

– Ela é sua irmã?

– Não se esqueça disso.

Manny sorriu mostrando todos os dentes.

– Então, tem uma coisa que precisa saber.

– O quê?

Manny ergueu-se sobre os dedos dos pés e encarou o filho da mãe olho no olho.

– Se pensa que quer me matar agora, não é nada comparado ao que vai sentir quando eu a vir outra vez.

Estava praticamente rijo só de pensar na fêmea.

Com um sinal sonoro, as portas duplas do elevador se abriram e, então, ele avançou, entrou e virou-se. Os olhos do vampiro eram como lanças procurando um alvo, mas Manny minimizou a agressão.

– Só para que saiba a minha situação. Agora, entre no elevador ou desapareça como um fantasma até a rua. Pego você com o carro lá embaixo.

– Deve achar que sou um idiota, não é mesmo? – o vampiro rosnou.

– Na verdade, nem um pouco.

Pausa.

Depois de um momento, o vampiro resmungou alguma coisa e deslizou para dentro do elevador quando as portas começaram a se fechar. Então, os dois simplesmente ficaram lado a lado, observando a contagem regressiva dos números sobre as portas duplas...

Cinco... quatro... três... dois...

Como a contagem regressiva para uma explosão.

– Cuidado, humano. Não sou alguém a quem você queira pressionar.

– Não tenho nada a perder – A não ser a irmã daquele desgraçado enorme. – Acho que vamos ter que esperar para ver onde isso vai acabar.

– É isso aí.

Payne parecia um bloco de gelo sombrio enquanto encarava o relógio que havia próximo à porta do quarto. A face circular do aparelho era tão plana quanto a parede branca atrás dele, sem marcar nada além de doze números pretos separados por linhas pretas. As hastes do aparelho, uma negra e outra vermelha, percorriam seu caminho como se estivessem entediadas com aquele serviço, assim como ela estava ao observá-los trabalhando.

Vishous deve ter ido ver sua mãe. Onde mais iria?

Portanto, era uma perda de tempo. Com certeza, ele voltaria sem nada. Era pura arrogância pensar que “Aquela que não Podia ser Influenciada” se abalaria minimamente com os apuros pelos quais seus filhos passavam.

Mãe da raça. Que asneira...

Payne franziu a testa. O som começou do nada, com um ritmo fraco, mas, rapidamente, ficou mais alto. Passos. Passos pesados percorrendo o chão duro em ritmo acelerado, e havia dois pares de pés se aproximando.

Talvez não fosse ninguém além dos Irmãos de seu gêmeo vindo lhe fazer uma visita...

Quando a porta se abriu, tudo o que conseguiu ver foi Vishous em pé, muito alto e intransigente.

– Trouxe uma coisa para você.

Ele não chegou a se afastar, foi empurrado...

– Querida Virgem Escriba... – a boca de Payne se abriu, enquanto as lágrimas transbordavam de seus olhos.

Seu curandeiro irrompeu no quarto e, oh, era exatamente como se lembrava... peitoral largo, membros alongados, abdômen liso e um maxilar bem definido. Seu cabelos escuros estavam esticados, como se tivesse passado os dedos entre eles várias vezes, e estava respirando com dificuldade, a boca um pouco entreaberta.

– Eu sabia que você era real – ele desabafou. – Caramba, eu sabia!

A visão dele disparou algo nela, uma energia iluminou-a de dentro para fora, lançando suas emoções em queda livre.

– Curandeiro... – disse ela com voz rouca. – Meu curandeiro...

– Que inferno... – ouviu seu irmão dizer.

O humano de Payne virou-se para Vishous.

– Precisamos de um pouco de privacidade. Agora.

– Cuidado com essa maldita boca...

– Sou o médico dela. Você me trouxe aqui para que eu a avalie clinicamente...

– Não seja ridículo.

Houve uma pausa.

– Então, por que diabos estou aqui?

– Pelo exato motivo que eu lhe odeio, é por isso!

Aquilo provocou um grande silêncio... seguido por um soluço de Payne. Ela estava tão feliz em ver seu curandeiro em carne e osso. E aquele único suspiro fez a cabeça dos dois girarem em sua direção, o rosto do curandeiro mudou instantaneamente, passando da fúria à preocupação.

– Feche a porta quando sair – vociferou por cima do ombro enquanto se aproximava dela.

Passando as mãos sobre os olhos, Payne limpou suas lágrimas e observou seu curandeiro sentar-se ao lado da cama. Vishous tinha se virado e ia em direção à saída.

Ele sabia, ela pensou. Mais do que qualquer coisa que a mãe deles pudesse fazer por ela, trouxe a única coisa que garantiria seu desejo de continuar viva.

– Obrigada, meu irmão – ela disse, o olhar fixo nele.

Vishous parou. A tensão nele era tão grande, os dois punhos estavam fechados, e quando sua cabeça virou-se lentamente, seus olhos glaciais queimavam.

– Faria qualquer coisa por você. Qualquer coisa.

Com isso, continuou a sair... e quando a porta foi fechada com cuidado, percebeu que “Eu amo você” poderia ser dito sem que tal frase fosse pronunciada.

Ações significavam mais do que palavras.


CONTINUA

CAPÍTULO 13

Qhuinn entrou na mansão pela sala principal, o que foi um erro.

Deveria ter entrado na mansão pela garagem, mas a verdade é que aqueles caixões empilhados o assustavam. Sempre achava que as tampas seriam abertas e alguma coisa ao estilo Noite dos Mortos Vivos sairia dali para matá-lo.

Ainda assim, precisava muito superar essa covardia.

Graças ao relacionamento que tinha com os gays da casa, assim que abriu caminho pelo saguão de entrada, teve a visão clara de Blaylock e Saxton descendo a escadaria; os dois pareciam modelos ao se dirigirem à Última Refeição. Usavam calças, mas não eram jeans; blusas, não blusões, e sapatos, não botas de combate. Estavam limpos, bem barbeados, perfumados e penteados, mas não eram nem um pouco afeminados.

Na verdade, isso facilitaria muito as coisas. Pelo amor de Deus, desejava que um dos filhos da mãe se tornasse drag queen, enchesse-se de plumas e fizesse as unhas, mas não: continuavam a parecer dois machos muito atraentes que sabiam como gastar o dinheiro em lojas de grife... enquanto ele, por outro lado, serpenteava em seus couros e camisetas regatas... e, naquela noite em particular, ostentava cabelos desgrenhados por causa do sexo violento e perfume, se é que poderia chamar assim, da mesma linha de produtos de cuidados de uma vagabunda.

Por outro lado, poderia apostar que o que os separava do estado em que ele se encontrava era apenas um banho quente, cheio de sabão e uma visita ao armário: lamberia dinheiro se eles não haviam estado se pegando a noite toda. Pareciam muito satisfeitos e, ao mesmo tempo, famintos ao caminharem para o local onde faziam as refeições.

Quando atingiram o mosaico onde havia a representação de uma macieira em plena floração, os olhos azuis de Blay movimentaram-se e encararam Qhuinn dos pés à cabeça. O rosto do rapaz não demonstrou qualquer reação. Não mais.

A velha chama de dor não estava mais exposta... e isso não se devia ao fato de que o entretenimento que Qhuinn tinha acabado de ter era totalmente óbvio.

Saxton disse alguma coisa e Blay desviou o olhar... e lá estava. Um rubor naquele rosto adorável ao encontrar aqueles olhos cinza.

Não posso fazer isso, Qhuinn pensou. Não esta noite.

Evitando a cena na sala de jantar, encaminhou-se à porta abaixo das escadas e passou pela coisa. No instante em que se fechou, a conversa das pessoas foi interrompida e a escuridão silenciosa correu para cumprimentá-lo. Estava mais disposto a isso.

Desceu as escadas rasas, passou por outra porta codificada, entrou no túnel subterrâneo que ligava a casa principal ao centro de treinamento. Quando ficou sozinho, correu a todo vapor. Faltando pouco para suas pernas pararem de funcionar, teve de se inclinar contra a parede lisa. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos... e desejou colocar uma arma no meio dos olhos.

Ficou com o ruivo no Iron Mask.

Conseguiu deixar o hétero bem excitado.

E aconteceu exatamente do jeito que tinha previsto, começando com os dois conversando no bar e paquerando as garotas. Pouco depois, uma mulher de seios enormes aproximou-se deles com botas de plataforma pretas. Conversaram com ela, beberam com ela... com a amiga dela. Uma hora depois? Os quatro estavam em um banheiro, bem espremidos.

Essa tinha sido a parte dois do plano. As mãos atuavam em espaços reduzidos e quando havia muitas delas se movendo e arranhando, não se podia ter certeza daquilo que tocava. Ou que lhe acariciava. Ou sentia.

Em todo o tempo que esteve com as garotas, Qhuinn ficou pensando em uma estratégia para se livrar das fêmeas e isso levou muuuito mais tempo do que desejava. Depois do sexo, as garotas queriam algo mais... trocar telefones, dar uma volta, perguntaram se não queriam sair para comer alguma coisa.

Sim, claro. Não precisava de dígito algum, pois jamais ligaria para elas, não ia bater perna mesmo com pessoas que gostava, e o tipo de comida que poderia oferecer a elas não tinha nada a ver com um jantar gorduroso.

Após preencher os requisitos da vadia dentro dele, foi forçado a fazer uma lavagem cerebral nelas... o que o levou a um raro momento de compaixão pelos machos humanos que não podiam se dar a esse luxo.

E, então, ele e sua presa estavam sozinhos, o macho humano recostou-se contra a pia para se recuperar. Qhuinn fingiu estar fazendo isso ao encostar-se contra a porta. Eventualmente, seus olhos se encontraram. De maneira casual para o macho humano, de um jeito muito sério da parte de Qhuinn.

– O que foi? – o homem perguntou. Mas já sabia... pois as sobrancelhas franziram com força.

Qhuinn estendeu as mãos para trás e girou a chave, assim, não seriam perturbados.

– Ainda estou com fome.

De repente, o ruivo encarou a porta como se quisesse sair... mas seu pênis contava uma história totalmente diferente. Por trás do zíper daquele jeans... estava excitado.

– Ninguém nunca vai saber – Qhuinn disse de maneira sombria. Inferno, poderia fazer aquilo sem que o ruivo se lembrasse... contudo, se o cara não soubesse de nada sobre a questão vampira, não havia razão para remexer seu crânio e limpar as coisas lá dentro.

– Pensei que tinha dito que não era gay... – o tom foi um tanto melancólico, como se o cara não estivesse totalmente confortável com aquilo que seu corpo queria.

Qhuinn diminuiu a distância entre eles, colocando seu peito contra o do ruivo. Então, agarrou a nuca do cara e puxou-o contra sua boca. O beijo produziu o efeito planejado: tirou todo raciocínio lógico do banheiro e não deixou nada além das sensações para trás.

A coisa toda aconteceu a partir daí. Duas vezes.

Quando acabou, o cara não ofereceu seu número de telefone. Foi um espetáculo, mas era evidente que tinha sido algo experimental, uma primeira e única vez. Algo que não tinha problema algum para Qhuinn. Partiram sem dizer uma palavra, cada um seguindo sua vida, com o ruivo voltando para o bar... e Qhuinn saindo para passear nas ruas de Caldwell sozinho.

Apenas a chegada iminente do amanhecer o fez retornar.

– Que inferno... – disse a si mesmo.

A noite toda foi uma lição que o incomodou como um veneno de urtiga... Sim, havia momentos na vida em que um substituto funcionava: em uma reunião de conselho, por exemplo, quando enviava alguém para representar seu voto. Ou quando precisava de alguma coisa do mercado e dava sua lista a um doggen. Ou quando prometia jogar bilhar, mas ficava bêbado demais para segurar o taco e arrumava alguém para acertar suas bolas.

Infelizmente, a teoria do substituto não funcionava tão bem quando se queria ser o único a tirar a virgindade de alguém e a melhor ideia que tinha era ir a um clube, encontrar alguém com traços físicos semelhantes como... oh, digamos... mesma cor de cabelo... e transar com ele ao invés da pessoa desejada.

Em tal caso de substituição, você acabava se sentido vazio e não por que tinha gozado muito e estivesse flutuando em uma nuvem de pós-transa dizendo ahhh, sim.

Parado naquele túnel, sozinho, Qhuinn estava totalmente vazio. Uma cidade fantasma por dentro.

Pena que sua libido estava cheia de ideias brilhantes. Na silenciosa solidão, começou a imaginar como teria sido se fosse ele ao invés de seu primo a descer com Blay para o jantar. Se fosse ele quem estivesse dividindo não apenas uma cama, mas o quarto com o cara. Se conseguisse se levantar diante de todos e dizer: “Ei, esse é meu companheiro...”.

O bloqueio mental que se seguiu após essa breve canção foi tão completo que temeu ter levado um soco na cabeça.

E esse era o problema, não era?

Ao esfregar seus olhos díspares, pensou no quanto sua família o odiava: foi criado para acreditar que o defeito genético de ter uma íris azul e outra verde significava que era uma maldita aberração e o trataram como uma vergonha para a linhagem.

Bem, na verdade, foi pior que isso: acabaram chutando Qhuinn para fora de casa e enviaram um guarda de honra para ensinar-lhe uma lição. E foi assim que acabou tornando-se um viajante.

Para pensar que nunca saberiam sobre as outras “anomalias” que nutria.

Como desejar estar com seu melhor amigo.

Cristo, ele não precisava de um espelho para ver o covarde e a fraude que era... mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Estava trancado em uma jaula sem que pudesse encontrar a chave, os anos de escárnio de sua família golpeavam-no e davam-lhe cólicas: a verdade por trás de seu lado selvagem é que era um maricas total. Blay, por outro lado, declarou quem era e encontrou outra pessoa.

Maldição, aquilo doía...

Com um palavrão, interrompeu o monólogo pré-menstrual e obrigou-se a continuar andando. Recuperava-se a cada passo, dando um jeito em sua bagunça interna ao consertar e fortificar os canos que vazavam.

A vida era feita de mudanças. Blay tinha mudado. John tinha mudado.

E, aparentemente, ele era o próximo da lista, por que não poderia continuar assim.

Ao entrar no centro de treinamento pelos fundos do escritório, decidiu que se Blay conseguiu virar a página, então, ele também conseguiria. A vida era como as pessoas determinavam que fosse, independentemente de onde o destino as colocava, a lógica e o livre-arbítrio significavam que poderiam definir seu caminho da maneira que achassem melhor.

E não queria estar onde estava: nada de sexo anônimo. Nada de estupidez desesperada. Nada de arder em ciúmes e daquelas lamentações irritantes que não o levavam a lugar algum.

O vestiário estava vazio, já que não havia aulas de treinamento acontecendo, e ele se trocou, ficando nu antes de colocar a bermuda preta esportiva e um par de tênis da mesma cor. A sala de ginástica também funcionava como uma câmara de eco, o que era bom também.

Ligando o sistema de som, passou as músicas com o controle remoto. Quando a música “Clint Eastwood”, dos Gorillaz, tocou, subiu em uma esteira e ligou o aparelho. Odiava fazer exercícios... simplesmente desprezava a natureza roedora daquilo tudo. Era melhor transar e lutar, era o que sempre dizia.

No entanto, quando se estava preso dentro de casa por causa da madrugada e determinado a tentar dar uma chance ao celibato, correr para chegar a lugar algum parecia bem interessante para consumir as energias.

Calibrando a máquina, posicionou-se sobre ela e cantou junto com a música.

Concentrando-se no concreto pintado de branco ao longo do local, deu uma passada após a outra, de novo e de novo, e mais outra vez, até não haver nada em sua mente nem em seu corpo além de passos repetitivos, a batida do coração e o suor que se formava no peito nu, no estômago e nas costas.

Pela primeira vez na vida, não acionou um ritmo alucinante: a velocidade foi calibrada para que o ritmo obedecesse a uma rotatividade constante, o tipo de ritmo que poderia manter durante horas.

Quando se está tentando fugir de si mesmo, gravita-se para situações fortes e desagradáveis, para os extremos, para a imprudência, para que seja forçado a lutar e agarrar com as unhas os terrenos acidentados de sua autoinvenção.

Assim como Blay era quem mostrava ser, Qhuinn fazia o mesmo: apesar de desejar estar lá fora com o... macho... que amava, não poderia fazer isso.

Mas, por Deus, ia parar de fugir da covardia. Tinha de dominar a si mesmo – mesmo se acabasse se odiando com todas as forças. Talvez, se fizesse isso, pararia de tentar distrair-se com sexo e bebida e descobriria o que realmente queria.

Além de Blay, é claro.


CAPÍTULO 14

Sentando-se ao lado de Butch no Escalade, Vishous tinha machucados distribuídos por seus quase dois metros de altura e seus mais de cem quilos.

Enquanto corriam a toda velocidade de volta ao complexo da Irmandade, cada centímetro latejava, a dor formava uma névoa que acalmava o grito dentro dele.

Logo, tinha conseguido alguma coisa de que precisava.

O problema era que o alívio já estava começando a desaparecer e o deixava furioso com o Bom Samaritano atrás do volante. Não que o tira parecesse se importar; ele discava aquele celular dele e desligava, discava de novo e desligava outra vez, como se os dedos em sua mão direita tivessem algum tique nervoso.

Provavelmente estava ligando para Jane e pensando melhor sobre isso. Ainda bem que...

– Sim, gostaria de comunicar um corpo – ouviu o tira dizer. – Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

Enquanto Butch continuava a falar assim com a atendente, V. movimentou o traseiro no banco e sentiu as costelas quebradas em seu lado direito uivarem. Nada mal; se precisasse de outra surra para acalmá-lo, poderia fazer algumas flexões e a agonia voltaria com força total outra vez...

Butch jogou o celular no painel. Praguejou. Praguejou novamente.

Então, decidiu dividir os problemas:

– Até onde ia deixar aquilo chegar, V.? Até que o esfaqueassem? Deixassem você caído para queimar ao sol? O que seria ir longe o suficiente?

V. falou com os lábios inchados:

– Não muito adiante, é verdade.

– Adiante? – Butch balançou a cabeça, seus olhos estavam muito violentos. – Como é que é?

– Não finja... não sabe como é isso. Já o vi em uma bebedeira... Já o vi... – ele tossiu. – Já o vi completamente bêbado com um copo nas duas mãos. Então, não me venha com essa de que é “mais inocente que eu” pra cima de mim.

Butch voltou a se concentrar na estrada.

– Você é um filho da mãe miserável.

– Que seja.

Sim, a conversa pararia por aí.

No momento em que Butch estacionou em frente à mansão, os dois estavam retraindo-se e piscando como se estivessem sendo golpeados por um bastão: o sol ainda estava oculto no lado mais distante do horizonte, mas era o suficiente para espalhar um rubor no céu que estava apenas a alguns centímetros de distância de dizimar um vampiro.

Não cruzaram a entrada principal; sem chance. A Última Refeição estava preste a começar e, considerando o humor daqueles dois, não havia razão para alimentar a fábrica de fofocas.

Sem dizer nada, V. entrou no Buraco e fez o caminho mais curto até seu quarto. Não veria Jane ou sua irmã daquele jeito, não mesmo. Inferno, se considerasse as dores no rosto, não tinha como vê-las sem antes tomar um banho.

No banheiro, ligou a água e desarmou-se no escuro – isso envolveu apenas tirar sua adaga do coldre em volta da cintura e colocá-la sobre o balcão. Suas roupas estavam imundas, cobertas de sangue, cera e outras porcarias, e deixou-as cair no chão, sem saber ao certo o que faria com elas.

Então, colocou-se debaixo da ducha antes de ficar quente. Quando a água quente atingiu seu rosto e peitoral, silvou; o impacto desceu até seu pênis e o enrijeceu – não que ele tivesse qualquer interesse em fazer alguma coisa com a ereção. Apenas fechou os olhos enquanto seu sangue e o do inimigo escorriam de seu corpo e eram escoados para o ralo.

Cara, quando conseguisse terminar de lavar tudo aquilo, estaria pronto para colocar uma blusa de gola alta. Seu rosto estava terrível, mas talvez pudesse explicar isso com o fato de que esteve na rua lutando com o inimigo. Mas era suficiente para transformá-lo em um quadro preto e azul da cabeça aos pés?

Nem tanto.

Abaixando a cabeça, deixou a água cair no nariz e no queixo; tentou desesperadamente voltar para os carros alegóricos do entorpecimento que sentiu no carro, mas com a dor desaparecendo, sua opção alucinógena estava perdendo o controle sobre ele, e o mundo estava ficando nítido demais outra vez.

Deus, a sensação de estar fora de controle e irritado o sufocava, como se houvessem mãos em volta de sua garganta.

Maldito Butch. Metido a benfeitor, barulhento, que interferia na vida dos outros como um filho da mãe.

Dez minutos depois, ele saiu, pegou uma toalha preta, enrolou-se no tecido felpudo e entrou no quarto. Parando para abrir o armário, desejou uma vela negra em... deu uma olhada nas roupas de sua esposa. Além disso, só havia roupas de couro. Era o que acontecia com seu guarda-roupa quando se lutava para sobreviver e dormia nu.

Nenhuma blusa de gola alta à vista.

Bem, talvez não estivesse tão ruim assim...

Um rápido giro em direção ao espelho atrás da porta, e teve de fazer uma pausa. Parecia que tinha sido agarrado pelo monstro do Rhage, grandes faixas com vergões vermelhos envolviam seu tronco e estendiam-se sobre seus ombros e peitorais. Seu rosto era uma piada, um dos olhos estava tão inchado que a pálpebra estava quase inoperante... o lábio inferior profundamente rachado... o queixo parecia um esquilo escondendo nozes.

Ótimo: parecia um dos garotos de Dana White.*

Depois disso, pegou suas roupas sujas e enfiou-as no fundo do armário, em seguida, colocou a cabeça inchada como um balão para fora do quarto, no corredor, e ouviu. O canal de esportes estava tagarelando lá embaixo à esquerda, e alguma coisa líquida estava sendo servida à direita.

Dirigiu-se para o quarto de Butch e Marissa nu. Não havia razão para esconder os machucados de Butch... o filho da mãe viu tudo acontecer.

Quando entrou pela porta, encontrou o tira sentado na ponta da cama, cotovelos sobre os joelhos, um copo de uísque nas mãos e uma garrafa entre os sapatos.

– Sabe no que estou pensando agora? – o cara disse sem erguer os olhos.

V. poderia pensar em uma lista infernal de coisas.

– Diga-me.

– Na noite em que o vi se jogar da varanda do Commodore. Na noite em que eu pensei que tinha morrido – Butch tomou um gole do que estava no copo. – Achei que tínhamos superado aquilo.

– Se serve de consolo... eu também.

– Por que não vai ver sua mãe? Falar sobre essas porcarias com ela?

Como se houvesse alguma coisa que a fêmea pudesse dizer naquele momento...

– Eu a mataria, tira. Não sei como faria isso... mas eu a mataria por isso. Ela me deixou com aquele pai sociopata... sabendo exatamente como ele era, porque, afinal, ela vê tudo. Então, manteve um segredo relacionado a mim por trezentos anos, antes disso aparece no meu aniversário, tentando me colocar como uma referência para sua religião burra e estúpida. Mas eu poderia ter deixado tudo isso para lá, não é mesmo? Porém, minha irmã, minha irmã gêmea? Ela afastou Payne de mim, tira; manteve-a junto dela contra sua vontade. Por séculos. E nunca sequer me contou que eu tinha uma irmã. Isso é demais. Para mim chega. – V. encarou o uísque. – Tem um pouco disso aí sobrando?

Butch tirou a rolha da garrafa e estendeu a bebida. Quando V. a pegou, o tira disse:

– Mas acordar os mortos não é a resposta, e nem tentar se destruir como está fazendo.

– Você se habilita a fazer isso por mim? Porque estou enlouquecendo e preciso sair, Butch. De verdade. Sou perigoso aqui... – V. deu um gole na bebida e amaldiçoou quando a coisa deslizou em seus lábios, dando a sensação de que estava fumando um cigarro do lado errado. – E não consigo pensar em uma maneira de tirar isso de mim... Mas com certeza não vou voltar a praticar meus velhos hábitos.

– Não se sente tentado?

V. preparou-se e deu outro gole. Com uma careta, disse:

– Quero o prazer, mas não vou fazer isso com ninguém além de Jane. De jeito nenhum vou voltar para nossa cama com o fedor de alguma vadia em meu pênis... isso estragaria tudo, não apenas para ela, mas para mim também. Além disso, o que preciso agora é de um dominante e não de um submisso... e não há ninguém em quem eu possa confiar. – Exceto, talvez, por Butch, mas isso ultrapassaria muitos limites. – Então, estou preso: tenho um monstro gritando na minha cabeça e lugar algum para ir com essa besta... e isso está me enlouquecendo.

Meu Deus... ele disse isso. Tudo isso.

É isso aí, cara.

E o prêmio foi outro gole da garrafa.

– Caramba, meus lábios estão doendo.

– Sem ofensas, mas é benfeito... Você merece. – Os olhos castanhos de Butch se ergueram e, depois de um momento, sorriu um pouco, exibindo aquela coroa no dente da frente, bem como suas presas. – Sabe? Eu estava quase odiando você um minuto atrás, estava mesmo. E antes que me peça, as blusas de gola alta estão dobradas no final daquela fileira de cabides. Pegue uma calça de moletom também. Parece que bateram um martelo nas suas pernas e que suas bolas estão prestes a explodir.

– Obrigado, cara. – V. aproximou-se da fileira de roupas que estavam suspensas em cabides de cedro fino. Uma coisa que se podia dizer de Butch era que seu guarda-roupa era cheio de opções. – Nunca pensei que ficaria contente por seu armário parecer o de uma maníaca por roupas.

– Acho que o termo é “especialista em vestir-se bem”.

Com aquele sotaque de Boston as palavras soaram diferentes e V. se perguntou se alguma vez na vida chegou a não ouvir aquele sotaque de Boston em seu ouvido.

– O que vai fazer em relação a Jane?

V. colocou a garrafa no chão, puxou uma gola alta de caxemira sobre a cabeça e ficou decepcionado em ver que mal cobria seu umbigo.

– Ela já tem problemas suficientes. Nenhuma shellan precisa ouvir que seu macho saiu para levar uma boa surra... e não quero que diga a ela.

– Como vai explicar esses machucados, espertinho?

– O inchaço vai diminuir.

– Mas não rápido o suficiente... vai visitar Payne assim...

– Ela também não precisa ter o prazer dessa visão. Só vou me esquivar durante um dia. Payne está em recuperação e estável... pelo menos, foi o que Jane me disse... por isso, vou para minha oficina de ferragens.

Butch estendeu o copo.

– Importa-se?

– Entendido. – V. serviu seu amigo, tomou outro gole e, em seguida, vestiu uma calça. Erguendo os braços para os lados, deu uma volta. – Melhor?

– Tudo o que vejo são tornozelos e pulsos... e, para sua informação, está parecendo uma Miley Cyrus muito esquisita com essa barriga de fora. Nada atraente.

– Vá se ferrar! – Quando V. pegou a garrafa e deu outro gole, decidiu que ficar bêbado era seu novo plano. – Não posso fazer nada se você parece um maldito anão.

Butch riu com satisfação e, em seguida, voltou a ficar sério.

– Se fizer isso outra vez...

– Vai pedir para que eu tire suas roupas.

– Não é disso que estou falando.

V. puxou as mangas da blusa e não conseguiu nada com isso.

– Não precisa intervir, tira, não vou me matar. Não é esse o ponto. Sei onde está o limite.

Butch praguejou, seu rosto assumiu uma expressão sombria.

– Você diz isso e acredita que seja verdade. Mas as situações podem entrar em um turbilhão... especialmente as que está vivendo. Pode entrar na onda de... seja lá o que acha ser necessário... e a maré pode acabar virando contra você.

V. flexionou sua mão enluvada.

– Impossível. Não com isso... E não quero mesmo que fale com minha garota sobre isso. Prometa-me. Precisa ficar fora disso.

– Então, vai precisar falar com ela.

– Como posso dizer a ela... – sua voz ficou entrecortada e teve de limpar a garganta. – Como diabos posso explicar isso a ela?

– Como não explicar? Ela o ama.

V. apenas balançou a cabeça. Não conseguia imaginar-se dizendo a sua shellan que queria ser machucado fisicamente. Isso a mataria, e ele não tinha a menor intenção de que ela o visse daquela maneira.

– Olha só, vou dar um jeito nisso sozinho. Em tudo isso.

– É disso que tenho medo, V. – Butch consumiu o resto de sua bebida em um só gole. – Esse... é nosso maior problema.

Jane estava observando sua paciente dormir quando o celular soou em seu bolso. Não era uma ligação, mas uma mensagem de texto de V.: To em casa. Vou p ofic. trab. Como ta P.? E vc?

Seu suspiro não foi de alívio. Tinha chegado apenas dez minutos antes do sol erguer-se totalmente e não procurou vê-la ou visitar sua irmã?

Dane-se, ela pensou, ao se levantar e sair do quarto de recuperação.

Depois de passar algumas orientações a Ehlena, que estava na sala de exames da clínica atualizando os arquivos dos Irmãos, Jane andou decidida pelo corredor, virou à esquerda perto do escritório e passou pelos fundos do armário da despensa. Não havia razão para lidar com os códigos de bloqueio; simplesmente atravessou...

E lá estava ele, a pouco menos de vinte metros de distância do túnel, afastando-se dela... passou pelo centro de treinamento e caminhou, entrando ainda mais fundo na montanha.

As luzes fluorescentes no teto o iluminavam, atingindo seus ombros enormes e a parte inferior de seu corpo pesado. Passando pelo brilho daquelas luzes, seu cabelo parecia estar molhado e o aroma persistente do sabonete que sempre usava era a confirmação de que havia acabado de tomar banho.

– Vishous.

Disse o nome dele apenas uma vez, mas o túnel era uma câmara de ecos que fez com que as sílabas golpeassem as paredes e retornassem várias vezes, multiplicando-as.

Ele parou.

Foi a única resposta que ela recebeu.

Depois de esperar que ele dissesse alguma coisa, que se virasse... que a reconhecesse... descobriu algo novo sobre seu estado fantasmagórico: mesmo que, tecnicamente, não estivesse mais viva, seus pulmões ainda queimavam como se estivesse sufocando.

– Aonde foi esta noite? – ela disse, sem esperar uma resposta.

E, de fato, não a obteve. Mas ele parou bem debaixo de uma luminária, então, mesmo à distância, pôde ver seus ombros ficando tensos.

– Por que não se vira, Vishous?

Bom Deus... o que ele fez no Commodore? Oh, meu Deus...

Engraçado, havia uma razão pela qual as pessoas “construíam” suas vidas juntos. As escolhas que fazem como marido e mulher não são tijolos e o tempo não é uma argamassa, mas, ainda assim, elas constroem algo tangível e real. E, naquele momento, quando seu hellren recusava-se a se virar em direção a ela... inferno, apenas para mostrar seu rosto... ocorria um estrondoso terremoto, que abalava o que ela acreditava ser terra firme.

– O que fez esta noite? – ela disse sufocada.

Nesse momento, ele virou-se e deu dois grandes passos em direção a ela. Mas não foi para se aproximar. Foi para sair da luz. Mesmo assim...

– Seu rosto – ela engasgou.

– Lutei com alguns redutores. – Quando ela se aproximou, ele ergueu a palma de uma de suas mãos. – Estou bem. Só preciso de um pouco de espaço agora.

Tinha alguma coisa errada, ela pensou. E odiou o questionamento que surgiu em sua mente... a ponto de recusar-se a pronunciá-lo.

Só que tudo o que tinham ali era silêncio.

– Como está minha irmã? – ele disse de repente.

Com um nó na garganta, respondeu:

– Está descansando ainda. Ehlena está com ela.

– Deveria tirar uma folga e descansar.

– Eu vou. – Uh-hum, certo. Com as coisas entre eles como estavam, nunca mais conseguiria dormir de novo.

V. passou sua mão enluvada pelo cabelo.

– Não sei o que dizer agora.

– Esteve com outra pessoa?

Ele não hesitou nessa:

– Não.

Jane o encarou... e, então, suspirou lentamente. Uma coisa era certa sobre seu hellren, algo com a qual poderia sempre contar: Vishous não mentia. Tinha muitos defeitos, mas esse não era um deles.

– Certo – ela disse. – Sabe onde me encontrar. Estarei em nossa cama.

Foi ela quem se virou e começou a andar na direção oposta. Mesmo a distância partindo seu coração, não iria atormentá-lo com algo que não era capaz de fazer e se ele precisava de espaço... bem, daria isso a ele.

Mas não para sempre, com certeza.

Mais cedo ou mais tarde, o macho viria conversar com ela. Tinha de fazer isso ou ela iria... Deus, não sabia o que seria capaz de fazer.

Contudo, seu amor não sobreviveria para sempre nesse vácuo. Simplesmente não sobreviveria.

Presidente do UFC – Ultimate Fighting Championship. (N.P.)


CAPÍTULO 15

O fato de José de la Cruz parar em um drive-thru para comprar alguma porcaria no centro de Caldwell era um clichê total. Todos sabiam que os detetives de homicídios bebiam café e comiam doces, mas isso nem sempre era verdade .

Algumas vezes, não havia tempo para fazer uma parada.

E, cara, dane-se o que esses programas de televisão e romances policiais dizem por aí... A realidade era que ele funcionava melhor com cafeína e um pouco de açúcar em sua corrente sanguínea. Além disso, vivia pelas rosquinhas; portanto, que o processassem.

A ligação que acordou a ele e a sua esposa aconteceu perto das seis da manhã, um horário que, se considerasse o número que observou ao atender a ligação, era quase civilizado: cadáveres, assim como aqueles que ficavam doentes, não seguiam as regras do horário comercial. Então, o horário quase tolerável era uma bênção.

E não era a única coisa boa em seu caminho: felizmente, por ser domingo, as estradas e rodovias estavam vazias, e seu carro sem identificação oficial fazia um trabalho excelente para sair dos subúrbios em uma situação assim... então, seu café ainda estava bem quente enquanto ele se dirigia para o distrito comercial, passando com cuidado pelos sinais vermelhos.

A fila de viaturas anunciou a localização onde o corpo havia sido encontrado, mais do que a fita de aviso amarela que tinha sido estendida por toda parte, como se fosse um laço sobre um maldito presente de Natal. Praguejando, estacionou paralelamente à parede de tijolos do beco e saiu, bebendo seu café e andando em direção ao amontoado de uniformes azuis.

– Ei, Detetive.

– E aí, Detetive?

– Oi, Detetive.

Assentiu para os garotos.

– Bom dia a todos. O que temos aqui?

– Não tocamos nela – Rodriguez fez um aceno com a cabeça em direção à caçamba. – Está lá, e Jones está tirando as primeiras fotos. O médico legista e o pessoal da perícia criminal estão a caminho. O misógino às avessas também.

Ah, sim, o fiel fotógrafo deles.

– Obrigado.

– Onde está seu novo parceiro?

– Chegando.

– Ele está pronto para isso?

– Vamos ver. – Sem dúvida, aquele beco sujo estava bem familiarizado com pessoas botando para fora aquilo que tinham comido; então, se o novato perdesse o almoço, não tinha problema.

José abaixou-se sob a faixa amarela e andou em direção à caçamba. Como sempre, quando se aproximava de um corpo, percebia que sua audição estava tão aguda que chegava a ser insuportável: a conversa mole dos homens atrás dele, o som das solas dos próprios sapatos no asfalto, a brisa fria vinda do rio que assoviava... tudo estava alto demais, como se o volume do mundo inteiro tivesse sido aumentado ao máximo.

E claro, a ironia era que o propósito dele estar ali, naquela manhã, naquele beco... o propósito de todos aqueles carros, homens e fitas de advertência estarem ali... estava perfeitamente em silêncio.

José segurou seu copo de isopor enquanto espiava por cima da tampa enferrujada da caçamba. A mão da moça foi a primeira coisa que viu, uma linha pálida de dedos com unhas quebradas e havia alguma coisa marrom embaixo delas.

Uma lutadora, não importava quem fosse.

Ao se deparar com outra garota morta, desejou profundamente que seu trabalho fosse tranquilo por um mês ou uma semana... ou, pelo amor de Deus, ao menos por uma noite. Caramba, dar uma desacelerada na carreira era o que estava pensando em fazer: quando se atua em tal área profissional, é difícil ficar satisfeito com o que se faz. Mesmo quando um caso era resolvido, ainda assim alguém estaria enterrando um ente querido.

O policial perto dele parecia ter um megafone quando falou.

– Quer que eu abra a outra metade?

José quase disse para o cara diminuir o volume, mas havia uma grande possibilidade de que estivesse falando como em uma biblioteca.

– Sim. Obrigado.

O policial usou um cassetete para levantar a tampa o suficiente para que a luz pudesse entrar, mas o cara não olhou para o que havia dentro. Apenas permaneceu ali, em pé, como um daqueles soldados da realeza britânica, dirigindo o olhar para o outro lado do beco, sem focar em nada.

Quando José ergueu-se na ponta dos pés e deu uma espiada, não culpou o policial por sua reticência.

Deitada em uma cama de metais retorcidos, a mulher estava nua, sua pele cinza e manchada exibia uma luminosidade estranha sob a luz do amanhecer. Considerando seu rosto e corpo, parecia estar no final da adolescência, uns vinte anos. Branca. O cabelo tinha sido cortado pela raiz, tão rente à pele que o couro cabeludo estava dilacerado em alguns lugares. Olhos...? Tinham sido removidos de suas órbitas.

José tirou uma caneta do bolso, esticou o corpo ao aproximar-se e separou cuidadosamente os lábios da garota. Sem dentes... não restou sequer algum nas gengivas irregulares.

Movendo-se para a direita, ergueu uma das mãos para ver a parte inferior da ponta dos dedos. Completamente removidas.

E a desfiguração não se limitava à cabeça e às mãos... Havia ranhuras profundas na pele, uma no alto de sua coxa, outra na parte inferior do braço e duas na parte de dentro de seus pulsos.

José amaldiçoou em voz baixa, pois tinha certeza de que ela havia sido desovada ali. Não havia privacidade suficiente no local para realizar esse tipo de trabalho... aquela porcaria exigia tempo e ferramentas... e equipamentos de contenção para mantê-la deitada.

– O que temos aí, Detetive? – seu novo parceiro disse atrás dele.

José olhou para Thomas DelVecchio Jr. sobre o ombro.

– Já tomou café da manhã?

– Não.

– Que bom.

Recuou um pouco para que Veck pudesse dar uma olhada. Como o cara era quinze centímetros mais alto do que ele, não teve de se esticar para ver o que havia lá dentro. Tudo o que fez foi dobrar os quadris. E, então, apenas olhou. Nada de inclinar-se contra a parede para vomitar. Nada de engasgos. Também não houve qualquer mudança drástica na expressão do rosto.

– O corpo foi desovado aqui – Veck disse. – Só pode ser.

– Ela.

Veck olhou para ele, seus olhos azuis-escuros eram inteligentes e imperturbáveis.

– Como?

– Ela foi desovada aqui: é uma pessoa, não uma coisa, DelVecchio.

– Certo. Desculpe. Ela. – O cara inclinou-se outra vez. – Acho que temos um colecionador de troféus.

– Talvez.

As sobrancelhas escuras se ergueram.

– Há muita coisa faltando... nela.

– Tem assistido aos noticiários ultimamente? – José limpou a caneta em um tecido.

– Não tenho tempo para TV.

– Onze mulheres foram encontradas assim no ano passado. Nas cidades de Chicago, Cleveland e Philly.

– Caraaamba – Veck colocou um pedaço de chiclete na boca e mastigou com força. – Então, deve estar se perguntando se este pode ser o início para nós.

Quando o cara rangeu os molares, José esfregou os olhos para dissipar as memórias que surgiram.

– Quando parou?

Veck limpou a garganta.

– De fumar? Mais ou menos há um mês.

– Como está indo?

– É um saco.

– Aposto que sim.

José colocou as mãos sobre os quadris e voltou a se concentrar. Como iriam fazer para descobrir quem era aquela garota? Havia inúmeras mulheres jovens desaparecidas no estado de Nova York... e isso considerando que o assassino não tinha feito aquilo em Vermont ou Massachusetts ou Connecticut e tenha dirigido até ali para depositá-la naquela caçamba.

Uma coisa era certa: nem morto permitiria que aquele filho da mãe começasse a atacar as garotas da cidade. Não ia acontecer enquanto estivesse no comando.

Quando se virou, bateu no ombro de seu parceiro.

– Dez dias, amigo.

– Para quê?

– Para voltar a montar na sela de um Marlboro.

– Não subestime minha força de vontade, detetive.

– Não subestime o que vai sentir quando for para casa e tentar dormir esta noite.

– Não durmo muito, mesmo.

– Esse trabalho não vai ajudar.

Nesse momento, a fotógrafa chegou com seus cliques, flashes e mau humor.

José indicou a direção oposta com a cabeça.

– Vamos sair daqui e deixá-la fazer seu trabalho.

Veck deu uma olhada e ficou surpreso quando a encarou melhor. A péssima receptividade foi uma novidade para ele... As mulheres gravitavam ao redor de homens como Veck; as duas últimas semanas provaram isso: elas ficavam sempre por perto na delegacia.

– Vamos, DelVecchio, vamos começar a procurar as peças desse quebra-cabeça.

– Entendido, detetive.

Normalmente, José pediria para que o cara o chamasse de de la Cruz, mas nenhum de seus “novos” parceiros duravam mais do que um mês, então, de que adiantaria? “José” estava fora de cogitação, claro... apenas uma pessoa chamou-o assim naquele trabalho e o desgraçado tinha desaparecido há três anos.

Levou mais ou menos uma hora para que ele e Veck investigassem o local e acabassem não conseguindo absolutamente nenhum material. Não havia nenhuma câmera de segurança no exterior dos prédios nem testemunhas tinham se apresentado, mas os caras da investigação criminal iriam rastrear tudo com seus distintivos, bolsinhas plásticas e pinças. Talvez aparecesse algo.

O médico legista chegou às nove, fez seu trabalho, e o corpo foi liberado para ser removido mais ou menos uma hora depois disso. E quando o pessoal precisou de uma ajuda com o cadáver, José ficou surpreso em ver que Veck colocou um par de luvas de látex e pulou naquela caçamba.

Um pouco antes do médico legista removê-la do local, José perguntou sobre a hora da morte e foi informado que tinha acontecido por volta do meio-dia do dia anterior.

Ótimo, ele pensou enquanto os carros e as vans começavam a partir. Quase vinte e quatro horas morta antes de encontrá-la. Poderia muito bem ter sido conduzida para fora do estado.

– Hora de acionar o banco de dados – disse a Veck.

– Estou nessa.

Quando o cara se virou e seguiu em direção a uma motocicleta, José gritou:

– Chiclete não é comida.

Veck parou e olhou sobre o ombro.

– Está me convidando para tomar café da manhã, detetive?

– Só não quero que desmaie no trabalho. Isso o deixaria constrangido e eu seria obrigado a examinar outro corpo.

– Que amável, detetive.

Talvez costumasse ser; mas agora só estava nervoso consigo mesmo e não sentia a menor vontade de comer sozinho.

– Encontro você no Vinte e quatro em cinco minutos.

– Vinte e quatro?

Certo, ele não era dali.

– Riverside Diner, na Eighth Street. Fica aberto vinte e quatro horas.

– Entendi. – O cara colocou um capacete preto e alavancou uma das pernas sobre algum tipo de engenhoca que parecia fazer parte do motor. – Eu pago.

– Faça como quiser.

Veck pisou a alavanca com força e ligou o motor.

– Sempre faço, detetive. Sempre.

Quando arrancou, deixou um rastro de testosterona no beco e, enquanto José arrastava-se preguiçosamente em direção a seu automóvel bege sem identificação, sentiu-se como um tiozinho de meia-idade em comparação a Veck. Deslizando para trás do volante, colocou seu copo quase vazio e completamente frio no porta-copos, e seu olhar deslocou-se da faixa para aquela caçamba.

Tirando o celular do paletó, ligou para a delegacia.

– Ei, é o de la Cruz. Pode passar a ligação para a Mary Ellen? – O tempo de espera foi de menos de um minuto. – Mary Ellen? Como vai? Bem... bem. Ouça, quero ouvir a ligação que denunciou o corpo que havia próximo ao Commodore. Sim. Claro... só preciso que a reproduza. Obrigado... não precisa correr.

José colocou a chave na ignição.

– Ótimo. Obrigado, Mary Ellen.

Sim, gostaria de comunicar um corpo. Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

José apertou o telefone e começou a tremer.

O sotaque de Boston era tão claro e familiar que foi como se o tempo tivesse se envolvido em um acidente de carro e ricocheteado para trás.

– Detetive? Quer ouvir outra vez? – ouviu Mary Ellen dizer em seu ouvido.

Fechando os olhos, resmungou.

– Sim, por favor...

Quando a gravação terminou, ouviu-se agradecendo a Mary Ellen e sentiu que pressionou o polegar sobre o botão end do celular para finalizar a ligação.

Tão claro como água cristalina, estava sendo sugado para um pesadelo de dois anos atrás... quando entrou naquele apartamento fedorento e decaído, cheio de garrafas de uísque vazias e caixas de pizza. Lembrou-se de sua mão estendendo-se em direção à porta fechada de um banheiro, aquela maldita parte de seu corpo tremia por inteiro.

Estava convencido de que iria encontrar um corpo do outro lado. Pendurado no chuveiro por um cinto... ou talvez mergulhado em sangue ao invés de um banho de espuma.

Butch O’Neal teve uma vida difícil ao buscar realizar-se profissionalmente no departamento de homicídios. Bebia até altas horas e não só tinha fobia de relacionamentos como também era incapaz de estabelecer laços afetivos.

Só que ele e José eram próximos. Tão próximos quanto Butch foi capaz de ser com alguém um dia.

Contudo, nada de suicídio. Nada de corpo. Nada. Em uma noite, ele estava ali; na outra... havia sumido.

No primeiro mês, e até no segundo, José esperou ter alguma notícia... do próprio cara ou sobre um cadáver de nariz quebrado e um dente da frente com uma coroa mal feita aparecendo em algum lugar.

No entanto, dias transformaram-se em semanas que, por sua vez, tornaram-se estações do ano, e sentiu-se como um médico que descobriu ter uma doença terminal: finalmente soube como as famílias de pessoas desaparecidas se sentiam. E, Deus, nunca pensou que passaria por aquela longa, terrível e fria espera. Jamais imaginou que percorreria aquele território do “Não Saber de Nada”... Mas com o desaparecimento de seu parceiro, não só percorreu o maldito território como comprou um terreno, construiu uma casa e mudou-se para lá.

Agora, porém, depois de ter perdido todas as esperanças, depois de não acordar mais no meio da noite pensando onde o cara poderia estar... agora... tinha ouvido aquela gravação.

Claro, milhões de pessoas tinham aquele sotaque de Boston. Mas O’Neal possuía uma rouquidão reveladora em sua voz que não poderia ser replicada.

De repente, José perdeu a vontade de ir ao Vinte e quatro, não queria comer nada. Mas colocou seu carro sem identificação oficial em funcionamento e pisou no acelerador.

No momento em que olhou para a caçamba e viu aqueles olhos arrancados e aquele trabalho odontológico, soube que estava indo à procura de um serial killer. Mas não poderia imaginar que iniciaria outra busca.

Hora de encontrar Butch O’Neal.

Se fosse capaz.


CAPÍTULO 16

Uma semana depois, Manny acordou em sua cama com as dores latejantes de uma ressaca. A boa notícia era que pelo menos aquela dor poderia ser explicada: quando chegou em casa, tomou uísque até ficar chapado. E a bebida desempenhou seu papel, derrubando-o com força total como em um nocaute.

A primeira coisa que fez foi estender a mão e pegar o telefone. Com os olhos embaçados, ligou para o celular do veterinário. Os dois tinham combinado um ritual matinal e Manny agradecia a Deus pelo fato do cara também ser um insone.

O veterinário atendeu no segundo toque.

– Alô?

– Como está minha garota? – a pausa que se seguiu disse-lhe tudo o que tinha de saber. – Tão mal assim?

– Bem, os sinais vitais permanecem bons e ela continua tão estável quanto possível com a sedação, mas estou preocupado com uma possível inflamação nos cascos.

– Mantenha-me informado.

– Sempre.

Nesse momento, desligar era a única coisa que poderia fazer. A conversa tinha acabado e não era uma pessoa que jogava conversa fora... mesmo que fosse, um bate-papo não o ajudaria a conseguir aquilo que desejava: um cavalo saudável.

Antes do despertador disparar às seis e meia para que ele começasse a dura rotina, deu um tapa no rádio-relógio para que continuasse em silêncio e pensou: exercícios. Café. Voltar ao hospital.

Espere. Café, exercícios, hospital.

Definitivamente, precisava de cafeína primeiro. Não conseguiria correr ou levantar pesos naquela condição... e também não poderia operar máquinas pesadas – como um elevador, por exemplo.

Ao levar os pés ao chão e ficar na posição vertical, sua cabeça tinha um ritmo próprio de batidas e revoltou-se com a ideia de que talvez, apenas talvez, a dor não tivesse relação com a bebida: não estava doente nem desenvolvendo um tumor cerebral... Contudo, mesmo se estivesse, iria do mesmo jeito para o hospital; estava em sua natureza. Caramba, quando era jovem, lutava para ir à escola mesmo doente... mesmo quando teve catapora e ficou parecendo um desenho de ligar pontos, insistiu em pegar o ônibus.

Sua mãe ganhou aquela batalha em particular, e reclamou por ele ser exatamente como o pai.

Não foi um elogio, e ouviu isso a vida inteira... mas também não significava nada, pois nunca conheceu o cara. Tudo o que tinha era uma foto desbotada dele. A única coisa que acabou colocando em um porta-retrato... Por que diabos estava pensando sobre isso naquela manhã?

O café foi uma mistura instantânea suave. Vestiu as roupas esportivas enquanto a bebida ficava pronta e tomou duas canecas sobre a pia ao observar a fila do tráfego matutino sob a penumbra da madrugada nas proximidades da estrada que ia para o norte. A última coisa que fez foi pegar seu iPod e colocá-lo nos ouvidos. Claro que não era um tipo de cara falante, mas que Deus o ajudasse a não encontrar uma garota tagarela pela frente naquele dia.

Na sala de musculação, o local estava bem vazio, o que foi um grande alívio, mas isso não ia durar muito. Saltando na esteira mais próxima da porta, desligou o noticiário que estava passando na TV instalada no alto da parede e começou a malhar.

O som de Judas Priest em seu iPod embalou seus passos, sua mente desconectou-se e seu corpo rígido e dolorido teve o que precisava. Considerando tudo, estava melhor agora se comparado ao fim de semana anterior. As dores de cabeça ainda estavam lá, mas continuava a manter o ritmo de trabalho, a atender seus pacientes em dia e a administrar tudo.

No entanto, isso o fez pensar. Um pouco antes de Jane ter batido naquela árvore, teve dores de cabeça também. Então, se tivessem sido capazes de fazer uma autópsia no corpo dela, será que teriam encontrado um aneurisma? Por outro lado, qual seria a probabilidade dos dois sofrerem a mesma...

Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Não tenho tempo para explicar agora. Por favor. Sei que é pedir muito. Mas há uma paciente que precisa de você, desesperadamente... já estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada.

– Droga. – Manny colocou os pés rapidamente na beirada da esteira e cerrou os dentes contra a agonia. Dobrando a parte superior do corpo sobre o painel do aparelho, respirou lenta e equilibradamente... ou pelo menos tentou o máximo possível que uma pessoa correndo a dez quilômetros por hora poderia conseguir.

Nos últimos sete dias, aprendeu por meio do método de tentativa e erro que, quando a dor o atingia, o melhor a fazer era tentar deixar a mente em branco e focar em nada. E o fato de que o simples truque cognitivo funcionava tranquilizava-o quanto à questão do aneurisma: se a parede de uma artéria cerebral estivesse prestes a explodir e formar um buraco em sua cabeça, não era uma estratégia de respiração ao estilo da ioga que em pouco tempo faria diferença.

Mas havia um padrão. Surgia com pensamentos sobre Jane... ou sobre aquele sonho erótico que continuava a ter.

Minha nossa, durante o sono teve orgasmos suficientes para aliviar toda sua libido. E, sendo o filho da mãe doente que era, a quase certeza de voltar a estar com aquela fêmea em suas fantasias o fazia ansiar pelo momento de colocar a cabeça no travesseiro pela primeira vez na vida.

Mesmo não podendo explicar o motivo pelo qual algumas cognições traziam as dores de cabeça, a boa notícia era que ele estava melhorando. Cada dia após aquele fim de semana, que parecia ser um buraco negro bizarro, sentia que voltava um pouco a ser o que era.

Quando restou pouco mais que uma dor incômoda, Manny voltou para a esteira e terminou o treino. No caminho para a saída, acenou para os retardatários do início da manhã que chegavam e escapou antes que alguém viesse com um “Oh, meu Deus, você está bem?”, se visse que tentava controlar a respiração.

No apartamento, tomou um banho, colocou um uniforme limpo e um jaleco branco e, em seguida, agarrou sua maleta e seguiu para o elevador. Para evitar o trânsito pegou as ruas adjacentes que cortavam a cidade. A estrada estava lotada àquela hora do dia e teve bons momentos ouvindo a tradicional banda My Chemical Romance.

“I’m not okay” era uma música que, por algum motivo, não se cansava de ouvir.

Quando virou em direção ao complexo do Hospital São Francisco, a luz do amanhecer ainda não tinha surgido completamente, o que sugeria que o dia seria nublado. Não que isso importasse para ele; quando entrava no local, a menos que houvesse um tornado, o que nunca tinha acontecido em Caldwell, o tempo não o afetava nem um pouco. Inferno, já tinha ido trabalhar várias vezes ainda no escuro, indo embora quando escurecia novamente, mas nunca se sentiu como se estivesse perdendo seu tempo na vida, pois não era muito de “curtir a natureza”.

Engraçado. Agora, porém, sentia-se um tanto deslocado.

Trabalhava naquele hospital desde que terminara sua residência cirúrgica pela Escola de Medicina de Yale e pretendia seguir para Boston, Manhattan ou Chicago. Em vez disso, deixou sua marca ali e, mais de dez anos depois, ainda estava onde tinha começado. Claro, ocupava o topo da pirâmide administrativa, por assim dizer, tinha salvado e melhorado vidas e já tinha ensinado uma geração de cirurgiões.

O problema era que, ao descer a rampa para a garagem, tudo aquilo, de alguma forma, parecia sem sentido.

Tinha quarenta e cinco anos de idade, com pelo menos metade do seu tempo útil dentro de uma caixa. O que tinha para mostrar? Um apartamento cheio de tênis Nike e um trabalho que tinha tomado conta das partes mais remotas de seu ser. Nada de esposa. Nada de filhos. As festas de Natal, Ano Novo e feriados nacionais eram passadas no hospital... Com sua mãe dando um jeito de comemorar essas datas sem ele e, sem dúvida, esperando por netos. Coisa que era melhor ela esperar sentada.

Cristo, com quantas mulheres tinha transado aleatoriamente ao longo dos anos? Centenas. Devia ser.

A voz de sua mãe veio como um tiro em sua cabeça: Você é igual ao seu pai.

Verdade. Seu pai também tinha sido um cirurgião. Com um traço errante.

Na verdade, foi por isso que Manny tinha escolhido Caldwell. Sua mãe havia trabalhado no São Francisco como enfermeira da UTI; batalhou para mantê-lo anos e anos estudando. E o que aconteceu quando se formou em medicina? Ao invés de orgulho, havia distância e reserva no rosto dela... Quanto mais próximo ficava do que havia sido seu pai, mais ela expressava aquela distância no olhar. A ideia dele era de que se estivessem na mesma cidade, estreitariam a relação ou algo assim. No entanto, não foi desse jeito.

Mas ela estava bem. Morava na Flórida naquele momento, em uma casa de repouso em um campo de golfe que ele pagava, jogando partidas de baralho com senhoras da mesma idade, jantando com as amigas de carteado e discutindo sobre quem esnobou quem nas festinhas agitadas do local. Ele estava muito feliz em poder ampará-la e essa era toda a extensão do relacionamento que mantinham.

Seu pai estava em um túmulo no cemitério Bosque dos Pinheiros. Morrera em 1983 em um acidente de carro.

Que coisa perigosa é um carro.

Estacionando o Porsche, desceu do veículo e foi pelas escadas ao invés do elevador para se exercitar. Em seguida, usou a passagem de pedestres para entrar no hospital, no terceiro andar. Quando passou pelos médicos e enfermeiras, apenas acenou e continuou andando. Geralmente, dirigia-se a seu escritório primeiro, mas não importava o que dissesse para seus pés, aquele não foi o lugar para onde acabou indo naquele dia.

Estava indo para os quartos de recuperação.

Disse a si mesmo que era para ver como os pacientes estavam, mas aquilo era besteira. Enquanto sua mente ficava cada vez mais difusa, ele ignorou o nevoeiro conscienciosamente. Inferno, aquilo era pior que a dor... e provavelmente estava hipoglicêmico por ter se exercitado e não se alimentado depois disso.

Paciente... estava procurando sua paciente... Sem nome. Ele não tinha um nome em mente, mas sabia qual era a sala.

Quando chegou à suíte mais próxima da escada de incêndio no fim do corredor, uma onda de excitação percorreu seu corpo. Certificou-se de que o jaleco branco estava colocado sobre os ombros e passou a mão pelos cabelos para ajeitá-los.

Limpando a garganta, preparou-se, entrou e...

O senhor de oitenta anos de idade deitado sobre a cama estava dormindo, mas não estava descansando, tubos entravam e saíam dele como se fosse um carro recebendo uma chupeta para recarregar a bateria.

Uma dor pungente socou a cabeça de Manny enquanto encarava o homem.

– Dr. Manello?

A voz de Goldberg atrás dele foi um alívio, pois deu-lhe algo concreto em que se agarrar... a borda de uma piscina, digamos assim.

Virou-se.

– Ei. Bom dia.

As sobrancelhas do cara se ergueram e, então, franziu a testa.

– Hã... o que está fazendo aqui?

– O que acha? Verificando um paciente. – Deus, talvez todos estivessem enlouquecendo.

– Pensei que ia tirar uma semana de folga.

– Como?

– Isso... hã... foi isso que me disse quando saiu esta manhã. Depois que... encontramos você aqui no quarto.

– Do que está falando? – Então, Manny acenou com a mão num gesto vago. – Ouça, deixe-me tomar café da manhã primeiro...

– É hora do jantar, Dr. Manello. São seis da tarde. Saiu daqui há doze horas.

A excitação que tinha aquecido seu corpo saiu correndo de dentro dele e foi substituída imediatamente por um banho frio de algo que nunca, jamais, havia sentido antes.

Um medo glacial percorreu-o e deu uma reviravolta em seus neurônios.

O silêncio constrangedor que se seguiu foi interrompido por uma agitação no corredor: pessoas passavam com sapatos baixos e confortáveis, apressando-se para atender pacientes ou empurrando carrinhos de roupa suja para a lavanderia ou levando refeições... jantar, naturalmente... de quarto em quarto.

– Eu vou... voltar para casa agora – Manny disse.

Sua voz era ainda mais forte do que nunca, mas a expressão no rosto de seu colega revelava a verdade sobre a situação: não importava o que dizia a si mesmo sobre sentir-se melhor, não era mais o mesmo. Parecia o mesmo; a voz soava como se fosse a mesma pessoa; andava da mesma maneira. Tentou até convencer a si mesmo de que era o mesmo.

Mas alguma coisa tinha mudado naquele fim de semana e temia que não houvesse volta.

– Gostaria que alguém o levasse para casa? – Goldberg perguntou timidamente.

– Não. Estou bem.

Precisou de todo o orgulho que tinha para não começar a correr quando se virou para sair: com muita força de vontade, ergueu a cabeça, endireitou a coluna e colocou um pé em frente ao outro calmamente.

Foi estranho, mas, ao sair, pensou em seu professor de cirurgia... o que tinha sido “aposentado” pela administração da escola quando fez setenta anos. Na época, Manny estava no segundo ano.

Dr. Theodore Benedict Stanford III.

O cara era um filho da mãe em sala de aula, o tipo de desgraçado que gostava mais quando os alunos davam respostas erradas, pois lhe proporcionava a oportunidade de repreender as pessoas. Quando a escola anunciou sua saída, Manny e seus colegas de classe fizeram uma festa de despedida para o pobre coitado, todos eles embebedaram-se celebrando o fato de serem a última geração a ser submetida às babaquices dele.

Manny estava trabalhando como zelador na escola naquele verão para conseguir algum dinheiro e estava esfregando o chão do corredor quando o carregador remanescente saiu levando as caixas finais do escritório de Stanford... e, em seguida, foi o velho quem saiu e desapareceu no final do corredor, passando por ali pela última vez.

Saiu com a cabeça erguida, descendo as escadas de mármore e partindo pela majestosa porta da frente com o queixo empinado.

Manny tinha rido da arrogância do homem, que não baixou a cabeça mesmo em face da idade e do fato de reduzirem seu valor a algo obsoleto.

Agora, caminhando da mesma maneira, perguntou-se se poderia ser verdade.

Era muito provável que Stanford tenha tido a mesma sensação que Manny experimentava naquele momento: a sensação de ser descartado.


CAPÍTULO 17

Jane ouviu uma agitação vindo do centro de treinamento. O barulho a acordou. Ergueu sua cabeça do travesseiro apoiando-se no antebraço e sua coluna estralou, pois estava curvada sobre a mesa.

Rompendo... e batendo...

A princípio, achou que era uma rajada de vento, mas houve um estalo em seu cérebro em seguida. Não havia janelas ali no subsolo. E seria necessária uma tempestade terrível para criar aquela quantidade de barulho.

Erguendo-se rapidamente da cadeira, deu a volta na mesa e saiu correndo pelo corredor em direção ao quarto de Payne. Tinha um motivo para que todas as portas estivessem abertas: havia apenas uma paciente e embora Payne fosse muito tranquila, se alguma coisa acontecesse...

Que diabos era aquele estardalhaço? Havia gemidos também...

Jane deslizou através do batente da porta da sala de recuperação e quase gritou. Ah, Deus... todo aquele sangue.

– Payne! – ela correu para a cama.

A irmã gêmea de V. estava em um descontrole selvagem, balançando os braços para todos os lados, os dedos agarravam os lençóis e a si mesma, as unhas afiadas arranhavam a pele dos braços, dos ombros e das clavículas.

– Não consigo sentir isso! – a fêmea gritou, presas expostas, olhos tão abertos que exibia claramente uma borda branca ao redor deles. – Não consigo sentir nada!

Jane aproximou-se com rapidez e agarrou um dos braços, mas seu aperto deslizou no instante em que o contato foi feito, afastando-a de todos aqueles arranhões escorregadios.

– Payne! – Se ela continuasse, as feridas ficariam tão profundas que os ossos seriam expostos. – Pare...

– Não consigo sentir nada!

A caneta Bic apareceu na mão de Payne do nada... só que, não, não foi mágica... A caneta era de Jane, aquela que guardava no bolso lateral de seu jaleco branco. No instante em que viu o objeto, todos aqueles golpes furiosos transformaram-se em uma sequência de imagens em câmera lenta enquanto a mão de Payne se erguia.

A punhalada era tão forte e decidida que nada poderia detê-la.

A ponta afiada trespassou o coração da fêmea, matando-a, e seu corpo lançou-se para frente, o suspiro da morte exalado por sua boca aberta.

Jane gritou:

– Nããããão...

– Jane... acorde!

O som da voz de Vishous não fazia sentido. Só que, então, ela abriu os olhos... para visualizar a completa escuridão. A clínica, o sangue e a respiração ofegante de Payne foram substituídos por uma mortalha visual negra que...

O brilho da chama de velas surgiu em seu campo de visão. A primeira coisa que viu foi o rosto tenso de Vishous; ele estava ao seu lado, mas não tinham ido para a cama juntos.

– Jane, foi só um sonho...

– Estou bem – ela deixou escapar, afastando o cabelo do rosto. – Estou...

Enquanto apoiava-se em seus braços e ofegava, não distinguia o que era sonho e realidade. Especialmente se levasse em conta que Vishous estava ao lado dela; não era apenas uma questão de não irem para a cama juntos ultimamente. Não estavam acordando juntos também. Achou que ele tinha dormido na oficina, mas talvez não tivesse sido o caso.

Esperava que não tivesse mesmo sido o caso.

– Jane...

No silêncio sombrio, ouviu na palavra toda a tristeza que V. nunca deixou transparecer antes em nenhuma outra situação. E ela se sentia da mesma maneira. Aqueles dias em que não tinham se falado muito, o estresse por causa da recuperação de Payne, a distância... a maldita distância... tudo era triste demais.

Porém, ali, à luz das velas, na cama deles, tudo aquilo enfraqueceu um pouco.

Com um suspiro, virou-se para o corpo quente e pesado de V. e o contato a transformou: sem intenção de assumir sua forma sólida, tornou-se corpórea, o calor fluía entre eles, ampliava-se e a deixava tão real quanto ele. Levantando o olhar, observou aquele rosto belo e feroz com a tatuagem sobre a têmpora, o cabelo negro que sempre penteava para trás, a sobrancelha com falhas e aqueles olhos pálidos e gélidos.

Durante a última semana, ela pensou e repensou sobre a noite em que as coisas tinham ficado tão difíceis. E apesar de boa parte daquilo ser decepção e ansiedade, havia uma coisa que não fazia sentido.

Quando se encontraram no túnel, Vishous estava usando uma blusa de gola alta. E ele nunca usava blusas assim. Odiava tais peças, pois achava que elas o sufocavam... o que era irônico, considerando o que o aliviava algumas vezes. Normalmente, vestia regatas ou andava nu, e ela não era estúpida. Poderia ser um cara durão, mas os hematomas surgiam em sua pele com a mesma facilidade de qualquer outra pessoa.

Disse que tinha lutado, mas era um mestre no combate mano a mano. Então, se estava todo roxo da cabeça aos pés, só havia uma razão para isso: havia permitido.

E ela teve de se perguntar quem tinha feito aquilo com ele.

– Você está bem? – V. perguntou.

Ela estendeu a mão e a colocou sobre o rosto dele.

– E você? Está bem?

Será que eles estavam bem?

Ele não hesitou.

– Com o que sonhou?

– Vamos ter que conversar sobre algumas coisas, V.

Os lábios dele se contraíram. E ficaram ainda mais tensos enquanto ela esperava. Finalmente, ele disse:

– Payne está como está. Faz apenas uma semana e...

– Não é sobre ela. É sobre o que aconteceu naquela noite quando saiu sozinho.

Nesse momento, ele se recostou, mergulhando nos travesseiros e unindo as duas mãos sobre o abdômen definido. Na penumbra, os músculos contraíram-se e suas veias projetaram sombras no pescoço.

– Está me acusando de ter ficado com outra pessoa? Pensei que já tínhamos resolvido isso.

– Pare de mudar de assunto – ela olhou para ele com firmeza. – E se quiser comprar uma briga, procure alguns redutores para isso.

Qualquer outro macho teria reagido com um rápido contra-argumento, com direito a toda uma carga dramática.

Em vez disso, Vishous virou-se para ela e sorriu.

– Quero ouvi-la.

– Prefiro que você fale comigo.

Aquela chama sensual com a qual estava tão familiarizada, mas que não tinha visto na última semana, borbulhou nos olhos dele enquanto movimentou-se em direção a ela. Em seguida, baixou o olhar e observou o sutiã que havia sob a camiseta simples com a qual havia adormecido.

Ela colocou o rosto no caminho do olhar dele, mas estava sorrindo também. As coisas tinham sido tão duras e tensas entre eles. Aquilo parecia normal.

– Não vou me distrair.

Quando um calor emanou do corpo dele em ondas, seu companheiro estendeu a ponta do dedo e deslizou ao longo de seu ombro. Então, abriu a boca, as pontas brancas de suas presas foram expostas e ficaram ainda mais longas quando lambeu os lábios.

De alguma maneira, o lençol que o cobria foi sendo puxado de seu abdômen. Escorregou mais, e mais. Era sua mão enluvada cumprindo seu dever e a cada centímetro exposto, os olhos de Jane tinham mais dificuldade em focar outra coisa. Ele parou um pouco antes da sua grande ereção ser exposta, mas deu a ela uma pequena amostra do que havia ali: as tatuagens em torno de sua virilha esticaram-se e movimentaram-se enquanto os quadris contraíam-se e relaxavam, contraíam-se e relaxavam.

– Vishous...

– O quê?

Sua mão enluvada mergulhou sob o cetim preto e ela não precisou ver para onde se direcionava para saber que envolveria seu pênis: o fato de que arqueava as costas disse-lhe tudo o que precisava saber.

Isso e a maneira como mordeu o lábio inferior.

– Jane...

– O quê?

– Vai ficar só olhando, não é mesmo?

Deus, Jane lembrava-se da primeira vez que o viu assim, estirado em uma cama, rijo, pronto. Estava lhe dando um banho de esponja e conseguiu lê-la como um livro: por mais que ela não quisesse admitir, estava desesperada para observar como ele se tocava até gozar.

E ela se certificou de que ele o fizesse.

Sentindo-se aquecida, inclinou-se para ele e aproximou tanto sua boca que quase tocou a dele.

– Ainda está desviando do assunto...

Em um piscar de olhos, a mão livre de Vishous agarrou-a pela nuca, prendendo-a. E toda aquela força passou pelo corpo dele, sendo direcionada entre as coxas dela.

– Sim. Estou. – Estendeu a língua e passou sobre os lábios dela. – Mas sempre podemos conversar depois. Sabe que nunca minto.

– Achei que sua linha de discurso estava baseada mais em... nunca estar errado.

– Bem, isso também é verdade. – Um rosnado escapou de dentro dele. – E, nesse momento... você e eu precisamos disso.

Aquela última parte foi dita com nada da paixão e toda a seriedade que ela precisava ouvir. E, quer saber, ele tinha razão. Os dois estavam andando em círculos nos últimos sete dias, pisando em ovos, evitando a mina terrestre que havia no centro do relacionamento. Conectar-se daquela maneira, pele com pele, iria ajudá-los a superar as palavras que tinham de ser ditas.

– Então, o que me diz? – ele murmurou.

– O que está esperando?

A risada que soltou foi baixa e satisfeita e seu braço contraía-se e relaxava quando começou a se acariciar.

– Puxe o lençol, Jane.

O comando saiu rouco, mas claro, e ela entendeu bem. Como sempre.

– Faça isso, Jane. Observe.

Colocou a mão sobre os músculos do peitoral dele e desceu-a sentindo seu abdômen definido, ouvindo o arfar de sua respiração entre os dentes. Ao puxar o lençol, engoliu em seco quando viu o pênis ultrapassando a altura do punho, oferecendo-se com uma lágrima singela e cristalina.

Quando ela estendeu a mão para tocá-lo, ele agarrou seu pulso, segurando-a.

– Olhe para mim, Jane... – ele gemeu. – Mas não me toque.

Filho da mãe. Odiava quando fazia aquilo. Adorava também.

Vishous não a soltou enquanto trabalhava em sua ereção com a mão enluvada, seu corpo ficou tão lindo quando encontrou um ritmo para movimentar a palma. A luz das velas envolveu a cena em um tom de mistério, mas... era sempre assim com V. Nunca sabia o que esperar com ele e não só por ser o filho de uma divindade. Estava pronto para o sexo o tempo todo; era durão, astuto, depravado e exigente.

E sabia que conhecia apenas uma versão diluída dele.

Havia cavernas profundas em seu labirinto subterrâneo, as quais ela nunca tinha visitado e nem poderia fazer isso um dia.

– Jane... – disse ele asperamente. – Seja lá o que estiver pensando, deixe para lá... Fique comigo aqui e agora e não continue pensando assim.

Fechou os olhos. Sabia com quem tinha se casado e quem amava. Quando se comprometeu com ele para a eternidade, tinha plena consciência de todos os homens e mulheres com quem esteve e da maneira como os possuiu. Só nunca imaginou que aquele passado ficaria entre eles...

– Não estava com ninguém – sua voz era forte e decidida. – Naquela noite. Juro.

Os olhos de Jane se abriram. Ele parou de tocar a si mesmo e permaneceu deitado.

De repente, a visão dela ficou turva pelas lágrimas.

– Sinto muito – ela resmungou. – Só precisava ouvir isso. Confio em você, de verdade, mas eu...

– Shh... está tudo bem. Estendeu a mão enluvada e limpou a lágrima de seu rosto. – Está tudo bem. Por que não pergunta o que está acontecendo comigo?

– É errado.

– Não, eu é que estou errado. – Respirou fundo. – Passei a última semana tentando forçar as coisas a saírem da minha boca. Odeio essa droga, mas não sabia o que dizer para que as coisas não se tornassem piores.

De alguma maneira, ela estava surpresa com a compaixão e compreensão. Os dois eram tão independentes, e era por isso que o relacionamento funcionava: ele era reservado e ela não precisava de muito apoio emocional e, normalmente, aquela matemática somava muito bem. Porém, não naquela semana.

– Também sinto muito – ele murmurou. – E gostaria de ser um macho diferente.

De alguma forma, ela sabia que estava falando sobre muito mais do que sua natureza reservada.

– Não há nada que não possa falar comigo, V. – Quando tudo o que obteve como resposta foi um “hmmm”, ela disse: – Está muito estressado agora. Sei disso, e faria qualquer coisa para ajudá-lo.

– Eu amo você.

– Então, precisa conversar comigo. A única coisa que, com certeza, não vai funcionar é o silêncio.

– Eu sei. Mas é como observar um quarto escuro. Quero lhe dizer alguma coisa, mas não consigo... Não consigo entender nada do que sinto.

Ela acreditava nisso... e reconhecia que aquilo era algo com que as vítimas de abuso infantil tendem a lutar na idade adulta. O mecanismo de sobrevivência inicial que os ajudava a passar por tudo era a compartimentalização: quando tinham de lidar com coisas demais, dividiam o seu interior e armazenavam as emoções em um local muito, muito distante.

O perigo, claro, era a pressão invariavelmente construída sobre isso.

No entanto, ao menos o gelo entre eles fora quebrado, e encontravam-se naquele espaço calmo e semipacífico.

Como se tivessem vontade própria, os olhos de Jane repousaram sobre a ereção de V., que estava deitada sobre sua barriga e ia além de seu umbigo. De repente, o desejou tanto que mal conseguia falar.

– Possua-me, Jane – ele sussurrou. – Faça o que quiser comigo.

O que ela desejava fazer era chupá-lo e foi o que fez, curvando os quadris, tomando-o com sua boca, e sugando-o até o fundo de sua garganta. O som que reproduziu foi animalesco e seus quadris se ergueram, empurrando aquela extensão excitada do corpo dele contra seu rosto. Então, um dos joelhos dobrou-se de repente e já não estava apenas deitado, mas esparramado, quando se entregou a ela completamente, acariciando a parte de trás da cabeça de Jane enquanto encontrava um ritmo que o levasse...

O movimento do corpo dela era rápido e suave.

Com sua força tremenda, V. reposicionou-a em um piscar de olhos, girando-a e tirando os lençóis do caminho para que pudesse erguer seus quadris e colocá-la sobre o tronco dele. As coxas dela abriram-se diante de seu rosto e...

– Vishous – ela disse com os lábios sobre sua ereção.

A boca dele estava escorregadia, quente e direcionada bem ao alvo. Fundindo-se com o sexo dela, agarrou-a e sugou antes que a língua serpenteasse para fora e lambesse dentro dela. O cérebro dela não desligou, explodiu, e, sem nada para pensar, perdeu-se alegremente no que estava acontecendo agora e não no que tinha acontecido antes. Tinha a sensação de que V. sentia o mesmo... Ele acariciava, lambia e chupava, com as mãos entre suas coxas, enquanto gemia seu nome contra seu núcleo. Era difícil se concentrar no que ele fazia, pois estava fazendo o mesmo com ele. Sua ereção estava dura e quente em sua boca e havia puro prazer entre as pernas – aquelas sensações eram prova de que mesmo sendo um fantasma, suas reações físicas eram iguais às de quando estava “viva”.

– Dane-se, preciso de você – ele amaldiçoou.

Em outra rápida explosão de energia, Vishous ergueu-a como se não pesasse mais do que um lençol e a mudança de posição não foi uma surpresa. Ele sempre preferiu gozar dentro dela, bem em seu interior, e abriu-lhe bem as pernas antes de colocá-la sobre seus quadris e meter a cabeça arredondada... e penetrou profundamente.

A invasão não foi apenas sexo, ele a reivindicava e ela adorava isso. Era assim que tinha de ser.

Jogando-se para frente e apoiando-se sobre os ombros dele, olhou em seus olhos enquanto moviam-se juntos, o ritmo aumentava até que gozaram juntos – os dois ficaram rígidos quando ele ainda arremetia contra a fenda de Jane, e o sexo dela o banhou com o orgasmo. Então, V. virou-a para que ficasse com as costas sobre a cama e se abaixou, voltando para onde havia começado com a boca, fundindo-a sobre ela, segurando as coxas enquanto a chupava.

Quando ela gozou com força, não houve interrupção ou pausa. Ele continuou, estendendo as duas pernas de Jane, separando-as e penetrando-a com um golpe firme de língua. O corpo dele era uma máquina de movimentos intensos sobre o dela, o forte aroma de vinculação espalhou-se pelo quarto durante o orgasmo dele, a semana de abstinência transformou-se em pó durante aquela gloriosa transa.

Quando o orgasmo subiu-lhe como a lava de um vulcão, ela o observou enquanto gozava, amando todas as partes de seu corpo, mesmo aquelas que às vezes ela se esforçava para entender.

Então, ele continuou. Mais sexo. E ainda mais.

Quase uma hora depois, estavam finalmente saciados, deitados sem se moverem e respirando fundo à luz das velas.

Vishous rolou os dois pela cama, mantendo-os unidos e seus olhos percorreram o rosto dela por um longo momento.

– Não tenho palavras. Dezesseis línguas, mas nenhuma palavra.

Havia amor e desespero na voz dele. Ficava mesmo um tanto deficiente quando se tratava de emoções e o fato de se apaixonar não tinha mudado isso... ao menos, não quando as coisas mostravam-se tão estressantes como agora. Mas tudo bem... depois desse tempo que passaram juntos, estava tudo bem.

– Está tudo bem. – Ela beijou seu peito. – Eu compreendo você.

– Queria tanto que você não precisasse disso.

– Você me entende.

– Sim, mas você é fácil.

Jane se apoiou.

– Sou a aberração de um fantasma. No caso de ainda não ter notado. Não é algo com que os homens costumam se empolgar muito.

V. puxou-a para lhe dar um beijo rápido e firme.

– Mas eu a terei pelo resto da minha vida.

– Terá mesmo. – Afinal, seres humanos não duram um décimo do que vivem os vampiros.

Quando o alarme disparou ao lado deles, V. encarou a coisa.

– Agora sei por que durmo com uma arma debaixo do meu travesseiro.

Quando ele estendeu a mão para silenciar o relógio, ela teve de concordar.

– Sabe? Poderia simplesmente atirar nele.

– Não, Butch viria até aqui encher o saco, e não quero estar com uma arma em mãos se ele vir você nua.

Jane sorriu e deitou-se quando ele saiu da cama e andou até o banheiro. Na porta, parou e olhou sobre o ombro.

– Eu vim ficar com você, Jane. Vim e fiquei com você todas as noites dessa semana. Não queria que ficasse sozinha, e não queria dormir sem você.

Com isso, entrou no banheiro e, momentos depois, ela ouviu o chuveiro ser aberto.

Ele era melhor com as palavras do que imaginava.

Espreguiçando-se satisfeita, sabia que tinha de levantar e se arrumar também... estava na hora de liberar Ehlena de seu turno na clínica. Cara, gostaria de ficar ali a noite toda. Talvez apenas um pouco mais...

Vishous saiu dez minutos depois para encontrar-se com Wrath e a Irmandade, e beijou-a quando estava saindo. Duas vezes.

Saindo da cama, ela usou o banheiro e, depois, foi até o armário e abriu as portas duplas. Pendurado no guarda roupas havia peças de couro... dele; blusas brancas simples... dela; jalecos brancos... dela; e jaquetas de motoqueiro... dele. As armas estavam trancadas num cofre à prova de fogo e os sapatos, no chão.

De muitas maneiras, sua vida era incompreensível. Uma fantasma casada com um vampiro? Até parece.

Mas olhando para aquele armário tão agradável e organizado, com suas vidas loucas repousando ali dentre as roupas e sapatos tão bem posicionados, sentiu-se bem sobre onde estavam. Ser “normal” não era tão ruim naquele mundo maluco; não era mesmo. Não importava como tal conceito passara a ser definido.


CAPÍTULO 18

No centro de fisioterapia da clínica, Payne estava fazendo seus exercícios – era assim que gostava de pensar que eram.

Deitada na cama do hospital com travesseiros apoiando a lateral de seu corpo, ela cruzou os braços sobre o peito e contraiu o estômago, puxando o tronco para cima em uma subida lenta. Quando colocou-se perpendicular ao colchão, esticou os braços e os manteve assim enquanto se deitava.

Depois de apenas uma sequência, seu coração estava batendo forte e sua respiração estava curta, mas permitiu-se apenas um breve momento para se recuperar e repetiu. E repetiu. E repetiu.

O esforço ficava cada vez mais exaustivo, até que o suor brotou em sua testa e os músculos de seu estômago começaram a doer. Jane havia lhe mostrado como fazer aquilo e acreditava ser algo bom... contudo, comparado com o que era capaz de fazer, isso era uma faísca em relação a uma fogueira.

De fato, Jane tentou que fizesse muito mais... trouxera até uma cadeira de rodas para ela se sentar e se locomover, mas Payne não conseguia suportar a visão da coisa ou a ideia de passar a vida “rolando” de um lugar a outro.

Na última semana, fechara sumariamente todas as avenidas da acomodação na esperança de um único milagre... que nunca se concretizou.

Parecia que séculos haviam se passado desde que havia lutado com Wrath... desde que havia conhecido a coordenação e força de seus membros. Havia tomado tanta coisa por certa e agora sentia falta de quem tinha sido, com uma tristeza que achava só ser possível expressar pelos que falecem.

Então, achou que tinha morrido. Seu corpo apenas não foi inteligente o suficiente para parar de funcionar.

Com uma maldição no Antigo Idioma, caiu para trás e permaneceu ali deitada. Quando foi capaz, encontrou a tira de couro que havia amarrado embaixo das coxas. A coisa estava muito apertada, sabia que prendia sua circulação, mas não sentia nem o aperto do laço, nem o doce alívio quando soltou o fecho e o couro pulou solto.

Tinha sido assim desde a noite que havia retornado àquele local.

Nenhuma mudança.

Fechando os olhos, entrou outra vez em uma guerra interna, depois que seus medos lançaram as espadas contra sua mente e os resultados foram ainda mais trágicos. Após sete ciclos de dias e noites, seu exército de racionalidade estava sofrendo pela falta de munição e por uma fadiga profunda. Assim, a maré estava virando. Primeiro, tinha sido impulsionada pelo otimismo, mas ele havia desaparecido; depois, houve um período de resoluta paciência, que não durou muito. Desde então, permanecia naquela estrada árida de esperanças infundadas.

Sozinha.

Na verdade, a solidão era a pior parte da provação: estava completamente separada de todas as pessoas que eram livres para ir e vir, dentro e fora do quarto, mesmo quando elas se sentavam e conversavam com ela ou atendiam as suas necessidades básicas. Confinada àquela cama, estava em outro plano da realidade deles, separados por um deserto vasto e invisível que conseguia visualizar claramente, mas era incapaz de atravessá-lo.

E era estranho. Tudo o que tinha perdido aguçava-se ainda mais quando pensava em seu curandeiro humano... algo tão frequente que não conseguia mais enumerar a quantidade de vezes que havia acontecido.

Oh, como sentia falta daquele homem. Muitas foram as horas que havia passado lembrando-se da sua voz, de seu rosto e daquele último momento entre eles... até as memórias transformarem-se em um cobertor com o qual se aquecia durante os longos e frios momentos de temores e preocupações.

Infelizmente, porém, muito parecido com o que aconteceu com seu lado racional, aquele cobertor foi se desgastando por excesso de uso e não havia como repará-lo.

Seu curandeiro não pertencia ao seu mundo e jamais retornaria... não foi nada além de um sonho breve e vívido, que se desintegrara em filamentos e fragmentos agora que havia acordado.

– Chega – disse a si mesma em voz alta.

Tentando manter-se com a força da parte superior do corpo, virou-se para o lado em direção aos dois travesseiros, lutando contra o peso morto que era a parte inferior do corpo enquanto se esforçava para...

O equilíbrio falhou por um momento e a fez cambalear mesmo estando de bruços, seu braço derrubou o copo de água que havia na mesa próxima a ela.

E, infelizmente, aquele não era um objeto adequado para impacto.

Quando se quebrou, Payne fechou a boca, que era a única maneira que conhecia para manter seus gritos dentro dos pulmões. Caso contrário, violariam o selo de seus lábios e não cessariam.

Quando achou que já dispunha de autocontrole suficiente, olhou para a lateral da cama em direção à bagunça no chão. Normalmente, seria uma coisa simples... algo foi derramado, alguém limparia.

Antes, tudo o que teria feito seria curvar-se e dar um jeito naquilo.

Agora? Tinha duas escolhas: ficar deitada ali e pedir ajuda como uma inválida. Ou pensar, elaborar uma estratégia e fazer uma tentativa de ser independente.

Levou um tempo para descobrir os pontos de apoio para suas mãos e, então, avaliar a distância até o chão. Felizmente, havia sido desconectada de todos os plugues que havia em seu braço, mas um cateter ainda permanecia... então, talvez, fazer aquilo sozinha fosse uma má ideia.

Ainda assim, não conseguia suportar a indignidade de ficar ali deitada. Tinha sido uma guerreira; agora, era uma criança incapaz de cuidar de si mesma.

Era insuportável.

Pegando alguns lenços de papel “Kleenex”, como as pessoas os chamavam, baixou a grade da cama, agarrou a parte de cima e curvou-se sobre a lateral do corpo. A torção fez com que suas pernas sacudissem como as de uma marionete, um movimento muito sem graça, mas, ao menos, conseguiu alcançar o chão liso com a coisa branca e macia na palma da mão.

Ao se estender, tentando manter o precário equilíbrio na beirada da cama, sentiu-se cansada de ter assistência para tudo, ser cuidada, lavada e enrolada como um bebê recém-chegado ao mundo.

Seu corpo foi em direção ao vidro.

Sem perceber, escorregou a mão da aderência lisa da grade e com os quadris tão longe do colchão caiu de cabeça no chão, a força da gravidade foi muito forte para que pudesse vencê-la. Lançando as mãos para se apoiar, foi surpreendida pelo chão molhado, suas palmas escorregaram para baixo de seu corpo, que vacilou, e ela sentiu a força do impacto na lateral do rosto, a respiração explodiu em seus pulmões.

Então, não havia movimento.

Estava presa, a cama apoiando seus membros inúteis, colocando o tronco e a cabeça sobre os braços, esmagando-os contra o chão.

Puxando o ar em sua garganta, gritou:

– Socorro... socooorro...

Com o rosto espremido, os braços começando a ficar dormentes e os pulmões queimando por asfixia, a raiva acendeu dentro de si até seu corpo estremecer...

Primeiro veio um chiado. Em seguida, o barulho transformou-se em movimento quando seu rosto começou a escorregar sobre o ladrilho, a pele ficou tão tensa e fina que parecia estar sendo descascada. E, então, a pressão cresceu em sua nuca, a grossa trança puxava sua cabeça para trás ao mesmo tempo em que a estranha posição levava-a para frente.

Reunindo todas as forças, decidiu concentrar a raiva e manobrou os braços para que as mãos voltassem a espalmar sobre o chão. Após inalar o ar com força, empurrou e conseguiu girar o corpo para ficar de costas para cima...

A trança de cabelos caiu entre os suportes da grade da cama e prendeu-se com força ali, a espessa extensão manteve-a no lugar, enquanto repuxava dolorosamente do pescoço ao ombro. Presa e sem poder ir a lugar algum, poderia ver apenas suas pernas de onde estava, suas longas e esbeltas pernas sobre as quais nunca havia dispensado qualquer atenção.

Quando o sangue foi se acumulando gradualmente em seu tronco, observou a pele de suas panturrilhas ficarem brancas como papel.

Com os punhos fechados, enviou o comando para que os dedos dos pés se movessem.

– Maldição... mexa-se... – teria fechado os olhos para se concentrar, mas não queria perder o milagre caso acontecesse.

Não aconteceu.

Não tinha acontecido antes.

E estava começando a perceber que... não aconteceria.

Quando as unhas dos pés foram do rosa ao cinza, soube que tinha de entrar em um acordo com sua situação. E aquela parecia uma boa analogia para sua posição física atual.

Quebrada. Inútil. Um peso morto.

O colapso que finalmente se seguiu não trouxe consigo lágrimas ou soluços. Em vez disso, o estalo foi demarcado por uma sombria decisão.

– Payne!

Ao som da voz de Jane, fechou os olhos. Não era o salvador que desejava. Seu irmão... precisava do seu irmão gêmeo para fazer o que tinha de ser feito.

– Por favor, chame Vishous – disse com voz rouca. – Por favor.

A voz de Jane chegou bem perto.

– Vamos erguê-la do chão.

– Vishous.

Houve um clique e soube que o alarme que tinha sido incapaz de alcançar havia sido acionado.

– Por favor – ela gemeu. – Chame o Vishous.

– Vamos...

– Vishous.

Silêncio. Até que a porta foi aberta.

– Ajude-me, Ehlena – ouviu Jane dizer.

Payne tinha consciência de que sua boca estava se movendo, mas ficou surda quando as duas fêmeas ergueram suas costas até a cama e as pernas foram reinstaladas, alinhando-as paralelamente entre si, antes de cobri-las com lençóis brancos.

Enquanto diversos esforços de limpeza aconteciam tanto sobre a cama quanto no chão, Payne concentrou-se do outro lado do quarto, na parede branca, que havia encarado durante uma eternidade desde que tinha sido transferida para aquele espaço.

– Payne?

Quando não respondeu, Jane repetiu:

– Payne. Olhe para mim.

Moveu os olhos e não sentiu nada ao observar o rosto preocupado da shellan de seu irmão gêmeo.

– Preciso do meu irmão.

– Claro, vou buscá-lo. Está em uma reunião agora, mas vou fazer com que venha até aqui antes de sair. – Houve uma longa pausa. – Posso perguntar por que deseja vê-lo?

As palavras firmes e equilibradas diziam-lhe claramente que a boa curandeira não era boba.

– Payne?

Payne fechou os olhos com força e ouviu-se dizer:

– Ele me fez uma promessa quando tudo isso começou, e preciso que ele a cumpra.

Apesar de ser um fantasma, o coração de Jane ainda era capaz de parar dentro do peito, e quando se inclinou sobre a beirada da cama hospitalar, não havia nada se movendo por trás de sua caixa torácica.

– Que promessa foi essa? – questionou sua paciente.

– É um problema que diz respeito apenas a nós dois.

Até parece, Jane pensou, concluindo que estava entendendo direito.

– Payne, deve haver mais alguma coisa que possamos fazer.

Porém não fazia ideia do que seria. As radiografias mostravam que os ossos foram alinhados da maneira adequada, as habilidades de Manny consertaram tudo perfeitamente; no entanto, a espinha dorsal... essa era a parte imprevisível, um coringa. Tinha esperança de que alguma regeneração dos nervos fosse possível... ainda estava aprendendo sobre as capacidades físicas dos vampiros, muitas delas pareciam pura mágica comparadas com o que os humanos desempenhavam em termos de cura.

Mas estavam sem sorte; aquele não era o caso.

E não precisava ser um gênio para descobrir o que Payne estava buscando.

– Seja honesta comigo, shellan do meu irmão gêmeo. – Os olhos de cristal de Payne fixaram-se nos de Jane. – Seja honesta consigo mesma.

Se havia uma coisa que Jane odiava por ser médica era que lhe pedissem uma opinião subjetiva. Havia muitos incidentes mesmo quando a situação estava clara: um cara aparece na emergência com a mão arrancada dentro de uma bolsa de gelo e um torniquete ao redor do braço? Era preciso religar o membro e colocar os nervos de volta onde precisavam estar. Uma mulher em trabalho de parto com uma ocorrência anterior por problemas com o cordão umbilical do bebê? Cesariana. Fratura exposta? Abrir o local e consertar o ligamento.

Mas nem tudo era tão “simples”. Geralmente, a névoa cinzenta do “talvez isso”, “talvez aquilo” aproximava-se, e Jane tinha de encarar a situação nublada e obscura...

Oh, a quem ela estava enganando?

O aspecto clínico daquela equação tinha chegado a um resultado correto. Só não queria acreditar na resposta.

– Payne, deixe-me buscar Mary...

– Não queria falar com a fêmea conselheira há duas noites e não desejo falar com ela agora. Está acabado para mim, curandeira. E por mais que me doa chamar meu irmão gêmeo, por favor, vá e traga-o aqui. É uma boa fêmea e não é você que deve enfrentar isso.

Jane olhou para suas mãos. Nunca usou-as para matar. Nunca. Era um ato antiético não apenas com relação a sua vocação e compromisso profissional como também a seus valores pessoais.

E, ainda assim, enquanto pensava sobre seu hellren e o tempo que passaram juntos após acordar com ele, sabia que não poderia permitir que viesse até ali e fizesse o que Payne queria: Vishous havia dado um pequeno passo na direção oposta do precipício no qual estava prestes a se jogar e não havia nada que Jane não faria para impedi-lo de voltar àquele limite.

– Não posso buscá-lo – ela disse. – Desculpe. Mas simplesmente não vou colocá-lo nessa situação.

O gemido que surgiu da garganta de Payne era o desespero em seu coração que criava asas e começava a ser libertado.

– Curandeira, essa é a minha escolha. Minha vida. Não sua. Deseja ser uma verdadeira salvadora, então, faça parecer um acidente ou consiga-me uma arma e eu mesma faço isso. Mas não me deixe neste estado. Não consigo suportar e não vai fazer bem algum a sua paciente se eu continuar assim.

De alguma maneira, Jane sabia que isso aconteceria. Tinha visto claramente nas sombras pálidas sobre as imagens escuras da radiografia, aquelas que lhe deveriam dizer que tudo estava dando certo... e que, se não estivesse, a coluna vertebral tinha sido lesionada de forma irreparável.

Observou aquelas pernas tão imóveis sob o lençol e pensou sobre o juramento de Hipócrates que havia feito anos atrás: “Nunca causar dano ou mal a alguém” era o primeiro mandamento.

Era difícil achar que Payne não estava sendo prejudicada sendo mantida daquela maneira... especialmente porque não quis seguir o procedimento em um primeiro momento. Jane tinha sido a única a insistir por uma alternativa de salvação, transferindo seus motivos para a fêmea... e com V. foi a mesma coisa.

– Encontrarei um jeito – Payne disse. – De alguma forma, encontrarei um jeito.

Difícil não acreditar.

E havia uma grande chance de sucesso se Jane a ajudasse... Payne estava fraca e qualquer arma em sua mão seria um desastre esperando para acontecer.

– Não sei se consigo fazer isso – as palavras deixaram a boca de Jane lentamente. – Você é irmã dele. Não sei se ele me perdoaria.

– Ele não precisa saber.

Deus, que situação difícil. Se fosse ela presa naquela cama, sentiria a mesma coisa que Payne e gostaria que alguém executasse sua última vontade. Mas e o fardo de manter algo daquela magnitude oculto de V.? Como poderia fazer isso?

Só que... a única coisa pior do que isso seria se ele não voltasse daquele lado obscuro que havia dentro dele. E matar sua irmã? Bem, era como um trem expresso com destino ao que ele costumava fazer, não?

A mão de sua paciente encontrou a dela.

– Ajude-me, Jane. Ajude-me...

Quando Vishous deixou a reunião noturna com a Irmandade e dirigiu-se para a clínica no centro de treinamento, sentia-se mais como ele mesmo... e não no mau sentido. O sexo com sua shellan era uma missão importante para os dois, uma maneira de reiniciar tudo e não se limitava à questão física.

Deus, era muito bom ter voltado a se acertar com sua fêmea. Sim, claro, ainda havia problemas esperando por ele... e, bem, droga... quanto mais próximo chegava da clínica, mais o manto de estresse retornava, atingindo seus ombros como um par de carros: havia visitado sua irmã no começo de cada noite e, depois, novamente, ao amanhecer. Nos primeiros dias, houve muita esperança, mas agora... a maior parte daquele sentimento havia passado.

Entretanto, não importava. Ela precisava sair daquele quarto e era isso o que ele faria naquela noite. Estava fora da escala de trabalho e daria um passeio com ela pela mansão para mostrar que havia algo diferente além da gaiola branca de uma sala de recuperação para se viver.

Ela não estava melhorando fisicamente; então, a parte psicológica seria o que a levaria adiante. Tinha de levar.

Moral da história? Não estava preparado para perdê-la agora. Sim, esteve perto dela por uma semana, mas não significava que a conhecia melhor do que quando tudo começou... e achava que precisavam um do outro. Ninguém mais constituía a descendência direta daquela maldita divindade que era a mãe deles e, talvez, juntos pudessem resolver todas as porcarias que acompanhavam o nascimento dos dois. Pelo amor de Deus, não era como se houvesse uma sequência de estágios que ensinasse a ser filho da Virgem Escriba:

Oi, meu nome é Vishous. Sou filho da Virgem Escriba há trezentos anos.

OI, VISHOUS.

Ela me ferrou outra vez e estou tentando não ir até o Outro Lado para gritar e cometer um assassinato sangrento contra ela.

NÓS ENTENDEMOS, VISHOUS.

E por falar em sangue, gostaria de desenterrar meu pai e matá-lo outra vez, mas não posso. Então, vou apenas tentar manter minha irmã viva, mesmo estando paralisada, e tentar lutar contra o impulso de buscar um pouco de dor para conseguir lidar melhor com a dor dela.

VOCÊ É UM COVARDE, VISHOUS, MAS APOIAMOS ESSE SEU JEITO PATÉTICO.

Saindo do túnel e entrando no escritório, cruzou a porta de vidro e, então, caminhou a passos largos pelo corredor. Quando passou pela sala de exercícios, ouviu que alguém estava correndo como se os tênis estivessem pegando fogo, mas, fora isso, não havia ninguém por ali... e tinha a impressão de que Jane ainda deveria estar na cama, descansando, após ter cuidado muito bem dela.

Algo que deu ao macho vinculado nele uma boa dose de satisfação. De verdade.

Quando chegou à sala de recuperação, não bateu, mas...

Quando entrou, a primeira coisa que viu foi a agulha hipodérmica. A segunda visão foi de que o objeto estava sendo trocado de mãos, passando das de sua shellan e para as de sua irmã gêmea.

Não havia um motivo terapêutico para isso.

– O que está fazendo? – ele suspirou, subitamente aterrorizado.

A cabeça de Jane girou, mas Payne não olhou para ele. Seu olhar estava fixo na agulha, como se fosse a chave para o cadeado de sua cela.

E com certeza aquilo lhe ajudaria a sair daquela cama... direto para um caixão.

– Que diabos está fazendo? – Não era uma pergunta. Ele já sabia.

– É minha escolha – Payne disse severamente.

Sua shellan o encarou.

– Sinto muito, V.

Uma névoa branca nublou sua visão, mas não fez nada para reduzir a velocidade do seu corpo ao se lançar para frente. Quando alcançou a beirada do leito, seus olhos clarearam e viu que sua mão enluvada agarrava com força o punho de sua shellan.

Seu toque da morte era a única coisa que mantinha sua irmã distante da morte. E dirigiu-se a ela, não a sua companheira.

– Não ouse fazer isso!

Os olhos de Payne estavam furiosos ao encontrar os dele.

– Você que não ouse!

V. recuou por um momento. Havia olhado no rosto de muitos inimigos, descartado muitos submissos sexuais e esquecido muitos amantes, tanto machos quanto fêmeas, mas nunca tinha visto um ódio tão profundo antes.

Nunca.

– Não é meu deus! – ela gritou para ele. – Não é nada além de meu irmão! E não vai mais me acorrentar neste corpo como nossa mahmen faria!

A fúria dos dois era tanta que, pela primeira vez na vida, havia perdido. Afinal, não fazia sentido entrar em conflito se seu oponente tinha força equivalente à sua.

O problema era que, se saísse de campo agora, voltaria para um funeral.

V. queria andar ao redor da sala para diminuir sua irritação, mas estaria perdido se se afastasse por um décimo de segundo sequer.

– Quero duas horas – ele disse. – Não posso detê-la, mas posso pedir que me dê cento e vinte minutos.

Os olhos de Payne se estreitaram.

– Para quê?

Ia fazer algo que seria inconcebível quando toda aquela coisa começou. Mas aquilo era um tipo de guerra e, consequentemente, não tinha como se dar ao luxo de escolher as armas... tinha de usar o que estava disponível em suas mãos, mesmo que odiasse a ideia.

– Vou lhe dizer exatamente o motivo. – V. tirou a agulha das mãos de Jane. – Vai fazer isso para que a culpa não me assombre pelo resto da minha maldita vida. O que acha desse motivo? Bom o suficiente?

As pálpebras de Payne cederam e houve um longo silêncio, interrompido quando ela disse:

– Vou lhe dar o que me pede, mas não vou mudar de ideia com relação a permanecer nesta cama. Certifique-se de suas expectativas antes de continuar... e fique ciente de que não vai adiantar argumentar com nossa mahmen. Não vou trocar essa prisão por outra ao lado dela, no mundo dela.

Vishous enfiou a agulha no bolso e desembainhou a faca de caça que ficava permanentemente presa ao cinto de sua calça de couro.

– Dê-me sua mão.

Quando ela a ofereceu, ele cortou a palma da mão com a lâmina e fez o mesmo com a própria carne. Então, V. uniu as feridas.

– Jure. Pelo sangue que compartilhamos, fará um juramento a mim.

A boca de Payne se contraiu como se, mais uma vez, ela tivesse sorrido se fosse uma circunstância diferente.

– Não confia em mim?

– Não – disse ele com voz rouca. – Nem um pouco, querida.

Um pouco depois, a mão dela agarrou a dele e um brilho de lágrimas formou-se sobre seus olhos.

– Eu juro.

Os pulmões de Vishous relaxaram e ele respirou fundo.

– Muito bem.

Soltou a mão, virou-se e caminhou até a porta. Assim que chegou ao corredor, não perdeu tempo ao se dirigir para o túnel.

– Vishous.

Ao som da voz de Jane, volveu-se e quis soltar um palavrão. Balançando a cabeça, disse:

– Não me siga, não ligue para mim. Nada de bom vai sair de mim se ouvir sua voz neste momento.

Jane cruzou os braços sobre o peito.

– Ela é minha paciente, V.

– Ela é meu sangue, Jane. – Frustrado, golpeou o ar com a mão. – Não tenho tempo para isso. Estou saindo.

Com isso, começou a correr. Deixando-a para trás.


CAPÍTULO 19

Quando Manny chegou em casa, fechou a porta, trancou... e ficou ali. Como uma peça da mobília. Com sua maleta na mão.

É incrível como, quando você enlouquece, sente que não consegue lidar com as opções do que fazer. Sua vontade não havia mudado; ainda queria assumir o controle de si mesmo... não importava o que estivesse acontecendo em sua vida. Mas não havia nada em que se agarrar, nada de rédeas naquela fera.

Droga, deveria ser assim que os pacientes de Alzheimer sentiam-se: a personalidade e o intelecto estavam intactos... mas estavam cercados por um mundo que não fazia mais sentido, pois não podiam se firmar nas memórias, associações e inferências.

Estava tudo ligado àquele final de semana... ou, ao menos, havia começado ali. Mas o que tinha mudado exatamente? Perdeu, no mínimo, a memória de uma daquelas noites, era só isso que podia dizer. Lembrou-se da pista de corrida, da queda de Glory e do veterinário. Em seguida, a viagem de volta a Caldwell, quando ele foi ao...

O prévio aviso de uma dor de cabeça surgindo fez com que xingasse e desistisse.

Andando até a cozinha, soltou a maleta e começou a encarar a cafeteira. Deixou-a ligada ao sair para o hospital. Ótimo. Seu café matinal ficou fervendo a noite inteira e era um milagre não ter queimado a droga do apartamento inteiro.

Sentando-se em uma das banquetas ao redor do balcão de granito, encarou a parede de vidro a sua frente. A cidade do outro lado da varanda brilhava como uma dama indo ao teatro com todos os seus diamantes; as luzes nos arranha-céus cintilavam e faziam com que ele se sentisse real e verdadeiramente sozinho.

Silêncio. Vazio.

O apartamento parecia-se mais com um caixão.

Deus, se não pudesse mais operar, o que faria...

A sombra surgiu do nada em seu terraço. Só que não era uma sombra... não havia nada translúcido na coisa. Era como se as luzes, as pontes e os arranha-céus fossem uma pintura em que alguém havia cortado um buraco no meio.

Um buraco que assumia a forma de um homem grande.

Manny levantou-se da banqueta, olhos fixos na figura. No fundo de sua mente, na sede de seu tronco cerebral, sabia que aquela era a causa de tudo, seu “tumor” estava ali, em pé, e caminhava... vindo até ele.

Como se tivesse sido convidado, aproximou-se e abriu a porta corrediça de vidro; o vento atingiu seu rosto com força, seu cabelo foi jogado para trás.

Estava frio. Oh, muito frio... mas o choque álgido não se devia apenas à noite gelada de abril. A baixa temperatura emanava da figura que permanecia em pé, imóvel e letal, a alguns metros de distância dele. Tinha a nítida impressão de que a explosão ártica era porque o filho da mãe vestido com roupas de couro o odiava demais; mas Manny não tinha medo. A resposta para o que estava acontecendo com ele estava ligada àquele homem enorme que havia aparecido do nada, a uns vinte andares acima do chão...

Uma fêmea... uma com cabelos escuros trançados... esse era o...

A dor de cabeça o impactou com força, atingindo-o na nuca e penetrando em direção ao crânio para golpear com força seu maldito lóbulo frontal.

Quando seu corpo cedeu, precisou apoiar-se na borda do balcão da cozinha e perdeu a paciência.

– Caramba, pelo amor de Deus, não fique aí parado. Fale comigo ou me mate, mas faça alguma coisa.

Mais vento no rosto.

E, então, uma voz profunda:

– Não deveria ter vindo aqui.

– Sim, deveria – Manny gemeu de dor. – Por que estou enlouquecendo e você sabe disse, não é? Que diabos fez comigo?

Aquele sonho... com a mulher que desejava, mas não conseguia ter...

Os joelhos de Manny começaram a falhar, mas para o inferno com isso.

– Leve-me até ela... e não brinque comigo. Sei que ela existe... Consigo vê-la todas as noites em meus sonhos.

– Não gosto nada disso.

– Sim, e eu estou curtindo uma festa aqui. – O filho da mãe ficou em silêncio. Quando percebeu que havia a possibilidade do bastardo misterioso agredi-lo, posicionou-se; Manny ia investir contra o cara e faria algum estrago nele. Ele certamente seria estraçalhado, mas não deixaria que ele o derrubasse sem lutar.

– Vamos lá – Manny disparou. – Faça isso.

Houve uma risada contida.

– Você me faz lembrar um amigo meu.

– Quer dizer que há outro idiota perdido na vida por sua causa? Ótimo. Podemos iniciar um grupo de apoio.

– Maldição...

O cara ergueu uma das mãos e então... as memórias explodiram na mente de Manny e fluíram através de seu corpo, as imagens e sons de seu fim de semana perdido voltaram com uma vingança.

Tropeçando para trás, colocou as mãos na cabeça.

Jane. Um local secreto. Cirurgia.

Vampira.

Um punho de ferro em seus bíceps foi tudo o que o impediu de cair no chão, o irmão de sua paciente o segurava.

– Precisa vir e cuidar da minha irmã. Ela vai morrer se não fizer isso.

Manny respirou pela boca e engoliu em seco. A paciente... sua paciente...

– Ela ainda está paralisada? – ele gemeu.

– Sim.

– Leve-me – exclamou. – Agora.

Se fosse o caso da medula espinhal ter sofrido um dano permanente, não havia nada clinicamente possível a fazer por ela, mas isso não importava. Tinha de vê-la.

– Onde está seu carro? – o filho da mãe de cavanhaque perguntou.

– Lá embaixo.

Manny desvencilhou-se e correu em direção à maleta. Havia deixado as chaves sobre o balcão da cozinha. Quando tropeçou e caiu, seu cérebro ficou confuso de uma maneira que o aterrorizou. Se houvesse mais um pouco desse “liga e desliga” de sua placa-mãe mental ia acabar sofrendo prejuízos permanentes. Mas essa era uma discussão para outro momento.

Tinha de ir até sua fêmea.

Quando alcançou a porta da frente, o vampiro estava bem atrás dele e Manny trocou suas coisas para a mão esquerda.

Com um giro rápido, lançou seu punho direito, que se encaixou em um arco perfeitamente calculado para golpear o queixo do cara.

Crack. O impacto foi sólido e a cabeça do desgraçado foi arremessada para trás.

Quando o vampiro voltou a olhar para ele e levantou o canto da boca em um rosnado, Manny não se intimidou.

– Isso é por brincar comigo.

O macho passou as costas da mão pela boca sangrenta.

– Belo gancho.

– Está à disposição – Manny disse ao sair do apartamento.

– Eu poderia tê-lo impedido a qualquer momento. Só para deixar claro.

Verdade, sem dúvida.

– Sim, mas não foi o que fez, certo? – Manny caminhou até o elevador, pressionou o botão para descer e olhou sobre o ombro. – Assim, isso faz de você um idiota ou um masoquista. A escolha é sua.

O vampiro se aproximou.

– Cuidado, humano... só está vivo por ser útil para mim.

– Ela é sua irmã?

– Não se esqueça disso.

Manny sorriu mostrando todos os dentes.

– Então, tem uma coisa que precisa saber.

– O quê?

Manny ergueu-se sobre os dedos dos pés e encarou o filho da mãe olho no olho.

– Se pensa que quer me matar agora, não é nada comparado ao que vai sentir quando eu a vir outra vez.

Estava praticamente rijo só de pensar na fêmea.

Com um sinal sonoro, as portas duplas do elevador se abriram e, então, ele avançou, entrou e virou-se. Os olhos do vampiro eram como lanças procurando um alvo, mas Manny minimizou a agressão.

– Só para que saiba a minha situação. Agora, entre no elevador ou desapareça como um fantasma até a rua. Pego você com o carro lá embaixo.

– Deve achar que sou um idiota, não é mesmo? – o vampiro rosnou.

– Na verdade, nem um pouco.

Pausa.

Depois de um momento, o vampiro resmungou alguma coisa e deslizou para dentro do elevador quando as portas começaram a se fechar. Então, os dois simplesmente ficaram lado a lado, observando a contagem regressiva dos números sobre as portas duplas...

Cinco... quatro... três... dois...

Como a contagem regressiva para uma explosão.

– Cuidado, humano. Não sou alguém a quem você queira pressionar.

– Não tenho nada a perder – A não ser a irmã daquele desgraçado enorme. – Acho que vamos ter que esperar para ver onde isso vai acabar.

– É isso aí.

Payne parecia um bloco de gelo sombrio enquanto encarava o relógio que havia próximo à porta do quarto. A face circular do aparelho era tão plana quanto a parede branca atrás dele, sem marcar nada além de doze números pretos separados por linhas pretas. As hastes do aparelho, uma negra e outra vermelha, percorriam seu caminho como se estivessem entediadas com aquele serviço, assim como ela estava ao observá-los trabalhando.

Vishous deve ter ido ver sua mãe. Onde mais iria?

Portanto, era uma perda de tempo. Com certeza, ele voltaria sem nada. Era pura arrogância pensar que “Aquela que não Podia ser Influenciada” se abalaria minimamente com os apuros pelos quais seus filhos passavam.

Mãe da raça. Que asneira...

Payne franziu a testa. O som começou do nada, com um ritmo fraco, mas, rapidamente, ficou mais alto. Passos. Passos pesados percorrendo o chão duro em ritmo acelerado, e havia dois pares de pés se aproximando.

Talvez não fosse ninguém além dos Irmãos de seu gêmeo vindo lhe fazer uma visita...

Quando a porta se abriu, tudo o que conseguiu ver foi Vishous em pé, muito alto e intransigente.

– Trouxe uma coisa para você.

Ele não chegou a se afastar, foi empurrado...

– Querida Virgem Escriba... – a boca de Payne se abriu, enquanto as lágrimas transbordavam de seus olhos.

Seu curandeiro irrompeu no quarto e, oh, era exatamente como se lembrava... peitoral largo, membros alongados, abdômen liso e um maxilar bem definido. Seu cabelos escuros estavam esticados, como se tivesse passado os dedos entre eles várias vezes, e estava respirando com dificuldade, a boca um pouco entreaberta.

– Eu sabia que você era real – ele desabafou. – Caramba, eu sabia!

A visão dele disparou algo nela, uma energia iluminou-a de dentro para fora, lançando suas emoções em queda livre.

– Curandeiro... – disse ela com voz rouca. – Meu curandeiro...

– Que inferno... – ouviu seu irmão dizer.

O humano de Payne virou-se para Vishous.

– Precisamos de um pouco de privacidade. Agora.

– Cuidado com essa maldita boca...

– Sou o médico dela. Você me trouxe aqui para que eu a avalie clinicamente...

– Não seja ridículo.

Houve uma pausa.

– Então, por que diabos estou aqui?

– Pelo exato motivo que eu lhe odeio, é por isso!

Aquilo provocou um grande silêncio... seguido por um soluço de Payne. Ela estava tão feliz em ver seu curandeiro em carne e osso. E aquele único suspiro fez a cabeça dos dois girarem em sua direção, o rosto do curandeiro mudou instantaneamente, passando da fúria à preocupação.

– Feche a porta quando sair – vociferou por cima do ombro enquanto se aproximava dela.

Passando as mãos sobre os olhos, Payne limpou suas lágrimas e observou seu curandeiro sentar-se ao lado da cama. Vishous tinha se virado e ia em direção à saída.

Ele sabia, ela pensou. Mais do que qualquer coisa que a mãe deles pudesse fazer por ela, trouxe a única coisa que garantiria seu desejo de continuar viva.

– Obrigada, meu irmão – ela disse, o olhar fixo nele.

Vishous parou. A tensão nele era tão grande, os dois punhos estavam fechados, e quando sua cabeça virou-se lentamente, seus olhos glaciais queimavam.

– Faria qualquer coisa por você. Qualquer coisa.

Com isso, continuou a sair... e quando a porta foi fechada com cuidado, percebeu que “Eu amo você” poderia ser dito sem que tal frase fosse pronunciada.

Ações significavam mais do que palavras.


CONTINUA

CAPÍTULO 13

Qhuinn entrou na mansão pela sala principal, o que foi um erro.

Deveria ter entrado na mansão pela garagem, mas a verdade é que aqueles caixões empilhados o assustavam. Sempre achava que as tampas seriam abertas e alguma coisa ao estilo Noite dos Mortos Vivos sairia dali para matá-lo.

Ainda assim, precisava muito superar essa covardia.

Graças ao relacionamento que tinha com os gays da casa, assim que abriu caminho pelo saguão de entrada, teve a visão clara de Blaylock e Saxton descendo a escadaria; os dois pareciam modelos ao se dirigirem à Última Refeição. Usavam calças, mas não eram jeans; blusas, não blusões, e sapatos, não botas de combate. Estavam limpos, bem barbeados, perfumados e penteados, mas não eram nem um pouco afeminados.

Na verdade, isso facilitaria muito as coisas. Pelo amor de Deus, desejava que um dos filhos da mãe se tornasse drag queen, enchesse-se de plumas e fizesse as unhas, mas não: continuavam a parecer dois machos muito atraentes que sabiam como gastar o dinheiro em lojas de grife... enquanto ele, por outro lado, serpenteava em seus couros e camisetas regatas... e, naquela noite em particular, ostentava cabelos desgrenhados por causa do sexo violento e perfume, se é que poderia chamar assim, da mesma linha de produtos de cuidados de uma vagabunda.

Por outro lado, poderia apostar que o que os separava do estado em que ele se encontrava era apenas um banho quente, cheio de sabão e uma visita ao armário: lamberia dinheiro se eles não haviam estado se pegando a noite toda. Pareciam muito satisfeitos e, ao mesmo tempo, famintos ao caminharem para o local onde faziam as refeições.

Quando atingiram o mosaico onde havia a representação de uma macieira em plena floração, os olhos azuis de Blay movimentaram-se e encararam Qhuinn dos pés à cabeça. O rosto do rapaz não demonstrou qualquer reação. Não mais.

A velha chama de dor não estava mais exposta... e isso não se devia ao fato de que o entretenimento que Qhuinn tinha acabado de ter era totalmente óbvio.

Saxton disse alguma coisa e Blay desviou o olhar... e lá estava. Um rubor naquele rosto adorável ao encontrar aqueles olhos cinza.

Não posso fazer isso, Qhuinn pensou. Não esta noite.

Evitando a cena na sala de jantar, encaminhou-se à porta abaixo das escadas e passou pela coisa. No instante em que se fechou, a conversa das pessoas foi interrompida e a escuridão silenciosa correu para cumprimentá-lo. Estava mais disposto a isso.

Desceu as escadas rasas, passou por outra porta codificada, entrou no túnel subterrâneo que ligava a casa principal ao centro de treinamento. Quando ficou sozinho, correu a todo vapor. Faltando pouco para suas pernas pararem de funcionar, teve de se inclinar contra a parede lisa. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos... e desejou colocar uma arma no meio dos olhos.

Ficou com o ruivo no Iron Mask.

Conseguiu deixar o hétero bem excitado.

E aconteceu exatamente do jeito que tinha previsto, começando com os dois conversando no bar e paquerando as garotas. Pouco depois, uma mulher de seios enormes aproximou-se deles com botas de plataforma pretas. Conversaram com ela, beberam com ela... com a amiga dela. Uma hora depois? Os quatro estavam em um banheiro, bem espremidos.

Essa tinha sido a parte dois do plano. As mãos atuavam em espaços reduzidos e quando havia muitas delas se movendo e arranhando, não se podia ter certeza daquilo que tocava. Ou que lhe acariciava. Ou sentia.

Em todo o tempo que esteve com as garotas, Qhuinn ficou pensando em uma estratégia para se livrar das fêmeas e isso levou muuuito mais tempo do que desejava. Depois do sexo, as garotas queriam algo mais... trocar telefones, dar uma volta, perguntaram se não queriam sair para comer alguma coisa.

Sim, claro. Não precisava de dígito algum, pois jamais ligaria para elas, não ia bater perna mesmo com pessoas que gostava, e o tipo de comida que poderia oferecer a elas não tinha nada a ver com um jantar gorduroso.

Após preencher os requisitos da vadia dentro dele, foi forçado a fazer uma lavagem cerebral nelas... o que o levou a um raro momento de compaixão pelos machos humanos que não podiam se dar a esse luxo.

E, então, ele e sua presa estavam sozinhos, o macho humano recostou-se contra a pia para se recuperar. Qhuinn fingiu estar fazendo isso ao encostar-se contra a porta. Eventualmente, seus olhos se encontraram. De maneira casual para o macho humano, de um jeito muito sério da parte de Qhuinn.

– O que foi? – o homem perguntou. Mas já sabia... pois as sobrancelhas franziram com força.

Qhuinn estendeu as mãos para trás e girou a chave, assim, não seriam perturbados.

– Ainda estou com fome.

De repente, o ruivo encarou a porta como se quisesse sair... mas seu pênis contava uma história totalmente diferente. Por trás do zíper daquele jeans... estava excitado.

– Ninguém nunca vai saber – Qhuinn disse de maneira sombria. Inferno, poderia fazer aquilo sem que o ruivo se lembrasse... contudo, se o cara não soubesse de nada sobre a questão vampira, não havia razão para remexer seu crânio e limpar as coisas lá dentro.

– Pensei que tinha dito que não era gay... – o tom foi um tanto melancólico, como se o cara não estivesse totalmente confortável com aquilo que seu corpo queria.

Qhuinn diminuiu a distância entre eles, colocando seu peito contra o do ruivo. Então, agarrou a nuca do cara e puxou-o contra sua boca. O beijo produziu o efeito planejado: tirou todo raciocínio lógico do banheiro e não deixou nada além das sensações para trás.

A coisa toda aconteceu a partir daí. Duas vezes.

Quando acabou, o cara não ofereceu seu número de telefone. Foi um espetáculo, mas era evidente que tinha sido algo experimental, uma primeira e única vez. Algo que não tinha problema algum para Qhuinn. Partiram sem dizer uma palavra, cada um seguindo sua vida, com o ruivo voltando para o bar... e Qhuinn saindo para passear nas ruas de Caldwell sozinho.

Apenas a chegada iminente do amanhecer o fez retornar.

– Que inferno... – disse a si mesmo.

A noite toda foi uma lição que o incomodou como um veneno de urtiga... Sim, havia momentos na vida em que um substituto funcionava: em uma reunião de conselho, por exemplo, quando enviava alguém para representar seu voto. Ou quando precisava de alguma coisa do mercado e dava sua lista a um doggen. Ou quando prometia jogar bilhar, mas ficava bêbado demais para segurar o taco e arrumava alguém para acertar suas bolas.

Infelizmente, a teoria do substituto não funcionava tão bem quando se queria ser o único a tirar a virgindade de alguém e a melhor ideia que tinha era ir a um clube, encontrar alguém com traços físicos semelhantes como... oh, digamos... mesma cor de cabelo... e transar com ele ao invés da pessoa desejada.

Em tal caso de substituição, você acabava se sentido vazio e não por que tinha gozado muito e estivesse flutuando em uma nuvem de pós-transa dizendo ahhh, sim.

Parado naquele túnel, sozinho, Qhuinn estava totalmente vazio. Uma cidade fantasma por dentro.

Pena que sua libido estava cheia de ideias brilhantes. Na silenciosa solidão, começou a imaginar como teria sido se fosse ele ao invés de seu primo a descer com Blay para o jantar. Se fosse ele quem estivesse dividindo não apenas uma cama, mas o quarto com o cara. Se conseguisse se levantar diante de todos e dizer: “Ei, esse é meu companheiro...”.

O bloqueio mental que se seguiu após essa breve canção foi tão completo que temeu ter levado um soco na cabeça.

E esse era o problema, não era?

Ao esfregar seus olhos díspares, pensou no quanto sua família o odiava: foi criado para acreditar que o defeito genético de ter uma íris azul e outra verde significava que era uma maldita aberração e o trataram como uma vergonha para a linhagem.

Bem, na verdade, foi pior que isso: acabaram chutando Qhuinn para fora de casa e enviaram um guarda de honra para ensinar-lhe uma lição. E foi assim que acabou tornando-se um viajante.

Para pensar que nunca saberiam sobre as outras “anomalias” que nutria.

Como desejar estar com seu melhor amigo.

Cristo, ele não precisava de um espelho para ver o covarde e a fraude que era... mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Estava trancado em uma jaula sem que pudesse encontrar a chave, os anos de escárnio de sua família golpeavam-no e davam-lhe cólicas: a verdade por trás de seu lado selvagem é que era um maricas total. Blay, por outro lado, declarou quem era e encontrou outra pessoa.

Maldição, aquilo doía...

Com um palavrão, interrompeu o monólogo pré-menstrual e obrigou-se a continuar andando. Recuperava-se a cada passo, dando um jeito em sua bagunça interna ao consertar e fortificar os canos que vazavam.

A vida era feita de mudanças. Blay tinha mudado. John tinha mudado.

E, aparentemente, ele era o próximo da lista, por que não poderia continuar assim.

Ao entrar no centro de treinamento pelos fundos do escritório, decidiu que se Blay conseguiu virar a página, então, ele também conseguiria. A vida era como as pessoas determinavam que fosse, independentemente de onde o destino as colocava, a lógica e o livre-arbítrio significavam que poderiam definir seu caminho da maneira que achassem melhor.

E não queria estar onde estava: nada de sexo anônimo. Nada de estupidez desesperada. Nada de arder em ciúmes e daquelas lamentações irritantes que não o levavam a lugar algum.

O vestiário estava vazio, já que não havia aulas de treinamento acontecendo, e ele se trocou, ficando nu antes de colocar a bermuda preta esportiva e um par de tênis da mesma cor. A sala de ginástica também funcionava como uma câmara de eco, o que era bom também.

Ligando o sistema de som, passou as músicas com o controle remoto. Quando a música “Clint Eastwood”, dos Gorillaz, tocou, subiu em uma esteira e ligou o aparelho. Odiava fazer exercícios... simplesmente desprezava a natureza roedora daquilo tudo. Era melhor transar e lutar, era o que sempre dizia.

No entanto, quando se estava preso dentro de casa por causa da madrugada e determinado a tentar dar uma chance ao celibato, correr para chegar a lugar algum parecia bem interessante para consumir as energias.

Calibrando a máquina, posicionou-se sobre ela e cantou junto com a música.

Concentrando-se no concreto pintado de branco ao longo do local, deu uma passada após a outra, de novo e de novo, e mais outra vez, até não haver nada em sua mente nem em seu corpo além de passos repetitivos, a batida do coração e o suor que se formava no peito nu, no estômago e nas costas.

Pela primeira vez na vida, não acionou um ritmo alucinante: a velocidade foi calibrada para que o ritmo obedecesse a uma rotatividade constante, o tipo de ritmo que poderia manter durante horas.

Quando se está tentando fugir de si mesmo, gravita-se para situações fortes e desagradáveis, para os extremos, para a imprudência, para que seja forçado a lutar e agarrar com as unhas os terrenos acidentados de sua autoinvenção.

Assim como Blay era quem mostrava ser, Qhuinn fazia o mesmo: apesar de desejar estar lá fora com o... macho... que amava, não poderia fazer isso.

Mas, por Deus, ia parar de fugir da covardia. Tinha de dominar a si mesmo – mesmo se acabasse se odiando com todas as forças. Talvez, se fizesse isso, pararia de tentar distrair-se com sexo e bebida e descobriria o que realmente queria.

Além de Blay, é claro.


CAPÍTULO 14

Sentando-se ao lado de Butch no Escalade, Vishous tinha machucados distribuídos por seus quase dois metros de altura e seus mais de cem quilos.

Enquanto corriam a toda velocidade de volta ao complexo da Irmandade, cada centímetro latejava, a dor formava uma névoa que acalmava o grito dentro dele.

Logo, tinha conseguido alguma coisa de que precisava.

O problema era que o alívio já estava começando a desaparecer e o deixava furioso com o Bom Samaritano atrás do volante. Não que o tira parecesse se importar; ele discava aquele celular dele e desligava, discava de novo e desligava outra vez, como se os dedos em sua mão direita tivessem algum tique nervoso.

Provavelmente estava ligando para Jane e pensando melhor sobre isso. Ainda bem que...

– Sim, gostaria de comunicar um corpo – ouviu o tira dizer. – Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

Enquanto Butch continuava a falar assim com a atendente, V. movimentou o traseiro no banco e sentiu as costelas quebradas em seu lado direito uivarem. Nada mal; se precisasse de outra surra para acalmá-lo, poderia fazer algumas flexões e a agonia voltaria com força total outra vez...

Butch jogou o celular no painel. Praguejou. Praguejou novamente.

Então, decidiu dividir os problemas:

– Até onde ia deixar aquilo chegar, V.? Até que o esfaqueassem? Deixassem você caído para queimar ao sol? O que seria ir longe o suficiente?

V. falou com os lábios inchados:

– Não muito adiante, é verdade.

– Adiante? – Butch balançou a cabeça, seus olhos estavam muito violentos. – Como é que é?

– Não finja... não sabe como é isso. Já o vi em uma bebedeira... Já o vi... – ele tossiu. – Já o vi completamente bêbado com um copo nas duas mãos. Então, não me venha com essa de que é “mais inocente que eu” pra cima de mim.

Butch voltou a se concentrar na estrada.

– Você é um filho da mãe miserável.

– Que seja.

Sim, a conversa pararia por aí.

No momento em que Butch estacionou em frente à mansão, os dois estavam retraindo-se e piscando como se estivessem sendo golpeados por um bastão: o sol ainda estava oculto no lado mais distante do horizonte, mas era o suficiente para espalhar um rubor no céu que estava apenas a alguns centímetros de distância de dizimar um vampiro.

Não cruzaram a entrada principal; sem chance. A Última Refeição estava preste a começar e, considerando o humor daqueles dois, não havia razão para alimentar a fábrica de fofocas.

Sem dizer nada, V. entrou no Buraco e fez o caminho mais curto até seu quarto. Não veria Jane ou sua irmã daquele jeito, não mesmo. Inferno, se considerasse as dores no rosto, não tinha como vê-las sem antes tomar um banho.

No banheiro, ligou a água e desarmou-se no escuro – isso envolveu apenas tirar sua adaga do coldre em volta da cintura e colocá-la sobre o balcão. Suas roupas estavam imundas, cobertas de sangue, cera e outras porcarias, e deixou-as cair no chão, sem saber ao certo o que faria com elas.

Então, colocou-se debaixo da ducha antes de ficar quente. Quando a água quente atingiu seu rosto e peitoral, silvou; o impacto desceu até seu pênis e o enrijeceu – não que ele tivesse qualquer interesse em fazer alguma coisa com a ereção. Apenas fechou os olhos enquanto seu sangue e o do inimigo escorriam de seu corpo e eram escoados para o ralo.

Cara, quando conseguisse terminar de lavar tudo aquilo, estaria pronto para colocar uma blusa de gola alta. Seu rosto estava terrível, mas talvez pudesse explicar isso com o fato de que esteve na rua lutando com o inimigo. Mas era suficiente para transformá-lo em um quadro preto e azul da cabeça aos pés?

Nem tanto.

Abaixando a cabeça, deixou a água cair no nariz e no queixo; tentou desesperadamente voltar para os carros alegóricos do entorpecimento que sentiu no carro, mas com a dor desaparecendo, sua opção alucinógena estava perdendo o controle sobre ele, e o mundo estava ficando nítido demais outra vez.

Deus, a sensação de estar fora de controle e irritado o sufocava, como se houvessem mãos em volta de sua garganta.

Maldito Butch. Metido a benfeitor, barulhento, que interferia na vida dos outros como um filho da mãe.

Dez minutos depois, ele saiu, pegou uma toalha preta, enrolou-se no tecido felpudo e entrou no quarto. Parando para abrir o armário, desejou uma vela negra em... deu uma olhada nas roupas de sua esposa. Além disso, só havia roupas de couro. Era o que acontecia com seu guarda-roupa quando se lutava para sobreviver e dormia nu.

Nenhuma blusa de gola alta à vista.

Bem, talvez não estivesse tão ruim assim...

Um rápido giro em direção ao espelho atrás da porta, e teve de fazer uma pausa. Parecia que tinha sido agarrado pelo monstro do Rhage, grandes faixas com vergões vermelhos envolviam seu tronco e estendiam-se sobre seus ombros e peitorais. Seu rosto era uma piada, um dos olhos estava tão inchado que a pálpebra estava quase inoperante... o lábio inferior profundamente rachado... o queixo parecia um esquilo escondendo nozes.

Ótimo: parecia um dos garotos de Dana White.*

Depois disso, pegou suas roupas sujas e enfiou-as no fundo do armário, em seguida, colocou a cabeça inchada como um balão para fora do quarto, no corredor, e ouviu. O canal de esportes estava tagarelando lá embaixo à esquerda, e alguma coisa líquida estava sendo servida à direita.

Dirigiu-se para o quarto de Butch e Marissa nu. Não havia razão para esconder os machucados de Butch... o filho da mãe viu tudo acontecer.

Quando entrou pela porta, encontrou o tira sentado na ponta da cama, cotovelos sobre os joelhos, um copo de uísque nas mãos e uma garrafa entre os sapatos.

– Sabe no que estou pensando agora? – o cara disse sem erguer os olhos.

V. poderia pensar em uma lista infernal de coisas.

– Diga-me.

– Na noite em que o vi se jogar da varanda do Commodore. Na noite em que eu pensei que tinha morrido – Butch tomou um gole do que estava no copo. – Achei que tínhamos superado aquilo.

– Se serve de consolo... eu também.

– Por que não vai ver sua mãe? Falar sobre essas porcarias com ela?

Como se houvesse alguma coisa que a fêmea pudesse dizer naquele momento...

– Eu a mataria, tira. Não sei como faria isso... mas eu a mataria por isso. Ela me deixou com aquele pai sociopata... sabendo exatamente como ele era, porque, afinal, ela vê tudo. Então, manteve um segredo relacionado a mim por trezentos anos, antes disso aparece no meu aniversário, tentando me colocar como uma referência para sua religião burra e estúpida. Mas eu poderia ter deixado tudo isso para lá, não é mesmo? Porém, minha irmã, minha irmã gêmea? Ela afastou Payne de mim, tira; manteve-a junto dela contra sua vontade. Por séculos. E nunca sequer me contou que eu tinha uma irmã. Isso é demais. Para mim chega. – V. encarou o uísque. – Tem um pouco disso aí sobrando?

Butch tirou a rolha da garrafa e estendeu a bebida. Quando V. a pegou, o tira disse:

– Mas acordar os mortos não é a resposta, e nem tentar se destruir como está fazendo.

– Você se habilita a fazer isso por mim? Porque estou enlouquecendo e preciso sair, Butch. De verdade. Sou perigoso aqui... – V. deu um gole na bebida e amaldiçoou quando a coisa deslizou em seus lábios, dando a sensação de que estava fumando um cigarro do lado errado. – E não consigo pensar em uma maneira de tirar isso de mim... Mas com certeza não vou voltar a praticar meus velhos hábitos.

– Não se sente tentado?

V. preparou-se e deu outro gole. Com uma careta, disse:

– Quero o prazer, mas não vou fazer isso com ninguém além de Jane. De jeito nenhum vou voltar para nossa cama com o fedor de alguma vadia em meu pênis... isso estragaria tudo, não apenas para ela, mas para mim também. Além disso, o que preciso agora é de um dominante e não de um submisso... e não há ninguém em quem eu possa confiar. – Exceto, talvez, por Butch, mas isso ultrapassaria muitos limites. – Então, estou preso: tenho um monstro gritando na minha cabeça e lugar algum para ir com essa besta... e isso está me enlouquecendo.

Meu Deus... ele disse isso. Tudo isso.

É isso aí, cara.

E o prêmio foi outro gole da garrafa.

– Caramba, meus lábios estão doendo.

– Sem ofensas, mas é benfeito... Você merece. – Os olhos castanhos de Butch se ergueram e, depois de um momento, sorriu um pouco, exibindo aquela coroa no dente da frente, bem como suas presas. – Sabe? Eu estava quase odiando você um minuto atrás, estava mesmo. E antes que me peça, as blusas de gola alta estão dobradas no final daquela fileira de cabides. Pegue uma calça de moletom também. Parece que bateram um martelo nas suas pernas e que suas bolas estão prestes a explodir.

– Obrigado, cara. – V. aproximou-se da fileira de roupas que estavam suspensas em cabides de cedro fino. Uma coisa que se podia dizer de Butch era que seu guarda-roupa era cheio de opções. – Nunca pensei que ficaria contente por seu armário parecer o de uma maníaca por roupas.

– Acho que o termo é “especialista em vestir-se bem”.

Com aquele sotaque de Boston as palavras soaram diferentes e V. se perguntou se alguma vez na vida chegou a não ouvir aquele sotaque de Boston em seu ouvido.

– O que vai fazer em relação a Jane?

V. colocou a garrafa no chão, puxou uma gola alta de caxemira sobre a cabeça e ficou decepcionado em ver que mal cobria seu umbigo.

– Ela já tem problemas suficientes. Nenhuma shellan precisa ouvir que seu macho saiu para levar uma boa surra... e não quero que diga a ela.

– Como vai explicar esses machucados, espertinho?

– O inchaço vai diminuir.

– Mas não rápido o suficiente... vai visitar Payne assim...

– Ela também não precisa ter o prazer dessa visão. Só vou me esquivar durante um dia. Payne está em recuperação e estável... pelo menos, foi o que Jane me disse... por isso, vou para minha oficina de ferragens.

Butch estendeu o copo.

– Importa-se?

– Entendido. – V. serviu seu amigo, tomou outro gole e, em seguida, vestiu uma calça. Erguendo os braços para os lados, deu uma volta. – Melhor?

– Tudo o que vejo são tornozelos e pulsos... e, para sua informação, está parecendo uma Miley Cyrus muito esquisita com essa barriga de fora. Nada atraente.

– Vá se ferrar! – Quando V. pegou a garrafa e deu outro gole, decidiu que ficar bêbado era seu novo plano. – Não posso fazer nada se você parece um maldito anão.

Butch riu com satisfação e, em seguida, voltou a ficar sério.

– Se fizer isso outra vez...

– Vai pedir para que eu tire suas roupas.

– Não é disso que estou falando.

V. puxou as mangas da blusa e não conseguiu nada com isso.

– Não precisa intervir, tira, não vou me matar. Não é esse o ponto. Sei onde está o limite.

Butch praguejou, seu rosto assumiu uma expressão sombria.

– Você diz isso e acredita que seja verdade. Mas as situações podem entrar em um turbilhão... especialmente as que está vivendo. Pode entrar na onda de... seja lá o que acha ser necessário... e a maré pode acabar virando contra você.

V. flexionou sua mão enluvada.

– Impossível. Não com isso... E não quero mesmo que fale com minha garota sobre isso. Prometa-me. Precisa ficar fora disso.

– Então, vai precisar falar com ela.

– Como posso dizer a ela... – sua voz ficou entrecortada e teve de limpar a garganta. – Como diabos posso explicar isso a ela?

– Como não explicar? Ela o ama.

V. apenas balançou a cabeça. Não conseguia imaginar-se dizendo a sua shellan que queria ser machucado fisicamente. Isso a mataria, e ele não tinha a menor intenção de que ela o visse daquela maneira.

– Olha só, vou dar um jeito nisso sozinho. Em tudo isso.

– É disso que tenho medo, V. – Butch consumiu o resto de sua bebida em um só gole. – Esse... é nosso maior problema.

Jane estava observando sua paciente dormir quando o celular soou em seu bolso. Não era uma ligação, mas uma mensagem de texto de V.: To em casa. Vou p ofic. trab. Como ta P.? E vc?

Seu suspiro não foi de alívio. Tinha chegado apenas dez minutos antes do sol erguer-se totalmente e não procurou vê-la ou visitar sua irmã?

Dane-se, ela pensou, ao se levantar e sair do quarto de recuperação.

Depois de passar algumas orientações a Ehlena, que estava na sala de exames da clínica atualizando os arquivos dos Irmãos, Jane andou decidida pelo corredor, virou à esquerda perto do escritório e passou pelos fundos do armário da despensa. Não havia razão para lidar com os códigos de bloqueio; simplesmente atravessou...

E lá estava ele, a pouco menos de vinte metros de distância do túnel, afastando-se dela... passou pelo centro de treinamento e caminhou, entrando ainda mais fundo na montanha.

As luzes fluorescentes no teto o iluminavam, atingindo seus ombros enormes e a parte inferior de seu corpo pesado. Passando pelo brilho daquelas luzes, seu cabelo parecia estar molhado e o aroma persistente do sabonete que sempre usava era a confirmação de que havia acabado de tomar banho.

– Vishous.

Disse o nome dele apenas uma vez, mas o túnel era uma câmara de ecos que fez com que as sílabas golpeassem as paredes e retornassem várias vezes, multiplicando-as.

Ele parou.

Foi a única resposta que ela recebeu.

Depois de esperar que ele dissesse alguma coisa, que se virasse... que a reconhecesse... descobriu algo novo sobre seu estado fantasmagórico: mesmo que, tecnicamente, não estivesse mais viva, seus pulmões ainda queimavam como se estivesse sufocando.

– Aonde foi esta noite? – ela disse, sem esperar uma resposta.

E, de fato, não a obteve. Mas ele parou bem debaixo de uma luminária, então, mesmo à distância, pôde ver seus ombros ficando tensos.

– Por que não se vira, Vishous?

Bom Deus... o que ele fez no Commodore? Oh, meu Deus...

Engraçado, havia uma razão pela qual as pessoas “construíam” suas vidas juntos. As escolhas que fazem como marido e mulher não são tijolos e o tempo não é uma argamassa, mas, ainda assim, elas constroem algo tangível e real. E, naquele momento, quando seu hellren recusava-se a se virar em direção a ela... inferno, apenas para mostrar seu rosto... ocorria um estrondoso terremoto, que abalava o que ela acreditava ser terra firme.

– O que fez esta noite? – ela disse sufocada.

Nesse momento, ele virou-se e deu dois grandes passos em direção a ela. Mas não foi para se aproximar. Foi para sair da luz. Mesmo assim...

– Seu rosto – ela engasgou.

– Lutei com alguns redutores. – Quando ela se aproximou, ele ergueu a palma de uma de suas mãos. – Estou bem. Só preciso de um pouco de espaço agora.

Tinha alguma coisa errada, ela pensou. E odiou o questionamento que surgiu em sua mente... a ponto de recusar-se a pronunciá-lo.

Só que tudo o que tinham ali era silêncio.

– Como está minha irmã? – ele disse de repente.

Com um nó na garganta, respondeu:

– Está descansando ainda. Ehlena está com ela.

– Deveria tirar uma folga e descansar.

– Eu vou. – Uh-hum, certo. Com as coisas entre eles como estavam, nunca mais conseguiria dormir de novo.

V. passou sua mão enluvada pelo cabelo.

– Não sei o que dizer agora.

– Esteve com outra pessoa?

Ele não hesitou nessa:

– Não.

Jane o encarou... e, então, suspirou lentamente. Uma coisa era certa sobre seu hellren, algo com a qual poderia sempre contar: Vishous não mentia. Tinha muitos defeitos, mas esse não era um deles.

– Certo – ela disse. – Sabe onde me encontrar. Estarei em nossa cama.

Foi ela quem se virou e começou a andar na direção oposta. Mesmo a distância partindo seu coração, não iria atormentá-lo com algo que não era capaz de fazer e se ele precisava de espaço... bem, daria isso a ele.

Mas não para sempre, com certeza.

Mais cedo ou mais tarde, o macho viria conversar com ela. Tinha de fazer isso ou ela iria... Deus, não sabia o que seria capaz de fazer.

Contudo, seu amor não sobreviveria para sempre nesse vácuo. Simplesmente não sobreviveria.

Presidente do UFC – Ultimate Fighting Championship. (N.P.)


CAPÍTULO 15

O fato de José de la Cruz parar em um drive-thru para comprar alguma porcaria no centro de Caldwell era um clichê total. Todos sabiam que os detetives de homicídios bebiam café e comiam doces, mas isso nem sempre era verdade .

Algumas vezes, não havia tempo para fazer uma parada.

E, cara, dane-se o que esses programas de televisão e romances policiais dizem por aí... A realidade era que ele funcionava melhor com cafeína e um pouco de açúcar em sua corrente sanguínea. Além disso, vivia pelas rosquinhas; portanto, que o processassem.

A ligação que acordou a ele e a sua esposa aconteceu perto das seis da manhã, um horário que, se considerasse o número que observou ao atender a ligação, era quase civilizado: cadáveres, assim como aqueles que ficavam doentes, não seguiam as regras do horário comercial. Então, o horário quase tolerável era uma bênção.

E não era a única coisa boa em seu caminho: felizmente, por ser domingo, as estradas e rodovias estavam vazias, e seu carro sem identificação oficial fazia um trabalho excelente para sair dos subúrbios em uma situação assim... então, seu café ainda estava bem quente enquanto ele se dirigia para o distrito comercial, passando com cuidado pelos sinais vermelhos.

A fila de viaturas anunciou a localização onde o corpo havia sido encontrado, mais do que a fita de aviso amarela que tinha sido estendida por toda parte, como se fosse um laço sobre um maldito presente de Natal. Praguejando, estacionou paralelamente à parede de tijolos do beco e saiu, bebendo seu café e andando em direção ao amontoado de uniformes azuis.

– Ei, Detetive.

– E aí, Detetive?

– Oi, Detetive.

Assentiu para os garotos.

– Bom dia a todos. O que temos aqui?

– Não tocamos nela – Rodriguez fez um aceno com a cabeça em direção à caçamba. – Está lá, e Jones está tirando as primeiras fotos. O médico legista e o pessoal da perícia criminal estão a caminho. O misógino às avessas também.

Ah, sim, o fiel fotógrafo deles.

– Obrigado.

– Onde está seu novo parceiro?

– Chegando.

– Ele está pronto para isso?

– Vamos ver. – Sem dúvida, aquele beco sujo estava bem familiarizado com pessoas botando para fora aquilo que tinham comido; então, se o novato perdesse o almoço, não tinha problema.

José abaixou-se sob a faixa amarela e andou em direção à caçamba. Como sempre, quando se aproximava de um corpo, percebia que sua audição estava tão aguda que chegava a ser insuportável: a conversa mole dos homens atrás dele, o som das solas dos próprios sapatos no asfalto, a brisa fria vinda do rio que assoviava... tudo estava alto demais, como se o volume do mundo inteiro tivesse sido aumentado ao máximo.

E claro, a ironia era que o propósito dele estar ali, naquela manhã, naquele beco... o propósito de todos aqueles carros, homens e fitas de advertência estarem ali... estava perfeitamente em silêncio.

José segurou seu copo de isopor enquanto espiava por cima da tampa enferrujada da caçamba. A mão da moça foi a primeira coisa que viu, uma linha pálida de dedos com unhas quebradas e havia alguma coisa marrom embaixo delas.

Uma lutadora, não importava quem fosse.

Ao se deparar com outra garota morta, desejou profundamente que seu trabalho fosse tranquilo por um mês ou uma semana... ou, pelo amor de Deus, ao menos por uma noite. Caramba, dar uma desacelerada na carreira era o que estava pensando em fazer: quando se atua em tal área profissional, é difícil ficar satisfeito com o que se faz. Mesmo quando um caso era resolvido, ainda assim alguém estaria enterrando um ente querido.

O policial perto dele parecia ter um megafone quando falou.

– Quer que eu abra a outra metade?

José quase disse para o cara diminuir o volume, mas havia uma grande possibilidade de que estivesse falando como em uma biblioteca.

– Sim. Obrigado.

O policial usou um cassetete para levantar a tampa o suficiente para que a luz pudesse entrar, mas o cara não olhou para o que havia dentro. Apenas permaneceu ali, em pé, como um daqueles soldados da realeza britânica, dirigindo o olhar para o outro lado do beco, sem focar em nada.

Quando José ergueu-se na ponta dos pés e deu uma espiada, não culpou o policial por sua reticência.

Deitada em uma cama de metais retorcidos, a mulher estava nua, sua pele cinza e manchada exibia uma luminosidade estranha sob a luz do amanhecer. Considerando seu rosto e corpo, parecia estar no final da adolescência, uns vinte anos. Branca. O cabelo tinha sido cortado pela raiz, tão rente à pele que o couro cabeludo estava dilacerado em alguns lugares. Olhos...? Tinham sido removidos de suas órbitas.

José tirou uma caneta do bolso, esticou o corpo ao aproximar-se e separou cuidadosamente os lábios da garota. Sem dentes... não restou sequer algum nas gengivas irregulares.

Movendo-se para a direita, ergueu uma das mãos para ver a parte inferior da ponta dos dedos. Completamente removidas.

E a desfiguração não se limitava à cabeça e às mãos... Havia ranhuras profundas na pele, uma no alto de sua coxa, outra na parte inferior do braço e duas na parte de dentro de seus pulsos.

José amaldiçoou em voz baixa, pois tinha certeza de que ela havia sido desovada ali. Não havia privacidade suficiente no local para realizar esse tipo de trabalho... aquela porcaria exigia tempo e ferramentas... e equipamentos de contenção para mantê-la deitada.

– O que temos aí, Detetive? – seu novo parceiro disse atrás dele.

José olhou para Thomas DelVecchio Jr. sobre o ombro.

– Já tomou café da manhã?

– Não.

– Que bom.

Recuou um pouco para que Veck pudesse dar uma olhada. Como o cara era quinze centímetros mais alto do que ele, não teve de se esticar para ver o que havia lá dentro. Tudo o que fez foi dobrar os quadris. E, então, apenas olhou. Nada de inclinar-se contra a parede para vomitar. Nada de engasgos. Também não houve qualquer mudança drástica na expressão do rosto.

– O corpo foi desovado aqui – Veck disse. – Só pode ser.

– Ela.

Veck olhou para ele, seus olhos azuis-escuros eram inteligentes e imperturbáveis.

– Como?

– Ela foi desovada aqui: é uma pessoa, não uma coisa, DelVecchio.

– Certo. Desculpe. Ela. – O cara inclinou-se outra vez. – Acho que temos um colecionador de troféus.

– Talvez.

As sobrancelhas escuras se ergueram.

– Há muita coisa faltando... nela.

– Tem assistido aos noticiários ultimamente? – José limpou a caneta em um tecido.

– Não tenho tempo para TV.

– Onze mulheres foram encontradas assim no ano passado. Nas cidades de Chicago, Cleveland e Philly.

– Caraaamba – Veck colocou um pedaço de chiclete na boca e mastigou com força. – Então, deve estar se perguntando se este pode ser o início para nós.

Quando o cara rangeu os molares, José esfregou os olhos para dissipar as memórias que surgiram.

– Quando parou?

Veck limpou a garganta.

– De fumar? Mais ou menos há um mês.

– Como está indo?

– É um saco.

– Aposto que sim.

José colocou as mãos sobre os quadris e voltou a se concentrar. Como iriam fazer para descobrir quem era aquela garota? Havia inúmeras mulheres jovens desaparecidas no estado de Nova York... e isso considerando que o assassino não tinha feito aquilo em Vermont ou Massachusetts ou Connecticut e tenha dirigido até ali para depositá-la naquela caçamba.

Uma coisa era certa: nem morto permitiria que aquele filho da mãe começasse a atacar as garotas da cidade. Não ia acontecer enquanto estivesse no comando.

Quando se virou, bateu no ombro de seu parceiro.

– Dez dias, amigo.

– Para quê?

– Para voltar a montar na sela de um Marlboro.

– Não subestime minha força de vontade, detetive.

– Não subestime o que vai sentir quando for para casa e tentar dormir esta noite.

– Não durmo muito, mesmo.

– Esse trabalho não vai ajudar.

Nesse momento, a fotógrafa chegou com seus cliques, flashes e mau humor.

José indicou a direção oposta com a cabeça.

– Vamos sair daqui e deixá-la fazer seu trabalho.

Veck deu uma olhada e ficou surpreso quando a encarou melhor. A péssima receptividade foi uma novidade para ele... As mulheres gravitavam ao redor de homens como Veck; as duas últimas semanas provaram isso: elas ficavam sempre por perto na delegacia.

– Vamos, DelVecchio, vamos começar a procurar as peças desse quebra-cabeça.

– Entendido, detetive.

Normalmente, José pediria para que o cara o chamasse de de la Cruz, mas nenhum de seus “novos” parceiros duravam mais do que um mês, então, de que adiantaria? “José” estava fora de cogitação, claro... apenas uma pessoa chamou-o assim naquele trabalho e o desgraçado tinha desaparecido há três anos.

Levou mais ou menos uma hora para que ele e Veck investigassem o local e acabassem não conseguindo absolutamente nenhum material. Não havia nenhuma câmera de segurança no exterior dos prédios nem testemunhas tinham se apresentado, mas os caras da investigação criminal iriam rastrear tudo com seus distintivos, bolsinhas plásticas e pinças. Talvez aparecesse algo.

O médico legista chegou às nove, fez seu trabalho, e o corpo foi liberado para ser removido mais ou menos uma hora depois disso. E quando o pessoal precisou de uma ajuda com o cadáver, José ficou surpreso em ver que Veck colocou um par de luvas de látex e pulou naquela caçamba.

Um pouco antes do médico legista removê-la do local, José perguntou sobre a hora da morte e foi informado que tinha acontecido por volta do meio-dia do dia anterior.

Ótimo, ele pensou enquanto os carros e as vans começavam a partir. Quase vinte e quatro horas morta antes de encontrá-la. Poderia muito bem ter sido conduzida para fora do estado.

– Hora de acionar o banco de dados – disse a Veck.

– Estou nessa.

Quando o cara se virou e seguiu em direção a uma motocicleta, José gritou:

– Chiclete não é comida.

Veck parou e olhou sobre o ombro.

– Está me convidando para tomar café da manhã, detetive?

– Só não quero que desmaie no trabalho. Isso o deixaria constrangido e eu seria obrigado a examinar outro corpo.

– Que amável, detetive.

Talvez costumasse ser; mas agora só estava nervoso consigo mesmo e não sentia a menor vontade de comer sozinho.

– Encontro você no Vinte e quatro em cinco minutos.

– Vinte e quatro?

Certo, ele não era dali.

– Riverside Diner, na Eighth Street. Fica aberto vinte e quatro horas.

– Entendi. – O cara colocou um capacete preto e alavancou uma das pernas sobre algum tipo de engenhoca que parecia fazer parte do motor. – Eu pago.

– Faça como quiser.

Veck pisou a alavanca com força e ligou o motor.

– Sempre faço, detetive. Sempre.

Quando arrancou, deixou um rastro de testosterona no beco e, enquanto José arrastava-se preguiçosamente em direção a seu automóvel bege sem identificação, sentiu-se como um tiozinho de meia-idade em comparação a Veck. Deslizando para trás do volante, colocou seu copo quase vazio e completamente frio no porta-copos, e seu olhar deslocou-se da faixa para aquela caçamba.

Tirando o celular do paletó, ligou para a delegacia.

– Ei, é o de la Cruz. Pode passar a ligação para a Mary Ellen? – O tempo de espera foi de menos de um minuto. – Mary Ellen? Como vai? Bem... bem. Ouça, quero ouvir a ligação que denunciou o corpo que havia próximo ao Commodore. Sim. Claro... só preciso que a reproduza. Obrigado... não precisa correr.

José colocou a chave na ignição.

– Ótimo. Obrigado, Mary Ellen.

Sim, gostaria de comunicar um corpo. Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

José apertou o telefone e começou a tremer.

O sotaque de Boston era tão claro e familiar que foi como se o tempo tivesse se envolvido em um acidente de carro e ricocheteado para trás.

– Detetive? Quer ouvir outra vez? – ouviu Mary Ellen dizer em seu ouvido.

Fechando os olhos, resmungou.

– Sim, por favor...

Quando a gravação terminou, ouviu-se agradecendo a Mary Ellen e sentiu que pressionou o polegar sobre o botão end do celular para finalizar a ligação.

Tão claro como água cristalina, estava sendo sugado para um pesadelo de dois anos atrás... quando entrou naquele apartamento fedorento e decaído, cheio de garrafas de uísque vazias e caixas de pizza. Lembrou-se de sua mão estendendo-se em direção à porta fechada de um banheiro, aquela maldita parte de seu corpo tremia por inteiro.

Estava convencido de que iria encontrar um corpo do outro lado. Pendurado no chuveiro por um cinto... ou talvez mergulhado em sangue ao invés de um banho de espuma.

Butch O’Neal teve uma vida difícil ao buscar realizar-se profissionalmente no departamento de homicídios. Bebia até altas horas e não só tinha fobia de relacionamentos como também era incapaz de estabelecer laços afetivos.

Só que ele e José eram próximos. Tão próximos quanto Butch foi capaz de ser com alguém um dia.

Contudo, nada de suicídio. Nada de corpo. Nada. Em uma noite, ele estava ali; na outra... havia sumido.

No primeiro mês, e até no segundo, José esperou ter alguma notícia... do próprio cara ou sobre um cadáver de nariz quebrado e um dente da frente com uma coroa mal feita aparecendo em algum lugar.

No entanto, dias transformaram-se em semanas que, por sua vez, tornaram-se estações do ano, e sentiu-se como um médico que descobriu ter uma doença terminal: finalmente soube como as famílias de pessoas desaparecidas se sentiam. E, Deus, nunca pensou que passaria por aquela longa, terrível e fria espera. Jamais imaginou que percorreria aquele território do “Não Saber de Nada”... Mas com o desaparecimento de seu parceiro, não só percorreu o maldito território como comprou um terreno, construiu uma casa e mudou-se para lá.

Agora, porém, depois de ter perdido todas as esperanças, depois de não acordar mais no meio da noite pensando onde o cara poderia estar... agora... tinha ouvido aquela gravação.

Claro, milhões de pessoas tinham aquele sotaque de Boston. Mas O’Neal possuía uma rouquidão reveladora em sua voz que não poderia ser replicada.

De repente, José perdeu a vontade de ir ao Vinte e quatro, não queria comer nada. Mas colocou seu carro sem identificação oficial em funcionamento e pisou no acelerador.

No momento em que olhou para a caçamba e viu aqueles olhos arrancados e aquele trabalho odontológico, soube que estava indo à procura de um serial killer. Mas não poderia imaginar que iniciaria outra busca.

Hora de encontrar Butch O’Neal.

Se fosse capaz.


CAPÍTULO 16

Uma semana depois, Manny acordou em sua cama com as dores latejantes de uma ressaca. A boa notícia era que pelo menos aquela dor poderia ser explicada: quando chegou em casa, tomou uísque até ficar chapado. E a bebida desempenhou seu papel, derrubando-o com força total como em um nocaute.

A primeira coisa que fez foi estender a mão e pegar o telefone. Com os olhos embaçados, ligou para o celular do veterinário. Os dois tinham combinado um ritual matinal e Manny agradecia a Deus pelo fato do cara também ser um insone.

O veterinário atendeu no segundo toque.

– Alô?

– Como está minha garota? – a pausa que se seguiu disse-lhe tudo o que tinha de saber. – Tão mal assim?

– Bem, os sinais vitais permanecem bons e ela continua tão estável quanto possível com a sedação, mas estou preocupado com uma possível inflamação nos cascos.

– Mantenha-me informado.

– Sempre.

Nesse momento, desligar era a única coisa que poderia fazer. A conversa tinha acabado e não era uma pessoa que jogava conversa fora... mesmo que fosse, um bate-papo não o ajudaria a conseguir aquilo que desejava: um cavalo saudável.

Antes do despertador disparar às seis e meia para que ele começasse a dura rotina, deu um tapa no rádio-relógio para que continuasse em silêncio e pensou: exercícios. Café. Voltar ao hospital.

Espere. Café, exercícios, hospital.

Definitivamente, precisava de cafeína primeiro. Não conseguiria correr ou levantar pesos naquela condição... e também não poderia operar máquinas pesadas – como um elevador, por exemplo.

Ao levar os pés ao chão e ficar na posição vertical, sua cabeça tinha um ritmo próprio de batidas e revoltou-se com a ideia de que talvez, apenas talvez, a dor não tivesse relação com a bebida: não estava doente nem desenvolvendo um tumor cerebral... Contudo, mesmo se estivesse, iria do mesmo jeito para o hospital; estava em sua natureza. Caramba, quando era jovem, lutava para ir à escola mesmo doente... mesmo quando teve catapora e ficou parecendo um desenho de ligar pontos, insistiu em pegar o ônibus.

Sua mãe ganhou aquela batalha em particular, e reclamou por ele ser exatamente como o pai.

Não foi um elogio, e ouviu isso a vida inteira... mas também não significava nada, pois nunca conheceu o cara. Tudo o que tinha era uma foto desbotada dele. A única coisa que acabou colocando em um porta-retrato... Por que diabos estava pensando sobre isso naquela manhã?

O café foi uma mistura instantânea suave. Vestiu as roupas esportivas enquanto a bebida ficava pronta e tomou duas canecas sobre a pia ao observar a fila do tráfego matutino sob a penumbra da madrugada nas proximidades da estrada que ia para o norte. A última coisa que fez foi pegar seu iPod e colocá-lo nos ouvidos. Claro que não era um tipo de cara falante, mas que Deus o ajudasse a não encontrar uma garota tagarela pela frente naquele dia.

Na sala de musculação, o local estava bem vazio, o que foi um grande alívio, mas isso não ia durar muito. Saltando na esteira mais próxima da porta, desligou o noticiário que estava passando na TV instalada no alto da parede e começou a malhar.

O som de Judas Priest em seu iPod embalou seus passos, sua mente desconectou-se e seu corpo rígido e dolorido teve o que precisava. Considerando tudo, estava melhor agora se comparado ao fim de semana anterior. As dores de cabeça ainda estavam lá, mas continuava a manter o ritmo de trabalho, a atender seus pacientes em dia e a administrar tudo.

No entanto, isso o fez pensar. Um pouco antes de Jane ter batido naquela árvore, teve dores de cabeça também. Então, se tivessem sido capazes de fazer uma autópsia no corpo dela, será que teriam encontrado um aneurisma? Por outro lado, qual seria a probabilidade dos dois sofrerem a mesma...

Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Não tenho tempo para explicar agora. Por favor. Sei que é pedir muito. Mas há uma paciente que precisa de você, desesperadamente... já estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada.

– Droga. – Manny colocou os pés rapidamente na beirada da esteira e cerrou os dentes contra a agonia. Dobrando a parte superior do corpo sobre o painel do aparelho, respirou lenta e equilibradamente... ou pelo menos tentou o máximo possível que uma pessoa correndo a dez quilômetros por hora poderia conseguir.

Nos últimos sete dias, aprendeu por meio do método de tentativa e erro que, quando a dor o atingia, o melhor a fazer era tentar deixar a mente em branco e focar em nada. E o fato de que o simples truque cognitivo funcionava tranquilizava-o quanto à questão do aneurisma: se a parede de uma artéria cerebral estivesse prestes a explodir e formar um buraco em sua cabeça, não era uma estratégia de respiração ao estilo da ioga que em pouco tempo faria diferença.

Mas havia um padrão. Surgia com pensamentos sobre Jane... ou sobre aquele sonho erótico que continuava a ter.

Minha nossa, durante o sono teve orgasmos suficientes para aliviar toda sua libido. E, sendo o filho da mãe doente que era, a quase certeza de voltar a estar com aquela fêmea em suas fantasias o fazia ansiar pelo momento de colocar a cabeça no travesseiro pela primeira vez na vida.

Mesmo não podendo explicar o motivo pelo qual algumas cognições traziam as dores de cabeça, a boa notícia era que ele estava melhorando. Cada dia após aquele fim de semana, que parecia ser um buraco negro bizarro, sentia que voltava um pouco a ser o que era.

Quando restou pouco mais que uma dor incômoda, Manny voltou para a esteira e terminou o treino. No caminho para a saída, acenou para os retardatários do início da manhã que chegavam e escapou antes que alguém viesse com um “Oh, meu Deus, você está bem?”, se visse que tentava controlar a respiração.

No apartamento, tomou um banho, colocou um uniforme limpo e um jaleco branco e, em seguida, agarrou sua maleta e seguiu para o elevador. Para evitar o trânsito pegou as ruas adjacentes que cortavam a cidade. A estrada estava lotada àquela hora do dia e teve bons momentos ouvindo a tradicional banda My Chemical Romance.

“I’m not okay” era uma música que, por algum motivo, não se cansava de ouvir.

Quando virou em direção ao complexo do Hospital São Francisco, a luz do amanhecer ainda não tinha surgido completamente, o que sugeria que o dia seria nublado. Não que isso importasse para ele; quando entrava no local, a menos que houvesse um tornado, o que nunca tinha acontecido em Caldwell, o tempo não o afetava nem um pouco. Inferno, já tinha ido trabalhar várias vezes ainda no escuro, indo embora quando escurecia novamente, mas nunca se sentiu como se estivesse perdendo seu tempo na vida, pois não era muito de “curtir a natureza”.

Engraçado. Agora, porém, sentia-se um tanto deslocado.

Trabalhava naquele hospital desde que terminara sua residência cirúrgica pela Escola de Medicina de Yale e pretendia seguir para Boston, Manhattan ou Chicago. Em vez disso, deixou sua marca ali e, mais de dez anos depois, ainda estava onde tinha começado. Claro, ocupava o topo da pirâmide administrativa, por assim dizer, tinha salvado e melhorado vidas e já tinha ensinado uma geração de cirurgiões.

O problema era que, ao descer a rampa para a garagem, tudo aquilo, de alguma forma, parecia sem sentido.

Tinha quarenta e cinco anos de idade, com pelo menos metade do seu tempo útil dentro de uma caixa. O que tinha para mostrar? Um apartamento cheio de tênis Nike e um trabalho que tinha tomado conta das partes mais remotas de seu ser. Nada de esposa. Nada de filhos. As festas de Natal, Ano Novo e feriados nacionais eram passadas no hospital... Com sua mãe dando um jeito de comemorar essas datas sem ele e, sem dúvida, esperando por netos. Coisa que era melhor ela esperar sentada.

Cristo, com quantas mulheres tinha transado aleatoriamente ao longo dos anos? Centenas. Devia ser.

A voz de sua mãe veio como um tiro em sua cabeça: Você é igual ao seu pai.

Verdade. Seu pai também tinha sido um cirurgião. Com um traço errante.

Na verdade, foi por isso que Manny tinha escolhido Caldwell. Sua mãe havia trabalhado no São Francisco como enfermeira da UTI; batalhou para mantê-lo anos e anos estudando. E o que aconteceu quando se formou em medicina? Ao invés de orgulho, havia distância e reserva no rosto dela... Quanto mais próximo ficava do que havia sido seu pai, mais ela expressava aquela distância no olhar. A ideia dele era de que se estivessem na mesma cidade, estreitariam a relação ou algo assim. No entanto, não foi desse jeito.

Mas ela estava bem. Morava na Flórida naquele momento, em uma casa de repouso em um campo de golfe que ele pagava, jogando partidas de baralho com senhoras da mesma idade, jantando com as amigas de carteado e discutindo sobre quem esnobou quem nas festinhas agitadas do local. Ele estava muito feliz em poder ampará-la e essa era toda a extensão do relacionamento que mantinham.

Seu pai estava em um túmulo no cemitério Bosque dos Pinheiros. Morrera em 1983 em um acidente de carro.

Que coisa perigosa é um carro.

Estacionando o Porsche, desceu do veículo e foi pelas escadas ao invés do elevador para se exercitar. Em seguida, usou a passagem de pedestres para entrar no hospital, no terceiro andar. Quando passou pelos médicos e enfermeiras, apenas acenou e continuou andando. Geralmente, dirigia-se a seu escritório primeiro, mas não importava o que dissesse para seus pés, aquele não foi o lugar para onde acabou indo naquele dia.

Estava indo para os quartos de recuperação.

Disse a si mesmo que era para ver como os pacientes estavam, mas aquilo era besteira. Enquanto sua mente ficava cada vez mais difusa, ele ignorou o nevoeiro conscienciosamente. Inferno, aquilo era pior que a dor... e provavelmente estava hipoglicêmico por ter se exercitado e não se alimentado depois disso.

Paciente... estava procurando sua paciente... Sem nome. Ele não tinha um nome em mente, mas sabia qual era a sala.

Quando chegou à suíte mais próxima da escada de incêndio no fim do corredor, uma onda de excitação percorreu seu corpo. Certificou-se de que o jaleco branco estava colocado sobre os ombros e passou a mão pelos cabelos para ajeitá-los.

Limpando a garganta, preparou-se, entrou e...

O senhor de oitenta anos de idade deitado sobre a cama estava dormindo, mas não estava descansando, tubos entravam e saíam dele como se fosse um carro recebendo uma chupeta para recarregar a bateria.

Uma dor pungente socou a cabeça de Manny enquanto encarava o homem.

– Dr. Manello?

A voz de Goldberg atrás dele foi um alívio, pois deu-lhe algo concreto em que se agarrar... a borda de uma piscina, digamos assim.

Virou-se.

– Ei. Bom dia.

As sobrancelhas do cara se ergueram e, então, franziu a testa.

– Hã... o que está fazendo aqui?

– O que acha? Verificando um paciente. – Deus, talvez todos estivessem enlouquecendo.

– Pensei que ia tirar uma semana de folga.

– Como?

– Isso... hã... foi isso que me disse quando saiu esta manhã. Depois que... encontramos você aqui no quarto.

– Do que está falando? – Então, Manny acenou com a mão num gesto vago. – Ouça, deixe-me tomar café da manhã primeiro...

– É hora do jantar, Dr. Manello. São seis da tarde. Saiu daqui há doze horas.

A excitação que tinha aquecido seu corpo saiu correndo de dentro dele e foi substituída imediatamente por um banho frio de algo que nunca, jamais, havia sentido antes.

Um medo glacial percorreu-o e deu uma reviravolta em seus neurônios.

O silêncio constrangedor que se seguiu foi interrompido por uma agitação no corredor: pessoas passavam com sapatos baixos e confortáveis, apressando-se para atender pacientes ou empurrando carrinhos de roupa suja para a lavanderia ou levando refeições... jantar, naturalmente... de quarto em quarto.

– Eu vou... voltar para casa agora – Manny disse.

Sua voz era ainda mais forte do que nunca, mas a expressão no rosto de seu colega revelava a verdade sobre a situação: não importava o que dizia a si mesmo sobre sentir-se melhor, não era mais o mesmo. Parecia o mesmo; a voz soava como se fosse a mesma pessoa; andava da mesma maneira. Tentou até convencer a si mesmo de que era o mesmo.

Mas alguma coisa tinha mudado naquele fim de semana e temia que não houvesse volta.

– Gostaria que alguém o levasse para casa? – Goldberg perguntou timidamente.

– Não. Estou bem.

Precisou de todo o orgulho que tinha para não começar a correr quando se virou para sair: com muita força de vontade, ergueu a cabeça, endireitou a coluna e colocou um pé em frente ao outro calmamente.

Foi estranho, mas, ao sair, pensou em seu professor de cirurgia... o que tinha sido “aposentado” pela administração da escola quando fez setenta anos. Na época, Manny estava no segundo ano.

Dr. Theodore Benedict Stanford III.

O cara era um filho da mãe em sala de aula, o tipo de desgraçado que gostava mais quando os alunos davam respostas erradas, pois lhe proporcionava a oportunidade de repreender as pessoas. Quando a escola anunciou sua saída, Manny e seus colegas de classe fizeram uma festa de despedida para o pobre coitado, todos eles embebedaram-se celebrando o fato de serem a última geração a ser submetida às babaquices dele.

Manny estava trabalhando como zelador na escola naquele verão para conseguir algum dinheiro e estava esfregando o chão do corredor quando o carregador remanescente saiu levando as caixas finais do escritório de Stanford... e, em seguida, foi o velho quem saiu e desapareceu no final do corredor, passando por ali pela última vez.

Saiu com a cabeça erguida, descendo as escadas de mármore e partindo pela majestosa porta da frente com o queixo empinado.

Manny tinha rido da arrogância do homem, que não baixou a cabeça mesmo em face da idade e do fato de reduzirem seu valor a algo obsoleto.

Agora, caminhando da mesma maneira, perguntou-se se poderia ser verdade.

Era muito provável que Stanford tenha tido a mesma sensação que Manny experimentava naquele momento: a sensação de ser descartado.


CAPÍTULO 17

Jane ouviu uma agitação vindo do centro de treinamento. O barulho a acordou. Ergueu sua cabeça do travesseiro apoiando-se no antebraço e sua coluna estralou, pois estava curvada sobre a mesa.

Rompendo... e batendo...

A princípio, achou que era uma rajada de vento, mas houve um estalo em seu cérebro em seguida. Não havia janelas ali no subsolo. E seria necessária uma tempestade terrível para criar aquela quantidade de barulho.

Erguendo-se rapidamente da cadeira, deu a volta na mesa e saiu correndo pelo corredor em direção ao quarto de Payne. Tinha um motivo para que todas as portas estivessem abertas: havia apenas uma paciente e embora Payne fosse muito tranquila, se alguma coisa acontecesse...

Que diabos era aquele estardalhaço? Havia gemidos também...

Jane deslizou através do batente da porta da sala de recuperação e quase gritou. Ah, Deus... todo aquele sangue.

– Payne! – ela correu para a cama.

A irmã gêmea de V. estava em um descontrole selvagem, balançando os braços para todos os lados, os dedos agarravam os lençóis e a si mesma, as unhas afiadas arranhavam a pele dos braços, dos ombros e das clavículas.

– Não consigo sentir isso! – a fêmea gritou, presas expostas, olhos tão abertos que exibia claramente uma borda branca ao redor deles. – Não consigo sentir nada!

Jane aproximou-se com rapidez e agarrou um dos braços, mas seu aperto deslizou no instante em que o contato foi feito, afastando-a de todos aqueles arranhões escorregadios.

– Payne! – Se ela continuasse, as feridas ficariam tão profundas que os ossos seriam expostos. – Pare...

– Não consigo sentir nada!

A caneta Bic apareceu na mão de Payne do nada... só que, não, não foi mágica... A caneta era de Jane, aquela que guardava no bolso lateral de seu jaleco branco. No instante em que viu o objeto, todos aqueles golpes furiosos transformaram-se em uma sequência de imagens em câmera lenta enquanto a mão de Payne se erguia.

A punhalada era tão forte e decidida que nada poderia detê-la.

A ponta afiada trespassou o coração da fêmea, matando-a, e seu corpo lançou-se para frente, o suspiro da morte exalado por sua boca aberta.

Jane gritou:

– Nããããão...

– Jane... acorde!

O som da voz de Vishous não fazia sentido. Só que, então, ela abriu os olhos... para visualizar a completa escuridão. A clínica, o sangue e a respiração ofegante de Payne foram substituídos por uma mortalha visual negra que...

O brilho da chama de velas surgiu em seu campo de visão. A primeira coisa que viu foi o rosto tenso de Vishous; ele estava ao seu lado, mas não tinham ido para a cama juntos.

– Jane, foi só um sonho...

– Estou bem – ela deixou escapar, afastando o cabelo do rosto. – Estou...

Enquanto apoiava-se em seus braços e ofegava, não distinguia o que era sonho e realidade. Especialmente se levasse em conta que Vishous estava ao lado dela; não era apenas uma questão de não irem para a cama juntos ultimamente. Não estavam acordando juntos também. Achou que ele tinha dormido na oficina, mas talvez não tivesse sido o caso.

Esperava que não tivesse mesmo sido o caso.

– Jane...

No silêncio sombrio, ouviu na palavra toda a tristeza que V. nunca deixou transparecer antes em nenhuma outra situação. E ela se sentia da mesma maneira. Aqueles dias em que não tinham se falado muito, o estresse por causa da recuperação de Payne, a distância... a maldita distância... tudo era triste demais.

Porém, ali, à luz das velas, na cama deles, tudo aquilo enfraqueceu um pouco.

Com um suspiro, virou-se para o corpo quente e pesado de V. e o contato a transformou: sem intenção de assumir sua forma sólida, tornou-se corpórea, o calor fluía entre eles, ampliava-se e a deixava tão real quanto ele. Levantando o olhar, observou aquele rosto belo e feroz com a tatuagem sobre a têmpora, o cabelo negro que sempre penteava para trás, a sobrancelha com falhas e aqueles olhos pálidos e gélidos.

Durante a última semana, ela pensou e repensou sobre a noite em que as coisas tinham ficado tão difíceis. E apesar de boa parte daquilo ser decepção e ansiedade, havia uma coisa que não fazia sentido.

Quando se encontraram no túnel, Vishous estava usando uma blusa de gola alta. E ele nunca usava blusas assim. Odiava tais peças, pois achava que elas o sufocavam... o que era irônico, considerando o que o aliviava algumas vezes. Normalmente, vestia regatas ou andava nu, e ela não era estúpida. Poderia ser um cara durão, mas os hematomas surgiam em sua pele com a mesma facilidade de qualquer outra pessoa.

Disse que tinha lutado, mas era um mestre no combate mano a mano. Então, se estava todo roxo da cabeça aos pés, só havia uma razão para isso: havia permitido.

E ela teve de se perguntar quem tinha feito aquilo com ele.

– Você está bem? – V. perguntou.

Ela estendeu a mão e a colocou sobre o rosto dele.

– E você? Está bem?

Será que eles estavam bem?

Ele não hesitou.

– Com o que sonhou?

– Vamos ter que conversar sobre algumas coisas, V.

Os lábios dele se contraíram. E ficaram ainda mais tensos enquanto ela esperava. Finalmente, ele disse:

– Payne está como está. Faz apenas uma semana e...

– Não é sobre ela. É sobre o que aconteceu naquela noite quando saiu sozinho.

Nesse momento, ele se recostou, mergulhando nos travesseiros e unindo as duas mãos sobre o abdômen definido. Na penumbra, os músculos contraíram-se e suas veias projetaram sombras no pescoço.

– Está me acusando de ter ficado com outra pessoa? Pensei que já tínhamos resolvido isso.

– Pare de mudar de assunto – ela olhou para ele com firmeza. – E se quiser comprar uma briga, procure alguns redutores para isso.

Qualquer outro macho teria reagido com um rápido contra-argumento, com direito a toda uma carga dramática.

Em vez disso, Vishous virou-se para ela e sorriu.

– Quero ouvi-la.

– Prefiro que você fale comigo.

Aquela chama sensual com a qual estava tão familiarizada, mas que não tinha visto na última semana, borbulhou nos olhos dele enquanto movimentou-se em direção a ela. Em seguida, baixou o olhar e observou o sutiã que havia sob a camiseta simples com a qual havia adormecido.

Ela colocou o rosto no caminho do olhar dele, mas estava sorrindo também. As coisas tinham sido tão duras e tensas entre eles. Aquilo parecia normal.

– Não vou me distrair.

Quando um calor emanou do corpo dele em ondas, seu companheiro estendeu a ponta do dedo e deslizou ao longo de seu ombro. Então, abriu a boca, as pontas brancas de suas presas foram expostas e ficaram ainda mais longas quando lambeu os lábios.

De alguma maneira, o lençol que o cobria foi sendo puxado de seu abdômen. Escorregou mais, e mais. Era sua mão enluvada cumprindo seu dever e a cada centímetro exposto, os olhos de Jane tinham mais dificuldade em focar outra coisa. Ele parou um pouco antes da sua grande ereção ser exposta, mas deu a ela uma pequena amostra do que havia ali: as tatuagens em torno de sua virilha esticaram-se e movimentaram-se enquanto os quadris contraíam-se e relaxavam, contraíam-se e relaxavam.

– Vishous...

– O quê?

Sua mão enluvada mergulhou sob o cetim preto e ela não precisou ver para onde se direcionava para saber que envolveria seu pênis: o fato de que arqueava as costas disse-lhe tudo o que precisava saber.

Isso e a maneira como mordeu o lábio inferior.

– Jane...

– O quê?

– Vai ficar só olhando, não é mesmo?

Deus, Jane lembrava-se da primeira vez que o viu assim, estirado em uma cama, rijo, pronto. Estava lhe dando um banho de esponja e conseguiu lê-la como um livro: por mais que ela não quisesse admitir, estava desesperada para observar como ele se tocava até gozar.

E ela se certificou de que ele o fizesse.

Sentindo-se aquecida, inclinou-se para ele e aproximou tanto sua boca que quase tocou a dele.

– Ainda está desviando do assunto...

Em um piscar de olhos, a mão livre de Vishous agarrou-a pela nuca, prendendo-a. E toda aquela força passou pelo corpo dele, sendo direcionada entre as coxas dela.

– Sim. Estou. – Estendeu a língua e passou sobre os lábios dela. – Mas sempre podemos conversar depois. Sabe que nunca minto.

– Achei que sua linha de discurso estava baseada mais em... nunca estar errado.

– Bem, isso também é verdade. – Um rosnado escapou de dentro dele. – E, nesse momento... você e eu precisamos disso.

Aquela última parte foi dita com nada da paixão e toda a seriedade que ela precisava ouvir. E, quer saber, ele tinha razão. Os dois estavam andando em círculos nos últimos sete dias, pisando em ovos, evitando a mina terrestre que havia no centro do relacionamento. Conectar-se daquela maneira, pele com pele, iria ajudá-los a superar as palavras que tinham de ser ditas.

– Então, o que me diz? – ele murmurou.

– O que está esperando?

A risada que soltou foi baixa e satisfeita e seu braço contraía-se e relaxava quando começou a se acariciar.

– Puxe o lençol, Jane.

O comando saiu rouco, mas claro, e ela entendeu bem. Como sempre.

– Faça isso, Jane. Observe.

Colocou a mão sobre os músculos do peitoral dele e desceu-a sentindo seu abdômen definido, ouvindo o arfar de sua respiração entre os dentes. Ao puxar o lençol, engoliu em seco quando viu o pênis ultrapassando a altura do punho, oferecendo-se com uma lágrima singela e cristalina.

Quando ela estendeu a mão para tocá-lo, ele agarrou seu pulso, segurando-a.

– Olhe para mim, Jane... – ele gemeu. – Mas não me toque.

Filho da mãe. Odiava quando fazia aquilo. Adorava também.

Vishous não a soltou enquanto trabalhava em sua ereção com a mão enluvada, seu corpo ficou tão lindo quando encontrou um ritmo para movimentar a palma. A luz das velas envolveu a cena em um tom de mistério, mas... era sempre assim com V. Nunca sabia o que esperar com ele e não só por ser o filho de uma divindade. Estava pronto para o sexo o tempo todo; era durão, astuto, depravado e exigente.

E sabia que conhecia apenas uma versão diluída dele.

Havia cavernas profundas em seu labirinto subterrâneo, as quais ela nunca tinha visitado e nem poderia fazer isso um dia.

– Jane... – disse ele asperamente. – Seja lá o que estiver pensando, deixe para lá... Fique comigo aqui e agora e não continue pensando assim.

Fechou os olhos. Sabia com quem tinha se casado e quem amava. Quando se comprometeu com ele para a eternidade, tinha plena consciência de todos os homens e mulheres com quem esteve e da maneira como os possuiu. Só nunca imaginou que aquele passado ficaria entre eles...

– Não estava com ninguém – sua voz era forte e decidida. – Naquela noite. Juro.

Os olhos de Jane se abriram. Ele parou de tocar a si mesmo e permaneceu deitado.

De repente, a visão dela ficou turva pelas lágrimas.

– Sinto muito – ela resmungou. – Só precisava ouvir isso. Confio em você, de verdade, mas eu...

– Shh... está tudo bem. Estendeu a mão enluvada e limpou a lágrima de seu rosto. – Está tudo bem. Por que não pergunta o que está acontecendo comigo?

– É errado.

– Não, eu é que estou errado. – Respirou fundo. – Passei a última semana tentando forçar as coisas a saírem da minha boca. Odeio essa droga, mas não sabia o que dizer para que as coisas não se tornassem piores.

De alguma maneira, ela estava surpresa com a compaixão e compreensão. Os dois eram tão independentes, e era por isso que o relacionamento funcionava: ele era reservado e ela não precisava de muito apoio emocional e, normalmente, aquela matemática somava muito bem. Porém, não naquela semana.

– Também sinto muito – ele murmurou. – E gostaria de ser um macho diferente.

De alguma forma, ela sabia que estava falando sobre muito mais do que sua natureza reservada.

– Não há nada que não possa falar comigo, V. – Quando tudo o que obteve como resposta foi um “hmmm”, ela disse: – Está muito estressado agora. Sei disso, e faria qualquer coisa para ajudá-lo.

– Eu amo você.

– Então, precisa conversar comigo. A única coisa que, com certeza, não vai funcionar é o silêncio.

– Eu sei. Mas é como observar um quarto escuro. Quero lhe dizer alguma coisa, mas não consigo... Não consigo entender nada do que sinto.

Ela acreditava nisso... e reconhecia que aquilo era algo com que as vítimas de abuso infantil tendem a lutar na idade adulta. O mecanismo de sobrevivência inicial que os ajudava a passar por tudo era a compartimentalização: quando tinham de lidar com coisas demais, dividiam o seu interior e armazenavam as emoções em um local muito, muito distante.

O perigo, claro, era a pressão invariavelmente construída sobre isso.

No entanto, ao menos o gelo entre eles fora quebrado, e encontravam-se naquele espaço calmo e semipacífico.

Como se tivessem vontade própria, os olhos de Jane repousaram sobre a ereção de V., que estava deitada sobre sua barriga e ia além de seu umbigo. De repente, o desejou tanto que mal conseguia falar.

– Possua-me, Jane – ele sussurrou. – Faça o que quiser comigo.

O que ela desejava fazer era chupá-lo e foi o que fez, curvando os quadris, tomando-o com sua boca, e sugando-o até o fundo de sua garganta. O som que reproduziu foi animalesco e seus quadris se ergueram, empurrando aquela extensão excitada do corpo dele contra seu rosto. Então, um dos joelhos dobrou-se de repente e já não estava apenas deitado, mas esparramado, quando se entregou a ela completamente, acariciando a parte de trás da cabeça de Jane enquanto encontrava um ritmo que o levasse...

O movimento do corpo dela era rápido e suave.

Com sua força tremenda, V. reposicionou-a em um piscar de olhos, girando-a e tirando os lençóis do caminho para que pudesse erguer seus quadris e colocá-la sobre o tronco dele. As coxas dela abriram-se diante de seu rosto e...

– Vishous – ela disse com os lábios sobre sua ereção.

A boca dele estava escorregadia, quente e direcionada bem ao alvo. Fundindo-se com o sexo dela, agarrou-a e sugou antes que a língua serpenteasse para fora e lambesse dentro dela. O cérebro dela não desligou, explodiu, e, sem nada para pensar, perdeu-se alegremente no que estava acontecendo agora e não no que tinha acontecido antes. Tinha a sensação de que V. sentia o mesmo... Ele acariciava, lambia e chupava, com as mãos entre suas coxas, enquanto gemia seu nome contra seu núcleo. Era difícil se concentrar no que ele fazia, pois estava fazendo o mesmo com ele. Sua ereção estava dura e quente em sua boca e havia puro prazer entre as pernas – aquelas sensações eram prova de que mesmo sendo um fantasma, suas reações físicas eram iguais às de quando estava “viva”.

– Dane-se, preciso de você – ele amaldiçoou.

Em outra rápida explosão de energia, Vishous ergueu-a como se não pesasse mais do que um lençol e a mudança de posição não foi uma surpresa. Ele sempre preferiu gozar dentro dela, bem em seu interior, e abriu-lhe bem as pernas antes de colocá-la sobre seus quadris e meter a cabeça arredondada... e penetrou profundamente.

A invasão não foi apenas sexo, ele a reivindicava e ela adorava isso. Era assim que tinha de ser.

Jogando-se para frente e apoiando-se sobre os ombros dele, olhou em seus olhos enquanto moviam-se juntos, o ritmo aumentava até que gozaram juntos – os dois ficaram rígidos quando ele ainda arremetia contra a fenda de Jane, e o sexo dela o banhou com o orgasmo. Então, V. virou-a para que ficasse com as costas sobre a cama e se abaixou, voltando para onde havia começado com a boca, fundindo-a sobre ela, segurando as coxas enquanto a chupava.

Quando ela gozou com força, não houve interrupção ou pausa. Ele continuou, estendendo as duas pernas de Jane, separando-as e penetrando-a com um golpe firme de língua. O corpo dele era uma máquina de movimentos intensos sobre o dela, o forte aroma de vinculação espalhou-se pelo quarto durante o orgasmo dele, a semana de abstinência transformou-se em pó durante aquela gloriosa transa.

Quando o orgasmo subiu-lhe como a lava de um vulcão, ela o observou enquanto gozava, amando todas as partes de seu corpo, mesmo aquelas que às vezes ela se esforçava para entender.

Então, ele continuou. Mais sexo. E ainda mais.

Quase uma hora depois, estavam finalmente saciados, deitados sem se moverem e respirando fundo à luz das velas.

Vishous rolou os dois pela cama, mantendo-os unidos e seus olhos percorreram o rosto dela por um longo momento.

– Não tenho palavras. Dezesseis línguas, mas nenhuma palavra.

Havia amor e desespero na voz dele. Ficava mesmo um tanto deficiente quando se tratava de emoções e o fato de se apaixonar não tinha mudado isso... ao menos, não quando as coisas mostravam-se tão estressantes como agora. Mas tudo bem... depois desse tempo que passaram juntos, estava tudo bem.

– Está tudo bem. – Ela beijou seu peito. – Eu compreendo você.

– Queria tanto que você não precisasse disso.

– Você me entende.

– Sim, mas você é fácil.

Jane se apoiou.

– Sou a aberração de um fantasma. No caso de ainda não ter notado. Não é algo com que os homens costumam se empolgar muito.

V. puxou-a para lhe dar um beijo rápido e firme.

– Mas eu a terei pelo resto da minha vida.

– Terá mesmo. – Afinal, seres humanos não duram um décimo do que vivem os vampiros.

Quando o alarme disparou ao lado deles, V. encarou a coisa.

– Agora sei por que durmo com uma arma debaixo do meu travesseiro.

Quando ele estendeu a mão para silenciar o relógio, ela teve de concordar.

– Sabe? Poderia simplesmente atirar nele.

– Não, Butch viria até aqui encher o saco, e não quero estar com uma arma em mãos se ele vir você nua.

Jane sorriu e deitou-se quando ele saiu da cama e andou até o banheiro. Na porta, parou e olhou sobre o ombro.

– Eu vim ficar com você, Jane. Vim e fiquei com você todas as noites dessa semana. Não queria que ficasse sozinha, e não queria dormir sem você.

Com isso, entrou no banheiro e, momentos depois, ela ouviu o chuveiro ser aberto.

Ele era melhor com as palavras do que imaginava.

Espreguiçando-se satisfeita, sabia que tinha de levantar e se arrumar também... estava na hora de liberar Ehlena de seu turno na clínica. Cara, gostaria de ficar ali a noite toda. Talvez apenas um pouco mais...

Vishous saiu dez minutos depois para encontrar-se com Wrath e a Irmandade, e beijou-a quando estava saindo. Duas vezes.

Saindo da cama, ela usou o banheiro e, depois, foi até o armário e abriu as portas duplas. Pendurado no guarda roupas havia peças de couro... dele; blusas brancas simples... dela; jalecos brancos... dela; e jaquetas de motoqueiro... dele. As armas estavam trancadas num cofre à prova de fogo e os sapatos, no chão.

De muitas maneiras, sua vida era incompreensível. Uma fantasma casada com um vampiro? Até parece.

Mas olhando para aquele armário tão agradável e organizado, com suas vidas loucas repousando ali dentre as roupas e sapatos tão bem posicionados, sentiu-se bem sobre onde estavam. Ser “normal” não era tão ruim naquele mundo maluco; não era mesmo. Não importava como tal conceito passara a ser definido.


CAPÍTULO 18

No centro de fisioterapia da clínica, Payne estava fazendo seus exercícios – era assim que gostava de pensar que eram.

Deitada na cama do hospital com travesseiros apoiando a lateral de seu corpo, ela cruzou os braços sobre o peito e contraiu o estômago, puxando o tronco para cima em uma subida lenta. Quando colocou-se perpendicular ao colchão, esticou os braços e os manteve assim enquanto se deitava.

Depois de apenas uma sequência, seu coração estava batendo forte e sua respiração estava curta, mas permitiu-se apenas um breve momento para se recuperar e repetiu. E repetiu. E repetiu.

O esforço ficava cada vez mais exaustivo, até que o suor brotou em sua testa e os músculos de seu estômago começaram a doer. Jane havia lhe mostrado como fazer aquilo e acreditava ser algo bom... contudo, comparado com o que era capaz de fazer, isso era uma faísca em relação a uma fogueira.

De fato, Jane tentou que fizesse muito mais... trouxera até uma cadeira de rodas para ela se sentar e se locomover, mas Payne não conseguia suportar a visão da coisa ou a ideia de passar a vida “rolando” de um lugar a outro.

Na última semana, fechara sumariamente todas as avenidas da acomodação na esperança de um único milagre... que nunca se concretizou.

Parecia que séculos haviam se passado desde que havia lutado com Wrath... desde que havia conhecido a coordenação e força de seus membros. Havia tomado tanta coisa por certa e agora sentia falta de quem tinha sido, com uma tristeza que achava só ser possível expressar pelos que falecem.

Então, achou que tinha morrido. Seu corpo apenas não foi inteligente o suficiente para parar de funcionar.

Com uma maldição no Antigo Idioma, caiu para trás e permaneceu ali deitada. Quando foi capaz, encontrou a tira de couro que havia amarrado embaixo das coxas. A coisa estava muito apertada, sabia que prendia sua circulação, mas não sentia nem o aperto do laço, nem o doce alívio quando soltou o fecho e o couro pulou solto.

Tinha sido assim desde a noite que havia retornado àquele local.

Nenhuma mudança.

Fechando os olhos, entrou outra vez em uma guerra interna, depois que seus medos lançaram as espadas contra sua mente e os resultados foram ainda mais trágicos. Após sete ciclos de dias e noites, seu exército de racionalidade estava sofrendo pela falta de munição e por uma fadiga profunda. Assim, a maré estava virando. Primeiro, tinha sido impulsionada pelo otimismo, mas ele havia desaparecido; depois, houve um período de resoluta paciência, que não durou muito. Desde então, permanecia naquela estrada árida de esperanças infundadas.

Sozinha.

Na verdade, a solidão era a pior parte da provação: estava completamente separada de todas as pessoas que eram livres para ir e vir, dentro e fora do quarto, mesmo quando elas se sentavam e conversavam com ela ou atendiam as suas necessidades básicas. Confinada àquela cama, estava em outro plano da realidade deles, separados por um deserto vasto e invisível que conseguia visualizar claramente, mas era incapaz de atravessá-lo.

E era estranho. Tudo o que tinha perdido aguçava-se ainda mais quando pensava em seu curandeiro humano... algo tão frequente que não conseguia mais enumerar a quantidade de vezes que havia acontecido.

Oh, como sentia falta daquele homem. Muitas foram as horas que havia passado lembrando-se da sua voz, de seu rosto e daquele último momento entre eles... até as memórias transformarem-se em um cobertor com o qual se aquecia durante os longos e frios momentos de temores e preocupações.

Infelizmente, porém, muito parecido com o que aconteceu com seu lado racional, aquele cobertor foi se desgastando por excesso de uso e não havia como repará-lo.

Seu curandeiro não pertencia ao seu mundo e jamais retornaria... não foi nada além de um sonho breve e vívido, que se desintegrara em filamentos e fragmentos agora que havia acordado.

– Chega – disse a si mesma em voz alta.

Tentando manter-se com a força da parte superior do corpo, virou-se para o lado em direção aos dois travesseiros, lutando contra o peso morto que era a parte inferior do corpo enquanto se esforçava para...

O equilíbrio falhou por um momento e a fez cambalear mesmo estando de bruços, seu braço derrubou o copo de água que havia na mesa próxima a ela.

E, infelizmente, aquele não era um objeto adequado para impacto.

Quando se quebrou, Payne fechou a boca, que era a única maneira que conhecia para manter seus gritos dentro dos pulmões. Caso contrário, violariam o selo de seus lábios e não cessariam.

Quando achou que já dispunha de autocontrole suficiente, olhou para a lateral da cama em direção à bagunça no chão. Normalmente, seria uma coisa simples... algo foi derramado, alguém limparia.

Antes, tudo o que teria feito seria curvar-se e dar um jeito naquilo.

Agora? Tinha duas escolhas: ficar deitada ali e pedir ajuda como uma inválida. Ou pensar, elaborar uma estratégia e fazer uma tentativa de ser independente.

Levou um tempo para descobrir os pontos de apoio para suas mãos e, então, avaliar a distância até o chão. Felizmente, havia sido desconectada de todos os plugues que havia em seu braço, mas um cateter ainda permanecia... então, talvez, fazer aquilo sozinha fosse uma má ideia.

Ainda assim, não conseguia suportar a indignidade de ficar ali deitada. Tinha sido uma guerreira; agora, era uma criança incapaz de cuidar de si mesma.

Era insuportável.

Pegando alguns lenços de papel “Kleenex”, como as pessoas os chamavam, baixou a grade da cama, agarrou a parte de cima e curvou-se sobre a lateral do corpo. A torção fez com que suas pernas sacudissem como as de uma marionete, um movimento muito sem graça, mas, ao menos, conseguiu alcançar o chão liso com a coisa branca e macia na palma da mão.

Ao se estender, tentando manter o precário equilíbrio na beirada da cama, sentiu-se cansada de ter assistência para tudo, ser cuidada, lavada e enrolada como um bebê recém-chegado ao mundo.

Seu corpo foi em direção ao vidro.

Sem perceber, escorregou a mão da aderência lisa da grade e com os quadris tão longe do colchão caiu de cabeça no chão, a força da gravidade foi muito forte para que pudesse vencê-la. Lançando as mãos para se apoiar, foi surpreendida pelo chão molhado, suas palmas escorregaram para baixo de seu corpo, que vacilou, e ela sentiu a força do impacto na lateral do rosto, a respiração explodiu em seus pulmões.

Então, não havia movimento.

Estava presa, a cama apoiando seus membros inúteis, colocando o tronco e a cabeça sobre os braços, esmagando-os contra o chão.

Puxando o ar em sua garganta, gritou:

– Socorro... socooorro...

Com o rosto espremido, os braços começando a ficar dormentes e os pulmões queimando por asfixia, a raiva acendeu dentro de si até seu corpo estremecer...

Primeiro veio um chiado. Em seguida, o barulho transformou-se em movimento quando seu rosto começou a escorregar sobre o ladrilho, a pele ficou tão tensa e fina que parecia estar sendo descascada. E, então, a pressão cresceu em sua nuca, a grossa trança puxava sua cabeça para trás ao mesmo tempo em que a estranha posição levava-a para frente.

Reunindo todas as forças, decidiu concentrar a raiva e manobrou os braços para que as mãos voltassem a espalmar sobre o chão. Após inalar o ar com força, empurrou e conseguiu girar o corpo para ficar de costas para cima...

A trança de cabelos caiu entre os suportes da grade da cama e prendeu-se com força ali, a espessa extensão manteve-a no lugar, enquanto repuxava dolorosamente do pescoço ao ombro. Presa e sem poder ir a lugar algum, poderia ver apenas suas pernas de onde estava, suas longas e esbeltas pernas sobre as quais nunca havia dispensado qualquer atenção.

Quando o sangue foi se acumulando gradualmente em seu tronco, observou a pele de suas panturrilhas ficarem brancas como papel.

Com os punhos fechados, enviou o comando para que os dedos dos pés se movessem.

– Maldição... mexa-se... – teria fechado os olhos para se concentrar, mas não queria perder o milagre caso acontecesse.

Não aconteceu.

Não tinha acontecido antes.

E estava começando a perceber que... não aconteceria.

Quando as unhas dos pés foram do rosa ao cinza, soube que tinha de entrar em um acordo com sua situação. E aquela parecia uma boa analogia para sua posição física atual.

Quebrada. Inútil. Um peso morto.

O colapso que finalmente se seguiu não trouxe consigo lágrimas ou soluços. Em vez disso, o estalo foi demarcado por uma sombria decisão.

– Payne!

Ao som da voz de Jane, fechou os olhos. Não era o salvador que desejava. Seu irmão... precisava do seu irmão gêmeo para fazer o que tinha de ser feito.

– Por favor, chame Vishous – disse com voz rouca. – Por favor.

A voz de Jane chegou bem perto.

– Vamos erguê-la do chão.

– Vishous.

Houve um clique e soube que o alarme que tinha sido incapaz de alcançar havia sido acionado.

– Por favor – ela gemeu. – Chame o Vishous.

– Vamos...

– Vishous.

Silêncio. Até que a porta foi aberta.

– Ajude-me, Ehlena – ouviu Jane dizer.

Payne tinha consciência de que sua boca estava se movendo, mas ficou surda quando as duas fêmeas ergueram suas costas até a cama e as pernas foram reinstaladas, alinhando-as paralelamente entre si, antes de cobri-las com lençóis brancos.

Enquanto diversos esforços de limpeza aconteciam tanto sobre a cama quanto no chão, Payne concentrou-se do outro lado do quarto, na parede branca, que havia encarado durante uma eternidade desde que tinha sido transferida para aquele espaço.

– Payne?

Quando não respondeu, Jane repetiu:

– Payne. Olhe para mim.

Moveu os olhos e não sentiu nada ao observar o rosto preocupado da shellan de seu irmão gêmeo.

– Preciso do meu irmão.

– Claro, vou buscá-lo. Está em uma reunião agora, mas vou fazer com que venha até aqui antes de sair. – Houve uma longa pausa. – Posso perguntar por que deseja vê-lo?

As palavras firmes e equilibradas diziam-lhe claramente que a boa curandeira não era boba.

– Payne?

Payne fechou os olhos com força e ouviu-se dizer:

– Ele me fez uma promessa quando tudo isso começou, e preciso que ele a cumpra.

Apesar de ser um fantasma, o coração de Jane ainda era capaz de parar dentro do peito, e quando se inclinou sobre a beirada da cama hospitalar, não havia nada se movendo por trás de sua caixa torácica.

– Que promessa foi essa? – questionou sua paciente.

– É um problema que diz respeito apenas a nós dois.

Até parece, Jane pensou, concluindo que estava entendendo direito.

– Payne, deve haver mais alguma coisa que possamos fazer.

Porém não fazia ideia do que seria. As radiografias mostravam que os ossos foram alinhados da maneira adequada, as habilidades de Manny consertaram tudo perfeitamente; no entanto, a espinha dorsal... essa era a parte imprevisível, um coringa. Tinha esperança de que alguma regeneração dos nervos fosse possível... ainda estava aprendendo sobre as capacidades físicas dos vampiros, muitas delas pareciam pura mágica comparadas com o que os humanos desempenhavam em termos de cura.

Mas estavam sem sorte; aquele não era o caso.

E não precisava ser um gênio para descobrir o que Payne estava buscando.

– Seja honesta comigo, shellan do meu irmão gêmeo. – Os olhos de cristal de Payne fixaram-se nos de Jane. – Seja honesta consigo mesma.

Se havia uma coisa que Jane odiava por ser médica era que lhe pedissem uma opinião subjetiva. Havia muitos incidentes mesmo quando a situação estava clara: um cara aparece na emergência com a mão arrancada dentro de uma bolsa de gelo e um torniquete ao redor do braço? Era preciso religar o membro e colocar os nervos de volta onde precisavam estar. Uma mulher em trabalho de parto com uma ocorrência anterior por problemas com o cordão umbilical do bebê? Cesariana. Fratura exposta? Abrir o local e consertar o ligamento.

Mas nem tudo era tão “simples”. Geralmente, a névoa cinzenta do “talvez isso”, “talvez aquilo” aproximava-se, e Jane tinha de encarar a situação nublada e obscura...

Oh, a quem ela estava enganando?

O aspecto clínico daquela equação tinha chegado a um resultado correto. Só não queria acreditar na resposta.

– Payne, deixe-me buscar Mary...

– Não queria falar com a fêmea conselheira há duas noites e não desejo falar com ela agora. Está acabado para mim, curandeira. E por mais que me doa chamar meu irmão gêmeo, por favor, vá e traga-o aqui. É uma boa fêmea e não é você que deve enfrentar isso.

Jane olhou para suas mãos. Nunca usou-as para matar. Nunca. Era um ato antiético não apenas com relação a sua vocação e compromisso profissional como também a seus valores pessoais.

E, ainda assim, enquanto pensava sobre seu hellren e o tempo que passaram juntos após acordar com ele, sabia que não poderia permitir que viesse até ali e fizesse o que Payne queria: Vishous havia dado um pequeno passo na direção oposta do precipício no qual estava prestes a se jogar e não havia nada que Jane não faria para impedi-lo de voltar àquele limite.

– Não posso buscá-lo – ela disse. – Desculpe. Mas simplesmente não vou colocá-lo nessa situação.

O gemido que surgiu da garganta de Payne era o desespero em seu coração que criava asas e começava a ser libertado.

– Curandeira, essa é a minha escolha. Minha vida. Não sua. Deseja ser uma verdadeira salvadora, então, faça parecer um acidente ou consiga-me uma arma e eu mesma faço isso. Mas não me deixe neste estado. Não consigo suportar e não vai fazer bem algum a sua paciente se eu continuar assim.

De alguma maneira, Jane sabia que isso aconteceria. Tinha visto claramente nas sombras pálidas sobre as imagens escuras da radiografia, aquelas que lhe deveriam dizer que tudo estava dando certo... e que, se não estivesse, a coluna vertebral tinha sido lesionada de forma irreparável.

Observou aquelas pernas tão imóveis sob o lençol e pensou sobre o juramento de Hipócrates que havia feito anos atrás: “Nunca causar dano ou mal a alguém” era o primeiro mandamento.

Era difícil achar que Payne não estava sendo prejudicada sendo mantida daquela maneira... especialmente porque não quis seguir o procedimento em um primeiro momento. Jane tinha sido a única a insistir por uma alternativa de salvação, transferindo seus motivos para a fêmea... e com V. foi a mesma coisa.

– Encontrarei um jeito – Payne disse. – De alguma forma, encontrarei um jeito.

Difícil não acreditar.

E havia uma grande chance de sucesso se Jane a ajudasse... Payne estava fraca e qualquer arma em sua mão seria um desastre esperando para acontecer.

– Não sei se consigo fazer isso – as palavras deixaram a boca de Jane lentamente. – Você é irmã dele. Não sei se ele me perdoaria.

– Ele não precisa saber.

Deus, que situação difícil. Se fosse ela presa naquela cama, sentiria a mesma coisa que Payne e gostaria que alguém executasse sua última vontade. Mas e o fardo de manter algo daquela magnitude oculto de V.? Como poderia fazer isso?

Só que... a única coisa pior do que isso seria se ele não voltasse daquele lado obscuro que havia dentro dele. E matar sua irmã? Bem, era como um trem expresso com destino ao que ele costumava fazer, não?

A mão de sua paciente encontrou a dela.

– Ajude-me, Jane. Ajude-me...

Quando Vishous deixou a reunião noturna com a Irmandade e dirigiu-se para a clínica no centro de treinamento, sentia-se mais como ele mesmo... e não no mau sentido. O sexo com sua shellan era uma missão importante para os dois, uma maneira de reiniciar tudo e não se limitava à questão física.

Deus, era muito bom ter voltado a se acertar com sua fêmea. Sim, claro, ainda havia problemas esperando por ele... e, bem, droga... quanto mais próximo chegava da clínica, mais o manto de estresse retornava, atingindo seus ombros como um par de carros: havia visitado sua irmã no começo de cada noite e, depois, novamente, ao amanhecer. Nos primeiros dias, houve muita esperança, mas agora... a maior parte daquele sentimento havia passado.

Entretanto, não importava. Ela precisava sair daquele quarto e era isso o que ele faria naquela noite. Estava fora da escala de trabalho e daria um passeio com ela pela mansão para mostrar que havia algo diferente além da gaiola branca de uma sala de recuperação para se viver.

Ela não estava melhorando fisicamente; então, a parte psicológica seria o que a levaria adiante. Tinha de levar.

Moral da história? Não estava preparado para perdê-la agora. Sim, esteve perto dela por uma semana, mas não significava que a conhecia melhor do que quando tudo começou... e achava que precisavam um do outro. Ninguém mais constituía a descendência direta daquela maldita divindade que era a mãe deles e, talvez, juntos pudessem resolver todas as porcarias que acompanhavam o nascimento dos dois. Pelo amor de Deus, não era como se houvesse uma sequência de estágios que ensinasse a ser filho da Virgem Escriba:

Oi, meu nome é Vishous. Sou filho da Virgem Escriba há trezentos anos.

OI, VISHOUS.

Ela me ferrou outra vez e estou tentando não ir até o Outro Lado para gritar e cometer um assassinato sangrento contra ela.

NÓS ENTENDEMOS, VISHOUS.

E por falar em sangue, gostaria de desenterrar meu pai e matá-lo outra vez, mas não posso. Então, vou apenas tentar manter minha irmã viva, mesmo estando paralisada, e tentar lutar contra o impulso de buscar um pouco de dor para conseguir lidar melhor com a dor dela.

VOCÊ É UM COVARDE, VISHOUS, MAS APOIAMOS ESSE SEU JEITO PATÉTICO.

Saindo do túnel e entrando no escritório, cruzou a porta de vidro e, então, caminhou a passos largos pelo corredor. Quando passou pela sala de exercícios, ouviu que alguém estava correndo como se os tênis estivessem pegando fogo, mas, fora isso, não havia ninguém por ali... e tinha a impressão de que Jane ainda deveria estar na cama, descansando, após ter cuidado muito bem dela.

Algo que deu ao macho vinculado nele uma boa dose de satisfação. De verdade.

Quando chegou à sala de recuperação, não bateu, mas...

Quando entrou, a primeira coisa que viu foi a agulha hipodérmica. A segunda visão foi de que o objeto estava sendo trocado de mãos, passando das de sua shellan e para as de sua irmã gêmea.

Não havia um motivo terapêutico para isso.

– O que está fazendo? – ele suspirou, subitamente aterrorizado.

A cabeça de Jane girou, mas Payne não olhou para ele. Seu olhar estava fixo na agulha, como se fosse a chave para o cadeado de sua cela.

E com certeza aquilo lhe ajudaria a sair daquela cama... direto para um caixão.

– Que diabos está fazendo? – Não era uma pergunta. Ele já sabia.

– É minha escolha – Payne disse severamente.

Sua shellan o encarou.

– Sinto muito, V.

Uma névoa branca nublou sua visão, mas não fez nada para reduzir a velocidade do seu corpo ao se lançar para frente. Quando alcançou a beirada do leito, seus olhos clarearam e viu que sua mão enluvada agarrava com força o punho de sua shellan.

Seu toque da morte era a única coisa que mantinha sua irmã distante da morte. E dirigiu-se a ela, não a sua companheira.

– Não ouse fazer isso!

Os olhos de Payne estavam furiosos ao encontrar os dele.

– Você que não ouse!

V. recuou por um momento. Havia olhado no rosto de muitos inimigos, descartado muitos submissos sexuais e esquecido muitos amantes, tanto machos quanto fêmeas, mas nunca tinha visto um ódio tão profundo antes.

Nunca.

– Não é meu deus! – ela gritou para ele. – Não é nada além de meu irmão! E não vai mais me acorrentar neste corpo como nossa mahmen faria!

A fúria dos dois era tanta que, pela primeira vez na vida, havia perdido. Afinal, não fazia sentido entrar em conflito se seu oponente tinha força equivalente à sua.

O problema era que, se saísse de campo agora, voltaria para um funeral.

V. queria andar ao redor da sala para diminuir sua irritação, mas estaria perdido se se afastasse por um décimo de segundo sequer.

– Quero duas horas – ele disse. – Não posso detê-la, mas posso pedir que me dê cento e vinte minutos.

Os olhos de Payne se estreitaram.

– Para quê?

Ia fazer algo que seria inconcebível quando toda aquela coisa começou. Mas aquilo era um tipo de guerra e, consequentemente, não tinha como se dar ao luxo de escolher as armas... tinha de usar o que estava disponível em suas mãos, mesmo que odiasse a ideia.

– Vou lhe dizer exatamente o motivo. – V. tirou a agulha das mãos de Jane. – Vai fazer isso para que a culpa não me assombre pelo resto da minha maldita vida. O que acha desse motivo? Bom o suficiente?

As pálpebras de Payne cederam e houve um longo silêncio, interrompido quando ela disse:

– Vou lhe dar o que me pede, mas não vou mudar de ideia com relação a permanecer nesta cama. Certifique-se de suas expectativas antes de continuar... e fique ciente de que não vai adiantar argumentar com nossa mahmen. Não vou trocar essa prisão por outra ao lado dela, no mundo dela.

Vishous enfiou a agulha no bolso e desembainhou a faca de caça que ficava permanentemente presa ao cinto de sua calça de couro.

– Dê-me sua mão.

Quando ela a ofereceu, ele cortou a palma da mão com a lâmina e fez o mesmo com a própria carne. Então, V. uniu as feridas.

– Jure. Pelo sangue que compartilhamos, fará um juramento a mim.

A boca de Payne se contraiu como se, mais uma vez, ela tivesse sorrido se fosse uma circunstância diferente.

– Não confia em mim?

– Não – disse ele com voz rouca. – Nem um pouco, querida.

Um pouco depois, a mão dela agarrou a dele e um brilho de lágrimas formou-se sobre seus olhos.

– Eu juro.

Os pulmões de Vishous relaxaram e ele respirou fundo.

– Muito bem.

Soltou a mão, virou-se e caminhou até a porta. Assim que chegou ao corredor, não perdeu tempo ao se dirigir para o túnel.

– Vishous.

Ao som da voz de Jane, volveu-se e quis soltar um palavrão. Balançando a cabeça, disse:

– Não me siga, não ligue para mim. Nada de bom vai sair de mim se ouvir sua voz neste momento.

Jane cruzou os braços sobre o peito.

– Ela é minha paciente, V.

– Ela é meu sangue, Jane. – Frustrado, golpeou o ar com a mão. – Não tenho tempo para isso. Estou saindo.

Com isso, começou a correr. Deixando-a para trás.


CAPÍTULO 19

Quando Manny chegou em casa, fechou a porta, trancou... e ficou ali. Como uma peça da mobília. Com sua maleta na mão.

É incrível como, quando você enlouquece, sente que não consegue lidar com as opções do que fazer. Sua vontade não havia mudado; ainda queria assumir o controle de si mesmo... não importava o que estivesse acontecendo em sua vida. Mas não havia nada em que se agarrar, nada de rédeas naquela fera.

Droga, deveria ser assim que os pacientes de Alzheimer sentiam-se: a personalidade e o intelecto estavam intactos... mas estavam cercados por um mundo que não fazia mais sentido, pois não podiam se firmar nas memórias, associações e inferências.

Estava tudo ligado àquele final de semana... ou, ao menos, havia começado ali. Mas o que tinha mudado exatamente? Perdeu, no mínimo, a memória de uma daquelas noites, era só isso que podia dizer. Lembrou-se da pista de corrida, da queda de Glory e do veterinário. Em seguida, a viagem de volta a Caldwell, quando ele foi ao...

O prévio aviso de uma dor de cabeça surgindo fez com que xingasse e desistisse.

Andando até a cozinha, soltou a maleta e começou a encarar a cafeteira. Deixou-a ligada ao sair para o hospital. Ótimo. Seu café matinal ficou fervendo a noite inteira e era um milagre não ter queimado a droga do apartamento inteiro.

Sentando-se em uma das banquetas ao redor do balcão de granito, encarou a parede de vidro a sua frente. A cidade do outro lado da varanda brilhava como uma dama indo ao teatro com todos os seus diamantes; as luzes nos arranha-céus cintilavam e faziam com que ele se sentisse real e verdadeiramente sozinho.

Silêncio. Vazio.

O apartamento parecia-se mais com um caixão.

Deus, se não pudesse mais operar, o que faria...

A sombra surgiu do nada em seu terraço. Só que não era uma sombra... não havia nada translúcido na coisa. Era como se as luzes, as pontes e os arranha-céus fossem uma pintura em que alguém havia cortado um buraco no meio.

Um buraco que assumia a forma de um homem grande.

Manny levantou-se da banqueta, olhos fixos na figura. No fundo de sua mente, na sede de seu tronco cerebral, sabia que aquela era a causa de tudo, seu “tumor” estava ali, em pé, e caminhava... vindo até ele.

Como se tivesse sido convidado, aproximou-se e abriu a porta corrediça de vidro; o vento atingiu seu rosto com força, seu cabelo foi jogado para trás.

Estava frio. Oh, muito frio... mas o choque álgido não se devia apenas à noite gelada de abril. A baixa temperatura emanava da figura que permanecia em pé, imóvel e letal, a alguns metros de distância dele. Tinha a nítida impressão de que a explosão ártica era porque o filho da mãe vestido com roupas de couro o odiava demais; mas Manny não tinha medo. A resposta para o que estava acontecendo com ele estava ligada àquele homem enorme que havia aparecido do nada, a uns vinte andares acima do chão...

Uma fêmea... uma com cabelos escuros trançados... esse era o...

A dor de cabeça o impactou com força, atingindo-o na nuca e penetrando em direção ao crânio para golpear com força seu maldito lóbulo frontal.

Quando seu corpo cedeu, precisou apoiar-se na borda do balcão da cozinha e perdeu a paciência.

– Caramba, pelo amor de Deus, não fique aí parado. Fale comigo ou me mate, mas faça alguma coisa.

Mais vento no rosto.

E, então, uma voz profunda:

– Não deveria ter vindo aqui.

– Sim, deveria – Manny gemeu de dor. – Por que estou enlouquecendo e você sabe disse, não é? Que diabos fez comigo?

Aquele sonho... com a mulher que desejava, mas não conseguia ter...

Os joelhos de Manny começaram a falhar, mas para o inferno com isso.

– Leve-me até ela... e não brinque comigo. Sei que ela existe... Consigo vê-la todas as noites em meus sonhos.

– Não gosto nada disso.

– Sim, e eu estou curtindo uma festa aqui. – O filho da mãe ficou em silêncio. Quando percebeu que havia a possibilidade do bastardo misterioso agredi-lo, posicionou-se; Manny ia investir contra o cara e faria algum estrago nele. Ele certamente seria estraçalhado, mas não deixaria que ele o derrubasse sem lutar.

– Vamos lá – Manny disparou. – Faça isso.

Houve uma risada contida.

– Você me faz lembrar um amigo meu.

– Quer dizer que há outro idiota perdido na vida por sua causa? Ótimo. Podemos iniciar um grupo de apoio.

– Maldição...

O cara ergueu uma das mãos e então... as memórias explodiram na mente de Manny e fluíram através de seu corpo, as imagens e sons de seu fim de semana perdido voltaram com uma vingança.

Tropeçando para trás, colocou as mãos na cabeça.

Jane. Um local secreto. Cirurgia.

Vampira.

Um punho de ferro em seus bíceps foi tudo o que o impediu de cair no chão, o irmão de sua paciente o segurava.

– Precisa vir e cuidar da minha irmã. Ela vai morrer se não fizer isso.

Manny respirou pela boca e engoliu em seco. A paciente... sua paciente...

– Ela ainda está paralisada? – ele gemeu.

– Sim.

– Leve-me – exclamou. – Agora.

Se fosse o caso da medula espinhal ter sofrido um dano permanente, não havia nada clinicamente possível a fazer por ela, mas isso não importava. Tinha de vê-la.

– Onde está seu carro? – o filho da mãe de cavanhaque perguntou.

– Lá embaixo.

Manny desvencilhou-se e correu em direção à maleta. Havia deixado as chaves sobre o balcão da cozinha. Quando tropeçou e caiu, seu cérebro ficou confuso de uma maneira que o aterrorizou. Se houvesse mais um pouco desse “liga e desliga” de sua placa-mãe mental ia acabar sofrendo prejuízos permanentes. Mas essa era uma discussão para outro momento.

Tinha de ir até sua fêmea.

Quando alcançou a porta da frente, o vampiro estava bem atrás dele e Manny trocou suas coisas para a mão esquerda.

Com um giro rápido, lançou seu punho direito, que se encaixou em um arco perfeitamente calculado para golpear o queixo do cara.

Crack. O impacto foi sólido e a cabeça do desgraçado foi arremessada para trás.

Quando o vampiro voltou a olhar para ele e levantou o canto da boca em um rosnado, Manny não se intimidou.

– Isso é por brincar comigo.

O macho passou as costas da mão pela boca sangrenta.

– Belo gancho.

– Está à disposição – Manny disse ao sair do apartamento.

– Eu poderia tê-lo impedido a qualquer momento. Só para deixar claro.

Verdade, sem dúvida.

– Sim, mas não foi o que fez, certo? – Manny caminhou até o elevador, pressionou o botão para descer e olhou sobre o ombro. – Assim, isso faz de você um idiota ou um masoquista. A escolha é sua.

O vampiro se aproximou.

– Cuidado, humano... só está vivo por ser útil para mim.

– Ela é sua irmã?

– Não se esqueça disso.

Manny sorriu mostrando todos os dentes.

– Então, tem uma coisa que precisa saber.

– O quê?

Manny ergueu-se sobre os dedos dos pés e encarou o filho da mãe olho no olho.

– Se pensa que quer me matar agora, não é nada comparado ao que vai sentir quando eu a vir outra vez.

Estava praticamente rijo só de pensar na fêmea.

Com um sinal sonoro, as portas duplas do elevador se abriram e, então, ele avançou, entrou e virou-se. Os olhos do vampiro eram como lanças procurando um alvo, mas Manny minimizou a agressão.

– Só para que saiba a minha situação. Agora, entre no elevador ou desapareça como um fantasma até a rua. Pego você com o carro lá embaixo.

– Deve achar que sou um idiota, não é mesmo? – o vampiro rosnou.

– Na verdade, nem um pouco.

Pausa.

Depois de um momento, o vampiro resmungou alguma coisa e deslizou para dentro do elevador quando as portas começaram a se fechar. Então, os dois simplesmente ficaram lado a lado, observando a contagem regressiva dos números sobre as portas duplas...

Cinco... quatro... três... dois...

Como a contagem regressiva para uma explosão.

– Cuidado, humano. Não sou alguém a quem você queira pressionar.

– Não tenho nada a perder – A não ser a irmã daquele desgraçado enorme. – Acho que vamos ter que esperar para ver onde isso vai acabar.

– É isso aí.

Payne parecia um bloco de gelo sombrio enquanto encarava o relógio que havia próximo à porta do quarto. A face circular do aparelho era tão plana quanto a parede branca atrás dele, sem marcar nada além de doze números pretos separados por linhas pretas. As hastes do aparelho, uma negra e outra vermelha, percorriam seu caminho como se estivessem entediadas com aquele serviço, assim como ela estava ao observá-los trabalhando.

Vishous deve ter ido ver sua mãe. Onde mais iria?

Portanto, era uma perda de tempo. Com certeza, ele voltaria sem nada. Era pura arrogância pensar que “Aquela que não Podia ser Influenciada” se abalaria minimamente com os apuros pelos quais seus filhos passavam.

Mãe da raça. Que asneira...

Payne franziu a testa. O som começou do nada, com um ritmo fraco, mas, rapidamente, ficou mais alto. Passos. Passos pesados percorrendo o chão duro em ritmo acelerado, e havia dois pares de pés se aproximando.

Talvez não fosse ninguém além dos Irmãos de seu gêmeo vindo lhe fazer uma visita...

Quando a porta se abriu, tudo o que conseguiu ver foi Vishous em pé, muito alto e intransigente.

– Trouxe uma coisa para você.

Ele não chegou a se afastar, foi empurrado...

– Querida Virgem Escriba... – a boca de Payne se abriu, enquanto as lágrimas transbordavam de seus olhos.

Seu curandeiro irrompeu no quarto e, oh, era exatamente como se lembrava... peitoral largo, membros alongados, abdômen liso e um maxilar bem definido. Seu cabelos escuros estavam esticados, como se tivesse passado os dedos entre eles várias vezes, e estava respirando com dificuldade, a boca um pouco entreaberta.

– Eu sabia que você era real – ele desabafou. – Caramba, eu sabia!

A visão dele disparou algo nela, uma energia iluminou-a de dentro para fora, lançando suas emoções em queda livre.

– Curandeiro... – disse ela com voz rouca. – Meu curandeiro...

– Que inferno... – ouviu seu irmão dizer.

O humano de Payne virou-se para Vishous.

– Precisamos de um pouco de privacidade. Agora.

– Cuidado com essa maldita boca...

– Sou o médico dela. Você me trouxe aqui para que eu a avalie clinicamente...

– Não seja ridículo.

Houve uma pausa.

– Então, por que diabos estou aqui?

– Pelo exato motivo que eu lhe odeio, é por isso!

Aquilo provocou um grande silêncio... seguido por um soluço de Payne. Ela estava tão feliz em ver seu curandeiro em carne e osso. E aquele único suspiro fez a cabeça dos dois girarem em sua direção, o rosto do curandeiro mudou instantaneamente, passando da fúria à preocupação.

– Feche a porta quando sair – vociferou por cima do ombro enquanto se aproximava dela.

Passando as mãos sobre os olhos, Payne limpou suas lágrimas e observou seu curandeiro sentar-se ao lado da cama. Vishous tinha se virado e ia em direção à saída.

Ele sabia, ela pensou. Mais do que qualquer coisa que a mãe deles pudesse fazer por ela, trouxe a única coisa que garantiria seu desejo de continuar viva.

– Obrigada, meu irmão – ela disse, o olhar fixo nele.

Vishous parou. A tensão nele era tão grande, os dois punhos estavam fechados, e quando sua cabeça virou-se lentamente, seus olhos glaciais queimavam.

– Faria qualquer coisa por você. Qualquer coisa.

Com isso, continuou a sair... e quando a porta foi fechada com cuidado, percebeu que “Eu amo você” poderia ser dito sem que tal frase fosse pronunciada.

Ações significavam mais do que palavras.


CONTINUA

CAPÍTULO 13

Qhuinn entrou na mansão pela sala principal, o que foi um erro.

Deveria ter entrado na mansão pela garagem, mas a verdade é que aqueles caixões empilhados o assustavam. Sempre achava que as tampas seriam abertas e alguma coisa ao estilo Noite dos Mortos Vivos sairia dali para matá-lo.

Ainda assim, precisava muito superar essa covardia.

Graças ao relacionamento que tinha com os gays da casa, assim que abriu caminho pelo saguão de entrada, teve a visão clara de Blaylock e Saxton descendo a escadaria; os dois pareciam modelos ao se dirigirem à Última Refeição. Usavam calças, mas não eram jeans; blusas, não blusões, e sapatos, não botas de combate. Estavam limpos, bem barbeados, perfumados e penteados, mas não eram nem um pouco afeminados.

Na verdade, isso facilitaria muito as coisas. Pelo amor de Deus, desejava que um dos filhos da mãe se tornasse drag queen, enchesse-se de plumas e fizesse as unhas, mas não: continuavam a parecer dois machos muito atraentes que sabiam como gastar o dinheiro em lojas de grife... enquanto ele, por outro lado, serpenteava em seus couros e camisetas regatas... e, naquela noite em particular, ostentava cabelos desgrenhados por causa do sexo violento e perfume, se é que poderia chamar assim, da mesma linha de produtos de cuidados de uma vagabunda.

Por outro lado, poderia apostar que o que os separava do estado em que ele se encontrava era apenas um banho quente, cheio de sabão e uma visita ao armário: lamberia dinheiro se eles não haviam estado se pegando a noite toda. Pareciam muito satisfeitos e, ao mesmo tempo, famintos ao caminharem para o local onde faziam as refeições.

Quando atingiram o mosaico onde havia a representação de uma macieira em plena floração, os olhos azuis de Blay movimentaram-se e encararam Qhuinn dos pés à cabeça. O rosto do rapaz não demonstrou qualquer reação. Não mais.

A velha chama de dor não estava mais exposta... e isso não se devia ao fato de que o entretenimento que Qhuinn tinha acabado de ter era totalmente óbvio.

Saxton disse alguma coisa e Blay desviou o olhar... e lá estava. Um rubor naquele rosto adorável ao encontrar aqueles olhos cinza.

Não posso fazer isso, Qhuinn pensou. Não esta noite.

Evitando a cena na sala de jantar, encaminhou-se à porta abaixo das escadas e passou pela coisa. No instante em que se fechou, a conversa das pessoas foi interrompida e a escuridão silenciosa correu para cumprimentá-lo. Estava mais disposto a isso.

Desceu as escadas rasas, passou por outra porta codificada, entrou no túnel subterrâneo que ligava a casa principal ao centro de treinamento. Quando ficou sozinho, correu a todo vapor. Faltando pouco para suas pernas pararem de funcionar, teve de se inclinar contra a parede lisa. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos... e desejou colocar uma arma no meio dos olhos.

Ficou com o ruivo no Iron Mask.

Conseguiu deixar o hétero bem excitado.

E aconteceu exatamente do jeito que tinha previsto, começando com os dois conversando no bar e paquerando as garotas. Pouco depois, uma mulher de seios enormes aproximou-se deles com botas de plataforma pretas. Conversaram com ela, beberam com ela... com a amiga dela. Uma hora depois? Os quatro estavam em um banheiro, bem espremidos.

Essa tinha sido a parte dois do plano. As mãos atuavam em espaços reduzidos e quando havia muitas delas se movendo e arranhando, não se podia ter certeza daquilo que tocava. Ou que lhe acariciava. Ou sentia.

Em todo o tempo que esteve com as garotas, Qhuinn ficou pensando em uma estratégia para se livrar das fêmeas e isso levou muuuito mais tempo do que desejava. Depois do sexo, as garotas queriam algo mais... trocar telefones, dar uma volta, perguntaram se não queriam sair para comer alguma coisa.

Sim, claro. Não precisava de dígito algum, pois jamais ligaria para elas, não ia bater perna mesmo com pessoas que gostava, e o tipo de comida que poderia oferecer a elas não tinha nada a ver com um jantar gorduroso.

Após preencher os requisitos da vadia dentro dele, foi forçado a fazer uma lavagem cerebral nelas... o que o levou a um raro momento de compaixão pelos machos humanos que não podiam se dar a esse luxo.

E, então, ele e sua presa estavam sozinhos, o macho humano recostou-se contra a pia para se recuperar. Qhuinn fingiu estar fazendo isso ao encostar-se contra a porta. Eventualmente, seus olhos se encontraram. De maneira casual para o macho humano, de um jeito muito sério da parte de Qhuinn.

– O que foi? – o homem perguntou. Mas já sabia... pois as sobrancelhas franziram com força.

Qhuinn estendeu as mãos para trás e girou a chave, assim, não seriam perturbados.

– Ainda estou com fome.

De repente, o ruivo encarou a porta como se quisesse sair... mas seu pênis contava uma história totalmente diferente. Por trás do zíper daquele jeans... estava excitado.

– Ninguém nunca vai saber – Qhuinn disse de maneira sombria. Inferno, poderia fazer aquilo sem que o ruivo se lembrasse... contudo, se o cara não soubesse de nada sobre a questão vampira, não havia razão para remexer seu crânio e limpar as coisas lá dentro.

– Pensei que tinha dito que não era gay... – o tom foi um tanto melancólico, como se o cara não estivesse totalmente confortável com aquilo que seu corpo queria.

Qhuinn diminuiu a distância entre eles, colocando seu peito contra o do ruivo. Então, agarrou a nuca do cara e puxou-o contra sua boca. O beijo produziu o efeito planejado: tirou todo raciocínio lógico do banheiro e não deixou nada além das sensações para trás.

A coisa toda aconteceu a partir daí. Duas vezes.

Quando acabou, o cara não ofereceu seu número de telefone. Foi um espetáculo, mas era evidente que tinha sido algo experimental, uma primeira e única vez. Algo que não tinha problema algum para Qhuinn. Partiram sem dizer uma palavra, cada um seguindo sua vida, com o ruivo voltando para o bar... e Qhuinn saindo para passear nas ruas de Caldwell sozinho.

Apenas a chegada iminente do amanhecer o fez retornar.

– Que inferno... – disse a si mesmo.

A noite toda foi uma lição que o incomodou como um veneno de urtiga... Sim, havia momentos na vida em que um substituto funcionava: em uma reunião de conselho, por exemplo, quando enviava alguém para representar seu voto. Ou quando precisava de alguma coisa do mercado e dava sua lista a um doggen. Ou quando prometia jogar bilhar, mas ficava bêbado demais para segurar o taco e arrumava alguém para acertar suas bolas.

Infelizmente, a teoria do substituto não funcionava tão bem quando se queria ser o único a tirar a virgindade de alguém e a melhor ideia que tinha era ir a um clube, encontrar alguém com traços físicos semelhantes como... oh, digamos... mesma cor de cabelo... e transar com ele ao invés da pessoa desejada.

Em tal caso de substituição, você acabava se sentido vazio e não por que tinha gozado muito e estivesse flutuando em uma nuvem de pós-transa dizendo ahhh, sim.

Parado naquele túnel, sozinho, Qhuinn estava totalmente vazio. Uma cidade fantasma por dentro.

Pena que sua libido estava cheia de ideias brilhantes. Na silenciosa solidão, começou a imaginar como teria sido se fosse ele ao invés de seu primo a descer com Blay para o jantar. Se fosse ele quem estivesse dividindo não apenas uma cama, mas o quarto com o cara. Se conseguisse se levantar diante de todos e dizer: “Ei, esse é meu companheiro...”.

O bloqueio mental que se seguiu após essa breve canção foi tão completo que temeu ter levado um soco na cabeça.

E esse era o problema, não era?

Ao esfregar seus olhos díspares, pensou no quanto sua família o odiava: foi criado para acreditar que o defeito genético de ter uma íris azul e outra verde significava que era uma maldita aberração e o trataram como uma vergonha para a linhagem.

Bem, na verdade, foi pior que isso: acabaram chutando Qhuinn para fora de casa e enviaram um guarda de honra para ensinar-lhe uma lição. E foi assim que acabou tornando-se um viajante.

Para pensar que nunca saberiam sobre as outras “anomalias” que nutria.

Como desejar estar com seu melhor amigo.

Cristo, ele não precisava de um espelho para ver o covarde e a fraude que era... mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Estava trancado em uma jaula sem que pudesse encontrar a chave, os anos de escárnio de sua família golpeavam-no e davam-lhe cólicas: a verdade por trás de seu lado selvagem é que era um maricas total. Blay, por outro lado, declarou quem era e encontrou outra pessoa.

Maldição, aquilo doía...

Com um palavrão, interrompeu o monólogo pré-menstrual e obrigou-se a continuar andando. Recuperava-se a cada passo, dando um jeito em sua bagunça interna ao consertar e fortificar os canos que vazavam.

A vida era feita de mudanças. Blay tinha mudado. John tinha mudado.

E, aparentemente, ele era o próximo da lista, por que não poderia continuar assim.

Ao entrar no centro de treinamento pelos fundos do escritório, decidiu que se Blay conseguiu virar a página, então, ele também conseguiria. A vida era como as pessoas determinavam que fosse, independentemente de onde o destino as colocava, a lógica e o livre-arbítrio significavam que poderiam definir seu caminho da maneira que achassem melhor.

E não queria estar onde estava: nada de sexo anônimo. Nada de estupidez desesperada. Nada de arder em ciúmes e daquelas lamentações irritantes que não o levavam a lugar algum.

O vestiário estava vazio, já que não havia aulas de treinamento acontecendo, e ele se trocou, ficando nu antes de colocar a bermuda preta esportiva e um par de tênis da mesma cor. A sala de ginástica também funcionava como uma câmara de eco, o que era bom também.

Ligando o sistema de som, passou as músicas com o controle remoto. Quando a música “Clint Eastwood”, dos Gorillaz, tocou, subiu em uma esteira e ligou o aparelho. Odiava fazer exercícios... simplesmente desprezava a natureza roedora daquilo tudo. Era melhor transar e lutar, era o que sempre dizia.

No entanto, quando se estava preso dentro de casa por causa da madrugada e determinado a tentar dar uma chance ao celibato, correr para chegar a lugar algum parecia bem interessante para consumir as energias.

Calibrando a máquina, posicionou-se sobre ela e cantou junto com a música.

Concentrando-se no concreto pintado de branco ao longo do local, deu uma passada após a outra, de novo e de novo, e mais outra vez, até não haver nada em sua mente nem em seu corpo além de passos repetitivos, a batida do coração e o suor que se formava no peito nu, no estômago e nas costas.

Pela primeira vez na vida, não acionou um ritmo alucinante: a velocidade foi calibrada para que o ritmo obedecesse a uma rotatividade constante, o tipo de ritmo que poderia manter durante horas.

Quando se está tentando fugir de si mesmo, gravita-se para situações fortes e desagradáveis, para os extremos, para a imprudência, para que seja forçado a lutar e agarrar com as unhas os terrenos acidentados de sua autoinvenção.

Assim como Blay era quem mostrava ser, Qhuinn fazia o mesmo: apesar de desejar estar lá fora com o... macho... que amava, não poderia fazer isso.

Mas, por Deus, ia parar de fugir da covardia. Tinha de dominar a si mesmo – mesmo se acabasse se odiando com todas as forças. Talvez, se fizesse isso, pararia de tentar distrair-se com sexo e bebida e descobriria o que realmente queria.

Além de Blay, é claro.


CAPÍTULO 14

Sentando-se ao lado de Butch no Escalade, Vishous tinha machucados distribuídos por seus quase dois metros de altura e seus mais de cem quilos.

Enquanto corriam a toda velocidade de volta ao complexo da Irmandade, cada centímetro latejava, a dor formava uma névoa que acalmava o grito dentro dele.

Logo, tinha conseguido alguma coisa de que precisava.

O problema era que o alívio já estava começando a desaparecer e o deixava furioso com o Bom Samaritano atrás do volante. Não que o tira parecesse se importar; ele discava aquele celular dele e desligava, discava de novo e desligava outra vez, como se os dedos em sua mão direita tivessem algum tique nervoso.

Provavelmente estava ligando para Jane e pensando melhor sobre isso. Ainda bem que...

– Sim, gostaria de comunicar um corpo – ouviu o tira dizer. – Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

Enquanto Butch continuava a falar assim com a atendente, V. movimentou o traseiro no banco e sentiu as costelas quebradas em seu lado direito uivarem. Nada mal; se precisasse de outra surra para acalmá-lo, poderia fazer algumas flexões e a agonia voltaria com força total outra vez...

Butch jogou o celular no painel. Praguejou. Praguejou novamente.

Então, decidiu dividir os problemas:

– Até onde ia deixar aquilo chegar, V.? Até que o esfaqueassem? Deixassem você caído para queimar ao sol? O que seria ir longe o suficiente?

V. falou com os lábios inchados:

– Não muito adiante, é verdade.

– Adiante? – Butch balançou a cabeça, seus olhos estavam muito violentos. – Como é que é?

– Não finja... não sabe como é isso. Já o vi em uma bebedeira... Já o vi... – ele tossiu. – Já o vi completamente bêbado com um copo nas duas mãos. Então, não me venha com essa de que é “mais inocente que eu” pra cima de mim.

Butch voltou a se concentrar na estrada.

– Você é um filho da mãe miserável.

– Que seja.

Sim, a conversa pararia por aí.

No momento em que Butch estacionou em frente à mansão, os dois estavam retraindo-se e piscando como se estivessem sendo golpeados por um bastão: o sol ainda estava oculto no lado mais distante do horizonte, mas era o suficiente para espalhar um rubor no céu que estava apenas a alguns centímetros de distância de dizimar um vampiro.

Não cruzaram a entrada principal; sem chance. A Última Refeição estava preste a começar e, considerando o humor daqueles dois, não havia razão para alimentar a fábrica de fofocas.

Sem dizer nada, V. entrou no Buraco e fez o caminho mais curto até seu quarto. Não veria Jane ou sua irmã daquele jeito, não mesmo. Inferno, se considerasse as dores no rosto, não tinha como vê-las sem antes tomar um banho.

No banheiro, ligou a água e desarmou-se no escuro – isso envolveu apenas tirar sua adaga do coldre em volta da cintura e colocá-la sobre o balcão. Suas roupas estavam imundas, cobertas de sangue, cera e outras porcarias, e deixou-as cair no chão, sem saber ao certo o que faria com elas.

Então, colocou-se debaixo da ducha antes de ficar quente. Quando a água quente atingiu seu rosto e peitoral, silvou; o impacto desceu até seu pênis e o enrijeceu – não que ele tivesse qualquer interesse em fazer alguma coisa com a ereção. Apenas fechou os olhos enquanto seu sangue e o do inimigo escorriam de seu corpo e eram escoados para o ralo.

Cara, quando conseguisse terminar de lavar tudo aquilo, estaria pronto para colocar uma blusa de gola alta. Seu rosto estava terrível, mas talvez pudesse explicar isso com o fato de que esteve na rua lutando com o inimigo. Mas era suficiente para transformá-lo em um quadro preto e azul da cabeça aos pés?

Nem tanto.

Abaixando a cabeça, deixou a água cair no nariz e no queixo; tentou desesperadamente voltar para os carros alegóricos do entorpecimento que sentiu no carro, mas com a dor desaparecendo, sua opção alucinógena estava perdendo o controle sobre ele, e o mundo estava ficando nítido demais outra vez.

Deus, a sensação de estar fora de controle e irritado o sufocava, como se houvessem mãos em volta de sua garganta.

Maldito Butch. Metido a benfeitor, barulhento, que interferia na vida dos outros como um filho da mãe.

Dez minutos depois, ele saiu, pegou uma toalha preta, enrolou-se no tecido felpudo e entrou no quarto. Parando para abrir o armário, desejou uma vela negra em... deu uma olhada nas roupas de sua esposa. Além disso, só havia roupas de couro. Era o que acontecia com seu guarda-roupa quando se lutava para sobreviver e dormia nu.

Nenhuma blusa de gola alta à vista.

Bem, talvez não estivesse tão ruim assim...

Um rápido giro em direção ao espelho atrás da porta, e teve de fazer uma pausa. Parecia que tinha sido agarrado pelo monstro do Rhage, grandes faixas com vergões vermelhos envolviam seu tronco e estendiam-se sobre seus ombros e peitorais. Seu rosto era uma piada, um dos olhos estava tão inchado que a pálpebra estava quase inoperante... o lábio inferior profundamente rachado... o queixo parecia um esquilo escondendo nozes.

Ótimo: parecia um dos garotos de Dana White.*

Depois disso, pegou suas roupas sujas e enfiou-as no fundo do armário, em seguida, colocou a cabeça inchada como um balão para fora do quarto, no corredor, e ouviu. O canal de esportes estava tagarelando lá embaixo à esquerda, e alguma coisa líquida estava sendo servida à direita.

Dirigiu-se para o quarto de Butch e Marissa nu. Não havia razão para esconder os machucados de Butch... o filho da mãe viu tudo acontecer.

Quando entrou pela porta, encontrou o tira sentado na ponta da cama, cotovelos sobre os joelhos, um copo de uísque nas mãos e uma garrafa entre os sapatos.

– Sabe no que estou pensando agora? – o cara disse sem erguer os olhos.

V. poderia pensar em uma lista infernal de coisas.

– Diga-me.

– Na noite em que o vi se jogar da varanda do Commodore. Na noite em que eu pensei que tinha morrido – Butch tomou um gole do que estava no copo. – Achei que tínhamos superado aquilo.

– Se serve de consolo... eu também.

– Por que não vai ver sua mãe? Falar sobre essas porcarias com ela?

Como se houvesse alguma coisa que a fêmea pudesse dizer naquele momento...

– Eu a mataria, tira. Não sei como faria isso... mas eu a mataria por isso. Ela me deixou com aquele pai sociopata... sabendo exatamente como ele era, porque, afinal, ela vê tudo. Então, manteve um segredo relacionado a mim por trezentos anos, antes disso aparece no meu aniversário, tentando me colocar como uma referência para sua religião burra e estúpida. Mas eu poderia ter deixado tudo isso para lá, não é mesmo? Porém, minha irmã, minha irmã gêmea? Ela afastou Payne de mim, tira; manteve-a junto dela contra sua vontade. Por séculos. E nunca sequer me contou que eu tinha uma irmã. Isso é demais. Para mim chega. – V. encarou o uísque. – Tem um pouco disso aí sobrando?

Butch tirou a rolha da garrafa e estendeu a bebida. Quando V. a pegou, o tira disse:

– Mas acordar os mortos não é a resposta, e nem tentar se destruir como está fazendo.

– Você se habilita a fazer isso por mim? Porque estou enlouquecendo e preciso sair, Butch. De verdade. Sou perigoso aqui... – V. deu um gole na bebida e amaldiçoou quando a coisa deslizou em seus lábios, dando a sensação de que estava fumando um cigarro do lado errado. – E não consigo pensar em uma maneira de tirar isso de mim... Mas com certeza não vou voltar a praticar meus velhos hábitos.

– Não se sente tentado?

V. preparou-se e deu outro gole. Com uma careta, disse:

– Quero o prazer, mas não vou fazer isso com ninguém além de Jane. De jeito nenhum vou voltar para nossa cama com o fedor de alguma vadia em meu pênis... isso estragaria tudo, não apenas para ela, mas para mim também. Além disso, o que preciso agora é de um dominante e não de um submisso... e não há ninguém em quem eu possa confiar. – Exceto, talvez, por Butch, mas isso ultrapassaria muitos limites. – Então, estou preso: tenho um monstro gritando na minha cabeça e lugar algum para ir com essa besta... e isso está me enlouquecendo.

Meu Deus... ele disse isso. Tudo isso.

É isso aí, cara.

E o prêmio foi outro gole da garrafa.

– Caramba, meus lábios estão doendo.

– Sem ofensas, mas é benfeito... Você merece. – Os olhos castanhos de Butch se ergueram e, depois de um momento, sorriu um pouco, exibindo aquela coroa no dente da frente, bem como suas presas. – Sabe? Eu estava quase odiando você um minuto atrás, estava mesmo. E antes que me peça, as blusas de gola alta estão dobradas no final daquela fileira de cabides. Pegue uma calça de moletom também. Parece que bateram um martelo nas suas pernas e que suas bolas estão prestes a explodir.

– Obrigado, cara. – V. aproximou-se da fileira de roupas que estavam suspensas em cabides de cedro fino. Uma coisa que se podia dizer de Butch era que seu guarda-roupa era cheio de opções. – Nunca pensei que ficaria contente por seu armário parecer o de uma maníaca por roupas.

– Acho que o termo é “especialista em vestir-se bem”.

Com aquele sotaque de Boston as palavras soaram diferentes e V. se perguntou se alguma vez na vida chegou a não ouvir aquele sotaque de Boston em seu ouvido.

– O que vai fazer em relação a Jane?

V. colocou a garrafa no chão, puxou uma gola alta de caxemira sobre a cabeça e ficou decepcionado em ver que mal cobria seu umbigo.

– Ela já tem problemas suficientes. Nenhuma shellan precisa ouvir que seu macho saiu para levar uma boa surra... e não quero que diga a ela.

– Como vai explicar esses machucados, espertinho?

– O inchaço vai diminuir.

– Mas não rápido o suficiente... vai visitar Payne assim...

– Ela também não precisa ter o prazer dessa visão. Só vou me esquivar durante um dia. Payne está em recuperação e estável... pelo menos, foi o que Jane me disse... por isso, vou para minha oficina de ferragens.

Butch estendeu o copo.

– Importa-se?

– Entendido. – V. serviu seu amigo, tomou outro gole e, em seguida, vestiu uma calça. Erguendo os braços para os lados, deu uma volta. – Melhor?

– Tudo o que vejo são tornozelos e pulsos... e, para sua informação, está parecendo uma Miley Cyrus muito esquisita com essa barriga de fora. Nada atraente.

– Vá se ferrar! – Quando V. pegou a garrafa e deu outro gole, decidiu que ficar bêbado era seu novo plano. – Não posso fazer nada se você parece um maldito anão.

Butch riu com satisfação e, em seguida, voltou a ficar sério.

– Se fizer isso outra vez...

– Vai pedir para que eu tire suas roupas.

– Não é disso que estou falando.

V. puxou as mangas da blusa e não conseguiu nada com isso.

– Não precisa intervir, tira, não vou me matar. Não é esse o ponto. Sei onde está o limite.

Butch praguejou, seu rosto assumiu uma expressão sombria.

– Você diz isso e acredita que seja verdade. Mas as situações podem entrar em um turbilhão... especialmente as que está vivendo. Pode entrar na onda de... seja lá o que acha ser necessário... e a maré pode acabar virando contra você.

V. flexionou sua mão enluvada.

– Impossível. Não com isso... E não quero mesmo que fale com minha garota sobre isso. Prometa-me. Precisa ficar fora disso.

– Então, vai precisar falar com ela.

– Como posso dizer a ela... – sua voz ficou entrecortada e teve de limpar a garganta. – Como diabos posso explicar isso a ela?

– Como não explicar? Ela o ama.

V. apenas balançou a cabeça. Não conseguia imaginar-se dizendo a sua shellan que queria ser machucado fisicamente. Isso a mataria, e ele não tinha a menor intenção de que ela o visse daquela maneira.

– Olha só, vou dar um jeito nisso sozinho. Em tudo isso.

– É disso que tenho medo, V. – Butch consumiu o resto de sua bebida em um só gole. – Esse... é nosso maior problema.

Jane estava observando sua paciente dormir quando o celular soou em seu bolso. Não era uma ligação, mas uma mensagem de texto de V.: To em casa. Vou p ofic. trab. Como ta P.? E vc?

Seu suspiro não foi de alívio. Tinha chegado apenas dez minutos antes do sol erguer-se totalmente e não procurou vê-la ou visitar sua irmã?

Dane-se, ela pensou, ao se levantar e sair do quarto de recuperação.

Depois de passar algumas orientações a Ehlena, que estava na sala de exames da clínica atualizando os arquivos dos Irmãos, Jane andou decidida pelo corredor, virou à esquerda perto do escritório e passou pelos fundos do armário da despensa. Não havia razão para lidar com os códigos de bloqueio; simplesmente atravessou...

E lá estava ele, a pouco menos de vinte metros de distância do túnel, afastando-se dela... passou pelo centro de treinamento e caminhou, entrando ainda mais fundo na montanha.

As luzes fluorescentes no teto o iluminavam, atingindo seus ombros enormes e a parte inferior de seu corpo pesado. Passando pelo brilho daquelas luzes, seu cabelo parecia estar molhado e o aroma persistente do sabonete que sempre usava era a confirmação de que havia acabado de tomar banho.

– Vishous.

Disse o nome dele apenas uma vez, mas o túnel era uma câmara de ecos que fez com que as sílabas golpeassem as paredes e retornassem várias vezes, multiplicando-as.

Ele parou.

Foi a única resposta que ela recebeu.

Depois de esperar que ele dissesse alguma coisa, que se virasse... que a reconhecesse... descobriu algo novo sobre seu estado fantasmagórico: mesmo que, tecnicamente, não estivesse mais viva, seus pulmões ainda queimavam como se estivesse sufocando.

– Aonde foi esta noite? – ela disse, sem esperar uma resposta.

E, de fato, não a obteve. Mas ele parou bem debaixo de uma luminária, então, mesmo à distância, pôde ver seus ombros ficando tensos.

– Por que não se vira, Vishous?

Bom Deus... o que ele fez no Commodore? Oh, meu Deus...

Engraçado, havia uma razão pela qual as pessoas “construíam” suas vidas juntos. As escolhas que fazem como marido e mulher não são tijolos e o tempo não é uma argamassa, mas, ainda assim, elas constroem algo tangível e real. E, naquele momento, quando seu hellren recusava-se a se virar em direção a ela... inferno, apenas para mostrar seu rosto... ocorria um estrondoso terremoto, que abalava o que ela acreditava ser terra firme.

– O que fez esta noite? – ela disse sufocada.

Nesse momento, ele virou-se e deu dois grandes passos em direção a ela. Mas não foi para se aproximar. Foi para sair da luz. Mesmo assim...

– Seu rosto – ela engasgou.

– Lutei com alguns redutores. – Quando ela se aproximou, ele ergueu a palma de uma de suas mãos. – Estou bem. Só preciso de um pouco de espaço agora.

Tinha alguma coisa errada, ela pensou. E odiou o questionamento que surgiu em sua mente... a ponto de recusar-se a pronunciá-lo.

Só que tudo o que tinham ali era silêncio.

– Como está minha irmã? – ele disse de repente.

Com um nó na garganta, respondeu:

– Está descansando ainda. Ehlena está com ela.

– Deveria tirar uma folga e descansar.

– Eu vou. – Uh-hum, certo. Com as coisas entre eles como estavam, nunca mais conseguiria dormir de novo.

V. passou sua mão enluvada pelo cabelo.

– Não sei o que dizer agora.

– Esteve com outra pessoa?

Ele não hesitou nessa:

– Não.

Jane o encarou... e, então, suspirou lentamente. Uma coisa era certa sobre seu hellren, algo com a qual poderia sempre contar: Vishous não mentia. Tinha muitos defeitos, mas esse não era um deles.

– Certo – ela disse. – Sabe onde me encontrar. Estarei em nossa cama.

Foi ela quem se virou e começou a andar na direção oposta. Mesmo a distância partindo seu coração, não iria atormentá-lo com algo que não era capaz de fazer e se ele precisava de espaço... bem, daria isso a ele.

Mas não para sempre, com certeza.

Mais cedo ou mais tarde, o macho viria conversar com ela. Tinha de fazer isso ou ela iria... Deus, não sabia o que seria capaz de fazer.

Contudo, seu amor não sobreviveria para sempre nesse vácuo. Simplesmente não sobreviveria.

Presidente do UFC – Ultimate Fighting Championship. (N.P.)


CAPÍTULO 15

O fato de José de la Cruz parar em um drive-thru para comprar alguma porcaria no centro de Caldwell era um clichê total. Todos sabiam que os detetives de homicídios bebiam café e comiam doces, mas isso nem sempre era verdade .

Algumas vezes, não havia tempo para fazer uma parada.

E, cara, dane-se o que esses programas de televisão e romances policiais dizem por aí... A realidade era que ele funcionava melhor com cafeína e um pouco de açúcar em sua corrente sanguínea. Além disso, vivia pelas rosquinhas; portanto, que o processassem.

A ligação que acordou a ele e a sua esposa aconteceu perto das seis da manhã, um horário que, se considerasse o número que observou ao atender a ligação, era quase civilizado: cadáveres, assim como aqueles que ficavam doentes, não seguiam as regras do horário comercial. Então, o horário quase tolerável era uma bênção.

E não era a única coisa boa em seu caminho: felizmente, por ser domingo, as estradas e rodovias estavam vazias, e seu carro sem identificação oficial fazia um trabalho excelente para sair dos subúrbios em uma situação assim... então, seu café ainda estava bem quente enquanto ele se dirigia para o distrito comercial, passando com cuidado pelos sinais vermelhos.

A fila de viaturas anunciou a localização onde o corpo havia sido encontrado, mais do que a fita de aviso amarela que tinha sido estendida por toda parte, como se fosse um laço sobre um maldito presente de Natal. Praguejando, estacionou paralelamente à parede de tijolos do beco e saiu, bebendo seu café e andando em direção ao amontoado de uniformes azuis.

– Ei, Detetive.

– E aí, Detetive?

– Oi, Detetive.

Assentiu para os garotos.

– Bom dia a todos. O que temos aqui?

– Não tocamos nela – Rodriguez fez um aceno com a cabeça em direção à caçamba. – Está lá, e Jones está tirando as primeiras fotos. O médico legista e o pessoal da perícia criminal estão a caminho. O misógino às avessas também.

Ah, sim, o fiel fotógrafo deles.

– Obrigado.

– Onde está seu novo parceiro?

– Chegando.

– Ele está pronto para isso?

– Vamos ver. – Sem dúvida, aquele beco sujo estava bem familiarizado com pessoas botando para fora aquilo que tinham comido; então, se o novato perdesse o almoço, não tinha problema.

José abaixou-se sob a faixa amarela e andou em direção à caçamba. Como sempre, quando se aproximava de um corpo, percebia que sua audição estava tão aguda que chegava a ser insuportável: a conversa mole dos homens atrás dele, o som das solas dos próprios sapatos no asfalto, a brisa fria vinda do rio que assoviava... tudo estava alto demais, como se o volume do mundo inteiro tivesse sido aumentado ao máximo.

E claro, a ironia era que o propósito dele estar ali, naquela manhã, naquele beco... o propósito de todos aqueles carros, homens e fitas de advertência estarem ali... estava perfeitamente em silêncio.

José segurou seu copo de isopor enquanto espiava por cima da tampa enferrujada da caçamba. A mão da moça foi a primeira coisa que viu, uma linha pálida de dedos com unhas quebradas e havia alguma coisa marrom embaixo delas.

Uma lutadora, não importava quem fosse.

Ao se deparar com outra garota morta, desejou profundamente que seu trabalho fosse tranquilo por um mês ou uma semana... ou, pelo amor de Deus, ao menos por uma noite. Caramba, dar uma desacelerada na carreira era o que estava pensando em fazer: quando se atua em tal área profissional, é difícil ficar satisfeito com o que se faz. Mesmo quando um caso era resolvido, ainda assim alguém estaria enterrando um ente querido.

O policial perto dele parecia ter um megafone quando falou.

– Quer que eu abra a outra metade?

José quase disse para o cara diminuir o volume, mas havia uma grande possibilidade de que estivesse falando como em uma biblioteca.

– Sim. Obrigado.

O policial usou um cassetete para levantar a tampa o suficiente para que a luz pudesse entrar, mas o cara não olhou para o que havia dentro. Apenas permaneceu ali, em pé, como um daqueles soldados da realeza britânica, dirigindo o olhar para o outro lado do beco, sem focar em nada.

Quando José ergueu-se na ponta dos pés e deu uma espiada, não culpou o policial por sua reticência.

Deitada em uma cama de metais retorcidos, a mulher estava nua, sua pele cinza e manchada exibia uma luminosidade estranha sob a luz do amanhecer. Considerando seu rosto e corpo, parecia estar no final da adolescência, uns vinte anos. Branca. O cabelo tinha sido cortado pela raiz, tão rente à pele que o couro cabeludo estava dilacerado em alguns lugares. Olhos...? Tinham sido removidos de suas órbitas.

José tirou uma caneta do bolso, esticou o corpo ao aproximar-se e separou cuidadosamente os lábios da garota. Sem dentes... não restou sequer algum nas gengivas irregulares.

Movendo-se para a direita, ergueu uma das mãos para ver a parte inferior da ponta dos dedos. Completamente removidas.

E a desfiguração não se limitava à cabeça e às mãos... Havia ranhuras profundas na pele, uma no alto de sua coxa, outra na parte inferior do braço e duas na parte de dentro de seus pulsos.

José amaldiçoou em voz baixa, pois tinha certeza de que ela havia sido desovada ali. Não havia privacidade suficiente no local para realizar esse tipo de trabalho... aquela porcaria exigia tempo e ferramentas... e equipamentos de contenção para mantê-la deitada.

– O que temos aí, Detetive? – seu novo parceiro disse atrás dele.

José olhou para Thomas DelVecchio Jr. sobre o ombro.

– Já tomou café da manhã?

– Não.

– Que bom.

Recuou um pouco para que Veck pudesse dar uma olhada. Como o cara era quinze centímetros mais alto do que ele, não teve de se esticar para ver o que havia lá dentro. Tudo o que fez foi dobrar os quadris. E, então, apenas olhou. Nada de inclinar-se contra a parede para vomitar. Nada de engasgos. Também não houve qualquer mudança drástica na expressão do rosto.

– O corpo foi desovado aqui – Veck disse. – Só pode ser.

– Ela.

Veck olhou para ele, seus olhos azuis-escuros eram inteligentes e imperturbáveis.

– Como?

– Ela foi desovada aqui: é uma pessoa, não uma coisa, DelVecchio.

– Certo. Desculpe. Ela. – O cara inclinou-se outra vez. – Acho que temos um colecionador de troféus.

– Talvez.

As sobrancelhas escuras se ergueram.

– Há muita coisa faltando... nela.

– Tem assistido aos noticiários ultimamente? – José limpou a caneta em um tecido.

– Não tenho tempo para TV.

– Onze mulheres foram encontradas assim no ano passado. Nas cidades de Chicago, Cleveland e Philly.

– Caraaamba – Veck colocou um pedaço de chiclete na boca e mastigou com força. – Então, deve estar se perguntando se este pode ser o início para nós.

Quando o cara rangeu os molares, José esfregou os olhos para dissipar as memórias que surgiram.

– Quando parou?

Veck limpou a garganta.

– De fumar? Mais ou menos há um mês.

– Como está indo?

– É um saco.

– Aposto que sim.

José colocou as mãos sobre os quadris e voltou a se concentrar. Como iriam fazer para descobrir quem era aquela garota? Havia inúmeras mulheres jovens desaparecidas no estado de Nova York... e isso considerando que o assassino não tinha feito aquilo em Vermont ou Massachusetts ou Connecticut e tenha dirigido até ali para depositá-la naquela caçamba.

Uma coisa era certa: nem morto permitiria que aquele filho da mãe começasse a atacar as garotas da cidade. Não ia acontecer enquanto estivesse no comando.

Quando se virou, bateu no ombro de seu parceiro.

– Dez dias, amigo.

– Para quê?

– Para voltar a montar na sela de um Marlboro.

– Não subestime minha força de vontade, detetive.

– Não subestime o que vai sentir quando for para casa e tentar dormir esta noite.

– Não durmo muito, mesmo.

– Esse trabalho não vai ajudar.

Nesse momento, a fotógrafa chegou com seus cliques, flashes e mau humor.

José indicou a direção oposta com a cabeça.

– Vamos sair daqui e deixá-la fazer seu trabalho.

Veck deu uma olhada e ficou surpreso quando a encarou melhor. A péssima receptividade foi uma novidade para ele... As mulheres gravitavam ao redor de homens como Veck; as duas últimas semanas provaram isso: elas ficavam sempre por perto na delegacia.

– Vamos, DelVecchio, vamos começar a procurar as peças desse quebra-cabeça.

– Entendido, detetive.

Normalmente, José pediria para que o cara o chamasse de de la Cruz, mas nenhum de seus “novos” parceiros duravam mais do que um mês, então, de que adiantaria? “José” estava fora de cogitação, claro... apenas uma pessoa chamou-o assim naquele trabalho e o desgraçado tinha desaparecido há três anos.

Levou mais ou menos uma hora para que ele e Veck investigassem o local e acabassem não conseguindo absolutamente nenhum material. Não havia nenhuma câmera de segurança no exterior dos prédios nem testemunhas tinham se apresentado, mas os caras da investigação criminal iriam rastrear tudo com seus distintivos, bolsinhas plásticas e pinças. Talvez aparecesse algo.

O médico legista chegou às nove, fez seu trabalho, e o corpo foi liberado para ser removido mais ou menos uma hora depois disso. E quando o pessoal precisou de uma ajuda com o cadáver, José ficou surpreso em ver que Veck colocou um par de luvas de látex e pulou naquela caçamba.

Um pouco antes do médico legista removê-la do local, José perguntou sobre a hora da morte e foi informado que tinha acontecido por volta do meio-dia do dia anterior.

Ótimo, ele pensou enquanto os carros e as vans começavam a partir. Quase vinte e quatro horas morta antes de encontrá-la. Poderia muito bem ter sido conduzida para fora do estado.

– Hora de acionar o banco de dados – disse a Veck.

– Estou nessa.

Quando o cara se virou e seguiu em direção a uma motocicleta, José gritou:

– Chiclete não é comida.

Veck parou e olhou sobre o ombro.

– Está me convidando para tomar café da manhã, detetive?

– Só não quero que desmaie no trabalho. Isso o deixaria constrangido e eu seria obrigado a examinar outro corpo.

– Que amável, detetive.

Talvez costumasse ser; mas agora só estava nervoso consigo mesmo e não sentia a menor vontade de comer sozinho.

– Encontro você no Vinte e quatro em cinco minutos.

– Vinte e quatro?

Certo, ele não era dali.

– Riverside Diner, na Eighth Street. Fica aberto vinte e quatro horas.

– Entendi. – O cara colocou um capacete preto e alavancou uma das pernas sobre algum tipo de engenhoca que parecia fazer parte do motor. – Eu pago.

– Faça como quiser.

Veck pisou a alavanca com força e ligou o motor.

– Sempre faço, detetive. Sempre.

Quando arrancou, deixou um rastro de testosterona no beco e, enquanto José arrastava-se preguiçosamente em direção a seu automóvel bege sem identificação, sentiu-se como um tiozinho de meia-idade em comparação a Veck. Deslizando para trás do volante, colocou seu copo quase vazio e completamente frio no porta-copos, e seu olhar deslocou-se da faixa para aquela caçamba.

Tirando o celular do paletó, ligou para a delegacia.

– Ei, é o de la Cruz. Pode passar a ligação para a Mary Ellen? – O tempo de espera foi de menos de um minuto. – Mary Ellen? Como vai? Bem... bem. Ouça, quero ouvir a ligação que denunciou o corpo que havia próximo ao Commodore. Sim. Claro... só preciso que a reproduza. Obrigado... não precisa correr.

José colocou a chave na ignição.

– Ótimo. Obrigado, Mary Ellen.

Sim, gostaria de comunicar um corpo. Não, não vou dar meu nome. Está em uma caçamba de lixo em um beco da Tenth Street, a dois quarteirões do Commodore. Parece ser uma mulher branca, final da adolescência, uns vinte anos... Não, não vou dar meu nome... Ei, que tal pegar o endereço e parar de se preocupar comigo...?

José apertou o telefone e começou a tremer.

O sotaque de Boston era tão claro e familiar que foi como se o tempo tivesse se envolvido em um acidente de carro e ricocheteado para trás.

– Detetive? Quer ouvir outra vez? – ouviu Mary Ellen dizer em seu ouvido.

Fechando os olhos, resmungou.

– Sim, por favor...

Quando a gravação terminou, ouviu-se agradecendo a Mary Ellen e sentiu que pressionou o polegar sobre o botão end do celular para finalizar a ligação.

Tão claro como água cristalina, estava sendo sugado para um pesadelo de dois anos atrás... quando entrou naquele apartamento fedorento e decaído, cheio de garrafas de uísque vazias e caixas de pizza. Lembrou-se de sua mão estendendo-se em direção à porta fechada de um banheiro, aquela maldita parte de seu corpo tremia por inteiro.

Estava convencido de que iria encontrar um corpo do outro lado. Pendurado no chuveiro por um cinto... ou talvez mergulhado em sangue ao invés de um banho de espuma.

Butch O’Neal teve uma vida difícil ao buscar realizar-se profissionalmente no departamento de homicídios. Bebia até altas horas e não só tinha fobia de relacionamentos como também era incapaz de estabelecer laços afetivos.

Só que ele e José eram próximos. Tão próximos quanto Butch foi capaz de ser com alguém um dia.

Contudo, nada de suicídio. Nada de corpo. Nada. Em uma noite, ele estava ali; na outra... havia sumido.

No primeiro mês, e até no segundo, José esperou ter alguma notícia... do próprio cara ou sobre um cadáver de nariz quebrado e um dente da frente com uma coroa mal feita aparecendo em algum lugar.

No entanto, dias transformaram-se em semanas que, por sua vez, tornaram-se estações do ano, e sentiu-se como um médico que descobriu ter uma doença terminal: finalmente soube como as famílias de pessoas desaparecidas se sentiam. E, Deus, nunca pensou que passaria por aquela longa, terrível e fria espera. Jamais imaginou que percorreria aquele território do “Não Saber de Nada”... Mas com o desaparecimento de seu parceiro, não só percorreu o maldito território como comprou um terreno, construiu uma casa e mudou-se para lá.

Agora, porém, depois de ter perdido todas as esperanças, depois de não acordar mais no meio da noite pensando onde o cara poderia estar... agora... tinha ouvido aquela gravação.

Claro, milhões de pessoas tinham aquele sotaque de Boston. Mas O’Neal possuía uma rouquidão reveladora em sua voz que não poderia ser replicada.

De repente, José perdeu a vontade de ir ao Vinte e quatro, não queria comer nada. Mas colocou seu carro sem identificação oficial em funcionamento e pisou no acelerador.

No momento em que olhou para a caçamba e viu aqueles olhos arrancados e aquele trabalho odontológico, soube que estava indo à procura de um serial killer. Mas não poderia imaginar que iniciaria outra busca.

Hora de encontrar Butch O’Neal.

Se fosse capaz.


CAPÍTULO 16

Uma semana depois, Manny acordou em sua cama com as dores latejantes de uma ressaca. A boa notícia era que pelo menos aquela dor poderia ser explicada: quando chegou em casa, tomou uísque até ficar chapado. E a bebida desempenhou seu papel, derrubando-o com força total como em um nocaute.

A primeira coisa que fez foi estender a mão e pegar o telefone. Com os olhos embaçados, ligou para o celular do veterinário. Os dois tinham combinado um ritual matinal e Manny agradecia a Deus pelo fato do cara também ser um insone.

O veterinário atendeu no segundo toque.

– Alô?

– Como está minha garota? – a pausa que se seguiu disse-lhe tudo o que tinha de saber. – Tão mal assim?

– Bem, os sinais vitais permanecem bons e ela continua tão estável quanto possível com a sedação, mas estou preocupado com uma possível inflamação nos cascos.

– Mantenha-me informado.

– Sempre.

Nesse momento, desligar era a única coisa que poderia fazer. A conversa tinha acabado e não era uma pessoa que jogava conversa fora... mesmo que fosse, um bate-papo não o ajudaria a conseguir aquilo que desejava: um cavalo saudável.

Antes do despertador disparar às seis e meia para que ele começasse a dura rotina, deu um tapa no rádio-relógio para que continuasse em silêncio e pensou: exercícios. Café. Voltar ao hospital.

Espere. Café, exercícios, hospital.

Definitivamente, precisava de cafeína primeiro. Não conseguiria correr ou levantar pesos naquela condição... e também não poderia operar máquinas pesadas – como um elevador, por exemplo.

Ao levar os pés ao chão e ficar na posição vertical, sua cabeça tinha um ritmo próprio de batidas e revoltou-se com a ideia de que talvez, apenas talvez, a dor não tivesse relação com a bebida: não estava doente nem desenvolvendo um tumor cerebral... Contudo, mesmo se estivesse, iria do mesmo jeito para o hospital; estava em sua natureza. Caramba, quando era jovem, lutava para ir à escola mesmo doente... mesmo quando teve catapora e ficou parecendo um desenho de ligar pontos, insistiu em pegar o ônibus.

Sua mãe ganhou aquela batalha em particular, e reclamou por ele ser exatamente como o pai.

Não foi um elogio, e ouviu isso a vida inteira... mas também não significava nada, pois nunca conheceu o cara. Tudo o que tinha era uma foto desbotada dele. A única coisa que acabou colocando em um porta-retrato... Por que diabos estava pensando sobre isso naquela manhã?

O café foi uma mistura instantânea suave. Vestiu as roupas esportivas enquanto a bebida ficava pronta e tomou duas canecas sobre a pia ao observar a fila do tráfego matutino sob a penumbra da madrugada nas proximidades da estrada que ia para o norte. A última coisa que fez foi pegar seu iPod e colocá-lo nos ouvidos. Claro que não era um tipo de cara falante, mas que Deus o ajudasse a não encontrar uma garota tagarela pela frente naquele dia.

Na sala de musculação, o local estava bem vazio, o que foi um grande alívio, mas isso não ia durar muito. Saltando na esteira mais próxima da porta, desligou o noticiário que estava passando na TV instalada no alto da parede e começou a malhar.

O som de Judas Priest em seu iPod embalou seus passos, sua mente desconectou-se e seu corpo rígido e dolorido teve o que precisava. Considerando tudo, estava melhor agora se comparado ao fim de semana anterior. As dores de cabeça ainda estavam lá, mas continuava a manter o ritmo de trabalho, a atender seus pacientes em dia e a administrar tudo.

No entanto, isso o fez pensar. Um pouco antes de Jane ter batido naquela árvore, teve dores de cabeça também. Então, se tivessem sido capazes de fazer uma autópsia no corpo dela, será que teriam encontrado um aneurisma? Por outro lado, qual seria a probabilidade dos dois sofrerem a mesma...

Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Não tenho tempo para explicar agora. Por favor. Sei que é pedir muito. Mas há uma paciente que precisa de você, desesperadamente... já estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada.

– Droga. – Manny colocou os pés rapidamente na beirada da esteira e cerrou os dentes contra a agonia. Dobrando a parte superior do corpo sobre o painel do aparelho, respirou lenta e equilibradamente... ou pelo menos tentou o máximo possível que uma pessoa correndo a dez quilômetros por hora poderia conseguir.

Nos últimos sete dias, aprendeu por meio do método de tentativa e erro que, quando a dor o atingia, o melhor a fazer era tentar deixar a mente em branco e focar em nada. E o fato de que o simples truque cognitivo funcionava tranquilizava-o quanto à questão do aneurisma: se a parede de uma artéria cerebral estivesse prestes a explodir e formar um buraco em sua cabeça, não era uma estratégia de respiração ao estilo da ioga que em pouco tempo faria diferença.

Mas havia um padrão. Surgia com pensamentos sobre Jane... ou sobre aquele sonho erótico que continuava a ter.

Minha nossa, durante o sono teve orgasmos suficientes para aliviar toda sua libido. E, sendo o filho da mãe doente que era, a quase certeza de voltar a estar com aquela fêmea em suas fantasias o fazia ansiar pelo momento de colocar a cabeça no travesseiro pela primeira vez na vida.

Mesmo não podendo explicar o motivo pelo qual algumas cognições traziam as dores de cabeça, a boa notícia era que ele estava melhorando. Cada dia após aquele fim de semana, que parecia ser um buraco negro bizarro, sentia que voltava um pouco a ser o que era.

Quando restou pouco mais que uma dor incômoda, Manny voltou para a esteira e terminou o treino. No caminho para a saída, acenou para os retardatários do início da manhã que chegavam e escapou antes que alguém viesse com um “Oh, meu Deus, você está bem?”, se visse que tentava controlar a respiração.

No apartamento, tomou um banho, colocou um uniforme limpo e um jaleco branco e, em seguida, agarrou sua maleta e seguiu para o elevador. Para evitar o trânsito pegou as ruas adjacentes que cortavam a cidade. A estrada estava lotada àquela hora do dia e teve bons momentos ouvindo a tradicional banda My Chemical Romance.

“I’m not okay” era uma música que, por algum motivo, não se cansava de ouvir.

Quando virou em direção ao complexo do Hospital São Francisco, a luz do amanhecer ainda não tinha surgido completamente, o que sugeria que o dia seria nublado. Não que isso importasse para ele; quando entrava no local, a menos que houvesse um tornado, o que nunca tinha acontecido em Caldwell, o tempo não o afetava nem um pouco. Inferno, já tinha ido trabalhar várias vezes ainda no escuro, indo embora quando escurecia novamente, mas nunca se sentiu como se estivesse perdendo seu tempo na vida, pois não era muito de “curtir a natureza”.

Engraçado. Agora, porém, sentia-se um tanto deslocado.

Trabalhava naquele hospital desde que terminara sua residência cirúrgica pela Escola de Medicina de Yale e pretendia seguir para Boston, Manhattan ou Chicago. Em vez disso, deixou sua marca ali e, mais de dez anos depois, ainda estava onde tinha começado. Claro, ocupava o topo da pirâmide administrativa, por assim dizer, tinha salvado e melhorado vidas e já tinha ensinado uma geração de cirurgiões.

O problema era que, ao descer a rampa para a garagem, tudo aquilo, de alguma forma, parecia sem sentido.

Tinha quarenta e cinco anos de idade, com pelo menos metade do seu tempo útil dentro de uma caixa. O que tinha para mostrar? Um apartamento cheio de tênis Nike e um trabalho que tinha tomado conta das partes mais remotas de seu ser. Nada de esposa. Nada de filhos. As festas de Natal, Ano Novo e feriados nacionais eram passadas no hospital... Com sua mãe dando um jeito de comemorar essas datas sem ele e, sem dúvida, esperando por netos. Coisa que era melhor ela esperar sentada.

Cristo, com quantas mulheres tinha transado aleatoriamente ao longo dos anos? Centenas. Devia ser.

A voz de sua mãe veio como um tiro em sua cabeça: Você é igual ao seu pai.

Verdade. Seu pai também tinha sido um cirurgião. Com um traço errante.

Na verdade, foi por isso que Manny tinha escolhido Caldwell. Sua mãe havia trabalhado no São Francisco como enfermeira da UTI; batalhou para mantê-lo anos e anos estudando. E o que aconteceu quando se formou em medicina? Ao invés de orgulho, havia distância e reserva no rosto dela... Quanto mais próximo ficava do que havia sido seu pai, mais ela expressava aquela distância no olhar. A ideia dele era de que se estivessem na mesma cidade, estreitariam a relação ou algo assim. No entanto, não foi desse jeito.

Mas ela estava bem. Morava na Flórida naquele momento, em uma casa de repouso em um campo de golfe que ele pagava, jogando partidas de baralho com senhoras da mesma idade, jantando com as amigas de carteado e discutindo sobre quem esnobou quem nas festinhas agitadas do local. Ele estava muito feliz em poder ampará-la e essa era toda a extensão do relacionamento que mantinham.

Seu pai estava em um túmulo no cemitério Bosque dos Pinheiros. Morrera em 1983 em um acidente de carro.

Que coisa perigosa é um carro.

Estacionando o Porsche, desceu do veículo e foi pelas escadas ao invés do elevador para se exercitar. Em seguida, usou a passagem de pedestres para entrar no hospital, no terceiro andar. Quando passou pelos médicos e enfermeiras, apenas acenou e continuou andando. Geralmente, dirigia-se a seu escritório primeiro, mas não importava o que dissesse para seus pés, aquele não foi o lugar para onde acabou indo naquele dia.

Estava indo para os quartos de recuperação.

Disse a si mesmo que era para ver como os pacientes estavam, mas aquilo era besteira. Enquanto sua mente ficava cada vez mais difusa, ele ignorou o nevoeiro conscienciosamente. Inferno, aquilo era pior que a dor... e provavelmente estava hipoglicêmico por ter se exercitado e não se alimentado depois disso.

Paciente... estava procurando sua paciente... Sem nome. Ele não tinha um nome em mente, mas sabia qual era a sala.

Quando chegou à suíte mais próxima da escada de incêndio no fim do corredor, uma onda de excitação percorreu seu corpo. Certificou-se de que o jaleco branco estava colocado sobre os ombros e passou a mão pelos cabelos para ajeitá-los.

Limpando a garganta, preparou-se, entrou e...

O senhor de oitenta anos de idade deitado sobre a cama estava dormindo, mas não estava descansando, tubos entravam e saíam dele como se fosse um carro recebendo uma chupeta para recarregar a bateria.

Uma dor pungente socou a cabeça de Manny enquanto encarava o homem.

– Dr. Manello?

A voz de Goldberg atrás dele foi um alívio, pois deu-lhe algo concreto em que se agarrar... a borda de uma piscina, digamos assim.

Virou-se.

– Ei. Bom dia.

As sobrancelhas do cara se ergueram e, então, franziu a testa.

– Hã... o que está fazendo aqui?

– O que acha? Verificando um paciente. – Deus, talvez todos estivessem enlouquecendo.

– Pensei que ia tirar uma semana de folga.

– Como?

– Isso... hã... foi isso que me disse quando saiu esta manhã. Depois que... encontramos você aqui no quarto.

– Do que está falando? – Então, Manny acenou com a mão num gesto vago. – Ouça, deixe-me tomar café da manhã primeiro...

– É hora do jantar, Dr. Manello. São seis da tarde. Saiu daqui há doze horas.

A excitação que tinha aquecido seu corpo saiu correndo de dentro dele e foi substituída imediatamente por um banho frio de algo que nunca, jamais, havia sentido antes.

Um medo glacial percorreu-o e deu uma reviravolta em seus neurônios.

O silêncio constrangedor que se seguiu foi interrompido por uma agitação no corredor: pessoas passavam com sapatos baixos e confortáveis, apressando-se para atender pacientes ou empurrando carrinhos de roupa suja para a lavanderia ou levando refeições... jantar, naturalmente... de quarto em quarto.

– Eu vou... voltar para casa agora – Manny disse.

Sua voz era ainda mais forte do que nunca, mas a expressão no rosto de seu colega revelava a verdade sobre a situação: não importava o que dizia a si mesmo sobre sentir-se melhor, não era mais o mesmo. Parecia o mesmo; a voz soava como se fosse a mesma pessoa; andava da mesma maneira. Tentou até convencer a si mesmo de que era o mesmo.

Mas alguma coisa tinha mudado naquele fim de semana e temia que não houvesse volta.

– Gostaria que alguém o levasse para casa? – Goldberg perguntou timidamente.

– Não. Estou bem.

Precisou de todo o orgulho que tinha para não começar a correr quando se virou para sair: com muita força de vontade, ergueu a cabeça, endireitou a coluna e colocou um pé em frente ao outro calmamente.

Foi estranho, mas, ao sair, pensou em seu professor de cirurgia... o que tinha sido “aposentado” pela administração da escola quando fez setenta anos. Na época, Manny estava no segundo ano.

Dr. Theodore Benedict Stanford III.

O cara era um filho da mãe em sala de aula, o tipo de desgraçado que gostava mais quando os alunos davam respostas erradas, pois lhe proporcionava a oportunidade de repreender as pessoas. Quando a escola anunciou sua saída, Manny e seus colegas de classe fizeram uma festa de despedida para o pobre coitado, todos eles embebedaram-se celebrando o fato de serem a última geração a ser submetida às babaquices dele.

Manny estava trabalhando como zelador na escola naquele verão para conseguir algum dinheiro e estava esfregando o chão do corredor quando o carregador remanescente saiu levando as caixas finais do escritório de Stanford... e, em seguida, foi o velho quem saiu e desapareceu no final do corredor, passando por ali pela última vez.

Saiu com a cabeça erguida, descendo as escadas de mármore e partindo pela majestosa porta da frente com o queixo empinado.

Manny tinha rido da arrogância do homem, que não baixou a cabeça mesmo em face da idade e do fato de reduzirem seu valor a algo obsoleto.

Agora, caminhando da mesma maneira, perguntou-se se poderia ser verdade.

Era muito provável que Stanford tenha tido a mesma sensação que Manny experimentava naquele momento: a sensação de ser descartado.


CAPÍTULO 17

Jane ouviu uma agitação vindo do centro de treinamento. O barulho a acordou. Ergueu sua cabeça do travesseiro apoiando-se no antebraço e sua coluna estralou, pois estava curvada sobre a mesa.

Rompendo... e batendo...

A princípio, achou que era uma rajada de vento, mas houve um estalo em seu cérebro em seguida. Não havia janelas ali no subsolo. E seria necessária uma tempestade terrível para criar aquela quantidade de barulho.

Erguendo-se rapidamente da cadeira, deu a volta na mesa e saiu correndo pelo corredor em direção ao quarto de Payne. Tinha um motivo para que todas as portas estivessem abertas: havia apenas uma paciente e embora Payne fosse muito tranquila, se alguma coisa acontecesse...

Que diabos era aquele estardalhaço? Havia gemidos também...

Jane deslizou através do batente da porta da sala de recuperação e quase gritou. Ah, Deus... todo aquele sangue.

– Payne! – ela correu para a cama.

A irmã gêmea de V. estava em um descontrole selvagem, balançando os braços para todos os lados, os dedos agarravam os lençóis e a si mesma, as unhas afiadas arranhavam a pele dos braços, dos ombros e das clavículas.

– Não consigo sentir isso! – a fêmea gritou, presas expostas, olhos tão abertos que exibia claramente uma borda branca ao redor deles. – Não consigo sentir nada!

Jane aproximou-se com rapidez e agarrou um dos braços, mas seu aperto deslizou no instante em que o contato foi feito, afastando-a de todos aqueles arranhões escorregadios.

– Payne! – Se ela continuasse, as feridas ficariam tão profundas que os ossos seriam expostos. – Pare...

– Não consigo sentir nada!

A caneta Bic apareceu na mão de Payne do nada... só que, não, não foi mágica... A caneta era de Jane, aquela que guardava no bolso lateral de seu jaleco branco. No instante em que viu o objeto, todos aqueles golpes furiosos transformaram-se em uma sequência de imagens em câmera lenta enquanto a mão de Payne se erguia.

A punhalada era tão forte e decidida que nada poderia detê-la.

A ponta afiada trespassou o coração da fêmea, matando-a, e seu corpo lançou-se para frente, o suspiro da morte exalado por sua boca aberta.

Jane gritou:

– Nããããão...

– Jane... acorde!

O som da voz de Vishous não fazia sentido. Só que, então, ela abriu os olhos... para visualizar a completa escuridão. A clínica, o sangue e a respiração ofegante de Payne foram substituídos por uma mortalha visual negra que...

O brilho da chama de velas surgiu em seu campo de visão. A primeira coisa que viu foi o rosto tenso de Vishous; ele estava ao seu lado, mas não tinham ido para a cama juntos.

– Jane, foi só um sonho...

– Estou bem – ela deixou escapar, afastando o cabelo do rosto. – Estou...

Enquanto apoiava-se em seus braços e ofegava, não distinguia o que era sonho e realidade. Especialmente se levasse em conta que Vishous estava ao lado dela; não era apenas uma questão de não irem para a cama juntos ultimamente. Não estavam acordando juntos também. Achou que ele tinha dormido na oficina, mas talvez não tivesse sido o caso.

Esperava que não tivesse mesmo sido o caso.

– Jane...

No silêncio sombrio, ouviu na palavra toda a tristeza que V. nunca deixou transparecer antes em nenhuma outra situação. E ela se sentia da mesma maneira. Aqueles dias em que não tinham se falado muito, o estresse por causa da recuperação de Payne, a distância... a maldita distância... tudo era triste demais.

Porém, ali, à luz das velas, na cama deles, tudo aquilo enfraqueceu um pouco.

Com um suspiro, virou-se para o corpo quente e pesado de V. e o contato a transformou: sem intenção de assumir sua forma sólida, tornou-se corpórea, o calor fluía entre eles, ampliava-se e a deixava tão real quanto ele. Levantando o olhar, observou aquele rosto belo e feroz com a tatuagem sobre a têmpora, o cabelo negro que sempre penteava para trás, a sobrancelha com falhas e aqueles olhos pálidos e gélidos.

Durante a última semana, ela pensou e repensou sobre a noite em que as coisas tinham ficado tão difíceis. E apesar de boa parte daquilo ser decepção e ansiedade, havia uma coisa que não fazia sentido.

Quando se encontraram no túnel, Vishous estava usando uma blusa de gola alta. E ele nunca usava blusas assim. Odiava tais peças, pois achava que elas o sufocavam... o que era irônico, considerando o que o aliviava algumas vezes. Normalmente, vestia regatas ou andava nu, e ela não era estúpida. Poderia ser um cara durão, mas os hematomas surgiam em sua pele com a mesma facilidade de qualquer outra pessoa.

Disse que tinha lutado, mas era um mestre no combate mano a mano. Então, se estava todo roxo da cabeça aos pés, só havia uma razão para isso: havia permitido.

E ela teve de se perguntar quem tinha feito aquilo com ele.

– Você está bem? – V. perguntou.

Ela estendeu a mão e a colocou sobre o rosto dele.

– E você? Está bem?

Será que eles estavam bem?

Ele não hesitou.

– Com o que sonhou?

– Vamos ter que conversar sobre algumas coisas, V.

Os lábios dele se contraíram. E ficaram ainda mais tensos enquanto ela esperava. Finalmente, ele disse:

– Payne está como está. Faz apenas uma semana e...

– Não é sobre ela. É sobre o que aconteceu naquela noite quando saiu sozinho.

Nesse momento, ele se recostou, mergulhando nos travesseiros e unindo as duas mãos sobre o abdômen definido. Na penumbra, os músculos contraíram-se e suas veias projetaram sombras no pescoço.

– Está me acusando de ter ficado com outra pessoa? Pensei que já tínhamos resolvido isso.

– Pare de mudar de assunto – ela olhou para ele com firmeza. – E se quiser comprar uma briga, procure alguns redutores para isso.

Qualquer outro macho teria reagido com um rápido contra-argumento, com direito a toda uma carga dramática.

Em vez disso, Vishous virou-se para ela e sorriu.

– Quero ouvi-la.

– Prefiro que você fale comigo.

Aquela chama sensual com a qual estava tão familiarizada, mas que não tinha visto na última semana, borbulhou nos olhos dele enquanto movimentou-se em direção a ela. Em seguida, baixou o olhar e observou o sutiã que havia sob a camiseta simples com a qual havia adormecido.

Ela colocou o rosto no caminho do olhar dele, mas estava sorrindo também. As coisas tinham sido tão duras e tensas entre eles. Aquilo parecia normal.

– Não vou me distrair.

Quando um calor emanou do corpo dele em ondas, seu companheiro estendeu a ponta do dedo e deslizou ao longo de seu ombro. Então, abriu a boca, as pontas brancas de suas presas foram expostas e ficaram ainda mais longas quando lambeu os lábios.

De alguma maneira, o lençol que o cobria foi sendo puxado de seu abdômen. Escorregou mais, e mais. Era sua mão enluvada cumprindo seu dever e a cada centímetro exposto, os olhos de Jane tinham mais dificuldade em focar outra coisa. Ele parou um pouco antes da sua grande ereção ser exposta, mas deu a ela uma pequena amostra do que havia ali: as tatuagens em torno de sua virilha esticaram-se e movimentaram-se enquanto os quadris contraíam-se e relaxavam, contraíam-se e relaxavam.

– Vishous...

– O quê?

Sua mão enluvada mergulhou sob o cetim preto e ela não precisou ver para onde se direcionava para saber que envolveria seu pênis: o fato de que arqueava as costas disse-lhe tudo o que precisava saber.

Isso e a maneira como mordeu o lábio inferior.

– Jane...

– O quê?

– Vai ficar só olhando, não é mesmo?

Deus, Jane lembrava-se da primeira vez que o viu assim, estirado em uma cama, rijo, pronto. Estava lhe dando um banho de esponja e conseguiu lê-la como um livro: por mais que ela não quisesse admitir, estava desesperada para observar como ele se tocava até gozar.

E ela se certificou de que ele o fizesse.

Sentindo-se aquecida, inclinou-se para ele e aproximou tanto sua boca que quase tocou a dele.

– Ainda está desviando do assunto...

Em um piscar de olhos, a mão livre de Vishous agarrou-a pela nuca, prendendo-a. E toda aquela força passou pelo corpo dele, sendo direcionada entre as coxas dela.

– Sim. Estou. – Estendeu a língua e passou sobre os lábios dela. – Mas sempre podemos conversar depois. Sabe que nunca minto.

– Achei que sua linha de discurso estava baseada mais em... nunca estar errado.

– Bem, isso também é verdade. – Um rosnado escapou de dentro dele. – E, nesse momento... você e eu precisamos disso.

Aquela última parte foi dita com nada da paixão e toda a seriedade que ela precisava ouvir. E, quer saber, ele tinha razão. Os dois estavam andando em círculos nos últimos sete dias, pisando em ovos, evitando a mina terrestre que havia no centro do relacionamento. Conectar-se daquela maneira, pele com pele, iria ajudá-los a superar as palavras que tinham de ser ditas.

– Então, o que me diz? – ele murmurou.

– O que está esperando?

A risada que soltou foi baixa e satisfeita e seu braço contraía-se e relaxava quando começou a se acariciar.

– Puxe o lençol, Jane.

O comando saiu rouco, mas claro, e ela entendeu bem. Como sempre.

– Faça isso, Jane. Observe.

Colocou a mão sobre os músculos do peitoral dele e desceu-a sentindo seu abdômen definido, ouvindo o arfar de sua respiração entre os dentes. Ao puxar o lençol, engoliu em seco quando viu o pênis ultrapassando a altura do punho, oferecendo-se com uma lágrima singela e cristalina.

Quando ela estendeu a mão para tocá-lo, ele agarrou seu pulso, segurando-a.

– Olhe para mim, Jane... – ele gemeu. – Mas não me toque.

Filho da mãe. Odiava quando fazia aquilo. Adorava também.

Vishous não a soltou enquanto trabalhava em sua ereção com a mão enluvada, seu corpo ficou tão lindo quando encontrou um ritmo para movimentar a palma. A luz das velas envolveu a cena em um tom de mistério, mas... era sempre assim com V. Nunca sabia o que esperar com ele e não só por ser o filho de uma divindade. Estava pronto para o sexo o tempo todo; era durão, astuto, depravado e exigente.

E sabia que conhecia apenas uma versão diluída dele.

Havia cavernas profundas em seu labirinto subterrâneo, as quais ela nunca tinha visitado e nem poderia fazer isso um dia.

– Jane... – disse ele asperamente. – Seja lá o que estiver pensando, deixe para lá... Fique comigo aqui e agora e não continue pensando assim.

Fechou os olhos. Sabia com quem tinha se casado e quem amava. Quando se comprometeu com ele para a eternidade, tinha plena consciência de todos os homens e mulheres com quem esteve e da maneira como os possuiu. Só nunca imaginou que aquele passado ficaria entre eles...

– Não estava com ninguém – sua voz era forte e decidida. – Naquela noite. Juro.

Os olhos de Jane se abriram. Ele parou de tocar a si mesmo e permaneceu deitado.

De repente, a visão dela ficou turva pelas lágrimas.

– Sinto muito – ela resmungou. – Só precisava ouvir isso. Confio em você, de verdade, mas eu...

– Shh... está tudo bem. Estendeu a mão enluvada e limpou a lágrima de seu rosto. – Está tudo bem. Por que não pergunta o que está acontecendo comigo?

– É errado.

– Não, eu é que estou errado. – Respirou fundo. – Passei a última semana tentando forçar as coisas a saírem da minha boca. Odeio essa droga, mas não sabia o que dizer para que as coisas não se tornassem piores.

De alguma maneira, ela estava surpresa com a compaixão e compreensão. Os dois eram tão independentes, e era por isso que o relacionamento funcionava: ele era reservado e ela não precisava de muito apoio emocional e, normalmente, aquela matemática somava muito bem. Porém, não naquela semana.

– Também sinto muito – ele murmurou. – E gostaria de ser um macho diferente.

De alguma forma, ela sabia que estava falando sobre muito mais do que sua natureza reservada.

– Não há nada que não possa falar comigo, V. – Quando tudo o que obteve como resposta foi um “hmmm”, ela disse: – Está muito estressado agora. Sei disso, e faria qualquer coisa para ajudá-lo.

– Eu amo você.

– Então, precisa conversar comigo. A única coisa que, com certeza, não vai funcionar é o silêncio.

– Eu sei. Mas é como observar um quarto escuro. Quero lhe dizer alguma coisa, mas não consigo... Não consigo entender nada do que sinto.

Ela acreditava nisso... e reconhecia que aquilo era algo com que as vítimas de abuso infantil tendem a lutar na idade adulta. O mecanismo de sobrevivência inicial que os ajudava a passar por tudo era a compartimentalização: quando tinham de lidar com coisas demais, dividiam o seu interior e armazenavam as emoções em um local muito, muito distante.

O perigo, claro, era a pressão invariavelmente construída sobre isso.

No entanto, ao menos o gelo entre eles fora quebrado, e encontravam-se naquele espaço calmo e semipacífico.

Como se tivessem vontade própria, os olhos de Jane repousaram sobre a ereção de V., que estava deitada sobre sua barriga e ia além de seu umbigo. De repente, o desejou tanto que mal conseguia falar.

– Possua-me, Jane – ele sussurrou. – Faça o que quiser comigo.

O que ela desejava fazer era chupá-lo e foi o que fez, curvando os quadris, tomando-o com sua boca, e sugando-o até o fundo de sua garganta. O som que reproduziu foi animalesco e seus quadris se ergueram, empurrando aquela extensão excitada do corpo dele contra seu rosto. Então, um dos joelhos dobrou-se de repente e já não estava apenas deitado, mas esparramado, quando se entregou a ela completamente, acariciando a parte de trás da cabeça de Jane enquanto encontrava um ritmo que o levasse...

O movimento do corpo dela era rápido e suave.

Com sua força tremenda, V. reposicionou-a em um piscar de olhos, girando-a e tirando os lençóis do caminho para que pudesse erguer seus quadris e colocá-la sobre o tronco dele. As coxas dela abriram-se diante de seu rosto e...

– Vishous – ela disse com os lábios sobre sua ereção.

A boca dele estava escorregadia, quente e direcionada bem ao alvo. Fundindo-se com o sexo dela, agarrou-a e sugou antes que a língua serpenteasse para fora e lambesse dentro dela. O cérebro dela não desligou, explodiu, e, sem nada para pensar, perdeu-se alegremente no que estava acontecendo agora e não no que tinha acontecido antes. Tinha a sensação de que V. sentia o mesmo... Ele acariciava, lambia e chupava, com as mãos entre suas coxas, enquanto gemia seu nome contra seu núcleo. Era difícil se concentrar no que ele fazia, pois estava fazendo o mesmo com ele. Sua ereção estava dura e quente em sua boca e havia puro prazer entre as pernas – aquelas sensações eram prova de que mesmo sendo um fantasma, suas reações físicas eram iguais às de quando estava “viva”.

– Dane-se, preciso de você – ele amaldiçoou.

Em outra rápida explosão de energia, Vishous ergueu-a como se não pesasse mais do que um lençol e a mudança de posição não foi uma surpresa. Ele sempre preferiu gozar dentro dela, bem em seu interior, e abriu-lhe bem as pernas antes de colocá-la sobre seus quadris e meter a cabeça arredondada... e penetrou profundamente.

A invasão não foi apenas sexo, ele a reivindicava e ela adorava isso. Era assim que tinha de ser.

Jogando-se para frente e apoiando-se sobre os ombros dele, olhou em seus olhos enquanto moviam-se juntos, o ritmo aumentava até que gozaram juntos – os dois ficaram rígidos quando ele ainda arremetia contra a fenda de Jane, e o sexo dela o banhou com o orgasmo. Então, V. virou-a para que ficasse com as costas sobre a cama e se abaixou, voltando para onde havia começado com a boca, fundindo-a sobre ela, segurando as coxas enquanto a chupava.

Quando ela gozou com força, não houve interrupção ou pausa. Ele continuou, estendendo as duas pernas de Jane, separando-as e penetrando-a com um golpe firme de língua. O corpo dele era uma máquina de movimentos intensos sobre o dela, o forte aroma de vinculação espalhou-se pelo quarto durante o orgasmo dele, a semana de abstinência transformou-se em pó durante aquela gloriosa transa.

Quando o orgasmo subiu-lhe como a lava de um vulcão, ela o observou enquanto gozava, amando todas as partes de seu corpo, mesmo aquelas que às vezes ela se esforçava para entender.

Então, ele continuou. Mais sexo. E ainda mais.

Quase uma hora depois, estavam finalmente saciados, deitados sem se moverem e respirando fundo à luz das velas.

Vishous rolou os dois pela cama, mantendo-os unidos e seus olhos percorreram o rosto dela por um longo momento.

– Não tenho palavras. Dezesseis línguas, mas nenhuma palavra.

Havia amor e desespero na voz dele. Ficava mesmo um tanto deficiente quando se tratava de emoções e o fato de se apaixonar não tinha mudado isso... ao menos, não quando as coisas mostravam-se tão estressantes como agora. Mas tudo bem... depois desse tempo que passaram juntos, estava tudo bem.

– Está tudo bem. – Ela beijou seu peito. – Eu compreendo você.

– Queria tanto que você não precisasse disso.

– Você me entende.

– Sim, mas você é fácil.

Jane se apoiou.

– Sou a aberração de um fantasma. No caso de ainda não ter notado. Não é algo com que os homens costumam se empolgar muito.

V. puxou-a para lhe dar um beijo rápido e firme.

– Mas eu a terei pelo resto da minha vida.

– Terá mesmo. – Afinal, seres humanos não duram um décimo do que vivem os vampiros.

Quando o alarme disparou ao lado deles, V. encarou a coisa.

– Agora sei por que durmo com uma arma debaixo do meu travesseiro.

Quando ele estendeu a mão para silenciar o relógio, ela teve de concordar.

– Sabe? Poderia simplesmente atirar nele.

– Não, Butch viria até aqui encher o saco, e não quero estar com uma arma em mãos se ele vir você nua.

Jane sorriu e deitou-se quando ele saiu da cama e andou até o banheiro. Na porta, parou e olhou sobre o ombro.

– Eu vim ficar com você, Jane. Vim e fiquei com você todas as noites dessa semana. Não queria que ficasse sozinha, e não queria dormir sem você.

Com isso, entrou no banheiro e, momentos depois, ela ouviu o chuveiro ser aberto.

Ele era melhor com as palavras do que imaginava.

Espreguiçando-se satisfeita, sabia que tinha de levantar e se arrumar também... estava na hora de liberar Ehlena de seu turno na clínica. Cara, gostaria de ficar ali a noite toda. Talvez apenas um pouco mais...

Vishous saiu dez minutos depois para encontrar-se com Wrath e a Irmandade, e beijou-a quando estava saindo. Duas vezes.

Saindo da cama, ela usou o banheiro e, depois, foi até o armário e abriu as portas duplas. Pendurado no guarda roupas havia peças de couro... dele; blusas brancas simples... dela; jalecos brancos... dela; e jaquetas de motoqueiro... dele. As armas estavam trancadas num cofre à prova de fogo e os sapatos, no chão.

De muitas maneiras, sua vida era incompreensível. Uma fantasma casada com um vampiro? Até parece.

Mas olhando para aquele armário tão agradável e organizado, com suas vidas loucas repousando ali dentre as roupas e sapatos tão bem posicionados, sentiu-se bem sobre onde estavam. Ser “normal” não era tão ruim naquele mundo maluco; não era mesmo. Não importava como tal conceito passara a ser definido.


CAPÍTULO 18

No centro de fisioterapia da clínica, Payne estava fazendo seus exercícios – era assim que gostava de pensar que eram.

Deitada na cama do hospital com travesseiros apoiando a lateral de seu corpo, ela cruzou os braços sobre o peito e contraiu o estômago, puxando o tronco para cima em uma subida lenta. Quando colocou-se perpendicular ao colchão, esticou os braços e os manteve assim enquanto se deitava.

Depois de apenas uma sequência, seu coração estava batendo forte e sua respiração estava curta, mas permitiu-se apenas um breve momento para se recuperar e repetiu. E repetiu. E repetiu.

O esforço ficava cada vez mais exaustivo, até que o suor brotou em sua testa e os músculos de seu estômago começaram a doer. Jane havia lhe mostrado como fazer aquilo e acreditava ser algo bom... contudo, comparado com o que era capaz de fazer, isso era uma faísca em relação a uma fogueira.

De fato, Jane tentou que fizesse muito mais... trouxera até uma cadeira de rodas para ela se sentar e se locomover, mas Payne não conseguia suportar a visão da coisa ou a ideia de passar a vida “rolando” de um lugar a outro.

Na última semana, fechara sumariamente todas as avenidas da acomodação na esperança de um único milagre... que nunca se concretizou.

Parecia que séculos haviam se passado desde que havia lutado com Wrath... desde que havia conhecido a coordenação e força de seus membros. Havia tomado tanta coisa por certa e agora sentia falta de quem tinha sido, com uma tristeza que achava só ser possível expressar pelos que falecem.

Então, achou que tinha morrido. Seu corpo apenas não foi inteligente o suficiente para parar de funcionar.

Com uma maldição no Antigo Idioma, caiu para trás e permaneceu ali deitada. Quando foi capaz, encontrou a tira de couro que havia amarrado embaixo das coxas. A coisa estava muito apertada, sabia que prendia sua circulação, mas não sentia nem o aperto do laço, nem o doce alívio quando soltou o fecho e o couro pulou solto.

Tinha sido assim desde a noite que havia retornado àquele local.

Nenhuma mudança.

Fechando os olhos, entrou outra vez em uma guerra interna, depois que seus medos lançaram as espadas contra sua mente e os resultados foram ainda mais trágicos. Após sete ciclos de dias e noites, seu exército de racionalidade estava sofrendo pela falta de munição e por uma fadiga profunda. Assim, a maré estava virando. Primeiro, tinha sido impulsionada pelo otimismo, mas ele havia desaparecido; depois, houve um período de resoluta paciência, que não durou muito. Desde então, permanecia naquela estrada árida de esperanças infundadas.

Sozinha.

Na verdade, a solidão era a pior parte da provação: estava completamente separada de todas as pessoas que eram livres para ir e vir, dentro e fora do quarto, mesmo quando elas se sentavam e conversavam com ela ou atendiam as suas necessidades básicas. Confinada àquela cama, estava em outro plano da realidade deles, separados por um deserto vasto e invisível que conseguia visualizar claramente, mas era incapaz de atravessá-lo.

E era estranho. Tudo o que tinha perdido aguçava-se ainda mais quando pensava em seu curandeiro humano... algo tão frequente que não conseguia mais enumerar a quantidade de vezes que havia acontecido.

Oh, como sentia falta daquele homem. Muitas foram as horas que havia passado lembrando-se da sua voz, de seu rosto e daquele último momento entre eles... até as memórias transformarem-se em um cobertor com o qual se aquecia durante os longos e frios momentos de temores e preocupações.

Infelizmente, porém, muito parecido com o que aconteceu com seu lado racional, aquele cobertor foi se desgastando por excesso de uso e não havia como repará-lo.

Seu curandeiro não pertencia ao seu mundo e jamais retornaria... não foi nada além de um sonho breve e vívido, que se desintegrara em filamentos e fragmentos agora que havia acordado.

– Chega – disse a si mesma em voz alta.

Tentando manter-se com a força da parte superior do corpo, virou-se para o lado em direção aos dois travesseiros, lutando contra o peso morto que era a parte inferior do corpo enquanto se esforçava para...

O equilíbrio falhou por um momento e a fez cambalear mesmo estando de bruços, seu braço derrubou o copo de água que havia na mesa próxima a ela.

E, infelizmente, aquele não era um objeto adequado para impacto.

Quando se quebrou, Payne fechou a boca, que era a única maneira que conhecia para manter seus gritos dentro dos pulmões. Caso contrário, violariam o selo de seus lábios e não cessariam.

Quando achou que já dispunha de autocontrole suficiente, olhou para a lateral da cama em direção à bagunça no chão. Normalmente, seria uma coisa simples... algo foi derramado, alguém limparia.

Antes, tudo o que teria feito seria curvar-se e dar um jeito naquilo.

Agora? Tinha duas escolhas: ficar deitada ali e pedir ajuda como uma inválida. Ou pensar, elaborar uma estratégia e fazer uma tentativa de ser independente.

Levou um tempo para descobrir os pontos de apoio para suas mãos e, então, avaliar a distância até o chão. Felizmente, havia sido desconectada de todos os plugues que havia em seu braço, mas um cateter ainda permanecia... então, talvez, fazer aquilo sozinha fosse uma má ideia.

Ainda assim, não conseguia suportar a indignidade de ficar ali deitada. Tinha sido uma guerreira; agora, era uma criança incapaz de cuidar de si mesma.

Era insuportável.

Pegando alguns lenços de papel “Kleenex”, como as pessoas os chamavam, baixou a grade da cama, agarrou a parte de cima e curvou-se sobre a lateral do corpo. A torção fez com que suas pernas sacudissem como as de uma marionete, um movimento muito sem graça, mas, ao menos, conseguiu alcançar o chão liso com a coisa branca e macia na palma da mão.

Ao se estender, tentando manter o precário equilíbrio na beirada da cama, sentiu-se cansada de ter assistência para tudo, ser cuidada, lavada e enrolada como um bebê recém-chegado ao mundo.

Seu corpo foi em direção ao vidro.

Sem perceber, escorregou a mão da aderência lisa da grade e com os quadris tão longe do colchão caiu de cabeça no chão, a força da gravidade foi muito forte para que pudesse vencê-la. Lançando as mãos para se apoiar, foi surpreendida pelo chão molhado, suas palmas escorregaram para baixo de seu corpo, que vacilou, e ela sentiu a força do impacto na lateral do rosto, a respiração explodiu em seus pulmões.

Então, não havia movimento.

Estava presa, a cama apoiando seus membros inúteis, colocando o tronco e a cabeça sobre os braços, esmagando-os contra o chão.

Puxando o ar em sua garganta, gritou:

– Socorro... socooorro...

Com o rosto espremido, os braços começando a ficar dormentes e os pulmões queimando por asfixia, a raiva acendeu dentro de si até seu corpo estremecer...

Primeiro veio um chiado. Em seguida, o barulho transformou-se em movimento quando seu rosto começou a escorregar sobre o ladrilho, a pele ficou tão tensa e fina que parecia estar sendo descascada. E, então, a pressão cresceu em sua nuca, a grossa trança puxava sua cabeça para trás ao mesmo tempo em que a estranha posição levava-a para frente.

Reunindo todas as forças, decidiu concentrar a raiva e manobrou os braços para que as mãos voltassem a espalmar sobre o chão. Após inalar o ar com força, empurrou e conseguiu girar o corpo para ficar de costas para cima...

A trança de cabelos caiu entre os suportes da grade da cama e prendeu-se com força ali, a espessa extensão manteve-a no lugar, enquanto repuxava dolorosamente do pescoço ao ombro. Presa e sem poder ir a lugar algum, poderia ver apenas suas pernas de onde estava, suas longas e esbeltas pernas sobre as quais nunca havia dispensado qualquer atenção.

Quando o sangue foi se acumulando gradualmente em seu tronco, observou a pele de suas panturrilhas ficarem brancas como papel.

Com os punhos fechados, enviou o comando para que os dedos dos pés se movessem.

– Maldição... mexa-se... – teria fechado os olhos para se concentrar, mas não queria perder o milagre caso acontecesse.

Não aconteceu.

Não tinha acontecido antes.

E estava começando a perceber que... não aconteceria.

Quando as unhas dos pés foram do rosa ao cinza, soube que tinha de entrar em um acordo com sua situação. E aquela parecia uma boa analogia para sua posição física atual.

Quebrada. Inútil. Um peso morto.

O colapso que finalmente se seguiu não trouxe consigo lágrimas ou soluços. Em vez disso, o estalo foi demarcado por uma sombria decisão.

– Payne!

Ao som da voz de Jane, fechou os olhos. Não era o salvador que desejava. Seu irmão... precisava do seu irmão gêmeo para fazer o que tinha de ser feito.

– Por favor, chame Vishous – disse com voz rouca. – Por favor.

A voz de Jane chegou bem perto.

– Vamos erguê-la do chão.

– Vishous.

Houve um clique e soube que o alarme que tinha sido incapaz de alcançar havia sido acionado.

– Por favor – ela gemeu. – Chame o Vishous.

– Vamos...

– Vishous.

Silêncio. Até que a porta foi aberta.

– Ajude-me, Ehlena – ouviu Jane dizer.

Payne tinha consciência de que sua boca estava se movendo, mas ficou surda quando as duas fêmeas ergueram suas costas até a cama e as pernas foram reinstaladas, alinhando-as paralelamente entre si, antes de cobri-las com lençóis brancos.

Enquanto diversos esforços de limpeza aconteciam tanto sobre a cama quanto no chão, Payne concentrou-se do outro lado do quarto, na parede branca, que havia encarado durante uma eternidade desde que tinha sido transferida para aquele espaço.

– Payne?

Quando não respondeu, Jane repetiu:

– Payne. Olhe para mim.

Moveu os olhos e não sentiu nada ao observar o rosto preocupado da shellan de seu irmão gêmeo.

– Preciso do meu irmão.

– Claro, vou buscá-lo. Está em uma reunião agora, mas vou fazer com que venha até aqui antes de sair. – Houve uma longa pausa. – Posso perguntar por que deseja vê-lo?

As palavras firmes e equilibradas diziam-lhe claramente que a boa curandeira não era boba.

– Payne?

Payne fechou os olhos com força e ouviu-se dizer:

– Ele me fez uma promessa quando tudo isso começou, e preciso que ele a cumpra.

Apesar de ser um fantasma, o coração de Jane ainda era capaz de parar dentro do peito, e quando se inclinou sobre a beirada da cama hospitalar, não havia nada se movendo por trás de sua caixa torácica.

– Que promessa foi essa? – questionou sua paciente.

– É um problema que diz respeito apenas a nós dois.

Até parece, Jane pensou, concluindo que estava entendendo direito.

– Payne, deve haver mais alguma coisa que possamos fazer.

Porém não fazia ideia do que seria. As radiografias mostravam que os ossos foram alinhados da maneira adequada, as habilidades de Manny consertaram tudo perfeitamente; no entanto, a espinha dorsal... essa era a parte imprevisível, um coringa. Tinha esperança de que alguma regeneração dos nervos fosse possível... ainda estava aprendendo sobre as capacidades físicas dos vampiros, muitas delas pareciam pura mágica comparadas com o que os humanos desempenhavam em termos de cura.

Mas estavam sem sorte; aquele não era o caso.

E não precisava ser um gênio para descobrir o que Payne estava buscando.

– Seja honesta comigo, shellan do meu irmão gêmeo. – Os olhos de cristal de Payne fixaram-se nos de Jane. – Seja honesta consigo mesma.

Se havia uma coisa que Jane odiava por ser médica era que lhe pedissem uma opinião subjetiva. Havia muitos incidentes mesmo quando a situação estava clara: um cara aparece na emergência com a mão arrancada dentro de uma bolsa de gelo e um torniquete ao redor do braço? Era preciso religar o membro e colocar os nervos de volta onde precisavam estar. Uma mulher em trabalho de parto com uma ocorrência anterior por problemas com o cordão umbilical do bebê? Cesariana. Fratura exposta? Abrir o local e consertar o ligamento.

Mas nem tudo era tão “simples”. Geralmente, a névoa cinzenta do “talvez isso”, “talvez aquilo” aproximava-se, e Jane tinha de encarar a situação nublada e obscura...

Oh, a quem ela estava enganando?

O aspecto clínico daquela equação tinha chegado a um resultado correto. Só não queria acreditar na resposta.

– Payne, deixe-me buscar Mary...

– Não queria falar com a fêmea conselheira há duas noites e não desejo falar com ela agora. Está acabado para mim, curandeira. E por mais que me doa chamar meu irmão gêmeo, por favor, vá e traga-o aqui. É uma boa fêmea e não é você que deve enfrentar isso.

Jane olhou para suas mãos. Nunca usou-as para matar. Nunca. Era um ato antiético não apenas com relação a sua vocação e compromisso profissional como também a seus valores pessoais.

E, ainda assim, enquanto pensava sobre seu hellren e o tempo que passaram juntos após acordar com ele, sabia que não poderia permitir que viesse até ali e fizesse o que Payne queria: Vishous havia dado um pequeno passo na direção oposta do precipício no qual estava prestes a se jogar e não havia nada que Jane não faria para impedi-lo de voltar àquele limite.

– Não posso buscá-lo – ela disse. – Desculpe. Mas simplesmente não vou colocá-lo nessa situação.

O gemido que surgiu da garganta de Payne era o desespero em seu coração que criava asas e começava a ser libertado.

– Curandeira, essa é a minha escolha. Minha vida. Não sua. Deseja ser uma verdadeira salvadora, então, faça parecer um acidente ou consiga-me uma arma e eu mesma faço isso. Mas não me deixe neste estado. Não consigo suportar e não vai fazer bem algum a sua paciente se eu continuar assim.

De alguma maneira, Jane sabia que isso aconteceria. Tinha visto claramente nas sombras pálidas sobre as imagens escuras da radiografia, aquelas que lhe deveriam dizer que tudo estava dando certo... e que, se não estivesse, a coluna vertebral tinha sido lesionada de forma irreparável.

Observou aquelas pernas tão imóveis sob o lençol e pensou sobre o juramento de Hipócrates que havia feito anos atrás: “Nunca causar dano ou mal a alguém” era o primeiro mandamento.

Era difícil achar que Payne não estava sendo prejudicada sendo mantida daquela maneira... especialmente porque não quis seguir o procedimento em um primeiro momento. Jane tinha sido a única a insistir por uma alternativa de salvação, transferindo seus motivos para a fêmea... e com V. foi a mesma coisa.

– Encontrarei um jeito – Payne disse. – De alguma forma, encontrarei um jeito.

Difícil não acreditar.

E havia uma grande chance de sucesso se Jane a ajudasse... Payne estava fraca e qualquer arma em sua mão seria um desastre esperando para acontecer.

– Não sei se consigo fazer isso – as palavras deixaram a boca de Jane lentamente. – Você é irmã dele. Não sei se ele me perdoaria.

– Ele não precisa saber.

Deus, que situação difícil. Se fosse ela presa naquela cama, sentiria a mesma coisa que Payne e gostaria que alguém executasse sua última vontade. Mas e o fardo de manter algo daquela magnitude oculto de V.? Como poderia fazer isso?

Só que... a única coisa pior do que isso seria se ele não voltasse daquele lado obscuro que havia dentro dele. E matar sua irmã? Bem, era como um trem expresso com destino ao que ele costumava fazer, não?

A mão de sua paciente encontrou a dela.

– Ajude-me, Jane. Ajude-me...

Quando Vishous deixou a reunião noturna com a Irmandade e dirigiu-se para a clínica no centro de treinamento, sentia-se mais como ele mesmo... e não no mau sentido. O sexo com sua shellan era uma missão importante para os dois, uma maneira de reiniciar tudo e não se limitava à questão física.

Deus, era muito bom ter voltado a se acertar com sua fêmea. Sim, claro, ainda havia problemas esperando por ele... e, bem, droga... quanto mais próximo chegava da clínica, mais o manto de estresse retornava, atingindo seus ombros como um par de carros: havia visitado sua irmã no começo de cada noite e, depois, novamente, ao amanhecer. Nos primeiros dias, houve muita esperança, mas agora... a maior parte daquele sentimento havia passado.

Entretanto, não importava. Ela precisava sair daquele quarto e era isso o que ele faria naquela noite. Estava fora da escala de trabalho e daria um passeio com ela pela mansão para mostrar que havia algo diferente além da gaiola branca de uma sala de recuperação para se viver.

Ela não estava melhorando fisicamente; então, a parte psicológica seria o que a levaria adiante. Tinha de levar.

Moral da história? Não estava preparado para perdê-la agora. Sim, esteve perto dela por uma semana, mas não significava que a conhecia melhor do que quando tudo começou... e achava que precisavam um do outro. Ninguém mais constituía a descendência direta daquela maldita divindade que era a mãe deles e, talvez, juntos pudessem resolver todas as porcarias que acompanhavam o nascimento dos dois. Pelo amor de Deus, não era como se houvesse uma sequência de estágios que ensinasse a ser filho da Virgem Escriba:

Oi, meu nome é Vishous. Sou filho da Virgem Escriba há trezentos anos.

OI, VISHOUS.

Ela me ferrou outra vez e estou tentando não ir até o Outro Lado para gritar e cometer um assassinato sangrento contra ela.

NÓS ENTENDEMOS, VISHOUS.

E por falar em sangue, gostaria de desenterrar meu pai e matá-lo outra vez, mas não posso. Então, vou apenas tentar manter minha irmã viva, mesmo estando paralisada, e tentar lutar contra o impulso de buscar um pouco de dor para conseguir lidar melhor com a dor dela.

VOCÊ É UM COVARDE, VISHOUS, MAS APOIAMOS ESSE SEU JEITO PATÉTICO.

Saindo do túnel e entrando no escritório, cruzou a porta de vidro e, então, caminhou a passos largos pelo corredor. Quando passou pela sala de exercícios, ouviu que alguém estava correndo como se os tênis estivessem pegando fogo, mas, fora isso, não havia ninguém por ali... e tinha a impressão de que Jane ainda deveria estar na cama, descansando, após ter cuidado muito bem dela.

Algo que deu ao macho vinculado nele uma boa dose de satisfação. De verdade.

Quando chegou à sala de recuperação, não bateu, mas...

Quando entrou, a primeira coisa que viu foi a agulha hipodérmica. A segunda visão foi de que o objeto estava sendo trocado de mãos, passando das de sua shellan e para as de sua irmã gêmea.

Não havia um motivo terapêutico para isso.

– O que está fazendo? – ele suspirou, subitamente aterrorizado.

A cabeça de Jane girou, mas Payne não olhou para ele. Seu olhar estava fixo na agulha, como se fosse a chave para o cadeado de sua cela.

E com certeza aquilo lhe ajudaria a sair daquela cama... direto para um caixão.

– Que diabos está fazendo? – Não era uma pergunta. Ele já sabia.

– É minha escolha – Payne disse severamente.

Sua shellan o encarou.

– Sinto muito, V.

Uma névoa branca nublou sua visão, mas não fez nada para reduzir a velocidade do seu corpo ao se lançar para frente. Quando alcançou a beirada do leito, seus olhos clarearam e viu que sua mão enluvada agarrava com força o punho de sua shellan.

Seu toque da morte era a única coisa que mantinha sua irmã distante da morte. E dirigiu-se a ela, não a sua companheira.

– Não ouse fazer isso!

Os olhos de Payne estavam furiosos ao encontrar os dele.

– Você que não ouse!

V. recuou por um momento. Havia olhado no rosto de muitos inimigos, descartado muitos submissos sexuais e esquecido muitos amantes, tanto machos quanto fêmeas, mas nunca tinha visto um ódio tão profundo antes.

Nunca.

– Não é meu deus! – ela gritou para ele. – Não é nada além de meu irmão! E não vai mais me acorrentar neste corpo como nossa mahmen faria!

A fúria dos dois era tanta que, pela primeira vez na vida, havia perdido. Afinal, não fazia sentido entrar em conflito se seu oponente tinha força equivalente à sua.

O problema era que, se saísse de campo agora, voltaria para um funeral.

V. queria andar ao redor da sala para diminuir sua irritação, mas estaria perdido se se afastasse por um décimo de segundo sequer.

– Quero duas horas – ele disse. – Não posso detê-la, mas posso pedir que me dê cento e vinte minutos.

Os olhos de Payne se estreitaram.

– Para quê?

Ia fazer algo que seria inconcebível quando toda aquela coisa começou. Mas aquilo era um tipo de guerra e, consequentemente, não tinha como se dar ao luxo de escolher as armas... tinha de usar o que estava disponível em suas mãos, mesmo que odiasse a ideia.

– Vou lhe dizer exatamente o motivo. – V. tirou a agulha das mãos de Jane. – Vai fazer isso para que a culpa não me assombre pelo resto da minha maldita vida. O que acha desse motivo? Bom o suficiente?

As pálpebras de Payne cederam e houve um longo silêncio, interrompido quando ela disse:

– Vou lhe dar o que me pede, mas não vou mudar de ideia com relação a permanecer nesta cama. Certifique-se de suas expectativas antes de continuar... e fique ciente de que não vai adiantar argumentar com nossa mahmen. Não vou trocar essa prisão por outra ao lado dela, no mundo dela.

Vishous enfiou a agulha no bolso e desembainhou a faca de caça que ficava permanentemente presa ao cinto de sua calça de couro.

– Dê-me sua mão.

Quando ela a ofereceu, ele cortou a palma da mão com a lâmina e fez o mesmo com a própria carne. Então, V. uniu as feridas.

– Jure. Pelo sangue que compartilhamos, fará um juramento a mim.

A boca de Payne se contraiu como se, mais uma vez, ela tivesse sorrido se fosse uma circunstância diferente.

– Não confia em mim?

– Não – disse ele com voz rouca. – Nem um pouco, querida.

Um pouco depois, a mão dela agarrou a dele e um brilho de lágrimas formou-se sobre seus olhos.

– Eu juro.

Os pulmões de Vishous relaxaram e ele respirou fundo.

– Muito bem.

Soltou a mão, virou-se e caminhou até a porta. Assim que chegou ao corredor, não perdeu tempo ao se dirigir para o túnel.

– Vishous.

Ao som da voz de Jane, volveu-se e quis soltar um palavrão. Balançando a cabeça, disse:

– Não me siga, não ligue para mim. Nada de bom vai sair de mim se ouvir sua voz neste momento.

Jane cruzou os braços sobre o peito.

– Ela é minha paciente, V.

– Ela é meu sangue, Jane. – Frustrado, golpeou o ar com a mão. – Não tenho tempo para isso. Estou saindo.

Com isso, começou a correr. Deixando-a para trás.


CAPÍTULO 19

Quando Manny chegou em casa, fechou a porta, trancou... e ficou ali. Como uma peça da mobília. Com sua maleta na mão.

É incrível como, quando você enlouquece, sente que não consegue lidar com as opções do que fazer. Sua vontade não havia mudado; ainda queria assumir o controle de si mesmo... não importava o que estivesse acontecendo em sua vida. Mas não havia nada em que se agarrar, nada de rédeas naquela fera.

Droga, deveria ser assim que os pacientes de Alzheimer sentiam-se: a personalidade e o intelecto estavam intactos... mas estavam cercados por um mundo que não fazia mais sentido, pois não podiam se firmar nas memórias, associações e inferências.

Estava tudo ligado àquele final de semana... ou, ao menos, havia começado ali. Mas o que tinha mudado exatamente? Perdeu, no mínimo, a memória de uma daquelas noites, era só isso que podia dizer. Lembrou-se da pista de corrida, da queda de Glory e do veterinário. Em seguida, a viagem de volta a Caldwell, quando ele foi ao...

O prévio aviso de uma dor de cabeça surgindo fez com que xingasse e desistisse.

Andando até a cozinha, soltou a maleta e começou a encarar a cafeteira. Deixou-a ligada ao sair para o hospital. Ótimo. Seu café matinal ficou fervendo a noite inteira e era um milagre não ter queimado a droga do apartamento inteiro.

Sentando-se em uma das banquetas ao redor do balcão de granito, encarou a parede de vidro a sua frente. A cidade do outro lado da varanda brilhava como uma dama indo ao teatro com todos os seus diamantes; as luzes nos arranha-céus cintilavam e faziam com que ele se sentisse real e verdadeiramente sozinho.

Silêncio. Vazio.

O apartamento parecia-se mais com um caixão.

Deus, se não pudesse mais operar, o que faria...

A sombra surgiu do nada em seu terraço. Só que não era uma sombra... não havia nada translúcido na coisa. Era como se as luzes, as pontes e os arranha-céus fossem uma pintura em que alguém havia cortado um buraco no meio.

Um buraco que assumia a forma de um homem grande.

Manny levantou-se da banqueta, olhos fixos na figura. No fundo de sua mente, na sede de seu tronco cerebral, sabia que aquela era a causa de tudo, seu “tumor” estava ali, em pé, e caminhava... vindo até ele.

Como se tivesse sido convidado, aproximou-se e abriu a porta corrediça de vidro; o vento atingiu seu rosto com força, seu cabelo foi jogado para trás.

Estava frio. Oh, muito frio... mas o choque álgido não se devia apenas à noite gelada de abril. A baixa temperatura emanava da figura que permanecia em pé, imóvel e letal, a alguns metros de distância dele. Tinha a nítida impressão de que a explosão ártica era porque o filho da mãe vestido com roupas de couro o odiava demais; mas Manny não tinha medo. A resposta para o que estava acontecendo com ele estava ligada àquele homem enorme que havia aparecido do nada, a uns vinte andares acima do chão...

Uma fêmea... uma com cabelos escuros trançados... esse era o...

A dor de cabeça o impactou com força, atingindo-o na nuca e penetrando em direção ao crânio para golpear com força seu maldito lóbulo frontal.

Quando seu corpo cedeu, precisou apoiar-se na borda do balcão da cozinha e perdeu a paciência.

– Caramba, pelo amor de Deus, não fique aí parado. Fale comigo ou me mate, mas faça alguma coisa.

Mais vento no rosto.

E, então, uma voz profunda:

– Não deveria ter vindo aqui.

– Sim, deveria – Manny gemeu de dor. – Por que estou enlouquecendo e você sabe disse, não é? Que diabos fez comigo?

Aquele sonho... com a mulher que desejava, mas não conseguia ter...

Os joelhos de Manny começaram a falhar, mas para o inferno com isso.

– Leve-me até ela... e não brinque comigo. Sei que ela existe... Consigo vê-la todas as noites em meus sonhos.

– Não gosto nada disso.

– Sim, e eu estou curtindo uma festa aqui. – O filho da mãe ficou em silêncio. Quando percebeu que havia a possibilidade do bastardo misterioso agredi-lo, posicionou-se; Manny ia investir contra o cara e faria algum estrago nele. Ele certamente seria estraçalhado, mas não deixaria que ele o derrubasse sem lutar.

– Vamos lá – Manny disparou. – Faça isso.

Houve uma risada contida.

– Você me faz lembrar um amigo meu.

– Quer dizer que há outro idiota perdido na vida por sua causa? Ótimo. Podemos iniciar um grupo de apoio.

– Maldição...

O cara ergueu uma das mãos e então... as memórias explodiram na mente de Manny e fluíram através de seu corpo, as imagens e sons de seu fim de semana perdido voltaram com uma vingança.

Tropeçando para trás, colocou as mãos na cabeça.

Jane. Um local secreto. Cirurgia.

Vampira.

Um punho de ferro em seus bíceps foi tudo o que o impediu de cair no chão, o irmão de sua paciente o segurava.

– Precisa vir e cuidar da minha irmã. Ela vai morrer se não fizer isso.

Manny respirou pela boca e engoliu em seco. A paciente... sua paciente...

– Ela ainda está paralisada? – ele gemeu.

– Sim.

– Leve-me – exclamou. – Agora.

Se fosse o caso da medula espinhal ter sofrido um dano permanente, não havia nada clinicamente possível a fazer por ela, mas isso não importava. Tinha de vê-la.

– Onde está seu carro? – o filho da mãe de cavanhaque perguntou.

– Lá embaixo.

Manny desvencilhou-se e correu em direção à maleta. Havia deixado as chaves sobre o balcão da cozinha. Quando tropeçou e caiu, seu cérebro ficou confuso de uma maneira que o aterrorizou. Se houvesse mais um pouco desse “liga e desliga” de sua placa-mãe mental ia acabar sofrendo prejuízos permanentes. Mas essa era uma discussão para outro momento.

Tinha de ir até sua fêmea.

Quando alcançou a porta da frente, o vampiro estava bem atrás dele e Manny trocou suas coisas para a mão esquerda.

Com um giro rápido, lançou seu punho direito, que se encaixou em um arco perfeitamente calculado para golpear o queixo do cara.

Crack. O impacto foi sólido e a cabeça do desgraçado foi arremessada para trás.

Quando o vampiro voltou a olhar para ele e levantou o canto da boca em um rosnado, Manny não se intimidou.

– Isso é por brincar comigo.

O macho passou as costas da mão pela boca sangrenta.

– Belo gancho.

– Está à disposição – Manny disse ao sair do apartamento.

– Eu poderia tê-lo impedido a qualquer momento. Só para deixar claro.

Verdade, sem dúvida.

– Sim, mas não foi o que fez, certo? – Manny caminhou até o elevador, pressionou o botão para descer e olhou sobre o ombro. – Assim, isso faz de você um idiota ou um masoquista. A escolha é sua.

O vampiro se aproximou.

– Cuidado, humano... só está vivo por ser útil para mim.

– Ela é sua irmã?

– Não se esqueça disso.

Manny sorriu mostrando todos os dentes.

– Então, tem uma coisa que precisa saber.

– O quê?

Manny ergueu-se sobre os dedos dos pés e encarou o filho da mãe olho no olho.

– Se pensa que quer me matar agora, não é nada comparado ao que vai sentir quando eu a vir outra vez.

Estava praticamente rijo só de pensar na fêmea.

Com um sinal sonoro, as portas duplas do elevador se abriram e, então, ele avançou, entrou e virou-se. Os olhos do vampiro eram como lanças procurando um alvo, mas Manny minimizou a agressão.

– Só para que saiba a minha situação. Agora, entre no elevador ou desapareça como um fantasma até a rua. Pego você com o carro lá embaixo.

– Deve achar que sou um idiota, não é mesmo? – o vampiro rosnou.

– Na verdade, nem um pouco.

Pausa.

Depois de um momento, o vampiro resmungou alguma coisa e deslizou para dentro do elevador quando as portas começaram a se fechar. Então, os dois simplesmente ficaram lado a lado, observando a contagem regressiva dos números sobre as portas duplas...

Cinco... quatro... três... dois...

Como a contagem regressiva para uma explosão.

– Cuidado, humano. Não sou alguém a quem você queira pressionar.

– Não tenho nada a perder – A não ser a irmã daquele desgraçado enorme. – Acho que vamos ter que esperar para ver onde isso vai acabar.

– É isso aí.

Payne parecia um bloco de gelo sombrio enquanto encarava o relógio que havia próximo à porta do quarto. A face circular do aparelho era tão plana quanto a parede branca atrás dele, sem marcar nada além de doze números pretos separados por linhas pretas. As hastes do aparelho, uma negra e outra vermelha, percorriam seu caminho como se estivessem entediadas com aquele serviço, assim como ela estava ao observá-los trabalhando.

Vishous deve ter ido ver sua mãe. Onde mais iria?

Portanto, era uma perda de tempo. Com certeza, ele voltaria sem nada. Era pura arrogância pensar que “Aquela que não Podia ser Influenciada” se abalaria minimamente com os apuros pelos quais seus filhos passavam.

Mãe da raça. Que asneira...

Payne franziu a testa. O som começou do nada, com um ritmo fraco, mas, rapidamente, ficou mais alto. Passos. Passos pesados percorrendo o chão duro em ritmo acelerado, e havia dois pares de pés se aproximando.

Talvez não fosse ninguém além dos Irmãos de seu gêmeo vindo lhe fazer uma visita...

Quando a porta se abriu, tudo o que conseguiu ver foi Vishous em pé, muito alto e intransigente.

– Trouxe uma coisa para você.

Ele não chegou a se afastar, foi empurrado...

– Querida Virgem Escriba... – a boca de Payne se abriu, enquanto as lágrimas transbordavam de seus olhos.

Seu curandeiro irrompeu no quarto e, oh, era exatamente como se lembrava... peitoral largo, membros alongados, abdômen liso e um maxilar bem definido. Seu cabelos escuros estavam esticados, como se tivesse passado os dedos entre eles várias vezes, e estava respirando com dificuldade, a boca um pouco entreaberta.

– Eu sabia que você era real – ele desabafou. – Caramba, eu sabia!

A visão dele disparou algo nela, uma energia iluminou-a de dentro para fora, lançando suas emoções em queda livre.

– Curandeiro... – disse ela com voz rouca. – Meu curandeiro...

– Que inferno... – ouviu seu irmão dizer.

O humano de Payne virou-se para Vishous.

– Precisamos de um pouco de privacidade. Agora.

– Cuidado com essa maldita boca...

– Sou o médico dela. Você me trouxe aqui para que eu a avalie clinicamente...

– Não seja ridículo.

Houve uma pausa.

– Então, por que diabos estou aqui?

– Pelo exato motivo que eu lhe odeio, é por isso!

Aquilo provocou um grande silêncio... seguido por um soluço de Payne. Ela estava tão feliz em ver seu curandeiro em carne e osso. E aquele único suspiro fez a cabeça dos dois girarem em sua direção, o rosto do curandeiro mudou instantaneamente, passando da fúria à preocupação.

– Feche a porta quando sair – vociferou por cima do ombro enquanto se aproximava dela.

Passando as mãos sobre os olhos, Payne limpou suas lágrimas e observou seu curandeiro sentar-se ao lado da cama. Vishous tinha se virado e ia em direção à saída.

Ele sabia, ela pensou. Mais do que qualquer coisa que a mãe deles pudesse fazer por ela, trouxe a única coisa que garantiria seu desejo de continuar viva.

– Obrigada, meu irmão – ela disse, o olhar fixo nele.

Vishous parou. A tensão nele era tão grande, os dois punhos estavam fechados, e quando sua cabeça virou-se lentamente, seus olhos glaciais queimavam.

– Faria qualquer coisa por você. Qualquer coisa.

Com isso, continuou a sair... e quando a porta foi fechada com cuidado, percebeu que “Eu amo você” poderia ser dito sem que tal frase fosse pronunciada.

Ações significavam mais do que palavras.

 


                                           CONTINUA