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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE LIBERTADA
AMANTE LIBERTADA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)


CONTINUA

CAPÍTULO 7

Enquanto Payne permanecia deitada sobre a mesa de metal e sob a estranha lâmpada que a iluminava, não conseguia acreditar que seu curandeiro era um humano.

– Entende o que estou dizendo? – Sua voz era muito profunda e seu sotaque estranho, mas já tinha ouvido antes: a companheira de seu irmão gêmeo tinha a mesma entonação e inflexão. – Vou começar a...

Enquanto falava com ela, inclinou-se para alcançar seu campo de visão, e ela gostou quando fez isso. Seus olhos eram castanhos, mas não o castanho de uma casca de carvalho ou de um couro velho ou da pele de um veado. Tinham uma bela sombra avermelhada, como o mogno polido... e era tão brilhante quanto, arriscaria dizer.

Houve uma enxurrada tamanha de acontecimentos desde sua chegada. Uma coisa ficou clara: sabia muito bem dar ordens e era bastante confiante no trabalho que fazia. Na verdade, também havia alguma coisa além disso... não se importava por seu irmão ter contraído um ódio instantâneo por ele.

Se o aroma de vinculação de Vishous ficasse ainda mais forte, seria possível enxergá-lo no ar.

– Está entendendo?

– As orelhas dela são pequenas demais.

Payne olhou o máximo que pôde em direção à porta. Vishous tinha voltado e suas presas estavam expostas como se estivesse preste a atacar. Felizmente, havia um macho ao lado dele que o detinha, como se estivesse segurando uma coleira forte: se o irmão dela fosse atacá-lo, era evidente que aquele homem de cabelos escuros estava preparado para conter Vishous e arrastá-lo para fora da sala.

Isso era bom.

Payne voltou a olhar para seu curandeiro.

– Entendo.

Os olhos do humano se estreitaram.

– Então, repita o que eu disse.

– Para quê?

– É o seu corpo. Quero ter certeza que sabe o que vou fazer com ele e estou preocupado que haja uma barreira linguística entre nós.

– Ela entende muito bem toda maldita palavra que diz...

O curandeiro olhou sobre o ombro.

– Você ainda está aqui?

O macho de cabelos escuros ao lado de seu irmão gêmeo colocou um braço em torno do peito de Vishous e murmurou alguma coisa com um sussurro. Então, voltou-se para o curandeiro, falando com um sotaque ligeiramente diferente.

– Precisa se acalmar, cara. Ou vou deixar que ele o transforme em picadinhos se continuar com esse tom. Capisce?

Em seguida, Payne teve de aprovar a maneira como seu curandeiro encarou a agressão:

– Quer que eu opere, então, será sob meus termos e do meu jeito. Se ele não ficar fora da sala, pode manusear você mesmo o bisturi. O que vai ser?

Houve uma grande comoção nesse momento, com Jane saindo rapidamente de onde estava examinando as radiografias de Payne e juntando-se ao grupo que discutia. Começou a falar baixo no início, até que, em dado momento, sua voz era tão alta quando o resto deles.

Payne limpou a garganta:

– Vishous. Vishous. Vishous!

Já que não conseguiu resultado algum, apertou os lábios e assoviou alto o suficiente para quebrar um vidro.

Como uma chama extinta, assim os ânimos de todos eles se acalmaram; contudo, a energia da raiva ainda pairava no ar como a fumaça do pavio de uma vela apagada.

– Ele deve me tratar agora – disse com fraqueza. – Ele deve... me tratar. É o meu desejo. – Seus olhos voltaram-se para o curandeiro. – Vai concentrar seus esforços para restaurar minha coluna vertebral, como assim a chama, e sua esperança é que a medula espinhal não esteja fraturada, mas apenas lesionada. Disse ainda que não pode prever o resultado, mas que quando estiver operando, será capaz de avaliar os danos de forma mais clara, certo?

Seu curandeiro lançou-lhe um olhar forte e poderoso. Profundo. Grave. Com uma característica própria que a deixava confusa... mas, ainda assim, não se sentia ameaçada. Destino, talvez fosse isso – na verdade, alguma coisa nos olhos dele fez com que... se desmanchasse por dentro.

– Lembrei-me de tudo corretamente? – ela questionou.

O curandeiro clareou a garganta.

– Sim. Lembrou-se.

– Então, opere... como você diz.

Perto da porta, ouviu-se o homem de cabelos escuros dizer algo para seu irmão gêmeo e, em seguida, Vishous levantou o braço e apontou seu dedo coberto por uma luva para o humano.

– Você não vive se ela não viver.

Amaldiçoando, Payne fechou os olhos e pensou outra vez que aquilo que havia desejado durante tanto tempo não havia sido conquistado. Melhor ter ido diretamente ao Fade que causar a morte de algum humano inocente...

– Feito.

Os olhos de Payne abriram-se rapidamente. Seu curandeiro estava firme e inflexível diante de todo o tamanho e força de seu irmão gêmeo, aceitando o fardo colocado sobre seus ombros.

– Mas você tem que sair – o humano disse. – Tire seu maldito traseiro daqui e fique lá fora. Não quero me distrair com sua impertinência.

O grande corpo de seu irmão contraiu-se nos ombros e no peito, mas, então, inclinou a cabeça apenas uma vez.

– Feito.

Em seguida, estava sozinha com seu curandeiro, com exceção de Jane e da outra enfermeira.

– Um último teste. – O curandeiro inclinou-se para o lado o pegou uma vareta fina de um dos balcões. – Vou deslizar essa caneta em cima do seu pé. Quero que me diga se sentir alguma coisa.

Quando assentiu com a cabeça, ele moveu-se para fora de seu campo de visão e ela fechou os olhos para se concentrar, esforçando-se para registrar algum tipo de sensibilidade. Qualquer coisa.

Se houvesse alguma reação, mesmo que fraca, seria um bom sinal, com certeza...

– Estou sentindo alguma coisa – ela disse com uma onda de energia. – No meu lado esquerdo.

Houve uma pausa.

– E agora?

Ela implorou para que suas pernas assimilassem alguma coisa e teve de respirar fundo antes de conseguir responder:

– Não. Nada.

O som dos lençóis macios sendo reposicionados foi a única confirmação de que estava coberta outra vez. Mas, pelo menos, tinha sentido alguma coisa.

Só que ao invés de dirigir-se a ela, seu curandeiro e a companheira de seu irmão gêmeo conversaram em voz baixa, fora do alcance de sua audição.

– Na verdade – Payne disse –, talvez devessem me incluir na conversa. – Os dois aproximaram-se e foi curioso ver que não pareciam satisfeitos. – É um bom sinal eu ter sentido alguma coisa, não?

Seu curandeiro chegou mais perto de sua cabeça e ela sentiu a força quente da palma de sua mão envolvendo a dela. Quando olhou para ela, foi cativada outra vez: os cílios eram muito longos, e uma sombra de barba por fazer surgia ao longo de seu rosto e de sua mandíbula forte. Seu cabelo espesso e escuro era brilhante.

E ela realmente gostava do perfume dele.

Mas ele não tinha respondido, tinha?

– Não é, curandeiro?

– Não estava tocando seu pé esquerdo naquela hora.

Payne piscou com aquela decepção inesperada. Porém, depois de todo aquele tempo imóvel, deveria estar preparada para uma informação como essa, não?

– Então, vai começar agora? – perguntou ela.

– Ainda não. – O curandeiro olhou para Jane e, em seguida, olhou para trás. – Vamos precisar transferi-la para um centro cirúrgico.

– Esse corredor não é longe o suficiente, amigo.

Quando a voz equilibrada de Butch foi registrada, V. quis arrancar a cabeça do cara. E o desejo ficou ainda mais forte quando o bastardo continuou:

– Que tal darmos um tempo fora daqui?

Um conselho lógico, é verdade. Mas, mesmo assim...

– Está começando a me irritar, tira.

– Que novidade. Ah, só uma observação: não estou nem aí.

A porta da sala de exames foi aberta e sua Jane saiu. Quando olhou para ele, seus olhos verdes de floresta não estavam felizes.

– E agora? – ele ladrou, sem saber se poderia lidar com mais notícias ruins.

– Ele quer transferi-la.

Depois de um tempo piscando como um tolo, V. balançou a cabeça, convencido de que tinha entendido errado.

– Como?

– Para o Hospital São Francisco.

– De jeito nenhum!

– Vishous...

– É um hospital humano!

– V...

– Você enlouqueceu...?

Naquele momento, o maldito cirurgião saiu e para seu crédito ou sua insanidade, aproximou-se de V.

– Não posso trabalhar nela aqui. Quer que eu tente e a paralise de vez? Use a cabeça... Preciso de uma ressonância magnética, microscópios, equipamento e uma equipe que não possuo aqui. Não temos tempo e ela não pode ser transportada para muito longe, além disso, se fazem parte do Governo dos Estados Unidos, podem enterrar os registros e garantir que não vaze nada para a imprensa, aliás, com a minha ajuda, a exposição será mínima.

Governo dos Estados Unidos? Mas que... Sim, que seja!

– Ela não vai ser transferida para um hospital humano. Ponto final.

O cara franziu a testa com a coisa de “humano”, mas pareceu ignorar a informação.

– Então, não vou operar...

V. arremeteu contra o homem.

Aconteceu num piscar de olhos. Em um momento, estava estável com as botas de combate plantadas no chão, no outro, tinha partido para um voo livre... pelo menos, até chocar-se contra o médico e estampar a silhueta do bastardo sobre a parede de concreto do corredor.

– Entre e comece a cortar – V. rosnou.

O cara mal conseguia respirar, mas a falta de oxigênio não o impediu de bancar o durão. Encontrou o olhar de V.. Sem conseguir falar, gesticulou com os lábios: Não. Vou. Fazer. Isso.

– Deixe-o ir, V. Deixe que a leve para onde achar melhor.

Quando a voz de Wrath interrompeu o drama, o desejo de soltar fogos de artifício tornou-se quase irresistível. Como se precisassem de mais um espectador. E, aliás, dane-se o comando.

V. apertou ainda mais o pescoço do cirurgião.

– Não vai levá-la a lugar algum.

A mão sobre o ombro de V. foi pesada e a voz de Wrath lançou-se como um punhal.

– Não está no comando aqui. Ela é minha responsabilidade, não sua.

Coisa errada para se dizer. De muitas maneiras.

– Ela é meu sangue – ele rosnou.

– E eu sou o único responsável por colocá-la nessa cama. Oh, e ainda sou seu maldito Rei, então, fará como eu ordenar, Vishous.

Já estava prestes a dizer e fazer algo de que se arrependeria depois. Foi quando a sanidade de Jane o alcançou.

– V., neste momento, você é o problema. Não é a condição de sua irmã, nem a decisão de Manny. Precisa se afastar um pouco, esclarecer as coisas e pensar, não reagir. Estarei com ela o tempo todo e Butch virá comigo, não é mesmo?

– Com certeza – o tira respondeu. – E vou levar Rhage também. Ela não ficará sozinha nem por um minuto.

Silêncio mortal, durante o qual o lado racional de V. lutou para assumir o controle... e aquele humano recusava-se a ceder. Apesar do fato de estar a apenas um palmo de distância de um caixão, aquele filho da mãe continuava encarando Vishous.

Meu Deus, quase poderia respeitá-lo por isso.

A mão de Jane sobre o bíceps de V. não parecia nada com a de Wrath. Seu toque era leve, suave e cuidadoso.

– Passei anos naquele hospital. Tenho familiaridade com todas as salas, todas as pessoas, todo o equipamento. Não há um centímetro quadrado daquela instalação que eu não conheça como a palma da minha mão. Manny e eu vamos trabalhar juntos e garantir que ela entre e saia de lá o mais rápido possível... e que estará protegida. Ele tem plenos poderes naquele lugar por ser o chefe do centro cirúrgico e estarei com ela a cada passo...

Jane continuou falando, mas ele não ouviu mais nada. Uma súbita visão chegou até ele, como um sinal recebido de algum transmissor externo: com total clareza, viu sua irmã montada a cavalo, galopando à beira de uma floresta. Não havia sela, nem rédeas e seus cabelos estavam soltos, flutuando atrás dela sob a luz do luar.

Estava rindo, com uma alegria completa e absoluta.

Estava livre.

Ao longo de sua vida, sempre tinha visto imagens do futuro... então, sabia que aquela não era uma delas. Suas visões eram exclusivamente de mortes – de seus Irmãos, de Wrath, de suas shellans e de seus filhos. Saber como aqueles a seu redor morreriam fazia parte de sua reserva e de sua loucura: tinha conhecimento apenas do modo, nunca do momento que aconteceria e, portanto, não podia salvá-los.

Então, o que via agora não era o futuro; era o que desejava para a irmã que havia encontrado tarde demais e que corria o risco de perder cedo demais.

V., nesse momento, você é o problema.

Sem conseguir confiar em si mesmo para responder a qualquer um deles, largou o doutor como se fosse algo sem qualquer valor e se afastou. Quando o humano recuperou o fôlego, V. não olhava para ninguém a não ser Jane.

– Não posso perdê-la – disse com uma voz fraca, embora houvesse testemunhas.

– Eu sei. Vou estar com ela a cada passo. Confie em mim.

V. fechou os olhos brevemente. Umas das coisas que ele e sua shellan tinham em comum era que os dois eram muito, muito bons no que faziam. Quando dedicados ao trabalho, existiam em um universo paralelo que eles mesmos criavam para si: a luta para ele, a cura para ela.

Portanto, aquele era o equivalente dele jurando matar alguém por ela.

– Certo – ele resmungou. – Tudo bem. Mas preciso de um minuto com ela.

Empurrando as portas duplas, aproximou-se da cama de sua irmã gêmea e tinha plena consciência de que poderia ser a última vez que falaria com ela: vampiros, assim como seres humanos, poderiam morrer durante uma cirurgia. E morriam, não é mesmo?

Ela parecia pior que antes, deitada sem qualquer mobilidade, os olhos não estavam apenas fechados, mas apertados, como se estivesse com dor. Droga, sua shellan estava certa. Daria um tempo. Não acabaria com o maldito cirurgião.

– Payne.

Suas pálpebras levantaram-se lentamente, como se pesassem tanto quanto vigas.

– Meu irmão.

– Vai para um hospital humano, certo? – Quando ela assentiu, odiou que sua pele estivesse da cor do lençol branco. – Ele vai operar você lá.

Quando ela assentiu outra vez, seus lábios entreabriram-se e a respiração ficou curta como se estivesse tendo dificuldades para fazer isso.

– É o melhor.

Deus... e agora? Deveria dizer que a amava? Achava que sim, do seu jeito confuso mesmo.

– Ouça... tome cuidado – ele murmurou.

Que coisa idiota. Era um maldito frouxo idiota, mas era tudo o que conseguia fazer.

– Você... também – ela gemeu.

Agindo como se tivesse vida própria, sua mão boa estendeu-se e lentamente deslizou sobre a dela. Quando apertou ligeiramente, ela não se moveu ou reagiu e V. sentiu um pânico repentino de ter perdido a oportunidade, de que ela já tivesse partido.

– Payne.

Suas pálpebras vibraram.

– Sim?

A porta se abriu e Jane colocou a cabeça para dentro.

– Temos que ir.

– Sim. Tudo bem. – V. deu um aperto final sobre a mão de sua irmã, em seguida saiu da sala com pressa.

Quando foi para o corredor, Rhage já havia chegado, assim como Phury e Z. Isso era bom.

Phury era especialista em hipnotizar seres humanos – e já tinha feito isso antes no Hospital São Francisco.

V. aproximou-se de Wrath.

– Vai alimentá-la, certo? Quando ela sair da operação, vai precisar se alimentar e seu sangue é o mais forte que temos.

Quando expôs a exigência, teria sido ótimo se tivesse considerado antes que Beth, a rainha, poderia ter problemas em dividir seu companheiro assim. Mas, egoísta como era, não se importou.

Só que Wrath apenas assentiu.

– Minha shellan foi a primeira a sugerir isso.

Os olhos de V. fecharam-se com força. Aquela era uma fêmea de valor. Sem dúvida.

Antes de sair, lançou um olhar para sua shellan. Jane estava parada, firme como uma casa construída sobre uma rocha, seu rosto e seus olhos passavam força e certeza.

– Não tenho palavras – disse ele com voz rouca.

– Sei exatamente o que quer dizer.

V. parou a menos de um metro dela; estava preso ao chão, desejando ser um macho diferente. Desejando... que tudo fosse diferente.

– Vá – ela sussurrou. – Eu tomo conta disso.

V. deu uma última olhada para Butch e quando o tira consentiu uma vez, a decisão foi final. Vishous assentiu para seu garoto e saiu em seguida. Fora do centro de treinamento, entrou no túnel subterrâneo, subiu até o Buraco e percebeu prontamente que a distância física não ajudaria em nada. Ainda sentia que estava no meio de todo aquele drama... e não confiava nem um pouco em si mesmo... achava que acabaria voltando até lá “para ajudar”.

Sair. Precisava sair e ficar longe de todos eles.

Rompendo a pesada porta da frente, andou em direção ao pátio e acabou parando em um lugar qualquer. Não conseguia mais avançar, assim como os carros alinhados lado a lado em frente ao chafariz.

Ao ficar ali parado como uma porta, um barulho estranho e contínuo chamou sua atenção. No começo, não conseguiu entender, mas, então, olhou para baixo. Sua mão enluvada estava tremendo e batendo em sua coxa.

Por baixo do couro revestido de chumbo, a mão brilhava o suficiente para ofuscar seus olhos.

Caramba. Estava bem perto de perder a cabeça, na verdade estava quase no seu limite.

Com uma maldição, desmaterializou-se e seguiu em direção ao lugar que sempre ia quando se sentia assim. Não desejava o destino ou a situação que tinha chegado naquela noite... mas, assim como Payne, o destino estava fora de seu controle.


CAPÍTULO 8

ANTIGO PAÍS
DIAS ATUAIS

O sonho era o mesmo de sempre. Já tinha séculos de idade e, ainda assim, as imagens eram límpidas e claras como na noite em que tudo havia mudado, há tanto tempo...

Mergulhado em seu sono profundo, Xcor via diante de si a aparição de uma mulher cheia de fúria, as brumas rodopiavam ao redor de suas vestes brancas e faziam-nas esvoaçar com o ar frio. Pela sua aparência, soube imediatamente o motivo pelo qual tinha saído da densa floresta... mas seu alvo ainda não tinha consciência de sua presença ou seu propósito.

Seu pai estava muito ocupado galopando seu corcel e investindo sobre a mulher humana.

Só que, nesse momento, Bloodletter viu o fantasma.

A partir daí, a sequência de acontecimentos definiu-se com o mesmo vigor que impulsionou Xcor naquele momento: ele deu um grito de alarme e incitou seu cavalo enquanto seu pai abandonava a fêmea humana que tinha apanhado e projetava-se em direção ao espírito. Nos sonhos, Xcor nunca chegava a tempo, sempre assistia com horror como a fêmea surgia da terra e derrubava seu pai.

Em seguida, o fogo... o fogo com o qual ela incendiou o corpo de Bloodletter era brilhante, branco e instantâneo, e consumia o corpo do pai de Xcor em questão de segundos... o cheiro de carne queimada...

Xcor endireitou-se rapidamente, a adaga junto ao peito, os pulmões bombeando, mas, ainda assim, não conseguia respirar direito.

Colocando as mãos sobre a cama e os cobertores, levantou-se e ficou muito contente por estar sozinho em seus aposentos. Ninguém precisava vê-lo daquele jeito.

Enquanto buscava voltar à realidade, sua respiração ecoava, atingindo-o várias vezes, pois os sons batiam nas paredes estéreis e multiplicavam-se até parecerem gritos. Apressadamente, foi até a vela que estava a seu lado no chão para acendê-la. Isso ajudou, e, em seguida, levantou-se para esticar o corpo. O processo de reativar os ossos e músculos e alinhá-los outra vez também ajudou seu cérebro.

Ele precisava de comida, de sangue e de uma luta; com isso, voltaria a ser quem era.

Depois de vestir-se com roupas de um couro bem curtido e colocar o punhal no cinto, saiu do quarto para o corredor. Ao longe, vozes distantes e o tilintar de pratos de estanho disseram-lhe que a Primeira Refeição era servida no andar de baixo, no grande salão.

O castelo onde ele e seu bando de bastardos moravam foi a única coisa que conseguiram tomar naquela noite quando seu pai tinha sido morto. Ele podia ser visto da pacata aldeia medieval que tinha amadurecido e tornado-se uma aldeia pré-industrial e, em seguida, aumentando ainda mais nos tempos modernos, transformando-se em uma cidadela com uma população aproximada de cinquenta mil humanos.

Com isso, poderia concluir que, considerando a prevalência do Homo sapiens, não passava de uma samambaia em uma floresta de carvalhos.

A fortaleza servia-lhe perfeitamente... e pelas razões que primeiro o atraíram para aquele lugar. As robustas paredes de pedra e o fosso com a ponte ainda permaneciam em seus lugares e funcionavam muito bem mantendo as pessoas afastadas. Além disso, havia muitas lendas sangrentas e várias histórias verdadeiras também que lançavam uma mortalha de murmúrios sobre suas terras, sua casa e seus machos. De fato, nos últimos cem anos, ele e seus soldados cumpriram bem o dever de propagar toda aquela besteira de mitos sobre vampiros ao “assombrarem” as estradas da região de tempos em tempos; algo fácil de fazer quando se é um assassino capaz de desmaterializar-se quando quisesse.

O “Bu!” nunca tinha sido tão eficaz.

Ainda assim, havia problemas: por terem dizimado, sozinhos, a população de redutores no Velho Mundo, tinham de encontrar maneiras de manter suas habilidades assassinas afiadas. Felizmente, os humanos mantinham-se afastados... no entanto, é claro, ele e seus irmãos tinham de permanecer em segredo, com suas verdadeiras identidades protegidas.

Aproximar-se dos humanos gerava retaliações.

Havia apenas uma única característica louvável neles: sua ira para com aqueles que cometiam atrocidades. Se os vampiros abatessem apenas estupradores, pedófilos e assassinos, tais “crimes” seriam tolerados. O fato era que, se fossem atrás de tipos morais, os humanos viriam como abelhas saindo de uma colmeia para proteger seu território; mas, e os infratores?

Olho por olho, como dizia a Bíblia.

E, com isso, seu bando de bastardos tinha alguns alvos para treinar.

Havia sido assim por duas décadas, sempre com a esperança de que o verdadeiro inimigo, a Sociedade Redutora, enviasse adversários mais apropriados para eles. Entretanto, não havia chegado ninguém e a conclusão de Xcor era que não havia mais redutores na Europa e que nenhum viria. Afinal de contas, ele e seus homens haviam viajado centenas de quilômetros em todas as direções, todas as noites, caçando infratores humanos; logo, deveriam ter se deparado com algum assassino em algum lugar, de alguma forma.

Ah, não encontraram nenhum.

Entretanto, a ausência era lógica. A guerra tinha mudado de continente há muito tempo: quando a Irmandade da Adaga Negra partiu para o Novo Mundo, a Sociedade Redutora foi atrás deles como cães, deixando apenas a escória para trás, para Xcor e seus bastardos eliminar. Durante muito tempo, o desafio foi suficiente: havia assassinos disponíveis, batalhas em ritmo acelerado e bons combates, mas esse tempo passou e os humanos não estavam à altura.

Pelo menos, os redutores poderiam ser considerados um desafio divertido.

Enquanto descia a tosca escada de pedra, um sentimento de densa insatisfação o tomou; suas botas esmagavam o chão antigo e gasto do corredor que deveria ter sido reformado há muito tempo. Lá embaixo, o amplo espaço que se desdobrava era uma caverna de pedra, com apenas uma enorme mesa de carvalho colocada diante de uma lareira, tão grande quanto uma montanha. Os humanos que haviam construído a fortaleza guarneceram suas paredes rústicas com tapeçarias, mas as cenas de guerreiros montados em corcéis de grande valor não tinham envelhecido melhor que qualquer um dos outros tapetes: os trapos e as fibras desbotadas pendiam caídos em seus alfinetes, a base de suas bainhas crescia mais e mais, certamente, serviriam para cobrir o chão em breve.

Em frente ao fogo ardente, seu bando de bastardos sentou-se nas cadeiras esculpidas para comer veado, perdizes e pombos que haviam sido caçados nos arredores da propriedade, limpos ainda no campo e cozidos na lareira, bebiam cerveja que preparavam e fermentavam nas profundas adegas de pedra debaixo da terra, e comiam naqueles pratos de estanho com facas de caça e garfos que também usavam para esfaquear algo.

Havia um pouco de eletricidade na mansão – na cabeça de Xcor, defitivamente não havia necessidade disso, mas Throe pensava diferente: o macho insistia que deveria haver um espaço para seus computadores, e isso requeria uma fiação irritante, muito discreta, nada interessante, nem perceptível. Mas havia um ponto positivo na modernização: embora Xcor não soubesse ler, Throe sabia e os humanos não eram os únicos que propagavam violência e depravação; eles ficaram fascinados por isso também... Com isso, as vítimas eram localizadas em toda a Europa.

O assento na cabeceira da mesa estava reservado para ele e, no segundo em que se sentou, os outros pararam de comer, abaixando as mãos.

Throe estava a sua direita, na posição de honra, e os olhos pálidos do vampiro estavam iluminados.

– Como estás?

Aquele sonho, aquele maldito sonho. Na verdade, estava estraçalhado por dentro, mas os outros não precisavam saber disso.

– Bem o bastante. – Xcor avançou com seu garfo e espetou uma coxa. – Pela sua expressão, arriscaria dizer que você está com algum propósito.

– Pois é – Throe ofereceu uma grande quantidade de folhas impressas, que pareciam ser uma compilação de artigos de jornais. No topo, havia uma fotografia em destaque, em preto e branco, e apontou para ela. – Quero esse cara.

O macho humano retratado tinha cabelos escuros, um ar de durão, com nariz adunco e sobrancelhas tão densas e espessas quando as de um macaco. As inscrições sob a foto e nas colunas da impressão não eram nada além de desenhos para os olhos de Xcor. Contudo, entendeu claramente a maldade que havia naquele semblante.

– Por que este homem em particular, trayner? – perguntou, mesmo sabendo a resposta.

– Ele matou mulheres em Londres.

– Quantas?

– Onze.

– Não chegou a uma dúzia, então.

Throe franziu a testa com um ar de desaprovação, o que era mesmo ótimo.

– Ele cortou pedaços delas ainda vivas e esperou que morressem para... possuí-las.

– Para transar com elas, você quer dizer? – Xcor rasgou a carne da coxa com as presas e quando não houve resposta, ergueu uma sobrancelha. – Quer dizer que ele transou com elas, Throe?

– Sim.

– Ah! – Xcor sorriu com malícia. – Que idiotinha imundo.

– Foram onze. Mulheres.

– Sim, você mencionou. Então, na verdade, ele é apenas um idiotinha tarado e pervertido.

Throe pegou os papéis de volta e os folheou, observando os rostos das inúteis mulheres humanas. Sem dúvida, estava rezando à Virgem Escriba naquele exato momento, na esperança de ser concedida a oportunidade de realizar um serviço público para uma raça que não passava de uma cerimônia de iniciação, que nada tinha a ver com o inimigo deles.

Patético.

E ele não poderia viajar sozinho... motivo pelo qual parecia tão deslocado: infelizmente, o juramento que aqueles cinco machos fizeram na noite em que Bloodletter tinha sido incinerado, ligou-os a Xcor com cabos de aço: não poderiam ir a lugar algum sem a aprovação e o consentimento dele.

Embora quando se tratava de Throe, podia dizer que aquele macho tinha se ligado a ele muito antes disso, não tinha?

No silêncio, os tentáculos do sonho de Xcor ressurgiram em sua mente... assim como a agonia em saber que ainda não tinha conseguido encontrar o espectro daquela fêmea. Isso não estava certo. Embora gostasse muito de ser o centro de todos os mitos que havia nas mentes humanas, não acreditava em fantasmas ou assombrações, feitiços e maldições. Seu pai havia sido atacado por alguém de carne e osso, e o caçador dentro dele desejava encontrar essa pessoa e matá-la.

– O que me diz? – Throe perguntou.

Era como ele: um herói.

– Nada. Ou eu disse alguma coisa?

Os dedos de Throe começaram a tamborilar sobre a velha madeira manchada da mesa e Xcor ficou contente em deixá-lo ali sentado bancando o baterista. Os outros simplesmente comiam, satisfeitos em esperar que a batalha fosse resolvida de uma maneira ou de outra. Ao contrário de Throe, os outros não davam a mínima com os alvos escolhidos... se tivessem comido, bebido e feito sexo não se importavam em lutar em qualquer momento ou lugar que fossem designados.

Xcor rasgou outro pedaço de carne e encostou as costas na cadeira de carvalho maciço, as tapeçarias gastas atraíram seus olhos. Sobre o tecido desbotado, as imagens de humanos saindo para guerra em garanhões que ele tanto apreciava e com armas até interessantes irritaram-no demais.

A sensação de que estava no lugar errado vibrou ao longo de seus ombros, deixando-o tão inquieto quanto Throe, seu segundo em comando.

Vinte anos sem nenhum redutor, erradicando meros humanos para manter suas habilidades bem treinadas... não era o tipo de existência adequada para seu bando ou para ele. E, ainda assim, havia alguns vampiros que permaneceram no Antigo País. Foi por isso que Xcor ficara no continente; esperava encontrar, dentre eles, aquilo que via apenas em seus sonhos: aquela fêmea, que tinha levado seu pai.

No entanto, onde toda aquela espera o havia levado?

A decisão com a qual ele tanto brincava mentalmente cristalizou-se mais uma vez, assumindo forma e estrutura, ângulos e arcos. Já havia pensado nisso antes e o ímpeto sempre enfraquecia; mas agora o pesadelo deu-lhe a energia que transformaria a ideia em ação.

– Iremos até Londres – ele pronunciou.

Os dedos de Throe silenciaram imediatamente.

– Obrigado, meu soberano.

Xcor inclinou a cabeça e sorriu para si mesmo, pensando que Throe poderia ter uma chance de acabar com aquele humano. Ou... talvez não.

Os planos de viagem, contudo, foram às vias de fato.


CAPÍTULO 9

HOSPITAL SÃO FRANCISCO
CALDWELL, NOVA YORK

Centros médicos eram como quebra-cabeças, exceto pelo fato de que suas peças não se encaixavam tão bem.

Mas isso não parecia tão ruim em uma noite como aquela, Manny pensou quando se preparava para a cirurgia.

De certa forma, ficou surpreso de tudo ter acontecido com tanta facilidade. Os capangas que haviam conduzido ele e sua paciente até ali haviam estacionado em um dos milhares de cantos escuros nos arredores do São Francisco; em seguida, Manny havia telefonado para o chefe de segurança e explicado que havia uma paciente VIP chegando pelos fundos, que exigia total discrição. O contato seguinte foi com a equipe de enfermagem, e a conversa foi a mesma: uma paciente especial estava chegando. Depois, ligou para o andar da cirurgia e deixou os técnicos da ressonância magnética a postos. O telefonema final foi para o pessoal da remoção e, como esperado, eles apareceram com a maca em um piscar de olhos.

Quinze minutos depois de terminar a ressonância, a paciente estava na sala de cirurgia VII, sendo preparada.

– Então, quem é ela?

A pergunta veio da enfermeira-chefe, mas ele já esperava por isso.

– Uma amazona olímpica. Da Europa.

– Bem, isso explica tudo. Ela estava murmurando alguma coisa e nenhum de nós conseguiu entender o idioma. – A mulher folheou alguns papéis... que com certeza ele rasgaria depois que tudo terminasse. – Por que o segredo?

– Ela é da realeza – e isso até que era verdade. Enquanto eram levados até ali, passou a viagem inteira observando seus traços majestosos.

Que patético. Muito estúpido e patético.

Sua enfermeira-chefe observou o corredor, seus olhos tinham um ar desconfiado.

– Isso explica também o detalhe da segurança... meu Deus, devem achar que somos ladrões de bancos?

Manny inclinou-se para dar uma olhada no corredor enquanto higienizava embaixo das unhas com uma esponja dura. Os três que tinham vindo com eles estavam no corredor a uns três metros de distância, seus corpos enormes; vestidos de preto, deixavam transparecer várias protuberâncias.

Armas, sem dúvida; talvez facas. Possivelmente, um lança-chamas ou dois, quem diabos saberia?

Isso tiraria da cabeça de alguém que o Governo Americano era só burocracia.

– Onde estão os formulários de consentimento? – a enfermeira perguntou. – Não há nada no sistema.

– Estou com todos eles – mentiu. – Trouxe a ressonância para mim?

– Está na tela... mas o técnico disse que deve ter algum erro. Ele gostaria de refazê-la.

– Deixe-me dar uma olhada primeiro.

– Tem certeza que quer se responsabilizar por tudo isso? Ela não tem dinheiro?

– Ela tem que permanecer anônima e eles vão me reembolsar. – Pelo menos, achava que sim... não que isso realmente importasse.

Manny enxaguou a coloração marrom do antisséptico que havia nas mãos e nos antebraços e os sacudiu. Mantendo os braços para cima, abriu a porta de vaivém com as costas e entrou na sala de cirurgia.

Duas enfermeiras e um anestesista estavam lá: elas checavam outra vez a bandeja de instrumentos que estavam sobre um pano cirúrgico azul e o anestesista regulava os gases e o equipamento que seria usado para manter a paciente desacordada. O ar estava frio para desestimular sangramentos e cheirava a adstringente. Os equipamentos eletrônicos zumbiam baixinho juntamente com as luzes do teto e da lâmpada cirúrgica acima da mesa de operação.

Manny examinou os monitores... e, no instante em que viu a ressonância magnética, seu coração começou a saltar dentro do peito. Com calma, analisou outra vez as imagens digitais, até não aguentar mais.

Olhando pelas janelas das portas de vaivém, reavaliou os três homens que estavam em pé do lado de fora da sala, com feições rígidas e olhos frios fixos nele.

Não eram humanos.

Seu olhar recaiu sobre a paciente. Ela também não era.

Manny voltou-se para a ressonância e inclinou-se para mais perto da tela, como se aquilo, de alguma maneira, resolvesse magicamente todas as anomalias que via.

Cara, e ele achava que o coração de seis válvulas do grandão de cavanhaque era estranho?

Quando as portas duplas abriram-se e fecharam-se em seguida, Manny apertou os olhos e respirou fundo. Então, virou-se e encarou a segunda médica que havia entrado na sala.

Jane estava tão envolvida com o uniforme cirúrgico que as únicas coisas possíveis de serem enxergadas eram seus olhos verdes-floresta por trás de uma máscara cirúrgica. Ele encobriu sua presença dizendo à equipe que ela era uma médica particular da paciente... o que não era uma mentira. Manteve em segredo o pequeno detalhe de que ela conhecia todos ali, assim como ele. Ela também agiu assim.

Quando os olhos dela voltaram-se para ele e fixaram-se assim, sem dar a impressão de pedir quaisquer desculpas, Manny quis gritar, mas tinha trabalho a fazer. Reorientando-se, afastou de sua mente todas as coisas que não o ajudariam de imediato e reviu o dano naquelas vértebras para planejar sua abordagem.

Conseguia enxergar que a área tinha fundido após uma fratura: a coluna tinha um padrão de nós ósseos perfeitamente alinhados e intercalados por pequenos eixos mais escuros... exceto a C6 e a C7, o que explicava a paralisia.

Não conseguia ver se a medula espinhal fora comprimida ou cortada completamente, e não saberia dizer a verdadeira extensão do dano até que entrasse nele em cirurgia. Mas não parecia nada bom; compressões espinhais eram fatais naquele delicado túnel de nervos, e danos irreparáveis poderiam ser causados em questão de minutos ou horas.

Motivo da pressa que tinham para encontrá-lo?, pensou Manny.

Olhou em direção a Jane.

– Quantas semanas se passaram desde que foi ferida?

– Foi... há quatro horas – ela disse tão baixo que ninguém mais pôde ouvir.

Manny recuou.

– O quê?

– Quatro. Horas.

– Houve uma lesão anterior?

– Não.

– Preciso falar com você, em particular. – Enquanto a puxava para o canto da sala, disse para o anestesista: – Espere aí, Max.

– Sem problema, Dr. Manello.

Segurando Jane com força, sussurrou:

– Que diabos está acontecendo aqui?

– A ressonância é autoexplicativa.

– Não é humana. Certo?

Jane apenas o encarou, os olhos fixos nos seus, inabaláveis.

– Onde diabos você se meteu, Jane? – perguntou em voz baixa. – Que diabos está fazendo comigo?

– Ouça-me com atenção, Manny, e acredite em cada palavra que eu disser. Vai salvar a vida dela e, como consequência, vai salvar a minha também. Ela é irmã do meu marido e se ele... – sua voz ficou entrecortada – Se ele a perder antes mesmo de ter a oportunidade de conhecê-la melhor, isso vai matá-lo. Por favor... pare de fazer perguntas que eu não posso responder e faça o seu melhor. Sei que não é justo, e faria qualquer coisa para mudar isso... só não posso perdê-la.

De repente, pensou nas dores de cabeça terríveis que teve durante o ano que se passou... todas as vezes que pensava nos dias que antecederam o acidente de carro. Aquela maldita dor tinha voltado no instante em que a viu outra vez... apenas para se levantar e revelar as camadas de lembranças que apenas percebia, pois era incapaz de retomá-las de verdade.

– Vai fazer isso para que eu não me lembre de nada – disse. – E também com os outros da equipe, não é? – Ele balançou a cabeça, conscientizando-se de que aquilo era muito, muito pior do que alguns agentes especiais do Governo Americano. Outras espécies? Coexistindo com seres humanos?

Mas ela não esclareceria isso de fato, não é mesmo?

– Maldita seja, Jane. De verdade!

Quando se virou, ela pegou seu braço.

– Fico devendo essa. Faça isso por mim e fico lhe devendo algo.

– Tudo bem. Então, que tal nunca mais aparecer na minha frente?

Deixou-a no canto e seguiu em direção à paciente, que havia sido virada de barriga para baixo. Curvando-se ao lado dela, disse:

– É o... – por alguma razão, queria usar seu primeiro nome com ela, mas por causa dos outros membros da equipe manteve o rigor profissional. – É o Dr. Manello. Vamos começar agora, certo? Não vai sentir nada, prometo.

Depois de um momento, ela respondeu com voz fraca:

– Obrigada, curandeiro.

Ele fechou os olhos ao som daquela voz. Deus, o efeito que apenas duas palavras pronunciadas por aquela boca exerceu nele foi épico. Mas exatamente pelo que ele sentia-se atraído? O que era aquele ser?

Uma imagem das presas do irmão dela passou por sua mente... e teve de arrancá-la dali. Haveria tempo para pensar naquele personagem de filme de terror.

Com uma maldição em voz baixa, acariciou o ombro dela e assentiu para o anestesista.

Hora do show.

As costas dela tinham sido esterilizadas pelas enfermeiras, em seguida, ele apalpou a coluna com os dedos, sentido o caminho que deveria percorrer enquanto as drogas faziam efeito e a deixavam inconsciente.

– Nenhuma alergia? – perguntou a Jane, mesmo já tendo perguntado antes.

– Não.

– Algum problema especial para o qual devemos ficar atentos enquanto ela estiver assim?

– Não.

– Tudo bem, então. – Alcançou o microscópio e aproximou o aparelho dele, mas não o colocou diretamente sobre ela.

Primeiro precisava fazer uma incisão.

– Quer música? – a enfermeira perguntou.

– Não. Nada de distrações nesse caso. – Estava operando como se sua vida dependesse disso, e não apenas porque o irmão daquela mulher o ameaçou.

Mesmo sem fazer qualquer sentido, perdê-la... não importava o que ela fosse... seria uma tragédia daquelas que não se conseguia descrever em palavras.


CAPÍTULO 10

A primeira coisa que Payne viu ao despertar foi um par de mãos masculinas. Era evidente que estava sentada e ligada a algum tipo de suporte que apoiava sua cabeça e seu pescoço, e as mãos em questão estavam na beirada da cama ao lado dela. Belas e hábeis, com as unhas bem aparadas, seguravam papéis e folheavam, com calma, muitas páginas.

O macho humano a quem elas pertenciam franzia a testa enquanto lia e usava um utensílio de escrita para fazer anotações ocasionais. Sua barba estava ainda mais crescida do que da última vez que a viu e, com isso, concluiu que já haviam se passado horas.

O curandeiro parecia tão exausto quanto ela.

Enquanto sua consciência voltava, percebeu um sinal sonoro sutil ao lado de sua cabeça... e uma dor incômoda nas costas. Tinha a sensação de que havia lhe dado algum tipo de poção para adormecer as sensações, mas ela não queria isso – melhor estar alerta. Sentia-se envolta em uma manta de algodão, algo estranhamente aterrorizante.

Ainda incapaz de falar, olhou ao redor. Ela e o macho humano estavam sozinhos e aquela não era a sala onde estiveram da última vez. Ouvia-se muitas vozes falando com aquele estranho sotaque humano lá fora, elas disputavam contra um fluxo constante de passos.

Onde Jane estava? A Irmandade...

– Me... ajude...

Isso chamou a atenção de seu curandeiro, que jogou as páginas sobre a mesa com rodinhas. Surgindo na frente dela, em pé, inclinou-se, seu perfume provocava um formigamento glorioso no nariz dela.

– Ei – ele disse.

– Não sinto... nada...

Pegou-lhe a mão e quando ela não conseguiu sentir nem o calor nem o toque, ficou extremamente agitada. Mas ele estava lá por ela.

– Shh... não, não, você está bem. Isso é apenas o efeito dos analgésicos. Você está bem e eu estou aqui. Calma...

A voz dele tranquilizou-a da mesma forma que a palma de sua mão faria se a estivesse acariciando.

– Diga-me – ela exigiu, com voz aguda –, o que... aconteceu?

– As coisas correram de forma satisfatória na sala de cirurgia – ele disse lentamente. – Redefini as vértebras e a medula espinhal não foi totalmente comprometida.

Payne esticou os ombros e tentou erguer a cabeça pesada e latejante, mas o aparelho sobre ela manteve-a bem onde estava.

– Seu tom... diz mais que as palavras.

Payne não teve uma resposta imediata do comentário que fez. Ele apenas continuou acalmando-a com as mãos que não conseguia sentir. Contudo, os olhos dele falavam por conta própria... e as notícias não eram boas.

– Diga-me – ela exclamou. – Eu mereço mais.

– Não foi um fracasso, mas não sei onde isso vai dar. O tempo nos dará informações mais do que qualquer outra coisa.

Ela fechou os olhos por um momento, mas a escuridão a apavorava. Abrindo bem as pálpebras, agarrou-se à visão de seu curandeiro... e odiou a culpa que havia naquele rosto bonito e sombrio.

– Não é culpa sua – disse ela asperamente. – Tinha que ser assim.

Ao menos disso ela tinha certeza. Ele tentou salvá-la e fez o seu melhor... a frustração nele era muito clara.

– Qual é o seu nome? – ele disse. – Não sei o seu nome.

– Payne. Meu nome é Payne.

Quando ele franziu o cenho outra vez, teve certeza de que a nomenclatura não o agradou*, e ela desejou ter nascido e sido chamada por outro conjunto de sílabas. Mas havia outra razão para o descontentamento, não? Ele a viu por dentro e, com certeza, concluiu que eram diferentes.

Ele tinha de saber que era um “outro ser”.

– Aquilo que está pressupondo – ela murmurou –, não está errado. – Seu curandeiro respirou e pareceu prender o ar por um dia inteiro. – O que está passando em sua mente? Conte-me.

Ele sorriu um pouco e, ah, que sorriso bonito tinha. Muito bonito. Porém, era uma pena que não fosse um sorriso de bom humor.

– Agora...? – passou a mão pelo cabelo espesso e escuro. – Estou pensando se não deveria jogar tudo para o alto e bancar o idiota ao dizer que não sei o que está acontecendo. Ou dizer a verdade de uma vez.

– A verdade – ela disse. – Não posso me dar ao luxo de viver qualquer momento de falsidade.

– Muito bem. – Fixou os olhos nela. – Eu acho que você...

A porta da sala abriu-se um pouco e uma figura totalmente coberta olhou para dentro. Exalando um aroma delicado e agradável... Era Jane, oculta atrás de uma vestimenta azul e uma máscara.

– Está quase na hora – disse ela.

O rosto do curandeiro de Payne tornou-se vulcânico.

– Não concordo com isso.

Jane entrou e fechou-os ali.

– Payne, você está acordada?

– Sim – tentou sorrir e esperou que seus lábios estivessem se movendo. – Estou.

O curandeiro colocou-se entre elas, como se quisesse protegê-la.

– Não pode removê-la. Precisa esperar, pelo menos, uma semana. É cedo demais.

Payne olhou as cortinas que pendiam do teto ao chão. Tinha quase certeza de que havia janelas de vidro do outro lado da extensão de tecidos claros e plena certeza de que cada um dos raios de sol os trespassaria ao amanhecer.

Nesse momento, o coração dela batia com força e sentiu isso por trás de sua caixa torácica.

– Preciso ir. Quanto tempo falta?

Jane verificou um objeto que indicava o tempo em seu pulso.

– Mais ou menos uma hora. E Wrath está vindo para cá. Isso vai ajudar.

Talvez fosse por isso que se sentia tão fraca. Ela precisava se alimentar.

Quando seu curandeiro estava prestes a abrir a boca, ela o interrompeu para falar com a shellan de seu irmão.

– Devo lidar com isso agora. Por favor, deixe-nos a sós.

Jane assentiu e afastou-se, saindo pela porta. Mas, sem dúvida, ficaria por perto.

O humano de Payne esfregou os olhos como se esperasse que isso mudasse sua percepção... ou talvez a realidade na qual estavam presos.

– Que nome gostaria que eu tivesse? – ela perguntou em voz baixa.

Ele deixou cair as mãos e a observou por um momento.

– Esqueça a coisa do nome. Poderia, simplesmente, ser honesta comigo?

Na verdade, tinha dúvidas se poderia fazer essa promessa. Apesar da técnica de enterrar memórias ser bem fácil, não estava muito familiarizada com as repercussões que isso traria e preocupava-se com a questão de que quanto mais se sabia, mais havia o que esconder e mais danos poderiam ser causados a ele.

– O que deseja saber?

– O que é você?

Seus olhos voltaram-se para as cortinas fechadas. Mesmo sendo protegida como foi, sabia sobre os mitos que a raça humana tinha construído em torno de sua espécie: mortos-vivos, assassinos de inocentes, sem alma e sem moral.

Dificilmente poderia orgulhar-se disso, ou perder seus últimos momentos tentando explicar.

– Não posso ser exposta ao sol – seu olhar voltou para ele. – Posso me curar muito, muito mais rápido que você. E preciso me alimentar antes de ser removida. Depois que fizer isso, ficarei estável o suficiente para viajar.

Manny olhou para as próprias mãos e ela imaginou que, provavelmente, ele estava pensando que não deveria tê-la operado.

E o silêncio que se estendeu entre eles tornou-se tão traiçoeiro e perigoso de ser atravessado quanto um campo de batalha. Ainda assim, ela ouviu-se dizendo:

– Há um nome para aquilo que sou.

– Sim. E não quero pronunciá-lo em voz alta.

Payne começou a sentir uma dor curiosa em seu peito e, com um esforço supremo, arrastou seu antebraço para cima até que a palma da mão repousasse sobre a dor. Estranho que todo seu corpo estivesse adormecido, mas pudesse sentir aquela dor...

De repente, o foco fugiu de sua visão.

Imediatamente, a expressão dele suavizou-se e ele se inclinou para acariciar o rosto de Payne.

– Por que está chorando?

– Estou?

Ele assentiu e ergueu o dedo indicador para que ela pudesse ver. Na ponta do dedo, uma única gota cristalina brilhava.

– Está sentindo dor?

– Sim. – Piscando rapidamente, tentou, mas não conseguiu focá-lo outra vez. – Essas lágrimas são muito irritantes.

O som da risada e a visão daqueles dentes brancos e regulares a levantaram, ao ponto de parecer estar acima da cama.

– Não é muito de chorar, não é mesmo? – ele murmurou.

– Nunca.

Ele inclinou-se para o lado e pegou um pedaço de tecido quadrado que usou para conter o que corria pela face de Payne.

– Por que as lágrimas?

Levou um tempo para dizer, e então, teve de fazê-lo:

– Vampira.

Recostou-se na cadeira ao lado dela e tomou um grande cuidado ao dobrar o quadrado e, em seguida, jogou a coisa em um pequeno contêiner de plástico.

– Acho que foi por isso que Jane desapareceu há um ano, não? – ele disse.

– Não parece chocado.

– Sabia que havia alguma coisa grande acontecendo – deu de ombros. – Vi as imagens da ressonância. Operei seu corpo.

Por alguma razão, aquela fraseologia a aqueceu.

– Sim. Você fez isso.

– No entanto, é parecida o suficiente. Sua coluna não é tão diferente ao ponto de eu não saber o que estava fazendo. Tivemos sorte.

Na verdade, ela não compartilhava da mesma opinião: depois de anos sem dar qualquer importância a machos, sentia uma atração mística em relação àquele diante dela, algo que gostaria de explorar se não estivessem naquela situação.

Mas como já havia aprendido há muito tempo, o destino raramente se preocupava com o que ela queria.

– Então – ele pronunciou –, vai dar um jeito em mim, certo? Vai fazer com que tudo isso desapareça. – Acenou com o braço de uma maneira vaga. – Não vou me lembrar de nada. Da mesma maneira que aconteceu quando seu irmão passou por aqui há um ano.

– Talvez sonhe com isso. Nada mais.

– É assim que sua espécie permanece em segredo.

– Sim.

Ele assentiu e olhou em volta.

– Vai fazer isso agora?

Queria mais tempo com ele, mas não havia razão alguma para que a visse alimentando-se de Wrath.

– Logo.

Ele fitou a porta e, em seguida, encarou diretamente o olhar dela.

– Vai me fazer um favor.

– Mas é claro. Seria um prazer servi-lo.

Uma de suas sobrancelhas ergueu-se e ela podia jurar que seu corpo exalou mais um pouco daquele delicioso aroma. Em seguida, ele ficou totalmente sério.

– Diga a Jane... que entendo. Entendo os motivos de ter feito o que fez.

– Está apaixonada pelo meu irmão.

– Sim, eu vi. Lá... onde estávamos. Diga a ela que está tudo bem entre ela e eu. Afinal, não se pode escolher por quem se apaixona.

Sim, Payne pensou. Sim, era uma grande verdade.

– Já se apaixonou? – ele perguntou.

Como os humanos não liam mentes, percebeu que tinha dito aquilo em voz alta.

– Ah... não. Eu... não. Nunca me apaixonei.

Mesmo aquele curto espaço de tempo com seu curandeiro foi um aprendizado. Ele a fascinava, desde a maneira como se movia, passando pelo modo como seu corpo preenchia o jaleco branco e as roupas azuis, até seu aroma e sua voz.

– É casado? – ela perguntou, temendo a resposta.

Ele riu em uma forte explosão.

– Claro que não.

Sua respiração soltou um suspiro aliviado, mesmo sendo estranho pensar que seu estado civil importava tanto. E, então, não houve nada além de silêncio.

Oh, a passagem do tempo. Era uma pena; e o que ela deveria dizer naqueles minutos finais que ainda restavam?

– Obrigada por cuidar de mim.

– O prazer foi meu. Espero que se recupere bem. – Olhou para ela como se estivesse tentando memorizá-la e ela desejou dizer para que parasse de tentar. – Estarei sempre aqui por você, certo? Se precisar de mim para ajudá-la... venha e me procure. – O curandeiro pegou um cartão pequeno e rígido e escreveu algo sobre ele. – Esse é o meu celular. Pode ligar.

Ele estendeu o braço e depositou o papel dentro da mão fraca que descansava sobre seu coração. Quando ela segurou o que havia recebido, pensou em todas as repercussões. E implicações.

E complicações.

Com um grunhido, tentou se mover.

O curandeiro foi ampará-la imediatamente.

– Precisa mudar de posição?

– Meu cabelo.

– Está puxando?

– Não... por favor, desfaça as tranças dos meus cabelos.

Manny congelou e apenas olhou para o rosto de sua paciente. Por alguma razão, a ideia de desfazer aquela trança grossa parecia muito próximo do ato de despi-la e, como era de se imaginar, seu desejo sexual estava pronto para isso.

Deus... estava com uma maldita ereção. Bem embaixo de seu uniforme cirúrgico.

Olha só, ele pensou, aquela era a lei imprevisível da atração no trabalho, acontecendo bem ali, naquele momento: Candance Hanson ofereceu-se para enlouquecê-lo, mas estava tão interessado nisso quanto em usar um vestido em uma festa. Mas aquela... fêmea? Mulher...? Pediu para que soltasse seus cabelos e já estava todo ofegante.

Vampira.

Em sua mente, ouvia a palavra sendo pronunciada por aquela voz com aquele sotaque... e o que mais o chocou foi sua falta de reação quando soube da novidade. Sim, se considerasse as implicações, sua placa-mãe começaria a chiar e faiscar: presas não estavam restritas ao Halloween e a filmes de terror?

E a coisa mais estranha era que não parecia estranho.

Aquilo e a atração sexual que estava tendo.

– Meus cabelos...? – ela disse.

– Sim... – ele sussurrou. – Vou cuidar disso.

Suas mãos não estavam com um leve tremor. Não. Não tremeram assim.

Elas chacoalhavam feito loucas.

O final da trança estava preso com o tecido mais macio que já havia sentido. Não era de algodão, nem de seda... Era algo que nunca tinha visto antes, e seus dedos de cirurgião pareciam desajeitados e ásperos enquanto trabalhava para desfazer o nó que prendia a trança. E os cabelos... bom Deus, seus cabelos negros e ondulados faziam aquele pano parecer um pedaço de urtiga, se fosse compará-los.

Centímetro a centímetro, separou as três partes, as ondas eram lisas e homogêneas. E, por ser um maldito filho da mãe, só conseguia pensar naquelas mechas caindo sobre o próprio peito nu... sobre seu abdômen... sobre seu pênis...

– É o suficiente – ela disse.

Com certeza é o suficiente. Obrigando seu devasso interior a voltar à terra da conversação educada e contida, obrigou suas mãos a pararem. Apesar da trança ter sido desfeita apenas até a metade, a revelação foi surpreendente. Se era linda com o cabelo todo amarrado, ficou resplandecente com aquelas ondas ao redor da cintura.

– Trance outra vez com isso dentro, por favor – ela disse, segurando o cartão com a mão vacilante. – Assim, ninguém vai encontrá-lo.

Ele piscou e pensou: cara, que óbvio. Inferno, não havia qualquer maneira do cara de cavanhaque encarar bem o fato da irmã ter estendido a mão e tocado seu cirurgião...

Mas não chegou a tocar, ele se corrigiu.

Bem, talvez tenha tocado um pouco. Ele gostaria mesmo era de penetr... hã, tocá-la.

Cala a boca, Manello, mesmo que não esteja falando em voz alta.

– Você é brilhante – ele disse. – Muito inteligente.

Aquilo a fez sorrir e, com isso, expôs a grande diferença. As presas eram brancas, afiadas e longas... e a evolução projetou-as para que cravassem em cheio em uma garganta.

Um orgasmo formigou no topo de sua ereção...

E, nesse momento, uma expressão severa passou sobre o rosto dela.

Oh, caaara.

– Hã... você pode ler mentes?

– Quando estou mais forte, sim. Mas seu perfume ficou mais intenso.

Então, ela o fazia suar e, de alguma forma, sabia disso. Só que... teve a impressão de que ela não tinha a menor ideia do motivo de tal reação, e isso era tão tentador quanto tudo mais que dizia respeito a ela: passava uma total inocência quando o encarou novamente.

Por outro lado, poderia não pensar nele sexualmente por ser humano. Acorda Manny, ela tinha acabado de despertar de uma cirurgia, algo que dificilmente reproduziria o clima de um feriado na praia.

Manny cortou sua segunda conversação interior e dobrou seu cartão de visitas ao meio. A melhor notícia sobre seu cabelo foi que levou apenas um minuto para camuflar o cartão na trança. Quando terminou, recolocou o pano e fez um laço, em seguida, teve o cuidado de ajeitar o comprimento ao lado dela na cama.

– Espero que o use – ele disse. – Espero mesmo.

O sorriso dela foi muito triste, dizendo-lhe que não havia muitas chances disso acontecer, mas convenhamos: era óbvio que o contato entre duas espécies diferentes não estava em suas listas de prioridades; caso contrário, o termo banco de sangue teria uma conotação totalmente diferente. Mas, pelo menos, tinha suas informações para contato.

– O que acha que vai acontecer? – ela perguntou, abaixando a cabeça em direção às pernas.

Seus olhos seguiram o exemplo dela.

– Não sei. É evidente que as regras são diferentes com você... então, tudo é possível.

– Olhe para mim – ela disse – Por favor.

Ele esboçou um sorriso.

– Nunca pensei que diria isso, mas... não quero – tentou, mas não conseguiu encará-la. – Só me prometa uma coisa.

– O que posso conceder-lhe?

– Ligue-me, se puder.

– Ligarei.

No entanto, ela não quis dizer isso. Não estava certo de como sabia disso, mas tinha plena certeza. Entretanto, por que ela ficou com o cartão? Não fazia ideia.

Olhou para a porta e pensou em Jane. Droga, deveria desculpar-se pessoalmente por ser tão intransigente com relação a tudo aquilo.

– Antes que faça isso, preciso...

– Gostaria de deixar algo de mim para trás. Com você.

Manny deu uma olhada em volta e fixou-se nela.

– Qualquer coisa. Quero qualquer coisa que possa me dar.

As palavras saíram em um rosnado misterioso e ele sabia muito bem que tinha uma entonação sexual... será que isso tornava-o um porco?

– Só que não poderia ser uma coisa tangível... – Ela balançou a cabeça. – Seria muito prejudicial a você.

Encarou o rosto belo e forte de Payne... e fixou-se em seus lábios.

– Tenho uma ideia.

– O que quiser. – A inocência naquele olhar o deteve. E acendeu sua libido como a uma fogueira.

Claro que não precisava de ajuda para sentir isso.

– Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Poderia ser promíscuo, mas não faria nada com uma menor. Toda sua constituição física dizia que era uma adulta, mas quem saberia seu nível de maturidade...

– Tenho trezentos e cinco anos de idade.

Como assim? Claro, era um bom número de anos. Ela tinha de ser maior de idade no mundo deles, pensou.

– Então, pode se casar?

– Sim. Mas não estou com nenhum macho.

Então, havia um Deus.

– Sei o que quero. – Ela. Nua. Sobre ele. Mas, caramba, ele se contentaria com muito menos.

– O quê?

– Um beijo – ergueu as mãos. – Não precisa ser nada quente ou intenso. Apenas... um beijo.

Quando ela não respondeu, ele quis se matar. E pensou seriamente em entregar-se àquele irmão dela para receber a surra que merecia.

– Pode me mostrar como é? – ela sussurrou.

– Sua espécie não... beija? – Só Deus sabia o que faziam. Mas se alguma coisa da lenda era verdade, o sexo estava presente no repertório na maior parte do tempo.

– Eles se beijam. É que nunca beijei antes... Você está bem? – estendeu a mão. – Curandeiro?

Ele abriu os olhos... que evidentemente tinha fechado.

– Deixe-me perguntar uma coisa. Já esteve com um homem?

– Nunca com um homem humano. E... nem com um macho vampiro, também.

O pênis de Manny explodiu sob sua roupa. Que loucura. Nunca tinha se importado se uma mulher tinha estado com outro homem antes... ou não. Na verdade, as garotas com quem costumava sair perdiam a virgindade nos primeiros anos da adolescência... e nunca olhavam para trás.

Os olhos claros e pálidos de Payne o encararam.

– Seu aroma está ainda mais forte.

Provavelmente porque tinha começado a suar tentando não gozar.

– Gosto disso – ela acrescentou com uma voz profunda.

Houve um momento elétrico entre eles, algo que ele não conseguia acreditar que poderia ser apagado por algum truque de magia jogado sobre sua massa cinzenta. E, então, os lábios dela entreabriram-se e a língua rosa saiu para umedecer a boca... como se estivesse imaginando algo que lhe deu sede.

– Acho que quero provar você – ela disse.

Certo. Dane-se o beijo. Se ela quisesse comê-lo cru, estava pronto para isso. E isso foi antes de assistir as pontas de suas presas brancas estenderem-se ainda mais em sua mandíbula superior.

Manny sentia que estava ofegando, mas não conseguia ouvir nada, pois o sangue do corpo rugia em seus ouvidos. Maldição, estava prestes a perder o controle... e não em um sentido metafórico: estava, literalmente, a alguns centímetros de distância de arrancar aqueles lençóis e montar em cima dela, mesmo sabendo que estava imobilizada. E que nunca havia estado com alguém antes. E que não era da sua espécie.

Precisou utilizar-se de todas as forças que possuía para levantar-se e recuar.

Manny limpou a garganta. Duas vezes.

– Acho melhor adiar um pouco.

– Adiar?

– Para depois.

O rosto dela mudou instantaneamente, os traços adoráveis ficaram tensos e esconderam a frágil paixão que havia sangrado em sua expressão.

– Mas... é claro. É melhor.

Odiou machucá-la, mas não havia como explicar o quanto a desejava sem assumir um tom pornográfico. E ela era virgem, pelo amor de Deus. Merecia alguém melhor do que ele.

Deu uma última olhada persistente nela e disse para seu cérebro recordar-se disso. De alguma maneira, não queria perdê-la.

– Faça o que tem de fazer. Agora.

Os olhos dela desceram, percorrendo o corpo dele e detendo-se nos quadris. Quando percebeu que ela olhava para seu sexo – que estava chamando muita atenção –, escondeu discretamente com as mãos sua excitação por baixo do uniforme cirúrgico.

Sua voz era rouca:

– Está me matando. Não sou confiável com você assim. Então, tem de fazer isso, por favor. Deus, apenas faça...

No inglês, o nome Payne remete a pain dor, sofrimento. (N.T.)


CAPÍTULO 11

Ravasz. Sbarduno. Grilletto. Trekker.

A palavra gatilho debatia-se dentro do crânio de V. em todas as línguas que conhecia; seu cérebro trouxe à tona todo tipo de vocabulário para brincar um pouco – caso contrário, a coisa ia se canibalizar.

Enquanto ativava seu Google Tradutor, seus pés o levavam a caminhar na cobertura do Commodore sem parar; seu ritmo incansável transformava o local no equivalente a uma gaiola de hamster multimilionária.

Paredes negras. Teto negro. Piso negro. A visão noturna de Caldwell... algo que nunca o levou até ali.

Ao longo da cozinha, da sala de estar, do quarto e de volta à cozinha.

De novo. E de novo.

À luz das velas negras.

Havia comprado o apartamento há mais ou menos cinco anos, quando o edifício ainda estava em construção. Assim que o esqueleto surgiu na paisagem do rio, decidiu possuir a metade da cobertura do arranha-céu. Mas não era como uma casa... ele sempre tivera um lugar separado para dormir. Mesmo antes de Wrath estabelecer a Irmandade na antiga mansão de Darius, V. tinha o hábito de separar o local onde descansava e guardava as armas de suas... outras atividades.

Naquela noite, sentido-se daquela maneira, o fato de ter ido até ali era lógico e ridículo.

Ao longo de décadas e séculos, desenvolveu não apenas uma reputação dentro da raça, mas um lugar para machos e fêmeas que queriam o que ele tinha para oferecer. E assim que adquiriu aquela unidade, trouxe-os até seu buraco negro para um tipo muito específico de sexo: ali, derramava o sangue deles, fazia-os berrar e chorar, e, então, penetrava-os ou eles o penetravam.

Parou diante de sua mesa de trabalho; a velha madeira estava surrada e marcada não apenas por suas ferramentas, mas por sangue, orgasmos e cera de vela.

Deus, algumas vezes, a única maneira de saber quão longe se tinha chegado era voltando ao local onde tinha começado.

Estendendo a mão enluvada, pegou as tiras de couro grosso que usava para manter onde queria aqueles a quem submetia.

Costumava usar, corrigiu-se. Aquilo era passado; agora que tinha Jane, não fazia mais aquelas coisas... não tinha mais o impulso para isso.

Olhando para a parede, avaliou sua coleção de brinquedos: chicotes, correntes e arame farpado. Braçadeiras, mordaças e lâminas de barbear. Açoites. Quilômetros de correntes.

Os jogos que colocava em prática – costumava colocar – não eram para aqueles que tinham coração fraco, para iniciantes ou curiosos ocasionais. Para os verdadeiramente submissos, havia uma linha tênue entre a satisfação sexual e a morte – os dois tiravam-lhe do controle, mas a última era seu disparo final – literalmente. E ele era o mestre supremo, capaz de levar os outros aonde precisavam chegar... E até mesmo um centímetro mais longe. Era por isso que as pessoas vinham para ele.

Costumavam vir para ele...

Até ele, corrigiu-se.

Droga.

E foi por isso que o relacionamento com Jane foi uma revelação. Com ela em sua vida, não sentia a necessidade ardente por nada daquilo. Nem por aquele relativo anonimato, nem por aquele controle que exercia sobre seus submissos, nem pela satisfação que sentia ao infringir dor a si mesmo, nem pela sensação de poder ou pelos intensos orgasmos.

Depois de todo aquele tempo, pensou que tinha sido transformado.

Errado.

Ainda existia um interruptor interno nele e estava direcionado para a posição em que se lia “ligado”. Por outro lado, o desejo de cometer matricídio era muito estressante – principalmente quando não se podia fazer nada em relação a isso.

V. inclinou-se e tocou um chicote de couro com bolas de aço inoxidável amarradas em suas extremidades. Quando o comprimento passou entre os dedos de sua mão sem luvas, sentiu vontade de vomitar... parado ali, daquela maneira, desejou oferecer qualquer coisa para obter um pouco daquilo que tinha antes...

Não, espere. Enquanto olhava sua mesa, revisou mentalmente tudo aquilo. Queria ser aquilo que teve. Antes de Jane, fazia sexo como um dominador, pois era a única maneira pela qual se sentia seguro o suficiente durante o ato – e parte dele sempre quis saber, especialmente enquanto estalava o chicote, por assim dizer, por que seus submissos queriam aquilo que ele oferecia.

Agora tinha uma boa ideia do motivo: o que martelava dentro da pele deles era tão tóxico e violento que precisavam de uma válvula de escape que fosse aberta a partir de seu próprio corpo...

V. caminhou até uma de suas velas pretas, sem se dar conta de que suas botas estavam atravessando o chão.

Então, a coisa colocou-se contra a palma de sua mão antes mesmo que percebesse que estava segurando. Sua vontade acendeu a chama... e, em seguida, inclinou a ponta acesa em direção ao peito, a cera quente e negra atingiu a clavícula e escorreu para baixo de sua regata. Fechando os olhos, deixou a cabeça cair para trás enquanto soltava um silvo por entre suas presas.

Mais cera em sua pele nua, mais fisgadas.

Quando começou a se sentir muito excitado, metade dele estava consciente e a outra sentia um barato total. Contudo, a mão enluvada não teve problemas com essa dupla personalidade. Foi até o zíper da calça e liberou seu pênis.

À luz da vela, observou-se levando o objeto para baixo e segurando-o sobre sua ereção... Em seguida, inclinou o pavio aceso para baixo.

Uma lágrima negra deslizou livremente da fonte de calor e atingiu queda livre em direção a...

– Droga...

Quando suas pálpebras relaxaram o suficiente para que pudesse abri-las, olhou para ver a cera endurecida sobre a borda da cabeça de seu pênis, a pequena linha abriu caminho por onde a cera havia sido derramada.

Dessa vez, gemeu profundamente quando abaixou a ponta da vela, pois sabia o que estava por vir.

Mais gemido. Mais cera. E uma maldição dita em voz alta seguida por outro silvo.

Não havia necessidade de ficar sem ar. A dor era suficiente, o movimento rítmico ao longo do pênis disparava choques elétricos em seus testículos, nos músculos de suas coxas e nádegas. Periodicamente, movia a chama para cima e para baixo para atingir as partes livres da carne, sua ereção pulava toda vez que era golpeada... até que sentiu que já era o suficiente para as preliminares.

Deslizando a mão livre sobre o pênis, colocou-se em pé.

A cera atingiu exatamente o lugar mais sensível... e a forte agonia foi tão intensa que quase caiu no chão... mas o orgasmo salvou suas pernas de vacilarem e o poder do gozo o enrijeceu da cabeça aos pés.

A cera negra espalhou-se por toda parte.

Sobre sua mão e suas roupas.

Assim como nos velhos tempos... exceto por uma coisa: havia um vazio. Caramba. Ah, espere... Isso também fazia parte de representar o papel de Deus. A diferença era que antes ele não sabia que havia outra coisa lá fora. Algo como Jane...

O som do telefone tocando deu-lhe a sensação de um tiro na cabeça: mesmo não sendo alto, o silêncio tinha sido quebrado como um espelho e os cacos mostravam-lhe o reflexo daquilo que não queria ver – apesar do feliz emparelhamento, estava li, em sua câmara de perversão, masturbando-se.

Recuou e arremessou a vela para o outro lado da sala, a chama extinguiu-se no meio do voo... única razão pela qual o maldito lugar não foi incendiado.

E isso foi antes de ver quem estava ligando.

Sua Jane. Sem dúvida, com um relatório do hospital humano. Pelo amor de Deus, um macho de valor estaria do lado de fora da sala de cirurgia, esperando sua irmã acordar, apoiando sua companheira. Ao invés disso, tinha sido excluído daquilo por ter perdido o controle e foi até ali para passar um tempo de qualidade com sua cera negra e sua ereção.

Pressionou o botão send enquanto voltava a colocar seu pênis ainda ereto para dentro da calça de couro.

– Sim.

Uma pausa. Durante a qual ele teve de se lembrar que ela não conseguia ler mentes e agradeceu muito por isso. Cristo, o que foi aquilo que tinha acabado de fazer?

– Você está bem? – ela disse.

Nem um pouco.

– Sim. Como está Payne? – Por favor, que as notícias não sejam ruins.

– Ah... ela conseguiu passar por tudo. Estamos voltando ao complexo. Ela reagiu bem e Wrath a alimentou. Os sinais vitais estão estáveis e parece estar relativamente confortável, embora não se possa dizer qual será o resultado a longo prazo.

Vishous fechou os olhos.

– Pelo menos ela ainda está viva.

Houve um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo zumbido calmo do veículo no qual ela estava viajando.

Em determinando momento, Jane disse:

– Pelo menos passamos pelo primeiro obstáculo e a operação correu tão bem quanto possível... Manny foi brilhante.

V. ignorou o comentário criteriosamente.

– Algum problema com a equipe do hospital?

– Não. Phury colocou sua mágica em prática. Mas no caso de haver deixado alguém ou alguma coisa passar, acho que seria uma boa ideia monitorar o sistema de registros por um tempo.

– Vou cuidar disso.

– Quando vai voltar para casa?

V. teve de cerrar os dentes quando terminou de fechar a calça. Em mais ou menos meia hora, suas bolas estariam tão azuis quanto o fundo das estrelas na bandeira americana: apenas uma vez nunca era o suficiente para ele. Precisava de cinco ou seis vezes para conseguir aquilo que necessitava em uma noite comum... e não havia nada de comum naquele momento.

– Você está na cobertura? – Jane disse em voz baixa.

– Sim.

Houve uma pausa tensa.

– Sozinho?

Bem, a vela era um objeto inanimado.

– Sim.

– Está tudo bem, V. – ela murmurou. – Pode pensar como está pensando agora.

– Como sabe o que há em minha mente?

– Por que haveria outra coisa dentro dela?

Deus... que fêmea de valor.

– Eu te amo.

– Eu sei. E posso dizer o mesmo. – Pausa. – Gostaria que... houvesse outra pessoa aí com você?

A dor na voz dela foi quase eclipsada pelo autocontrole, mas para ele a emoção soava tão alta e clara que parecia estar sendo emitida em um megafone.

– Isso é passado, Jane. Confie em mim.

– Eu confio. Não há dúvida disso. Cortaria sua mão boa para que eu acreditasse em você.

Então, por que perguntou?, pensou enquanto fechava os olhos e abaixava a cabeça. Bem, era óbvio. Ela o conhecia muito bem.

– Deus... Eu não a mereço.

– Sim, merece. Volte para casa. Veja sua irmã...

– Tem razão em me dizer o que fazer. Desculpe, fui um idiota.

– Tem o direito de ser. Tudo isso é muito estressante...

– Jane?

– Sim?

Tentou formar palavras, mas falhou; o silêncio estendeu-se entre eles outra vez. Maldição, não importava o quanto tentasse juntar frases, parecia que não existia uma combinação mágica de sílabas para expressar corretamente o que ele estava sentindo.

Por outro lado, talvez fosse menos culpa do vocabulário e mais do que tinha acabado de fazer consigo mesmo: sentia como se tivesse de confessar algo, mas não conseguia.

– Venha para casa – Jane interrompeu. – Venha vê-la e se eu não estiver na clínica, procure-me.

– Tudo bem. Eu vou.

– Vai ficar tudo bem, Vishous. E precisa se lembrar de uma coisa...

– Do quê?

– Sei com o que eu me casei. Sem quem é você. Não há nada que vá me chocar. Agora, desligue o telefone e vá para casa.

Depois que ele disse até logo e pressionou o botão end, não teve certeza sobre a coisa de “nada vai me chocar”. Tinha surpreendido a si mesmo naquela noite e não foi no bom sentido.

Colocando o telefone de lado, enrolou um cigarro e tateou os bolsos para encontrar um isqueiro, antes que levasse aquele lixo que era de volta ao centro de treinamento.

Olhou ao redor e observou uma daquelas malditas velas negras. Sem qualquer outra opção, aproximou-se e inclinou-se para acender o cigarro.

Voltar ao complexo da Irmandade era a coisa certa a se fazer, um plano bom e sólido.

Pena que aquilo lhe dava vontade de gritar até perder a voz.

Depois que terminou de fumar, quis apagar as velas e ir para casa. Quis mesmo.

Mas não foi o que fez.

Manny estava sonhando. Só podia ter sido isso.

Tinha uma vaga ideia de que estava em seu escritório, deitado de bruços sobre o sofá de couro onde cochilava regularmente. Como sempre, havia um uniforme cirúrgico enrolado sob a cabeça como um travesseiro e tirara o tênis.

Tudo isso era normal, como de costume.

Só que sua pequena soneca distorceu tudo... e, de repente, não estava sozinho. Estava sobre uma mulher...

Quando recuou surpreso, ela o encarou com olhos claros como o gelo, mas que estavam extremamente quentes.

– Como chegou aqui? – perguntou com voz rouca.

– Estou em sua mente – seu sotaque era estranho e muito sensual. – Estou dentro de você.

Então, percebeu que, sob seu corpo, ela estava nua e muito quente... e santo Deus, mesmo com toda aquela confusão, ele a desejava.

Era a única coisa que fazia algum sentido ali.

– Ensine-me – ela disse de maneira sombria, com os lábios entreabrindo-se e os quadris movimentando-se sob ele. – Possua-me.

A mão dela moveu-se entre os dois e encontrou a ereção de Manny. Fez ele gemer ao acariciá-la.

– Estou vazia sem você – ela disse. – Preencha-me. Agora.

Com um convite assim, não pensou sequer um segundo. Tateando, puxou o uniforme para baixo de suas coxas e, então...

– Oh, caramba... – gemeu quando seu pênis deslizou em direção ao núcleo escorregadio da mulher.

Um movimento a mais e estaria mergulhado profundamente dentro dela, mas forçou-se a não violar seu sexo naquele momento. Queria beijá-la primeiro e, mais precisamente, faria isso direito, pois... ela nunca tinha sido beijada antes...

Por que ele sabia disso?

Quem se importava?

E a boca não seria a única coisa a tocar com seus lábios.

Afastando-se um pouco, correu os olhos pelo pescoço dela, até sua clavícula... e percorreu ainda mais abaixo – ou ao menos tentou.

Foi aí que viu o primeiro sinal de que algo estava errado. Embora pudesse enxergar cada detalhe de seu rosto forte e belo e de seu longo cabelo negro trançado, a visão de seus seios estava nublada e permaneceu assim: não importava o quanto ele forçasse os olhos, não havia nitidez. Mas, de qualquer maneira, era perfeita para ele, não importava a aparência.

Perfeita para ele.

– Beije-me – ela suspirou.

Os quadris dele sentiram um impulso ao som de sua voz e quando sua ereção deslizou sobre o centro dela, o atrito o fez gemer. Deus, a sensação dela pressionando seu órgão, de seu pênis dividindo-a e enterrando-se nela, procurando por aquele doce local...

– Curandeiro – gemeu ao arquear-se para trás, sua língua saindo e deslizando-se sobre o lábio inferior... Presas.

As duas pontas brancas eram presas e ele congelou: aquele ser que estava embaixo dele, pronto para recebê-lo, não era humano.

– Ensine-me... possua-me...

Vampira.

Ele deveria ficar chocado e aterrorizado. Mas não ficou. De qualquer forma, aquilo que ela era incitava-lhe um desejo ainda maior de penetrá-la, com um desespero que o fazia suar. E havia algo mais... aquilo provocava nele um desejo de marcá-la.

Não importava o que aquilo quisesse dizer.

– Beije-me, curandeiro... e não pare.

– Não vou parar – ele gemeu. – Não vou parar nunca.

Quando ele inclinou a cabeça para levar seus lábios aos dela, seu pênis explodiu, o orgasmo que saiu dele espalhou-se sobre ela...

Manny acordou com um suspiro alto o suficiente para acordar os mortos.

E ah, droga, estava ereto, seus quadris rangendo o sofá enquanto memórias nebulosas e deliciosas de sua amante virgem faziam com que ainda sentisse as mãos dela sobre toda sua pele. Caramba, embora fosse claro que o sonho tivesse acabado, o orgasmo continuou vindo até que precisou cerrar os dentes e apertar um dos joelhos, o latejar do pênis bombeou uma onda de energia aos pesados músculos de suas coxas e peito, até não conseguir respirar.

Quando tudo acabou, jogou o rosto sobre as almofadas e fez o melhor que pôde para conseguir respirar um pouco, porque tinha a sensação de que a segunda rodada aconteceria muito em breve. Os tentáculos do sonho o atormentavam e faziam com que desejasse voltar àqueles momentos que não existiram, mas que, ainda assim, pareceram tão reais quanto a consciência do que sentia agora. Alcançando seus bancos de memória, puxou os arquivos de onde tinha estado, trazendo a fêmea de volta ao...

A dor de cabeça que se chocou contra suas têmporas o nocauteou... com certeza, se não estivesse na horizontal, teria caído com tudo no chão.

– Drooooga...

A dor era impressionante, como se alguém tivesse martelado o seu crânio com um tubo de chumbo, e isso foi um pouco antes de conseguir reunir forças para virar-se e tentar se sentar.

A primeira tentativa em colocar-se na vertical não foi muito boa. A segunda só foi bem-sucedida por que apoiou os braços ao lado do tronco para impedi-lo de cair novamente. Quando sua cabeça ficou pendurada em seus ombros como um balão sem ar, olhou o tapete oriental e esperou até sentir que conseguiria percorrer o trajeto até o banheiro para tomar algum analgésico.

Tinha muito aquelas dores de cabeça, pouco antes de Jane ter morrido...

Pensar em sua antiga chefe do departamento de traumatologia trouxe nova onda de dores que o faziam desejar que alguém atirasse em sua cabeça.

Respirar superficialmente e com o propósito de pensar em nada, absolutamente coisa nenhuma, de alguma forma ajudou-o a enfrentar o ataque. Quando a maior parte da agonia passou, experimentou levantar a cabeça... Apenas para sentir se era o caso de uma pequena mudança de altitude provocar outro ataque.

O relógio antigo atrás de sua mesa marcava quatro e dezesseis.

Quatro da manhã? Que diabos andou fazendo desde que saiu da clínica veterinária?

Ao fazer uma retrospectiva, lembrou-se de que tinha saído do Queens depois de deixar Glory para trás e sua intenção era ir para casa. Estava claro que não fora isso o que acontecera. E não fazia ideia de quanto tempo tinha permanecido dormindo em seu escritório. Olhando para o uniforme cirúrgico, viu que havia gotas de sangue aqui e ali... e seus tênis estavam dentro da bota azul, que sempre colocava para operar. Parece que tinha trabalhado em algum paciente.

Um novo surto de dor eclodiu em sua mente, fazendo com que tensionasse cada músculo de seu corpo e lutasse por controle. Percebendo que a resposta física era sua única aliada, deixou de lado todos os processos cognitivos enquanto respirava lenta e uniformemente.

Concentrando-se no relógio, viu o ponteiro marcar dezessete... depois dezoito... depois dezenove...

Vinte minutos depois, finalmente, conseguiu levantar-se e dirigir-se com um impulso até o banheiro. O interior do cômodo era muito luxuoso, ao estilo Ali Babá, com uma quantidade de mármore, cristal e bronze suficiente para deixar o local digno de um castelo – mas, naquela noite, todo aquele brilho fez com que ele soltasse um palavrão.

Abrindo a porta de vidro do box, acionou as torneiras e, em seguida, voltou-se para a pia, abriu a porta do armário onde havia o espelho e pegou o frasco do remédio. Cinco comprimidos de uma vez eram mais do que a dose recomendada, mas ele era um médico, droga, e estava prescrevendo a si mesmo a tomar mais de dois.

A água quente foi uma bênção, tirando não apenas os remanescentes daquele orgasmo incrível, mas também a tensão das últimas doze horas. Deus... Glory. Esperava do fundo do coração que estivesse bem. E aquela fêmea que tinha ope...

Quando sentiu uma nova pontada se aproximando, afastou qualquer pensamento que estava prestes a iniciar como se fosse veneno e focou-se apenas na maneira como a ducha atingia sua nuca e ombros, caindo pelas costas e peito.

Seu pênis estava ereto, bem duro mesmo.

A ironia de que a maldita coisa continuava toda alegrinha, apesar do fato de sua cabeça e outras partes do corpo estarem totalmente vacilantes, não era motivo de riso. A última coisa que tinha vontade de fazer era praticar mais alguns exercícios com a palma da mão, mas tinha a sensação de que aquela ereção que exibia permaneceria ali como uma escultura no gramado: duraria por tempo indeterminado até que desse um jeito nisso.

Quando o sabonete escorregou do suporte de bronze e caiu em seu pé como uma bigorna, ele amaldiçoou e deu um pulo... então, abaixou-se e o apanhou.

Escorregadio. Oh, tão escorregadio.

Depois de colocar o sabonete em seu lugar, deslizou a mão para o sul e agarrou seu pênis. Quando começou a roçar sua mão para cima e para baixo, aquela coisa toda envolvendo água quente e sabão foi muito eficiente, mas, ainda assim, um mau substituto para aquilo que tinha acontecido sobre aquela mulher...

Uma dor aguda, precisa, diretamente em seu lóbulo frontal.

Deus, era como se tivesse soldados armados cercando qualquer pensamento sobre ela.

Com uma maldição, calou seu cérebro, pois sabia que tinha de terminar aquilo que havia iniciado. Apoiando um braço contra a parede de mármore, deixou a cabeça cair enquanto bombeava a si mesmo. Sempre teve um forte impulso sexual, mas aquilo era totalmente diferente: um desejo perfurando qualquer camada de civilidade e percorrendo o âmago do seu ser era uma novidade total.

– Droga... – Quando o orgasmo o atingiu, rangeu os dentes e apoiou-se contra as paredes úmidas do banheiro. A liberação foi tão forte quanto aquela que teve no sofá, causando espasmos pelo corpo até que o pênis não era o único a mover-se de maneira incontrolável: cada músculo parecia estar envolvido no gozo e teve de morder os lábios para não gritar.

Quando a sessão de masturbação finalmente terminou, seu rosto estava esmagado contra o mármore e respirava como se tivesse atravessado Caldwell correndo.

Ou talvez tivesse corrido até o Canadá.

Voltando a colocar-se sob a ducha, lavou-se outra vez e saiu, pegando uma toalha e...

Manny olhou para os quadris.

– Ah! Está de brincadeira?

Seu pênis estava tão ereto quanto da primeira vez: destemido. Orgulhoso e forte como apenas um idiota poderia ser.

Que seja. Tinha terminado o serviço com ele.

Se acontecesse o pior, poderia simplesmente esconder a maldita coisa em suas calças. Era óbvio que o método de “aliviá-lo” não estava funcionando e estava esgotado. Que inferno, será que ia pegar uma gripe ou coisa assim? Só Deus sabia, trabalhando em um hospital poderia contrair várias coisas.

Incluindo amnésia, evidentemente.

Manny envolveu uma toalha em torno de si e saiu para o escritório... apenas para ficar congelado. Havia um aroma estranho impregnado no ar... alguma coisa parecida com... especiarias escuras?

Não era sua colônia, isso com certeza.

Atravessando o tapete oriental com seus pés nus, abriu a porta e se inclinou. Os escritórios administrativos estavam escuros e vazios e o cheiro não vinha de nenhum lugar dali.

Franzindo a testa, olhou para o sofá. Mas sabia muito bem que se apenas pensasse naquilo que tinha acabado de acontecer, ficaria excitado.

Dez minutos depois, estava vestido em uniformes cirúrgicos limpos e tinha se barbeado. O Sr. Feliz da Vida, que ainda estava ereto como um monumento nacional, estava preso a sua cintura e amarrado no lugar como o animal que era. Quando pegou sua bolsa e a mala que havia usado na viagem, estava totalmente pronto a deixar o sonho, a dor de cabeça e toda aquela maldita noite para trás.

Após passar em frente às portas dos escritórios de departamentos cirúrgicos, desceu de elevador até o terceiro andar, onde localizavam-se as salas de cirurgia. Os membros de sua equipe estavam ocupados com suas tarefas, operando em casos de emergência, lidando com a instalação ou o transporte de alguns pacientes, limpando, preparando. Acenou para as pessoas, mas não falou muito... Então, até onde sabiam, nada de diferente estava acontecendo. O que era um alívio.

E ele quase conseguiu chegar ao estacionamento sem perder essa sensação.

Contudo, não foi mais possível seguir sua estratégia quando chegou aos quartos de recuperação. Queria sair correndo por entre eles, mas seus pés o detiveram e sua mente se agitava... de repente, sentiu-se obrigado a seguir em direção a um deles. Enquanto seguia o impulso, sua dor de cabeça retornava à vida com todas as forças, mas ele deixou que continuasse ao entrar em uma sessão isolada que estava no caminho da saída de incêndio.

A cama contra a parede estava impecável, os lençóis tão bem colocados que pareciam ter sido passados a ferro contra o colchão. Não havia anotações da equipe no quadro branco, nenhum alerta sonoro de alguma máquina, nenhum computador conectado.

Mas o aroma de antisséptico exalava no ar. E também um perfume...?

Alguém havia estado ali. Alguém que ele tinha operado, naquela noite.

E ela tinha...

A agonia o esmagou, Manny moveu-se e perdeu o equilíbrio, segurando no batente da porta e inclinando-se para manter-se em pé. Quando sua enxaqueca, ou o que quer que fosse, piorou, teve de se curvar.

Foi quando ele viu.

Franzindo o cenho contra a dor, tropeçou na mesa de cabeceira e ajoelhou-se. No chão, tateou o espaço até encontrar o cartão dobrado.

Sabia o que era antes mesmo de olhar para a coisa, e, por alguma razão, quando o apanhou, seu coração partiu pela metade. Segurando com força, olhou para seu nome, título, endereço do hospital, telefone e fax impressos ali. Com sua letra, no espaço em branco à direita do logotipo do Hospital São Francisco, havia escrito seu número de celular.

Cabelos. Cabelos escuros trançados. Suas mãos desfaziam a trança...

– Filho da mãe... – Apoiou a palma de uma das mãos no chão, mas não teve jeito e acabou caindo, atingindo o chão de linóleo com força antes de rolar de costas. Quando balançou a cabeça e deixou-a tensa contra a agonia, sabia que suas pálpebras estavam arregaladas, mas não dava a mínima se não conseguia ver nada.

– Chefe?

Ao som da voz de Goldberg, o franco-atirador em suas têmporas deu um tempo, como se seu cérebro tivesse estendido a mão para o auditório salva-vidas e tivesse sido arrastado para longe dos tubarões, ao menos, temporariamente.

– Ei – ele gemeu.

– Você está bem?

– Sim.

– Dor de cabeça?

– Nem um pouco.

Goldberg riu brevemente.

– Olha, tem alguma coisa acontecendo. Tive quatro enfermeiras e dois administradores que caíram ao chão assim como você. Chamei uma equipe extra e mandei os outros para casa, para descansarem.

– Bem inteligente da sua parte.

– Adivinhe o que vou dizer agora.

– Não diga nada. Estou indo, estou indo. – Manny forçou-se a se sentar e, então, quando se sentiu pronto, conseguiu levantar-se usando os trilhos da cama do hospital.

– Deveria estar de folga neste fim de semana, chefe.

– Eu voltei. – Felizmente, Goldberg não perguntou sobre os resultados da corrida de cavalos. Por outro lado, não sabia que participava de algo assim para perguntar. Ninguém fazia ideia de quais eram as atividades de Manny fora do hospital, e isso se devia, em grande parte, a ele nunca achar que houvesse algo mais importante comparado ao que faziam no hospital.

Por que a vida dele parecia tão vazia de repente?

– Precisa de uma carona? – o chefe da traumatologia perguntou.

Deus, sentia falta de Jane.

– Ah... – qual foi a pergunta? Oh, certo. – Tomei alguns analgésicos... vou ficar bem. Mande uma mensagem se precisar de mim. – Na saída, bateu no ombro de Goldberg. – Fica responsável por tudo até amanhã, às sete da manhã.

A reação de Goldberg não foi registrada.

Aquela falta de memória já parecia ser sua trilha sonora. Manny não conseguia entender nada ao se dirigir à ala norte de elevadores e descer até o estacionamento... Era como se a última rodada do ataque tivesse derrubado tudo, menos o tronco cerebral. Saindo, colocou um pé na frente do outro até que conseguiu chegar à vaga que lhe era designada...

Onde diabos estava seu carro?

Olhou em volta. Todos os chefes em atividade tinham lugares marcados no estacionamento e seu Porsche não estava na vaga que era dele. As chaves também não estavam no bolso do terno.

A única boa notícia era que enquanto ficava realmente irritado, a dor de cabeça cessou completamente... contudo, era óbvio que aquilo era resultado do analgésico.

Onde. Diabos. Foi. Parar. Meu carro?!

Cara, não se podia apenas abaixar a janela, ligar o carro, engatar a embreagem e sair. Era necessário passar o cartão que guardava em sua... A carteira tinha ido embora também.

Ótimo. Era tudo o que precisava: uma carteira roubada, um Porsche a caminho de uma loja de desmanche ilegal e um passeio até a polícia.

Não havia um gabinete de segurança no estacionamento, então, ele resolveu ir andando em vez de ligar, pois, caramba, seu celular tinha sido levado também, que droga...

Ele engoliu em seco, então parou. No meio do caminho para a saída, na fila onde pacientes e famílias estacionavam, havia um Porsche 911 Turbo. Do mesmo ano que o dele. Mesmos adesivos na janela traseira.

Mesmo número de placa.

Aproximou-se do automóvel como se houvesse uma bomba instalada dentro dele. As portas estavam destrancadas e foi cauteloso ao acomodar-se no banco do motorista.

Sua carteira, chaves e celular estavam sob o assento dianteiro.

– Doutor? O senhor está bem?

Ceeerto. Parece que havia duas canções na trilha sonora daquela noite: nada de memórias e pessoas fazendo a única pergunta que ele não conseguiria responder com sinceridade.

Erguendo o olhar, perguntou-se o que exatamente ele poderia dizer ao segurança: ei, alguém deixou algum brinquedinho meu nos Achados e Perdidos?

– O que está fazendo estacionado aqui? – o cara de uniforme azul perguntou.

Não faço ideia.

– Alguém estava na minha vaga.

– Caramba, deveria ter ligado, amigo. Daríamos um jeito nisso rapidinho.

– Você é o melhor – ao menos isso não era uma mentira.

– Bem, cuide-se... e descanse. Não parece muito bem.

– Excelente conselho.

– Eu deveria ser médico. – O guarda levantou a lanterna formando uma onda no ar. – Boa noite.

– Boa noite.

Manny entrou em seu Porsche fantasma, ligou o motor e engatou a ré. Ao dirigir em direção à saída do estacionamento, tirou seu cartão de acesso e usou-o sem problemas para abrir o portão. Então, já na Avenida São Francisco, virou à direita e dirigiu-se ao centro, para o Commodore.

Enquanto guiava, tinha certeza de uma coisa e de apenas uma coisa: estava perdendo sua tão prezada sanidade.


CAPÍTULO 12

V. já deveria estar em casa, Butch pensou, enquanto observava o Buraco.

– Deveria estar aqui – Jane disse atrás dele. – Disse-lhe para fazer isso há quase uma hora.

– É verdade, é verdade – Butch murmurou ao checar o relógio de pulso. Outra vez.

Levantou do sofá de couro e contornou a mesa de café, dirigindo-se à instalação de computadores do seu melhor amigo. Os Quatro Brinquedos, como eram chamados aqueles aparelhos de alta tecnologia, valiam pelo menos uns cinquenta mil... e isso era tudo o que Butch sabia sobre eles.

Bem, isso e como usar o mouse para localizar o chip de GPS instalado no telefone de V.

Não havia razão para começar do zero. O endereço lhe disse tudo o que precisava saber... e a informação também provocou uma reviravolta em seu estômago.

– Ele ainda está no Commodore.

Quando Jane não disse nada, Butch afastou o olhar dos monitores. A shellan de Vishous estava parada próxima à mesa de pebolim, com os braços cruzados sobre o peito, o corpo e perfil tão translúcidos que era possível ver a cozinha através dela. Depois de um ano, tinha se acostumado bem com suas várias formas e aquela indicava que estava pensando com afinco em alguma coisa: sua concentração consumia outros objetivos que não incluíam permanecer corpórea.

Butch estava disposto a apostar que estavam pensando a mesma coisa: o fato de V. ficar no Commodore até mais tarde, mesmo sabendo que sua irmã tinha acabado de ser operada e que estava bem ali no complexo, era estranho – especialmente se considerassem o humor do Irmão, e seus extremos.

Butch foi até o armário e pegou o casaco de camurça.

– Existe alguma chance de você... – Jane parou e riu um pouco. – Leu meus pensamentos.

– Vou trazê-lo de volta. Não se preocupe.

– Certo. Tudo... bem. Acho que vou ficar com Payne.

– Boa ideia – a resposta rápida ia além dos benefícios clínicos que a irmã de V. teria com a presença da médica a seu lado... e achava que Jane sabia disso. Claro, ela não era estúpida.

E só Deus sabia o que iria encontrar no apartamento de V. Odiaria pensar no cara traindo-a com alguma vadia, mas as pessoas cometiam erros, especialmente quando estavam sob pressão. Era melhor que alguém, que não fosse Jane, desse uma olhada no que poderia estar acontecendo.

Dirigindo-se à saída, deu a ela um abraço rápido... o qual ela retribuiu imediatamente, solidificando-se e apertando-o de volta.

– Espero que... – ela não terminou a sentença.

– Não se preocupe – disse a ela, mentindo sem receio.

Um minuto e meio depois, estava atrás do volante do Escalade e dirigia como um morcego saído do inferno. Embora vampiros pudessem se desmaterializar, Butch era um mestiço e, como tal, o truque mágico não estava em seu repertório.

O bom era que não tinha problemas em quebrar o limite de velocidade, em pedaços.

O centro de Caldwell ainda estava adormecido quando chegou lá e, ao contrário do que se via em um dia útil, quando os caminhões de entrega estavam operando e as pessoas começavam a se dirigir para o trabalho bem cedo, antes de o sol nascer, o lugar era uma cidade fantasma. Domingo era um dia de descanso – ou para entrar em colapso, dependendo do quanto se trabalhava, ou se bebia.

Quando era detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Caldwell, familiarizou-se com o ritmo diurno – e noturno – daquele labirinto de becos e edifícios. Conhecia os lugares onde os corpos geralmente eram desovados ou ocultados e os maus elementos que faziam do assassinato uma profissão ou um entretenimento.

Fez muitas viagens como aquela, em uma corrida mortal, sem fazer ideia do que estava procurando. No entanto... quando comparava e pensava em seu novo trabalho inalando redutores com a Irmandade... Sentia a mesma sensação da onda de adrenalina que o percorria e do conhecimento cruel que a morte o aguardava.

E, assim, estava apenas a dois quarteirões do Commodore quando seu sentido aguçado disse-lhe que havia algo específico prestes a acontecer... redutores.

O inimigo estava próximo, e havia um bom número deles.

Não era instinto; era conhecimento. Desde que Ômega tinha feito aquilo com ele, tinha sido uma varinha de condão que indicava a localização do inimigo e, embora odiasse aquele mal dentro dele e não conseguisse praticar sua habilidade várias vezes seguidas, era uma arma letal naquela guerra.

Era a profecia Dhestroyer manifestada.

Com a nuca formigando freneticamente, estava algemado entre dois polos: a guerra e seu Irmão. Após um período no qual a Sociedade Redutora tinha se acalmado um pouco, havia assassinos surgindo em toda cidade; o inimigo deu uma de Lázaro, ressurgindo dos mortos, e renovou-se com novos membros. Logo, era muito provável que um de seus Irmãos estivesse tendo um fim de noite especial com o inimigo... nesse caso, logo entrariam em contato com ele para que cumprisse seu dever.

Caramba, será que era V.? Isso explicaria ficar fora até mais tarde.

Droga, talvez não fosse tão terrível quanto estavam imaginando. Com certeza estava próximo o suficiente do Commodore para justificar a leitura do GPS e, quando se está em uma luta mano a mano, não tem como pressionar um botão de pausa e enviar uma mensagem de texto dando uma previsão de quando chegaria em casa.

Quando Butch dobrou a esquina, os faróis do Escalade viraram-se para uma passagem longa e estreita, que era o equivalente urbano de um cólon: os edifícios de tijolos que formavam suas paredes estavam sujos e suados e a pista de asfalto pontuada por poças imundas.

– Mas que... porcaria é essa? – sussurrou. Tirando o pé do acelerador, inclinou-se sobre o volante... como se aquilo mudasse o que estava vendo.

Na outra extremidade, uma luta estava em andamento, três redutores enchiam de pancadas um único oponente, que não estava revidando.

Butch estacionou o carro e saiu rapidamente do banco do motorista, percorrendo o asfalto em uma corrida mortal. Os assassinos tinham formado um triângulo ao redor de Vishous e o idiota, filho da mãe, estava virando-se lentamente em círculos, mas não para golpear ou tentar se proteger. Deixava cada um deles ter uma chance com ele... e tinham correntes.

Sob a luz amarelada da cidade, o sangue vermelho escorria no couro preto e o corpo maciço de V. absorvia os golpes dos elos que voavam ao redor dele. Se quisesse, poderia agarrar as extremidades daquelas correntes, puxar os assassinos e dominar o ataque... não eram nada além de novos recrutas que ainda tinham a cor dos olhos e cabelos inalterada, ratos de rua que haviam sido induzidos há pouco mais de uma hora.

Meu Deus, considerando o autocontrole de V., poderia ter se concentrado e se desmaterializado para fora do ringue se quisesse.

Em vez disso, estava em pé com os braços erguidos colocados sobre os ombros, de modo que não havia barreira entre os impactos e seu tronco.

O idiota desgraçado ia acabar parecendo uma vítima de acidente de carro se continuasse com aquilo – ou pior.

Aproximando-se da pancadaria, Butch correu, pulou e desabou sobre o assassino mais próximo. Quando um deles atingiu a calçada, agarrou um punhado de cabelos escuros, puxou-o para trás e cortou profundamente a garganta. Sangue negro jorrou da jugular e espirrou ao redor do local, mas não havia tempo para virar o assassino e inalar a essência de seus pulmões – deixaria a hora da limpeza para depois.

Butch ficou em pé com um salto e pegou a extremidade de uma corrente que voava pelo ar. Dando um forte puxão, inclinou-se para trás e impulsionou o corpo, alavancando o redutor para fora da sessão de flagelo e atirou-o numa lixeira girando como o Diabo da Tasmânia.

Enquanto o morto-vivo via estrelas e transformava-se em um tapete de boas-vindas para os próximos lixos arremessados ali, Butch virou-se e estava pronto para acabar com aquela coisa... só que... Mas que surpresa! V. decidiu acordar e dar conta do negócio. Mesmo o Irmão estando claramente ferido, tinha uma força considerável quando chutou e atacou com suas presas expostas. Cortando a distância com aqueles dentes alongados, mordeu o ombro do redutor e agarrou-se a ele como um buldogue, em seguida, golpeou o intestino do filho da mãe com a adaga negra.

Enquanto toda aquela questão intestinal atingia o pavimento em uma bagunça desleixada, V. soltou a mordida e deixou o assassino cair esparramado, e então, não sobrara nada além de respiração crua e superficial.

– Que diabos... você... estava... fazendo? – Butch exclamou.

V. dobrou-se pela cintura e apoiou as mãos sobre os joelhos, mas era evidente que aquilo não tinha sido alívio suficiente para a agonia que havia dentro dele: a próxima coisa que Butch viu foi o Irmão caindo de joelhos ao lado do assassino que tinha estraçalhado e simplesmente... suspirar.

– Responda-me, idiota – Butch estava tão irritado, que estava prestes a chutar a cabeça do filho da mãe. – Que porcaria é essa que está fazendo?

Quando uma chuva fria começou a cair, sangue vermelho escorreu da boca de V. e ele tossiu algumas vezes. Isso foi tudo.

Butch passou uma das mãos pelo cabelo molhado e ergueu o rosto para o céu. Quando gotas finas salpicaram sua testa e bochechas, a bênção do refrescamento de alguma forma acalmou-o. Mas não fez nada para aliviar o vazio em seu estômago.

– Até onde ia permitir que aquilo chegasse, V.?

Não queria uma resposta; sequer estava falando com seu melhor amigo. Estava apenas olhando o céu noturno com suas estrelas desbotadas e a vasta extensão misteriosa, na esperança de obter alguma força. E, então, deu-se conta. Alguns pontos de brilho fraco que havia acima deles não vinham apenas das luzes da cidade... o sol estava prestes a flexionar seus bíceps brilhantes e iluminar toda aquela parte do mundo.

Tinha de agir rápido.

Enquanto Vishous cuspia outro coágulo de sangue no asfalto, Butch concentrou-se na adaga que estava em sua mão. Não havia tempo para inalar os assassinos, mas esse não era o ponto: depois de acabar sua tarefa como Dhestroyer, tinha de ser curado por V. ou se revolveria na terra enquanto Ômega continuava a consumi-lo. Mas, agora? Mal conseguia confiar em si mesmo para se sentar ao lado do Irmão na volta para casa.

Pelo amor de Deus, V. queria uma boa surra?

Bem, sentia como se o desgraçado fosse lhe dar uma.

Enquanto Butch esfaqueava o redutor com o vazamento intestinal, enviando-o de volta a Ômega, Vishous sequer piscou com o estalo e o brilho que surgiram ao lado dele. E não percebeu quando Butch aproximou-se do que estava com o pescoço fatiado, fazendo-o desaparecer.

O último assassino foi o Garoto do Lixo, que tinha conseguido juntar forças suficientes para erguer-se na lata, que era do tamanho de um carro, e pendurar-se na borda como um zumbi.

Correndo, Butch levantou a adaga acima do ombro, pronto para...

Quando estava prestes a golpeá-lo, um aroma pairou em seu nariz, algo que não era apenas a eau1* d’ inimigo... mas outra coisa. Algo com o que estava muito familiarizado.

Butch terminou de dar a facada e, quando a chama desvaneceu, olhou para o topo da caçamba. Uma das metades da tampa estava fechada; a outra estava pendurada, torta para o lado de fora, como se tivesse sido descascada por um caminhão, e a tênue luz que o farol emitia não fosse suficiente para passar por ela. Aparentemente, o edifício cuja caçamba servia abrigava algum tipo de metalurgia, pois havia um emaranhado de metal dentro dela, parecendo uma peruca muito louca de Halloween...

E, dentre esses metais, havia algo pálido e sujo com dedos pequenos e finos...

– Droooga – ele sussurrou.

Anos de treinamento e experiência fizeram-no voltar aos tempos de detetive, mas teve de se lembrar que não havia mais tempo para ele naquele beco. O amanhecer estava chegando e se não conseguisse terminar o que estava fazendo e voltar para o complexo, seria transformado em fumaça.

Além disso, seus dias como policial tinham passado há muito tempo.

Aquilo era assunto humano. Não dizia mais respeito a ele.

Com um humor horrível, correu para o carro, ligou o motor e acelerou, apesar da distância a ser percorrida resumir-se a apenas vinte metros. Quando pisou no freio, o Escalade guinchou e derrapou no asfalto úmido, parando apenas a um metro do corpo dobrado de V.

Enquanto o limpador do para-brisa do automóvel movia-se para lá e para cá, Butch desceu a janela do lado do passageiro.

– Entre no carro – ordenou, olhando para frente.

Nenhuma resposta.

– Entre nesse maldito carro.

De volta à clínica da Irmandade, Payne escontrava-se em outro quarto que não aquele onde estava antes e, mesmo assim, tudo parecia diferente: estava deitada imóvel em uma cama que não era sua em um estado de agitação impotente.

A única diferença era que agora seu cabelo estava solto.

Quando pensamentos sobre seus últimos momentos com seu curandeiro invadiram sua mente, ela permitiu que tomassem conta dela, cansada demais para lutar contra isso. Como será que ela o deixou? Tirar suas memórias parecia um roubo e, em seguida, seu olhar a assustou. E se ela tivesse feito algum mal a ele...

Ele era inocente nisso... usaram-no e, depois, descartaram-no, sendo que merecia algo muito melhor que essa atitude. Mesmo que ele não a tivesse curado, fez o melhor que podia, disso tinha certeza.

Depois que o tinha enviado para o lugar mais provável que poderia estar naquela hora da noite, foi torturada pelo arrependimento... e tinha total consciência de que não era confiável se mantivesse qualquer informação sobre como entrar em contato com ele. Aqueles momentos elétricos entre eles foram tentadores demais para que conseguissem afastar-se deles com tanta facilidade, e a última coisa que ela queria era roubar mais de suas memórias.

Com uma força vinda do medo, desfez sua trança para tirar aquilo que ele havia colocado ali para ela – até que o pequeno cartão caiu ao chão.

E agora ela estava ali.

Na verdade, a única solução para os dois era interromper qualquer comunicação. Se ela sobrevivesse... poderia procurá-lo... e para quê?

Ah, quem estava enganando? O beijo que nunca aconteceu. Seria por isso que iria procurá-lo. E não iam parar por aí.

Pensamentos sobre a Escolhida Layla vieram a sua mente, e ela desejou voltar àquela conversa que tiveram no espelho d’água há apenas alguns dias. Layla havia encontrado um homem com quem queria se vincular, e Payne havia pensado que ela tinha ficado louca... tal atitude mostrou-se ter sido tomada pela ignorância. Em menos tempo que se levava para fazer uma refeição, seu curandeiro humano tinha lhe ensinado o que podia sentir pelo sexo oposto.

Com certeza, nunca esqueceria a aparência dele, parado ao pé da cama com o corpo totalmente excitado e pronto para possuí-la. Os machos eram magníficos daquela maneira e que surpresa foi aprender isso.

Bem, seu curandeiro era magnífico. Não acreditava que teria sentido o mesmo por qualquer outra pessoa, e ficou imaginando como seria ter os lábios dele junto aos dela. O corpo dele dentro dela...

Ah, quantas fantasias alguém poderia criar quando se sente sozinho e melancólico.

Na verdade, que futuro poderiam ter juntos? Era uma fêmea que não se encaixava em lugar nenhum, uma guerreira presa dentro da pele tépida do corpo de uma Escolhida... sem contar com o problema da paralisia. Enquanto isso, ele era um homem vibrante e sensual de uma espécie diferente da sua.

O destino nunca trabalharia para uni-los e, talvez, isso fosse bom. Seria cruel demais – para os dois, pois nunca poderiam ter um acasalamento cerimonial ou físico: ela estava escondida no enclave secreto da Irmandade, e se o protocolo do Rei não os separasse, seu irmão, com certeza, faria isso e de maneira bastante violenta.

Não era para ser.

Quando a porta se abriu e Jane entrou, foi um alívio focar-se em outra pessoa. Payne tentou esboçar um sorriso para a companheira fantasmagórica do seu irmão gêmeo.

– Está acordada? – Jane disse, aproximando-se.

Payne franziu a testa ao ver a expressão tensa da fêmea.

– Está tudo bem?

– Mais importante: como você está? – Jane encostou o quadril na cama com os olhos observando os aparelhos que monitoravam cada movimento sanguíneo e pulmonar. – Consegue descansar melhor?

Nem um pouco.

– Sim, de fato. E agradeço por tudo que tem feito por mim. No entanto, diga-me, onde está meu irmão?

– Ele... não está em casa ainda. Mas chegará em breve. E vai querer vê-la.

– Eu também.

A shellan de V. pareceu ficar sem palavras nesse momento; e o silêncio disse muito.

– Não sabe onde ele está, não é? – Payne murmurou.

– Oh... conheço o lugar onde ele se encontra; conheço muito bem.

– Então, está preocupada com suas predileções? – Payne encolheu-se um pouco. – Perdoe-me. Fui brusca demais.

– Está tudo bem. Na verdade, eu prefiro o brusco ao educado. – Jane fechou os olhos por alguns instantes. – Então, você sabe... sobre ele?

– Tudo. Tudo mesmo. E o amava antes de sequer encontrá-lo.

– Como você... conseguiu...

– Saber? Esta é uma das possíveis atividades de uma Escolhida. As tigelas de visões permitiram-me observá-lo por todas as fases de sua vida. E ouso dizer que esta, com você, está sendo a melhor delas.

Jane fez um barulho evasivo.

– Sabe o que vai acontecer?

Ah, sempre a mesma questão... e quando Payne pensou sobre suas pernas, perguntou-se algo semelhante.

– Infelizmente, não posso dizer, só nos é mostrado o passado ou momentos do presente.

Houve um longo silêncio e Jane disse:

– Acho tão difícil acompanhar Vishous algumas vezes. Ele está bem diante de mim... mas não consigo chegar até ele. – Os olhos verdes-escuros brilharam. – Ele odeia emoção e é muito independente. Bem, eu sou assim também. Infelizmente, em situações como essa, sinto que não conseguimos ficar lado a lado, faz sentido? Deus, olha só o que estou dizendo. Estou divagando... parece que tenho problemas com ele.

– Pelo contrário, sei o quanto o adora. E tenho algum conhecimento sobre a natureza dele. – Payne pensou nos abusos cometidos contra seu irmão gêmeo. – Ele já lhe contou sobre nosso pai?

– Não.

– Estou surpresa.

Os olhos de Jane detiveram-se nos dela.

– Como era Bloodletter?

O que responder a isso?

– Digamos apenas que... eu o matei por aquilo que fez a meu irmão... e vamos encerrar o assunto assim.

– Deus...

– Era como o diabo, se aplicar às tradições humanas.

Jane franziu a testa com força suficiente para enrugá-la.

– V. nunca fala sobre o passado. Nunca. E mencionou apenas uma vez o que aconteceu com seu... – parou nesse momento. Todavia, na verdade, não havia razão para continuar uma vez que Payne sabia muito bem sobre o fato ao qual a fêmea se referia. – Talvez, eu devesse tê-lo pressionado, mas não fiz isso. Falar sobre coisas profundas o aborrece, então, deixo-o em paz.

– Conhece-o muito bem.

– Sim; e por conhecê-lo, estou preocupada com o que fez esta noite.

Ah, sim. Ele adorava aqueles amantes sangrando.

Payne estendeu a mão e acariciou o braço translúcido da médica... e ficou surpresa ao ver que o local onde tocou tornou-se corpóreo. Quando Jane começou a tomar forma, desculpou-se, mas a companheira de seu irmão gêmeo balançou a cabeça.

– Por favor, não se desculpe. Engraçado... apenas V. pode fazer isso comigo. Todos os outros simplesmente atravessam meu corpo.

E não havia metáfora nisso.

Payne falou em alto e bom som:

– Você é a shellan certa para meu irmão. E ele ama apenas você.

– Mas e se eu não puder dar o que ele precisa – a voz de Jane saiu entrecortada.

Payne não tinha uma resposta fácil para aquela pergunta, e, antes que pudesse formular alguma coisa, Jane disse:

– Não deveria estar conversando com você assim. Não quero que se preocupe conosco ou que fique em uma situação constrangedora.

– Nós duas o amamos e sabemos quem ele é; logo, não há nada pelo que se constranger. E antes que peça, não direi nada a ele. Tornamo-nos irmãs de sangue quando vinculou-se a ele e manterei sua confiança em meu coração.

– Obrigada – Jane disse em voz baixa. – Um milhão de vezes, obrigada.

Naquele momento, um acordo foi firmado entre elas, um vínculo sem palavras que constituía a força e a estrutura de toda família, fosse ela unida pelo nascimento ou pelas circunstâncias.

Que fêmea de valor, Payne pensou.

Isso a fez lembrar-se de outra coisa.

– Meu curandeiro. Como você o chama?

– Seu cirurgião? Está falando do Manny... do Dr. Manello?

– Ah, sim. Ele deixou uma mensagem para você. – Jane pareceu enrijecer. – Disse que a perdoa. Por tudo. Acho que deve saber a que ele se refere.

A companheira de Vishous suspirou, os ombros relaxaram.

– Deus... Manny – balançou a cabeça. – Sim, sim, eu sei. Espero realmente que ele saia bem dessa. Há muitas memórias apagadas naquela mente.

Payne não pôde mais ouvir.

– Posso perguntar... como você o conheceu?

– Manny? Foi meu chefe durante anos. O melhor cirurgião com quem eu já trabalhei.

– Ele está vinculado a alguém? – Payne perguntou com uma voz que esperava ter soado casual.

Jane riu.

– Não... embora Deus seja testemunha de que sempre havia mulheres ao redor dele.

Quando um rosnado sutil pairou no ar, a boa médica piscou surpresa e Payne silenciou rapidamente a possessão que não tinha direito de sentir.

– Que... que tipo de fêmea o agrada?

Jane revirou os olhos.

– Loira, com pernas longas e seios grandes. Não sei se conhece a boneca Barbie, mas este sempre foi seu tipo.

Payne franziu a testa. Não era loira nem tinha muito volume nos seios... mas, pernas longas? Poderia agradar nesse quesito...

Por que estava pensando assim?

Fechando os olhos, rezou para que aquele macho nunca, jamais encontrasse a Escolhida Layla. Mas como aquilo era ridículo...

A companheira de seu irmão acariciou seu braço gentilmente.

– Sei que está exausta, então, vou deixá-la descansar. Se precisar de mim, apenas pressione o botão vermelho no apoio da cama que virei atendê-la imediatamente.

Payne forçou-se a abrir os olhos.

– Obrigada, curandeira. E não se preocupe com meu irmão; ele vai voltar para você antes do amanhecer.

– Espero que sim – Jane disse. – Espero mesmo... Ouça, descanse e depois, no fim da tarde, iniciamos a fisioterapia.

Payne desejou um bom-dia à fêmea e cerrou os olhos outra vez.

Deixada ali sozinha, viu que conseguia compreender como a fêmea se sentia com a ideia de Vishous estar com outra pessoa. Imagens do curandeiro ao lado da Escolhida Layla deixaram-na enjoada... mesmo sem qualquer motivo para a indigestão.

Em que confusão se encontrava. Presa naquela cama de hospital, sua mente estava cheia de pensamentos emaranhados sobre um macho ao qual, de muitas maneiras, não tinha direito algum...

Ainda assim, a ideia dele dividindo aquela energia sexual com outra pessoa que não fosse ela deixou-a totalmente transtornada. Pensar que havia outras fêmeas ao redor de seu curandeiro, buscando o que ele parecia estar pronto para dar a ela, desejando aquela extensão rígida em seus quadris e a pressão de seus lábios contra sua boca...

Quando rosnou outra vez, soube que ter deixado aquele cartão com os contatos dele para trás foi a melhor coisa a fazer. Senão, teria feito uma carnificina com as amantes dele.

Afinal, não tinha problemas em matar.

Sua história já havia mostrado isso com clareza.

Eau significa água em francês. A autora faz menção às águas de cheiro francesas. (N.E.)

 


                                     CONTINUA