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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE MEU / J. R. Ward
AMANTE MEU / J. R. Ward

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

ACAMPAMENTO DE GUERRA DE BLOODLETTER, ANTIGO PAÍS, 1644
Desejava ter mais tempo.
Contudo, para dizer a verdade, o que isso mudaria? O tempo importa apenas se você fizer algo com ele – e já tinha feito tudo o que podia ali.
Darius, filho nascido de Tehrror, filho rejeitado de Marklon, sentou-se no chão de terra com seu diário aberto sobre os joelhos e uma vela de cera a sua frente. A iluminação que havia era nada além da pequena chama que vacilava em uma corrente de ar, seu quarto era um canto afastado de uma caverna. Sua roupa era de couro cru, pronta para a batalha, e suas botas eram do mesmo material.
No nariz, o cheiro pungente de suor masculino e terra se misturava com o doce aroma de morte e decadência que vinha do sangue dos redutores.
Cada respiração que dava parecia ampliar o odor.
Folheando as páginas do pergaminho, ele voltou no tempo, retrocedendo os dias um a um até não estar mais ali no acampamento de guerra.
Ansiava pelo “lar” com uma dor física, sua permanência naquele campo era mais uma amputação do que um remanejamento.
Tinha sido criado em um castelo onde a elegância e a graça estavam emaranhadas no tecido da vida. Dentro das muralhas que protegiam sua família dos humanos e dos redutores, todas as noites eram cálidas e cheiravam a rosas como as noites de verão. Os meses e os anos passavam com facilidade e prazer. Os cinquenta quartos pelos quais ele tantas vezes vagou eram ornamentados com cetins e sedas, a mobília era de madeira preciosa e a tapeçaria entrelaçada, nada de junco. As pinturas a óleo que brilhavam nas molduras douradas e o estatuário de mármore que reproduzia poses nobres completavam o cenário de platina que ancorava uma existência de diamante.
Parecia inimaginável que algum dia ele se encontrasse onde estava agora. No entanto, havia uma fraqueza vital na fundação daquela sua vida.
O batimento cardíaco de sua mãe lhe dava o direito de estar sob aquele teto, seguro dentro daquele núcleo cheio de mimos. E quando esse órgão vital e amoroso parou dentro do peito dela, Darius não apenas perdeu sua mahmen biológica, mas também o único lar que conhecia.
Seu padrasto o expulsou e o relegou àquilo, demonstrando uma inimizade há muito tempo oculta que foi exposta e colocada em prática.
Não houve tempo para lamentar sua mãe. Tempo algum para quebrar a cabeça com o abrupto ódio do macho que praticamente o criara. Não houve tempo para lamentar sua identidade perdida de macho de boa linhagem dentro da glymera.
Ele havia sido deixado na entrada daquela caverna como um ser humano que sucumbiu à praga. E as batalhas começaram antes que sequer visse um redutor ou que começasse a treinar para combater os assassinos. Na primeira noite e dia dentro do cerne daquele acampamento, foi atacado por colegas em treinamento que viram suas vestimentas finas – as únicas peças de roupas que permitiram levar com ele – como evidência de que era um fraco.
Surpreendeu não apenas a eles, mas a si mesmo durante aquelas horas obscuras.
Foi então que entendeu, assim como eles entenderam, que embora tivesse sido criado por um macho aristocrata, havia componentes de um guerreiro no sangue de Darius. Na verdade, não de apenas um soldado. Mas sem dúvida, um Irmão. Sem ser ensinado, seu corpo sabia o que fazer e reagiu à agressão física com uma atitude assustadora. Mesmo com sua mente lutando contra a brutalidade de seus atos, suas mãos, pés e presas sabiam exatamente o esforço necessário a ser dispensado.
Havia outro lado nele, desconhecido, irreconhecível... que de alguma maneira parecia-se mais com “ele” do que o reflexo que observou por tanto tempo dentro do espelho daquela casa.
Com o tempo, ficou ainda mais hábil na luta... e seu horror a si mesmo diminuiu. Pois, na verdade, não havia outro caminho pelo qual trilhar: a semente de seu verdadeiro pai, e do pai de seu pai, e do pai de seu avô determinava sua pele, ossos e músculos, a pura linhagem guerreira o transformava em uma força poderosa.
E um oponente terrível e mortal.
Na verdade, considerava muito perturbador ter essa outra identidade. Era como se projetasse duas sombras no chão sobre o qual andava, como se onde quer que ficasse existissem duas fontes separadas de luz que iluminavam seu corpo. E, ainda assim, apesar de conduzir a si mesmo de uma maneira tão violenta e repugnante que ofendia as sensibilidades as quais havia sido ensinado, sabia que fazia parte do propósito maior ao qual estava destinado a servir. E isso o salvou muitas e muitas vezes... daqueles que buscavam prejudicá-lo dentro do acampamento e daquele que parecia desejar todos eles mortos. De fato, Bloodletter era supostamente o ghia deles, mas agia como um inimigo, mesmo quando os instruía nos caminhos da guerra.
Ou talvez aquele fosse o ponto. A guerra era feia, não importava a faceta que se apresentava dela, se era a preparação ou a participação.
O ensinamento de Bloodletter era brutal, e suas ordens sádicas exigiam ações das quais Darius não tomaria parte alguma. Na realidade, Darius era sempre o vencedor em competições de combate entre os alunos... mas não participava do estupro que era a punição infligida aos derrotados. Era o único cuja recusa era honrada. Sua negação foi desafiada apenas uma vez por Bloodletter, e quando Darius quase o derrotou, o macho nunca mais o abordou outra vez.
Os perdedores de Darius, que eram numerosos dentre aqueles que estavam no acampamento, eram punidos pelos outros – e era durante aquelas horas, quando o resto do acampamento estava ocupado com o espetáculo, que ele se consolava em seu diário. Na realidade, naquele momento não conseguia tolerar nem mesmo um olhar na direção da arena principal, em direção àquelas sessões que aconteciam ali.
Odiava provocar aquilo outra vez... mas não tinha escolha alguma. Ele tinha que treinar, tinha que lutar e tinha que vencer. E a soma resultante daquela equação era determinada pela lei de Bloodletter.
Da cova onde ardia a pira, grunhidos e aclamações de escárnio se erguiam.
Seu coração doía muito com os sons e fechava os olhos. Naquele momento, quem exigia a punição no lugar de Darius era um macho cruel, bem ao molde de Bloodletter. Muitas vezes ele dava um passo à frente para preencher o vazio enquanto apreciava a dor e humilhação tanto quanto apreciava uma bebida.
Mas talvez não fosse mais assim. Ao menos para Darius.
Esta noite seria seu teste no campo. Depois de ter sido treinado por um ano, estava saindo não apenas com guerreiros, mas com Irmãos. Essa era uma honra rara – e um sinal de que a guerra com a Sociedade Redutora estava, como sempre, medonha. A competência inata de Darius ganhou notoriedade, e Wrath, o Rei Justo, decretou que ele deveria ser retirado do acampamento para desenvolver suas habilidades com os melhores lutadores da raça vampira.
A Irmandade da Adaga Negra.
Mas tudo poderia ser em vão. Se naquela noite ele provasse ser capaz apenas de treinar e lutar com outros de sua laia, então seria lançado de volta àquela caverna para mais uma rodada de “ensinamentos” de Bloodletter.
Nunca mais seria testado pelos Irmãos outra vez, relegado a servir como um soldado.
Tinha-se apenas uma única chance com a Irmandade e o teste naquela noite de lua cheia não se tratava de estilos de luta ou armamento. Era um teste de coração. Será que ele conseguiria olhar dentro dos olhos pálidos do inimigo, cheirar seu aroma doce e manter sua mente tranquila enquanto seu corpo agia...?
Os olhos de Darius se ergueram das palavras que havia colocado no pergaminho há muito tempo. Na entrada mais secreta da caverna, um grupo de quatro machos estava parado: eram altos, com ombros largos e fortemente armados.
Membros da Irmandade.
Conhecia aquele quarteto pelo nome: Ahgony, Throe, Murhder, Tohrture.
Darius fechou seu diário, o deslizou para dentro de uma fenda na rocha e lambeu o corte em seu pulso que fizera para criar a “tinta”. A pena que usava para escrever foi retirada de um faisão e estava extinguindo-se rapidamente. Não tinha certeza se voltaria ali outra vez para usá-la, mas a guardou.
Ao levantar a vela e erguer até a boca, foi atingido pela qualidade amanteigada da luz. Passou tantas horas escrevendo sob aquela iluminação branda e suave... que na verdade, parecia o único laço que existia entre sua vida do passado e sua existência atual.
Apagou a pequena chama com um único sopro.
Levantando-se, juntou suas armas: uma adaga de aço que retirara do corpo gelado de um recruta morto e uma espada da tenda de treinamento com armas. Nenhum dos dois cabos tinha sido ajustado para sua palma, mas sua mão eficiente não se importava.
Enquanto os Irmãos olhavam em sua direção e não ofereciam nenhuma saudação, desejou que dentre eles estivesse seu verdadeiro pai. Como seria diferente toda aquela situação se tivesse ao seu lado alguém que se importasse com o resultado: não procurava por simpatia nem tratamento especial, mas estava completamente sozinho agora, separado daqueles que viviam ao seu redor, separado por uma divisão que conseguia observar, mas nunca ultrapassar.
Não ter mais sua família era uma prisão estranha, invisível, as barras de solidão e instabilidade se fechavam cada vez mais com o passar dos anos e com as experiências que se acumulavam, isolando-o de tal forma que não tocava nada e nada o tocava.
Darius não olhou para trás, para o acampamento, enquanto caminhava em direção aos quatro que vieram buscá-lo. Bloodletter sabia que estava saindo para lutar e não se importava se retornaria ou não. E os outros recrutas agiam da mesma maneira.
Ao se aproximar deles, desejou ter mais tempo para se preparar para aquele teste de vontade, força e coragem. Mas era aqui e agora.
Realmente, o tempo avança mesmo quando se deseja que diminuísse a velocidade a passos de tartaruga.
Parando diante dos Irmãos, ansiou por uma palavra de estímulo, um desejo de boa sorte ou um voto de confiança vindo de alguém. Como nada disso chegou até ele, ofereceu uma breve oração para a sagrada mãe da raça:
Querida Virgem Escriba, por favor, não me deixe falhar.

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1

Outra maldita borboleta.

Quando RIP olhou para quem entrava pela porta de sua loja de tatuagens, sabia que ia acabar fazendo outra maldita borboleta. Ou duas.

Sim. Considerando as duas loiras altas e saltitantes que vinham rebolando e rindo em direção à sua recepcionista, com certeza não iria tatuar algo como crânios e ossos.

Aquelas duas Paris Hiltons com seu jeito de “somos tão más” o fizeram olhar para o relógio... e desejar estar fechado agora.

Cara... as coisas que ele fazia por dinheiro. A maioria das vezes conseguia assumir uma atitude “tudo bem, tanto faz” com relação aos pesos leves que entravam para serem marcados, mas naquela noite qualquer coisa que fosse cor-de-rosa iria incomodar. Difícil se entusiasmar com uma Hello Kitty quando havia acabado de passar três horas fazendo um retrato num motociclista que tinha perdido seu melhor amigo na estrada. Isto era a vida real; o outro, era desenho animado.

Márcia, sua recepcionista, se aproximou dele.

– Tem tempo para fazer uma rápida? – Ela ergueu as sobrancelhas perfuradas enquanto revirava os olhos. – Não deve demorar muito.

– Sim. – Ele acenou com a cabeça para a cadeira acolchoada. – Traga a primeira até aqui.

– Elas querem fazer juntas.

Claro que queriam.

– Tudo bem. Pegue o banquinho nos fundos.

Quando Mar desapareceu por trás de uma cortina e ele se endireitou, as duas que estavam próximas à caixa registradora seguraram a mão uma da outra e começaram a tagarelar sobre os formulários de consentimento que tinham que assinar. De vez em quando lançavam olhares demorados como se, com todas as suas tatuagens e metais, ele fosse um tigre exótico num jardim zoológico... e que tinha sido totalmente aprovado.

Certo. Ele cortaria suas bolas antes de ter qualquer coisa com mulheres como aquelas, mesmo que fosse uma transa apenas.

Depois de Mar pegar o dinheiro, trouxe-as até ele e as apresentou como Keri e Sarah. O que era mais do que esperava. Estava se preparando para ouvir Tiffany e Brittney.

– Quero uma carpa arco-íris – Keri disse enquanto se aproximava da cadeira arqueando-se de uma maneira que pretendia claramente ser sedutora. – Bem aqui.

Ela puxou sua blusa apertada, abriu o zíper da calça jeans e empurrou para baixo a cintura de sua calcinha rosa. Havia uma argola em seu umbigo com um coração de brilhantes rosa e ficou claro que ela fazia depilação por eletrólise.

– Certo – RIP disse. – Que tamanho?

Keri, a Sedutora, pareceu murchar um pouco – como se estivesse um pouco decepcionada com a indiferença perante seu traseiro.

– Hum... não muito grande. Meus pais me matariam se soubessem que estou fazendo isso... então não pode aparecer num biquíni.

Claro que não.

– Dois centímetros? – Ergueu a mão tatuada e deu uma ideia da dimensão.

– Talvez... um pouco menor.

Com uma caneta preta fez um esboço, e depois que ela pediu para que ele respeitasse os limites das linhas, pegou suas luvas pretas, uma agulha nova e ajustou sua pistola.

Levou mais ou menos um segundo e meio para que Keri derramasse lágrimas e segurasse a mão de Sarah como se fosse dar à luz sem anestesia. E essa é a diferença, não é? Existe um fosso enorme separando quem quer ser durão e quem realmente é. Borboletas, carpas e coraçõezinhos fofos não eram...

A porta da loja abriu com força... e RIP endireitou-se um pouco em seu banco com rodinhas.

Os três homens que entraram não usavam uniformes militares, mas definitivamente não eram civis. Vestidos com couro negro desde as jaquetas até as calças e botas, eram homens enormes que estreitavam as paredes da loja e encolhiam o teto para baixo. Havia várias protuberâncias sobre os casacos. Provavelmente armas e talvez facas. Com um movimento sutil, RIP moveu-se em direção ao balcão, onde estava o botão do alarme de emergência.

O da esquerda tinha olhos cada um de uma cor, piercings e um olhar de assassino frio. O da direita parecia um pouco mais próximo do normal, com um ar de menino bonito e cabelos vermelhos – a não ser pelo fato de que se portava como alguém que tinha acabado de voltar da guerra.

Contudo, o do meio era o problema. Um pouco maior que seus colegas, tinha cabelos castanho-escuros cortados bem curtos e um rosto de uma beleza clássica – mas seus olhos azuis estavam sem vida, com tanto brilho quanto um asfalto antigo.

Um homem morto andando. Sem nada a perder.

– E aí? – RIP disse para cumprimentá-los. – Precisam de um pouco de tinta, caras?

– Ele precisa. – O dos piercings acenou com a cabeça para seu colega de olhos azuis. – E já tem o desenho. É para o ombro.

RIP deu a seu instinto uma chance de meditar sobre o projeto. Os homens não olharam Mar de maneira imprópria. Não fizeram caso da caixa registradora e ninguém pegou suas armas. Eles esperavam educadamente – mas com expectativa. Se não fizesse o que queriam, encontrariam outra pessoa para isso.

Recuou à posição anterior, pensando que eram gente como ele.

– Legal. Não vou demorar muito aqui.

Mar falou de trás do balcão:

– Devemos fechar em menos de uma hora...

– Mas vou fazer você – RIP disse ao do centro. – Não se preocupe com o tempo.

– E eu acho que vou ficar também – disse Mar, olhando o cara com os piercings.

O rapaz de olhos azuis levantou as mãos e moveu-as com gestos distintos. Depois que terminou, o de piercing traduziu:

– Ele disse obrigado. E trouxe sua própria tinta, se não tiver problema.

Não era exatamente a norma e ia contra o código de saúde, mas RIP não tinha problemas em ser flexível com o cliente certo.

– Sem problemas, cara.

Ele voltou a trabalhar com a carpa e Keri retomou sua rotina de morder os lábios e gemer. Quando terminou, não se surpreendeu que Sarah, após ter visto sua amiga passar por aquela “agonia”, ter decidido que queria um reembolso em vez de uma linda tatuagem com as cores do arco-íris.

O que era uma boa notícia. Isso significava que ele poderia começar a trabalhar imediatamente no cara com os olhos mortos.

Enquanto retirava suas luvas pretas e se limpava, perguntou-se como diabos seria o desenho. E exatamente quanto tempo Mar ia levar para chegar dentro da calça do cara com piercings.

A resposta do primeiro pensamento era: provavelmente muito bom.

E do último... levaria uns dez minutos, porque ela chamou a atenção daquele olhar díspar e Mar trabalhava rápido – não apenas atrás do balcão.


Do outro lado da cidade, longe dos bares e das lojas de tatuagens da Rua Trade, em um enclave de casas geminadas de arenito vermelho e ruas de paralelepípedos, Xhex ficou em pé perto de uma janela saliente e olhou para fora através do antigo vidro ondulado.

Ela estava nua, com frio e machucada.

Mas não era fraca.

Lá embaixo, na calçada, uma fêmea humana passeava com um cachorrinho em uma coleira e tinha um telefone celular na orelha. Do outro lado, as pessoas que ocupavam outros edifícios elegantes estavam bebendo, comendo e lendo. Carros passavam lentamente, tanto por respeito aos vizinhos, quanto por temerem o dano que a rua irregular poderia causar aos sistemas de suspensão de seus carros.

Todo aquele público de Homo sapiens não podia vê-la nem ouvi-la. E não apenas porque as habilidades dessa outra raça eram reduzidas em comparação às dos vampiros.

Ou, no seu caso, metade vampiro, metade sympatho.

Mesmo que ela acendesse a luz e gritasse até sua garganta desistir de funcionar, mesmo que acenasse com os braços até que caíssem do corpo, os homens e as mulheres que estavam ao redor simplesmente continuariam a fazer o que estavam fazendo, sem saber que ela estava presa naquele quarto, bem no meio deles. E não era como se ela pudesse pegar a escrivaninha ou o criado-mudo e quebrar o vidro. Nem derrubar a porta a chutes ou rastejar pela janela do banheiro.

Já havia tentado tudo isso.

A assassina dentro dela não conseguiu deixar de ficar impressionada com a natureza penetrante da sua cela invisível: não havia, literalmente, nenhuma chance de contorná-la, atravessá-la ou sair dela.

Afastando-se da janela, andou ao redor da cama king-size com lençóis de seda e memórias horríveis... passou pelo banheiro de mármore... e seguiu pela porta que levava ao corredor. Considerando a forma como as coisas estavam com seu sequestrador, não era como se ela precisasse de mais exercício, mas Xhex não podia ficar parada, seu corpo estava tendo espasmos e zumbia.

Ela já havia passado por essa coisa de ficar num lugar contra sua vontade antes. Sabia que a mente, assim como um corpo faminto, poderia canibalizar-se após muito tempo sem que você a alimente com algo para funcionar direito.

Sua distração favorita? Drinques diversos. Depois de ter trabalhado em clubes por anos, conhecia legiões de drinques e misturas, e percorreu todos eles com a mente, imaginando as garrafas, os copos, o modo de servir, o gelo e as especiarias.

Essa rotina de Enciclopédia Ambulante de Bartender a manteve sã.

Até agora, tinha esperado um erro, um deslize, uma oportunidade para escapar. Nada disso aconteceu, e a esperança estava começando a desaparecer, expondo um enorme buraco negro pronto para devorá-la. Então, ela não parava de fazer drinques em sua cabeça e de buscar uma brecha.

E sua experiência ajudou de uma forma estranha. O que acontecia naquele lugar, por pior que fosse, por mais que doesse fisicamente, não era nada comparado ao que ela havia enfrentado antes.

Era coisa de pouca importância.

Ou... pelo menos era o que ela dizia a si mesma. Às vezes, parecia pior.

Andando mais um pouco, passou por mais duas janelas salientes, pela escrivaninha e depois ao redor da cama novamente. Desta vez ela entrou no banheiro. Não havia navalhas ou escovas ou pentes, apenas algumas toalhas que estavam ligeiramente úmidas e uma ou duas barras de sabão.

Quando Lash a raptou, usando o mesmo tipo de magia que a mantinha naquele conjunto de salas, trouxe-a até aquele elegante local. Sua primeira noite e dia juntos foi um indicativo de como as coisas seriam.

No espelho sobre o lavatório duplo, observou a si mesma e fez uma análise desapaixonada do seu corpo. Havia hematomas por toda parte... cortes e arranhões também. Lash era brutal no que fazia e ela sempre revidava, pois não iria entregar sua vida sem uma luta – por isso era difícil dizer quais marcas haviam sido feitas por ele e quais foram acidentais pelo que ela tinha feito ao bastardo.

Se ele colocasse seu traseiro nu diante de algum espelho, poderia apostar seu último suspiro que não aparentava melhor do que ela.

Olho por olho.

A conclusão infeliz de tudo isso era que ele gostava que ela combatesse o fogo com fogo. Quanto mais lutavam, mais ficava excitado e ela sentia que Lash estava surpreso com suas próprias emoções. Nos primeiros dias, esteve no modo punição, tentando retribuir o que ela havia feito à sua última namorada – evidentemente, aquelas balas que tinha colocado no peito da cadela o irritaram mesmo. Mas, então, as coisas mudaram. Ele começou a falar menos sobre sua ex e mais sobre as partes do corpo e fantasias envolvendo um futuro que incluía ela dando a luz à sua cria.

Conversa mole do sociopata.

Agora, seus olhos brilhavam por outro motivo quando vinha até ela, e se a surrava até ficar desacordada, geralmente recuperava a consciência com ele envolvido em seu corpo.

Xhex afastou-se de seu reflexo e congelou antes de dar outro passo.

Alguém estava lá embaixo.

Saindo do banheiro, ela foi até a porta que levava ao corredor e respirou lenta e profundamente. Quando o cheiro de carniça flutuou em sua cavidade nasal, ficou claro que o que estava perambulando no andar debaixo era um redutor – mas não era Lash.

Não, era seu subordinado, o que vinha toda noite antes de seu sequestrador chegar para fazer-lhe algo para comer. O que significava que Lash estava a caminho do edifício geminado de arenito vermelho.

Cara, ela tinha sorte: ser sequestrada pelo único membro da Sociedade Redutora que comia e transava. O restante deles era impotente como alguém com noventa anos de idade e sobreviviam com uma dieta à base de ar. E quanto a Lash? O filho da mãe era totalmente funcional.

Voltando para a janela, ela esticou a mão em direção ao vidro. A fronteira que marcava sua prisão era um campo de energia que sentia como alfinetadas quentes quando entrava em contato. A maldita coisa era como uma barreira invisível para coisas maiores que cães... com o benefício adicional de que uma coleira não era necessária.

A coisa cedeu um pouco... quando ela pressionou para frente, houve uma insinuação de flexibilidade, mas só até certo ponto. Em seguida, as moléculas que foram agitadas agruparam-se e a sensação de queimação foi tão aguda que ela teve que agitar a mão e andar para aliviar a dor.

Enquanto esperava Lash voltar, sua mente saiu à deriva até o macho no qual ela tentava não pensar.

Especialmente se Lash estava por perto. Não ficou claro o quanto seu sequestrador poderia entrar em sua mente, mas ela não queria arriscar. Se o desgraçado suspeitasse que aquele soldado mudo era o bálsamo de sua alma, tal como seu povo dizia, poderia usar aquilo contra ela... e contra John Matthew.

Uma imagem do macho veio à sua mente, seus olhos azuis ressoavam em sua lembrança tão claramente que conseguia ver as manchas azuis neles. Deus, aqueles belos olhos azuis.

Lembrava-se de quando ela o conheceu, quando ainda estava em pré-transição. John havia olhado para ela com uma mistura de temor e admiração, como se ela fosse maior que a vida, uma revelação. Claro que, naquela época, tudo que sabia era que ele estava carregando armas no ZeroSum, e como chefe de segurança do clube, tentou desarmá-lo e jogá-lo na rua. Mas depois ela descobriu que o Rei Cego era seu ghia e isso mudava tudo.

Após saber dessa feliz notícia, John não apenas recebeu permissão para entrar armado, mas passou a ser um convidado especial, juntamente com seus dois colegas. Depois disso, vinha regularmente e sempre a observava, aqueles olhos azuis a seguiam onde quer que fosse. E então ele passou pela transição. Mas que droga, transformou-se num macho dos grandes e, de repente, aquele olhar tinha algo erótico adicionado à suave timidez.

Foi preciso muita coisa para matar aquela bondade. Porém, fiel à sua natureza assassina, Xhex havia conseguido acabar com o calor que havia na maneira como a olhava.

Concentrando-se na rua, pensou no tempo que tinham passado juntos no porão de sua casa. Depois do sexo, quando tentou beijá-la, quando seus olhos azuis brilharam com a marca registrada de vulnerabilidade e compaixão que era associada a ele, Xhex afastou-se e o deteve.

Era um caso de coragem perdida. Ela simplesmente não conseguia lidar com a pressão da coisa toda de “corações e flores”... ou a responsabilidade de estar perto de alguém que se sentia assim por ela... ou com a realidade de que tinha a capacidade de amar de volta.

A vingança de John foi a morte daquele olhar especial.

O consolo que tinha era que entre os homens que estavam propensos a tentar ir atrás dela – Rehvenge, iAm e Trez... a Irmandade – John não estava em uma cruzada. Se estivesse procurando por ela, era porque tinha que fazê-lo como um soldado, não por ser compelido por uma missão suicida pessoal.

Não, John Matthew não estaria a caminho da guerra por causa de seus sentimentos por ela.

E já tendo visto um macho de valor destruir a si mesmo ao tentar resgatá-la, ao menos Xhex não teria que fazer isso de novo.

Quando o cheiro de bife grelhado permeou o local, ela desligou seus pensamentos e reuniu sua vontade como uma armadura.

Seu “amante” estaria aqui a qualquer minuto, por isso precisava fechar suas escotilhas mentais e se preparar para a batalha daquela noite. Um esgotamento difuso se arrastou nela, mas sua vontade afastou o peso morto. Xhex precisava se alimentar, precisava disso ainda mais do que um bom descanso, mas nenhum deles ia acontecer tão cedo.

Era uma questão de colocar um pé na frente do outro até que algo se rompesse.

Isso e acabar com o macho que ousou detê-la contra sua vontade.


CAPÍTULO 2

Cronologicamente falando, Blaylock, filho de Rocke, conhecia John Matthew há apenas pouco mais de um ano.

Mas essa não é uma reflexão verdadeira do relacionamento daquela amizade. Existem duas linhas de tempo na vida das pessoas: a absoluta e a percebida. A absoluta é o ciclo universal que engloba dia e noite, que para eles somava algo como 365 dias. A linha de tempo percebida é o modo como os acontecimentos, a destruição, o treinamento e as lutas se acumulam.

Considerando tudo isso... concluiu que os dois se conheciam há uns 400 mil anos.

E continuariam amigos por muito tempo, pensou enquanto observava o companheiro.

John Matthew estava encarando os desenhos nas paredes da loja de tatuagens, seus olhos percorriam as caveiras e adagas, as bandeiras americanas e símbolos chineses. Com seu tamanho, ocupava, com certeza, três quartos da loja – ao ponto de parecer que vinha de outro planeta. Em contraste com seu estágio pré-transição, o cara tinha a massa muscular de um lutador profissional, porém com o peso bem distribuído em seus longos ossos, dando uma aparência mais elegante do que aqueles humanos inchados presos a uma pele apertada. Ele havia raspado o cabelo escuro e isso deixou seus traços faciais parecendo mais rígidos que belos – com os escuros círculos sob os olhos dando um grande reforço à aparência de durão.

A vida tinha batido muito nele, mas ao invés de dobrá-lo, cada golpe e pancada o forjou ainda mais duro, mais forte e mais resistente. Era puro aço agora, nada lembrava o garoto que tinha sido.

Mas é isso que significa amadurecer: não apenas seu corpo muda, mas sua mente também.

Observando seu amigo, a perda da inocência parecia um crime.

E com esse pensamento, a recepcionista atrás do balcão chamou a atenção de Blay. Estava inclinada sobre a vitrine que exibia os materiais para piercing, seus seios estavam inchados contra o sutiã e a regata preta que estava vestindo. Usava duas luvas, uma em preto e branco e outra em preto e vermelho, tinha aros de metal cinza no nariz, nas sobrancelhas e nas duas orelhas. Dentre todos os desenhos de tatuagem nas paredes, ela era o exemplo vivo do trabalho que os clientes poderiam obter. Um exemplo bem sexy, bem explícito... que tinha lábios da cor do vinho tinto e cabelos pretos como a noite.

Tudo nela combinava com Qhuinn. Era como a versão feminina dele.

E, veja só, os olhos díspares de Qhuinn já estavam travados nela e estava sorrindo com aquele seu estilo te peguei.

Blay escorregou a mão em sua jaqueta de couro até seu maço de cigarros Dunhill vermelhos. Cara, nada fazia com que ele desejasse mais um cigarro do que a vida amorosa de Qhuinn.

E, com certeza, ele acenderia mais alguns esta noite: Qhuinn passou pela recepcionista e a observou de cima a baixo como se fosse uma caneca de cerveja gelada depois de ter trabalhado o dia todo no calor. Os olhos focaram os seios enquanto se cumprimentavam e ela ajudou a ter uma visão clara do material inclinando-se sobre os antebraços.

Que bom que os vampiros não tinham câncer.

Blay deu as costas para o show pornográfico que se iniciava ao lado da caixa registradora e se aproximou de John Matthew.

– Esse é legal – Blay apontou para o desenho de uma adaga.

Vai fazer tatuagem algum dia?, John gesticulou.

– Eu não sei.

Só Deus sabia o que ele gostava na pele...

Seu olhar se voltou para Qhuinn. O enorme corpo do cara estava arqueado sobre a mulher humana, seus ombros largos, quadris rígidos e suas pernas longas e poderosas garantiam a ela um passeio incrível.

Afinal, ele era incrível no sexo.

Não que Blay soubesse disso em primeira mão. Tinha visto e ouvido... e imaginou como seria. Mas quando a oportunidade surgiu, foi relegado a uma classe especial e pequena: a dos rejeitados.

Na verdade, era mais uma categoria que uma classe... pois ele era o único com quem Qhuinn não transaria.

– Hum... vai arder assim sempre? – perguntou uma voz feminina. Quando uma profunda voz masculina estrondou uma resposta, Blay olhou para a cadeira do tatuador. A loira que tinha recebido o trabalho estava colocando cuidadosamente sua blusa sobre a bandagem e olhava o cara que a tatuou como se fosse um médico dizendo as chances de sobreviver à raiva.

Então, as duas garotas foram até a recepcionista, onde a não tatuada, a que havia mudado de ideia, recebeu um reembolso e as duas examinaram Qhuinn.

Era assim onde quer que o cara fosse e costumava ser o tipo de coisa que fazia Blay adorar seu melhor amigo. Mas hoje, era uma eterna série de lembretes da sua rejeição: toda vez que Qhuinn dizia “sim”, fazia aquele único “não” gritar mais alto.

– Se estiverem prontos, também estou – o tatuador chamou.

John e Blay seguiram para o fundo da loja e Qhuinn deixou a recepcionista sem cerimônia e foi atrás deles. Uma coisa boa sobre ele era a seriedade com que lidava com o papel de ahstrux nohstrum de John: deveria estar perto do cara 24 horas, sete dias por semana – e essa era uma responsabilidade que levava mais à sério que o sexo.

Quando John sentou na cadeira acolchoada no centro do local de trabalho, tirou um pedaço de papel e o desdobrou no balcão do artista.

O homem franziu a testa e olhou o que John havia desenhado.

– Então, serão esses quatro símbolos através dos seus ombros?

John assentiu e gesticulou:

Pode adorná-los da maneira que quiser, mas têm que ficar claros.

Depois que Qhuinn traduziu, o artista assentiu.

– Legal.

Pegou uma caneta preta e começou a fazer uma moldura com elegantes redemoinhos ao redor do simples desenho.

– O que são essas coisas, afinal?

– Apenas símbolos – Qhuinn respondeu.

O artista acenou com a cabeça e continuou o esboço.

– O que acham?

Os três se inclinaram.

– Cara – Qhuinn disse suavemente –, ficou demais.

Ficou mesmo. Estava absolutamente perfeito, o tipo de coisa que John usaria em sua pele com orgulho – não que alguém pudesse ver os caracteres do Antigo Idioma ou todo aquele trabalho espetacular com redemoinhos. O que estava escrito não era bem uma coisa que quisesse deixar muito exposta, mas essa é a questão das tatuagens: não precisam ser públicas e Deus sabia que tinha muitas camisetas para cobri-la.

Quando John assentiu com a cabeça, o artista se levantou.

– Deixe-me pegar o papel para transferência. Copiá-lo em você não vai levar muito tempo e, então, começaremos o trabalho.

Enquanto John colocava uma jarra de cristal de tinta sobre o balcão e começava a tirar a jaqueta, Blay sentou-se numa banqueta e estendeu os braços. Considerando o número de armas que John guardava nos bolsos, não seria bom para ninguém apenas pendurar aquela maldita coisa num gancho.

Quando já estava sem camisa, John se colocou numa posição inclinada para frente, seu braço pesado foi apoiado num suporte acolchoado. Depois que o tatuador colocou a imagem no papel de transferência, o cara alisou a folha sobre a parte de cima das costas de John e depois a puxou.

O desenho formou um arco perfeito em toda a extensão da musculatura, tomando conta de uma área considerável da pele de John.

O Antigo Idioma era mesmo bonito, Blay pensou.

Encarando os símbolos, por um breve e ridículo momento imaginou seu próprio nome ao longo dos ombros de Qhuinn, esculpido naquela pele macia seguindo o ritual de união.

Nunca iria acontecer. Estavam destinados a serem melhores amigos... o que, se comparado a serem estranhos, era uma coisa imensa. Comparado a serem amantes? Era o lado frio de uma porta trancada.

Olhou para Qhuinn. O cara tinha um olho em John e outro na recepcionista – que havia trancado a porta da frente e vindo ficar ao seu lado.

Por trás do zíper da sua calça de couro, a protuberância exposta era óbvia.

Blay olhou a bagunça de roupas em seu colo. Começou a dobrar cuidadosamente, uma a uma, a camiseta, a camisa de manga comprida e a jaqueta de John. Quando olhou para cima, Qhuinn estava correndo o dedo indicador lentamente sobre o braço da mulher.

Eles acabariam indo para trás daquela cortina à esquerda. A porta da frente da loja estava trancada, a cortina era bastante fina e Qhuinn iria transar com ela sem tirar suas armas. Portanto, John estaria seguro o tempo todo... e aquele fogo todo seria apagado.

O que significava que teria que sofreria apenas ouvindo-os.

Melhor que ter a visão completa. Isso porque Qhuinn era lindo de se ver transando. Simplesmente... lindo.

Quando Blay tentou aquela coisa de ser hétero, os dois tinham trabalhado em equipe com um bom número de fêmeas humanas – não que ele pudesse se lembrar de qualquer um dos rostos, corpos ou nomes daquelas mulheres.

Sempre se tratava de Qhuinn para ele. Sempre.


A dor da agulha de tatuagem que o mordiscava era um prazer.

Quando John fechou os olhos e respirou profunda e lentamente, pensou sobre o cruzamento de metal e pele, como a ponta afiada entrava na superfície macia, como o sangue pingava... como era possível saber exatamente onde estava a penetração.

Como agora, quando o tatuador estava diretamente no topo da sua coluna.

John tinha muita experiência quando o assunto era fatiar e cortar em pedacinhos – só que numa escala muito maior e mais como um doador do que um receptor. Claro, ele foi cortado no campo algumas vezes, mas havia deixado mais que uma justa parte de buracos para trás e, assim como o tatuador, sempre levava seu equipamento para trabalhar: sua jaqueta carregava todos tipo de adagas e canivetes, até mesmo um pedaço de corrente. Também um conjunto de armas de fogo, só para garantir.

Bem... tudo isso e um par de cilícios com arame farpado.

Não que ele fosse usá-los no inimigo.

Não, os cilícios não eram armas. E apesar de não terem apertado a coxa de alguém há quase quatro semanas, não eram inúteis. Atualmente, funcionavam como um amuleto de segurança. Sem eles, sentia-se nu.

A questão era que aqueles elos farpados eram o único laço que tinha com quem amava. O que, considerando o modo como as coisas haviam sido deixadas entre os dois, fazia um sentido cósmico.

No entanto, não eram o suficiente para ele. O que Xhex tinha usado ao redor de suas pernas para conter seu lado sympatho não oferecia o tipo de permanência que estava procurando. Foi isso que o levou a buscar a tatuagem. Quando terminasse o desenho, Xhex estaria sempre com ele. Estaria tanto em sua pele quanto em sua mente.

Com sorte, aquele humano faria um bom trabalho com o desenho. Quando os Irmãos precisavam de tatuagens por qualquer razão, Vishous trabalhava com a agulha e o cara era profissional nisso – caramba, a lágrima vermelha no rosto de Qhuinn e aquela data ao redor de seu pescoço eram demais. O problema era: vá até V. com um trabalho como este e subitamente surgirão perguntas – não apenas dele, mas de todos.

Não havia muitos segredos na Irmandade e John queria apenas manter seus sentimentos por Xhex para si mesmo.

A verdade era... estava apaixonado por ela. Totalmente fora de controle, sem chance de voltar atrás, nem morto ele desistiria e todo esse tipo de coisa. E apesar de seus sentimentos não terem sido correspondidos, isso não importava. Estava em paz com o fato de que quem ele desejava, não o queria.

O que ele não poderia suportar era ela sendo torturada ou tendo uma morte lenta e excruciante.

Ou não ser capaz de oferecer um enterro apropriado.

Estava obcecado com seu desaparecimento. Focado ao ponto da autodestruição. Seria brutal e implacável com quem a tinha levado. Mas isso não era da conta de mais ninguém.

A única coisa boa na situação era que a Irmandade estava comprometida da mesma maneira em descobrir o que diabos tinha acontecido com ela. Os Irmãos não deixavam ninguém para trás em uma missão, e quando foram para o norte para tirar Rehvenge daquela colônia sympatho, Xhex era muito mais que um membro da equipe. Quando a poeira se dissipou e ela desapareceu por completo, concluíram que tinha sido raptada e havia dois caminhos possíveis a seguir: sympathos ou redutores.

O que era mais ou menos como dizer: é melhor morrer de pólio ou ebola?

Todos, incluindo John, Qhuinn e Blay, estavam no caso. Resultado disso? Encontrá-la parecia ser apenas parte do trabalho de John como um soldado na guerra.

O zumbido da agulha parou e o artista limpou suas costas.

– Está ficando bom – disse, voltando ao trabalho. – Você quer fazer isso em duas sessões ou apenas nessa?

John olhou para Blay e gesticulou.

– Ele disse que quer tudo pronto esta noite, se tiver tempo – Blay traduziu.

– Sim, posso fazer isso. Mar? Ligue para Rick e diga que vou me atrasar.

– Já estou ligando enquanto falamos – a recepcionista disse.

Não, John não ia permitir que os Irmãos soubessem dessa tatuagem – não importava o quão legal parecesse.

A forma como via aquilo, tinha nascido em um ponto de ônibus e deixado para morrer. Lançado no sistema humano de proteção aos menores carentes. Acolhido por Tohr e sua companheira, apenas para vê-la morrer e o cara desaparecer. E agora Z., o único designado a tentar se comunicar com ele, estava, de maneira compreensível, ocupado com sua shellan e sua filha.

Até mesmo Xhex o dispensou antes da tragédia.

Então, tanto faz, conseguia entender a mensagem. Além disso, era curiosamente libertador não dar a mínima para a opinião de ninguém. Libertou-se para alimentar sua obsessão violenta no processo de tentar rastrear o sequestrador e rasgar o maldito membro por membro.

– Importa-se de me dizer o que é isso? – o tatuador perguntou.

John ergueu os olhos e percebeu que não havia razão para mentir para o humano. Além disso, Blay e Qhuinn sabiam a verdade.

Blay pareceu um pouco surpreso, mas, então, traduziu:

– Disse que é o nome da garota dele.

– Ah. Sim, entendo. Vocês vão se casar?

Depois de John gesticular, Blay disse:

– É um memorial.

Houve uma pausa, e então o tatuador colocou o braço sobre a mesa com rodinhas onde estava a tinta. Depois de puxar a manga de sua camiseta preta, colocou o antebraço na frente de John. Nele havia o retrato de uma mulher linda, seus cabelos caíam por cima do ombro, os olhos focados de maneira que olhava para fora da pele dele.

– Essa era minha garota. Ela também não está mais aqui. – Com um puxão preciso, o cara cobriu a imagem. – Então, eu entendo.

Quando a agulha voltou a trabalhar, John sentiu dificuldade em respirar. A ideia de que, provavelmente, Xhex estivesse morta o devorava... e o pior era imaginar como poderia ter morrido.

John sabia quem a tinha levado. Havia apenas uma explicação lógica: enquanto ela adentrava no labirinto e ajudava a libertar Rehvenge, Lash apareceu, e quando ele desapareceu, ela também se foi. Não podia ser coincidência. E ainda que ninguém tenha visto nada, havia mais ou menos cem sympathos na caverna onde Rehv estava e muita coisa acontecia... e Lash não era o tipo básico de redutor.

Ah, não... aparentemente, era o filho do Ômega. A própria semente do mal. E isso significava que o filho da mãe tinha truques na manga.

John tinha visto um pouco de suas habilidades de perto durante a luta na colônia: se o cara conseguia produzir bombas de energia na palma das mãos e enfrentar face a face a fera de Rhage, então por que não poderia sequestrar alguém bem debaixo do nariz de todos? A questão era: se Xhex tivesse sido morta naquela noite, eles teriam encontrado um corpo. Se ainda estivesse respirando, mas precisava de umas pequenas férias, teria feito isso apenas quando soubesse que todos estavam a salvo em casa.

Os Irmãos estavam trabalhando na mesma linha de raciocínio, então estavam todos lá fora procurando por redutores. E ainda que a maioria dos vampiros tivesse deixado Caldwell, refugiando-se em casas seguras fora do estado depois dos ataques, a Sociedade Redutora, sob a liderança de Lash, tinha se voltado para o tráfico de drogas para se sustentar e aquilo acontecia principalmente ao redor dos clubes da cidade na Rua Trade. Becos sórdidos e decadentes eram o nome do jogo, com todos procurando por mortos-vivos que cheiram a gambá sangrando e aromatizador de ar.

Quatro semanas e não acharam nada além de sinais de que os redutores estavam movimentando o produto nas ruas para os humanos.

John estava enlouquecendo, em grande parte por não saber de nada e pelo medo, mas também por ter que segurar toda aquela violência dentro de si. No entanto, é incrível o que se pode fazer quando não se tem escolha – ele precisava parecer normal e sensato se quisesse fazer parte do resgate, então era assim que demonstrava estar.

E aquela tatuagem? Era uma estaca enfiada no território que havia dentro dele. Sua declaração de que, mesmo se Xhex não o quisesse, era sua companheira e iria honrá-la, viva ou morta. As pessoas sentem o que sentem, e não é culpa delas se essa conexão é de mão única. Apenas... acontece.

Desejou não ter sido tão frio quando fizeram sexo pela segunda vez.

Aquela última vez.

De repente, interrompeu suas emoções e colocou aquele gênio de tristeza, arrependimento e rejeição de volta em sua garrafa. Não podia se permitir desmoronar. Tinha que continuar, continuar procurando, continuar colocando um pé na frente do outro. O tempo estava avançando, mesmo que quisesse detê-lo para que tivessem uma chance maior de encontrá-la viva.

No entanto, o relógio não estava interessado em sua opinião.

Meu Deus, pensou ele. Por favor, não me deixe falhar nisso.


CAPÍTULO 3

– Indução? Como se fosse um maldito clube?

Quando as palavras ecoaram dentro da Mercedes, Lash apertou as mãos no volante e olhou para fora do para-brisa. Tinha um canivete no bolso de seu terno, e o desejo de acionar a lâmina e abrir-lhe a garganta era extremamente tentador.

Claro, com isso teria que lidar com um cadáver e com sangue por todo o couro.

As duas situações seriam entediantes.

Olhou sobre o assento. Aquele cara que tinha selecionado, dentre um elenco de centenas, era o típico filho da mãe oportunista, traficante de drogas, de olhar evasivo. A história de abuso infantil do garoto estava escrita na antiga cicatriz circular em seu rosto – perfeitamente redonda e do tamanho da ponta de um cigarro – e sua vida dura nas ruas estava em seus olhos inteligentes e inquietos. Sua ambição estava no modo como olhava o interior do carro, como se estivesse tentando imaginar como torná-lo seu, e seu talento era evidente pela forma rápida como se tornou um dos melhores traficantes da região.

– Mais que um clube – disse Lash em voz baixa. – Muito mais. Você tem futuro neste negócio e estou oferecendo isso numa bandeja de prata. Meus homens irão buscá-lo aqui amanhã à noite.

– E se eu não aparecer?

– É sua escolha. – Claro, sendo assim, o desgraçado iria acordar morto pela manhã, mas isso era apenas um detalhe...

O garoto encontrou os olhos de Lash. O humano não tinha a constituição de um lutador; estava mais para o tamanho de alguém que teve seu traseiro colado com fita adesiva no vestiário da escola. Mas tornou-se muito claro que a Sociedade Redutora necessitava de dois tipos de membros agora: os que faziam dinheiro e os soldados.

Depois que Sr. D examinou a área do Parque Xtreme e viu quem estava movimentado a maioria dos produtos, observou que aquela coisinha magra com olhar de réptil estava no topo.

– Você é gay? – o garoto perguntou.

Lash permitiu que uma de suas mãos deixasse o volante e mergulhasse dentro de sua jaqueta.

– Por que pergunta isso?

– Cheira como um. Veste-se como um, também.

Lash se moveu tão rápido que seu alvo nem teve chance de inclinar-se para trás no assento. Com uma rápida investida, acionou o canivete e colocou a lâmina diretamente na pulsação vital do garoto, atingindo a lateral de seu pescoço branco.

– A única coisa que faço para machos é matá-los – disse Lash. – Você quer que eu me relacione com você assim? Porque estou pronto, se você estiver.

Os olhos do garoto se arregalaram e seu corpo tremia sob suas roupas sujas.

– Não... eu não tenho problema com os gays.

O maldito idiota estava passando do ponto, mas não importava.

– Temos um acordo? – Lash disse apertando a ponta de sua faca no pescoço do rapaz. À medida que a penetração ia avançando, o sangue formou uma bolha e permaneceu ali por uma fração de segundo, como se estivesse tentando decidir se estabeleceria o fluxo sobre o metal brilhante ou sobre a suave coluna de pele.

O sangue escolheu a lâmina, serpenteando num fluxo vermelho rubi.

– Por favor... não me mate

– Qual é a sua resposta?

– Sim. Vou fazer isso.

Lash pressionou com mais força, vendo o sangue correr. Foi momentaneamente cativado pela realidade de que se ele firmasse a arma e empurrasse através da carne, aquele humano deixaria de existir, como uma lufada de ar desaparecendo numa noite fria.

Gostava de se sentir como um deus.

Quando mais um choramingo saiu dos lábios rachados do garoto, Lash cedeu, recostando-se. Com uma ligeira lambida, limpou a lâmina e a fechou com um movimento rápido.

– Vai gostar de onde vai acabar. Prometo.

Deu ao garoto a chance de se recompor e sabia que não ia levar muito tempo para o rapaz reassumir sua compostura. Idiotas como este possuem egos como balões. A pressão, particularmente a de uma faca na garganta, faz com que entrem em colapso. Mas no instante em que há o alívio do estresse, eles se recuperam, inflando ao estado em que estavam antes.

O garoto puxou sua jaqueta de couro barato para baixo.

– Gosto de onde estou, é bom.

Bingo.

– Então porque está olhando meu carro como se o quisesse em sua garagem?

– Tenho um carro melhor que este.

– Oh, mesmo? – Lash examinou o imbecil da cabeça aos pés. – Você vem aqui toda noite numa bicicleta. Seus jeans estão rasgados e não é porque foram produzidos assim. Quantos casacos você tem em seu armário? Oh, na verdade guarda seus trapos numa caixa de papelão debaixo da ponte. – Lash revirou os olhos quando todo o tipo de surpresa brotou do banco do passageiro. – Você acha que não o observamos? Pensa que somos tão estúpidos?

Lash apontou em direção ao Parque Xtreme, onde skatistas estavam movendo-se como metrônomos nas rampas, para cima e para baixo, para cima e para baixo.

– Você é o bom neste parque aqui. Muito bem. Parabéns! Mas queremos que vá mais longe. Junte-se a nós e terá mais força por trás de seus atos... dinheiro, mercadoria, proteção. Será algo mais que um traste sem valor balançando a carcaça em torno de um monte de concreto. Nós temos seu futuro.

O olhar calculista do garoto voltou-se em direção a sua pequena fatia de território em Caldwell e depois flutuou para o horizonte onde os arranha-céus se erguiam. A ambição estava ali e por isso tinha sido escolhido. O que aquele bastardinho precisava era de um caminho e um ponto de partida.

O fato de ter que vender sua alma para conseguir isso chegaria ao seu conhecimento apenas quando fosse tarde demais, mas este era o jeito da sociedade. Pelo que Lash foi informado dos redutores, que agora comandava, é que nunca havia uma divulgação completa antes de serem introduzidos na sociedade e isso era compreensível. Como alguém acreditaria que o mal estava esperando do outro lado da porta? Como alguém entraria voluntariamente numa coisa dessas?

Surpresa, filho da mãe. Isto não é a Disneylândia e uma vez que pegou carona nessa estrada, nunca, jamais conseguirá sair.

E Lash não tinha problemas em mentir para os candidatos.

– Estou pronto para uma coisa maior – o garoto murmurou.

– Ótimo. Agora saia da droga do meu carro. Meu sócio virá buscá-lo amanhã à noite, às sete.

– Legal.

Com o negócio concluído, Lash estava impaciente para se livrar do bastardo. O garoto cheirava a esgoto e estava gritando por mais que uma simples ducha – ele precisava ser escovado como se fosse um pedaço de calçada suja.

Assim que a porta se fechou, Lash deu a volta, saiu do estacionamento e entrou na estrada que corria paralela ao Rio Hudson. Dirigiu-se para casa, suas mãos apertavam o volante por um motivo que não era o impulso de matar.

O impulso do sexo era um motivador tão forte quanto.

Na rua em que vivia na parte antiga de Caldwell havia casas vitorianas de arenito que a percorriam, calçadas com árvores plantadas e propriedades com valor não inferior a um milhão de dólares. Os vizinhos recolhiam a sujeira de seus cães, nunca faziam qualquer barulho e colocavam o lixo apenas nos becos e somente nos dias certos. Ao se aproximar de sua casa e contornar o quarteirão para entrar na garagem, ficou louco para saber o que esses malditos americanos protestantes achariam de ter um vizinho como Lash: poderia parecer e se vestir como eles, mas seu sangue era negro e tinha tanta alma quanto uma estátua de cera.

Sorriu ao apertar o controle remoto da porta da garagem, e suas presas, um presente de sua mãe, se alongaram enquanto ele ficava pronto para um belo “querida, cheguei”.

Nunca caía na rotina. Voltar para Xhex nunca era rotina.

Depois de ter estacionado o carro, saiu e teve que esticar o corpo. Parecia que ela o passou através de um espremedor, mas amava como Xhex o deixava rígido... e não apenas seu membro.

Nada como um bom adversário para animar as coisas.

Cortando caminho pelo jardim dos fundos e entrando na casa pela cozinha, sentiu o cheiro de lombo grelhado e pão fresco.

Contudo, não estava com fome no momento. Graças àquela conversa no parque, aquele pequeno skatista ia ser sua primeira indução, a primeira oferta que traria a seu pai, o Ômega. E não é que aquilo o deixava louco por sexo?

– Está pronto para comer? – o Sr. D perguntou do fogão, enquanto virava um pedaço de carne. O pequeno texano provou ser útil, não só como guia de iniciação da Sociedade Redutora, mas também como um assassino e um cozinheiro decente.

– Não, vou subir agora. – Jogou suas chaves e celular em cima do balcão de granito. – Deixe a comida na geladeira e tranque a porta quando sair.

– Sim, senhor.

– Estamos combinados sobre amanhã à noite. Pegue o alvo às sete. Sabe para onde levá-lo.

– Sim, senhor.

Aquelas duas palavras eram a resposta favorita do filho da mãe – outra razão para ter permanecido em pé e ser o segundo na linha de comando.

Lash passou pela despensa, pela sala de jantar e virou à direita na escadaria esculpida. O lugar estava todo vazio quando o viu pela primeira vez, mas havia restos de uma vida graciosa para trás: papéis de parede de seda, cortinas de damasco e uma poltrona. Agora, a casa de arenito estava cheia de antiguidades, estátuas e tapetes adequados. Ia levar mais tempo do que havia imaginado para deixá-la do jeito que precisava ser, mas não se consegue deixar uma casa à sua maneira da noite para o dia.

Subindo os degraus, seus pés estavam leves e seu corpo vibrava enquanto desabotoava o casaco e depois o paletó.

Ao se aproximar de Xhex, estava bem consciente de que aquilo que tinha começado como vingança tinha se tornado um vício: o que estava esperando por ele no outro lado da porta de seu quarto era muito mais do que pensou inicialmente.

Havia sido tão simples no começo: ele a tomou porque havia tomado algo dele. Quando estava naquela caverna da colônia, apontou uma arma e puxou o gatilho, acertando o chumbo no peito de sua vadia. Não era aceitável. Havia roubado seu brinquedo favorito e era exatamente o tipo de cabeça dura cuja principal trilha sonora da vida era “olho por olho”.

Quando a trouxe até ali e a trancou em seu quarto, o objetivo era tirar pedaços dela destruindo sua mente, emoções e corpo, acabando lentamente com sua pessoa, fazendo-a se curvar até que se quebrasse.

E, então, como qualquer coisa quebrada, jogaria fora.

Pelo menos era esse o plano. Contudo, tornava-se muito claro que suas bases não vacilavam.

Ah, não. Essa era de titânio. Suas reservas de força provavam ser inesgotáveis e ele tinha contusões que provavam isso.

Quando chegou à porta, parou para tirar toda a roupa. De um modo geral, se gostasse das roupas que estava vestindo, tinham que estar no chão antes de entrar no quarto, pois seriam transformadas em lixo no momento em que chegasse perto dela.

Abriu o botão de sua calça, soltou as abotoaduras deixando-as sobre a mesa do corredor e tirou a camisa de seda.

Havia marcas nele. Feitas pelos punhos dela. Por suas unhas. Pelas presas.

A ponta do seu pênis vibrou quando olhou suas várias feridas e hematomas. Recuperava-se rapidamente, graças ao sangue de seu pai correndo espesso em suas veias, mas às vezes os danos que ela fazia permaneciam e aquilo o deixava muito excitado.

Quando se é o filho do mal, há poucas coisas que não se pode fazer, possuir ou matar e, ainda assim, a natureza mortal dela era um troféu indescritível que podia tocar, mas não colocá-lo em sua estante.

Aquilo a tornava rara. Preciosa.

Aquilo fazia que... ele a amasse.

Passando o dedo sobre uma contusão azul escura na parte interna de seu antebraço, sorriu. Tinha que ir até seu pai naquela noite para confirmar a indução, mas primeiro passaria um bom tempo com sua fêmea e adicionaria novos arranhões à coleção. E, antes de partir, deixaria um pouco de comida para ela.

Como todo animal premiado, precisava ser alimentada.

Alcançando a maçaneta da porta, franziu a testa ao pensar sobre o maior problema de sua alimentação. Xhex era apenas meio sympatho: seu lado vampiro era o que o preocupava. Cedo ou tarde, exigiria algo que não poderia ser comprado no mercado... algo que não poderia lhe dar.

Vampiros necessitavam sugar a veia do sexo oposto. Isso era imutável. Quando se tem essa biologia dentro de si, você morre se não beber sangue fresco. Não poderia se alimentar do que estava no corpo dele – tudo que corria dentro de Lash era negro agora. Resultado: seus homens, os poucos que havia preservado, estavam procurando por um macho de boa idade, mas não tinham trazido nada ainda. Caldwell estava perto da extinção quando se tratava de vampiros civis.

Mas... ainda tinha aquele no fundo do congelador.

O problema era que tinha conhecido aquele filho da mãe em sua antiga vida e a ideia de Xhex tomar sangue de alguém conhecido o deixava com muito ciúme.

Além disso, o desgraçado era irmão de Qhuinn – então, não, esta não era uma linhagem que desejava que ela tivesse alguma relação.

Que seja. Cedo ou tarde, seus homens viriam com algo – tinham que vir. Porque seu novo brinquedo favorito era o tipo de coisa que queria manter por um longo tempo.

Quando abriu a porta, começou a sorrir.

– Oi, querida. Cheguei.


Do outro lado da cidade, na loja de tatuagem, Blay, na maior parte do tempo, ficou focado no que estava sendo feito nas costas de John. Havia algo hipnótico sobre observar a agulha traçar as linhas azuis. De vez em quando, o artista fazia uma pausa para limpar a pele com uma toalha de papel antes de retomar o trabalho, e o zumbido da pistola preenchia o silêncio outra vez.

Infelizmente, mesmo tudo isso sendo tão cativante como era, ainda tinha atenção suficiente para ficar em alerta quando Qhuinn decidiu transar com a mulher humana: depois do casal ter conversado calmamente e trocado um monte de carinhos nos braços e nos ombros, aqueles impressionantes olhos díspares se dirigiram para a porta da frente.

E, logo depois, Qhuinn caminhou até lá e verificou se estava fechada.

Aquele olhar verde e azul não encontrou o de Blay quando voltou à sala de tatuagem.

– Você está bem? – ele perguntou a John.

Quando John olhou para cima e balançou cabeça, Qhuinn sinalizou rapidamente:

Importa se eu fizer um pouco de exercício atrás daquela cortina?

Por favor, diga que sim, Blay pensou. Por favor, diga que ele tem que ficar aqui.

Nem um pouco, John sinalizou. Cuide-se.

Estarei pronto se precisar de mim. Mesmo que tenha que sair com o pau pra fora.

Certo, se pudermos evitar isso, eu agradeceria.

Qhuinn riu um pouco.

– É justo. – Houve uma pausa que durou um batimento cardíaco, então virou-se sem olhar para Blay.

A mulher entrou na outra sala primeiro e considerando o modo como mexia os quadris, estava tão preparada para o que ia acontecer quanto Qhuinn. Em seguida, os grandes ombros dele se aprumaram quando saiu de vista e a cortina voltou para o lugar.

A luz do teto da sala e o tecido anoréxico da cortina forneceram uma boa ideia do que estava acontecendo, então Blay teve uma imagem bem detalhada de Qhuinn se estendendo e puxando-a pelo pescoço contra ele.

Blay redirecionou os olhos para a tatuagem de John, mas não durou muito. Dois segundos mais tarde, viu-se preso àquela vitrine em movimento, não só assistindo, mas também absorvendo os detalhes. Numa típica posição de Qhuinn, a mulher agora estava de joelhos e o cara com as mãos enterradas em seu cabelo. Trabalhava a cabeça dela com movimentos de ida e volta de seus quadris.

Os sons suaves eram tão incríveis quanto o visual, e Blay teve que mudar de posição em seu assento, pois ficou ereto. Queria estar lá, de joelhos, sendo conduzido pelas mãos de Qhuinn. Queria ser aquele cuja boca estivesse cheia. Queria ser responsável por fazê-lo ofegar e se contorcer.

Mas não havia chance disso acontecer.

Cara, que inferno! Ele tinha transado com pessoas em clubes, banheiros, carros, becos e, ocasionalmente, em camas. Tinha feito sexo com dez mil estranhos, homens e mulheres, machos e fêmeas da mesma maneira... Ser recusado por ele era como ser impedido de entrar num parque público.

Blay teve a chance de olhar para longe novamente, mas a ondulação de um gemido profundo trouxe seus olhos outra vez em direção ao...

Qhuinn moveu a cabeça de modo que estava olhando para fora da cortina. E quando seus olhos encontraram os de Blay, seu olhar brilhou... quase como se estivesse mais alterado por quem o estava observando do que por quem estava transando.

O coração de Blay parou. Especialmente quando Qhuinn arrastou a mulher para cima, girou em torno dela e inclinou-a sobre a mesa. Um puxão e os jeans dela foram parar nos joelhos. E em seguida estava...

Jesus Cristo. Seria possível que seu melhor amigo estivesse pensando como ele?

Só que, em seguida, Qhuinn puxou a parte superior do corpo da mulher contra o peito. Depois, sussurrou algo em seu ouvido, ela riu e virou a cabeça para que pudesse beijá-la. Foi o que fez.

Você é um maldito estúpido, Blay pensou consigo mesmo. Você é um filho da mãe estúpido.

O cara sabia exatamente com quem estava fazendo... e com quem não estava.

Balançando a cabeça, murmurou:

– John, importa-se se eu for fumar lá fora?

Quando John balançou a cabeça, Blay se levantou e colocou as roupas no banco. Voltando-se para o cara da tatuagem disse:

– É só virar a fechadura?

– Sim, e pode deixá-la aberta se for ficar por perto.

– Obrigado, cara.

– Sem problema.

Blay afastou-se do zumbido da tatuagem e da sinfonia de gemidos por trás das cortinas, escorregando para fora da loja e encostando-se no edifício ao lado da entrada. Pegando um maço de cigarros, retirou um deles, colocou-o entre os lábios e o acendeu com seu isqueiro preto.

A primeira tragada foi o céu. Sempre a melhor de todas.

Quando exalou, pensou que odiava a maneira como lia as coisas, enxergava conexões que não estavam lá, interpretava errado olhares e toques casuais.

Patético, mesmo.

Qhuinn não estava olhando para cima ao receber sexo oral para encontrar os olhos de Blay. Estava checando John Matthew. E girou a mulher e a tomou por trás porque era assim que gostava.

Mas que droga... esperança não era bem uma primavera eterna quando se abafava o senso comum e a autopreservação.

Inalando com força, estava tão envolvido em seus pensamentos que não notou a sombra na entrada do beco do outro lado da rua. Sem saber que estava sendo observado, continuou fumando, a noite fria da primavera consumia as baforadas que se erguiam de seus lábios.

A constatação de que não poderia continuar assim foi um frio cortante que o penetrou até os ossos.


CAPÍTULO 4

– Certo, acho que acabamos.

John sentiu um último puxão em seu ombro, e então a pistola do tatuador ficou em silêncio. Erguendo-se do descanso contra o qual havia se apoiado durante as últimas duas horas, esticou os braços sobre a cabeça e puxou o tronco para trás.

– Só um segundo e vou limpá-lo.

Quando o macho humano higienizou algumas toalhas de papel com spray antibacteriano, John depositou o peso de seu corpo em sua coluna mais uma vez e deixou o formigamento do trabalho da agulha reverberar por todo o corpo.

Naquele embalo, uma lembrança estranha chegou a ele, algo que não pensava há anos. Era de quando vivia no orfanato Nossa Senhora, quando não sabia o que realmente era.

Um dos benfeitores da igreja era um homem rico proprietário de uma grande casa nas margens do lago Saranac. Todo verão as crianças eram convidadas a passar um dia lá e brincar em seu gramado do tamanho de um campo de futebol, passear em seu belo barco de madeira e comer sanduíches e melancia.

John sempre se queimava no sol. Não importava quanto protetor passassem sobre ele, sua pele sempre torrava – até que finalmente o relegaram à sombra da varanda. Forçado a esperar as coisas à margem, observava os outros garotos e garotas brincarem, ouvia os risos ao longo da grama verde e brilhante, traziam sua comida e a deixavam para comer sozinho, atuava como observador ao invés de fazer parte daquilo tudo.

Engraçado, sentia as costas hoje como sentia sua pele naquele tempo: tensa e irritada, especialmente quando o tatuador pressionou os poros em carne viva com o pano molhado e começou a fazer círculos sobre a tinta fresca.

Cara, John conseguia se lembrar do pavor daquele calvário anual no lago. Queria tanto estar com os outros... contudo, para ser honesto, não se tratava tanto de fazer o que estavam fazendo, e mais porque estava desesperado para se encaixar entre eles. Pelo amor de Deus, poderiam estar mastigando cacos de vidro e sangrando por toda camiseta que ainda estaria todo animado para participar do mesmo jeito.

Aquelas seis horas na varanda com nada para fazer além de uma história em quadrinhos ou talvez um ninho de pássaro caído para inspecionar pareciam meses. Tempo demais para pensar e ansiar. Sempre tinha a esperança de ser adotado, e momentos solitários como esses o consumiam: muito mais do que estar no meio das outras crianças, ele queria uma família, uma mãe e um pai de verdade, não apenas tutores que fossem pagos para criá-lo.

Queria ser possuído. Queria alguém para dizer: você é meu.

Claro, agora que ele sabia o que era... agora que vivia como um vampiro dentre outros vampiros, ele entendia muito melhor essa coisa de “possuir”. Com certeza, humanos tinham um conceito de unidade familiar, casamento e toda aquela coisa, mas sua verdadeira natureza parecia mais com animais num bando. Os laços de sangue e acasalamentos eram muito mais viscerais e os consumiam como um todo.

Ao pensar em si mais jovem e mais triste, seu peito doeu – mas não porque desejava poder voltar no tempo e dizer àquela criança que seus pais estavam vindo buscá-lo. Não, sofria porque aquilo que tanto desejava quase o destruiu. Sua adoção realmente chegou, mas a parte de “pertencer” não tinha funcionado. Wellsie e Tohr entraram valsando em sua vida, contaram a verdade sobre ele e mostraram um breve vislumbre de lar... e depois desapareceram.

Então, poderia dizer categoricamente que foi muito pior ter e depois perder seus pais do que não tê-los de jeito nenhum.

Sim, claro, tecnicamente Tohr estava de volta à mansão da Irmandade, mas para John estava sempre ausente: mesmo dizendo as coisas certas agora, depois de tantas decepções John já não sentia a mesma coisa.

Ele estava cheio de toda aquela coisa sobre Tohr.

– Dê uma olhada no espelho, cara.

John agradeceu com a cabeça e foi até um espelho de corpo inteiro no canto. Enquanto Blay retornava de sua comprida pausa para o cigarro e Qhuinn surgia de trás da cortina da sala ao lado, John se virou e deu uma olhada no que estava em suas costas.

Oh, Deus. Era exatamente o que ele queria. E os arabescos estavam demais. Assentiu com a cabeça enquanto movia o espelho de mão, checando cada ângulo. Cara, era uma pena saber que ninguém mais, além de seus amigos, veria isso. A tatuagem estava espetacular.

E o mais importante: não importava o que aconteceria em seguida, se encontraria Xhex viva ou morta, agora ela estaria sempre com ele.

Maldição, aquelas últimas quatro semanas desde o seu rapto tinham sido as mais longas de sua vida. E já havia tido dias bastante longos antes daquela porcaria toda. Não saber onde estava. Não saber o que tinha acontecido com ela. Tê-la perdido... Sentia como se tivesse sido ferido mortalmente, embora sua pele estivesse intacta e seus braços, pernas e peito não tivessem sido penetrados por nenhuma bala ou lâmina.

Entretanto, em seu coração, ele a possuía. E mesmo se a conseguisse de volta apenas para ter uma vida que não o incluísse, estava bem. Apenas a queria viva e em segurança.

John olhou para o artista, colocou a mão sobre o coração e inclinou-se profundamente. Quando ergueu-se de sua posição de gratidão, o cara lhe estendeu a mão.

– Por nada, cara. Significa muito para mim que tenha aprovado. Deixe-me cobri-lo agora com um pouco de creme e um envoltório.

Depois que deram as mãos, John gesticulou e Blay traduziu:

– Não é necessário. Ele se recupera rápido como um relâmpago.

– Mas ele vai precisar de tempo para... – O tatuador se inclinou e, em seguida, franziu a testa enquanto inspecionava onde havia trabalhado.

Antes que o cara começasse a fazer perguntas, John recuou e pegou sua camiseta de Blay. O fato era que a tinta que tinham trazido foi retirada do estoque de V. – o que significava que parte de sua composição incluía sal. Aquele nome e os redemoinhos fabulosos eram permanentes – e sua pele já estava curada.

Essa era a vantagem de ser um vampiro quase puro.

– A tatuagem está demais – Qhuinn disse. – É sexo puro.

Como se tivesse aproveitado a deixa, a mulher com quem tinha acabado de transar saiu de trás da cortina da sala e era difícil não notar a expressão triste de Blay. Especialmente quando deslizou um pedaço de papel no bolso de trás de Qhuinn. Sem dúvida, seu número estava escrito ali, mas ela não precisava mesmo ter esperanças. Uma vez que o cara ficava com alguém, era isso – como se seus parceiros sexuais fossem uma refeição que não poderia ser ingerida outra vez e nunca sobrava nada. Infelizmente para ela, seu olhos brilhavam.

– Me liga – murmurou com uma confiança que se desvaneceria com o passar dos dias.

Qhuinn sorriu um pouco.

– Cuide-se.

Ao som daquelas duas palavras, Blay relaxou, seus grandes ombros se descontraíram. Na terra de Qhuinn, cuide-se era sinônimo de nunca mais irei vê-la, ligar ou transar com você outra vez.

John tirou sua carteira, a qual estava estufada com toneladas de notas e tirou quatrocentos. O que era duas vezes o preço que a tatuagem tinha custado. Quando o artista começou a apertar sua mão e dizer que era demais, John acenou com a cabeça para Qhuinn.

Os dois levantaram suas mãos direitas em direção aos humanos e, em seguida, penetraram em suas mentes e cobriram as memórias das últimas duas horas. Nem o artista, nem a recepcionista teriam qualquer lembrança concreta do que havia acontecido. No máximo, teriam sonhos nebulosos sobre isso. No mínimo, teriam uma dor de cabeça.

Quando os dois entraram em transe, John, Blay e Qhuinn saíram pela porta da loja e entraram nas sombras. Esperaram até que o artista entrasse em foco outra vez, saísse e trancasse a porta... em seguida, era hora de voltar ao trabalho.

– Vamos para o Restaurante do Sal? – Qhuinn perguntou, sua voz estava mais profunda que o de costume graças à satisfação pós-coito.

Blay acendeu outro Dunhill quando John assentiu e gesticulou:

Estão nos esperando.

Um após outro, seus garotos desmaterializaram na noite. Mas antes que John desaparecesse também, parou por um momento, pois seus instintos ressoavam.

Olhando para a esquerda e para a direita, seus olhos perspicazes penetraram a escuridão. A Rua Trade tinha várias luzes de neon e havia carros passando, pois era apenas duas horas da manhã, mas ele não estava interessado na parte iluminada.

Os becos escuros eram o que importava.

Alguém os observava.

Colocou a mão dentro de sua jaqueta de couro e a fechou em torno do punho de sua adaga. Não tinha qualquer problema em matar os inimigos, especialmente agora, quando sabia tão bem quem estava com sua fêmea... e esperou que algo cheirando a cervo morto há uma semana se aproximasse dele.

Não teve tanta sorte. Ao invés disso, o celular disparou um sinal. Sem dúvida, Qhuinn ou Blay estavam se perguntando onde estava.

Esperou mais um minuto e decidiu que a informação que esperava tirar de Trez e iAm era mais importante que arrebentar a socos qualquer assassino escondido nas sombras.

Com a vingança fluindo espessa em suas veias, John se desmaterializou no fino ar e retomou sua forma no estacionamento do Restaurante do Sal. Não havia carros por perto e as luzes que geralmente brilhavam do lado de fora do edifício de tijolos estavam apagadas.

As portas duplas sob o pórtico se abriram imediatamente e Qhuinn enfiou a cabeça para fora.

– Por que diabos demorou tanto?

Que paranoia, pensou John.

Estava checando minhas armas outra vez, sinalizou enquanto andava.

– Poderia ter me pedido para esperar. Ou feito isso aqui.

Sim, mamãe.

O interior do local estava decorado no estilo clássico dos anos 1950 e 1960 com papéis de parede com desenhos padronizados e carpetes luxuosos, tudo em vermelho, até onde os olhos conseguiam alcançar. Tudo, desde as cadeiras até as mesas cobertas de linho, os pratos e talheres, era uma reprodução do que havia sido nos anos 1960 e a vibração era ao estilo de um luxuoso cassino de Las Vegas: suave, rico e elegante.

Nos alto-falantes, Frank Sinatra cantava Fly me to the moon.

Aquele sistema de som provavelmente se recusaria a tocar qualquer outra coisa.

Os três passaram pelo balcão da recepção e pelo bar, onde um aroma pungente de cigarros recendia sem se importar com as leis antitabagistas de Nova York. Blay foi para trás do balcão de madeira nobre para arranjar uma Coca-Cola e John caminhou pelo local, mãos nos quadris, olhos no chão de mármore, delineando um caminho pelas cabines de couro que foram dispostas no espaço.

Qhuinn sentou-se numa delas.

– Disseram para que esperássemos e fizéssemos algo para beber. Vão chegar em um segundo...

Naquele momento, vindo da sala com entrada restrita a funcionários, dois baques e um gemido interromperam Sinatra. Com uma maldição, John seguiu o exemplo de Qhuinn e sentou, estacionando em frente ao colega. Se os Sombras estivessem fazendo algum serviço sujo, provavelmente levariam mais que um segundo.

Quando Qhuinn esticou as pernas sob a mesa e estalou as costas, seu rosto ainda brilhava, corado pelo esforço, os lábios inchados por beijar tanto. Por um momento, John ficou tentado a perguntar porque o cara insistia em transar com pessoas em frente a Blay, mas calou-se ao olhar a lágrima vermelha tatuada no rosto do rapaz.

De que outra maneira o bastardo iria transar? Estava preso a John e tudo o que faziam era sair e lutar... sendo Blay membro daquela equipe.

Blay se aproximou com sua Coca, sentou-se próximo a John e permaneceu em silêncio.

John pensou ser tudo muito estranho quando nenhum deles disse nada.

Dez minutos depois, a porta onde marcava APENAS FUNCIONÁRIOS abriu completamente e Trez surgiu atrás dela.

– Desculpe por deixá-los esperando. – Pegou uma toalha de mão atrás do bar e limpou o sangue de seus dedos. – iAm só está despejando lixo no beco. Estará aqui em um minuto.

John gesticulou:

Descobriram alguma coisa?

Depois que Qhuinn traduziu, as sobrancelhas de Trez caíram e os olhos do Sombra tornaram-se calculistas.

– Sobre o que?

– Xhex – Qhuinn disse.

Trez executou um trabalho elaborado ao redobrar a toalha agora manchada de vermelho.

– A última coisa que soube foi que Rehv estava morando no complexo com vocês.

– Ele está.

O Sombra plantou as palmas das mãos sobre a madeira e inclinou-se, os músculos do ombro agruparam-se até ficarem espessos.

– Então, porque tem que me perguntar sobra a busca e resgate dela?

Você a conhece muito bem, John gesticulou.

Depois da tradução, os olhos escuros de Trez lampejaram um verde brilhante.

– Conheço. Ela é uma irmã, apesar de não ser do meu sangue.

Então, qual é o problema?, John assinalou.

Quando Qhuinn hesitou, como se quisesse ter certeza de que John precisava mesmo dizer aquilo ao Sombra, John acenou ao cara para que continuasse a falar.

Qhuinn balançou um pouco a cabeça.

– Ele disse que entende isso. Só quer ter certeza se estão abrangendo todas as possibilidades.

– Certo, não acho que foi o que ele gesticulou. – O Sorriso de Trez era frio. – E esse é o meu problema. Você vem aqui todo cheio de “e aí?” sugerindo que você e seu rei não confiam em Rehv para lhes dizer onde ela está – ou acha que ele não está fazendo todo esforço possível para encontrá-la. E você sabe... essa coisa toda não funciona comigo.

iAm entrou pela porta dos funcionários e apenas acenou enquanto se aproximava de seu irmão – que era a recepção mais calorosa que alguém poderia receber dele. Não poupava palavras. Ou socos, considerando a quantidade de sangue que havia manchando sua camiseta cinza. E o cara não pediu um resumo da conversa. Parecia estar a toda velocidade, o que significava que ou ele viu alguma coisa na câmera de segurança nos fundos ou estava lendo corretamente a tensão no poderoso corpo de seu irmão.

Não viemos aqui para lutar ou ofender, John assinalou. Só queremos encontrá-la.

Houve uma pausa depois que Qhuinn fez sua participação. E então Trez fez a pergunta que valia um milhão de dólares.

– O rei sabe que está aqui?

Quando John balançou a cabeça, Trez estreitou os olhos ainda mais.

– E o que exatamente espera receber de nós?

Qualquer coisa que saibam ou acreditem ser verdade sobre onde Xhex está. E qualquer informação sobre o tráfico de drogas em Caldwell. Esperou que Qhuinn o alcançasse, em seguida, continuou. Assumindo que Rehv esteja certo e Lash seja quem está derrubando os traficantes da cidade, então fica muito óbvio que ele e a Sociedade Redutora vão preencher o vazio que foi criado. Outra pausa para Qhuinn. Então, aonde as pessoas vão para comprar, além dos clubes da Rua Trade? Existe uma rota para o crack? E quem são os grandes fornecedores com quem Rehv trabalhava? Se Lash está tentando traficar drogas, está pegando a porcaria de alguém. Uma última pausa para Qhuinn. Já estivemos nos becos, mas até agora isso não nos levou a lugar algum. Apenas humanos traficando com humanos.

Trez recuou as palmas de suas mãos e era possível praticamente sentir o cheiro de madeira queimando enquanto seu cérebro trabalhava.

– Deixe-me perguntar uma coisa.

Claro, John gesticulou.

Trez olhou em volta, e em seguida encontrou os olhos de John outra vez.

– Em particular.


CAPÍTULO 5

Quando o Sombra expôs seu pedido, John viu tanto Qhuinn quanto Blay enrijecerem e entendia seus colegas. Trez era um aliado, mas também era perigoso por definição. Sombras vivem segundo seu próprio código de regras e eram capazes de coisas que fariam os sympathos vomitarem.

Mas quando se tratava de Xhex, estava disposto a enfrentar qualquer linha de fogo.

Assim que eu tiver um bloco de papel e caneta, estaremos prontos para ir, John gesticulou. Quando nem Blay ou Qhuinn traduziram, franziu a testa e deu uma cotovelada nos dois.

Qhuinn limpou a garganta e olhou ao longo do bar para Trez.

– Sendo um ahstrux nohstrum vou aonde ele for.

– Não, na minha casa você não vai. Nem na do meu irmão.

Qhuinn se levantou, como se fosse rolar no chão com o Sombra, se necessário.

– É assim que funciona.

John deslizou para fora da cabine e colocou seu corpo no caminho de Qhuinn antes que o filho da mãe assumisse uma posição ofensiva. Com um aceno de cabeça em direção aos fundos, para onde achava que ele e Trez iriam, esperou o Sombra liderar o caminho.

Naturalmente, Qhuinn tinha que abrir a boca.

– Vá se ferrar John.

John virou-se e gesticulou:

Tenho que lhe dar uma maldita ordem? Eu vou com ele e você vai ficar aqui. Ponto-final.

Você é um saco, as mãos de Qhuinn expressaram. Não escolto você apenas para me divertir...

O som de uma campainha tocando interrompeu a discussão quando os dois olharam para os Sombras. Depois que iAm observou o monitor de segurança sob o bar, disse:

– Nosso compromisso das duas e meia está aqui.

Ao caminhar ao redor do balcão e sair pela porta da frente, Trez olhou Qhuinn por um longo momento, e então disse a John:

– Diga a seu garoto que é difícil proteger alguém quando se está morto.

A voz de Qhuinn tornou-se rígida como um soco.

– Eu morreria por ele.

– É só continuar com essa atitude e isso não será apenas uma hipótese.

Qhuinn liberou suas presas e soltou um ruído pela garganta, tornando-se o animal letal em torno do qual os humanos elaboraram todo tipo de mitologia de horror. Quando olhou para Trez, ficou muito claro que, em sua mente, ele já estava atravessando o bar em direção à garganta do Sombra.

Trez sorriu com frieza e não se moveu nem sequer um centímetro.

– Cara durão, hum? Ou é apenas de se exibir?

Difícil saber qual dos dois lutadores recuaria. Um Sombra tinha truques sob a manga e Qhuinn parecia um trator preparado para derrubar um edifício. Mas não importava, aquilo era Caldwell, não Las Vegas, e John não era um agenciador de apostas para lidar com as probabilidades.

A resposta certa era não deixar que a força implacável encontrasse o objeto imóvel.

John fechou o punho e bateu com ele sobre a mesa. O barulho foi tão alto que chamou a atenção de todos ao redor e Blay teve que pegar sua Coca-Cola suspensa, uma vez que saltou no ar.

Depois que chamou a atenção dos combatentes, deu dois assovios, cada um na direção de um deles: sendo mudo, esse era o mais próximo que chegaria para dizer que acalmassem os ânimos.

O olhar díspar de Qhuinn focou novamente o Sombra.

– É a mesma coisa que faria por Rehv. Não pode me culpar por isso.

Houve uma pausa... em seguida o Sombra relaxou um pouco.

– É verdade. – Quando a testosterona se desvaneceu com um rugido maçante, Trez assentiu com a cabeça. – Sim... é verdade. E não vou machucá-lo. Se ele for um cavalheiro, serei um cavalheiro. Dou-lhe a minha palavra.

Fique com Blay, John gesticulou antes de virar-se e ir atrás do Sombra.

Trez liderou o caminho por um corredor largo e cheio de caixas de cerveja e licor. A cozinha estava na outra extremidade, separada por um par de portas articuladas que não emitiam qualquer som quando se passava por elas.

Bem iluminado e com um piso de ladrilho vermelho, o coração do restaurante era muito limpo e do tamanho de uma casa, com um grande fogão, um frigorífico e metros e metros de bancadas de aço inoxidável. Havia panelas penduradas acima e abaixo e uma coisa maravilhosa estava sendo cozida no acendedor da frente.

Trez aproximou-se e levantou a tampa. Depois de inalar profundamente, olhou para ele com um sorriso.

– Meu irmão é um ótimo cozinheiro.

Claro que era, John pensou. Contudo, com os Sombras, você sempre tinha que se perguntar que tipo de proteína tinha na panela. Havia rumores de que gostavam de comer seus inimigos.

O cara recolocou a tampa no lugar e alcançou uma pilha de bloco de notas. Tirando um da pilha, escorregou a coisa através do balcão e tirou uma caneta de uma xícara.

– Isso é para você. – Trez cruzou os braços sobre o enorme peito e inclinou-se contra o fogão. – Quando ligou e pediu para nos ver, fiquei surpreso. Como disse, Rehv vive sob o mesmo teto que você, então não se trata de não saber o que ele está fazendo naquela colônia ao norte. Portanto você deve saber, assim como seus superiores, que ele está procurando no canto mais ao norte daquele labirinto esta semana... e também deve estar ciente de que não encontrou absoluta e positivamente nada que o levasse a crer que Xhex foi capturada por um sympatho.

John não fez qualquer movimento, nem confirmou nem negou.

– E também acho curioso que queira perguntar a mim sobre tráfico de drogas, uma vez que Rehv sabe tudo sobre o comércio em Caldwell.

Neste momento, iAm entrou na cozinha. Foi até a panela e deu uma mexida, depois parou próximo ao irmão, assumindo a mesma pose. John nunca tinha ouvido falar que eram gêmeos, mas não tinha como não se perguntar sobre isso.

– Então, o que está acontecendo, John? – Trez murmurou. – Por que seu rei não sabe o que está fazendo e por que não conversa com meu amigo, Rehvenge?

John encarou os dois, pegou a caneta e escreveu por um momento. Quando estendeu o papel para frente, os Sombras se inclinaram.

Sabe perfeitamente o que está acontecendo aqui. Pare de desperdiçar nosso tempo.

Trez riu e iAm até mesmo sorriu.

– Sim, podemos ler suas emoções. Só achei que gostaria de se explicar. – Quando John balançou a cabeça, Trez assentiu. – Tudo bem, é justo. E tenho que respeitar sua política de ir direto ao ponto. Quem mais sabe que isso é pessoal para você?

John voltou para o papel e caneta. Rehv, é muito provável, considerando que é um sympatho. Qhuinn e Blay. Mas nenhum dos Irmãos.

iAm falou:

– Então, a tatuagem que acabou de fazer... tem a ver com ela?

John ficou momentaneamente surpreso, mas então percebeu que poderiam sentir o cheiro de tinta fresca ou sentir as repercussões da dor já enfraquecida.

Com um rabisco tranquilo, escreveu: Isso não é da sua conta.

– Certo, posso respeitar isso – Trez disse. – Ouça... sem ofensa, mas por que não pode confiar nos Irmãos nessa situação toda? É por que ela é uma sympatho e está preocupado se vão aceitar isso? Porque já sabem lidar com Rehv.

Use a cabeça. E se eu for com tudo procurá-la com eles e a encontramos? Todos naquela casa vão esperar uma cerimônia de união na volta. Acha que ela vai gostar disso? E se estiver morta? Não quero olhar ao redor da mesa toda manhã e ter um monte de gente à minha volta esperando para ver se eu me enforco no banheiro.

Trez soltou uma risada.

– Pois bem... aí está. E não vejo lógica melhor que essa.

Então, preciso da sua ajuda. Ajudem-me a ajudá-la.

Os dois Sombras se entreolharam e houve um longo período de silêncio. O que levou John a pressupor que estavam tendo uma conversa por telepatia.

Depois de um momento, voltaram a olhar John, e como de costume, Trez foi quem falou.

– Bem, agora... já que nos fez a gentileza de cortar os rodeios, vamos fazer o mesmo. Conversar com você assim nos coloca em uma posição difícil. Nossa relação com Rehv é próxima, como você sabe, e ele está tão pessoalmente envolvido nisso quanto você. – Enquanto John procurava uma forma de contornar isso, Trez murmurou: – Mas vamos lhe dizer uma coisa... nenhum de nós está indo procurá-la. Em lugar algum.

John engoliu a seco, pensando que aquilo não era uma boa notícia.

– Não, não é. Ou ela está morta... ou está sendo mantida em algum lugar com um bloqueio. – Trez soltou um palavrão. – Eu também acho que Lash está com ela. E compro totalmente a ideia de que está trabalhando nas ruas por dinheiro e este é o jeito de encontrá-lo. Se eu tivesse que dar um palpite, diria que ele está testando traficantes humanos antes de convertê-los à Sociedade Redutora... e anote o que digo, começará a introduzi-los o mais rápido possível. Vai querer ter o controle total sobre sua equipe de vendas e a única forma de conseguir isso é transformá-los. Quanto às principais áreas de negociação, os shoppings estão sempre em alta. Assim como as escolas, apesar de ser difícil para você devido à questão da luz do dia. Zonas de construções municipais também – os fornecedores de caminhões de abastecimento sempre compravam de nós. Além disso, aquela pista Xtreme de skate. Muita porcaria acontece por lá. E sob as pontes, apesar de que ali a maior parte é sem teto, então o potencial de lucro provavelmente seria muito baixo para Lash se envolver.

John assentiu com a cabeça, pensando que era exatamente o tipo de informação que estava esperando.

E quanto aos fornecedores, escreveu. Se Lash entrou no lugar de Rehv, não precisaria estabelecer um relacionamento com eles?

– Sim. Entretanto, o grande fornecedor da cidade, Ricardo Benloise, é um homem bastante isolado. – Trez olhou para seu irmão e houve outro silêncio. Quando iAm assentiu, Trez continuou. – Certo. Vamos ver se conseguimos obter algumas informações do Benloise... pelo menos o suficiente para que possa rastreá-lo em alguma situação na qual esteja se encontrando com Lash.

John escreveu sem pensar: Muito obrigado.

Os dois assentiram, em seguida Trez disse:

– Duas advertências.

Com as mãos, John pediu ao cara para continuar.

– Primeira, meu irmão e eu não guardamos segredos de Rehv. Então, diremos a ele que nos procurou. – Quando John franziu a testa, Trez sacudiu a cabeça. – Desculpe. Mas é assim que funciona.

iAm interrompeu.

– Não temos problemas com relação a ir fundo nisso. Não que os Irmãos não estejam fazendo isso, é só que com mais gente, melhores são as chances dela.

John podia entender, mas ainda queria manter tudo em particular. Antes que conseguisse rabiscar alguma coisa, Trez continuou.

– Segunda, deve nos informar completamente sobre qualquer coisa que conseguir. Rehvenge, aquele maldito bastardo obcecado por controle, nos mandou ficar fora disso. Sua aparição aqui? Bem, não é que acabou sendo uma maneira conveniente para nos envolvermos?

Enquanto John se perguntava por que inferno Rehv ataria as mãos dos dois guerreiros, iAm disse:

– Ele acha que acabaríamos mortos.

– E devido ao nosso... – Trez fez uma pausa, como se procurando a palavra certa – “relacionamento” com ele, estamos presos.

– Ele poderia muito bem ter nos acorrentado a uma maldita parede.

Trez deu de ombros.

– E foi por isso que concordamos em nos encontrar com você. No momento em que nos mandou uma mensagem de texto, sabíamos...

– ...que era a abertura que...

– ...estávamos procurando.

Quando os Sombras completaram a frase um do outro, John respirou profundamente. Pelo menos entendiam seus motivos.

– Entendemos totalmente. – Trez estendeu os dedos e quando John lhe deu um aperto de mão, o cara assentiu. – E vamos manter esta conversa de bastidores entre nós.

John se inclinou sobre o bloco de anotações.

Espere, pensei que tinha dito que ia contar ao Rehv que estive aqui, não foi isso?

Trez leu a caligrafia e riu novamente.

– Oh, diremos a ele que veio nos visitar e fazer uma refeição.

iAm sorriu de maneira sombria.

– Mas ele não precisa saber do resto.


Depois que Trez e John foram para os fundos, Blay terminou sua Coca e seguiu Qhuinn com sua visão periférica. O cara estava passeando ao redor da área do bar, como se tivesse tido suas asas cortadas e não apreciasse a nova condição.

Simplesmente não aguentava ficar de fora de qualquer coisa. Fosse um jantar, um encontro ou uma luta, ele exigia um passe com acesso total à vida.

Sinceramente, aquele silêncio dele era pior que soltar palavrões.

Blay se levantou e foi para trás do bar com seu copo vazio. Enquanto voltava a encher sua Coca e assistia à espuma escura bater no gelo, perguntou-se o motivo de estar tão atraído pelo cara. Ele era um tipo de macho criado com educação e que seguia todo o procedimento de “por favor e obrigado”. Qhuinn era mais o tipo “vá se ferrar e morra”.

Achava que os opostos se atraíam. Bem, pelo menos um dos lados...

iAm voltou e tinha consigo o que poderia ser descrito como um macho de valor: o cara estava vestido de maneira impecável, desde o corte do casaco cinza-escuro, até o brilho de suas lapelas e o lenço que usava ao invés de gravata. O cabelo espesso e loiro era cortado curto na parte de trás e deixado longo na parte da frente, e seus olhos eram da cor de pérolas.

– Caramba, que diabos você faz aqui? – a voz de Qhuinn retumbou radiante enquanto iAm desapareceu ao fundo. – Seu cretino arrumadinho!

A primeira reação de Blay foi ficar muito tenso. Concluindo que Qhuinn fosse atraído pelo cara, a última coisa que precisava era ser espectador de outro de seus espetáculos.

Só que ele franziu a testa. Será possível que...?

O homem que tinha acabado de chegar ria enquanto abraçava Qhuinn.

– Você tem tanto jeito com as palavras, primo. Você parece... um caminhoneiro misturado com marinheiro e cruzado com um menino de doze anos de idade.

Saxton. Era Saxton, filho de Tyhm. Blay se lembrava de tê-lo encontrado uma ou duas vezes antes. Qhuinn recuou.

– Na verdade, droga é uma vírgula. Ou não te ensinaram estas porcarias em Harvard?

– Estavam mais preocupados com direito contratual. Propriedades. Delitos de responsabilidade civil... que, à propósito, abrange agressão contra os outros. Estou surpreso que não estava no exame final.

As presas de Qhuinn apareceram brilhantes e claras enquanto realmente sorria.

– Isso é direito humano. Não podem lidar comigo.

– Quem pode?

– Então, o que você está fazendo aqui?

– Transações de propriedade para os irmãos Sombra. Ou você acha que aprendi tudo sobre jurisprudência humana para passar o tempo? – Os olhos de Saxton deslocaram-se ao redor do local e encontraram os de Blay. De imediato, a expressão do cara foi alterada para algo sério e especulativo. – Bem, olá.

Saxton virou as costas para Qhuinn e veio com um foco que fez Blay verificar se havia algo atrás de si.

– Blaylock, não é? – O macho estendeu seu elegante braço ao longo do bar. – Não o vejo há anos.

Blay sempre ficou um pouco sem fala na presença Saxton, porque o “cretino arrumadinho” sempre lhe impactou. E tinha uma sensação de que não só conhecia as respostas certas para tudo, mas poderia optar por não incluí-lo em segredos se você não estivesse à altura de seus padrões.

– Como vai? – Blay disse enquanto as palmas de suas mãos se encontravam.

Saxton cheirava muito bem e tinha um aperto de mão firme.

– Cresceu bastante.

Blay ruborizou enquanto recuava as mãos.

– Você está exatamente o mesmo.

– Estou? – Aqueles olhos brilharam como pérolas. – Isso é bom ou ruim?

– Oh... bom. Não quis dizer que...

– Então, diga-me como você está. Já se uniu a alguma boa fêmea que seus pais lhe arranjaram?

A risada de Blay foi afiada e dura.

– Deus, não. Não há ninguém para mim.

Qhuinn se inseriu na conversa, colocando seu corpo entre eles.

– Então, como você está, Sax?

– Bastante bem. – Saxton não olhou nem mesmo de relance para Qhuinn ao responder, sua atenção permaneceu em Blay. – Embora meus pais me queiram fora de Caldwell. No entanto, não estou inclinado a ir embora.

Precisando de outro lugar para olhar, Blay se distraiu bebendo seu refrigerante e contando os cubos de gelo que flutuavam nele.

– E o que está fazendo aqui? – Saxton perguntou.

Houve uma longa pausa e, em dado momento, Blay revirou os olhos como se estivesse se perguntado por que Qhuinn não tinha respondido.

Oh. Certo. Saxton não estava se dirigindo a seu primo.

– Responde essa, Blay – Qhuinn pediu com uma carranca.

Pela primeira vez em... Deus, depois de uma eternidade... encontrou completamente o olhar de seu melhor amigo. Contudo, não precisava disfarçar. Como sempre, aqueles olhos díspares estavam focados em outra pessoa: Saxton, que estava recebendo uma rápida examinada que teria feito machos inferiores encolherem. Mas o primo de Qhuinn estava ou imperceptível a isso ou possivelmente não se importava.

– Responda para mim, Blaylock – o macho murmurou.

Blay pigarreou.

– Estamos aqui para ajudar um amigo.

– Admirável. – Saxton sorriu, exibindo um conjunto de presas que brilhava. – Sabe? Acho que devemos sair qualquer dia desses.

A voz de Qhuinn era quase rude:

– Claro. Parece ótimo. Aqui está o meu número.

Assim que recitou seus números, John, Trez e iAm retornaram. Houve algumas apresentações e conversas, mas Blay se manteve fora disso, terminando sua Coca e colocando seu copo na máquina de lavar louça.

Ao passar perto do bar e pelo cara, Saxton o alcançou.

– Foi bom vê-lo novamente.

Seguindo um reflexo, Blay apertou a mão que lhe foi oferecida... e depois de apertar, percebeu que tinha um cartão de visita em sua mão. Enquanto se recuperava da surpresa, Saxton apenas sorriu.

Enquanto Blay colocava o cartão em seu bolso, Saxton virou a cabeça e olhou para Qhuinn.

– Vou ligar, primo.

– Sim. Claro.

A despedida foi consideravelmente menos amigável por parte de Qhuinn, mas novamente Saxton parecia não dar a mínima ou não perceber – sendo a última opção difícil de acreditar.

– Com licença – disse Blay a ninguém em particular.

Deixou o restaurante sozinho, e quando chegou à porta, acendeu um cigarro e recostou-se contra o tijolo fresco, apoiando uma sola da bota no edifício.

Pegou o cartão enquanto fumava. Gravado, mas não em relevo – naturalmente. Preto, fonte tradicional. Ao levar o cartão ao nariz, pôde sentir o cheiro daquela colônia.

Bom. Muito bom. Qhuinn não acreditava naquelas coisas... então, cheirava apenas a couro e sexo na maior parte do tempo.

Enquanto colocava o cartão dentro da jaqueta, deu outra tragada e expirou longa e lentamente. Não estava acostumado a ser olhado. Ou abordado. Era sempre o único a olhar e Qhuinn era seu alvo desde quando conseguia se lembrar.

As portas se abriram e seus amigos saíram.

– Cara, odeio fumaça de cigarro – Qhuinn murmurou, afastando a nuvem que tinha acabado de exalar.

Blay apagou o cigarro na sola da bota.

– Para onde vamos?

Parque Xtreme, John sinalizou. Um que é próximo a um rio. E deram uma outra pista, que vai levar alguns dias para ser estabelecida.

– Não é aquele parque no território das gangues? – Blay perguntou. – Não há um monte de policiais ao redor?

– Por que se preocupar com os tiras? – Qhuinn riu numa explosão rígida. – Se tivermos problemas com a polícia de Caldwell, Saxton sempre pode vir nos resgatar. Certo?

Blay olhou e desta vez deveria ter se preparado. Os olhos azul e verde de Qhuinn olhavam tediosamente para ele, e quando registrou isso, aquela velha e familiar sensação atingiu seu peito.

Deus... era este a quem amava, pensou. E sempre iria amar.

Era o impulso daquele maxilar teimoso, as escuras sobrancelhas e os piercings em sua orelha e lábio inferior. Era aquele cabelo preto espesso, brilhante, a pele dourada e aquele forte corpo musculoso. Era a maneira como ria e o fato de que nunca, jamais chorava. Eram as cicatrizes em seu interior que ninguém conhecia e a convicção de que seria sempre o primeiro a correr em direção a um prédio em chamas ou a uma luta sangrenta ou acidente de carro.

Isso era o que Qhuinn sempre seria.

Mas as coisas entre eles nunca vão mudar.

– O que não vai mudar? – Qhuinn disse com uma careta.

Ah, droga. Tinha falado em voz alta.

– Nada. Vamos, John?

John checou ao redor. Então, assentiu. Temos apenas três horas antes do amanhecer. Vamos nos apressar.


CAPÍTULO 6

– Amo a maneira como olha para mim.

Do outro lado do quarto, Xhex não respondeu às palavras pronunciadas por Lash. Do jeito que estava caído na frente da escrivaninha, com um dos ombros mais alto que o outro, pensou que era perfeitamente possível ter deslocado seu ombro. E esse não era o único ferimento que tinha. Sangue negro escorria por seu queixo vindo do lábio que ela havia rasgado e ia andar mancando depois de ter mordido sua coxa.

Os olhos dele a percorreram e não se preocupou em cobrir-se com as mãos. Se ele quisesse uma segunda rodada, ela precisaria de cada grama de força que lhe restava. E, além disso, a modéstia importa apenas quando se dá a mínima para seu corpo e já tinha perdido essa conexão há muito tempo.

– Você acredita em amor à primeira vista? – perguntou. Com um grunhido, levantou-se do chão e precisou da borda da cômoda como apoio, depois de fazer algumas tentativas com aquele braço.

– Acredita? – insistiu.

– Não.

– Cínica. – Mancou sobre o arco que levava ao banheiro. Parando entre os batentes, apoiou uma mão contra a parede, virou-se para a esquerda e respirou fundo.

Com uma pancada, colocou seu ombro de volta no lugar, e o barulho e o palavrão soaram altos. Ao ceder depois disso, sua respiração vinha em difíceis intervalos e os cortes em seu rosto deixaram manchas negras de sangue de redutor no piso branco. Voltando-se para ela, sorriu.

– Quer tomar um banho comigo? – Quando Xhex permaneceu em silêncio, balançou a cabeça. – Não? Que pena.

Desapareceu na imensidão de mármore e, depois de um momento, veio o barulho da água.

Foi só depois de ouvi-lo se lavar e sentir a fragrância do sabonete que ela cuidadosamente ajeitou as pernas e os braços.

Nenhuma fraqueza. Não mostrou nenhuma fraqueza a ele. E não se tratava apenas de querer parecer forte para que pensasse duas vezes ao tentar aquele tango com ela novamente. Sua natureza se recusava a ceder a qualquer pessoa. Morreria lutando.

Pois essa era sua natureza: ela era invencível – e aquilo não era o seu ego falando. A soma de sua experiência dizia: não importa o que fosse feito para ela, poderia lidar com isso.

Mas, bom Deus, odiava lutar com ele. Odiava aquela porcaria toda.

Quando saiu um pouco mais tarde, estava limpo e já se curava, os hematomas estavam sumindo, os arranhões desaparecendo, os ossos se refazendo como mágica.

Que sorte a dela. Parecia o maldito coelho da Duracell.

– Estou saindo para ver meu pai. – Ao se aproximar, ela mostrou as presas e ele pareceu momentaneamente lisonjeado. – Amo seu sorriso.

– Não foi um sorriso, imbecil.

– Seja lá como chame isso, eu gosto. E um dia vou lhe apresentar ao meu velho e querido pai. Tenho planos para nós.

Lash começou a se inclinar, sem dúvida para tentar beijá-la, mas quando ela sibilou no fundo de sua garganta, fez uma pausa e reconsiderou.

– Eu voltarei – sussurrou –, meu amor.

Lash sabia que ela odiava essa coisa de ser chamada de “amor”, então teve todo o cuidado de engolir a própria reação. E também não o ameaçou quando se virou e saiu.

Quanto mais ela se recusava a jogar nessa situação, mais descuidado ele se tornava e mais clara sua cabeça ficava.

Ouvindo seus movimentos no quarto ao lado, ela o imaginou se vestindo. Mantinha suas roupas naquele quarto, tendo as tirado dali depois que ficou claro como as coisas iam rolar entre eles: Lash odiava bagunça e era meticuloso com suas coisas.

Quando as coisas se acalmaram e o ouviu descer as escadas, respirou fundo e se levantou do chão. O banheiro ainda estava úmido e revestido de vapor, e embora odiasse usar o mesmo sabonete, gostava menos ainda do que estava em sua pele.

No momento em que parou sob o jato de água quente, o mármore sob seus pés tornou-se vermelho e preto quando os dois tipos de sangue foram lavados de seu corpo e desapareceram pelo ralo. Foi rápida ao ensaboar e enxaguar, pois Lash tinha saído há apenas alguns momentos e era imprevisível. Às vezes, voltava. Outras vezes, não aparecia de novo por um dia inteiro.

A fragrância da porcaria francesa luxuosa que Lash insistiu em colocar em seu banheiro quase a fez vomitar, mesmo achando que a maioria das mulheres teria apreciado a mistura de lavanda e jasmim. Cara, desejava ter uma dose do bom e velho desodorante de Rehv. Embora, sem dúvida, fosse arder nos cortes, mas nem se importaria com a agonia e a ideia de esfregar-se até ficar em carne viva era atraente.

Cada área do braço ou da perna ficava marcada pelas dores conforme se inclinava para o lado ou para frente e, sem nenhuma razão, pensou nos cilícios que sempre usou para controlar sua natureza sympatho. Com todas as lutas naquele quarto, tinha tido bastante dor para atenuar suas inclinações do mau – não que isso realmente importasse: não estava nem perto do “normal” e essa parte obscura dela ajudou a lidar com a situação.

Ainda assim, após duas décadas usando os filamentos pontiagudos, era estranho não tê-los com ela. Deixou o par de correntes com farpas para trás, na mansão da Irmandade... sobre a escrivaninha do quarto que tinha ficado no dia anterior à viagem até a colônia. Tinha a intenção de retornar no final da noite, tomar banho e colocá-los novamente... mas agora estavam, sem dúvida, juntando poeira enquanto aguardavam seu retorno.

Estava perdendo a fé de que haveria um reencontro feliz com aquelas porcarias.

Engraçado como a vida pode ser interrompida: você deixa uma casa esperando voltar, mas então o caminho em que está o leva para a esquerda ao invés de virar outra vez à direita.

Por quanto tempo os Irmãos deixariam seus itens pessoais ali? Quanto tempo antes que seus poucos pertences, seja lá os que estivessem na mansão da Irmandade, em sua cabana de caça ou na casa no porão, seriam reduzidos à nada além da desordem? Duas semanas provavelmente seria o limite, embora ninguém, com exceção de John, sabia sobre suas coisas, então aquele material poderia durar muito mais tempo.

Depois de algumas semanas, suas coisas seriam, sem dúvida alguma, jogadas num armário. Em seguida, numa pequena caixa no sótão.

Ou talvez simplesmente fossem lançadas ao lixo.

Mas isso é o que acontece quando as pessoas morrem. O que tinha sido uma posse se tornava lixo – a não ser que alguém quisesse ficar com aquelas coisas.

E não havia uma grande demanda por cilícios.

Desligando a água, saiu, enrolou-se na toalha e voltou para o quarto. Assim que se sentou perto da janela, a porta se abriu e um pequeno redutor que administrava a cozinha entrou com uma bandeja cheia de comida.

Sempre parecia confuso ao colocar o que tinha preparado sobre a mesa e olhar ao redor... como se depois de todo aquele tempo, ainda não fizesse ideia de por que diabos estava deixando refeições quentes num quarto vazio. Também inspecionava as paredes, observando as marcas recentes e as manchas de sangue negro. Considerando o quanto ele parecia asseado, sem dúvida tinha vontade de usar um kit de ferramentas e limpeza: quando chegou ali pela primeira vez, o papel de seda estava em condições perfeitas. Agora, a coisa parecia que tinha sido colocada num espremedor.

Ao se aproximar da cama endireitou o edredom bagunçado e as almofadas espalhadas, deixou a porta aberta e Xhex olhou para o corredor e as escadas.

Não havia razão para correr até lá. E lutar também não funcionava. E nem apelar para a maneira sympatho, porque tinha sido bloqueada tanto mental quanto fisicamente.

Tudo que podia fazer era vê-lo e desejar que pudesse fugir de alguma forma. Deus, essa impotência para matar deveria ser a mesma para os leões num jardim zoológico, quando seus tratadores entram na jaula com as vassouras e com a comida: outra pessoa poderia vir e mudar seu ambiente, mas continuava preso.

Meio que faz você querer morder alguma coisa.

Depois que saiu, ela foi até a comida. Ficar nervosa com o bife não iria ajudar e precisava das calorias para revidar, então comeu tudo o que havia. Em seu paladar, aquela porcaria tinha gosto de cartolina, e perguntou-se se algum dia voltaria a comer algo que gostasse somente por prazer e não necessidade.

A coisa de “comida como combustível” era lógica, mas com certeza não dava nenhuma perspectiva do que esperar durante as refeições.

Quando terminou, voltou para a janela, acomodou-se numa cadeira e trouxe os joelhos contra os seios. Olhando para a rua, não estava em repouso, mas apenas imóvel.

Mesmo depois de todas aquelas semanas, estava procurando por uma fuga... e seria assim até que desse seu último suspiro.

Dessa maneira, assim como seu desejo de lutar contra Lash, seu impulso de fugir não era apenas em função da circunstância, mas sobre quem era como uma fêmea, e aquela percepção a fez pensar em John.

Estava tão determinada a ficar longe dele.

Pensou em quando estavam juntos, não pela última vez, quando ele tinha lhe devolvido toda a rejeição, mas da outra vez em seu porão. Depois do sexo, ele fez um movimento para beijá-la... Ficou claro que John queria mais do que apenas uma transa rápida e tensa. A resposta dela? Afastou-se e entrou no banheiro, onde se lavou como se ele a tivesse sujado. Em seguida, bateu a porta.

Então, não podia culpá-lo pela forma como tinha sido seu último adeus.

Olhou ao redor de sua prisão verde-escura. Provavelmente iria morrer ali. Provavelmente em breve, uma vez que não bebia sangue há algum tempo e estava sob uma grande quantidade de estresse físico e emocional.

A realidade de sua própria morte a fez pensar nos muitos rostos que viu enquanto a vida os deixava e as almas subiam livres. Como uma assassina, a morte tinha sido o seu trabalho. Como sympatho, tinha sido uma espécie de chamado.

O processo sempre a fascinou. Cada uma das pessoas que matou tinha lutado contra a maré, mesmo sabendo que se conseguissem sair da espiral que os tinha colocado, ela atiraria novamente. Entretanto, parecia não ter importância. O horror e a dor agiam como uma fonte de energia e alimento para a luta, e sabia como era aquela sensação. Era como um esforço para respirar, mesmo não conseguindo mais puxar o ar em sua garganta. Sabia como era o suor frio em cima de sua pele superaquecida. Como os músculos ficavam mais fracos, mas você ainda emitia o comando: mexam-se, mexam-se, mas que droga, mexam-se.

Aqueles que as sequestraram antes a levaram a beira da morte várias vezes.

Embora os vampiros acreditassem na Virgem Escriba, os sympathos não tinham a concepção de uma vida após a morte. Para eles, a morte era uma saída, não para outra estrada, mas para uma parede de tijolos contra a qual se colide. Depois da qual não havia mais nada.

Pessoalmente, ela não acreditava naquela besteira de divindade sagrada, e seja lá o que isso fosse, criação ou intelecto, o resultado era o mesmo. A morte era o apagar das luzes, o fim da história. Pelo amor de Deus, tinha visto aquilo de perto tantas vezes: após o último suspiro vinha... nada. Suas vítimas tinham apenas parado de se movimentar, congelados em qualquer posição que tinham assumido no exato momento em que seus corações pararam de bater. E talvez algumas pessoas morressem com um sorriso no rosto, mas segundo sua experiência, aquilo era uma careta, não um sorriso.

Você fica pensando se eles entraram em algum tipo de barco cheio de luz branca e brilhante e se dirigiram para toda aquela coisa de reino do céu, se estariam radiantes como se tivessem ganhado na loteria.

Só que, talvez, a razão pela qual parecessem tão relutantes era menos sobre para onde iriam e mais sobre onde estiveram.

Os arrependimentos... aquilo fazia pensar sobre seus arrependimentos.

Tirando o fato de que desejava ter nascido sob circunstâncias diferentes, havia duas transgressões, dentre tantas que havia cometido, que pesavam mais do que todas as outras.

Desejava ter dito a Murhder, anos atrás, que era metade sympatho. Assim, quando fosse levada para a colônia, ele não teria ido resgatá-la. Saberia que era inevitável, que o outro lado de sua família viria reivindicá-la e não teria acabado como acabou.

Também desejava poder voltar e dizer a John Matthew que sentia muito. Ainda o teria afastado, pois essa era a única maneira de ele não repetir os erros de seu outro amante. Mas faria com que soubesse que o problema não era ele. Era ela.

Pelo menos John ia ficar bem com tudo isso. Tinha os Irmãos e o rei da raça para cuidar dele e, graças a tê-lo chutado, não ia fazer nenhuma estupidez.

Xhex estava sozinha nisso e iria dançar conforme a música. Teve uma vida violenta, não era surpresa alguma que encontrasse um final violento... mas tinha certeza de que iria acabar com um ou dois na saída.


CAPÍTULO 7

Droga, estavam perdendo a escuridão.

John olhou seu relógio e percebeu que o tempo gasto ali foi um desperdício. A ardência em seus olhos lhe dizia tudo que precisava sobre o quão pouco da noite ainda tinham.

Até mesmo a promessa da luz do dia era o suficiente para fazê-lo piscar rapidamente.

Além disso, de qualquer maneira, a atividade noturna no Parque Xtreme já estava acabando, os últimos drogados já estavam totalmente chapados nos bancos ou se esquivavam nos banheiros públicos para uma última dose. Diferente dos outros parques de Caldwell, este era aberto 24 horas, sete dias por semana, com lâmpadas fluorescentes no alto dos postes iluminando a extensão de concreto. Difícil dizer o que os planejadores da cidade estavam pensando quando decidiram deixar o parque aberto à noite – porque eles terminaram com um shopping 24 horas. Com todas aquelas drogas trocando de mãos, o lugar era como um bar da Rua Trade.

Contudo, nada de redutores. Apenas humanos traficando para humanos que usavam as drogas nas sombras.

Ainda assim, era promissor. Se Lash ainda não tivesse se infiltrado na área, iria fazê-lo. Mesmo com os policiais fazendo a ronda nas suas viaturas, havia muita privacidade e muita informação. O parque ficava numa grande encosta, com bueiros no chão alternando-se com rampas e saltos. Moral da história: as pessoas podiam ver os policiais de Caldwell se aproximando e se esconder atrás ou dentro de todo o tipo de abrigo.

E, cara, eles eram bem treinados. Do ponto de vista que tinham atrás do galpão, John e os rapazes viram isso acontecer inúmeras vezes. O tipo de coisa que fazia com que se perguntasse por que a polícia não enviava carros sem luzes e sirenes ou policiais infiltrados à paisana.

Ou talvez já estivessem fazendo isso. Talvez existissem outros que, assim como John, eram invisíveis na multidão. Bom, não exatamente como ele, Qhuinn e Blay. Mesmo um bem treinado e disfarçado detetive da polícia não conseguiria se fantasiar de “ar” – coisa que John e seus amigos estavam fazendo nas últimas três horas. Toda vez que alguém passava, apagavam-lhe a memória.

Era meio estranho estar num lugar, mas não ser... percebido, não ser visto.

– Vamos dar o fora daqui? – Qhuinn perguntou.

John olhou para o céu clareando e disse a si mesmo que demoraria mais ou menos treze horas para o maldito sol se por de novo.

Que droga!

– John? Vamos.

Por um segundo, quase arrancou a cabeça do seu amigo, suas mãos se ergueram e ficaram prontas para expressar todo tipo de “vá se ferrar, você não é minha babá, caramba”.

O que o deteve foi o fato de que assim como a quantidade de tempo esperando ali não garantia um encontro com Lash, gritar com Qhuinn também não ajudaria.

Balançou a cabeça uma vez e deu uma última olhada ao redor. Havia um único traficante que parecia administrar o show e o garoto estava quase acabando. Seu corpo magro estava encostado contra a rampa central, o que era algo inteligente a se fazer – significava que ele podia ver tudo no parque, desde as esquinas distantes até a estrada onde os policiais iam e vinham.

O garoto parecia ter uns dezessete ou dezoito anos, suas roupas eram folgadas no corpo, algo que fazia parte do estilo skatista e também uma indicação de que usava o que vendia. Parecia que precisava ser esfregado com uma escova, mas estava alerta e era experiente. E parecia trabalhar sozinho. O que era interessante. Para dominar um território de drogas, normalmente o traficante possui reforços para ajudá-lo – caso contrário ele pode ser passado para trás pelo produto ou pelo dinheiro. Mas aquele jovem... estava sozinho o tempo todo.

Ou conseguia um bom pedaço de carne nas sombras ou estava prestes a ser derrubado.

John ergueu-se de onde estava se apoiando e acenou para seus companheiros. Vamos.

Quando se materializou novamente, cascalhos rangeram sob suas botas de combate enquanto seu peso se tornava real e uma brisa refrescante o atingia no rosto. O pátio da mansão da Irmandade era demarcado pelo acesso da frente e os muros de seis metros de altura que envolviam toda a propriedade. A fonte de mármore branco no meio do pátio esperava pelos meses mais quentes para funcionar e a meia dúzia de carros que estavam estacionados em fila também esperava por ação.

O sussurrante som de engrenagens bem lubrificadas o fez erguer a cabeça para cima. Em uma descida coordenada, as venezianas de aço foram cobrindo as janelas, os painéis se desenrolavam e revestiam de chumbo as vidraças, como se fossem vários olhos se fechando para dormir.

Temia entrar na mansão. Mesmo havendo mais de cinquenta quartos para vaguear, o fato de ter que esperar lá dentro até o sol se pôr fazia a mansão parecer uma caixa de sapatos.

Quando Qhuinn e Blay se materializaram um de cada lado, subiu os degraus até a imensa porta dupla e abriu caminho ao longo da entrada.

Já na entrada, mostrou o rosto para a câmera de segurança. Imediatamente, a tranca se desfez e ele entrou num corredor que parecia ter saído da Rússia czarista. Colunas de mármore verde e vermelho sustentavam um teto pintado da altura de três andares. Castiçais folheados a ouro e espelhos geravam e refletiam uma luz amanteigada que enriquecia ainda mais as cores. E aquela escadaria... a coisa era como uma pista de pouso acarpetada que se estendia até os céus, com seus corrimões dourados que se dividiam no topo formando as âncoras dos balcões do segundo andar.

Seu pai não tinha poupado dinheiro e obviamente tinha uma queda pelo dramático. Tudo o que sua imaginação precisava era o som de uma orquestra de fundo para conseguir imaginar um rei descendo em suas vestes...

Wrath apareceu no topo, seu corpo enorme vestido em couro preto, seu cabelo longo caía sobre seus extraordinários ombros. Seus óculos escuros estavam no lugar, e apesar da altura em que estava, não olhou para baixo. Não havia razão para isso. Seus olhos estavam completamente cegos agora.

Mas ele não estava sem visão. Ao seu lado, George lhe dava cobertura. O cão guia era o controle do rei, os dois unidos pela coleira que passava pelo peito do golden retriever. Pareciam ter saído de algum desenho animado: um cão bondoso com uma bela aparência e um guerreiro brutal que era obviamente capaz de abrir a sua garganta por um capricho. Mas trabalhavam bem juntos e Wrath tinha se afeiçoado muito ao animal: o cachorro era tratado como o cão real que era – para o inferno até mesmo com as melhores rações que existiam, George comia o que o seu mestre comia, o que significava cortes nobres de carneiro e carne bovina. E falavam até que o cachorro dormia na cama com Wrath e Beth – apesar de ser difícil verificar isso, já que ninguém tinha acesso ao quarto da Primeira Família.

Quando Wrath começou a descer para o saguão, estava mancando, resultado de alguma coisa que fez no Outro Lado, no lar da Virgem Escriba.

Ninguém sabia quem ele via ou por que estava com um olho roxo e os lábios cortados, mas todos, até John, estavam felizes pelas sessões. Elas mantinham Wrath em equilíbrio e longe do campo de batalha.

Com o rei descendo e alguns dos Irmãos entrando pela porta que John havia acabado de usar, ele tinha que escapar. Se aqueles Sombras sentiram a tinta fresca da tatuagem, o pessoal que se reunia para a última refeição iria perceber aquilo num piscar de olhos se ficassem perto o suficiente.

Felizmente, havia um bar na biblioteca e John foi para lá e se serviu de uma dose de uísque Jack Daniel’s. A primeira de muitas.

Enquanto começava a fazer depósitos na sua conta alcoólica, apoiou-se contra o balcão de mármore e desejou demais ter uma máquina do tempo – apesar de ser difícil saber se escolheria voltar ou avançar com ela.

– Quer comer alguma coisa? – Qhuinn disse da porta.

John não olhou na direção do cara, apenas balançou a cabeça e despejou mais líquido de alívio no copo.

– Certo, vou te trazer um sanduíche.

Com um palavrão, John girou e gesticulou:

Eu disse não.

– Rosbife? Boa. Vou arranjar um pedaço de bolo de cenoura. A bandeja será servida em seu quarto. – Qhuinn se virou. – Se esperar mais cinco minutos aqui, todo mundo vai estar à mesa e o caminho estará livre escada acima.

O cara saiu, o que significava que não podia atingir a cabeça dele com o copo para expressar sua condição de “quero ficar sozinho”.

Mas aquilo seria apenas o desperdício de uma boa bebida – Qhuinn era tão teimoso que alguém poderia bater na cabeça dele com um pé de cabra que não iria impressioná-lo em nada.

Felizmente, o álcool começou a fazer efeito e o cobertor do entorpecimento tomou conta, primeiro dos ombros de John, depois deslizou por todo seu corpo. Aquela porcaria não fazia nada para tranquilizar sua mente, mas seus ossos e músculos relaxaram.

Após esperar os cinco minutos sugeridos, John pegou sua bebida e a garrafa e alcançou a escada, subindo dois degraus de cada vez. Enquanto subia, as vozes moderadas na sala de jantar o seguiam, mas era só aquilo. Ultimamente não havia muito do que rir nas refeições.

Quando chegou ao seu quarto, abriu a porta e entrou numa selva. Havia roupas jogadas em cada superfície imaginável – na cômoda, na poltrona, na cama, na TV de plasma. Como se o seu armário tivesse vomitado tudo. Garrafas vazias de Jack enchiam os dois criados-mudos e cervejas vazias se espalhavam por todo lugar, aglomeradas no chão e escondidas nos lençóis e no edredom retorcidos.

Não tinha permitido a entrada de Fritz e sua equipe de limpeza há duas semanas, e do jeito que as coisas iam, precisariam de um trator quando finalmente deixasse a porta aberta para eles.

Despindo-se, deixou sua calça de couro e sua camisa onde caíram, mas com a jaqueta foi cuidadoso. Pelo menos até tirar todas as armas dela – então, largou a coisa na beirada da cama. No banheiro, checou novamente suas duas lâminas e, em seguida, limpou rapidamente as armas com o kit que havia deixado próximo da segunda pia.

Sim, havia deixado seus padrões de higiene baixarem mais que os de garotos em uma república, mas com suas armas era diferente. A utilidade tinha que ser preservada.

Seu banho foi rápido, e ao passar o sabonete sob seu peito e abdômen, pensou no tempo em que até a água quente era o suficiente para deixar seu pênis ereto. Não mais. Não havia tido uma ereção... desde a última vez que esteve com Xhex.

Simplesmente não tinha interesse – mesmo em seus sonhos, o que era novidade. Inferno, antes de sua transição, quando supostamente não tinha qualquer consciência de sua sexualidade, seu subconsciente tinha lhe dado todo o tipo de excitação. E aqueles festivais de sexo tinham sido tão reais, tão detalhados, como se fossem memórias e não fruto de um sonho induzido por seu estágio de sono REM.

Agora? Tudo que aparecia em sua tela interna eram cenas de perseguição do filme A Bruxa de Blair, onde começava a correr em pânico, mas não sabia o que estava atrás dele... ou se estaria em segurança outra vez.

Quando saiu do banheiro, encontrou uma bandeja com um sanduíche de rosbife e um pedaço de bolo de cenoura tão grande quanto sua cabeça. Nada para beber, pois Qhuinn sabia que estava tomando o líquido refrescante do Sr. Daniel sozinho.

John comeu em pé, em frente à escrivaninha, nu como no dia em que nasceu, e quando a comida atingiu seu estômago, sugou a energia dele, drenando tudo da sua cabeça. Limpando a boca com o guardanapo de linho, colocou a bandeja no corredor e então foi para o banheiro, onde escovou os dentes, apenas por força do hábito.

Luzes apagadas no banheiro. Luzes apagadas no quarto.

Ele e Jack sentados na cama.

Mesmo exausto como estava, não tinha vontade de deitar. Havia uma relação inversa entre seu nível de energia e a distância entre sua orelha e o colchão: mesmo que estivesse de olhos fechados, no segundo em que sua cabeça encostasse no travesseiro seus pensamentos começariam a girar e acabaria completamente acordado e encarando o teto, contando horas e sofrimentos.

Terminou com o que havia no copo e encostou os cotovelos nos joelhos. Em instantes, sua cabeça estava pendendo, suas pálpebras se fechando. Quando começou a cair para um lado, deixou-se levar, mesmo sem saber para qual direção ia, se a dos travesseiros ou a do edredom amassado.

Travesseiros.

Colocando seus pés sobre a cama, puxou as cobertas até os quadris e teve um momento de feliz colapso. Talvez hoje o ciclo se rompesse. Talvez aquela gloriosa sensação de alívio iria sugá-lo para o buraco negro que estava esperando. Talvez ele...

Seus olhos se abriram e encarou a espessa escuridão.

Não. Estava exausto a ponto de ficar agitado; não apenas acordado... mas extremamente alerta. Ao esfregar o rosto, percebeu que aquele seu estado contraditório era o equivalente cognitivo ao voo das abelhas: cientistas afirmavam que não era possível, mas víamos acontecer o tempo todo.

Deitando-se de costas, cruzou os braços sob seu peito e bocejou tão forte que sua mandíbula estalou. Difícil decidir se acendia ou não a luz. A escuridão ampliava o turbilhão em seu crânio, mas a luz incomodava seus olhos ao ponto de sentir como se chorasse areia. Normalmente, alternava entre ligar e desligar a lâmpada.

Lá fora, no corredor de estátuas, ouviu Zsadist, Nalla e Bella indo para os quartos. Enquanto o casal conversava sobre o jantar, Nalla ria do jeito que os bebês fazem quando suas barrigas estão cheias e seus pais foram legais com eles.

Blay veio em seguida. Além de V., era a única pessoa que fumava na casa, então foi assim que John soube que era ele. E Qhuinn estava junto. Tinha que estar. Caso contrário, Blay não teria acendido o cigarro fora de seu próprio quarto.

Estava se vingando pela recepcionista na loja de tatuagem. Quem poderia culpá-lo?

Houve um longo silêncio do lado de fora. E então um último par de botas caminhando.

Tohr estava indo para a cama.

Era óbvio que era mais pelo silêncio do que pelo som – as passadas eram lentas e relativamente leves para um Irmão: Tohr estava trabalhando para ter seu corpo em forma de novo, mas não tinha sido liberado para o campo de batalha, o que fazia sentido. Precisava de mais 22 quilos de músculo antes que pudesse estabelecer qualquer negócio de igual para igual com o inimigo.

Ninguém mais passaria por ali. Lassiter, também conhecido como a Sombra Dourada de Tohr, não dormia, então o anjo normalmente ficava lá embaixo, na sala de bilhar, e assistia programas muito intelectuais na televisão. Como testes de paternidade, casos jurídicos populares e maratonas de reality shows.

Silêncio... Silêncio... Silêncio...

Quando o som do seu batimento cardíaco começou a irritá-lo, John amaldiçoou e esticou o corpo, acendendo a luz. Enquanto se recostava nos travesseiros, deixou os braços caírem. Não dividia a fascinação de Lassiter por besteiras na TV, mas qualquer coisa era melhor que o silêncio. Procurando em volta das garrafas vazias, encontrou o controle, e quando acionou o botão para ligar, houve uma pausa, como se a coisa tivesse se esquecido o que era aquele comando – mas, então, a imagem apareceu.

A atriz Linda Hamilton estava correndo por um corredor, seu corpo saltando com força. No final, um elevador estava se abrindo... revelando uma criança com cabelo preto curto e Arnold Schwarzenegger.

John apertou o botão de desligar e matou a imagem.

A última vez que tinha visto aquele filme tinha sido com Tohr... quando o Irmão o tirou da sua triste e lamentável existência e lhe mostrou quem realmente era... antes das tramas de suas vidas terem sido estraçalhadas.

No orfanato, no mundo humano, John sempre teve consciência de que era diferente... e o Irmão tinha lhe dado o “porquê” naquela noite. O brilho das presas explicou tudo.

Claro que teve toda aquela ansiedade de quando se descobre que você não é quem ou o que sempre achou que era. Mas Tohr tinha ficado do seu lado, apenas quieto, assistindo à TV, mesmo escalado para a luta e tendo uma shellan grávida para cuidar.

Foi a coisa mais gentil que alguém já havia feito por ele.

Voltando à realidade, John lançou o controle sobre a mesa, derrubando uma das garrafas vazias. Enquanto uma última gota de uísque derramava, estendeu a mão e pegou uma camisa para limpar a bagunça. O que, considerando a confusão do resto do quarto, era o mesmo que tentar emagrecer com Big Mac e Coca Diet.

Mas tanto faz.

Limpou a mesa, levantando as garrafas uma por uma e, em seguida, abriu a gaveta pequena para esfregar a...

Jogando a camiseta no chão, alcançou e pegou um antigo livro encadernado em couro.

O diário estava em seu poder há mais ou menos seis meses, mas não tinha lido.

Era a única coisa que tinha de seu pai.

Com nada para fazer e nenhum lugar para ir, abriu a capa. As páginas eram feitas de papel vegetal e cheiravam a coisa velha, mas a tinta ainda estava totalmente legível.

John pensou naquelas notas que escreveu para Trez e iAm no restaurante e se perguntou se tinha uma caligrafia parecida com a de seu pai. Como o começo do diário estava escrito no Antigo Idioma, não tinha como saber.

Focando seus olhos cansados, começou apenas examinando como os caracteres eram formados, como os golpes de tinta se cruzavam para formar os símbolos, como não havia erros ou rabiscos, como até mesmo sem as páginas terem linhas, seu pai fazia tudo de maneira organizada. Imaginou como Darius talvez tenha se debruçado sobre as páginas e escrito à luz de velas, mergulhando uma caneta de pena...

Um tremor estranho passou por John, do tipo que o fazia pensar se iria ficar doente... mas a náusea passou quando uma imagem veio a ele.

Uma casa enorme, em nada diferente da que estava vivendo agora. Um quarto, equipado com coisas bonitas. Um registro apressado feito nestas páginas, antes de um grande baile.

A luz de uma vela, quente e suave.

John sacudiu o corpo e continuou virando as páginas. Depois de um tempo apenas medindo os caracteres, começou não apenas a observá-los, mas a lê-los...

A cor da tinta mudou do preto para marrom quando seu pai escreveu sobre a primeira noite no acampamento de guerreiros. Como estava frio. Como se sentia assustado. O quanto sentia falta de casa.

O quanto se sentia sozinho.

John simpatizou com o macho a ponto de parecer que não havia mais separação entre pai e filho: apesar dos muitos, muitos anos e um continente inteiro de distância, imaginou-se no lugar do pai.

Mas é claro. Ele estava exatamente na mesma situação: uma realidade hostil, cheia de cantos escuros... e sem pais para apoiá-lo agora que Wellsie estava morta e Tohr era um fantasma vivo.

Difícil saber quando suas pálpebras se fecharam e assim permaneceram.

Mas, em algum momento, dormiu com o pouco do que tinha do pai agarrado com reverência em suas mãos.


CAPÍTULO 8

1671, PRIMAVERA, ANTIGO PAÍS

 

Darius materializou-se num trecho denso da floresta, tomando forma ao lado da entrada de uma caverna. Ao examinar a noite, prestou atenção em qualquer som digno de nota... Havia alguns veados andando suavemente mais abaixo, próximo ao rio que corria em silêncio, a brisa assobiava através dos ramos dos pinheiros e ele podia ouvir sua própria respiração. Mas não havia seres humanos ou redutores nas proximidades.

Mais um momento... e em seguida passou por um beiral de pedra e entrou numa sala natural criada há uma eternidade. Entrava mais e mais, desprezando o cheiro espesso que havia no ar: a sujeira de mofo e a umidade fria lembraram o campo de guerra – e mesmo tendo saído daquele lugar infernal há 27 anos, as memórias de seu tempo com Bloodletter eram suficientes para fazê-lo estremecer.

Na parede oposta, passou a mão sobre a pedra molhada e irregular até encontrar um puxador de ferro, que acionava o mecanismo de travamento da porta oculta. Houve o som abafado de dobradiças, e então uma parte da caverna deslizou para a direita. Não esperou para que o painel corresse completamente, mas o atravessou assim que conseguiu passar os ombros, lateralmente. Do outro lado, bateu numa segunda alavanca e esperou até que aquela seção estivesse com certeza de volta ao seu lugar.

O longo caminho para o Santuário da Irmandade era iluminado com tochas que ardiam ferozmente e moldavam rígidas sombras que sacudiam e tremulavam no chão áspero e no teto. Já estava na metade do caminho para baixo quando as vozes de seus Irmãos chegaram aos seus ouvidos.

Claramente, havia muitos deles na reunião, dada a sinfonia de vozes graves, sons de machos que se sobrepunham e competiam por espaço.

Provavelmente era o último a chegar.

Quando atingiu o portão de ferro com barras, pegou uma pesada chave no bolso e empurrou na fechadura. Abrir o portão exigiu força, até mesmo para ele: o enorme portão só se destrancou depois que provou a si mesmo ser digno de abri-lo.

Quando desceu para o amplo espaço aberto no fundo da terra, a Irmandade estava toda lá, e com sua aparição, a reunião começou.

Quando assumiu uma posição ao lado de Ahgony, as vozes silenciaram, e Wrath, o Justo, observou atentamente a reunião diante dele. Os Irmãos respeitavam o líder da raça, mesmo não sendo um guerreiro entre eles, mas era um macho de real valor, cujos conselhos sábios e prudentes eram de grande valia na guerra contra a Sociedade Redutora.

– Meus guerreiros – disse o rei. – Dirijo-me a vocês com uma grave notícia e um pedido. Um emissário doggen veio à minha casa durante a luz do sol e pediu uma audiência pessoal. Depois de recusar-se a apresentar seus motivos perante meu próprio atendente, não suportou e chorou.

Enquanto os olhos verde-claros do monarca percorriam os rostos, Darius se perguntou onde aquilo ia chegar. Em nenhum lugar bom, pensou.

– Foi então que intercedi. – O Rei fechou os olhos por um momento. – O amo do doggen o enviou diante de mim com a pior notícia possível. A filha virgem da família está desaparecida. Havia se retirado um momento, tudo parecia bem com ela até que sua serva pessoal levou uma refeição ao meio-dia, caso necessitasse de alimento. O quarto dela estava vazio.

Ahgony, o líder estabelecido da Irmandade, falou:

– Quando foi vista pela última vez?

– Antes da última refeição. Ela foi até seus pais e informou que não tinha apetite e pediu para deitar-se um pouco. – O rei continuava olhando ao seu redor. – Seu pai é um homem justo, que me prestou favores pessoais. No entanto, mais importante do que isso é o serviço que tem oferecido a toda raça como lídher do Conselho.

Quando maldições ecoaram na caverna, o rei concordou.

– Na verdade, é a filha de Sampsone.

Darius cruzou os braços sobre o peito. Esta era uma péssima notícia. As filhas da glymera eram como joias finas para seus pais... até o momento em que eram passadas aos cuidados de outro macho de considerável importância, que a trataria da mesma forma. Estas fêmeas eram vigiadas e enclausuradas... Não desapareciam simplesmente da casa de suas famílias.

Contudo, poderiam ser raptadas.

Como todas as coisas raras, fêmeas bem-educadas tinham valor muito elevado – e, como sempre, quando se tratava da glymera, o indivíduo valia menos que a família: os resgates eram pagos não para salvar sua vida, mas sim seguindo a reputação de sua linhagem. Na verdade, não era inédito uma fêmea virgem ser raptada e mantida refém por dinheiro, algo que só alavancava o terror social.

A Sociedade Redutora não era a única fonte maligna no mundo. Os vampiros eram conhecidos por saquear seus iguais.

A voz do rei ressoou ao redor da caverna, profunda e exigente:

– Como minha guarda privada, conto com vocês para fornecerem a reparação desta situação. – Aqueles olhos reais se fixaram em Darius. – E há um dentre vós a quem pedirei para ir em frente e corrigir esta injustiça.

Darius fez uma reverência perante o pedido feito. Como sempre, estava totalmente preparado para cumprir qualquer obrigação para o seu rei.

– Obrigado, meu guerreiro. Sua diplomacia será valorizada pela família da vítima, assim como seus procedimentos. E, quando descobrir o malfeitor, tenho confiança em sua habilidade para assegurar um... desfecho apropriado. Disponha daqueles que estão ombro a ombro convosco e, acima de tudo, encontre-a. Nenhum pai deve suportar esse horrendo vazio.

Darius concordava completamente.

E era uma atribuição sábia feita por um rei sábio. Darius realmente era um diplomata. Mas tinha um compromisso especial para com as fêmeas depois de ter perdido sua mãe. Não que os outros Irmãos não se entregassem com semelhante dedicação – exceto Hharm, talvez, que tinha uma visão um pouco sombria do valor de uma fêmea. Mas Darius era o único que sentia mais esta responsabilidade e o rei não era nada se não calculista.

Dito isso, precisaria de ajuda e olhou para seus Irmãos para determinar quem escolheria, vasculhando as faces severas, agora familiares. Parou de olhar quando deparou-se com um rosto estranho entre eles.

Do outro lado do altar, o Irmão Hharm estava em pé ao lado de uma versão mais jovem e mais magra de si mesma. Seu filho tinha cabelos escuros e olhos azuis da mesma forma que o pai e também possuía o mesmo potencial vindo do ombro e do peito largo, que eram características de Hharm. Mas as semelhanças terminavam aí. Hharm estava recostado de maneira insolente na parede da caverna – o que não era uma surpresa. O macho preferia combate à conversa, tendo pouco tempo ou capacidade para se dedicar ao último. Contudo, o menino estava atento a ponto de perfurar alguma coisa, seus olhos inteligentes estavam fixos no rei, em reverência.

Suas mãos estavam atrás das costas.

Apesar de sua aparência calma, estava torcendo aquelas mãos colocadas onde ninguém podia ver, o movimento nos músculos de seus antebraços demonstrava agitação.

Darius conseguia entender como o menino se sentia. Após aquela reunião, todos sairiam para o campo de batalha e o filho de Hharm seria testado pela primeira vez contra o inimigo.

Não estava armado de maneira apropriada.

Recém saído do acampamento de guerra, suas armas não eram melhores que aquelas que Darius tinha tido... apenas fruto de mais rejeição de Bloodletter. O que era deplorável. Darius não teve pai para provê-lo, mas Hharm deveria ter cuidado de seu filho, dando-lhe equilíbrio e instrumentos tão bons quanto os seus.

O rei ergueu seus braços e olhou para o teto.

– Que a Virgem Escriba olhe sobre aqueles aqui reunidos com toda a graça e benção a estes soldados de valor que saem ao campo de batalha.

O grito de guerra explodiu dos Irmãos e Darius juntou-se a eles com todo seu fôlego: o rugido ecoava, repercutia e continuava enquanto um cântico era iniciado. Quando o som de trovão cresceu mais e mais, o rei estendeu sua mão para o lado. Das sombras, o jovem herdeiro ao trono deu um passo à frente, sua expressão era muito mais velha do que seus sete anos. Wrath, filho de Wrath, era como Tohrment, a imagem de seu pai, mas a comparação entre os dois terminava aí. O príncipe regente era sagrado, não só para seus pais, mas para a raça.

Aquele pequeno macho era o futuro, o líder que estava por vir... prova de que, apesar da afronta cometida pela Sociedade Redutora, os vampiros sobreviveriam.

E era destemido. Considerando que muitos pequenos teriam se escondido atrás de seu pai diante de um único Irmão, o jovem Wrath estava sozinho, olhando para os homens diante dele, como se soubesse que, independente da sua tenra idade, comandaria os fortes corpos e os braços de combate daqueles a sua frente.

– Vão, meus guerreiros – disse o rei. – Ide e empunhem suas adagas com intenção letal.

Coisas sanguinárias de serem ditas diante de ouvidos na mais tenra idade, mas no meio da guerra, não havia vantagem em proteger a próxima geração da realeza. Wrath, filho de Wrath, nunca sairia ao campo de batalha – era muito importante para a raça – mas seria treinado para que pudesse apreciar o que os machos sob sua autoridade estavam enfrentando.

Quando o rei olhou fixamente para seu primogênito, os olhos do ancião estavam repletos de orgulho, alegria, esperança e amor.

Como era diferente com Hharm e seu filho. O jovem estava ao lado de seu pai biológico, mas considerando toda a atenção que lhe era desprendida, poderia estar ao lado de um estranho.

Ahgony inclinou-se para Darius.

– Alguém precisa dar atenção àquele menino.

Darius assentiu.

– Sim.

– Fui buscá-lo no acampamento de guerra esta noite.

Darius olhou para o Irmão.

– Verdade? Onde o pai dele estava?

– Dentre as pernas de uma donzela.

Darius soltou um palavrão em voz baixa. Na verdade, o Irmão era de uma constituição brutal apesar de sua criação e cortesia. Ele tinha vários filhos, o que poderia explicar, embora com certeza não desculpasse sua negligência. Naturalmente, seus outros filhos não seriam elegíveis para a Irmandade, pois suas mães não eram de sangue escolhido.

No entanto, Hharm parecia ser indiferente.

Quando o pobre menino permaneceu tão separado, Darius lembrou bem de sua primeira noite no campo de batalha: como tinha sido deixado sozinho... como temeu enfrentar o inimigo apenas com sua inteligência e com o pouco de treinamento que teve para fortalecer sua coragem. Não que os Irmãos não se importassem em como ele se sairia. Mas tinham que cuidar de si mesmos, então ele teve que provar que poderia se sair bem sozinho.

Estava claro que aquele jovem macho estava na mesma situação – o fato é que tinha um pai que deveria ter facilitado seu caminho.

– Fique bem, Darius – disse Ahgony enquanto a realeza passava entre os Irmãos, apertando as mãos deles e se preparando para sair. – Vou escoltar o rei e o príncipe.

– Fique bem, meu irmão. – Os dois se abraçaram, e em seguida Ahgony se juntou aos dois Wraths e saiu da caverna com eles.

Quando Tohrture tomou a frente e começou a distribuir os territórios para a noite, as duplas começaram a ser formadas e Darius olhou por entre as cabeças para o filho de Hharm. O menino estava pressionado contra a parede e tenso, ainda com as mãos atrás das costas. Hharm parecia estar interessado em nada além da negociação com os outros.

Tohrture colocou dois dedos na boca e assobiou.

– Meus irmãos! Atenção! – A caverna ficou uma pedra de silêncio. – Obrigado. Os territórios ficaram claros?

Houve uma afirmação coletiva e os Irmãos começaram a sair – e Hharm nem sequer olhou para trás, em direção ao filho. Apenas andou até a saída.

Na sequência, o garoto trouxe as mãos para frente e esfregou-as uma na outra. Dando um passo à frente, disse o nome do pai uma vez... duas vezes.

O Irmão recuou, sua expressão era como a de alguém confrontado por uma obrigação desagradável.

– Bem, vamos lá então...

– Se possível – disse Darius, colocando-se entre eles –, seria um prazer tê-lo me ajudando em meu dever. Se isso não for ofendê-lo.

A verdade era que não se importava nem um pouco se aquilo o ofendia. O menino precisava de mais do que seu pai lhe daria e Darius não era o tipo de ficar de lado enquanto uma injustiça se desenrolava.

– Acha que eu não posso cuidar do meu sangue? – Hharm bradou.

Darius virou-se para o macho e ficou frente a frente com ele. Preferia a negociação pacífica quando se tratava de um conflito, mas com Hharm, não havia argumentação. E Darius era bem preparado para enfrentá-lo força com força.

À medida que a Irmandade congelou ao redor deles, Darius baixou a voz, mesmo sabendo que todos ali reunidos poderiam ouvir cada palavra.

– Entregue-me o menino e o entregarei inteiro até o alvorecer.

Hharm rosnou, o som era como de um lobo em meio ao sangue fresco. Então, disse:

– Sou eu quem deve fazer isso, Irmão.

Darius se inclinou mais perto.

– Se levá-lo à luta e ele morrer, carregará essa vergonha sobre sua linhagem para sempre. – Contudo, a verdade é que era difícil saber se a consciência do macho seria afetada com isso. – Entregue o garoto a mim e vou poupá-lo desse fardo.

– Nunca gostei de você, Darius.

– Ainda assim, no acampamento, esteve mais do que disposto a se servir daqueles a quem eu superava. – Darius mostrou suas presas. – Considerando o quanto gostava daquilo, pensei que guardaria uma consideração maior por mim. E saiba, se não permitir que eu supervisione o garoto, vou jogá-lo no chão e lutar até que ceda.

Hharm quebrou o contato visual, levantando o olhar acima do ombro de Darius enquanto o passado sugava o Irmão. Darius soube o momento em que foi arrastado para dentro de suas lembranças. Era noite quando Darius o venceu no acampamento – e como Darius havia se recusado a compensar a perda, Bloodletter o fez. Brutal era pouco para descrever aquela sessão, e apesar de Darius relutar em trazer isso à tona, a segurança do garoto era um fim digno que justificaria os meios indignos.

Hharm sabia quem ganharia numa disputa à força.

– Leve-o – o macho disse categoricamente. – E faça o que quiser com ele. Declaro, agora, que o renuncio como meu filho.

O Irmão girou e saiu caminhando a passos largos...

E levou todo o ar da caverna com ele.

Os guerreiros assistiram a sua saída, o silêncio deles era mais alto que o grito de guerra tinha sido. Negar a descendência era a antítese da raça, era como o efeito da luz do dia numa refeição familiar: era a ruína.

Darius foi até o jovem macho. Aquele rosto... querida Virgem Escriba. A face cinza congelada do menino não estava triste. Não estava inconsolável. Não estava nem sequer envergonhada.

Suas feições eram uma verdadeira máscara mortuária.

Estendendo a mão, Darius disse:

– Saudações, filho. Sou Darius e assumirei a função de ser seu ghia em combate.

Os olhos do jovem piscaram.

– Filho? Iremos em breve aos rochedos.

De repente, Darius foi submetido a um acentuado respeito: ficou claro que o garoto procurava por sinais de obrigação e piedade. Contudo, não encontraria nenhum deles. Darius conhecia com precisão aquela situação, a terra seca e dura sobre a qual as botas do garoto estavam pisando, e portanto tinha plena consciência de que qualquer tipo de gentileza que oferecesse só resultaria em maior desgraça.

– Por quê? – veio uma pergunta rouca.

– Iremos sem demora ao rochedo para encontrar aquela fêmea – Darius disse com calma. – Esse é o porquê.

Os olhos do garoto perfuraram os de Darius. Em seguida, o jovem colocou a mão sobre o peito. Com uma reverência, disse:

– Vou me esforçar para ser útil, ao invés de um peso.

É muito difícil ser indesejado. Mais difícil ainda manter a cabeça erguida depois de tal afronta.

– Qual é o seu nome? – Darius perguntou.

– Tohrment. Eu sou Tohrment, filho de... – Limpou a garganta. – Eu sou Tohrment.

Darius aproximou-se do jovem macho e colocou sua mão sobre um ombro que ainda tinha que atingir seu pleno potencial.

– Venha comigo.

O garoto seguiu com propósito... saiu da reunião da Irmandade... saiu do santuário... saiu da caverna... em direção à noite.

A mudança no peito de Darius aconteceu em algum momento entre aquele passo inicial e o momento em que se desmaterializam juntos.

Na verdade, sentiu, pela primeira vez, como se tivesse sua própria família... pois embora o garoto não fosse seu sangue, tinha assumido a responsabilidade de cuidar dele.

Assim, seria capaz de se jogar em frente a uma lâmina destinada a matar o jovem, sacrificando-se por ele. Tal era o código da Irmandade – mas apenas para com os Irmãos. Tohrment ainda não era contado entre eles, era apenas um iniciado em virtude de sua linhagem, o que lhe dava acesso à Tumba e nada mais. Se não conseguisse provar a si mesmo, seria barrado daquele local para sempre.

De fato, segundo o código, o garoto poderia ser ferido em campo e deixado para morrer.

Mas Darius não permitiria isso.

Sempre quis ter um filho seu.


CAPÍTULO 9

TRINTA E DOIS QUILÔMETROS DA CIDADE DE CHARLESTON, CAROLINA DO SUL


– Caramba. Eles têm muitos tipos de árvores aqui.

Bem, sim, isso resumia tudo. Quando a van do programa de TV Investigadores Paranormais diminuiu a velocidade na estrada rural SC 124, Gregg Winn freou e inclinou-se sobre o volante.

Era... perfeito.

A plantação na entrada da casa era marcada dos dois lados por carvalhos do tamanho de um ônibus e havia musgo pendurado nos ramos maciços, balançando-se na brisa suave. No final do enquadramento, quase a meio quilômetro de distância, a mansão de colunas situava-se bela como uma senhora numa cadeira, o sol do meio-dia pintava sua face com uma luz amarelo-limão.

Atrás, a “apresentadora” do IP, Holly Fleet, recostou-se.

– Tem certeza disso?

– É como uma estalagem, certo? – Gregg acelerou. – Aberta ao público.

– Você ligou quatro vezes.

– Não disseram não.

– Também não retornaram suas ligações.

– Tanto faz. – Ele precisava fazer isso acontecer. Os especiais do programa Investigadores Paranormais em horário nobre estavam prestes a passar para o próximo nível na venda de publicidade para a emissora. Não estavam no nível do American Idol, é verdade, mas estavam mandando ver, melhor do que qualquer episódio de Magic Exposed, e se essa tendência continuasse, o dinheiro que entraria seria mais grosso que sangue.

O longo caminho até a casa era como uma trilha que os levava não apenas mais fundo na propriedade, mas também de volta no tempo. Pelo amor de Deus, ao olhar ao redor, para o chão coberto de grama, esperou ver soldados da Guerra Civil passeando sob as árvores.

O caminho de cascalho levava os visitantes diretamente à entrada principal da frente e Gregg estacionou na lateral, caso outros carros precisassem passar.

– Vocês dois fiquem aqui. Vou entrar.

Quando ele saiu de trás do volante, cobriu sua camiseta com um casaco preto e puxou o punho para cima de seu Rolex de ouro. A van com o logotipo dos Investigadores Paranormais era chamativa o suficiente, e sem dúvida a casa era de propriedade de algum morador local. Acontece que o estilo Hollywoodiano não era necessariamente muito valorizado fora de Los Angeles – e aquele lugar gracioso estava o mais longe possível de cirurgias plásticas e bronzeamento artificial quanto possível.

Seus sapatos Prada se deslocaram pelas pedras do caminho enquanto se dirigia até a entrada. A casa branca era uma construção simples de três andares com varandas no primeiro e segundo piso e um telhado onde se via janelas de dormitórios se sobressaindo, mas a elegância das proporções e das dimensões da maldita coisa era o que a colocava de maneira tão determinante no território das mansões. E para finalizar a descrição da grande dama, todas as janelas estavam enquadradas em seu interior por cortinas com ricos adornos, e através dos vidros de chumbo podia-se ver os lustres pendurados nos altos tetos.

Mas que estalagem.

A porta da frente era grande o suficiente para pertencer a uma catedral e o batedor era uma cabeça de leão de bronze, que quase parecia estar em tamanho natural. Levantando o peso, deixou-o cair de volta no lugar.

Enquanto esperava, checou para ter certeza de que Holly e Stan estavam onde os havia deixado. Ajuda era a última coisa da qual precisava ao dar uma de vendedor de porta em porta – especialmente quando um “Oi, meu nome é” não fosse bem recebido. E a verdade era que se não estivessem cumprindo uma tarefa em Charleston, talvez ele não teria tentado o contato pessoal, mas para um percurso de meia-hora que nem saía muito de seu caminho, valia o esforço. O início das gravações do especial em Atlanta estava previsto para alguns dias, então havia tempo para isso. Indo direto ao ponto, mataria para...

A porta se abriu com força e teve que sorrir para o que estava do outro lado. Cara... aquilo estava ficando cada vez melhor. O homem tinha um jeito de mordomo inglês carimbado por todo o corpo, de seus sapatos brilhantes até seu colete preto e o blazer.

– Boa tarde, senhor. – E tinha sotaque. Não era bem britânico, nem francês, mas era europeu de alto nível. – Como posso ajudá-lo?

– Gregg Winn. – Estendeu a mão. – Acho que liguei algumas vezes. Não tenho certeza se recebeu as mensagens.

O aperto do mordomo foi rápido.

– Certamente.

Gregg esperou que o homem continuasse. Quando nada aconteceu, clareou a garganta.

– Ah... Esperava que permitisse fazer uma investigação em sua adorável casa e terreno. A lenda de Eliahu Rathboone é bastante notável, quero dizer... os relatos de seus hóspedes são incríveis. Minha equipe e eu...

– Permita-me interromper. Não haverá filmagens ou gravações em nossas instalações...

– Nós pagaríamos.

– ... de modo algum. – O mordomo sorriu com firmeza. – Tenho certeza que consegue entender que preferimos nossa privacidade.

– Com toda franqueza, não entendo. O que há de mal em nos permitir dar uma olhada por aí? – Gregg baixou a voz e inclinou-se. – A menos que, claro... é você quem faz as pegadas no meio da noite, certo? Ou suspende uma vela naquele quarto do andar de cima com uma linha de pesca?

O rosto do mordomo não se alterou, mas mesmo assim cheirava a desdém.

– Acredito que estava de saída.

Não era um comentário. Nem uma sugestão. Era uma ordem. Mas não tinha importância, Gregg já havia lidado com tipos bem mais durões do que uma babá num terno de pinguim.

– Sabe? Deve ter um bom tráfego de pessoas por aqui, como resultado dessas histórias de casa mal-assombrada. – Gregg baixou a voz ainda mais. – Nossa audiência na TV é enorme. Se você acha que tem visitantes agora, imagine o que aconteceria com seus negócios se isso passasse em rede nacional. E mesmo que tenha preparado toda aquela coisa de Rathboone por si só, podemos trabalhar com você ao invés de contra você. Se é que entende o que quero dizer.

O mordomo deu um passo para trás e começou a fechar a porta.

– Bom dia, senhor...

Gregg colocou seu corpo no caminho. Mesmo que não quisesse tanto confirmar as histórias, aquela coisa de “não” simplesmente não fazia o estilo dele. E como de costume, ser recusado aumentava seu interesse como nada mais conseguia.

– Então gostaríamos de passar a noite. Estamos fazendo uns trabalhos na vizinhança sobre a Guerra Civil e precisamos de um lugar para dormir.

– Temo que estejamos cheios.

Naquele momento, como um presente de Deus, um casal desceu as graciosas escadas com suas malas em mãos. Gregg sorriu ao olhar por cima do ombro do mordomo.

– Não estão mais tão cheios. – Vasculhando por seu leque de argumentos, Gregg fez sua melhor expressão “não vou dar trabalho”. – Ok, entendi. Não gravaremos nada, áudio ou vídeo. Juro pela vida de minha avó. – Erguendo a mão para um cumprimento, disse em voz alta: – Ei, gostaram da estadia?

– Oh meu Deus, foi incrível! – disse a namorada, esposa, transa casual, seja lá o que fosse. – Eliahu é real!

O namorado, marido, querendo marcar pontos concordou:

– Não acreditei nela. Quero dizer, nos fantasmas... qual é! Mas sim... ouvi a coisa.

– Vimos a luz também. Ouviu falar da luz?

Gregg colocou a mão no peito, em choque.

– Não, qual luz? Contem tudo...

Ao se lançarem numa detalhada narração de todas as “coisas incrivelmente impressionantes” que eram tão “incríveis e maravilhosas de se presenciar” durante seu “incrível...”, os olhos do mordomo se estreitaram em fendas. Ficou claro que suas boas maneiras lutavam contra sua vontade de matar enquanto se afastava para deixar Gregg ir ao encontro do casal, mas a temperatura da conversa naquela sala caiu ao ponto de parecer ser o polo sul.

– Espere, você é... – O hóspede franziu a testa e se inclinou para o lado. – Caramba, você participa daquele programa...

– Investigadores Paranormais – Gregg completou. – Sou o produtor.

– A apresentadora... – O cara olhou para sua acompanhante. – Está aqui também?

– Sim. Quer conhecer Holly?

O cara colocou a mala que carregava no chão para ajeitar um pouco mais sua camisa polo.

– Sim, posso?

– Já estávamos de saída – sua outra metade interpôs. – Não estávamos, Dan?

– Mas se eu... nós... tivéssemos a chance de...

– Se pegarmos a estrada agora, estaremos em casa ao anoitecer. – Virou-se para o mordomo. – Obrigada por tudo, Sr. Griffin. Tivemos uma estadia adorável.

O mordomo curvou-se com graça.

– Por favor, voltem outra vez.

– Oh, voltaremos... este será um local perfeito para nosso casamento em setembro. É incrível.

– Incrível – o noivo completou, como se quisesse ficar bem com ela outra vez.

Enquanto o casal saía pela porta da frente, Gregg não insistiu no encontro com Holly – mesmo com o cara parando e olhando por cima do ombro como se esperasse que Gregg fosse segui-los.

– Então, vou pegar nossas malas – Gregg disse ao mordomo. – E pode arrumar nosso quarto, Sr. Griffin.

O ar ao redor do homem pareceu ficar deformado.

– Temos dois quartos.

– Tudo bem. E como posso dizer que o senhor é um homem de princípios, Stan e eu ficaremos no mesmo quarto. Pelo bem do decoro.

O mordomo levantou as sobrancelhas.

– Certamente. Se você e seus amigos puderem aguardar na sala à sua direita, mandarei as camareiras arrumarem suas acomodações.

– Fantástico. – Gregg deu um tapinha no ombro do mordomo. – O senhor nem notará que estamos aqui.

O mordomo se afastou de maneira incisiva.

– Uma palavra de aconselhamento, se me permite.

– Manda.

– Não vá até o terceiro andar.

Bem, aquilo na verdade parecia um convite... e uma fala saída diretamente do filme Pânico.

– Absolutamente não. Juro.

O mordomo saiu pelo corredor e Gregg se inclinou para fora, gesticulando para sua equipe. Enquanto Holly saía, seus seios enormes balançaram sob a camiseta preta que estava usando e a calça jeans era tão baixa na cintura que seu ventre liso e bronzeado brilhou. Ele a contratou não por seu cérebro, mas por suas medidas de Barbie, e mesmo assim ela provou ser mais do que esperava. Como boa parte dos idiotas, ela não era totalmente estúpida, longe disso, e tinha uma habilidade misteriosa para se posicionar onde seria mais vantajoso para ela.

Stan deslizou o painel lateral da van e saiu, piscando com força e tirando seu longo e bagunçado cabelo de seu campo de visão. Eternamente chapado, era a pessoa perfeita para esse tipo de trabalho: tecnicamente habilitado, mas suave ao ponto de receber bem ordens.

A última coisa que Gregg queria era um artista comandando as lentes das câmeras.

– Peguem a bagagem – Gregg gritou a eles. O que era o código para “tragam não apenas as malas, mas também o equipamento de menor escala”.

Aquele não era o primeiro local que precisou usar isso.

Quando voltou para dentro, o casal que havia saído passou com seu Sebring conversível. O cara observava Holly se curvar na van ao invés de prestar atenção no caminho que estava indo.

Ela tendia a causar esse efeito nos homens. Outra razão para mantê-la por perto.

Bom, isso e o fato de que não via problemas em sexo casual.

Gregg foi até a sala de estar e fez uma sondagem lenta pelo local. As pinturas a óleo eram da qualidade de um museu, os tapetes eram persas, as paredes eram pintadas à mão com uma cena pastoral. Havia castiçais de prata em todas as superfícies e nem mesmo um pedaço da mobília havia sido fabricada no século XXI ou XX... ou talvez nem mesmo no XIX.

O jornalista gritou. Nenhum hotel de beira de estrada, nem mesmo os de cinco estrelas, era tão bem decorado assim. Então, alguma coisa acontecia ali.

Ou isso ou a lenda de Eliahu estava realmente trazendo muitos turistas para aquele fim de mundo.

Gregg foi até um dos retratos menores. Era de um jovem rapaz em seus vinte e poucos anos, pintado em outro tempo, outro local. O sujeito estava sentado em uma cadeira dura, as pernas cruzadas à altura dos joelhos, as mãos elegantes apoiadas numa das laterais do corpo. O cabelo negro estava puxado para trás e amarrado com uma fita, revelando um rosto encantador. As roupas eram... bom, Gregg não era um historiador, então, como saber? Mas com certeza pareciam com as que George Washington e sua turma usavam.

Aquele era Eliahu Rathboone, Gregg pensou. O abolicionista secreto que sempre deixava uma luz acesa para encorajar aqueles que precisavam escapar a vir até ele... O homem que havia morrido para proteger uma causa antes mesmo de ter sido enraizada no Norte... O herói que salvou a tantos, apenas para ser morto no auge de sua vida.

Este era o fantasma.

Gregg fez uma moldura com as mãos e explorou toda a sala através dela antes de mirar no rosto do retrato.

– É ele? – A voz de Holly veio por trás. – Será que é ele mesmo?

Gregg olhou por cima do ombro, seu corpo formigava de maneira incontestável.

– E eu pensando que as fotos na internet eram boas.

– Ele é, tipo... lindo.

E também sua história, sua casa e todas aquelas pessoas que saíram dali falando sobre assombrações.

Dane-se a viagem para aquele asilo em Atlanta. Aquele seria seu próximo episódio especial ao vivo.

– Quero que trabalhe com o mordomo – Gregg disse suavemente. – Sabe o que eu quero dizer. Quero ter acesso a tudo.

– Não vou dormir com ele. Meu limite não ultrapassa a necrofilia e aquele lá é mais velho que Deus.

– Pedi pra ficar de quatro pra ele? Existem outros meios. E tem esta noite e a de amanhã. Quero fazer nosso especial aqui.

– Quer dizer...

– Transmitiremos ao vivo deste local em dez dias.

Caminhou para as janelas que davam para o beco de árvores e a cada passo que dava o assoalho rangia.

Prêmio Emmy, aqui vamos nós, Gregg pensou.

Isso é muito perfeito.


CAPÍTULO 10

John Matthew acordou com seu membro na mão. Ou melhor, quase acordou. No entanto, o que tinha em sua mão estava totalmente desperto.

Em sua mente nebulosa, imagens dele e de Xhex brilhavam de dentro para fora... Ele os viu em sua cama naquele porão dela e havia uma série de cenas de nudez acontecendo, dela esparramada sobre seus quadris, dele buscando tocar seus seios. Dela sentindo-se bem e firme sobre ele, seu centro quente e úmido contra sua ereção, seu corpo poderoso se arqueando e gozando enquanto ela se esfregava sobre o que doía de desejo por penetrá-la.

Precisava chegar a ela. Precisava deixar algo de si mesmo para trás.

Precisava marcá-la.

O instinto era avassalador ao ponto da compulsão... e, ainda assim, sua consciência formigou enquanto se sentava e tomava um de seus mamilos em sua boca. Enquanto ele puxava sua carne entre os lábios, chupando-a, lambendo-a, beliscando-a sempre muito gentil, em algum nível soube que aquilo não estava acontecendo – e que mesmo sendo uma fantasia, era errado. Não era justo com a memória dela, mas as visões tinham muito impulso e a palma de sua mão estava muito apertada enquanto trabalhava em si mesmo... O momento era elétrico inegável demais para afastar-se dele.

Não havia como voltar atrás.

John imaginou que a deitava sobre as costas e avultava sobre ela, olhando para baixo, dentro de seus letais olhos cinzentos. Suas coxas estavam divididas para os dois lados dos quadris, seu sexo exuberante pronto para o que ele queria lhe dar, seu perfume penetrando em seu nariz até que tudo que conhecia era ela. Deslizando as mãos sobre seus seios até abaixo de sua barriga, ficou maravilhado com a semelhança entre seus corpos. Ela era menor em comparação a ele, mas seus músculos eram os mesmos, duros e tonificados, prontos para o uso, firmes em torno dos ossos nos quais estavam presos. Amava o quanto ela era inflexível sob sua pele lisa e macia, amava o quão forte, o quão firme...

Desejava-a como um louco.

Só que, de repente, não conseguia ir além.

Era como se a fantasia tivesse emperrado, a fita tivesse sido rompida, o DVD riscado, o arquivo digital corrompido. E tudo que restava era a atração e aquele deslocamento no limiar do êxtase que o levaria à loucura...

Xhex alcançou seu rosto e o segurou com as mãos em formato de concha, e com o toque gentil, tomou conta dele de repente, de sua cabeça, de seu corpo e de sua alma: pertencia a ela de corpo e alma, dos olhos às coxas. Tudo era dela.

– Venha – disse ela, inclinando a cabeça para o lado.

Lágrimas turvaram sua visão. Finalmente, beijaram-se. Finalmente, o que havia negado a ele acontecia.

Quando se inclinou para baixo... ela guiou sua boca de volta para o mamilo.

Sentiu uma pontada momentânea de rejeição, mas então aquela estranha euforia o atingiu. O reflexo era tão fiel que imaginou que talvez aquilo não fosse um sonho. Talvez aquilo estivesse realmente acontecendo. Afastando a tristeza, concentrou-se naquilo que estava disposta a lhe dar.

– Marque-me! – disse Xhex com uma voz profunda.

Expondo suas presas, percorreu uma ponta branca e afiada ao redor do centro de seu mamilo, circulando, acariciando. Queria perguntar se ela tinha certeza, mas respondeu àquela questão do jeito dela. Em um movimento rápido, levantou sobre o colchão e apertou tanto a cabeça dele contra sua pele que a feriu, e um fio de sangue foi desenhado.

John recuou, temendo tê-la machucado... mas não. E ao arquear-se numa ondulação erótica, a fonte brilhante de sua vida o fez ter um orgasmo.

– Tome de mim! – ordenou, enquanto um jorro quente saltava de seu pênis derramando-se sobre suas coxas. – Faça isso, John. Agora.

Não teve que pedir uma segunda vez. Foi cativado pela gota de vermelho intenso que florescia e que escorria com uma graciosidade lenta em direção à lateral de seu seio pálido. Percorrendo o caminho com a língua, seguiu a trilha e a tragou com um movimento que acabou em seu mamilo...

Seu corpo inteiro tremia com o sabor dela, então outro jorro saiu dele e marcou sua pele enquanto sentia, em meio a espasmos, prestes a gozar outra vez. O sangue de Xhex era vigoroso e inebriante em sua boca, um completo vício adquirido no momento em que o provou, um destino do qual, agora que estava ali diante dele, não queria se desvencilhar nunca mais. Enquanto saboreava o que havia tomado, pensou ouvir um riso de satisfação dela, mas a essa altura estava perdido por aquilo que lhe havia dado.

Arrastou a língua ao longo de seus dois mamilos, sobre o corte e, em seguida, seus lábios formaram um selo e a sugou, sorvendo seu sabor sombrio. A comunhão com Xhex era tudo que sempre sonhou, e agora que estava se alimentando dela, a alegria tomou conta de John junto com a energia que vinha de seu sangue.

Querendo dar-lhe algo em troca, deslocou seu braço para baixo de tal modo que sua mão deslizasse sobre seu quadril e entre suas coxas. Rastreando os músculos tensos, encontrou seu núcleo... Oh, Deus, estava escorregadia, suave e muito quente, pronta e desejosa para recebê-lo. E embora não soubesse coisa alguma sobre anatomia feminina, deixou os gemidos e movimentos lhe dizerem onde seus dedos deveriam ir e o que deveriam fazer.

Não demorou muito para seus dedos ficarem tão molhados quanto o que estava acariciando, e foi então que deslizou o dedo médio profundamente. Usando o polegar, massageou o ponto mais sensível dela e buscou um ritmo para combinar com a sucção que fazia em seu seio.

Estava levando-a ao ponto mais alto, levando-a junto com ele, devolvendo tanto quanto havia tomado, quando descobriu que precisava de mais. Queria estar dentro dela quando o orgasmo viesse. Então estaria completo de uma maneira etérea, completo dentro de sua pele.

Aquilo era a necessidade e a motivação de um macho vinculado. O que precisava ter para sentir-se em paz.

Erguendo os lábios de seu seio, deslizou a mão de seu sexo e se reposicionou para que seu pênis brilhante ficasse posicionado sobre as pernas abertas. Encontrando seus olhos no momento incendiário, acariciou o cabelo curto em torno de seu rosto. Lentamente, levou a boca para baixo...

– Não! – ela disse. – Não se trata disso.

John Matthew deu um pulo, a fantasia do sonho foi desfeita, seu peito foi preso com as cordas geladas da dor.

Com desgosto, sua excitação o abandonou... e não se tratava apenas de não estar mais ereto. Seu pênis havia encolhido categoricamente, apesar do orgasmo que estava a caminho.

Não se trata disso.

Ao contrário do sonho, que foi totalmente hipotético, aquelas palavras foram as que realmente foram pronunciadas – e precisamente naquele contexto sexual.

Quando olhou para seu corpo nu, viu os orgasmos que tinha liberado. Aqueles que imaginou nela, mas estavam sobre toda sua barriga e lençóis.

Caramba, aquela cena melancólica apenas realçava sua solidão.

Olhando de relance para o relógio, viu que havia dormido mesmo soando o alarme. Ou o mais provável era que não tenha se preocupado em programá-lo. Um benefício da insônia era que você não precisava reprogramar seu celular toda vez que batesse no botão “soneca”.

No chuveiro, lavou-se rapidamente e começou por seu pênis. Odiava o que havia feito naquela zona desconhecida semiadormecida. Soava totalmente errado masturbar-se, e de agora em diante dormiria com seu jeans se fosse necessário.

Embora conhecesse sua mão, a maldita coisa provavelmente terminaria atrás da braguilha de qualquer maneira.

Dane-se, iria prender seus punhos na maldita cabeceira.

Depois de barbear-se – que assim como cuidar dos dentes era mais uma questão de hábito do que orgulho de sua aparência – apoiou as palmas das mãos sobre o mármore e inclinou-se sob a torneira principal, deixando a água escorrer sobre ele.

Redutores eram impotentes. Redutores... eram impotentes.

Abaixando a cabeça, sentiu um jato de água quente na parte de trás do seu crânio.

O sexo trouxe à tona todos os tipos de porcaria nele, e enquanto a imagem de uma escadaria suja florescia como uma mancha em seu cérebro, piscou e arrastou-se para o presente. Não que isso fosse um avanço.

Superaria tudo o que tinha acontecido milhares de vezes se essa fosse a única maneira de poupar Xhex dos maus tratos.

Oh... Deus...

Redutores eram impotentes. Sempre foram.

Movendo-se como um zumbi, saiu, enxugou-se e dirigiu-se para o quarto para se vestir. No exato momento em que estava puxando suas calças de couro, seu telefone tocou e estendeu a mão sobre seu casaco para procurar a coisa.

Abrindo a tampa... encontrou uma mensagem de Trez.

Tudo o que dizia era: Av. St. Francis 189, hj, 22h.

Fechando a tampa do celular, seu coração começou a bater de maneira brutal. Qualquer tipo de fissura no alicerce... estava procurando apenas uma pequena rachadura no mundo de Lash, uma fissura, algo em que pudesse se basear para explodir toda aquela maldição em pedaços.

Xhex poderia estar morta e essa nova realidade, de viver sem ela, poderia ser sua para sempre, mas isso não significava que não podia vingá-la.

No banheiro, prendeu o coldre no peito apontado para cima, e depois de pegar o casaco, saiu para o corredor. Parando por um momento, pensou em todas as pessoas que encontraria descendo as escadas... assim como no horário. As persianas ainda estavam abaixadas.

Ao invés de ir para a esquerda em direção à escadaria e do saguão, foi para a direita... e caminhou em silêncio, apesar de suas botas de combate.


Blaylock deixou seu quarto um pouco antes das seis, porque queria dar uma olhada em John. Normalmente o cara batia na porta dele próximo às refeições, mas não fez isso. O que significava que estava morto, ou quase, de tão bêbado.

Quando chegou à porta de seu amigo, parou e se inclinou. Nada que pudesse ouvir acontecia do outro lado.

Depois de uma batida suave que não foi respondida, soltou um “dane-se” e abriu a coisa. Cara, o lugar parecia ter sido saqueado, com roupas em todos os lugares e uma cama que possivelmente tinha sido usada como pista para uma daquelas corridas de demolição.

– Ele está aí?

Ao som da voz de Qhuinn, enrijeceu, impedindo a si mesmo de se virar. Mas nem havia razão para isso. Sabia que o cara estava usando alguma camiseta do Sid Vicious ou Nine Inch Nails ou talvez uma do Slipknot enfiada nas calças de couro preto. E que seu rosto rígido estaria limpo e bem barbeado. E que seus cabelos negros e espetados estariam ligeiramente molhados por causa do banho.

Blay andou pelo quarto de John e espiou no banheiro, imaginando que suas atitudes responderiam muito bem a pergunta.

– J.? Onde você está, J.?

Quando abriu caminho por todo aquele mármore, o ar estava denso de umidade e do cheiro do sabonete que John usava. A toalha molhada estava sobre o balcão.

Quando ele virou-se para sair, bateu direto no peito de Qhuinn.

O impacto foi como ser atingido por um carro, e seu melhor amigo estendeu a mão para firmá-lo.

Oh, não. Sem toques.

Blay recuou rapidamente e deu uma olhada ao redor do quarto.

– Desculpe. – Houve uma pausa estranha. – Ele não está aqui.

Dã.

Qhuinn inclinou-se para o lado e colocou seu rosto, aquele belo rosto, na linha de visão de Blay. Quando o sujeito se endireitou, os olhos de Blay foram obrigados a acompanhá-lo.

– Você não olha mais para mim.

Não, não olhava.

– Sim, eu olho.

Desesperado para fugir daquele olhar azul e verde, buscou uma brecha e foi até a toalha. Enrolando a coisa, empurrou pela rampa que dava na lavanderia. Imaginou que era sua própria cabeça que estava forçando no buraco.

Blay estava mais calmo quando se voltou. Mesmo quando seus olhos se encontraram.

– Vou descer para jantar.

Estava sentindo muito orgulho de si mesmo enquanto caminhava...

Então a mão de Qhuinn rompeu o ar e agarrou seu antebraço.

– Temos um problema. Você e eu.

– Temos? – Na verdade, não era uma pergunta. Pois esse era o tipo de conversa que não se tinha interesse em estimular.

– Que diabos está acontecendo com você?

Blay piscou. O que havia de errado com ele? Não era ele quem estava transando com qualquer coisa que tivesse um buraco.

Não, ele era o patético e maldito idiota que desejava seu melhor amigo. Aquele que sempre se colocava no caminho de volta para casa choramingando. Se continuasse assim teria que carregar lenços de papel escondido na manga para secar suas lágrimas.

Infelizmente, o momento de raiva desinflou rápido e o deixou vazio.

– Nada. Não há nada de errado.

– Você está mentindo.

Certo. Ok. Isso foi injusto. Já haviam passado dessa fase e Qhuinn podia ser um galinha, mas a memória do cara funcionava perfeitamente.

– Qhuinn... – Blay passou a mão entre os cabelos.

Na hora, aquela maldita música da Bonnie Raitt disparou em sua mente, sua voz preciosa cantando... I can’t make you love me if you don’t... You can’t make your heart feel something it won’t...

Blay teve que rir.

– O que é tão engraçado?

– É possível ser castrado sem ter consciência disso?

Agora foi Qhuinn quem ficou confuso.

– Não, a não ser que esteja muito bêbado.

– Bem, estou sóbrio. Mortalmente sóbrio. Como sempre. – E, sobre isso, talvez devesse seguir o exemplo de John e começar a beber. – Porém, acho que deveria mudar isso. Com licença...

– Blay...

– Não. Não vai conseguir nada comigo com esse “Blay”. – Enfiou o dedo no rosto de seu melhor amigo. – Apenas faça seu trabalho. É o que faz de melhor. Deixe-me sozinho.

Saiu, com a cabeça confusa, mas felizmente com passos firmes.

Passando pelo corredor de estátuas rumo à grande escadaria, passou pelas obras greco-romanas e percorreu os olhos sobre aqueles corpos masculinos. Naturalmente, colocou a cabeça de Qhuinn, como se tivesse um Photoshop, no topo de cada um...

– Não precisa mudar nada. – Qhuinn estava bem atrás dele; as palavras soavam baixas.

Blay chegou ao topo da escada e olhou para baixo. O resplandecente saguão abaixo era como um presente que você podia adentrar com seu corpo. Um lugar perfeito para uma cerimônia de união, pensou, sem qualquer razão específica.

– Blay. Por favor, entenda. Nada mudou.

Olhou por cima do ombro. As sobrancelhas perfuradas de Qhuinn estavam tensas, seu olhar era feroz. Mas, da mesma forma que estava claro que o cara queria continuar falando, Blay havia terminado.

Começou a descer as escadas, movendo-se rapidamente.

E não ficou surpreso quando Qhuinn continuou a perseguição – e a conversa.

– Que diabos isso quer dizer?

Ah, sim, como se precisassem fazer isso na frente das pessoas na sala de jantar. Qhuinn era bom com grandes audiências, fazendo qualquer coisa, mas Blay não encontrava nada de útil no respeitável público.

Voltou dois passos até ficarem face a face.

– Qual era o nome dela?

Qhuinn recuou.

– Como?

– O nome da recepcionista.

– Que recepcionista?

– A de ontem à noite. Na loja de tatuagens.

Qhuinn revirou os olhos.

– Oh, pare com...

– O nome dela.

– Deus, não faço ideia nenhuma! – Qhuinn jogou as mãos para cima, na linguagem universal para dizer tanto faz. – Por que isso importa?

Blay abriu a boca, prestes a esclarecer que aquilo que não significou nada para Qhuinn havia sido um inferno para ele assistir. Mas, então, percebeu que soaria possessivo e estúpido.

Ao invés de falar, enfiou a mão no bolso, tirou o maço de cigarros e puxou um. Colocando-o na boca, acendeu a coisa enquanto observava aqueles olhos díspares.

– Odeio que você fume! – Qhuinn murmurou.

– Supere isso! – disse Blay, virando-se e continuando a descer.

[N.T.] “Não posso fazer com que me ame se não quiser... Não pode fazer seu coração sentir alguma coisa se ele não quiser” são versos da canção “I can’t make you love me”, da cantora americana Bonnie Raitt.

 


                                                  CONTINUA