Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 32
John Matthew acordou, sentiu Xhex ao seu lado e entrou em pânico.
Sonho... Aquilo era um sonho?
Sentou-se lentamente, e quando sentiu o braço dela escorregar em seu peito em direção à barriga, conseguiu pegá-lo antes que atingisse seus quadris. Deus, aquilo que evitava com cuidado estava quente, pesado e...
– John? – ela disse no travesseiro.
Sem pensar, envolveu-se nela e alisou seus cabelos curtos. No instante em que fez isso, ela pareceu cair no sono outra vez.
Um olhar rápido no relógio lhe avisou que eram quatro da tarde. Eles dormiram por horas, e se fosse guiar-se pelo ronco em seu estômago, Xhex deveria estar morrendo de fome também.
Quando se certificou de que tinha apagado outra vez, John libertou-se de seu abraço e andou ao redor silenciosamente. Escreveu um bilhete para ela antes de vestir suas calças de couro e sua camiseta.
Com os pés descalços, alcançou o corredor. Tudo estava tranquilo, pois não havia mais treinamento ali, o que era uma maldita vergonha. Deveria haver gritos dos aprendizes vindos do ginásio, vozes do mestre na sala de aula e batidas dos armários sendo fechados nos vestiários.
Ao invés disso, o silêncio.
Mas percebeu que ele e Xhex não estavam sozinhos.
Quando chegou à porta de vidro do escritório, congelou com a mão sobre a maçaneta.
Tohr estava dormindo na mesa... bem, em cima dela. Sua cabeça estava apoiada em seu antebraço e seus ombros estavam caídos.
John estava tão acostumado a sentir raiva do cara que foi um choque não ter nada do gênero acendendo dentro dele. Em vez disso... sentiu uma esmagadora tristeza.
Tinha acordado ao lado de Xhex naquela manhã.
Mas Tohr nunca, jamais teria isso novamente. Nunca mais voltaria a alisar os cabelos de Wellsie. Nunca mais iria à cozinha para trazer-lhe algo para comer. Nunca iria abraçá-la ou beijá-la novamente...
E ainda tinha perdido um bebê ao longo desse caminho.
John abriu a porta e esperou que o Irmão acordasse de um sobressalto, mas Tohr não fez isso. O macho estava desmaiado. Contudo, aquela exaustão fazia sentido. Estava tentando recuperar sua forma, comendo e malhando vinte e quatro horas, sete dias por semana, e o esforço estava começando a mostrar resultado. Suas calças já não estavam mais caindo e suas camisas não estavam mais tão largas. Mas, evidentemente, o processo era desgastante.
Onde estava Lassiter?, John se perguntou enquanto passava pela mesa e pelo armário. O anjo normalmente andava colado no Irmão.
Esquivando-se pela porta escondida entre as prateleiras de suprimentos, atravessou o túnel em direção à casa. Enquanto avançava, as luzes fluorescentes no teto se estendiam na frente dele, dando a impressão de um caminho predestinado – o que, levando em conta como as coisas estavam, era um conforto. Quando chegou a um conjunto de degraus baixos, subiu, digitou um código e subiu mais um pouco. Emergindo no saguão de entrada, ouviu a televisão na sala de bilhar e percebeu que era o lugar onde o anjo estava.
Ninguém na casa estaria assistindo à Oprah. Não sem uma arma apontada na cabeça.
A cozinha estava vazia, sem dúvida, os doggen estavam comendo algo em seus próprios aposentos antes de começarem a preparar a Primeira Refeição e se ocuparem da casa. O que era muito bom. Ele realmente não queria ajuda.
Com movimentos rápidos, pegou uma cesta da despensa e a encheu. Roscas salgadas. Garrafa térmica com café. Jarra de suco de laranja. Frutas cortadas. Pão doce. Pão doce. Pão doce. Caneca. Caneca. Copo.
Estava apelando para muita caloria e rezando para que ela gostasse de doces. Então, apenas por prevenção, fez um sanduíche de peru. E por um motivo diferente, fez também um de presunto e queijo.
Avançando pela sala de jantar, voltou para a porta debaixo da escadaria.
– Muita comida para dois – disse Lassiter apontando para baixo com seu sarcasmo de sempre.
John se virou. O anjo estava na porta de entrada da sala de bilhar, encostado contra o arco ornamentado. Tinha uma bota cruzada sobre a outra e os braços cruzados no peito. Seus piercings dourados brilhavam, dando a impressão de que havia olhos por toda parte, olhos que não perdiam nada.
Lassiter sorriu um pouco.
– Então, está vendo as coisas de um ângulo diferente agora, não está?
Pouco tempo antes da noite anterior John teria lançado um dane-se como resposta, mas agora estava inclinado a concordar com a cabeça. Especialmente porque achava que as fissuras no concreto do corredor foram causadas pela dor que Tohr tinha sentido.
– Bom – disse Lassiter. – Já era hora. Oh, e eu não estou com ele agora porque todo mundo precisa ficar sozinho de vez em quando. Além do mais, tenho que ter a minha dose de Oprah.
O anjo afastou-se, seus cabelos loiros e negros balançavam.
– E pode calar a boca. Oprah é maravilhosa!
John balançou a cabeça e viu-se sorrindo. Lassiter podia ser um metrossexual pé no saco, mas trouxe Tohr de volta à Irmandade e isso valia alguma coisa.
Atravessou o túnel. Saiu do armário. Entrou no escritório onde Tohr ainda estava dormindo.
Quando John se aproximou da mesa, o Irmão acordou com um espasmo no corpo inteiro, levantando a cabeça de repente. Metade de seu rosto estava amassado para dentro, como se alguém tivesse jogado nele um spray de goma de passar e passado o ferro de uma maneira muito desleixada.
– John... – ele disse com voz rouca. – Oi. Você precisa de alguma coisa?
John enfiou a mão na cesta e tirou o sanduíche de queijo e presunto. Colocou-o sobre a mesa e o empurrou na direção do macho.
Tohr piscou como se nunca tivesse visto duas fatias de pão de centeio com um pouco de recheio antes.
John acenou com a cabeça. Coma, assinalou com a boca.
Tohr se aproximou e colocou a mão no sanduíche.
– Obrigado.
John balançou a cabeça, as pontas dos dedos se demorando sobre a superfície da mesa. Sua despedida foi uma batida rápida de seus dedos. Havia muito a ser dito no pouco tempo que tinha e sua grande preocupação era que Xhex não acordasse sozinha.
Quando alcançou a porta, Tohr disse:
– Estou realmente muito feliz que você a tenha de volta. Muito feliz mesmo.
Quando as palavras flutuaram até ele, os olhos de John se fixaram naquelas rachaduras no corredor. Concluiu que aquilo tinha sido obra dele. Se Wrath e os Irmãos tivessem aberto sua porta com más notícias sobre sua fêmea, teria reagido da mesma maneira que Tohr.
Totalmente acabado. E, em seguida, viveria um grande inferno.
Por cima do ombro, John olhou para o rosto pálido do homem que tinha sido seu salvador, seu mentor... o mais próximo do pai que nunca conheceu. Tohr tinha ganhado peso, mas seu rosto ainda estava vazio e talvez isso nunca mudasse, independente de quantas refeições comesse.
Enquanto os olhares se encontravam, John teve a sensação de que a parceria deles tinha sido muito maior do que apenas a soma dos anos em que conheciam um ao outro.
John colocou a cesta no chão aos seus pés.
Vou sair com Xhex esta noite.
– É?
Vou mostrar a ela onde cresci.
Tohr engoliu em seco.
– Você quer as chaves da minha casa?
John recuou. Disse aquilo apenas para informar o cara sobre o que estava acontecendo com ele, um tipo de contato para tentar remendar a porcaria que tinha acontecido antes.
Não esperava levá-la até lá...
– Vá. Seria bom para você dar uma olhada. O doggen passa por lá apenas uma vez por mês, talvez duas. – Tohr passou e puxou uma das gavetas da mesa. Quando tirou um chaveiro, limpou a garganta. – Aqui.
John pegou as chaves e fechou os dedos ao redor delas, sentindo a vergonha apertar seu peito. Ultimamente, esteve ocupado em ignorar o cara e, mesmo assim, o Irmão se comportava como homem e lhe oferecia algo muito difícil para ele.
– Estou feliz por você e Xhex terem encontrado um ao outro. Faz todo um sentido cósmico, faz mesmo.
John colocou as chaves no bolso para liberar a mão:
Não estamos juntos.
O sorriso que surgiu rapidamente no rosto do sujeito parecia antigo.
– Sim, vocês estão. Vocês estão destinados a ficarem juntos.
Jesus, pensou John, achando que o cheiro de sua vinculação era óbvio. Ainda assim, não havia razão para tratar com todos os “porquês” que envolviam a união deles.
– Então, você vai ao Orfanato Nossa Senhora? – Quando John assentiu, Tohr abaixou e pegou um saco de lixo. – Leve isso com você. É o dinheiro dos narcóticos confiscados naquela casa. Blay trouxe de volta. Imagino que poderia usá-lo.
Quando Tohr se levantou, deixou o saco sobre a mesa e pegou o sanduíche, retirando a embalagem plástica e dando uma mordida.
– Bom trabalho com a maionese – murmurou. – Nem muito. Nem pouco. Obrigado.
Tohr se dirigiu para o armário.
John assobiou baixinho e o Irmão parou, mas não se virou.
– Tudo bem, John. Não precisa dizer nada. Basta se manter a salvo lá fora hoje, certo?
Com isso, Tohr saiu do escritório, deixando John sozinho num rastro de bondade e dignidade que esperava poder produzir um dia.
Enquanto a porta do armário se fechava pensou... que gostaria de ser como Tohr.
Saindo para o corredor, achou engraçado ter aquilo passando por sua cabeça outra vez e este retorno era do tipo que corrigia o mundo: desde que tinha conhecido o cara, fosse pelo tamanho do Irmão, ou por sua inteligência, ou pela maneira como tratava sua fêmea, ou pela maneira como lutava, ou até mesmo pelo som profundo de sua voz... John queria ser como Tohr.
Isso era bom.
Isso era... certo.
Enquanto caminhava até a sala de recuperação, não se sentia exatamente ansioso pela programação noturna. Afinal, o passado era muito melhor quando permanecia enterrado... especialmente o seu, porque fedia.
Mas a questão era que tinha uma chance maior de passar mais tempo com Xhex após arrancá-la de Lash naquele estado. Ela precisaria de outra noite, talvez duas, antes de recuperar sua força plena. E precisaria se alimentar novamente, pelo menos mais uma vez.
Assim, saberia onde ela estava e a manteria ao seu lado durante a noite.
Não importava no que Tohr acreditava, John não estava enganando a si próprio. Mais cedo ou mais tarde, ela fugiria e ele não seria capaz de detê-la.
No Outro Lado, Payne caminhava ao redor do Santuário, com os pés descalços sobre a grama verde e macia, sentindo o perfume das madressilvas e jacintos.
Não havia dormido nem sequer por uma hora desde que sua mãe a tinha reanimado, e embora aquilo em princípio parecesse estranho, não pensava muito a respeito. Simplesmente era assim.
Parecia mais do que provável que seu corpo tivesse tido descanso suficiente para toda uma vida.
Quando passou pelo Templo do Primaz, não entrou. Fez a mesma coisa na entrada do pátio de sua mãe – era muito cedo para a chegada de Wrath e seu treino com ele era o único motivo para estar ali.
Porém, quando chegou ao retiro, abriu uma brecha na porta, embora não pudesse dizer o que a motivou para girar a maçaneta e ficar parada por um período de tempo na soleira.
As tigelas de água que as Escolhidas haviam usado ao longo do tempo para testemunhar os acontecimentos que aconteciam do Outro Lado estavam alinhadas de forma perfeita nas várias mesas, os rolos de pergaminho e canetas de pena estavam alinhados da mesma maneira, prontos para o uso.
Um brilho chamou sua atenção e caminhou até sua origem. A água em uma das bacias de cristal estava se movendo em círculos cada vez mais lentos, como se tivessem acabado de utilizar a coisa.
Ela olhou ao redor.
– Olá?
Não houve resposta, apenas um cheiro suave de limão, que sugeria que No’One havia passado por ali recentemente com seus panos de limpeza. O que, na verdade, era um pouco de desperdício de tempo. Não havia poeira, gordura ou qualquer tipo de sujeira que precisasse ser retirada. Mas No’One fazia parte da grande tradição das Escolhidas, não fazia?
Nada a fazer exceto trabalho inútil que não tinha muito propósito.
Quando Payne se virou para ir embora e passou por todas as cadeiras vagas, o sentimento de fracasso de sua mãe era tão predominante quanto o silêncio que abundava.
Na verdade, ela não gostava da fêmea. Mas havia uma triste realidade para todos os planos que acabaram dando em nada: criar um programa de melhoramento genético de maneira a deixar a raça mais forte. Enfrentar o inimigo no campo de batalha e vencer. Ter muitos filhos servindo-a com amor, obediência e alegria.
Onde estava a Virgem Escriba agora? Sozinha. Sem adorações. Detestada.
E era ainda menos provável que as próximas gerações seguissem seus caminhos, considerando a maneira pela qual tantos pais tinham se afastado das tradições.
Deixando a sala vazia, Payne saiu para a luz difusa e leitosa e...
Descendo pelo espelho d’água, uma forma amarela brilhante se moveu e passou a dançar como uma tulipa na brisa.
Payne caminhou em direção à figura, e enquanto se aproximava, chegou à conclusão de que Layla tinha enlouquecido.
A Escolhida estava cantando uma música que não tinha letra, o corpo dela se movia num ritmo sem música, seu cabelo balançava ao redor como uma bandeira.
Foi a primeira e única vez que uma fêmea não usava um coque da maneira como todas as Escolhidas usavam... pelo menos até onde Payne tinha visto.
– Minha irmã! – disse Layla, hesitante. – Perdoe-me.
Seu sorriso estava mais brilhante do que o amarelo de sua túnica e seu perfume estava mais forte do que nunca, com um toque de canela no ar, tão notável quanto sua voz adorável.
Payne encolheu os ombros.
– Não há nada para perdoar. Na verdade, sua música é agradável aos ouvidos.
Os braços de Layla retomaram seu elegante balanço.
– Está um lindo dia, não?
– Certamente. – Vindo do nada, Payne sentiu uma pontada de medo. – Seu humor está muito melhor.
– Está sim! – A Escolhida rodopiou ao redor, apontando o pé em um lindo arco antes de saltar no ar. – Na verdade, está um dia adorável!
– O que a agradou tanto? – Embora Payne soubesse a resposta. Mudanças de disposição, afinal de contas, raramente eram espontâneas... a maioria exigia um estímulo.
Layla diminuiu o ritmo de sua dança, seus braços e cabelos flutuaram para baixo e descansaram. Enquanto seus dedos elegantes se erguiam até sua boca, parecia ter perdido as palavras.
Encontrou um serviço adequado, Payne pensou. Sua experiência como uma ehros já não era mais apenas uma teoria.
– Eu... – O rubor em suas faces era vibrante.
– Não diga mais nada, apenas saiba que estou feliz por você – murmurou Payne e isso era uma grande verdade. Mas havia uma parte dela que se sentia curiosamente desanimada.
Agora era apenas ela e No’One que estavam sem uso? Parecia que sim.
– Ele me beijou – disse Layla, olhando para o espelho d’água. – Ele... colocou sua boca sobre a minha.
Com graça, a Escolhida sentou na borda de mármore e deslizou a mão ao longo da água. Depois de um momento, Payne se juntou a ela, porque às vezes é melhor sentir algo, qualquer coisa. Mesmo que fosse uma dor.
– Você gostou, não é?
Layla encarou seu próprio reflexo, seus cabelos loiros escorrendo pelos ombros até atingir a superfície prateada da piscina.
– Ele foi... um fogo dentro de mim. Uma grande queimação se espalhando que... me consumiu.
– Então, você não é mais virgem.
– Ele nos deteve após o beijo. Disse que queria que eu tivesse certeza. – O sorriso sensual que surgiu no rosto da fêmea era um eco evidente da paixão. – Eu tinha certeza e ainda tenho. Então, é ele. Na verdade, seu corpo de guerreiro estava pronto para mim. Faminto por mim. Ser desejada dessa maneira foi um presente além do esperado. Pensei que... o cumprimento da minha educação era tudo que eu buscava, mas agora sei que há muito mais esperando por mim do Outro Lado.
– Com ele? – Payne murmurou. – Ou através do exercício de seu dever?
Isso causou um profundo franzir na testa de Layla.
Payne assentiu.
– Presumo que aquilo que busca seja mais sobre ele do que sobre a sua posição.
Houve uma longa pausa.
– Tal paixão entre nós é certamente um indicativo de um destino, não é?
– Não tenho opinião formada sobre isso. – Sua experiência com o destino a levou a um brilhante e sangrento momento de atividade... seguido por uma inanição generalizada. Não era capaz de se pronunciar a respeito do tipo de paixão que Layla se referia.
Ou festejá-la.
– Você me condena? – Layla sussurrou.
Payne ergueu os olhos para a Escolhida e pensou naquela sala vazia, todas aquelas mesas vagas e as gélidas bacias largadas por mãos bem treinadas. Layla estava alegre agora, firmada em coisas que poderiam acontecer fora da vida de Escolhida, parecia outra inevitável deserção. E isso não era uma coisa ruim.
Estendeu a mão e tocou o ombro da outra fêmea.
– Nem um pouco. Na verdade, estou feliz por você.
O prazer tímido de Layla transformou-a de bela a algo próximo de tirar o fôlego.
– Estou tão feliz de compartilhar isso com você. Estou prestes a explodir e não há ninguém... de verdade... com quem conversar.
– Pode sempre conversar comigo. – Afinal, Layla nunca a julgou e estava muito inclinada a conceder à fêmea a mesma graciosa aceitação. – Vai voltar em breve?
Layla assentiu.
– Ele disse que eu poderia voltar a encontrá-lo em sua... como foi que ele mencionou? Próxima noite de folga. E assim o farei.
– Bem, você deve manter-me informada. Na verdade... estarei interessada em ouvir sobre como você vai proceder.
– Obrigada, irmã. – Layla cobriu a mão de Payne, um brilho de lágrimas se formando nos olhos da Escolhida. – Estive tanto tempo sem servir e isto... isto é o que eu sempre desejei. Eu me sinto... viva. –
Bom para você, minha irmã. Isso é... muito bom.
Com um sorriso final de reafirmação, Payne virou-se e se afastou da fêmea. Enquanto caminhava de volta para os alojamentos, viu-se acariciando aquela dor que se formou no centro de seu peito.
Até onde ela sabia, Wrath não chegaria rápido o suficiente.
CAPÍTULO 33
Xhex acordou com o perfume de John Matthew.
Com seu perfume e com o cheiro de café fresco.
Quando suas pálpebras se abriram, seus olhos o encontraram na escura sala de recuperação. Estava de volta à cadeira que antes havia deixado, com o tronco inclinado enquanto colocava o café de uma garrafa térmica verde escura em uma caneca. Havia colocado suas calças de couro e sua camiseta, mas seus pés estavam descalços.
Quando virou-se na direção dela, congelou, suas sobrancelhas se ergueram. E embora o café estivesse a caminho de sua boca, parou e imediatamente o estendeu para que ela o tomasse.
Cara, aquilo o classificava como um homem de poucas palavras.
– Não, por favor – ela disse. – É seu.
Ele fez uma pausa como se considerando se argumentava ou não. Mas então colocou a porcelana em seus lábios e bebeu.
Sentindo-se um pouco mais estável, Xhex afastou as cobertas e deslizou as pernas debaixo delas. Quando se colocou em pé, sua toalha caiu e ela ouviu John respirar com um assobio.
– Oh, desculpe – murmurou, curvando-se e agarrando o tecido felpudo.
Não podia culpá-lo por não querer espiar a cicatriz que ainda estava se curando ao longo da parte inferior de seu ventre. Não era exatamente o que se precisava ver logo antes do café da manhã.
Envolvendo-se na toalha, encaminhou-se lentamente para o banheiro, usou as instalações e lavou seu rosto. Seu corpo estava se recuperando bem, sua coleção de machucados estava desaparecendo, sentia suas pernas mais fortes sob seu peso. E, graças ao descanso e de ter se alimentado dele, suas dores não eram mais tão ruins, apenas mais uma série de vagos desconfortos.
Quando saiu do banheiro, disse:
– Você acha que posso pegar emprestado algumas roupas de alguém?
John assentiu, mas apontou para a cama. Era evidente que queria que ela comesse primeiro e ela concordava totalmente com aquele plano.
– Obrigada – disse, apertando a toalha ao redor dos seios. – O que você tem aí?
Quando sentou, ofereceu a ela uma variedade de coisas e Xhex pegou o sanduíche de peru porque a necessidade de proteína era um desejo que não podia rejeitar. De sua cadeira, John a observou comer, apenas bebendo seu café, e no segundo em que ela terminou, aproximou um pão doce que provou ser muito tentador.
A combinação de cereja e cobertura doce a deixou louca por um pouco de café. E John estava logo ali com uma caneca, como se estivesse lendo sua mente.
Ela terminou rapidamente um segundo pão doce e uma rosca. E um copo de suco de laranja. E duas xícaras de café.
E era engraçado. O silêncio dele tinha um efeito estranho sobre ela. Normalmente, ela era a quieta nas situações, preferindo manter sua própria opinião e não dividindo seus pensamentos sobre nada. Mas com a presença muda de John, sentia-se curiosamente compelida a falar.
– Estou satisfeita – disse, deitando-se de novo contra os travesseiros. Quando ele ergueu uma sobrancelha e levantou o último pãozinho, ela balançou a cabeça. – Deus... não. Não consigo comer mais nada.
E foi só então que ele começou a comer.
– Você esperou por mim? – disse, franzindo a testa. Quando ele baixou o olhar e deu de ombros, ela xingou baixinho. – Não precisava fazer isso.
John encolheu os ombros de novo.
Enquanto o observava, ela murmurou:
– Você tem ótimas maneiras à mesa.
O rubor dele era da cor do dia dos namorados e ela teve de dizer ao seu coração para se acalmar quando começou a bater mais rápido.
Além disso, talvez ela estivesse tendo palpitações porque havia acabado de jogar quase duas mil calorias em seu estômago vazio.
Ou não. Quando John começou a lamber o glacê da ponta de seus dedos, ela avistou rapidamente a língua dele e, por um momento, sentiu uma agitação em seu corpo...
Memórias de Lash esmagando a parte frágil entre suas pernas a levaram de volta àquele quarto, com ele em cima dela, forçando suas pernas a separar-se com suas mãos duras...
– Oh, maldição... – Saindo rápido da cama, cambaleou até o banheiro e quase não chegou a tempo.
Saiu tudo. Os dois pãezinhos. O café. Aquele sanduíche de peru. Evacuação completa de tudo que tinha comido.
Quando se soltou, não sentiu o vômito. Sentia as horríveis mãos de Lash em sua pele... seu corpo dentro dela, pressionando...
E lá se foi o suco de laranja.
Oh, Deus... como tinha passado por tudo aquilo com aquele bastardo repetidas vezes? Os socos, a luta e as mordidas... em seguida, o sexo brutal.
De novo, de novo e de novo... e então as consequências. Agora Xhex tentava tirá-lo dela.
Droga...
Outra onda de náusea cortou seus pensamentos, e embora ela detestasse vomitar, o desligamento momentâneo de seu cérebro era um alívio. Era quase como se seu corpo estivesse tentando exorcizar o trauma fisicamente, explodindo tudo para que ela pudesse recomeçar.
Reiniciar do começo, por assim dizer.
Quando o pior do vômito passou, afundou-se em seus tornozelos e descansou a testa úmida em seu braço. Enquanto sua respiração cortava sua garganta, o reflexo de seu esforço para vomitar fazia com que tremesse muito, como se seu corpo estivesse considerando começar a se organizar de novo para outra rodada.
Não tem mais nada aí, disse à maldita coisa. Nada, a não ser que quisesse colocar seus pulmões para fora também.
Droga, ela odiava essa parte. Logo depois de passar por todo o inferno, sua mente e seu ambiente estavam cheios de minas terrestres e nunca sabia o que poderia provocar uma explosão. Claro, ao longo do tempo, isso diminuía, mas a primeira tentativa de voltar à “vida normal” estava sendo um inferno e meio.
Ela levantou a cabeça e acionou a descarga.
Quando um pano úmido roçou sua mão, ela pulou, mas era apenas John, nada para temer.
E, cara, ele tinha a única coisa que ela realmente queria naquele momento: aquele pano limpo, úmido e frio era uma dádiva divina.
Enterrando seu rosto naquilo, estremeceu de alívio.
– Sinto muito sobre a comida. Estava boa quando botei para dentro.
Hora de chamar a doutora Jane.
Enquanto Xhex se sentava preguiçosamente nua no chão em frente ao vaso sanitário, John mantinha um olho nela e outro no telefone enquanto mandava uma mensagem.
No segundo em que enviou, jogou o celular sobre o balcão e puxou uma toalha limpa dentre a pilha que havia perto da pia.
Queria dar a Xhex alguma privacidade, mas também estava tendo problemas em olhar como sua coluna ameaçava perfurar a pele de suas costas. Enrolando-a na toalha, deixou suas mãos se demorarem sobre os ombros dela.
Queria puxá-la para seu peito, mas não sabia se ela concordaria em chegar tão per...
Xhex se afastou dele e arrumou a toalha, cruzando as duas metades na sua frente.
– Deixe-me adivinhar. Você chamou nossa boa doutora.
Movendo-se, ele colocou as mãos no chão para suportar o peso de seu tronco e se levantou sobre os joelhos de forma que ficasse cercada por ele por todos os lados. Nada mal, ele pensou. O vaso sanitário não estava bem na frente dela, mas se precisasse, tudo o que tinha de fazer era se sentar direito.
– Não estou doente – disse com voz rouca. – Nem da operação nem de nada. Eu só comi rápido demais.
Talvez, ele pensou. Mas, se fosse isso, não faria mal se a doutora Jane a examinasse. Além disso, precisavam saber muito bem como ela estava antes de saírem à noite, concluindo que isso ainda fosse possível.
– Xhex? John?
John assoviou ao som da voz da doutora e, um momento depois, a fêmea de Vishous colocou a cabeça no banheiro.
– Uma festa? E eu não fui convidada? – ela disse, entrando.
– Bem, tecnicamente, acho que foi sim – Xhex murmurou. – Estou bem.
Jane ajoelhou-se, e embora seu sorriso fosse terno, seus olhos eram muito perspicazes ao olhar para o rosto de Xhex.
– O que está acontecendo aqui?
– Fiquei enjoada depois de comer.
– Importa-se se eu medir sua temperatura?
– Eu preferiria não ter nada perto da minha garganta nesse momento, se não se importa.
Jane tirou um instrumento branco de sua maleta.
– Posso fazer isso apenas aproximando esse aparelho da sua orelha.
John ficou chocado quando a mão de Xhex encontrou a sua e apertou forte como se precisasse de algum apoio. Para que ela soubesse que ele estava lá para o que precisasse, apertou de volta e, no instante em que fez isso, os ombros dela se aliviaram e relaxou outra vez.
– Divirta-se, doutora.
Xhex inclinou a cabeça e acabou se apoiando direto no ombro dele. Então, John realmente não poderia evitar colocar sua bochecha nos cachos fofos e macios dela e respirar fundo.
Até onde sabia, a médica trabalhava rapidamente. Mal começou, houve um bipe e ela já estava se afastando... o que significou Xhex levantando a cabeça outra vez.
– Nada de febre. Importa-se se eu olhar a incisão?
Xhex esticou-se para mostrar, separando a toalha e expondo a barriga e a faixa que atravessava a parte inferior de seu abdômen.
– Parece bom. O que você comeu?
– Apenas comi demais.
– Certo. Alguma dor que eu deva saber?
Xhex negou com a cabeça.
– Sinto-me melhor. De verdade. O que eu preciso é de algumas roupas e sapatos... e outra Primeira Refeição.
– Tenho roupas que os médicos usam em cirurgias e que você pode vestir, depois podemos alimentar você de novo.
– Bom. Obrigada. – Xhex começou a se levantar e ele a ajudou, mantendo a toalha no lugar quando escorregou. – Porque vamos sair.
– Não para lutar, você não pode.
John negou com a cabeça e assinalou para a doutora:
Vamos apenas esticar as pernas. Juro.
Os olhos da doutora Jane se estreitaram.
– Posso apenas dar uma opinião médica. E o que eu penso é que você... – olhou para Xhex – deveria comer alguma coisa e ficar por aqui pelo resto da noite. Mas você é uma adulta, então pode fazer as suas próprias escolhas. No entanto, saiba de uma coisa: saiam sem o Qhuinn e terão sérios problemas com Wrath.
Tudo bem, John gesticulou. Não estava empolgado com a rotina de babá, mas não iria correr riscos com Xhex.
Não tinha ilusões a respeito da fêmea que amava. Ela poderia decidir partir a qualquer momento, e se a coisa ficasse feia a esse ponto, gostaria de um pouco de ajuda.
CAPÍTULO 34
Lash acordou na mesma posição em que havia desmaiado: sentado no chão do banheiro no rancho, os braços unidos em cima dos joelhos, a cabeça abaixada.
Quando abriu os olhos, deu uma olhada em sua ereção.
Tinha sonhado com Xhex, as imagens foram tão claras, as sensações tão vívidas que era uma surpresa não ter gozado em suas calças. Tinham voltado àquele quarto, estavam juntos, lutando, mordendo e, então, ele a possuiu, forçando-a a se deitar na cama, obrigando-a a aceitá-lo, mesmo que ela odiasse.
Estava totalmente apaixonado por ela.
O som de um murmúrio úmido fez com que sua cabeça se erguesse. A Mulher Silicone estava voltando a si, seus dedos se contorciam, as pálpebras piscavam como persianas com defeito.
Enquanto seus olhos focavam no cabelo emaranhado e no corpete manchado de sangue, sentiu uma dor aguda nas têmporas, uma ressaca que com certeza não estava ligada à diversão. A prostituta o enojava, estava deitada toda desleixada envolta de sua própria imundície.
Com certeza ela passou mal do estômago e Lash deu graças a Deus por ter dormido durante aquela comoção.
Tirando o cabelo dos olhos, sentiu suas presas se alongarem e soube que estava na hora de colocar a mulher em uso, mas droga... ela era tão atraente quanto um pedaço de carne estragada.
Mais água. Era disso que aquele pesadelo precisava. Mais água...
Quando se inclinou para ligar o chuveiro outra vez, os olhos dela flutuaram sobre ele.
O grito dela repicou de sua boca ensanguentada e ecoou no azulejo até que os ouvidos dele zumbiram como sinos de igreja.
As malditas presas a assustaram demais. Quando os cabelos dele caíram sobre seus olhos outra vez, passou a mão, empurrando-o para trás e questionou se deveria rasgar seu pescoço só para acabar com o barulho. Mas não havia a menor chance de mordê-la antes dela tomar um banho...
Ela não estava olhando para sua boca. Seus olhos grandes e enlouquecidos estavam fixos em sua testa.
Quando o cabelo o incomodou outra vez, ele o empurrou para trás... e alguma coisa saiu em sua mão.
Em câmera lenta, olhou para baixo.
Não, não era seu cabelo loiro.
Sua pele.
Lash se virou para o espelho e se ouviu gritar. Seu reflexo era incompreensível, o pedaço de carne que havia se soltado revelava uma camada de tinta negra que escorria sobre seu crânio branco. Com a unha, testou a extremidade do que ainda estava preso e descobriu que tudo estava frouxo; cada centímetro quadrado em seu rosto não era nada além de uma folha vacilante estendida sobre o osso.
– Não! – ele gritou, tentando colocar a coisa de volta no lugar dando tapinhas...
Suas mãos... oh, Deus, elas também, não. Tiras de pele estavam penduradas nas costas delas e, ao puxar para cima as mangas de sua camisa social, desejou ter sido mais gentil, pois sua derme veio junto com a delicada seda.
O que estava acontecendo com ele?
Atrás dele, no espelho, viu a prostituta passar como um raio numa corrida mortal, parecendo com Carrie, a estranha, só que sem o vestido de baile.
Com uma onda de força, foi atrás dela, seu corpo se movendo sem nada do poder e graça com os quais estava acostumado. Enquanto corria atrás de sua presa, podia sentir o atrito de suas roupas contra a pele e conseguia apenas imaginar os rasgos que estavam acontecendo em cada centímetro de seu corpo.
Pegou a prostituta bem na hora em que tinha chegado à porta dos fundos e começava a lutar com as fechaduras. Golpeando-a por trás, ele agarrou seu cabelo, puxou sua cabeça para trás e mordeu com força, chupando seu sangue negro para dentro de si.
Lash acabou com ela rapidamente, drenando-a até que suas sucções lhe proporcionaram apenas um monte de nada em sua boca e, quando terminou, simplesmente a largou. Com isso, ela desabou no tapete.
Com um andar vacilante, embriagado, voltou ao banheiro e acendeu as luzes que percorriam os dois lados do espelho.
A cada peça de roupa que removia, revelava mais do horror que já estava estampado em seu rosto: seus ossos e músculos reluziam com um brilho negro e oleoso sob a iluminação das lâmpadas.
Era um cadáver. Um cadáver em pé, que andava e respirava, cujos olhos giravam em suas cavidades sem pálpebra ou cílio, a boca mostrava nada além de presas e dentes.
O último pedaço de pele que lhe restava era aquele que servia de base para seu lindo cabelo loiro em sua cabeça, mas até isso estava deslizando para trás, como uma peruca que tinha perdido sua cola.
Retirou o pedaço final, e com as mãos esqueléticas, acariciou aquilo que tinha lhe dado tanto orgulho. Evidentemente, a coisa estava desprezível daquele jeito, o lodo negro coagulando-se nas madeixas, manchando-as, emaranhando-as... de modo que não estavam melhores do que o cabelo daquela prostituta perto da porta.
Deixou seu couro cabeludo cair no chão e olhou para si mesmo.
Através de sua caixa torácica, observou a batida de seu próprio coração e se perguntou, com um horror entorpecente, o que mais apodreceria nele... e o que lhe restaria quando aquela transformação terminasse.
– Oh, Deus... – disse. Sua voz já não soava direito, era um eco deslocado que constituía as palavras de um modo assustadoramente familiar.
Blay ficou parado com a porta de seu armário aberta, suas roupas penduradas à mostra. Era um absurdo, mas quis ligar para sua mãe para pedir um conselho. Algo que sempre fazia quando tinha que se vestir bem.
Mas essa não era uma conversa que estava com pressa de ter. Ela concluiria que aquilo era por causa de uma fêmea e ficaria toda animada com o fato de que estava indo a um encontro e seria forçado a mentir para ela... ou sair do armário.
Seus pais nunca foram de fazer julgamentos... mas era filho único, e não haver qualquer sinal de fêmea significava não apenas nada de netinhos, mas um chute na aristocracia. Não era surpresa, a glymera aceitava bem a homossexualidade, desde que fosse emparelhado com uma fêmea e que nunca, jamais, falasse sobre isso ou fizesse qualquer coisa publicamente para confirmar essa característica com a qual tinha nascido. Aparências. Tudo girava em torno das aparências. E se você se assumisse? Era excluído.
E sua família também.
De alguma maneira, não conseguia acreditar que estava prestes a ir se encontrar com um macho. Em um restaurante. E que depois iria a um bar com o cara.
E seu parceiro estaria vestido de forma incrível. Sempre era.
Então Blay tirou um terno Zegna, que era cinza risca de giz muito claro. A próxima peça foi uma elegante camisa social de algodão, o corpo da camisa era ligeiramente rosado, com seus punhos franceses e um colarinho branco brilhante. Sapatos... sapatos... sapatos...
Bam, bam, bam na porta.
– Ei, Blay!
Droga. Já tinha colocado o terno na cama e tinha acabado de tomar banho, estava de roupão, com gel no cabelo.
Gel: um delator miserável.
Indo à porta, abriu a coisa apenas um centímetro ou dois. Do lado de fora, no corredor, Qhuinn estava pronto para lutar, seu coldre de adagas que usava no peito estava pendurado em sua mão, vestia suas roupas de couro e suas botas de combate estavam bem amarradas.
Contudo, foi engraçado, a rotina de guerreiro não causou tanta impressão. Blay estava ocupado demais lembrando-se da aparência do cara esticado na cama na noite anterior, seus olhos na boca de Layla.
Má ideia ter feito aquela alimentação em seu próprio quarto, Blay pensou. Porque agora ficaria pensando até onde as coisas teriam ido entre aqueles dois sobre seu colchão.
Contudo, conhecendo Qhuinn, devem ter percorrido o caminho inteiro, até o fim. Que ótimo.
– John enviou uma mensagem de texto – o cara disse. – Ele e Xhex vão dar uma volta em Caldwell e pela primeira vez o filho da mãe está...
Os olhos díspares de Qhuinn o percorreram de cima abaixo, então inclinou-se para o lado e olhou sobre o ombro de Blay.
– O que está fazendo?
Blay aproximou um pouco mais as golas de seu robe.
– Nada.
– Sua colônia está diferente... O que fez com seu cabelo?
– Nada. O que estava dizendo sobre John?
Houve uma pausa.
– É... certo. Bem, ele vai sair e nós vamos com ele. Porém, precisamos ser discretos. Vão querer privacidade. Mas nós podemos...
– Estou de folga esta noite.
Aquela sobrancelha com piercing se abaixou.
– E daí?
– E daí... que estou de folga.
– Isso nunca importou antes.
– Importa agora.
Qhuinn movimentou-se para o lado novamente e deu uma rápida olhada ao redor da cabeça de Blay.
– Você vai colocar aquele terno só para impressionar a equipe na casa?
– Não.
Houve um longo silêncio e então uma palavra:
– Quem?
Blay abriu mais a porta e deu um passo para trás entrando mais em seu quarto. Se fosse para ter aquela conversa, não fazia sentido fazer isso do lado de fora, no corredor, para as pessoas verem ou ouvirem.
– Isso realmente importa? – disse, em uma onda de raiva.
A porta foi fechada. Com força.
– Sim. Importa.
Como se estivesse dizendo um “dane-se” para Qhuinn, Blay desfez o laço de seu roupão e o deixou cair de seu corpo nu. E vestiu a calça comprida... sem cueca.
– Só um amigo.
– Macho ou fêmea?
– Como eu disse, isso importa?
Outra longa pausa, durante a qual Blay se enfiou dentro da camisa e a abotoou.
– Meu primo – Qhuinn rosnou. – Você vai sair com Saxton.
– Talvez. – Foi até a cômoda e abriu sua caixa de joias. Dentro dela, abotoaduras de todos os tipos brilhavam. Escolheu um conjunto que tinha rubis.
– Isso é uma vingança por causa de Layla ontem à noite?
Blay congelou com a mão na abotoadura.
– Jesus Cristo!
– É sim, claro. Isso é o que...
Blay se virou.
– Já lhe ocorreu alguma vez que isso não tem nada a ver com você? Que um cara me chamou para sair e eu quero ir? Que isso é normal? Ou será que você é tão egocêntrico que filtra tudo e todos pelo seu narcisismo?
Qhuinn recuou levemente.
– Saxton é um canalha.
– Bem, acho que você saberia mesmo o que torna alguém assim.
– Ele é um canalha, um canalha muito elegante e cheio de classe.
– Talvez tudo o que eu queira seja um pouco de sexo. – Blay levantou uma sobrancelha. – Já faz um tempo para mim e, para começar, aquelas fêmeas com quem eu estive nos bares só para acompanhá-lo não foram tão boas assim. Acho que está na hora de ter um pouco disso e do jeito certo.
O desgraçado teve a ousadia de empalidecer. De verdade. E maldito seja se não vacilou para trás e encostou-se contra a porta.
– Para onde vocês vão? – perguntou asperamente.
– Ele vai me levar ao Sal. E depois vamos àquele bar de charutos. – Blay ajeitou a outra abotoadura e foi até a cômoda pegar suas meias de seda. – Depois disso... quem sabe?
Uma onda de perfume apimentado flutuou através do quarto e, atordoado, Blay ficou em silêncio. De todos os rumos que pensou que aquela conversa seguiria... ativar o aroma de vinculação de Qhuinn não fazia parte de nada do que tinha imaginado.
Blay virou-se.
Depois de um longo, tenso momento, caminhou em direção ao seu melhor amigo, atraído pela fragrância. E enquanto chegava mais perto, os olhos quentes de Qhuinn o seguiam a cada passo, o vínculo entre eles, que estava sendo enterrado pelos dois lados, explodiu de repente dentro do quarto.
Quando estavam face a face, ele parou, seu peitoral cheio de ar encontrou o de Qhuinn.
– Diga a palavra – sussurrou asperamente. – Diga a palavra e eu não irei.
As mãos duras de Qhuinn se ergueram rapidamente envolvendo os dois lados da garganta de Blay, a pressão o obrigou a inclinar sua cabeça para trás e abrir sua boca para poder respirar. Fortes polegares cravaram nas articulações de cada lado de sua mandíbula.
Momento elétrico.
Potencialmente incendiário.
Acabariam na cama, Blay pensou enquanto fechava suas palmas nos grossos pulsos de Qhuinn.
– Diga a palavra, Qhuinn. Faça isso e eu passarei a noite com você. Vamos sair com Xhex e John e quando eles acabarem, voltamos para cá. Diga.
Os olhos azul e verde, dentro dos quais Blay tinha passado toda uma vida olhando, encararam sua boca e o peitoral de Qhuinn bombeava para cima e para baixo como se estivesse correndo.
– Melhor ainda – Blay falou arrastando as palavras. – Por que você simplesmente não me beija...
Blay foi virado de repente e empurrado com força contra a cômoda, que bateu forte contra a parede com um estrondo. Quando frascos de colônia chocalharam e uma escova de cabelo caiu no chão, Qhuinn forçou seus lábios sobre os de Blay, seus dedos cortavam a garganta dele.
Contudo, isso não importava. Rígido e desesperado... era tudo que queria do cara. E Qhuinn parecia concordar totalmente em fazer isso, sua língua disparava, tomava... possuía.
Com as mãos desastradas, Blay arrancou sua camisa para fora da calça e mergulhou sobre o zíper. Tinha esperado tanto tempo por isso...
Mas terminou antes de começar.
Qhuinn virou-se e se afastou enquanto as calças de Blay atingiam o chão e o cara saiu disparado em direção à porta. Com a mão na maçaneta, bateu a testa na madeira uma vez. Duas vezes.
E então, com uma voz morta, disse:
– Vá. Divirta-se. Apenas proteja-se, por favor, e tente não se apaixonar por ele. Ele vai partir seu coração.
Num piscar de olhos, Qhuinn deixou o quarto, a porta se fechou sem som algum.
Na sequência da partida, Blay permaneceu onde tinha sido deixado, a calça ao redor de seus tornozelos, sua ereção, já desaparecendo, era um completo constrangimento mesmo estando completamente sozinho. Quando o mundo começou a vacilar e seu tórax se comprimiu como um punho fechando-se com força, piscou rápido e tentou manter as lágrimas longe de seu rosto.
Como um macho velho, abaixou, curvou-se lentamente e ergueu a cintura da calça, suas mãos apalparam o zíper e o fechou. Sem colocar a camisa para dentro, caminhou e sentou na cama.
Quando seu telefone tocou sobre a mesa de cabeceira, virou-se e olhou em direção à tela. De alguma maneira, esperava ser Qhuinn, mas esta era a última pessoa com quem queria conversar e deixou quem quer que fosse ser atendido pelo correio de voz.
Por alguma razão, ficou pensando no tempo que gastou em seu banheiro se preocupando em se barbear, cortar as unhas e arrumar seu cabelo com o maldito gel. Depois, no tempo em frente ao armário. Tudo isso parecia um desperdício agora.
Sentia-se sujo. Completamente sujo.
E não iria mais sair com Saxton nem com ninguém naquela noite. Não no humor em que estava. Não havia razão para submeter um cara inocente àquela toxina.
Deus...
Maldição.
Quando sentiu que conseguiria falar, estendeu-se sobre o criado mudo e pegou o telefone. Abriu a coisa e viu que foi Saxton quem tinha ligado.
Talvez para cancelar? E isso não seria um alívio? Ser rejeitado duas vezes em uma noite dificilmente seria uma boa notícia, mas naquela o salvaria de ter que dispensar o macho.
Acionando o correio de voz, Blay escorou sua testa na palma da mão e olhou para baixo, encarando seus pés descalços.
– Boa noite, Blaylock. Imagino que esteja, neste exato momento, parado em frente ao seu armário tentando decidir o que vestir. – A voz macia e profunda de Saxton foi um curioso bálsamo, tão calma e suave. – Bem, na verdade, estou diante de minhas próprias roupas... Acredito que eu deva ir com um terno e um colete quadriculado. Acho que terno risca de giz seria um bom acompanhamento de sua parte. – Houve uma pausa e uma risada. – Não que eu esteja lhe dizendo o que vestir, claro. Mas me ligue se estiver em cima do muro. Em relação ao seu guarda-roupa, claro. – Outra pausa e então um tom sério. – Estou ansioso para vê-lo. Tchau.
Blay afastou o telefone de sua orelha e pairou seu polegar sobre a opção delete. Num impulso, salvou a mensagem.
Depois de uma inspiração longa e firme, obrigou-se a se colocar em pé. Mesmo com suas mãos tremendo, vestiu sua fina camisa e voltou-se para a cômoda que estava bagunçada agora.
Pegou os frascos de colônia, arrumou-os mais uma vez e recolheu a escova de cabelo do chão. Então abriu a gaveta de meias... e tirou o que precisava.
Para terminar de se vestir.
CAPÍTULO 35
Darius devia se encontrar com seu jovem protegido depois que o sol tivesse se posto, mas antes se dirigiu para a mansão humana que espiaram por entre as árvores, depois se materializou no bosque em frente à caverna da Irmandade.
Com os irmãos espalhados por toda parte, a comunicação poderia demorar, e um sistema havia sido montado para a troca de avisos e anúncios. Todos iam até um determinado local, uma vez por noite, para ver o que os outros tinham deixado ou para deixar suas próprias mensagens.
Depois de se certificar de que não estava sendo observado, mergulhou no sombrio enclave, atravessou a parede de pedra secreta e abriu caminho através da série de portões em direção ao sanctum sanctorum. O “Sistema de Comunicação” não era nada além de um nicho colocado na parede de pedra, onde a correspondência podia ser colocada e, devido a sua simplicidade, estava no final do caminho.
No entanto, não adiantou-se o suficiente para ver se seus Irmãos tinham qualquer coisa a dizer a ele.
Aproximando-se do último portão, viu sob o chão de pedra o que à primeira vista parecia ser uma pilha de roupas dobradas próximas de uma bolsa rústica.
Quando desembainhou sua adaga negra, uma cabeça escura se ergueu da pilha.
– Tohr? – Darius abaixou a arma.
– Sim. – O menino virou-se em sua cama áspera. – Boa noite, senhor.
– Posso saber o que você está fazendo aqui?
– Dormindo.
– Isso é óbvio, com certeza. – Darius se aproximou e ajoelhou-se. – Mas porque você não volta para sua casa?
Afinal, havia sido renegado, mas Hharm raramente ia à morada de sua companheira. Com certeza o jovem poderia ter ficado com sua mahmen.
O garoto forçou-se a ficar em pé e se equilibrou apoiando-se na parede.
– Que horas são? Eu perdi...?
Darius pegou o braço de Tohr.
– Você comeu?
– Estou atrasado?
Darius não se preocupou em fazer mais nenhuma pergunta. As respostas para o que ele queria saber estavam na maneira como o garoto se recusava a levantar seus olhar: com certeza, solicitaram a ele que não pedisse refúgio na casa de seu pai.
– Tohrment, quantas noites você já passou aqui? – Naquele chão frio.
– Posso encontrar outro lugar onde ficar. Não voltarei a dormir aqui outra vez.
Se isso fosse verdade, louvada seria a Virgem Escriba.
– Espere aqui, por favor.
Darius entrou pelo portão e verificou a correspondência. Enquanto encontrava notificações de Murhder e Ahgony, pensou em deixar uma para Hharm. Colocando palavras do tipo “Como você pôde dar as costas a um filho de seu sangue, ao ponto dele se ver forçado a dormir com nada além de pedras como cama e suas roupas por coberta? Seu imbecil.”
Darius voltou a Tohrment e viu que o garoto tinha empacotado suas coisas em sua bolsa e suas armas já estavam preparadas.
Darius engoliu uma maldição.
– Devemos primeiro ir à mansão da fêmea. Tenho algumas coisas para discutir com... aquele mordomo. Traga suas coisas, filho.
Tohrment o seguiu, mais alerta do que a maioria deveria estar depois de tantos dias sem comida ou descanso apropriado.
Eles se materializaram em frente à mansão de Sampsone e Darius apontou com a cabeça para a direita, indicando que deveriam prosseguir pelos fundos. Quando chegaram à parte de trás da casa, dirigiram-se à porta pela qual haviam saído na noite anterior e tocou a estrondosa campainha.
O mordomo abriu caminho e fez uma reverência.
– Senhores, há alguma coisa que possamos fazer para servi-los em sua missão?
Darius entrou.
– Gostaria de falar outra vez com o mordomo do segundo andar.
– Mas é claro. – Outra reverência. – Tenham a bondade de me seguir até a sala de visitas.
– Vamos esperar aqui. – Darius sentou-se na mesa desgastada dos serviçais.
O doggen empalideceu.
– Senhor... Isso é...
– Onde eu gostaria de conversar com o mordomo Fritzgelder. Não vejo nenhum benefício em aumentar a aflição do seu mestre e senhora pelo nosso encontro não anunciado em sua casa. Não somos convidados, estamos aqui a serviço de sua tragédia.
O mordomo fez uma reverência tão profunda que foi uma surpresa ele não ter caído de testa no chão.
– Em verdade, o senhor está certo. Vou chamar Fritzgelder neste exato momento. Existe algo que possamos fazer para sua comodidade?
– Sim. Apreciaríamos muito alguns alimentos e cerveja.
– Oh, senhor, mas é claro! – O doggen se inclinou respeitosamente enquanto saía do cômodo. – Eu deveria ter oferecido, perdoe-me.
Quando ficaram sozinhos, Tohrment disse:
– Você não precisa fazer isso.
– Fazer o quê? – Darius falou demorando-se nas palavras, correndo as pontas dos dedos sobre a superfície ondulada da mesa.
– Conseguir comida para mim.
Darius olhou sobre o ombro.
– Meu estimado garoto, foi um pedido calculado para deixar o mordomo mais à vontade. Nossa presença neste local é uma fonte de grande desconforto para ele, tanto quanto o pedido para interrogar outra vez seu serviçal. O pedido por comida deve ter sido um alívio para ele. Agora, por favor, sente-se, e quando as provisões e a bebida chegarem, deve consumi-los. Já me alimentei antes.
Houve o som de uma cadeira sendo arrastada para trás, em seguida um rangido quando o peso de Tohrment se acomodou.
O mordomo chegou logo depois.
O que foi embaraçoso, já que Darius, na verdade, não tinha nada a perguntar a ele. Onde estava a comida...?
– Senhores – disse o mordomo com orgulho enquanto abria a porta com um floreio.
Empregados se apresentaram com todos os tipos de bandeja e canecas de cerveja e provisões e, enquanto o banquete era servido, Darius levantou uma sobrancelha à Tohrment, em seguida desceu o olhar de maneira incisiva em direção aos diversos alimentos.
Tohrment, o macho educado de sempre, começou a se servir.
Darius assentiu ao mordomo.
– Este é um banquete digno de tal casa. Em verdade, seu mestre deve estar mais que orgulhoso.
Depois que o mordomo e os outros saíram, o outro mordomo esperou pacientemente, assim como Darius também o fez até que Tohrment havia consumido tudo o que podia. E então Darius se levantou.
– Muito bem, poderia pedir-lhe um favor, mordomo Fritzgelder?
– Mas é claro, senhor.
– Poderia fazer a gentileza de guardar a bolsa de meu colega durante a noite? Retornaremos depois que fizermos nossa inspeção.
– Oh, sim, senhores. – Fritzgelder curvou-se. – Tomarei o maior dos cuidados com suas coisas.
– Obrigado. Venha, Tohrment, vamos sair.
Enquanto saíam, podia sentir a ira do garoto e não ficou nada surpreso quando seu braço foi capturado.
– Posso cuidar de mim mesmo.
Darius olhou sobre o ombro.
– Não há dúvidas quanto a isso. No entanto, não preciso de um companheiro debilitado por estar de barriga vazia e...
– Mas...
– ... se acha que esta família de tantos recursos ofereceria com má vontade uma mera refeição para ajudar na busca de sua filha, está redondamente enganado.
Tohrment soltou a mão.
– Devo encontrar alojamento. Comida.
– Sim, você vai. – Darius indicou com a cabeça para o círculo de árvores ao redor da propriedade vizinha. – Agora, podemos continuar?
Quando Tohrment assentiu, os dois se desmaterializaram na floresta e depois abriram caminho, avançando pela propriedade da outra mansão.
A cada passo que avançavam em direção ao seu destino, Darius sentia uma sensação de medo esmagadora, que aumentava ao ponto de sentir dificuldade em respirar: o tempo estava trabalhando contra eles.
Cada noite que se passava e eles não a encontravam, era outro passo mais perto de sua morte.
E tinham tão pouco para continuar.
CAPÍTULO 36
O terminal de ônibus de Caldwell ficava do outro lado da cidade, no limite do parque industrial que se estendia até o sul. A antiga construção de telhado plano estava envolta por uma cerca de alambrado e sua galeria de entrada parecia estar cedendo por causa da idade.
Quando John se materializou ao lado de um ônibus estacionado, esperou por Xhex e Qhuinn. Xhex foi a primeira a chegar e, cara, estava com um aspecto muito melhor; os alimentos haviam se acomodado bem na segunda tentativa e a cor de sua pele estava muito boa. Ainda estava vestida com as roupas de médico que a doutora Jane tinha dado a ela, mas por cima usava uma das blusas com capuz preto de John e um de seus casacos esportivos.
Ele adorou o visual. Adorou que ela estivesse usando suas roupas. Adorou como elas ficaram grandes demais nela.
Adorou que ela parecesse uma garota.
Não que não gostasse das roupas de couro ou das camisetas regata e do estilo “vou esmagar suas bolas se der um passo fora da linha” que costumava seguir. Isso também era muito atraente. Só que... por alguma razão, a maneira como ela parecia agora era mais íntima. Provavelmente porque nunca deixou ser vista assim muitas vezes.
– Por que estamos aqui? – ela perguntou, olhando ao redor. Sua voz não parecia frustrada ou irritada, graças a Deus. Estava apenas curiosa.
Qhuinn tomou forma a uns dez metros de distância e cruzou os braços sobre o peito como se não confiasse em si mesmo para não bater em ninguém. O cara estava com um humor horrível. Absolutamente vil. Não pronunciou sequer duas palavras civilizadas no saguão quando John lhe indicou a ordem dos lugares que iriam, e a causa disso não estava muito clara.
Bem... pelo menos não até Blay passar pelo grupo com um aspecto maravilhoso vestindo um terno de risca de giz cinza. O cara fez uma pausa apenas para dizer tchau a John e Xhex; não lançou sequer um olhar para Qhuinn quando saiu em direção à noite.
Usava uma colônia nova.
Estava claro que iria a um encontro. Mas com quem?
Com um silvo e um rugido, um ônibus saiu da vaga onde estava estacionado, a fumaça do motor a diesel fez o nariz de John ameaçar um espirro.
Vamos, assinalou com a boca para Xhex, mudando sua mochila para o outro ombro e puxando-a para frente.
Os dois caminharam pela calçada úmida em direção à luz fluorescente brilhante do terminal. Mesmo estando muito frio, John manteve sua jaqueta de couro aberta para o caso de precisar pegar suas adagas ou sua arma e Xhex também estava equipada.
Os redutores poderiam estar em qualquer lugar e os humanos poderiam ser muito idiotas.
Segurou a porta aberta para ela e ficou aliviado ao ver que havia apenas um velho dormindo num dos bancos e uma mulher com uma maleta, além do bilheteiro que ficava atrás de um vidro plexiglas.
A voz de Xhex soou baixa.
– Este lugar... deixa você triste.
Droga, era verdade. Mas não por causa do que havia vivenciado ali... mas sim pelo que sua mãe deve ter sentido sozinha ao sofrer as dores do parto.
Assoviando com força, ergueu a mão quando os três humanos levantaram o olhar. Reduzindo o nível de suas consciências, deixou cada um deles em meio a um ligeiro transe e caminhou até a porta de metal em que tinha uma placa parafusada onde se lia MULHERES.
Colocando sua mão no painel frio, abriu um pouco e escutou. Não se ouvia nada.
O lugar estava vazio.
Xhex passou por ele, seus olhos percorreram as paredes de alvenaria, as pias de aço inoxidável e os três cubículos. O lugar cheirava à cândida e à umidade, o balcão molhado e os espelhos não eram feitos de vidro, mas de chapas polidas de metal. Tudo estava fixado com parafusos, desde a saboneteira, passando pela placa de Não fume até a lata de lixo.
Xhex parou em frente ao banheiro reservado para deficientes, com olhar penetrante. Ao empurrar um pouco a porta para abrir, recuou e pareceu confusa.
– Aqui... – apontou para baixo, no canto. – Aqui foi onde você estava... onde aterrissou.
Quando voltou a olhá-lo, ele encolheu os ombros. Não sabia o lugar com precisão, porém fazia sentido imaginar que se estivesse tendo um bebê, gostaria que fosse onde tivesse mais espaço.
Xhex lhe encarou como se estivesse vendo através dele e se virou rapidamente para ver se havia chegado alguém. Não. Somente ela e ele, juntos no banheiro feminino.
O quê foi?, gesticulou ao deixar que a porta se fechasse.
– Quem encontrou você? – Quando ele fingiu estar limpando o piso, ela murmurou: – Um zelador.
Quando assentiu com a cabeça, sentiu vergonha do lugar, de sua história.
– Não sinta. – Ela se aproximou dele. – Acredite, não sou ninguém para julgá-lo. Minhas circunstâncias não foram melhores que essas. Caramba, foram indiscutivelmente piores.
Sendo uma mestiça sympatho, John poderia apenas imaginar. Afinal, na maioria das vezes, as duas raças não se misturavam de bom grado.
– Para onde você foi depois daqui?
Ele a guiou para fora do banheiro e olhou ao redor. Qhuinn estava no outro canto, olhando para as portas do terminal como se esperasse que algo cheirando a talco de bebê entrasse. Quando o cara olhou em sua direção, John balançou a cabeça; em seguida, finalizou com o transe, liberando as mentes dos humanos e os três se desmaterializaram.
Quando tomaram forma novamente, estavam no quintal do orfanato Nossa Senhora, perto do escorregador e da caixa de areia. Um vento cortante de março soprava sobre os jardins do santuário da igreja dos indesejados, os balanços rangiam e os ramos desnudos das árvores não ofereciam qualquer proteção. À frente, as linhas de quatro janelas envidraçadas que marcavam os dormitórios estavam às escuras... assim como as do refeitório e da capela.
– Humanos? – Xhex respirou fundo enquanto Qhuinn vagava pelo local e acabou sentando-se em um dos balanços. – Foi criado por seres humanos? Deus... que porcaria!
John caminhou em direção ao prédio, pensando que talvez aquilo não tivesse sido uma boa ideia. Ela parecia horrorizada...
– Você e eu temos mais em comum do que eu pensava.
Ele se deteve e ela deve ter lido sua expressão... ou suas emoções.
– Também fui criada com pessoas que não eram como eu. Contudo, considerando o que a minha outra metade é, isso pode ter sido uma benção.
Caminhando ao lado dele, olhou para seu rosto.
– Você foi mais corajoso do que pensa. – Inclinou a cabeça para o orfanato. – Quando estava aí dentro, você foi mais corajoso do que pode imaginar.
Não concordava, mas não estava disposto a discutir a fé que tinha nele. Depois de um momento, estendeu a mão, e quando ela segurou, caminharam juntos até a entrada dos fundos. Um rápido desaparecimento e estavam no interior.
Oh, droga, ainda usavam o mesmo produto para limpar o chão. Limão ácido.
E a aparência do lugar também não havia mudado. O que significava que o escritório do diretor ainda estava no corredor, na frente do edifício.
Liderando o caminho, foi até a velha porta de madeira, tirou a mochila e a pendurou na maçaneta de bronze.
– O que tem aí, afinal?
Ele ergueu a mão e esfregou os dedos contra o polegar.
– Dinheiro. Da invasão na...
Ele assentiu.
– Bom lugar para deixá-lo.
John se virou e olhou para o corredor onde se localizava o dormitório. Enquanto as recordações borbulhavam, seus pés andavam naquela direção antes de ter consciência que estava indo ao lugar onde, uma vez, havia descansado sua cabeça. Era tão estranho estar ali outra vez, lembrando-se da solidão, do medo e da persistente sensação de ser totalmente diferente, especialmente quando estava com os outros garotos da mesma idade.
Isso sempre piorou as coisas. Estar rodeado daquilo com que deveria ser igual foi o que o deixou mais alienado.
Xhex seguiu John ao longo do corredor, permanecendo um pouco atrás.
Ele caminhava silenciosamente, apoiando a partir do calcanhar até a ponta de suas botas de combate e ela seguiu seu exemplo, de forma que não eram mais do que fantasmas no silencioso corredor. Enquanto seguiam, notou que, embora a estrutura física do edifício fosse velha, tudo estava impecável, desde o linóleo muito bem encerado, passando pelas paredes bem pintadas de bege, até as janelas com telas metálicas embutidas nos vidros. Não havia poeira, nem teias de aranha, nem lascas ou rachaduras no gesso.
Isso deu uma esperança a ela de que as freiras e os administradores cuidassem das crianças com a mesma atenção que davam aos detalhes.
Quando ela e John se aproximaram de um par de portas, pôde sentir os sonhos dos garotos do outro lado, os pequenos redemoinhos de emoção borbulhavam através do sono profundo fazendo cócegas em seus receptores sympatho.
John colocou a cabeça lá dentro, e enquanto encarava os que estavam onde ele tinha estado, ela se viu franzindo a testa outra vez.
A grade emocional dele tinha... uma sombra. Uma construção paralela, mas separada da que havia captado antes, mas agora estava extremamente óbvia.
Nunca havia sentido algo assim em nenhuma outra pessoa e não conseguia explicar... nem acreditava que John tivesse consciência do que estava fazendo. Contudo, por alguma razão, aquela viagem ao seu passado havia exposto uma falha na linha da sua psique.
Assim como outras coisas. John era muito parecido com ela própria, perdido e distante, criado por outras pessoas apenas por obrigação, não por amor.
De alguma maneira, pensou que deveria dizer a ele para parar com aquela coisa toda, porque podia sentir o quanto isso custava a ele... e quanto mais iria custar. Mas estava cativada por aquilo que estava lhe mostrando.
E não só porque, como sympatho, alimentava-se das emoções dos outros.
Não, queria saber mais sobre aquele macho.
Enquanto ele observava os garotos dormindo e permanecia preso em seu passado, ela concentrou sua atenção em seu perfil forte ao ser iluminado pela luz de segurança sobre a porta.
Quando ela levantou a mão e apoiou sobre o seu ombro, John teve um sobressalto.
Queria dizer alguma coisa inteligente e amável, pronunciar alguma combinação de palavras que fossem tão profundas como ele havia feito ao trazê-la até ali. Mas a questão era que havia mais coragem naquelas revelações dele do que em qualquer coisa que Xhex já havia demonstrado a alguém antes, e num mundo cheio de egoísmo e crueldade, ele estava partindo seu maldito coração com aquilo que lhe oferecia.
Esteve tão sozinho ali, e os ecos daquela época difícil ainda o perseguiam. Ainda assim, iria seguir adiante porque havia dito a ela que o faria.
Os belos olhos azuis de John encontraram seu olhar, e quando ele inclinou a cabeça com curiosidade, ela se deu conta de que palavras eram uma bobagem em momentos assim.
Aproximando-se de seu corpo firme, ela passou um de seus braços pela sua cintura. Com a mão livre, esticou-se e segurou sua nuca, puxando-o para ela.
John hesitou, mas logo se aproximou de bom grado, envolvendo seus braços ao redor de sua cintura e enterrando o rosto em seu pescoço.
Xhex o abraçou, emprestando sua força, oferecendo um consolo que era mais do que capaz de proporcionar. Enquanto permaneciam um contra o outro, Xhex olhou por cima dos ombros dele, em direção ao quarto e às crianças nos seus travesseiros.
No silêncio, sentiu como se o passado e o presente estivessem movendo-se e se misturando, mas foi uma miragem. Não havia maneira de consolar o garoto perdido que tinha sido naquela época.
Mas ela tinha o macho adulto.
Ela o tinha em seus braços, e durante um breve momento de fantasia, imaginou que nunca, nunca o deixaria partir.
CAPÍTULO 37
Quando sentou em seu quarto na mansão Rathboone, Gregg Winn deveria se sentir melhor. Graças a algumas imagens evocativas da comovente pintura na sala, juntamente com algumas fotos da área tiradas no crepúsculo, a bronzeada Los Angeles ficou emocionada com as prévias e combinou de começarem a produzi-lo. O mordomo também se mostrou amável, assinando os documentos legais que lhe davam permissão a todos os tipos de acesso.
Stan, o cinegrafista, poderia realizar um exame proctológico na maldita casa, em todos os lugares onde conseguisse enfiar a lente.
Mas Gregg não sentia o sabor da vitória em sua boca. Não, tinha uma sensação que dizia “isso não está certo” percorrendo suas entranhas e uma dor de cabeça causada pela tensão, que percorria desde a base do crânio e todo o caminho até seu lóbulo frontal.
O problema era a câmera escondida que colocaram no corredor na noite anterior.
Não havia explicação racional para o que havia capturado.
Irônico que um “caça-fantasmas”, quando confrontado com uma figura que desaparecia no ar, precisasse de analgésicos e antiácidos. Qualquer um pensaria que ele estaria muito feliz já que, pela primeira vez, não teve que pedir para o cara da câmera falsificar as filmagens.
Quanto ao Stan? Ele apenas deu de ombros. Ah, pensou que era um fantasma, com certeza... mas isso não o perturbou nem um pouco.
Por outro lado, poderia ter sido amarrado a um conjunto de trilhos ou alguma coisa do gênero que pensaria apenas que era hora de um cochilo rápido, antes de ficar completamente chapado.
Havia vantagens em ser um maconheiro.
Quando o relógio marcou dez horas, Gregg levantou-se da frente do laptop e foi até a janela. Cara, ele se sentiria muito melhor sobre essa coisa toda se não tivesse visto aquela figura de cabelos longos perambulando pela área externa na noite anterior.
Para o inferno: melhor isso do que ver o filho da mãe no corredor fazendo um truque de alucinação do tipo “agora você vê, agora você não vê”.
Atrás dele, na cama, Holly disse:
– Está esperando para ver o coelhinho da Páscoa lá fora?
Olhou para ela e pensou que parecia ótima encostada nos travesseiros, com o nariz metido em um livro. Quando ela pegou a coisa, ficou surpreso ao ver que era um livro de Doris Kearns Goodwin sobre os Fitzgeralds e os Kennedys. Imaginou que era mais o tipo de garota que curtisse algo como a biografia de uma atriz de novela.
– Sim, principalmente o rabo de algodão – murmurou. – E eu acho que vou descer e ver se consigo achar a cesta.
– Não traga nenhum daqueles bichinhos de marshmallow. Ovos coloridos, coelhos de chocolate... tudo bem. Menos aqueles bichinhos.
– Vou fazer com que Stan venha e fique com você, ok?
Holly ergueu os olhos.
– Não preciso de babá. Especialmente se for alguém que está sujeito a acender um baseado no banheiro.
– Não quero deixá-la sozinha.
– Não estou sozinha. – Ela acenou para a câmera no canto da sala. – Apenas ligue aquilo.
Gregg se encostou no batente da janela. A forma como o cabelo dela captava a luz era muito bonita. É claro, a cor era, sem dúvida, um trabalho de um especialista em tintura... mas era o tom perfeito de louro contra sua pele.
– Você não está com medo? – disse ele, querendo saber exatamente quando foi mesmo que trocaram os papéis quanto a esse assunto.
– Com relação à noite passada? – Ela sorriu. – Não. Eu acho que aquela “sombra” é Stan pregando uma peça em nós como vingança por fazê-lo trocar de quarto. Você sabe como ele detesta deslocar bagagem. Além disso, acabei voltando para sua cama, não foi? Não que você tenha feito muita coisa com isso.
Agarrou seu blusão e aproximou-se dela. Tomando-lhe o queixo na mão, olhou em seus olhos.
– Você ainda me quer assim?
– Sempre. – A voz de Holly ficou mais baixa. – Estou amaldiçoada.
– Amaldiçoada?
– Para com isso, Gregg. – Quando ele apenas a olhou, ela jogou as mãos para o alto. – Você é uma má aposta. Está casado com seu trabalho e venderia sua alma para subir na vida. Reduz tudo e todos à sua volta a um mínimo denominador e isso lhe permite usá-los. E quando não são úteis? Você nem lembra seus nomes.
Jesus... ela era mais esperta do que pensava.
– Então por que ainda quer ter algo comigo?
– Às vezes... eu realmente não sei. – Seus olhos se voltaram para o livro, mas não iam e voltavam sobre as linhas. Eles apenas se fixaram sobre a página. – Acho que é porque eu era realmente ingênua quando te conheci, e você me deu uma chance quando mais ninguém deu e você me ensinou muitas coisas. E essa paixão inicial está durando.
– Faz soar como se fosse algo ruim.
– Pode ser. Esperava me desvencilhar disso... e depois fazer coisas como cuidar de mim e começar tudo de novo.
Ele olhou para ela, medindo seus traços perfeitos, sua pele lisa e seu corpo incrível.
Sentindo-se confuso e estranho, como se lhe devesse um pedido de desculpas, foi até a câmera no tripé e ativou-a para gravar.
– Está com seu celular aí?
Ela alcançou o bolso do roupão e tirou um BlackBerry.
– Bem aqui.
– Ligue-me se acontecer alguma coisa estranha, certo?
Holly franziu a testa.
– Você está bem?
– Por que pergunta?
Ela deu de ombros.
– É que nunca o vi tão...
– Ansioso? Sim, acho que existe alguma coisa nessa casa.
– Eu ia dizer... conectado, na verdade. É como se estivesse mesmo olhando para mim pela primeira vez.
– Eu sempre olhei para você.
– Não assim.
Gregg foi até a porta e parou.
– Posso perguntar uma coisa estranha? Você... pinta o seu cabelo?
Holly ergueu a mão até suas ondas loiras.
– Não. Eu nunca pintei.
– É realmente loiro assim?
– Você deveria saber.
Quando ela ergueu a sobrancelha, ele corou.
– Bem, as mulheres podem fazer tintura lá embaixo... você sabe.
– Bem, eu não faço.
Gregg franziu a testa e se perguntou quem diabos estava comandando seu cérebro: parecia que todos aqueles pensamentos estranhos estavam brincando em suas ondas mentais, como se talvez sua estação tivesse sido pirateada. Dando-lhe um pequeno aceno, desapareceu em direção ao corredor e olhou à esquerda e à direita, enquanto escutava com atenção. Nenhuma pegada. Nenhum rangido. Ninguém com um lençol sobre a cabeça dando uma de Gasparzinho.
Arrancando seu casaco, seguiu em direção às escadas odiando o eco de seus próprios passos. O som fazia com que se sentisse perseguido.
Olhou atrás de si. Nada além do corredor vazio.
Embaixo, no primeiro andar, olhou para as luzes que haviam sido deixadas acesas. Uma na biblioteca. Uma na entrada da frente. Uma na sala.
Esquivando-se ao virar em uma extremidade da casa, parou para observar o retrato de Rathboone. Por alguma razão, não achava mais que a pintura fosse tão romântica e comercializável.
Por alguma razão, coisa nenhuma. Desejava nunca ter chamado Holly para ver a coisa. Talvez não tivesse ficado tão marcado no subconsciente dela, de tal forma que acabou fantasiando sobre o cara ter se aproximado e tido relações sexuais com ela. Cara... a expressão no rosto dela quando estava falando de seu sonho. Não a parte do medo, mas do sexo, o sexo ressonante. Será que ela ficava assim depois de estar com ele?
Será que alguma vez parou para ver se ele a satisfez daquela maneira?
De qualquer maneira?
Abrindo a porta da frente, saiu como se estivesse em uma missão, quando, na realidade, não tinha aonde ir. Bem, a não ser para longe do computador e das imagens... e daquele cômodo silencioso com uma mulher que poderia ter mais substância do que ele imaginava.
Seria como descobrir que fantasmas existem.
Deus... o ar era limpo ali fora.
Andou para longe da casa, e quando estava a uns cem metros de distância, sobre o gramado ondulado, parou e olhou para trás. No segundo andar, viu a luz acesa em seu quarto e imaginou Holly aninhada contra os travesseiros, o livro em suas mãos longas e finas.
Continuou, indo em direção às árvores e ao riacho.
Será que os fantasmas têm alma? Ou será que eram almas em si?
Será que os executivos de televisão têm alma?
Aquilo sim era uma boa questão existencial.
Deu uma olhada devagar ao redor da propriedade, parando para dar um puxão em um musgo espanhol, sentir a casca dos carvalhos e o cheiro da terra e da neblina...
Estava voltando a casa quando a luz do terceiro andar acendeu... e uma sombra, alta e escura, passou por uma das janelas.
Gregg começou a andar rápido. Em seguida, começou a correr.
Estava voando quando saltou na varanda e atingiu a porta, abrindo-a com força, e começou a pisar firme escada acima. Não deu a mínima àquela história toda de “não vá ao terceiro andar”. E se acordasse as pessoas, tudo bem.
Quando chegou ao segundo andar, deu-se conta de que não fazia a menor ideia de que porta o levaria ao sótão. Andando rápido no corredor, concluiu que os números sobre os batentes indicavam que estava passando pelos quartos dos hóspedes.
Então, passou por uma porta onde se lia: Almoxarifado. Outra: Limpeza.
Obrigado, Jesus: SAÍDA.
Atravessou, chegou à escada dos fundos e subiu os degraus de dois em dois. Quando chegou ao topo, encontrou uma porta trancada com uma luz brilhando por baixo.
Bateu ruidosamente. E conseguiu um monte de nada.
– Quem está aí? – gritou, puxando a maçaneta. – Olá?
– Senhor! O que está fazendo?
Gregg se virou e olhou para baixo em direção ao mordomo... que ainda estava, apesar de já ter terminado o expediente, vestido com seu smoking.
Talvez não dormisse em uma cama, talvez se pendurasse num armário para que não se amassasse durante a noite.
– Quem está lá dentro? – Gregg perguntou, indicando com o dedo por cima do ombro.
– Sinto muito, senhor, mas o terceiro andar é particular.
– Por quê?
– Isso não é de seu interesse. Agora, se não se importa, vou pedir-lhe que retorne ao seu quarto.
Gregg abriu a boca para continuar a discussão, mas em seguida a fechou. Havia uma maneira melhor de lidar com isso.
– Sim. Certo. Tudo bem.
Fez um espetáculo ao pisar forte pelas escadas e passou roçando no mordomo.
Então, foi para seu quarto, como um simples hóspede de nada e entrou.
– Como foi sua caminhada? – Holly perguntou, bocejando.
– Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora? – Como, oh, digamos, um cara morto veio aqui transar com você?
– Não. Bem, a não ser alguém correndo pelo corredor. Quem era?
– Não faço ideia – Gregg resmungou, avançando pelo quarto e desligando a câmera. – Não faço a mínima ideia...
CAPÍTULO 38
John tomou forma próximo a um poste de luz. A iluminação que emanava por baixo de seu pescoço de girafa banhava a frente de um prédio que teria um visual muito melhor se estivesse na total escuridão: os tijolos de argamassa não eram vermelhos e brancos, eram marrom e marrom, e as rachaduras em várias janelas foram tampadas com fita adesiva em ziguezague e com coberturas baratas. Mesmo os degraus baixos que davam no saguão pareciam uma bagunça esburacada, como se tivessem sido atingidos por uma britadeira.
O lugar estava exatamente o mesmo desde quando ele passou a última noite lá, a não ser por um detalhe: o aviso amarelo onde se lia “Condenado” que tinha sido pregado na porta da frente.
Claro que o aviso era lido por alguns como “Bom para invadir”.
Quando Xhex saiu das sombras e se juntou a ele, fez o possível para demonstrar uma aparência calma... e sabia que estava falhando. Aquele tour pela lixolândia de sua vida pregressa era mais difícil de atravessar do que tinha imaginado, mas era como um parque de diversões. Uma vez que você entra num brinquedo e ele começa a funcionar, não tem como parar.
Quem diria que sua existência deveria ter um aviso de cuidado direcionado a mulheres grávidas e pessoas epiléticas.
Sim, não havia como parar isso; ela ficaria decepcionada com ele se terminasse antes da hora. Xhex parecia saber tudo que estava sentindo... e isso incluía uma sensação de fracasso que o rasgaria se ele desistisse ali.
– Você veio parar aqui depois do orfanato? – ela sussurrou.
Assentindo com a cabeça, levou-a a passar em frente do edifício e virar a esquina em direção ao beco. Quando chegou à saída de emergência, imaginou se a trava estaria quebrada...
A fechadura quebrou apenas com um pouco de força e entraram.
O tapete no corredor era parecido com um chão de terra batida em algum tipo de cabana, com manchas acumuladas e grudadas que entraram nas fibras e secaram. Havia garrafas vazias, embalagens amassadas e pontas de cigarros espalhados pelo corredor, e o ar cheirava a axilas de um mendigo.
Cara... mesmo um tanque cheio de aromatizador não ajudaria naquele pesadelo mal cheiroso.
Assim que Qhuinn entrou pela saída de emergência, John virou à esquerda na escada e começou a empreender a subida que o fazia querer gritar. Enquanto subiam, os ratos guinchavam e corriam para fora do caminho, e o odor do cortiço ficava mais espesso e pungente, como se fosse fermentando conforme a altitude aumentava.
Quando chegaram ao segundo andar, abriu caminho pelo corredor e parou em frente a uma grande mancha espalhada na parede. Jesus Cristo... aquela mancha de vinho ainda estava lá... Porém, porque ele estava surpreso? Como se alguma companhia de limpeza fosse até lá para limpá-la.
Passando por mais uma porta, empurrou a que fechava aquilo que tinha sido seu apartamento e... entrou...
Deus, tudo estava exatamente como tinha deixado.
Ninguém tinha morado ali desde que tinha ido embora, algo que supostamente fazia sentido. Gradualmente, as pessoas tinham deixado o local quando ele ainda era um inquilino... bem, aqueles que podiam pagar por um lugar melhor. Os que ficaram eram drogados. E os que tinham ocupado as vagas eram sem-tetos que se infiltraram rapidamente como as baratas que atravessam as janelas e portas quebradas no térreo. O ponto culminante da migração foi o aviso de evacuação: o edifício tinha sido condenado, o câncer da decadência tinha se espalhado por todo o lugar.
Quando olhou a revista de musculação que havia deixado sobre a cama de solteiro perto da janela, a realidade se contorceu sobre ele, arrastando-o para trás, em direção ao passado, mesmo com suas botas de combate firmemente plantadas no aqui e no agora.
Claro, quando esticou o braço e abriu a geladeira desativada... havia latas de proteína.
Sim, pois mesmo com fome, os desabrigados não tomariam aquela porcaria.
Xhex andou por ali e então parou na janela pela qual ele ficou olhando tantas noites.
– Queria ser diferente do que era.
Ele assentiu.
– Quantos anos você tinha quando foi encontrado? – Quando ele mostrou dois dedos duas vezes, os olhos dela se arregalaram. – Vinte e dois? E não fazia nem ideia de que era um...
John negou com a cabeça e avançou para pegar a revista. Folheou as páginas. Percebeu que havia se tornado aquilo que sempre desejou: um filho da mãe enorme e durão. Quem diria? Tinha sido um verdadeiro magricela, à mercê de tantas...
Jogando a revista sobre a cama outra vez, interrompeu aquela linha de pensamento com força e rapidez. Estava disposto a mostrar quase tudo. Mas não aquilo. Aquela parte... nunca.
Não iriam passar no primeiro edifício onde morou sozinho e ela não descobriria o porquê de ter se mudado para aquele lugar.
– Quem o trouxe para o nosso mundo?
Tohrment, expressou com os lábios.
– Quantos anos tinha quando deixou o orfanato? – Ele sinalizou o número um e depois um seis. – Dezesseis? E veio para cá? Direto do Nossa Senhora?
John assentiu e foi em direção a um armário em cima da pia. Abrindo-o, viu a única coisa que esperava encontrar. Seu nome. E a data.
Afastou-se para que Xhex pudesse ver o que tinha escrito. Lembrava-se de quando fez aquilo, tão rápido, com tanta pressa. Tohr estava esperando na calçada e ele correu para pegar sua bicicleta. Rabiscou aquelas marcas como uma prova... não sabia do quê.
– Não tinha ninguém – ela murmurou, olhando para o interior do armário. – Eu era assim. Minha mãe morreu no parto e fui criada por uma família até que legal... pessoas com quem eu sabia que não tinha nada em comum. Deixei-os logo e nunca voltei, pois eu não pertencia àquele lugar... e alguma coisa estava gritando dentro de mim, dizendo que era melhor que eu partisse. Não fazia a mínima ideia que era a parte sympatho e não havia nada no mundo para mim... mas eu tinha que partir. Felizmente, encontrei Rehvenge e ele me mostrou o que eu era. – Ela olhou por cima do ombro. – Pequenos acasos da vida... cara, eles são mortais, não são? Se Tohr não tivesse encontrado você...
Ele teria passado por sua transição e morrido no meio do processo, pois não tinha o sangue necessário para sobreviver.
Por alguma razão, não queria pensar nisso. Ou no fato de que ele e Xhex tinham um trecho na vida em comum, em que estiveram perdidos.
Vamos, assinalou com a boca. Vamos para a próxima parada.
Por entre o milharal, Lash dirigiu ao longo da trilha de terra em direção à fazenda. Providenciou uma proteção psíquica no local para que o Ômega e seu novo brinquedinho não conseguissem rastreá-lo. Também estava usando um boné de beisebol, uma capa com a gola levantada e um par de luvas.
Sentia-se como o Homem Invisível.
Droga, desejava ser invisível. Odiava olhar para si, e depois de algumas horas esperando para ver o que mais cairia em sua descida ao mundo dos mortos-vivos, não tinha certeza se estava aliviado da mudança parecer ter se estabilizado.
Tinha apenas metade do corpo derretido naquele ponto: os músculos ainda estavam pendurados em seus ossos.
A menos de um quilômetro de distância de seu destino, estacionou o Mercedes próximo a um conjunto de pinheiros e saiu. Como todos os seus poderes foram usados para manter-se disfarçado, não havia mais energia alguma dentro dele para se desmaterializar.
Então, foi uma caminhada bem longa até aquele maldito lugar e ficou ressentido de ter de se esforçar daquela maneira apenas para mover seu corpo.
Mas quando chegou até a casa de madeira, foi atingido por uma onda de energia. Havia três carros ridículos no estacionamento – todos os quais ele reconheceu. Os carros eram de propriedade da Sociedade Redutora.
E, veja só, o lugar estava bombando. Havia uns vinte caras dentro e uma grande festa acontecendo: era possível ver barris e garrafas de bebidas através das janelas, e ao redor do lugar havia filhos da mãe acendendo cachimbos e cheirando só Deus sabe o quê.
Onde estava o bastardo?
Ah... que noção de tempo perfeita. Um quarto carro chegou e não era como os outros três. A pintura chamativa do maldito carro esportivo era provavelmente tão cara quanto o trabalho de turbiná-lo, e as rodas tinham um brilho néon que fazia parecer que a coisa estava aterrissando. O garoto saiu de trás do volante e, veja só, estava todo descolado também: usava uma calça jeans nova, uma jaqueta de couro de grife e tinha acendido seu cigarro com alguma coisa de ouro.
Bem, aquilo seria o teste.
Se o garoto entrasse e apenas curtisse a festa, Lash estaria errado quanto à inteligência do filho da mãe... e o Ômega teria conseguido para si nada além de um pouco de diversão. Mas se Lash estivesse certo e o desgraçado fizesse mais do que isso, a festa se tornaria bem interessante.
Lash puxou a gola para mais perto da carne viva que era seu pescoço e tentou ignorar o quão ciumento estava. Já tinha estado na doce situação daquele garoto. Aproveitando o momento “eu sou tão especial” e achando que aquele brilho duraria para sempre. Mas tanto faz. Se o Ômega estava disposto a descartar alguém de sua própria carne e sangue, aquele lixo ex-humano não duraria muito.
Quando um dos bêbados lá dentro olhou na direção de Lash, pensou que poderia estar se arriscando, mas não se importava. Não tinha nada a perder e não estava muito ansioso para passar o resto de sua vida como um bife de carne seca animado.
Feio, fraco e vazando não era nada sexy.
Quando o vento frio fez seus dentes tremerem, pensou em Xhex e se aqueceu com as memórias. De alguma maneira, não conseguia acreditar que o tempo passado com ela tinha sido há poucos dias. Parecia ter se passado anos desde a última vez que a teve sob seu corpo. Pelo amor de Deus, encontrar aquela primeira lesão em seu pulso tinha sido o começo do fim... e ele simplesmente não sabia disso na época.
Apenas um arranhão.
Sim, certo.
Erguendo a mão para empurrar seu cabelo, bateu na aba do boné de beisebol e lembrou-se que não tinha mais nada ali com que se preocupar. Tudo se resumia a uma cúpula de osso.
Se tivesse mais energia, teria começado um discurso mental sobre a injustiça e a crueldade de seu destino decadente. A vida não deveria ter sido assim. Não deveria ter sido excluído. Sempre foi o foco das atenções, o líder, o especial.
Por algum motivo estúpido, pensou em John Matthew. Quando o filho da mãe ingressou no programa de formação de soldados, era apenas um cara ainda na fase de pré-transição, particularmente franzino, com nada além de um nome na Irmandade e uma cicatriz de estrela em seu peito. Era o alvo perfeito para se hostilizar e Lash tinha pegado pesado com o garoto.
Cara, naquela época não fazia a menor ideia de como era ser o estranho que ficava de fora. Como isso fazia com que se sentisse um lixo inútil. Como era olhar para as outras pessoas que faziam isso com você e estar disposto a dar qualquer coisa para estar com elas.
Ainda bem que não tinha a menor ideia de como era. Ou teria pensado duas vezes antes de desprezar o filho da mãe.
E agora, encostado na casca fria e desgrenhada de um carvalho, ao assistir através das janelas da fazenda como outro garoto de ouro vivia a sua vida, sentiu que seus planos mudavam.
Iria acabar com aquele idiota, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Era ainda mais importante que Xhex.
Sua motivação não era apenas o fato de que aquele cara o marcou para morrer. Acontece que queria mandar uma mensagem para seu pai. Afinal, ele era uma maçã podre que não caiu muito longe da árvore – e teria sua vingança custe o que custasse.
CAPÍTULO 39
– Aquela é a antiga casa de Bella – Xhex disse quando tomou forma num campo ao lado de John Matthew.
Quando ele assentiu, ela olhou ao redor, observando o campo. A casa branca de Bella com cercas em volta e uma chaminé vermelha produzia uma pintura perfeita à luz do luar e parecia uma pena que o lugar tivesse sido deixado com nada além das luzes de segurança externas ativadas.
O fato de que na garagem anexa havia um Ford F-150 estacionado e as janelas estarem brilhando fazia com que a sensação de abandono fosse ainda mais real.
– Bella foi a primeira que o encontrou?
John fez um movimento ambíguo com a mão e apontou para outra casinha na pista. Quando começou a gesticular e se deteve em seguida, sua frustração com a barreira de comunicação era óbvia.
– Alguém naquela casa... você os conhecia e eles o colocaram em contato com Bella?
Ele assentiu, enfiou a mão no casaco e tirou o que parecia ser uma pulseira artesanal. Pegando a coisa da mão dele, viu que alguns símbolos no Antigo Idioma haviam sido gravados do lado de dentro.
– Tehrror. – Quando ele tocou o peito, ela disse: – Seu nome? Mas como você sabia? – Ele tocou a cabeça e deu de ombros.
– Simplesmente se lembrou. – Ela se concentrou na casa menor. Havia uma piscina nos fundos e sentiu que suas memórias daquele local eram nítidas, pois cada vez que John passava os olhos sobre o terreno, sua grade emocional acendia como um circuito recebendo eletricidade.
Esteve ali pela primeira vez para proteger alguém. Bella não foi o motivo.
Mary, ela pensou. Mary, a shellan de Rhage. Mas como eles se encontraram?
Estranho... aquilo era uma parede em branco. John estava excluindo Xhex daquela parte.
– Bella entrou em contato com a Irmandade e Tohrment veio até você.
Quando assentiu outra vez, ela devolveu o bracelete, e enquanto passava os dedos pelos símbolos, Xhex ficou maravilhada com a relatividade do tempo. Desde que haviam deixado a mansão, havia passado apenas uma hora, mas sentiu como se tivessem passado um ano juntos.
Deus, ele deu mais do que esperava... e agora ela sabia exatamente porque tinha sido tão prestativo quando ela ficou fora de si na sala de cirurgia.
Ele suportou um verdadeiro inferno. Não viveu sua infância, foi arrastado por ela.
A questão era: em primeiro lugar, como ele foi parar no mundo humano? Onde estavam seus pais? O rei tinha sido seu ghia no período pré-transição... isso era o que seus documentos diziam quando foi pela primeira vez ao ZeroSum. Concluiu que sua mãe tinha morrido e a visita ao terminal rodoviário não desmentiu isso... mas havia buracos nessa história. Alguns dos quais ela tinha a impressão de serem intencionais, outros que ele não tinha sido capaz de preencher.
Franzindo a testa, sentiu que seu pai ainda estava muito presente com ele e, ainda assim, parecia que não tinha sequer conhecido o cara.
– Vai me levar a um último lugar? – ela murmurou.
John pareceu dar uma última olhada no local e então desapareceu, e ela o seguiu, graças a todo o sangue dele que havia em seu corpo.
Quando tomou forma outra vez diante de uma casa muito moderna, a tristeza dele o dominou de tal maneira que sua superestrutura emocional começou a desabar. Contudo, com muita força de vontade, conseguiu deter a desintegração a tempo, antes que não pudesse ser corrigida.
Quando a grade emocional desmorona, você está ferrado. Perdido em meio aos seus demônios internos.
O que a fez pensar em Murhder. No dia em que ele descobriu a verdade sobre ela. Podia lembrar-se exatamente de como sua estrutura emocional apareceu diante dela: as vigas de aço que eram a base da saúde mental foram reduzidas a nada além de uma confusão de destroços.
Xhex foi a única que não ficou surpresa quando ele enlouqueceu e desapareceu.
Assentindo para ela, John andou em direção à porta principal da frente, colocou uma chave e abriu. Quando uma corrente de ar veio de encontro a eles, ela pôde sentir o cheiro da poeira e da umidade, indicando que aquela era outra construção vazia. Mas não havia nada de podre dentro, ao contrário do antigo edifício onde John morava.
Quando ele acendeu a luz do hall de entrada, ela quase engasgou. Na parede, à esquerda da porta, havia um arabesco no Antigo Idioma que proclamava que aquela era a casa do Irmão Tohrment e de sua shellan, Wellesandra.
O que explicava porque doía tanto em John estar ali. O hellren de Wellesandra não havia sido o único a salvar o garoto na pré-transição.
A fêmea tinha sido importante para John. E muito.
John seguiu pelo corredor e acendeu mais luzes enquanto entravam, suas emoções eram uma combinação de afeto e uma forte dor. Quando foram para uma cozinha espetacular, Xhex se dirigiu à mesa do local.
Ele tinha sentado ali, pensou, colocando as mãos no encosto de uma das cadeiras... em sua primeira noite na casa, tinha sentado ali.
– Comida mexicana – ela murmurou. – Estava com tanto medo de ofendê-los. Mas, então... Wellesandra...
Como um cão de caça seguindo as pistas no caminho, Xhex rastreou o que sentia de suas memórias.
– Wellesandra serviu-lhe arroz com gengibre. E... pudim. Sentiu-se satisfeito pela primeira vez e seu estômago não doía e estava... estava tão grato que não sabia como lidar com isso.
Quando olhou para John, seu rosto estava pálido e os olhos brilhavam e ela soube que estava de volta ao seu pequeno corpo, sentado à mesa, todo encolhido... oprimido pelo primeiro ato de bondade que alguém lhe havia feito na vida.
O som de um passo no corredor fez com que ela erguesse a cabeça e percebeu que Qhuinn ainda estava com eles, o cara vagava por ali, seu mau humor era uma sombra tangível ao redor.
Bem, ele não teria que acompanhá-los por muito mais tempo. Aquele era o fim da estrada, o capítulo final da história de John que a deixou a par dos acontecimentos. E, infelizmente, isso significava que tinha que fazer o certo e apropriado e voltar à mansão... onde, sem dúvida, John a faria comer mais, tentando alimentá-la outra vez.
Porém, não queria retornar, ainda não. Em sua mente, tinha decidido tirar uma noite de folga, então aquelas eram as últimas horas antes de iniciar a trilha da vingança... e perder sua doce conexão com John, aquela compreensão que agora tinham um do outro.
Pois ela não iria enganar a si mesma: a triste realidade era que o poderoso laço que os unia era também tão frágil que não tinha dúvida que iria se romper, assim que voltassem a se focar no presente ao invés do passado.
– Qhuinn, pode nos dar licença, por favor?
Os olhos desiguais do cara encararam John e uma série de gestos com as mãos foi trocada entre eles.
– Vá se ferrar – Qhuinn disse antes de virar as costas e marchar em direção à porta da frente.
Após a batida da porta terminar de ecoar pela casa, ela olhou para John.
– Onde você dormia?
Quando indicou um corredor com a mão, ela foi com ele passando por muitos quartos onde havia equipamentos modernos e arte antiga. A combinação fazia o lugar parecer como um museu de arte onde se podia morar e ela o explorou um pouco, colocando a cabeça nas portas abertas das salas e quartos.
Para chegar ao quarto de John precisavam percorrer todo o caminho até o outro lado da casa, e enquanto caminhava até o local, só podia imaginar o choque cultural. Da imundície ao esplendor, vivenciado com uma simples mudança de endereço: ao invés daquela porcaria de apartamento, aquele era um paraíso azul marinho com móveis elegantes, um banheiro de mármore e um maravilhoso tapete.
Além disso, tinha uma porta de vidro corrediça que conduzia a uma varanda particular.
John aproximou-se, abriu o guarda-roupa e ela observou sobre seu forte e pesado braço as pequenas roupas penduradas nos cabides de madeira.
Enquanto ele olhava para as camisetas e calças, os ombros dele estavam tensos e uma de suas mãos estava fechada. Sentia muito sobre algo que havia feito ou pelo jeito que havia agido e isso não tinha nada a ver com ela.
Tohr. Era sobre Tohr.
Lamentava o jeito como as coisas estavam entre eles ultimamente.
– Converse com ele – disse ela baixinho. – Diga o que está acontecendo. Você dois vão se sentir bem melhor.
John concordou e ela pôde sentir nitidamente a determinação dele.
Deus, não tinha certeza sobre como aquilo acontecia – bem, a mecânica era bem simples, mas o que a surpreendia era o fato de que mais uma vez viu-se aproximando-se dele e abraçando-o. Deitou seu rosto entre seus ombros e ficou grata quando sentiu as mãos dele cobrindo as dela.
Ele se comunicava de tantas maneiras diferentes, não é? E, às vezes, um toque é melhor do que palavras para dizer o que se quer.
No silêncio, ela o guiou em direção à cama e os dois sentaram.
Quando ela simplesmente o encarou, ele articulou: O que foi?
– Você tem certeza que me quer indo até lá? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela olhou diretamente em seus olhos. – Sei que deixou algo de fora. Posso sentir. Há um buraco entre o orfanato e o edifício de apartamentos.
Nenhum músculo facial dele se moveu ou sequer se contorceu e também não piscou. Mas a expressão de um macho que era bom em esconder suas emoções era irrelevante. Tinha plena noção do que sabia sobre ele.
– Está tudo bem, não vou perguntar. Não vou pressionar.
O leve rubor no rosto dele era algo que recordaria muito tempo depois de partir... e pensar em deixá-lo foi o que a levou a colocar a ponta de seus dedos nos lábios dele.
Quando recuou surpreso, ela se concentrou em sua boca.
– Quero te dar algo meu – disse com uma voz baixa e profunda. – No entanto, não se trata de ficarmos quites. É apenas porque eu quero.
Afinal, seria ótimo se ela pudesse levá-lo aos lugares importantes de sua vida e guiá-lo através dela, mas saber mais a respeito de seu passado faria sua missão suicida mais difícil para ele: independente do que sentia por John, iria atrás de seu sequestrador e não era tola em se enganar com esperanças de sobreviver a isso.
Lash tinha seus truques.
Truques perversos com os quais fazia coisas ruins.
Lembranças do bastardo voltaram a ela, lembranças horríveis que fizeram suas coxas tremerem, memórias feias que, todavia, serviam para empurrá-la em direção a algo que talvez não estivesse preparada. Mas Xhex não iria para o túmulo tendo Lash como a última pessoa com quem transou.
Não quando ela tinha o único macho que realmente amava na sua frente.
– Quero ficar com você – disse com voz rouca.
Os olhos azuis chocados de John percorreram o rosto dela em busca de sinais de que tinha entendido algo errado. E então uma quente e forte luxúria rompeu todas as suas emoções, sem deixar nada para trás, a não ser um desejo enorme de um macho de sangue puro.
Fez o melhor que pôde para derrotar o instinto e manter alguma aparência de racionalidade, o que aumentou seu crédito. Mas isso significava apenas que seria ela quem terminaria a batalha entre razão e emoção... ao colocar seus lábios contra os dele.
Oh... Deus, os lábios dele eram tão macios.
Apesar do estrondo que sentiu no sangue dele, John se manteve controlado. Mesmo quando ela deslizou sua língua na boca dele. E aquela repressão tornou as coisas mais fáceis para ela, enquanto sua mente ia e vinha entre o que estava fazendo agora...
E o que havia sido feito com ela dias atrás.
Para ajudá-la a se concentrar, Xhex procurou pelo peito dele e correu as mãos pelos músculos sobre o coração. Deitando-o de costas sobre o colchão, sentiu o odor de vinculação que exalava por ela. Tinha um cheiro apimentado único e muito distante de tudo o que se poderia imaginar do cheiro enjoativo de um redutor.
Aquilo a ajudou a separar essa experiência de outras mais recentes que teve.
O beijo começou como uma exploração, mas não continuou assim. John aproximou-se, envolvendo seu corpo forte no dela, sua grande perna circundando-a até que ela estivesse em baixo. Ao mesmo tempo, seus braços a envolveram, trazendo-a com firmeza para junto dele.
John se movia tão devagar quanto ela.
E ela estava bem até que a mão dele escorregou sobre seu peito.
O contato a assustou, tirando-a daquele quarto e daquela cama, levando-a para longe de John e jogando-a de volta no inferno.
Lutando contra a fuga de sua mente, tentou manter-se presa ao presente, a John. Mas quando o polegar dele acariciou seu mamilo, teve que forçar seu corpo a ficar parado. Lash gostava de mantê-la por baixo e de prolongar o inevitável produzindo arranhões e machucados, pois ele adorava as preliminares mais até do que seus próprios orgasmos.
Jogada psicótica inteligente da parte dele. Ela preferia, infinitamente, acabar logo com...
John empurrou sua ereção contra o quadril dela.
Pronto.
Seu autocontrole alcançou o limite e quebrou-se ao meio: com um impulso, o corpo dela fugiu do contato por vontade própria, rompendo a comunhão com o corpo dele, estragando o momento.
Quando saltou da cama, Xhex pôde sentir o horror de John, mas estava muito ocupada cambaleando por causa de seu medo para ser capaz de explicar. Andando, tentando desesperadamente se agarrar à realidade, ela respirou fundo, não de paixão, mas de pânico.
Bem, aquela sensação era mesmo uma porcaria.
Lash desgraçado... iria matá-lo por isso. Não pelo que estava passando, mas pela posição em que ela havia colocado John.
– Sinto muito – ela gemeu. – Não deveria ter começado isso. Sinto muito mesmo.
Ela parou na frente da penteadeira e olhou para o espelho pendurado na parede. John tinha se levantado enquanto ela ia e vinha e parou em frente à porta de correr de vidro, os braços cruzados sobre o peito, a mandíbula apertada enquanto olhava para a noite lá fora.
– John... não é você. Eu juro.
Quando balançou a cabeça, não olhou para ela.
Esfregando o próprio rosto, o silêncio entre eles aumentava a vontade de ela fugir. Simplesmente não conseguia lidar com nada disso, com nada do que estava sentindo e com o que havia feito com John, nem com nada daquela porcaria com Lash.
Seus olhos alcançaram a porta e seus músculos ficaram tensos para sair dali. O que era comum em sua cartilha. Ao longo de toda sua vida, ela sempre confiou em sua capacidade de desaparecer, sem deixar para trás nenhuma explicação, nenhum vestígio, nada além de ar.
Serviu-lhe bem como assassina.
– John...
A cabeça dele se moveu e seu olhar queimava com tristeza quando ela o encontrou no reflexo do vidro.
Enquanto ele esperava que ela dissesse alguma coisa, Xhex pensou em dizer que era melhor que ela fosse embora. Deveria dar outra desculpa idiota e se desmaterializar para fora do quarto... para fora da vida dele.
Mas tudo que conseguiu dizer foi seu nome.
Ele virou o rosto para ela e articulou com a boca: “Sinto muito. Vá. Está tudo bem. Vá.”
No entanto, ela não conseguia se mover. E a boca dela se abriu. Quando percebeu o que estava no fundo de sua garganta, não conseguia acreditar que iria colocar aquilo em palavras. A revelação ia de encontro a tudo que ela sabia sobre si mesma.
Pelo amor de Deus, ela realmente ia fazer isso?
– John... eu... eu fui...
Mudando o foco de seus olhos, ela mediu o próprio reflexo. Sua face de ossos pronunciados e a palidez eram resultado de muito mais do que apenas falta de sono e alimentação.
Com um súbito lampejo de raiva, ela desabafou:
– Lash não era impotente, ok? Ele não era... impotente...
A temperatura no quarto caiu tanto e tão rápido que sua respiração começou a produzir nuvens.
E o que ela viu no espelho a fez cambalear e dar um passo para trás, afastando-se de John: os olhos azuis dele brilharam com uma luz profana e seu lábio superior estava contraído mostrando as presas tão nítidas que pareciam punhais.
Todos os objetos no quarto começaram a vibrar: os abajures nas mesas de cabeceira, as roupas nos cabides, o espelho na parede. O ruído coletivo cresceu até se tornar um rugido e aquilo a fez segurar na cômoda ou correria o risco de cair.
O ar estava vivo. Sobrecarregado. Elétrico.
Perigoso.
E John era o centro dessa energia furiosa, as mãos fechadas, tão apertadas que chegavam a tremer, as coxas dele ficaram tensas em seus ossos ao assumir a posição de combate.
A boca de John se abriu ao máximo quando jogou a cabeça para frente... e soltou um grito de guerra...
O som explodiu tudo ao redor, tão alto que ela teve que cobrir os ouvidos, tão poderoso que sentiu uma explosão contra seu rosto.
Por um momento, achou que ele havia encontrado sua voz – só que não eram suas cordas vocais que estavam fazendo aquele barulho estridente.
Os vidros das portas explodiram atrás dele, quebrando-se em milhares de cacos que se espalharam por todo o local, os fragmentos quicaram na ardósia e capturaram a luz como gotas de chuva...
Ou como lágrimas.
CAPÍTULO 40
Blay não fazia ideia do que Saxton tinha acabado de lhe dar.
Bem, sim, era um charuto e, sim, era caro, mas o nome não se prendeu em sua mente.
– Acho que você vai gostar – disse o macho, reclinando-se para trás em sua poltrona de couro e acendendo seu próprio charuto. – São suaves. Marcantes, mas suaves.
Blay acendeu a chama de seu isqueiro Montblanc e inclinou-se para tragar. Ao reter a fumaça, pôde sentir a atenção de Saxton focada nele.
Outra vez.
Não estava acostumado com tanta atenção, então deixou que seus olhos vagassem pelo local: teto abobadado verde escuro, brilhantes paredes pretas, cadeiras de couro vermelho escuro e cabines onde as pessoas se sentavam às mesas. Vários humanos com cinzeiros junto aos seus cotovelos.
Resumindo: não havia distrações que pudessem ser comparadas aos olhos de Saxton ou à voz ou à colônia ou...
– Então, diga-me – o macho disse, exalando uma nuvem azul perfeita, que, momentaneamente, eclipsou sua feição. – Colocou o seu risca de giz antes ou depois que liguei?
– Antes.
– Sabia que você tinha estilo.
– Sabia?
– Sim. – Saxton olhou fixamente através da pequena mesa de mogno que os separava. – Ou eu não o teria chamado para jantar.
A refeição que compartilharam no Restaurante do Sal foi... realmente adorável. Comeram na cozinha, em uma mesa privada, e iAm lhes preparou um menu especial de antepastos e massas, acompanhado por café com leite e tiramisu de sobremesa. O vinho havia sido branco para o primeiro prato e tinto para o segundo.
Os temas da conversa foram neutros, mas interessantes... e, afinal, isso não importava muito. Se ficariam juntos ou não era o verdadeiro objetivo de cada palavra, olhar e gestos corporais.
Então... era mesmo um encontro, Blay pensou. Uma negociação implícita, disfarçada numa conversa sobre livros e músicas preferidas.
Não era de admirar que Qhuinn fosse direto para o sexo. O cara não tinha paciência para esse tipo de sutileza. Além disso, não gostava de ler e a música que pulsava em seus ouvidos era metalcore que só os loucos ou surdos poderiam suportar.
Um garçom vestido de preto aproximou-se.
– Posso trazer algo para beberem?
Saxton rodou seu charuto entre os dedos indicador e polegar.
– Vinho do Porto, safra de 1945, por favor.
– Excelente escolha.
Os olhos de Saxton se voltaram para Blay.
– Eu sei.
Blay olhou para a janela em frente ao local onde estavam sentados e se perguntou se nunca deixaria de corar perante o cara.
– Está chovendo.
– Está?
Deus que voz. As palavras de Saxton eram tão suaves e deliciosas quanto o charuto.
Blay mexeu as pernas, cruzando-as no joelho.
Enquanto vasculhava seu cérebro a procura de algo que quebrasse o silêncio, parecia que o comentário ridículo sobre o tempo era a observação mais inspirada que faria. O fato era que o final do encontro estava próximo e, até então, só sabia que ele e Saxton lamentavam a perda de Dominick Dunne e que eram fãs de Miles Davis. Não sabia o que iria fazer quando chegasse a hora de seguir caminhos distintos.
Seria o caso de: Ligue para sairmos outra vez? Ou o infinitamente mais complicado, confuso e agradável: Sim, com certeza, irei agora até sua casa para apreciar suas gravuras.
Ao que sua consciência o obrigou a acrescentar: mesmo que eu nunca tenha feito isso com um cara antes e apesar do fato de que qualquer outra pessoa seria apenas um substituto para Qhuinn.
– Quando foi a última vez que esteve num encontro, Blaylock?
– Eu... – Blay deu uma longa tragada no charuto. – Faz um bom tempo.
– O que tem feito para você mesmo? Só trabalho, sem diversão?
– Algo assim.
Ok, amor não correspondido não se enquadrava exatamente em nenhuma dessas categorias, apesar de “sem diversão” ser totalmente certo.
Saxton sorriu um pouco.
– Fiquei feliz por ter me ligado. E um pouco surpreso.
– Por quê?
– Meu primo tem uma certa... reação territorial em relação a você.
Blay girou seu charuto e olhou para a ponta incandescente.
– Acho que você supervaloriza o interesse dele.
– E eu acho que está me dizendo educadamente para que eu cuide de assuntos que me dizem respeito, não está?
– Não há qualquer assunto para tratar sobre isso. – Blay sorriu para o garçom que colocou dois cálices na mesa redonda e se afastou. – Pode acreditar.
– Sabe? Qhuinn tem uma personalidade interessante. – Saxton estendeu a mão com elegância e pegou sua taça de vinho. – Na verdade, ele é um dos meus primos favoritos. Seu inconformismo é admirável e sobreviveu a coisas que iriam esmagar um macho fraco. Contudo, não sei se estar apaixonado por ele seria fácil.
Blay não mordeu a isca.
– Então, você vem sempre aqui?
Saxton riu, seus olhos pálidos brilhando.
– Ok, esse assunto é proibido. – Olhou em volta, franzindo a testa. – Na verdade, não tenho saído muito ultimamente. Muito trabalho também.
– Você disse que é advogado da Antiga Lei. Deve ser interessante.
– Eu me especializei em heranças e espólios, então o fato do negócio estar crescendo é algo para se lamentar. O Fade tornou-se cheio de inocentes desde o verão passado...
Na cabine ao lado, um monte de valentões com relógios de ouro e ternos de seda riam como bêbados arrogantes que eram – a tal ponto que o mais alto deles acabou encostando-se com força em sua cadeira e batendo em Saxton.
O que foi um problema, pois provou que Saxton era um cavalheiro, mas não um covarde.
– Desculpe, mas se importaria de se afastar um pouco?
O desalinhado humano virou-se, sua barriga protuberante sobre o cinto parecia que ia explodir por todo o lugar.
– Sim. Eu me importo. – Seus pálidos olhos lacrimejantes se estreitaram. – Tipos como você não pertencem a este local, de jeito nenhum.
E ele não estava falando sobre o fato de serem vampiros.
Quando Blay tomou seu vinho, o caro líquido teve gosto de vinagre... embora o sabor amargo em sua boca não fosse porque a bebida estivesse ruim.
Um momento depois, o cara bateu as costas contra o assento com tanta força que Saxton quase derramou sua bebida.
– Mas que inferno! – o macho murmurou, pegando seu guardanapo.
O idiota humano inclinou-se em seu espaço outra vez.
– Estamos interrompendo os dois lindos rapazes chuparem aquelas coisas duras?
Saxton sorriu com força.
– Definitivamente está interrompendo.
– Descuuulpe. – O humano de repente levantou seu dedo mínimo acima de seu charuto. – Não quis ofendê-lo.
– Vamos – Blay disse enquanto se inclinava e apagava seu charuto.
– Posso conseguir outra mesa.
– Vão embora juntos, rapazes? – disse o Sr. Boca Grande arrastando as palavras. – Vão a uma festa onde há todos os tipos de charutos? Talvez nós os sigamos, apenas para ter certeza que chegarão bem lá.
Blay manteve os olhos centrados em Saxton.
– Está ficando tarde, de qualquer maneira.
– O que significa que é apenas o meio do nosso dia.
Blay levantou-se e colocou a mão no bolso, mas Saxton gesticulou e o impediu de sacar a carteira.
– Não, permita-me.
Outra rodada de comentários partindo do engraçadinho carregou ainda mais o ar e deixou Blay rangendo os dentes. Felizmente, não demorou muito para Saxton pagar o garçom e, em seguida, seguiram em direção à porta.
Do lado de fora, o ar frio da noite era um bálsamo aos sentidos e Blay respirou profundamente.
– Esse lugar não é sempre assim – Saxton murmurou. – Caso contrário, nunca o teria levado até lá.
– Está tudo bem.
Quando Blay começou a caminhar, sentiu Saxton colocar-se ao seu lado.
Quando chegaram à entrada de um beco, pararam para deixar um carro virar à esquerda na Rua Commerce.
– Então, como está se sentindo sobre tudo isso?
Blay encarou o outro macho e decidiu que a vida era muito curta para fingir que não sabia exatamente o que esse “isso” significava.
– Para ser honesto, sinto-me estranho.
– E isso não se deve àqueles idiotas.
– Eu menti. Nunca estive num encontro antes. – A confissão fez Saxton levantar uma sobrancelha e Blay teve que rir. – Sim, sou um ator de verdade.
O ar suave de Saxton desapareceu, e por trás de seus olhos, um calor verdadeiro começou a brilhar.
– Bem, estou feliz em ser o seu primeiro.
Blay encontrou o olhar do cara.
– Como sabia que eu era gay?
– Não sabia. Apenas esperava que sim.
Blay riu de novo.
– Bem, agora sabe. – Após uma pausa, estendeu a mão. – Obrigado por esta noite.
Quando Saxton tocou sua mão, um frisson de puro calor queimou entre eles.
– Sabe que encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
Blay descobriu que era incapaz de soltar a mão do macho.
– Ah... verdade?
Saxton assentiu.
– Um beijo é o mais comum.
Blay focou nos lábios do macho e de repente se perguntou que gosto teria.
– Venha aqui – Saxton murmurou, puxando-o pela mão e atraindo-o a um refúgio no beco.
Blay seguiu-o na escuridão, guiado por um feitiço erótico que não tinha interesse nenhum em romper. Quando chegaram a um lugar mais oculto entre as fachadas dos edifícios, sentiu o tórax do macho subir contra o seu e, em seguida, seus quadris fundiram-se.
Então, soube exatamente o quanto Saxton estava excitado.
E Saxton sabia que ele também estava.
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Blay não queria pensar em Qhuinn agora e balançou a cabeça para limpar a imagem. Quando isso não funcionou e os olhos azul e verde do cara persistiram em sua mente, fez a única coisa que garantiria parar de pensar em sua perdição.
Venceu a distância entre a boca de Saxton e a sua.
Qhuinn sabia que deveria ter ido direto para casa. Depois que foi sumariamente dispensado da casa de Tohr, sem dúvida para que John e Xhex desfrutassem um pouco de conversa na horizontal, ele deveria ter voltado para a mansão e se consolar com a amigável tequila e ocupar-se com sua maldita vida.
Mas nããão. Ele se materializou na rua do único bar de charuto em Caldwell e assistiu – na chuva, como um perdedor – quando Blay e Saxton sentaram-se em uma mesa bem em frente à janela. Ele teve uma visão completa de como seu primo estava olhando para seu melhor amigo com uma luxúria elegante e, então, alguns idiotas fizeram gracinhas até que os dois deixaram os charutos no meio e as taças de vinho inacabadas.
Não querendo ser pego escondido entre as sombras, Qhuinn teve que se desmaterializar no beco ao lado... que logo se transformou no típico “lugar errado, na hora errada”.
A voz de Saxton pairou sobre a brisa fria.
– Sabe que os encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
– Ah... verdade?
– Um beijo é o mais comum.
Qhuinn sentiu as mãos se fecharem com força, e por uma fração de segundo, pensou realmente em sair de trás do contêiner de lixo em que estava escondido. Mas para fazer o quê? Colocar-se entre os dois dizendo “parem com isso rapazes”?
Bem, sim. Exatamente.
– Venha aqui – Saxton murmurou.
Droga, o bastardo soava como um operador de tele-sexo, todo rouco e sensual. E... oh, cara, Blay estava indo com ele, seguindo o cara na escuridão.
Havia momentos em que o incrível senso de audição de um vampiro era uma verdadeira maldição. E, claro... não ajudava se estivesse espiando perto de uma lata de lixo.
Quando os dois foram ao encontro um do outro, a boca de Qhuinn se abriu. Mas não porque estava chocado e não porque quisesse entrar em ação.
Simplesmente não conseguia respirar. Era como se suas costelas tivessem congelado junto com seu coração.
Não... não, maldição, não...
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Sim, já, Qhuinn queria gritar...
Blay negou com a cabeça. Negou mesmo.
Qhuinn fechou os olhos com força e obrigou-se a se acalmar o suficiente para conseguir desmaterializar-se. Quando tomou forma em frente à mansão da Irmandade, tremia como um filho da mãe... e chegou a considerar curvar-se e fertilizar os arbustos com o jantar que tinha comido antes de sair com Xhex e John.
Depois de respirar fundo duas vezes, decidiu que era mais interessante seguir com o plano A e ficar bêbado. Com isso em mente, entrou pela porta, Fritz o deixou entrar, e dirigiu-se à cozinha.
Inferno, talvez ele tomasse mais do que apenas alguns goles. Deus sabia que Saxton não iria se contentar com um beijo ou dois num beco frio e úmido, e Blay parecia estar preparado para, finalmente, conseguir o que precisava há tanto tempo.
Portanto, haveria tempo de sobra para ele encher a cara até perder a consciência.
Jesus... Cristo, Qhuinn pensava enquanto esfregava o peito e ouvia a voz de seu primo várias vezes: Diga uma coisa. Você já beijou um macho antes?
A imagem de Blay balançando a cabeça parecia uma cicatriz no cérebro de Qhuinn, o que o levou a ir direto para o outro lado da cozinha em direção à despensa, onde as caixas de bebida eram guardadas.
Mas que clichê. Embriagar-se por não querer lidar com as coisas.
Mas pelo menos isso ele faria de acordo com a tradição.
Voltando a atravessar a cozinha, percebeu que havia, pelo menos, uma graça salvadora. Quando os dois fossem partir para ação, teria que ser na casa de Saxton, porque nenhum visitante casual era permitido na casa do rei, nunca.
Quando saiu em direção à porta de entrada, parou de repente.
Blay estava entrando.
– De volta tão cedo – disse Qhuinn rispidamente. – Não me diga que meu primo é rápido.
Blay nem sequer fez uma pausa. Apenas continuou a subir as escadas.
– Seu primo é um cavalheiro.
Qhuinn saiu atrás do melhor amigo, seguindo ao seu encalço.
– Você acha? Na minha experiência, apenas parece um...
Isso fez com que Blay se virasse.
– Você sempre gostou dele. Era seu favorito. Lembro que falava dele como se fosse um deus.
– Eu cresci e perdi o interesse.
– Bem, eu gosto dele. Muito.
Qhuinn quis rosnar, mas matou o impulso abrindo a tequila que tinha surrupiado da prateleira e tomou um gole.
– Bom para você. Fico feliz por vocês dois.
– Sério? Então porque nem sequer está usando um copo?
Qhuinn passou rápido por seu amigo e não parou nem quando Blay disse “Onde estão John e Xhex?”.
– Fora. No mundo. Sozinhos.
– Achei que deveria ficar com eles.
– Fui temporariamente dispensado. – Qhuinn parou no topo da escada e tocou a lágrima tatuada abaixo de seu olho. – Ela é uma assassina, pelo amor de Deus. Pode cuidar dele muito bem. Além disso, estavam se divertindo na antiga casa de Tohr.
Quando chegou ao seu quarto, Qhuinn chutou a porta e tirou a roupa. Após beber um grande gole da garrafa, fechou os olhos e enviou uma convocação.
Layla seria uma boa companhia agora.
Esta era sua especialidade. Afinal, foi treinada para o sexo e tudo que ela queria era usá-lo como uma escola erótica. Não precisava se preocupar em magoá-la ou se ela se sentiria ligada a ele. Era uma profissional, por assim dizer.
Ou seria quando tivesse terminado de fazer algumas coisas com ela.
Quanto a Blay? Não fazia ideia do porquê o cara tinha voltado ao invés de se dirigir à cama de Saxton, mas uma coisa era clara. Os dois estavam atraídos um pelo outro e Saxton não era do tipo que espera muito quando deseja alguém.
Qhuinn e seu primo eram parentes, afinal.
Mas isso não salvaria o filho da mãe magricelo se partisse o coração de Blay.
CAPÍTULO 41
A festa na fazenda continuava e mais pessoas iam chegando, os carros estacionados no gramado, os corpos comprimidos nos cômodos do andar de baixo. A maioria dos que compareceram Lash conhecia do Parque Xtreme, mas não todos. E continuavam trazendo bebidas.
Só Deus sabia que tipo de coisas ilegais havia em seus bolsos.
Que droga, pensou. Talvez estivesse errado e o Ômega estivesse farto de suas perversões...
Quando sentiu uma brisa vinda do norte, Lash ficou imóvel, mantendo-se camuflado e travando sua mente.
Sombra... projetou uma sombra em si próprio, através dele e em torno dele.
A chegada do Ômega foi precedida por um eclipse da lua e os idiotas dentro não faziam a menor ideia do que estava acontecendo... mas aquele lixo sabia. O garoto saiu pela porta da frente, a luz de dentro derramando ao redor dele.
O pai de Lash tomou forma no gramado desalinhado, suas vestes brancas se agitavam em volta de seu corpo, sua chegada diminuiu ainda mais a temperatura do ar. Assim que tomou forma, o idiotinha caminhou até ele e os dois se abraçaram.
Houve uma tentação de atacar os dois, para dizer a seu pai que ele não era nada além de um pervertido inconstante e avisar ao ratinho filho da mãe que seus dias e noites estavam contados...
O rosto encapuzado do Ômega virou na direção de Lash.
Lash ficou totalmente imóvel e projetou em sua mente uma lousa totalmente em branco, para que permanecesse invisível por dentro e por fora. Sombra... sombra... sombra...
A pausa durou uma vida, porque sem dúvida se o Ômega sentisse que Lash estava por perto, seria o fim do jogo.
Depois de um momento, o Ômega voltou sua atenção para seu queridinho da vez, e quando fez isso, algum idiota tropeçou para fora da porta da frente, os braços se agitaram e as pernas ficaram desequilibradas enquanto tentava manter-se em pé. Quando caiu na grama, o cara se moveu em direção a um canteiro, mas não conseguiu: aterrissou em seus joelhos e vomitou por todo o alicerce da casa. Enquanto as pessoas riam dele e os sons da festa rolavam noite adentro, o Ômega deslizou até a porta.
A festa continuou quando ele entrou na casa, sem dúvida porque os bastardos estavam muito chapados para perceber que sob aquela cortina branca, o mal havia acabado de entrar.
No entanto, não continuaram na ignorância por muito tempo.
Uma enorme bomba de luz explodiu, a rajada de iluminação varreu a casa e fluiu para fora das janelas até a linha das árvores. Quando a iluminação se desvaneceu até chegar a um brilho suave, não havia sobreviventes em pé: todos os bêbados caíram ao chão de uma só vez. A diversão tinha acabado.
Caramba. Se a coisa continuasse indo naquela direção...
Lash esgueirou-se para a casa, tomando cuidado para não deixar nenhuma pegada, literal ou figurativamente e, quando se aproximou, ouviu um estranho som de arranhões.
Aproximando-se de uma das janelas da sala, olhou para dentro.
O bastardo estava arrastando os corpos, alinhando-os lado a lado no chão, de modo que todos os rostos ficaram em direção ao norte e havia aproximadamente trinta centímetros entre uma e outra cabeça. Jesus... havia tantos cadáveres que o procedimento do bom soldadinho de enfileirar os mortos se estendeu por todo o caminho entre o corredor até a sala de jantar.
O Ômega recuou como se estivesse apreciando a visão de seu brinquedo enquanto movia os corpos ao redor.
Que. Meigo.
Levou quase meia hora para alinhar todos, os caras do segundo andar foram arrastados para baixo pelas escadas de modo que a cabeça batia em cada degrau e deixava um rastro vermelho de sangue.
Fazia sentido. Era mais fácil puxar um peso morto pelos pés.
Quando todos estavam juntos, o cretino começou a trabalhar com uma faca e aquilo se tornou uma fila para a iniciação. Começando na sala de jantar, cortou a garganta, os pulsos, os tornozelos e o peito. O Ômega o seguia, derramando sangue preto sobre as costelas abertas, golpeando-os com eletricidade.
Nenhuma bacia para este lote. Quando os corações foram extraídos, foram lançados num canto.
Um grande abatedouro?
Quando tudo terminou, havia um lago de sangue no centro da sala onde o piso havia cedido e outro na base da escada que dava para a entrada. Lash não conseguia observar todo o caminho até a sala de jantar, mas tinha plena certeza de que havia muito sangue lá também.
Os gemidos dos induzidos começaram logo em seguida e a safra de miséria que havia sido colhida ficaria mais alta e mais confusa conforme a transição fosse superada e os últimos resquícios de sua humanidade fossem vomitados para fora.
No meio do coro de agonia e confusão, o Ômega virou-se, pisando sobre as massas que se contorciam, dançando para lá e para cá, arrastando o seu manto branco ao longo da porcaria coagulada no chão e, ainda assim, permanecia imaculado.
No canto, o idiotinha acendeu um baseado e deu uma longa tragada como se estivesse tomando fôlego depois de um trabalho bem feito.
Lash se afastou da janela e retirou-se em direção às árvores, sempre mantendo os olhos na casa.
Droga, deveria ter feito algo assim. Mas não tinha os contatos certos no mundo humano para isso. Ao contrário do idiotinha.
Cara, isso mudaria tudo para os vampiros. Aqueles desgraçados iriam enfrentar, de verdade, uma legião de inimigos novamente.
De volta a Mercedes, Lash ligou o motor e retirou-se da fazenda afastando-se pelo caminho mais longo. Atrás do volante, com o ar frio batendo no rosto graças à janela estilhaçada, seu humor era sombrio. Para o inferno com as fêmeas e todas aquelas besteiras. Seu único objetivo na vida era acabar com o idiotinha. Tomar o prêmio do Ômega. Destruir a Sociedade Redutora.
Bem... as fêmeas não faziam parte disso. Sentia-se totalmente esgotado, porque precisava se alimentar – o que quer que estivesse acontecendo à sua camada externa, seu interior ainda desejava sangue e tinha que resolver esse problema antes que pudesse enfrentar seu velho pai.
Ou iria se dar muito mal.
Enquanto dirigia para o centro, pegou o telefone e ficou maravilhado com o que estava prestes a fazer. Contudo, um inimigo em comum sempre acaba resultando em estranhas alianças.
De volta ao Complexo da Irmandade, Blay se despiu no banheiro e entrou debaixo do chuveiro. Ao pegar o sabão e fazer um pouco de espuma, pensou no beijo naquele beco.
Naquele macho.
Naquele... beijo.
Movendo as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e deixou a água quente escorrer por seu cabelo, suas costas, até seu traseiro. Seu corpo parecia querer se arquear com mais força e se deixar levar, alongando-se, deleitando-se naquela onde de calor. Gastou um tempo lavando seu cabelo com xampu e correndo a mão ensaboada e escorregadia por seu corpo.
Enquanto pensava um pouco mais sobre aquele beijo.
Deus, era como se a memória de seus lábios juntos fosse um imã que o arrastava de volta àquele momento repetidas vezes; o puxão foi muito forte para resistir, a conexão muito atraente para conseguir evitar.
Deslizando as palmas das mãos sobre o tronco, perguntava-se quando veria Saxton outra vez.
Quando ficariam sozinhos outra vez.
Movendo a mão mais para baixo, ele...
– Senhor?
Blay girou, seu calcanhar rangeu sobre o mármore. Cobrindo seu membro rígido e pesado com as duas mãos, tentou esquivar-se atrás da porta de vidro.
– Layla?
A Escolhida sorriu timidamente e correu os olhos por seu corpo.
– Fui chamada? Para servir?
– Eu não chamei. – Será que ela tinha confundido? A não ser que...
– Qhuinn me convocou. Concluí que seria neste quarto.
Blay fechou os olhos momentaneamente enquanto a ereção desvanecia. Então acabou com a festinha particular e fechou a água quente. Estendendo a mão, agarrou uma toalha e a envolveu em seus quadris.
– Não, Escolhida – disse calmamente. – Não é aqui. Mas no quarto dele.
– Oh, perdoe-me, senhor. – Iniciou seu caminho para fora do quarto, o rosto em chamas.
– Está tudo bem... cuidado! – Blay pulou para frente e a agarrou quando ela esbarrou na banheira e perdeu o equilíbrio. – Você está bem?
– Sim, eu deveria olhar por onde ando. – Ela observou seus olhos, as mãos descansando em seus braços nus. – Obrigada.
Olhando para o rosto perfeitamente belo, era óbvio o motivo pelo qual Qhuinn estava interessado. Ela era etérea, com certeza, mas havia algo além disso – especialmente quando abaixou as pálpebras e os olhos verdes brilharam.
Inocente, mas erótico. Era isso. Era a combinação cativante de pureza e sexo que era indiscutível aos homens normais – e Qhuinn não chegava nem perto de ser normal. Transava com qualquer coisa.
Imaginou se a Escolhida sabia disso. Ou se isso importaria para ela.
Com a testa franzida, Blay a afastou.
– Layla...
– Sim, senhor?
Bem, inferno... o que dizer? Estava muito claro que não havia sido chamada outra vez para alimentar Qhuinn, pois haviam se alimentado na noite anterior...
Cristo, talvez fosse isso. Já tinham tido relações sexuais uma vez e ela estava voltando para mais.
– Senhor?
– Nada. É melhor você ir. Tenho certeza de que ele está esperando.
– De fato. – O aroma de Layla pairou sobre o local, o cheiro de canela fez o nariz de Blay formigar. – E sou muito grata por isso.
Quando ela se virou e saiu, Blay observou o balançar de seus quadris e sentiu vontade de gritar. Não queria pensar em Qhuinn transando no quarto ao lado... Pelo amor de Deus, a mansão havia sido o único lugar que não havia sido contaminado por toda aquela atividade extracurricular.
Agora, porém, tudo que conseguia ver era Layla entrando no quarto de Qhuinn e deixando sua túnica branca cair ao deslizar pelos ombros; seus seios, ventre e coxas sendo revelados diante daqueles olhos díspares. Ela estaria em sua cama e sob seu corpo num piscar de olhos.
E Qhuinn a trataria bem. Isso era o que acontecia, pelo menos quando se tratava de sexo: ele era generoso com seu tempo e seu talento. Ele se dedicaria a ela com tudo o que tinha, as mãos, a boca...
Certo. Melhor não pensar no resto.
Enxugando-se rapidamente, ocorreu-lhe que talvez Layla fosse a parceira perfeita para o cara. Com seu treinamento, ela não só iria satisfazê-lo em todos os níveis, como nunca esperaria dele monogamia ou se ressentiria por suas façanhas nesse sentido ou forçaria ligações emocionais que ele não sentia. Provavelmente, ela até mesmo entraria na brincadeira, pois era evidente pela forma como andava que se sentia bem com seu corpo.
Era perfeita para ele. Melhor do que Blay, com certeza.
Além disso, Qhuinn havia deixado claro que iria acabar com uma fêmea... uma fêmea tradicional, com valores tradicionais, de preferência que fosse da aristocracia, isso assumindo que encontraria alguém que o aceitasse mesmo com o defeito dos olhos díspares.
Layla preenchia totalmente os requisitos – nada mais tradicional ou de sangue mais puro do que uma Escolhida e era evidente que ela o queria.
Sentindo-se como se tivesse sido amaldiçoado, Blay entrou em seu closet e vestiu uma bermuda e uma camiseta. Não havia chance alguma de sentar-se ali e se aconchegar com um bom livro, enquanto estivesse acontecendo o que quer que fosse na porta ao lado...
Pois é. Não precisava daquelas imagens, mesmo que hipoteticamente.
Saindo para o corredor de estátuas, apressou-se ao passar pelas figuras de mármore, invejando suas poses calmas e rostos serenos. Claro que fingir sempre que “está tudo bem” fazia a ideia de ser um objeto inanimado parecer muito boa. Mesmo significando que não sentiria alegria, também não teria que sentir aquela dor ardente.
Quando chegou ao saguão de entrada, contornou o corrimão e abaixou-se através da porta secreta. No túnel para o centro de treinamento, iniciou uma corrida como aquecimento, e quando passou através da parte traseira do armário de escritório, não diminuiu. A sala de musculação era o único lugar onde suportaria estar agora. Uma boa hora ou mais na esteira e talvez não sentisse mais vontade de descascar a própria pele com uma colher enferrujada.
Ao sair para o corredor, parou de repente quando viu uma figura solitária, encostada na parede de concreto.
– Xhex? O que está fazendo aqui? – Bem, além de encarar o chão.
A fêmea o olhou e seu olhar cinza escuro se assemelhava a poços vazios.
– Oi.
Blay franziu a testa enquanto caminhava até ela.
– Onde está John?
– Está lá dentro. – Ela acenou com a cabeça para a porta da sala de musculação.
O que explicava o barulho monótono que ouvia. Era evidente que alguém estava correndo sobre uma das esteiras.
– O que aconteceu? – Blay disse, somando a expressão dela aos movimentos que os tênis de John estavam fazendo... e chegando a uma conclusão terrível.
Xhex deixou cair a cabeça contra a parede que estava segurando seu corpo.
– Foi tudo o que eu pude fazer para trazê-lo de volta para cá.
– Por quê?
Seus olhos se acenderam ainda mais.
– Vamos apenas dizer que ele quer ir atrás de Lash.
– Bem, isso é compreensível.
– Sim.
Quando a palavra flutuou para fora da boca dela, teve a impressão de que não sabia nem da metade, mas ficou óbvio que aquele comentário era o máximo que ela diria sobre o assunto.
De repente, seu olhar cor de tempestade fixou-se no rosto dele.
– Então, você é a razão pela qual Qhuinn estava de mau humor hoje.
Blay recuou, e então balançou a cabeça.
– Não tem nada a ver comigo. Qhuinn geralmente fica de mau humor.
– Pessoas que tomam a direção errada ficam assim. Pinos redondos simplesmente não se encaixam em orifícios quadrados.
Blay pigarreou, pensando que os sympathos, mesmo aqueles que não estão contra você, não eram o tipo de pessoa que se quer por perto quando está tentando esconder algo. Como, por exemplo, quando o macho que você deseja está com uma Escolhida com rosto de anjo e um corpo feito para o pecado.
Só Deus sabia o que Xhex estava captando da cabeça dele.
– Bem... estou indo treinar. – Como se seu visual não deixasse isso claro.
– Bom. Talvez você consiga falar com ele.
– Eu vou. – Blay hesitou, pensando que Xhex parecia se sentir como ele. – Ouça, não é por nada, mas é evidente que você está exausta. Talvez fosse bom ir até um dos quartos de hóspedes e dormir.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou deixá-lo. Estou aqui fora esperando só porque eu estava deixando-o louco. Ver-me... não é bom para sua saúde mental no momento. Espero que já não esteja mais assim depois que quebrar essa segunda esteira.
– Segunda?
– Tenho certeza que o cheiro de fumaça de uns quinze minutos atrás significa que ele correu até quebrá-la.
– Caramba.
– Sim.
Preparando-se, Blay abaixou-se e entrou na sala de musculação...
– Jesus... Cristo. John.
Sua voz não foi ouvida. No entanto, o barulho da esteira e os passos pesados de John teriam abafado o escapamento de um carro.
O corpo maciço do cara estava a todo vapor na máquina, sua camiseta e tronco estavam cobertos de suor, as gotas se movimentavam em seus punhos cerrados e criavam manchas idênticas de umidade de cada lado no chão. Havia manchas vermelhas em suas meias brancas que se espalhavam a partir dos calcanhares, como se um pedaço da pele tivesse sido arrancado e a bermuda preta que usava batia como uma toalha molhada.
– John? – Blay gritou, enquanto avaliava a esteira quebrada ao lado. – John!
Quando o grito não o fez girar a cabeça, Blay entrou na sua frente e acenou com a mão direita no campo visual do cara. E, então, desejou não ter feito isso. Os olhos que se fixaram nos dele ardiam com um ódio tão cruel que Blay deu um passo para trás.
Quando John voltou a focar o ar na frente de seu rosto, ficou muito claro que o maldito filho da mãe iria continuar correndo até que suas pernas caíssem.
– John, que tal sair daí? – Blay gritou. – Antes de cair?
Nenhuma resposta. Apenas os gritos da esteira e o som de um bombardeio intenso nos pés.
– John! Vamos, agora! Você está se matando!
Dane-se.
Blay deu a volta por trás do aparelho e arrancou o cabo de força da parede. A desaceleração brusca fez John tropeçar e cair para frente, mas segurou-se no apoio de mão. Ou talvez tenha apenas desabado sobre ele.
Sua respiração ofegante rasgava para dentro e para fora da boca e a cabeça pendia em seu braço.
Blay puxou um banco de um dos aparelhos e estacionou sobre ele para que pudesse olhar para o rosto do rapaz.
– John... o que diabos está acontecendo?
John soltou o apoio e caiu para trás, as pernas não suportaram seu peso. Após uma série de respirações entrecortadas, passou a mão pelo cabelo molhado.
– Fale comigo, John. Vou manter isso apenas entre nós. Juro pela vida da minha mãe.
Levou um tempo antes de John erguer a cabeça, e quando o fez, seus olhos estavam brilhantes. E não era pelo suor ou pelo esforço.
– Fale comigo, pois isso não irá a lugar algum – sussurrou Blay. – O que aconteceu? Diga-me.
Quando o cara finalmente começou a fazer os sinais, estava confuso, mas Blay leu as palavras muito bem.
Ele a machucou, Blay. Ele... a machucou.
– Bem, sim, eu sei. Ouvi falar sobre como ela estava quando...
John fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
No silêncio tenso que se seguiu, a pele da nuca de Blay se enrijeceu. Oh... droga.
Houve mais do que isso. Não houve?
– Ruim quanto? – resmungou Blay.
O pior possível, John assinalou com a boca.
– Filho da mãe. Desgraçado filho da mãe. Aquele cretino, filho da mãe, desgraçado!
Blay não costumava xingar, mas às vezes isso é tudo que se pode oferecer aos ouvidos dos outros: Xhex não era sua mulher, mas na opinião dele, não se pode machucar o sexo frágil. Seja lá qual for o motivo... e nunca, nunca dessa maneira.
Deus, a expressão de dor dela não tinha sido apenas por estar preocupada com John. Tinha sido por causa das lembranças. Lembranças horríveis, hediondas...
– John... eu sinto muito.
Gotas frescas caíram do queixo do rapaz na faixa preta da esteira e John enxugou os olhos algumas vezes antes de erguer o olhar. Em seu rosto, a angústia guerreava com uma fúria sem tamanho.
O que fazia todo sentido. Com sua história pessoal, aquilo era totalmente devastador.
Tenho que matá-lo, John gesticulou. Não poderei viver comigo mesmo se não acabar com ele.
Enquanto Blay concordava, os motivos da vingança se faziam óbvios. Um macho vinculado com um passado ruim? O mandado de morte de Lash acabava de receber o selo de APROVADO.
Blay fechou os dedos e ofereceu seus punhos.
– Qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser, estou com você. E não direi nenhuma palavra.
John esperou um momento e então bateu punho contra punho. Sabia que poderia contar com você, sinalizou com a boca.
– Sempre – prometeu Blay. – Sempre.
CAPÍTULO 42
A casa de Eliahu Rathboone ficou totalmente silenciosa mais ou menos uma hora depois que Gregg abortou sua viagem ao terceiro andar, mas ele esperou um bom tempo depois que o mordomo desceu as escadas para tentar subir outra vez.
Ele e Holly não passaram o tempo transando, que era o bom e velho hábito deles, mas conversando. E ele percebeu que quanto mais conversavam, menos sabia a respeito dela. Não fazia ideia de que seus passatempos podiam ser tão triviais quanto tricotar. Ou que sua maior ambição era seguir carreira no verdadeiro jornalismo televisivo – o que não era uma surpresa: a maioria das mulheres “cabeças de vento” do mundo dos reality shows tinham maiores ambições na TV. E ele até sabia que ela tinha tentado ingressar uma vez no noticiário local de Pittsburgh.
O que não fazia ideia era do verdadeiro motivo pelo qual ela deixou o primeiro emprego. O gerente, casado, esperava que ela fizesse um tipo diferente de serviço, mais privado, e quando ela disse “não”, ele a demitiu depois de dar um jeito para que ela falhasse na frente das câmeras.
Gregg viu a fita onde ela massacrava as palavras no ar. Afinal de contas, fez sua lição de casa, e apesar do seu teste com eles ter sido ótimo, ele sempre verificava as referências.
Talvez isso tenha sido o início de suas pressuposições sobre ela: rostinho bonito, boa postura, nada mais a oferecer.
Mas esse não era o pior de seus equívocos. Nunca soube que ela tinha um irmão. Que era deficiente físico. A quem ela sustentava.
Ela mostrou uma foto dos dois juntos.
E quando Gregg perguntou em voz alta como era possível ele não saber sobre aquele garoto, ela teve a honestidade de dizer-lhe o motivo: porque você ditou os limites e isso estava além.
Naturalmente, teve a reação masculina de se defender, mas o fato é que ela estava certa. Havia estabelecido os limites de maneira muito clara. O que significava nada de ciúmes, nada de explicações, nada permanente e nada pessoal.
Aquele não era exatamente um ambiente propício para se mostrar vulnerável.
A constatação disso foi o que o fez puxá-la contra seu peito e encostar o queixo em sua cabeça, alisando suas costas. Antes de ir para a terra dos sonhos, ela murmurou algo com uma voz suave. Algo sobre como aquela tinha sido a melhor noite que teve com ele.
E isso apesar dos orgasmos monstruosos que já tinha lhe proporcionado.
Bem, orgasmos dados quando lhe convinha. Houve vários encontros cancelados no último minuto, mensagens de celular sem resposta e menosprezo verbal e físico.
Cara... que lixo ele foi.
Quando Gregg finalmente levantou-se para sair, cobriu Holly, ligou a câmera que era ativada por movimentos e saiu para o corredor. Silêncio por toda parte.
Caminhando pelo corredor, voltou-se para o sinal de Saída e seguiu em direção à escada dos fundos. Subiu os degraus, virou, subiu outro patamar e, então, lá estava a porta.
Sem bater desta vez, pegou uma chave de fenda fina que era usada no equipamento da câmera e tentou arrombar a fechadura. Na verdade, foi mais fácil do que imaginava. Bastou uma cotovelada, um giro e a coisa se soltou.
A porta não chiou, o que o surpreendeu.
No entanto, o que estava do outro lado... o deixou extremamente chocado!
O terceiro andar tinha um espaço cavernoso, com um antiquado e grosseiro assoalho e com um teto inclinado em um ângulo agudo dos dois lados. Na outra extremidade, havia uma mesa com uma lâmpada a óleo e seu brilho fazia com que as paredes lisas ficassem de um tom amarelo-dourado... também iluminava as botas negras de alguém que estava sentado numa cadeira fora do alcance da luz.
Botas enormes.
E, de repente, não havia dúvidas de quem era o filho da mãe e o que ele tinha feito.
– Eu o filmei – Gregg disse para o sujeito.
A risada suave que veio como resposta fez a adrenalina de Gregg correr solta: baixa e fria, a risada era o tipo de som que assassinos fazem quando estão prestes a trabalhar com uma faca.
– Filmou? – Aquele sotaque. Mas que diabos era aquilo? Não era francês... nem húngaro...
Tanto faz. A ideia de Holly ter sido vítima de um abuso por parte dele fez Gregg mais alto e mais forte do que realmente era.
– Sei o que você fez na noite passada.
– Eu o convidaria para se sentar em uma cadeira, mas como pode ver, só tenho uma.
– Não estou brincando! – Gregg deu um passo à frente. – Sei o que aconteceu com ela. Ela não queria você.
– Ela queria o sexo.
Filho da mãe imbecil.
– Ela estava dormindo.
– Estava? – A ponta da bota balançou. – As aparências, assim como a mente, podem ser enganosas.
– Quem diabos você pensa que é?
– Sou dono desta bela casa. Isso é quem sou. Sou quem deu permissão para brincar por aí com suas câmeras.
– Bem, pode dar adeus a essa droga toda agora. Não vou fazer propaganda deste lugar.
– Oh, acho que fará. Está em sua natureza.
– Você não sabe nada sobre mim.
– Acho que é o contrário. É você que não sabe... nada, usando suas palavras... sobre você mesmo. Aliás, ela disse o seu nome. Quando gozou.
Gregg ficou furioso com isso, ao ponto de dar mais um passo adiante.
– Eu tomaria cuidado – a voz disse. – Você não quer se machucar. E sou considerado louco.
– Vou chamar a polícia.
– Não tem motivo. Consentimento entre adultos e tudo o mais.
– Ela estava dormindo!
A bota deu uma volta e plantou-se no chão.
– Olha o tom, rapaz.
Antes que houvesse tempo para retrucar o insulto, o homem se inclinou para frente na cadeira... e Gregg perdeu a voz.
O que apareceu sob a luz não fazia sentido algum. De maneira alguma.
Era o retrato. Da sala no andar de baixo. Só que vivo e respirando. A única diferença era que o cabelo não estava preso, estava solto sobre os ombros, era duas vezes maior que o de Gregg e a cor era uma mistura de preto com vermelho.
Oh, Deus... os olhos eram da cor do nascer do sol, brilhantes e cor de pêssego.
Totalmente hipnóticos.
E sim, um tanto enlouquecidos.
– Sugiro – disse arrastando as palavras com aquele sotaque estranho – que você saia deste sótão e volte a ficar com aquela moça adorável...
– Você é descendente de Rathboone?
O homem sorriu. Certo... havia algo de muito errado com seus dentes da frente.
– Ele e eu temos coisas em comum, na verdade...
– Jesus...
– É hora de você correr e terminar seu pequeno projeto. – Não sorria mais, o que era uma espécie de alívio. – E um conselho, no lugar de ceder à tentação de chutar o seu traseiro: deve cuidar melhor da sua mulher. Ela tem sentimentos sinceros por você, o que não é culpa dela e algo pelo qual, claramente, você não é merecedor, caso contrário não estaria cheirando à culpa neste momento. Tem sorte de ter a mulher que deseja ao seu lado, então pare de ser um completo idiota.
Gregg não ficava chocado assim com frequência. Mas, por sua vida, não fazia ideia do que dizer.
Como aquele estranho sabia tanto?
E Cristo, Gregg odiava o fato de Holly ter se deitado com outra pessoa... mas ela tinha dito o nome dele?
– Diga adeus. – Rathboone levantou sua própria mão, imitando um tchau infantil. – Prometo deixar sua mulher em paz, contanto que pare de ignorá-la. Agora vá, tchauzinho.
Agindo sob um reflexo que não era seu, Gregg levantou o braço e fez um aceno desajeitado antes de virar-se e começar a sair do local.
Deus, suas têmporas... que... droga... por que... onde... sua mente parou de funcionar, como se tivessem jogado cola nas engrenagens.
Descer para o segundo andar. Ir para o quarto.
Ao tirar a roupa e deitar na cama de cueca, colocou sua cabeça dolorida sobre o travesseiro perto de Holly, a puxou em um abraço e tentou se lembrar...
Ele tinha que fazer alguma coisa. O que era...?
O terceiro andar. Tinha que ir ao terceiro andar. Tinha que descobrir o que havia lá em cima...
Uma nova dor se lançou em seu cérebro, matando não apenas o impulso de ir a qualquer lugar, mas também matando qualquer interesse no que havia no sótão.
Fechando os olhos, teve uma estranha visão de um estrangeiro estranho com um rosto familiar... mas, em seguida, caiu num sono extremamente profundo e nada mais importava.
CAPÍTULO 43
A invasão na mansão ao lado não representava nenhum problema.
Depois de considerar a atividade da mansão e não encontrar nada que sugerisse qualquer movimento dentro das muralhas, Darius declarou que ele e Tohrment iriam entrar... e entraram. Desmaterializando-se na cerca de madeira que separava as duas propriedades, reapareceram ao lado da região da cozinha... então, simplesmente caminharam direto em direção à robusta moldura de madeira da porta.
Na verdade, o maior obstáculo para ultrapassar a parte externa era a superação do esmagador sentimento de pavor.
A cada passo e a cada respiração, Darius tinha que se esforçar para seguir em frente, seus instintos gritavam que estava no lugar errado. E, ainda assim, se recusava a voltar. Não queria utilizar outros meios práticos pelos quais poderia entrar e embora a filha de Sampsone pudesse muito bem não estar ali, uma vez que não tinha outras pistas, precisava fazer alguma coisa ou ficaria louco.
– Esta casa parece assombrada – murmurou Tohrment enquanto observavam os quartos dos empregados.
Darius assentiu.
– Mas lembre-se de que qualquer fantasma jaz apenas em sua mente e não se confunde com ninguém que esteja sob este teto. Venha, devemos localizar os quartos subterrâneos. Se os humanos a tomaram, devem mantê-la no subsolo.
Enquanto seguiam seu caminho em silêncio, passaram pela enorme cozinha e pelas carnes defumadas que pendiam nos ganchos, deixando claro que esta era uma casa humana. Tudo estava calmo ao redor, ao contrário da mansão vampira, onde haveria um momento de preparação para a Última Refeição.
Infelizmente, concluir que a casa pertencia à outra raça não era uma confirmação de que a fêmea não estivesse sendo mantida ali... e talvez tal conclusão fosse um indício. Embora os vampiros soubessem com certeza da existência da humanidade, não havia nada além de mitos sobre vampiros infestando a periferia cultural humana... era assim que os seres com presas sobreviviam com maior facilidade. Ainda assim, de vez em quando, havia contatos inevitáveis e genuínos entre aqueles que optaram por permanecer ocultos e aqueles de olhares curiosos... e esses raros esbarrões de um contra o outro explicavam as assustadoras e fantásticas histórias humanas sobre tudo desde “fadas”, “bruxas”, “fantasmas” e “sugadores de sangue”. Na verdade, a mente humana parecia sofrer com uma necessidade paralisante de inventar coisas na ausência de provas concretas. O que fazia sentido, considerando a compreensão autorreferencial das raças do mundo e seu lugar nele: algo que não se encaixava era forçado em uma superestrutura, mesmo que isso significasse a criação de elementos “paranormais”.
E que sorte seria para uma família rica capturar evidências físicas de tais superstições efêmeras.
Especialmente, provas lindas e indefesas.
Não se sabia o que vinha sendo observado por aquela família ao longo do tempo. Que estranhezas tinham sido testemunhadas naqueles vizinhos. Quais diferenças raciais foram expostas de forma inesperada e observadas sem qualquer dificuldade, em virtude das duas propriedades comporem a mesma paisagem.
Darius amaldiçoou baixinho e pensou que era por isso que os vampiros não deviam viver tão próximos aos seres humanos. A separação era o melhor. Congregação e separação.
Ele e Tohrment procuraram por todo o primeiro andar da mansão desmaterializando-se de sala em sala, deslocando-se conforme as sombras eram projetadas pelo luar, passando por todo o mobiliário esculpido e tapeçarias sem som ou substância.
A maior preocupação deles e o motivo de não atravessarem o chão de pedra andando? Cães adormecidos. Muitas das mansões os tinham como guardas e essa era uma grande complicação que poderiam muito bem passar sem. Com sorte, se houvesse algum animal na casa, estariam enrolados aos pés da cama do chefe da família.
E o mesmo valeria para qualquer tipo de guarda pessoal.
No entanto, a sorte estava ao lado deles. Nenhum cão. Nenhum guarda. Pelo menos que tivessem visto, escutado, ou cheirado... e foram capazes de encontrar a passagem que os levaria ao andar subterrâneo.
Ambos levavam velas e acenderam os pavios, as chamas cintilando sobre os passos apressados, rudes e descuidados e pelas paredes desiguais... tudo parecia indicar que a família nunca havia feito aquela jornada subterrânea, apenas os servos.
Mais uma prova de que não era uma família de vampiros. Alojamentos subterrâneos estavam entre os mais pródigos em tais casas.
Descendo para o nível mais baixo, a pedra sob seus pés deu lugar à terra batida e o ar ficou pesado com a umidade fria. Conforme progrediam sob a grande mansão, encontravam despensas cheias de caixotes de vinho e outras bebidas, caixotes de carnes salgadas e cestas de batatas e cebolas.
Na outra extremidade, Darius esperava encontrar um segundo conjunto de escadas que os levaria a sair na superfície. Em vez disso, chegaram ao final do salão subterrâneo. Nenhuma porta. Apenas uma parede.
Observou ao redor para ver se havia pegadas sobre o solo ou rachaduras nas pedras, indicando um painel ou uma seção oculta. Nada.
Para ter certeza, ele e Tohrment correram suas mãos sobre a superfície das paredes e pelo chão.
– Havia muitas janelas nos andares superiores – Tohrment murmurou. – Mas, talvez, se fosse para mantê-la lá em cima, poderiam ter colocado cortinas. Ou será que existem quartos sem janelas?
Enquanto a dupla enfrentava o beco sem saída que haviam atingido, aquela sensação de medo, de estar em um lugar errado, inchou no peito de Darius até sua respiração ficar curta e o suor brotar sob seus braços e sua coluna. Tinha a sensação de que Tohrment estava sofrendo de um ataque similar de apreensão ansiosa, pois o macho deslocava seu peso para trás e para frente, para trás e para frente.
Darius balançou a cabeça.
– Na verdade, ela parece estar em outro lugar...
– Grande verdade, vampiro.
Darius e Tohrment se viraram enquanto desembainhavam as adagas.
Olhando para aquilo que os tinha pegado de surpresa, Darius pensou... bem, isso explica o medo.
A figura de túnica branca bloqueando a saída não era humana e nem vampira.
Era um sympatho.
CAPÍTULO 44
Enquanto Xhex esperava do lado de fora da sala de musculação, encarava suas emoções com interesse desapaixonado. Isso era, ela supôs, como olhar para o rosto de um estranho e considerar as imperfeições, as cores e os traços por nenhuma outra razão além da simples observação.
Sua ânsia por vingança foi eclipsada por uma preocupação honesta por John.
Surpresa, surpresa.
Afinal, nunca tinha imaginado ver esse tipo de fúria tão de perto, especialmente de pessoas como John. Era como se ele tivesse uma fera interior que estivesse rugindo em sua cela.
Cara, um macho vinculado não é algo com que você pode brincar.
E ela não estava se enganando. Essa era a razão pela qual ele reagiu da forma como reagiu – e também a causa do aroma apimentado que ela cheirava perto dele desde que saiu da prisão de Lash: em algum momento durante as semanas de suas férias brutais, a atração e o respeito de John por ela haviam tomado forma de uma maneira irrevogável.
Droga. Que bagunça.
Quando o som da esteira parou de repente, ela poderia apostar que Blaylock havia puxado a tomada da parede e foi bom ele fazer isso.
Xhex tentou fazer com que parasse de tentar se matar na esteira, mas quando a argumentação mostrou ser absolutamente nula, decidiu ficar de sentinela do lado de fora.
Não havia chance alguma de vê-lo correndo até se acabar. Ouvir a punição já era ruim o suficiente.
Mais à frente no corredor, a porta de vidro do escritório se abriu e o Irmão Tohrment apareceu. A julgar pelo brilho que se emanou atrás dele, Lassiter estava no centro de treinamento também, mas o anjo caído ficou para trás.
– Como está John? – Quando o Irmão se aproximou, sua preocupação estava escrita em seu rosto duro e olhos cansados e também em sua grade emocional, que estava iluminada nos setores de arrependimento.
Fazia sentido de muitas maneiras.
Xhex olhou para a porta da sala de musculação.
– Parece que ele repensou a carreira e resolveu ser maratonista. Isso ou ele apenas está tentando quebrar outra esteira.
A altura elevada de Tohr obrigou-a a inclinar a cabeça para cima e foi surpreendente observar o que havia por trás de seus olhos azuis: havia conhecimento naquele olhar, conhecimento profundo que fez com que seus próprios circuitos emocionais queimassem com suspeita. Na experiência dela, estranhos que observam você daquela maneira são perigosos.
– Como você está? – ele perguntou suavemente.
Foi estranho. Ela não tinha muito contato com o Irmão, mas sempre que seus caminhos se cruzaram, ele sempre foi particularmente... gentil. Razão pela qual ela sempre o evitava. Lidava muito melhor com dureza do que com qualquer coisa delicada.
Sinceramente, ele a deixava nervosa.
Quando ficou quieta, o rosto dele se apertou como se ela o tivesse decepcionado, mas ele não a culpava pela inadequação.
– Tudo bem – ele disse. – Não vou me intrometer.
Jesus, ela era terrível.
– Não, está tudo bem. Só não pode exigir que eu responda a isso agora.
– É justo. – Os olhos dele se estreitaram na porta da sala de musculação e ela teve a nítida impressão que ele estava tão preso do lado de fora quanto ela, excluído pelo macho que estava sofrendo do outro lado. – Então, ligou para a cozinha para me chamar?
Pegou a chave que John usou para que pudessem entrar na antiga casa do cara.
– Apenas para lhe devolver isso e dizer que houve um problema.
A grade emocional do Irmão ficou negra e vaga, todas as luzes apagadas.
– Que tipo de problema?
– Uma de suas portas de vidro está quebrada. Vai precisar de duas folhas de madeira compensada para cobrir. Conseguimos ativar outra vez o alarme de segurança, então os detectores de movimento estão ligados, mas você terá trabalho por lá. Ficarei feliz em ajudar.
Isso supondo que John acabasse com o restante das máquinas de exercícios, com os tênis de corrida, ou caísse morto.
– Qual... – Tohr limpou a garganta. – Qual porta?
– A do quarto do John Matthew.
O Irmão franziu a testa.
– Estava quebrada quando vocês chegaram lá?
– Não... apenas explodiu espontaneamente.
– Vidro não faz isso sem uma boa razão.
E ela não tinha dado uma boa razão para John Matthew?
– É verdade.
Tohr a encarou e ela o encarou de volta. O silêncio tornou-se espesso como lama. No entanto, por mais gentil e bom soldado que fosse o Irmão, Xhex não tinha nada para compartilhar com ele.
– Com quem eu falo para conseguir alguma madeira de compensado? – ela se dispôs.
– Não se preocupe com isso. E obrigado por me informar.
Quando o Irmão se virou e caminhou de volta para o escritório, ela se sentiu um inferno – o que concluiu ser mais outra conexão que tinha com John Matthew. Só que ao invés de usar uma esteira até quebrar, ela apenas queria pegar uma faca e cortar a parte de dentro dos antebraços para aliviar a pressão.
Deus, às vezes parecia uma bebê chorona, de verdade. Afinal, aqueles silícios não eram apenas para manter o seu lado sympatho sob controle, eles a ajudavam a ofuscar coisas que ela não queria sentir.
O que era quaaase noventa e nove por cento emoção.
Dez minutos depois, Blaylock colocou a cabeça para fora da porta. Seus olhos estavam focados no chão e suas emoções estavam revoltas, o que fazia sentido. Ninguém gostava de ver seu amigo se autodestruir, e ter que conversar com a pessoa que havia jogado o pobre coitado naquela queda livre não era exatamente uma felicidade.
– Ouça, John foi para o vestiário tomar uma ducha. Consegui fazer que ele parasse com a ideia de correr, mas ele... ele precisa de um pouco mais de tempo, acho.
– Certo. Vou continuar esperando por ele aqui no corredor.
Blaylock assentiu e então houve uma pausa embaraçosa.
– Vou malhar agora.
Depois que a porta se fechou, ela pegou sua jaqueta e suas armas e vagou em direção ao vestiário. O escritório estava vazio, o que significava que Tohr tinha seguido seu caminho, sem dúvida para cumprir seu papel de Homem da Manutenção com algum doggen.
E o silêncio ressonante lhe dizia que não havia mais ninguém em nenhuma das salas de aula, ginásio ou clínica.
Deslizando pela parede, sentou-se sobre o chão e apoiou seus braços nos joelhos. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos.
Deus, estava exausta...
– John ainda está lá?
Xhex acordou de repente, sua arma foi apontada direto no peito de Blaylock. Quando o cara pulou para trás, ela imediatamente travou a arma e baixou o cano.
– Desculpe, velhos hábitos são difíceis de morrer.
– Ah, sim. – O cara apontou sua toalha branca em direção ao vestiário. – John ainda está lá? Já passou mais de uma hora.
Ela ergueu o pulso e olhou para o relógio que tinha pegado em algum lugar.
– Cristo.
Xhex se colocou em pé e arrombou a porta. O som do chuveiro aberto não era muito um alívio.
– Existe outra saída que ele possa ter usado?
– Apenas na sala de musculação... mas que acaba dando neste mesmo corredor.
– Certo, vou falar com ele – ela disse, rezando para que fosse a coisa certa a fazer.
– Bom. Vou terminar meus exercícios. Ligue se precisar de mim.
Empurrou a porta, e lá dentro o lugar parecia padrão, todos os armários de metal bege separados por bancos de madeira. Seguindo o som da água caindo à direita, passou por compartimentos de mictórios e pias que pareciam solitários sem um monte de homens suados, nus e envolvidos em toalhas.
Encontrou John numa área aberta com dezenas de chuveiros e azulejos em todos os centímetros do chão, paredes e teto. Estava usando camiseta, bermuda de corrida e estava sentado encostado contra a parede, seus braços apoiados em seus joelhos, cabeça baixa, a água correndo sobre seus enormes ombros e tronco.
Seu primeiro pensamento foi de que ela própria estava exatamente na mesma posição do lado de fora.
O segundo pensamento foi que estava surpresa ao ver que ele conseguia se manter tão parado. A grade emocional dele não era a única coisa iluminada, aquela sombra atrás da grade estava queimando de angústia. Era como se duas partes dele estivessem juntas num tipo de luto, sem dúvida porque havia sofrido ou testemunhado perdas demais, todas cruéis, em sua vida... e talvez estivesse sofrendo outra agora. E o lugar onde tudo aquilo o levava emocionalmente a deixava apavorada. O denso vazio negro criado nele era tão poderoso que deformava a superestrutura da psique dele... levando-o onde ela havia estado naquela maldita sala de operações.
Levando-o à beira da loucura.
Pisando sobre a superfície azulejada do chão, a pele dela tremeu ao esbarrar com o ar frio que vinha dos sentimentos dele... e o fato é que ela estava fazendo isso outra vez. Era igual a Murhder, só que pior.
Jesus Cristo, ela era uma maldita viúva negra no que se referia a machos de valor.
– John?
Ele não olhou para cima, embora não tivesse certeza se estava ciente de que ela estava na frente dele. John estava de volta ao passado, preso por suas memórias...
Franzindo a testa, encontrou os olhos dele seguindo o caminho da água que deslizava sobre seu corpo e escorria pelo chão coberto de azulejos... até o ralo.
O ralo.
Algo com aquele ralo. Algo a ver com... Lash?
Dentro do abraço da solidão e contra o pano de fundo do som tranquilo do jato de água, ela liberou seu lado mau por uma boa finalidade: rapidamente, seus instintos sympatho mergulharam em John, penetrando ao longo de seu território físico e indo fundo em sua mente e suas lembranças.
Quando ele ergueu a cabeça e olhou para ela em choque, tudo se tornou vermelho e bidimensional, o azulejo tingiu-se de um rosa rubro. O cabelo escuro e úmido de John mudou para a cor do sangue; a água que corria parecia um champanhe rosa.
As imagens que ela captou estavam envoltas numa capa de terror e vergonha: uma escada escura num prédio parecido com aquele onde a tinha levado. John era apenas um garotinho pré-transição sendo forçado por um humano fétido...
Oh. Deus.
Não.
Os joelhos da Xhex cederam e ela cambaleou – então apenas deixou-se cair ao chão, aterrissando no azulejo liso tão duro que seus ossos e dentes se abalaram.
Não... não John, ela pensou. Não quando ainda era indefeso, inocente e tão sozinho. Não quando estava perdido no mundo humano, batalhando para sobreviver.
Não ele. Não assim.
Com seu lado sympatho liberado e seus olhos sem dúvida brilhando em vermelho, eles se sentaram ali encarando um ao outro. Ele sabia o que ela tinha visto e odiava seu conhecimento com uma fúria tal que ela, de maneira sábia, manteve qualquer pena para si mesma. No entanto, ele não parecia ressentido que ela o tivesse invadido. Era mais como se desejasse muito não ter dividido aquilo com ninguém.
– O que Lash tem a ver com isso? – disse com voz rouca. – Pois ele está por toda parte em sua mente.
Os olhos de John voltaram-se para o ralo no centro do local outra vez e ela teve a impressão de que ele estava vendo sangue acumulando-se em volta da tampa de aço inoxidável. Sangue de Lash.
Xhex estreitou os olhos, a história passada tornava-se muito previsível: Lash havia descoberto o segredo de John. De alguma maneira. E ela não precisava de seu lado sympatho para saber o que aquele desgraçado havia feito com uma informação como aquela.
Um locutor de beisebol procuraria menos plateia.
Quando o olhar de John voltou-se para ela, sentiu uma perturbadora comunhão com ele. Sem barreiras, sem preocupações sobre ser vulnerável. Mesmo estando completamente vestidos, cada um estava nu diante do outro.
Ela sabia muito bem que não encontraria isso nunca em nenhum outro macho. Ou em qualquer outra pessoa. Por sua vez, ele sabia, sem palavras, tudo o que tinha acontecido com ela e tudo o que aquele tipo de experiência gerava. E ela sabia o mesmo sobre ele.
E talvez aquela sombra em sua grade emocional fosse uma espécie de bifurcação em sua psique causada pelo trauma que tinha passado. Talvez sua mente e sua alma tivessem se reunido e decidido eliminar o passado e colocá-lo no fundo de seu sótão mental e emocional. Talvez fosse por isso que as duas partes estivessem em um movimento tão vívido.
Fazia sentido. Assim como a vingança que estava sentindo. Afinal, Lash esteve intimamente envolvido nos dois conjuntos de erros, no dele e no dela.
Informações como aquelas sobre John nas mãos erradas? Era quase tão ruim quanto o horror que havia realmente acontecido, porque você revive a maldita história toda vez que mais alguém fica sabendo. Razão pela qual Xhex nunca falava sobre seu tempo na colônia com seu pai, ou sobre aquela maldita clínica humana... ou...
John ergueu seu dedo indicador e deu tapinhas ao lado de seu olho.
– Os meus estão vermelhos? – ela murmurou. Quando ele assentiu, ela esfregou o rosto. – Desculpe. Provavelmente vou precisar de outro par de silícios.
Quando ele fechou a água, ela deixou cair as mãos.
– Quem mais sabe? Sobre o que aconteceu com você?
John franziu a testa. Então, assinalou com os lábios: Blay. Qhuinn. Zsadist. Havers. Um terapeuta. Quando ele balançou a cabeça, ela entendeu isso como sendo o fim da lista.
– Não vou dizer nada a ninguém.
Os olhos dela percorreram seu corpo imenso desde aqueles ombros até seus bíceps poderosos e aquelas coxas tremendas – e desejou que ele tivesse aquele tamanho lá atrás naquela escada suja. Pelo menos, não era mais o mesmo de quando foi ferido – se bem que isso era verdade apenas por fora. Por dentro, ele tinha todas as idades que havia vivido, o bebê que havia sido abandonado, a criança que ninguém quis, o garoto em fase de pré-transição sozinho no mundo... e agora o macho adulto.
Ele era um ótimo guerreiro no campo de batalha, um amigo leal e, considerando o que tinha feito àquele redutor naquela mansão e o que sem dúvida queria fazer com Lash, era um inimigo muito perigoso.
E a isso se somava um problema: em sua opinião, era ela quem deveria matar o filho do Ômega.
Não que precisassem falar sobre isso agora.
Quando a umidade dos azulejos molhou sua calça e a água escorreu de John, ficou surpresa com o que queria fazer.
De muitas maneiras, não fazia sentido, e com certeza não era uma ideia brilhante. Mas a lógica não era importante naquele momento.
Xhex se deslocou para frente e colocou as palmas das mãos no chão escorregadio do chuveiro. Deslocando-se devagar, moveu a mão, o joelho, a mão, o joelho, indo na direção dele.
Ela percebeu quando ele sentiu o cheiro dela.
Pois por baixo daquela bermuda esportiva ensopada, seu membro se contraiu e endureceu.
Quando estava cara a cara com ele, observou atentamente sua boca.
– Nossas mentes já estão unidas. Quero que nossos corpos sigam no mesmo sentido.
Com isso, inclinou-se e levantou a cabeça. Pouco antes de beijá-lo, ela fez uma pausa, mas não porque estivesse preocupada se iria afastá-la – ela sabia pelo aroma apimentado que John não estava interessado em recuar.
– Não, você entendeu tudo errado, John. – Lendo as emoções dele, negou com a cabeça. – Você não é metade do homem que poderia ser por causa do que foi feito. Você é duas vezes mais do que qualquer pessoa simplesmente porque sobreviveu.
Sabe? A vida o coloca em lugares que nunca imaginou estar.
Sob nenhuma circunstância, nem mesmo nos piores pesadelos que seu subconsciente havia exibido, John havia sequer pensado que seria capaz de lidar com Xhex se ela soubesse o quanto ele sofreu quando era jovem.
A questão era que não importava o quanto seu corpo tinha se tornado grande ou forte, isso nunca encobriu a realidade do quanto havia sido fraco. E a ameaça de que aqueles que ele respeitava descobrissem trouxe aquela fraqueza à tona não apenas uma vez, mas várias.
E lá estava ele novamente com seus demônios expostos.
E quanto ao seu banho de duas horas? Ainda estava morrendo por dentro por ela ter sido ferida daquele jeito... Era tão doloroso pensar naquilo, horrível demais para não se demorar. E adicione sua necessidade como macho vinculado de protegê-la e mantê-la em segurança. E o fato de que sabia exatamente o quão desagradável é ser vitimado daquela maneira.
Se apenas a tivesse encontrado mais cedo... se apenas tivesse trabalhado mais duro...
Sim, mas ela tinha se libertado. E fez isso sozinha. Não foi ele quem a libertou – pelo amor de Deus... esteve com ela no maldito quarto onde tinha sido estuprada e nem mesmo soube que ela estava lá.
Eram coisas demais para lidar, todas as camadas e interseções faziam sua cabeça zunir ao ponto de sentir como se seu cérebro fosse um helicóptero prestes a levantar voo, para o alto e avante, para nunca mais voltar.
A única coisa que o mantinha com os pés no chão era a perspectiva de matar Lash.
Enquanto aquele desgraçado estivesse lá fora, respirando, John tinha um foco para manter sua estabilidade mental. Matar Lash era sua única ligação à sanidade e ao propósito, uma proteção para que seu ser não enferrujasse.
Porém, se fracassasse mais uma vez, se não vingasse sua fêmea, estaria tudo acabado.
– John – disse Xhex, num evidente esforço de tirá-lo de seu estado de pânico.
Focando-se nela, encarou seus olhos vermelhos e brilhantes e lembrou-se de que era uma sympatho. O que significava que podia escavar dentro dele e acionar todos os seus alçapões interiores, liberando seus demônios apenas para observá-los dançar. Só que ela não fez isso, fez? Adentrou nele, sim, mas apenas para entender onde ele estava. E ao observar suas partes obscuras, não tinha se afastado e apontado um dedo inquisidor ou recuado enojada.
Ao invés disso, se aproximou delicadamente, dando a entender que queria beijá-lo.
Os olhos de John observaram seus lábios.
Quem diria, ele podia sim aguentar um pouco daquele tipo de conexão. Palavras não eram suficientes para aplacar a autoaversão que sentia, mas as mãos dela em sua pele, sua boca na dele, seu corpo contra o seu... aquilo, sem uma palavra, era o que ele precisava.
– É isso mesmo – ela disse, seus olhos ardendo, e não apenas por causa do lado sympatho. – Você e eu precisamos disso.
John levantou e colocou suas mãos frias e molhadas sobre a face dela. Então olhou ao redor. Aquela poderia ser a hora, mas não era o lugar.
Não ia fazer amor com ela no piso duro.
Venha comigo, fez com os lábios, levantando-se e puxando-a para seu lado.
Sua ereção estava evidente na frente de sua bermuda esportiva quando deixaram o vestiário, o desejo de possuí-la rugia em seu sangue, mas esse desejo foi controlado pela necessidade de proporcionar algo delicado a Xhex ao invés da violência que ela experimentou.
Ao invés de se dirigir para o túnel de volta à casa principal, ele os levou para a direita. De modo algum iria para seu quarto com ela debaixo do braço e ostentando uma ereção do tamanho de uma viga. Além do mais, estava encharcado.
Muita coisa para explicar para a plateia permanente que a mansão oferecia.
Próximo ao vestiário, mas não conectado a ele, havia uma sala adjacente com mesas de massagens e uma banheira de hidromassagem no canto. O lugar também tinha um monte de colchonetes azuis que nunca foram usados desde que haviam sido colocados ali – os Irmãos quase não tinham tempo para pugilismo, quanto mais para brincar de bailarina com seus preciosos tendões e glúteos.
John reforçou a porta fechada com uma cadeira de plástico e virou-se para encarar Xhex. Ela estava andando em volta da sala. Na opinião dele, seu corpo flexível e passos suaves eram melhores que um grande show de striptease.
Aproximando-se da lateral da porta, apagou as luzes.
O sinal branco e vermelho de saída em cima da porta criou uma piscina de luz fraca que seu corpo dividiu em duas, sua sombra era uma alta e escura divisão que se estendia por todo o piso azul até os pés de Xhex.
– Deus, eu quero você – ela disse.
Não precisaria dizer aquilo duas vezes. Chutando os sapatos para longe, puxou sua camiseta sobre sua cabeça e deixou cair sobre os colchonetes com uma batida. Então, colocou seus polegares na cintura de bermuda e a desceu sobre suas coxas. Seu membro se libertou e se elevou ereto diante dele. O fato de que estava apontado para ela como uma varinha de condão não era uma grande surpresa – tudo, desde seu cérebro, sangue, até o bater de seu coração, estava focado na fêmea parada a três metros de distância dele.
Mas não ia pular sobre ela e começar a se movimentar com força. Não. Nem mesmo se aquilo tornasse suas bolas azuis como um Smurf...
Seus pensamentos deixaram de fazer sentido quando as mãos dela se dirigiram para a cintura da blusa e, com um movimento elegante, deslizou a peça de roupa sobre seu tronco e cabeça. Embaixo disso, não havia nada além de sua linda pele suave e seus altos e firmes seios.
Quando o perfume dela surgiu do outro lado da sala e ele começou a ofegar, os dedos ágeis de Xhex começaram a abrir o laço de sua calça e o fino algodão verde caiu rapidamente em seus tornozelos.
Oh... meu Deus, ela estava gloriosamente despida para ele, e as linhas impressionantes de seu corpo eram maravilhosas: apesar de terem feito sexo duas vezes, ambas foram rápidas e quentes e não teve a chance de olhar para ela direito...
John piscou com força.
Por um momento, tudo que conseguia enxergar eram os hematomas em seu corpo, especialmente aqueles dentro de suas coxas. Saber agora que ela não os tinha conseguido por causa de luta corporal...
– Não pense nisso, John – ela disse roucamente. – Eu não estou pensando e você também não deveria. Simplesmente... não pense nisso. Ele já tirou muito de nós dois.
A garganta dele ficou tensa com um rugido de vingança, que tratou de abafar apenas porque sabia que ela estava certa. Com grande força de vontade, decidiu que aquela porta atrás dele, aquela que tinha bloqueado com a cadeira, ia manter do lado de fora não apenas as pessoas da mansão, mas seus fantasmas e erros também.
Haveria tempo depois para igualarem o placar.
Você é tão linda, disse com os lábios.
Mas claro que ela não conseguia ver seus lábios.
Então, teria que mostrar isso a ela.
John deu um passo à frente e outro e outro. E não era apenas ele indo em direção a ela. Xhex o encontrou no meio do caminho, a forma dela foi envolvida pela sombra lançada pelo corpo dele, mas mesmo assim, aquela era a única coisa que ele via.
Quando se encontraram, o peito dele estava pulsando e seu coração. Amo você, ele fez com os lábios no pedaço escuro que havia produzido sob a luz.
Alcançaram um ao outro no mesmo momento: ele foi direto para o rosto de Xhex. Ela colocou as mãos nas costelas dele. Suas bocas completaram a jornada no ar parado, elétrico, seus lábios se trancaram, suave contra suave, calor contra calor. Puxando-a contra seu peito nu, John envolveu seus braços grossos ao redor dos ombros dela e a segurou apertado enquanto aprofundava o beijo – e ela estava logo ali com ele, deslizando as palmas de suas mãos nas laterais de seu corpo e as escorregando pela parte inferior de suas costas.
Seu pênis dobrou-se entre eles, a fricção entre sua barriga e a dela enviou dardos de calor que subiam através de sua coluna. Mas ele não estava com pressa. Com empurrões preguiçosos, seus quadris se moveram para frente e para trás, acariciando-a com sua ereção enquanto movia suas mãos pelos braços dela e então para sua cintura.
Empurrando profundamente com a língua, arrastou uma das mãos até o cabelo curto que havia na nuca dela e deixou a outra cair na parte de trás de sua coxa. A perna dela subiu com o puxão gentil dele, os músculos macios flexionando...
Com um ágil movimento, ela saltou, pulando em cima dele e enlaçando a outra perna ao redor dos quadris dele. Quando seu membro tocou algo quente e úmido, ele gemeu e os levou para o chão, segurando-a enquanto mergulhavam nos colchonetes.
John quebrou o selo do beijo e recuou o suficiente para que pudesse correr sua língua pelo lado da garganta dela. Travando-a, sugou as linhas de seu pescoço e seguiu para baixo com suas presas, que vibrava com os impulsos de sua ereção. Enquanto descia, os dedos dela se enterravam no cabelo dele e o segurava contra sua pele, movendo-o na direção de seus seios.
Recuando, ergueu-se sobre ela e traçou com os olhos a maneira como seu corpo era destacado pela luz brilhante do sinal de saída. Seus mamilos estavam firmes, suas costelas estavam pulsando forte e os músculos de seu peitoral bombeavam enquanto ela movimentava os quadris. Entre suas coxas, seu sexo liso fez com que abrisse a boca em um assobio silencioso...
Sem aviso, ela estendeu a mão e a colocou sobre seu pênis.
O contato o fez jogar-se sobre seus braços e apoiar-se sobre as palmas das mãos.
– Caramba, você é lindo – ela disse num murmúrio.
A voz dela o colocou em ação e se inclinou para frente, libertando seu membro da mão dela e posicionando-se de modo a ficar ajoelhado entre suas coxas. Baixando a cabeça, cobriu um de seus mamilos com a boca e começou a excitá-la com a língua.
O gemido de Xhex quase o fez gozar ali mesmo e John teve que congelar seu corpo para recuperar o controle. Quando a maré de formigamento retrocedeu o suficiente, ele recomeçou a sugá-la... e deixou suas mãos flutuarem devagar pelas costelas dela, sua cintura e seus quadris.
Num movimento típico de Xhex, foi ela quem o colocou em seu sexo.
Xhex cobriu uma das mãos dele com a sua e a colocou exatamente onde os dois queriam que estivesse.
Quente. Sedoso. Escorregadio.
O orgasmo em sua ereção foi liberado no instante que seus dedos deslizaram e foram parar diretamente sobre a entrada de onde ele estava morrendo de vontade de penetrar: não havia absolutamente nada segurando a liberação e ela riu enquanto ele jorrava em suas pernas.
– Gosta de me ver assim? – ela murmurou.
Ele olhou em seus olhos, e ao invés de concordar, levou a mão até sua boca. Quando ele estendeu sua língua e deslizou entre seus lábios, ela também estremeceu, seu corpo se levantou dos colchonetes, seus seios se ergueram, suas coxas se abriram ainda mais.
Com as pálpebras semicerradas, manteve seu olhar fixado no dela enquanto plantava suas palmas dos dois lados de seus quadris e se abaixava em direção ao seu sexo.
Poderia ter continuado com aqueles beijos suaves. Poderia ter mostrado mais sensibilidade provocando-a com a língua e a ponta dos dedos.
Dane-se tudo isso.
Com uma necessidade primitiva e dolorosa, abocanhou seu núcleo, sugando-a para dentro dele, tomando-a profundamente, engolindo-a. Havia um pouco de seu próprio orgasmo dentro dela e John o provou junto com o mel de Xhex – e o macho vinculado nele adorou a combinação.
Sorte dele. No momento em que terminassem com aquela sessão, sua essência apimentada a teria envolvido completamente, por dentro e por fora.
Enquanto ele acariciava, lambia e penetrava, sentiu uma das pernas dela ser lançada sobre seu ombro, e então Xhex passou a comandar os movimentos contra seu queixo, lábios e boca, acrescentando mais à magia, levando-o a impulsioná-la mais forte.
Quando ela chegou ao orgasmo, disse seu nome. Duas vezes.
E John ficou feliz que, apesar de não ter voz, seus ouvidos funcionavam perfeitamente.
CONTINUA
CAPÍTULO 32
John Matthew acordou, sentiu Xhex ao seu lado e entrou em pânico.
Sonho... Aquilo era um sonho?
Sentou-se lentamente, e quando sentiu o braço dela escorregar em seu peito em direção à barriga, conseguiu pegá-lo antes que atingisse seus quadris. Deus, aquilo que evitava com cuidado estava quente, pesado e...
– John? – ela disse no travesseiro.
Sem pensar, envolveu-se nela e alisou seus cabelos curtos. No instante em que fez isso, ela pareceu cair no sono outra vez.
Um olhar rápido no relógio lhe avisou que eram quatro da tarde. Eles dormiram por horas, e se fosse guiar-se pelo ronco em seu estômago, Xhex deveria estar morrendo de fome também.
Quando se certificou de que tinha apagado outra vez, John libertou-se de seu abraço e andou ao redor silenciosamente. Escreveu um bilhete para ela antes de vestir suas calças de couro e sua camiseta.
Com os pés descalços, alcançou o corredor. Tudo estava tranquilo, pois não havia mais treinamento ali, o que era uma maldita vergonha. Deveria haver gritos dos aprendizes vindos do ginásio, vozes do mestre na sala de aula e batidas dos armários sendo fechados nos vestiários.
Ao invés disso, o silêncio.
Mas percebeu que ele e Xhex não estavam sozinhos.
Quando chegou à porta de vidro do escritório, congelou com a mão sobre a maçaneta.
Tohr estava dormindo na mesa... bem, em cima dela. Sua cabeça estava apoiada em seu antebraço e seus ombros estavam caídos.
John estava tão acostumado a sentir raiva do cara que foi um choque não ter nada do gênero acendendo dentro dele. Em vez disso... sentiu uma esmagadora tristeza.
Tinha acordado ao lado de Xhex naquela manhã.
Mas Tohr nunca, jamais teria isso novamente. Nunca mais voltaria a alisar os cabelos de Wellsie. Nunca mais iria à cozinha para trazer-lhe algo para comer. Nunca iria abraçá-la ou beijá-la novamente...
E ainda tinha perdido um bebê ao longo desse caminho.
John abriu a porta e esperou que o Irmão acordasse de um sobressalto, mas Tohr não fez isso. O macho estava desmaiado. Contudo, aquela exaustão fazia sentido. Estava tentando recuperar sua forma, comendo e malhando vinte e quatro horas, sete dias por semana, e o esforço estava começando a mostrar resultado. Suas calças já não estavam mais caindo e suas camisas não estavam mais tão largas. Mas, evidentemente, o processo era desgastante.
Onde estava Lassiter?, John se perguntou enquanto passava pela mesa e pelo armário. O anjo normalmente andava colado no Irmão.
Esquivando-se pela porta escondida entre as prateleiras de suprimentos, atravessou o túnel em direção à casa. Enquanto avançava, as luzes fluorescentes no teto se estendiam na frente dele, dando a impressão de um caminho predestinado – o que, levando em conta como as coisas estavam, era um conforto. Quando chegou a um conjunto de degraus baixos, subiu, digitou um código e subiu mais um pouco. Emergindo no saguão de entrada, ouviu a televisão na sala de bilhar e percebeu que era o lugar onde o anjo estava.
Ninguém na casa estaria assistindo à Oprah. Não sem uma arma apontada na cabeça.
A cozinha estava vazia, sem dúvida, os doggen estavam comendo algo em seus próprios aposentos antes de começarem a preparar a Primeira Refeição e se ocuparem da casa. O que era muito bom. Ele realmente não queria ajuda.
Com movimentos rápidos, pegou uma cesta da despensa e a encheu. Roscas salgadas. Garrafa térmica com café. Jarra de suco de laranja. Frutas cortadas. Pão doce. Pão doce. Pão doce. Caneca. Caneca. Copo.
Estava apelando para muita caloria e rezando para que ela gostasse de doces. Então, apenas por prevenção, fez um sanduíche de peru. E por um motivo diferente, fez também um de presunto e queijo.
Avançando pela sala de jantar, voltou para a porta debaixo da escadaria.
– Muita comida para dois – disse Lassiter apontando para baixo com seu sarcasmo de sempre.
John se virou. O anjo estava na porta de entrada da sala de bilhar, encostado contra o arco ornamentado. Tinha uma bota cruzada sobre a outra e os braços cruzados no peito. Seus piercings dourados brilhavam, dando a impressão de que havia olhos por toda parte, olhos que não perdiam nada.
Lassiter sorriu um pouco.
– Então, está vendo as coisas de um ângulo diferente agora, não está?
Pouco tempo antes da noite anterior John teria lançado um dane-se como resposta, mas agora estava inclinado a concordar com a cabeça. Especialmente porque achava que as fissuras no concreto do corredor foram causadas pela dor que Tohr tinha sentido.
– Bom – disse Lassiter. – Já era hora. Oh, e eu não estou com ele agora porque todo mundo precisa ficar sozinho de vez em quando. Além do mais, tenho que ter a minha dose de Oprah.
O anjo afastou-se, seus cabelos loiros e negros balançavam.
– E pode calar a boca. Oprah é maravilhosa!
John balançou a cabeça e viu-se sorrindo. Lassiter podia ser um metrossexual pé no saco, mas trouxe Tohr de volta à Irmandade e isso valia alguma coisa.
Atravessou o túnel. Saiu do armário. Entrou no escritório onde Tohr ainda estava dormindo.
Quando John se aproximou da mesa, o Irmão acordou com um espasmo no corpo inteiro, levantando a cabeça de repente. Metade de seu rosto estava amassado para dentro, como se alguém tivesse jogado nele um spray de goma de passar e passado o ferro de uma maneira muito desleixada.
– John... – ele disse com voz rouca. – Oi. Você precisa de alguma coisa?
John enfiou a mão na cesta e tirou o sanduíche de queijo e presunto. Colocou-o sobre a mesa e o empurrou na direção do macho.
Tohr piscou como se nunca tivesse visto duas fatias de pão de centeio com um pouco de recheio antes.
John acenou com a cabeça. Coma, assinalou com a boca.
Tohr se aproximou e colocou a mão no sanduíche.
– Obrigado.
John balançou a cabeça, as pontas dos dedos se demorando sobre a superfície da mesa. Sua despedida foi uma batida rápida de seus dedos. Havia muito a ser dito no pouco tempo que tinha e sua grande preocupação era que Xhex não acordasse sozinha.
Quando alcançou a porta, Tohr disse:
– Estou realmente muito feliz que você a tenha de volta. Muito feliz mesmo.
Quando as palavras flutuaram até ele, os olhos de John se fixaram naquelas rachaduras no corredor. Concluiu que aquilo tinha sido obra dele. Se Wrath e os Irmãos tivessem aberto sua porta com más notícias sobre sua fêmea, teria reagido da mesma maneira que Tohr.
Totalmente acabado. E, em seguida, viveria um grande inferno.
Por cima do ombro, John olhou para o rosto pálido do homem que tinha sido seu salvador, seu mentor... o mais próximo do pai que nunca conheceu. Tohr tinha ganhado peso, mas seu rosto ainda estava vazio e talvez isso nunca mudasse, independente de quantas refeições comesse.
Enquanto os olhares se encontravam, John teve a sensação de que a parceria deles tinha sido muito maior do que apenas a soma dos anos em que conheciam um ao outro.
John colocou a cesta no chão aos seus pés.
Vou sair com Xhex esta noite.
– É?
Vou mostrar a ela onde cresci.
Tohr engoliu em seco.
– Você quer as chaves da minha casa?
John recuou. Disse aquilo apenas para informar o cara sobre o que estava acontecendo com ele, um tipo de contato para tentar remendar a porcaria que tinha acontecido antes.
Não esperava levá-la até lá...
– Vá. Seria bom para você dar uma olhada. O doggen passa por lá apenas uma vez por mês, talvez duas. – Tohr passou e puxou uma das gavetas da mesa. Quando tirou um chaveiro, limpou a garganta. – Aqui.
John pegou as chaves e fechou os dedos ao redor delas, sentindo a vergonha apertar seu peito. Ultimamente, esteve ocupado em ignorar o cara e, mesmo assim, o Irmão se comportava como homem e lhe oferecia algo muito difícil para ele.
– Estou feliz por você e Xhex terem encontrado um ao outro. Faz todo um sentido cósmico, faz mesmo.
John colocou as chaves no bolso para liberar a mão:
Não estamos juntos.
O sorriso que surgiu rapidamente no rosto do sujeito parecia antigo.
– Sim, vocês estão. Vocês estão destinados a ficarem juntos.
Jesus, pensou John, achando que o cheiro de sua vinculação era óbvio. Ainda assim, não havia razão para tratar com todos os “porquês” que envolviam a união deles.
– Então, você vai ao Orfanato Nossa Senhora? – Quando John assentiu, Tohr abaixou e pegou um saco de lixo. – Leve isso com você. É o dinheiro dos narcóticos confiscados naquela casa. Blay trouxe de volta. Imagino que poderia usá-lo.
Quando Tohr se levantou, deixou o saco sobre a mesa e pegou o sanduíche, retirando a embalagem plástica e dando uma mordida.
– Bom trabalho com a maionese – murmurou. – Nem muito. Nem pouco. Obrigado.
Tohr se dirigiu para o armário.
John assobiou baixinho e o Irmão parou, mas não se virou.
– Tudo bem, John. Não precisa dizer nada. Basta se manter a salvo lá fora hoje, certo?
Com isso, Tohr saiu do escritório, deixando John sozinho num rastro de bondade e dignidade que esperava poder produzir um dia.
Enquanto a porta do armário se fechava pensou... que gostaria de ser como Tohr.
Saindo para o corredor, achou engraçado ter aquilo passando por sua cabeça outra vez e este retorno era do tipo que corrigia o mundo: desde que tinha conhecido o cara, fosse pelo tamanho do Irmão, ou por sua inteligência, ou pela maneira como tratava sua fêmea, ou pela maneira como lutava, ou até mesmo pelo som profundo de sua voz... John queria ser como Tohr.
Isso era bom.
Isso era... certo.
Enquanto caminhava até a sala de recuperação, não se sentia exatamente ansioso pela programação noturna. Afinal, o passado era muito melhor quando permanecia enterrado... especialmente o seu, porque fedia.
Mas a questão era que tinha uma chance maior de passar mais tempo com Xhex após arrancá-la de Lash naquele estado. Ela precisaria de outra noite, talvez duas, antes de recuperar sua força plena. E precisaria se alimentar novamente, pelo menos mais uma vez.
Assim, saberia onde ela estava e a manteria ao seu lado durante a noite.
Não importava no que Tohr acreditava, John não estava enganando a si próprio. Mais cedo ou mais tarde, ela fugiria e ele não seria capaz de detê-la.
No Outro Lado, Payne caminhava ao redor do Santuário, com os pés descalços sobre a grama verde e macia, sentindo o perfume das madressilvas e jacintos.
Não havia dormido nem sequer por uma hora desde que sua mãe a tinha reanimado, e embora aquilo em princípio parecesse estranho, não pensava muito a respeito. Simplesmente era assim.
Parecia mais do que provável que seu corpo tivesse tido descanso suficiente para toda uma vida.
Quando passou pelo Templo do Primaz, não entrou. Fez a mesma coisa na entrada do pátio de sua mãe – era muito cedo para a chegada de Wrath e seu treino com ele era o único motivo para estar ali.
Porém, quando chegou ao retiro, abriu uma brecha na porta, embora não pudesse dizer o que a motivou para girar a maçaneta e ficar parada por um período de tempo na soleira.
As tigelas de água que as Escolhidas haviam usado ao longo do tempo para testemunhar os acontecimentos que aconteciam do Outro Lado estavam alinhadas de forma perfeita nas várias mesas, os rolos de pergaminho e canetas de pena estavam alinhados da mesma maneira, prontos para o uso.
Um brilho chamou sua atenção e caminhou até sua origem. A água em uma das bacias de cristal estava se movendo em círculos cada vez mais lentos, como se tivessem acabado de utilizar a coisa.
Ela olhou ao redor.
– Olá?
Não houve resposta, apenas um cheiro suave de limão, que sugeria que No’One havia passado por ali recentemente com seus panos de limpeza. O que, na verdade, era um pouco de desperdício de tempo. Não havia poeira, gordura ou qualquer tipo de sujeira que precisasse ser retirada. Mas No’One fazia parte da grande tradição das Escolhidas, não fazia?
Nada a fazer exceto trabalho inútil que não tinha muito propósito.
Quando Payne se virou para ir embora e passou por todas as cadeiras vagas, o sentimento de fracasso de sua mãe era tão predominante quanto o silêncio que abundava.
Na verdade, ela não gostava da fêmea. Mas havia uma triste realidade para todos os planos que acabaram dando em nada: criar um programa de melhoramento genético de maneira a deixar a raça mais forte. Enfrentar o inimigo no campo de batalha e vencer. Ter muitos filhos servindo-a com amor, obediência e alegria.
Onde estava a Virgem Escriba agora? Sozinha. Sem adorações. Detestada.
E era ainda menos provável que as próximas gerações seguissem seus caminhos, considerando a maneira pela qual tantos pais tinham se afastado das tradições.
Deixando a sala vazia, Payne saiu para a luz difusa e leitosa e...
Descendo pelo espelho d’água, uma forma amarela brilhante se moveu e passou a dançar como uma tulipa na brisa.
Payne caminhou em direção à figura, e enquanto se aproximava, chegou à conclusão de que Layla tinha enlouquecido.
A Escolhida estava cantando uma música que não tinha letra, o corpo dela se movia num ritmo sem música, seu cabelo balançava ao redor como uma bandeira.
Foi a primeira e única vez que uma fêmea não usava um coque da maneira como todas as Escolhidas usavam... pelo menos até onde Payne tinha visto.
– Minha irmã! – disse Layla, hesitante. – Perdoe-me.
Seu sorriso estava mais brilhante do que o amarelo de sua túnica e seu perfume estava mais forte do que nunca, com um toque de canela no ar, tão notável quanto sua voz adorável.
Payne encolheu os ombros.
– Não há nada para perdoar. Na verdade, sua música é agradável aos ouvidos.
Os braços de Layla retomaram seu elegante balanço.
– Está um lindo dia, não?
– Certamente. – Vindo do nada, Payne sentiu uma pontada de medo. – Seu humor está muito melhor.
– Está sim! – A Escolhida rodopiou ao redor, apontando o pé em um lindo arco antes de saltar no ar. – Na verdade, está um dia adorável!
– O que a agradou tanto? – Embora Payne soubesse a resposta. Mudanças de disposição, afinal de contas, raramente eram espontâneas... a maioria exigia um estímulo.
Layla diminuiu o ritmo de sua dança, seus braços e cabelos flutuaram para baixo e descansaram. Enquanto seus dedos elegantes se erguiam até sua boca, parecia ter perdido as palavras.
Encontrou um serviço adequado, Payne pensou. Sua experiência como uma ehros já não era mais apenas uma teoria.
– Eu... – O rubor em suas faces era vibrante.
– Não diga mais nada, apenas saiba que estou feliz por você – murmurou Payne e isso era uma grande verdade. Mas havia uma parte dela que se sentia curiosamente desanimada.
Agora era apenas ela e No’One que estavam sem uso? Parecia que sim.
– Ele me beijou – disse Layla, olhando para o espelho d’água. – Ele... colocou sua boca sobre a minha.
Com graça, a Escolhida sentou na borda de mármore e deslizou a mão ao longo da água. Depois de um momento, Payne se juntou a ela, porque às vezes é melhor sentir algo, qualquer coisa. Mesmo que fosse uma dor.
– Você gostou, não é?
Layla encarou seu próprio reflexo, seus cabelos loiros escorrendo pelos ombros até atingir a superfície prateada da piscina.
– Ele foi... um fogo dentro de mim. Uma grande queimação se espalhando que... me consumiu.
– Então, você não é mais virgem.
– Ele nos deteve após o beijo. Disse que queria que eu tivesse certeza. – O sorriso sensual que surgiu no rosto da fêmea era um eco evidente da paixão. – Eu tinha certeza e ainda tenho. Então, é ele. Na verdade, seu corpo de guerreiro estava pronto para mim. Faminto por mim. Ser desejada dessa maneira foi um presente além do esperado. Pensei que... o cumprimento da minha educação era tudo que eu buscava, mas agora sei que há muito mais esperando por mim do Outro Lado.
– Com ele? – Payne murmurou. – Ou através do exercício de seu dever?
Isso causou um profundo franzir na testa de Layla.
Payne assentiu.
– Presumo que aquilo que busca seja mais sobre ele do que sobre a sua posição.
Houve uma longa pausa.
– Tal paixão entre nós é certamente um indicativo de um destino, não é?
– Não tenho opinião formada sobre isso. – Sua experiência com o destino a levou a um brilhante e sangrento momento de atividade... seguido por uma inanição generalizada. Não era capaz de se pronunciar a respeito do tipo de paixão que Layla se referia.
Ou festejá-la.
– Você me condena? – Layla sussurrou.
Payne ergueu os olhos para a Escolhida e pensou naquela sala vazia, todas aquelas mesas vagas e as gélidas bacias largadas por mãos bem treinadas. Layla estava alegre agora, firmada em coisas que poderiam acontecer fora da vida de Escolhida, parecia outra inevitável deserção. E isso não era uma coisa ruim.
Estendeu a mão e tocou o ombro da outra fêmea.
– Nem um pouco. Na verdade, estou feliz por você.
O prazer tímido de Layla transformou-a de bela a algo próximo de tirar o fôlego.
– Estou tão feliz de compartilhar isso com você. Estou prestes a explodir e não há ninguém... de verdade... com quem conversar.
– Pode sempre conversar comigo. – Afinal, Layla nunca a julgou e estava muito inclinada a conceder à fêmea a mesma graciosa aceitação. – Vai voltar em breve?
Layla assentiu.
– Ele disse que eu poderia voltar a encontrá-lo em sua... como foi que ele mencionou? Próxima noite de folga. E assim o farei.
– Bem, você deve manter-me informada. Na verdade... estarei interessada em ouvir sobre como você vai proceder.
– Obrigada, irmã. – Layla cobriu a mão de Payne, um brilho de lágrimas se formando nos olhos da Escolhida. – Estive tanto tempo sem servir e isto... isto é o que eu sempre desejei. Eu me sinto... viva. –
Bom para você, minha irmã. Isso é... muito bom.
Com um sorriso final de reafirmação, Payne virou-se e se afastou da fêmea. Enquanto caminhava de volta para os alojamentos, viu-se acariciando aquela dor que se formou no centro de seu peito.
Até onde ela sabia, Wrath não chegaria rápido o suficiente.
CAPÍTULO 33
Xhex acordou com o perfume de John Matthew.
Com seu perfume e com o cheiro de café fresco.
Quando suas pálpebras se abriram, seus olhos o encontraram na escura sala de recuperação. Estava de volta à cadeira que antes havia deixado, com o tronco inclinado enquanto colocava o café de uma garrafa térmica verde escura em uma caneca. Havia colocado suas calças de couro e sua camiseta, mas seus pés estavam descalços.
Quando virou-se na direção dela, congelou, suas sobrancelhas se ergueram. E embora o café estivesse a caminho de sua boca, parou e imediatamente o estendeu para que ela o tomasse.
Cara, aquilo o classificava como um homem de poucas palavras.
– Não, por favor – ela disse. – É seu.
Ele fez uma pausa como se considerando se argumentava ou não. Mas então colocou a porcelana em seus lábios e bebeu.
Sentindo-se um pouco mais estável, Xhex afastou as cobertas e deslizou as pernas debaixo delas. Quando se colocou em pé, sua toalha caiu e ela ouviu John respirar com um assobio.
– Oh, desculpe – murmurou, curvando-se e agarrando o tecido felpudo.
Não podia culpá-lo por não querer espiar a cicatriz que ainda estava se curando ao longo da parte inferior de seu ventre. Não era exatamente o que se precisava ver logo antes do café da manhã.
Envolvendo-se na toalha, encaminhou-se lentamente para o banheiro, usou as instalações e lavou seu rosto. Seu corpo estava se recuperando bem, sua coleção de machucados estava desaparecendo, sentia suas pernas mais fortes sob seu peso. E, graças ao descanso e de ter se alimentado dele, suas dores não eram mais tão ruins, apenas mais uma série de vagos desconfortos.
Quando saiu do banheiro, disse:
– Você acha que posso pegar emprestado algumas roupas de alguém?
John assentiu, mas apontou para a cama. Era evidente que queria que ela comesse primeiro e ela concordava totalmente com aquele plano.
– Obrigada – disse, apertando a toalha ao redor dos seios. – O que você tem aí?
Quando sentou, ofereceu a ela uma variedade de coisas e Xhex pegou o sanduíche de peru porque a necessidade de proteína era um desejo que não podia rejeitar. De sua cadeira, John a observou comer, apenas bebendo seu café, e no segundo em que ela terminou, aproximou um pão doce que provou ser muito tentador.
A combinação de cereja e cobertura doce a deixou louca por um pouco de café. E John estava logo ali com uma caneca, como se estivesse lendo sua mente.
Ela terminou rapidamente um segundo pão doce e uma rosca. E um copo de suco de laranja. E duas xícaras de café.
E era engraçado. O silêncio dele tinha um efeito estranho sobre ela. Normalmente, ela era a quieta nas situações, preferindo manter sua própria opinião e não dividindo seus pensamentos sobre nada. Mas com a presença muda de John, sentia-se curiosamente compelida a falar.
– Estou satisfeita – disse, deitando-se de novo contra os travesseiros. Quando ele ergueu uma sobrancelha e levantou o último pãozinho, ela balançou a cabeça. – Deus... não. Não consigo comer mais nada.
E foi só então que ele começou a comer.
– Você esperou por mim? – disse, franzindo a testa. Quando ele baixou o olhar e deu de ombros, ela xingou baixinho. – Não precisava fazer isso.
John encolheu os ombros de novo.
Enquanto o observava, ela murmurou:
– Você tem ótimas maneiras à mesa.
O rubor dele era da cor do dia dos namorados e ela teve de dizer ao seu coração para se acalmar quando começou a bater mais rápido.
Além disso, talvez ela estivesse tendo palpitações porque havia acabado de jogar quase duas mil calorias em seu estômago vazio.
Ou não. Quando John começou a lamber o glacê da ponta de seus dedos, ela avistou rapidamente a língua dele e, por um momento, sentiu uma agitação em seu corpo...
Memórias de Lash esmagando a parte frágil entre suas pernas a levaram de volta àquele quarto, com ele em cima dela, forçando suas pernas a separar-se com suas mãos duras...
– Oh, maldição... – Saindo rápido da cama, cambaleou até o banheiro e quase não chegou a tempo.
Saiu tudo. Os dois pãezinhos. O café. Aquele sanduíche de peru. Evacuação completa de tudo que tinha comido.
Quando se soltou, não sentiu o vômito. Sentia as horríveis mãos de Lash em sua pele... seu corpo dentro dela, pressionando...
E lá se foi o suco de laranja.
Oh, Deus... como tinha passado por tudo aquilo com aquele bastardo repetidas vezes? Os socos, a luta e as mordidas... em seguida, o sexo brutal.
De novo, de novo e de novo... e então as consequências. Agora Xhex tentava tirá-lo dela.
Droga...
Outra onda de náusea cortou seus pensamentos, e embora ela detestasse vomitar, o desligamento momentâneo de seu cérebro era um alívio. Era quase como se seu corpo estivesse tentando exorcizar o trauma fisicamente, explodindo tudo para que ela pudesse recomeçar.
Reiniciar do começo, por assim dizer.
Quando o pior do vômito passou, afundou-se em seus tornozelos e descansou a testa úmida em seu braço. Enquanto sua respiração cortava sua garganta, o reflexo de seu esforço para vomitar fazia com que tremesse muito, como se seu corpo estivesse considerando começar a se organizar de novo para outra rodada.
Não tem mais nada aí, disse à maldita coisa. Nada, a não ser que quisesse colocar seus pulmões para fora também.
Droga, ela odiava essa parte. Logo depois de passar por todo o inferno, sua mente e seu ambiente estavam cheios de minas terrestres e nunca sabia o que poderia provocar uma explosão. Claro, ao longo do tempo, isso diminuía, mas a primeira tentativa de voltar à “vida normal” estava sendo um inferno e meio.
Ela levantou a cabeça e acionou a descarga.
Quando um pano úmido roçou sua mão, ela pulou, mas era apenas John, nada para temer.
E, cara, ele tinha a única coisa que ela realmente queria naquele momento: aquele pano limpo, úmido e frio era uma dádiva divina.
Enterrando seu rosto naquilo, estremeceu de alívio.
– Sinto muito sobre a comida. Estava boa quando botei para dentro.
Hora de chamar a doutora Jane.
Enquanto Xhex se sentava preguiçosamente nua no chão em frente ao vaso sanitário, John mantinha um olho nela e outro no telefone enquanto mandava uma mensagem.
No segundo em que enviou, jogou o celular sobre o balcão e puxou uma toalha limpa dentre a pilha que havia perto da pia.
Queria dar a Xhex alguma privacidade, mas também estava tendo problemas em olhar como sua coluna ameaçava perfurar a pele de suas costas. Enrolando-a na toalha, deixou suas mãos se demorarem sobre os ombros dela.
Queria puxá-la para seu peito, mas não sabia se ela concordaria em chegar tão per...
Xhex se afastou dele e arrumou a toalha, cruzando as duas metades na sua frente.
– Deixe-me adivinhar. Você chamou nossa boa doutora.
Movendo-se, ele colocou as mãos no chão para suportar o peso de seu tronco e se levantou sobre os joelhos de forma que ficasse cercada por ele por todos os lados. Nada mal, ele pensou. O vaso sanitário não estava bem na frente dela, mas se precisasse, tudo o que tinha de fazer era se sentar direito.
– Não estou doente – disse com voz rouca. – Nem da operação nem de nada. Eu só comi rápido demais.
Talvez, ele pensou. Mas, se fosse isso, não faria mal se a doutora Jane a examinasse. Além disso, precisavam saber muito bem como ela estava antes de saírem à noite, concluindo que isso ainda fosse possível.
– Xhex? John?
John assoviou ao som da voz da doutora e, um momento depois, a fêmea de Vishous colocou a cabeça no banheiro.
– Uma festa? E eu não fui convidada? – ela disse, entrando.
– Bem, tecnicamente, acho que foi sim – Xhex murmurou. – Estou bem.
Jane ajoelhou-se, e embora seu sorriso fosse terno, seus olhos eram muito perspicazes ao olhar para o rosto de Xhex.
– O que está acontecendo aqui?
– Fiquei enjoada depois de comer.
– Importa-se se eu medir sua temperatura?
– Eu preferiria não ter nada perto da minha garganta nesse momento, se não se importa.
Jane tirou um instrumento branco de sua maleta.
– Posso fazer isso apenas aproximando esse aparelho da sua orelha.
John ficou chocado quando a mão de Xhex encontrou a sua e apertou forte como se precisasse de algum apoio. Para que ela soubesse que ele estava lá para o que precisasse, apertou de volta e, no instante em que fez isso, os ombros dela se aliviaram e relaxou outra vez.
– Divirta-se, doutora.
Xhex inclinou a cabeça e acabou se apoiando direto no ombro dele. Então, John realmente não poderia evitar colocar sua bochecha nos cachos fofos e macios dela e respirar fundo.
Até onde sabia, a médica trabalhava rapidamente. Mal começou, houve um bipe e ela já estava se afastando... o que significou Xhex levantando a cabeça outra vez.
– Nada de febre. Importa-se se eu olhar a incisão?
Xhex esticou-se para mostrar, separando a toalha e expondo a barriga e a faixa que atravessava a parte inferior de seu abdômen.
– Parece bom. O que você comeu?
– Apenas comi demais.
– Certo. Alguma dor que eu deva saber?
Xhex negou com a cabeça.
– Sinto-me melhor. De verdade. O que eu preciso é de algumas roupas e sapatos... e outra Primeira Refeição.
– Tenho roupas que os médicos usam em cirurgias e que você pode vestir, depois podemos alimentar você de novo.
– Bom. Obrigada. – Xhex começou a se levantar e ele a ajudou, mantendo a toalha no lugar quando escorregou. – Porque vamos sair.
– Não para lutar, você não pode.
John negou com a cabeça e assinalou para a doutora:
Vamos apenas esticar as pernas. Juro.
Os olhos da doutora Jane se estreitaram.
– Posso apenas dar uma opinião médica. E o que eu penso é que você... – olhou para Xhex – deveria comer alguma coisa e ficar por aqui pelo resto da noite. Mas você é uma adulta, então pode fazer as suas próprias escolhas. No entanto, saiba de uma coisa: saiam sem o Qhuinn e terão sérios problemas com Wrath.
Tudo bem, John gesticulou. Não estava empolgado com a rotina de babá, mas não iria correr riscos com Xhex.
Não tinha ilusões a respeito da fêmea que amava. Ela poderia decidir partir a qualquer momento, e se a coisa ficasse feia a esse ponto, gostaria de um pouco de ajuda.
CAPÍTULO 34
Lash acordou na mesma posição em que havia desmaiado: sentado no chão do banheiro no rancho, os braços unidos em cima dos joelhos, a cabeça abaixada.
Quando abriu os olhos, deu uma olhada em sua ereção.
Tinha sonhado com Xhex, as imagens foram tão claras, as sensações tão vívidas que era uma surpresa não ter gozado em suas calças. Tinham voltado àquele quarto, estavam juntos, lutando, mordendo e, então, ele a possuiu, forçando-a a se deitar na cama, obrigando-a a aceitá-lo, mesmo que ela odiasse.
Estava totalmente apaixonado por ela.
O som de um murmúrio úmido fez com que sua cabeça se erguesse. A Mulher Silicone estava voltando a si, seus dedos se contorciam, as pálpebras piscavam como persianas com defeito.
Enquanto seus olhos focavam no cabelo emaranhado e no corpete manchado de sangue, sentiu uma dor aguda nas têmporas, uma ressaca que com certeza não estava ligada à diversão. A prostituta o enojava, estava deitada toda desleixada envolta de sua própria imundície.
Com certeza ela passou mal do estômago e Lash deu graças a Deus por ter dormido durante aquela comoção.
Tirando o cabelo dos olhos, sentiu suas presas se alongarem e soube que estava na hora de colocar a mulher em uso, mas droga... ela era tão atraente quanto um pedaço de carne estragada.
Mais água. Era disso que aquele pesadelo precisava. Mais água...
Quando se inclinou para ligar o chuveiro outra vez, os olhos dela flutuaram sobre ele.
O grito dela repicou de sua boca ensanguentada e ecoou no azulejo até que os ouvidos dele zumbiram como sinos de igreja.
As malditas presas a assustaram demais. Quando os cabelos dele caíram sobre seus olhos outra vez, passou a mão, empurrando-o para trás e questionou se deveria rasgar seu pescoço só para acabar com o barulho. Mas não havia a menor chance de mordê-la antes dela tomar um banho...
Ela não estava olhando para sua boca. Seus olhos grandes e enlouquecidos estavam fixos em sua testa.
Quando o cabelo o incomodou outra vez, ele o empurrou para trás... e alguma coisa saiu em sua mão.
Em câmera lenta, olhou para baixo.
Não, não era seu cabelo loiro.
Sua pele.
Lash se virou para o espelho e se ouviu gritar. Seu reflexo era incompreensível, o pedaço de carne que havia se soltado revelava uma camada de tinta negra que escorria sobre seu crânio branco. Com a unha, testou a extremidade do que ainda estava preso e descobriu que tudo estava frouxo; cada centímetro quadrado em seu rosto não era nada além de uma folha vacilante estendida sobre o osso.
– Não! – ele gritou, tentando colocar a coisa de volta no lugar dando tapinhas...
Suas mãos... oh, Deus, elas também, não. Tiras de pele estavam penduradas nas costas delas e, ao puxar para cima as mangas de sua camisa social, desejou ter sido mais gentil, pois sua derme veio junto com a delicada seda.
O que estava acontecendo com ele?
Atrás dele, no espelho, viu a prostituta passar como um raio numa corrida mortal, parecendo com Carrie, a estranha, só que sem o vestido de baile.
Com uma onda de força, foi atrás dela, seu corpo se movendo sem nada do poder e graça com os quais estava acostumado. Enquanto corria atrás de sua presa, podia sentir o atrito de suas roupas contra a pele e conseguia apenas imaginar os rasgos que estavam acontecendo em cada centímetro de seu corpo.
Pegou a prostituta bem na hora em que tinha chegado à porta dos fundos e começava a lutar com as fechaduras. Golpeando-a por trás, ele agarrou seu cabelo, puxou sua cabeça para trás e mordeu com força, chupando seu sangue negro para dentro de si.
Lash acabou com ela rapidamente, drenando-a até que suas sucções lhe proporcionaram apenas um monte de nada em sua boca e, quando terminou, simplesmente a largou. Com isso, ela desabou no tapete.
Com um andar vacilante, embriagado, voltou ao banheiro e acendeu as luzes que percorriam os dois lados do espelho.
A cada peça de roupa que removia, revelava mais do horror que já estava estampado em seu rosto: seus ossos e músculos reluziam com um brilho negro e oleoso sob a iluminação das lâmpadas.
Era um cadáver. Um cadáver em pé, que andava e respirava, cujos olhos giravam em suas cavidades sem pálpebra ou cílio, a boca mostrava nada além de presas e dentes.
O último pedaço de pele que lhe restava era aquele que servia de base para seu lindo cabelo loiro em sua cabeça, mas até isso estava deslizando para trás, como uma peruca que tinha perdido sua cola.
Retirou o pedaço final, e com as mãos esqueléticas, acariciou aquilo que tinha lhe dado tanto orgulho. Evidentemente, a coisa estava desprezível daquele jeito, o lodo negro coagulando-se nas madeixas, manchando-as, emaranhando-as... de modo que não estavam melhores do que o cabelo daquela prostituta perto da porta.
Deixou seu couro cabeludo cair no chão e olhou para si mesmo.
Através de sua caixa torácica, observou a batida de seu próprio coração e se perguntou, com um horror entorpecente, o que mais apodreceria nele... e o que lhe restaria quando aquela transformação terminasse.
– Oh, Deus... – disse. Sua voz já não soava direito, era um eco deslocado que constituía as palavras de um modo assustadoramente familiar.
Blay ficou parado com a porta de seu armário aberta, suas roupas penduradas à mostra. Era um absurdo, mas quis ligar para sua mãe para pedir um conselho. Algo que sempre fazia quando tinha que se vestir bem.
Mas essa não era uma conversa que estava com pressa de ter. Ela concluiria que aquilo era por causa de uma fêmea e ficaria toda animada com o fato de que estava indo a um encontro e seria forçado a mentir para ela... ou sair do armário.
Seus pais nunca foram de fazer julgamentos... mas era filho único, e não haver qualquer sinal de fêmea significava não apenas nada de netinhos, mas um chute na aristocracia. Não era surpresa, a glymera aceitava bem a homossexualidade, desde que fosse emparelhado com uma fêmea e que nunca, jamais, falasse sobre isso ou fizesse qualquer coisa publicamente para confirmar essa característica com a qual tinha nascido. Aparências. Tudo girava em torno das aparências. E se você se assumisse? Era excluído.
E sua família também.
De alguma maneira, não conseguia acreditar que estava prestes a ir se encontrar com um macho. Em um restaurante. E que depois iria a um bar com o cara.
E seu parceiro estaria vestido de forma incrível. Sempre era.
Então Blay tirou um terno Zegna, que era cinza risca de giz muito claro. A próxima peça foi uma elegante camisa social de algodão, o corpo da camisa era ligeiramente rosado, com seus punhos franceses e um colarinho branco brilhante. Sapatos... sapatos... sapatos...
Bam, bam, bam na porta.
– Ei, Blay!
Droga. Já tinha colocado o terno na cama e tinha acabado de tomar banho, estava de roupão, com gel no cabelo.
Gel: um delator miserável.
Indo à porta, abriu a coisa apenas um centímetro ou dois. Do lado de fora, no corredor, Qhuinn estava pronto para lutar, seu coldre de adagas que usava no peito estava pendurado em sua mão, vestia suas roupas de couro e suas botas de combate estavam bem amarradas.
Contudo, foi engraçado, a rotina de guerreiro não causou tanta impressão. Blay estava ocupado demais lembrando-se da aparência do cara esticado na cama na noite anterior, seus olhos na boca de Layla.
Má ideia ter feito aquela alimentação em seu próprio quarto, Blay pensou. Porque agora ficaria pensando até onde as coisas teriam ido entre aqueles dois sobre seu colchão.
Contudo, conhecendo Qhuinn, devem ter percorrido o caminho inteiro, até o fim. Que ótimo.
– John enviou uma mensagem de texto – o cara disse. – Ele e Xhex vão dar uma volta em Caldwell e pela primeira vez o filho da mãe está...
Os olhos díspares de Qhuinn o percorreram de cima abaixo, então inclinou-se para o lado e olhou sobre o ombro de Blay.
– O que está fazendo?
Blay aproximou um pouco mais as golas de seu robe.
– Nada.
– Sua colônia está diferente... O que fez com seu cabelo?
– Nada. O que estava dizendo sobre John?
Houve uma pausa.
– É... certo. Bem, ele vai sair e nós vamos com ele. Porém, precisamos ser discretos. Vão querer privacidade. Mas nós podemos...
– Estou de folga esta noite.
Aquela sobrancelha com piercing se abaixou.
– E daí?
– E daí... que estou de folga.
– Isso nunca importou antes.
– Importa agora.
Qhuinn movimentou-se para o lado novamente e deu uma rápida olhada ao redor da cabeça de Blay.
– Você vai colocar aquele terno só para impressionar a equipe na casa?
– Não.
Houve um longo silêncio e então uma palavra:
– Quem?
Blay abriu mais a porta e deu um passo para trás entrando mais em seu quarto. Se fosse para ter aquela conversa, não fazia sentido fazer isso do lado de fora, no corredor, para as pessoas verem ou ouvirem.
– Isso realmente importa? – disse, em uma onda de raiva.
A porta foi fechada. Com força.
– Sim. Importa.
Como se estivesse dizendo um “dane-se” para Qhuinn, Blay desfez o laço de seu roupão e o deixou cair de seu corpo nu. E vestiu a calça comprida... sem cueca.
– Só um amigo.
– Macho ou fêmea?
– Como eu disse, isso importa?
Outra longa pausa, durante a qual Blay se enfiou dentro da camisa e a abotoou.
– Meu primo – Qhuinn rosnou. – Você vai sair com Saxton.
– Talvez. – Foi até a cômoda e abriu sua caixa de joias. Dentro dela, abotoaduras de todos os tipos brilhavam. Escolheu um conjunto que tinha rubis.
– Isso é uma vingança por causa de Layla ontem à noite?
Blay congelou com a mão na abotoadura.
– Jesus Cristo!
– É sim, claro. Isso é o que...
Blay se virou.
– Já lhe ocorreu alguma vez que isso não tem nada a ver com você? Que um cara me chamou para sair e eu quero ir? Que isso é normal? Ou será que você é tão egocêntrico que filtra tudo e todos pelo seu narcisismo?
Qhuinn recuou levemente.
– Saxton é um canalha.
– Bem, acho que você saberia mesmo o que torna alguém assim.
– Ele é um canalha, um canalha muito elegante e cheio de classe.
– Talvez tudo o que eu queira seja um pouco de sexo. – Blay levantou uma sobrancelha. – Já faz um tempo para mim e, para começar, aquelas fêmeas com quem eu estive nos bares só para acompanhá-lo não foram tão boas assim. Acho que está na hora de ter um pouco disso e do jeito certo.
O desgraçado teve a ousadia de empalidecer. De verdade. E maldito seja se não vacilou para trás e encostou-se contra a porta.
– Para onde vocês vão? – perguntou asperamente.
– Ele vai me levar ao Sal. E depois vamos àquele bar de charutos. – Blay ajeitou a outra abotoadura e foi até a cômoda pegar suas meias de seda. – Depois disso... quem sabe?
Uma onda de perfume apimentado flutuou através do quarto e, atordoado, Blay ficou em silêncio. De todos os rumos que pensou que aquela conversa seguiria... ativar o aroma de vinculação de Qhuinn não fazia parte de nada do que tinha imaginado.
Blay virou-se.
Depois de um longo, tenso momento, caminhou em direção ao seu melhor amigo, atraído pela fragrância. E enquanto chegava mais perto, os olhos quentes de Qhuinn o seguiam a cada passo, o vínculo entre eles, que estava sendo enterrado pelos dois lados, explodiu de repente dentro do quarto.
Quando estavam face a face, ele parou, seu peitoral cheio de ar encontrou o de Qhuinn.
– Diga a palavra – sussurrou asperamente. – Diga a palavra e eu não irei.
As mãos duras de Qhuinn se ergueram rapidamente envolvendo os dois lados da garganta de Blay, a pressão o obrigou a inclinar sua cabeça para trás e abrir sua boca para poder respirar. Fortes polegares cravaram nas articulações de cada lado de sua mandíbula.
Momento elétrico.
Potencialmente incendiário.
Acabariam na cama, Blay pensou enquanto fechava suas palmas nos grossos pulsos de Qhuinn.
– Diga a palavra, Qhuinn. Faça isso e eu passarei a noite com você. Vamos sair com Xhex e John e quando eles acabarem, voltamos para cá. Diga.
Os olhos azul e verde, dentro dos quais Blay tinha passado toda uma vida olhando, encararam sua boca e o peitoral de Qhuinn bombeava para cima e para baixo como se estivesse correndo.
– Melhor ainda – Blay falou arrastando as palavras. – Por que você simplesmente não me beija...
Blay foi virado de repente e empurrado com força contra a cômoda, que bateu forte contra a parede com um estrondo. Quando frascos de colônia chocalharam e uma escova de cabelo caiu no chão, Qhuinn forçou seus lábios sobre os de Blay, seus dedos cortavam a garganta dele.
Contudo, isso não importava. Rígido e desesperado... era tudo que queria do cara. E Qhuinn parecia concordar totalmente em fazer isso, sua língua disparava, tomava... possuía.
Com as mãos desastradas, Blay arrancou sua camisa para fora da calça e mergulhou sobre o zíper. Tinha esperado tanto tempo por isso...
Mas terminou antes de começar.
Qhuinn virou-se e se afastou enquanto as calças de Blay atingiam o chão e o cara saiu disparado em direção à porta. Com a mão na maçaneta, bateu a testa na madeira uma vez. Duas vezes.
E então, com uma voz morta, disse:
– Vá. Divirta-se. Apenas proteja-se, por favor, e tente não se apaixonar por ele. Ele vai partir seu coração.
Num piscar de olhos, Qhuinn deixou o quarto, a porta se fechou sem som algum.
Na sequência da partida, Blay permaneceu onde tinha sido deixado, a calça ao redor de seus tornozelos, sua ereção, já desaparecendo, era um completo constrangimento mesmo estando completamente sozinho. Quando o mundo começou a vacilar e seu tórax se comprimiu como um punho fechando-se com força, piscou rápido e tentou manter as lágrimas longe de seu rosto.
Como um macho velho, abaixou, curvou-se lentamente e ergueu a cintura da calça, suas mãos apalparam o zíper e o fechou. Sem colocar a camisa para dentro, caminhou e sentou na cama.
Quando seu telefone tocou sobre a mesa de cabeceira, virou-se e olhou em direção à tela. De alguma maneira, esperava ser Qhuinn, mas esta era a última pessoa com quem queria conversar e deixou quem quer que fosse ser atendido pelo correio de voz.
Por alguma razão, ficou pensando no tempo que gastou em seu banheiro se preocupando em se barbear, cortar as unhas e arrumar seu cabelo com o maldito gel. Depois, no tempo em frente ao armário. Tudo isso parecia um desperdício agora.
Sentia-se sujo. Completamente sujo.
E não iria mais sair com Saxton nem com ninguém naquela noite. Não no humor em que estava. Não havia razão para submeter um cara inocente àquela toxina.
Deus...
Maldição.
Quando sentiu que conseguiria falar, estendeu-se sobre o criado mudo e pegou o telefone. Abriu a coisa e viu que foi Saxton quem tinha ligado.
Talvez para cancelar? E isso não seria um alívio? Ser rejeitado duas vezes em uma noite dificilmente seria uma boa notícia, mas naquela o salvaria de ter que dispensar o macho.
Acionando o correio de voz, Blay escorou sua testa na palma da mão e olhou para baixo, encarando seus pés descalços.
– Boa noite, Blaylock. Imagino que esteja, neste exato momento, parado em frente ao seu armário tentando decidir o que vestir. – A voz macia e profunda de Saxton foi um curioso bálsamo, tão calma e suave. – Bem, na verdade, estou diante de minhas próprias roupas... Acredito que eu deva ir com um terno e um colete quadriculado. Acho que terno risca de giz seria um bom acompanhamento de sua parte. – Houve uma pausa e uma risada. – Não que eu esteja lhe dizendo o que vestir, claro. Mas me ligue se estiver em cima do muro. Em relação ao seu guarda-roupa, claro. – Outra pausa e então um tom sério. – Estou ansioso para vê-lo. Tchau.
Blay afastou o telefone de sua orelha e pairou seu polegar sobre a opção delete. Num impulso, salvou a mensagem.
Depois de uma inspiração longa e firme, obrigou-se a se colocar em pé. Mesmo com suas mãos tremendo, vestiu sua fina camisa e voltou-se para a cômoda que estava bagunçada agora.
Pegou os frascos de colônia, arrumou-os mais uma vez e recolheu a escova de cabelo do chão. Então abriu a gaveta de meias... e tirou o que precisava.
Para terminar de se vestir.
CAPÍTULO 35
Darius devia se encontrar com seu jovem protegido depois que o sol tivesse se posto, mas antes se dirigiu para a mansão humana que espiaram por entre as árvores, depois se materializou no bosque em frente à caverna da Irmandade.
Com os irmãos espalhados por toda parte, a comunicação poderia demorar, e um sistema havia sido montado para a troca de avisos e anúncios. Todos iam até um determinado local, uma vez por noite, para ver o que os outros tinham deixado ou para deixar suas próprias mensagens.
Depois de se certificar de que não estava sendo observado, mergulhou no sombrio enclave, atravessou a parede de pedra secreta e abriu caminho através da série de portões em direção ao sanctum sanctorum. O “Sistema de Comunicação” não era nada além de um nicho colocado na parede de pedra, onde a correspondência podia ser colocada e, devido a sua simplicidade, estava no final do caminho.
No entanto, não adiantou-se o suficiente para ver se seus Irmãos tinham qualquer coisa a dizer a ele.
Aproximando-se do último portão, viu sob o chão de pedra o que à primeira vista parecia ser uma pilha de roupas dobradas próximas de uma bolsa rústica.
Quando desembainhou sua adaga negra, uma cabeça escura se ergueu da pilha.
– Tohr? – Darius abaixou a arma.
– Sim. – O menino virou-se em sua cama áspera. – Boa noite, senhor.
– Posso saber o que você está fazendo aqui?
– Dormindo.
– Isso é óbvio, com certeza. – Darius se aproximou e ajoelhou-se. – Mas porque você não volta para sua casa?
Afinal, havia sido renegado, mas Hharm raramente ia à morada de sua companheira. Com certeza o jovem poderia ter ficado com sua mahmen.
O garoto forçou-se a ficar em pé e se equilibrou apoiando-se na parede.
– Que horas são? Eu perdi...?
Darius pegou o braço de Tohr.
– Você comeu?
– Estou atrasado?
Darius não se preocupou em fazer mais nenhuma pergunta. As respostas para o que ele queria saber estavam na maneira como o garoto se recusava a levantar seus olhar: com certeza, solicitaram a ele que não pedisse refúgio na casa de seu pai.
– Tohrment, quantas noites você já passou aqui? – Naquele chão frio.
– Posso encontrar outro lugar onde ficar. Não voltarei a dormir aqui outra vez.
Se isso fosse verdade, louvada seria a Virgem Escriba.
– Espere aqui, por favor.
Darius entrou pelo portão e verificou a correspondência. Enquanto encontrava notificações de Murhder e Ahgony, pensou em deixar uma para Hharm. Colocando palavras do tipo “Como você pôde dar as costas a um filho de seu sangue, ao ponto dele se ver forçado a dormir com nada além de pedras como cama e suas roupas por coberta? Seu imbecil.”
Darius voltou a Tohrment e viu que o garoto tinha empacotado suas coisas em sua bolsa e suas armas já estavam preparadas.
Darius engoliu uma maldição.
– Devemos primeiro ir à mansão da fêmea. Tenho algumas coisas para discutir com... aquele mordomo. Traga suas coisas, filho.
Tohrment o seguiu, mais alerta do que a maioria deveria estar depois de tantos dias sem comida ou descanso apropriado.
Eles se materializaram em frente à mansão de Sampsone e Darius apontou com a cabeça para a direita, indicando que deveriam prosseguir pelos fundos. Quando chegaram à parte de trás da casa, dirigiram-se à porta pela qual haviam saído na noite anterior e tocou a estrondosa campainha.
O mordomo abriu caminho e fez uma reverência.
– Senhores, há alguma coisa que possamos fazer para servi-los em sua missão?
Darius entrou.
– Gostaria de falar outra vez com o mordomo do segundo andar.
– Mas é claro. – Outra reverência. – Tenham a bondade de me seguir até a sala de visitas.
– Vamos esperar aqui. – Darius sentou-se na mesa desgastada dos serviçais.
O doggen empalideceu.
– Senhor... Isso é...
– Onde eu gostaria de conversar com o mordomo Fritzgelder. Não vejo nenhum benefício em aumentar a aflição do seu mestre e senhora pelo nosso encontro não anunciado em sua casa. Não somos convidados, estamos aqui a serviço de sua tragédia.
O mordomo fez uma reverência tão profunda que foi uma surpresa ele não ter caído de testa no chão.
– Em verdade, o senhor está certo. Vou chamar Fritzgelder neste exato momento. Existe algo que possamos fazer para sua comodidade?
– Sim. Apreciaríamos muito alguns alimentos e cerveja.
– Oh, senhor, mas é claro! – O doggen se inclinou respeitosamente enquanto saía do cômodo. – Eu deveria ter oferecido, perdoe-me.
Quando ficaram sozinhos, Tohrment disse:
– Você não precisa fazer isso.
– Fazer o quê? – Darius falou demorando-se nas palavras, correndo as pontas dos dedos sobre a superfície ondulada da mesa.
– Conseguir comida para mim.
Darius olhou sobre o ombro.
– Meu estimado garoto, foi um pedido calculado para deixar o mordomo mais à vontade. Nossa presença neste local é uma fonte de grande desconforto para ele, tanto quanto o pedido para interrogar outra vez seu serviçal. O pedido por comida deve ter sido um alívio para ele. Agora, por favor, sente-se, e quando as provisões e a bebida chegarem, deve consumi-los. Já me alimentei antes.
Houve o som de uma cadeira sendo arrastada para trás, em seguida um rangido quando o peso de Tohrment se acomodou.
O mordomo chegou logo depois.
O que foi embaraçoso, já que Darius, na verdade, não tinha nada a perguntar a ele. Onde estava a comida...?
– Senhores – disse o mordomo com orgulho enquanto abria a porta com um floreio.
Empregados se apresentaram com todos os tipos de bandeja e canecas de cerveja e provisões e, enquanto o banquete era servido, Darius levantou uma sobrancelha à Tohrment, em seguida desceu o olhar de maneira incisiva em direção aos diversos alimentos.
Tohrment, o macho educado de sempre, começou a se servir.
Darius assentiu ao mordomo.
– Este é um banquete digno de tal casa. Em verdade, seu mestre deve estar mais que orgulhoso.
Depois que o mordomo e os outros saíram, o outro mordomo esperou pacientemente, assim como Darius também o fez até que Tohrment havia consumido tudo o que podia. E então Darius se levantou.
– Muito bem, poderia pedir-lhe um favor, mordomo Fritzgelder?
– Mas é claro, senhor.
– Poderia fazer a gentileza de guardar a bolsa de meu colega durante a noite? Retornaremos depois que fizermos nossa inspeção.
– Oh, sim, senhores. – Fritzgelder curvou-se. – Tomarei o maior dos cuidados com suas coisas.
– Obrigado. Venha, Tohrment, vamos sair.
Enquanto saíam, podia sentir a ira do garoto e não ficou nada surpreso quando seu braço foi capturado.
– Posso cuidar de mim mesmo.
Darius olhou sobre o ombro.
– Não há dúvidas quanto a isso. No entanto, não preciso de um companheiro debilitado por estar de barriga vazia e...
– Mas...
– ... se acha que esta família de tantos recursos ofereceria com má vontade uma mera refeição para ajudar na busca de sua filha, está redondamente enganado.
Tohrment soltou a mão.
– Devo encontrar alojamento. Comida.
– Sim, você vai. – Darius indicou com a cabeça para o círculo de árvores ao redor da propriedade vizinha. – Agora, podemos continuar?
Quando Tohrment assentiu, os dois se desmaterializaram na floresta e depois abriram caminho, avançando pela propriedade da outra mansão.
A cada passo que avançavam em direção ao seu destino, Darius sentia uma sensação de medo esmagadora, que aumentava ao ponto de sentir dificuldade em respirar: o tempo estava trabalhando contra eles.
Cada noite que se passava e eles não a encontravam, era outro passo mais perto de sua morte.
E tinham tão pouco para continuar.
CAPÍTULO 36
O terminal de ônibus de Caldwell ficava do outro lado da cidade, no limite do parque industrial que se estendia até o sul. A antiga construção de telhado plano estava envolta por uma cerca de alambrado e sua galeria de entrada parecia estar cedendo por causa da idade.
Quando John se materializou ao lado de um ônibus estacionado, esperou por Xhex e Qhuinn. Xhex foi a primeira a chegar e, cara, estava com um aspecto muito melhor; os alimentos haviam se acomodado bem na segunda tentativa e a cor de sua pele estava muito boa. Ainda estava vestida com as roupas de médico que a doutora Jane tinha dado a ela, mas por cima usava uma das blusas com capuz preto de John e um de seus casacos esportivos.
Ele adorou o visual. Adorou que ela estivesse usando suas roupas. Adorou como elas ficaram grandes demais nela.
Adorou que ela parecesse uma garota.
Não que não gostasse das roupas de couro ou das camisetas regata e do estilo “vou esmagar suas bolas se der um passo fora da linha” que costumava seguir. Isso também era muito atraente. Só que... por alguma razão, a maneira como ela parecia agora era mais íntima. Provavelmente porque nunca deixou ser vista assim muitas vezes.
– Por que estamos aqui? – ela perguntou, olhando ao redor. Sua voz não parecia frustrada ou irritada, graças a Deus. Estava apenas curiosa.
Qhuinn tomou forma a uns dez metros de distância e cruzou os braços sobre o peito como se não confiasse em si mesmo para não bater em ninguém. O cara estava com um humor horrível. Absolutamente vil. Não pronunciou sequer duas palavras civilizadas no saguão quando John lhe indicou a ordem dos lugares que iriam, e a causa disso não estava muito clara.
Bem... pelo menos não até Blay passar pelo grupo com um aspecto maravilhoso vestindo um terno de risca de giz cinza. O cara fez uma pausa apenas para dizer tchau a John e Xhex; não lançou sequer um olhar para Qhuinn quando saiu em direção à noite.
Usava uma colônia nova.
Estava claro que iria a um encontro. Mas com quem?
Com um silvo e um rugido, um ônibus saiu da vaga onde estava estacionado, a fumaça do motor a diesel fez o nariz de John ameaçar um espirro.
Vamos, assinalou com a boca para Xhex, mudando sua mochila para o outro ombro e puxando-a para frente.
Os dois caminharam pela calçada úmida em direção à luz fluorescente brilhante do terminal. Mesmo estando muito frio, John manteve sua jaqueta de couro aberta para o caso de precisar pegar suas adagas ou sua arma e Xhex também estava equipada.
Os redutores poderiam estar em qualquer lugar e os humanos poderiam ser muito idiotas.
Segurou a porta aberta para ela e ficou aliviado ao ver que havia apenas um velho dormindo num dos bancos e uma mulher com uma maleta, além do bilheteiro que ficava atrás de um vidro plexiglas.
A voz de Xhex soou baixa.
– Este lugar... deixa você triste.
Droga, era verdade. Mas não por causa do que havia vivenciado ali... mas sim pelo que sua mãe deve ter sentido sozinha ao sofrer as dores do parto.
Assoviando com força, ergueu a mão quando os três humanos levantaram o olhar. Reduzindo o nível de suas consciências, deixou cada um deles em meio a um ligeiro transe e caminhou até a porta de metal em que tinha uma placa parafusada onde se lia MULHERES.
Colocando sua mão no painel frio, abriu um pouco e escutou. Não se ouvia nada.
O lugar estava vazio.
Xhex passou por ele, seus olhos percorreram as paredes de alvenaria, as pias de aço inoxidável e os três cubículos. O lugar cheirava à cândida e à umidade, o balcão molhado e os espelhos não eram feitos de vidro, mas de chapas polidas de metal. Tudo estava fixado com parafusos, desde a saboneteira, passando pela placa de Não fume até a lata de lixo.
Xhex parou em frente ao banheiro reservado para deficientes, com olhar penetrante. Ao empurrar um pouco a porta para abrir, recuou e pareceu confusa.
– Aqui... – apontou para baixo, no canto. – Aqui foi onde você estava... onde aterrissou.
Quando voltou a olhá-lo, ele encolheu os ombros. Não sabia o lugar com precisão, porém fazia sentido imaginar que se estivesse tendo um bebê, gostaria que fosse onde tivesse mais espaço.
Xhex lhe encarou como se estivesse vendo através dele e se virou rapidamente para ver se havia chegado alguém. Não. Somente ela e ele, juntos no banheiro feminino.
O quê foi?, gesticulou ao deixar que a porta se fechasse.
– Quem encontrou você? – Quando ele fingiu estar limpando o piso, ela murmurou: – Um zelador.
Quando assentiu com a cabeça, sentiu vergonha do lugar, de sua história.
– Não sinta. – Ela se aproximou dele. – Acredite, não sou ninguém para julgá-lo. Minhas circunstâncias não foram melhores que essas. Caramba, foram indiscutivelmente piores.
Sendo uma mestiça sympatho, John poderia apenas imaginar. Afinal, na maioria das vezes, as duas raças não se misturavam de bom grado.
– Para onde você foi depois daqui?
Ele a guiou para fora do banheiro e olhou ao redor. Qhuinn estava no outro canto, olhando para as portas do terminal como se esperasse que algo cheirando a talco de bebê entrasse. Quando o cara olhou em sua direção, John balançou a cabeça; em seguida, finalizou com o transe, liberando as mentes dos humanos e os três se desmaterializaram.
Quando tomaram forma novamente, estavam no quintal do orfanato Nossa Senhora, perto do escorregador e da caixa de areia. Um vento cortante de março soprava sobre os jardins do santuário da igreja dos indesejados, os balanços rangiam e os ramos desnudos das árvores não ofereciam qualquer proteção. À frente, as linhas de quatro janelas envidraçadas que marcavam os dormitórios estavam às escuras... assim como as do refeitório e da capela.
– Humanos? – Xhex respirou fundo enquanto Qhuinn vagava pelo local e acabou sentando-se em um dos balanços. – Foi criado por seres humanos? Deus... que porcaria!
John caminhou em direção ao prédio, pensando que talvez aquilo não tivesse sido uma boa ideia. Ela parecia horrorizada...
– Você e eu temos mais em comum do que eu pensava.
Ele se deteve e ela deve ter lido sua expressão... ou suas emoções.
– Também fui criada com pessoas que não eram como eu. Contudo, considerando o que a minha outra metade é, isso pode ter sido uma benção.
Caminhando ao lado dele, olhou para seu rosto.
– Você foi mais corajoso do que pensa. – Inclinou a cabeça para o orfanato. – Quando estava aí dentro, você foi mais corajoso do que pode imaginar.
Não concordava, mas não estava disposto a discutir a fé que tinha nele. Depois de um momento, estendeu a mão, e quando ela segurou, caminharam juntos até a entrada dos fundos. Um rápido desaparecimento e estavam no interior.
Oh, droga, ainda usavam o mesmo produto para limpar o chão. Limão ácido.
E a aparência do lugar também não havia mudado. O que significava que o escritório do diretor ainda estava no corredor, na frente do edifício.
Liderando o caminho, foi até a velha porta de madeira, tirou a mochila e a pendurou na maçaneta de bronze.
– O que tem aí, afinal?
Ele ergueu a mão e esfregou os dedos contra o polegar.
– Dinheiro. Da invasão na...
Ele assentiu.
– Bom lugar para deixá-lo.
John se virou e olhou para o corredor onde se localizava o dormitório. Enquanto as recordações borbulhavam, seus pés andavam naquela direção antes de ter consciência que estava indo ao lugar onde, uma vez, havia descansado sua cabeça. Era tão estranho estar ali outra vez, lembrando-se da solidão, do medo e da persistente sensação de ser totalmente diferente, especialmente quando estava com os outros garotos da mesma idade.
Isso sempre piorou as coisas. Estar rodeado daquilo com que deveria ser igual foi o que o deixou mais alienado.
Xhex seguiu John ao longo do corredor, permanecendo um pouco atrás.
Ele caminhava silenciosamente, apoiando a partir do calcanhar até a ponta de suas botas de combate e ela seguiu seu exemplo, de forma que não eram mais do que fantasmas no silencioso corredor. Enquanto seguiam, notou que, embora a estrutura física do edifício fosse velha, tudo estava impecável, desde o linóleo muito bem encerado, passando pelas paredes bem pintadas de bege, até as janelas com telas metálicas embutidas nos vidros. Não havia poeira, nem teias de aranha, nem lascas ou rachaduras no gesso.
Isso deu uma esperança a ela de que as freiras e os administradores cuidassem das crianças com a mesma atenção que davam aos detalhes.
Quando ela e John se aproximaram de um par de portas, pôde sentir os sonhos dos garotos do outro lado, os pequenos redemoinhos de emoção borbulhavam através do sono profundo fazendo cócegas em seus receptores sympatho.
John colocou a cabeça lá dentro, e enquanto encarava os que estavam onde ele tinha estado, ela se viu franzindo a testa outra vez.
A grade emocional dele tinha... uma sombra. Uma construção paralela, mas separada da que havia captado antes, mas agora estava extremamente óbvia.
Nunca havia sentido algo assim em nenhuma outra pessoa e não conseguia explicar... nem acreditava que John tivesse consciência do que estava fazendo. Contudo, por alguma razão, aquela viagem ao seu passado havia exposto uma falha na linha da sua psique.
Assim como outras coisas. John era muito parecido com ela própria, perdido e distante, criado por outras pessoas apenas por obrigação, não por amor.
De alguma maneira, pensou que deveria dizer a ele para parar com aquela coisa toda, porque podia sentir o quanto isso custava a ele... e quanto mais iria custar. Mas estava cativada por aquilo que estava lhe mostrando.
E não só porque, como sympatho, alimentava-se das emoções dos outros.
Não, queria saber mais sobre aquele macho.
Enquanto ele observava os garotos dormindo e permanecia preso em seu passado, ela concentrou sua atenção em seu perfil forte ao ser iluminado pela luz de segurança sobre a porta.
Quando ela levantou a mão e apoiou sobre o seu ombro, John teve um sobressalto.
Queria dizer alguma coisa inteligente e amável, pronunciar alguma combinação de palavras que fossem tão profundas como ele havia feito ao trazê-la até ali. Mas a questão era que havia mais coragem naquelas revelações dele do que em qualquer coisa que Xhex já havia demonstrado a alguém antes, e num mundo cheio de egoísmo e crueldade, ele estava partindo seu maldito coração com aquilo que lhe oferecia.
Esteve tão sozinho ali, e os ecos daquela época difícil ainda o perseguiam. Ainda assim, iria seguir adiante porque havia dito a ela que o faria.
Os belos olhos azuis de John encontraram seu olhar, e quando ele inclinou a cabeça com curiosidade, ela se deu conta de que palavras eram uma bobagem em momentos assim.
Aproximando-se de seu corpo firme, ela passou um de seus braços pela sua cintura. Com a mão livre, esticou-se e segurou sua nuca, puxando-o para ela.
John hesitou, mas logo se aproximou de bom grado, envolvendo seus braços ao redor de sua cintura e enterrando o rosto em seu pescoço.
Xhex o abraçou, emprestando sua força, oferecendo um consolo que era mais do que capaz de proporcionar. Enquanto permaneciam um contra o outro, Xhex olhou por cima dos ombros dele, em direção ao quarto e às crianças nos seus travesseiros.
No silêncio, sentiu como se o passado e o presente estivessem movendo-se e se misturando, mas foi uma miragem. Não havia maneira de consolar o garoto perdido que tinha sido naquela época.
Mas ela tinha o macho adulto.
Ela o tinha em seus braços, e durante um breve momento de fantasia, imaginou que nunca, nunca o deixaria partir.
CAPÍTULO 37
Quando sentou em seu quarto na mansão Rathboone, Gregg Winn deveria se sentir melhor. Graças a algumas imagens evocativas da comovente pintura na sala, juntamente com algumas fotos da área tiradas no crepúsculo, a bronzeada Los Angeles ficou emocionada com as prévias e combinou de começarem a produzi-lo. O mordomo também se mostrou amável, assinando os documentos legais que lhe davam permissão a todos os tipos de acesso.
Stan, o cinegrafista, poderia realizar um exame proctológico na maldita casa, em todos os lugares onde conseguisse enfiar a lente.
Mas Gregg não sentia o sabor da vitória em sua boca. Não, tinha uma sensação que dizia “isso não está certo” percorrendo suas entranhas e uma dor de cabeça causada pela tensão, que percorria desde a base do crânio e todo o caminho até seu lóbulo frontal.
O problema era a câmera escondida que colocaram no corredor na noite anterior.
Não havia explicação racional para o que havia capturado.
Irônico que um “caça-fantasmas”, quando confrontado com uma figura que desaparecia no ar, precisasse de analgésicos e antiácidos. Qualquer um pensaria que ele estaria muito feliz já que, pela primeira vez, não teve que pedir para o cara da câmera falsificar as filmagens.
Quanto ao Stan? Ele apenas deu de ombros. Ah, pensou que era um fantasma, com certeza... mas isso não o perturbou nem um pouco.
Por outro lado, poderia ter sido amarrado a um conjunto de trilhos ou alguma coisa do gênero que pensaria apenas que era hora de um cochilo rápido, antes de ficar completamente chapado.
Havia vantagens em ser um maconheiro.
Quando o relógio marcou dez horas, Gregg levantou-se da frente do laptop e foi até a janela. Cara, ele se sentiria muito melhor sobre essa coisa toda se não tivesse visto aquela figura de cabelos longos perambulando pela área externa na noite anterior.
Para o inferno: melhor isso do que ver o filho da mãe no corredor fazendo um truque de alucinação do tipo “agora você vê, agora você não vê”.
Atrás dele, na cama, Holly disse:
– Está esperando para ver o coelhinho da Páscoa lá fora?
Olhou para ela e pensou que parecia ótima encostada nos travesseiros, com o nariz metido em um livro. Quando ela pegou a coisa, ficou surpreso ao ver que era um livro de Doris Kearns Goodwin sobre os Fitzgeralds e os Kennedys. Imaginou que era mais o tipo de garota que curtisse algo como a biografia de uma atriz de novela.
– Sim, principalmente o rabo de algodão – murmurou. – E eu acho que vou descer e ver se consigo achar a cesta.
– Não traga nenhum daqueles bichinhos de marshmallow. Ovos coloridos, coelhos de chocolate... tudo bem. Menos aqueles bichinhos.
– Vou fazer com que Stan venha e fique com você, ok?
Holly ergueu os olhos.
– Não preciso de babá. Especialmente se for alguém que está sujeito a acender um baseado no banheiro.
– Não quero deixá-la sozinha.
– Não estou sozinha. – Ela acenou para a câmera no canto da sala. – Apenas ligue aquilo.
Gregg se encostou no batente da janela. A forma como o cabelo dela captava a luz era muito bonita. É claro, a cor era, sem dúvida, um trabalho de um especialista em tintura... mas era o tom perfeito de louro contra sua pele.
– Você não está com medo? – disse ele, querendo saber exatamente quando foi mesmo que trocaram os papéis quanto a esse assunto.
– Com relação à noite passada? – Ela sorriu. – Não. Eu acho que aquela “sombra” é Stan pregando uma peça em nós como vingança por fazê-lo trocar de quarto. Você sabe como ele detesta deslocar bagagem. Além disso, acabei voltando para sua cama, não foi? Não que você tenha feito muita coisa com isso.
Agarrou seu blusão e aproximou-se dela. Tomando-lhe o queixo na mão, olhou em seus olhos.
– Você ainda me quer assim?
– Sempre. – A voz de Holly ficou mais baixa. – Estou amaldiçoada.
– Amaldiçoada?
– Para com isso, Gregg. – Quando ele apenas a olhou, ela jogou as mãos para o alto. – Você é uma má aposta. Está casado com seu trabalho e venderia sua alma para subir na vida. Reduz tudo e todos à sua volta a um mínimo denominador e isso lhe permite usá-los. E quando não são úteis? Você nem lembra seus nomes.
Jesus... ela era mais esperta do que pensava.
– Então por que ainda quer ter algo comigo?
– Às vezes... eu realmente não sei. – Seus olhos se voltaram para o livro, mas não iam e voltavam sobre as linhas. Eles apenas se fixaram sobre a página. – Acho que é porque eu era realmente ingênua quando te conheci, e você me deu uma chance quando mais ninguém deu e você me ensinou muitas coisas. E essa paixão inicial está durando.
– Faz soar como se fosse algo ruim.
– Pode ser. Esperava me desvencilhar disso... e depois fazer coisas como cuidar de mim e começar tudo de novo.
Ele olhou para ela, medindo seus traços perfeitos, sua pele lisa e seu corpo incrível.
Sentindo-se confuso e estranho, como se lhe devesse um pedido de desculpas, foi até a câmera no tripé e ativou-a para gravar.
– Está com seu celular aí?
Ela alcançou o bolso do roupão e tirou um BlackBerry.
– Bem aqui.
– Ligue-me se acontecer alguma coisa estranha, certo?
Holly franziu a testa.
– Você está bem?
– Por que pergunta?
Ela deu de ombros.
– É que nunca o vi tão...
– Ansioso? Sim, acho que existe alguma coisa nessa casa.
– Eu ia dizer... conectado, na verdade. É como se estivesse mesmo olhando para mim pela primeira vez.
– Eu sempre olhei para você.
– Não assim.
Gregg foi até a porta e parou.
– Posso perguntar uma coisa estranha? Você... pinta o seu cabelo?
Holly ergueu a mão até suas ondas loiras.
– Não. Eu nunca pintei.
– É realmente loiro assim?
– Você deveria saber.
Quando ela ergueu a sobrancelha, ele corou.
– Bem, as mulheres podem fazer tintura lá embaixo... você sabe.
– Bem, eu não faço.
Gregg franziu a testa e se perguntou quem diabos estava comandando seu cérebro: parecia que todos aqueles pensamentos estranhos estavam brincando em suas ondas mentais, como se talvez sua estação tivesse sido pirateada. Dando-lhe um pequeno aceno, desapareceu em direção ao corredor e olhou à esquerda e à direita, enquanto escutava com atenção. Nenhuma pegada. Nenhum rangido. Ninguém com um lençol sobre a cabeça dando uma de Gasparzinho.
Arrancando seu casaco, seguiu em direção às escadas odiando o eco de seus próprios passos. O som fazia com que se sentisse perseguido.
Olhou atrás de si. Nada além do corredor vazio.
Embaixo, no primeiro andar, olhou para as luzes que haviam sido deixadas acesas. Uma na biblioteca. Uma na entrada da frente. Uma na sala.
Esquivando-se ao virar em uma extremidade da casa, parou para observar o retrato de Rathboone. Por alguma razão, não achava mais que a pintura fosse tão romântica e comercializável.
Por alguma razão, coisa nenhuma. Desejava nunca ter chamado Holly para ver a coisa. Talvez não tivesse ficado tão marcado no subconsciente dela, de tal forma que acabou fantasiando sobre o cara ter se aproximado e tido relações sexuais com ela. Cara... a expressão no rosto dela quando estava falando de seu sonho. Não a parte do medo, mas do sexo, o sexo ressonante. Será que ela ficava assim depois de estar com ele?
Será que alguma vez parou para ver se ele a satisfez daquela maneira?
De qualquer maneira?
Abrindo a porta da frente, saiu como se estivesse em uma missão, quando, na realidade, não tinha aonde ir. Bem, a não ser para longe do computador e das imagens... e daquele cômodo silencioso com uma mulher que poderia ter mais substância do que ele imaginava.
Seria como descobrir que fantasmas existem.
Deus... o ar era limpo ali fora.
Andou para longe da casa, e quando estava a uns cem metros de distância, sobre o gramado ondulado, parou e olhou para trás. No segundo andar, viu a luz acesa em seu quarto e imaginou Holly aninhada contra os travesseiros, o livro em suas mãos longas e finas.
Continuou, indo em direção às árvores e ao riacho.
Será que os fantasmas têm alma? Ou será que eram almas em si?
Será que os executivos de televisão têm alma?
Aquilo sim era uma boa questão existencial.
Deu uma olhada devagar ao redor da propriedade, parando para dar um puxão em um musgo espanhol, sentir a casca dos carvalhos e o cheiro da terra e da neblina...
Estava voltando a casa quando a luz do terceiro andar acendeu... e uma sombra, alta e escura, passou por uma das janelas.
Gregg começou a andar rápido. Em seguida, começou a correr.
Estava voando quando saltou na varanda e atingiu a porta, abrindo-a com força, e começou a pisar firme escada acima. Não deu a mínima àquela história toda de “não vá ao terceiro andar”. E se acordasse as pessoas, tudo bem.
Quando chegou ao segundo andar, deu-se conta de que não fazia a menor ideia de que porta o levaria ao sótão. Andando rápido no corredor, concluiu que os números sobre os batentes indicavam que estava passando pelos quartos dos hóspedes.
Então, passou por uma porta onde se lia: Almoxarifado. Outra: Limpeza.
Obrigado, Jesus: SAÍDA.
Atravessou, chegou à escada dos fundos e subiu os degraus de dois em dois. Quando chegou ao topo, encontrou uma porta trancada com uma luz brilhando por baixo.
Bateu ruidosamente. E conseguiu um monte de nada.
– Quem está aí? – gritou, puxando a maçaneta. – Olá?
– Senhor! O que está fazendo?
Gregg se virou e olhou para baixo em direção ao mordomo... que ainda estava, apesar de já ter terminado o expediente, vestido com seu smoking.
Talvez não dormisse em uma cama, talvez se pendurasse num armário para que não se amassasse durante a noite.
– Quem está lá dentro? – Gregg perguntou, indicando com o dedo por cima do ombro.
– Sinto muito, senhor, mas o terceiro andar é particular.
– Por quê?
– Isso não é de seu interesse. Agora, se não se importa, vou pedir-lhe que retorne ao seu quarto.
Gregg abriu a boca para continuar a discussão, mas em seguida a fechou. Havia uma maneira melhor de lidar com isso.
– Sim. Certo. Tudo bem.
Fez um espetáculo ao pisar forte pelas escadas e passou roçando no mordomo.
Então, foi para seu quarto, como um simples hóspede de nada e entrou.
– Como foi sua caminhada? – Holly perguntou, bocejando.
– Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora? – Como, oh, digamos, um cara morto veio aqui transar com você?
– Não. Bem, a não ser alguém correndo pelo corredor. Quem era?
– Não faço ideia – Gregg resmungou, avançando pelo quarto e desligando a câmera. – Não faço a mínima ideia...
CAPÍTULO 38
John tomou forma próximo a um poste de luz. A iluminação que emanava por baixo de seu pescoço de girafa banhava a frente de um prédio que teria um visual muito melhor se estivesse na total escuridão: os tijolos de argamassa não eram vermelhos e brancos, eram marrom e marrom, e as rachaduras em várias janelas foram tampadas com fita adesiva em ziguezague e com coberturas baratas. Mesmo os degraus baixos que davam no saguão pareciam uma bagunça esburacada, como se tivessem sido atingidos por uma britadeira.
O lugar estava exatamente o mesmo desde quando ele passou a última noite lá, a não ser por um detalhe: o aviso amarelo onde se lia “Condenado” que tinha sido pregado na porta da frente.
Claro que o aviso era lido por alguns como “Bom para invadir”.
Quando Xhex saiu das sombras e se juntou a ele, fez o possível para demonstrar uma aparência calma... e sabia que estava falhando. Aquele tour pela lixolândia de sua vida pregressa era mais difícil de atravessar do que tinha imaginado, mas era como um parque de diversões. Uma vez que você entra num brinquedo e ele começa a funcionar, não tem como parar.
Quem diria que sua existência deveria ter um aviso de cuidado direcionado a mulheres grávidas e pessoas epiléticas.
Sim, não havia como parar isso; ela ficaria decepcionada com ele se terminasse antes da hora. Xhex parecia saber tudo que estava sentindo... e isso incluía uma sensação de fracasso que o rasgaria se ele desistisse ali.
– Você veio parar aqui depois do orfanato? – ela sussurrou.
Assentindo com a cabeça, levou-a a passar em frente do edifício e virar a esquina em direção ao beco. Quando chegou à saída de emergência, imaginou se a trava estaria quebrada...
A fechadura quebrou apenas com um pouco de força e entraram.
O tapete no corredor era parecido com um chão de terra batida em algum tipo de cabana, com manchas acumuladas e grudadas que entraram nas fibras e secaram. Havia garrafas vazias, embalagens amassadas e pontas de cigarros espalhados pelo corredor, e o ar cheirava a axilas de um mendigo.
Cara... mesmo um tanque cheio de aromatizador não ajudaria naquele pesadelo mal cheiroso.
Assim que Qhuinn entrou pela saída de emergência, John virou à esquerda na escada e começou a empreender a subida que o fazia querer gritar. Enquanto subiam, os ratos guinchavam e corriam para fora do caminho, e o odor do cortiço ficava mais espesso e pungente, como se fosse fermentando conforme a altitude aumentava.
Quando chegaram ao segundo andar, abriu caminho pelo corredor e parou em frente a uma grande mancha espalhada na parede. Jesus Cristo... aquela mancha de vinho ainda estava lá... Porém, porque ele estava surpreso? Como se alguma companhia de limpeza fosse até lá para limpá-la.
Passando por mais uma porta, empurrou a que fechava aquilo que tinha sido seu apartamento e... entrou...
Deus, tudo estava exatamente como tinha deixado.
Ninguém tinha morado ali desde que tinha ido embora, algo que supostamente fazia sentido. Gradualmente, as pessoas tinham deixado o local quando ele ainda era um inquilino... bem, aqueles que podiam pagar por um lugar melhor. Os que ficaram eram drogados. E os que tinham ocupado as vagas eram sem-tetos que se infiltraram rapidamente como as baratas que atravessam as janelas e portas quebradas no térreo. O ponto culminante da migração foi o aviso de evacuação: o edifício tinha sido condenado, o câncer da decadência tinha se espalhado por todo o lugar.
Quando olhou a revista de musculação que havia deixado sobre a cama de solteiro perto da janela, a realidade se contorceu sobre ele, arrastando-o para trás, em direção ao passado, mesmo com suas botas de combate firmemente plantadas no aqui e no agora.
Claro, quando esticou o braço e abriu a geladeira desativada... havia latas de proteína.
Sim, pois mesmo com fome, os desabrigados não tomariam aquela porcaria.
Xhex andou por ali e então parou na janela pela qual ele ficou olhando tantas noites.
– Queria ser diferente do que era.
Ele assentiu.
– Quantos anos você tinha quando foi encontrado? – Quando ele mostrou dois dedos duas vezes, os olhos dela se arregalaram. – Vinte e dois? E não fazia nem ideia de que era um...
John negou com a cabeça e avançou para pegar a revista. Folheou as páginas. Percebeu que havia se tornado aquilo que sempre desejou: um filho da mãe enorme e durão. Quem diria? Tinha sido um verdadeiro magricela, à mercê de tantas...
Jogando a revista sobre a cama outra vez, interrompeu aquela linha de pensamento com força e rapidez. Estava disposto a mostrar quase tudo. Mas não aquilo. Aquela parte... nunca.
Não iriam passar no primeiro edifício onde morou sozinho e ela não descobriria o porquê de ter se mudado para aquele lugar.
– Quem o trouxe para o nosso mundo?
Tohrment, expressou com os lábios.
– Quantos anos tinha quando deixou o orfanato? – Ele sinalizou o número um e depois um seis. – Dezesseis? E veio para cá? Direto do Nossa Senhora?
John assentiu e foi em direção a um armário em cima da pia. Abrindo-o, viu a única coisa que esperava encontrar. Seu nome. E a data.
Afastou-se para que Xhex pudesse ver o que tinha escrito. Lembrava-se de quando fez aquilo, tão rápido, com tanta pressa. Tohr estava esperando na calçada e ele correu para pegar sua bicicleta. Rabiscou aquelas marcas como uma prova... não sabia do quê.
– Não tinha ninguém – ela murmurou, olhando para o interior do armário. – Eu era assim. Minha mãe morreu no parto e fui criada por uma família até que legal... pessoas com quem eu sabia que não tinha nada em comum. Deixei-os logo e nunca voltei, pois eu não pertencia àquele lugar... e alguma coisa estava gritando dentro de mim, dizendo que era melhor que eu partisse. Não fazia a mínima ideia que era a parte sympatho e não havia nada no mundo para mim... mas eu tinha que partir. Felizmente, encontrei Rehvenge e ele me mostrou o que eu era. – Ela olhou por cima do ombro. – Pequenos acasos da vida... cara, eles são mortais, não são? Se Tohr não tivesse encontrado você...
Ele teria passado por sua transição e morrido no meio do processo, pois não tinha o sangue necessário para sobreviver.
Por alguma razão, não queria pensar nisso. Ou no fato de que ele e Xhex tinham um trecho na vida em comum, em que estiveram perdidos.
Vamos, assinalou com a boca. Vamos para a próxima parada.
Por entre o milharal, Lash dirigiu ao longo da trilha de terra em direção à fazenda. Providenciou uma proteção psíquica no local para que o Ômega e seu novo brinquedinho não conseguissem rastreá-lo. Também estava usando um boné de beisebol, uma capa com a gola levantada e um par de luvas.
Sentia-se como o Homem Invisível.
Droga, desejava ser invisível. Odiava olhar para si, e depois de algumas horas esperando para ver o que mais cairia em sua descida ao mundo dos mortos-vivos, não tinha certeza se estava aliviado da mudança parecer ter se estabilizado.
Tinha apenas metade do corpo derretido naquele ponto: os músculos ainda estavam pendurados em seus ossos.
A menos de um quilômetro de distância de seu destino, estacionou o Mercedes próximo a um conjunto de pinheiros e saiu. Como todos os seus poderes foram usados para manter-se disfarçado, não havia mais energia alguma dentro dele para se desmaterializar.
Então, foi uma caminhada bem longa até aquele maldito lugar e ficou ressentido de ter de se esforçar daquela maneira apenas para mover seu corpo.
Mas quando chegou até a casa de madeira, foi atingido por uma onda de energia. Havia três carros ridículos no estacionamento – todos os quais ele reconheceu. Os carros eram de propriedade da Sociedade Redutora.
E, veja só, o lugar estava bombando. Havia uns vinte caras dentro e uma grande festa acontecendo: era possível ver barris e garrafas de bebidas através das janelas, e ao redor do lugar havia filhos da mãe acendendo cachimbos e cheirando só Deus sabe o quê.
Onde estava o bastardo?
Ah... que noção de tempo perfeita. Um quarto carro chegou e não era como os outros três. A pintura chamativa do maldito carro esportivo era provavelmente tão cara quanto o trabalho de turbiná-lo, e as rodas tinham um brilho néon que fazia parecer que a coisa estava aterrissando. O garoto saiu de trás do volante e, veja só, estava todo descolado também: usava uma calça jeans nova, uma jaqueta de couro de grife e tinha acendido seu cigarro com alguma coisa de ouro.
Bem, aquilo seria o teste.
Se o garoto entrasse e apenas curtisse a festa, Lash estaria errado quanto à inteligência do filho da mãe... e o Ômega teria conseguido para si nada além de um pouco de diversão. Mas se Lash estivesse certo e o desgraçado fizesse mais do que isso, a festa se tornaria bem interessante.
Lash puxou a gola para mais perto da carne viva que era seu pescoço e tentou ignorar o quão ciumento estava. Já tinha estado na doce situação daquele garoto. Aproveitando o momento “eu sou tão especial” e achando que aquele brilho duraria para sempre. Mas tanto faz. Se o Ômega estava disposto a descartar alguém de sua própria carne e sangue, aquele lixo ex-humano não duraria muito.
Quando um dos bêbados lá dentro olhou na direção de Lash, pensou que poderia estar se arriscando, mas não se importava. Não tinha nada a perder e não estava muito ansioso para passar o resto de sua vida como um bife de carne seca animado.
Feio, fraco e vazando não era nada sexy.
Quando o vento frio fez seus dentes tremerem, pensou em Xhex e se aqueceu com as memórias. De alguma maneira, não conseguia acreditar que o tempo passado com ela tinha sido há poucos dias. Parecia ter se passado anos desde a última vez que a teve sob seu corpo. Pelo amor de Deus, encontrar aquela primeira lesão em seu pulso tinha sido o começo do fim... e ele simplesmente não sabia disso na época.
Apenas um arranhão.
Sim, certo.
Erguendo a mão para empurrar seu cabelo, bateu na aba do boné de beisebol e lembrou-se que não tinha mais nada ali com que se preocupar. Tudo se resumia a uma cúpula de osso.
Se tivesse mais energia, teria começado um discurso mental sobre a injustiça e a crueldade de seu destino decadente. A vida não deveria ter sido assim. Não deveria ter sido excluído. Sempre foi o foco das atenções, o líder, o especial.
Por algum motivo estúpido, pensou em John Matthew. Quando o filho da mãe ingressou no programa de formação de soldados, era apenas um cara ainda na fase de pré-transição, particularmente franzino, com nada além de um nome na Irmandade e uma cicatriz de estrela em seu peito. Era o alvo perfeito para se hostilizar e Lash tinha pegado pesado com o garoto.
Cara, naquela época não fazia a menor ideia de como era ser o estranho que ficava de fora. Como isso fazia com que se sentisse um lixo inútil. Como era olhar para as outras pessoas que faziam isso com você e estar disposto a dar qualquer coisa para estar com elas.
Ainda bem que não tinha a menor ideia de como era. Ou teria pensado duas vezes antes de desprezar o filho da mãe.
E agora, encostado na casca fria e desgrenhada de um carvalho, ao assistir através das janelas da fazenda como outro garoto de ouro vivia a sua vida, sentiu que seus planos mudavam.
Iria acabar com aquele idiota, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Era ainda mais importante que Xhex.
Sua motivação não era apenas o fato de que aquele cara o marcou para morrer. Acontece que queria mandar uma mensagem para seu pai. Afinal, ele era uma maçã podre que não caiu muito longe da árvore – e teria sua vingança custe o que custasse.
CAPÍTULO 39
– Aquela é a antiga casa de Bella – Xhex disse quando tomou forma num campo ao lado de John Matthew.
Quando ele assentiu, ela olhou ao redor, observando o campo. A casa branca de Bella com cercas em volta e uma chaminé vermelha produzia uma pintura perfeita à luz do luar e parecia uma pena que o lugar tivesse sido deixado com nada além das luzes de segurança externas ativadas.
O fato de que na garagem anexa havia um Ford F-150 estacionado e as janelas estarem brilhando fazia com que a sensação de abandono fosse ainda mais real.
– Bella foi a primeira que o encontrou?
John fez um movimento ambíguo com a mão e apontou para outra casinha na pista. Quando começou a gesticular e se deteve em seguida, sua frustração com a barreira de comunicação era óbvia.
– Alguém naquela casa... você os conhecia e eles o colocaram em contato com Bella?
Ele assentiu, enfiou a mão no casaco e tirou o que parecia ser uma pulseira artesanal. Pegando a coisa da mão dele, viu que alguns símbolos no Antigo Idioma haviam sido gravados do lado de dentro.
– Tehrror. – Quando ele tocou o peito, ela disse: – Seu nome? Mas como você sabia? – Ele tocou a cabeça e deu de ombros.
– Simplesmente se lembrou. – Ela se concentrou na casa menor. Havia uma piscina nos fundos e sentiu que suas memórias daquele local eram nítidas, pois cada vez que John passava os olhos sobre o terreno, sua grade emocional acendia como um circuito recebendo eletricidade.
Esteve ali pela primeira vez para proteger alguém. Bella não foi o motivo.
Mary, ela pensou. Mary, a shellan de Rhage. Mas como eles se encontraram?
Estranho... aquilo era uma parede em branco. John estava excluindo Xhex daquela parte.
– Bella entrou em contato com a Irmandade e Tohrment veio até você.
Quando assentiu outra vez, ela devolveu o bracelete, e enquanto passava os dedos pelos símbolos, Xhex ficou maravilhada com a relatividade do tempo. Desde que haviam deixado a mansão, havia passado apenas uma hora, mas sentiu como se tivessem passado um ano juntos.
Deus, ele deu mais do que esperava... e agora ela sabia exatamente porque tinha sido tão prestativo quando ela ficou fora de si na sala de cirurgia.
Ele suportou um verdadeiro inferno. Não viveu sua infância, foi arrastado por ela.
A questão era: em primeiro lugar, como ele foi parar no mundo humano? Onde estavam seus pais? O rei tinha sido seu ghia no período pré-transição... isso era o que seus documentos diziam quando foi pela primeira vez ao ZeroSum. Concluiu que sua mãe tinha morrido e a visita ao terminal rodoviário não desmentiu isso... mas havia buracos nessa história. Alguns dos quais ela tinha a impressão de serem intencionais, outros que ele não tinha sido capaz de preencher.
Franzindo a testa, sentiu que seu pai ainda estava muito presente com ele e, ainda assim, parecia que não tinha sequer conhecido o cara.
– Vai me levar a um último lugar? – ela murmurou.
John pareceu dar uma última olhada no local e então desapareceu, e ela o seguiu, graças a todo o sangue dele que havia em seu corpo.
Quando tomou forma outra vez diante de uma casa muito moderna, a tristeza dele o dominou de tal maneira que sua superestrutura emocional começou a desabar. Contudo, com muita força de vontade, conseguiu deter a desintegração a tempo, antes que não pudesse ser corrigida.
Quando a grade emocional desmorona, você está ferrado. Perdido em meio aos seus demônios internos.
O que a fez pensar em Murhder. No dia em que ele descobriu a verdade sobre ela. Podia lembrar-se exatamente de como sua estrutura emocional apareceu diante dela: as vigas de aço que eram a base da saúde mental foram reduzidas a nada além de uma confusão de destroços.
Xhex foi a única que não ficou surpresa quando ele enlouqueceu e desapareceu.
Assentindo para ela, John andou em direção à porta principal da frente, colocou uma chave e abriu. Quando uma corrente de ar veio de encontro a eles, ela pôde sentir o cheiro da poeira e da umidade, indicando que aquela era outra construção vazia. Mas não havia nada de podre dentro, ao contrário do antigo edifício onde John morava.
Quando ele acendeu a luz do hall de entrada, ela quase engasgou. Na parede, à esquerda da porta, havia um arabesco no Antigo Idioma que proclamava que aquela era a casa do Irmão Tohrment e de sua shellan, Wellesandra.
O que explicava porque doía tanto em John estar ali. O hellren de Wellesandra não havia sido o único a salvar o garoto na pré-transição.
A fêmea tinha sido importante para John. E muito.
John seguiu pelo corredor e acendeu mais luzes enquanto entravam, suas emoções eram uma combinação de afeto e uma forte dor. Quando foram para uma cozinha espetacular, Xhex se dirigiu à mesa do local.
Ele tinha sentado ali, pensou, colocando as mãos no encosto de uma das cadeiras... em sua primeira noite na casa, tinha sentado ali.
– Comida mexicana – ela murmurou. – Estava com tanto medo de ofendê-los. Mas, então... Wellesandra...
Como um cão de caça seguindo as pistas no caminho, Xhex rastreou o que sentia de suas memórias.
– Wellesandra serviu-lhe arroz com gengibre. E... pudim. Sentiu-se satisfeito pela primeira vez e seu estômago não doía e estava... estava tão grato que não sabia como lidar com isso.
Quando olhou para John, seu rosto estava pálido e os olhos brilhavam e ela soube que estava de volta ao seu pequeno corpo, sentado à mesa, todo encolhido... oprimido pelo primeiro ato de bondade que alguém lhe havia feito na vida.
O som de um passo no corredor fez com que ela erguesse a cabeça e percebeu que Qhuinn ainda estava com eles, o cara vagava por ali, seu mau humor era uma sombra tangível ao redor.
Bem, ele não teria que acompanhá-los por muito mais tempo. Aquele era o fim da estrada, o capítulo final da história de John que a deixou a par dos acontecimentos. E, infelizmente, isso significava que tinha que fazer o certo e apropriado e voltar à mansão... onde, sem dúvida, John a faria comer mais, tentando alimentá-la outra vez.
Porém, não queria retornar, ainda não. Em sua mente, tinha decidido tirar uma noite de folga, então aquelas eram as últimas horas antes de iniciar a trilha da vingança... e perder sua doce conexão com John, aquela compreensão que agora tinham um do outro.
Pois ela não iria enganar a si mesma: a triste realidade era que o poderoso laço que os unia era também tão frágil que não tinha dúvida que iria se romper, assim que voltassem a se focar no presente ao invés do passado.
– Qhuinn, pode nos dar licença, por favor?
Os olhos desiguais do cara encararam John e uma série de gestos com as mãos foi trocada entre eles.
– Vá se ferrar – Qhuinn disse antes de virar as costas e marchar em direção à porta da frente.
Após a batida da porta terminar de ecoar pela casa, ela olhou para John.
– Onde você dormia?
Quando indicou um corredor com a mão, ela foi com ele passando por muitos quartos onde havia equipamentos modernos e arte antiga. A combinação fazia o lugar parecer como um museu de arte onde se podia morar e ela o explorou um pouco, colocando a cabeça nas portas abertas das salas e quartos.
Para chegar ao quarto de John precisavam percorrer todo o caminho até o outro lado da casa, e enquanto caminhava até o local, só podia imaginar o choque cultural. Da imundície ao esplendor, vivenciado com uma simples mudança de endereço: ao invés daquela porcaria de apartamento, aquele era um paraíso azul marinho com móveis elegantes, um banheiro de mármore e um maravilhoso tapete.
Além disso, tinha uma porta de vidro corrediça que conduzia a uma varanda particular.
John aproximou-se, abriu o guarda-roupa e ela observou sobre seu forte e pesado braço as pequenas roupas penduradas nos cabides de madeira.
Enquanto ele olhava para as camisetas e calças, os ombros dele estavam tensos e uma de suas mãos estava fechada. Sentia muito sobre algo que havia feito ou pelo jeito que havia agido e isso não tinha nada a ver com ela.
Tohr. Era sobre Tohr.
Lamentava o jeito como as coisas estavam entre eles ultimamente.
– Converse com ele – disse ela baixinho. – Diga o que está acontecendo. Você dois vão se sentir bem melhor.
John concordou e ela pôde sentir nitidamente a determinação dele.
Deus, não tinha certeza sobre como aquilo acontecia – bem, a mecânica era bem simples, mas o que a surpreendia era o fato de que mais uma vez viu-se aproximando-se dele e abraçando-o. Deitou seu rosto entre seus ombros e ficou grata quando sentiu as mãos dele cobrindo as dela.
Ele se comunicava de tantas maneiras diferentes, não é? E, às vezes, um toque é melhor do que palavras para dizer o que se quer.
No silêncio, ela o guiou em direção à cama e os dois sentaram.
Quando ela simplesmente o encarou, ele articulou: O que foi?
– Você tem certeza que me quer indo até lá? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela olhou diretamente em seus olhos. – Sei que deixou algo de fora. Posso sentir. Há um buraco entre o orfanato e o edifício de apartamentos.
Nenhum músculo facial dele se moveu ou sequer se contorceu e também não piscou. Mas a expressão de um macho que era bom em esconder suas emoções era irrelevante. Tinha plena noção do que sabia sobre ele.
– Está tudo bem, não vou perguntar. Não vou pressionar.
O leve rubor no rosto dele era algo que recordaria muito tempo depois de partir... e pensar em deixá-lo foi o que a levou a colocar a ponta de seus dedos nos lábios dele.
Quando recuou surpreso, ela se concentrou em sua boca.
– Quero te dar algo meu – disse com uma voz baixa e profunda. – No entanto, não se trata de ficarmos quites. É apenas porque eu quero.
Afinal, seria ótimo se ela pudesse levá-lo aos lugares importantes de sua vida e guiá-lo através dela, mas saber mais a respeito de seu passado faria sua missão suicida mais difícil para ele: independente do que sentia por John, iria atrás de seu sequestrador e não era tola em se enganar com esperanças de sobreviver a isso.
Lash tinha seus truques.
Truques perversos com os quais fazia coisas ruins.
Lembranças do bastardo voltaram a ela, lembranças horríveis que fizeram suas coxas tremerem, memórias feias que, todavia, serviam para empurrá-la em direção a algo que talvez não estivesse preparada. Mas Xhex não iria para o túmulo tendo Lash como a última pessoa com quem transou.
Não quando ela tinha o único macho que realmente amava na sua frente.
– Quero ficar com você – disse com voz rouca.
Os olhos azuis chocados de John percorreram o rosto dela em busca de sinais de que tinha entendido algo errado. E então uma quente e forte luxúria rompeu todas as suas emoções, sem deixar nada para trás, a não ser um desejo enorme de um macho de sangue puro.
Fez o melhor que pôde para derrotar o instinto e manter alguma aparência de racionalidade, o que aumentou seu crédito. Mas isso significava apenas que seria ela quem terminaria a batalha entre razão e emoção... ao colocar seus lábios contra os dele.
Oh... Deus, os lábios dele eram tão macios.
Apesar do estrondo que sentiu no sangue dele, John se manteve controlado. Mesmo quando ela deslizou sua língua na boca dele. E aquela repressão tornou as coisas mais fáceis para ela, enquanto sua mente ia e vinha entre o que estava fazendo agora...
E o que havia sido feito com ela dias atrás.
Para ajudá-la a se concentrar, Xhex procurou pelo peito dele e correu as mãos pelos músculos sobre o coração. Deitando-o de costas sobre o colchão, sentiu o odor de vinculação que exalava por ela. Tinha um cheiro apimentado único e muito distante de tudo o que se poderia imaginar do cheiro enjoativo de um redutor.
Aquilo a ajudou a separar essa experiência de outras mais recentes que teve.
O beijo começou como uma exploração, mas não continuou assim. John aproximou-se, envolvendo seu corpo forte no dela, sua grande perna circundando-a até que ela estivesse em baixo. Ao mesmo tempo, seus braços a envolveram, trazendo-a com firmeza para junto dele.
John se movia tão devagar quanto ela.
E ela estava bem até que a mão dele escorregou sobre seu peito.
O contato a assustou, tirando-a daquele quarto e daquela cama, levando-a para longe de John e jogando-a de volta no inferno.
Lutando contra a fuga de sua mente, tentou manter-se presa ao presente, a John. Mas quando o polegar dele acariciou seu mamilo, teve que forçar seu corpo a ficar parado. Lash gostava de mantê-la por baixo e de prolongar o inevitável produzindo arranhões e machucados, pois ele adorava as preliminares mais até do que seus próprios orgasmos.
Jogada psicótica inteligente da parte dele. Ela preferia, infinitamente, acabar logo com...
John empurrou sua ereção contra o quadril dela.
Pronto.
Seu autocontrole alcançou o limite e quebrou-se ao meio: com um impulso, o corpo dela fugiu do contato por vontade própria, rompendo a comunhão com o corpo dele, estragando o momento.
Quando saltou da cama, Xhex pôde sentir o horror de John, mas estava muito ocupada cambaleando por causa de seu medo para ser capaz de explicar. Andando, tentando desesperadamente se agarrar à realidade, ela respirou fundo, não de paixão, mas de pânico.
Bem, aquela sensação era mesmo uma porcaria.
Lash desgraçado... iria matá-lo por isso. Não pelo que estava passando, mas pela posição em que ela havia colocado John.
– Sinto muito – ela gemeu. – Não deveria ter começado isso. Sinto muito mesmo.
Ela parou na frente da penteadeira e olhou para o espelho pendurado na parede. John tinha se levantado enquanto ela ia e vinha e parou em frente à porta de correr de vidro, os braços cruzados sobre o peito, a mandíbula apertada enquanto olhava para a noite lá fora.
– John... não é você. Eu juro.
Quando balançou a cabeça, não olhou para ela.
Esfregando o próprio rosto, o silêncio entre eles aumentava a vontade de ela fugir. Simplesmente não conseguia lidar com nada disso, com nada do que estava sentindo e com o que havia feito com John, nem com nada daquela porcaria com Lash.
Seus olhos alcançaram a porta e seus músculos ficaram tensos para sair dali. O que era comum em sua cartilha. Ao longo de toda sua vida, ela sempre confiou em sua capacidade de desaparecer, sem deixar para trás nenhuma explicação, nenhum vestígio, nada além de ar.
Serviu-lhe bem como assassina.
– John...
A cabeça dele se moveu e seu olhar queimava com tristeza quando ela o encontrou no reflexo do vidro.
Enquanto ele esperava que ela dissesse alguma coisa, Xhex pensou em dizer que era melhor que ela fosse embora. Deveria dar outra desculpa idiota e se desmaterializar para fora do quarto... para fora da vida dele.
Mas tudo que conseguiu dizer foi seu nome.
Ele virou o rosto para ela e articulou com a boca: “Sinto muito. Vá. Está tudo bem. Vá.”
No entanto, ela não conseguia se mover. E a boca dela se abriu. Quando percebeu o que estava no fundo de sua garganta, não conseguia acreditar que iria colocar aquilo em palavras. A revelação ia de encontro a tudo que ela sabia sobre si mesma.
Pelo amor de Deus, ela realmente ia fazer isso?
– John... eu... eu fui...
Mudando o foco de seus olhos, ela mediu o próprio reflexo. Sua face de ossos pronunciados e a palidez eram resultado de muito mais do que apenas falta de sono e alimentação.
Com um súbito lampejo de raiva, ela desabafou:
– Lash não era impotente, ok? Ele não era... impotente...
A temperatura no quarto caiu tanto e tão rápido que sua respiração começou a produzir nuvens.
E o que ela viu no espelho a fez cambalear e dar um passo para trás, afastando-se de John: os olhos azuis dele brilharam com uma luz profana e seu lábio superior estava contraído mostrando as presas tão nítidas que pareciam punhais.
Todos os objetos no quarto começaram a vibrar: os abajures nas mesas de cabeceira, as roupas nos cabides, o espelho na parede. O ruído coletivo cresceu até se tornar um rugido e aquilo a fez segurar na cômoda ou correria o risco de cair.
O ar estava vivo. Sobrecarregado. Elétrico.
Perigoso.
E John era o centro dessa energia furiosa, as mãos fechadas, tão apertadas que chegavam a tremer, as coxas dele ficaram tensas em seus ossos ao assumir a posição de combate.
A boca de John se abriu ao máximo quando jogou a cabeça para frente... e soltou um grito de guerra...
O som explodiu tudo ao redor, tão alto que ela teve que cobrir os ouvidos, tão poderoso que sentiu uma explosão contra seu rosto.
Por um momento, achou que ele havia encontrado sua voz – só que não eram suas cordas vocais que estavam fazendo aquele barulho estridente.
Os vidros das portas explodiram atrás dele, quebrando-se em milhares de cacos que se espalharam por todo o local, os fragmentos quicaram na ardósia e capturaram a luz como gotas de chuva...
Ou como lágrimas.
CAPÍTULO 40
Blay não fazia ideia do que Saxton tinha acabado de lhe dar.
Bem, sim, era um charuto e, sim, era caro, mas o nome não se prendeu em sua mente.
– Acho que você vai gostar – disse o macho, reclinando-se para trás em sua poltrona de couro e acendendo seu próprio charuto. – São suaves. Marcantes, mas suaves.
Blay acendeu a chama de seu isqueiro Montblanc e inclinou-se para tragar. Ao reter a fumaça, pôde sentir a atenção de Saxton focada nele.
Outra vez.
Não estava acostumado com tanta atenção, então deixou que seus olhos vagassem pelo local: teto abobadado verde escuro, brilhantes paredes pretas, cadeiras de couro vermelho escuro e cabines onde as pessoas se sentavam às mesas. Vários humanos com cinzeiros junto aos seus cotovelos.
Resumindo: não havia distrações que pudessem ser comparadas aos olhos de Saxton ou à voz ou à colônia ou...
– Então, diga-me – o macho disse, exalando uma nuvem azul perfeita, que, momentaneamente, eclipsou sua feição. – Colocou o seu risca de giz antes ou depois que liguei?
– Antes.
– Sabia que você tinha estilo.
– Sabia?
– Sim. – Saxton olhou fixamente através da pequena mesa de mogno que os separava. – Ou eu não o teria chamado para jantar.
A refeição que compartilharam no Restaurante do Sal foi... realmente adorável. Comeram na cozinha, em uma mesa privada, e iAm lhes preparou um menu especial de antepastos e massas, acompanhado por café com leite e tiramisu de sobremesa. O vinho havia sido branco para o primeiro prato e tinto para o segundo.
Os temas da conversa foram neutros, mas interessantes... e, afinal, isso não importava muito. Se ficariam juntos ou não era o verdadeiro objetivo de cada palavra, olhar e gestos corporais.
Então... era mesmo um encontro, Blay pensou. Uma negociação implícita, disfarçada numa conversa sobre livros e músicas preferidas.
Não era de admirar que Qhuinn fosse direto para o sexo. O cara não tinha paciência para esse tipo de sutileza. Além disso, não gostava de ler e a música que pulsava em seus ouvidos era metalcore que só os loucos ou surdos poderiam suportar.
Um garçom vestido de preto aproximou-se.
– Posso trazer algo para beberem?
Saxton rodou seu charuto entre os dedos indicador e polegar.
– Vinho do Porto, safra de 1945, por favor.
– Excelente escolha.
Os olhos de Saxton se voltaram para Blay.
– Eu sei.
Blay olhou para a janela em frente ao local onde estavam sentados e se perguntou se nunca deixaria de corar perante o cara.
– Está chovendo.
– Está?
Deus que voz. As palavras de Saxton eram tão suaves e deliciosas quanto o charuto.
Blay mexeu as pernas, cruzando-as no joelho.
Enquanto vasculhava seu cérebro a procura de algo que quebrasse o silêncio, parecia que o comentário ridículo sobre o tempo era a observação mais inspirada que faria. O fato era que o final do encontro estava próximo e, até então, só sabia que ele e Saxton lamentavam a perda de Dominick Dunne e que eram fãs de Miles Davis. Não sabia o que iria fazer quando chegasse a hora de seguir caminhos distintos.
Seria o caso de: Ligue para sairmos outra vez? Ou o infinitamente mais complicado, confuso e agradável: Sim, com certeza, irei agora até sua casa para apreciar suas gravuras.
Ao que sua consciência o obrigou a acrescentar: mesmo que eu nunca tenha feito isso com um cara antes e apesar do fato de que qualquer outra pessoa seria apenas um substituto para Qhuinn.
– Quando foi a última vez que esteve num encontro, Blaylock?
– Eu... – Blay deu uma longa tragada no charuto. – Faz um bom tempo.
– O que tem feito para você mesmo? Só trabalho, sem diversão?
– Algo assim.
Ok, amor não correspondido não se enquadrava exatamente em nenhuma dessas categorias, apesar de “sem diversão” ser totalmente certo.
Saxton sorriu um pouco.
– Fiquei feliz por ter me ligado. E um pouco surpreso.
– Por quê?
– Meu primo tem uma certa... reação territorial em relação a você.
Blay girou seu charuto e olhou para a ponta incandescente.
– Acho que você supervaloriza o interesse dele.
– E eu acho que está me dizendo educadamente para que eu cuide de assuntos que me dizem respeito, não está?
– Não há qualquer assunto para tratar sobre isso. – Blay sorriu para o garçom que colocou dois cálices na mesa redonda e se afastou. – Pode acreditar.
– Sabe? Qhuinn tem uma personalidade interessante. – Saxton estendeu a mão com elegância e pegou sua taça de vinho. – Na verdade, ele é um dos meus primos favoritos. Seu inconformismo é admirável e sobreviveu a coisas que iriam esmagar um macho fraco. Contudo, não sei se estar apaixonado por ele seria fácil.
Blay não mordeu a isca.
– Então, você vem sempre aqui?
Saxton riu, seus olhos pálidos brilhando.
– Ok, esse assunto é proibido. – Olhou em volta, franzindo a testa. – Na verdade, não tenho saído muito ultimamente. Muito trabalho também.
– Você disse que é advogado da Antiga Lei. Deve ser interessante.
– Eu me especializei em heranças e espólios, então o fato do negócio estar crescendo é algo para se lamentar. O Fade tornou-se cheio de inocentes desde o verão passado...
Na cabine ao lado, um monte de valentões com relógios de ouro e ternos de seda riam como bêbados arrogantes que eram – a tal ponto que o mais alto deles acabou encostando-se com força em sua cadeira e batendo em Saxton.
O que foi um problema, pois provou que Saxton era um cavalheiro, mas não um covarde.
– Desculpe, mas se importaria de se afastar um pouco?
O desalinhado humano virou-se, sua barriga protuberante sobre o cinto parecia que ia explodir por todo o lugar.
– Sim. Eu me importo. – Seus pálidos olhos lacrimejantes se estreitaram. – Tipos como você não pertencem a este local, de jeito nenhum.
E ele não estava falando sobre o fato de serem vampiros.
Quando Blay tomou seu vinho, o caro líquido teve gosto de vinagre... embora o sabor amargo em sua boca não fosse porque a bebida estivesse ruim.
Um momento depois, o cara bateu as costas contra o assento com tanta força que Saxton quase derramou sua bebida.
– Mas que inferno! – o macho murmurou, pegando seu guardanapo.
O idiota humano inclinou-se em seu espaço outra vez.
– Estamos interrompendo os dois lindos rapazes chuparem aquelas coisas duras?
Saxton sorriu com força.
– Definitivamente está interrompendo.
– Descuuulpe. – O humano de repente levantou seu dedo mínimo acima de seu charuto. – Não quis ofendê-lo.
– Vamos – Blay disse enquanto se inclinava e apagava seu charuto.
– Posso conseguir outra mesa.
– Vão embora juntos, rapazes? – disse o Sr. Boca Grande arrastando as palavras. – Vão a uma festa onde há todos os tipos de charutos? Talvez nós os sigamos, apenas para ter certeza que chegarão bem lá.
Blay manteve os olhos centrados em Saxton.
– Está ficando tarde, de qualquer maneira.
– O que significa que é apenas o meio do nosso dia.
Blay levantou-se e colocou a mão no bolso, mas Saxton gesticulou e o impediu de sacar a carteira.
– Não, permita-me.
Outra rodada de comentários partindo do engraçadinho carregou ainda mais o ar e deixou Blay rangendo os dentes. Felizmente, não demorou muito para Saxton pagar o garçom e, em seguida, seguiram em direção à porta.
Do lado de fora, o ar frio da noite era um bálsamo aos sentidos e Blay respirou profundamente.
– Esse lugar não é sempre assim – Saxton murmurou. – Caso contrário, nunca o teria levado até lá.
– Está tudo bem.
Quando Blay começou a caminhar, sentiu Saxton colocar-se ao seu lado.
Quando chegaram à entrada de um beco, pararam para deixar um carro virar à esquerda na Rua Commerce.
– Então, como está se sentindo sobre tudo isso?
Blay encarou o outro macho e decidiu que a vida era muito curta para fingir que não sabia exatamente o que esse “isso” significava.
– Para ser honesto, sinto-me estranho.
– E isso não se deve àqueles idiotas.
– Eu menti. Nunca estive num encontro antes. – A confissão fez Saxton levantar uma sobrancelha e Blay teve que rir. – Sim, sou um ator de verdade.
O ar suave de Saxton desapareceu, e por trás de seus olhos, um calor verdadeiro começou a brilhar.
– Bem, estou feliz em ser o seu primeiro.
Blay encontrou o olhar do cara.
– Como sabia que eu era gay?
– Não sabia. Apenas esperava que sim.
Blay riu de novo.
– Bem, agora sabe. – Após uma pausa, estendeu a mão. – Obrigado por esta noite.
Quando Saxton tocou sua mão, um frisson de puro calor queimou entre eles.
– Sabe que encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
Blay descobriu que era incapaz de soltar a mão do macho.
– Ah... verdade?
Saxton assentiu.
– Um beijo é o mais comum.
Blay focou nos lábios do macho e de repente se perguntou que gosto teria.
– Venha aqui – Saxton murmurou, puxando-o pela mão e atraindo-o a um refúgio no beco.
Blay seguiu-o na escuridão, guiado por um feitiço erótico que não tinha interesse nenhum em romper. Quando chegaram a um lugar mais oculto entre as fachadas dos edifícios, sentiu o tórax do macho subir contra o seu e, em seguida, seus quadris fundiram-se.
Então, soube exatamente o quanto Saxton estava excitado.
E Saxton sabia que ele também estava.
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Blay não queria pensar em Qhuinn agora e balançou a cabeça para limpar a imagem. Quando isso não funcionou e os olhos azul e verde do cara persistiram em sua mente, fez a única coisa que garantiria parar de pensar em sua perdição.
Venceu a distância entre a boca de Saxton e a sua.
Qhuinn sabia que deveria ter ido direto para casa. Depois que foi sumariamente dispensado da casa de Tohr, sem dúvida para que John e Xhex desfrutassem um pouco de conversa na horizontal, ele deveria ter voltado para a mansão e se consolar com a amigável tequila e ocupar-se com sua maldita vida.
Mas nããão. Ele se materializou na rua do único bar de charuto em Caldwell e assistiu – na chuva, como um perdedor – quando Blay e Saxton sentaram-se em uma mesa bem em frente à janela. Ele teve uma visão completa de como seu primo estava olhando para seu melhor amigo com uma luxúria elegante e, então, alguns idiotas fizeram gracinhas até que os dois deixaram os charutos no meio e as taças de vinho inacabadas.
Não querendo ser pego escondido entre as sombras, Qhuinn teve que se desmaterializar no beco ao lado... que logo se transformou no típico “lugar errado, na hora errada”.
A voz de Saxton pairou sobre a brisa fria.
– Sabe que os encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
– Ah... verdade?
– Um beijo é o mais comum.
Qhuinn sentiu as mãos se fecharem com força, e por uma fração de segundo, pensou realmente em sair de trás do contêiner de lixo em que estava escondido. Mas para fazer o quê? Colocar-se entre os dois dizendo “parem com isso rapazes”?
Bem, sim. Exatamente.
– Venha aqui – Saxton murmurou.
Droga, o bastardo soava como um operador de tele-sexo, todo rouco e sensual. E... oh, cara, Blay estava indo com ele, seguindo o cara na escuridão.
Havia momentos em que o incrível senso de audição de um vampiro era uma verdadeira maldição. E, claro... não ajudava se estivesse espiando perto de uma lata de lixo.
Quando os dois foram ao encontro um do outro, a boca de Qhuinn se abriu. Mas não porque estava chocado e não porque quisesse entrar em ação.
Simplesmente não conseguia respirar. Era como se suas costelas tivessem congelado junto com seu coração.
Não... não, maldição, não...
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Sim, já, Qhuinn queria gritar...
Blay negou com a cabeça. Negou mesmo.
Qhuinn fechou os olhos com força e obrigou-se a se acalmar o suficiente para conseguir desmaterializar-se. Quando tomou forma em frente à mansão da Irmandade, tremia como um filho da mãe... e chegou a considerar curvar-se e fertilizar os arbustos com o jantar que tinha comido antes de sair com Xhex e John.
Depois de respirar fundo duas vezes, decidiu que era mais interessante seguir com o plano A e ficar bêbado. Com isso em mente, entrou pela porta, Fritz o deixou entrar, e dirigiu-se à cozinha.
Inferno, talvez ele tomasse mais do que apenas alguns goles. Deus sabia que Saxton não iria se contentar com um beijo ou dois num beco frio e úmido, e Blay parecia estar preparado para, finalmente, conseguir o que precisava há tanto tempo.
Portanto, haveria tempo de sobra para ele encher a cara até perder a consciência.
Jesus... Cristo, Qhuinn pensava enquanto esfregava o peito e ouvia a voz de seu primo várias vezes: Diga uma coisa. Você já beijou um macho antes?
A imagem de Blay balançando a cabeça parecia uma cicatriz no cérebro de Qhuinn, o que o levou a ir direto para o outro lado da cozinha em direção à despensa, onde as caixas de bebida eram guardadas.
Mas que clichê. Embriagar-se por não querer lidar com as coisas.
Mas pelo menos isso ele faria de acordo com a tradição.
Voltando a atravessar a cozinha, percebeu que havia, pelo menos, uma graça salvadora. Quando os dois fossem partir para ação, teria que ser na casa de Saxton, porque nenhum visitante casual era permitido na casa do rei, nunca.
Quando saiu em direção à porta de entrada, parou de repente.
Blay estava entrando.
– De volta tão cedo – disse Qhuinn rispidamente. – Não me diga que meu primo é rápido.
Blay nem sequer fez uma pausa. Apenas continuou a subir as escadas.
– Seu primo é um cavalheiro.
Qhuinn saiu atrás do melhor amigo, seguindo ao seu encalço.
– Você acha? Na minha experiência, apenas parece um...
Isso fez com que Blay se virasse.
– Você sempre gostou dele. Era seu favorito. Lembro que falava dele como se fosse um deus.
– Eu cresci e perdi o interesse.
– Bem, eu gosto dele. Muito.
Qhuinn quis rosnar, mas matou o impulso abrindo a tequila que tinha surrupiado da prateleira e tomou um gole.
– Bom para você. Fico feliz por vocês dois.
– Sério? Então porque nem sequer está usando um copo?
Qhuinn passou rápido por seu amigo e não parou nem quando Blay disse “Onde estão John e Xhex?”.
– Fora. No mundo. Sozinhos.
– Achei que deveria ficar com eles.
– Fui temporariamente dispensado. – Qhuinn parou no topo da escada e tocou a lágrima tatuada abaixo de seu olho. – Ela é uma assassina, pelo amor de Deus. Pode cuidar dele muito bem. Além disso, estavam se divertindo na antiga casa de Tohr.
Quando chegou ao seu quarto, Qhuinn chutou a porta e tirou a roupa. Após beber um grande gole da garrafa, fechou os olhos e enviou uma convocação.
Layla seria uma boa companhia agora.
Esta era sua especialidade. Afinal, foi treinada para o sexo e tudo que ela queria era usá-lo como uma escola erótica. Não precisava se preocupar em magoá-la ou se ela se sentiria ligada a ele. Era uma profissional, por assim dizer.
Ou seria quando tivesse terminado de fazer algumas coisas com ela.
Quanto a Blay? Não fazia ideia do porquê o cara tinha voltado ao invés de se dirigir à cama de Saxton, mas uma coisa era clara. Os dois estavam atraídos um pelo outro e Saxton não era do tipo que espera muito quando deseja alguém.
Qhuinn e seu primo eram parentes, afinal.
Mas isso não salvaria o filho da mãe magricelo se partisse o coração de Blay.
CAPÍTULO 41
A festa na fazenda continuava e mais pessoas iam chegando, os carros estacionados no gramado, os corpos comprimidos nos cômodos do andar de baixo. A maioria dos que compareceram Lash conhecia do Parque Xtreme, mas não todos. E continuavam trazendo bebidas.
Só Deus sabia que tipo de coisas ilegais havia em seus bolsos.
Que droga, pensou. Talvez estivesse errado e o Ômega estivesse farto de suas perversões...
Quando sentiu uma brisa vinda do norte, Lash ficou imóvel, mantendo-se camuflado e travando sua mente.
Sombra... projetou uma sombra em si próprio, através dele e em torno dele.
A chegada do Ômega foi precedida por um eclipse da lua e os idiotas dentro não faziam a menor ideia do que estava acontecendo... mas aquele lixo sabia. O garoto saiu pela porta da frente, a luz de dentro derramando ao redor dele.
O pai de Lash tomou forma no gramado desalinhado, suas vestes brancas se agitavam em volta de seu corpo, sua chegada diminuiu ainda mais a temperatura do ar. Assim que tomou forma, o idiotinha caminhou até ele e os dois se abraçaram.
Houve uma tentação de atacar os dois, para dizer a seu pai que ele não era nada além de um pervertido inconstante e avisar ao ratinho filho da mãe que seus dias e noites estavam contados...
O rosto encapuzado do Ômega virou na direção de Lash.
Lash ficou totalmente imóvel e projetou em sua mente uma lousa totalmente em branco, para que permanecesse invisível por dentro e por fora. Sombra... sombra... sombra...
A pausa durou uma vida, porque sem dúvida se o Ômega sentisse que Lash estava por perto, seria o fim do jogo.
Depois de um momento, o Ômega voltou sua atenção para seu queridinho da vez, e quando fez isso, algum idiota tropeçou para fora da porta da frente, os braços se agitaram e as pernas ficaram desequilibradas enquanto tentava manter-se em pé. Quando caiu na grama, o cara se moveu em direção a um canteiro, mas não conseguiu: aterrissou em seus joelhos e vomitou por todo o alicerce da casa. Enquanto as pessoas riam dele e os sons da festa rolavam noite adentro, o Ômega deslizou até a porta.
A festa continuou quando ele entrou na casa, sem dúvida porque os bastardos estavam muito chapados para perceber que sob aquela cortina branca, o mal havia acabado de entrar.
No entanto, não continuaram na ignorância por muito tempo.
Uma enorme bomba de luz explodiu, a rajada de iluminação varreu a casa e fluiu para fora das janelas até a linha das árvores. Quando a iluminação se desvaneceu até chegar a um brilho suave, não havia sobreviventes em pé: todos os bêbados caíram ao chão de uma só vez. A diversão tinha acabado.
Caramba. Se a coisa continuasse indo naquela direção...
Lash esgueirou-se para a casa, tomando cuidado para não deixar nenhuma pegada, literal ou figurativamente e, quando se aproximou, ouviu um estranho som de arranhões.
Aproximando-se de uma das janelas da sala, olhou para dentro.
O bastardo estava arrastando os corpos, alinhando-os lado a lado no chão, de modo que todos os rostos ficaram em direção ao norte e havia aproximadamente trinta centímetros entre uma e outra cabeça. Jesus... havia tantos cadáveres que o procedimento do bom soldadinho de enfileirar os mortos se estendeu por todo o caminho entre o corredor até a sala de jantar.
O Ômega recuou como se estivesse apreciando a visão de seu brinquedo enquanto movia os corpos ao redor.
Que. Meigo.
Levou quase meia hora para alinhar todos, os caras do segundo andar foram arrastados para baixo pelas escadas de modo que a cabeça batia em cada degrau e deixava um rastro vermelho de sangue.
Fazia sentido. Era mais fácil puxar um peso morto pelos pés.
Quando todos estavam juntos, o cretino começou a trabalhar com uma faca e aquilo se tornou uma fila para a iniciação. Começando na sala de jantar, cortou a garganta, os pulsos, os tornozelos e o peito. O Ômega o seguia, derramando sangue preto sobre as costelas abertas, golpeando-os com eletricidade.
Nenhuma bacia para este lote. Quando os corações foram extraídos, foram lançados num canto.
Um grande abatedouro?
Quando tudo terminou, havia um lago de sangue no centro da sala onde o piso havia cedido e outro na base da escada que dava para a entrada. Lash não conseguia observar todo o caminho até a sala de jantar, mas tinha plena certeza de que havia muito sangue lá também.
Os gemidos dos induzidos começaram logo em seguida e a safra de miséria que havia sido colhida ficaria mais alta e mais confusa conforme a transição fosse superada e os últimos resquícios de sua humanidade fossem vomitados para fora.
No meio do coro de agonia e confusão, o Ômega virou-se, pisando sobre as massas que se contorciam, dançando para lá e para cá, arrastando o seu manto branco ao longo da porcaria coagulada no chão e, ainda assim, permanecia imaculado.
No canto, o idiotinha acendeu um baseado e deu uma longa tragada como se estivesse tomando fôlego depois de um trabalho bem feito.
Lash se afastou da janela e retirou-se em direção às árvores, sempre mantendo os olhos na casa.
Droga, deveria ter feito algo assim. Mas não tinha os contatos certos no mundo humano para isso. Ao contrário do idiotinha.
Cara, isso mudaria tudo para os vampiros. Aqueles desgraçados iriam enfrentar, de verdade, uma legião de inimigos novamente.
De volta a Mercedes, Lash ligou o motor e retirou-se da fazenda afastando-se pelo caminho mais longo. Atrás do volante, com o ar frio batendo no rosto graças à janela estilhaçada, seu humor era sombrio. Para o inferno com as fêmeas e todas aquelas besteiras. Seu único objetivo na vida era acabar com o idiotinha. Tomar o prêmio do Ômega. Destruir a Sociedade Redutora.
Bem... as fêmeas não faziam parte disso. Sentia-se totalmente esgotado, porque precisava se alimentar – o que quer que estivesse acontecendo à sua camada externa, seu interior ainda desejava sangue e tinha que resolver esse problema antes que pudesse enfrentar seu velho pai.
Ou iria se dar muito mal.
Enquanto dirigia para o centro, pegou o telefone e ficou maravilhado com o que estava prestes a fazer. Contudo, um inimigo em comum sempre acaba resultando em estranhas alianças.
De volta ao Complexo da Irmandade, Blay se despiu no banheiro e entrou debaixo do chuveiro. Ao pegar o sabão e fazer um pouco de espuma, pensou no beijo naquele beco.
Naquele macho.
Naquele... beijo.
Movendo as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e deixou a água quente escorrer por seu cabelo, suas costas, até seu traseiro. Seu corpo parecia querer se arquear com mais força e se deixar levar, alongando-se, deleitando-se naquela onde de calor. Gastou um tempo lavando seu cabelo com xampu e correndo a mão ensaboada e escorregadia por seu corpo.
Enquanto pensava um pouco mais sobre aquele beijo.
Deus, era como se a memória de seus lábios juntos fosse um imã que o arrastava de volta àquele momento repetidas vezes; o puxão foi muito forte para resistir, a conexão muito atraente para conseguir evitar.
Deslizando as palmas das mãos sobre o tronco, perguntava-se quando veria Saxton outra vez.
Quando ficariam sozinhos outra vez.
Movendo a mão mais para baixo, ele...
– Senhor?
Blay girou, seu calcanhar rangeu sobre o mármore. Cobrindo seu membro rígido e pesado com as duas mãos, tentou esquivar-se atrás da porta de vidro.
– Layla?
A Escolhida sorriu timidamente e correu os olhos por seu corpo.
– Fui chamada? Para servir?
– Eu não chamei. – Será que ela tinha confundido? A não ser que...
– Qhuinn me convocou. Concluí que seria neste quarto.
Blay fechou os olhos momentaneamente enquanto a ereção desvanecia. Então acabou com a festinha particular e fechou a água quente. Estendendo a mão, agarrou uma toalha e a envolveu em seus quadris.
– Não, Escolhida – disse calmamente. – Não é aqui. Mas no quarto dele.
– Oh, perdoe-me, senhor. – Iniciou seu caminho para fora do quarto, o rosto em chamas.
– Está tudo bem... cuidado! – Blay pulou para frente e a agarrou quando ela esbarrou na banheira e perdeu o equilíbrio. – Você está bem?
– Sim, eu deveria olhar por onde ando. – Ela observou seus olhos, as mãos descansando em seus braços nus. – Obrigada.
Olhando para o rosto perfeitamente belo, era óbvio o motivo pelo qual Qhuinn estava interessado. Ela era etérea, com certeza, mas havia algo além disso – especialmente quando abaixou as pálpebras e os olhos verdes brilharam.
Inocente, mas erótico. Era isso. Era a combinação cativante de pureza e sexo que era indiscutível aos homens normais – e Qhuinn não chegava nem perto de ser normal. Transava com qualquer coisa.
Imaginou se a Escolhida sabia disso. Ou se isso importaria para ela.
Com a testa franzida, Blay a afastou.
– Layla...
– Sim, senhor?
Bem, inferno... o que dizer? Estava muito claro que não havia sido chamada outra vez para alimentar Qhuinn, pois haviam se alimentado na noite anterior...
Cristo, talvez fosse isso. Já tinham tido relações sexuais uma vez e ela estava voltando para mais.
– Senhor?
– Nada. É melhor você ir. Tenho certeza de que ele está esperando.
– De fato. – O aroma de Layla pairou sobre o local, o cheiro de canela fez o nariz de Blay formigar. – E sou muito grata por isso.
Quando ela se virou e saiu, Blay observou o balançar de seus quadris e sentiu vontade de gritar. Não queria pensar em Qhuinn transando no quarto ao lado... Pelo amor de Deus, a mansão havia sido o único lugar que não havia sido contaminado por toda aquela atividade extracurricular.
Agora, porém, tudo que conseguia ver era Layla entrando no quarto de Qhuinn e deixando sua túnica branca cair ao deslizar pelos ombros; seus seios, ventre e coxas sendo revelados diante daqueles olhos díspares. Ela estaria em sua cama e sob seu corpo num piscar de olhos.
E Qhuinn a trataria bem. Isso era o que acontecia, pelo menos quando se tratava de sexo: ele era generoso com seu tempo e seu talento. Ele se dedicaria a ela com tudo o que tinha, as mãos, a boca...
Certo. Melhor não pensar no resto.
Enxugando-se rapidamente, ocorreu-lhe que talvez Layla fosse a parceira perfeita para o cara. Com seu treinamento, ela não só iria satisfazê-lo em todos os níveis, como nunca esperaria dele monogamia ou se ressentiria por suas façanhas nesse sentido ou forçaria ligações emocionais que ele não sentia. Provavelmente, ela até mesmo entraria na brincadeira, pois era evidente pela forma como andava que se sentia bem com seu corpo.
Era perfeita para ele. Melhor do que Blay, com certeza.
Além disso, Qhuinn havia deixado claro que iria acabar com uma fêmea... uma fêmea tradicional, com valores tradicionais, de preferência que fosse da aristocracia, isso assumindo que encontraria alguém que o aceitasse mesmo com o defeito dos olhos díspares.
Layla preenchia totalmente os requisitos – nada mais tradicional ou de sangue mais puro do que uma Escolhida e era evidente que ela o queria.
Sentindo-se como se tivesse sido amaldiçoado, Blay entrou em seu closet e vestiu uma bermuda e uma camiseta. Não havia chance alguma de sentar-se ali e se aconchegar com um bom livro, enquanto estivesse acontecendo o que quer que fosse na porta ao lado...
Pois é. Não precisava daquelas imagens, mesmo que hipoteticamente.
Saindo para o corredor de estátuas, apressou-se ao passar pelas figuras de mármore, invejando suas poses calmas e rostos serenos. Claro que fingir sempre que “está tudo bem” fazia a ideia de ser um objeto inanimado parecer muito boa. Mesmo significando que não sentiria alegria, também não teria que sentir aquela dor ardente.
Quando chegou ao saguão de entrada, contornou o corrimão e abaixou-se através da porta secreta. No túnel para o centro de treinamento, iniciou uma corrida como aquecimento, e quando passou através da parte traseira do armário de escritório, não diminuiu. A sala de musculação era o único lugar onde suportaria estar agora. Uma boa hora ou mais na esteira e talvez não sentisse mais vontade de descascar a própria pele com uma colher enferrujada.
Ao sair para o corredor, parou de repente quando viu uma figura solitária, encostada na parede de concreto.
– Xhex? O que está fazendo aqui? – Bem, além de encarar o chão.
A fêmea o olhou e seu olhar cinza escuro se assemelhava a poços vazios.
– Oi.
Blay franziu a testa enquanto caminhava até ela.
– Onde está John?
– Está lá dentro. – Ela acenou com a cabeça para a porta da sala de musculação.
O que explicava o barulho monótono que ouvia. Era evidente que alguém estava correndo sobre uma das esteiras.
– O que aconteceu? – Blay disse, somando a expressão dela aos movimentos que os tênis de John estavam fazendo... e chegando a uma conclusão terrível.
Xhex deixou cair a cabeça contra a parede que estava segurando seu corpo.
– Foi tudo o que eu pude fazer para trazê-lo de volta para cá.
– Por quê?
Seus olhos se acenderam ainda mais.
– Vamos apenas dizer que ele quer ir atrás de Lash.
– Bem, isso é compreensível.
– Sim.
Quando a palavra flutuou para fora da boca dela, teve a impressão de que não sabia nem da metade, mas ficou óbvio que aquele comentário era o máximo que ela diria sobre o assunto.
De repente, seu olhar cor de tempestade fixou-se no rosto dele.
– Então, você é a razão pela qual Qhuinn estava de mau humor hoje.
Blay recuou, e então balançou a cabeça.
– Não tem nada a ver comigo. Qhuinn geralmente fica de mau humor.
– Pessoas que tomam a direção errada ficam assim. Pinos redondos simplesmente não se encaixam em orifícios quadrados.
Blay pigarreou, pensando que os sympathos, mesmo aqueles que não estão contra você, não eram o tipo de pessoa que se quer por perto quando está tentando esconder algo. Como, por exemplo, quando o macho que você deseja está com uma Escolhida com rosto de anjo e um corpo feito para o pecado.
Só Deus sabia o que Xhex estava captando da cabeça dele.
– Bem... estou indo treinar. – Como se seu visual não deixasse isso claro.
– Bom. Talvez você consiga falar com ele.
– Eu vou. – Blay hesitou, pensando que Xhex parecia se sentir como ele. – Ouça, não é por nada, mas é evidente que você está exausta. Talvez fosse bom ir até um dos quartos de hóspedes e dormir.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou deixá-lo. Estou aqui fora esperando só porque eu estava deixando-o louco. Ver-me... não é bom para sua saúde mental no momento. Espero que já não esteja mais assim depois que quebrar essa segunda esteira.
– Segunda?
– Tenho certeza que o cheiro de fumaça de uns quinze minutos atrás significa que ele correu até quebrá-la.
– Caramba.
– Sim.
Preparando-se, Blay abaixou-se e entrou na sala de musculação...
– Jesus... Cristo. John.
Sua voz não foi ouvida. No entanto, o barulho da esteira e os passos pesados de John teriam abafado o escapamento de um carro.
O corpo maciço do cara estava a todo vapor na máquina, sua camiseta e tronco estavam cobertos de suor, as gotas se movimentavam em seus punhos cerrados e criavam manchas idênticas de umidade de cada lado no chão. Havia manchas vermelhas em suas meias brancas que se espalhavam a partir dos calcanhares, como se um pedaço da pele tivesse sido arrancado e a bermuda preta que usava batia como uma toalha molhada.
– John? – Blay gritou, enquanto avaliava a esteira quebrada ao lado. – John!
Quando o grito não o fez girar a cabeça, Blay entrou na sua frente e acenou com a mão direita no campo visual do cara. E, então, desejou não ter feito isso. Os olhos que se fixaram nos dele ardiam com um ódio tão cruel que Blay deu um passo para trás.
Quando John voltou a focar o ar na frente de seu rosto, ficou muito claro que o maldito filho da mãe iria continuar correndo até que suas pernas caíssem.
– John, que tal sair daí? – Blay gritou. – Antes de cair?
Nenhuma resposta. Apenas os gritos da esteira e o som de um bombardeio intenso nos pés.
– John! Vamos, agora! Você está se matando!
Dane-se.
Blay deu a volta por trás do aparelho e arrancou o cabo de força da parede. A desaceleração brusca fez John tropeçar e cair para frente, mas segurou-se no apoio de mão. Ou talvez tenha apenas desabado sobre ele.
Sua respiração ofegante rasgava para dentro e para fora da boca e a cabeça pendia em seu braço.
Blay puxou um banco de um dos aparelhos e estacionou sobre ele para que pudesse olhar para o rosto do rapaz.
– John... o que diabos está acontecendo?
John soltou o apoio e caiu para trás, as pernas não suportaram seu peso. Após uma série de respirações entrecortadas, passou a mão pelo cabelo molhado.
– Fale comigo, John. Vou manter isso apenas entre nós. Juro pela vida da minha mãe.
Levou um tempo antes de John erguer a cabeça, e quando o fez, seus olhos estavam brilhantes. E não era pelo suor ou pelo esforço.
– Fale comigo, pois isso não irá a lugar algum – sussurrou Blay. – O que aconteceu? Diga-me.
Quando o cara finalmente começou a fazer os sinais, estava confuso, mas Blay leu as palavras muito bem.
Ele a machucou, Blay. Ele... a machucou.
– Bem, sim, eu sei. Ouvi falar sobre como ela estava quando...
John fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
No silêncio tenso que se seguiu, a pele da nuca de Blay se enrijeceu. Oh... droga.
Houve mais do que isso. Não houve?
– Ruim quanto? – resmungou Blay.
O pior possível, John assinalou com a boca.
– Filho da mãe. Desgraçado filho da mãe. Aquele cretino, filho da mãe, desgraçado!
Blay não costumava xingar, mas às vezes isso é tudo que se pode oferecer aos ouvidos dos outros: Xhex não era sua mulher, mas na opinião dele, não se pode machucar o sexo frágil. Seja lá qual for o motivo... e nunca, nunca dessa maneira.
Deus, a expressão de dor dela não tinha sido apenas por estar preocupada com John. Tinha sido por causa das lembranças. Lembranças horríveis, hediondas...
– John... eu sinto muito.
Gotas frescas caíram do queixo do rapaz na faixa preta da esteira e John enxugou os olhos algumas vezes antes de erguer o olhar. Em seu rosto, a angústia guerreava com uma fúria sem tamanho.
O que fazia todo sentido. Com sua história pessoal, aquilo era totalmente devastador.
Tenho que matá-lo, John gesticulou. Não poderei viver comigo mesmo se não acabar com ele.
Enquanto Blay concordava, os motivos da vingança se faziam óbvios. Um macho vinculado com um passado ruim? O mandado de morte de Lash acabava de receber o selo de APROVADO.
Blay fechou os dedos e ofereceu seus punhos.
– Qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser, estou com você. E não direi nenhuma palavra.
John esperou um momento e então bateu punho contra punho. Sabia que poderia contar com você, sinalizou com a boca.
– Sempre – prometeu Blay. – Sempre.
CAPÍTULO 42
A casa de Eliahu Rathboone ficou totalmente silenciosa mais ou menos uma hora depois que Gregg abortou sua viagem ao terceiro andar, mas ele esperou um bom tempo depois que o mordomo desceu as escadas para tentar subir outra vez.
Ele e Holly não passaram o tempo transando, que era o bom e velho hábito deles, mas conversando. E ele percebeu que quanto mais conversavam, menos sabia a respeito dela. Não fazia ideia de que seus passatempos podiam ser tão triviais quanto tricotar. Ou que sua maior ambição era seguir carreira no verdadeiro jornalismo televisivo – o que não era uma surpresa: a maioria das mulheres “cabeças de vento” do mundo dos reality shows tinham maiores ambições na TV. E ele até sabia que ela tinha tentado ingressar uma vez no noticiário local de Pittsburgh.
O que não fazia ideia era do verdadeiro motivo pelo qual ela deixou o primeiro emprego. O gerente, casado, esperava que ela fizesse um tipo diferente de serviço, mais privado, e quando ela disse “não”, ele a demitiu depois de dar um jeito para que ela falhasse na frente das câmeras.
Gregg viu a fita onde ela massacrava as palavras no ar. Afinal de contas, fez sua lição de casa, e apesar do seu teste com eles ter sido ótimo, ele sempre verificava as referências.
Talvez isso tenha sido o início de suas pressuposições sobre ela: rostinho bonito, boa postura, nada mais a oferecer.
Mas esse não era o pior de seus equívocos. Nunca soube que ela tinha um irmão. Que era deficiente físico. A quem ela sustentava.
Ela mostrou uma foto dos dois juntos.
E quando Gregg perguntou em voz alta como era possível ele não saber sobre aquele garoto, ela teve a honestidade de dizer-lhe o motivo: porque você ditou os limites e isso estava além.
Naturalmente, teve a reação masculina de se defender, mas o fato é que ela estava certa. Havia estabelecido os limites de maneira muito clara. O que significava nada de ciúmes, nada de explicações, nada permanente e nada pessoal.
Aquele não era exatamente um ambiente propício para se mostrar vulnerável.
A constatação disso foi o que o fez puxá-la contra seu peito e encostar o queixo em sua cabeça, alisando suas costas. Antes de ir para a terra dos sonhos, ela murmurou algo com uma voz suave. Algo sobre como aquela tinha sido a melhor noite que teve com ele.
E isso apesar dos orgasmos monstruosos que já tinha lhe proporcionado.
Bem, orgasmos dados quando lhe convinha. Houve vários encontros cancelados no último minuto, mensagens de celular sem resposta e menosprezo verbal e físico.
Cara... que lixo ele foi.
Quando Gregg finalmente levantou-se para sair, cobriu Holly, ligou a câmera que era ativada por movimentos e saiu para o corredor. Silêncio por toda parte.
Caminhando pelo corredor, voltou-se para o sinal de Saída e seguiu em direção à escada dos fundos. Subiu os degraus, virou, subiu outro patamar e, então, lá estava a porta.
Sem bater desta vez, pegou uma chave de fenda fina que era usada no equipamento da câmera e tentou arrombar a fechadura. Na verdade, foi mais fácil do que imaginava. Bastou uma cotovelada, um giro e a coisa se soltou.
A porta não chiou, o que o surpreendeu.
No entanto, o que estava do outro lado... o deixou extremamente chocado!
O terceiro andar tinha um espaço cavernoso, com um antiquado e grosseiro assoalho e com um teto inclinado em um ângulo agudo dos dois lados. Na outra extremidade, havia uma mesa com uma lâmpada a óleo e seu brilho fazia com que as paredes lisas ficassem de um tom amarelo-dourado... também iluminava as botas negras de alguém que estava sentado numa cadeira fora do alcance da luz.
Botas enormes.
E, de repente, não havia dúvidas de quem era o filho da mãe e o que ele tinha feito.
– Eu o filmei – Gregg disse para o sujeito.
A risada suave que veio como resposta fez a adrenalina de Gregg correr solta: baixa e fria, a risada era o tipo de som que assassinos fazem quando estão prestes a trabalhar com uma faca.
– Filmou? – Aquele sotaque. Mas que diabos era aquilo? Não era francês... nem húngaro...
Tanto faz. A ideia de Holly ter sido vítima de um abuso por parte dele fez Gregg mais alto e mais forte do que realmente era.
– Sei o que você fez na noite passada.
– Eu o convidaria para se sentar em uma cadeira, mas como pode ver, só tenho uma.
– Não estou brincando! – Gregg deu um passo à frente. – Sei o que aconteceu com ela. Ela não queria você.
– Ela queria o sexo.
Filho da mãe imbecil.
– Ela estava dormindo.
– Estava? – A ponta da bota balançou. – As aparências, assim como a mente, podem ser enganosas.
– Quem diabos você pensa que é?
– Sou dono desta bela casa. Isso é quem sou. Sou quem deu permissão para brincar por aí com suas câmeras.
– Bem, pode dar adeus a essa droga toda agora. Não vou fazer propaganda deste lugar.
– Oh, acho que fará. Está em sua natureza.
– Você não sabe nada sobre mim.
– Acho que é o contrário. É você que não sabe... nada, usando suas palavras... sobre você mesmo. Aliás, ela disse o seu nome. Quando gozou.
Gregg ficou furioso com isso, ao ponto de dar mais um passo adiante.
– Eu tomaria cuidado – a voz disse. – Você não quer se machucar. E sou considerado louco.
– Vou chamar a polícia.
– Não tem motivo. Consentimento entre adultos e tudo o mais.
– Ela estava dormindo!
A bota deu uma volta e plantou-se no chão.
– Olha o tom, rapaz.
Antes que houvesse tempo para retrucar o insulto, o homem se inclinou para frente na cadeira... e Gregg perdeu a voz.
O que apareceu sob a luz não fazia sentido algum. De maneira alguma.
Era o retrato. Da sala no andar de baixo. Só que vivo e respirando. A única diferença era que o cabelo não estava preso, estava solto sobre os ombros, era duas vezes maior que o de Gregg e a cor era uma mistura de preto com vermelho.
Oh, Deus... os olhos eram da cor do nascer do sol, brilhantes e cor de pêssego.
Totalmente hipnóticos.
E sim, um tanto enlouquecidos.
– Sugiro – disse arrastando as palavras com aquele sotaque estranho – que você saia deste sótão e volte a ficar com aquela moça adorável...
– Você é descendente de Rathboone?
O homem sorriu. Certo... havia algo de muito errado com seus dentes da frente.
– Ele e eu temos coisas em comum, na verdade...
– Jesus...
– É hora de você correr e terminar seu pequeno projeto. – Não sorria mais, o que era uma espécie de alívio. – E um conselho, no lugar de ceder à tentação de chutar o seu traseiro: deve cuidar melhor da sua mulher. Ela tem sentimentos sinceros por você, o que não é culpa dela e algo pelo qual, claramente, você não é merecedor, caso contrário não estaria cheirando à culpa neste momento. Tem sorte de ter a mulher que deseja ao seu lado, então pare de ser um completo idiota.
Gregg não ficava chocado assim com frequência. Mas, por sua vida, não fazia ideia do que dizer.
Como aquele estranho sabia tanto?
E Cristo, Gregg odiava o fato de Holly ter se deitado com outra pessoa... mas ela tinha dito o nome dele?
– Diga adeus. – Rathboone levantou sua própria mão, imitando um tchau infantil. – Prometo deixar sua mulher em paz, contanto que pare de ignorá-la. Agora vá, tchauzinho.
Agindo sob um reflexo que não era seu, Gregg levantou o braço e fez um aceno desajeitado antes de virar-se e começar a sair do local.
Deus, suas têmporas... que... droga... por que... onde... sua mente parou de funcionar, como se tivessem jogado cola nas engrenagens.
Descer para o segundo andar. Ir para o quarto.
Ao tirar a roupa e deitar na cama de cueca, colocou sua cabeça dolorida sobre o travesseiro perto de Holly, a puxou em um abraço e tentou se lembrar...
Ele tinha que fazer alguma coisa. O que era...?
O terceiro andar. Tinha que ir ao terceiro andar. Tinha que descobrir o que havia lá em cima...
Uma nova dor se lançou em seu cérebro, matando não apenas o impulso de ir a qualquer lugar, mas também matando qualquer interesse no que havia no sótão.
Fechando os olhos, teve uma estranha visão de um estrangeiro estranho com um rosto familiar... mas, em seguida, caiu num sono extremamente profundo e nada mais importava.
CAPÍTULO 43
A invasão na mansão ao lado não representava nenhum problema.
Depois de considerar a atividade da mansão e não encontrar nada que sugerisse qualquer movimento dentro das muralhas, Darius declarou que ele e Tohrment iriam entrar... e entraram. Desmaterializando-se na cerca de madeira que separava as duas propriedades, reapareceram ao lado da região da cozinha... então, simplesmente caminharam direto em direção à robusta moldura de madeira da porta.
Na verdade, o maior obstáculo para ultrapassar a parte externa era a superação do esmagador sentimento de pavor.
A cada passo e a cada respiração, Darius tinha que se esforçar para seguir em frente, seus instintos gritavam que estava no lugar errado. E, ainda assim, se recusava a voltar. Não queria utilizar outros meios práticos pelos quais poderia entrar e embora a filha de Sampsone pudesse muito bem não estar ali, uma vez que não tinha outras pistas, precisava fazer alguma coisa ou ficaria louco.
– Esta casa parece assombrada – murmurou Tohrment enquanto observavam os quartos dos empregados.
Darius assentiu.
– Mas lembre-se de que qualquer fantasma jaz apenas em sua mente e não se confunde com ninguém que esteja sob este teto. Venha, devemos localizar os quartos subterrâneos. Se os humanos a tomaram, devem mantê-la no subsolo.
Enquanto seguiam seu caminho em silêncio, passaram pela enorme cozinha e pelas carnes defumadas que pendiam nos ganchos, deixando claro que esta era uma casa humana. Tudo estava calmo ao redor, ao contrário da mansão vampira, onde haveria um momento de preparação para a Última Refeição.
Infelizmente, concluir que a casa pertencia à outra raça não era uma confirmação de que a fêmea não estivesse sendo mantida ali... e talvez tal conclusão fosse um indício. Embora os vampiros soubessem com certeza da existência da humanidade, não havia nada além de mitos sobre vampiros infestando a periferia cultural humana... era assim que os seres com presas sobreviviam com maior facilidade. Ainda assim, de vez em quando, havia contatos inevitáveis e genuínos entre aqueles que optaram por permanecer ocultos e aqueles de olhares curiosos... e esses raros esbarrões de um contra o outro explicavam as assustadoras e fantásticas histórias humanas sobre tudo desde “fadas”, “bruxas”, “fantasmas” e “sugadores de sangue”. Na verdade, a mente humana parecia sofrer com uma necessidade paralisante de inventar coisas na ausência de provas concretas. O que fazia sentido, considerando a compreensão autorreferencial das raças do mundo e seu lugar nele: algo que não se encaixava era forçado em uma superestrutura, mesmo que isso significasse a criação de elementos “paranormais”.
E que sorte seria para uma família rica capturar evidências físicas de tais superstições efêmeras.
Especialmente, provas lindas e indefesas.
Não se sabia o que vinha sendo observado por aquela família ao longo do tempo. Que estranhezas tinham sido testemunhadas naqueles vizinhos. Quais diferenças raciais foram expostas de forma inesperada e observadas sem qualquer dificuldade, em virtude das duas propriedades comporem a mesma paisagem.
Darius amaldiçoou baixinho e pensou que era por isso que os vampiros não deviam viver tão próximos aos seres humanos. A separação era o melhor. Congregação e separação.
Ele e Tohrment procuraram por todo o primeiro andar da mansão desmaterializando-se de sala em sala, deslocando-se conforme as sombras eram projetadas pelo luar, passando por todo o mobiliário esculpido e tapeçarias sem som ou substância.
A maior preocupação deles e o motivo de não atravessarem o chão de pedra andando? Cães adormecidos. Muitas das mansões os tinham como guardas e essa era uma grande complicação que poderiam muito bem passar sem. Com sorte, se houvesse algum animal na casa, estariam enrolados aos pés da cama do chefe da família.
E o mesmo valeria para qualquer tipo de guarda pessoal.
No entanto, a sorte estava ao lado deles. Nenhum cão. Nenhum guarda. Pelo menos que tivessem visto, escutado, ou cheirado... e foram capazes de encontrar a passagem que os levaria ao andar subterrâneo.
Ambos levavam velas e acenderam os pavios, as chamas cintilando sobre os passos apressados, rudes e descuidados e pelas paredes desiguais... tudo parecia indicar que a família nunca havia feito aquela jornada subterrânea, apenas os servos.
Mais uma prova de que não era uma família de vampiros. Alojamentos subterrâneos estavam entre os mais pródigos em tais casas.
Descendo para o nível mais baixo, a pedra sob seus pés deu lugar à terra batida e o ar ficou pesado com a umidade fria. Conforme progrediam sob a grande mansão, encontravam despensas cheias de caixotes de vinho e outras bebidas, caixotes de carnes salgadas e cestas de batatas e cebolas.
Na outra extremidade, Darius esperava encontrar um segundo conjunto de escadas que os levaria a sair na superfície. Em vez disso, chegaram ao final do salão subterrâneo. Nenhuma porta. Apenas uma parede.
Observou ao redor para ver se havia pegadas sobre o solo ou rachaduras nas pedras, indicando um painel ou uma seção oculta. Nada.
Para ter certeza, ele e Tohrment correram suas mãos sobre a superfície das paredes e pelo chão.
– Havia muitas janelas nos andares superiores – Tohrment murmurou. – Mas, talvez, se fosse para mantê-la lá em cima, poderiam ter colocado cortinas. Ou será que existem quartos sem janelas?
Enquanto a dupla enfrentava o beco sem saída que haviam atingido, aquela sensação de medo, de estar em um lugar errado, inchou no peito de Darius até sua respiração ficar curta e o suor brotar sob seus braços e sua coluna. Tinha a sensação de que Tohrment estava sofrendo de um ataque similar de apreensão ansiosa, pois o macho deslocava seu peso para trás e para frente, para trás e para frente.
Darius balançou a cabeça.
– Na verdade, ela parece estar em outro lugar...
– Grande verdade, vampiro.
Darius e Tohrment se viraram enquanto desembainhavam as adagas.
Olhando para aquilo que os tinha pegado de surpresa, Darius pensou... bem, isso explica o medo.
A figura de túnica branca bloqueando a saída não era humana e nem vampira.
Era um sympatho.
CAPÍTULO 44
Enquanto Xhex esperava do lado de fora da sala de musculação, encarava suas emoções com interesse desapaixonado. Isso era, ela supôs, como olhar para o rosto de um estranho e considerar as imperfeições, as cores e os traços por nenhuma outra razão além da simples observação.
Sua ânsia por vingança foi eclipsada por uma preocupação honesta por John.
Surpresa, surpresa.
Afinal, nunca tinha imaginado ver esse tipo de fúria tão de perto, especialmente de pessoas como John. Era como se ele tivesse uma fera interior que estivesse rugindo em sua cela.
Cara, um macho vinculado não é algo com que você pode brincar.
E ela não estava se enganando. Essa era a razão pela qual ele reagiu da forma como reagiu – e também a causa do aroma apimentado que ela cheirava perto dele desde que saiu da prisão de Lash: em algum momento durante as semanas de suas férias brutais, a atração e o respeito de John por ela haviam tomado forma de uma maneira irrevogável.
Droga. Que bagunça.
Quando o som da esteira parou de repente, ela poderia apostar que Blaylock havia puxado a tomada da parede e foi bom ele fazer isso.
Xhex tentou fazer com que parasse de tentar se matar na esteira, mas quando a argumentação mostrou ser absolutamente nula, decidiu ficar de sentinela do lado de fora.
Não havia chance alguma de vê-lo correndo até se acabar. Ouvir a punição já era ruim o suficiente.
Mais à frente no corredor, a porta de vidro do escritório se abriu e o Irmão Tohrment apareceu. A julgar pelo brilho que se emanou atrás dele, Lassiter estava no centro de treinamento também, mas o anjo caído ficou para trás.
– Como está John? – Quando o Irmão se aproximou, sua preocupação estava escrita em seu rosto duro e olhos cansados e também em sua grade emocional, que estava iluminada nos setores de arrependimento.
Fazia sentido de muitas maneiras.
Xhex olhou para a porta da sala de musculação.
– Parece que ele repensou a carreira e resolveu ser maratonista. Isso ou ele apenas está tentando quebrar outra esteira.
A altura elevada de Tohr obrigou-a a inclinar a cabeça para cima e foi surpreendente observar o que havia por trás de seus olhos azuis: havia conhecimento naquele olhar, conhecimento profundo que fez com que seus próprios circuitos emocionais queimassem com suspeita. Na experiência dela, estranhos que observam você daquela maneira são perigosos.
– Como você está? – ele perguntou suavemente.
Foi estranho. Ela não tinha muito contato com o Irmão, mas sempre que seus caminhos se cruzaram, ele sempre foi particularmente... gentil. Razão pela qual ela sempre o evitava. Lidava muito melhor com dureza do que com qualquer coisa delicada.
Sinceramente, ele a deixava nervosa.
Quando ficou quieta, o rosto dele se apertou como se ela o tivesse decepcionado, mas ele não a culpava pela inadequação.
– Tudo bem – ele disse. – Não vou me intrometer.
Jesus, ela era terrível.
– Não, está tudo bem. Só não pode exigir que eu responda a isso agora.
– É justo. – Os olhos dele se estreitaram na porta da sala de musculação e ela teve a nítida impressão que ele estava tão preso do lado de fora quanto ela, excluído pelo macho que estava sofrendo do outro lado. – Então, ligou para a cozinha para me chamar?
Pegou a chave que John usou para que pudessem entrar na antiga casa do cara.
– Apenas para lhe devolver isso e dizer que houve um problema.
A grade emocional do Irmão ficou negra e vaga, todas as luzes apagadas.
– Que tipo de problema?
– Uma de suas portas de vidro está quebrada. Vai precisar de duas folhas de madeira compensada para cobrir. Conseguimos ativar outra vez o alarme de segurança, então os detectores de movimento estão ligados, mas você terá trabalho por lá. Ficarei feliz em ajudar.
Isso supondo que John acabasse com o restante das máquinas de exercícios, com os tênis de corrida, ou caísse morto.
– Qual... – Tohr limpou a garganta. – Qual porta?
– A do quarto do John Matthew.
O Irmão franziu a testa.
– Estava quebrada quando vocês chegaram lá?
– Não... apenas explodiu espontaneamente.
– Vidro não faz isso sem uma boa razão.
E ela não tinha dado uma boa razão para John Matthew?
– É verdade.
Tohr a encarou e ela o encarou de volta. O silêncio tornou-se espesso como lama. No entanto, por mais gentil e bom soldado que fosse o Irmão, Xhex não tinha nada para compartilhar com ele.
– Com quem eu falo para conseguir alguma madeira de compensado? – ela se dispôs.
– Não se preocupe com isso. E obrigado por me informar.
Quando o Irmão se virou e caminhou de volta para o escritório, ela se sentiu um inferno – o que concluiu ser mais outra conexão que tinha com John Matthew. Só que ao invés de usar uma esteira até quebrar, ela apenas queria pegar uma faca e cortar a parte de dentro dos antebraços para aliviar a pressão.
Deus, às vezes parecia uma bebê chorona, de verdade. Afinal, aqueles silícios não eram apenas para manter o seu lado sympatho sob controle, eles a ajudavam a ofuscar coisas que ela não queria sentir.
O que era quaaase noventa e nove por cento emoção.
Dez minutos depois, Blaylock colocou a cabeça para fora da porta. Seus olhos estavam focados no chão e suas emoções estavam revoltas, o que fazia sentido. Ninguém gostava de ver seu amigo se autodestruir, e ter que conversar com a pessoa que havia jogado o pobre coitado naquela queda livre não era exatamente uma felicidade.
– Ouça, John foi para o vestiário tomar uma ducha. Consegui fazer que ele parasse com a ideia de correr, mas ele... ele precisa de um pouco mais de tempo, acho.
– Certo. Vou continuar esperando por ele aqui no corredor.
Blaylock assentiu e então houve uma pausa embaraçosa.
– Vou malhar agora.
Depois que a porta se fechou, ela pegou sua jaqueta e suas armas e vagou em direção ao vestiário. O escritório estava vazio, o que significava que Tohr tinha seguido seu caminho, sem dúvida para cumprir seu papel de Homem da Manutenção com algum doggen.
E o silêncio ressonante lhe dizia que não havia mais ninguém em nenhuma das salas de aula, ginásio ou clínica.
Deslizando pela parede, sentou-se sobre o chão e apoiou seus braços nos joelhos. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos.
Deus, estava exausta...
– John ainda está lá?
Xhex acordou de repente, sua arma foi apontada direto no peito de Blaylock. Quando o cara pulou para trás, ela imediatamente travou a arma e baixou o cano.
– Desculpe, velhos hábitos são difíceis de morrer.
– Ah, sim. – O cara apontou sua toalha branca em direção ao vestiário. – John ainda está lá? Já passou mais de uma hora.
Ela ergueu o pulso e olhou para o relógio que tinha pegado em algum lugar.
– Cristo.
Xhex se colocou em pé e arrombou a porta. O som do chuveiro aberto não era muito um alívio.
– Existe outra saída que ele possa ter usado?
– Apenas na sala de musculação... mas que acaba dando neste mesmo corredor.
– Certo, vou falar com ele – ela disse, rezando para que fosse a coisa certa a fazer.
– Bom. Vou terminar meus exercícios. Ligue se precisar de mim.
Empurrou a porta, e lá dentro o lugar parecia padrão, todos os armários de metal bege separados por bancos de madeira. Seguindo o som da água caindo à direita, passou por compartimentos de mictórios e pias que pareciam solitários sem um monte de homens suados, nus e envolvidos em toalhas.
Encontrou John numa área aberta com dezenas de chuveiros e azulejos em todos os centímetros do chão, paredes e teto. Estava usando camiseta, bermuda de corrida e estava sentado encostado contra a parede, seus braços apoiados em seus joelhos, cabeça baixa, a água correndo sobre seus enormes ombros e tronco.
Seu primeiro pensamento foi de que ela própria estava exatamente na mesma posição do lado de fora.
O segundo pensamento foi que estava surpresa ao ver que ele conseguia se manter tão parado. A grade emocional dele não era a única coisa iluminada, aquela sombra atrás da grade estava queimando de angústia. Era como se duas partes dele estivessem juntas num tipo de luto, sem dúvida porque havia sofrido ou testemunhado perdas demais, todas cruéis, em sua vida... e talvez estivesse sofrendo outra agora. E o lugar onde tudo aquilo o levava emocionalmente a deixava apavorada. O denso vazio negro criado nele era tão poderoso que deformava a superestrutura da psique dele... levando-o onde ela havia estado naquela maldita sala de operações.
Levando-o à beira da loucura.
Pisando sobre a superfície azulejada do chão, a pele dela tremeu ao esbarrar com o ar frio que vinha dos sentimentos dele... e o fato é que ela estava fazendo isso outra vez. Era igual a Murhder, só que pior.
Jesus Cristo, ela era uma maldita viúva negra no que se referia a machos de valor.
– John?
Ele não olhou para cima, embora não tivesse certeza se estava ciente de que ela estava na frente dele. John estava de volta ao passado, preso por suas memórias...
Franzindo a testa, encontrou os olhos dele seguindo o caminho da água que deslizava sobre seu corpo e escorria pelo chão coberto de azulejos... até o ralo.
O ralo.
Algo com aquele ralo. Algo a ver com... Lash?
Dentro do abraço da solidão e contra o pano de fundo do som tranquilo do jato de água, ela liberou seu lado mau por uma boa finalidade: rapidamente, seus instintos sympatho mergulharam em John, penetrando ao longo de seu território físico e indo fundo em sua mente e suas lembranças.
Quando ele ergueu a cabeça e olhou para ela em choque, tudo se tornou vermelho e bidimensional, o azulejo tingiu-se de um rosa rubro. O cabelo escuro e úmido de John mudou para a cor do sangue; a água que corria parecia um champanhe rosa.
As imagens que ela captou estavam envoltas numa capa de terror e vergonha: uma escada escura num prédio parecido com aquele onde a tinha levado. John era apenas um garotinho pré-transição sendo forçado por um humano fétido...
Oh. Deus.
Não.
Os joelhos da Xhex cederam e ela cambaleou – então apenas deixou-se cair ao chão, aterrissando no azulejo liso tão duro que seus ossos e dentes se abalaram.
Não... não John, ela pensou. Não quando ainda era indefeso, inocente e tão sozinho. Não quando estava perdido no mundo humano, batalhando para sobreviver.
Não ele. Não assim.
Com seu lado sympatho liberado e seus olhos sem dúvida brilhando em vermelho, eles se sentaram ali encarando um ao outro. Ele sabia o que ela tinha visto e odiava seu conhecimento com uma fúria tal que ela, de maneira sábia, manteve qualquer pena para si mesma. No entanto, ele não parecia ressentido que ela o tivesse invadido. Era mais como se desejasse muito não ter dividido aquilo com ninguém.
– O que Lash tem a ver com isso? – disse com voz rouca. – Pois ele está por toda parte em sua mente.
Os olhos de John voltaram-se para o ralo no centro do local outra vez e ela teve a impressão de que ele estava vendo sangue acumulando-se em volta da tampa de aço inoxidável. Sangue de Lash.
Xhex estreitou os olhos, a história passada tornava-se muito previsível: Lash havia descoberto o segredo de John. De alguma maneira. E ela não precisava de seu lado sympatho para saber o que aquele desgraçado havia feito com uma informação como aquela.
Um locutor de beisebol procuraria menos plateia.
Quando o olhar de John voltou-se para ela, sentiu uma perturbadora comunhão com ele. Sem barreiras, sem preocupações sobre ser vulnerável. Mesmo estando completamente vestidos, cada um estava nu diante do outro.
Ela sabia muito bem que não encontraria isso nunca em nenhum outro macho. Ou em qualquer outra pessoa. Por sua vez, ele sabia, sem palavras, tudo o que tinha acontecido com ela e tudo o que aquele tipo de experiência gerava. E ela sabia o mesmo sobre ele.
E talvez aquela sombra em sua grade emocional fosse uma espécie de bifurcação em sua psique causada pelo trauma que tinha passado. Talvez sua mente e sua alma tivessem se reunido e decidido eliminar o passado e colocá-lo no fundo de seu sótão mental e emocional. Talvez fosse por isso que as duas partes estivessem em um movimento tão vívido.
Fazia sentido. Assim como a vingança que estava sentindo. Afinal, Lash esteve intimamente envolvido nos dois conjuntos de erros, no dele e no dela.
Informações como aquelas sobre John nas mãos erradas? Era quase tão ruim quanto o horror que havia realmente acontecido, porque você revive a maldita história toda vez que mais alguém fica sabendo. Razão pela qual Xhex nunca falava sobre seu tempo na colônia com seu pai, ou sobre aquela maldita clínica humana... ou...
John ergueu seu dedo indicador e deu tapinhas ao lado de seu olho.
– Os meus estão vermelhos? – ela murmurou. Quando ele assentiu, ela esfregou o rosto. – Desculpe. Provavelmente vou precisar de outro par de silícios.
Quando ele fechou a água, ela deixou cair as mãos.
– Quem mais sabe? Sobre o que aconteceu com você?
John franziu a testa. Então, assinalou com os lábios: Blay. Qhuinn. Zsadist. Havers. Um terapeuta. Quando ele balançou a cabeça, ela entendeu isso como sendo o fim da lista.
– Não vou dizer nada a ninguém.
Os olhos dela percorreram seu corpo imenso desde aqueles ombros até seus bíceps poderosos e aquelas coxas tremendas – e desejou que ele tivesse aquele tamanho lá atrás naquela escada suja. Pelo menos, não era mais o mesmo de quando foi ferido – se bem que isso era verdade apenas por fora. Por dentro, ele tinha todas as idades que havia vivido, o bebê que havia sido abandonado, a criança que ninguém quis, o garoto em fase de pré-transição sozinho no mundo... e agora o macho adulto.
Ele era um ótimo guerreiro no campo de batalha, um amigo leal e, considerando o que tinha feito àquele redutor naquela mansão e o que sem dúvida queria fazer com Lash, era um inimigo muito perigoso.
E a isso se somava um problema: em sua opinião, era ela quem deveria matar o filho do Ômega.
Não que precisassem falar sobre isso agora.
Quando a umidade dos azulejos molhou sua calça e a água escorreu de John, ficou surpresa com o que queria fazer.
De muitas maneiras, não fazia sentido, e com certeza não era uma ideia brilhante. Mas a lógica não era importante naquele momento.
Xhex se deslocou para frente e colocou as palmas das mãos no chão escorregadio do chuveiro. Deslocando-se devagar, moveu a mão, o joelho, a mão, o joelho, indo na direção dele.
Ela percebeu quando ele sentiu o cheiro dela.
Pois por baixo daquela bermuda esportiva ensopada, seu membro se contraiu e endureceu.
Quando estava cara a cara com ele, observou atentamente sua boca.
– Nossas mentes já estão unidas. Quero que nossos corpos sigam no mesmo sentido.
Com isso, inclinou-se e levantou a cabeça. Pouco antes de beijá-lo, ela fez uma pausa, mas não porque estivesse preocupada se iria afastá-la – ela sabia pelo aroma apimentado que John não estava interessado em recuar.
– Não, você entendeu tudo errado, John. – Lendo as emoções dele, negou com a cabeça. – Você não é metade do homem que poderia ser por causa do que foi feito. Você é duas vezes mais do que qualquer pessoa simplesmente porque sobreviveu.
Sabe? A vida o coloca em lugares que nunca imaginou estar.
Sob nenhuma circunstância, nem mesmo nos piores pesadelos que seu subconsciente havia exibido, John havia sequer pensado que seria capaz de lidar com Xhex se ela soubesse o quanto ele sofreu quando era jovem.
A questão era que não importava o quanto seu corpo tinha se tornado grande ou forte, isso nunca encobriu a realidade do quanto havia sido fraco. E a ameaça de que aqueles que ele respeitava descobrissem trouxe aquela fraqueza à tona não apenas uma vez, mas várias.
E lá estava ele novamente com seus demônios expostos.
E quanto ao seu banho de duas horas? Ainda estava morrendo por dentro por ela ter sido ferida daquele jeito... Era tão doloroso pensar naquilo, horrível demais para não se demorar. E adicione sua necessidade como macho vinculado de protegê-la e mantê-la em segurança. E o fato de que sabia exatamente o quão desagradável é ser vitimado daquela maneira.
Se apenas a tivesse encontrado mais cedo... se apenas tivesse trabalhado mais duro...
Sim, mas ela tinha se libertado. E fez isso sozinha. Não foi ele quem a libertou – pelo amor de Deus... esteve com ela no maldito quarto onde tinha sido estuprada e nem mesmo soube que ela estava lá.
Eram coisas demais para lidar, todas as camadas e interseções faziam sua cabeça zunir ao ponto de sentir como se seu cérebro fosse um helicóptero prestes a levantar voo, para o alto e avante, para nunca mais voltar.
A única coisa que o mantinha com os pés no chão era a perspectiva de matar Lash.
Enquanto aquele desgraçado estivesse lá fora, respirando, John tinha um foco para manter sua estabilidade mental. Matar Lash era sua única ligação à sanidade e ao propósito, uma proteção para que seu ser não enferrujasse.
Porém, se fracassasse mais uma vez, se não vingasse sua fêmea, estaria tudo acabado.
– John – disse Xhex, num evidente esforço de tirá-lo de seu estado de pânico.
Focando-se nela, encarou seus olhos vermelhos e brilhantes e lembrou-se de que era uma sympatho. O que significava que podia escavar dentro dele e acionar todos os seus alçapões interiores, liberando seus demônios apenas para observá-los dançar. Só que ela não fez isso, fez? Adentrou nele, sim, mas apenas para entender onde ele estava. E ao observar suas partes obscuras, não tinha se afastado e apontado um dedo inquisidor ou recuado enojada.
Ao invés disso, se aproximou delicadamente, dando a entender que queria beijá-lo.
Os olhos de John observaram seus lábios.
Quem diria, ele podia sim aguentar um pouco daquele tipo de conexão. Palavras não eram suficientes para aplacar a autoaversão que sentia, mas as mãos dela em sua pele, sua boca na dele, seu corpo contra o seu... aquilo, sem uma palavra, era o que ele precisava.
– É isso mesmo – ela disse, seus olhos ardendo, e não apenas por causa do lado sympatho. – Você e eu precisamos disso.
John levantou e colocou suas mãos frias e molhadas sobre a face dela. Então olhou ao redor. Aquela poderia ser a hora, mas não era o lugar.
Não ia fazer amor com ela no piso duro.
Venha comigo, fez com os lábios, levantando-se e puxando-a para seu lado.
Sua ereção estava evidente na frente de sua bermuda esportiva quando deixaram o vestiário, o desejo de possuí-la rugia em seu sangue, mas esse desejo foi controlado pela necessidade de proporcionar algo delicado a Xhex ao invés da violência que ela experimentou.
Ao invés de se dirigir para o túnel de volta à casa principal, ele os levou para a direita. De modo algum iria para seu quarto com ela debaixo do braço e ostentando uma ereção do tamanho de uma viga. Além do mais, estava encharcado.
Muita coisa para explicar para a plateia permanente que a mansão oferecia.
Próximo ao vestiário, mas não conectado a ele, havia uma sala adjacente com mesas de massagens e uma banheira de hidromassagem no canto. O lugar também tinha um monte de colchonetes azuis que nunca foram usados desde que haviam sido colocados ali – os Irmãos quase não tinham tempo para pugilismo, quanto mais para brincar de bailarina com seus preciosos tendões e glúteos.
John reforçou a porta fechada com uma cadeira de plástico e virou-se para encarar Xhex. Ela estava andando em volta da sala. Na opinião dele, seu corpo flexível e passos suaves eram melhores que um grande show de striptease.
Aproximando-se da lateral da porta, apagou as luzes.
O sinal branco e vermelho de saída em cima da porta criou uma piscina de luz fraca que seu corpo dividiu em duas, sua sombra era uma alta e escura divisão que se estendia por todo o piso azul até os pés de Xhex.
– Deus, eu quero você – ela disse.
Não precisaria dizer aquilo duas vezes. Chutando os sapatos para longe, puxou sua camiseta sobre sua cabeça e deixou cair sobre os colchonetes com uma batida. Então, colocou seus polegares na cintura de bermuda e a desceu sobre suas coxas. Seu membro se libertou e se elevou ereto diante dele. O fato de que estava apontado para ela como uma varinha de condão não era uma grande surpresa – tudo, desde seu cérebro, sangue, até o bater de seu coração, estava focado na fêmea parada a três metros de distância dele.
Mas não ia pular sobre ela e começar a se movimentar com força. Não. Nem mesmo se aquilo tornasse suas bolas azuis como um Smurf...
Seus pensamentos deixaram de fazer sentido quando as mãos dela se dirigiram para a cintura da blusa e, com um movimento elegante, deslizou a peça de roupa sobre seu tronco e cabeça. Embaixo disso, não havia nada além de sua linda pele suave e seus altos e firmes seios.
Quando o perfume dela surgiu do outro lado da sala e ele começou a ofegar, os dedos ágeis de Xhex começaram a abrir o laço de sua calça e o fino algodão verde caiu rapidamente em seus tornozelos.
Oh... meu Deus, ela estava gloriosamente despida para ele, e as linhas impressionantes de seu corpo eram maravilhosas: apesar de terem feito sexo duas vezes, ambas foram rápidas e quentes e não teve a chance de olhar para ela direito...
John piscou com força.
Por um momento, tudo que conseguia enxergar eram os hematomas em seu corpo, especialmente aqueles dentro de suas coxas. Saber agora que ela não os tinha conseguido por causa de luta corporal...
– Não pense nisso, John – ela disse roucamente. – Eu não estou pensando e você também não deveria. Simplesmente... não pense nisso. Ele já tirou muito de nós dois.
A garganta dele ficou tensa com um rugido de vingança, que tratou de abafar apenas porque sabia que ela estava certa. Com grande força de vontade, decidiu que aquela porta atrás dele, aquela que tinha bloqueado com a cadeira, ia manter do lado de fora não apenas as pessoas da mansão, mas seus fantasmas e erros também.
Haveria tempo depois para igualarem o placar.
Você é tão linda, disse com os lábios.
Mas claro que ela não conseguia ver seus lábios.
Então, teria que mostrar isso a ela.
John deu um passo à frente e outro e outro. E não era apenas ele indo em direção a ela. Xhex o encontrou no meio do caminho, a forma dela foi envolvida pela sombra lançada pelo corpo dele, mas mesmo assim, aquela era a única coisa que ele via.
Quando se encontraram, o peito dele estava pulsando e seu coração. Amo você, ele fez com os lábios no pedaço escuro que havia produzido sob a luz.
Alcançaram um ao outro no mesmo momento: ele foi direto para o rosto de Xhex. Ela colocou as mãos nas costelas dele. Suas bocas completaram a jornada no ar parado, elétrico, seus lábios se trancaram, suave contra suave, calor contra calor. Puxando-a contra seu peito nu, John envolveu seus braços grossos ao redor dos ombros dela e a segurou apertado enquanto aprofundava o beijo – e ela estava logo ali com ele, deslizando as palmas de suas mãos nas laterais de seu corpo e as escorregando pela parte inferior de suas costas.
Seu pênis dobrou-se entre eles, a fricção entre sua barriga e a dela enviou dardos de calor que subiam através de sua coluna. Mas ele não estava com pressa. Com empurrões preguiçosos, seus quadris se moveram para frente e para trás, acariciando-a com sua ereção enquanto movia suas mãos pelos braços dela e então para sua cintura.
Empurrando profundamente com a língua, arrastou uma das mãos até o cabelo curto que havia na nuca dela e deixou a outra cair na parte de trás de sua coxa. A perna dela subiu com o puxão gentil dele, os músculos macios flexionando...
Com um ágil movimento, ela saltou, pulando em cima dele e enlaçando a outra perna ao redor dos quadris dele. Quando seu membro tocou algo quente e úmido, ele gemeu e os levou para o chão, segurando-a enquanto mergulhavam nos colchonetes.
John quebrou o selo do beijo e recuou o suficiente para que pudesse correr sua língua pelo lado da garganta dela. Travando-a, sugou as linhas de seu pescoço e seguiu para baixo com suas presas, que vibrava com os impulsos de sua ereção. Enquanto descia, os dedos dela se enterravam no cabelo dele e o segurava contra sua pele, movendo-o na direção de seus seios.
Recuando, ergueu-se sobre ela e traçou com os olhos a maneira como seu corpo era destacado pela luz brilhante do sinal de saída. Seus mamilos estavam firmes, suas costelas estavam pulsando forte e os músculos de seu peitoral bombeavam enquanto ela movimentava os quadris. Entre suas coxas, seu sexo liso fez com que abrisse a boca em um assobio silencioso...
Sem aviso, ela estendeu a mão e a colocou sobre seu pênis.
O contato o fez jogar-se sobre seus braços e apoiar-se sobre as palmas das mãos.
– Caramba, você é lindo – ela disse num murmúrio.
A voz dela o colocou em ação e se inclinou para frente, libertando seu membro da mão dela e posicionando-se de modo a ficar ajoelhado entre suas coxas. Baixando a cabeça, cobriu um de seus mamilos com a boca e começou a excitá-la com a língua.
O gemido de Xhex quase o fez gozar ali mesmo e John teve que congelar seu corpo para recuperar o controle. Quando a maré de formigamento retrocedeu o suficiente, ele recomeçou a sugá-la... e deixou suas mãos flutuarem devagar pelas costelas dela, sua cintura e seus quadris.
Num movimento típico de Xhex, foi ela quem o colocou em seu sexo.
Xhex cobriu uma das mãos dele com a sua e a colocou exatamente onde os dois queriam que estivesse.
Quente. Sedoso. Escorregadio.
O orgasmo em sua ereção foi liberado no instante que seus dedos deslizaram e foram parar diretamente sobre a entrada de onde ele estava morrendo de vontade de penetrar: não havia absolutamente nada segurando a liberação e ela riu enquanto ele jorrava em suas pernas.
– Gosta de me ver assim? – ela murmurou.
Ele olhou em seus olhos, e ao invés de concordar, levou a mão até sua boca. Quando ele estendeu sua língua e deslizou entre seus lábios, ela também estremeceu, seu corpo se levantou dos colchonetes, seus seios se ergueram, suas coxas se abriram ainda mais.
Com as pálpebras semicerradas, manteve seu olhar fixado no dela enquanto plantava suas palmas dos dois lados de seus quadris e se abaixava em direção ao seu sexo.
Poderia ter continuado com aqueles beijos suaves. Poderia ter mostrado mais sensibilidade provocando-a com a língua e a ponta dos dedos.
Dane-se tudo isso.
Com uma necessidade primitiva e dolorosa, abocanhou seu núcleo, sugando-a para dentro dele, tomando-a profundamente, engolindo-a. Havia um pouco de seu próprio orgasmo dentro dela e John o provou junto com o mel de Xhex – e o macho vinculado nele adorou a combinação.
Sorte dele. No momento em que terminassem com aquela sessão, sua essência apimentada a teria envolvido completamente, por dentro e por fora.
Enquanto ele acariciava, lambia e penetrava, sentiu uma das pernas dela ser lançada sobre seu ombro, e então Xhex passou a comandar os movimentos contra seu queixo, lábios e boca, acrescentando mais à magia, levando-o a impulsioná-la mais forte.
Quando ela chegou ao orgasmo, disse seu nome. Duas vezes.
E John ficou feliz que, apesar de não ter voz, seus ouvidos funcionavam perfeitamente.
CONTINUA
CAPÍTULO 32
John Matthew acordou, sentiu Xhex ao seu lado e entrou em pânico.
Sonho... Aquilo era um sonho?
Sentou-se lentamente, e quando sentiu o braço dela escorregar em seu peito em direção à barriga, conseguiu pegá-lo antes que atingisse seus quadris. Deus, aquilo que evitava com cuidado estava quente, pesado e...
– John? – ela disse no travesseiro.
Sem pensar, envolveu-se nela e alisou seus cabelos curtos. No instante em que fez isso, ela pareceu cair no sono outra vez.
Um olhar rápido no relógio lhe avisou que eram quatro da tarde. Eles dormiram por horas, e se fosse guiar-se pelo ronco em seu estômago, Xhex deveria estar morrendo de fome também.
Quando se certificou de que tinha apagado outra vez, John libertou-se de seu abraço e andou ao redor silenciosamente. Escreveu um bilhete para ela antes de vestir suas calças de couro e sua camiseta.
Com os pés descalços, alcançou o corredor. Tudo estava tranquilo, pois não havia mais treinamento ali, o que era uma maldita vergonha. Deveria haver gritos dos aprendizes vindos do ginásio, vozes do mestre na sala de aula e batidas dos armários sendo fechados nos vestiários.
Ao invés disso, o silêncio.
Mas percebeu que ele e Xhex não estavam sozinhos.
Quando chegou à porta de vidro do escritório, congelou com a mão sobre a maçaneta.
Tohr estava dormindo na mesa... bem, em cima dela. Sua cabeça estava apoiada em seu antebraço e seus ombros estavam caídos.
John estava tão acostumado a sentir raiva do cara que foi um choque não ter nada do gênero acendendo dentro dele. Em vez disso... sentiu uma esmagadora tristeza.
Tinha acordado ao lado de Xhex naquela manhã.
Mas Tohr nunca, jamais teria isso novamente. Nunca mais voltaria a alisar os cabelos de Wellsie. Nunca mais iria à cozinha para trazer-lhe algo para comer. Nunca iria abraçá-la ou beijá-la novamente...
E ainda tinha perdido um bebê ao longo desse caminho.
John abriu a porta e esperou que o Irmão acordasse de um sobressalto, mas Tohr não fez isso. O macho estava desmaiado. Contudo, aquela exaustão fazia sentido. Estava tentando recuperar sua forma, comendo e malhando vinte e quatro horas, sete dias por semana, e o esforço estava começando a mostrar resultado. Suas calças já não estavam mais caindo e suas camisas não estavam mais tão largas. Mas, evidentemente, o processo era desgastante.
Onde estava Lassiter?, John se perguntou enquanto passava pela mesa e pelo armário. O anjo normalmente andava colado no Irmão.
Esquivando-se pela porta escondida entre as prateleiras de suprimentos, atravessou o túnel em direção à casa. Enquanto avançava, as luzes fluorescentes no teto se estendiam na frente dele, dando a impressão de um caminho predestinado – o que, levando em conta como as coisas estavam, era um conforto. Quando chegou a um conjunto de degraus baixos, subiu, digitou um código e subiu mais um pouco. Emergindo no saguão de entrada, ouviu a televisão na sala de bilhar e percebeu que era o lugar onde o anjo estava.
Ninguém na casa estaria assistindo à Oprah. Não sem uma arma apontada na cabeça.
A cozinha estava vazia, sem dúvida, os doggen estavam comendo algo em seus próprios aposentos antes de começarem a preparar a Primeira Refeição e se ocuparem da casa. O que era muito bom. Ele realmente não queria ajuda.
Com movimentos rápidos, pegou uma cesta da despensa e a encheu. Roscas salgadas. Garrafa térmica com café. Jarra de suco de laranja. Frutas cortadas. Pão doce. Pão doce. Pão doce. Caneca. Caneca. Copo.
Estava apelando para muita caloria e rezando para que ela gostasse de doces. Então, apenas por prevenção, fez um sanduíche de peru. E por um motivo diferente, fez também um de presunto e queijo.
Avançando pela sala de jantar, voltou para a porta debaixo da escadaria.
– Muita comida para dois – disse Lassiter apontando para baixo com seu sarcasmo de sempre.
John se virou. O anjo estava na porta de entrada da sala de bilhar, encostado contra o arco ornamentado. Tinha uma bota cruzada sobre a outra e os braços cruzados no peito. Seus piercings dourados brilhavam, dando a impressão de que havia olhos por toda parte, olhos que não perdiam nada.
Lassiter sorriu um pouco.
– Então, está vendo as coisas de um ângulo diferente agora, não está?
Pouco tempo antes da noite anterior John teria lançado um dane-se como resposta, mas agora estava inclinado a concordar com a cabeça. Especialmente porque achava que as fissuras no concreto do corredor foram causadas pela dor que Tohr tinha sentido.
– Bom – disse Lassiter. – Já era hora. Oh, e eu não estou com ele agora porque todo mundo precisa ficar sozinho de vez em quando. Além do mais, tenho que ter a minha dose de Oprah.
O anjo afastou-se, seus cabelos loiros e negros balançavam.
– E pode calar a boca. Oprah é maravilhosa!
John balançou a cabeça e viu-se sorrindo. Lassiter podia ser um metrossexual pé no saco, mas trouxe Tohr de volta à Irmandade e isso valia alguma coisa.
Atravessou o túnel. Saiu do armário. Entrou no escritório onde Tohr ainda estava dormindo.
Quando John se aproximou da mesa, o Irmão acordou com um espasmo no corpo inteiro, levantando a cabeça de repente. Metade de seu rosto estava amassado para dentro, como se alguém tivesse jogado nele um spray de goma de passar e passado o ferro de uma maneira muito desleixada.
– John... – ele disse com voz rouca. – Oi. Você precisa de alguma coisa?
John enfiou a mão na cesta e tirou o sanduíche de queijo e presunto. Colocou-o sobre a mesa e o empurrou na direção do macho.
Tohr piscou como se nunca tivesse visto duas fatias de pão de centeio com um pouco de recheio antes.
John acenou com a cabeça. Coma, assinalou com a boca.
Tohr se aproximou e colocou a mão no sanduíche.
– Obrigado.
John balançou a cabeça, as pontas dos dedos se demorando sobre a superfície da mesa. Sua despedida foi uma batida rápida de seus dedos. Havia muito a ser dito no pouco tempo que tinha e sua grande preocupação era que Xhex não acordasse sozinha.
Quando alcançou a porta, Tohr disse:
– Estou realmente muito feliz que você a tenha de volta. Muito feliz mesmo.
Quando as palavras flutuaram até ele, os olhos de John se fixaram naquelas rachaduras no corredor. Concluiu que aquilo tinha sido obra dele. Se Wrath e os Irmãos tivessem aberto sua porta com más notícias sobre sua fêmea, teria reagido da mesma maneira que Tohr.
Totalmente acabado. E, em seguida, viveria um grande inferno.
Por cima do ombro, John olhou para o rosto pálido do homem que tinha sido seu salvador, seu mentor... o mais próximo do pai que nunca conheceu. Tohr tinha ganhado peso, mas seu rosto ainda estava vazio e talvez isso nunca mudasse, independente de quantas refeições comesse.
Enquanto os olhares se encontravam, John teve a sensação de que a parceria deles tinha sido muito maior do que apenas a soma dos anos em que conheciam um ao outro.
John colocou a cesta no chão aos seus pés.
Vou sair com Xhex esta noite.
– É?
Vou mostrar a ela onde cresci.
Tohr engoliu em seco.
– Você quer as chaves da minha casa?
John recuou. Disse aquilo apenas para informar o cara sobre o que estava acontecendo com ele, um tipo de contato para tentar remendar a porcaria que tinha acontecido antes.
Não esperava levá-la até lá...
– Vá. Seria bom para você dar uma olhada. O doggen passa por lá apenas uma vez por mês, talvez duas. – Tohr passou e puxou uma das gavetas da mesa. Quando tirou um chaveiro, limpou a garganta. – Aqui.
John pegou as chaves e fechou os dedos ao redor delas, sentindo a vergonha apertar seu peito. Ultimamente, esteve ocupado em ignorar o cara e, mesmo assim, o Irmão se comportava como homem e lhe oferecia algo muito difícil para ele.
– Estou feliz por você e Xhex terem encontrado um ao outro. Faz todo um sentido cósmico, faz mesmo.
John colocou as chaves no bolso para liberar a mão:
Não estamos juntos.
O sorriso que surgiu rapidamente no rosto do sujeito parecia antigo.
– Sim, vocês estão. Vocês estão destinados a ficarem juntos.
Jesus, pensou John, achando que o cheiro de sua vinculação era óbvio. Ainda assim, não havia razão para tratar com todos os “porquês” que envolviam a união deles.
– Então, você vai ao Orfanato Nossa Senhora? – Quando John assentiu, Tohr abaixou e pegou um saco de lixo. – Leve isso com você. É o dinheiro dos narcóticos confiscados naquela casa. Blay trouxe de volta. Imagino que poderia usá-lo.
Quando Tohr se levantou, deixou o saco sobre a mesa e pegou o sanduíche, retirando a embalagem plástica e dando uma mordida.
– Bom trabalho com a maionese – murmurou. – Nem muito. Nem pouco. Obrigado.
Tohr se dirigiu para o armário.
John assobiou baixinho e o Irmão parou, mas não se virou.
– Tudo bem, John. Não precisa dizer nada. Basta se manter a salvo lá fora hoje, certo?
Com isso, Tohr saiu do escritório, deixando John sozinho num rastro de bondade e dignidade que esperava poder produzir um dia.
Enquanto a porta do armário se fechava pensou... que gostaria de ser como Tohr.
Saindo para o corredor, achou engraçado ter aquilo passando por sua cabeça outra vez e este retorno era do tipo que corrigia o mundo: desde que tinha conhecido o cara, fosse pelo tamanho do Irmão, ou por sua inteligência, ou pela maneira como tratava sua fêmea, ou pela maneira como lutava, ou até mesmo pelo som profundo de sua voz... John queria ser como Tohr.
Isso era bom.
Isso era... certo.
Enquanto caminhava até a sala de recuperação, não se sentia exatamente ansioso pela programação noturna. Afinal, o passado era muito melhor quando permanecia enterrado... especialmente o seu, porque fedia.
Mas a questão era que tinha uma chance maior de passar mais tempo com Xhex após arrancá-la de Lash naquele estado. Ela precisaria de outra noite, talvez duas, antes de recuperar sua força plena. E precisaria se alimentar novamente, pelo menos mais uma vez.
Assim, saberia onde ela estava e a manteria ao seu lado durante a noite.
Não importava no que Tohr acreditava, John não estava enganando a si próprio. Mais cedo ou mais tarde, ela fugiria e ele não seria capaz de detê-la.
No Outro Lado, Payne caminhava ao redor do Santuário, com os pés descalços sobre a grama verde e macia, sentindo o perfume das madressilvas e jacintos.
Não havia dormido nem sequer por uma hora desde que sua mãe a tinha reanimado, e embora aquilo em princípio parecesse estranho, não pensava muito a respeito. Simplesmente era assim.
Parecia mais do que provável que seu corpo tivesse tido descanso suficiente para toda uma vida.
Quando passou pelo Templo do Primaz, não entrou. Fez a mesma coisa na entrada do pátio de sua mãe – era muito cedo para a chegada de Wrath e seu treino com ele era o único motivo para estar ali.
Porém, quando chegou ao retiro, abriu uma brecha na porta, embora não pudesse dizer o que a motivou para girar a maçaneta e ficar parada por um período de tempo na soleira.
As tigelas de água que as Escolhidas haviam usado ao longo do tempo para testemunhar os acontecimentos que aconteciam do Outro Lado estavam alinhadas de forma perfeita nas várias mesas, os rolos de pergaminho e canetas de pena estavam alinhados da mesma maneira, prontos para o uso.
Um brilho chamou sua atenção e caminhou até sua origem. A água em uma das bacias de cristal estava se movendo em círculos cada vez mais lentos, como se tivessem acabado de utilizar a coisa.
Ela olhou ao redor.
– Olá?
Não houve resposta, apenas um cheiro suave de limão, que sugeria que No’One havia passado por ali recentemente com seus panos de limpeza. O que, na verdade, era um pouco de desperdício de tempo. Não havia poeira, gordura ou qualquer tipo de sujeira que precisasse ser retirada. Mas No’One fazia parte da grande tradição das Escolhidas, não fazia?
Nada a fazer exceto trabalho inútil que não tinha muito propósito.
Quando Payne se virou para ir embora e passou por todas as cadeiras vagas, o sentimento de fracasso de sua mãe era tão predominante quanto o silêncio que abundava.
Na verdade, ela não gostava da fêmea. Mas havia uma triste realidade para todos os planos que acabaram dando em nada: criar um programa de melhoramento genético de maneira a deixar a raça mais forte. Enfrentar o inimigo no campo de batalha e vencer. Ter muitos filhos servindo-a com amor, obediência e alegria.
Onde estava a Virgem Escriba agora? Sozinha. Sem adorações. Detestada.
E era ainda menos provável que as próximas gerações seguissem seus caminhos, considerando a maneira pela qual tantos pais tinham se afastado das tradições.
Deixando a sala vazia, Payne saiu para a luz difusa e leitosa e...
Descendo pelo espelho d’água, uma forma amarela brilhante se moveu e passou a dançar como uma tulipa na brisa.
Payne caminhou em direção à figura, e enquanto se aproximava, chegou à conclusão de que Layla tinha enlouquecido.
A Escolhida estava cantando uma música que não tinha letra, o corpo dela se movia num ritmo sem música, seu cabelo balançava ao redor como uma bandeira.
Foi a primeira e única vez que uma fêmea não usava um coque da maneira como todas as Escolhidas usavam... pelo menos até onde Payne tinha visto.
– Minha irmã! – disse Layla, hesitante. – Perdoe-me.
Seu sorriso estava mais brilhante do que o amarelo de sua túnica e seu perfume estava mais forte do que nunca, com um toque de canela no ar, tão notável quanto sua voz adorável.
Payne encolheu os ombros.
– Não há nada para perdoar. Na verdade, sua música é agradável aos ouvidos.
Os braços de Layla retomaram seu elegante balanço.
– Está um lindo dia, não?
– Certamente. – Vindo do nada, Payne sentiu uma pontada de medo. – Seu humor está muito melhor.
– Está sim! – A Escolhida rodopiou ao redor, apontando o pé em um lindo arco antes de saltar no ar. – Na verdade, está um dia adorável!
– O que a agradou tanto? – Embora Payne soubesse a resposta. Mudanças de disposição, afinal de contas, raramente eram espontâneas... a maioria exigia um estímulo.
Layla diminuiu o ritmo de sua dança, seus braços e cabelos flutuaram para baixo e descansaram. Enquanto seus dedos elegantes se erguiam até sua boca, parecia ter perdido as palavras.
Encontrou um serviço adequado, Payne pensou. Sua experiência como uma ehros já não era mais apenas uma teoria.
– Eu... – O rubor em suas faces era vibrante.
– Não diga mais nada, apenas saiba que estou feliz por você – murmurou Payne e isso era uma grande verdade. Mas havia uma parte dela que se sentia curiosamente desanimada.
Agora era apenas ela e No’One que estavam sem uso? Parecia que sim.
– Ele me beijou – disse Layla, olhando para o espelho d’água. – Ele... colocou sua boca sobre a minha.
Com graça, a Escolhida sentou na borda de mármore e deslizou a mão ao longo da água. Depois de um momento, Payne se juntou a ela, porque às vezes é melhor sentir algo, qualquer coisa. Mesmo que fosse uma dor.
– Você gostou, não é?
Layla encarou seu próprio reflexo, seus cabelos loiros escorrendo pelos ombros até atingir a superfície prateada da piscina.
– Ele foi... um fogo dentro de mim. Uma grande queimação se espalhando que... me consumiu.
– Então, você não é mais virgem.
– Ele nos deteve após o beijo. Disse que queria que eu tivesse certeza. – O sorriso sensual que surgiu no rosto da fêmea era um eco evidente da paixão. – Eu tinha certeza e ainda tenho. Então, é ele. Na verdade, seu corpo de guerreiro estava pronto para mim. Faminto por mim. Ser desejada dessa maneira foi um presente além do esperado. Pensei que... o cumprimento da minha educação era tudo que eu buscava, mas agora sei que há muito mais esperando por mim do Outro Lado.
– Com ele? – Payne murmurou. – Ou através do exercício de seu dever?
Isso causou um profundo franzir na testa de Layla.
Payne assentiu.
– Presumo que aquilo que busca seja mais sobre ele do que sobre a sua posição.
Houve uma longa pausa.
– Tal paixão entre nós é certamente um indicativo de um destino, não é?
– Não tenho opinião formada sobre isso. – Sua experiência com o destino a levou a um brilhante e sangrento momento de atividade... seguido por uma inanição generalizada. Não era capaz de se pronunciar a respeito do tipo de paixão que Layla se referia.
Ou festejá-la.
– Você me condena? – Layla sussurrou.
Payne ergueu os olhos para a Escolhida e pensou naquela sala vazia, todas aquelas mesas vagas e as gélidas bacias largadas por mãos bem treinadas. Layla estava alegre agora, firmada em coisas que poderiam acontecer fora da vida de Escolhida, parecia outra inevitável deserção. E isso não era uma coisa ruim.
Estendeu a mão e tocou o ombro da outra fêmea.
– Nem um pouco. Na verdade, estou feliz por você.
O prazer tímido de Layla transformou-a de bela a algo próximo de tirar o fôlego.
– Estou tão feliz de compartilhar isso com você. Estou prestes a explodir e não há ninguém... de verdade... com quem conversar.
– Pode sempre conversar comigo. – Afinal, Layla nunca a julgou e estava muito inclinada a conceder à fêmea a mesma graciosa aceitação. – Vai voltar em breve?
Layla assentiu.
– Ele disse que eu poderia voltar a encontrá-lo em sua... como foi que ele mencionou? Próxima noite de folga. E assim o farei.
– Bem, você deve manter-me informada. Na verdade... estarei interessada em ouvir sobre como você vai proceder.
– Obrigada, irmã. – Layla cobriu a mão de Payne, um brilho de lágrimas se formando nos olhos da Escolhida. – Estive tanto tempo sem servir e isto... isto é o que eu sempre desejei. Eu me sinto... viva. –
Bom para você, minha irmã. Isso é... muito bom.
Com um sorriso final de reafirmação, Payne virou-se e se afastou da fêmea. Enquanto caminhava de volta para os alojamentos, viu-se acariciando aquela dor que se formou no centro de seu peito.
Até onde ela sabia, Wrath não chegaria rápido o suficiente.
CAPÍTULO 33
Xhex acordou com o perfume de John Matthew.
Com seu perfume e com o cheiro de café fresco.
Quando suas pálpebras se abriram, seus olhos o encontraram na escura sala de recuperação. Estava de volta à cadeira que antes havia deixado, com o tronco inclinado enquanto colocava o café de uma garrafa térmica verde escura em uma caneca. Havia colocado suas calças de couro e sua camiseta, mas seus pés estavam descalços.
Quando virou-se na direção dela, congelou, suas sobrancelhas se ergueram. E embora o café estivesse a caminho de sua boca, parou e imediatamente o estendeu para que ela o tomasse.
Cara, aquilo o classificava como um homem de poucas palavras.
– Não, por favor – ela disse. – É seu.
Ele fez uma pausa como se considerando se argumentava ou não. Mas então colocou a porcelana em seus lábios e bebeu.
Sentindo-se um pouco mais estável, Xhex afastou as cobertas e deslizou as pernas debaixo delas. Quando se colocou em pé, sua toalha caiu e ela ouviu John respirar com um assobio.
– Oh, desculpe – murmurou, curvando-se e agarrando o tecido felpudo.
Não podia culpá-lo por não querer espiar a cicatriz que ainda estava se curando ao longo da parte inferior de seu ventre. Não era exatamente o que se precisava ver logo antes do café da manhã.
Envolvendo-se na toalha, encaminhou-se lentamente para o banheiro, usou as instalações e lavou seu rosto. Seu corpo estava se recuperando bem, sua coleção de machucados estava desaparecendo, sentia suas pernas mais fortes sob seu peso. E, graças ao descanso e de ter se alimentado dele, suas dores não eram mais tão ruins, apenas mais uma série de vagos desconfortos.
Quando saiu do banheiro, disse:
– Você acha que posso pegar emprestado algumas roupas de alguém?
John assentiu, mas apontou para a cama. Era evidente que queria que ela comesse primeiro e ela concordava totalmente com aquele plano.
– Obrigada – disse, apertando a toalha ao redor dos seios. – O que você tem aí?
Quando sentou, ofereceu a ela uma variedade de coisas e Xhex pegou o sanduíche de peru porque a necessidade de proteína era um desejo que não podia rejeitar. De sua cadeira, John a observou comer, apenas bebendo seu café, e no segundo em que ela terminou, aproximou um pão doce que provou ser muito tentador.
A combinação de cereja e cobertura doce a deixou louca por um pouco de café. E John estava logo ali com uma caneca, como se estivesse lendo sua mente.
Ela terminou rapidamente um segundo pão doce e uma rosca. E um copo de suco de laranja. E duas xícaras de café.
E era engraçado. O silêncio dele tinha um efeito estranho sobre ela. Normalmente, ela era a quieta nas situações, preferindo manter sua própria opinião e não dividindo seus pensamentos sobre nada. Mas com a presença muda de John, sentia-se curiosamente compelida a falar.
– Estou satisfeita – disse, deitando-se de novo contra os travesseiros. Quando ele ergueu uma sobrancelha e levantou o último pãozinho, ela balançou a cabeça. – Deus... não. Não consigo comer mais nada.
E foi só então que ele começou a comer.
– Você esperou por mim? – disse, franzindo a testa. Quando ele baixou o olhar e deu de ombros, ela xingou baixinho. – Não precisava fazer isso.
John encolheu os ombros de novo.
Enquanto o observava, ela murmurou:
– Você tem ótimas maneiras à mesa.
O rubor dele era da cor do dia dos namorados e ela teve de dizer ao seu coração para se acalmar quando começou a bater mais rápido.
Além disso, talvez ela estivesse tendo palpitações porque havia acabado de jogar quase duas mil calorias em seu estômago vazio.
Ou não. Quando John começou a lamber o glacê da ponta de seus dedos, ela avistou rapidamente a língua dele e, por um momento, sentiu uma agitação em seu corpo...
Memórias de Lash esmagando a parte frágil entre suas pernas a levaram de volta àquele quarto, com ele em cima dela, forçando suas pernas a separar-se com suas mãos duras...
– Oh, maldição... – Saindo rápido da cama, cambaleou até o banheiro e quase não chegou a tempo.
Saiu tudo. Os dois pãezinhos. O café. Aquele sanduíche de peru. Evacuação completa de tudo que tinha comido.
Quando se soltou, não sentiu o vômito. Sentia as horríveis mãos de Lash em sua pele... seu corpo dentro dela, pressionando...
E lá se foi o suco de laranja.
Oh, Deus... como tinha passado por tudo aquilo com aquele bastardo repetidas vezes? Os socos, a luta e as mordidas... em seguida, o sexo brutal.
De novo, de novo e de novo... e então as consequências. Agora Xhex tentava tirá-lo dela.
Droga...
Outra onda de náusea cortou seus pensamentos, e embora ela detestasse vomitar, o desligamento momentâneo de seu cérebro era um alívio. Era quase como se seu corpo estivesse tentando exorcizar o trauma fisicamente, explodindo tudo para que ela pudesse recomeçar.
Reiniciar do começo, por assim dizer.
Quando o pior do vômito passou, afundou-se em seus tornozelos e descansou a testa úmida em seu braço. Enquanto sua respiração cortava sua garganta, o reflexo de seu esforço para vomitar fazia com que tremesse muito, como se seu corpo estivesse considerando começar a se organizar de novo para outra rodada.
Não tem mais nada aí, disse à maldita coisa. Nada, a não ser que quisesse colocar seus pulmões para fora também.
Droga, ela odiava essa parte. Logo depois de passar por todo o inferno, sua mente e seu ambiente estavam cheios de minas terrestres e nunca sabia o que poderia provocar uma explosão. Claro, ao longo do tempo, isso diminuía, mas a primeira tentativa de voltar à “vida normal” estava sendo um inferno e meio.
Ela levantou a cabeça e acionou a descarga.
Quando um pano úmido roçou sua mão, ela pulou, mas era apenas John, nada para temer.
E, cara, ele tinha a única coisa que ela realmente queria naquele momento: aquele pano limpo, úmido e frio era uma dádiva divina.
Enterrando seu rosto naquilo, estremeceu de alívio.
– Sinto muito sobre a comida. Estava boa quando botei para dentro.
Hora de chamar a doutora Jane.
Enquanto Xhex se sentava preguiçosamente nua no chão em frente ao vaso sanitário, John mantinha um olho nela e outro no telefone enquanto mandava uma mensagem.
No segundo em que enviou, jogou o celular sobre o balcão e puxou uma toalha limpa dentre a pilha que havia perto da pia.
Queria dar a Xhex alguma privacidade, mas também estava tendo problemas em olhar como sua coluna ameaçava perfurar a pele de suas costas. Enrolando-a na toalha, deixou suas mãos se demorarem sobre os ombros dela.
Queria puxá-la para seu peito, mas não sabia se ela concordaria em chegar tão per...
Xhex se afastou dele e arrumou a toalha, cruzando as duas metades na sua frente.
– Deixe-me adivinhar. Você chamou nossa boa doutora.
Movendo-se, ele colocou as mãos no chão para suportar o peso de seu tronco e se levantou sobre os joelhos de forma que ficasse cercada por ele por todos os lados. Nada mal, ele pensou. O vaso sanitário não estava bem na frente dela, mas se precisasse, tudo o que tinha de fazer era se sentar direito.
– Não estou doente – disse com voz rouca. – Nem da operação nem de nada. Eu só comi rápido demais.
Talvez, ele pensou. Mas, se fosse isso, não faria mal se a doutora Jane a examinasse. Além disso, precisavam saber muito bem como ela estava antes de saírem à noite, concluindo que isso ainda fosse possível.
– Xhex? John?
John assoviou ao som da voz da doutora e, um momento depois, a fêmea de Vishous colocou a cabeça no banheiro.
– Uma festa? E eu não fui convidada? – ela disse, entrando.
– Bem, tecnicamente, acho que foi sim – Xhex murmurou. – Estou bem.
Jane ajoelhou-se, e embora seu sorriso fosse terno, seus olhos eram muito perspicazes ao olhar para o rosto de Xhex.
– O que está acontecendo aqui?
– Fiquei enjoada depois de comer.
– Importa-se se eu medir sua temperatura?
– Eu preferiria não ter nada perto da minha garganta nesse momento, se não se importa.
Jane tirou um instrumento branco de sua maleta.
– Posso fazer isso apenas aproximando esse aparelho da sua orelha.
John ficou chocado quando a mão de Xhex encontrou a sua e apertou forte como se precisasse de algum apoio. Para que ela soubesse que ele estava lá para o que precisasse, apertou de volta e, no instante em que fez isso, os ombros dela se aliviaram e relaxou outra vez.
– Divirta-se, doutora.
Xhex inclinou a cabeça e acabou se apoiando direto no ombro dele. Então, John realmente não poderia evitar colocar sua bochecha nos cachos fofos e macios dela e respirar fundo.
Até onde sabia, a médica trabalhava rapidamente. Mal começou, houve um bipe e ela já estava se afastando... o que significou Xhex levantando a cabeça outra vez.
– Nada de febre. Importa-se se eu olhar a incisão?
Xhex esticou-se para mostrar, separando a toalha e expondo a barriga e a faixa que atravessava a parte inferior de seu abdômen.
– Parece bom. O que você comeu?
– Apenas comi demais.
– Certo. Alguma dor que eu deva saber?
Xhex negou com a cabeça.
– Sinto-me melhor. De verdade. O que eu preciso é de algumas roupas e sapatos... e outra Primeira Refeição.
– Tenho roupas que os médicos usam em cirurgias e que você pode vestir, depois podemos alimentar você de novo.
– Bom. Obrigada. – Xhex começou a se levantar e ele a ajudou, mantendo a toalha no lugar quando escorregou. – Porque vamos sair.
– Não para lutar, você não pode.
John negou com a cabeça e assinalou para a doutora:
Vamos apenas esticar as pernas. Juro.
Os olhos da doutora Jane se estreitaram.
– Posso apenas dar uma opinião médica. E o que eu penso é que você... – olhou para Xhex – deveria comer alguma coisa e ficar por aqui pelo resto da noite. Mas você é uma adulta, então pode fazer as suas próprias escolhas. No entanto, saiba de uma coisa: saiam sem o Qhuinn e terão sérios problemas com Wrath.
Tudo bem, John gesticulou. Não estava empolgado com a rotina de babá, mas não iria correr riscos com Xhex.
Não tinha ilusões a respeito da fêmea que amava. Ela poderia decidir partir a qualquer momento, e se a coisa ficasse feia a esse ponto, gostaria de um pouco de ajuda.
CAPÍTULO 34
Lash acordou na mesma posição em que havia desmaiado: sentado no chão do banheiro no rancho, os braços unidos em cima dos joelhos, a cabeça abaixada.
Quando abriu os olhos, deu uma olhada em sua ereção.
Tinha sonhado com Xhex, as imagens foram tão claras, as sensações tão vívidas que era uma surpresa não ter gozado em suas calças. Tinham voltado àquele quarto, estavam juntos, lutando, mordendo e, então, ele a possuiu, forçando-a a se deitar na cama, obrigando-a a aceitá-lo, mesmo que ela odiasse.
Estava totalmente apaixonado por ela.
O som de um murmúrio úmido fez com que sua cabeça se erguesse. A Mulher Silicone estava voltando a si, seus dedos se contorciam, as pálpebras piscavam como persianas com defeito.
Enquanto seus olhos focavam no cabelo emaranhado e no corpete manchado de sangue, sentiu uma dor aguda nas têmporas, uma ressaca que com certeza não estava ligada à diversão. A prostituta o enojava, estava deitada toda desleixada envolta de sua própria imundície.
Com certeza ela passou mal do estômago e Lash deu graças a Deus por ter dormido durante aquela comoção.
Tirando o cabelo dos olhos, sentiu suas presas se alongarem e soube que estava na hora de colocar a mulher em uso, mas droga... ela era tão atraente quanto um pedaço de carne estragada.
Mais água. Era disso que aquele pesadelo precisava. Mais água...
Quando se inclinou para ligar o chuveiro outra vez, os olhos dela flutuaram sobre ele.
O grito dela repicou de sua boca ensanguentada e ecoou no azulejo até que os ouvidos dele zumbiram como sinos de igreja.
As malditas presas a assustaram demais. Quando os cabelos dele caíram sobre seus olhos outra vez, passou a mão, empurrando-o para trás e questionou se deveria rasgar seu pescoço só para acabar com o barulho. Mas não havia a menor chance de mordê-la antes dela tomar um banho...
Ela não estava olhando para sua boca. Seus olhos grandes e enlouquecidos estavam fixos em sua testa.
Quando o cabelo o incomodou outra vez, ele o empurrou para trás... e alguma coisa saiu em sua mão.
Em câmera lenta, olhou para baixo.
Não, não era seu cabelo loiro.
Sua pele.
Lash se virou para o espelho e se ouviu gritar. Seu reflexo era incompreensível, o pedaço de carne que havia se soltado revelava uma camada de tinta negra que escorria sobre seu crânio branco. Com a unha, testou a extremidade do que ainda estava preso e descobriu que tudo estava frouxo; cada centímetro quadrado em seu rosto não era nada além de uma folha vacilante estendida sobre o osso.
– Não! – ele gritou, tentando colocar a coisa de volta no lugar dando tapinhas...
Suas mãos... oh, Deus, elas também, não. Tiras de pele estavam penduradas nas costas delas e, ao puxar para cima as mangas de sua camisa social, desejou ter sido mais gentil, pois sua derme veio junto com a delicada seda.
O que estava acontecendo com ele?
Atrás dele, no espelho, viu a prostituta passar como um raio numa corrida mortal, parecendo com Carrie, a estranha, só que sem o vestido de baile.
Com uma onda de força, foi atrás dela, seu corpo se movendo sem nada do poder e graça com os quais estava acostumado. Enquanto corria atrás de sua presa, podia sentir o atrito de suas roupas contra a pele e conseguia apenas imaginar os rasgos que estavam acontecendo em cada centímetro de seu corpo.
Pegou a prostituta bem na hora em que tinha chegado à porta dos fundos e começava a lutar com as fechaduras. Golpeando-a por trás, ele agarrou seu cabelo, puxou sua cabeça para trás e mordeu com força, chupando seu sangue negro para dentro de si.
Lash acabou com ela rapidamente, drenando-a até que suas sucções lhe proporcionaram apenas um monte de nada em sua boca e, quando terminou, simplesmente a largou. Com isso, ela desabou no tapete.
Com um andar vacilante, embriagado, voltou ao banheiro e acendeu as luzes que percorriam os dois lados do espelho.
A cada peça de roupa que removia, revelava mais do horror que já estava estampado em seu rosto: seus ossos e músculos reluziam com um brilho negro e oleoso sob a iluminação das lâmpadas.
Era um cadáver. Um cadáver em pé, que andava e respirava, cujos olhos giravam em suas cavidades sem pálpebra ou cílio, a boca mostrava nada além de presas e dentes.
O último pedaço de pele que lhe restava era aquele que servia de base para seu lindo cabelo loiro em sua cabeça, mas até isso estava deslizando para trás, como uma peruca que tinha perdido sua cola.
Retirou o pedaço final, e com as mãos esqueléticas, acariciou aquilo que tinha lhe dado tanto orgulho. Evidentemente, a coisa estava desprezível daquele jeito, o lodo negro coagulando-se nas madeixas, manchando-as, emaranhando-as... de modo que não estavam melhores do que o cabelo daquela prostituta perto da porta.
Deixou seu couro cabeludo cair no chão e olhou para si mesmo.
Através de sua caixa torácica, observou a batida de seu próprio coração e se perguntou, com um horror entorpecente, o que mais apodreceria nele... e o que lhe restaria quando aquela transformação terminasse.
– Oh, Deus... – disse. Sua voz já não soava direito, era um eco deslocado que constituía as palavras de um modo assustadoramente familiar.
Blay ficou parado com a porta de seu armário aberta, suas roupas penduradas à mostra. Era um absurdo, mas quis ligar para sua mãe para pedir um conselho. Algo que sempre fazia quando tinha que se vestir bem.
Mas essa não era uma conversa que estava com pressa de ter. Ela concluiria que aquilo era por causa de uma fêmea e ficaria toda animada com o fato de que estava indo a um encontro e seria forçado a mentir para ela... ou sair do armário.
Seus pais nunca foram de fazer julgamentos... mas era filho único, e não haver qualquer sinal de fêmea significava não apenas nada de netinhos, mas um chute na aristocracia. Não era surpresa, a glymera aceitava bem a homossexualidade, desde que fosse emparelhado com uma fêmea e que nunca, jamais, falasse sobre isso ou fizesse qualquer coisa publicamente para confirmar essa característica com a qual tinha nascido. Aparências. Tudo girava em torno das aparências. E se você se assumisse? Era excluído.
E sua família também.
De alguma maneira, não conseguia acreditar que estava prestes a ir se encontrar com um macho. Em um restaurante. E que depois iria a um bar com o cara.
E seu parceiro estaria vestido de forma incrível. Sempre era.
Então Blay tirou um terno Zegna, que era cinza risca de giz muito claro. A próxima peça foi uma elegante camisa social de algodão, o corpo da camisa era ligeiramente rosado, com seus punhos franceses e um colarinho branco brilhante. Sapatos... sapatos... sapatos...
Bam, bam, bam na porta.
– Ei, Blay!
Droga. Já tinha colocado o terno na cama e tinha acabado de tomar banho, estava de roupão, com gel no cabelo.
Gel: um delator miserável.
Indo à porta, abriu a coisa apenas um centímetro ou dois. Do lado de fora, no corredor, Qhuinn estava pronto para lutar, seu coldre de adagas que usava no peito estava pendurado em sua mão, vestia suas roupas de couro e suas botas de combate estavam bem amarradas.
Contudo, foi engraçado, a rotina de guerreiro não causou tanta impressão. Blay estava ocupado demais lembrando-se da aparência do cara esticado na cama na noite anterior, seus olhos na boca de Layla.
Má ideia ter feito aquela alimentação em seu próprio quarto, Blay pensou. Porque agora ficaria pensando até onde as coisas teriam ido entre aqueles dois sobre seu colchão.
Contudo, conhecendo Qhuinn, devem ter percorrido o caminho inteiro, até o fim. Que ótimo.
– John enviou uma mensagem de texto – o cara disse. – Ele e Xhex vão dar uma volta em Caldwell e pela primeira vez o filho da mãe está...
Os olhos díspares de Qhuinn o percorreram de cima abaixo, então inclinou-se para o lado e olhou sobre o ombro de Blay.
– O que está fazendo?
Blay aproximou um pouco mais as golas de seu robe.
– Nada.
– Sua colônia está diferente... O que fez com seu cabelo?
– Nada. O que estava dizendo sobre John?
Houve uma pausa.
– É... certo. Bem, ele vai sair e nós vamos com ele. Porém, precisamos ser discretos. Vão querer privacidade. Mas nós podemos...
– Estou de folga esta noite.
Aquela sobrancelha com piercing se abaixou.
– E daí?
– E daí... que estou de folga.
– Isso nunca importou antes.
– Importa agora.
Qhuinn movimentou-se para o lado novamente e deu uma rápida olhada ao redor da cabeça de Blay.
– Você vai colocar aquele terno só para impressionar a equipe na casa?
– Não.
Houve um longo silêncio e então uma palavra:
– Quem?
Blay abriu mais a porta e deu um passo para trás entrando mais em seu quarto. Se fosse para ter aquela conversa, não fazia sentido fazer isso do lado de fora, no corredor, para as pessoas verem ou ouvirem.
– Isso realmente importa? – disse, em uma onda de raiva.
A porta foi fechada. Com força.
– Sim. Importa.
Como se estivesse dizendo um “dane-se” para Qhuinn, Blay desfez o laço de seu roupão e o deixou cair de seu corpo nu. E vestiu a calça comprida... sem cueca.
– Só um amigo.
– Macho ou fêmea?
– Como eu disse, isso importa?
Outra longa pausa, durante a qual Blay se enfiou dentro da camisa e a abotoou.
– Meu primo – Qhuinn rosnou. – Você vai sair com Saxton.
– Talvez. – Foi até a cômoda e abriu sua caixa de joias. Dentro dela, abotoaduras de todos os tipos brilhavam. Escolheu um conjunto que tinha rubis.
– Isso é uma vingança por causa de Layla ontem à noite?
Blay congelou com a mão na abotoadura.
– Jesus Cristo!
– É sim, claro. Isso é o que...
Blay se virou.
– Já lhe ocorreu alguma vez que isso não tem nada a ver com você? Que um cara me chamou para sair e eu quero ir? Que isso é normal? Ou será que você é tão egocêntrico que filtra tudo e todos pelo seu narcisismo?
Qhuinn recuou levemente.
– Saxton é um canalha.
– Bem, acho que você saberia mesmo o que torna alguém assim.
– Ele é um canalha, um canalha muito elegante e cheio de classe.
– Talvez tudo o que eu queira seja um pouco de sexo. – Blay levantou uma sobrancelha. – Já faz um tempo para mim e, para começar, aquelas fêmeas com quem eu estive nos bares só para acompanhá-lo não foram tão boas assim. Acho que está na hora de ter um pouco disso e do jeito certo.
O desgraçado teve a ousadia de empalidecer. De verdade. E maldito seja se não vacilou para trás e encostou-se contra a porta.
– Para onde vocês vão? – perguntou asperamente.
– Ele vai me levar ao Sal. E depois vamos àquele bar de charutos. – Blay ajeitou a outra abotoadura e foi até a cômoda pegar suas meias de seda. – Depois disso... quem sabe?
Uma onda de perfume apimentado flutuou através do quarto e, atordoado, Blay ficou em silêncio. De todos os rumos que pensou que aquela conversa seguiria... ativar o aroma de vinculação de Qhuinn não fazia parte de nada do que tinha imaginado.
Blay virou-se.
Depois de um longo, tenso momento, caminhou em direção ao seu melhor amigo, atraído pela fragrância. E enquanto chegava mais perto, os olhos quentes de Qhuinn o seguiam a cada passo, o vínculo entre eles, que estava sendo enterrado pelos dois lados, explodiu de repente dentro do quarto.
Quando estavam face a face, ele parou, seu peitoral cheio de ar encontrou o de Qhuinn.
– Diga a palavra – sussurrou asperamente. – Diga a palavra e eu não irei.
As mãos duras de Qhuinn se ergueram rapidamente envolvendo os dois lados da garganta de Blay, a pressão o obrigou a inclinar sua cabeça para trás e abrir sua boca para poder respirar. Fortes polegares cravaram nas articulações de cada lado de sua mandíbula.
Momento elétrico.
Potencialmente incendiário.
Acabariam na cama, Blay pensou enquanto fechava suas palmas nos grossos pulsos de Qhuinn.
– Diga a palavra, Qhuinn. Faça isso e eu passarei a noite com você. Vamos sair com Xhex e John e quando eles acabarem, voltamos para cá. Diga.
Os olhos azul e verde, dentro dos quais Blay tinha passado toda uma vida olhando, encararam sua boca e o peitoral de Qhuinn bombeava para cima e para baixo como se estivesse correndo.
– Melhor ainda – Blay falou arrastando as palavras. – Por que você simplesmente não me beija...
Blay foi virado de repente e empurrado com força contra a cômoda, que bateu forte contra a parede com um estrondo. Quando frascos de colônia chocalharam e uma escova de cabelo caiu no chão, Qhuinn forçou seus lábios sobre os de Blay, seus dedos cortavam a garganta dele.
Contudo, isso não importava. Rígido e desesperado... era tudo que queria do cara. E Qhuinn parecia concordar totalmente em fazer isso, sua língua disparava, tomava... possuía.
Com as mãos desastradas, Blay arrancou sua camisa para fora da calça e mergulhou sobre o zíper. Tinha esperado tanto tempo por isso...
Mas terminou antes de começar.
Qhuinn virou-se e se afastou enquanto as calças de Blay atingiam o chão e o cara saiu disparado em direção à porta. Com a mão na maçaneta, bateu a testa na madeira uma vez. Duas vezes.
E então, com uma voz morta, disse:
– Vá. Divirta-se. Apenas proteja-se, por favor, e tente não se apaixonar por ele. Ele vai partir seu coração.
Num piscar de olhos, Qhuinn deixou o quarto, a porta se fechou sem som algum.
Na sequência da partida, Blay permaneceu onde tinha sido deixado, a calça ao redor de seus tornozelos, sua ereção, já desaparecendo, era um completo constrangimento mesmo estando completamente sozinho. Quando o mundo começou a vacilar e seu tórax se comprimiu como um punho fechando-se com força, piscou rápido e tentou manter as lágrimas longe de seu rosto.
Como um macho velho, abaixou, curvou-se lentamente e ergueu a cintura da calça, suas mãos apalparam o zíper e o fechou. Sem colocar a camisa para dentro, caminhou e sentou na cama.
Quando seu telefone tocou sobre a mesa de cabeceira, virou-se e olhou em direção à tela. De alguma maneira, esperava ser Qhuinn, mas esta era a última pessoa com quem queria conversar e deixou quem quer que fosse ser atendido pelo correio de voz.
Por alguma razão, ficou pensando no tempo que gastou em seu banheiro se preocupando em se barbear, cortar as unhas e arrumar seu cabelo com o maldito gel. Depois, no tempo em frente ao armário. Tudo isso parecia um desperdício agora.
Sentia-se sujo. Completamente sujo.
E não iria mais sair com Saxton nem com ninguém naquela noite. Não no humor em que estava. Não havia razão para submeter um cara inocente àquela toxina.
Deus...
Maldição.
Quando sentiu que conseguiria falar, estendeu-se sobre o criado mudo e pegou o telefone. Abriu a coisa e viu que foi Saxton quem tinha ligado.
Talvez para cancelar? E isso não seria um alívio? Ser rejeitado duas vezes em uma noite dificilmente seria uma boa notícia, mas naquela o salvaria de ter que dispensar o macho.
Acionando o correio de voz, Blay escorou sua testa na palma da mão e olhou para baixo, encarando seus pés descalços.
– Boa noite, Blaylock. Imagino que esteja, neste exato momento, parado em frente ao seu armário tentando decidir o que vestir. – A voz macia e profunda de Saxton foi um curioso bálsamo, tão calma e suave. – Bem, na verdade, estou diante de minhas próprias roupas... Acredito que eu deva ir com um terno e um colete quadriculado. Acho que terno risca de giz seria um bom acompanhamento de sua parte. – Houve uma pausa e uma risada. – Não que eu esteja lhe dizendo o que vestir, claro. Mas me ligue se estiver em cima do muro. Em relação ao seu guarda-roupa, claro. – Outra pausa e então um tom sério. – Estou ansioso para vê-lo. Tchau.
Blay afastou o telefone de sua orelha e pairou seu polegar sobre a opção delete. Num impulso, salvou a mensagem.
Depois de uma inspiração longa e firme, obrigou-se a se colocar em pé. Mesmo com suas mãos tremendo, vestiu sua fina camisa e voltou-se para a cômoda que estava bagunçada agora.
Pegou os frascos de colônia, arrumou-os mais uma vez e recolheu a escova de cabelo do chão. Então abriu a gaveta de meias... e tirou o que precisava.
Para terminar de se vestir.
CAPÍTULO 35
Darius devia se encontrar com seu jovem protegido depois que o sol tivesse se posto, mas antes se dirigiu para a mansão humana que espiaram por entre as árvores, depois se materializou no bosque em frente à caverna da Irmandade.
Com os irmãos espalhados por toda parte, a comunicação poderia demorar, e um sistema havia sido montado para a troca de avisos e anúncios. Todos iam até um determinado local, uma vez por noite, para ver o que os outros tinham deixado ou para deixar suas próprias mensagens.
Depois de se certificar de que não estava sendo observado, mergulhou no sombrio enclave, atravessou a parede de pedra secreta e abriu caminho através da série de portões em direção ao sanctum sanctorum. O “Sistema de Comunicação” não era nada além de um nicho colocado na parede de pedra, onde a correspondência podia ser colocada e, devido a sua simplicidade, estava no final do caminho.
No entanto, não adiantou-se o suficiente para ver se seus Irmãos tinham qualquer coisa a dizer a ele.
Aproximando-se do último portão, viu sob o chão de pedra o que à primeira vista parecia ser uma pilha de roupas dobradas próximas de uma bolsa rústica.
Quando desembainhou sua adaga negra, uma cabeça escura se ergueu da pilha.
– Tohr? – Darius abaixou a arma.
– Sim. – O menino virou-se em sua cama áspera. – Boa noite, senhor.
– Posso saber o que você está fazendo aqui?
– Dormindo.
– Isso é óbvio, com certeza. – Darius se aproximou e ajoelhou-se. – Mas porque você não volta para sua casa?
Afinal, havia sido renegado, mas Hharm raramente ia à morada de sua companheira. Com certeza o jovem poderia ter ficado com sua mahmen.
O garoto forçou-se a ficar em pé e se equilibrou apoiando-se na parede.
– Que horas são? Eu perdi...?
Darius pegou o braço de Tohr.
– Você comeu?
– Estou atrasado?
Darius não se preocupou em fazer mais nenhuma pergunta. As respostas para o que ele queria saber estavam na maneira como o garoto se recusava a levantar seus olhar: com certeza, solicitaram a ele que não pedisse refúgio na casa de seu pai.
– Tohrment, quantas noites você já passou aqui? – Naquele chão frio.
– Posso encontrar outro lugar onde ficar. Não voltarei a dormir aqui outra vez.
Se isso fosse verdade, louvada seria a Virgem Escriba.
– Espere aqui, por favor.
Darius entrou pelo portão e verificou a correspondência. Enquanto encontrava notificações de Murhder e Ahgony, pensou em deixar uma para Hharm. Colocando palavras do tipo “Como você pôde dar as costas a um filho de seu sangue, ao ponto dele se ver forçado a dormir com nada além de pedras como cama e suas roupas por coberta? Seu imbecil.”
Darius voltou a Tohrment e viu que o garoto tinha empacotado suas coisas em sua bolsa e suas armas já estavam preparadas.
Darius engoliu uma maldição.
– Devemos primeiro ir à mansão da fêmea. Tenho algumas coisas para discutir com... aquele mordomo. Traga suas coisas, filho.
Tohrment o seguiu, mais alerta do que a maioria deveria estar depois de tantos dias sem comida ou descanso apropriado.
Eles se materializaram em frente à mansão de Sampsone e Darius apontou com a cabeça para a direita, indicando que deveriam prosseguir pelos fundos. Quando chegaram à parte de trás da casa, dirigiram-se à porta pela qual haviam saído na noite anterior e tocou a estrondosa campainha.
O mordomo abriu caminho e fez uma reverência.
– Senhores, há alguma coisa que possamos fazer para servi-los em sua missão?
Darius entrou.
– Gostaria de falar outra vez com o mordomo do segundo andar.
– Mas é claro. – Outra reverência. – Tenham a bondade de me seguir até a sala de visitas.
– Vamos esperar aqui. – Darius sentou-se na mesa desgastada dos serviçais.
O doggen empalideceu.
– Senhor... Isso é...
– Onde eu gostaria de conversar com o mordomo Fritzgelder. Não vejo nenhum benefício em aumentar a aflição do seu mestre e senhora pelo nosso encontro não anunciado em sua casa. Não somos convidados, estamos aqui a serviço de sua tragédia.
O mordomo fez uma reverência tão profunda que foi uma surpresa ele não ter caído de testa no chão.
– Em verdade, o senhor está certo. Vou chamar Fritzgelder neste exato momento. Existe algo que possamos fazer para sua comodidade?
– Sim. Apreciaríamos muito alguns alimentos e cerveja.
– Oh, senhor, mas é claro! – O doggen se inclinou respeitosamente enquanto saía do cômodo. – Eu deveria ter oferecido, perdoe-me.
Quando ficaram sozinhos, Tohrment disse:
– Você não precisa fazer isso.
– Fazer o quê? – Darius falou demorando-se nas palavras, correndo as pontas dos dedos sobre a superfície ondulada da mesa.
– Conseguir comida para mim.
Darius olhou sobre o ombro.
– Meu estimado garoto, foi um pedido calculado para deixar o mordomo mais à vontade. Nossa presença neste local é uma fonte de grande desconforto para ele, tanto quanto o pedido para interrogar outra vez seu serviçal. O pedido por comida deve ter sido um alívio para ele. Agora, por favor, sente-se, e quando as provisões e a bebida chegarem, deve consumi-los. Já me alimentei antes.
Houve o som de uma cadeira sendo arrastada para trás, em seguida um rangido quando o peso de Tohrment se acomodou.
O mordomo chegou logo depois.
O que foi embaraçoso, já que Darius, na verdade, não tinha nada a perguntar a ele. Onde estava a comida...?
– Senhores – disse o mordomo com orgulho enquanto abria a porta com um floreio.
Empregados se apresentaram com todos os tipos de bandeja e canecas de cerveja e provisões e, enquanto o banquete era servido, Darius levantou uma sobrancelha à Tohrment, em seguida desceu o olhar de maneira incisiva em direção aos diversos alimentos.
Tohrment, o macho educado de sempre, começou a se servir.
Darius assentiu ao mordomo.
– Este é um banquete digno de tal casa. Em verdade, seu mestre deve estar mais que orgulhoso.
Depois que o mordomo e os outros saíram, o outro mordomo esperou pacientemente, assim como Darius também o fez até que Tohrment havia consumido tudo o que podia. E então Darius se levantou.
– Muito bem, poderia pedir-lhe um favor, mordomo Fritzgelder?
– Mas é claro, senhor.
– Poderia fazer a gentileza de guardar a bolsa de meu colega durante a noite? Retornaremos depois que fizermos nossa inspeção.
– Oh, sim, senhores. – Fritzgelder curvou-se. – Tomarei o maior dos cuidados com suas coisas.
– Obrigado. Venha, Tohrment, vamos sair.
Enquanto saíam, podia sentir a ira do garoto e não ficou nada surpreso quando seu braço foi capturado.
– Posso cuidar de mim mesmo.
Darius olhou sobre o ombro.
– Não há dúvidas quanto a isso. No entanto, não preciso de um companheiro debilitado por estar de barriga vazia e...
– Mas...
– ... se acha que esta família de tantos recursos ofereceria com má vontade uma mera refeição para ajudar na busca de sua filha, está redondamente enganado.
Tohrment soltou a mão.
– Devo encontrar alojamento. Comida.
– Sim, você vai. – Darius indicou com a cabeça para o círculo de árvores ao redor da propriedade vizinha. – Agora, podemos continuar?
Quando Tohrment assentiu, os dois se desmaterializaram na floresta e depois abriram caminho, avançando pela propriedade da outra mansão.
A cada passo que avançavam em direção ao seu destino, Darius sentia uma sensação de medo esmagadora, que aumentava ao ponto de sentir dificuldade em respirar: o tempo estava trabalhando contra eles.
Cada noite que se passava e eles não a encontravam, era outro passo mais perto de sua morte.
E tinham tão pouco para continuar.
CAPÍTULO 36
O terminal de ônibus de Caldwell ficava do outro lado da cidade, no limite do parque industrial que se estendia até o sul. A antiga construção de telhado plano estava envolta por uma cerca de alambrado e sua galeria de entrada parecia estar cedendo por causa da idade.
Quando John se materializou ao lado de um ônibus estacionado, esperou por Xhex e Qhuinn. Xhex foi a primeira a chegar e, cara, estava com um aspecto muito melhor; os alimentos haviam se acomodado bem na segunda tentativa e a cor de sua pele estava muito boa. Ainda estava vestida com as roupas de médico que a doutora Jane tinha dado a ela, mas por cima usava uma das blusas com capuz preto de John e um de seus casacos esportivos.
Ele adorou o visual. Adorou que ela estivesse usando suas roupas. Adorou como elas ficaram grandes demais nela.
Adorou que ela parecesse uma garota.
Não que não gostasse das roupas de couro ou das camisetas regata e do estilo “vou esmagar suas bolas se der um passo fora da linha” que costumava seguir. Isso também era muito atraente. Só que... por alguma razão, a maneira como ela parecia agora era mais íntima. Provavelmente porque nunca deixou ser vista assim muitas vezes.
– Por que estamos aqui? – ela perguntou, olhando ao redor. Sua voz não parecia frustrada ou irritada, graças a Deus. Estava apenas curiosa.
Qhuinn tomou forma a uns dez metros de distância e cruzou os braços sobre o peito como se não confiasse em si mesmo para não bater em ninguém. O cara estava com um humor horrível. Absolutamente vil. Não pronunciou sequer duas palavras civilizadas no saguão quando John lhe indicou a ordem dos lugares que iriam, e a causa disso não estava muito clara.
Bem... pelo menos não até Blay passar pelo grupo com um aspecto maravilhoso vestindo um terno de risca de giz cinza. O cara fez uma pausa apenas para dizer tchau a John e Xhex; não lançou sequer um olhar para Qhuinn quando saiu em direção à noite.
Usava uma colônia nova.
Estava claro que iria a um encontro. Mas com quem?
Com um silvo e um rugido, um ônibus saiu da vaga onde estava estacionado, a fumaça do motor a diesel fez o nariz de John ameaçar um espirro.
Vamos, assinalou com a boca para Xhex, mudando sua mochila para o outro ombro e puxando-a para frente.
Os dois caminharam pela calçada úmida em direção à luz fluorescente brilhante do terminal. Mesmo estando muito frio, John manteve sua jaqueta de couro aberta para o caso de precisar pegar suas adagas ou sua arma e Xhex também estava equipada.
Os redutores poderiam estar em qualquer lugar e os humanos poderiam ser muito idiotas.
Segurou a porta aberta para ela e ficou aliviado ao ver que havia apenas um velho dormindo num dos bancos e uma mulher com uma maleta, além do bilheteiro que ficava atrás de um vidro plexiglas.
A voz de Xhex soou baixa.
– Este lugar... deixa você triste.
Droga, era verdade. Mas não por causa do que havia vivenciado ali... mas sim pelo que sua mãe deve ter sentido sozinha ao sofrer as dores do parto.
Assoviando com força, ergueu a mão quando os três humanos levantaram o olhar. Reduzindo o nível de suas consciências, deixou cada um deles em meio a um ligeiro transe e caminhou até a porta de metal em que tinha uma placa parafusada onde se lia MULHERES.
Colocando sua mão no painel frio, abriu um pouco e escutou. Não se ouvia nada.
O lugar estava vazio.
Xhex passou por ele, seus olhos percorreram as paredes de alvenaria, as pias de aço inoxidável e os três cubículos. O lugar cheirava à cândida e à umidade, o balcão molhado e os espelhos não eram feitos de vidro, mas de chapas polidas de metal. Tudo estava fixado com parafusos, desde a saboneteira, passando pela placa de Não fume até a lata de lixo.
Xhex parou em frente ao banheiro reservado para deficientes, com olhar penetrante. Ao empurrar um pouco a porta para abrir, recuou e pareceu confusa.
– Aqui... – apontou para baixo, no canto. – Aqui foi onde você estava... onde aterrissou.
Quando voltou a olhá-lo, ele encolheu os ombros. Não sabia o lugar com precisão, porém fazia sentido imaginar que se estivesse tendo um bebê, gostaria que fosse onde tivesse mais espaço.
Xhex lhe encarou como se estivesse vendo através dele e se virou rapidamente para ver se havia chegado alguém. Não. Somente ela e ele, juntos no banheiro feminino.
O quê foi?, gesticulou ao deixar que a porta se fechasse.
– Quem encontrou você? – Quando ele fingiu estar limpando o piso, ela murmurou: – Um zelador.
Quando assentiu com a cabeça, sentiu vergonha do lugar, de sua história.
– Não sinta. – Ela se aproximou dele. – Acredite, não sou ninguém para julgá-lo. Minhas circunstâncias não foram melhores que essas. Caramba, foram indiscutivelmente piores.
Sendo uma mestiça sympatho, John poderia apenas imaginar. Afinal, na maioria das vezes, as duas raças não se misturavam de bom grado.
– Para onde você foi depois daqui?
Ele a guiou para fora do banheiro e olhou ao redor. Qhuinn estava no outro canto, olhando para as portas do terminal como se esperasse que algo cheirando a talco de bebê entrasse. Quando o cara olhou em sua direção, John balançou a cabeça; em seguida, finalizou com o transe, liberando as mentes dos humanos e os três se desmaterializaram.
Quando tomaram forma novamente, estavam no quintal do orfanato Nossa Senhora, perto do escorregador e da caixa de areia. Um vento cortante de março soprava sobre os jardins do santuário da igreja dos indesejados, os balanços rangiam e os ramos desnudos das árvores não ofereciam qualquer proteção. À frente, as linhas de quatro janelas envidraçadas que marcavam os dormitórios estavam às escuras... assim como as do refeitório e da capela.
– Humanos? – Xhex respirou fundo enquanto Qhuinn vagava pelo local e acabou sentando-se em um dos balanços. – Foi criado por seres humanos? Deus... que porcaria!
John caminhou em direção ao prédio, pensando que talvez aquilo não tivesse sido uma boa ideia. Ela parecia horrorizada...
– Você e eu temos mais em comum do que eu pensava.
Ele se deteve e ela deve ter lido sua expressão... ou suas emoções.
– Também fui criada com pessoas que não eram como eu. Contudo, considerando o que a minha outra metade é, isso pode ter sido uma benção.
Caminhando ao lado dele, olhou para seu rosto.
– Você foi mais corajoso do que pensa. – Inclinou a cabeça para o orfanato. – Quando estava aí dentro, você foi mais corajoso do que pode imaginar.
Não concordava, mas não estava disposto a discutir a fé que tinha nele. Depois de um momento, estendeu a mão, e quando ela segurou, caminharam juntos até a entrada dos fundos. Um rápido desaparecimento e estavam no interior.
Oh, droga, ainda usavam o mesmo produto para limpar o chão. Limão ácido.
E a aparência do lugar também não havia mudado. O que significava que o escritório do diretor ainda estava no corredor, na frente do edifício.
Liderando o caminho, foi até a velha porta de madeira, tirou a mochila e a pendurou na maçaneta de bronze.
– O que tem aí, afinal?
Ele ergueu a mão e esfregou os dedos contra o polegar.
– Dinheiro. Da invasão na...
Ele assentiu.
– Bom lugar para deixá-lo.
John se virou e olhou para o corredor onde se localizava o dormitório. Enquanto as recordações borbulhavam, seus pés andavam naquela direção antes de ter consciência que estava indo ao lugar onde, uma vez, havia descansado sua cabeça. Era tão estranho estar ali outra vez, lembrando-se da solidão, do medo e da persistente sensação de ser totalmente diferente, especialmente quando estava com os outros garotos da mesma idade.
Isso sempre piorou as coisas. Estar rodeado daquilo com que deveria ser igual foi o que o deixou mais alienado.
Xhex seguiu John ao longo do corredor, permanecendo um pouco atrás.
Ele caminhava silenciosamente, apoiando a partir do calcanhar até a ponta de suas botas de combate e ela seguiu seu exemplo, de forma que não eram mais do que fantasmas no silencioso corredor. Enquanto seguiam, notou que, embora a estrutura física do edifício fosse velha, tudo estava impecável, desde o linóleo muito bem encerado, passando pelas paredes bem pintadas de bege, até as janelas com telas metálicas embutidas nos vidros. Não havia poeira, nem teias de aranha, nem lascas ou rachaduras no gesso.
Isso deu uma esperança a ela de que as freiras e os administradores cuidassem das crianças com a mesma atenção que davam aos detalhes.
Quando ela e John se aproximaram de um par de portas, pôde sentir os sonhos dos garotos do outro lado, os pequenos redemoinhos de emoção borbulhavam através do sono profundo fazendo cócegas em seus receptores sympatho.
John colocou a cabeça lá dentro, e enquanto encarava os que estavam onde ele tinha estado, ela se viu franzindo a testa outra vez.
A grade emocional dele tinha... uma sombra. Uma construção paralela, mas separada da que havia captado antes, mas agora estava extremamente óbvia.
Nunca havia sentido algo assim em nenhuma outra pessoa e não conseguia explicar... nem acreditava que John tivesse consciência do que estava fazendo. Contudo, por alguma razão, aquela viagem ao seu passado havia exposto uma falha na linha da sua psique.
Assim como outras coisas. John era muito parecido com ela própria, perdido e distante, criado por outras pessoas apenas por obrigação, não por amor.
De alguma maneira, pensou que deveria dizer a ele para parar com aquela coisa toda, porque podia sentir o quanto isso custava a ele... e quanto mais iria custar. Mas estava cativada por aquilo que estava lhe mostrando.
E não só porque, como sympatho, alimentava-se das emoções dos outros.
Não, queria saber mais sobre aquele macho.
Enquanto ele observava os garotos dormindo e permanecia preso em seu passado, ela concentrou sua atenção em seu perfil forte ao ser iluminado pela luz de segurança sobre a porta.
Quando ela levantou a mão e apoiou sobre o seu ombro, John teve um sobressalto.
Queria dizer alguma coisa inteligente e amável, pronunciar alguma combinação de palavras que fossem tão profundas como ele havia feito ao trazê-la até ali. Mas a questão era que havia mais coragem naquelas revelações dele do que em qualquer coisa que Xhex já havia demonstrado a alguém antes, e num mundo cheio de egoísmo e crueldade, ele estava partindo seu maldito coração com aquilo que lhe oferecia.
Esteve tão sozinho ali, e os ecos daquela época difícil ainda o perseguiam. Ainda assim, iria seguir adiante porque havia dito a ela que o faria.
Os belos olhos azuis de John encontraram seu olhar, e quando ele inclinou a cabeça com curiosidade, ela se deu conta de que palavras eram uma bobagem em momentos assim.
Aproximando-se de seu corpo firme, ela passou um de seus braços pela sua cintura. Com a mão livre, esticou-se e segurou sua nuca, puxando-o para ela.
John hesitou, mas logo se aproximou de bom grado, envolvendo seus braços ao redor de sua cintura e enterrando o rosto em seu pescoço.
Xhex o abraçou, emprestando sua força, oferecendo um consolo que era mais do que capaz de proporcionar. Enquanto permaneciam um contra o outro, Xhex olhou por cima dos ombros dele, em direção ao quarto e às crianças nos seus travesseiros.
No silêncio, sentiu como se o passado e o presente estivessem movendo-se e se misturando, mas foi uma miragem. Não havia maneira de consolar o garoto perdido que tinha sido naquela época.
Mas ela tinha o macho adulto.
Ela o tinha em seus braços, e durante um breve momento de fantasia, imaginou que nunca, nunca o deixaria partir.
CAPÍTULO 37
Quando sentou em seu quarto na mansão Rathboone, Gregg Winn deveria se sentir melhor. Graças a algumas imagens evocativas da comovente pintura na sala, juntamente com algumas fotos da área tiradas no crepúsculo, a bronzeada Los Angeles ficou emocionada com as prévias e combinou de começarem a produzi-lo. O mordomo também se mostrou amável, assinando os documentos legais que lhe davam permissão a todos os tipos de acesso.
Stan, o cinegrafista, poderia realizar um exame proctológico na maldita casa, em todos os lugares onde conseguisse enfiar a lente.
Mas Gregg não sentia o sabor da vitória em sua boca. Não, tinha uma sensação que dizia “isso não está certo” percorrendo suas entranhas e uma dor de cabeça causada pela tensão, que percorria desde a base do crânio e todo o caminho até seu lóbulo frontal.
O problema era a câmera escondida que colocaram no corredor na noite anterior.
Não havia explicação racional para o que havia capturado.
Irônico que um “caça-fantasmas”, quando confrontado com uma figura que desaparecia no ar, precisasse de analgésicos e antiácidos. Qualquer um pensaria que ele estaria muito feliz já que, pela primeira vez, não teve que pedir para o cara da câmera falsificar as filmagens.
Quanto ao Stan? Ele apenas deu de ombros. Ah, pensou que era um fantasma, com certeza... mas isso não o perturbou nem um pouco.
Por outro lado, poderia ter sido amarrado a um conjunto de trilhos ou alguma coisa do gênero que pensaria apenas que era hora de um cochilo rápido, antes de ficar completamente chapado.
Havia vantagens em ser um maconheiro.
Quando o relógio marcou dez horas, Gregg levantou-se da frente do laptop e foi até a janela. Cara, ele se sentiria muito melhor sobre essa coisa toda se não tivesse visto aquela figura de cabelos longos perambulando pela área externa na noite anterior.
Para o inferno: melhor isso do que ver o filho da mãe no corredor fazendo um truque de alucinação do tipo “agora você vê, agora você não vê”.
Atrás dele, na cama, Holly disse:
– Está esperando para ver o coelhinho da Páscoa lá fora?
Olhou para ela e pensou que parecia ótima encostada nos travesseiros, com o nariz metido em um livro. Quando ela pegou a coisa, ficou surpreso ao ver que era um livro de Doris Kearns Goodwin sobre os Fitzgeralds e os Kennedys. Imaginou que era mais o tipo de garota que curtisse algo como a biografia de uma atriz de novela.
– Sim, principalmente o rabo de algodão – murmurou. – E eu acho que vou descer e ver se consigo achar a cesta.
– Não traga nenhum daqueles bichinhos de marshmallow. Ovos coloridos, coelhos de chocolate... tudo bem. Menos aqueles bichinhos.
– Vou fazer com que Stan venha e fique com você, ok?
Holly ergueu os olhos.
– Não preciso de babá. Especialmente se for alguém que está sujeito a acender um baseado no banheiro.
– Não quero deixá-la sozinha.
– Não estou sozinha. – Ela acenou para a câmera no canto da sala. – Apenas ligue aquilo.
Gregg se encostou no batente da janela. A forma como o cabelo dela captava a luz era muito bonita. É claro, a cor era, sem dúvida, um trabalho de um especialista em tintura... mas era o tom perfeito de louro contra sua pele.
– Você não está com medo? – disse ele, querendo saber exatamente quando foi mesmo que trocaram os papéis quanto a esse assunto.
– Com relação à noite passada? – Ela sorriu. – Não. Eu acho que aquela “sombra” é Stan pregando uma peça em nós como vingança por fazê-lo trocar de quarto. Você sabe como ele detesta deslocar bagagem. Além disso, acabei voltando para sua cama, não foi? Não que você tenha feito muita coisa com isso.
Agarrou seu blusão e aproximou-se dela. Tomando-lhe o queixo na mão, olhou em seus olhos.
– Você ainda me quer assim?
– Sempre. – A voz de Holly ficou mais baixa. – Estou amaldiçoada.
– Amaldiçoada?
– Para com isso, Gregg. – Quando ele apenas a olhou, ela jogou as mãos para o alto. – Você é uma má aposta. Está casado com seu trabalho e venderia sua alma para subir na vida. Reduz tudo e todos à sua volta a um mínimo denominador e isso lhe permite usá-los. E quando não são úteis? Você nem lembra seus nomes.
Jesus... ela era mais esperta do que pensava.
– Então por que ainda quer ter algo comigo?
– Às vezes... eu realmente não sei. – Seus olhos se voltaram para o livro, mas não iam e voltavam sobre as linhas. Eles apenas se fixaram sobre a página. – Acho que é porque eu era realmente ingênua quando te conheci, e você me deu uma chance quando mais ninguém deu e você me ensinou muitas coisas. E essa paixão inicial está durando.
– Faz soar como se fosse algo ruim.
– Pode ser. Esperava me desvencilhar disso... e depois fazer coisas como cuidar de mim e começar tudo de novo.
Ele olhou para ela, medindo seus traços perfeitos, sua pele lisa e seu corpo incrível.
Sentindo-se confuso e estranho, como se lhe devesse um pedido de desculpas, foi até a câmera no tripé e ativou-a para gravar.
– Está com seu celular aí?
Ela alcançou o bolso do roupão e tirou um BlackBerry.
– Bem aqui.
– Ligue-me se acontecer alguma coisa estranha, certo?
Holly franziu a testa.
– Você está bem?
– Por que pergunta?
Ela deu de ombros.
– É que nunca o vi tão...
– Ansioso? Sim, acho que existe alguma coisa nessa casa.
– Eu ia dizer... conectado, na verdade. É como se estivesse mesmo olhando para mim pela primeira vez.
– Eu sempre olhei para você.
– Não assim.
Gregg foi até a porta e parou.
– Posso perguntar uma coisa estranha? Você... pinta o seu cabelo?
Holly ergueu a mão até suas ondas loiras.
– Não. Eu nunca pintei.
– É realmente loiro assim?
– Você deveria saber.
Quando ela ergueu a sobrancelha, ele corou.
– Bem, as mulheres podem fazer tintura lá embaixo... você sabe.
– Bem, eu não faço.
Gregg franziu a testa e se perguntou quem diabos estava comandando seu cérebro: parecia que todos aqueles pensamentos estranhos estavam brincando em suas ondas mentais, como se talvez sua estação tivesse sido pirateada. Dando-lhe um pequeno aceno, desapareceu em direção ao corredor e olhou à esquerda e à direita, enquanto escutava com atenção. Nenhuma pegada. Nenhum rangido. Ninguém com um lençol sobre a cabeça dando uma de Gasparzinho.
Arrancando seu casaco, seguiu em direção às escadas odiando o eco de seus próprios passos. O som fazia com que se sentisse perseguido.
Olhou atrás de si. Nada além do corredor vazio.
Embaixo, no primeiro andar, olhou para as luzes que haviam sido deixadas acesas. Uma na biblioteca. Uma na entrada da frente. Uma na sala.
Esquivando-se ao virar em uma extremidade da casa, parou para observar o retrato de Rathboone. Por alguma razão, não achava mais que a pintura fosse tão romântica e comercializável.
Por alguma razão, coisa nenhuma. Desejava nunca ter chamado Holly para ver a coisa. Talvez não tivesse ficado tão marcado no subconsciente dela, de tal forma que acabou fantasiando sobre o cara ter se aproximado e tido relações sexuais com ela. Cara... a expressão no rosto dela quando estava falando de seu sonho. Não a parte do medo, mas do sexo, o sexo ressonante. Será que ela ficava assim depois de estar com ele?
Será que alguma vez parou para ver se ele a satisfez daquela maneira?
De qualquer maneira?
Abrindo a porta da frente, saiu como se estivesse em uma missão, quando, na realidade, não tinha aonde ir. Bem, a não ser para longe do computador e das imagens... e daquele cômodo silencioso com uma mulher que poderia ter mais substância do que ele imaginava.
Seria como descobrir que fantasmas existem.
Deus... o ar era limpo ali fora.
Andou para longe da casa, e quando estava a uns cem metros de distância, sobre o gramado ondulado, parou e olhou para trás. No segundo andar, viu a luz acesa em seu quarto e imaginou Holly aninhada contra os travesseiros, o livro em suas mãos longas e finas.
Continuou, indo em direção às árvores e ao riacho.
Será que os fantasmas têm alma? Ou será que eram almas em si?
Será que os executivos de televisão têm alma?
Aquilo sim era uma boa questão existencial.
Deu uma olhada devagar ao redor da propriedade, parando para dar um puxão em um musgo espanhol, sentir a casca dos carvalhos e o cheiro da terra e da neblina...
Estava voltando a casa quando a luz do terceiro andar acendeu... e uma sombra, alta e escura, passou por uma das janelas.
Gregg começou a andar rápido. Em seguida, começou a correr.
Estava voando quando saltou na varanda e atingiu a porta, abrindo-a com força, e começou a pisar firme escada acima. Não deu a mínima àquela história toda de “não vá ao terceiro andar”. E se acordasse as pessoas, tudo bem.
Quando chegou ao segundo andar, deu-se conta de que não fazia a menor ideia de que porta o levaria ao sótão. Andando rápido no corredor, concluiu que os números sobre os batentes indicavam que estava passando pelos quartos dos hóspedes.
Então, passou por uma porta onde se lia: Almoxarifado. Outra: Limpeza.
Obrigado, Jesus: SAÍDA.
Atravessou, chegou à escada dos fundos e subiu os degraus de dois em dois. Quando chegou ao topo, encontrou uma porta trancada com uma luz brilhando por baixo.
Bateu ruidosamente. E conseguiu um monte de nada.
– Quem está aí? – gritou, puxando a maçaneta. – Olá?
– Senhor! O que está fazendo?
Gregg se virou e olhou para baixo em direção ao mordomo... que ainda estava, apesar de já ter terminado o expediente, vestido com seu smoking.
Talvez não dormisse em uma cama, talvez se pendurasse num armário para que não se amassasse durante a noite.
– Quem está lá dentro? – Gregg perguntou, indicando com o dedo por cima do ombro.
– Sinto muito, senhor, mas o terceiro andar é particular.
– Por quê?
– Isso não é de seu interesse. Agora, se não se importa, vou pedir-lhe que retorne ao seu quarto.
Gregg abriu a boca para continuar a discussão, mas em seguida a fechou. Havia uma maneira melhor de lidar com isso.
– Sim. Certo. Tudo bem.
Fez um espetáculo ao pisar forte pelas escadas e passou roçando no mordomo.
Então, foi para seu quarto, como um simples hóspede de nada e entrou.
– Como foi sua caminhada? – Holly perguntou, bocejando.
– Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora? – Como, oh, digamos, um cara morto veio aqui transar com você?
– Não. Bem, a não ser alguém correndo pelo corredor. Quem era?
– Não faço ideia – Gregg resmungou, avançando pelo quarto e desligando a câmera. – Não faço a mínima ideia...
CAPÍTULO 38
John tomou forma próximo a um poste de luz. A iluminação que emanava por baixo de seu pescoço de girafa banhava a frente de um prédio que teria um visual muito melhor se estivesse na total escuridão: os tijolos de argamassa não eram vermelhos e brancos, eram marrom e marrom, e as rachaduras em várias janelas foram tampadas com fita adesiva em ziguezague e com coberturas baratas. Mesmo os degraus baixos que davam no saguão pareciam uma bagunça esburacada, como se tivessem sido atingidos por uma britadeira.
O lugar estava exatamente o mesmo desde quando ele passou a última noite lá, a não ser por um detalhe: o aviso amarelo onde se lia “Condenado” que tinha sido pregado na porta da frente.
Claro que o aviso era lido por alguns como “Bom para invadir”.
Quando Xhex saiu das sombras e se juntou a ele, fez o possível para demonstrar uma aparência calma... e sabia que estava falhando. Aquele tour pela lixolândia de sua vida pregressa era mais difícil de atravessar do que tinha imaginado, mas era como um parque de diversões. Uma vez que você entra num brinquedo e ele começa a funcionar, não tem como parar.
Quem diria que sua existência deveria ter um aviso de cuidado direcionado a mulheres grávidas e pessoas epiléticas.
Sim, não havia como parar isso; ela ficaria decepcionada com ele se terminasse antes da hora. Xhex parecia saber tudo que estava sentindo... e isso incluía uma sensação de fracasso que o rasgaria se ele desistisse ali.
– Você veio parar aqui depois do orfanato? – ela sussurrou.
Assentindo com a cabeça, levou-a a passar em frente do edifício e virar a esquina em direção ao beco. Quando chegou à saída de emergência, imaginou se a trava estaria quebrada...
A fechadura quebrou apenas com um pouco de força e entraram.
O tapete no corredor era parecido com um chão de terra batida em algum tipo de cabana, com manchas acumuladas e grudadas que entraram nas fibras e secaram. Havia garrafas vazias, embalagens amassadas e pontas de cigarros espalhados pelo corredor, e o ar cheirava a axilas de um mendigo.
Cara... mesmo um tanque cheio de aromatizador não ajudaria naquele pesadelo mal cheiroso.
Assim que Qhuinn entrou pela saída de emergência, John virou à esquerda na escada e começou a empreender a subida que o fazia querer gritar. Enquanto subiam, os ratos guinchavam e corriam para fora do caminho, e o odor do cortiço ficava mais espesso e pungente, como se fosse fermentando conforme a altitude aumentava.
Quando chegaram ao segundo andar, abriu caminho pelo corredor e parou em frente a uma grande mancha espalhada na parede. Jesus Cristo... aquela mancha de vinho ainda estava lá... Porém, porque ele estava surpreso? Como se alguma companhia de limpeza fosse até lá para limpá-la.
Passando por mais uma porta, empurrou a que fechava aquilo que tinha sido seu apartamento e... entrou...
Deus, tudo estava exatamente como tinha deixado.
Ninguém tinha morado ali desde que tinha ido embora, algo que supostamente fazia sentido. Gradualmente, as pessoas tinham deixado o local quando ele ainda era um inquilino... bem, aqueles que podiam pagar por um lugar melhor. Os que ficaram eram drogados. E os que tinham ocupado as vagas eram sem-tetos que se infiltraram rapidamente como as baratas que atravessam as janelas e portas quebradas no térreo. O ponto culminante da migração foi o aviso de evacuação: o edifício tinha sido condenado, o câncer da decadência tinha se espalhado por todo o lugar.
Quando olhou a revista de musculação que havia deixado sobre a cama de solteiro perto da janela, a realidade se contorceu sobre ele, arrastando-o para trás, em direção ao passado, mesmo com suas botas de combate firmemente plantadas no aqui e no agora.
Claro, quando esticou o braço e abriu a geladeira desativada... havia latas de proteína.
Sim, pois mesmo com fome, os desabrigados não tomariam aquela porcaria.
Xhex andou por ali e então parou na janela pela qual ele ficou olhando tantas noites.
– Queria ser diferente do que era.
Ele assentiu.
– Quantos anos você tinha quando foi encontrado? – Quando ele mostrou dois dedos duas vezes, os olhos dela se arregalaram. – Vinte e dois? E não fazia nem ideia de que era um...
John negou com a cabeça e avançou para pegar a revista. Folheou as páginas. Percebeu que havia se tornado aquilo que sempre desejou: um filho da mãe enorme e durão. Quem diria? Tinha sido um verdadeiro magricela, à mercê de tantas...
Jogando a revista sobre a cama outra vez, interrompeu aquela linha de pensamento com força e rapidez. Estava disposto a mostrar quase tudo. Mas não aquilo. Aquela parte... nunca.
Não iriam passar no primeiro edifício onde morou sozinho e ela não descobriria o porquê de ter se mudado para aquele lugar.
– Quem o trouxe para o nosso mundo?
Tohrment, expressou com os lábios.
– Quantos anos tinha quando deixou o orfanato? – Ele sinalizou o número um e depois um seis. – Dezesseis? E veio para cá? Direto do Nossa Senhora?
John assentiu e foi em direção a um armário em cima da pia. Abrindo-o, viu a única coisa que esperava encontrar. Seu nome. E a data.
Afastou-se para que Xhex pudesse ver o que tinha escrito. Lembrava-se de quando fez aquilo, tão rápido, com tanta pressa. Tohr estava esperando na calçada e ele correu para pegar sua bicicleta. Rabiscou aquelas marcas como uma prova... não sabia do quê.
– Não tinha ninguém – ela murmurou, olhando para o interior do armário. – Eu era assim. Minha mãe morreu no parto e fui criada por uma família até que legal... pessoas com quem eu sabia que não tinha nada em comum. Deixei-os logo e nunca voltei, pois eu não pertencia àquele lugar... e alguma coisa estava gritando dentro de mim, dizendo que era melhor que eu partisse. Não fazia a mínima ideia que era a parte sympatho e não havia nada no mundo para mim... mas eu tinha que partir. Felizmente, encontrei Rehvenge e ele me mostrou o que eu era. – Ela olhou por cima do ombro. – Pequenos acasos da vida... cara, eles são mortais, não são? Se Tohr não tivesse encontrado você...
Ele teria passado por sua transição e morrido no meio do processo, pois não tinha o sangue necessário para sobreviver.
Por alguma razão, não queria pensar nisso. Ou no fato de que ele e Xhex tinham um trecho na vida em comum, em que estiveram perdidos.
Vamos, assinalou com a boca. Vamos para a próxima parada.
Por entre o milharal, Lash dirigiu ao longo da trilha de terra em direção à fazenda. Providenciou uma proteção psíquica no local para que o Ômega e seu novo brinquedinho não conseguissem rastreá-lo. Também estava usando um boné de beisebol, uma capa com a gola levantada e um par de luvas.
Sentia-se como o Homem Invisível.
Droga, desejava ser invisível. Odiava olhar para si, e depois de algumas horas esperando para ver o que mais cairia em sua descida ao mundo dos mortos-vivos, não tinha certeza se estava aliviado da mudança parecer ter se estabilizado.
Tinha apenas metade do corpo derretido naquele ponto: os músculos ainda estavam pendurados em seus ossos.
A menos de um quilômetro de distância de seu destino, estacionou o Mercedes próximo a um conjunto de pinheiros e saiu. Como todos os seus poderes foram usados para manter-se disfarçado, não havia mais energia alguma dentro dele para se desmaterializar.
Então, foi uma caminhada bem longa até aquele maldito lugar e ficou ressentido de ter de se esforçar daquela maneira apenas para mover seu corpo.
Mas quando chegou até a casa de madeira, foi atingido por uma onda de energia. Havia três carros ridículos no estacionamento – todos os quais ele reconheceu. Os carros eram de propriedade da Sociedade Redutora.
E, veja só, o lugar estava bombando. Havia uns vinte caras dentro e uma grande festa acontecendo: era possível ver barris e garrafas de bebidas através das janelas, e ao redor do lugar havia filhos da mãe acendendo cachimbos e cheirando só Deus sabe o quê.
Onde estava o bastardo?
Ah... que noção de tempo perfeita. Um quarto carro chegou e não era como os outros três. A pintura chamativa do maldito carro esportivo era provavelmente tão cara quanto o trabalho de turbiná-lo, e as rodas tinham um brilho néon que fazia parecer que a coisa estava aterrissando. O garoto saiu de trás do volante e, veja só, estava todo descolado também: usava uma calça jeans nova, uma jaqueta de couro de grife e tinha acendido seu cigarro com alguma coisa de ouro.
Bem, aquilo seria o teste.
Se o garoto entrasse e apenas curtisse a festa, Lash estaria errado quanto à inteligência do filho da mãe... e o Ômega teria conseguido para si nada além de um pouco de diversão. Mas se Lash estivesse certo e o desgraçado fizesse mais do que isso, a festa se tornaria bem interessante.
Lash puxou a gola para mais perto da carne viva que era seu pescoço e tentou ignorar o quão ciumento estava. Já tinha estado na doce situação daquele garoto. Aproveitando o momento “eu sou tão especial” e achando que aquele brilho duraria para sempre. Mas tanto faz. Se o Ômega estava disposto a descartar alguém de sua própria carne e sangue, aquele lixo ex-humano não duraria muito.
Quando um dos bêbados lá dentro olhou na direção de Lash, pensou que poderia estar se arriscando, mas não se importava. Não tinha nada a perder e não estava muito ansioso para passar o resto de sua vida como um bife de carne seca animado.
Feio, fraco e vazando não era nada sexy.
Quando o vento frio fez seus dentes tremerem, pensou em Xhex e se aqueceu com as memórias. De alguma maneira, não conseguia acreditar que o tempo passado com ela tinha sido há poucos dias. Parecia ter se passado anos desde a última vez que a teve sob seu corpo. Pelo amor de Deus, encontrar aquela primeira lesão em seu pulso tinha sido o começo do fim... e ele simplesmente não sabia disso na época.
Apenas um arranhão.
Sim, certo.
Erguendo a mão para empurrar seu cabelo, bateu na aba do boné de beisebol e lembrou-se que não tinha mais nada ali com que se preocupar. Tudo se resumia a uma cúpula de osso.
Se tivesse mais energia, teria começado um discurso mental sobre a injustiça e a crueldade de seu destino decadente. A vida não deveria ter sido assim. Não deveria ter sido excluído. Sempre foi o foco das atenções, o líder, o especial.
Por algum motivo estúpido, pensou em John Matthew. Quando o filho da mãe ingressou no programa de formação de soldados, era apenas um cara ainda na fase de pré-transição, particularmente franzino, com nada além de um nome na Irmandade e uma cicatriz de estrela em seu peito. Era o alvo perfeito para se hostilizar e Lash tinha pegado pesado com o garoto.
Cara, naquela época não fazia a menor ideia de como era ser o estranho que ficava de fora. Como isso fazia com que se sentisse um lixo inútil. Como era olhar para as outras pessoas que faziam isso com você e estar disposto a dar qualquer coisa para estar com elas.
Ainda bem que não tinha a menor ideia de como era. Ou teria pensado duas vezes antes de desprezar o filho da mãe.
E agora, encostado na casca fria e desgrenhada de um carvalho, ao assistir através das janelas da fazenda como outro garoto de ouro vivia a sua vida, sentiu que seus planos mudavam.
Iria acabar com aquele idiota, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Era ainda mais importante que Xhex.
Sua motivação não era apenas o fato de que aquele cara o marcou para morrer. Acontece que queria mandar uma mensagem para seu pai. Afinal, ele era uma maçã podre que não caiu muito longe da árvore – e teria sua vingança custe o que custasse.
CAPÍTULO 39
– Aquela é a antiga casa de Bella – Xhex disse quando tomou forma num campo ao lado de John Matthew.
Quando ele assentiu, ela olhou ao redor, observando o campo. A casa branca de Bella com cercas em volta e uma chaminé vermelha produzia uma pintura perfeita à luz do luar e parecia uma pena que o lugar tivesse sido deixado com nada além das luzes de segurança externas ativadas.
O fato de que na garagem anexa havia um Ford F-150 estacionado e as janelas estarem brilhando fazia com que a sensação de abandono fosse ainda mais real.
– Bella foi a primeira que o encontrou?
John fez um movimento ambíguo com a mão e apontou para outra casinha na pista. Quando começou a gesticular e se deteve em seguida, sua frustração com a barreira de comunicação era óbvia.
– Alguém naquela casa... você os conhecia e eles o colocaram em contato com Bella?
Ele assentiu, enfiou a mão no casaco e tirou o que parecia ser uma pulseira artesanal. Pegando a coisa da mão dele, viu que alguns símbolos no Antigo Idioma haviam sido gravados do lado de dentro.
– Tehrror. – Quando ele tocou o peito, ela disse: – Seu nome? Mas como você sabia? – Ele tocou a cabeça e deu de ombros.
– Simplesmente se lembrou. – Ela se concentrou na casa menor. Havia uma piscina nos fundos e sentiu que suas memórias daquele local eram nítidas, pois cada vez que John passava os olhos sobre o terreno, sua grade emocional acendia como um circuito recebendo eletricidade.
Esteve ali pela primeira vez para proteger alguém. Bella não foi o motivo.
Mary, ela pensou. Mary, a shellan de Rhage. Mas como eles se encontraram?
Estranho... aquilo era uma parede em branco. John estava excluindo Xhex daquela parte.
– Bella entrou em contato com a Irmandade e Tohrment veio até você.
Quando assentiu outra vez, ela devolveu o bracelete, e enquanto passava os dedos pelos símbolos, Xhex ficou maravilhada com a relatividade do tempo. Desde que haviam deixado a mansão, havia passado apenas uma hora, mas sentiu como se tivessem passado um ano juntos.
Deus, ele deu mais do que esperava... e agora ela sabia exatamente porque tinha sido tão prestativo quando ela ficou fora de si na sala de cirurgia.
Ele suportou um verdadeiro inferno. Não viveu sua infância, foi arrastado por ela.
A questão era: em primeiro lugar, como ele foi parar no mundo humano? Onde estavam seus pais? O rei tinha sido seu ghia no período pré-transição... isso era o que seus documentos diziam quando foi pela primeira vez ao ZeroSum. Concluiu que sua mãe tinha morrido e a visita ao terminal rodoviário não desmentiu isso... mas havia buracos nessa história. Alguns dos quais ela tinha a impressão de serem intencionais, outros que ele não tinha sido capaz de preencher.
Franzindo a testa, sentiu que seu pai ainda estava muito presente com ele e, ainda assim, parecia que não tinha sequer conhecido o cara.
– Vai me levar a um último lugar? – ela murmurou.
John pareceu dar uma última olhada no local e então desapareceu, e ela o seguiu, graças a todo o sangue dele que havia em seu corpo.
Quando tomou forma outra vez diante de uma casa muito moderna, a tristeza dele o dominou de tal maneira que sua superestrutura emocional começou a desabar. Contudo, com muita força de vontade, conseguiu deter a desintegração a tempo, antes que não pudesse ser corrigida.
Quando a grade emocional desmorona, você está ferrado. Perdido em meio aos seus demônios internos.
O que a fez pensar em Murhder. No dia em que ele descobriu a verdade sobre ela. Podia lembrar-se exatamente de como sua estrutura emocional apareceu diante dela: as vigas de aço que eram a base da saúde mental foram reduzidas a nada além de uma confusão de destroços.
Xhex foi a única que não ficou surpresa quando ele enlouqueceu e desapareceu.
Assentindo para ela, John andou em direção à porta principal da frente, colocou uma chave e abriu. Quando uma corrente de ar veio de encontro a eles, ela pôde sentir o cheiro da poeira e da umidade, indicando que aquela era outra construção vazia. Mas não havia nada de podre dentro, ao contrário do antigo edifício onde John morava.
Quando ele acendeu a luz do hall de entrada, ela quase engasgou. Na parede, à esquerda da porta, havia um arabesco no Antigo Idioma que proclamava que aquela era a casa do Irmão Tohrment e de sua shellan, Wellesandra.
O que explicava porque doía tanto em John estar ali. O hellren de Wellesandra não havia sido o único a salvar o garoto na pré-transição.
A fêmea tinha sido importante para John. E muito.
John seguiu pelo corredor e acendeu mais luzes enquanto entravam, suas emoções eram uma combinação de afeto e uma forte dor. Quando foram para uma cozinha espetacular, Xhex se dirigiu à mesa do local.
Ele tinha sentado ali, pensou, colocando as mãos no encosto de uma das cadeiras... em sua primeira noite na casa, tinha sentado ali.
– Comida mexicana – ela murmurou. – Estava com tanto medo de ofendê-los. Mas, então... Wellesandra...
Como um cão de caça seguindo as pistas no caminho, Xhex rastreou o que sentia de suas memórias.
– Wellesandra serviu-lhe arroz com gengibre. E... pudim. Sentiu-se satisfeito pela primeira vez e seu estômago não doía e estava... estava tão grato que não sabia como lidar com isso.
Quando olhou para John, seu rosto estava pálido e os olhos brilhavam e ela soube que estava de volta ao seu pequeno corpo, sentado à mesa, todo encolhido... oprimido pelo primeiro ato de bondade que alguém lhe havia feito na vida.
O som de um passo no corredor fez com que ela erguesse a cabeça e percebeu que Qhuinn ainda estava com eles, o cara vagava por ali, seu mau humor era uma sombra tangível ao redor.
Bem, ele não teria que acompanhá-los por muito mais tempo. Aquele era o fim da estrada, o capítulo final da história de John que a deixou a par dos acontecimentos. E, infelizmente, isso significava que tinha que fazer o certo e apropriado e voltar à mansão... onde, sem dúvida, John a faria comer mais, tentando alimentá-la outra vez.
Porém, não queria retornar, ainda não. Em sua mente, tinha decidido tirar uma noite de folga, então aquelas eram as últimas horas antes de iniciar a trilha da vingança... e perder sua doce conexão com John, aquela compreensão que agora tinham um do outro.
Pois ela não iria enganar a si mesma: a triste realidade era que o poderoso laço que os unia era também tão frágil que não tinha dúvida que iria se romper, assim que voltassem a se focar no presente ao invés do passado.
– Qhuinn, pode nos dar licença, por favor?
Os olhos desiguais do cara encararam John e uma série de gestos com as mãos foi trocada entre eles.
– Vá se ferrar – Qhuinn disse antes de virar as costas e marchar em direção à porta da frente.
Após a batida da porta terminar de ecoar pela casa, ela olhou para John.
– Onde você dormia?
Quando indicou um corredor com a mão, ela foi com ele passando por muitos quartos onde havia equipamentos modernos e arte antiga. A combinação fazia o lugar parecer como um museu de arte onde se podia morar e ela o explorou um pouco, colocando a cabeça nas portas abertas das salas e quartos.
Para chegar ao quarto de John precisavam percorrer todo o caminho até o outro lado da casa, e enquanto caminhava até o local, só podia imaginar o choque cultural. Da imundície ao esplendor, vivenciado com uma simples mudança de endereço: ao invés daquela porcaria de apartamento, aquele era um paraíso azul marinho com móveis elegantes, um banheiro de mármore e um maravilhoso tapete.
Além disso, tinha uma porta de vidro corrediça que conduzia a uma varanda particular.
John aproximou-se, abriu o guarda-roupa e ela observou sobre seu forte e pesado braço as pequenas roupas penduradas nos cabides de madeira.
Enquanto ele olhava para as camisetas e calças, os ombros dele estavam tensos e uma de suas mãos estava fechada. Sentia muito sobre algo que havia feito ou pelo jeito que havia agido e isso não tinha nada a ver com ela.
Tohr. Era sobre Tohr.
Lamentava o jeito como as coisas estavam entre eles ultimamente.
– Converse com ele – disse ela baixinho. – Diga o que está acontecendo. Você dois vão se sentir bem melhor.
John concordou e ela pôde sentir nitidamente a determinação dele.
Deus, não tinha certeza sobre como aquilo acontecia – bem, a mecânica era bem simples, mas o que a surpreendia era o fato de que mais uma vez viu-se aproximando-se dele e abraçando-o. Deitou seu rosto entre seus ombros e ficou grata quando sentiu as mãos dele cobrindo as dela.
Ele se comunicava de tantas maneiras diferentes, não é? E, às vezes, um toque é melhor do que palavras para dizer o que se quer.
No silêncio, ela o guiou em direção à cama e os dois sentaram.
Quando ela simplesmente o encarou, ele articulou: O que foi?
– Você tem certeza que me quer indo até lá? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela olhou diretamente em seus olhos. – Sei que deixou algo de fora. Posso sentir. Há um buraco entre o orfanato e o edifício de apartamentos.
Nenhum músculo facial dele se moveu ou sequer se contorceu e também não piscou. Mas a expressão de um macho que era bom em esconder suas emoções era irrelevante. Tinha plena noção do que sabia sobre ele.
– Está tudo bem, não vou perguntar. Não vou pressionar.
O leve rubor no rosto dele era algo que recordaria muito tempo depois de partir... e pensar em deixá-lo foi o que a levou a colocar a ponta de seus dedos nos lábios dele.
Quando recuou surpreso, ela se concentrou em sua boca.
– Quero te dar algo meu – disse com uma voz baixa e profunda. – No entanto, não se trata de ficarmos quites. É apenas porque eu quero.
Afinal, seria ótimo se ela pudesse levá-lo aos lugares importantes de sua vida e guiá-lo através dela, mas saber mais a respeito de seu passado faria sua missão suicida mais difícil para ele: independente do que sentia por John, iria atrás de seu sequestrador e não era tola em se enganar com esperanças de sobreviver a isso.
Lash tinha seus truques.
Truques perversos com os quais fazia coisas ruins.
Lembranças do bastardo voltaram a ela, lembranças horríveis que fizeram suas coxas tremerem, memórias feias que, todavia, serviam para empurrá-la em direção a algo que talvez não estivesse preparada. Mas Xhex não iria para o túmulo tendo Lash como a última pessoa com quem transou.
Não quando ela tinha o único macho que realmente amava na sua frente.
– Quero ficar com você – disse com voz rouca.
Os olhos azuis chocados de John percorreram o rosto dela em busca de sinais de que tinha entendido algo errado. E então uma quente e forte luxúria rompeu todas as suas emoções, sem deixar nada para trás, a não ser um desejo enorme de um macho de sangue puro.
Fez o melhor que pôde para derrotar o instinto e manter alguma aparência de racionalidade, o que aumentou seu crédito. Mas isso significava apenas que seria ela quem terminaria a batalha entre razão e emoção... ao colocar seus lábios contra os dele.
Oh... Deus, os lábios dele eram tão macios.
Apesar do estrondo que sentiu no sangue dele, John se manteve controlado. Mesmo quando ela deslizou sua língua na boca dele. E aquela repressão tornou as coisas mais fáceis para ela, enquanto sua mente ia e vinha entre o que estava fazendo agora...
E o que havia sido feito com ela dias atrás.
Para ajudá-la a se concentrar, Xhex procurou pelo peito dele e correu as mãos pelos músculos sobre o coração. Deitando-o de costas sobre o colchão, sentiu o odor de vinculação que exalava por ela. Tinha um cheiro apimentado único e muito distante de tudo o que se poderia imaginar do cheiro enjoativo de um redutor.
Aquilo a ajudou a separar essa experiência de outras mais recentes que teve.
O beijo começou como uma exploração, mas não continuou assim. John aproximou-se, envolvendo seu corpo forte no dela, sua grande perna circundando-a até que ela estivesse em baixo. Ao mesmo tempo, seus braços a envolveram, trazendo-a com firmeza para junto dele.
John se movia tão devagar quanto ela.
E ela estava bem até que a mão dele escorregou sobre seu peito.
O contato a assustou, tirando-a daquele quarto e daquela cama, levando-a para longe de John e jogando-a de volta no inferno.
Lutando contra a fuga de sua mente, tentou manter-se presa ao presente, a John. Mas quando o polegar dele acariciou seu mamilo, teve que forçar seu corpo a ficar parado. Lash gostava de mantê-la por baixo e de prolongar o inevitável produzindo arranhões e machucados, pois ele adorava as preliminares mais até do que seus próprios orgasmos.
Jogada psicótica inteligente da parte dele. Ela preferia, infinitamente, acabar logo com...
John empurrou sua ereção contra o quadril dela.
Pronto.
Seu autocontrole alcançou o limite e quebrou-se ao meio: com um impulso, o corpo dela fugiu do contato por vontade própria, rompendo a comunhão com o corpo dele, estragando o momento.
Quando saltou da cama, Xhex pôde sentir o horror de John, mas estava muito ocupada cambaleando por causa de seu medo para ser capaz de explicar. Andando, tentando desesperadamente se agarrar à realidade, ela respirou fundo, não de paixão, mas de pânico.
Bem, aquela sensação era mesmo uma porcaria.
Lash desgraçado... iria matá-lo por isso. Não pelo que estava passando, mas pela posição em que ela havia colocado John.
– Sinto muito – ela gemeu. – Não deveria ter começado isso. Sinto muito mesmo.
Ela parou na frente da penteadeira e olhou para o espelho pendurado na parede. John tinha se levantado enquanto ela ia e vinha e parou em frente à porta de correr de vidro, os braços cruzados sobre o peito, a mandíbula apertada enquanto olhava para a noite lá fora.
– John... não é você. Eu juro.
Quando balançou a cabeça, não olhou para ela.
Esfregando o próprio rosto, o silêncio entre eles aumentava a vontade de ela fugir. Simplesmente não conseguia lidar com nada disso, com nada do que estava sentindo e com o que havia feito com John, nem com nada daquela porcaria com Lash.
Seus olhos alcançaram a porta e seus músculos ficaram tensos para sair dali. O que era comum em sua cartilha. Ao longo de toda sua vida, ela sempre confiou em sua capacidade de desaparecer, sem deixar para trás nenhuma explicação, nenhum vestígio, nada além de ar.
Serviu-lhe bem como assassina.
– John...
A cabeça dele se moveu e seu olhar queimava com tristeza quando ela o encontrou no reflexo do vidro.
Enquanto ele esperava que ela dissesse alguma coisa, Xhex pensou em dizer que era melhor que ela fosse embora. Deveria dar outra desculpa idiota e se desmaterializar para fora do quarto... para fora da vida dele.
Mas tudo que conseguiu dizer foi seu nome.
Ele virou o rosto para ela e articulou com a boca: “Sinto muito. Vá. Está tudo bem. Vá.”
No entanto, ela não conseguia se mover. E a boca dela se abriu. Quando percebeu o que estava no fundo de sua garganta, não conseguia acreditar que iria colocar aquilo em palavras. A revelação ia de encontro a tudo que ela sabia sobre si mesma.
Pelo amor de Deus, ela realmente ia fazer isso?
– John... eu... eu fui...
Mudando o foco de seus olhos, ela mediu o próprio reflexo. Sua face de ossos pronunciados e a palidez eram resultado de muito mais do que apenas falta de sono e alimentação.
Com um súbito lampejo de raiva, ela desabafou:
– Lash não era impotente, ok? Ele não era... impotente...
A temperatura no quarto caiu tanto e tão rápido que sua respiração começou a produzir nuvens.
E o que ela viu no espelho a fez cambalear e dar um passo para trás, afastando-se de John: os olhos azuis dele brilharam com uma luz profana e seu lábio superior estava contraído mostrando as presas tão nítidas que pareciam punhais.
Todos os objetos no quarto começaram a vibrar: os abajures nas mesas de cabeceira, as roupas nos cabides, o espelho na parede. O ruído coletivo cresceu até se tornar um rugido e aquilo a fez segurar na cômoda ou correria o risco de cair.
O ar estava vivo. Sobrecarregado. Elétrico.
Perigoso.
E John era o centro dessa energia furiosa, as mãos fechadas, tão apertadas que chegavam a tremer, as coxas dele ficaram tensas em seus ossos ao assumir a posição de combate.
A boca de John se abriu ao máximo quando jogou a cabeça para frente... e soltou um grito de guerra...
O som explodiu tudo ao redor, tão alto que ela teve que cobrir os ouvidos, tão poderoso que sentiu uma explosão contra seu rosto.
Por um momento, achou que ele havia encontrado sua voz – só que não eram suas cordas vocais que estavam fazendo aquele barulho estridente.
Os vidros das portas explodiram atrás dele, quebrando-se em milhares de cacos que se espalharam por todo o local, os fragmentos quicaram na ardósia e capturaram a luz como gotas de chuva...
Ou como lágrimas.
CAPÍTULO 40
Blay não fazia ideia do que Saxton tinha acabado de lhe dar.
Bem, sim, era um charuto e, sim, era caro, mas o nome não se prendeu em sua mente.
– Acho que você vai gostar – disse o macho, reclinando-se para trás em sua poltrona de couro e acendendo seu próprio charuto. – São suaves. Marcantes, mas suaves.
Blay acendeu a chama de seu isqueiro Montblanc e inclinou-se para tragar. Ao reter a fumaça, pôde sentir a atenção de Saxton focada nele.
Outra vez.
Não estava acostumado com tanta atenção, então deixou que seus olhos vagassem pelo local: teto abobadado verde escuro, brilhantes paredes pretas, cadeiras de couro vermelho escuro e cabines onde as pessoas se sentavam às mesas. Vários humanos com cinzeiros junto aos seus cotovelos.
Resumindo: não havia distrações que pudessem ser comparadas aos olhos de Saxton ou à voz ou à colônia ou...
– Então, diga-me – o macho disse, exalando uma nuvem azul perfeita, que, momentaneamente, eclipsou sua feição. – Colocou o seu risca de giz antes ou depois que liguei?
– Antes.
– Sabia que você tinha estilo.
– Sabia?
– Sim. – Saxton olhou fixamente através da pequena mesa de mogno que os separava. – Ou eu não o teria chamado para jantar.
A refeição que compartilharam no Restaurante do Sal foi... realmente adorável. Comeram na cozinha, em uma mesa privada, e iAm lhes preparou um menu especial de antepastos e massas, acompanhado por café com leite e tiramisu de sobremesa. O vinho havia sido branco para o primeiro prato e tinto para o segundo.
Os temas da conversa foram neutros, mas interessantes... e, afinal, isso não importava muito. Se ficariam juntos ou não era o verdadeiro objetivo de cada palavra, olhar e gestos corporais.
Então... era mesmo um encontro, Blay pensou. Uma negociação implícita, disfarçada numa conversa sobre livros e músicas preferidas.
Não era de admirar que Qhuinn fosse direto para o sexo. O cara não tinha paciência para esse tipo de sutileza. Além disso, não gostava de ler e a música que pulsava em seus ouvidos era metalcore que só os loucos ou surdos poderiam suportar.
Um garçom vestido de preto aproximou-se.
– Posso trazer algo para beberem?
Saxton rodou seu charuto entre os dedos indicador e polegar.
– Vinho do Porto, safra de 1945, por favor.
– Excelente escolha.
Os olhos de Saxton se voltaram para Blay.
– Eu sei.
Blay olhou para a janela em frente ao local onde estavam sentados e se perguntou se nunca deixaria de corar perante o cara.
– Está chovendo.
– Está?
Deus que voz. As palavras de Saxton eram tão suaves e deliciosas quanto o charuto.
Blay mexeu as pernas, cruzando-as no joelho.
Enquanto vasculhava seu cérebro a procura de algo que quebrasse o silêncio, parecia que o comentário ridículo sobre o tempo era a observação mais inspirada que faria. O fato era que o final do encontro estava próximo e, até então, só sabia que ele e Saxton lamentavam a perda de Dominick Dunne e que eram fãs de Miles Davis. Não sabia o que iria fazer quando chegasse a hora de seguir caminhos distintos.
Seria o caso de: Ligue para sairmos outra vez? Ou o infinitamente mais complicado, confuso e agradável: Sim, com certeza, irei agora até sua casa para apreciar suas gravuras.
Ao que sua consciência o obrigou a acrescentar: mesmo que eu nunca tenha feito isso com um cara antes e apesar do fato de que qualquer outra pessoa seria apenas um substituto para Qhuinn.
– Quando foi a última vez que esteve num encontro, Blaylock?
– Eu... – Blay deu uma longa tragada no charuto. – Faz um bom tempo.
– O que tem feito para você mesmo? Só trabalho, sem diversão?
– Algo assim.
Ok, amor não correspondido não se enquadrava exatamente em nenhuma dessas categorias, apesar de “sem diversão” ser totalmente certo.
Saxton sorriu um pouco.
– Fiquei feliz por ter me ligado. E um pouco surpreso.
– Por quê?
– Meu primo tem uma certa... reação territorial em relação a você.
Blay girou seu charuto e olhou para a ponta incandescente.
– Acho que você supervaloriza o interesse dele.
– E eu acho que está me dizendo educadamente para que eu cuide de assuntos que me dizem respeito, não está?
– Não há qualquer assunto para tratar sobre isso. – Blay sorriu para o garçom que colocou dois cálices na mesa redonda e se afastou. – Pode acreditar.
– Sabe? Qhuinn tem uma personalidade interessante. – Saxton estendeu a mão com elegância e pegou sua taça de vinho. – Na verdade, ele é um dos meus primos favoritos. Seu inconformismo é admirável e sobreviveu a coisas que iriam esmagar um macho fraco. Contudo, não sei se estar apaixonado por ele seria fácil.
Blay não mordeu a isca.
– Então, você vem sempre aqui?
Saxton riu, seus olhos pálidos brilhando.
– Ok, esse assunto é proibido. – Olhou em volta, franzindo a testa. – Na verdade, não tenho saído muito ultimamente. Muito trabalho também.
– Você disse que é advogado da Antiga Lei. Deve ser interessante.
– Eu me especializei em heranças e espólios, então o fato do negócio estar crescendo é algo para se lamentar. O Fade tornou-se cheio de inocentes desde o verão passado...
Na cabine ao lado, um monte de valentões com relógios de ouro e ternos de seda riam como bêbados arrogantes que eram – a tal ponto que o mais alto deles acabou encostando-se com força em sua cadeira e batendo em Saxton.
O que foi um problema, pois provou que Saxton era um cavalheiro, mas não um covarde.
– Desculpe, mas se importaria de se afastar um pouco?
O desalinhado humano virou-se, sua barriga protuberante sobre o cinto parecia que ia explodir por todo o lugar.
– Sim. Eu me importo. – Seus pálidos olhos lacrimejantes se estreitaram. – Tipos como você não pertencem a este local, de jeito nenhum.
E ele não estava falando sobre o fato de serem vampiros.
Quando Blay tomou seu vinho, o caro líquido teve gosto de vinagre... embora o sabor amargo em sua boca não fosse porque a bebida estivesse ruim.
Um momento depois, o cara bateu as costas contra o assento com tanta força que Saxton quase derramou sua bebida.
– Mas que inferno! – o macho murmurou, pegando seu guardanapo.
O idiota humano inclinou-se em seu espaço outra vez.
– Estamos interrompendo os dois lindos rapazes chuparem aquelas coisas duras?
Saxton sorriu com força.
– Definitivamente está interrompendo.
– Descuuulpe. – O humano de repente levantou seu dedo mínimo acima de seu charuto. – Não quis ofendê-lo.
– Vamos – Blay disse enquanto se inclinava e apagava seu charuto.
– Posso conseguir outra mesa.
– Vão embora juntos, rapazes? – disse o Sr. Boca Grande arrastando as palavras. – Vão a uma festa onde há todos os tipos de charutos? Talvez nós os sigamos, apenas para ter certeza que chegarão bem lá.
Blay manteve os olhos centrados em Saxton.
– Está ficando tarde, de qualquer maneira.
– O que significa que é apenas o meio do nosso dia.
Blay levantou-se e colocou a mão no bolso, mas Saxton gesticulou e o impediu de sacar a carteira.
– Não, permita-me.
Outra rodada de comentários partindo do engraçadinho carregou ainda mais o ar e deixou Blay rangendo os dentes. Felizmente, não demorou muito para Saxton pagar o garçom e, em seguida, seguiram em direção à porta.
Do lado de fora, o ar frio da noite era um bálsamo aos sentidos e Blay respirou profundamente.
– Esse lugar não é sempre assim – Saxton murmurou. – Caso contrário, nunca o teria levado até lá.
– Está tudo bem.
Quando Blay começou a caminhar, sentiu Saxton colocar-se ao seu lado.
Quando chegaram à entrada de um beco, pararam para deixar um carro virar à esquerda na Rua Commerce.
– Então, como está se sentindo sobre tudo isso?
Blay encarou o outro macho e decidiu que a vida era muito curta para fingir que não sabia exatamente o que esse “isso” significava.
– Para ser honesto, sinto-me estranho.
– E isso não se deve àqueles idiotas.
– Eu menti. Nunca estive num encontro antes. – A confissão fez Saxton levantar uma sobrancelha e Blay teve que rir. – Sim, sou um ator de verdade.
O ar suave de Saxton desapareceu, e por trás de seus olhos, um calor verdadeiro começou a brilhar.
– Bem, estou feliz em ser o seu primeiro.
Blay encontrou o olhar do cara.
– Como sabia que eu era gay?
– Não sabia. Apenas esperava que sim.
Blay riu de novo.
– Bem, agora sabe. – Após uma pausa, estendeu a mão. – Obrigado por esta noite.
Quando Saxton tocou sua mão, um frisson de puro calor queimou entre eles.
– Sabe que encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
Blay descobriu que era incapaz de soltar a mão do macho.
– Ah... verdade?
Saxton assentiu.
– Um beijo é o mais comum.
Blay focou nos lábios do macho e de repente se perguntou que gosto teria.
– Venha aqui – Saxton murmurou, puxando-o pela mão e atraindo-o a um refúgio no beco.
Blay seguiu-o na escuridão, guiado por um feitiço erótico que não tinha interesse nenhum em romper. Quando chegaram a um lugar mais oculto entre as fachadas dos edifícios, sentiu o tórax do macho subir contra o seu e, em seguida, seus quadris fundiram-se.
Então, soube exatamente o quanto Saxton estava excitado.
E Saxton sabia que ele também estava.
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Blay não queria pensar em Qhuinn agora e balançou a cabeça para limpar a imagem. Quando isso não funcionou e os olhos azul e verde do cara persistiram em sua mente, fez a única coisa que garantiria parar de pensar em sua perdição.
Venceu a distância entre a boca de Saxton e a sua.
Qhuinn sabia que deveria ter ido direto para casa. Depois que foi sumariamente dispensado da casa de Tohr, sem dúvida para que John e Xhex desfrutassem um pouco de conversa na horizontal, ele deveria ter voltado para a mansão e se consolar com a amigável tequila e ocupar-se com sua maldita vida.
Mas nããão. Ele se materializou na rua do único bar de charuto em Caldwell e assistiu – na chuva, como um perdedor – quando Blay e Saxton sentaram-se em uma mesa bem em frente à janela. Ele teve uma visão completa de como seu primo estava olhando para seu melhor amigo com uma luxúria elegante e, então, alguns idiotas fizeram gracinhas até que os dois deixaram os charutos no meio e as taças de vinho inacabadas.
Não querendo ser pego escondido entre as sombras, Qhuinn teve que se desmaterializar no beco ao lado... que logo se transformou no típico “lugar errado, na hora errada”.
A voz de Saxton pairou sobre a brisa fria.
– Sabe que os encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
– Ah... verdade?
– Um beijo é o mais comum.
Qhuinn sentiu as mãos se fecharem com força, e por uma fração de segundo, pensou realmente em sair de trás do contêiner de lixo em que estava escondido. Mas para fazer o quê? Colocar-se entre os dois dizendo “parem com isso rapazes”?
Bem, sim. Exatamente.
– Venha aqui – Saxton murmurou.
Droga, o bastardo soava como um operador de tele-sexo, todo rouco e sensual. E... oh, cara, Blay estava indo com ele, seguindo o cara na escuridão.
Havia momentos em que o incrível senso de audição de um vampiro era uma verdadeira maldição. E, claro... não ajudava se estivesse espiando perto de uma lata de lixo.
Quando os dois foram ao encontro um do outro, a boca de Qhuinn se abriu. Mas não porque estava chocado e não porque quisesse entrar em ação.
Simplesmente não conseguia respirar. Era como se suas costelas tivessem congelado junto com seu coração.
Não... não, maldição, não...
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Sim, já, Qhuinn queria gritar...
Blay negou com a cabeça. Negou mesmo.
Qhuinn fechou os olhos com força e obrigou-se a se acalmar o suficiente para conseguir desmaterializar-se. Quando tomou forma em frente à mansão da Irmandade, tremia como um filho da mãe... e chegou a considerar curvar-se e fertilizar os arbustos com o jantar que tinha comido antes de sair com Xhex e John.
Depois de respirar fundo duas vezes, decidiu que era mais interessante seguir com o plano A e ficar bêbado. Com isso em mente, entrou pela porta, Fritz o deixou entrar, e dirigiu-se à cozinha.
Inferno, talvez ele tomasse mais do que apenas alguns goles. Deus sabia que Saxton não iria se contentar com um beijo ou dois num beco frio e úmido, e Blay parecia estar preparado para, finalmente, conseguir o que precisava há tanto tempo.
Portanto, haveria tempo de sobra para ele encher a cara até perder a consciência.
Jesus... Cristo, Qhuinn pensava enquanto esfregava o peito e ouvia a voz de seu primo várias vezes: Diga uma coisa. Você já beijou um macho antes?
A imagem de Blay balançando a cabeça parecia uma cicatriz no cérebro de Qhuinn, o que o levou a ir direto para o outro lado da cozinha em direção à despensa, onde as caixas de bebida eram guardadas.
Mas que clichê. Embriagar-se por não querer lidar com as coisas.
Mas pelo menos isso ele faria de acordo com a tradição.
Voltando a atravessar a cozinha, percebeu que havia, pelo menos, uma graça salvadora. Quando os dois fossem partir para ação, teria que ser na casa de Saxton, porque nenhum visitante casual era permitido na casa do rei, nunca.
Quando saiu em direção à porta de entrada, parou de repente.
Blay estava entrando.
– De volta tão cedo – disse Qhuinn rispidamente. – Não me diga que meu primo é rápido.
Blay nem sequer fez uma pausa. Apenas continuou a subir as escadas.
– Seu primo é um cavalheiro.
Qhuinn saiu atrás do melhor amigo, seguindo ao seu encalço.
– Você acha? Na minha experiência, apenas parece um...
Isso fez com que Blay se virasse.
– Você sempre gostou dele. Era seu favorito. Lembro que falava dele como se fosse um deus.
– Eu cresci e perdi o interesse.
– Bem, eu gosto dele. Muito.
Qhuinn quis rosnar, mas matou o impulso abrindo a tequila que tinha surrupiado da prateleira e tomou um gole.
– Bom para você. Fico feliz por vocês dois.
– Sério? Então porque nem sequer está usando um copo?
Qhuinn passou rápido por seu amigo e não parou nem quando Blay disse “Onde estão John e Xhex?”.
– Fora. No mundo. Sozinhos.
– Achei que deveria ficar com eles.
– Fui temporariamente dispensado. – Qhuinn parou no topo da escada e tocou a lágrima tatuada abaixo de seu olho. – Ela é uma assassina, pelo amor de Deus. Pode cuidar dele muito bem. Além disso, estavam se divertindo na antiga casa de Tohr.
Quando chegou ao seu quarto, Qhuinn chutou a porta e tirou a roupa. Após beber um grande gole da garrafa, fechou os olhos e enviou uma convocação.
Layla seria uma boa companhia agora.
Esta era sua especialidade. Afinal, foi treinada para o sexo e tudo que ela queria era usá-lo como uma escola erótica. Não precisava se preocupar em magoá-la ou se ela se sentiria ligada a ele. Era uma profissional, por assim dizer.
Ou seria quando tivesse terminado de fazer algumas coisas com ela.
Quanto a Blay? Não fazia ideia do porquê o cara tinha voltado ao invés de se dirigir à cama de Saxton, mas uma coisa era clara. Os dois estavam atraídos um pelo outro e Saxton não era do tipo que espera muito quando deseja alguém.
Qhuinn e seu primo eram parentes, afinal.
Mas isso não salvaria o filho da mãe magricelo se partisse o coração de Blay.
CAPÍTULO 41
A festa na fazenda continuava e mais pessoas iam chegando, os carros estacionados no gramado, os corpos comprimidos nos cômodos do andar de baixo. A maioria dos que compareceram Lash conhecia do Parque Xtreme, mas não todos. E continuavam trazendo bebidas.
Só Deus sabia que tipo de coisas ilegais havia em seus bolsos.
Que droga, pensou. Talvez estivesse errado e o Ômega estivesse farto de suas perversões...
Quando sentiu uma brisa vinda do norte, Lash ficou imóvel, mantendo-se camuflado e travando sua mente.
Sombra... projetou uma sombra em si próprio, através dele e em torno dele.
A chegada do Ômega foi precedida por um eclipse da lua e os idiotas dentro não faziam a menor ideia do que estava acontecendo... mas aquele lixo sabia. O garoto saiu pela porta da frente, a luz de dentro derramando ao redor dele.
O pai de Lash tomou forma no gramado desalinhado, suas vestes brancas se agitavam em volta de seu corpo, sua chegada diminuiu ainda mais a temperatura do ar. Assim que tomou forma, o idiotinha caminhou até ele e os dois se abraçaram.
Houve uma tentação de atacar os dois, para dizer a seu pai que ele não era nada além de um pervertido inconstante e avisar ao ratinho filho da mãe que seus dias e noites estavam contados...
O rosto encapuzado do Ômega virou na direção de Lash.
Lash ficou totalmente imóvel e projetou em sua mente uma lousa totalmente em branco, para que permanecesse invisível por dentro e por fora. Sombra... sombra... sombra...
A pausa durou uma vida, porque sem dúvida se o Ômega sentisse que Lash estava por perto, seria o fim do jogo.
Depois de um momento, o Ômega voltou sua atenção para seu queridinho da vez, e quando fez isso, algum idiota tropeçou para fora da porta da frente, os braços se agitaram e as pernas ficaram desequilibradas enquanto tentava manter-se em pé. Quando caiu na grama, o cara se moveu em direção a um canteiro, mas não conseguiu: aterrissou em seus joelhos e vomitou por todo o alicerce da casa. Enquanto as pessoas riam dele e os sons da festa rolavam noite adentro, o Ômega deslizou até a porta.
A festa continuou quando ele entrou na casa, sem dúvida porque os bastardos estavam muito chapados para perceber que sob aquela cortina branca, o mal havia acabado de entrar.
No entanto, não continuaram na ignorância por muito tempo.
Uma enorme bomba de luz explodiu, a rajada de iluminação varreu a casa e fluiu para fora das janelas até a linha das árvores. Quando a iluminação se desvaneceu até chegar a um brilho suave, não havia sobreviventes em pé: todos os bêbados caíram ao chão de uma só vez. A diversão tinha acabado.
Caramba. Se a coisa continuasse indo naquela direção...
Lash esgueirou-se para a casa, tomando cuidado para não deixar nenhuma pegada, literal ou figurativamente e, quando se aproximou, ouviu um estranho som de arranhões.
Aproximando-se de uma das janelas da sala, olhou para dentro.
O bastardo estava arrastando os corpos, alinhando-os lado a lado no chão, de modo que todos os rostos ficaram em direção ao norte e havia aproximadamente trinta centímetros entre uma e outra cabeça. Jesus... havia tantos cadáveres que o procedimento do bom soldadinho de enfileirar os mortos se estendeu por todo o caminho entre o corredor até a sala de jantar.
O Ômega recuou como se estivesse apreciando a visão de seu brinquedo enquanto movia os corpos ao redor.
Que. Meigo.
Levou quase meia hora para alinhar todos, os caras do segundo andar foram arrastados para baixo pelas escadas de modo que a cabeça batia em cada degrau e deixava um rastro vermelho de sangue.
Fazia sentido. Era mais fácil puxar um peso morto pelos pés.
Quando todos estavam juntos, o cretino começou a trabalhar com uma faca e aquilo se tornou uma fila para a iniciação. Começando na sala de jantar, cortou a garganta, os pulsos, os tornozelos e o peito. O Ômega o seguia, derramando sangue preto sobre as costelas abertas, golpeando-os com eletricidade.
Nenhuma bacia para este lote. Quando os corações foram extraídos, foram lançados num canto.
Um grande abatedouro?
Quando tudo terminou, havia um lago de sangue no centro da sala onde o piso havia cedido e outro na base da escada que dava para a entrada. Lash não conseguia observar todo o caminho até a sala de jantar, mas tinha plena certeza de que havia muito sangue lá também.
Os gemidos dos induzidos começaram logo em seguida e a safra de miséria que havia sido colhida ficaria mais alta e mais confusa conforme a transição fosse superada e os últimos resquícios de sua humanidade fossem vomitados para fora.
No meio do coro de agonia e confusão, o Ômega virou-se, pisando sobre as massas que se contorciam, dançando para lá e para cá, arrastando o seu manto branco ao longo da porcaria coagulada no chão e, ainda assim, permanecia imaculado.
No canto, o idiotinha acendeu um baseado e deu uma longa tragada como se estivesse tomando fôlego depois de um trabalho bem feito.
Lash se afastou da janela e retirou-se em direção às árvores, sempre mantendo os olhos na casa.
Droga, deveria ter feito algo assim. Mas não tinha os contatos certos no mundo humano para isso. Ao contrário do idiotinha.
Cara, isso mudaria tudo para os vampiros. Aqueles desgraçados iriam enfrentar, de verdade, uma legião de inimigos novamente.
De volta a Mercedes, Lash ligou o motor e retirou-se da fazenda afastando-se pelo caminho mais longo. Atrás do volante, com o ar frio batendo no rosto graças à janela estilhaçada, seu humor era sombrio. Para o inferno com as fêmeas e todas aquelas besteiras. Seu único objetivo na vida era acabar com o idiotinha. Tomar o prêmio do Ômega. Destruir a Sociedade Redutora.
Bem... as fêmeas não faziam parte disso. Sentia-se totalmente esgotado, porque precisava se alimentar – o que quer que estivesse acontecendo à sua camada externa, seu interior ainda desejava sangue e tinha que resolver esse problema antes que pudesse enfrentar seu velho pai.
Ou iria se dar muito mal.
Enquanto dirigia para o centro, pegou o telefone e ficou maravilhado com o que estava prestes a fazer. Contudo, um inimigo em comum sempre acaba resultando em estranhas alianças.
De volta ao Complexo da Irmandade, Blay se despiu no banheiro e entrou debaixo do chuveiro. Ao pegar o sabão e fazer um pouco de espuma, pensou no beijo naquele beco.
Naquele macho.
Naquele... beijo.
Movendo as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e deixou a água quente escorrer por seu cabelo, suas costas, até seu traseiro. Seu corpo parecia querer se arquear com mais força e se deixar levar, alongando-se, deleitando-se naquela onde de calor. Gastou um tempo lavando seu cabelo com xampu e correndo a mão ensaboada e escorregadia por seu corpo.
Enquanto pensava um pouco mais sobre aquele beijo.
Deus, era como se a memória de seus lábios juntos fosse um imã que o arrastava de volta àquele momento repetidas vezes; o puxão foi muito forte para resistir, a conexão muito atraente para conseguir evitar.
Deslizando as palmas das mãos sobre o tronco, perguntava-se quando veria Saxton outra vez.
Quando ficariam sozinhos outra vez.
Movendo a mão mais para baixo, ele...
– Senhor?
Blay girou, seu calcanhar rangeu sobre o mármore. Cobrindo seu membro rígido e pesado com as duas mãos, tentou esquivar-se atrás da porta de vidro.
– Layla?
A Escolhida sorriu timidamente e correu os olhos por seu corpo.
– Fui chamada? Para servir?
– Eu não chamei. – Será que ela tinha confundido? A não ser que...
– Qhuinn me convocou. Concluí que seria neste quarto.
Blay fechou os olhos momentaneamente enquanto a ereção desvanecia. Então acabou com a festinha particular e fechou a água quente. Estendendo a mão, agarrou uma toalha e a envolveu em seus quadris.
– Não, Escolhida – disse calmamente. – Não é aqui. Mas no quarto dele.
– Oh, perdoe-me, senhor. – Iniciou seu caminho para fora do quarto, o rosto em chamas.
– Está tudo bem... cuidado! – Blay pulou para frente e a agarrou quando ela esbarrou na banheira e perdeu o equilíbrio. – Você está bem?
– Sim, eu deveria olhar por onde ando. – Ela observou seus olhos, as mãos descansando em seus braços nus. – Obrigada.
Olhando para o rosto perfeitamente belo, era óbvio o motivo pelo qual Qhuinn estava interessado. Ela era etérea, com certeza, mas havia algo além disso – especialmente quando abaixou as pálpebras e os olhos verdes brilharam.
Inocente, mas erótico. Era isso. Era a combinação cativante de pureza e sexo que era indiscutível aos homens normais – e Qhuinn não chegava nem perto de ser normal. Transava com qualquer coisa.
Imaginou se a Escolhida sabia disso. Ou se isso importaria para ela.
Com a testa franzida, Blay a afastou.
– Layla...
– Sim, senhor?
Bem, inferno... o que dizer? Estava muito claro que não havia sido chamada outra vez para alimentar Qhuinn, pois haviam se alimentado na noite anterior...
Cristo, talvez fosse isso. Já tinham tido relações sexuais uma vez e ela estava voltando para mais.
– Senhor?
– Nada. É melhor você ir. Tenho certeza de que ele está esperando.
– De fato. – O aroma de Layla pairou sobre o local, o cheiro de canela fez o nariz de Blay formigar. – E sou muito grata por isso.
Quando ela se virou e saiu, Blay observou o balançar de seus quadris e sentiu vontade de gritar. Não queria pensar em Qhuinn transando no quarto ao lado... Pelo amor de Deus, a mansão havia sido o único lugar que não havia sido contaminado por toda aquela atividade extracurricular.
Agora, porém, tudo que conseguia ver era Layla entrando no quarto de Qhuinn e deixando sua túnica branca cair ao deslizar pelos ombros; seus seios, ventre e coxas sendo revelados diante daqueles olhos díspares. Ela estaria em sua cama e sob seu corpo num piscar de olhos.
E Qhuinn a trataria bem. Isso era o que acontecia, pelo menos quando se tratava de sexo: ele era generoso com seu tempo e seu talento. Ele se dedicaria a ela com tudo o que tinha, as mãos, a boca...
Certo. Melhor não pensar no resto.
Enxugando-se rapidamente, ocorreu-lhe que talvez Layla fosse a parceira perfeita para o cara. Com seu treinamento, ela não só iria satisfazê-lo em todos os níveis, como nunca esperaria dele monogamia ou se ressentiria por suas façanhas nesse sentido ou forçaria ligações emocionais que ele não sentia. Provavelmente, ela até mesmo entraria na brincadeira, pois era evidente pela forma como andava que se sentia bem com seu corpo.
Era perfeita para ele. Melhor do que Blay, com certeza.
Além disso, Qhuinn havia deixado claro que iria acabar com uma fêmea... uma fêmea tradicional, com valores tradicionais, de preferência que fosse da aristocracia, isso assumindo que encontraria alguém que o aceitasse mesmo com o defeito dos olhos díspares.
Layla preenchia totalmente os requisitos – nada mais tradicional ou de sangue mais puro do que uma Escolhida e era evidente que ela o queria.
Sentindo-se como se tivesse sido amaldiçoado, Blay entrou em seu closet e vestiu uma bermuda e uma camiseta. Não havia chance alguma de sentar-se ali e se aconchegar com um bom livro, enquanto estivesse acontecendo o que quer que fosse na porta ao lado...
Pois é. Não precisava daquelas imagens, mesmo que hipoteticamente.
Saindo para o corredor de estátuas, apressou-se ao passar pelas figuras de mármore, invejando suas poses calmas e rostos serenos. Claro que fingir sempre que “está tudo bem” fazia a ideia de ser um objeto inanimado parecer muito boa. Mesmo significando que não sentiria alegria, também não teria que sentir aquela dor ardente.
Quando chegou ao saguão de entrada, contornou o corrimão e abaixou-se através da porta secreta. No túnel para o centro de treinamento, iniciou uma corrida como aquecimento, e quando passou através da parte traseira do armário de escritório, não diminuiu. A sala de musculação era o único lugar onde suportaria estar agora. Uma boa hora ou mais na esteira e talvez não sentisse mais vontade de descascar a própria pele com uma colher enferrujada.
Ao sair para o corredor, parou de repente quando viu uma figura solitária, encostada na parede de concreto.
– Xhex? O que está fazendo aqui? – Bem, além de encarar o chão.
A fêmea o olhou e seu olhar cinza escuro se assemelhava a poços vazios.
– Oi.
Blay franziu a testa enquanto caminhava até ela.
– Onde está John?
– Está lá dentro. – Ela acenou com a cabeça para a porta da sala de musculação.
O que explicava o barulho monótono que ouvia. Era evidente que alguém estava correndo sobre uma das esteiras.
– O que aconteceu? – Blay disse, somando a expressão dela aos movimentos que os tênis de John estavam fazendo... e chegando a uma conclusão terrível.
Xhex deixou cair a cabeça contra a parede que estava segurando seu corpo.
– Foi tudo o que eu pude fazer para trazê-lo de volta para cá.
– Por quê?
Seus olhos se acenderam ainda mais.
– Vamos apenas dizer que ele quer ir atrás de Lash.
– Bem, isso é compreensível.
– Sim.
Quando a palavra flutuou para fora da boca dela, teve a impressão de que não sabia nem da metade, mas ficou óbvio que aquele comentário era o máximo que ela diria sobre o assunto.
De repente, seu olhar cor de tempestade fixou-se no rosto dele.
– Então, você é a razão pela qual Qhuinn estava de mau humor hoje.
Blay recuou, e então balançou a cabeça.
– Não tem nada a ver comigo. Qhuinn geralmente fica de mau humor.
– Pessoas que tomam a direção errada ficam assim. Pinos redondos simplesmente não se encaixam em orifícios quadrados.
Blay pigarreou, pensando que os sympathos, mesmo aqueles que não estão contra você, não eram o tipo de pessoa que se quer por perto quando está tentando esconder algo. Como, por exemplo, quando o macho que você deseja está com uma Escolhida com rosto de anjo e um corpo feito para o pecado.
Só Deus sabia o que Xhex estava captando da cabeça dele.
– Bem... estou indo treinar. – Como se seu visual não deixasse isso claro.
– Bom. Talvez você consiga falar com ele.
– Eu vou. – Blay hesitou, pensando que Xhex parecia se sentir como ele. – Ouça, não é por nada, mas é evidente que você está exausta. Talvez fosse bom ir até um dos quartos de hóspedes e dormir.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou deixá-lo. Estou aqui fora esperando só porque eu estava deixando-o louco. Ver-me... não é bom para sua saúde mental no momento. Espero que já não esteja mais assim depois que quebrar essa segunda esteira.
– Segunda?
– Tenho certeza que o cheiro de fumaça de uns quinze minutos atrás significa que ele correu até quebrá-la.
– Caramba.
– Sim.
Preparando-se, Blay abaixou-se e entrou na sala de musculação...
– Jesus... Cristo. John.
Sua voz não foi ouvida. No entanto, o barulho da esteira e os passos pesados de John teriam abafado o escapamento de um carro.
O corpo maciço do cara estava a todo vapor na máquina, sua camiseta e tronco estavam cobertos de suor, as gotas se movimentavam em seus punhos cerrados e criavam manchas idênticas de umidade de cada lado no chão. Havia manchas vermelhas em suas meias brancas que se espalhavam a partir dos calcanhares, como se um pedaço da pele tivesse sido arrancado e a bermuda preta que usava batia como uma toalha molhada.
– John? – Blay gritou, enquanto avaliava a esteira quebrada ao lado. – John!
Quando o grito não o fez girar a cabeça, Blay entrou na sua frente e acenou com a mão direita no campo visual do cara. E, então, desejou não ter feito isso. Os olhos que se fixaram nos dele ardiam com um ódio tão cruel que Blay deu um passo para trás.
Quando John voltou a focar o ar na frente de seu rosto, ficou muito claro que o maldito filho da mãe iria continuar correndo até que suas pernas caíssem.
– John, que tal sair daí? – Blay gritou. – Antes de cair?
Nenhuma resposta. Apenas os gritos da esteira e o som de um bombardeio intenso nos pés.
– John! Vamos, agora! Você está se matando!
Dane-se.
Blay deu a volta por trás do aparelho e arrancou o cabo de força da parede. A desaceleração brusca fez John tropeçar e cair para frente, mas segurou-se no apoio de mão. Ou talvez tenha apenas desabado sobre ele.
Sua respiração ofegante rasgava para dentro e para fora da boca e a cabeça pendia em seu braço.
Blay puxou um banco de um dos aparelhos e estacionou sobre ele para que pudesse olhar para o rosto do rapaz.
– John... o que diabos está acontecendo?
John soltou o apoio e caiu para trás, as pernas não suportaram seu peso. Após uma série de respirações entrecortadas, passou a mão pelo cabelo molhado.
– Fale comigo, John. Vou manter isso apenas entre nós. Juro pela vida da minha mãe.
Levou um tempo antes de John erguer a cabeça, e quando o fez, seus olhos estavam brilhantes. E não era pelo suor ou pelo esforço.
– Fale comigo, pois isso não irá a lugar algum – sussurrou Blay. – O que aconteceu? Diga-me.
Quando o cara finalmente começou a fazer os sinais, estava confuso, mas Blay leu as palavras muito bem.
Ele a machucou, Blay. Ele... a machucou.
– Bem, sim, eu sei. Ouvi falar sobre como ela estava quando...
John fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
No silêncio tenso que se seguiu, a pele da nuca de Blay se enrijeceu. Oh... droga.
Houve mais do que isso. Não houve?
– Ruim quanto? – resmungou Blay.
O pior possível, John assinalou com a boca.
– Filho da mãe. Desgraçado filho da mãe. Aquele cretino, filho da mãe, desgraçado!
Blay não costumava xingar, mas às vezes isso é tudo que se pode oferecer aos ouvidos dos outros: Xhex não era sua mulher, mas na opinião dele, não se pode machucar o sexo frágil. Seja lá qual for o motivo... e nunca, nunca dessa maneira.
Deus, a expressão de dor dela não tinha sido apenas por estar preocupada com John. Tinha sido por causa das lembranças. Lembranças horríveis, hediondas...
– John... eu sinto muito.
Gotas frescas caíram do queixo do rapaz na faixa preta da esteira e John enxugou os olhos algumas vezes antes de erguer o olhar. Em seu rosto, a angústia guerreava com uma fúria sem tamanho.
O que fazia todo sentido. Com sua história pessoal, aquilo era totalmente devastador.
Tenho que matá-lo, John gesticulou. Não poderei viver comigo mesmo se não acabar com ele.
Enquanto Blay concordava, os motivos da vingança se faziam óbvios. Um macho vinculado com um passado ruim? O mandado de morte de Lash acabava de receber o selo de APROVADO.
Blay fechou os dedos e ofereceu seus punhos.
– Qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser, estou com você. E não direi nenhuma palavra.
John esperou um momento e então bateu punho contra punho. Sabia que poderia contar com você, sinalizou com a boca.
– Sempre – prometeu Blay. – Sempre.
CAPÍTULO 42
A casa de Eliahu Rathboone ficou totalmente silenciosa mais ou menos uma hora depois que Gregg abortou sua viagem ao terceiro andar, mas ele esperou um bom tempo depois que o mordomo desceu as escadas para tentar subir outra vez.
Ele e Holly não passaram o tempo transando, que era o bom e velho hábito deles, mas conversando. E ele percebeu que quanto mais conversavam, menos sabia a respeito dela. Não fazia ideia de que seus passatempos podiam ser tão triviais quanto tricotar. Ou que sua maior ambição era seguir carreira no verdadeiro jornalismo televisivo – o que não era uma surpresa: a maioria das mulheres “cabeças de vento” do mundo dos reality shows tinham maiores ambições na TV. E ele até sabia que ela tinha tentado ingressar uma vez no noticiário local de Pittsburgh.
O que não fazia ideia era do verdadeiro motivo pelo qual ela deixou o primeiro emprego. O gerente, casado, esperava que ela fizesse um tipo diferente de serviço, mais privado, e quando ela disse “não”, ele a demitiu depois de dar um jeito para que ela falhasse na frente das câmeras.
Gregg viu a fita onde ela massacrava as palavras no ar. Afinal de contas, fez sua lição de casa, e apesar do seu teste com eles ter sido ótimo, ele sempre verificava as referências.
Talvez isso tenha sido o início de suas pressuposições sobre ela: rostinho bonito, boa postura, nada mais a oferecer.
Mas esse não era o pior de seus equívocos. Nunca soube que ela tinha um irmão. Que era deficiente físico. A quem ela sustentava.
Ela mostrou uma foto dos dois juntos.
E quando Gregg perguntou em voz alta como era possível ele não saber sobre aquele garoto, ela teve a honestidade de dizer-lhe o motivo: porque você ditou os limites e isso estava além.
Naturalmente, teve a reação masculina de se defender, mas o fato é que ela estava certa. Havia estabelecido os limites de maneira muito clara. O que significava nada de ciúmes, nada de explicações, nada permanente e nada pessoal.
Aquele não era exatamente um ambiente propício para se mostrar vulnerável.
A constatação disso foi o que o fez puxá-la contra seu peito e encostar o queixo em sua cabeça, alisando suas costas. Antes de ir para a terra dos sonhos, ela murmurou algo com uma voz suave. Algo sobre como aquela tinha sido a melhor noite que teve com ele.
E isso apesar dos orgasmos monstruosos que já tinha lhe proporcionado.
Bem, orgasmos dados quando lhe convinha. Houve vários encontros cancelados no último minuto, mensagens de celular sem resposta e menosprezo verbal e físico.
Cara... que lixo ele foi.
Quando Gregg finalmente levantou-se para sair, cobriu Holly, ligou a câmera que era ativada por movimentos e saiu para o corredor. Silêncio por toda parte.
Caminhando pelo corredor, voltou-se para o sinal de Saída e seguiu em direção à escada dos fundos. Subiu os degraus, virou, subiu outro patamar e, então, lá estava a porta.
Sem bater desta vez, pegou uma chave de fenda fina que era usada no equipamento da câmera e tentou arrombar a fechadura. Na verdade, foi mais fácil do que imaginava. Bastou uma cotovelada, um giro e a coisa se soltou.
A porta não chiou, o que o surpreendeu.
No entanto, o que estava do outro lado... o deixou extremamente chocado!
O terceiro andar tinha um espaço cavernoso, com um antiquado e grosseiro assoalho e com um teto inclinado em um ângulo agudo dos dois lados. Na outra extremidade, havia uma mesa com uma lâmpada a óleo e seu brilho fazia com que as paredes lisas ficassem de um tom amarelo-dourado... também iluminava as botas negras de alguém que estava sentado numa cadeira fora do alcance da luz.
Botas enormes.
E, de repente, não havia dúvidas de quem era o filho da mãe e o que ele tinha feito.
– Eu o filmei – Gregg disse para o sujeito.
A risada suave que veio como resposta fez a adrenalina de Gregg correr solta: baixa e fria, a risada era o tipo de som que assassinos fazem quando estão prestes a trabalhar com uma faca.
– Filmou? – Aquele sotaque. Mas que diabos era aquilo? Não era francês... nem húngaro...
Tanto faz. A ideia de Holly ter sido vítima de um abuso por parte dele fez Gregg mais alto e mais forte do que realmente era.
– Sei o que você fez na noite passada.
– Eu o convidaria para se sentar em uma cadeira, mas como pode ver, só tenho uma.
– Não estou brincando! – Gregg deu um passo à frente. – Sei o que aconteceu com ela. Ela não queria você.
– Ela queria o sexo.
Filho da mãe imbecil.
– Ela estava dormindo.
– Estava? – A ponta da bota balançou. – As aparências, assim como a mente, podem ser enganosas.
– Quem diabos você pensa que é?
– Sou dono desta bela casa. Isso é quem sou. Sou quem deu permissão para brincar por aí com suas câmeras.
– Bem, pode dar adeus a essa droga toda agora. Não vou fazer propaganda deste lugar.
– Oh, acho que fará. Está em sua natureza.
– Você não sabe nada sobre mim.
– Acho que é o contrário. É você que não sabe... nada, usando suas palavras... sobre você mesmo. Aliás, ela disse o seu nome. Quando gozou.
Gregg ficou furioso com isso, ao ponto de dar mais um passo adiante.
– Eu tomaria cuidado – a voz disse. – Você não quer se machucar. E sou considerado louco.
– Vou chamar a polícia.
– Não tem motivo. Consentimento entre adultos e tudo o mais.
– Ela estava dormindo!
A bota deu uma volta e plantou-se no chão.
– Olha o tom, rapaz.
Antes que houvesse tempo para retrucar o insulto, o homem se inclinou para frente na cadeira... e Gregg perdeu a voz.
O que apareceu sob a luz não fazia sentido algum. De maneira alguma.
Era o retrato. Da sala no andar de baixo. Só que vivo e respirando. A única diferença era que o cabelo não estava preso, estava solto sobre os ombros, era duas vezes maior que o de Gregg e a cor era uma mistura de preto com vermelho.
Oh, Deus... os olhos eram da cor do nascer do sol, brilhantes e cor de pêssego.
Totalmente hipnóticos.
E sim, um tanto enlouquecidos.
– Sugiro – disse arrastando as palavras com aquele sotaque estranho – que você saia deste sótão e volte a ficar com aquela moça adorável...
– Você é descendente de Rathboone?
O homem sorriu. Certo... havia algo de muito errado com seus dentes da frente.
– Ele e eu temos coisas em comum, na verdade...
– Jesus...
– É hora de você correr e terminar seu pequeno projeto. – Não sorria mais, o que era uma espécie de alívio. – E um conselho, no lugar de ceder à tentação de chutar o seu traseiro: deve cuidar melhor da sua mulher. Ela tem sentimentos sinceros por você, o que não é culpa dela e algo pelo qual, claramente, você não é merecedor, caso contrário não estaria cheirando à culpa neste momento. Tem sorte de ter a mulher que deseja ao seu lado, então pare de ser um completo idiota.
Gregg não ficava chocado assim com frequência. Mas, por sua vida, não fazia ideia do que dizer.
Como aquele estranho sabia tanto?
E Cristo, Gregg odiava o fato de Holly ter se deitado com outra pessoa... mas ela tinha dito o nome dele?
– Diga adeus. – Rathboone levantou sua própria mão, imitando um tchau infantil. – Prometo deixar sua mulher em paz, contanto que pare de ignorá-la. Agora vá, tchauzinho.
Agindo sob um reflexo que não era seu, Gregg levantou o braço e fez um aceno desajeitado antes de virar-se e começar a sair do local.
Deus, suas têmporas... que... droga... por que... onde... sua mente parou de funcionar, como se tivessem jogado cola nas engrenagens.
Descer para o segundo andar. Ir para o quarto.
Ao tirar a roupa e deitar na cama de cueca, colocou sua cabeça dolorida sobre o travesseiro perto de Holly, a puxou em um abraço e tentou se lembrar...
Ele tinha que fazer alguma coisa. O que era...?
O terceiro andar. Tinha que ir ao terceiro andar. Tinha que descobrir o que havia lá em cima...
Uma nova dor se lançou em seu cérebro, matando não apenas o impulso de ir a qualquer lugar, mas também matando qualquer interesse no que havia no sótão.
Fechando os olhos, teve uma estranha visão de um estrangeiro estranho com um rosto familiar... mas, em seguida, caiu num sono extremamente profundo e nada mais importava.
CAPÍTULO 43
A invasão na mansão ao lado não representava nenhum problema.
Depois de considerar a atividade da mansão e não encontrar nada que sugerisse qualquer movimento dentro das muralhas, Darius declarou que ele e Tohrment iriam entrar... e entraram. Desmaterializando-se na cerca de madeira que separava as duas propriedades, reapareceram ao lado da região da cozinha... então, simplesmente caminharam direto em direção à robusta moldura de madeira da porta.
Na verdade, o maior obstáculo para ultrapassar a parte externa era a superação do esmagador sentimento de pavor.
A cada passo e a cada respiração, Darius tinha que se esforçar para seguir em frente, seus instintos gritavam que estava no lugar errado. E, ainda assim, se recusava a voltar. Não queria utilizar outros meios práticos pelos quais poderia entrar e embora a filha de Sampsone pudesse muito bem não estar ali, uma vez que não tinha outras pistas, precisava fazer alguma coisa ou ficaria louco.
– Esta casa parece assombrada – murmurou Tohrment enquanto observavam os quartos dos empregados.
Darius assentiu.
– Mas lembre-se de que qualquer fantasma jaz apenas em sua mente e não se confunde com ninguém que esteja sob este teto. Venha, devemos localizar os quartos subterrâneos. Se os humanos a tomaram, devem mantê-la no subsolo.
Enquanto seguiam seu caminho em silêncio, passaram pela enorme cozinha e pelas carnes defumadas que pendiam nos ganchos, deixando claro que esta era uma casa humana. Tudo estava calmo ao redor, ao contrário da mansão vampira, onde haveria um momento de preparação para a Última Refeição.
Infelizmente, concluir que a casa pertencia à outra raça não era uma confirmação de que a fêmea não estivesse sendo mantida ali... e talvez tal conclusão fosse um indício. Embora os vampiros soubessem com certeza da existência da humanidade, não havia nada além de mitos sobre vampiros infestando a periferia cultural humana... era assim que os seres com presas sobreviviam com maior facilidade. Ainda assim, de vez em quando, havia contatos inevitáveis e genuínos entre aqueles que optaram por permanecer ocultos e aqueles de olhares curiosos... e esses raros esbarrões de um contra o outro explicavam as assustadoras e fantásticas histórias humanas sobre tudo desde “fadas”, “bruxas”, “fantasmas” e “sugadores de sangue”. Na verdade, a mente humana parecia sofrer com uma necessidade paralisante de inventar coisas na ausência de provas concretas. O que fazia sentido, considerando a compreensão autorreferencial das raças do mundo e seu lugar nele: algo que não se encaixava era forçado em uma superestrutura, mesmo que isso significasse a criação de elementos “paranormais”.
E que sorte seria para uma família rica capturar evidências físicas de tais superstições efêmeras.
Especialmente, provas lindas e indefesas.
Não se sabia o que vinha sendo observado por aquela família ao longo do tempo. Que estranhezas tinham sido testemunhadas naqueles vizinhos. Quais diferenças raciais foram expostas de forma inesperada e observadas sem qualquer dificuldade, em virtude das duas propriedades comporem a mesma paisagem.
Darius amaldiçoou baixinho e pensou que era por isso que os vampiros não deviam viver tão próximos aos seres humanos. A separação era o melhor. Congregação e separação.
Ele e Tohrment procuraram por todo o primeiro andar da mansão desmaterializando-se de sala em sala, deslocando-se conforme as sombras eram projetadas pelo luar, passando por todo o mobiliário esculpido e tapeçarias sem som ou substância.
A maior preocupação deles e o motivo de não atravessarem o chão de pedra andando? Cães adormecidos. Muitas das mansões os tinham como guardas e essa era uma grande complicação que poderiam muito bem passar sem. Com sorte, se houvesse algum animal na casa, estariam enrolados aos pés da cama do chefe da família.
E o mesmo valeria para qualquer tipo de guarda pessoal.
No entanto, a sorte estava ao lado deles. Nenhum cão. Nenhum guarda. Pelo menos que tivessem visto, escutado, ou cheirado... e foram capazes de encontrar a passagem que os levaria ao andar subterrâneo.
Ambos levavam velas e acenderam os pavios, as chamas cintilando sobre os passos apressados, rudes e descuidados e pelas paredes desiguais... tudo parecia indicar que a família nunca havia feito aquela jornada subterrânea, apenas os servos.
Mais uma prova de que não era uma família de vampiros. Alojamentos subterrâneos estavam entre os mais pródigos em tais casas.
Descendo para o nível mais baixo, a pedra sob seus pés deu lugar à terra batida e o ar ficou pesado com a umidade fria. Conforme progrediam sob a grande mansão, encontravam despensas cheias de caixotes de vinho e outras bebidas, caixotes de carnes salgadas e cestas de batatas e cebolas.
Na outra extremidade, Darius esperava encontrar um segundo conjunto de escadas que os levaria a sair na superfície. Em vez disso, chegaram ao final do salão subterrâneo. Nenhuma porta. Apenas uma parede.
Observou ao redor para ver se havia pegadas sobre o solo ou rachaduras nas pedras, indicando um painel ou uma seção oculta. Nada.
Para ter certeza, ele e Tohrment correram suas mãos sobre a superfície das paredes e pelo chão.
– Havia muitas janelas nos andares superiores – Tohrment murmurou. – Mas, talvez, se fosse para mantê-la lá em cima, poderiam ter colocado cortinas. Ou será que existem quartos sem janelas?
Enquanto a dupla enfrentava o beco sem saída que haviam atingido, aquela sensação de medo, de estar em um lugar errado, inchou no peito de Darius até sua respiração ficar curta e o suor brotar sob seus braços e sua coluna. Tinha a sensação de que Tohrment estava sofrendo de um ataque similar de apreensão ansiosa, pois o macho deslocava seu peso para trás e para frente, para trás e para frente.
Darius balançou a cabeça.
– Na verdade, ela parece estar em outro lugar...
– Grande verdade, vampiro.
Darius e Tohrment se viraram enquanto desembainhavam as adagas.
Olhando para aquilo que os tinha pegado de surpresa, Darius pensou... bem, isso explica o medo.
A figura de túnica branca bloqueando a saída não era humana e nem vampira.
Era um sympatho.
CAPÍTULO 44
Enquanto Xhex esperava do lado de fora da sala de musculação, encarava suas emoções com interesse desapaixonado. Isso era, ela supôs, como olhar para o rosto de um estranho e considerar as imperfeições, as cores e os traços por nenhuma outra razão além da simples observação.
Sua ânsia por vingança foi eclipsada por uma preocupação honesta por John.
Surpresa, surpresa.
Afinal, nunca tinha imaginado ver esse tipo de fúria tão de perto, especialmente de pessoas como John. Era como se ele tivesse uma fera interior que estivesse rugindo em sua cela.
Cara, um macho vinculado não é algo com que você pode brincar.
E ela não estava se enganando. Essa era a razão pela qual ele reagiu da forma como reagiu – e também a causa do aroma apimentado que ela cheirava perto dele desde que saiu da prisão de Lash: em algum momento durante as semanas de suas férias brutais, a atração e o respeito de John por ela haviam tomado forma de uma maneira irrevogável.
Droga. Que bagunça.
Quando o som da esteira parou de repente, ela poderia apostar que Blaylock havia puxado a tomada da parede e foi bom ele fazer isso.
Xhex tentou fazer com que parasse de tentar se matar na esteira, mas quando a argumentação mostrou ser absolutamente nula, decidiu ficar de sentinela do lado de fora.
Não havia chance alguma de vê-lo correndo até se acabar. Ouvir a punição já era ruim o suficiente.
Mais à frente no corredor, a porta de vidro do escritório se abriu e o Irmão Tohrment apareceu. A julgar pelo brilho que se emanou atrás dele, Lassiter estava no centro de treinamento também, mas o anjo caído ficou para trás.
– Como está John? – Quando o Irmão se aproximou, sua preocupação estava escrita em seu rosto duro e olhos cansados e também em sua grade emocional, que estava iluminada nos setores de arrependimento.
Fazia sentido de muitas maneiras.
Xhex olhou para a porta da sala de musculação.
– Parece que ele repensou a carreira e resolveu ser maratonista. Isso ou ele apenas está tentando quebrar outra esteira.
A altura elevada de Tohr obrigou-a a inclinar a cabeça para cima e foi surpreendente observar o que havia por trás de seus olhos azuis: havia conhecimento naquele olhar, conhecimento profundo que fez com que seus próprios circuitos emocionais queimassem com suspeita. Na experiência dela, estranhos que observam você daquela maneira são perigosos.
– Como você está? – ele perguntou suavemente.
Foi estranho. Ela não tinha muito contato com o Irmão, mas sempre que seus caminhos se cruzaram, ele sempre foi particularmente... gentil. Razão pela qual ela sempre o evitava. Lidava muito melhor com dureza do que com qualquer coisa delicada.
Sinceramente, ele a deixava nervosa.
Quando ficou quieta, o rosto dele se apertou como se ela o tivesse decepcionado, mas ele não a culpava pela inadequação.
– Tudo bem – ele disse. – Não vou me intrometer.
Jesus, ela era terrível.
– Não, está tudo bem. Só não pode exigir que eu responda a isso agora.
– É justo. – Os olhos dele se estreitaram na porta da sala de musculação e ela teve a nítida impressão que ele estava tão preso do lado de fora quanto ela, excluído pelo macho que estava sofrendo do outro lado. – Então, ligou para a cozinha para me chamar?
Pegou a chave que John usou para que pudessem entrar na antiga casa do cara.
– Apenas para lhe devolver isso e dizer que houve um problema.
A grade emocional do Irmão ficou negra e vaga, todas as luzes apagadas.
– Que tipo de problema?
– Uma de suas portas de vidro está quebrada. Vai precisar de duas folhas de madeira compensada para cobrir. Conseguimos ativar outra vez o alarme de segurança, então os detectores de movimento estão ligados, mas você terá trabalho por lá. Ficarei feliz em ajudar.
Isso supondo que John acabasse com o restante das máquinas de exercícios, com os tênis de corrida, ou caísse morto.
– Qual... – Tohr limpou a garganta. – Qual porta?
– A do quarto do John Matthew.
O Irmão franziu a testa.
– Estava quebrada quando vocês chegaram lá?
– Não... apenas explodiu espontaneamente.
– Vidro não faz isso sem uma boa razão.
E ela não tinha dado uma boa razão para John Matthew?
– É verdade.
Tohr a encarou e ela o encarou de volta. O silêncio tornou-se espesso como lama. No entanto, por mais gentil e bom soldado que fosse o Irmão, Xhex não tinha nada para compartilhar com ele.
– Com quem eu falo para conseguir alguma madeira de compensado? – ela se dispôs.
– Não se preocupe com isso. E obrigado por me informar.
Quando o Irmão se virou e caminhou de volta para o escritório, ela se sentiu um inferno – o que concluiu ser mais outra conexão que tinha com John Matthew. Só que ao invés de usar uma esteira até quebrar, ela apenas queria pegar uma faca e cortar a parte de dentro dos antebraços para aliviar a pressão.
Deus, às vezes parecia uma bebê chorona, de verdade. Afinal, aqueles silícios não eram apenas para manter o seu lado sympatho sob controle, eles a ajudavam a ofuscar coisas que ela não queria sentir.
O que era quaaase noventa e nove por cento emoção.
Dez minutos depois, Blaylock colocou a cabeça para fora da porta. Seus olhos estavam focados no chão e suas emoções estavam revoltas, o que fazia sentido. Ninguém gostava de ver seu amigo se autodestruir, e ter que conversar com a pessoa que havia jogado o pobre coitado naquela queda livre não era exatamente uma felicidade.
– Ouça, John foi para o vestiário tomar uma ducha. Consegui fazer que ele parasse com a ideia de correr, mas ele... ele precisa de um pouco mais de tempo, acho.
– Certo. Vou continuar esperando por ele aqui no corredor.
Blaylock assentiu e então houve uma pausa embaraçosa.
– Vou malhar agora.
Depois que a porta se fechou, ela pegou sua jaqueta e suas armas e vagou em direção ao vestiário. O escritório estava vazio, o que significava que Tohr tinha seguido seu caminho, sem dúvida para cumprir seu papel de Homem da Manutenção com algum doggen.
E o silêncio ressonante lhe dizia que não havia mais ninguém em nenhuma das salas de aula, ginásio ou clínica.
Deslizando pela parede, sentou-se sobre o chão e apoiou seus braços nos joelhos. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos.
Deus, estava exausta...
– John ainda está lá?
Xhex acordou de repente, sua arma foi apontada direto no peito de Blaylock. Quando o cara pulou para trás, ela imediatamente travou a arma e baixou o cano.
– Desculpe, velhos hábitos são difíceis de morrer.
– Ah, sim. – O cara apontou sua toalha branca em direção ao vestiário. – John ainda está lá? Já passou mais de uma hora.
Ela ergueu o pulso e olhou para o relógio que tinha pegado em algum lugar.
– Cristo.
Xhex se colocou em pé e arrombou a porta. O som do chuveiro aberto não era muito um alívio.
– Existe outra saída que ele possa ter usado?
– Apenas na sala de musculação... mas que acaba dando neste mesmo corredor.
– Certo, vou falar com ele – ela disse, rezando para que fosse a coisa certa a fazer.
– Bom. Vou terminar meus exercícios. Ligue se precisar de mim.
Empurrou a porta, e lá dentro o lugar parecia padrão, todos os armários de metal bege separados por bancos de madeira. Seguindo o som da água caindo à direita, passou por compartimentos de mictórios e pias que pareciam solitários sem um monte de homens suados, nus e envolvidos em toalhas.
Encontrou John numa área aberta com dezenas de chuveiros e azulejos em todos os centímetros do chão, paredes e teto. Estava usando camiseta, bermuda de corrida e estava sentado encostado contra a parede, seus braços apoiados em seus joelhos, cabeça baixa, a água correndo sobre seus enormes ombros e tronco.
Seu primeiro pensamento foi de que ela própria estava exatamente na mesma posição do lado de fora.
O segundo pensamento foi que estava surpresa ao ver que ele conseguia se manter tão parado. A grade emocional dele não era a única coisa iluminada, aquela sombra atrás da grade estava queimando de angústia. Era como se duas partes dele estivessem juntas num tipo de luto, sem dúvida porque havia sofrido ou testemunhado perdas demais, todas cruéis, em sua vida... e talvez estivesse sofrendo outra agora. E o lugar onde tudo aquilo o levava emocionalmente a deixava apavorada. O denso vazio negro criado nele era tão poderoso que deformava a superestrutura da psique dele... levando-o onde ela havia estado naquela maldita sala de operações.
Levando-o à beira da loucura.
Pisando sobre a superfície azulejada do chão, a pele dela tremeu ao esbarrar com o ar frio que vinha dos sentimentos dele... e o fato é que ela estava fazendo isso outra vez. Era igual a Murhder, só que pior.
Jesus Cristo, ela era uma maldita viúva negra no que se referia a machos de valor.
– John?
Ele não olhou para cima, embora não tivesse certeza se estava ciente de que ela estava na frente dele. John estava de volta ao passado, preso por suas memórias...
Franzindo a testa, encontrou os olhos dele seguindo o caminho da água que deslizava sobre seu corpo e escorria pelo chão coberto de azulejos... até o ralo.
O ralo.
Algo com aquele ralo. Algo a ver com... Lash?
Dentro do abraço da solidão e contra o pano de fundo do som tranquilo do jato de água, ela liberou seu lado mau por uma boa finalidade: rapidamente, seus instintos sympatho mergulharam em John, penetrando ao longo de seu território físico e indo fundo em sua mente e suas lembranças.
Quando ele ergueu a cabeça e olhou para ela em choque, tudo se tornou vermelho e bidimensional, o azulejo tingiu-se de um rosa rubro. O cabelo escuro e úmido de John mudou para a cor do sangue; a água que corria parecia um champanhe rosa.
As imagens que ela captou estavam envoltas numa capa de terror e vergonha: uma escada escura num prédio parecido com aquele onde a tinha levado. John era apenas um garotinho pré-transição sendo forçado por um humano fétido...
Oh. Deus.
Não.
Os joelhos da Xhex cederam e ela cambaleou – então apenas deixou-se cair ao chão, aterrissando no azulejo liso tão duro que seus ossos e dentes se abalaram.
Não... não John, ela pensou. Não quando ainda era indefeso, inocente e tão sozinho. Não quando estava perdido no mundo humano, batalhando para sobreviver.
Não ele. Não assim.
Com seu lado sympatho liberado e seus olhos sem dúvida brilhando em vermelho, eles se sentaram ali encarando um ao outro. Ele sabia o que ela tinha visto e odiava seu conhecimento com uma fúria tal que ela, de maneira sábia, manteve qualquer pena para si mesma. No entanto, ele não parecia ressentido que ela o tivesse invadido. Era mais como se desejasse muito não ter dividido aquilo com ninguém.
– O que Lash tem a ver com isso? – disse com voz rouca. – Pois ele está por toda parte em sua mente.
Os olhos de John voltaram-se para o ralo no centro do local outra vez e ela teve a impressão de que ele estava vendo sangue acumulando-se em volta da tampa de aço inoxidável. Sangue de Lash.
Xhex estreitou os olhos, a história passada tornava-se muito previsível: Lash havia descoberto o segredo de John. De alguma maneira. E ela não precisava de seu lado sympatho para saber o que aquele desgraçado havia feito com uma informação como aquela.
Um locutor de beisebol procuraria menos plateia.
Quando o olhar de John voltou-se para ela, sentiu uma perturbadora comunhão com ele. Sem barreiras, sem preocupações sobre ser vulnerável. Mesmo estando completamente vestidos, cada um estava nu diante do outro.
Ela sabia muito bem que não encontraria isso nunca em nenhum outro macho. Ou em qualquer outra pessoa. Por sua vez, ele sabia, sem palavras, tudo o que tinha acontecido com ela e tudo o que aquele tipo de experiência gerava. E ela sabia o mesmo sobre ele.
E talvez aquela sombra em sua grade emocional fosse uma espécie de bifurcação em sua psique causada pelo trauma que tinha passado. Talvez sua mente e sua alma tivessem se reunido e decidido eliminar o passado e colocá-lo no fundo de seu sótão mental e emocional. Talvez fosse por isso que as duas partes estivessem em um movimento tão vívido.
Fazia sentido. Assim como a vingança que estava sentindo. Afinal, Lash esteve intimamente envolvido nos dois conjuntos de erros, no dele e no dela.
Informações como aquelas sobre John nas mãos erradas? Era quase tão ruim quanto o horror que havia realmente acontecido, porque você revive a maldita história toda vez que mais alguém fica sabendo. Razão pela qual Xhex nunca falava sobre seu tempo na colônia com seu pai, ou sobre aquela maldita clínica humana... ou...
John ergueu seu dedo indicador e deu tapinhas ao lado de seu olho.
– Os meus estão vermelhos? – ela murmurou. Quando ele assentiu, ela esfregou o rosto. – Desculpe. Provavelmente vou precisar de outro par de silícios.
Quando ele fechou a água, ela deixou cair as mãos.
– Quem mais sabe? Sobre o que aconteceu com você?
John franziu a testa. Então, assinalou com os lábios: Blay. Qhuinn. Zsadist. Havers. Um terapeuta. Quando ele balançou a cabeça, ela entendeu isso como sendo o fim da lista.
– Não vou dizer nada a ninguém.
Os olhos dela percorreram seu corpo imenso desde aqueles ombros até seus bíceps poderosos e aquelas coxas tremendas – e desejou que ele tivesse aquele tamanho lá atrás naquela escada suja. Pelo menos, não era mais o mesmo de quando foi ferido – se bem que isso era verdade apenas por fora. Por dentro, ele tinha todas as idades que havia vivido, o bebê que havia sido abandonado, a criança que ninguém quis, o garoto em fase de pré-transição sozinho no mundo... e agora o macho adulto.
Ele era um ótimo guerreiro no campo de batalha, um amigo leal e, considerando o que tinha feito àquele redutor naquela mansão e o que sem dúvida queria fazer com Lash, era um inimigo muito perigoso.
E a isso se somava um problema: em sua opinião, era ela quem deveria matar o filho do Ômega.
Não que precisassem falar sobre isso agora.
Quando a umidade dos azulejos molhou sua calça e a água escorreu de John, ficou surpresa com o que queria fazer.
De muitas maneiras, não fazia sentido, e com certeza não era uma ideia brilhante. Mas a lógica não era importante naquele momento.
Xhex se deslocou para frente e colocou as palmas das mãos no chão escorregadio do chuveiro. Deslocando-se devagar, moveu a mão, o joelho, a mão, o joelho, indo na direção dele.
Ela percebeu quando ele sentiu o cheiro dela.
Pois por baixo daquela bermuda esportiva ensopada, seu membro se contraiu e endureceu.
Quando estava cara a cara com ele, observou atentamente sua boca.
– Nossas mentes já estão unidas. Quero que nossos corpos sigam no mesmo sentido.
Com isso, inclinou-se e levantou a cabeça. Pouco antes de beijá-lo, ela fez uma pausa, mas não porque estivesse preocupada se iria afastá-la – ela sabia pelo aroma apimentado que John não estava interessado em recuar.
– Não, você entendeu tudo errado, John. – Lendo as emoções dele, negou com a cabeça. – Você não é metade do homem que poderia ser por causa do que foi feito. Você é duas vezes mais do que qualquer pessoa simplesmente porque sobreviveu.
Sabe? A vida o coloca em lugares que nunca imaginou estar.
Sob nenhuma circunstância, nem mesmo nos piores pesadelos que seu subconsciente havia exibido, John havia sequer pensado que seria capaz de lidar com Xhex se ela soubesse o quanto ele sofreu quando era jovem.
A questão era que não importava o quanto seu corpo tinha se tornado grande ou forte, isso nunca encobriu a realidade do quanto havia sido fraco. E a ameaça de que aqueles que ele respeitava descobrissem trouxe aquela fraqueza à tona não apenas uma vez, mas várias.
E lá estava ele novamente com seus demônios expostos.
E quanto ao seu banho de duas horas? Ainda estava morrendo por dentro por ela ter sido ferida daquele jeito... Era tão doloroso pensar naquilo, horrível demais para não se demorar. E adicione sua necessidade como macho vinculado de protegê-la e mantê-la em segurança. E o fato de que sabia exatamente o quão desagradável é ser vitimado daquela maneira.
Se apenas a tivesse encontrado mais cedo... se apenas tivesse trabalhado mais duro...
Sim, mas ela tinha se libertado. E fez isso sozinha. Não foi ele quem a libertou – pelo amor de Deus... esteve com ela no maldito quarto onde tinha sido estuprada e nem mesmo soube que ela estava lá.
Eram coisas demais para lidar, todas as camadas e interseções faziam sua cabeça zunir ao ponto de sentir como se seu cérebro fosse um helicóptero prestes a levantar voo, para o alto e avante, para nunca mais voltar.
A única coisa que o mantinha com os pés no chão era a perspectiva de matar Lash.
Enquanto aquele desgraçado estivesse lá fora, respirando, John tinha um foco para manter sua estabilidade mental. Matar Lash era sua única ligação à sanidade e ao propósito, uma proteção para que seu ser não enferrujasse.
Porém, se fracassasse mais uma vez, se não vingasse sua fêmea, estaria tudo acabado.
– John – disse Xhex, num evidente esforço de tirá-lo de seu estado de pânico.
Focando-se nela, encarou seus olhos vermelhos e brilhantes e lembrou-se de que era uma sympatho. O que significava que podia escavar dentro dele e acionar todos os seus alçapões interiores, liberando seus demônios apenas para observá-los dançar. Só que ela não fez isso, fez? Adentrou nele, sim, mas apenas para entender onde ele estava. E ao observar suas partes obscuras, não tinha se afastado e apontado um dedo inquisidor ou recuado enojada.
Ao invés disso, se aproximou delicadamente, dando a entender que queria beijá-lo.
Os olhos de John observaram seus lábios.
Quem diria, ele podia sim aguentar um pouco daquele tipo de conexão. Palavras não eram suficientes para aplacar a autoaversão que sentia, mas as mãos dela em sua pele, sua boca na dele, seu corpo contra o seu... aquilo, sem uma palavra, era o que ele precisava.
– É isso mesmo – ela disse, seus olhos ardendo, e não apenas por causa do lado sympatho. – Você e eu precisamos disso.
John levantou e colocou suas mãos frias e molhadas sobre a face dela. Então olhou ao redor. Aquela poderia ser a hora, mas não era o lugar.
Não ia fazer amor com ela no piso duro.
Venha comigo, fez com os lábios, levantando-se e puxando-a para seu lado.
Sua ereção estava evidente na frente de sua bermuda esportiva quando deixaram o vestiário, o desejo de possuí-la rugia em seu sangue, mas esse desejo foi controlado pela necessidade de proporcionar algo delicado a Xhex ao invés da violência que ela experimentou.
Ao invés de se dirigir para o túnel de volta à casa principal, ele os levou para a direita. De modo algum iria para seu quarto com ela debaixo do braço e ostentando uma ereção do tamanho de uma viga. Além do mais, estava encharcado.
Muita coisa para explicar para a plateia permanente que a mansão oferecia.
Próximo ao vestiário, mas não conectado a ele, havia uma sala adjacente com mesas de massagens e uma banheira de hidromassagem no canto. O lugar também tinha um monte de colchonetes azuis que nunca foram usados desde que haviam sido colocados ali – os Irmãos quase não tinham tempo para pugilismo, quanto mais para brincar de bailarina com seus preciosos tendões e glúteos.
John reforçou a porta fechada com uma cadeira de plástico e virou-se para encarar Xhex. Ela estava andando em volta da sala. Na opinião dele, seu corpo flexível e passos suaves eram melhores que um grande show de striptease.
Aproximando-se da lateral da porta, apagou as luzes.
O sinal branco e vermelho de saída em cima da porta criou uma piscina de luz fraca que seu corpo dividiu em duas, sua sombra era uma alta e escura divisão que se estendia por todo o piso azul até os pés de Xhex.
– Deus, eu quero você – ela disse.
Não precisaria dizer aquilo duas vezes. Chutando os sapatos para longe, puxou sua camiseta sobre sua cabeça e deixou cair sobre os colchonetes com uma batida. Então, colocou seus polegares na cintura de bermuda e a desceu sobre suas coxas. Seu membro se libertou e se elevou ereto diante dele. O fato de que estava apontado para ela como uma varinha de condão não era uma grande surpresa – tudo, desde seu cérebro, sangue, até o bater de seu coração, estava focado na fêmea parada a três metros de distância dele.
Mas não ia pular sobre ela e começar a se movimentar com força. Não. Nem mesmo se aquilo tornasse suas bolas azuis como um Smurf...
Seus pensamentos deixaram de fazer sentido quando as mãos dela se dirigiram para a cintura da blusa e, com um movimento elegante, deslizou a peça de roupa sobre seu tronco e cabeça. Embaixo disso, não havia nada além de sua linda pele suave e seus altos e firmes seios.
Quando o perfume dela surgiu do outro lado da sala e ele começou a ofegar, os dedos ágeis de Xhex começaram a abrir o laço de sua calça e o fino algodão verde caiu rapidamente em seus tornozelos.
Oh... meu Deus, ela estava gloriosamente despida para ele, e as linhas impressionantes de seu corpo eram maravilhosas: apesar de terem feito sexo duas vezes, ambas foram rápidas e quentes e não teve a chance de olhar para ela direito...
John piscou com força.
Por um momento, tudo que conseguia enxergar eram os hematomas em seu corpo, especialmente aqueles dentro de suas coxas. Saber agora que ela não os tinha conseguido por causa de luta corporal...
– Não pense nisso, John – ela disse roucamente. – Eu não estou pensando e você também não deveria. Simplesmente... não pense nisso. Ele já tirou muito de nós dois.
A garganta dele ficou tensa com um rugido de vingança, que tratou de abafar apenas porque sabia que ela estava certa. Com grande força de vontade, decidiu que aquela porta atrás dele, aquela que tinha bloqueado com a cadeira, ia manter do lado de fora não apenas as pessoas da mansão, mas seus fantasmas e erros também.
Haveria tempo depois para igualarem o placar.
Você é tão linda, disse com os lábios.
Mas claro que ela não conseguia ver seus lábios.
Então, teria que mostrar isso a ela.
John deu um passo à frente e outro e outro. E não era apenas ele indo em direção a ela. Xhex o encontrou no meio do caminho, a forma dela foi envolvida pela sombra lançada pelo corpo dele, mas mesmo assim, aquela era a única coisa que ele via.
Quando se encontraram, o peito dele estava pulsando e seu coração. Amo você, ele fez com os lábios no pedaço escuro que havia produzido sob a luz.
Alcançaram um ao outro no mesmo momento: ele foi direto para o rosto de Xhex. Ela colocou as mãos nas costelas dele. Suas bocas completaram a jornada no ar parado, elétrico, seus lábios se trancaram, suave contra suave, calor contra calor. Puxando-a contra seu peito nu, John envolveu seus braços grossos ao redor dos ombros dela e a segurou apertado enquanto aprofundava o beijo – e ela estava logo ali com ele, deslizando as palmas de suas mãos nas laterais de seu corpo e as escorregando pela parte inferior de suas costas.
Seu pênis dobrou-se entre eles, a fricção entre sua barriga e a dela enviou dardos de calor que subiam através de sua coluna. Mas ele não estava com pressa. Com empurrões preguiçosos, seus quadris se moveram para frente e para trás, acariciando-a com sua ereção enquanto movia suas mãos pelos braços dela e então para sua cintura.
Empurrando profundamente com a língua, arrastou uma das mãos até o cabelo curto que havia na nuca dela e deixou a outra cair na parte de trás de sua coxa. A perna dela subiu com o puxão gentil dele, os músculos macios flexionando...
Com um ágil movimento, ela saltou, pulando em cima dele e enlaçando a outra perna ao redor dos quadris dele. Quando seu membro tocou algo quente e úmido, ele gemeu e os levou para o chão, segurando-a enquanto mergulhavam nos colchonetes.
John quebrou o selo do beijo e recuou o suficiente para que pudesse correr sua língua pelo lado da garganta dela. Travando-a, sugou as linhas de seu pescoço e seguiu para baixo com suas presas, que vibrava com os impulsos de sua ereção. Enquanto descia, os dedos dela se enterravam no cabelo dele e o segurava contra sua pele, movendo-o na direção de seus seios.
Recuando, ergueu-se sobre ela e traçou com os olhos a maneira como seu corpo era destacado pela luz brilhante do sinal de saída. Seus mamilos estavam firmes, suas costelas estavam pulsando forte e os músculos de seu peitoral bombeavam enquanto ela movimentava os quadris. Entre suas coxas, seu sexo liso fez com que abrisse a boca em um assobio silencioso...
Sem aviso, ela estendeu a mão e a colocou sobre seu pênis.
O contato o fez jogar-se sobre seus braços e apoiar-se sobre as palmas das mãos.
– Caramba, você é lindo – ela disse num murmúrio.
A voz dela o colocou em ação e se inclinou para frente, libertando seu membro da mão dela e posicionando-se de modo a ficar ajoelhado entre suas coxas. Baixando a cabeça, cobriu um de seus mamilos com a boca e começou a excitá-la com a língua.
O gemido de Xhex quase o fez gozar ali mesmo e John teve que congelar seu corpo para recuperar o controle. Quando a maré de formigamento retrocedeu o suficiente, ele recomeçou a sugá-la... e deixou suas mãos flutuarem devagar pelas costelas dela, sua cintura e seus quadris.
Num movimento típico de Xhex, foi ela quem o colocou em seu sexo.
Xhex cobriu uma das mãos dele com a sua e a colocou exatamente onde os dois queriam que estivesse.
Quente. Sedoso. Escorregadio.
O orgasmo em sua ereção foi liberado no instante que seus dedos deslizaram e foram parar diretamente sobre a entrada de onde ele estava morrendo de vontade de penetrar: não havia absolutamente nada segurando a liberação e ela riu enquanto ele jorrava em suas pernas.
– Gosta de me ver assim? – ela murmurou.
Ele olhou em seus olhos, e ao invés de concordar, levou a mão até sua boca. Quando ele estendeu sua língua e deslizou entre seus lábios, ela também estremeceu, seu corpo se levantou dos colchonetes, seus seios se ergueram, suas coxas se abriram ainda mais.
Com as pálpebras semicerradas, manteve seu olhar fixado no dela enquanto plantava suas palmas dos dois lados de seus quadris e se abaixava em direção ao seu sexo.
Poderia ter continuado com aqueles beijos suaves. Poderia ter mostrado mais sensibilidade provocando-a com a língua e a ponta dos dedos.
Dane-se tudo isso.
Com uma necessidade primitiva e dolorosa, abocanhou seu núcleo, sugando-a para dentro dele, tomando-a profundamente, engolindo-a. Havia um pouco de seu próprio orgasmo dentro dela e John o provou junto com o mel de Xhex – e o macho vinculado nele adorou a combinação.
Sorte dele. No momento em que terminassem com aquela sessão, sua essência apimentada a teria envolvido completamente, por dentro e por fora.
Enquanto ele acariciava, lambia e penetrava, sentiu uma das pernas dela ser lançada sobre seu ombro, e então Xhex passou a comandar os movimentos contra seu queixo, lábios e boca, acrescentando mais à magia, levando-o a impulsioná-la mais forte.
Quando ela chegou ao orgasmo, disse seu nome. Duas vezes.
E John ficou feliz que, apesar de não ter voz, seus ouvidos funcionavam perfeitamente.
CONTINUA
CAPÍTULO 32
John Matthew acordou, sentiu Xhex ao seu lado e entrou em pânico.
Sonho... Aquilo era um sonho?
Sentou-se lentamente, e quando sentiu o braço dela escorregar em seu peito em direção à barriga, conseguiu pegá-lo antes que atingisse seus quadris. Deus, aquilo que evitava com cuidado estava quente, pesado e...
– John? – ela disse no travesseiro.
Sem pensar, envolveu-se nela e alisou seus cabelos curtos. No instante em que fez isso, ela pareceu cair no sono outra vez.
Um olhar rápido no relógio lhe avisou que eram quatro da tarde. Eles dormiram por horas, e se fosse guiar-se pelo ronco em seu estômago, Xhex deveria estar morrendo de fome também.
Quando se certificou de que tinha apagado outra vez, John libertou-se de seu abraço e andou ao redor silenciosamente. Escreveu um bilhete para ela antes de vestir suas calças de couro e sua camiseta.
Com os pés descalços, alcançou o corredor. Tudo estava tranquilo, pois não havia mais treinamento ali, o que era uma maldita vergonha. Deveria haver gritos dos aprendizes vindos do ginásio, vozes do mestre na sala de aula e batidas dos armários sendo fechados nos vestiários.
Ao invés disso, o silêncio.
Mas percebeu que ele e Xhex não estavam sozinhos.
Quando chegou à porta de vidro do escritório, congelou com a mão sobre a maçaneta.
Tohr estava dormindo na mesa... bem, em cima dela. Sua cabeça estava apoiada em seu antebraço e seus ombros estavam caídos.
John estava tão acostumado a sentir raiva do cara que foi um choque não ter nada do gênero acendendo dentro dele. Em vez disso... sentiu uma esmagadora tristeza.
Tinha acordado ao lado de Xhex naquela manhã.
Mas Tohr nunca, jamais teria isso novamente. Nunca mais voltaria a alisar os cabelos de Wellsie. Nunca mais iria à cozinha para trazer-lhe algo para comer. Nunca iria abraçá-la ou beijá-la novamente...
E ainda tinha perdido um bebê ao longo desse caminho.
John abriu a porta e esperou que o Irmão acordasse de um sobressalto, mas Tohr não fez isso. O macho estava desmaiado. Contudo, aquela exaustão fazia sentido. Estava tentando recuperar sua forma, comendo e malhando vinte e quatro horas, sete dias por semana, e o esforço estava começando a mostrar resultado. Suas calças já não estavam mais caindo e suas camisas não estavam mais tão largas. Mas, evidentemente, o processo era desgastante.
Onde estava Lassiter?, John se perguntou enquanto passava pela mesa e pelo armário. O anjo normalmente andava colado no Irmão.
Esquivando-se pela porta escondida entre as prateleiras de suprimentos, atravessou o túnel em direção à casa. Enquanto avançava, as luzes fluorescentes no teto se estendiam na frente dele, dando a impressão de um caminho predestinado – o que, levando em conta como as coisas estavam, era um conforto. Quando chegou a um conjunto de degraus baixos, subiu, digitou um código e subiu mais um pouco. Emergindo no saguão de entrada, ouviu a televisão na sala de bilhar e percebeu que era o lugar onde o anjo estava.
Ninguém na casa estaria assistindo à Oprah. Não sem uma arma apontada na cabeça.
A cozinha estava vazia, sem dúvida, os doggen estavam comendo algo em seus próprios aposentos antes de começarem a preparar a Primeira Refeição e se ocuparem da casa. O que era muito bom. Ele realmente não queria ajuda.
Com movimentos rápidos, pegou uma cesta da despensa e a encheu. Roscas salgadas. Garrafa térmica com café. Jarra de suco de laranja. Frutas cortadas. Pão doce. Pão doce. Pão doce. Caneca. Caneca. Copo.
Estava apelando para muita caloria e rezando para que ela gostasse de doces. Então, apenas por prevenção, fez um sanduíche de peru. E por um motivo diferente, fez também um de presunto e queijo.
Avançando pela sala de jantar, voltou para a porta debaixo da escadaria.
– Muita comida para dois – disse Lassiter apontando para baixo com seu sarcasmo de sempre.
John se virou. O anjo estava na porta de entrada da sala de bilhar, encostado contra o arco ornamentado. Tinha uma bota cruzada sobre a outra e os braços cruzados no peito. Seus piercings dourados brilhavam, dando a impressão de que havia olhos por toda parte, olhos que não perdiam nada.
Lassiter sorriu um pouco.
– Então, está vendo as coisas de um ângulo diferente agora, não está?
Pouco tempo antes da noite anterior John teria lançado um dane-se como resposta, mas agora estava inclinado a concordar com a cabeça. Especialmente porque achava que as fissuras no concreto do corredor foram causadas pela dor que Tohr tinha sentido.
– Bom – disse Lassiter. – Já era hora. Oh, e eu não estou com ele agora porque todo mundo precisa ficar sozinho de vez em quando. Além do mais, tenho que ter a minha dose de Oprah.
O anjo afastou-se, seus cabelos loiros e negros balançavam.
– E pode calar a boca. Oprah é maravilhosa!
John balançou a cabeça e viu-se sorrindo. Lassiter podia ser um metrossexual pé no saco, mas trouxe Tohr de volta à Irmandade e isso valia alguma coisa.
Atravessou o túnel. Saiu do armário. Entrou no escritório onde Tohr ainda estava dormindo.
Quando John se aproximou da mesa, o Irmão acordou com um espasmo no corpo inteiro, levantando a cabeça de repente. Metade de seu rosto estava amassado para dentro, como se alguém tivesse jogado nele um spray de goma de passar e passado o ferro de uma maneira muito desleixada.
– John... – ele disse com voz rouca. – Oi. Você precisa de alguma coisa?
John enfiou a mão na cesta e tirou o sanduíche de queijo e presunto. Colocou-o sobre a mesa e o empurrou na direção do macho.
Tohr piscou como se nunca tivesse visto duas fatias de pão de centeio com um pouco de recheio antes.
John acenou com a cabeça. Coma, assinalou com a boca.
Tohr se aproximou e colocou a mão no sanduíche.
– Obrigado.
John balançou a cabeça, as pontas dos dedos se demorando sobre a superfície da mesa. Sua despedida foi uma batida rápida de seus dedos. Havia muito a ser dito no pouco tempo que tinha e sua grande preocupação era que Xhex não acordasse sozinha.
Quando alcançou a porta, Tohr disse:
– Estou realmente muito feliz que você a tenha de volta. Muito feliz mesmo.
Quando as palavras flutuaram até ele, os olhos de John se fixaram naquelas rachaduras no corredor. Concluiu que aquilo tinha sido obra dele. Se Wrath e os Irmãos tivessem aberto sua porta com más notícias sobre sua fêmea, teria reagido da mesma maneira que Tohr.
Totalmente acabado. E, em seguida, viveria um grande inferno.
Por cima do ombro, John olhou para o rosto pálido do homem que tinha sido seu salvador, seu mentor... o mais próximo do pai que nunca conheceu. Tohr tinha ganhado peso, mas seu rosto ainda estava vazio e talvez isso nunca mudasse, independente de quantas refeições comesse.
Enquanto os olhares se encontravam, John teve a sensação de que a parceria deles tinha sido muito maior do que apenas a soma dos anos em que conheciam um ao outro.
John colocou a cesta no chão aos seus pés.
Vou sair com Xhex esta noite.
– É?
Vou mostrar a ela onde cresci.
Tohr engoliu em seco.
– Você quer as chaves da minha casa?
John recuou. Disse aquilo apenas para informar o cara sobre o que estava acontecendo com ele, um tipo de contato para tentar remendar a porcaria que tinha acontecido antes.
Não esperava levá-la até lá...
– Vá. Seria bom para você dar uma olhada. O doggen passa por lá apenas uma vez por mês, talvez duas. – Tohr passou e puxou uma das gavetas da mesa. Quando tirou um chaveiro, limpou a garganta. – Aqui.
John pegou as chaves e fechou os dedos ao redor delas, sentindo a vergonha apertar seu peito. Ultimamente, esteve ocupado em ignorar o cara e, mesmo assim, o Irmão se comportava como homem e lhe oferecia algo muito difícil para ele.
– Estou feliz por você e Xhex terem encontrado um ao outro. Faz todo um sentido cósmico, faz mesmo.
John colocou as chaves no bolso para liberar a mão:
Não estamos juntos.
O sorriso que surgiu rapidamente no rosto do sujeito parecia antigo.
– Sim, vocês estão. Vocês estão destinados a ficarem juntos.
Jesus, pensou John, achando que o cheiro de sua vinculação era óbvio. Ainda assim, não havia razão para tratar com todos os “porquês” que envolviam a união deles.
– Então, você vai ao Orfanato Nossa Senhora? – Quando John assentiu, Tohr abaixou e pegou um saco de lixo. – Leve isso com você. É o dinheiro dos narcóticos confiscados naquela casa. Blay trouxe de volta. Imagino que poderia usá-lo.
Quando Tohr se levantou, deixou o saco sobre a mesa e pegou o sanduíche, retirando a embalagem plástica e dando uma mordida.
– Bom trabalho com a maionese – murmurou. – Nem muito. Nem pouco. Obrigado.
Tohr se dirigiu para o armário.
John assobiou baixinho e o Irmão parou, mas não se virou.
– Tudo bem, John. Não precisa dizer nada. Basta se manter a salvo lá fora hoje, certo?
Com isso, Tohr saiu do escritório, deixando John sozinho num rastro de bondade e dignidade que esperava poder produzir um dia.
Enquanto a porta do armário se fechava pensou... que gostaria de ser como Tohr.
Saindo para o corredor, achou engraçado ter aquilo passando por sua cabeça outra vez e este retorno era do tipo que corrigia o mundo: desde que tinha conhecido o cara, fosse pelo tamanho do Irmão, ou por sua inteligência, ou pela maneira como tratava sua fêmea, ou pela maneira como lutava, ou até mesmo pelo som profundo de sua voz... John queria ser como Tohr.
Isso era bom.
Isso era... certo.
Enquanto caminhava até a sala de recuperação, não se sentia exatamente ansioso pela programação noturna. Afinal, o passado era muito melhor quando permanecia enterrado... especialmente o seu, porque fedia.
Mas a questão era que tinha uma chance maior de passar mais tempo com Xhex após arrancá-la de Lash naquele estado. Ela precisaria de outra noite, talvez duas, antes de recuperar sua força plena. E precisaria se alimentar novamente, pelo menos mais uma vez.
Assim, saberia onde ela estava e a manteria ao seu lado durante a noite.
Não importava no que Tohr acreditava, John não estava enganando a si próprio. Mais cedo ou mais tarde, ela fugiria e ele não seria capaz de detê-la.
No Outro Lado, Payne caminhava ao redor do Santuário, com os pés descalços sobre a grama verde e macia, sentindo o perfume das madressilvas e jacintos.
Não havia dormido nem sequer por uma hora desde que sua mãe a tinha reanimado, e embora aquilo em princípio parecesse estranho, não pensava muito a respeito. Simplesmente era assim.
Parecia mais do que provável que seu corpo tivesse tido descanso suficiente para toda uma vida.
Quando passou pelo Templo do Primaz, não entrou. Fez a mesma coisa na entrada do pátio de sua mãe – era muito cedo para a chegada de Wrath e seu treino com ele era o único motivo para estar ali.
Porém, quando chegou ao retiro, abriu uma brecha na porta, embora não pudesse dizer o que a motivou para girar a maçaneta e ficar parada por um período de tempo na soleira.
As tigelas de água que as Escolhidas haviam usado ao longo do tempo para testemunhar os acontecimentos que aconteciam do Outro Lado estavam alinhadas de forma perfeita nas várias mesas, os rolos de pergaminho e canetas de pena estavam alinhados da mesma maneira, prontos para o uso.
Um brilho chamou sua atenção e caminhou até sua origem. A água em uma das bacias de cristal estava se movendo em círculos cada vez mais lentos, como se tivessem acabado de utilizar a coisa.
Ela olhou ao redor.
– Olá?
Não houve resposta, apenas um cheiro suave de limão, que sugeria que No’One havia passado por ali recentemente com seus panos de limpeza. O que, na verdade, era um pouco de desperdício de tempo. Não havia poeira, gordura ou qualquer tipo de sujeira que precisasse ser retirada. Mas No’One fazia parte da grande tradição das Escolhidas, não fazia?
Nada a fazer exceto trabalho inútil que não tinha muito propósito.
Quando Payne se virou para ir embora e passou por todas as cadeiras vagas, o sentimento de fracasso de sua mãe era tão predominante quanto o silêncio que abundava.
Na verdade, ela não gostava da fêmea. Mas havia uma triste realidade para todos os planos que acabaram dando em nada: criar um programa de melhoramento genético de maneira a deixar a raça mais forte. Enfrentar o inimigo no campo de batalha e vencer. Ter muitos filhos servindo-a com amor, obediência e alegria.
Onde estava a Virgem Escriba agora? Sozinha. Sem adorações. Detestada.
E era ainda menos provável que as próximas gerações seguissem seus caminhos, considerando a maneira pela qual tantos pais tinham se afastado das tradições.
Deixando a sala vazia, Payne saiu para a luz difusa e leitosa e...
Descendo pelo espelho d’água, uma forma amarela brilhante se moveu e passou a dançar como uma tulipa na brisa.
Payne caminhou em direção à figura, e enquanto se aproximava, chegou à conclusão de que Layla tinha enlouquecido.
A Escolhida estava cantando uma música que não tinha letra, o corpo dela se movia num ritmo sem música, seu cabelo balançava ao redor como uma bandeira.
Foi a primeira e única vez que uma fêmea não usava um coque da maneira como todas as Escolhidas usavam... pelo menos até onde Payne tinha visto.
– Minha irmã! – disse Layla, hesitante. – Perdoe-me.
Seu sorriso estava mais brilhante do que o amarelo de sua túnica e seu perfume estava mais forte do que nunca, com um toque de canela no ar, tão notável quanto sua voz adorável.
Payne encolheu os ombros.
– Não há nada para perdoar. Na verdade, sua música é agradável aos ouvidos.
Os braços de Layla retomaram seu elegante balanço.
– Está um lindo dia, não?
– Certamente. – Vindo do nada, Payne sentiu uma pontada de medo. – Seu humor está muito melhor.
– Está sim! – A Escolhida rodopiou ao redor, apontando o pé em um lindo arco antes de saltar no ar. – Na verdade, está um dia adorável!
– O que a agradou tanto? – Embora Payne soubesse a resposta. Mudanças de disposição, afinal de contas, raramente eram espontâneas... a maioria exigia um estímulo.
Layla diminuiu o ritmo de sua dança, seus braços e cabelos flutuaram para baixo e descansaram. Enquanto seus dedos elegantes se erguiam até sua boca, parecia ter perdido as palavras.
Encontrou um serviço adequado, Payne pensou. Sua experiência como uma ehros já não era mais apenas uma teoria.
– Eu... – O rubor em suas faces era vibrante.
– Não diga mais nada, apenas saiba que estou feliz por você – murmurou Payne e isso era uma grande verdade. Mas havia uma parte dela que se sentia curiosamente desanimada.
Agora era apenas ela e No’One que estavam sem uso? Parecia que sim.
– Ele me beijou – disse Layla, olhando para o espelho d’água. – Ele... colocou sua boca sobre a minha.
Com graça, a Escolhida sentou na borda de mármore e deslizou a mão ao longo da água. Depois de um momento, Payne se juntou a ela, porque às vezes é melhor sentir algo, qualquer coisa. Mesmo que fosse uma dor.
– Você gostou, não é?
Layla encarou seu próprio reflexo, seus cabelos loiros escorrendo pelos ombros até atingir a superfície prateada da piscina.
– Ele foi... um fogo dentro de mim. Uma grande queimação se espalhando que... me consumiu.
– Então, você não é mais virgem.
– Ele nos deteve após o beijo. Disse que queria que eu tivesse certeza. – O sorriso sensual que surgiu no rosto da fêmea era um eco evidente da paixão. – Eu tinha certeza e ainda tenho. Então, é ele. Na verdade, seu corpo de guerreiro estava pronto para mim. Faminto por mim. Ser desejada dessa maneira foi um presente além do esperado. Pensei que... o cumprimento da minha educação era tudo que eu buscava, mas agora sei que há muito mais esperando por mim do Outro Lado.
– Com ele? – Payne murmurou. – Ou através do exercício de seu dever?
Isso causou um profundo franzir na testa de Layla.
Payne assentiu.
– Presumo que aquilo que busca seja mais sobre ele do que sobre a sua posição.
Houve uma longa pausa.
– Tal paixão entre nós é certamente um indicativo de um destino, não é?
– Não tenho opinião formada sobre isso. – Sua experiência com o destino a levou a um brilhante e sangrento momento de atividade... seguido por uma inanição generalizada. Não era capaz de se pronunciar a respeito do tipo de paixão que Layla se referia.
Ou festejá-la.
– Você me condena? – Layla sussurrou.
Payne ergueu os olhos para a Escolhida e pensou naquela sala vazia, todas aquelas mesas vagas e as gélidas bacias largadas por mãos bem treinadas. Layla estava alegre agora, firmada em coisas que poderiam acontecer fora da vida de Escolhida, parecia outra inevitável deserção. E isso não era uma coisa ruim.
Estendeu a mão e tocou o ombro da outra fêmea.
– Nem um pouco. Na verdade, estou feliz por você.
O prazer tímido de Layla transformou-a de bela a algo próximo de tirar o fôlego.
– Estou tão feliz de compartilhar isso com você. Estou prestes a explodir e não há ninguém... de verdade... com quem conversar.
– Pode sempre conversar comigo. – Afinal, Layla nunca a julgou e estava muito inclinada a conceder à fêmea a mesma graciosa aceitação. – Vai voltar em breve?
Layla assentiu.
– Ele disse que eu poderia voltar a encontrá-lo em sua... como foi que ele mencionou? Próxima noite de folga. E assim o farei.
– Bem, você deve manter-me informada. Na verdade... estarei interessada em ouvir sobre como você vai proceder.
– Obrigada, irmã. – Layla cobriu a mão de Payne, um brilho de lágrimas se formando nos olhos da Escolhida. – Estive tanto tempo sem servir e isto... isto é o que eu sempre desejei. Eu me sinto... viva. –
Bom para você, minha irmã. Isso é... muito bom.
Com um sorriso final de reafirmação, Payne virou-se e se afastou da fêmea. Enquanto caminhava de volta para os alojamentos, viu-se acariciando aquela dor que se formou no centro de seu peito.
Até onde ela sabia, Wrath não chegaria rápido o suficiente.
CAPÍTULO 33
Xhex acordou com o perfume de John Matthew.
Com seu perfume e com o cheiro de café fresco.
Quando suas pálpebras se abriram, seus olhos o encontraram na escura sala de recuperação. Estava de volta à cadeira que antes havia deixado, com o tronco inclinado enquanto colocava o café de uma garrafa térmica verde escura em uma caneca. Havia colocado suas calças de couro e sua camiseta, mas seus pés estavam descalços.
Quando virou-se na direção dela, congelou, suas sobrancelhas se ergueram. E embora o café estivesse a caminho de sua boca, parou e imediatamente o estendeu para que ela o tomasse.
Cara, aquilo o classificava como um homem de poucas palavras.
– Não, por favor – ela disse. – É seu.
Ele fez uma pausa como se considerando se argumentava ou não. Mas então colocou a porcelana em seus lábios e bebeu.
Sentindo-se um pouco mais estável, Xhex afastou as cobertas e deslizou as pernas debaixo delas. Quando se colocou em pé, sua toalha caiu e ela ouviu John respirar com um assobio.
– Oh, desculpe – murmurou, curvando-se e agarrando o tecido felpudo.
Não podia culpá-lo por não querer espiar a cicatriz que ainda estava se curando ao longo da parte inferior de seu ventre. Não era exatamente o que se precisava ver logo antes do café da manhã.
Envolvendo-se na toalha, encaminhou-se lentamente para o banheiro, usou as instalações e lavou seu rosto. Seu corpo estava se recuperando bem, sua coleção de machucados estava desaparecendo, sentia suas pernas mais fortes sob seu peso. E, graças ao descanso e de ter se alimentado dele, suas dores não eram mais tão ruins, apenas mais uma série de vagos desconfortos.
Quando saiu do banheiro, disse:
– Você acha que posso pegar emprestado algumas roupas de alguém?
John assentiu, mas apontou para a cama. Era evidente que queria que ela comesse primeiro e ela concordava totalmente com aquele plano.
– Obrigada – disse, apertando a toalha ao redor dos seios. – O que você tem aí?
Quando sentou, ofereceu a ela uma variedade de coisas e Xhex pegou o sanduíche de peru porque a necessidade de proteína era um desejo que não podia rejeitar. De sua cadeira, John a observou comer, apenas bebendo seu café, e no segundo em que ela terminou, aproximou um pão doce que provou ser muito tentador.
A combinação de cereja e cobertura doce a deixou louca por um pouco de café. E John estava logo ali com uma caneca, como se estivesse lendo sua mente.
Ela terminou rapidamente um segundo pão doce e uma rosca. E um copo de suco de laranja. E duas xícaras de café.
E era engraçado. O silêncio dele tinha um efeito estranho sobre ela. Normalmente, ela era a quieta nas situações, preferindo manter sua própria opinião e não dividindo seus pensamentos sobre nada. Mas com a presença muda de John, sentia-se curiosamente compelida a falar.
– Estou satisfeita – disse, deitando-se de novo contra os travesseiros. Quando ele ergueu uma sobrancelha e levantou o último pãozinho, ela balançou a cabeça. – Deus... não. Não consigo comer mais nada.
E foi só então que ele começou a comer.
– Você esperou por mim? – disse, franzindo a testa. Quando ele baixou o olhar e deu de ombros, ela xingou baixinho. – Não precisava fazer isso.
John encolheu os ombros de novo.
Enquanto o observava, ela murmurou:
– Você tem ótimas maneiras à mesa.
O rubor dele era da cor do dia dos namorados e ela teve de dizer ao seu coração para se acalmar quando começou a bater mais rápido.
Além disso, talvez ela estivesse tendo palpitações porque havia acabado de jogar quase duas mil calorias em seu estômago vazio.
Ou não. Quando John começou a lamber o glacê da ponta de seus dedos, ela avistou rapidamente a língua dele e, por um momento, sentiu uma agitação em seu corpo...
Memórias de Lash esmagando a parte frágil entre suas pernas a levaram de volta àquele quarto, com ele em cima dela, forçando suas pernas a separar-se com suas mãos duras...
– Oh, maldição... – Saindo rápido da cama, cambaleou até o banheiro e quase não chegou a tempo.
Saiu tudo. Os dois pãezinhos. O café. Aquele sanduíche de peru. Evacuação completa de tudo que tinha comido.
Quando se soltou, não sentiu o vômito. Sentia as horríveis mãos de Lash em sua pele... seu corpo dentro dela, pressionando...
E lá se foi o suco de laranja.
Oh, Deus... como tinha passado por tudo aquilo com aquele bastardo repetidas vezes? Os socos, a luta e as mordidas... em seguida, o sexo brutal.
De novo, de novo e de novo... e então as consequências. Agora Xhex tentava tirá-lo dela.
Droga...
Outra onda de náusea cortou seus pensamentos, e embora ela detestasse vomitar, o desligamento momentâneo de seu cérebro era um alívio. Era quase como se seu corpo estivesse tentando exorcizar o trauma fisicamente, explodindo tudo para que ela pudesse recomeçar.
Reiniciar do começo, por assim dizer.
Quando o pior do vômito passou, afundou-se em seus tornozelos e descansou a testa úmida em seu braço. Enquanto sua respiração cortava sua garganta, o reflexo de seu esforço para vomitar fazia com que tremesse muito, como se seu corpo estivesse considerando começar a se organizar de novo para outra rodada.
Não tem mais nada aí, disse à maldita coisa. Nada, a não ser que quisesse colocar seus pulmões para fora também.
Droga, ela odiava essa parte. Logo depois de passar por todo o inferno, sua mente e seu ambiente estavam cheios de minas terrestres e nunca sabia o que poderia provocar uma explosão. Claro, ao longo do tempo, isso diminuía, mas a primeira tentativa de voltar à “vida normal” estava sendo um inferno e meio.
Ela levantou a cabeça e acionou a descarga.
Quando um pano úmido roçou sua mão, ela pulou, mas era apenas John, nada para temer.
E, cara, ele tinha a única coisa que ela realmente queria naquele momento: aquele pano limpo, úmido e frio era uma dádiva divina.
Enterrando seu rosto naquilo, estremeceu de alívio.
– Sinto muito sobre a comida. Estava boa quando botei para dentro.
Hora de chamar a doutora Jane.
Enquanto Xhex se sentava preguiçosamente nua no chão em frente ao vaso sanitário, John mantinha um olho nela e outro no telefone enquanto mandava uma mensagem.
No segundo em que enviou, jogou o celular sobre o balcão e puxou uma toalha limpa dentre a pilha que havia perto da pia.
Queria dar a Xhex alguma privacidade, mas também estava tendo problemas em olhar como sua coluna ameaçava perfurar a pele de suas costas. Enrolando-a na toalha, deixou suas mãos se demorarem sobre os ombros dela.
Queria puxá-la para seu peito, mas não sabia se ela concordaria em chegar tão per...
Xhex se afastou dele e arrumou a toalha, cruzando as duas metades na sua frente.
– Deixe-me adivinhar. Você chamou nossa boa doutora.
Movendo-se, ele colocou as mãos no chão para suportar o peso de seu tronco e se levantou sobre os joelhos de forma que ficasse cercada por ele por todos os lados. Nada mal, ele pensou. O vaso sanitário não estava bem na frente dela, mas se precisasse, tudo o que tinha de fazer era se sentar direito.
– Não estou doente – disse com voz rouca. – Nem da operação nem de nada. Eu só comi rápido demais.
Talvez, ele pensou. Mas, se fosse isso, não faria mal se a doutora Jane a examinasse. Além disso, precisavam saber muito bem como ela estava antes de saírem à noite, concluindo que isso ainda fosse possível.
– Xhex? John?
John assoviou ao som da voz da doutora e, um momento depois, a fêmea de Vishous colocou a cabeça no banheiro.
– Uma festa? E eu não fui convidada? – ela disse, entrando.
– Bem, tecnicamente, acho que foi sim – Xhex murmurou. – Estou bem.
Jane ajoelhou-se, e embora seu sorriso fosse terno, seus olhos eram muito perspicazes ao olhar para o rosto de Xhex.
– O que está acontecendo aqui?
– Fiquei enjoada depois de comer.
– Importa-se se eu medir sua temperatura?
– Eu preferiria não ter nada perto da minha garganta nesse momento, se não se importa.
Jane tirou um instrumento branco de sua maleta.
– Posso fazer isso apenas aproximando esse aparelho da sua orelha.
John ficou chocado quando a mão de Xhex encontrou a sua e apertou forte como se precisasse de algum apoio. Para que ela soubesse que ele estava lá para o que precisasse, apertou de volta e, no instante em que fez isso, os ombros dela se aliviaram e relaxou outra vez.
– Divirta-se, doutora.
Xhex inclinou a cabeça e acabou se apoiando direto no ombro dele. Então, John realmente não poderia evitar colocar sua bochecha nos cachos fofos e macios dela e respirar fundo.
Até onde sabia, a médica trabalhava rapidamente. Mal começou, houve um bipe e ela já estava se afastando... o que significou Xhex levantando a cabeça outra vez.
– Nada de febre. Importa-se se eu olhar a incisão?
Xhex esticou-se para mostrar, separando a toalha e expondo a barriga e a faixa que atravessava a parte inferior de seu abdômen.
– Parece bom. O que você comeu?
– Apenas comi demais.
– Certo. Alguma dor que eu deva saber?
Xhex negou com a cabeça.
– Sinto-me melhor. De verdade. O que eu preciso é de algumas roupas e sapatos... e outra Primeira Refeição.
– Tenho roupas que os médicos usam em cirurgias e que você pode vestir, depois podemos alimentar você de novo.
– Bom. Obrigada. – Xhex começou a se levantar e ele a ajudou, mantendo a toalha no lugar quando escorregou. – Porque vamos sair.
– Não para lutar, você não pode.
John negou com a cabeça e assinalou para a doutora:
Vamos apenas esticar as pernas. Juro.
Os olhos da doutora Jane se estreitaram.
– Posso apenas dar uma opinião médica. E o que eu penso é que você... – olhou para Xhex – deveria comer alguma coisa e ficar por aqui pelo resto da noite. Mas você é uma adulta, então pode fazer as suas próprias escolhas. No entanto, saiba de uma coisa: saiam sem o Qhuinn e terão sérios problemas com Wrath.
Tudo bem, John gesticulou. Não estava empolgado com a rotina de babá, mas não iria correr riscos com Xhex.
Não tinha ilusões a respeito da fêmea que amava. Ela poderia decidir partir a qualquer momento, e se a coisa ficasse feia a esse ponto, gostaria de um pouco de ajuda.
CAPÍTULO 34
Lash acordou na mesma posição em que havia desmaiado: sentado no chão do banheiro no rancho, os braços unidos em cima dos joelhos, a cabeça abaixada.
Quando abriu os olhos, deu uma olhada em sua ereção.
Tinha sonhado com Xhex, as imagens foram tão claras, as sensações tão vívidas que era uma surpresa não ter gozado em suas calças. Tinham voltado àquele quarto, estavam juntos, lutando, mordendo e, então, ele a possuiu, forçando-a a se deitar na cama, obrigando-a a aceitá-lo, mesmo que ela odiasse.
Estava totalmente apaixonado por ela.
O som de um murmúrio úmido fez com que sua cabeça se erguesse. A Mulher Silicone estava voltando a si, seus dedos se contorciam, as pálpebras piscavam como persianas com defeito.
Enquanto seus olhos focavam no cabelo emaranhado e no corpete manchado de sangue, sentiu uma dor aguda nas têmporas, uma ressaca que com certeza não estava ligada à diversão. A prostituta o enojava, estava deitada toda desleixada envolta de sua própria imundície.
Com certeza ela passou mal do estômago e Lash deu graças a Deus por ter dormido durante aquela comoção.
Tirando o cabelo dos olhos, sentiu suas presas se alongarem e soube que estava na hora de colocar a mulher em uso, mas droga... ela era tão atraente quanto um pedaço de carne estragada.
Mais água. Era disso que aquele pesadelo precisava. Mais água...
Quando se inclinou para ligar o chuveiro outra vez, os olhos dela flutuaram sobre ele.
O grito dela repicou de sua boca ensanguentada e ecoou no azulejo até que os ouvidos dele zumbiram como sinos de igreja.
As malditas presas a assustaram demais. Quando os cabelos dele caíram sobre seus olhos outra vez, passou a mão, empurrando-o para trás e questionou se deveria rasgar seu pescoço só para acabar com o barulho. Mas não havia a menor chance de mordê-la antes dela tomar um banho...
Ela não estava olhando para sua boca. Seus olhos grandes e enlouquecidos estavam fixos em sua testa.
Quando o cabelo o incomodou outra vez, ele o empurrou para trás... e alguma coisa saiu em sua mão.
Em câmera lenta, olhou para baixo.
Não, não era seu cabelo loiro.
Sua pele.
Lash se virou para o espelho e se ouviu gritar. Seu reflexo era incompreensível, o pedaço de carne que havia se soltado revelava uma camada de tinta negra que escorria sobre seu crânio branco. Com a unha, testou a extremidade do que ainda estava preso e descobriu que tudo estava frouxo; cada centímetro quadrado em seu rosto não era nada além de uma folha vacilante estendida sobre o osso.
– Não! – ele gritou, tentando colocar a coisa de volta no lugar dando tapinhas...
Suas mãos... oh, Deus, elas também, não. Tiras de pele estavam penduradas nas costas delas e, ao puxar para cima as mangas de sua camisa social, desejou ter sido mais gentil, pois sua derme veio junto com a delicada seda.
O que estava acontecendo com ele?
Atrás dele, no espelho, viu a prostituta passar como um raio numa corrida mortal, parecendo com Carrie, a estranha, só que sem o vestido de baile.
Com uma onda de força, foi atrás dela, seu corpo se movendo sem nada do poder e graça com os quais estava acostumado. Enquanto corria atrás de sua presa, podia sentir o atrito de suas roupas contra a pele e conseguia apenas imaginar os rasgos que estavam acontecendo em cada centímetro de seu corpo.
Pegou a prostituta bem na hora em que tinha chegado à porta dos fundos e começava a lutar com as fechaduras. Golpeando-a por trás, ele agarrou seu cabelo, puxou sua cabeça para trás e mordeu com força, chupando seu sangue negro para dentro de si.
Lash acabou com ela rapidamente, drenando-a até que suas sucções lhe proporcionaram apenas um monte de nada em sua boca e, quando terminou, simplesmente a largou. Com isso, ela desabou no tapete.
Com um andar vacilante, embriagado, voltou ao banheiro e acendeu as luzes que percorriam os dois lados do espelho.
A cada peça de roupa que removia, revelava mais do horror que já estava estampado em seu rosto: seus ossos e músculos reluziam com um brilho negro e oleoso sob a iluminação das lâmpadas.
Era um cadáver. Um cadáver em pé, que andava e respirava, cujos olhos giravam em suas cavidades sem pálpebra ou cílio, a boca mostrava nada além de presas e dentes.
O último pedaço de pele que lhe restava era aquele que servia de base para seu lindo cabelo loiro em sua cabeça, mas até isso estava deslizando para trás, como uma peruca que tinha perdido sua cola.
Retirou o pedaço final, e com as mãos esqueléticas, acariciou aquilo que tinha lhe dado tanto orgulho. Evidentemente, a coisa estava desprezível daquele jeito, o lodo negro coagulando-se nas madeixas, manchando-as, emaranhando-as... de modo que não estavam melhores do que o cabelo daquela prostituta perto da porta.
Deixou seu couro cabeludo cair no chão e olhou para si mesmo.
Através de sua caixa torácica, observou a batida de seu próprio coração e se perguntou, com um horror entorpecente, o que mais apodreceria nele... e o que lhe restaria quando aquela transformação terminasse.
– Oh, Deus... – disse. Sua voz já não soava direito, era um eco deslocado que constituía as palavras de um modo assustadoramente familiar.
Blay ficou parado com a porta de seu armário aberta, suas roupas penduradas à mostra. Era um absurdo, mas quis ligar para sua mãe para pedir um conselho. Algo que sempre fazia quando tinha que se vestir bem.
Mas essa não era uma conversa que estava com pressa de ter. Ela concluiria que aquilo era por causa de uma fêmea e ficaria toda animada com o fato de que estava indo a um encontro e seria forçado a mentir para ela... ou sair do armário.
Seus pais nunca foram de fazer julgamentos... mas era filho único, e não haver qualquer sinal de fêmea significava não apenas nada de netinhos, mas um chute na aristocracia. Não era surpresa, a glymera aceitava bem a homossexualidade, desde que fosse emparelhado com uma fêmea e que nunca, jamais, falasse sobre isso ou fizesse qualquer coisa publicamente para confirmar essa característica com a qual tinha nascido. Aparências. Tudo girava em torno das aparências. E se você se assumisse? Era excluído.
E sua família também.
De alguma maneira, não conseguia acreditar que estava prestes a ir se encontrar com um macho. Em um restaurante. E que depois iria a um bar com o cara.
E seu parceiro estaria vestido de forma incrível. Sempre era.
Então Blay tirou um terno Zegna, que era cinza risca de giz muito claro. A próxima peça foi uma elegante camisa social de algodão, o corpo da camisa era ligeiramente rosado, com seus punhos franceses e um colarinho branco brilhante. Sapatos... sapatos... sapatos...
Bam, bam, bam na porta.
– Ei, Blay!
Droga. Já tinha colocado o terno na cama e tinha acabado de tomar banho, estava de roupão, com gel no cabelo.
Gel: um delator miserável.
Indo à porta, abriu a coisa apenas um centímetro ou dois. Do lado de fora, no corredor, Qhuinn estava pronto para lutar, seu coldre de adagas que usava no peito estava pendurado em sua mão, vestia suas roupas de couro e suas botas de combate estavam bem amarradas.
Contudo, foi engraçado, a rotina de guerreiro não causou tanta impressão. Blay estava ocupado demais lembrando-se da aparência do cara esticado na cama na noite anterior, seus olhos na boca de Layla.
Má ideia ter feito aquela alimentação em seu próprio quarto, Blay pensou. Porque agora ficaria pensando até onde as coisas teriam ido entre aqueles dois sobre seu colchão.
Contudo, conhecendo Qhuinn, devem ter percorrido o caminho inteiro, até o fim. Que ótimo.
– John enviou uma mensagem de texto – o cara disse. – Ele e Xhex vão dar uma volta em Caldwell e pela primeira vez o filho da mãe está...
Os olhos díspares de Qhuinn o percorreram de cima abaixo, então inclinou-se para o lado e olhou sobre o ombro de Blay.
– O que está fazendo?
Blay aproximou um pouco mais as golas de seu robe.
– Nada.
– Sua colônia está diferente... O que fez com seu cabelo?
– Nada. O que estava dizendo sobre John?
Houve uma pausa.
– É... certo. Bem, ele vai sair e nós vamos com ele. Porém, precisamos ser discretos. Vão querer privacidade. Mas nós podemos...
– Estou de folga esta noite.
Aquela sobrancelha com piercing se abaixou.
– E daí?
– E daí... que estou de folga.
– Isso nunca importou antes.
– Importa agora.
Qhuinn movimentou-se para o lado novamente e deu uma rápida olhada ao redor da cabeça de Blay.
– Você vai colocar aquele terno só para impressionar a equipe na casa?
– Não.
Houve um longo silêncio e então uma palavra:
– Quem?
Blay abriu mais a porta e deu um passo para trás entrando mais em seu quarto. Se fosse para ter aquela conversa, não fazia sentido fazer isso do lado de fora, no corredor, para as pessoas verem ou ouvirem.
– Isso realmente importa? – disse, em uma onda de raiva.
A porta foi fechada. Com força.
– Sim. Importa.
Como se estivesse dizendo um “dane-se” para Qhuinn, Blay desfez o laço de seu roupão e o deixou cair de seu corpo nu. E vestiu a calça comprida... sem cueca.
– Só um amigo.
– Macho ou fêmea?
– Como eu disse, isso importa?
Outra longa pausa, durante a qual Blay se enfiou dentro da camisa e a abotoou.
– Meu primo – Qhuinn rosnou. – Você vai sair com Saxton.
– Talvez. – Foi até a cômoda e abriu sua caixa de joias. Dentro dela, abotoaduras de todos os tipos brilhavam. Escolheu um conjunto que tinha rubis.
– Isso é uma vingança por causa de Layla ontem à noite?
Blay congelou com a mão na abotoadura.
– Jesus Cristo!
– É sim, claro. Isso é o que...
Blay se virou.
– Já lhe ocorreu alguma vez que isso não tem nada a ver com você? Que um cara me chamou para sair e eu quero ir? Que isso é normal? Ou será que você é tão egocêntrico que filtra tudo e todos pelo seu narcisismo?
Qhuinn recuou levemente.
– Saxton é um canalha.
– Bem, acho que você saberia mesmo o que torna alguém assim.
– Ele é um canalha, um canalha muito elegante e cheio de classe.
– Talvez tudo o que eu queira seja um pouco de sexo. – Blay levantou uma sobrancelha. – Já faz um tempo para mim e, para começar, aquelas fêmeas com quem eu estive nos bares só para acompanhá-lo não foram tão boas assim. Acho que está na hora de ter um pouco disso e do jeito certo.
O desgraçado teve a ousadia de empalidecer. De verdade. E maldito seja se não vacilou para trás e encostou-se contra a porta.
– Para onde vocês vão? – perguntou asperamente.
– Ele vai me levar ao Sal. E depois vamos àquele bar de charutos. – Blay ajeitou a outra abotoadura e foi até a cômoda pegar suas meias de seda. – Depois disso... quem sabe?
Uma onda de perfume apimentado flutuou através do quarto e, atordoado, Blay ficou em silêncio. De todos os rumos que pensou que aquela conversa seguiria... ativar o aroma de vinculação de Qhuinn não fazia parte de nada do que tinha imaginado.
Blay virou-se.
Depois de um longo, tenso momento, caminhou em direção ao seu melhor amigo, atraído pela fragrância. E enquanto chegava mais perto, os olhos quentes de Qhuinn o seguiam a cada passo, o vínculo entre eles, que estava sendo enterrado pelos dois lados, explodiu de repente dentro do quarto.
Quando estavam face a face, ele parou, seu peitoral cheio de ar encontrou o de Qhuinn.
– Diga a palavra – sussurrou asperamente. – Diga a palavra e eu não irei.
As mãos duras de Qhuinn se ergueram rapidamente envolvendo os dois lados da garganta de Blay, a pressão o obrigou a inclinar sua cabeça para trás e abrir sua boca para poder respirar. Fortes polegares cravaram nas articulações de cada lado de sua mandíbula.
Momento elétrico.
Potencialmente incendiário.
Acabariam na cama, Blay pensou enquanto fechava suas palmas nos grossos pulsos de Qhuinn.
– Diga a palavra, Qhuinn. Faça isso e eu passarei a noite com você. Vamos sair com Xhex e John e quando eles acabarem, voltamos para cá. Diga.
Os olhos azul e verde, dentro dos quais Blay tinha passado toda uma vida olhando, encararam sua boca e o peitoral de Qhuinn bombeava para cima e para baixo como se estivesse correndo.
– Melhor ainda – Blay falou arrastando as palavras. – Por que você simplesmente não me beija...
Blay foi virado de repente e empurrado com força contra a cômoda, que bateu forte contra a parede com um estrondo. Quando frascos de colônia chocalharam e uma escova de cabelo caiu no chão, Qhuinn forçou seus lábios sobre os de Blay, seus dedos cortavam a garganta dele.
Contudo, isso não importava. Rígido e desesperado... era tudo que queria do cara. E Qhuinn parecia concordar totalmente em fazer isso, sua língua disparava, tomava... possuía.
Com as mãos desastradas, Blay arrancou sua camisa para fora da calça e mergulhou sobre o zíper. Tinha esperado tanto tempo por isso...
Mas terminou antes de começar.
Qhuinn virou-se e se afastou enquanto as calças de Blay atingiam o chão e o cara saiu disparado em direção à porta. Com a mão na maçaneta, bateu a testa na madeira uma vez. Duas vezes.
E então, com uma voz morta, disse:
– Vá. Divirta-se. Apenas proteja-se, por favor, e tente não se apaixonar por ele. Ele vai partir seu coração.
Num piscar de olhos, Qhuinn deixou o quarto, a porta se fechou sem som algum.
Na sequência da partida, Blay permaneceu onde tinha sido deixado, a calça ao redor de seus tornozelos, sua ereção, já desaparecendo, era um completo constrangimento mesmo estando completamente sozinho. Quando o mundo começou a vacilar e seu tórax se comprimiu como um punho fechando-se com força, piscou rápido e tentou manter as lágrimas longe de seu rosto.
Como um macho velho, abaixou, curvou-se lentamente e ergueu a cintura da calça, suas mãos apalparam o zíper e o fechou. Sem colocar a camisa para dentro, caminhou e sentou na cama.
Quando seu telefone tocou sobre a mesa de cabeceira, virou-se e olhou em direção à tela. De alguma maneira, esperava ser Qhuinn, mas esta era a última pessoa com quem queria conversar e deixou quem quer que fosse ser atendido pelo correio de voz.
Por alguma razão, ficou pensando no tempo que gastou em seu banheiro se preocupando em se barbear, cortar as unhas e arrumar seu cabelo com o maldito gel. Depois, no tempo em frente ao armário. Tudo isso parecia um desperdício agora.
Sentia-se sujo. Completamente sujo.
E não iria mais sair com Saxton nem com ninguém naquela noite. Não no humor em que estava. Não havia razão para submeter um cara inocente àquela toxina.
Deus...
Maldição.
Quando sentiu que conseguiria falar, estendeu-se sobre o criado mudo e pegou o telefone. Abriu a coisa e viu que foi Saxton quem tinha ligado.
Talvez para cancelar? E isso não seria um alívio? Ser rejeitado duas vezes em uma noite dificilmente seria uma boa notícia, mas naquela o salvaria de ter que dispensar o macho.
Acionando o correio de voz, Blay escorou sua testa na palma da mão e olhou para baixo, encarando seus pés descalços.
– Boa noite, Blaylock. Imagino que esteja, neste exato momento, parado em frente ao seu armário tentando decidir o que vestir. – A voz macia e profunda de Saxton foi um curioso bálsamo, tão calma e suave. – Bem, na verdade, estou diante de minhas próprias roupas... Acredito que eu deva ir com um terno e um colete quadriculado. Acho que terno risca de giz seria um bom acompanhamento de sua parte. – Houve uma pausa e uma risada. – Não que eu esteja lhe dizendo o que vestir, claro. Mas me ligue se estiver em cima do muro. Em relação ao seu guarda-roupa, claro. – Outra pausa e então um tom sério. – Estou ansioso para vê-lo. Tchau.
Blay afastou o telefone de sua orelha e pairou seu polegar sobre a opção delete. Num impulso, salvou a mensagem.
Depois de uma inspiração longa e firme, obrigou-se a se colocar em pé. Mesmo com suas mãos tremendo, vestiu sua fina camisa e voltou-se para a cômoda que estava bagunçada agora.
Pegou os frascos de colônia, arrumou-os mais uma vez e recolheu a escova de cabelo do chão. Então abriu a gaveta de meias... e tirou o que precisava.
Para terminar de se vestir.
CAPÍTULO 35
Darius devia se encontrar com seu jovem protegido depois que o sol tivesse se posto, mas antes se dirigiu para a mansão humana que espiaram por entre as árvores, depois se materializou no bosque em frente à caverna da Irmandade.
Com os irmãos espalhados por toda parte, a comunicação poderia demorar, e um sistema havia sido montado para a troca de avisos e anúncios. Todos iam até um determinado local, uma vez por noite, para ver o que os outros tinham deixado ou para deixar suas próprias mensagens.
Depois de se certificar de que não estava sendo observado, mergulhou no sombrio enclave, atravessou a parede de pedra secreta e abriu caminho através da série de portões em direção ao sanctum sanctorum. O “Sistema de Comunicação” não era nada além de um nicho colocado na parede de pedra, onde a correspondência podia ser colocada e, devido a sua simplicidade, estava no final do caminho.
No entanto, não adiantou-se o suficiente para ver se seus Irmãos tinham qualquer coisa a dizer a ele.
Aproximando-se do último portão, viu sob o chão de pedra o que à primeira vista parecia ser uma pilha de roupas dobradas próximas de uma bolsa rústica.
Quando desembainhou sua adaga negra, uma cabeça escura se ergueu da pilha.
– Tohr? – Darius abaixou a arma.
– Sim. – O menino virou-se em sua cama áspera. – Boa noite, senhor.
– Posso saber o que você está fazendo aqui?
– Dormindo.
– Isso é óbvio, com certeza. – Darius se aproximou e ajoelhou-se. – Mas porque você não volta para sua casa?
Afinal, havia sido renegado, mas Hharm raramente ia à morada de sua companheira. Com certeza o jovem poderia ter ficado com sua mahmen.
O garoto forçou-se a ficar em pé e se equilibrou apoiando-se na parede.
– Que horas são? Eu perdi...?
Darius pegou o braço de Tohr.
– Você comeu?
– Estou atrasado?
Darius não se preocupou em fazer mais nenhuma pergunta. As respostas para o que ele queria saber estavam na maneira como o garoto se recusava a levantar seus olhar: com certeza, solicitaram a ele que não pedisse refúgio na casa de seu pai.
– Tohrment, quantas noites você já passou aqui? – Naquele chão frio.
– Posso encontrar outro lugar onde ficar. Não voltarei a dormir aqui outra vez.
Se isso fosse verdade, louvada seria a Virgem Escriba.
– Espere aqui, por favor.
Darius entrou pelo portão e verificou a correspondência. Enquanto encontrava notificações de Murhder e Ahgony, pensou em deixar uma para Hharm. Colocando palavras do tipo “Como você pôde dar as costas a um filho de seu sangue, ao ponto dele se ver forçado a dormir com nada além de pedras como cama e suas roupas por coberta? Seu imbecil.”
Darius voltou a Tohrment e viu que o garoto tinha empacotado suas coisas em sua bolsa e suas armas já estavam preparadas.
Darius engoliu uma maldição.
– Devemos primeiro ir à mansão da fêmea. Tenho algumas coisas para discutir com... aquele mordomo. Traga suas coisas, filho.
Tohrment o seguiu, mais alerta do que a maioria deveria estar depois de tantos dias sem comida ou descanso apropriado.
Eles se materializaram em frente à mansão de Sampsone e Darius apontou com a cabeça para a direita, indicando que deveriam prosseguir pelos fundos. Quando chegaram à parte de trás da casa, dirigiram-se à porta pela qual haviam saído na noite anterior e tocou a estrondosa campainha.
O mordomo abriu caminho e fez uma reverência.
– Senhores, há alguma coisa que possamos fazer para servi-los em sua missão?
Darius entrou.
– Gostaria de falar outra vez com o mordomo do segundo andar.
– Mas é claro. – Outra reverência. – Tenham a bondade de me seguir até a sala de visitas.
– Vamos esperar aqui. – Darius sentou-se na mesa desgastada dos serviçais.
O doggen empalideceu.
– Senhor... Isso é...
– Onde eu gostaria de conversar com o mordomo Fritzgelder. Não vejo nenhum benefício em aumentar a aflição do seu mestre e senhora pelo nosso encontro não anunciado em sua casa. Não somos convidados, estamos aqui a serviço de sua tragédia.
O mordomo fez uma reverência tão profunda que foi uma surpresa ele não ter caído de testa no chão.
– Em verdade, o senhor está certo. Vou chamar Fritzgelder neste exato momento. Existe algo que possamos fazer para sua comodidade?
– Sim. Apreciaríamos muito alguns alimentos e cerveja.
– Oh, senhor, mas é claro! – O doggen se inclinou respeitosamente enquanto saía do cômodo. – Eu deveria ter oferecido, perdoe-me.
Quando ficaram sozinhos, Tohrment disse:
– Você não precisa fazer isso.
– Fazer o quê? – Darius falou demorando-se nas palavras, correndo as pontas dos dedos sobre a superfície ondulada da mesa.
– Conseguir comida para mim.
Darius olhou sobre o ombro.
– Meu estimado garoto, foi um pedido calculado para deixar o mordomo mais à vontade. Nossa presença neste local é uma fonte de grande desconforto para ele, tanto quanto o pedido para interrogar outra vez seu serviçal. O pedido por comida deve ter sido um alívio para ele. Agora, por favor, sente-se, e quando as provisões e a bebida chegarem, deve consumi-los. Já me alimentei antes.
Houve o som de uma cadeira sendo arrastada para trás, em seguida um rangido quando o peso de Tohrment se acomodou.
O mordomo chegou logo depois.
O que foi embaraçoso, já que Darius, na verdade, não tinha nada a perguntar a ele. Onde estava a comida...?
– Senhores – disse o mordomo com orgulho enquanto abria a porta com um floreio.
Empregados se apresentaram com todos os tipos de bandeja e canecas de cerveja e provisões e, enquanto o banquete era servido, Darius levantou uma sobrancelha à Tohrment, em seguida desceu o olhar de maneira incisiva em direção aos diversos alimentos.
Tohrment, o macho educado de sempre, começou a se servir.
Darius assentiu ao mordomo.
– Este é um banquete digno de tal casa. Em verdade, seu mestre deve estar mais que orgulhoso.
Depois que o mordomo e os outros saíram, o outro mordomo esperou pacientemente, assim como Darius também o fez até que Tohrment havia consumido tudo o que podia. E então Darius se levantou.
– Muito bem, poderia pedir-lhe um favor, mordomo Fritzgelder?
– Mas é claro, senhor.
– Poderia fazer a gentileza de guardar a bolsa de meu colega durante a noite? Retornaremos depois que fizermos nossa inspeção.
– Oh, sim, senhores. – Fritzgelder curvou-se. – Tomarei o maior dos cuidados com suas coisas.
– Obrigado. Venha, Tohrment, vamos sair.
Enquanto saíam, podia sentir a ira do garoto e não ficou nada surpreso quando seu braço foi capturado.
– Posso cuidar de mim mesmo.
Darius olhou sobre o ombro.
– Não há dúvidas quanto a isso. No entanto, não preciso de um companheiro debilitado por estar de barriga vazia e...
– Mas...
– ... se acha que esta família de tantos recursos ofereceria com má vontade uma mera refeição para ajudar na busca de sua filha, está redondamente enganado.
Tohrment soltou a mão.
– Devo encontrar alojamento. Comida.
– Sim, você vai. – Darius indicou com a cabeça para o círculo de árvores ao redor da propriedade vizinha. – Agora, podemos continuar?
Quando Tohrment assentiu, os dois se desmaterializaram na floresta e depois abriram caminho, avançando pela propriedade da outra mansão.
A cada passo que avançavam em direção ao seu destino, Darius sentia uma sensação de medo esmagadora, que aumentava ao ponto de sentir dificuldade em respirar: o tempo estava trabalhando contra eles.
Cada noite que se passava e eles não a encontravam, era outro passo mais perto de sua morte.
E tinham tão pouco para continuar.
CAPÍTULO 36
O terminal de ônibus de Caldwell ficava do outro lado da cidade, no limite do parque industrial que se estendia até o sul. A antiga construção de telhado plano estava envolta por uma cerca de alambrado e sua galeria de entrada parecia estar cedendo por causa da idade.
Quando John se materializou ao lado de um ônibus estacionado, esperou por Xhex e Qhuinn. Xhex foi a primeira a chegar e, cara, estava com um aspecto muito melhor; os alimentos haviam se acomodado bem na segunda tentativa e a cor de sua pele estava muito boa. Ainda estava vestida com as roupas de médico que a doutora Jane tinha dado a ela, mas por cima usava uma das blusas com capuz preto de John e um de seus casacos esportivos.
Ele adorou o visual. Adorou que ela estivesse usando suas roupas. Adorou como elas ficaram grandes demais nela.
Adorou que ela parecesse uma garota.
Não que não gostasse das roupas de couro ou das camisetas regata e do estilo “vou esmagar suas bolas se der um passo fora da linha” que costumava seguir. Isso também era muito atraente. Só que... por alguma razão, a maneira como ela parecia agora era mais íntima. Provavelmente porque nunca deixou ser vista assim muitas vezes.
– Por que estamos aqui? – ela perguntou, olhando ao redor. Sua voz não parecia frustrada ou irritada, graças a Deus. Estava apenas curiosa.
Qhuinn tomou forma a uns dez metros de distância e cruzou os braços sobre o peito como se não confiasse em si mesmo para não bater em ninguém. O cara estava com um humor horrível. Absolutamente vil. Não pronunciou sequer duas palavras civilizadas no saguão quando John lhe indicou a ordem dos lugares que iriam, e a causa disso não estava muito clara.
Bem... pelo menos não até Blay passar pelo grupo com um aspecto maravilhoso vestindo um terno de risca de giz cinza. O cara fez uma pausa apenas para dizer tchau a John e Xhex; não lançou sequer um olhar para Qhuinn quando saiu em direção à noite.
Usava uma colônia nova.
Estava claro que iria a um encontro. Mas com quem?
Com um silvo e um rugido, um ônibus saiu da vaga onde estava estacionado, a fumaça do motor a diesel fez o nariz de John ameaçar um espirro.
Vamos, assinalou com a boca para Xhex, mudando sua mochila para o outro ombro e puxando-a para frente.
Os dois caminharam pela calçada úmida em direção à luz fluorescente brilhante do terminal. Mesmo estando muito frio, John manteve sua jaqueta de couro aberta para o caso de precisar pegar suas adagas ou sua arma e Xhex também estava equipada.
Os redutores poderiam estar em qualquer lugar e os humanos poderiam ser muito idiotas.
Segurou a porta aberta para ela e ficou aliviado ao ver que havia apenas um velho dormindo num dos bancos e uma mulher com uma maleta, além do bilheteiro que ficava atrás de um vidro plexiglas.
A voz de Xhex soou baixa.
– Este lugar... deixa você triste.
Droga, era verdade. Mas não por causa do que havia vivenciado ali... mas sim pelo que sua mãe deve ter sentido sozinha ao sofrer as dores do parto.
Assoviando com força, ergueu a mão quando os três humanos levantaram o olhar. Reduzindo o nível de suas consciências, deixou cada um deles em meio a um ligeiro transe e caminhou até a porta de metal em que tinha uma placa parafusada onde se lia MULHERES.
Colocando sua mão no painel frio, abriu um pouco e escutou. Não se ouvia nada.
O lugar estava vazio.
Xhex passou por ele, seus olhos percorreram as paredes de alvenaria, as pias de aço inoxidável e os três cubículos. O lugar cheirava à cândida e à umidade, o balcão molhado e os espelhos não eram feitos de vidro, mas de chapas polidas de metal. Tudo estava fixado com parafusos, desde a saboneteira, passando pela placa de Não fume até a lata de lixo.
Xhex parou em frente ao banheiro reservado para deficientes, com olhar penetrante. Ao empurrar um pouco a porta para abrir, recuou e pareceu confusa.
– Aqui... – apontou para baixo, no canto. – Aqui foi onde você estava... onde aterrissou.
Quando voltou a olhá-lo, ele encolheu os ombros. Não sabia o lugar com precisão, porém fazia sentido imaginar que se estivesse tendo um bebê, gostaria que fosse onde tivesse mais espaço.
Xhex lhe encarou como se estivesse vendo através dele e se virou rapidamente para ver se havia chegado alguém. Não. Somente ela e ele, juntos no banheiro feminino.
O quê foi?, gesticulou ao deixar que a porta se fechasse.
– Quem encontrou você? – Quando ele fingiu estar limpando o piso, ela murmurou: – Um zelador.
Quando assentiu com a cabeça, sentiu vergonha do lugar, de sua história.
– Não sinta. – Ela se aproximou dele. – Acredite, não sou ninguém para julgá-lo. Minhas circunstâncias não foram melhores que essas. Caramba, foram indiscutivelmente piores.
Sendo uma mestiça sympatho, John poderia apenas imaginar. Afinal, na maioria das vezes, as duas raças não se misturavam de bom grado.
– Para onde você foi depois daqui?
Ele a guiou para fora do banheiro e olhou ao redor. Qhuinn estava no outro canto, olhando para as portas do terminal como se esperasse que algo cheirando a talco de bebê entrasse. Quando o cara olhou em sua direção, John balançou a cabeça; em seguida, finalizou com o transe, liberando as mentes dos humanos e os três se desmaterializaram.
Quando tomaram forma novamente, estavam no quintal do orfanato Nossa Senhora, perto do escorregador e da caixa de areia. Um vento cortante de março soprava sobre os jardins do santuário da igreja dos indesejados, os balanços rangiam e os ramos desnudos das árvores não ofereciam qualquer proteção. À frente, as linhas de quatro janelas envidraçadas que marcavam os dormitórios estavam às escuras... assim como as do refeitório e da capela.
– Humanos? – Xhex respirou fundo enquanto Qhuinn vagava pelo local e acabou sentando-se em um dos balanços. – Foi criado por seres humanos? Deus... que porcaria!
John caminhou em direção ao prédio, pensando que talvez aquilo não tivesse sido uma boa ideia. Ela parecia horrorizada...
– Você e eu temos mais em comum do que eu pensava.
Ele se deteve e ela deve ter lido sua expressão... ou suas emoções.
– Também fui criada com pessoas que não eram como eu. Contudo, considerando o que a minha outra metade é, isso pode ter sido uma benção.
Caminhando ao lado dele, olhou para seu rosto.
– Você foi mais corajoso do que pensa. – Inclinou a cabeça para o orfanato. – Quando estava aí dentro, você foi mais corajoso do que pode imaginar.
Não concordava, mas não estava disposto a discutir a fé que tinha nele. Depois de um momento, estendeu a mão, e quando ela segurou, caminharam juntos até a entrada dos fundos. Um rápido desaparecimento e estavam no interior.
Oh, droga, ainda usavam o mesmo produto para limpar o chão. Limão ácido.
E a aparência do lugar também não havia mudado. O que significava que o escritório do diretor ainda estava no corredor, na frente do edifício.
Liderando o caminho, foi até a velha porta de madeira, tirou a mochila e a pendurou na maçaneta de bronze.
– O que tem aí, afinal?
Ele ergueu a mão e esfregou os dedos contra o polegar.
– Dinheiro. Da invasão na...
Ele assentiu.
– Bom lugar para deixá-lo.
John se virou e olhou para o corredor onde se localizava o dormitório. Enquanto as recordações borbulhavam, seus pés andavam naquela direção antes de ter consciência que estava indo ao lugar onde, uma vez, havia descansado sua cabeça. Era tão estranho estar ali outra vez, lembrando-se da solidão, do medo e da persistente sensação de ser totalmente diferente, especialmente quando estava com os outros garotos da mesma idade.
Isso sempre piorou as coisas. Estar rodeado daquilo com que deveria ser igual foi o que o deixou mais alienado.
Xhex seguiu John ao longo do corredor, permanecendo um pouco atrás.
Ele caminhava silenciosamente, apoiando a partir do calcanhar até a ponta de suas botas de combate e ela seguiu seu exemplo, de forma que não eram mais do que fantasmas no silencioso corredor. Enquanto seguiam, notou que, embora a estrutura física do edifício fosse velha, tudo estava impecável, desde o linóleo muito bem encerado, passando pelas paredes bem pintadas de bege, até as janelas com telas metálicas embutidas nos vidros. Não havia poeira, nem teias de aranha, nem lascas ou rachaduras no gesso.
Isso deu uma esperança a ela de que as freiras e os administradores cuidassem das crianças com a mesma atenção que davam aos detalhes.
Quando ela e John se aproximaram de um par de portas, pôde sentir os sonhos dos garotos do outro lado, os pequenos redemoinhos de emoção borbulhavam através do sono profundo fazendo cócegas em seus receptores sympatho.
John colocou a cabeça lá dentro, e enquanto encarava os que estavam onde ele tinha estado, ela se viu franzindo a testa outra vez.
A grade emocional dele tinha... uma sombra. Uma construção paralela, mas separada da que havia captado antes, mas agora estava extremamente óbvia.
Nunca havia sentido algo assim em nenhuma outra pessoa e não conseguia explicar... nem acreditava que John tivesse consciência do que estava fazendo. Contudo, por alguma razão, aquela viagem ao seu passado havia exposto uma falha na linha da sua psique.
Assim como outras coisas. John era muito parecido com ela própria, perdido e distante, criado por outras pessoas apenas por obrigação, não por amor.
De alguma maneira, pensou que deveria dizer a ele para parar com aquela coisa toda, porque podia sentir o quanto isso custava a ele... e quanto mais iria custar. Mas estava cativada por aquilo que estava lhe mostrando.
E não só porque, como sympatho, alimentava-se das emoções dos outros.
Não, queria saber mais sobre aquele macho.
Enquanto ele observava os garotos dormindo e permanecia preso em seu passado, ela concentrou sua atenção em seu perfil forte ao ser iluminado pela luz de segurança sobre a porta.
Quando ela levantou a mão e apoiou sobre o seu ombro, John teve um sobressalto.
Queria dizer alguma coisa inteligente e amável, pronunciar alguma combinação de palavras que fossem tão profundas como ele havia feito ao trazê-la até ali. Mas a questão era que havia mais coragem naquelas revelações dele do que em qualquer coisa que Xhex já havia demonstrado a alguém antes, e num mundo cheio de egoísmo e crueldade, ele estava partindo seu maldito coração com aquilo que lhe oferecia.
Esteve tão sozinho ali, e os ecos daquela época difícil ainda o perseguiam. Ainda assim, iria seguir adiante porque havia dito a ela que o faria.
Os belos olhos azuis de John encontraram seu olhar, e quando ele inclinou a cabeça com curiosidade, ela se deu conta de que palavras eram uma bobagem em momentos assim.
Aproximando-se de seu corpo firme, ela passou um de seus braços pela sua cintura. Com a mão livre, esticou-se e segurou sua nuca, puxando-o para ela.
John hesitou, mas logo se aproximou de bom grado, envolvendo seus braços ao redor de sua cintura e enterrando o rosto em seu pescoço.
Xhex o abraçou, emprestando sua força, oferecendo um consolo que era mais do que capaz de proporcionar. Enquanto permaneciam um contra o outro, Xhex olhou por cima dos ombros dele, em direção ao quarto e às crianças nos seus travesseiros.
No silêncio, sentiu como se o passado e o presente estivessem movendo-se e se misturando, mas foi uma miragem. Não havia maneira de consolar o garoto perdido que tinha sido naquela época.
Mas ela tinha o macho adulto.
Ela o tinha em seus braços, e durante um breve momento de fantasia, imaginou que nunca, nunca o deixaria partir.
CAPÍTULO 37
Quando sentou em seu quarto na mansão Rathboone, Gregg Winn deveria se sentir melhor. Graças a algumas imagens evocativas da comovente pintura na sala, juntamente com algumas fotos da área tiradas no crepúsculo, a bronzeada Los Angeles ficou emocionada com as prévias e combinou de começarem a produzi-lo. O mordomo também se mostrou amável, assinando os documentos legais que lhe davam permissão a todos os tipos de acesso.
Stan, o cinegrafista, poderia realizar um exame proctológico na maldita casa, em todos os lugares onde conseguisse enfiar a lente.
Mas Gregg não sentia o sabor da vitória em sua boca. Não, tinha uma sensação que dizia “isso não está certo” percorrendo suas entranhas e uma dor de cabeça causada pela tensão, que percorria desde a base do crânio e todo o caminho até seu lóbulo frontal.
O problema era a câmera escondida que colocaram no corredor na noite anterior.
Não havia explicação racional para o que havia capturado.
Irônico que um “caça-fantasmas”, quando confrontado com uma figura que desaparecia no ar, precisasse de analgésicos e antiácidos. Qualquer um pensaria que ele estaria muito feliz já que, pela primeira vez, não teve que pedir para o cara da câmera falsificar as filmagens.
Quanto ao Stan? Ele apenas deu de ombros. Ah, pensou que era um fantasma, com certeza... mas isso não o perturbou nem um pouco.
Por outro lado, poderia ter sido amarrado a um conjunto de trilhos ou alguma coisa do gênero que pensaria apenas que era hora de um cochilo rápido, antes de ficar completamente chapado.
Havia vantagens em ser um maconheiro.
Quando o relógio marcou dez horas, Gregg levantou-se da frente do laptop e foi até a janela. Cara, ele se sentiria muito melhor sobre essa coisa toda se não tivesse visto aquela figura de cabelos longos perambulando pela área externa na noite anterior.
Para o inferno: melhor isso do que ver o filho da mãe no corredor fazendo um truque de alucinação do tipo “agora você vê, agora você não vê”.
Atrás dele, na cama, Holly disse:
– Está esperando para ver o coelhinho da Páscoa lá fora?
Olhou para ela e pensou que parecia ótima encostada nos travesseiros, com o nariz metido em um livro. Quando ela pegou a coisa, ficou surpreso ao ver que era um livro de Doris Kearns Goodwin sobre os Fitzgeralds e os Kennedys. Imaginou que era mais o tipo de garota que curtisse algo como a biografia de uma atriz de novela.
– Sim, principalmente o rabo de algodão – murmurou. – E eu acho que vou descer e ver se consigo achar a cesta.
– Não traga nenhum daqueles bichinhos de marshmallow. Ovos coloridos, coelhos de chocolate... tudo bem. Menos aqueles bichinhos.
– Vou fazer com que Stan venha e fique com você, ok?
Holly ergueu os olhos.
– Não preciso de babá. Especialmente se for alguém que está sujeito a acender um baseado no banheiro.
– Não quero deixá-la sozinha.
– Não estou sozinha. – Ela acenou para a câmera no canto da sala. – Apenas ligue aquilo.
Gregg se encostou no batente da janela. A forma como o cabelo dela captava a luz era muito bonita. É claro, a cor era, sem dúvida, um trabalho de um especialista em tintura... mas era o tom perfeito de louro contra sua pele.
– Você não está com medo? – disse ele, querendo saber exatamente quando foi mesmo que trocaram os papéis quanto a esse assunto.
– Com relação à noite passada? – Ela sorriu. – Não. Eu acho que aquela “sombra” é Stan pregando uma peça em nós como vingança por fazê-lo trocar de quarto. Você sabe como ele detesta deslocar bagagem. Além disso, acabei voltando para sua cama, não foi? Não que você tenha feito muita coisa com isso.
Agarrou seu blusão e aproximou-se dela. Tomando-lhe o queixo na mão, olhou em seus olhos.
– Você ainda me quer assim?
– Sempre. – A voz de Holly ficou mais baixa. – Estou amaldiçoada.
– Amaldiçoada?
– Para com isso, Gregg. – Quando ele apenas a olhou, ela jogou as mãos para o alto. – Você é uma má aposta. Está casado com seu trabalho e venderia sua alma para subir na vida. Reduz tudo e todos à sua volta a um mínimo denominador e isso lhe permite usá-los. E quando não são úteis? Você nem lembra seus nomes.
Jesus... ela era mais esperta do que pensava.
– Então por que ainda quer ter algo comigo?
– Às vezes... eu realmente não sei. – Seus olhos se voltaram para o livro, mas não iam e voltavam sobre as linhas. Eles apenas se fixaram sobre a página. – Acho que é porque eu era realmente ingênua quando te conheci, e você me deu uma chance quando mais ninguém deu e você me ensinou muitas coisas. E essa paixão inicial está durando.
– Faz soar como se fosse algo ruim.
– Pode ser. Esperava me desvencilhar disso... e depois fazer coisas como cuidar de mim e começar tudo de novo.
Ele olhou para ela, medindo seus traços perfeitos, sua pele lisa e seu corpo incrível.
Sentindo-se confuso e estranho, como se lhe devesse um pedido de desculpas, foi até a câmera no tripé e ativou-a para gravar.
– Está com seu celular aí?
Ela alcançou o bolso do roupão e tirou um BlackBerry.
– Bem aqui.
– Ligue-me se acontecer alguma coisa estranha, certo?
Holly franziu a testa.
– Você está bem?
– Por que pergunta?
Ela deu de ombros.
– É que nunca o vi tão...
– Ansioso? Sim, acho que existe alguma coisa nessa casa.
– Eu ia dizer... conectado, na verdade. É como se estivesse mesmo olhando para mim pela primeira vez.
– Eu sempre olhei para você.
– Não assim.
Gregg foi até a porta e parou.
– Posso perguntar uma coisa estranha? Você... pinta o seu cabelo?
Holly ergueu a mão até suas ondas loiras.
– Não. Eu nunca pintei.
– É realmente loiro assim?
– Você deveria saber.
Quando ela ergueu a sobrancelha, ele corou.
– Bem, as mulheres podem fazer tintura lá embaixo... você sabe.
– Bem, eu não faço.
Gregg franziu a testa e se perguntou quem diabos estava comandando seu cérebro: parecia que todos aqueles pensamentos estranhos estavam brincando em suas ondas mentais, como se talvez sua estação tivesse sido pirateada. Dando-lhe um pequeno aceno, desapareceu em direção ao corredor e olhou à esquerda e à direita, enquanto escutava com atenção. Nenhuma pegada. Nenhum rangido. Ninguém com um lençol sobre a cabeça dando uma de Gasparzinho.
Arrancando seu casaco, seguiu em direção às escadas odiando o eco de seus próprios passos. O som fazia com que se sentisse perseguido.
Olhou atrás de si. Nada além do corredor vazio.
Embaixo, no primeiro andar, olhou para as luzes que haviam sido deixadas acesas. Uma na biblioteca. Uma na entrada da frente. Uma na sala.
Esquivando-se ao virar em uma extremidade da casa, parou para observar o retrato de Rathboone. Por alguma razão, não achava mais que a pintura fosse tão romântica e comercializável.
Por alguma razão, coisa nenhuma. Desejava nunca ter chamado Holly para ver a coisa. Talvez não tivesse ficado tão marcado no subconsciente dela, de tal forma que acabou fantasiando sobre o cara ter se aproximado e tido relações sexuais com ela. Cara... a expressão no rosto dela quando estava falando de seu sonho. Não a parte do medo, mas do sexo, o sexo ressonante. Será que ela ficava assim depois de estar com ele?
Será que alguma vez parou para ver se ele a satisfez daquela maneira?
De qualquer maneira?
Abrindo a porta da frente, saiu como se estivesse em uma missão, quando, na realidade, não tinha aonde ir. Bem, a não ser para longe do computador e das imagens... e daquele cômodo silencioso com uma mulher que poderia ter mais substância do que ele imaginava.
Seria como descobrir que fantasmas existem.
Deus... o ar era limpo ali fora.
Andou para longe da casa, e quando estava a uns cem metros de distância, sobre o gramado ondulado, parou e olhou para trás. No segundo andar, viu a luz acesa em seu quarto e imaginou Holly aninhada contra os travesseiros, o livro em suas mãos longas e finas.
Continuou, indo em direção às árvores e ao riacho.
Será que os fantasmas têm alma? Ou será que eram almas em si?
Será que os executivos de televisão têm alma?
Aquilo sim era uma boa questão existencial.
Deu uma olhada devagar ao redor da propriedade, parando para dar um puxão em um musgo espanhol, sentir a casca dos carvalhos e o cheiro da terra e da neblina...
Estava voltando a casa quando a luz do terceiro andar acendeu... e uma sombra, alta e escura, passou por uma das janelas.
Gregg começou a andar rápido. Em seguida, começou a correr.
Estava voando quando saltou na varanda e atingiu a porta, abrindo-a com força, e começou a pisar firme escada acima. Não deu a mínima àquela história toda de “não vá ao terceiro andar”. E se acordasse as pessoas, tudo bem.
Quando chegou ao segundo andar, deu-se conta de que não fazia a menor ideia de que porta o levaria ao sótão. Andando rápido no corredor, concluiu que os números sobre os batentes indicavam que estava passando pelos quartos dos hóspedes.
Então, passou por uma porta onde se lia: Almoxarifado. Outra: Limpeza.
Obrigado, Jesus: SAÍDA.
Atravessou, chegou à escada dos fundos e subiu os degraus de dois em dois. Quando chegou ao topo, encontrou uma porta trancada com uma luz brilhando por baixo.
Bateu ruidosamente. E conseguiu um monte de nada.
– Quem está aí? – gritou, puxando a maçaneta. – Olá?
– Senhor! O que está fazendo?
Gregg se virou e olhou para baixo em direção ao mordomo... que ainda estava, apesar de já ter terminado o expediente, vestido com seu smoking.
Talvez não dormisse em uma cama, talvez se pendurasse num armário para que não se amassasse durante a noite.
– Quem está lá dentro? – Gregg perguntou, indicando com o dedo por cima do ombro.
– Sinto muito, senhor, mas o terceiro andar é particular.
– Por quê?
– Isso não é de seu interesse. Agora, se não se importa, vou pedir-lhe que retorne ao seu quarto.
Gregg abriu a boca para continuar a discussão, mas em seguida a fechou. Havia uma maneira melhor de lidar com isso.
– Sim. Certo. Tudo bem.
Fez um espetáculo ao pisar forte pelas escadas e passou roçando no mordomo.
Então, foi para seu quarto, como um simples hóspede de nada e entrou.
– Como foi sua caminhada? – Holly perguntou, bocejando.
– Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora? – Como, oh, digamos, um cara morto veio aqui transar com você?
– Não. Bem, a não ser alguém correndo pelo corredor. Quem era?
– Não faço ideia – Gregg resmungou, avançando pelo quarto e desligando a câmera. – Não faço a mínima ideia...
CAPÍTULO 38
John tomou forma próximo a um poste de luz. A iluminação que emanava por baixo de seu pescoço de girafa banhava a frente de um prédio que teria um visual muito melhor se estivesse na total escuridão: os tijolos de argamassa não eram vermelhos e brancos, eram marrom e marrom, e as rachaduras em várias janelas foram tampadas com fita adesiva em ziguezague e com coberturas baratas. Mesmo os degraus baixos que davam no saguão pareciam uma bagunça esburacada, como se tivessem sido atingidos por uma britadeira.
O lugar estava exatamente o mesmo desde quando ele passou a última noite lá, a não ser por um detalhe: o aviso amarelo onde se lia “Condenado” que tinha sido pregado na porta da frente.
Claro que o aviso era lido por alguns como “Bom para invadir”.
Quando Xhex saiu das sombras e se juntou a ele, fez o possível para demonstrar uma aparência calma... e sabia que estava falhando. Aquele tour pela lixolândia de sua vida pregressa era mais difícil de atravessar do que tinha imaginado, mas era como um parque de diversões. Uma vez que você entra num brinquedo e ele começa a funcionar, não tem como parar.
Quem diria que sua existência deveria ter um aviso de cuidado direcionado a mulheres grávidas e pessoas epiléticas.
Sim, não havia como parar isso; ela ficaria decepcionada com ele se terminasse antes da hora. Xhex parecia saber tudo que estava sentindo... e isso incluía uma sensação de fracasso que o rasgaria se ele desistisse ali.
– Você veio parar aqui depois do orfanato? – ela sussurrou.
Assentindo com a cabeça, levou-a a passar em frente do edifício e virar a esquina em direção ao beco. Quando chegou à saída de emergência, imaginou se a trava estaria quebrada...
A fechadura quebrou apenas com um pouco de força e entraram.
O tapete no corredor era parecido com um chão de terra batida em algum tipo de cabana, com manchas acumuladas e grudadas que entraram nas fibras e secaram. Havia garrafas vazias, embalagens amassadas e pontas de cigarros espalhados pelo corredor, e o ar cheirava a axilas de um mendigo.
Cara... mesmo um tanque cheio de aromatizador não ajudaria naquele pesadelo mal cheiroso.
Assim que Qhuinn entrou pela saída de emergência, John virou à esquerda na escada e começou a empreender a subida que o fazia querer gritar. Enquanto subiam, os ratos guinchavam e corriam para fora do caminho, e o odor do cortiço ficava mais espesso e pungente, como se fosse fermentando conforme a altitude aumentava.
Quando chegaram ao segundo andar, abriu caminho pelo corredor e parou em frente a uma grande mancha espalhada na parede. Jesus Cristo... aquela mancha de vinho ainda estava lá... Porém, porque ele estava surpreso? Como se alguma companhia de limpeza fosse até lá para limpá-la.
Passando por mais uma porta, empurrou a que fechava aquilo que tinha sido seu apartamento e... entrou...
Deus, tudo estava exatamente como tinha deixado.
Ninguém tinha morado ali desde que tinha ido embora, algo que supostamente fazia sentido. Gradualmente, as pessoas tinham deixado o local quando ele ainda era um inquilino... bem, aqueles que podiam pagar por um lugar melhor. Os que ficaram eram drogados. E os que tinham ocupado as vagas eram sem-tetos que se infiltraram rapidamente como as baratas que atravessam as janelas e portas quebradas no térreo. O ponto culminante da migração foi o aviso de evacuação: o edifício tinha sido condenado, o câncer da decadência tinha se espalhado por todo o lugar.
Quando olhou a revista de musculação que havia deixado sobre a cama de solteiro perto da janela, a realidade se contorceu sobre ele, arrastando-o para trás, em direção ao passado, mesmo com suas botas de combate firmemente plantadas no aqui e no agora.
Claro, quando esticou o braço e abriu a geladeira desativada... havia latas de proteína.
Sim, pois mesmo com fome, os desabrigados não tomariam aquela porcaria.
Xhex andou por ali e então parou na janela pela qual ele ficou olhando tantas noites.
– Queria ser diferente do que era.
Ele assentiu.
– Quantos anos você tinha quando foi encontrado? – Quando ele mostrou dois dedos duas vezes, os olhos dela se arregalaram. – Vinte e dois? E não fazia nem ideia de que era um...
John negou com a cabeça e avançou para pegar a revista. Folheou as páginas. Percebeu que havia se tornado aquilo que sempre desejou: um filho da mãe enorme e durão. Quem diria? Tinha sido um verdadeiro magricela, à mercê de tantas...
Jogando a revista sobre a cama outra vez, interrompeu aquela linha de pensamento com força e rapidez. Estava disposto a mostrar quase tudo. Mas não aquilo. Aquela parte... nunca.
Não iriam passar no primeiro edifício onde morou sozinho e ela não descobriria o porquê de ter se mudado para aquele lugar.
– Quem o trouxe para o nosso mundo?
Tohrment, expressou com os lábios.
– Quantos anos tinha quando deixou o orfanato? – Ele sinalizou o número um e depois um seis. – Dezesseis? E veio para cá? Direto do Nossa Senhora?
John assentiu e foi em direção a um armário em cima da pia. Abrindo-o, viu a única coisa que esperava encontrar. Seu nome. E a data.
Afastou-se para que Xhex pudesse ver o que tinha escrito. Lembrava-se de quando fez aquilo, tão rápido, com tanta pressa. Tohr estava esperando na calçada e ele correu para pegar sua bicicleta. Rabiscou aquelas marcas como uma prova... não sabia do quê.
– Não tinha ninguém – ela murmurou, olhando para o interior do armário. – Eu era assim. Minha mãe morreu no parto e fui criada por uma família até que legal... pessoas com quem eu sabia que não tinha nada em comum. Deixei-os logo e nunca voltei, pois eu não pertencia àquele lugar... e alguma coisa estava gritando dentro de mim, dizendo que era melhor que eu partisse. Não fazia a mínima ideia que era a parte sympatho e não havia nada no mundo para mim... mas eu tinha que partir. Felizmente, encontrei Rehvenge e ele me mostrou o que eu era. – Ela olhou por cima do ombro. – Pequenos acasos da vida... cara, eles são mortais, não são? Se Tohr não tivesse encontrado você...
Ele teria passado por sua transição e morrido no meio do processo, pois não tinha o sangue necessário para sobreviver.
Por alguma razão, não queria pensar nisso. Ou no fato de que ele e Xhex tinham um trecho na vida em comum, em que estiveram perdidos.
Vamos, assinalou com a boca. Vamos para a próxima parada.
Por entre o milharal, Lash dirigiu ao longo da trilha de terra em direção à fazenda. Providenciou uma proteção psíquica no local para que o Ômega e seu novo brinquedinho não conseguissem rastreá-lo. Também estava usando um boné de beisebol, uma capa com a gola levantada e um par de luvas.
Sentia-se como o Homem Invisível.
Droga, desejava ser invisível. Odiava olhar para si, e depois de algumas horas esperando para ver o que mais cairia em sua descida ao mundo dos mortos-vivos, não tinha certeza se estava aliviado da mudança parecer ter se estabilizado.
Tinha apenas metade do corpo derretido naquele ponto: os músculos ainda estavam pendurados em seus ossos.
A menos de um quilômetro de distância de seu destino, estacionou o Mercedes próximo a um conjunto de pinheiros e saiu. Como todos os seus poderes foram usados para manter-se disfarçado, não havia mais energia alguma dentro dele para se desmaterializar.
Então, foi uma caminhada bem longa até aquele maldito lugar e ficou ressentido de ter de se esforçar daquela maneira apenas para mover seu corpo.
Mas quando chegou até a casa de madeira, foi atingido por uma onda de energia. Havia três carros ridículos no estacionamento – todos os quais ele reconheceu. Os carros eram de propriedade da Sociedade Redutora.
E, veja só, o lugar estava bombando. Havia uns vinte caras dentro e uma grande festa acontecendo: era possível ver barris e garrafas de bebidas através das janelas, e ao redor do lugar havia filhos da mãe acendendo cachimbos e cheirando só Deus sabe o quê.
Onde estava o bastardo?
Ah... que noção de tempo perfeita. Um quarto carro chegou e não era como os outros três. A pintura chamativa do maldito carro esportivo era provavelmente tão cara quanto o trabalho de turbiná-lo, e as rodas tinham um brilho néon que fazia parecer que a coisa estava aterrissando. O garoto saiu de trás do volante e, veja só, estava todo descolado também: usava uma calça jeans nova, uma jaqueta de couro de grife e tinha acendido seu cigarro com alguma coisa de ouro.
Bem, aquilo seria o teste.
Se o garoto entrasse e apenas curtisse a festa, Lash estaria errado quanto à inteligência do filho da mãe... e o Ômega teria conseguido para si nada além de um pouco de diversão. Mas se Lash estivesse certo e o desgraçado fizesse mais do que isso, a festa se tornaria bem interessante.
Lash puxou a gola para mais perto da carne viva que era seu pescoço e tentou ignorar o quão ciumento estava. Já tinha estado na doce situação daquele garoto. Aproveitando o momento “eu sou tão especial” e achando que aquele brilho duraria para sempre. Mas tanto faz. Se o Ômega estava disposto a descartar alguém de sua própria carne e sangue, aquele lixo ex-humano não duraria muito.
Quando um dos bêbados lá dentro olhou na direção de Lash, pensou que poderia estar se arriscando, mas não se importava. Não tinha nada a perder e não estava muito ansioso para passar o resto de sua vida como um bife de carne seca animado.
Feio, fraco e vazando não era nada sexy.
Quando o vento frio fez seus dentes tremerem, pensou em Xhex e se aqueceu com as memórias. De alguma maneira, não conseguia acreditar que o tempo passado com ela tinha sido há poucos dias. Parecia ter se passado anos desde a última vez que a teve sob seu corpo. Pelo amor de Deus, encontrar aquela primeira lesão em seu pulso tinha sido o começo do fim... e ele simplesmente não sabia disso na época.
Apenas um arranhão.
Sim, certo.
Erguendo a mão para empurrar seu cabelo, bateu na aba do boné de beisebol e lembrou-se que não tinha mais nada ali com que se preocupar. Tudo se resumia a uma cúpula de osso.
Se tivesse mais energia, teria começado um discurso mental sobre a injustiça e a crueldade de seu destino decadente. A vida não deveria ter sido assim. Não deveria ter sido excluído. Sempre foi o foco das atenções, o líder, o especial.
Por algum motivo estúpido, pensou em John Matthew. Quando o filho da mãe ingressou no programa de formação de soldados, era apenas um cara ainda na fase de pré-transição, particularmente franzino, com nada além de um nome na Irmandade e uma cicatriz de estrela em seu peito. Era o alvo perfeito para se hostilizar e Lash tinha pegado pesado com o garoto.
Cara, naquela época não fazia a menor ideia de como era ser o estranho que ficava de fora. Como isso fazia com que se sentisse um lixo inútil. Como era olhar para as outras pessoas que faziam isso com você e estar disposto a dar qualquer coisa para estar com elas.
Ainda bem que não tinha a menor ideia de como era. Ou teria pensado duas vezes antes de desprezar o filho da mãe.
E agora, encostado na casca fria e desgrenhada de um carvalho, ao assistir através das janelas da fazenda como outro garoto de ouro vivia a sua vida, sentiu que seus planos mudavam.
Iria acabar com aquele idiota, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Era ainda mais importante que Xhex.
Sua motivação não era apenas o fato de que aquele cara o marcou para morrer. Acontece que queria mandar uma mensagem para seu pai. Afinal, ele era uma maçã podre que não caiu muito longe da árvore – e teria sua vingança custe o que custasse.
CAPÍTULO 39
– Aquela é a antiga casa de Bella – Xhex disse quando tomou forma num campo ao lado de John Matthew.
Quando ele assentiu, ela olhou ao redor, observando o campo. A casa branca de Bella com cercas em volta e uma chaminé vermelha produzia uma pintura perfeita à luz do luar e parecia uma pena que o lugar tivesse sido deixado com nada além das luzes de segurança externas ativadas.
O fato de que na garagem anexa havia um Ford F-150 estacionado e as janelas estarem brilhando fazia com que a sensação de abandono fosse ainda mais real.
– Bella foi a primeira que o encontrou?
John fez um movimento ambíguo com a mão e apontou para outra casinha na pista. Quando começou a gesticular e se deteve em seguida, sua frustração com a barreira de comunicação era óbvia.
– Alguém naquela casa... você os conhecia e eles o colocaram em contato com Bella?
Ele assentiu, enfiou a mão no casaco e tirou o que parecia ser uma pulseira artesanal. Pegando a coisa da mão dele, viu que alguns símbolos no Antigo Idioma haviam sido gravados do lado de dentro.
– Tehrror. – Quando ele tocou o peito, ela disse: – Seu nome? Mas como você sabia? – Ele tocou a cabeça e deu de ombros.
– Simplesmente se lembrou. – Ela se concentrou na casa menor. Havia uma piscina nos fundos e sentiu que suas memórias daquele local eram nítidas, pois cada vez que John passava os olhos sobre o terreno, sua grade emocional acendia como um circuito recebendo eletricidade.
Esteve ali pela primeira vez para proteger alguém. Bella não foi o motivo.
Mary, ela pensou. Mary, a shellan de Rhage. Mas como eles se encontraram?
Estranho... aquilo era uma parede em branco. John estava excluindo Xhex daquela parte.
– Bella entrou em contato com a Irmandade e Tohrment veio até você.
Quando assentiu outra vez, ela devolveu o bracelete, e enquanto passava os dedos pelos símbolos, Xhex ficou maravilhada com a relatividade do tempo. Desde que haviam deixado a mansão, havia passado apenas uma hora, mas sentiu como se tivessem passado um ano juntos.
Deus, ele deu mais do que esperava... e agora ela sabia exatamente porque tinha sido tão prestativo quando ela ficou fora de si na sala de cirurgia.
Ele suportou um verdadeiro inferno. Não viveu sua infância, foi arrastado por ela.
A questão era: em primeiro lugar, como ele foi parar no mundo humano? Onde estavam seus pais? O rei tinha sido seu ghia no período pré-transição... isso era o que seus documentos diziam quando foi pela primeira vez ao ZeroSum. Concluiu que sua mãe tinha morrido e a visita ao terminal rodoviário não desmentiu isso... mas havia buracos nessa história. Alguns dos quais ela tinha a impressão de serem intencionais, outros que ele não tinha sido capaz de preencher.
Franzindo a testa, sentiu que seu pai ainda estava muito presente com ele e, ainda assim, parecia que não tinha sequer conhecido o cara.
– Vai me levar a um último lugar? – ela murmurou.
John pareceu dar uma última olhada no local e então desapareceu, e ela o seguiu, graças a todo o sangue dele que havia em seu corpo.
Quando tomou forma outra vez diante de uma casa muito moderna, a tristeza dele o dominou de tal maneira que sua superestrutura emocional começou a desabar. Contudo, com muita força de vontade, conseguiu deter a desintegração a tempo, antes que não pudesse ser corrigida.
Quando a grade emocional desmorona, você está ferrado. Perdido em meio aos seus demônios internos.
O que a fez pensar em Murhder. No dia em que ele descobriu a verdade sobre ela. Podia lembrar-se exatamente de como sua estrutura emocional apareceu diante dela: as vigas de aço que eram a base da saúde mental foram reduzidas a nada além de uma confusão de destroços.
Xhex foi a única que não ficou surpresa quando ele enlouqueceu e desapareceu.
Assentindo para ela, John andou em direção à porta principal da frente, colocou uma chave e abriu. Quando uma corrente de ar veio de encontro a eles, ela pôde sentir o cheiro da poeira e da umidade, indicando que aquela era outra construção vazia. Mas não havia nada de podre dentro, ao contrário do antigo edifício onde John morava.
Quando ele acendeu a luz do hall de entrada, ela quase engasgou. Na parede, à esquerda da porta, havia um arabesco no Antigo Idioma que proclamava que aquela era a casa do Irmão Tohrment e de sua shellan, Wellesandra.
O que explicava porque doía tanto em John estar ali. O hellren de Wellesandra não havia sido o único a salvar o garoto na pré-transição.
A fêmea tinha sido importante para John. E muito.
John seguiu pelo corredor e acendeu mais luzes enquanto entravam, suas emoções eram uma combinação de afeto e uma forte dor. Quando foram para uma cozinha espetacular, Xhex se dirigiu à mesa do local.
Ele tinha sentado ali, pensou, colocando as mãos no encosto de uma das cadeiras... em sua primeira noite na casa, tinha sentado ali.
– Comida mexicana – ela murmurou. – Estava com tanto medo de ofendê-los. Mas, então... Wellesandra...
Como um cão de caça seguindo as pistas no caminho, Xhex rastreou o que sentia de suas memórias.
– Wellesandra serviu-lhe arroz com gengibre. E... pudim. Sentiu-se satisfeito pela primeira vez e seu estômago não doía e estava... estava tão grato que não sabia como lidar com isso.
Quando olhou para John, seu rosto estava pálido e os olhos brilhavam e ela soube que estava de volta ao seu pequeno corpo, sentado à mesa, todo encolhido... oprimido pelo primeiro ato de bondade que alguém lhe havia feito na vida.
O som de um passo no corredor fez com que ela erguesse a cabeça e percebeu que Qhuinn ainda estava com eles, o cara vagava por ali, seu mau humor era uma sombra tangível ao redor.
Bem, ele não teria que acompanhá-los por muito mais tempo. Aquele era o fim da estrada, o capítulo final da história de John que a deixou a par dos acontecimentos. E, infelizmente, isso significava que tinha que fazer o certo e apropriado e voltar à mansão... onde, sem dúvida, John a faria comer mais, tentando alimentá-la outra vez.
Porém, não queria retornar, ainda não. Em sua mente, tinha decidido tirar uma noite de folga, então aquelas eram as últimas horas antes de iniciar a trilha da vingança... e perder sua doce conexão com John, aquela compreensão que agora tinham um do outro.
Pois ela não iria enganar a si mesma: a triste realidade era que o poderoso laço que os unia era também tão frágil que não tinha dúvida que iria se romper, assim que voltassem a se focar no presente ao invés do passado.
– Qhuinn, pode nos dar licença, por favor?
Os olhos desiguais do cara encararam John e uma série de gestos com as mãos foi trocada entre eles.
– Vá se ferrar – Qhuinn disse antes de virar as costas e marchar em direção à porta da frente.
Após a batida da porta terminar de ecoar pela casa, ela olhou para John.
– Onde você dormia?
Quando indicou um corredor com a mão, ela foi com ele passando por muitos quartos onde havia equipamentos modernos e arte antiga. A combinação fazia o lugar parecer como um museu de arte onde se podia morar e ela o explorou um pouco, colocando a cabeça nas portas abertas das salas e quartos.
Para chegar ao quarto de John precisavam percorrer todo o caminho até o outro lado da casa, e enquanto caminhava até o local, só podia imaginar o choque cultural. Da imundície ao esplendor, vivenciado com uma simples mudança de endereço: ao invés daquela porcaria de apartamento, aquele era um paraíso azul marinho com móveis elegantes, um banheiro de mármore e um maravilhoso tapete.
Além disso, tinha uma porta de vidro corrediça que conduzia a uma varanda particular.
John aproximou-se, abriu o guarda-roupa e ela observou sobre seu forte e pesado braço as pequenas roupas penduradas nos cabides de madeira.
Enquanto ele olhava para as camisetas e calças, os ombros dele estavam tensos e uma de suas mãos estava fechada. Sentia muito sobre algo que havia feito ou pelo jeito que havia agido e isso não tinha nada a ver com ela.
Tohr. Era sobre Tohr.
Lamentava o jeito como as coisas estavam entre eles ultimamente.
– Converse com ele – disse ela baixinho. – Diga o que está acontecendo. Você dois vão se sentir bem melhor.
John concordou e ela pôde sentir nitidamente a determinação dele.
Deus, não tinha certeza sobre como aquilo acontecia – bem, a mecânica era bem simples, mas o que a surpreendia era o fato de que mais uma vez viu-se aproximando-se dele e abraçando-o. Deitou seu rosto entre seus ombros e ficou grata quando sentiu as mãos dele cobrindo as dela.
Ele se comunicava de tantas maneiras diferentes, não é? E, às vezes, um toque é melhor do que palavras para dizer o que se quer.
No silêncio, ela o guiou em direção à cama e os dois sentaram.
Quando ela simplesmente o encarou, ele articulou: O que foi?
– Você tem certeza que me quer indo até lá? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela olhou diretamente em seus olhos. – Sei que deixou algo de fora. Posso sentir. Há um buraco entre o orfanato e o edifício de apartamentos.
Nenhum músculo facial dele se moveu ou sequer se contorceu e também não piscou. Mas a expressão de um macho que era bom em esconder suas emoções era irrelevante. Tinha plena noção do que sabia sobre ele.
– Está tudo bem, não vou perguntar. Não vou pressionar.
O leve rubor no rosto dele era algo que recordaria muito tempo depois de partir... e pensar em deixá-lo foi o que a levou a colocar a ponta de seus dedos nos lábios dele.
Quando recuou surpreso, ela se concentrou em sua boca.
– Quero te dar algo meu – disse com uma voz baixa e profunda. – No entanto, não se trata de ficarmos quites. É apenas porque eu quero.
Afinal, seria ótimo se ela pudesse levá-lo aos lugares importantes de sua vida e guiá-lo através dela, mas saber mais a respeito de seu passado faria sua missão suicida mais difícil para ele: independente do que sentia por John, iria atrás de seu sequestrador e não era tola em se enganar com esperanças de sobreviver a isso.
Lash tinha seus truques.
Truques perversos com os quais fazia coisas ruins.
Lembranças do bastardo voltaram a ela, lembranças horríveis que fizeram suas coxas tremerem, memórias feias que, todavia, serviam para empurrá-la em direção a algo que talvez não estivesse preparada. Mas Xhex não iria para o túmulo tendo Lash como a última pessoa com quem transou.
Não quando ela tinha o único macho que realmente amava na sua frente.
– Quero ficar com você – disse com voz rouca.
Os olhos azuis chocados de John percorreram o rosto dela em busca de sinais de que tinha entendido algo errado. E então uma quente e forte luxúria rompeu todas as suas emoções, sem deixar nada para trás, a não ser um desejo enorme de um macho de sangue puro.
Fez o melhor que pôde para derrotar o instinto e manter alguma aparência de racionalidade, o que aumentou seu crédito. Mas isso significava apenas que seria ela quem terminaria a batalha entre razão e emoção... ao colocar seus lábios contra os dele.
Oh... Deus, os lábios dele eram tão macios.
Apesar do estrondo que sentiu no sangue dele, John se manteve controlado. Mesmo quando ela deslizou sua língua na boca dele. E aquela repressão tornou as coisas mais fáceis para ela, enquanto sua mente ia e vinha entre o que estava fazendo agora...
E o que havia sido feito com ela dias atrás.
Para ajudá-la a se concentrar, Xhex procurou pelo peito dele e correu as mãos pelos músculos sobre o coração. Deitando-o de costas sobre o colchão, sentiu o odor de vinculação que exalava por ela. Tinha um cheiro apimentado único e muito distante de tudo o que se poderia imaginar do cheiro enjoativo de um redutor.
Aquilo a ajudou a separar essa experiência de outras mais recentes que teve.
O beijo começou como uma exploração, mas não continuou assim. John aproximou-se, envolvendo seu corpo forte no dela, sua grande perna circundando-a até que ela estivesse em baixo. Ao mesmo tempo, seus braços a envolveram, trazendo-a com firmeza para junto dele.
John se movia tão devagar quanto ela.
E ela estava bem até que a mão dele escorregou sobre seu peito.
O contato a assustou, tirando-a daquele quarto e daquela cama, levando-a para longe de John e jogando-a de volta no inferno.
Lutando contra a fuga de sua mente, tentou manter-se presa ao presente, a John. Mas quando o polegar dele acariciou seu mamilo, teve que forçar seu corpo a ficar parado. Lash gostava de mantê-la por baixo e de prolongar o inevitável produzindo arranhões e machucados, pois ele adorava as preliminares mais até do que seus próprios orgasmos.
Jogada psicótica inteligente da parte dele. Ela preferia, infinitamente, acabar logo com...
John empurrou sua ereção contra o quadril dela.
Pronto.
Seu autocontrole alcançou o limite e quebrou-se ao meio: com um impulso, o corpo dela fugiu do contato por vontade própria, rompendo a comunhão com o corpo dele, estragando o momento.
Quando saltou da cama, Xhex pôde sentir o horror de John, mas estava muito ocupada cambaleando por causa de seu medo para ser capaz de explicar. Andando, tentando desesperadamente se agarrar à realidade, ela respirou fundo, não de paixão, mas de pânico.
Bem, aquela sensação era mesmo uma porcaria.
Lash desgraçado... iria matá-lo por isso. Não pelo que estava passando, mas pela posição em que ela havia colocado John.
– Sinto muito – ela gemeu. – Não deveria ter começado isso. Sinto muito mesmo.
Ela parou na frente da penteadeira e olhou para o espelho pendurado na parede. John tinha se levantado enquanto ela ia e vinha e parou em frente à porta de correr de vidro, os braços cruzados sobre o peito, a mandíbula apertada enquanto olhava para a noite lá fora.
– John... não é você. Eu juro.
Quando balançou a cabeça, não olhou para ela.
Esfregando o próprio rosto, o silêncio entre eles aumentava a vontade de ela fugir. Simplesmente não conseguia lidar com nada disso, com nada do que estava sentindo e com o que havia feito com John, nem com nada daquela porcaria com Lash.
Seus olhos alcançaram a porta e seus músculos ficaram tensos para sair dali. O que era comum em sua cartilha. Ao longo de toda sua vida, ela sempre confiou em sua capacidade de desaparecer, sem deixar para trás nenhuma explicação, nenhum vestígio, nada além de ar.
Serviu-lhe bem como assassina.
– John...
A cabeça dele se moveu e seu olhar queimava com tristeza quando ela o encontrou no reflexo do vidro.
Enquanto ele esperava que ela dissesse alguma coisa, Xhex pensou em dizer que era melhor que ela fosse embora. Deveria dar outra desculpa idiota e se desmaterializar para fora do quarto... para fora da vida dele.
Mas tudo que conseguiu dizer foi seu nome.
Ele virou o rosto para ela e articulou com a boca: “Sinto muito. Vá. Está tudo bem. Vá.”
No entanto, ela não conseguia se mover. E a boca dela se abriu. Quando percebeu o que estava no fundo de sua garganta, não conseguia acreditar que iria colocar aquilo em palavras. A revelação ia de encontro a tudo que ela sabia sobre si mesma.
Pelo amor de Deus, ela realmente ia fazer isso?
– John... eu... eu fui...
Mudando o foco de seus olhos, ela mediu o próprio reflexo. Sua face de ossos pronunciados e a palidez eram resultado de muito mais do que apenas falta de sono e alimentação.
Com um súbito lampejo de raiva, ela desabafou:
– Lash não era impotente, ok? Ele não era... impotente...
A temperatura no quarto caiu tanto e tão rápido que sua respiração começou a produzir nuvens.
E o que ela viu no espelho a fez cambalear e dar um passo para trás, afastando-se de John: os olhos azuis dele brilharam com uma luz profana e seu lábio superior estava contraído mostrando as presas tão nítidas que pareciam punhais.
Todos os objetos no quarto começaram a vibrar: os abajures nas mesas de cabeceira, as roupas nos cabides, o espelho na parede. O ruído coletivo cresceu até se tornar um rugido e aquilo a fez segurar na cômoda ou correria o risco de cair.
O ar estava vivo. Sobrecarregado. Elétrico.
Perigoso.
E John era o centro dessa energia furiosa, as mãos fechadas, tão apertadas que chegavam a tremer, as coxas dele ficaram tensas em seus ossos ao assumir a posição de combate.
A boca de John se abriu ao máximo quando jogou a cabeça para frente... e soltou um grito de guerra...
O som explodiu tudo ao redor, tão alto que ela teve que cobrir os ouvidos, tão poderoso que sentiu uma explosão contra seu rosto.
Por um momento, achou que ele havia encontrado sua voz – só que não eram suas cordas vocais que estavam fazendo aquele barulho estridente.
Os vidros das portas explodiram atrás dele, quebrando-se em milhares de cacos que se espalharam por todo o local, os fragmentos quicaram na ardósia e capturaram a luz como gotas de chuva...
Ou como lágrimas.
CAPÍTULO 40
Blay não fazia ideia do que Saxton tinha acabado de lhe dar.
Bem, sim, era um charuto e, sim, era caro, mas o nome não se prendeu em sua mente.
– Acho que você vai gostar – disse o macho, reclinando-se para trás em sua poltrona de couro e acendendo seu próprio charuto. – São suaves. Marcantes, mas suaves.
Blay acendeu a chama de seu isqueiro Montblanc e inclinou-se para tragar. Ao reter a fumaça, pôde sentir a atenção de Saxton focada nele.
Outra vez.
Não estava acostumado com tanta atenção, então deixou que seus olhos vagassem pelo local: teto abobadado verde escuro, brilhantes paredes pretas, cadeiras de couro vermelho escuro e cabines onde as pessoas se sentavam às mesas. Vários humanos com cinzeiros junto aos seus cotovelos.
Resumindo: não havia distrações que pudessem ser comparadas aos olhos de Saxton ou à voz ou à colônia ou...
– Então, diga-me – o macho disse, exalando uma nuvem azul perfeita, que, momentaneamente, eclipsou sua feição. – Colocou o seu risca de giz antes ou depois que liguei?
– Antes.
– Sabia que você tinha estilo.
– Sabia?
– Sim. – Saxton olhou fixamente através da pequena mesa de mogno que os separava. – Ou eu não o teria chamado para jantar.
A refeição que compartilharam no Restaurante do Sal foi... realmente adorável. Comeram na cozinha, em uma mesa privada, e iAm lhes preparou um menu especial de antepastos e massas, acompanhado por café com leite e tiramisu de sobremesa. O vinho havia sido branco para o primeiro prato e tinto para o segundo.
Os temas da conversa foram neutros, mas interessantes... e, afinal, isso não importava muito. Se ficariam juntos ou não era o verdadeiro objetivo de cada palavra, olhar e gestos corporais.
Então... era mesmo um encontro, Blay pensou. Uma negociação implícita, disfarçada numa conversa sobre livros e músicas preferidas.
Não era de admirar que Qhuinn fosse direto para o sexo. O cara não tinha paciência para esse tipo de sutileza. Além disso, não gostava de ler e a música que pulsava em seus ouvidos era metalcore que só os loucos ou surdos poderiam suportar.
Um garçom vestido de preto aproximou-se.
– Posso trazer algo para beberem?
Saxton rodou seu charuto entre os dedos indicador e polegar.
– Vinho do Porto, safra de 1945, por favor.
– Excelente escolha.
Os olhos de Saxton se voltaram para Blay.
– Eu sei.
Blay olhou para a janela em frente ao local onde estavam sentados e se perguntou se nunca deixaria de corar perante o cara.
– Está chovendo.
– Está?
Deus que voz. As palavras de Saxton eram tão suaves e deliciosas quanto o charuto.
Blay mexeu as pernas, cruzando-as no joelho.
Enquanto vasculhava seu cérebro a procura de algo que quebrasse o silêncio, parecia que o comentário ridículo sobre o tempo era a observação mais inspirada que faria. O fato era que o final do encontro estava próximo e, até então, só sabia que ele e Saxton lamentavam a perda de Dominick Dunne e que eram fãs de Miles Davis. Não sabia o que iria fazer quando chegasse a hora de seguir caminhos distintos.
Seria o caso de: Ligue para sairmos outra vez? Ou o infinitamente mais complicado, confuso e agradável: Sim, com certeza, irei agora até sua casa para apreciar suas gravuras.
Ao que sua consciência o obrigou a acrescentar: mesmo que eu nunca tenha feito isso com um cara antes e apesar do fato de que qualquer outra pessoa seria apenas um substituto para Qhuinn.
– Quando foi a última vez que esteve num encontro, Blaylock?
– Eu... – Blay deu uma longa tragada no charuto. – Faz um bom tempo.
– O que tem feito para você mesmo? Só trabalho, sem diversão?
– Algo assim.
Ok, amor não correspondido não se enquadrava exatamente em nenhuma dessas categorias, apesar de “sem diversão” ser totalmente certo.
Saxton sorriu um pouco.
– Fiquei feliz por ter me ligado. E um pouco surpreso.
– Por quê?
– Meu primo tem uma certa... reação territorial em relação a você.
Blay girou seu charuto e olhou para a ponta incandescente.
– Acho que você supervaloriza o interesse dele.
– E eu acho que está me dizendo educadamente para que eu cuide de assuntos que me dizem respeito, não está?
– Não há qualquer assunto para tratar sobre isso. – Blay sorriu para o garçom que colocou dois cálices na mesa redonda e se afastou. – Pode acreditar.
– Sabe? Qhuinn tem uma personalidade interessante. – Saxton estendeu a mão com elegância e pegou sua taça de vinho. – Na verdade, ele é um dos meus primos favoritos. Seu inconformismo é admirável e sobreviveu a coisas que iriam esmagar um macho fraco. Contudo, não sei se estar apaixonado por ele seria fácil.
Blay não mordeu a isca.
– Então, você vem sempre aqui?
Saxton riu, seus olhos pálidos brilhando.
– Ok, esse assunto é proibido. – Olhou em volta, franzindo a testa. – Na verdade, não tenho saído muito ultimamente. Muito trabalho também.
– Você disse que é advogado da Antiga Lei. Deve ser interessante.
– Eu me especializei em heranças e espólios, então o fato do negócio estar crescendo é algo para se lamentar. O Fade tornou-se cheio de inocentes desde o verão passado...
Na cabine ao lado, um monte de valentões com relógios de ouro e ternos de seda riam como bêbados arrogantes que eram – a tal ponto que o mais alto deles acabou encostando-se com força em sua cadeira e batendo em Saxton.
O que foi um problema, pois provou que Saxton era um cavalheiro, mas não um covarde.
– Desculpe, mas se importaria de se afastar um pouco?
O desalinhado humano virou-se, sua barriga protuberante sobre o cinto parecia que ia explodir por todo o lugar.
– Sim. Eu me importo. – Seus pálidos olhos lacrimejantes se estreitaram. – Tipos como você não pertencem a este local, de jeito nenhum.
E ele não estava falando sobre o fato de serem vampiros.
Quando Blay tomou seu vinho, o caro líquido teve gosto de vinagre... embora o sabor amargo em sua boca não fosse porque a bebida estivesse ruim.
Um momento depois, o cara bateu as costas contra o assento com tanta força que Saxton quase derramou sua bebida.
– Mas que inferno! – o macho murmurou, pegando seu guardanapo.
O idiota humano inclinou-se em seu espaço outra vez.
– Estamos interrompendo os dois lindos rapazes chuparem aquelas coisas duras?
Saxton sorriu com força.
– Definitivamente está interrompendo.
– Descuuulpe. – O humano de repente levantou seu dedo mínimo acima de seu charuto. – Não quis ofendê-lo.
– Vamos – Blay disse enquanto se inclinava e apagava seu charuto.
– Posso conseguir outra mesa.
– Vão embora juntos, rapazes? – disse o Sr. Boca Grande arrastando as palavras. – Vão a uma festa onde há todos os tipos de charutos? Talvez nós os sigamos, apenas para ter certeza que chegarão bem lá.
Blay manteve os olhos centrados em Saxton.
– Está ficando tarde, de qualquer maneira.
– O que significa que é apenas o meio do nosso dia.
Blay levantou-se e colocou a mão no bolso, mas Saxton gesticulou e o impediu de sacar a carteira.
– Não, permita-me.
Outra rodada de comentários partindo do engraçadinho carregou ainda mais o ar e deixou Blay rangendo os dentes. Felizmente, não demorou muito para Saxton pagar o garçom e, em seguida, seguiram em direção à porta.
Do lado de fora, o ar frio da noite era um bálsamo aos sentidos e Blay respirou profundamente.
– Esse lugar não é sempre assim – Saxton murmurou. – Caso contrário, nunca o teria levado até lá.
– Está tudo bem.
Quando Blay começou a caminhar, sentiu Saxton colocar-se ao seu lado.
Quando chegaram à entrada de um beco, pararam para deixar um carro virar à esquerda na Rua Commerce.
– Então, como está se sentindo sobre tudo isso?
Blay encarou o outro macho e decidiu que a vida era muito curta para fingir que não sabia exatamente o que esse “isso” significava.
– Para ser honesto, sinto-me estranho.
– E isso não se deve àqueles idiotas.
– Eu menti. Nunca estive num encontro antes. – A confissão fez Saxton levantar uma sobrancelha e Blay teve que rir. – Sim, sou um ator de verdade.
O ar suave de Saxton desapareceu, e por trás de seus olhos, um calor verdadeiro começou a brilhar.
– Bem, estou feliz em ser o seu primeiro.
Blay encontrou o olhar do cara.
– Como sabia que eu era gay?
– Não sabia. Apenas esperava que sim.
Blay riu de novo.
– Bem, agora sabe. – Após uma pausa, estendeu a mão. – Obrigado por esta noite.
Quando Saxton tocou sua mão, um frisson de puro calor queimou entre eles.
– Sabe que encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
Blay descobriu que era incapaz de soltar a mão do macho.
– Ah... verdade?
Saxton assentiu.
– Um beijo é o mais comum.
Blay focou nos lábios do macho e de repente se perguntou que gosto teria.
– Venha aqui – Saxton murmurou, puxando-o pela mão e atraindo-o a um refúgio no beco.
Blay seguiu-o na escuridão, guiado por um feitiço erótico que não tinha interesse nenhum em romper. Quando chegaram a um lugar mais oculto entre as fachadas dos edifícios, sentiu o tórax do macho subir contra o seu e, em seguida, seus quadris fundiram-se.
Então, soube exatamente o quanto Saxton estava excitado.
E Saxton sabia que ele também estava.
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Blay não queria pensar em Qhuinn agora e balançou a cabeça para limpar a imagem. Quando isso não funcionou e os olhos azul e verde do cara persistiram em sua mente, fez a única coisa que garantiria parar de pensar em sua perdição.
Venceu a distância entre a boca de Saxton e a sua.
Qhuinn sabia que deveria ter ido direto para casa. Depois que foi sumariamente dispensado da casa de Tohr, sem dúvida para que John e Xhex desfrutassem um pouco de conversa na horizontal, ele deveria ter voltado para a mansão e se consolar com a amigável tequila e ocupar-se com sua maldita vida.
Mas nããão. Ele se materializou na rua do único bar de charuto em Caldwell e assistiu – na chuva, como um perdedor – quando Blay e Saxton sentaram-se em uma mesa bem em frente à janela. Ele teve uma visão completa de como seu primo estava olhando para seu melhor amigo com uma luxúria elegante e, então, alguns idiotas fizeram gracinhas até que os dois deixaram os charutos no meio e as taças de vinho inacabadas.
Não querendo ser pego escondido entre as sombras, Qhuinn teve que se desmaterializar no beco ao lado... que logo se transformou no típico “lugar errado, na hora errada”.
A voz de Saxton pairou sobre a brisa fria.
– Sabe que os encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
– Ah... verdade?
– Um beijo é o mais comum.
Qhuinn sentiu as mãos se fecharem com força, e por uma fração de segundo, pensou realmente em sair de trás do contêiner de lixo em que estava escondido. Mas para fazer o quê? Colocar-se entre os dois dizendo “parem com isso rapazes”?
Bem, sim. Exatamente.
– Venha aqui – Saxton murmurou.
Droga, o bastardo soava como um operador de tele-sexo, todo rouco e sensual. E... oh, cara, Blay estava indo com ele, seguindo o cara na escuridão.
Havia momentos em que o incrível senso de audição de um vampiro era uma verdadeira maldição. E, claro... não ajudava se estivesse espiando perto de uma lata de lixo.
Quando os dois foram ao encontro um do outro, a boca de Qhuinn se abriu. Mas não porque estava chocado e não porque quisesse entrar em ação.
Simplesmente não conseguia respirar. Era como se suas costelas tivessem congelado junto com seu coração.
Não... não, maldição, não...
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Sim, já, Qhuinn queria gritar...
Blay negou com a cabeça. Negou mesmo.
Qhuinn fechou os olhos com força e obrigou-se a se acalmar o suficiente para conseguir desmaterializar-se. Quando tomou forma em frente à mansão da Irmandade, tremia como um filho da mãe... e chegou a considerar curvar-se e fertilizar os arbustos com o jantar que tinha comido antes de sair com Xhex e John.
Depois de respirar fundo duas vezes, decidiu que era mais interessante seguir com o plano A e ficar bêbado. Com isso em mente, entrou pela porta, Fritz o deixou entrar, e dirigiu-se à cozinha.
Inferno, talvez ele tomasse mais do que apenas alguns goles. Deus sabia que Saxton não iria se contentar com um beijo ou dois num beco frio e úmido, e Blay parecia estar preparado para, finalmente, conseguir o que precisava há tanto tempo.
Portanto, haveria tempo de sobra para ele encher a cara até perder a consciência.
Jesus... Cristo, Qhuinn pensava enquanto esfregava o peito e ouvia a voz de seu primo várias vezes: Diga uma coisa. Você já beijou um macho antes?
A imagem de Blay balançando a cabeça parecia uma cicatriz no cérebro de Qhuinn, o que o levou a ir direto para o outro lado da cozinha em direção à despensa, onde as caixas de bebida eram guardadas.
Mas que clichê. Embriagar-se por não querer lidar com as coisas.
Mas pelo menos isso ele faria de acordo com a tradição.
Voltando a atravessar a cozinha, percebeu que havia, pelo menos, uma graça salvadora. Quando os dois fossem partir para ação, teria que ser na casa de Saxton, porque nenhum visitante casual era permitido na casa do rei, nunca.
Quando saiu em direção à porta de entrada, parou de repente.
Blay estava entrando.
– De volta tão cedo – disse Qhuinn rispidamente. – Não me diga que meu primo é rápido.
Blay nem sequer fez uma pausa. Apenas continuou a subir as escadas.
– Seu primo é um cavalheiro.
Qhuinn saiu atrás do melhor amigo, seguindo ao seu encalço.
– Você acha? Na minha experiência, apenas parece um...
Isso fez com que Blay se virasse.
– Você sempre gostou dele. Era seu favorito. Lembro que falava dele como se fosse um deus.
– Eu cresci e perdi o interesse.
– Bem, eu gosto dele. Muito.
Qhuinn quis rosnar, mas matou o impulso abrindo a tequila que tinha surrupiado da prateleira e tomou um gole.
– Bom para você. Fico feliz por vocês dois.
– Sério? Então porque nem sequer está usando um copo?
Qhuinn passou rápido por seu amigo e não parou nem quando Blay disse “Onde estão John e Xhex?”.
– Fora. No mundo. Sozinhos.
– Achei que deveria ficar com eles.
– Fui temporariamente dispensado. – Qhuinn parou no topo da escada e tocou a lágrima tatuada abaixo de seu olho. – Ela é uma assassina, pelo amor de Deus. Pode cuidar dele muito bem. Além disso, estavam se divertindo na antiga casa de Tohr.
Quando chegou ao seu quarto, Qhuinn chutou a porta e tirou a roupa. Após beber um grande gole da garrafa, fechou os olhos e enviou uma convocação.
Layla seria uma boa companhia agora.
Esta era sua especialidade. Afinal, foi treinada para o sexo e tudo que ela queria era usá-lo como uma escola erótica. Não precisava se preocupar em magoá-la ou se ela se sentiria ligada a ele. Era uma profissional, por assim dizer.
Ou seria quando tivesse terminado de fazer algumas coisas com ela.
Quanto a Blay? Não fazia ideia do porquê o cara tinha voltado ao invés de se dirigir à cama de Saxton, mas uma coisa era clara. Os dois estavam atraídos um pelo outro e Saxton não era do tipo que espera muito quando deseja alguém.
Qhuinn e seu primo eram parentes, afinal.
Mas isso não salvaria o filho da mãe magricelo se partisse o coração de Blay.
CAPÍTULO 41
A festa na fazenda continuava e mais pessoas iam chegando, os carros estacionados no gramado, os corpos comprimidos nos cômodos do andar de baixo. A maioria dos que compareceram Lash conhecia do Parque Xtreme, mas não todos. E continuavam trazendo bebidas.
Só Deus sabia que tipo de coisas ilegais havia em seus bolsos.
Que droga, pensou. Talvez estivesse errado e o Ômega estivesse farto de suas perversões...
Quando sentiu uma brisa vinda do norte, Lash ficou imóvel, mantendo-se camuflado e travando sua mente.
Sombra... projetou uma sombra em si próprio, através dele e em torno dele.
A chegada do Ômega foi precedida por um eclipse da lua e os idiotas dentro não faziam a menor ideia do que estava acontecendo... mas aquele lixo sabia. O garoto saiu pela porta da frente, a luz de dentro derramando ao redor dele.
O pai de Lash tomou forma no gramado desalinhado, suas vestes brancas se agitavam em volta de seu corpo, sua chegada diminuiu ainda mais a temperatura do ar. Assim que tomou forma, o idiotinha caminhou até ele e os dois se abraçaram.
Houve uma tentação de atacar os dois, para dizer a seu pai que ele não era nada além de um pervertido inconstante e avisar ao ratinho filho da mãe que seus dias e noites estavam contados...
O rosto encapuzado do Ômega virou na direção de Lash.
Lash ficou totalmente imóvel e projetou em sua mente uma lousa totalmente em branco, para que permanecesse invisível por dentro e por fora. Sombra... sombra... sombra...
A pausa durou uma vida, porque sem dúvida se o Ômega sentisse que Lash estava por perto, seria o fim do jogo.
Depois de um momento, o Ômega voltou sua atenção para seu queridinho da vez, e quando fez isso, algum idiota tropeçou para fora da porta da frente, os braços se agitaram e as pernas ficaram desequilibradas enquanto tentava manter-se em pé. Quando caiu na grama, o cara se moveu em direção a um canteiro, mas não conseguiu: aterrissou em seus joelhos e vomitou por todo o alicerce da casa. Enquanto as pessoas riam dele e os sons da festa rolavam noite adentro, o Ômega deslizou até a porta.
A festa continuou quando ele entrou na casa, sem dúvida porque os bastardos estavam muito chapados para perceber que sob aquela cortina branca, o mal havia acabado de entrar.
No entanto, não continuaram na ignorância por muito tempo.
Uma enorme bomba de luz explodiu, a rajada de iluminação varreu a casa e fluiu para fora das janelas até a linha das árvores. Quando a iluminação se desvaneceu até chegar a um brilho suave, não havia sobreviventes em pé: todos os bêbados caíram ao chão de uma só vez. A diversão tinha acabado.
Caramba. Se a coisa continuasse indo naquela direção...
Lash esgueirou-se para a casa, tomando cuidado para não deixar nenhuma pegada, literal ou figurativamente e, quando se aproximou, ouviu um estranho som de arranhões.
Aproximando-se de uma das janelas da sala, olhou para dentro.
O bastardo estava arrastando os corpos, alinhando-os lado a lado no chão, de modo que todos os rostos ficaram em direção ao norte e havia aproximadamente trinta centímetros entre uma e outra cabeça. Jesus... havia tantos cadáveres que o procedimento do bom soldadinho de enfileirar os mortos se estendeu por todo o caminho entre o corredor até a sala de jantar.
O Ômega recuou como se estivesse apreciando a visão de seu brinquedo enquanto movia os corpos ao redor.
Que. Meigo.
Levou quase meia hora para alinhar todos, os caras do segundo andar foram arrastados para baixo pelas escadas de modo que a cabeça batia em cada degrau e deixava um rastro vermelho de sangue.
Fazia sentido. Era mais fácil puxar um peso morto pelos pés.
Quando todos estavam juntos, o cretino começou a trabalhar com uma faca e aquilo se tornou uma fila para a iniciação. Começando na sala de jantar, cortou a garganta, os pulsos, os tornozelos e o peito. O Ômega o seguia, derramando sangue preto sobre as costelas abertas, golpeando-os com eletricidade.
Nenhuma bacia para este lote. Quando os corações foram extraídos, foram lançados num canto.
Um grande abatedouro?
Quando tudo terminou, havia um lago de sangue no centro da sala onde o piso havia cedido e outro na base da escada que dava para a entrada. Lash não conseguia observar todo o caminho até a sala de jantar, mas tinha plena certeza de que havia muito sangue lá também.
Os gemidos dos induzidos começaram logo em seguida e a safra de miséria que havia sido colhida ficaria mais alta e mais confusa conforme a transição fosse superada e os últimos resquícios de sua humanidade fossem vomitados para fora.
No meio do coro de agonia e confusão, o Ômega virou-se, pisando sobre as massas que se contorciam, dançando para lá e para cá, arrastando o seu manto branco ao longo da porcaria coagulada no chão e, ainda assim, permanecia imaculado.
No canto, o idiotinha acendeu um baseado e deu uma longa tragada como se estivesse tomando fôlego depois de um trabalho bem feito.
Lash se afastou da janela e retirou-se em direção às árvores, sempre mantendo os olhos na casa.
Droga, deveria ter feito algo assim. Mas não tinha os contatos certos no mundo humano para isso. Ao contrário do idiotinha.
Cara, isso mudaria tudo para os vampiros. Aqueles desgraçados iriam enfrentar, de verdade, uma legião de inimigos novamente.
De volta a Mercedes, Lash ligou o motor e retirou-se da fazenda afastando-se pelo caminho mais longo. Atrás do volante, com o ar frio batendo no rosto graças à janela estilhaçada, seu humor era sombrio. Para o inferno com as fêmeas e todas aquelas besteiras. Seu único objetivo na vida era acabar com o idiotinha. Tomar o prêmio do Ômega. Destruir a Sociedade Redutora.
Bem... as fêmeas não faziam parte disso. Sentia-se totalmente esgotado, porque precisava se alimentar – o que quer que estivesse acontecendo à sua camada externa, seu interior ainda desejava sangue e tinha que resolver esse problema antes que pudesse enfrentar seu velho pai.
Ou iria se dar muito mal.
Enquanto dirigia para o centro, pegou o telefone e ficou maravilhado com o que estava prestes a fazer. Contudo, um inimigo em comum sempre acaba resultando em estranhas alianças.
De volta ao Complexo da Irmandade, Blay se despiu no banheiro e entrou debaixo do chuveiro. Ao pegar o sabão e fazer um pouco de espuma, pensou no beijo naquele beco.
Naquele macho.
Naquele... beijo.
Movendo as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e deixou a água quente escorrer por seu cabelo, suas costas, até seu traseiro. Seu corpo parecia querer se arquear com mais força e se deixar levar, alongando-se, deleitando-se naquela onde de calor. Gastou um tempo lavando seu cabelo com xampu e correndo a mão ensaboada e escorregadia por seu corpo.
Enquanto pensava um pouco mais sobre aquele beijo.
Deus, era como se a memória de seus lábios juntos fosse um imã que o arrastava de volta àquele momento repetidas vezes; o puxão foi muito forte para resistir, a conexão muito atraente para conseguir evitar.
Deslizando as palmas das mãos sobre o tronco, perguntava-se quando veria Saxton outra vez.
Quando ficariam sozinhos outra vez.
Movendo a mão mais para baixo, ele...
– Senhor?
Blay girou, seu calcanhar rangeu sobre o mármore. Cobrindo seu membro rígido e pesado com as duas mãos, tentou esquivar-se atrás da porta de vidro.
– Layla?
A Escolhida sorriu timidamente e correu os olhos por seu corpo.
– Fui chamada? Para servir?
– Eu não chamei. – Será que ela tinha confundido? A não ser que...
– Qhuinn me convocou. Concluí que seria neste quarto.
Blay fechou os olhos momentaneamente enquanto a ereção desvanecia. Então acabou com a festinha particular e fechou a água quente. Estendendo a mão, agarrou uma toalha e a envolveu em seus quadris.
– Não, Escolhida – disse calmamente. – Não é aqui. Mas no quarto dele.
– Oh, perdoe-me, senhor. – Iniciou seu caminho para fora do quarto, o rosto em chamas.
– Está tudo bem... cuidado! – Blay pulou para frente e a agarrou quando ela esbarrou na banheira e perdeu o equilíbrio. – Você está bem?
– Sim, eu deveria olhar por onde ando. – Ela observou seus olhos, as mãos descansando em seus braços nus. – Obrigada.
Olhando para o rosto perfeitamente belo, era óbvio o motivo pelo qual Qhuinn estava interessado. Ela era etérea, com certeza, mas havia algo além disso – especialmente quando abaixou as pálpebras e os olhos verdes brilharam.
Inocente, mas erótico. Era isso. Era a combinação cativante de pureza e sexo que era indiscutível aos homens normais – e Qhuinn não chegava nem perto de ser normal. Transava com qualquer coisa.
Imaginou se a Escolhida sabia disso. Ou se isso importaria para ela.
Com a testa franzida, Blay a afastou.
– Layla...
– Sim, senhor?
Bem, inferno... o que dizer? Estava muito claro que não havia sido chamada outra vez para alimentar Qhuinn, pois haviam se alimentado na noite anterior...
Cristo, talvez fosse isso. Já tinham tido relações sexuais uma vez e ela estava voltando para mais.
– Senhor?
– Nada. É melhor você ir. Tenho certeza de que ele está esperando.
– De fato. – O aroma de Layla pairou sobre o local, o cheiro de canela fez o nariz de Blay formigar. – E sou muito grata por isso.
Quando ela se virou e saiu, Blay observou o balançar de seus quadris e sentiu vontade de gritar. Não queria pensar em Qhuinn transando no quarto ao lado... Pelo amor de Deus, a mansão havia sido o único lugar que não havia sido contaminado por toda aquela atividade extracurricular.
Agora, porém, tudo que conseguia ver era Layla entrando no quarto de Qhuinn e deixando sua túnica branca cair ao deslizar pelos ombros; seus seios, ventre e coxas sendo revelados diante daqueles olhos díspares. Ela estaria em sua cama e sob seu corpo num piscar de olhos.
E Qhuinn a trataria bem. Isso era o que acontecia, pelo menos quando se tratava de sexo: ele era generoso com seu tempo e seu talento. Ele se dedicaria a ela com tudo o que tinha, as mãos, a boca...
Certo. Melhor não pensar no resto.
Enxugando-se rapidamente, ocorreu-lhe que talvez Layla fosse a parceira perfeita para o cara. Com seu treinamento, ela não só iria satisfazê-lo em todos os níveis, como nunca esperaria dele monogamia ou se ressentiria por suas façanhas nesse sentido ou forçaria ligações emocionais que ele não sentia. Provavelmente, ela até mesmo entraria na brincadeira, pois era evidente pela forma como andava que se sentia bem com seu corpo.
Era perfeita para ele. Melhor do que Blay, com certeza.
Além disso, Qhuinn havia deixado claro que iria acabar com uma fêmea... uma fêmea tradicional, com valores tradicionais, de preferência que fosse da aristocracia, isso assumindo que encontraria alguém que o aceitasse mesmo com o defeito dos olhos díspares.
Layla preenchia totalmente os requisitos – nada mais tradicional ou de sangue mais puro do que uma Escolhida e era evidente que ela o queria.
Sentindo-se como se tivesse sido amaldiçoado, Blay entrou em seu closet e vestiu uma bermuda e uma camiseta. Não havia chance alguma de sentar-se ali e se aconchegar com um bom livro, enquanto estivesse acontecendo o que quer que fosse na porta ao lado...
Pois é. Não precisava daquelas imagens, mesmo que hipoteticamente.
Saindo para o corredor de estátuas, apressou-se ao passar pelas figuras de mármore, invejando suas poses calmas e rostos serenos. Claro que fingir sempre que “está tudo bem” fazia a ideia de ser um objeto inanimado parecer muito boa. Mesmo significando que não sentiria alegria, também não teria que sentir aquela dor ardente.
Quando chegou ao saguão de entrada, contornou o corrimão e abaixou-se através da porta secreta. No túnel para o centro de treinamento, iniciou uma corrida como aquecimento, e quando passou através da parte traseira do armário de escritório, não diminuiu. A sala de musculação era o único lugar onde suportaria estar agora. Uma boa hora ou mais na esteira e talvez não sentisse mais vontade de descascar a própria pele com uma colher enferrujada.
Ao sair para o corredor, parou de repente quando viu uma figura solitária, encostada na parede de concreto.
– Xhex? O que está fazendo aqui? – Bem, além de encarar o chão.
A fêmea o olhou e seu olhar cinza escuro se assemelhava a poços vazios.
– Oi.
Blay franziu a testa enquanto caminhava até ela.
– Onde está John?
– Está lá dentro. – Ela acenou com a cabeça para a porta da sala de musculação.
O que explicava o barulho monótono que ouvia. Era evidente que alguém estava correndo sobre uma das esteiras.
– O que aconteceu? – Blay disse, somando a expressão dela aos movimentos que os tênis de John estavam fazendo... e chegando a uma conclusão terrível.
Xhex deixou cair a cabeça contra a parede que estava segurando seu corpo.
– Foi tudo o que eu pude fazer para trazê-lo de volta para cá.
– Por quê?
Seus olhos se acenderam ainda mais.
– Vamos apenas dizer que ele quer ir atrás de Lash.
– Bem, isso é compreensível.
– Sim.
Quando a palavra flutuou para fora da boca dela, teve a impressão de que não sabia nem da metade, mas ficou óbvio que aquele comentário era o máximo que ela diria sobre o assunto.
De repente, seu olhar cor de tempestade fixou-se no rosto dele.
– Então, você é a razão pela qual Qhuinn estava de mau humor hoje.
Blay recuou, e então balançou a cabeça.
– Não tem nada a ver comigo. Qhuinn geralmente fica de mau humor.
– Pessoas que tomam a direção errada ficam assim. Pinos redondos simplesmente não se encaixam em orifícios quadrados.
Blay pigarreou, pensando que os sympathos, mesmo aqueles que não estão contra você, não eram o tipo de pessoa que se quer por perto quando está tentando esconder algo. Como, por exemplo, quando o macho que você deseja está com uma Escolhida com rosto de anjo e um corpo feito para o pecado.
Só Deus sabia o que Xhex estava captando da cabeça dele.
– Bem... estou indo treinar. – Como se seu visual não deixasse isso claro.
– Bom. Talvez você consiga falar com ele.
– Eu vou. – Blay hesitou, pensando que Xhex parecia se sentir como ele. – Ouça, não é por nada, mas é evidente que você está exausta. Talvez fosse bom ir até um dos quartos de hóspedes e dormir.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou deixá-lo. Estou aqui fora esperando só porque eu estava deixando-o louco. Ver-me... não é bom para sua saúde mental no momento. Espero que já não esteja mais assim depois que quebrar essa segunda esteira.
– Segunda?
– Tenho certeza que o cheiro de fumaça de uns quinze minutos atrás significa que ele correu até quebrá-la.
– Caramba.
– Sim.
Preparando-se, Blay abaixou-se e entrou na sala de musculação...
– Jesus... Cristo. John.
Sua voz não foi ouvida. No entanto, o barulho da esteira e os passos pesados de John teriam abafado o escapamento de um carro.
O corpo maciço do cara estava a todo vapor na máquina, sua camiseta e tronco estavam cobertos de suor, as gotas se movimentavam em seus punhos cerrados e criavam manchas idênticas de umidade de cada lado no chão. Havia manchas vermelhas em suas meias brancas que se espalhavam a partir dos calcanhares, como se um pedaço da pele tivesse sido arrancado e a bermuda preta que usava batia como uma toalha molhada.
– John? – Blay gritou, enquanto avaliava a esteira quebrada ao lado. – John!
Quando o grito não o fez girar a cabeça, Blay entrou na sua frente e acenou com a mão direita no campo visual do cara. E, então, desejou não ter feito isso. Os olhos que se fixaram nos dele ardiam com um ódio tão cruel que Blay deu um passo para trás.
Quando John voltou a focar o ar na frente de seu rosto, ficou muito claro que o maldito filho da mãe iria continuar correndo até que suas pernas caíssem.
– John, que tal sair daí? – Blay gritou. – Antes de cair?
Nenhuma resposta. Apenas os gritos da esteira e o som de um bombardeio intenso nos pés.
– John! Vamos, agora! Você está se matando!
Dane-se.
Blay deu a volta por trás do aparelho e arrancou o cabo de força da parede. A desaceleração brusca fez John tropeçar e cair para frente, mas segurou-se no apoio de mão. Ou talvez tenha apenas desabado sobre ele.
Sua respiração ofegante rasgava para dentro e para fora da boca e a cabeça pendia em seu braço.
Blay puxou um banco de um dos aparelhos e estacionou sobre ele para que pudesse olhar para o rosto do rapaz.
– John... o que diabos está acontecendo?
John soltou o apoio e caiu para trás, as pernas não suportaram seu peso. Após uma série de respirações entrecortadas, passou a mão pelo cabelo molhado.
– Fale comigo, John. Vou manter isso apenas entre nós. Juro pela vida da minha mãe.
Levou um tempo antes de John erguer a cabeça, e quando o fez, seus olhos estavam brilhantes. E não era pelo suor ou pelo esforço.
– Fale comigo, pois isso não irá a lugar algum – sussurrou Blay. – O que aconteceu? Diga-me.
Quando o cara finalmente começou a fazer os sinais, estava confuso, mas Blay leu as palavras muito bem.
Ele a machucou, Blay. Ele... a machucou.
– Bem, sim, eu sei. Ouvi falar sobre como ela estava quando...
John fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
No silêncio tenso que se seguiu, a pele da nuca de Blay se enrijeceu. Oh... droga.
Houve mais do que isso. Não houve?
– Ruim quanto? – resmungou Blay.
O pior possível, John assinalou com a boca.
– Filho da mãe. Desgraçado filho da mãe. Aquele cretino, filho da mãe, desgraçado!
Blay não costumava xingar, mas às vezes isso é tudo que se pode oferecer aos ouvidos dos outros: Xhex não era sua mulher, mas na opinião dele, não se pode machucar o sexo frágil. Seja lá qual for o motivo... e nunca, nunca dessa maneira.
Deus, a expressão de dor dela não tinha sido apenas por estar preocupada com John. Tinha sido por causa das lembranças. Lembranças horríveis, hediondas...
– John... eu sinto muito.
Gotas frescas caíram do queixo do rapaz na faixa preta da esteira e John enxugou os olhos algumas vezes antes de erguer o olhar. Em seu rosto, a angústia guerreava com uma fúria sem tamanho.
O que fazia todo sentido. Com sua história pessoal, aquilo era totalmente devastador.
Tenho que matá-lo, John gesticulou. Não poderei viver comigo mesmo se não acabar com ele.
Enquanto Blay concordava, os motivos da vingança se faziam óbvios. Um macho vinculado com um passado ruim? O mandado de morte de Lash acabava de receber o selo de APROVADO.
Blay fechou os dedos e ofereceu seus punhos.
– Qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser, estou com você. E não direi nenhuma palavra.
John esperou um momento e então bateu punho contra punho. Sabia que poderia contar com você, sinalizou com a boca.
– Sempre – prometeu Blay. – Sempre.
CAPÍTULO 42
A casa de Eliahu Rathboone ficou totalmente silenciosa mais ou menos uma hora depois que Gregg abortou sua viagem ao terceiro andar, mas ele esperou um bom tempo depois que o mordomo desceu as escadas para tentar subir outra vez.
Ele e Holly não passaram o tempo transando, que era o bom e velho hábito deles, mas conversando. E ele percebeu que quanto mais conversavam, menos sabia a respeito dela. Não fazia ideia de que seus passatempos podiam ser tão triviais quanto tricotar. Ou que sua maior ambição era seguir carreira no verdadeiro jornalismo televisivo – o que não era uma surpresa: a maioria das mulheres “cabeças de vento” do mundo dos reality shows tinham maiores ambições na TV. E ele até sabia que ela tinha tentado ingressar uma vez no noticiário local de Pittsburgh.
O que não fazia ideia era do verdadeiro motivo pelo qual ela deixou o primeiro emprego. O gerente, casado, esperava que ela fizesse um tipo diferente de serviço, mais privado, e quando ela disse “não”, ele a demitiu depois de dar um jeito para que ela falhasse na frente das câmeras.
Gregg viu a fita onde ela massacrava as palavras no ar. Afinal de contas, fez sua lição de casa, e apesar do seu teste com eles ter sido ótimo, ele sempre verificava as referências.
Talvez isso tenha sido o início de suas pressuposições sobre ela: rostinho bonito, boa postura, nada mais a oferecer.
Mas esse não era o pior de seus equívocos. Nunca soube que ela tinha um irmão. Que era deficiente físico. A quem ela sustentava.
Ela mostrou uma foto dos dois juntos.
E quando Gregg perguntou em voz alta como era possível ele não saber sobre aquele garoto, ela teve a honestidade de dizer-lhe o motivo: porque você ditou os limites e isso estava além.
Naturalmente, teve a reação masculina de se defender, mas o fato é que ela estava certa. Havia estabelecido os limites de maneira muito clara. O que significava nada de ciúmes, nada de explicações, nada permanente e nada pessoal.
Aquele não era exatamente um ambiente propício para se mostrar vulnerável.
A constatação disso foi o que o fez puxá-la contra seu peito e encostar o queixo em sua cabeça, alisando suas costas. Antes de ir para a terra dos sonhos, ela murmurou algo com uma voz suave. Algo sobre como aquela tinha sido a melhor noite que teve com ele.
E isso apesar dos orgasmos monstruosos que já tinha lhe proporcionado.
Bem, orgasmos dados quando lhe convinha. Houve vários encontros cancelados no último minuto, mensagens de celular sem resposta e menosprezo verbal e físico.
Cara... que lixo ele foi.
Quando Gregg finalmente levantou-se para sair, cobriu Holly, ligou a câmera que era ativada por movimentos e saiu para o corredor. Silêncio por toda parte.
Caminhando pelo corredor, voltou-se para o sinal de Saída e seguiu em direção à escada dos fundos. Subiu os degraus, virou, subiu outro patamar e, então, lá estava a porta.
Sem bater desta vez, pegou uma chave de fenda fina que era usada no equipamento da câmera e tentou arrombar a fechadura. Na verdade, foi mais fácil do que imaginava. Bastou uma cotovelada, um giro e a coisa se soltou.
A porta não chiou, o que o surpreendeu.
No entanto, o que estava do outro lado... o deixou extremamente chocado!
O terceiro andar tinha um espaço cavernoso, com um antiquado e grosseiro assoalho e com um teto inclinado em um ângulo agudo dos dois lados. Na outra extremidade, havia uma mesa com uma lâmpada a óleo e seu brilho fazia com que as paredes lisas ficassem de um tom amarelo-dourado... também iluminava as botas negras de alguém que estava sentado numa cadeira fora do alcance da luz.
Botas enormes.
E, de repente, não havia dúvidas de quem era o filho da mãe e o que ele tinha feito.
– Eu o filmei – Gregg disse para o sujeito.
A risada suave que veio como resposta fez a adrenalina de Gregg correr solta: baixa e fria, a risada era o tipo de som que assassinos fazem quando estão prestes a trabalhar com uma faca.
– Filmou? – Aquele sotaque. Mas que diabos era aquilo? Não era francês... nem húngaro...
Tanto faz. A ideia de Holly ter sido vítima de um abuso por parte dele fez Gregg mais alto e mais forte do que realmente era.
– Sei o que você fez na noite passada.
– Eu o convidaria para se sentar em uma cadeira, mas como pode ver, só tenho uma.
– Não estou brincando! – Gregg deu um passo à frente. – Sei o que aconteceu com ela. Ela não queria você.
– Ela queria o sexo.
Filho da mãe imbecil.
– Ela estava dormindo.
– Estava? – A ponta da bota balançou. – As aparências, assim como a mente, podem ser enganosas.
– Quem diabos você pensa que é?
– Sou dono desta bela casa. Isso é quem sou. Sou quem deu permissão para brincar por aí com suas câmeras.
– Bem, pode dar adeus a essa droga toda agora. Não vou fazer propaganda deste lugar.
– Oh, acho que fará. Está em sua natureza.
– Você não sabe nada sobre mim.
– Acho que é o contrário. É você que não sabe... nada, usando suas palavras... sobre você mesmo. Aliás, ela disse o seu nome. Quando gozou.
Gregg ficou furioso com isso, ao ponto de dar mais um passo adiante.
– Eu tomaria cuidado – a voz disse. – Você não quer se machucar. E sou considerado louco.
– Vou chamar a polícia.
– Não tem motivo. Consentimento entre adultos e tudo o mais.
– Ela estava dormindo!
A bota deu uma volta e plantou-se no chão.
– Olha o tom, rapaz.
Antes que houvesse tempo para retrucar o insulto, o homem se inclinou para frente na cadeira... e Gregg perdeu a voz.
O que apareceu sob a luz não fazia sentido algum. De maneira alguma.
Era o retrato. Da sala no andar de baixo. Só que vivo e respirando. A única diferença era que o cabelo não estava preso, estava solto sobre os ombros, era duas vezes maior que o de Gregg e a cor era uma mistura de preto com vermelho.
Oh, Deus... os olhos eram da cor do nascer do sol, brilhantes e cor de pêssego.
Totalmente hipnóticos.
E sim, um tanto enlouquecidos.
– Sugiro – disse arrastando as palavras com aquele sotaque estranho – que você saia deste sótão e volte a ficar com aquela moça adorável...
– Você é descendente de Rathboone?
O homem sorriu. Certo... havia algo de muito errado com seus dentes da frente.
– Ele e eu temos coisas em comum, na verdade...
– Jesus...
– É hora de você correr e terminar seu pequeno projeto. – Não sorria mais, o que era uma espécie de alívio. – E um conselho, no lugar de ceder à tentação de chutar o seu traseiro: deve cuidar melhor da sua mulher. Ela tem sentimentos sinceros por você, o que não é culpa dela e algo pelo qual, claramente, você não é merecedor, caso contrário não estaria cheirando à culpa neste momento. Tem sorte de ter a mulher que deseja ao seu lado, então pare de ser um completo idiota.
Gregg não ficava chocado assim com frequência. Mas, por sua vida, não fazia ideia do que dizer.
Como aquele estranho sabia tanto?
E Cristo, Gregg odiava o fato de Holly ter se deitado com outra pessoa... mas ela tinha dito o nome dele?
– Diga adeus. – Rathboone levantou sua própria mão, imitando um tchau infantil. – Prometo deixar sua mulher em paz, contanto que pare de ignorá-la. Agora vá, tchauzinho.
Agindo sob um reflexo que não era seu, Gregg levantou o braço e fez um aceno desajeitado antes de virar-se e começar a sair do local.
Deus, suas têmporas... que... droga... por que... onde... sua mente parou de funcionar, como se tivessem jogado cola nas engrenagens.
Descer para o segundo andar. Ir para o quarto.
Ao tirar a roupa e deitar na cama de cueca, colocou sua cabeça dolorida sobre o travesseiro perto de Holly, a puxou em um abraço e tentou se lembrar...
Ele tinha que fazer alguma coisa. O que era...?
O terceiro andar. Tinha que ir ao terceiro andar. Tinha que descobrir o que havia lá em cima...
Uma nova dor se lançou em seu cérebro, matando não apenas o impulso de ir a qualquer lugar, mas também matando qualquer interesse no que havia no sótão.
Fechando os olhos, teve uma estranha visão de um estrangeiro estranho com um rosto familiar... mas, em seguida, caiu num sono extremamente profundo e nada mais importava.
CAPÍTULO 43
A invasão na mansão ao lado não representava nenhum problema.
Depois de considerar a atividade da mansão e não encontrar nada que sugerisse qualquer movimento dentro das muralhas, Darius declarou que ele e Tohrment iriam entrar... e entraram. Desmaterializando-se na cerca de madeira que separava as duas propriedades, reapareceram ao lado da região da cozinha... então, simplesmente caminharam direto em direção à robusta moldura de madeira da porta.
Na verdade, o maior obstáculo para ultrapassar a parte externa era a superação do esmagador sentimento de pavor.
A cada passo e a cada respiração, Darius tinha que se esforçar para seguir em frente, seus instintos gritavam que estava no lugar errado. E, ainda assim, se recusava a voltar. Não queria utilizar outros meios práticos pelos quais poderia entrar e embora a filha de Sampsone pudesse muito bem não estar ali, uma vez que não tinha outras pistas, precisava fazer alguma coisa ou ficaria louco.
– Esta casa parece assombrada – murmurou Tohrment enquanto observavam os quartos dos empregados.
Darius assentiu.
– Mas lembre-se de que qualquer fantasma jaz apenas em sua mente e não se confunde com ninguém que esteja sob este teto. Venha, devemos localizar os quartos subterrâneos. Se os humanos a tomaram, devem mantê-la no subsolo.
Enquanto seguiam seu caminho em silêncio, passaram pela enorme cozinha e pelas carnes defumadas que pendiam nos ganchos, deixando claro que esta era uma casa humana. Tudo estava calmo ao redor, ao contrário da mansão vampira, onde haveria um momento de preparação para a Última Refeição.
Infelizmente, concluir que a casa pertencia à outra raça não era uma confirmação de que a fêmea não estivesse sendo mantida ali... e talvez tal conclusão fosse um indício. Embora os vampiros soubessem com certeza da existência da humanidade, não havia nada além de mitos sobre vampiros infestando a periferia cultural humana... era assim que os seres com presas sobreviviam com maior facilidade. Ainda assim, de vez em quando, havia contatos inevitáveis e genuínos entre aqueles que optaram por permanecer ocultos e aqueles de olhares curiosos... e esses raros esbarrões de um contra o outro explicavam as assustadoras e fantásticas histórias humanas sobre tudo desde “fadas”, “bruxas”, “fantasmas” e “sugadores de sangue”. Na verdade, a mente humana parecia sofrer com uma necessidade paralisante de inventar coisas na ausência de provas concretas. O que fazia sentido, considerando a compreensão autorreferencial das raças do mundo e seu lugar nele: algo que não se encaixava era forçado em uma superestrutura, mesmo que isso significasse a criação de elementos “paranormais”.
E que sorte seria para uma família rica capturar evidências físicas de tais superstições efêmeras.
Especialmente, provas lindas e indefesas.
Não se sabia o que vinha sendo observado por aquela família ao longo do tempo. Que estranhezas tinham sido testemunhadas naqueles vizinhos. Quais diferenças raciais foram expostas de forma inesperada e observadas sem qualquer dificuldade, em virtude das duas propriedades comporem a mesma paisagem.
Darius amaldiçoou baixinho e pensou que era por isso que os vampiros não deviam viver tão próximos aos seres humanos. A separação era o melhor. Congregação e separação.
Ele e Tohrment procuraram por todo o primeiro andar da mansão desmaterializando-se de sala em sala, deslocando-se conforme as sombras eram projetadas pelo luar, passando por todo o mobiliário esculpido e tapeçarias sem som ou substância.
A maior preocupação deles e o motivo de não atravessarem o chão de pedra andando? Cães adormecidos. Muitas das mansões os tinham como guardas e essa era uma grande complicação que poderiam muito bem passar sem. Com sorte, se houvesse algum animal na casa, estariam enrolados aos pés da cama do chefe da família.
E o mesmo valeria para qualquer tipo de guarda pessoal.
No entanto, a sorte estava ao lado deles. Nenhum cão. Nenhum guarda. Pelo menos que tivessem visto, escutado, ou cheirado... e foram capazes de encontrar a passagem que os levaria ao andar subterrâneo.
Ambos levavam velas e acenderam os pavios, as chamas cintilando sobre os passos apressados, rudes e descuidados e pelas paredes desiguais... tudo parecia indicar que a família nunca havia feito aquela jornada subterrânea, apenas os servos.
Mais uma prova de que não era uma família de vampiros. Alojamentos subterrâneos estavam entre os mais pródigos em tais casas.
Descendo para o nível mais baixo, a pedra sob seus pés deu lugar à terra batida e o ar ficou pesado com a umidade fria. Conforme progrediam sob a grande mansão, encontravam despensas cheias de caixotes de vinho e outras bebidas, caixotes de carnes salgadas e cestas de batatas e cebolas.
Na outra extremidade, Darius esperava encontrar um segundo conjunto de escadas que os levaria a sair na superfície. Em vez disso, chegaram ao final do salão subterrâneo. Nenhuma porta. Apenas uma parede.
Observou ao redor para ver se havia pegadas sobre o solo ou rachaduras nas pedras, indicando um painel ou uma seção oculta. Nada.
Para ter certeza, ele e Tohrment correram suas mãos sobre a superfície das paredes e pelo chão.
– Havia muitas janelas nos andares superiores – Tohrment murmurou. – Mas, talvez, se fosse para mantê-la lá em cima, poderiam ter colocado cortinas. Ou será que existem quartos sem janelas?
Enquanto a dupla enfrentava o beco sem saída que haviam atingido, aquela sensação de medo, de estar em um lugar errado, inchou no peito de Darius até sua respiração ficar curta e o suor brotar sob seus braços e sua coluna. Tinha a sensação de que Tohrment estava sofrendo de um ataque similar de apreensão ansiosa, pois o macho deslocava seu peso para trás e para frente, para trás e para frente.
Darius balançou a cabeça.
– Na verdade, ela parece estar em outro lugar...
– Grande verdade, vampiro.
Darius e Tohrment se viraram enquanto desembainhavam as adagas.
Olhando para aquilo que os tinha pegado de surpresa, Darius pensou... bem, isso explica o medo.
A figura de túnica branca bloqueando a saída não era humana e nem vampira.
Era um sympatho.
CAPÍTULO 44
Enquanto Xhex esperava do lado de fora da sala de musculação, encarava suas emoções com interesse desapaixonado. Isso era, ela supôs, como olhar para o rosto de um estranho e considerar as imperfeições, as cores e os traços por nenhuma outra razão além da simples observação.
Sua ânsia por vingança foi eclipsada por uma preocupação honesta por John.
Surpresa, surpresa.
Afinal, nunca tinha imaginado ver esse tipo de fúria tão de perto, especialmente de pessoas como John. Era como se ele tivesse uma fera interior que estivesse rugindo em sua cela.
Cara, um macho vinculado não é algo com que você pode brincar.
E ela não estava se enganando. Essa era a razão pela qual ele reagiu da forma como reagiu – e também a causa do aroma apimentado que ela cheirava perto dele desde que saiu da prisão de Lash: em algum momento durante as semanas de suas férias brutais, a atração e o respeito de John por ela haviam tomado forma de uma maneira irrevogável.
Droga. Que bagunça.
Quando o som da esteira parou de repente, ela poderia apostar que Blaylock havia puxado a tomada da parede e foi bom ele fazer isso.
Xhex tentou fazer com que parasse de tentar se matar na esteira, mas quando a argumentação mostrou ser absolutamente nula, decidiu ficar de sentinela do lado de fora.
Não havia chance alguma de vê-lo correndo até se acabar. Ouvir a punição já era ruim o suficiente.
Mais à frente no corredor, a porta de vidro do escritório se abriu e o Irmão Tohrment apareceu. A julgar pelo brilho que se emanou atrás dele, Lassiter estava no centro de treinamento também, mas o anjo caído ficou para trás.
– Como está John? – Quando o Irmão se aproximou, sua preocupação estava escrita em seu rosto duro e olhos cansados e também em sua grade emocional, que estava iluminada nos setores de arrependimento.
Fazia sentido de muitas maneiras.
Xhex olhou para a porta da sala de musculação.
– Parece que ele repensou a carreira e resolveu ser maratonista. Isso ou ele apenas está tentando quebrar outra esteira.
A altura elevada de Tohr obrigou-a a inclinar a cabeça para cima e foi surpreendente observar o que havia por trás de seus olhos azuis: havia conhecimento naquele olhar, conhecimento profundo que fez com que seus próprios circuitos emocionais queimassem com suspeita. Na experiência dela, estranhos que observam você daquela maneira são perigosos.
– Como você está? – ele perguntou suavemente.
Foi estranho. Ela não tinha muito contato com o Irmão, mas sempre que seus caminhos se cruzaram, ele sempre foi particularmente... gentil. Razão pela qual ela sempre o evitava. Lidava muito melhor com dureza do que com qualquer coisa delicada.
Sinceramente, ele a deixava nervosa.
Quando ficou quieta, o rosto dele se apertou como se ela o tivesse decepcionado, mas ele não a culpava pela inadequação.
– Tudo bem – ele disse. – Não vou me intrometer.
Jesus, ela era terrível.
– Não, está tudo bem. Só não pode exigir que eu responda a isso agora.
– É justo. – Os olhos dele se estreitaram na porta da sala de musculação e ela teve a nítida impressão que ele estava tão preso do lado de fora quanto ela, excluído pelo macho que estava sofrendo do outro lado. – Então, ligou para a cozinha para me chamar?
Pegou a chave que John usou para que pudessem entrar na antiga casa do cara.
– Apenas para lhe devolver isso e dizer que houve um problema.
A grade emocional do Irmão ficou negra e vaga, todas as luzes apagadas.
– Que tipo de problema?
– Uma de suas portas de vidro está quebrada. Vai precisar de duas folhas de madeira compensada para cobrir. Conseguimos ativar outra vez o alarme de segurança, então os detectores de movimento estão ligados, mas você terá trabalho por lá. Ficarei feliz em ajudar.
Isso supondo que John acabasse com o restante das máquinas de exercícios, com os tênis de corrida, ou caísse morto.
– Qual... – Tohr limpou a garganta. – Qual porta?
– A do quarto do John Matthew.
O Irmão franziu a testa.
– Estava quebrada quando vocês chegaram lá?
– Não... apenas explodiu espontaneamente.
– Vidro não faz isso sem uma boa razão.
E ela não tinha dado uma boa razão para John Matthew?
– É verdade.
Tohr a encarou e ela o encarou de volta. O silêncio tornou-se espesso como lama. No entanto, por mais gentil e bom soldado que fosse o Irmão, Xhex não tinha nada para compartilhar com ele.
– Com quem eu falo para conseguir alguma madeira de compensado? – ela se dispôs.
– Não se preocupe com isso. E obrigado por me informar.
Quando o Irmão se virou e caminhou de volta para o escritório, ela se sentiu um inferno – o que concluiu ser mais outra conexão que tinha com John Matthew. Só que ao invés de usar uma esteira até quebrar, ela apenas queria pegar uma faca e cortar a parte de dentro dos antebraços para aliviar a pressão.
Deus, às vezes parecia uma bebê chorona, de verdade. Afinal, aqueles silícios não eram apenas para manter o seu lado sympatho sob controle, eles a ajudavam a ofuscar coisas que ela não queria sentir.
O que era quaaase noventa e nove por cento emoção.
Dez minutos depois, Blaylock colocou a cabeça para fora da porta. Seus olhos estavam focados no chão e suas emoções estavam revoltas, o que fazia sentido. Ninguém gostava de ver seu amigo se autodestruir, e ter que conversar com a pessoa que havia jogado o pobre coitado naquela queda livre não era exatamente uma felicidade.
– Ouça, John foi para o vestiário tomar uma ducha. Consegui fazer que ele parasse com a ideia de correr, mas ele... ele precisa de um pouco mais de tempo, acho.
– Certo. Vou continuar esperando por ele aqui no corredor.
Blaylock assentiu e então houve uma pausa embaraçosa.
– Vou malhar agora.
Depois que a porta se fechou, ela pegou sua jaqueta e suas armas e vagou em direção ao vestiário. O escritório estava vazio, o que significava que Tohr tinha seguido seu caminho, sem dúvida para cumprir seu papel de Homem da Manutenção com algum doggen.
E o silêncio ressonante lhe dizia que não havia mais ninguém em nenhuma das salas de aula, ginásio ou clínica.
Deslizando pela parede, sentou-se sobre o chão e apoiou seus braços nos joelhos. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos.
Deus, estava exausta...
– John ainda está lá?
Xhex acordou de repente, sua arma foi apontada direto no peito de Blaylock. Quando o cara pulou para trás, ela imediatamente travou a arma e baixou o cano.
– Desculpe, velhos hábitos são difíceis de morrer.
– Ah, sim. – O cara apontou sua toalha branca em direção ao vestiário. – John ainda está lá? Já passou mais de uma hora.
Ela ergueu o pulso e olhou para o relógio que tinha pegado em algum lugar.
– Cristo.
Xhex se colocou em pé e arrombou a porta. O som do chuveiro aberto não era muito um alívio.
– Existe outra saída que ele possa ter usado?
– Apenas na sala de musculação... mas que acaba dando neste mesmo corredor.
– Certo, vou falar com ele – ela disse, rezando para que fosse a coisa certa a fazer.
– Bom. Vou terminar meus exercícios. Ligue se precisar de mim.
Empurrou a porta, e lá dentro o lugar parecia padrão, todos os armários de metal bege separados por bancos de madeira. Seguindo o som da água caindo à direita, passou por compartimentos de mictórios e pias que pareciam solitários sem um monte de homens suados, nus e envolvidos em toalhas.
Encontrou John numa área aberta com dezenas de chuveiros e azulejos em todos os centímetros do chão, paredes e teto. Estava usando camiseta, bermuda de corrida e estava sentado encostado contra a parede, seus braços apoiados em seus joelhos, cabeça baixa, a água correndo sobre seus enormes ombros e tronco.
Seu primeiro pensamento foi de que ela própria estava exatamente na mesma posição do lado de fora.
O segundo pensamento foi que estava surpresa ao ver que ele conseguia se manter tão parado. A grade emocional dele não era a única coisa iluminada, aquela sombra atrás da grade estava queimando de angústia. Era como se duas partes dele estivessem juntas num tipo de luto, sem dúvida porque havia sofrido ou testemunhado perdas demais, todas cruéis, em sua vida... e talvez estivesse sofrendo outra agora. E o lugar onde tudo aquilo o levava emocionalmente a deixava apavorada. O denso vazio negro criado nele era tão poderoso que deformava a superestrutura da psique dele... levando-o onde ela havia estado naquela maldita sala de operações.
Levando-o à beira da loucura.
Pisando sobre a superfície azulejada do chão, a pele dela tremeu ao esbarrar com o ar frio que vinha dos sentimentos dele... e o fato é que ela estava fazendo isso outra vez. Era igual a Murhder, só que pior.
Jesus Cristo, ela era uma maldita viúva negra no que se referia a machos de valor.
– John?
Ele não olhou para cima, embora não tivesse certeza se estava ciente de que ela estava na frente dele. John estava de volta ao passado, preso por suas memórias...
Franzindo a testa, encontrou os olhos dele seguindo o caminho da água que deslizava sobre seu corpo e escorria pelo chão coberto de azulejos... até o ralo.
O ralo.
Algo com aquele ralo. Algo a ver com... Lash?
Dentro do abraço da solidão e contra o pano de fundo do som tranquilo do jato de água, ela liberou seu lado mau por uma boa finalidade: rapidamente, seus instintos sympatho mergulharam em John, penetrando ao longo de seu território físico e indo fundo em sua mente e suas lembranças.
Quando ele ergueu a cabeça e olhou para ela em choque, tudo se tornou vermelho e bidimensional, o azulejo tingiu-se de um rosa rubro. O cabelo escuro e úmido de John mudou para a cor do sangue; a água que corria parecia um champanhe rosa.
As imagens que ela captou estavam envoltas numa capa de terror e vergonha: uma escada escura num prédio parecido com aquele onde a tinha levado. John era apenas um garotinho pré-transição sendo forçado por um humano fétido...
Oh. Deus.
Não.
Os joelhos da Xhex cederam e ela cambaleou – então apenas deixou-se cair ao chão, aterrissando no azulejo liso tão duro que seus ossos e dentes se abalaram.
Não... não John, ela pensou. Não quando ainda era indefeso, inocente e tão sozinho. Não quando estava perdido no mundo humano, batalhando para sobreviver.
Não ele. Não assim.
Com seu lado sympatho liberado e seus olhos sem dúvida brilhando em vermelho, eles se sentaram ali encarando um ao outro. Ele sabia o que ela tinha visto e odiava seu conhecimento com uma fúria tal que ela, de maneira sábia, manteve qualquer pena para si mesma. No entanto, ele não parecia ressentido que ela o tivesse invadido. Era mais como se desejasse muito não ter dividido aquilo com ninguém.
– O que Lash tem a ver com isso? – disse com voz rouca. – Pois ele está por toda parte em sua mente.
Os olhos de John voltaram-se para o ralo no centro do local outra vez e ela teve a impressão de que ele estava vendo sangue acumulando-se em volta da tampa de aço inoxidável. Sangue de Lash.
Xhex estreitou os olhos, a história passada tornava-se muito previsível: Lash havia descoberto o segredo de John. De alguma maneira. E ela não precisava de seu lado sympatho para saber o que aquele desgraçado havia feito com uma informação como aquela.
Um locutor de beisebol procuraria menos plateia.
Quando o olhar de John voltou-se para ela, sentiu uma perturbadora comunhão com ele. Sem barreiras, sem preocupações sobre ser vulnerável. Mesmo estando completamente vestidos, cada um estava nu diante do outro.
Ela sabia muito bem que não encontraria isso nunca em nenhum outro macho. Ou em qualquer outra pessoa. Por sua vez, ele sabia, sem palavras, tudo o que tinha acontecido com ela e tudo o que aquele tipo de experiência gerava. E ela sabia o mesmo sobre ele.
E talvez aquela sombra em sua grade emocional fosse uma espécie de bifurcação em sua psique causada pelo trauma que tinha passado. Talvez sua mente e sua alma tivessem se reunido e decidido eliminar o passado e colocá-lo no fundo de seu sótão mental e emocional. Talvez fosse por isso que as duas partes estivessem em um movimento tão vívido.
Fazia sentido. Assim como a vingança que estava sentindo. Afinal, Lash esteve intimamente envolvido nos dois conjuntos de erros, no dele e no dela.
Informações como aquelas sobre John nas mãos erradas? Era quase tão ruim quanto o horror que havia realmente acontecido, porque você revive a maldita história toda vez que mais alguém fica sabendo. Razão pela qual Xhex nunca falava sobre seu tempo na colônia com seu pai, ou sobre aquela maldita clínica humana... ou...
John ergueu seu dedo indicador e deu tapinhas ao lado de seu olho.
– Os meus estão vermelhos? – ela murmurou. Quando ele assentiu, ela esfregou o rosto. – Desculpe. Provavelmente vou precisar de outro par de silícios.
Quando ele fechou a água, ela deixou cair as mãos.
– Quem mais sabe? Sobre o que aconteceu com você?
John franziu a testa. Então, assinalou com os lábios: Blay. Qhuinn. Zsadist. Havers. Um terapeuta. Quando ele balançou a cabeça, ela entendeu isso como sendo o fim da lista.
– Não vou dizer nada a ninguém.
Os olhos dela percorreram seu corpo imenso desde aqueles ombros até seus bíceps poderosos e aquelas coxas tremendas – e desejou que ele tivesse aquele tamanho lá atrás naquela escada suja. Pelo menos, não era mais o mesmo de quando foi ferido – se bem que isso era verdade apenas por fora. Por dentro, ele tinha todas as idades que havia vivido, o bebê que havia sido abandonado, a criança que ninguém quis, o garoto em fase de pré-transição sozinho no mundo... e agora o macho adulto.
Ele era um ótimo guerreiro no campo de batalha, um amigo leal e, considerando o que tinha feito àquele redutor naquela mansão e o que sem dúvida queria fazer com Lash, era um inimigo muito perigoso.
E a isso se somava um problema: em sua opinião, era ela quem deveria matar o filho do Ômega.
Não que precisassem falar sobre isso agora.
Quando a umidade dos azulejos molhou sua calça e a água escorreu de John, ficou surpresa com o que queria fazer.
De muitas maneiras, não fazia sentido, e com certeza não era uma ideia brilhante. Mas a lógica não era importante naquele momento.
Xhex se deslocou para frente e colocou as palmas das mãos no chão escorregadio do chuveiro. Deslocando-se devagar, moveu a mão, o joelho, a mão, o joelho, indo na direção dele.
Ela percebeu quando ele sentiu o cheiro dela.
Pois por baixo daquela bermuda esportiva ensopada, seu membro se contraiu e endureceu.
Quando estava cara a cara com ele, observou atentamente sua boca.
– Nossas mentes já estão unidas. Quero que nossos corpos sigam no mesmo sentido.
Com isso, inclinou-se e levantou a cabeça. Pouco antes de beijá-lo, ela fez uma pausa, mas não porque estivesse preocupada se iria afastá-la – ela sabia pelo aroma apimentado que John não estava interessado em recuar.
– Não, você entendeu tudo errado, John. – Lendo as emoções dele, negou com a cabeça. – Você não é metade do homem que poderia ser por causa do que foi feito. Você é duas vezes mais do que qualquer pessoa simplesmente porque sobreviveu.
Sabe? A vida o coloca em lugares que nunca imaginou estar.
Sob nenhuma circunstância, nem mesmo nos piores pesadelos que seu subconsciente havia exibido, John havia sequer pensado que seria capaz de lidar com Xhex se ela soubesse o quanto ele sofreu quando era jovem.
A questão era que não importava o quanto seu corpo tinha se tornado grande ou forte, isso nunca encobriu a realidade do quanto havia sido fraco. E a ameaça de que aqueles que ele respeitava descobrissem trouxe aquela fraqueza à tona não apenas uma vez, mas várias.
E lá estava ele novamente com seus demônios expostos.
E quanto ao seu banho de duas horas? Ainda estava morrendo por dentro por ela ter sido ferida daquele jeito... Era tão doloroso pensar naquilo, horrível demais para não se demorar. E adicione sua necessidade como macho vinculado de protegê-la e mantê-la em segurança. E o fato de que sabia exatamente o quão desagradável é ser vitimado daquela maneira.
Se apenas a tivesse encontrado mais cedo... se apenas tivesse trabalhado mais duro...
Sim, mas ela tinha se libertado. E fez isso sozinha. Não foi ele quem a libertou – pelo amor de Deus... esteve com ela no maldito quarto onde tinha sido estuprada e nem mesmo soube que ela estava lá.
Eram coisas demais para lidar, todas as camadas e interseções faziam sua cabeça zunir ao ponto de sentir como se seu cérebro fosse um helicóptero prestes a levantar voo, para o alto e avante, para nunca mais voltar.
A única coisa que o mantinha com os pés no chão era a perspectiva de matar Lash.
Enquanto aquele desgraçado estivesse lá fora, respirando, John tinha um foco para manter sua estabilidade mental. Matar Lash era sua única ligação à sanidade e ao propósito, uma proteção para que seu ser não enferrujasse.
Porém, se fracassasse mais uma vez, se não vingasse sua fêmea, estaria tudo acabado.
– John – disse Xhex, num evidente esforço de tirá-lo de seu estado de pânico.
Focando-se nela, encarou seus olhos vermelhos e brilhantes e lembrou-se de que era uma sympatho. O que significava que podia escavar dentro dele e acionar todos os seus alçapões interiores, liberando seus demônios apenas para observá-los dançar. Só que ela não fez isso, fez? Adentrou nele, sim, mas apenas para entender onde ele estava. E ao observar suas partes obscuras, não tinha se afastado e apontado um dedo inquisidor ou recuado enojada.
Ao invés disso, se aproximou delicadamente, dando a entender que queria beijá-lo.
Os olhos de John observaram seus lábios.
Quem diria, ele podia sim aguentar um pouco daquele tipo de conexão. Palavras não eram suficientes para aplacar a autoaversão que sentia, mas as mãos dela em sua pele, sua boca na dele, seu corpo contra o seu... aquilo, sem uma palavra, era o que ele precisava.
– É isso mesmo – ela disse, seus olhos ardendo, e não apenas por causa do lado sympatho. – Você e eu precisamos disso.
John levantou e colocou suas mãos frias e molhadas sobre a face dela. Então olhou ao redor. Aquela poderia ser a hora, mas não era o lugar.
Não ia fazer amor com ela no piso duro.
Venha comigo, fez com os lábios, levantando-se e puxando-a para seu lado.
Sua ereção estava evidente na frente de sua bermuda esportiva quando deixaram o vestiário, o desejo de possuí-la rugia em seu sangue, mas esse desejo foi controlado pela necessidade de proporcionar algo delicado a Xhex ao invés da violência que ela experimentou.
Ao invés de se dirigir para o túnel de volta à casa principal, ele os levou para a direita. De modo algum iria para seu quarto com ela debaixo do braço e ostentando uma ereção do tamanho de uma viga. Além do mais, estava encharcado.
Muita coisa para explicar para a plateia permanente que a mansão oferecia.
Próximo ao vestiário, mas não conectado a ele, havia uma sala adjacente com mesas de massagens e uma banheira de hidromassagem no canto. O lugar também tinha um monte de colchonetes azuis que nunca foram usados desde que haviam sido colocados ali – os Irmãos quase não tinham tempo para pugilismo, quanto mais para brincar de bailarina com seus preciosos tendões e glúteos.
John reforçou a porta fechada com uma cadeira de plástico e virou-se para encarar Xhex. Ela estava andando em volta da sala. Na opinião dele, seu corpo flexível e passos suaves eram melhores que um grande show de striptease.
Aproximando-se da lateral da porta, apagou as luzes.
O sinal branco e vermelho de saída em cima da porta criou uma piscina de luz fraca que seu corpo dividiu em duas, sua sombra era uma alta e escura divisão que se estendia por todo o piso azul até os pés de Xhex.
– Deus, eu quero você – ela disse.
Não precisaria dizer aquilo duas vezes. Chutando os sapatos para longe, puxou sua camiseta sobre sua cabeça e deixou cair sobre os colchonetes com uma batida. Então, colocou seus polegares na cintura de bermuda e a desceu sobre suas coxas. Seu membro se libertou e se elevou ereto diante dele. O fato de que estava apontado para ela como uma varinha de condão não era uma grande surpresa – tudo, desde seu cérebro, sangue, até o bater de seu coração, estava focado na fêmea parada a três metros de distância dele.
Mas não ia pular sobre ela e começar a se movimentar com força. Não. Nem mesmo se aquilo tornasse suas bolas azuis como um Smurf...
Seus pensamentos deixaram de fazer sentido quando as mãos dela se dirigiram para a cintura da blusa e, com um movimento elegante, deslizou a peça de roupa sobre seu tronco e cabeça. Embaixo disso, não havia nada além de sua linda pele suave e seus altos e firmes seios.
Quando o perfume dela surgiu do outro lado da sala e ele começou a ofegar, os dedos ágeis de Xhex começaram a abrir o laço de sua calça e o fino algodão verde caiu rapidamente em seus tornozelos.
Oh... meu Deus, ela estava gloriosamente despida para ele, e as linhas impressionantes de seu corpo eram maravilhosas: apesar de terem feito sexo duas vezes, ambas foram rápidas e quentes e não teve a chance de olhar para ela direito...
John piscou com força.
Por um momento, tudo que conseguia enxergar eram os hematomas em seu corpo, especialmente aqueles dentro de suas coxas. Saber agora que ela não os tinha conseguido por causa de luta corporal...
– Não pense nisso, John – ela disse roucamente. – Eu não estou pensando e você também não deveria. Simplesmente... não pense nisso. Ele já tirou muito de nós dois.
A garganta dele ficou tensa com um rugido de vingança, que tratou de abafar apenas porque sabia que ela estava certa. Com grande força de vontade, decidiu que aquela porta atrás dele, aquela que tinha bloqueado com a cadeira, ia manter do lado de fora não apenas as pessoas da mansão, mas seus fantasmas e erros também.
Haveria tempo depois para igualarem o placar.
Você é tão linda, disse com os lábios.
Mas claro que ela não conseguia ver seus lábios.
Então, teria que mostrar isso a ela.
John deu um passo à frente e outro e outro. E não era apenas ele indo em direção a ela. Xhex o encontrou no meio do caminho, a forma dela foi envolvida pela sombra lançada pelo corpo dele, mas mesmo assim, aquela era a única coisa que ele via.
Quando se encontraram, o peito dele estava pulsando e seu coração. Amo você, ele fez com os lábios no pedaço escuro que havia produzido sob a luz.
Alcançaram um ao outro no mesmo momento: ele foi direto para o rosto de Xhex. Ela colocou as mãos nas costelas dele. Suas bocas completaram a jornada no ar parado, elétrico, seus lábios se trancaram, suave contra suave, calor contra calor. Puxando-a contra seu peito nu, John envolveu seus braços grossos ao redor dos ombros dela e a segurou apertado enquanto aprofundava o beijo – e ela estava logo ali com ele, deslizando as palmas de suas mãos nas laterais de seu corpo e as escorregando pela parte inferior de suas costas.
Seu pênis dobrou-se entre eles, a fricção entre sua barriga e a dela enviou dardos de calor que subiam através de sua coluna. Mas ele não estava com pressa. Com empurrões preguiçosos, seus quadris se moveram para frente e para trás, acariciando-a com sua ereção enquanto movia suas mãos pelos braços dela e então para sua cintura.
Empurrando profundamente com a língua, arrastou uma das mãos até o cabelo curto que havia na nuca dela e deixou a outra cair na parte de trás de sua coxa. A perna dela subiu com o puxão gentil dele, os músculos macios flexionando...
Com um ágil movimento, ela saltou, pulando em cima dele e enlaçando a outra perna ao redor dos quadris dele. Quando seu membro tocou algo quente e úmido, ele gemeu e os levou para o chão, segurando-a enquanto mergulhavam nos colchonetes.
John quebrou o selo do beijo e recuou o suficiente para que pudesse correr sua língua pelo lado da garganta dela. Travando-a, sugou as linhas de seu pescoço e seguiu para baixo com suas presas, que vibrava com os impulsos de sua ereção. Enquanto descia, os dedos dela se enterravam no cabelo dele e o segurava contra sua pele, movendo-o na direção de seus seios.
Recuando, ergueu-se sobre ela e traçou com os olhos a maneira como seu corpo era destacado pela luz brilhante do sinal de saída. Seus mamilos estavam firmes, suas costelas estavam pulsando forte e os músculos de seu peitoral bombeavam enquanto ela movimentava os quadris. Entre suas coxas, seu sexo liso fez com que abrisse a boca em um assobio silencioso...
Sem aviso, ela estendeu a mão e a colocou sobre seu pênis.
O contato o fez jogar-se sobre seus braços e apoiar-se sobre as palmas das mãos.
– Caramba, você é lindo – ela disse num murmúrio.
A voz dela o colocou em ação e se inclinou para frente, libertando seu membro da mão dela e posicionando-se de modo a ficar ajoelhado entre suas coxas. Baixando a cabeça, cobriu um de seus mamilos com a boca e começou a excitá-la com a língua.
O gemido de Xhex quase o fez gozar ali mesmo e John teve que congelar seu corpo para recuperar o controle. Quando a maré de formigamento retrocedeu o suficiente, ele recomeçou a sugá-la... e deixou suas mãos flutuarem devagar pelas costelas dela, sua cintura e seus quadris.
Num movimento típico de Xhex, foi ela quem o colocou em seu sexo.
Xhex cobriu uma das mãos dele com a sua e a colocou exatamente onde os dois queriam que estivesse.
Quente. Sedoso. Escorregadio.
O orgasmo em sua ereção foi liberado no instante que seus dedos deslizaram e foram parar diretamente sobre a entrada de onde ele estava morrendo de vontade de penetrar: não havia absolutamente nada segurando a liberação e ela riu enquanto ele jorrava em suas pernas.
– Gosta de me ver assim? – ela murmurou.
Ele olhou em seus olhos, e ao invés de concordar, levou a mão até sua boca. Quando ele estendeu sua língua e deslizou entre seus lábios, ela também estremeceu, seu corpo se levantou dos colchonetes, seus seios se ergueram, suas coxas se abriram ainda mais.
Com as pálpebras semicerradas, manteve seu olhar fixado no dela enquanto plantava suas palmas dos dois lados de seus quadris e se abaixava em direção ao seu sexo.
Poderia ter continuado com aqueles beijos suaves. Poderia ter mostrado mais sensibilidade provocando-a com a língua e a ponta dos dedos.
Dane-se tudo isso.
Com uma necessidade primitiva e dolorosa, abocanhou seu núcleo, sugando-a para dentro dele, tomando-a profundamente, engolindo-a. Havia um pouco de seu próprio orgasmo dentro dela e John o provou junto com o mel de Xhex – e o macho vinculado nele adorou a combinação.
Sorte dele. No momento em que terminassem com aquela sessão, sua essência apimentada a teria envolvido completamente, por dentro e por fora.
Enquanto ele acariciava, lambia e penetrava, sentiu uma das pernas dela ser lançada sobre seu ombro, e então Xhex passou a comandar os movimentos contra seu queixo, lábios e boca, acrescentando mais à magia, levando-o a impulsioná-la mais forte.
Quando ela chegou ao orgasmo, disse seu nome. Duas vezes.
E John ficou feliz que, apesar de não ter voz, seus ouvidos funcionavam perfeitamente.
CONTINUA
CAPÍTULO 32
John Matthew acordou, sentiu Xhex ao seu lado e entrou em pânico.
Sonho... Aquilo era um sonho?
Sentou-se lentamente, e quando sentiu o braço dela escorregar em seu peito em direção à barriga, conseguiu pegá-lo antes que atingisse seus quadris. Deus, aquilo que evitava com cuidado estava quente, pesado e...
– John? – ela disse no travesseiro.
Sem pensar, envolveu-se nela e alisou seus cabelos curtos. No instante em que fez isso, ela pareceu cair no sono outra vez.
Um olhar rápido no relógio lhe avisou que eram quatro da tarde. Eles dormiram por horas, e se fosse guiar-se pelo ronco em seu estômago, Xhex deveria estar morrendo de fome também.
Quando se certificou de que tinha apagado outra vez, John libertou-se de seu abraço e andou ao redor silenciosamente. Escreveu um bilhete para ela antes de vestir suas calças de couro e sua camiseta.
Com os pés descalços, alcançou o corredor. Tudo estava tranquilo, pois não havia mais treinamento ali, o que era uma maldita vergonha. Deveria haver gritos dos aprendizes vindos do ginásio, vozes do mestre na sala de aula e batidas dos armários sendo fechados nos vestiários.
Ao invés disso, o silêncio.
Mas percebeu que ele e Xhex não estavam sozinhos.
Quando chegou à porta de vidro do escritório, congelou com a mão sobre a maçaneta.
Tohr estava dormindo na mesa... bem, em cima dela. Sua cabeça estava apoiada em seu antebraço e seus ombros estavam caídos.
John estava tão acostumado a sentir raiva do cara que foi um choque não ter nada do gênero acendendo dentro dele. Em vez disso... sentiu uma esmagadora tristeza.
Tinha acordado ao lado de Xhex naquela manhã.
Mas Tohr nunca, jamais teria isso novamente. Nunca mais voltaria a alisar os cabelos de Wellsie. Nunca mais iria à cozinha para trazer-lhe algo para comer. Nunca iria abraçá-la ou beijá-la novamente...
E ainda tinha perdido um bebê ao longo desse caminho.
John abriu a porta e esperou que o Irmão acordasse de um sobressalto, mas Tohr não fez isso. O macho estava desmaiado. Contudo, aquela exaustão fazia sentido. Estava tentando recuperar sua forma, comendo e malhando vinte e quatro horas, sete dias por semana, e o esforço estava começando a mostrar resultado. Suas calças já não estavam mais caindo e suas camisas não estavam mais tão largas. Mas, evidentemente, o processo era desgastante.
Onde estava Lassiter?, John se perguntou enquanto passava pela mesa e pelo armário. O anjo normalmente andava colado no Irmão.
Esquivando-se pela porta escondida entre as prateleiras de suprimentos, atravessou o túnel em direção à casa. Enquanto avançava, as luzes fluorescentes no teto se estendiam na frente dele, dando a impressão de um caminho predestinado – o que, levando em conta como as coisas estavam, era um conforto. Quando chegou a um conjunto de degraus baixos, subiu, digitou um código e subiu mais um pouco. Emergindo no saguão de entrada, ouviu a televisão na sala de bilhar e percebeu que era o lugar onde o anjo estava.
Ninguém na casa estaria assistindo à Oprah. Não sem uma arma apontada na cabeça.
A cozinha estava vazia, sem dúvida, os doggen estavam comendo algo em seus próprios aposentos antes de começarem a preparar a Primeira Refeição e se ocuparem da casa. O que era muito bom. Ele realmente não queria ajuda.
Com movimentos rápidos, pegou uma cesta da despensa e a encheu. Roscas salgadas. Garrafa térmica com café. Jarra de suco de laranja. Frutas cortadas. Pão doce. Pão doce. Pão doce. Caneca. Caneca. Copo.
Estava apelando para muita caloria e rezando para que ela gostasse de doces. Então, apenas por prevenção, fez um sanduíche de peru. E por um motivo diferente, fez também um de presunto e queijo.
Avançando pela sala de jantar, voltou para a porta debaixo da escadaria.
– Muita comida para dois – disse Lassiter apontando para baixo com seu sarcasmo de sempre.
John se virou. O anjo estava na porta de entrada da sala de bilhar, encostado contra o arco ornamentado. Tinha uma bota cruzada sobre a outra e os braços cruzados no peito. Seus piercings dourados brilhavam, dando a impressão de que havia olhos por toda parte, olhos que não perdiam nada.
Lassiter sorriu um pouco.
– Então, está vendo as coisas de um ângulo diferente agora, não está?
Pouco tempo antes da noite anterior John teria lançado um dane-se como resposta, mas agora estava inclinado a concordar com a cabeça. Especialmente porque achava que as fissuras no concreto do corredor foram causadas pela dor que Tohr tinha sentido.
– Bom – disse Lassiter. – Já era hora. Oh, e eu não estou com ele agora porque todo mundo precisa ficar sozinho de vez em quando. Além do mais, tenho que ter a minha dose de Oprah.
O anjo afastou-se, seus cabelos loiros e negros balançavam.
– E pode calar a boca. Oprah é maravilhosa!
John balançou a cabeça e viu-se sorrindo. Lassiter podia ser um metrossexual pé no saco, mas trouxe Tohr de volta à Irmandade e isso valia alguma coisa.
Atravessou o túnel. Saiu do armário. Entrou no escritório onde Tohr ainda estava dormindo.
Quando John se aproximou da mesa, o Irmão acordou com um espasmo no corpo inteiro, levantando a cabeça de repente. Metade de seu rosto estava amassado para dentro, como se alguém tivesse jogado nele um spray de goma de passar e passado o ferro de uma maneira muito desleixada.
– John... – ele disse com voz rouca. – Oi. Você precisa de alguma coisa?
John enfiou a mão na cesta e tirou o sanduíche de queijo e presunto. Colocou-o sobre a mesa e o empurrou na direção do macho.
Tohr piscou como se nunca tivesse visto duas fatias de pão de centeio com um pouco de recheio antes.
John acenou com a cabeça. Coma, assinalou com a boca.
Tohr se aproximou e colocou a mão no sanduíche.
– Obrigado.
John balançou a cabeça, as pontas dos dedos se demorando sobre a superfície da mesa. Sua despedida foi uma batida rápida de seus dedos. Havia muito a ser dito no pouco tempo que tinha e sua grande preocupação era que Xhex não acordasse sozinha.
Quando alcançou a porta, Tohr disse:
– Estou realmente muito feliz que você a tenha de volta. Muito feliz mesmo.
Quando as palavras flutuaram até ele, os olhos de John se fixaram naquelas rachaduras no corredor. Concluiu que aquilo tinha sido obra dele. Se Wrath e os Irmãos tivessem aberto sua porta com más notícias sobre sua fêmea, teria reagido da mesma maneira que Tohr.
Totalmente acabado. E, em seguida, viveria um grande inferno.
Por cima do ombro, John olhou para o rosto pálido do homem que tinha sido seu salvador, seu mentor... o mais próximo do pai que nunca conheceu. Tohr tinha ganhado peso, mas seu rosto ainda estava vazio e talvez isso nunca mudasse, independente de quantas refeições comesse.
Enquanto os olhares se encontravam, John teve a sensação de que a parceria deles tinha sido muito maior do que apenas a soma dos anos em que conheciam um ao outro.
John colocou a cesta no chão aos seus pés.
Vou sair com Xhex esta noite.
– É?
Vou mostrar a ela onde cresci.
Tohr engoliu em seco.
– Você quer as chaves da minha casa?
John recuou. Disse aquilo apenas para informar o cara sobre o que estava acontecendo com ele, um tipo de contato para tentar remendar a porcaria que tinha acontecido antes.
Não esperava levá-la até lá...
– Vá. Seria bom para você dar uma olhada. O doggen passa por lá apenas uma vez por mês, talvez duas. – Tohr passou e puxou uma das gavetas da mesa. Quando tirou um chaveiro, limpou a garganta. – Aqui.
John pegou as chaves e fechou os dedos ao redor delas, sentindo a vergonha apertar seu peito. Ultimamente, esteve ocupado em ignorar o cara e, mesmo assim, o Irmão se comportava como homem e lhe oferecia algo muito difícil para ele.
– Estou feliz por você e Xhex terem encontrado um ao outro. Faz todo um sentido cósmico, faz mesmo.
John colocou as chaves no bolso para liberar a mão:
Não estamos juntos.
O sorriso que surgiu rapidamente no rosto do sujeito parecia antigo.
– Sim, vocês estão. Vocês estão destinados a ficarem juntos.
Jesus, pensou John, achando que o cheiro de sua vinculação era óbvio. Ainda assim, não havia razão para tratar com todos os “porquês” que envolviam a união deles.
– Então, você vai ao Orfanato Nossa Senhora? – Quando John assentiu, Tohr abaixou e pegou um saco de lixo. – Leve isso com você. É o dinheiro dos narcóticos confiscados naquela casa. Blay trouxe de volta. Imagino que poderia usá-lo.
Quando Tohr se levantou, deixou o saco sobre a mesa e pegou o sanduíche, retirando a embalagem plástica e dando uma mordida.
– Bom trabalho com a maionese – murmurou. – Nem muito. Nem pouco. Obrigado.
Tohr se dirigiu para o armário.
John assobiou baixinho e o Irmão parou, mas não se virou.
– Tudo bem, John. Não precisa dizer nada. Basta se manter a salvo lá fora hoje, certo?
Com isso, Tohr saiu do escritório, deixando John sozinho num rastro de bondade e dignidade que esperava poder produzir um dia.
Enquanto a porta do armário se fechava pensou... que gostaria de ser como Tohr.
Saindo para o corredor, achou engraçado ter aquilo passando por sua cabeça outra vez e este retorno era do tipo que corrigia o mundo: desde que tinha conhecido o cara, fosse pelo tamanho do Irmão, ou por sua inteligência, ou pela maneira como tratava sua fêmea, ou pela maneira como lutava, ou até mesmo pelo som profundo de sua voz... John queria ser como Tohr.
Isso era bom.
Isso era... certo.
Enquanto caminhava até a sala de recuperação, não se sentia exatamente ansioso pela programação noturna. Afinal, o passado era muito melhor quando permanecia enterrado... especialmente o seu, porque fedia.
Mas a questão era que tinha uma chance maior de passar mais tempo com Xhex após arrancá-la de Lash naquele estado. Ela precisaria de outra noite, talvez duas, antes de recuperar sua força plena. E precisaria se alimentar novamente, pelo menos mais uma vez.
Assim, saberia onde ela estava e a manteria ao seu lado durante a noite.
Não importava no que Tohr acreditava, John não estava enganando a si próprio. Mais cedo ou mais tarde, ela fugiria e ele não seria capaz de detê-la.
No Outro Lado, Payne caminhava ao redor do Santuário, com os pés descalços sobre a grama verde e macia, sentindo o perfume das madressilvas e jacintos.
Não havia dormido nem sequer por uma hora desde que sua mãe a tinha reanimado, e embora aquilo em princípio parecesse estranho, não pensava muito a respeito. Simplesmente era assim.
Parecia mais do que provável que seu corpo tivesse tido descanso suficiente para toda uma vida.
Quando passou pelo Templo do Primaz, não entrou. Fez a mesma coisa na entrada do pátio de sua mãe – era muito cedo para a chegada de Wrath e seu treino com ele era o único motivo para estar ali.
Porém, quando chegou ao retiro, abriu uma brecha na porta, embora não pudesse dizer o que a motivou para girar a maçaneta e ficar parada por um período de tempo na soleira.
As tigelas de água que as Escolhidas haviam usado ao longo do tempo para testemunhar os acontecimentos que aconteciam do Outro Lado estavam alinhadas de forma perfeita nas várias mesas, os rolos de pergaminho e canetas de pena estavam alinhados da mesma maneira, prontos para o uso.
Um brilho chamou sua atenção e caminhou até sua origem. A água em uma das bacias de cristal estava se movendo em círculos cada vez mais lentos, como se tivessem acabado de utilizar a coisa.
Ela olhou ao redor.
– Olá?
Não houve resposta, apenas um cheiro suave de limão, que sugeria que No’One havia passado por ali recentemente com seus panos de limpeza. O que, na verdade, era um pouco de desperdício de tempo. Não havia poeira, gordura ou qualquer tipo de sujeira que precisasse ser retirada. Mas No’One fazia parte da grande tradição das Escolhidas, não fazia?
Nada a fazer exceto trabalho inútil que não tinha muito propósito.
Quando Payne se virou para ir embora e passou por todas as cadeiras vagas, o sentimento de fracasso de sua mãe era tão predominante quanto o silêncio que abundava.
Na verdade, ela não gostava da fêmea. Mas havia uma triste realidade para todos os planos que acabaram dando em nada: criar um programa de melhoramento genético de maneira a deixar a raça mais forte. Enfrentar o inimigo no campo de batalha e vencer. Ter muitos filhos servindo-a com amor, obediência e alegria.
Onde estava a Virgem Escriba agora? Sozinha. Sem adorações. Detestada.
E era ainda menos provável que as próximas gerações seguissem seus caminhos, considerando a maneira pela qual tantos pais tinham se afastado das tradições.
Deixando a sala vazia, Payne saiu para a luz difusa e leitosa e...
Descendo pelo espelho d’água, uma forma amarela brilhante se moveu e passou a dançar como uma tulipa na brisa.
Payne caminhou em direção à figura, e enquanto se aproximava, chegou à conclusão de que Layla tinha enlouquecido.
A Escolhida estava cantando uma música que não tinha letra, o corpo dela se movia num ritmo sem música, seu cabelo balançava ao redor como uma bandeira.
Foi a primeira e única vez que uma fêmea não usava um coque da maneira como todas as Escolhidas usavam... pelo menos até onde Payne tinha visto.
– Minha irmã! – disse Layla, hesitante. – Perdoe-me.
Seu sorriso estava mais brilhante do que o amarelo de sua túnica e seu perfume estava mais forte do que nunca, com um toque de canela no ar, tão notável quanto sua voz adorável.
Payne encolheu os ombros.
– Não há nada para perdoar. Na verdade, sua música é agradável aos ouvidos.
Os braços de Layla retomaram seu elegante balanço.
– Está um lindo dia, não?
– Certamente. – Vindo do nada, Payne sentiu uma pontada de medo. – Seu humor está muito melhor.
– Está sim! – A Escolhida rodopiou ao redor, apontando o pé em um lindo arco antes de saltar no ar. – Na verdade, está um dia adorável!
– O que a agradou tanto? – Embora Payne soubesse a resposta. Mudanças de disposição, afinal de contas, raramente eram espontâneas... a maioria exigia um estímulo.
Layla diminuiu o ritmo de sua dança, seus braços e cabelos flutuaram para baixo e descansaram. Enquanto seus dedos elegantes se erguiam até sua boca, parecia ter perdido as palavras.
Encontrou um serviço adequado, Payne pensou. Sua experiência como uma ehros já não era mais apenas uma teoria.
– Eu... – O rubor em suas faces era vibrante.
– Não diga mais nada, apenas saiba que estou feliz por você – murmurou Payne e isso era uma grande verdade. Mas havia uma parte dela que se sentia curiosamente desanimada.
Agora era apenas ela e No’One que estavam sem uso? Parecia que sim.
– Ele me beijou – disse Layla, olhando para o espelho d’água. – Ele... colocou sua boca sobre a minha.
Com graça, a Escolhida sentou na borda de mármore e deslizou a mão ao longo da água. Depois de um momento, Payne se juntou a ela, porque às vezes é melhor sentir algo, qualquer coisa. Mesmo que fosse uma dor.
– Você gostou, não é?
Layla encarou seu próprio reflexo, seus cabelos loiros escorrendo pelos ombros até atingir a superfície prateada da piscina.
– Ele foi... um fogo dentro de mim. Uma grande queimação se espalhando que... me consumiu.
– Então, você não é mais virgem.
– Ele nos deteve após o beijo. Disse que queria que eu tivesse certeza. – O sorriso sensual que surgiu no rosto da fêmea era um eco evidente da paixão. – Eu tinha certeza e ainda tenho. Então, é ele. Na verdade, seu corpo de guerreiro estava pronto para mim. Faminto por mim. Ser desejada dessa maneira foi um presente além do esperado. Pensei que... o cumprimento da minha educação era tudo que eu buscava, mas agora sei que há muito mais esperando por mim do Outro Lado.
– Com ele? – Payne murmurou. – Ou através do exercício de seu dever?
Isso causou um profundo franzir na testa de Layla.
Payne assentiu.
– Presumo que aquilo que busca seja mais sobre ele do que sobre a sua posição.
Houve uma longa pausa.
– Tal paixão entre nós é certamente um indicativo de um destino, não é?
– Não tenho opinião formada sobre isso. – Sua experiência com o destino a levou a um brilhante e sangrento momento de atividade... seguido por uma inanição generalizada. Não era capaz de se pronunciar a respeito do tipo de paixão que Layla se referia.
Ou festejá-la.
– Você me condena? – Layla sussurrou.
Payne ergueu os olhos para a Escolhida e pensou naquela sala vazia, todas aquelas mesas vagas e as gélidas bacias largadas por mãos bem treinadas. Layla estava alegre agora, firmada em coisas que poderiam acontecer fora da vida de Escolhida, parecia outra inevitável deserção. E isso não era uma coisa ruim.
Estendeu a mão e tocou o ombro da outra fêmea.
– Nem um pouco. Na verdade, estou feliz por você.
O prazer tímido de Layla transformou-a de bela a algo próximo de tirar o fôlego.
– Estou tão feliz de compartilhar isso com você. Estou prestes a explodir e não há ninguém... de verdade... com quem conversar.
– Pode sempre conversar comigo. – Afinal, Layla nunca a julgou e estava muito inclinada a conceder à fêmea a mesma graciosa aceitação. – Vai voltar em breve?
Layla assentiu.
– Ele disse que eu poderia voltar a encontrá-lo em sua... como foi que ele mencionou? Próxima noite de folga. E assim o farei.
– Bem, você deve manter-me informada. Na verdade... estarei interessada em ouvir sobre como você vai proceder.
– Obrigada, irmã. – Layla cobriu a mão de Payne, um brilho de lágrimas se formando nos olhos da Escolhida. – Estive tanto tempo sem servir e isto... isto é o que eu sempre desejei. Eu me sinto... viva. –
Bom para você, minha irmã. Isso é... muito bom.
Com um sorriso final de reafirmação, Payne virou-se e se afastou da fêmea. Enquanto caminhava de volta para os alojamentos, viu-se acariciando aquela dor que se formou no centro de seu peito.
Até onde ela sabia, Wrath não chegaria rápido o suficiente.
CAPÍTULO 33
Xhex acordou com o perfume de John Matthew.
Com seu perfume e com o cheiro de café fresco.
Quando suas pálpebras se abriram, seus olhos o encontraram na escura sala de recuperação. Estava de volta à cadeira que antes havia deixado, com o tronco inclinado enquanto colocava o café de uma garrafa térmica verde escura em uma caneca. Havia colocado suas calças de couro e sua camiseta, mas seus pés estavam descalços.
Quando virou-se na direção dela, congelou, suas sobrancelhas se ergueram. E embora o café estivesse a caminho de sua boca, parou e imediatamente o estendeu para que ela o tomasse.
Cara, aquilo o classificava como um homem de poucas palavras.
– Não, por favor – ela disse. – É seu.
Ele fez uma pausa como se considerando se argumentava ou não. Mas então colocou a porcelana em seus lábios e bebeu.
Sentindo-se um pouco mais estável, Xhex afastou as cobertas e deslizou as pernas debaixo delas. Quando se colocou em pé, sua toalha caiu e ela ouviu John respirar com um assobio.
– Oh, desculpe – murmurou, curvando-se e agarrando o tecido felpudo.
Não podia culpá-lo por não querer espiar a cicatriz que ainda estava se curando ao longo da parte inferior de seu ventre. Não era exatamente o que se precisava ver logo antes do café da manhã.
Envolvendo-se na toalha, encaminhou-se lentamente para o banheiro, usou as instalações e lavou seu rosto. Seu corpo estava se recuperando bem, sua coleção de machucados estava desaparecendo, sentia suas pernas mais fortes sob seu peso. E, graças ao descanso e de ter se alimentado dele, suas dores não eram mais tão ruins, apenas mais uma série de vagos desconfortos.
Quando saiu do banheiro, disse:
– Você acha que posso pegar emprestado algumas roupas de alguém?
John assentiu, mas apontou para a cama. Era evidente que queria que ela comesse primeiro e ela concordava totalmente com aquele plano.
– Obrigada – disse, apertando a toalha ao redor dos seios. – O que você tem aí?
Quando sentou, ofereceu a ela uma variedade de coisas e Xhex pegou o sanduíche de peru porque a necessidade de proteína era um desejo que não podia rejeitar. De sua cadeira, John a observou comer, apenas bebendo seu café, e no segundo em que ela terminou, aproximou um pão doce que provou ser muito tentador.
A combinação de cereja e cobertura doce a deixou louca por um pouco de café. E John estava logo ali com uma caneca, como se estivesse lendo sua mente.
Ela terminou rapidamente um segundo pão doce e uma rosca. E um copo de suco de laranja. E duas xícaras de café.
E era engraçado. O silêncio dele tinha um efeito estranho sobre ela. Normalmente, ela era a quieta nas situações, preferindo manter sua própria opinião e não dividindo seus pensamentos sobre nada. Mas com a presença muda de John, sentia-se curiosamente compelida a falar.
– Estou satisfeita – disse, deitando-se de novo contra os travesseiros. Quando ele ergueu uma sobrancelha e levantou o último pãozinho, ela balançou a cabeça. – Deus... não. Não consigo comer mais nada.
E foi só então que ele começou a comer.
– Você esperou por mim? – disse, franzindo a testa. Quando ele baixou o olhar e deu de ombros, ela xingou baixinho. – Não precisava fazer isso.
John encolheu os ombros de novo.
Enquanto o observava, ela murmurou:
– Você tem ótimas maneiras à mesa.
O rubor dele era da cor do dia dos namorados e ela teve de dizer ao seu coração para se acalmar quando começou a bater mais rápido.
Além disso, talvez ela estivesse tendo palpitações porque havia acabado de jogar quase duas mil calorias em seu estômago vazio.
Ou não. Quando John começou a lamber o glacê da ponta de seus dedos, ela avistou rapidamente a língua dele e, por um momento, sentiu uma agitação em seu corpo...
Memórias de Lash esmagando a parte frágil entre suas pernas a levaram de volta àquele quarto, com ele em cima dela, forçando suas pernas a separar-se com suas mãos duras...
– Oh, maldição... – Saindo rápido da cama, cambaleou até o banheiro e quase não chegou a tempo.
Saiu tudo. Os dois pãezinhos. O café. Aquele sanduíche de peru. Evacuação completa de tudo que tinha comido.
Quando se soltou, não sentiu o vômito. Sentia as horríveis mãos de Lash em sua pele... seu corpo dentro dela, pressionando...
E lá se foi o suco de laranja.
Oh, Deus... como tinha passado por tudo aquilo com aquele bastardo repetidas vezes? Os socos, a luta e as mordidas... em seguida, o sexo brutal.
De novo, de novo e de novo... e então as consequências. Agora Xhex tentava tirá-lo dela.
Droga...
Outra onda de náusea cortou seus pensamentos, e embora ela detestasse vomitar, o desligamento momentâneo de seu cérebro era um alívio. Era quase como se seu corpo estivesse tentando exorcizar o trauma fisicamente, explodindo tudo para que ela pudesse recomeçar.
Reiniciar do começo, por assim dizer.
Quando o pior do vômito passou, afundou-se em seus tornozelos e descansou a testa úmida em seu braço. Enquanto sua respiração cortava sua garganta, o reflexo de seu esforço para vomitar fazia com que tremesse muito, como se seu corpo estivesse considerando começar a se organizar de novo para outra rodada.
Não tem mais nada aí, disse à maldita coisa. Nada, a não ser que quisesse colocar seus pulmões para fora também.
Droga, ela odiava essa parte. Logo depois de passar por todo o inferno, sua mente e seu ambiente estavam cheios de minas terrestres e nunca sabia o que poderia provocar uma explosão. Claro, ao longo do tempo, isso diminuía, mas a primeira tentativa de voltar à “vida normal” estava sendo um inferno e meio.
Ela levantou a cabeça e acionou a descarga.
Quando um pano úmido roçou sua mão, ela pulou, mas era apenas John, nada para temer.
E, cara, ele tinha a única coisa que ela realmente queria naquele momento: aquele pano limpo, úmido e frio era uma dádiva divina.
Enterrando seu rosto naquilo, estremeceu de alívio.
– Sinto muito sobre a comida. Estava boa quando botei para dentro.
Hora de chamar a doutora Jane.
Enquanto Xhex se sentava preguiçosamente nua no chão em frente ao vaso sanitário, John mantinha um olho nela e outro no telefone enquanto mandava uma mensagem.
No segundo em que enviou, jogou o celular sobre o balcão e puxou uma toalha limpa dentre a pilha que havia perto da pia.
Queria dar a Xhex alguma privacidade, mas também estava tendo problemas em olhar como sua coluna ameaçava perfurar a pele de suas costas. Enrolando-a na toalha, deixou suas mãos se demorarem sobre os ombros dela.
Queria puxá-la para seu peito, mas não sabia se ela concordaria em chegar tão per...
Xhex se afastou dele e arrumou a toalha, cruzando as duas metades na sua frente.
– Deixe-me adivinhar. Você chamou nossa boa doutora.
Movendo-se, ele colocou as mãos no chão para suportar o peso de seu tronco e se levantou sobre os joelhos de forma que ficasse cercada por ele por todos os lados. Nada mal, ele pensou. O vaso sanitário não estava bem na frente dela, mas se precisasse, tudo o que tinha de fazer era se sentar direito.
– Não estou doente – disse com voz rouca. – Nem da operação nem de nada. Eu só comi rápido demais.
Talvez, ele pensou. Mas, se fosse isso, não faria mal se a doutora Jane a examinasse. Além disso, precisavam saber muito bem como ela estava antes de saírem à noite, concluindo que isso ainda fosse possível.
– Xhex? John?
John assoviou ao som da voz da doutora e, um momento depois, a fêmea de Vishous colocou a cabeça no banheiro.
– Uma festa? E eu não fui convidada? – ela disse, entrando.
– Bem, tecnicamente, acho que foi sim – Xhex murmurou. – Estou bem.
Jane ajoelhou-se, e embora seu sorriso fosse terno, seus olhos eram muito perspicazes ao olhar para o rosto de Xhex.
– O que está acontecendo aqui?
– Fiquei enjoada depois de comer.
– Importa-se se eu medir sua temperatura?
– Eu preferiria não ter nada perto da minha garganta nesse momento, se não se importa.
Jane tirou um instrumento branco de sua maleta.
– Posso fazer isso apenas aproximando esse aparelho da sua orelha.
John ficou chocado quando a mão de Xhex encontrou a sua e apertou forte como se precisasse de algum apoio. Para que ela soubesse que ele estava lá para o que precisasse, apertou de volta e, no instante em que fez isso, os ombros dela se aliviaram e relaxou outra vez.
– Divirta-se, doutora.
Xhex inclinou a cabeça e acabou se apoiando direto no ombro dele. Então, John realmente não poderia evitar colocar sua bochecha nos cachos fofos e macios dela e respirar fundo.
Até onde sabia, a médica trabalhava rapidamente. Mal começou, houve um bipe e ela já estava se afastando... o que significou Xhex levantando a cabeça outra vez.
– Nada de febre. Importa-se se eu olhar a incisão?
Xhex esticou-se para mostrar, separando a toalha e expondo a barriga e a faixa que atravessava a parte inferior de seu abdômen.
– Parece bom. O que você comeu?
– Apenas comi demais.
– Certo. Alguma dor que eu deva saber?
Xhex negou com a cabeça.
– Sinto-me melhor. De verdade. O que eu preciso é de algumas roupas e sapatos... e outra Primeira Refeição.
– Tenho roupas que os médicos usam em cirurgias e que você pode vestir, depois podemos alimentar você de novo.
– Bom. Obrigada. – Xhex começou a se levantar e ele a ajudou, mantendo a toalha no lugar quando escorregou. – Porque vamos sair.
– Não para lutar, você não pode.
John negou com a cabeça e assinalou para a doutora:
Vamos apenas esticar as pernas. Juro.
Os olhos da doutora Jane se estreitaram.
– Posso apenas dar uma opinião médica. E o que eu penso é que você... – olhou para Xhex – deveria comer alguma coisa e ficar por aqui pelo resto da noite. Mas você é uma adulta, então pode fazer as suas próprias escolhas. No entanto, saiba de uma coisa: saiam sem o Qhuinn e terão sérios problemas com Wrath.
Tudo bem, John gesticulou. Não estava empolgado com a rotina de babá, mas não iria correr riscos com Xhex.
Não tinha ilusões a respeito da fêmea que amava. Ela poderia decidir partir a qualquer momento, e se a coisa ficasse feia a esse ponto, gostaria de um pouco de ajuda.
CAPÍTULO 34
Lash acordou na mesma posição em que havia desmaiado: sentado no chão do banheiro no rancho, os braços unidos em cima dos joelhos, a cabeça abaixada.
Quando abriu os olhos, deu uma olhada em sua ereção.
Tinha sonhado com Xhex, as imagens foram tão claras, as sensações tão vívidas que era uma surpresa não ter gozado em suas calças. Tinham voltado àquele quarto, estavam juntos, lutando, mordendo e, então, ele a possuiu, forçando-a a se deitar na cama, obrigando-a a aceitá-lo, mesmo que ela odiasse.
Estava totalmente apaixonado por ela.
O som de um murmúrio úmido fez com que sua cabeça se erguesse. A Mulher Silicone estava voltando a si, seus dedos se contorciam, as pálpebras piscavam como persianas com defeito.
Enquanto seus olhos focavam no cabelo emaranhado e no corpete manchado de sangue, sentiu uma dor aguda nas têmporas, uma ressaca que com certeza não estava ligada à diversão. A prostituta o enojava, estava deitada toda desleixada envolta de sua própria imundície.
Com certeza ela passou mal do estômago e Lash deu graças a Deus por ter dormido durante aquela comoção.
Tirando o cabelo dos olhos, sentiu suas presas se alongarem e soube que estava na hora de colocar a mulher em uso, mas droga... ela era tão atraente quanto um pedaço de carne estragada.
Mais água. Era disso que aquele pesadelo precisava. Mais água...
Quando se inclinou para ligar o chuveiro outra vez, os olhos dela flutuaram sobre ele.
O grito dela repicou de sua boca ensanguentada e ecoou no azulejo até que os ouvidos dele zumbiram como sinos de igreja.
As malditas presas a assustaram demais. Quando os cabelos dele caíram sobre seus olhos outra vez, passou a mão, empurrando-o para trás e questionou se deveria rasgar seu pescoço só para acabar com o barulho. Mas não havia a menor chance de mordê-la antes dela tomar um banho...
Ela não estava olhando para sua boca. Seus olhos grandes e enlouquecidos estavam fixos em sua testa.
Quando o cabelo o incomodou outra vez, ele o empurrou para trás... e alguma coisa saiu em sua mão.
Em câmera lenta, olhou para baixo.
Não, não era seu cabelo loiro.
Sua pele.
Lash se virou para o espelho e se ouviu gritar. Seu reflexo era incompreensível, o pedaço de carne que havia se soltado revelava uma camada de tinta negra que escorria sobre seu crânio branco. Com a unha, testou a extremidade do que ainda estava preso e descobriu que tudo estava frouxo; cada centímetro quadrado em seu rosto não era nada além de uma folha vacilante estendida sobre o osso.
– Não! – ele gritou, tentando colocar a coisa de volta no lugar dando tapinhas...
Suas mãos... oh, Deus, elas também, não. Tiras de pele estavam penduradas nas costas delas e, ao puxar para cima as mangas de sua camisa social, desejou ter sido mais gentil, pois sua derme veio junto com a delicada seda.
O que estava acontecendo com ele?
Atrás dele, no espelho, viu a prostituta passar como um raio numa corrida mortal, parecendo com Carrie, a estranha, só que sem o vestido de baile.
Com uma onda de força, foi atrás dela, seu corpo se movendo sem nada do poder e graça com os quais estava acostumado. Enquanto corria atrás de sua presa, podia sentir o atrito de suas roupas contra a pele e conseguia apenas imaginar os rasgos que estavam acontecendo em cada centímetro de seu corpo.
Pegou a prostituta bem na hora em que tinha chegado à porta dos fundos e começava a lutar com as fechaduras. Golpeando-a por trás, ele agarrou seu cabelo, puxou sua cabeça para trás e mordeu com força, chupando seu sangue negro para dentro de si.
Lash acabou com ela rapidamente, drenando-a até que suas sucções lhe proporcionaram apenas um monte de nada em sua boca e, quando terminou, simplesmente a largou. Com isso, ela desabou no tapete.
Com um andar vacilante, embriagado, voltou ao banheiro e acendeu as luzes que percorriam os dois lados do espelho.
A cada peça de roupa que removia, revelava mais do horror que já estava estampado em seu rosto: seus ossos e músculos reluziam com um brilho negro e oleoso sob a iluminação das lâmpadas.
Era um cadáver. Um cadáver em pé, que andava e respirava, cujos olhos giravam em suas cavidades sem pálpebra ou cílio, a boca mostrava nada além de presas e dentes.
O último pedaço de pele que lhe restava era aquele que servia de base para seu lindo cabelo loiro em sua cabeça, mas até isso estava deslizando para trás, como uma peruca que tinha perdido sua cola.
Retirou o pedaço final, e com as mãos esqueléticas, acariciou aquilo que tinha lhe dado tanto orgulho. Evidentemente, a coisa estava desprezível daquele jeito, o lodo negro coagulando-se nas madeixas, manchando-as, emaranhando-as... de modo que não estavam melhores do que o cabelo daquela prostituta perto da porta.
Deixou seu couro cabeludo cair no chão e olhou para si mesmo.
Através de sua caixa torácica, observou a batida de seu próprio coração e se perguntou, com um horror entorpecente, o que mais apodreceria nele... e o que lhe restaria quando aquela transformação terminasse.
– Oh, Deus... – disse. Sua voz já não soava direito, era um eco deslocado que constituía as palavras de um modo assustadoramente familiar.
Blay ficou parado com a porta de seu armário aberta, suas roupas penduradas à mostra. Era um absurdo, mas quis ligar para sua mãe para pedir um conselho. Algo que sempre fazia quando tinha que se vestir bem.
Mas essa não era uma conversa que estava com pressa de ter. Ela concluiria que aquilo era por causa de uma fêmea e ficaria toda animada com o fato de que estava indo a um encontro e seria forçado a mentir para ela... ou sair do armário.
Seus pais nunca foram de fazer julgamentos... mas era filho único, e não haver qualquer sinal de fêmea significava não apenas nada de netinhos, mas um chute na aristocracia. Não era surpresa, a glymera aceitava bem a homossexualidade, desde que fosse emparelhado com uma fêmea e que nunca, jamais, falasse sobre isso ou fizesse qualquer coisa publicamente para confirmar essa característica com a qual tinha nascido. Aparências. Tudo girava em torno das aparências. E se você se assumisse? Era excluído.
E sua família também.
De alguma maneira, não conseguia acreditar que estava prestes a ir se encontrar com um macho. Em um restaurante. E que depois iria a um bar com o cara.
E seu parceiro estaria vestido de forma incrível. Sempre era.
Então Blay tirou um terno Zegna, que era cinza risca de giz muito claro. A próxima peça foi uma elegante camisa social de algodão, o corpo da camisa era ligeiramente rosado, com seus punhos franceses e um colarinho branco brilhante. Sapatos... sapatos... sapatos...
Bam, bam, bam na porta.
– Ei, Blay!
Droga. Já tinha colocado o terno na cama e tinha acabado de tomar banho, estava de roupão, com gel no cabelo.
Gel: um delator miserável.
Indo à porta, abriu a coisa apenas um centímetro ou dois. Do lado de fora, no corredor, Qhuinn estava pronto para lutar, seu coldre de adagas que usava no peito estava pendurado em sua mão, vestia suas roupas de couro e suas botas de combate estavam bem amarradas.
Contudo, foi engraçado, a rotina de guerreiro não causou tanta impressão. Blay estava ocupado demais lembrando-se da aparência do cara esticado na cama na noite anterior, seus olhos na boca de Layla.
Má ideia ter feito aquela alimentação em seu próprio quarto, Blay pensou. Porque agora ficaria pensando até onde as coisas teriam ido entre aqueles dois sobre seu colchão.
Contudo, conhecendo Qhuinn, devem ter percorrido o caminho inteiro, até o fim. Que ótimo.
– John enviou uma mensagem de texto – o cara disse. – Ele e Xhex vão dar uma volta em Caldwell e pela primeira vez o filho da mãe está...
Os olhos díspares de Qhuinn o percorreram de cima abaixo, então inclinou-se para o lado e olhou sobre o ombro de Blay.
– O que está fazendo?
Blay aproximou um pouco mais as golas de seu robe.
– Nada.
– Sua colônia está diferente... O que fez com seu cabelo?
– Nada. O que estava dizendo sobre John?
Houve uma pausa.
– É... certo. Bem, ele vai sair e nós vamos com ele. Porém, precisamos ser discretos. Vão querer privacidade. Mas nós podemos...
– Estou de folga esta noite.
Aquela sobrancelha com piercing se abaixou.
– E daí?
– E daí... que estou de folga.
– Isso nunca importou antes.
– Importa agora.
Qhuinn movimentou-se para o lado novamente e deu uma rápida olhada ao redor da cabeça de Blay.
– Você vai colocar aquele terno só para impressionar a equipe na casa?
– Não.
Houve um longo silêncio e então uma palavra:
– Quem?
Blay abriu mais a porta e deu um passo para trás entrando mais em seu quarto. Se fosse para ter aquela conversa, não fazia sentido fazer isso do lado de fora, no corredor, para as pessoas verem ou ouvirem.
– Isso realmente importa? – disse, em uma onda de raiva.
A porta foi fechada. Com força.
– Sim. Importa.
Como se estivesse dizendo um “dane-se” para Qhuinn, Blay desfez o laço de seu roupão e o deixou cair de seu corpo nu. E vestiu a calça comprida... sem cueca.
– Só um amigo.
– Macho ou fêmea?
– Como eu disse, isso importa?
Outra longa pausa, durante a qual Blay se enfiou dentro da camisa e a abotoou.
– Meu primo – Qhuinn rosnou. – Você vai sair com Saxton.
– Talvez. – Foi até a cômoda e abriu sua caixa de joias. Dentro dela, abotoaduras de todos os tipos brilhavam. Escolheu um conjunto que tinha rubis.
– Isso é uma vingança por causa de Layla ontem à noite?
Blay congelou com a mão na abotoadura.
– Jesus Cristo!
– É sim, claro. Isso é o que...
Blay se virou.
– Já lhe ocorreu alguma vez que isso não tem nada a ver com você? Que um cara me chamou para sair e eu quero ir? Que isso é normal? Ou será que você é tão egocêntrico que filtra tudo e todos pelo seu narcisismo?
Qhuinn recuou levemente.
– Saxton é um canalha.
– Bem, acho que você saberia mesmo o que torna alguém assim.
– Ele é um canalha, um canalha muito elegante e cheio de classe.
– Talvez tudo o que eu queira seja um pouco de sexo. – Blay levantou uma sobrancelha. – Já faz um tempo para mim e, para começar, aquelas fêmeas com quem eu estive nos bares só para acompanhá-lo não foram tão boas assim. Acho que está na hora de ter um pouco disso e do jeito certo.
O desgraçado teve a ousadia de empalidecer. De verdade. E maldito seja se não vacilou para trás e encostou-se contra a porta.
– Para onde vocês vão? – perguntou asperamente.
– Ele vai me levar ao Sal. E depois vamos àquele bar de charutos. – Blay ajeitou a outra abotoadura e foi até a cômoda pegar suas meias de seda. – Depois disso... quem sabe?
Uma onda de perfume apimentado flutuou através do quarto e, atordoado, Blay ficou em silêncio. De todos os rumos que pensou que aquela conversa seguiria... ativar o aroma de vinculação de Qhuinn não fazia parte de nada do que tinha imaginado.
Blay virou-se.
Depois de um longo, tenso momento, caminhou em direção ao seu melhor amigo, atraído pela fragrância. E enquanto chegava mais perto, os olhos quentes de Qhuinn o seguiam a cada passo, o vínculo entre eles, que estava sendo enterrado pelos dois lados, explodiu de repente dentro do quarto.
Quando estavam face a face, ele parou, seu peitoral cheio de ar encontrou o de Qhuinn.
– Diga a palavra – sussurrou asperamente. – Diga a palavra e eu não irei.
As mãos duras de Qhuinn se ergueram rapidamente envolvendo os dois lados da garganta de Blay, a pressão o obrigou a inclinar sua cabeça para trás e abrir sua boca para poder respirar. Fortes polegares cravaram nas articulações de cada lado de sua mandíbula.
Momento elétrico.
Potencialmente incendiário.
Acabariam na cama, Blay pensou enquanto fechava suas palmas nos grossos pulsos de Qhuinn.
– Diga a palavra, Qhuinn. Faça isso e eu passarei a noite com você. Vamos sair com Xhex e John e quando eles acabarem, voltamos para cá. Diga.
Os olhos azul e verde, dentro dos quais Blay tinha passado toda uma vida olhando, encararam sua boca e o peitoral de Qhuinn bombeava para cima e para baixo como se estivesse correndo.
– Melhor ainda – Blay falou arrastando as palavras. – Por que você simplesmente não me beija...
Blay foi virado de repente e empurrado com força contra a cômoda, que bateu forte contra a parede com um estrondo. Quando frascos de colônia chocalharam e uma escova de cabelo caiu no chão, Qhuinn forçou seus lábios sobre os de Blay, seus dedos cortavam a garganta dele.
Contudo, isso não importava. Rígido e desesperado... era tudo que queria do cara. E Qhuinn parecia concordar totalmente em fazer isso, sua língua disparava, tomava... possuía.
Com as mãos desastradas, Blay arrancou sua camisa para fora da calça e mergulhou sobre o zíper. Tinha esperado tanto tempo por isso...
Mas terminou antes de começar.
Qhuinn virou-se e se afastou enquanto as calças de Blay atingiam o chão e o cara saiu disparado em direção à porta. Com a mão na maçaneta, bateu a testa na madeira uma vez. Duas vezes.
E então, com uma voz morta, disse:
– Vá. Divirta-se. Apenas proteja-se, por favor, e tente não se apaixonar por ele. Ele vai partir seu coração.
Num piscar de olhos, Qhuinn deixou o quarto, a porta se fechou sem som algum.
Na sequência da partida, Blay permaneceu onde tinha sido deixado, a calça ao redor de seus tornozelos, sua ereção, já desaparecendo, era um completo constrangimento mesmo estando completamente sozinho. Quando o mundo começou a vacilar e seu tórax se comprimiu como um punho fechando-se com força, piscou rápido e tentou manter as lágrimas longe de seu rosto.
Como um macho velho, abaixou, curvou-se lentamente e ergueu a cintura da calça, suas mãos apalparam o zíper e o fechou. Sem colocar a camisa para dentro, caminhou e sentou na cama.
Quando seu telefone tocou sobre a mesa de cabeceira, virou-se e olhou em direção à tela. De alguma maneira, esperava ser Qhuinn, mas esta era a última pessoa com quem queria conversar e deixou quem quer que fosse ser atendido pelo correio de voz.
Por alguma razão, ficou pensando no tempo que gastou em seu banheiro se preocupando em se barbear, cortar as unhas e arrumar seu cabelo com o maldito gel. Depois, no tempo em frente ao armário. Tudo isso parecia um desperdício agora.
Sentia-se sujo. Completamente sujo.
E não iria mais sair com Saxton nem com ninguém naquela noite. Não no humor em que estava. Não havia razão para submeter um cara inocente àquela toxina.
Deus...
Maldição.
Quando sentiu que conseguiria falar, estendeu-se sobre o criado mudo e pegou o telefone. Abriu a coisa e viu que foi Saxton quem tinha ligado.
Talvez para cancelar? E isso não seria um alívio? Ser rejeitado duas vezes em uma noite dificilmente seria uma boa notícia, mas naquela o salvaria de ter que dispensar o macho.
Acionando o correio de voz, Blay escorou sua testa na palma da mão e olhou para baixo, encarando seus pés descalços.
– Boa noite, Blaylock. Imagino que esteja, neste exato momento, parado em frente ao seu armário tentando decidir o que vestir. – A voz macia e profunda de Saxton foi um curioso bálsamo, tão calma e suave. – Bem, na verdade, estou diante de minhas próprias roupas... Acredito que eu deva ir com um terno e um colete quadriculado. Acho que terno risca de giz seria um bom acompanhamento de sua parte. – Houve uma pausa e uma risada. – Não que eu esteja lhe dizendo o que vestir, claro. Mas me ligue se estiver em cima do muro. Em relação ao seu guarda-roupa, claro. – Outra pausa e então um tom sério. – Estou ansioso para vê-lo. Tchau.
Blay afastou o telefone de sua orelha e pairou seu polegar sobre a opção delete. Num impulso, salvou a mensagem.
Depois de uma inspiração longa e firme, obrigou-se a se colocar em pé. Mesmo com suas mãos tremendo, vestiu sua fina camisa e voltou-se para a cômoda que estava bagunçada agora.
Pegou os frascos de colônia, arrumou-os mais uma vez e recolheu a escova de cabelo do chão. Então abriu a gaveta de meias... e tirou o que precisava.
Para terminar de se vestir.
CAPÍTULO 35
Darius devia se encontrar com seu jovem protegido depois que o sol tivesse se posto, mas antes se dirigiu para a mansão humana que espiaram por entre as árvores, depois se materializou no bosque em frente à caverna da Irmandade.
Com os irmãos espalhados por toda parte, a comunicação poderia demorar, e um sistema havia sido montado para a troca de avisos e anúncios. Todos iam até um determinado local, uma vez por noite, para ver o que os outros tinham deixado ou para deixar suas próprias mensagens.
Depois de se certificar de que não estava sendo observado, mergulhou no sombrio enclave, atravessou a parede de pedra secreta e abriu caminho através da série de portões em direção ao sanctum sanctorum. O “Sistema de Comunicação” não era nada além de um nicho colocado na parede de pedra, onde a correspondência podia ser colocada e, devido a sua simplicidade, estava no final do caminho.
No entanto, não adiantou-se o suficiente para ver se seus Irmãos tinham qualquer coisa a dizer a ele.
Aproximando-se do último portão, viu sob o chão de pedra o que à primeira vista parecia ser uma pilha de roupas dobradas próximas de uma bolsa rústica.
Quando desembainhou sua adaga negra, uma cabeça escura se ergueu da pilha.
– Tohr? – Darius abaixou a arma.
– Sim. – O menino virou-se em sua cama áspera. – Boa noite, senhor.
– Posso saber o que você está fazendo aqui?
– Dormindo.
– Isso é óbvio, com certeza. – Darius se aproximou e ajoelhou-se. – Mas porque você não volta para sua casa?
Afinal, havia sido renegado, mas Hharm raramente ia à morada de sua companheira. Com certeza o jovem poderia ter ficado com sua mahmen.
O garoto forçou-se a ficar em pé e se equilibrou apoiando-se na parede.
– Que horas são? Eu perdi...?
Darius pegou o braço de Tohr.
– Você comeu?
– Estou atrasado?
Darius não se preocupou em fazer mais nenhuma pergunta. As respostas para o que ele queria saber estavam na maneira como o garoto se recusava a levantar seus olhar: com certeza, solicitaram a ele que não pedisse refúgio na casa de seu pai.
– Tohrment, quantas noites você já passou aqui? – Naquele chão frio.
– Posso encontrar outro lugar onde ficar. Não voltarei a dormir aqui outra vez.
Se isso fosse verdade, louvada seria a Virgem Escriba.
– Espere aqui, por favor.
Darius entrou pelo portão e verificou a correspondência. Enquanto encontrava notificações de Murhder e Ahgony, pensou em deixar uma para Hharm. Colocando palavras do tipo “Como você pôde dar as costas a um filho de seu sangue, ao ponto dele se ver forçado a dormir com nada além de pedras como cama e suas roupas por coberta? Seu imbecil.”
Darius voltou a Tohrment e viu que o garoto tinha empacotado suas coisas em sua bolsa e suas armas já estavam preparadas.
Darius engoliu uma maldição.
– Devemos primeiro ir à mansão da fêmea. Tenho algumas coisas para discutir com... aquele mordomo. Traga suas coisas, filho.
Tohrment o seguiu, mais alerta do que a maioria deveria estar depois de tantos dias sem comida ou descanso apropriado.
Eles se materializaram em frente à mansão de Sampsone e Darius apontou com a cabeça para a direita, indicando que deveriam prosseguir pelos fundos. Quando chegaram à parte de trás da casa, dirigiram-se à porta pela qual haviam saído na noite anterior e tocou a estrondosa campainha.
O mordomo abriu caminho e fez uma reverência.
– Senhores, há alguma coisa que possamos fazer para servi-los em sua missão?
Darius entrou.
– Gostaria de falar outra vez com o mordomo do segundo andar.
– Mas é claro. – Outra reverência. – Tenham a bondade de me seguir até a sala de visitas.
– Vamos esperar aqui. – Darius sentou-se na mesa desgastada dos serviçais.
O doggen empalideceu.
– Senhor... Isso é...
– Onde eu gostaria de conversar com o mordomo Fritzgelder. Não vejo nenhum benefício em aumentar a aflição do seu mestre e senhora pelo nosso encontro não anunciado em sua casa. Não somos convidados, estamos aqui a serviço de sua tragédia.
O mordomo fez uma reverência tão profunda que foi uma surpresa ele não ter caído de testa no chão.
– Em verdade, o senhor está certo. Vou chamar Fritzgelder neste exato momento. Existe algo que possamos fazer para sua comodidade?
– Sim. Apreciaríamos muito alguns alimentos e cerveja.
– Oh, senhor, mas é claro! – O doggen se inclinou respeitosamente enquanto saía do cômodo. – Eu deveria ter oferecido, perdoe-me.
Quando ficaram sozinhos, Tohrment disse:
– Você não precisa fazer isso.
– Fazer o quê? – Darius falou demorando-se nas palavras, correndo as pontas dos dedos sobre a superfície ondulada da mesa.
– Conseguir comida para mim.
Darius olhou sobre o ombro.
– Meu estimado garoto, foi um pedido calculado para deixar o mordomo mais à vontade. Nossa presença neste local é uma fonte de grande desconforto para ele, tanto quanto o pedido para interrogar outra vez seu serviçal. O pedido por comida deve ter sido um alívio para ele. Agora, por favor, sente-se, e quando as provisões e a bebida chegarem, deve consumi-los. Já me alimentei antes.
Houve o som de uma cadeira sendo arrastada para trás, em seguida um rangido quando o peso de Tohrment se acomodou.
O mordomo chegou logo depois.
O que foi embaraçoso, já que Darius, na verdade, não tinha nada a perguntar a ele. Onde estava a comida...?
– Senhores – disse o mordomo com orgulho enquanto abria a porta com um floreio.
Empregados se apresentaram com todos os tipos de bandeja e canecas de cerveja e provisões e, enquanto o banquete era servido, Darius levantou uma sobrancelha à Tohrment, em seguida desceu o olhar de maneira incisiva em direção aos diversos alimentos.
Tohrment, o macho educado de sempre, começou a se servir.
Darius assentiu ao mordomo.
– Este é um banquete digno de tal casa. Em verdade, seu mestre deve estar mais que orgulhoso.
Depois que o mordomo e os outros saíram, o outro mordomo esperou pacientemente, assim como Darius também o fez até que Tohrment havia consumido tudo o que podia. E então Darius se levantou.
– Muito bem, poderia pedir-lhe um favor, mordomo Fritzgelder?
– Mas é claro, senhor.
– Poderia fazer a gentileza de guardar a bolsa de meu colega durante a noite? Retornaremos depois que fizermos nossa inspeção.
– Oh, sim, senhores. – Fritzgelder curvou-se. – Tomarei o maior dos cuidados com suas coisas.
– Obrigado. Venha, Tohrment, vamos sair.
Enquanto saíam, podia sentir a ira do garoto e não ficou nada surpreso quando seu braço foi capturado.
– Posso cuidar de mim mesmo.
Darius olhou sobre o ombro.
– Não há dúvidas quanto a isso. No entanto, não preciso de um companheiro debilitado por estar de barriga vazia e...
– Mas...
– ... se acha que esta família de tantos recursos ofereceria com má vontade uma mera refeição para ajudar na busca de sua filha, está redondamente enganado.
Tohrment soltou a mão.
– Devo encontrar alojamento. Comida.
– Sim, você vai. – Darius indicou com a cabeça para o círculo de árvores ao redor da propriedade vizinha. – Agora, podemos continuar?
Quando Tohrment assentiu, os dois se desmaterializaram na floresta e depois abriram caminho, avançando pela propriedade da outra mansão.
A cada passo que avançavam em direção ao seu destino, Darius sentia uma sensação de medo esmagadora, que aumentava ao ponto de sentir dificuldade em respirar: o tempo estava trabalhando contra eles.
Cada noite que se passava e eles não a encontravam, era outro passo mais perto de sua morte.
E tinham tão pouco para continuar.
CAPÍTULO 36
O terminal de ônibus de Caldwell ficava do outro lado da cidade, no limite do parque industrial que se estendia até o sul. A antiga construção de telhado plano estava envolta por uma cerca de alambrado e sua galeria de entrada parecia estar cedendo por causa da idade.
Quando John se materializou ao lado de um ônibus estacionado, esperou por Xhex e Qhuinn. Xhex foi a primeira a chegar e, cara, estava com um aspecto muito melhor; os alimentos haviam se acomodado bem na segunda tentativa e a cor de sua pele estava muito boa. Ainda estava vestida com as roupas de médico que a doutora Jane tinha dado a ela, mas por cima usava uma das blusas com capuz preto de John e um de seus casacos esportivos.
Ele adorou o visual. Adorou que ela estivesse usando suas roupas. Adorou como elas ficaram grandes demais nela.
Adorou que ela parecesse uma garota.
Não que não gostasse das roupas de couro ou das camisetas regata e do estilo “vou esmagar suas bolas se der um passo fora da linha” que costumava seguir. Isso também era muito atraente. Só que... por alguma razão, a maneira como ela parecia agora era mais íntima. Provavelmente porque nunca deixou ser vista assim muitas vezes.
– Por que estamos aqui? – ela perguntou, olhando ao redor. Sua voz não parecia frustrada ou irritada, graças a Deus. Estava apenas curiosa.
Qhuinn tomou forma a uns dez metros de distância e cruzou os braços sobre o peito como se não confiasse em si mesmo para não bater em ninguém. O cara estava com um humor horrível. Absolutamente vil. Não pronunciou sequer duas palavras civilizadas no saguão quando John lhe indicou a ordem dos lugares que iriam, e a causa disso não estava muito clara.
Bem... pelo menos não até Blay passar pelo grupo com um aspecto maravilhoso vestindo um terno de risca de giz cinza. O cara fez uma pausa apenas para dizer tchau a John e Xhex; não lançou sequer um olhar para Qhuinn quando saiu em direção à noite.
Usava uma colônia nova.
Estava claro que iria a um encontro. Mas com quem?
Com um silvo e um rugido, um ônibus saiu da vaga onde estava estacionado, a fumaça do motor a diesel fez o nariz de John ameaçar um espirro.
Vamos, assinalou com a boca para Xhex, mudando sua mochila para o outro ombro e puxando-a para frente.
Os dois caminharam pela calçada úmida em direção à luz fluorescente brilhante do terminal. Mesmo estando muito frio, John manteve sua jaqueta de couro aberta para o caso de precisar pegar suas adagas ou sua arma e Xhex também estava equipada.
Os redutores poderiam estar em qualquer lugar e os humanos poderiam ser muito idiotas.
Segurou a porta aberta para ela e ficou aliviado ao ver que havia apenas um velho dormindo num dos bancos e uma mulher com uma maleta, além do bilheteiro que ficava atrás de um vidro plexiglas.
A voz de Xhex soou baixa.
– Este lugar... deixa você triste.
Droga, era verdade. Mas não por causa do que havia vivenciado ali... mas sim pelo que sua mãe deve ter sentido sozinha ao sofrer as dores do parto.
Assoviando com força, ergueu a mão quando os três humanos levantaram o olhar. Reduzindo o nível de suas consciências, deixou cada um deles em meio a um ligeiro transe e caminhou até a porta de metal em que tinha uma placa parafusada onde se lia MULHERES.
Colocando sua mão no painel frio, abriu um pouco e escutou. Não se ouvia nada.
O lugar estava vazio.
Xhex passou por ele, seus olhos percorreram as paredes de alvenaria, as pias de aço inoxidável e os três cubículos. O lugar cheirava à cândida e à umidade, o balcão molhado e os espelhos não eram feitos de vidro, mas de chapas polidas de metal. Tudo estava fixado com parafusos, desde a saboneteira, passando pela placa de Não fume até a lata de lixo.
Xhex parou em frente ao banheiro reservado para deficientes, com olhar penetrante. Ao empurrar um pouco a porta para abrir, recuou e pareceu confusa.
– Aqui... – apontou para baixo, no canto. – Aqui foi onde você estava... onde aterrissou.
Quando voltou a olhá-lo, ele encolheu os ombros. Não sabia o lugar com precisão, porém fazia sentido imaginar que se estivesse tendo um bebê, gostaria que fosse onde tivesse mais espaço.
Xhex lhe encarou como se estivesse vendo através dele e se virou rapidamente para ver se havia chegado alguém. Não. Somente ela e ele, juntos no banheiro feminino.
O quê foi?, gesticulou ao deixar que a porta se fechasse.
– Quem encontrou você? – Quando ele fingiu estar limpando o piso, ela murmurou: – Um zelador.
Quando assentiu com a cabeça, sentiu vergonha do lugar, de sua história.
– Não sinta. – Ela se aproximou dele. – Acredite, não sou ninguém para julgá-lo. Minhas circunstâncias não foram melhores que essas. Caramba, foram indiscutivelmente piores.
Sendo uma mestiça sympatho, John poderia apenas imaginar. Afinal, na maioria das vezes, as duas raças não se misturavam de bom grado.
– Para onde você foi depois daqui?
Ele a guiou para fora do banheiro e olhou ao redor. Qhuinn estava no outro canto, olhando para as portas do terminal como se esperasse que algo cheirando a talco de bebê entrasse. Quando o cara olhou em sua direção, John balançou a cabeça; em seguida, finalizou com o transe, liberando as mentes dos humanos e os três se desmaterializaram.
Quando tomaram forma novamente, estavam no quintal do orfanato Nossa Senhora, perto do escorregador e da caixa de areia. Um vento cortante de março soprava sobre os jardins do santuário da igreja dos indesejados, os balanços rangiam e os ramos desnudos das árvores não ofereciam qualquer proteção. À frente, as linhas de quatro janelas envidraçadas que marcavam os dormitórios estavam às escuras... assim como as do refeitório e da capela.
– Humanos? – Xhex respirou fundo enquanto Qhuinn vagava pelo local e acabou sentando-se em um dos balanços. – Foi criado por seres humanos? Deus... que porcaria!
John caminhou em direção ao prédio, pensando que talvez aquilo não tivesse sido uma boa ideia. Ela parecia horrorizada...
– Você e eu temos mais em comum do que eu pensava.
Ele se deteve e ela deve ter lido sua expressão... ou suas emoções.
– Também fui criada com pessoas que não eram como eu. Contudo, considerando o que a minha outra metade é, isso pode ter sido uma benção.
Caminhando ao lado dele, olhou para seu rosto.
– Você foi mais corajoso do que pensa. – Inclinou a cabeça para o orfanato. – Quando estava aí dentro, você foi mais corajoso do que pode imaginar.
Não concordava, mas não estava disposto a discutir a fé que tinha nele. Depois de um momento, estendeu a mão, e quando ela segurou, caminharam juntos até a entrada dos fundos. Um rápido desaparecimento e estavam no interior.
Oh, droga, ainda usavam o mesmo produto para limpar o chão. Limão ácido.
E a aparência do lugar também não havia mudado. O que significava que o escritório do diretor ainda estava no corredor, na frente do edifício.
Liderando o caminho, foi até a velha porta de madeira, tirou a mochila e a pendurou na maçaneta de bronze.
– O que tem aí, afinal?
Ele ergueu a mão e esfregou os dedos contra o polegar.
– Dinheiro. Da invasão na...
Ele assentiu.
– Bom lugar para deixá-lo.
John se virou e olhou para o corredor onde se localizava o dormitório. Enquanto as recordações borbulhavam, seus pés andavam naquela direção antes de ter consciência que estava indo ao lugar onde, uma vez, havia descansado sua cabeça. Era tão estranho estar ali outra vez, lembrando-se da solidão, do medo e da persistente sensação de ser totalmente diferente, especialmente quando estava com os outros garotos da mesma idade.
Isso sempre piorou as coisas. Estar rodeado daquilo com que deveria ser igual foi o que o deixou mais alienado.
Xhex seguiu John ao longo do corredor, permanecendo um pouco atrás.
Ele caminhava silenciosamente, apoiando a partir do calcanhar até a ponta de suas botas de combate e ela seguiu seu exemplo, de forma que não eram mais do que fantasmas no silencioso corredor. Enquanto seguiam, notou que, embora a estrutura física do edifício fosse velha, tudo estava impecável, desde o linóleo muito bem encerado, passando pelas paredes bem pintadas de bege, até as janelas com telas metálicas embutidas nos vidros. Não havia poeira, nem teias de aranha, nem lascas ou rachaduras no gesso.
Isso deu uma esperança a ela de que as freiras e os administradores cuidassem das crianças com a mesma atenção que davam aos detalhes.
Quando ela e John se aproximaram de um par de portas, pôde sentir os sonhos dos garotos do outro lado, os pequenos redemoinhos de emoção borbulhavam através do sono profundo fazendo cócegas em seus receptores sympatho.
John colocou a cabeça lá dentro, e enquanto encarava os que estavam onde ele tinha estado, ela se viu franzindo a testa outra vez.
A grade emocional dele tinha... uma sombra. Uma construção paralela, mas separada da que havia captado antes, mas agora estava extremamente óbvia.
Nunca havia sentido algo assim em nenhuma outra pessoa e não conseguia explicar... nem acreditava que John tivesse consciência do que estava fazendo. Contudo, por alguma razão, aquela viagem ao seu passado havia exposto uma falha na linha da sua psique.
Assim como outras coisas. John era muito parecido com ela própria, perdido e distante, criado por outras pessoas apenas por obrigação, não por amor.
De alguma maneira, pensou que deveria dizer a ele para parar com aquela coisa toda, porque podia sentir o quanto isso custava a ele... e quanto mais iria custar. Mas estava cativada por aquilo que estava lhe mostrando.
E não só porque, como sympatho, alimentava-se das emoções dos outros.
Não, queria saber mais sobre aquele macho.
Enquanto ele observava os garotos dormindo e permanecia preso em seu passado, ela concentrou sua atenção em seu perfil forte ao ser iluminado pela luz de segurança sobre a porta.
Quando ela levantou a mão e apoiou sobre o seu ombro, John teve um sobressalto.
Queria dizer alguma coisa inteligente e amável, pronunciar alguma combinação de palavras que fossem tão profundas como ele havia feito ao trazê-la até ali. Mas a questão era que havia mais coragem naquelas revelações dele do que em qualquer coisa que Xhex já havia demonstrado a alguém antes, e num mundo cheio de egoísmo e crueldade, ele estava partindo seu maldito coração com aquilo que lhe oferecia.
Esteve tão sozinho ali, e os ecos daquela época difícil ainda o perseguiam. Ainda assim, iria seguir adiante porque havia dito a ela que o faria.
Os belos olhos azuis de John encontraram seu olhar, e quando ele inclinou a cabeça com curiosidade, ela se deu conta de que palavras eram uma bobagem em momentos assim.
Aproximando-se de seu corpo firme, ela passou um de seus braços pela sua cintura. Com a mão livre, esticou-se e segurou sua nuca, puxando-o para ela.
John hesitou, mas logo se aproximou de bom grado, envolvendo seus braços ao redor de sua cintura e enterrando o rosto em seu pescoço.
Xhex o abraçou, emprestando sua força, oferecendo um consolo que era mais do que capaz de proporcionar. Enquanto permaneciam um contra o outro, Xhex olhou por cima dos ombros dele, em direção ao quarto e às crianças nos seus travesseiros.
No silêncio, sentiu como se o passado e o presente estivessem movendo-se e se misturando, mas foi uma miragem. Não havia maneira de consolar o garoto perdido que tinha sido naquela época.
Mas ela tinha o macho adulto.
Ela o tinha em seus braços, e durante um breve momento de fantasia, imaginou que nunca, nunca o deixaria partir.
CAPÍTULO 37
Quando sentou em seu quarto na mansão Rathboone, Gregg Winn deveria se sentir melhor. Graças a algumas imagens evocativas da comovente pintura na sala, juntamente com algumas fotos da área tiradas no crepúsculo, a bronzeada Los Angeles ficou emocionada com as prévias e combinou de começarem a produzi-lo. O mordomo também se mostrou amável, assinando os documentos legais que lhe davam permissão a todos os tipos de acesso.
Stan, o cinegrafista, poderia realizar um exame proctológico na maldita casa, em todos os lugares onde conseguisse enfiar a lente.
Mas Gregg não sentia o sabor da vitória em sua boca. Não, tinha uma sensação que dizia “isso não está certo” percorrendo suas entranhas e uma dor de cabeça causada pela tensão, que percorria desde a base do crânio e todo o caminho até seu lóbulo frontal.
O problema era a câmera escondida que colocaram no corredor na noite anterior.
Não havia explicação racional para o que havia capturado.
Irônico que um “caça-fantasmas”, quando confrontado com uma figura que desaparecia no ar, precisasse de analgésicos e antiácidos. Qualquer um pensaria que ele estaria muito feliz já que, pela primeira vez, não teve que pedir para o cara da câmera falsificar as filmagens.
Quanto ao Stan? Ele apenas deu de ombros. Ah, pensou que era um fantasma, com certeza... mas isso não o perturbou nem um pouco.
Por outro lado, poderia ter sido amarrado a um conjunto de trilhos ou alguma coisa do gênero que pensaria apenas que era hora de um cochilo rápido, antes de ficar completamente chapado.
Havia vantagens em ser um maconheiro.
Quando o relógio marcou dez horas, Gregg levantou-se da frente do laptop e foi até a janela. Cara, ele se sentiria muito melhor sobre essa coisa toda se não tivesse visto aquela figura de cabelos longos perambulando pela área externa na noite anterior.
Para o inferno: melhor isso do que ver o filho da mãe no corredor fazendo um truque de alucinação do tipo “agora você vê, agora você não vê”.
Atrás dele, na cama, Holly disse:
– Está esperando para ver o coelhinho da Páscoa lá fora?
Olhou para ela e pensou que parecia ótima encostada nos travesseiros, com o nariz metido em um livro. Quando ela pegou a coisa, ficou surpreso ao ver que era um livro de Doris Kearns Goodwin sobre os Fitzgeralds e os Kennedys. Imaginou que era mais o tipo de garota que curtisse algo como a biografia de uma atriz de novela.
– Sim, principalmente o rabo de algodão – murmurou. – E eu acho que vou descer e ver se consigo achar a cesta.
– Não traga nenhum daqueles bichinhos de marshmallow. Ovos coloridos, coelhos de chocolate... tudo bem. Menos aqueles bichinhos.
– Vou fazer com que Stan venha e fique com você, ok?
Holly ergueu os olhos.
– Não preciso de babá. Especialmente se for alguém que está sujeito a acender um baseado no banheiro.
– Não quero deixá-la sozinha.
– Não estou sozinha. – Ela acenou para a câmera no canto da sala. – Apenas ligue aquilo.
Gregg se encostou no batente da janela. A forma como o cabelo dela captava a luz era muito bonita. É claro, a cor era, sem dúvida, um trabalho de um especialista em tintura... mas era o tom perfeito de louro contra sua pele.
– Você não está com medo? – disse ele, querendo saber exatamente quando foi mesmo que trocaram os papéis quanto a esse assunto.
– Com relação à noite passada? – Ela sorriu. – Não. Eu acho que aquela “sombra” é Stan pregando uma peça em nós como vingança por fazê-lo trocar de quarto. Você sabe como ele detesta deslocar bagagem. Além disso, acabei voltando para sua cama, não foi? Não que você tenha feito muita coisa com isso.
Agarrou seu blusão e aproximou-se dela. Tomando-lhe o queixo na mão, olhou em seus olhos.
– Você ainda me quer assim?
– Sempre. – A voz de Holly ficou mais baixa. – Estou amaldiçoada.
– Amaldiçoada?
– Para com isso, Gregg. – Quando ele apenas a olhou, ela jogou as mãos para o alto. – Você é uma má aposta. Está casado com seu trabalho e venderia sua alma para subir na vida. Reduz tudo e todos à sua volta a um mínimo denominador e isso lhe permite usá-los. E quando não são úteis? Você nem lembra seus nomes.
Jesus... ela era mais esperta do que pensava.
– Então por que ainda quer ter algo comigo?
– Às vezes... eu realmente não sei. – Seus olhos se voltaram para o livro, mas não iam e voltavam sobre as linhas. Eles apenas se fixaram sobre a página. – Acho que é porque eu era realmente ingênua quando te conheci, e você me deu uma chance quando mais ninguém deu e você me ensinou muitas coisas. E essa paixão inicial está durando.
– Faz soar como se fosse algo ruim.
– Pode ser. Esperava me desvencilhar disso... e depois fazer coisas como cuidar de mim e começar tudo de novo.
Ele olhou para ela, medindo seus traços perfeitos, sua pele lisa e seu corpo incrível.
Sentindo-se confuso e estranho, como se lhe devesse um pedido de desculpas, foi até a câmera no tripé e ativou-a para gravar.
– Está com seu celular aí?
Ela alcançou o bolso do roupão e tirou um BlackBerry.
– Bem aqui.
– Ligue-me se acontecer alguma coisa estranha, certo?
Holly franziu a testa.
– Você está bem?
– Por que pergunta?
Ela deu de ombros.
– É que nunca o vi tão...
– Ansioso? Sim, acho que existe alguma coisa nessa casa.
– Eu ia dizer... conectado, na verdade. É como se estivesse mesmo olhando para mim pela primeira vez.
– Eu sempre olhei para você.
– Não assim.
Gregg foi até a porta e parou.
– Posso perguntar uma coisa estranha? Você... pinta o seu cabelo?
Holly ergueu a mão até suas ondas loiras.
– Não. Eu nunca pintei.
– É realmente loiro assim?
– Você deveria saber.
Quando ela ergueu a sobrancelha, ele corou.
– Bem, as mulheres podem fazer tintura lá embaixo... você sabe.
– Bem, eu não faço.
Gregg franziu a testa e se perguntou quem diabos estava comandando seu cérebro: parecia que todos aqueles pensamentos estranhos estavam brincando em suas ondas mentais, como se talvez sua estação tivesse sido pirateada. Dando-lhe um pequeno aceno, desapareceu em direção ao corredor e olhou à esquerda e à direita, enquanto escutava com atenção. Nenhuma pegada. Nenhum rangido. Ninguém com um lençol sobre a cabeça dando uma de Gasparzinho.
Arrancando seu casaco, seguiu em direção às escadas odiando o eco de seus próprios passos. O som fazia com que se sentisse perseguido.
Olhou atrás de si. Nada além do corredor vazio.
Embaixo, no primeiro andar, olhou para as luzes que haviam sido deixadas acesas. Uma na biblioteca. Uma na entrada da frente. Uma na sala.
Esquivando-se ao virar em uma extremidade da casa, parou para observar o retrato de Rathboone. Por alguma razão, não achava mais que a pintura fosse tão romântica e comercializável.
Por alguma razão, coisa nenhuma. Desejava nunca ter chamado Holly para ver a coisa. Talvez não tivesse ficado tão marcado no subconsciente dela, de tal forma que acabou fantasiando sobre o cara ter se aproximado e tido relações sexuais com ela. Cara... a expressão no rosto dela quando estava falando de seu sonho. Não a parte do medo, mas do sexo, o sexo ressonante. Será que ela ficava assim depois de estar com ele?
Será que alguma vez parou para ver se ele a satisfez daquela maneira?
De qualquer maneira?
Abrindo a porta da frente, saiu como se estivesse em uma missão, quando, na realidade, não tinha aonde ir. Bem, a não ser para longe do computador e das imagens... e daquele cômodo silencioso com uma mulher que poderia ter mais substância do que ele imaginava.
Seria como descobrir que fantasmas existem.
Deus... o ar era limpo ali fora.
Andou para longe da casa, e quando estava a uns cem metros de distância, sobre o gramado ondulado, parou e olhou para trás. No segundo andar, viu a luz acesa em seu quarto e imaginou Holly aninhada contra os travesseiros, o livro em suas mãos longas e finas.
Continuou, indo em direção às árvores e ao riacho.
Será que os fantasmas têm alma? Ou será que eram almas em si?
Será que os executivos de televisão têm alma?
Aquilo sim era uma boa questão existencial.
Deu uma olhada devagar ao redor da propriedade, parando para dar um puxão em um musgo espanhol, sentir a casca dos carvalhos e o cheiro da terra e da neblina...
Estava voltando a casa quando a luz do terceiro andar acendeu... e uma sombra, alta e escura, passou por uma das janelas.
Gregg começou a andar rápido. Em seguida, começou a correr.
Estava voando quando saltou na varanda e atingiu a porta, abrindo-a com força, e começou a pisar firme escada acima. Não deu a mínima àquela história toda de “não vá ao terceiro andar”. E se acordasse as pessoas, tudo bem.
Quando chegou ao segundo andar, deu-se conta de que não fazia a menor ideia de que porta o levaria ao sótão. Andando rápido no corredor, concluiu que os números sobre os batentes indicavam que estava passando pelos quartos dos hóspedes.
Então, passou por uma porta onde se lia: Almoxarifado. Outra: Limpeza.
Obrigado, Jesus: SAÍDA.
Atravessou, chegou à escada dos fundos e subiu os degraus de dois em dois. Quando chegou ao topo, encontrou uma porta trancada com uma luz brilhando por baixo.
Bateu ruidosamente. E conseguiu um monte de nada.
– Quem está aí? – gritou, puxando a maçaneta. – Olá?
– Senhor! O que está fazendo?
Gregg se virou e olhou para baixo em direção ao mordomo... que ainda estava, apesar de já ter terminado o expediente, vestido com seu smoking.
Talvez não dormisse em uma cama, talvez se pendurasse num armário para que não se amassasse durante a noite.
– Quem está lá dentro? – Gregg perguntou, indicando com o dedo por cima do ombro.
– Sinto muito, senhor, mas o terceiro andar é particular.
– Por quê?
– Isso não é de seu interesse. Agora, se não se importa, vou pedir-lhe que retorne ao seu quarto.
Gregg abriu a boca para continuar a discussão, mas em seguida a fechou. Havia uma maneira melhor de lidar com isso.
– Sim. Certo. Tudo bem.
Fez um espetáculo ao pisar forte pelas escadas e passou roçando no mordomo.
Então, foi para seu quarto, como um simples hóspede de nada e entrou.
– Como foi sua caminhada? – Holly perguntou, bocejando.
– Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora? – Como, oh, digamos, um cara morto veio aqui transar com você?
– Não. Bem, a não ser alguém correndo pelo corredor. Quem era?
– Não faço ideia – Gregg resmungou, avançando pelo quarto e desligando a câmera. – Não faço a mínima ideia...
CAPÍTULO 38
John tomou forma próximo a um poste de luz. A iluminação que emanava por baixo de seu pescoço de girafa banhava a frente de um prédio que teria um visual muito melhor se estivesse na total escuridão: os tijolos de argamassa não eram vermelhos e brancos, eram marrom e marrom, e as rachaduras em várias janelas foram tampadas com fita adesiva em ziguezague e com coberturas baratas. Mesmo os degraus baixos que davam no saguão pareciam uma bagunça esburacada, como se tivessem sido atingidos por uma britadeira.
O lugar estava exatamente o mesmo desde quando ele passou a última noite lá, a não ser por um detalhe: o aviso amarelo onde se lia “Condenado” que tinha sido pregado na porta da frente.
Claro que o aviso era lido por alguns como “Bom para invadir”.
Quando Xhex saiu das sombras e se juntou a ele, fez o possível para demonstrar uma aparência calma... e sabia que estava falhando. Aquele tour pela lixolândia de sua vida pregressa era mais difícil de atravessar do que tinha imaginado, mas era como um parque de diversões. Uma vez que você entra num brinquedo e ele começa a funcionar, não tem como parar.
Quem diria que sua existência deveria ter um aviso de cuidado direcionado a mulheres grávidas e pessoas epiléticas.
Sim, não havia como parar isso; ela ficaria decepcionada com ele se terminasse antes da hora. Xhex parecia saber tudo que estava sentindo... e isso incluía uma sensação de fracasso que o rasgaria se ele desistisse ali.
– Você veio parar aqui depois do orfanato? – ela sussurrou.
Assentindo com a cabeça, levou-a a passar em frente do edifício e virar a esquina em direção ao beco. Quando chegou à saída de emergência, imaginou se a trava estaria quebrada...
A fechadura quebrou apenas com um pouco de força e entraram.
O tapete no corredor era parecido com um chão de terra batida em algum tipo de cabana, com manchas acumuladas e grudadas que entraram nas fibras e secaram. Havia garrafas vazias, embalagens amassadas e pontas de cigarros espalhados pelo corredor, e o ar cheirava a axilas de um mendigo.
Cara... mesmo um tanque cheio de aromatizador não ajudaria naquele pesadelo mal cheiroso.
Assim que Qhuinn entrou pela saída de emergência, John virou à esquerda na escada e começou a empreender a subida que o fazia querer gritar. Enquanto subiam, os ratos guinchavam e corriam para fora do caminho, e o odor do cortiço ficava mais espesso e pungente, como se fosse fermentando conforme a altitude aumentava.
Quando chegaram ao segundo andar, abriu caminho pelo corredor e parou em frente a uma grande mancha espalhada na parede. Jesus Cristo... aquela mancha de vinho ainda estava lá... Porém, porque ele estava surpreso? Como se alguma companhia de limpeza fosse até lá para limpá-la.
Passando por mais uma porta, empurrou a que fechava aquilo que tinha sido seu apartamento e... entrou...
Deus, tudo estava exatamente como tinha deixado.
Ninguém tinha morado ali desde que tinha ido embora, algo que supostamente fazia sentido. Gradualmente, as pessoas tinham deixado o local quando ele ainda era um inquilino... bem, aqueles que podiam pagar por um lugar melhor. Os que ficaram eram drogados. E os que tinham ocupado as vagas eram sem-tetos que se infiltraram rapidamente como as baratas que atravessam as janelas e portas quebradas no térreo. O ponto culminante da migração foi o aviso de evacuação: o edifício tinha sido condenado, o câncer da decadência tinha se espalhado por todo o lugar.
Quando olhou a revista de musculação que havia deixado sobre a cama de solteiro perto da janela, a realidade se contorceu sobre ele, arrastando-o para trás, em direção ao passado, mesmo com suas botas de combate firmemente plantadas no aqui e no agora.
Claro, quando esticou o braço e abriu a geladeira desativada... havia latas de proteína.
Sim, pois mesmo com fome, os desabrigados não tomariam aquela porcaria.
Xhex andou por ali e então parou na janela pela qual ele ficou olhando tantas noites.
– Queria ser diferente do que era.
Ele assentiu.
– Quantos anos você tinha quando foi encontrado? – Quando ele mostrou dois dedos duas vezes, os olhos dela se arregalaram. – Vinte e dois? E não fazia nem ideia de que era um...
John negou com a cabeça e avançou para pegar a revista. Folheou as páginas. Percebeu que havia se tornado aquilo que sempre desejou: um filho da mãe enorme e durão. Quem diria? Tinha sido um verdadeiro magricela, à mercê de tantas...
Jogando a revista sobre a cama outra vez, interrompeu aquela linha de pensamento com força e rapidez. Estava disposto a mostrar quase tudo. Mas não aquilo. Aquela parte... nunca.
Não iriam passar no primeiro edifício onde morou sozinho e ela não descobriria o porquê de ter se mudado para aquele lugar.
– Quem o trouxe para o nosso mundo?
Tohrment, expressou com os lábios.
– Quantos anos tinha quando deixou o orfanato? – Ele sinalizou o número um e depois um seis. – Dezesseis? E veio para cá? Direto do Nossa Senhora?
John assentiu e foi em direção a um armário em cima da pia. Abrindo-o, viu a única coisa que esperava encontrar. Seu nome. E a data.
Afastou-se para que Xhex pudesse ver o que tinha escrito. Lembrava-se de quando fez aquilo, tão rápido, com tanta pressa. Tohr estava esperando na calçada e ele correu para pegar sua bicicleta. Rabiscou aquelas marcas como uma prova... não sabia do quê.
– Não tinha ninguém – ela murmurou, olhando para o interior do armário. – Eu era assim. Minha mãe morreu no parto e fui criada por uma família até que legal... pessoas com quem eu sabia que não tinha nada em comum. Deixei-os logo e nunca voltei, pois eu não pertencia àquele lugar... e alguma coisa estava gritando dentro de mim, dizendo que era melhor que eu partisse. Não fazia a mínima ideia que era a parte sympatho e não havia nada no mundo para mim... mas eu tinha que partir. Felizmente, encontrei Rehvenge e ele me mostrou o que eu era. – Ela olhou por cima do ombro. – Pequenos acasos da vida... cara, eles são mortais, não são? Se Tohr não tivesse encontrado você...
Ele teria passado por sua transição e morrido no meio do processo, pois não tinha o sangue necessário para sobreviver.
Por alguma razão, não queria pensar nisso. Ou no fato de que ele e Xhex tinham um trecho na vida em comum, em que estiveram perdidos.
Vamos, assinalou com a boca. Vamos para a próxima parada.
Por entre o milharal, Lash dirigiu ao longo da trilha de terra em direção à fazenda. Providenciou uma proteção psíquica no local para que o Ômega e seu novo brinquedinho não conseguissem rastreá-lo. Também estava usando um boné de beisebol, uma capa com a gola levantada e um par de luvas.
Sentia-se como o Homem Invisível.
Droga, desejava ser invisível. Odiava olhar para si, e depois de algumas horas esperando para ver o que mais cairia em sua descida ao mundo dos mortos-vivos, não tinha certeza se estava aliviado da mudança parecer ter se estabilizado.
Tinha apenas metade do corpo derretido naquele ponto: os músculos ainda estavam pendurados em seus ossos.
A menos de um quilômetro de distância de seu destino, estacionou o Mercedes próximo a um conjunto de pinheiros e saiu. Como todos os seus poderes foram usados para manter-se disfarçado, não havia mais energia alguma dentro dele para se desmaterializar.
Então, foi uma caminhada bem longa até aquele maldito lugar e ficou ressentido de ter de se esforçar daquela maneira apenas para mover seu corpo.
Mas quando chegou até a casa de madeira, foi atingido por uma onda de energia. Havia três carros ridículos no estacionamento – todos os quais ele reconheceu. Os carros eram de propriedade da Sociedade Redutora.
E, veja só, o lugar estava bombando. Havia uns vinte caras dentro e uma grande festa acontecendo: era possível ver barris e garrafas de bebidas através das janelas, e ao redor do lugar havia filhos da mãe acendendo cachimbos e cheirando só Deus sabe o quê.
Onde estava o bastardo?
Ah... que noção de tempo perfeita. Um quarto carro chegou e não era como os outros três. A pintura chamativa do maldito carro esportivo era provavelmente tão cara quanto o trabalho de turbiná-lo, e as rodas tinham um brilho néon que fazia parecer que a coisa estava aterrissando. O garoto saiu de trás do volante e, veja só, estava todo descolado também: usava uma calça jeans nova, uma jaqueta de couro de grife e tinha acendido seu cigarro com alguma coisa de ouro.
Bem, aquilo seria o teste.
Se o garoto entrasse e apenas curtisse a festa, Lash estaria errado quanto à inteligência do filho da mãe... e o Ômega teria conseguido para si nada além de um pouco de diversão. Mas se Lash estivesse certo e o desgraçado fizesse mais do que isso, a festa se tornaria bem interessante.
Lash puxou a gola para mais perto da carne viva que era seu pescoço e tentou ignorar o quão ciumento estava. Já tinha estado na doce situação daquele garoto. Aproveitando o momento “eu sou tão especial” e achando que aquele brilho duraria para sempre. Mas tanto faz. Se o Ômega estava disposto a descartar alguém de sua própria carne e sangue, aquele lixo ex-humano não duraria muito.
Quando um dos bêbados lá dentro olhou na direção de Lash, pensou que poderia estar se arriscando, mas não se importava. Não tinha nada a perder e não estava muito ansioso para passar o resto de sua vida como um bife de carne seca animado.
Feio, fraco e vazando não era nada sexy.
Quando o vento frio fez seus dentes tremerem, pensou em Xhex e se aqueceu com as memórias. De alguma maneira, não conseguia acreditar que o tempo passado com ela tinha sido há poucos dias. Parecia ter se passado anos desde a última vez que a teve sob seu corpo. Pelo amor de Deus, encontrar aquela primeira lesão em seu pulso tinha sido o começo do fim... e ele simplesmente não sabia disso na época.
Apenas um arranhão.
Sim, certo.
Erguendo a mão para empurrar seu cabelo, bateu na aba do boné de beisebol e lembrou-se que não tinha mais nada ali com que se preocupar. Tudo se resumia a uma cúpula de osso.
Se tivesse mais energia, teria começado um discurso mental sobre a injustiça e a crueldade de seu destino decadente. A vida não deveria ter sido assim. Não deveria ter sido excluído. Sempre foi o foco das atenções, o líder, o especial.
Por algum motivo estúpido, pensou em John Matthew. Quando o filho da mãe ingressou no programa de formação de soldados, era apenas um cara ainda na fase de pré-transição, particularmente franzino, com nada além de um nome na Irmandade e uma cicatriz de estrela em seu peito. Era o alvo perfeito para se hostilizar e Lash tinha pegado pesado com o garoto.
Cara, naquela época não fazia a menor ideia de como era ser o estranho que ficava de fora. Como isso fazia com que se sentisse um lixo inútil. Como era olhar para as outras pessoas que faziam isso com você e estar disposto a dar qualquer coisa para estar com elas.
Ainda bem que não tinha a menor ideia de como era. Ou teria pensado duas vezes antes de desprezar o filho da mãe.
E agora, encostado na casca fria e desgrenhada de um carvalho, ao assistir através das janelas da fazenda como outro garoto de ouro vivia a sua vida, sentiu que seus planos mudavam.
Iria acabar com aquele idiota, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Era ainda mais importante que Xhex.
Sua motivação não era apenas o fato de que aquele cara o marcou para morrer. Acontece que queria mandar uma mensagem para seu pai. Afinal, ele era uma maçã podre que não caiu muito longe da árvore – e teria sua vingança custe o que custasse.
CAPÍTULO 39
– Aquela é a antiga casa de Bella – Xhex disse quando tomou forma num campo ao lado de John Matthew.
Quando ele assentiu, ela olhou ao redor, observando o campo. A casa branca de Bella com cercas em volta e uma chaminé vermelha produzia uma pintura perfeita à luz do luar e parecia uma pena que o lugar tivesse sido deixado com nada além das luzes de segurança externas ativadas.
O fato de que na garagem anexa havia um Ford F-150 estacionado e as janelas estarem brilhando fazia com que a sensação de abandono fosse ainda mais real.
– Bella foi a primeira que o encontrou?
John fez um movimento ambíguo com a mão e apontou para outra casinha na pista. Quando começou a gesticular e se deteve em seguida, sua frustração com a barreira de comunicação era óbvia.
– Alguém naquela casa... você os conhecia e eles o colocaram em contato com Bella?
Ele assentiu, enfiou a mão no casaco e tirou o que parecia ser uma pulseira artesanal. Pegando a coisa da mão dele, viu que alguns símbolos no Antigo Idioma haviam sido gravados do lado de dentro.
– Tehrror. – Quando ele tocou o peito, ela disse: – Seu nome? Mas como você sabia? – Ele tocou a cabeça e deu de ombros.
– Simplesmente se lembrou. – Ela se concentrou na casa menor. Havia uma piscina nos fundos e sentiu que suas memórias daquele local eram nítidas, pois cada vez que John passava os olhos sobre o terreno, sua grade emocional acendia como um circuito recebendo eletricidade.
Esteve ali pela primeira vez para proteger alguém. Bella não foi o motivo.
Mary, ela pensou. Mary, a shellan de Rhage. Mas como eles se encontraram?
Estranho... aquilo era uma parede em branco. John estava excluindo Xhex daquela parte.
– Bella entrou em contato com a Irmandade e Tohrment veio até você.
Quando assentiu outra vez, ela devolveu o bracelete, e enquanto passava os dedos pelos símbolos, Xhex ficou maravilhada com a relatividade do tempo. Desde que haviam deixado a mansão, havia passado apenas uma hora, mas sentiu como se tivessem passado um ano juntos.
Deus, ele deu mais do que esperava... e agora ela sabia exatamente porque tinha sido tão prestativo quando ela ficou fora de si na sala de cirurgia.
Ele suportou um verdadeiro inferno. Não viveu sua infância, foi arrastado por ela.
A questão era: em primeiro lugar, como ele foi parar no mundo humano? Onde estavam seus pais? O rei tinha sido seu ghia no período pré-transição... isso era o que seus documentos diziam quando foi pela primeira vez ao ZeroSum. Concluiu que sua mãe tinha morrido e a visita ao terminal rodoviário não desmentiu isso... mas havia buracos nessa história. Alguns dos quais ela tinha a impressão de serem intencionais, outros que ele não tinha sido capaz de preencher.
Franzindo a testa, sentiu que seu pai ainda estava muito presente com ele e, ainda assim, parecia que não tinha sequer conhecido o cara.
– Vai me levar a um último lugar? – ela murmurou.
John pareceu dar uma última olhada no local e então desapareceu, e ela o seguiu, graças a todo o sangue dele que havia em seu corpo.
Quando tomou forma outra vez diante de uma casa muito moderna, a tristeza dele o dominou de tal maneira que sua superestrutura emocional começou a desabar. Contudo, com muita força de vontade, conseguiu deter a desintegração a tempo, antes que não pudesse ser corrigida.
Quando a grade emocional desmorona, você está ferrado. Perdido em meio aos seus demônios internos.
O que a fez pensar em Murhder. No dia em que ele descobriu a verdade sobre ela. Podia lembrar-se exatamente de como sua estrutura emocional apareceu diante dela: as vigas de aço que eram a base da saúde mental foram reduzidas a nada além de uma confusão de destroços.
Xhex foi a única que não ficou surpresa quando ele enlouqueceu e desapareceu.
Assentindo para ela, John andou em direção à porta principal da frente, colocou uma chave e abriu. Quando uma corrente de ar veio de encontro a eles, ela pôde sentir o cheiro da poeira e da umidade, indicando que aquela era outra construção vazia. Mas não havia nada de podre dentro, ao contrário do antigo edifício onde John morava.
Quando ele acendeu a luz do hall de entrada, ela quase engasgou. Na parede, à esquerda da porta, havia um arabesco no Antigo Idioma que proclamava que aquela era a casa do Irmão Tohrment e de sua shellan, Wellesandra.
O que explicava porque doía tanto em John estar ali. O hellren de Wellesandra não havia sido o único a salvar o garoto na pré-transição.
A fêmea tinha sido importante para John. E muito.
John seguiu pelo corredor e acendeu mais luzes enquanto entravam, suas emoções eram uma combinação de afeto e uma forte dor. Quando foram para uma cozinha espetacular, Xhex se dirigiu à mesa do local.
Ele tinha sentado ali, pensou, colocando as mãos no encosto de uma das cadeiras... em sua primeira noite na casa, tinha sentado ali.
– Comida mexicana – ela murmurou. – Estava com tanto medo de ofendê-los. Mas, então... Wellesandra...
Como um cão de caça seguindo as pistas no caminho, Xhex rastreou o que sentia de suas memórias.
– Wellesandra serviu-lhe arroz com gengibre. E... pudim. Sentiu-se satisfeito pela primeira vez e seu estômago não doía e estava... estava tão grato que não sabia como lidar com isso.
Quando olhou para John, seu rosto estava pálido e os olhos brilhavam e ela soube que estava de volta ao seu pequeno corpo, sentado à mesa, todo encolhido... oprimido pelo primeiro ato de bondade que alguém lhe havia feito na vida.
O som de um passo no corredor fez com que ela erguesse a cabeça e percebeu que Qhuinn ainda estava com eles, o cara vagava por ali, seu mau humor era uma sombra tangível ao redor.
Bem, ele não teria que acompanhá-los por muito mais tempo. Aquele era o fim da estrada, o capítulo final da história de John que a deixou a par dos acontecimentos. E, infelizmente, isso significava que tinha que fazer o certo e apropriado e voltar à mansão... onde, sem dúvida, John a faria comer mais, tentando alimentá-la outra vez.
Porém, não queria retornar, ainda não. Em sua mente, tinha decidido tirar uma noite de folga, então aquelas eram as últimas horas antes de iniciar a trilha da vingança... e perder sua doce conexão com John, aquela compreensão que agora tinham um do outro.
Pois ela não iria enganar a si mesma: a triste realidade era que o poderoso laço que os unia era também tão frágil que não tinha dúvida que iria se romper, assim que voltassem a se focar no presente ao invés do passado.
– Qhuinn, pode nos dar licença, por favor?
Os olhos desiguais do cara encararam John e uma série de gestos com as mãos foi trocada entre eles.
– Vá se ferrar – Qhuinn disse antes de virar as costas e marchar em direção à porta da frente.
Após a batida da porta terminar de ecoar pela casa, ela olhou para John.
– Onde você dormia?
Quando indicou um corredor com a mão, ela foi com ele passando por muitos quartos onde havia equipamentos modernos e arte antiga. A combinação fazia o lugar parecer como um museu de arte onde se podia morar e ela o explorou um pouco, colocando a cabeça nas portas abertas das salas e quartos.
Para chegar ao quarto de John precisavam percorrer todo o caminho até o outro lado da casa, e enquanto caminhava até o local, só podia imaginar o choque cultural. Da imundície ao esplendor, vivenciado com uma simples mudança de endereço: ao invés daquela porcaria de apartamento, aquele era um paraíso azul marinho com móveis elegantes, um banheiro de mármore e um maravilhoso tapete.
Além disso, tinha uma porta de vidro corrediça que conduzia a uma varanda particular.
John aproximou-se, abriu o guarda-roupa e ela observou sobre seu forte e pesado braço as pequenas roupas penduradas nos cabides de madeira.
Enquanto ele olhava para as camisetas e calças, os ombros dele estavam tensos e uma de suas mãos estava fechada. Sentia muito sobre algo que havia feito ou pelo jeito que havia agido e isso não tinha nada a ver com ela.
Tohr. Era sobre Tohr.
Lamentava o jeito como as coisas estavam entre eles ultimamente.
– Converse com ele – disse ela baixinho. – Diga o que está acontecendo. Você dois vão se sentir bem melhor.
John concordou e ela pôde sentir nitidamente a determinação dele.
Deus, não tinha certeza sobre como aquilo acontecia – bem, a mecânica era bem simples, mas o que a surpreendia era o fato de que mais uma vez viu-se aproximando-se dele e abraçando-o. Deitou seu rosto entre seus ombros e ficou grata quando sentiu as mãos dele cobrindo as dela.
Ele se comunicava de tantas maneiras diferentes, não é? E, às vezes, um toque é melhor do que palavras para dizer o que se quer.
No silêncio, ela o guiou em direção à cama e os dois sentaram.
Quando ela simplesmente o encarou, ele articulou: O que foi?
– Você tem certeza que me quer indo até lá? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela olhou diretamente em seus olhos. – Sei que deixou algo de fora. Posso sentir. Há um buraco entre o orfanato e o edifício de apartamentos.
Nenhum músculo facial dele se moveu ou sequer se contorceu e também não piscou. Mas a expressão de um macho que era bom em esconder suas emoções era irrelevante. Tinha plena noção do que sabia sobre ele.
– Está tudo bem, não vou perguntar. Não vou pressionar.
O leve rubor no rosto dele era algo que recordaria muito tempo depois de partir... e pensar em deixá-lo foi o que a levou a colocar a ponta de seus dedos nos lábios dele.
Quando recuou surpreso, ela se concentrou em sua boca.
– Quero te dar algo meu – disse com uma voz baixa e profunda. – No entanto, não se trata de ficarmos quites. É apenas porque eu quero.
Afinal, seria ótimo se ela pudesse levá-lo aos lugares importantes de sua vida e guiá-lo através dela, mas saber mais a respeito de seu passado faria sua missão suicida mais difícil para ele: independente do que sentia por John, iria atrás de seu sequestrador e não era tola em se enganar com esperanças de sobreviver a isso.
Lash tinha seus truques.
Truques perversos com os quais fazia coisas ruins.
Lembranças do bastardo voltaram a ela, lembranças horríveis que fizeram suas coxas tremerem, memórias feias que, todavia, serviam para empurrá-la em direção a algo que talvez não estivesse preparada. Mas Xhex não iria para o túmulo tendo Lash como a última pessoa com quem transou.
Não quando ela tinha o único macho que realmente amava na sua frente.
– Quero ficar com você – disse com voz rouca.
Os olhos azuis chocados de John percorreram o rosto dela em busca de sinais de que tinha entendido algo errado. E então uma quente e forte luxúria rompeu todas as suas emoções, sem deixar nada para trás, a não ser um desejo enorme de um macho de sangue puro.
Fez o melhor que pôde para derrotar o instinto e manter alguma aparência de racionalidade, o que aumentou seu crédito. Mas isso significava apenas que seria ela quem terminaria a batalha entre razão e emoção... ao colocar seus lábios contra os dele.
Oh... Deus, os lábios dele eram tão macios.
Apesar do estrondo que sentiu no sangue dele, John se manteve controlado. Mesmo quando ela deslizou sua língua na boca dele. E aquela repressão tornou as coisas mais fáceis para ela, enquanto sua mente ia e vinha entre o que estava fazendo agora...
E o que havia sido feito com ela dias atrás.
Para ajudá-la a se concentrar, Xhex procurou pelo peito dele e correu as mãos pelos músculos sobre o coração. Deitando-o de costas sobre o colchão, sentiu o odor de vinculação que exalava por ela. Tinha um cheiro apimentado único e muito distante de tudo o que se poderia imaginar do cheiro enjoativo de um redutor.
Aquilo a ajudou a separar essa experiência de outras mais recentes que teve.
O beijo começou como uma exploração, mas não continuou assim. John aproximou-se, envolvendo seu corpo forte no dela, sua grande perna circundando-a até que ela estivesse em baixo. Ao mesmo tempo, seus braços a envolveram, trazendo-a com firmeza para junto dele.
John se movia tão devagar quanto ela.
E ela estava bem até que a mão dele escorregou sobre seu peito.
O contato a assustou, tirando-a daquele quarto e daquela cama, levando-a para longe de John e jogando-a de volta no inferno.
Lutando contra a fuga de sua mente, tentou manter-se presa ao presente, a John. Mas quando o polegar dele acariciou seu mamilo, teve que forçar seu corpo a ficar parado. Lash gostava de mantê-la por baixo e de prolongar o inevitável produzindo arranhões e machucados, pois ele adorava as preliminares mais até do que seus próprios orgasmos.
Jogada psicótica inteligente da parte dele. Ela preferia, infinitamente, acabar logo com...
John empurrou sua ereção contra o quadril dela.
Pronto.
Seu autocontrole alcançou o limite e quebrou-se ao meio: com um impulso, o corpo dela fugiu do contato por vontade própria, rompendo a comunhão com o corpo dele, estragando o momento.
Quando saltou da cama, Xhex pôde sentir o horror de John, mas estava muito ocupada cambaleando por causa de seu medo para ser capaz de explicar. Andando, tentando desesperadamente se agarrar à realidade, ela respirou fundo, não de paixão, mas de pânico.
Bem, aquela sensação era mesmo uma porcaria.
Lash desgraçado... iria matá-lo por isso. Não pelo que estava passando, mas pela posição em que ela havia colocado John.
– Sinto muito – ela gemeu. – Não deveria ter começado isso. Sinto muito mesmo.
Ela parou na frente da penteadeira e olhou para o espelho pendurado na parede. John tinha se levantado enquanto ela ia e vinha e parou em frente à porta de correr de vidro, os braços cruzados sobre o peito, a mandíbula apertada enquanto olhava para a noite lá fora.
– John... não é você. Eu juro.
Quando balançou a cabeça, não olhou para ela.
Esfregando o próprio rosto, o silêncio entre eles aumentava a vontade de ela fugir. Simplesmente não conseguia lidar com nada disso, com nada do que estava sentindo e com o que havia feito com John, nem com nada daquela porcaria com Lash.
Seus olhos alcançaram a porta e seus músculos ficaram tensos para sair dali. O que era comum em sua cartilha. Ao longo de toda sua vida, ela sempre confiou em sua capacidade de desaparecer, sem deixar para trás nenhuma explicação, nenhum vestígio, nada além de ar.
Serviu-lhe bem como assassina.
– John...
A cabeça dele se moveu e seu olhar queimava com tristeza quando ela o encontrou no reflexo do vidro.
Enquanto ele esperava que ela dissesse alguma coisa, Xhex pensou em dizer que era melhor que ela fosse embora. Deveria dar outra desculpa idiota e se desmaterializar para fora do quarto... para fora da vida dele.
Mas tudo que conseguiu dizer foi seu nome.
Ele virou o rosto para ela e articulou com a boca: “Sinto muito. Vá. Está tudo bem. Vá.”
No entanto, ela não conseguia se mover. E a boca dela se abriu. Quando percebeu o que estava no fundo de sua garganta, não conseguia acreditar que iria colocar aquilo em palavras. A revelação ia de encontro a tudo que ela sabia sobre si mesma.
Pelo amor de Deus, ela realmente ia fazer isso?
– John... eu... eu fui...
Mudando o foco de seus olhos, ela mediu o próprio reflexo. Sua face de ossos pronunciados e a palidez eram resultado de muito mais do que apenas falta de sono e alimentação.
Com um súbito lampejo de raiva, ela desabafou:
– Lash não era impotente, ok? Ele não era... impotente...
A temperatura no quarto caiu tanto e tão rápido que sua respiração começou a produzir nuvens.
E o que ela viu no espelho a fez cambalear e dar um passo para trás, afastando-se de John: os olhos azuis dele brilharam com uma luz profana e seu lábio superior estava contraído mostrando as presas tão nítidas que pareciam punhais.
Todos os objetos no quarto começaram a vibrar: os abajures nas mesas de cabeceira, as roupas nos cabides, o espelho na parede. O ruído coletivo cresceu até se tornar um rugido e aquilo a fez segurar na cômoda ou correria o risco de cair.
O ar estava vivo. Sobrecarregado. Elétrico.
Perigoso.
E John era o centro dessa energia furiosa, as mãos fechadas, tão apertadas que chegavam a tremer, as coxas dele ficaram tensas em seus ossos ao assumir a posição de combate.
A boca de John se abriu ao máximo quando jogou a cabeça para frente... e soltou um grito de guerra...
O som explodiu tudo ao redor, tão alto que ela teve que cobrir os ouvidos, tão poderoso que sentiu uma explosão contra seu rosto.
Por um momento, achou que ele havia encontrado sua voz – só que não eram suas cordas vocais que estavam fazendo aquele barulho estridente.
Os vidros das portas explodiram atrás dele, quebrando-se em milhares de cacos que se espalharam por todo o local, os fragmentos quicaram na ardósia e capturaram a luz como gotas de chuva...
Ou como lágrimas.
CAPÍTULO 40
Blay não fazia ideia do que Saxton tinha acabado de lhe dar.
Bem, sim, era um charuto e, sim, era caro, mas o nome não se prendeu em sua mente.
– Acho que você vai gostar – disse o macho, reclinando-se para trás em sua poltrona de couro e acendendo seu próprio charuto. – São suaves. Marcantes, mas suaves.
Blay acendeu a chama de seu isqueiro Montblanc e inclinou-se para tragar. Ao reter a fumaça, pôde sentir a atenção de Saxton focada nele.
Outra vez.
Não estava acostumado com tanta atenção, então deixou que seus olhos vagassem pelo local: teto abobadado verde escuro, brilhantes paredes pretas, cadeiras de couro vermelho escuro e cabines onde as pessoas se sentavam às mesas. Vários humanos com cinzeiros junto aos seus cotovelos.
Resumindo: não havia distrações que pudessem ser comparadas aos olhos de Saxton ou à voz ou à colônia ou...
– Então, diga-me – o macho disse, exalando uma nuvem azul perfeita, que, momentaneamente, eclipsou sua feição. – Colocou o seu risca de giz antes ou depois que liguei?
– Antes.
– Sabia que você tinha estilo.
– Sabia?
– Sim. – Saxton olhou fixamente através da pequena mesa de mogno que os separava. – Ou eu não o teria chamado para jantar.
A refeição que compartilharam no Restaurante do Sal foi... realmente adorável. Comeram na cozinha, em uma mesa privada, e iAm lhes preparou um menu especial de antepastos e massas, acompanhado por café com leite e tiramisu de sobremesa. O vinho havia sido branco para o primeiro prato e tinto para o segundo.
Os temas da conversa foram neutros, mas interessantes... e, afinal, isso não importava muito. Se ficariam juntos ou não era o verdadeiro objetivo de cada palavra, olhar e gestos corporais.
Então... era mesmo um encontro, Blay pensou. Uma negociação implícita, disfarçada numa conversa sobre livros e músicas preferidas.
Não era de admirar que Qhuinn fosse direto para o sexo. O cara não tinha paciência para esse tipo de sutileza. Além disso, não gostava de ler e a música que pulsava em seus ouvidos era metalcore que só os loucos ou surdos poderiam suportar.
Um garçom vestido de preto aproximou-se.
– Posso trazer algo para beberem?
Saxton rodou seu charuto entre os dedos indicador e polegar.
– Vinho do Porto, safra de 1945, por favor.
– Excelente escolha.
Os olhos de Saxton se voltaram para Blay.
– Eu sei.
Blay olhou para a janela em frente ao local onde estavam sentados e se perguntou se nunca deixaria de corar perante o cara.
– Está chovendo.
– Está?
Deus que voz. As palavras de Saxton eram tão suaves e deliciosas quanto o charuto.
Blay mexeu as pernas, cruzando-as no joelho.
Enquanto vasculhava seu cérebro a procura de algo que quebrasse o silêncio, parecia que o comentário ridículo sobre o tempo era a observação mais inspirada que faria. O fato era que o final do encontro estava próximo e, até então, só sabia que ele e Saxton lamentavam a perda de Dominick Dunne e que eram fãs de Miles Davis. Não sabia o que iria fazer quando chegasse a hora de seguir caminhos distintos.
Seria o caso de: Ligue para sairmos outra vez? Ou o infinitamente mais complicado, confuso e agradável: Sim, com certeza, irei agora até sua casa para apreciar suas gravuras.
Ao que sua consciência o obrigou a acrescentar: mesmo que eu nunca tenha feito isso com um cara antes e apesar do fato de que qualquer outra pessoa seria apenas um substituto para Qhuinn.
– Quando foi a última vez que esteve num encontro, Blaylock?
– Eu... – Blay deu uma longa tragada no charuto. – Faz um bom tempo.
– O que tem feito para você mesmo? Só trabalho, sem diversão?
– Algo assim.
Ok, amor não correspondido não se enquadrava exatamente em nenhuma dessas categorias, apesar de “sem diversão” ser totalmente certo.
Saxton sorriu um pouco.
– Fiquei feliz por ter me ligado. E um pouco surpreso.
– Por quê?
– Meu primo tem uma certa... reação territorial em relação a você.
Blay girou seu charuto e olhou para a ponta incandescente.
– Acho que você supervaloriza o interesse dele.
– E eu acho que está me dizendo educadamente para que eu cuide de assuntos que me dizem respeito, não está?
– Não há qualquer assunto para tratar sobre isso. – Blay sorriu para o garçom que colocou dois cálices na mesa redonda e se afastou. – Pode acreditar.
– Sabe? Qhuinn tem uma personalidade interessante. – Saxton estendeu a mão com elegância e pegou sua taça de vinho. – Na verdade, ele é um dos meus primos favoritos. Seu inconformismo é admirável e sobreviveu a coisas que iriam esmagar um macho fraco. Contudo, não sei se estar apaixonado por ele seria fácil.
Blay não mordeu a isca.
– Então, você vem sempre aqui?
Saxton riu, seus olhos pálidos brilhando.
– Ok, esse assunto é proibido. – Olhou em volta, franzindo a testa. – Na verdade, não tenho saído muito ultimamente. Muito trabalho também.
– Você disse que é advogado da Antiga Lei. Deve ser interessante.
– Eu me especializei em heranças e espólios, então o fato do negócio estar crescendo é algo para se lamentar. O Fade tornou-se cheio de inocentes desde o verão passado...
Na cabine ao lado, um monte de valentões com relógios de ouro e ternos de seda riam como bêbados arrogantes que eram – a tal ponto que o mais alto deles acabou encostando-se com força em sua cadeira e batendo em Saxton.
O que foi um problema, pois provou que Saxton era um cavalheiro, mas não um covarde.
– Desculpe, mas se importaria de se afastar um pouco?
O desalinhado humano virou-se, sua barriga protuberante sobre o cinto parecia que ia explodir por todo o lugar.
– Sim. Eu me importo. – Seus pálidos olhos lacrimejantes se estreitaram. – Tipos como você não pertencem a este local, de jeito nenhum.
E ele não estava falando sobre o fato de serem vampiros.
Quando Blay tomou seu vinho, o caro líquido teve gosto de vinagre... embora o sabor amargo em sua boca não fosse porque a bebida estivesse ruim.
Um momento depois, o cara bateu as costas contra o assento com tanta força que Saxton quase derramou sua bebida.
– Mas que inferno! – o macho murmurou, pegando seu guardanapo.
O idiota humano inclinou-se em seu espaço outra vez.
– Estamos interrompendo os dois lindos rapazes chuparem aquelas coisas duras?
Saxton sorriu com força.
– Definitivamente está interrompendo.
– Descuuulpe. – O humano de repente levantou seu dedo mínimo acima de seu charuto. – Não quis ofendê-lo.
– Vamos – Blay disse enquanto se inclinava e apagava seu charuto.
– Posso conseguir outra mesa.
– Vão embora juntos, rapazes? – disse o Sr. Boca Grande arrastando as palavras. – Vão a uma festa onde há todos os tipos de charutos? Talvez nós os sigamos, apenas para ter certeza que chegarão bem lá.
Blay manteve os olhos centrados em Saxton.
– Está ficando tarde, de qualquer maneira.
– O que significa que é apenas o meio do nosso dia.
Blay levantou-se e colocou a mão no bolso, mas Saxton gesticulou e o impediu de sacar a carteira.
– Não, permita-me.
Outra rodada de comentários partindo do engraçadinho carregou ainda mais o ar e deixou Blay rangendo os dentes. Felizmente, não demorou muito para Saxton pagar o garçom e, em seguida, seguiram em direção à porta.
Do lado de fora, o ar frio da noite era um bálsamo aos sentidos e Blay respirou profundamente.
– Esse lugar não é sempre assim – Saxton murmurou. – Caso contrário, nunca o teria levado até lá.
– Está tudo bem.
Quando Blay começou a caminhar, sentiu Saxton colocar-se ao seu lado.
Quando chegaram à entrada de um beco, pararam para deixar um carro virar à esquerda na Rua Commerce.
– Então, como está se sentindo sobre tudo isso?
Blay encarou o outro macho e decidiu que a vida era muito curta para fingir que não sabia exatamente o que esse “isso” significava.
– Para ser honesto, sinto-me estranho.
– E isso não se deve àqueles idiotas.
– Eu menti. Nunca estive num encontro antes. – A confissão fez Saxton levantar uma sobrancelha e Blay teve que rir. – Sim, sou um ator de verdade.
O ar suave de Saxton desapareceu, e por trás de seus olhos, um calor verdadeiro começou a brilhar.
– Bem, estou feliz em ser o seu primeiro.
Blay encontrou o olhar do cara.
– Como sabia que eu era gay?
– Não sabia. Apenas esperava que sim.
Blay riu de novo.
– Bem, agora sabe. – Após uma pausa, estendeu a mão. – Obrigado por esta noite.
Quando Saxton tocou sua mão, um frisson de puro calor queimou entre eles.
– Sabe que encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
Blay descobriu que era incapaz de soltar a mão do macho.
– Ah... verdade?
Saxton assentiu.
– Um beijo é o mais comum.
Blay focou nos lábios do macho e de repente se perguntou que gosto teria.
– Venha aqui – Saxton murmurou, puxando-o pela mão e atraindo-o a um refúgio no beco.
Blay seguiu-o na escuridão, guiado por um feitiço erótico que não tinha interesse nenhum em romper. Quando chegaram a um lugar mais oculto entre as fachadas dos edifícios, sentiu o tórax do macho subir contra o seu e, em seguida, seus quadris fundiram-se.
Então, soube exatamente o quanto Saxton estava excitado.
E Saxton sabia que ele também estava.
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Blay não queria pensar em Qhuinn agora e balançou a cabeça para limpar a imagem. Quando isso não funcionou e os olhos azul e verde do cara persistiram em sua mente, fez a única coisa que garantiria parar de pensar em sua perdição.
Venceu a distância entre a boca de Saxton e a sua.
Qhuinn sabia que deveria ter ido direto para casa. Depois que foi sumariamente dispensado da casa de Tohr, sem dúvida para que John e Xhex desfrutassem um pouco de conversa na horizontal, ele deveria ter voltado para a mansão e se consolar com a amigável tequila e ocupar-se com sua maldita vida.
Mas nããão. Ele se materializou na rua do único bar de charuto em Caldwell e assistiu – na chuva, como um perdedor – quando Blay e Saxton sentaram-se em uma mesa bem em frente à janela. Ele teve uma visão completa de como seu primo estava olhando para seu melhor amigo com uma luxúria elegante e, então, alguns idiotas fizeram gracinhas até que os dois deixaram os charutos no meio e as taças de vinho inacabadas.
Não querendo ser pego escondido entre as sombras, Qhuinn teve que se desmaterializar no beco ao lado... que logo se transformou no típico “lugar errado, na hora errada”.
A voz de Saxton pairou sobre a brisa fria.
– Sabe que os encontros não costumam terminar assim. Assumindo que ambas as partes estão interessadas.
– Ah... verdade?
– Um beijo é o mais comum.
Qhuinn sentiu as mãos se fecharem com força, e por uma fração de segundo, pensou realmente em sair de trás do contêiner de lixo em que estava escondido. Mas para fazer o quê? Colocar-se entre os dois dizendo “parem com isso rapazes”?
Bem, sim. Exatamente.
– Venha aqui – Saxton murmurou.
Droga, o bastardo soava como um operador de tele-sexo, todo rouco e sensual. E... oh, cara, Blay estava indo com ele, seguindo o cara na escuridão.
Havia momentos em que o incrível senso de audição de um vampiro era uma verdadeira maldição. E, claro... não ajudava se estivesse espiando perto de uma lata de lixo.
Quando os dois foram ao encontro um do outro, a boca de Qhuinn se abriu. Mas não porque estava chocado e não porque quisesse entrar em ação.
Simplesmente não conseguia respirar. Era como se suas costelas tivessem congelado junto com seu coração.
Não... não, maldição, não...
– Diga uma coisa – Saxton sussurrou. – Você já beijou um macho antes?
Sim, já, Qhuinn queria gritar...
Blay negou com a cabeça. Negou mesmo.
Qhuinn fechou os olhos com força e obrigou-se a se acalmar o suficiente para conseguir desmaterializar-se. Quando tomou forma em frente à mansão da Irmandade, tremia como um filho da mãe... e chegou a considerar curvar-se e fertilizar os arbustos com o jantar que tinha comido antes de sair com Xhex e John.
Depois de respirar fundo duas vezes, decidiu que era mais interessante seguir com o plano A e ficar bêbado. Com isso em mente, entrou pela porta, Fritz o deixou entrar, e dirigiu-se à cozinha.
Inferno, talvez ele tomasse mais do que apenas alguns goles. Deus sabia que Saxton não iria se contentar com um beijo ou dois num beco frio e úmido, e Blay parecia estar preparado para, finalmente, conseguir o que precisava há tanto tempo.
Portanto, haveria tempo de sobra para ele encher a cara até perder a consciência.
Jesus... Cristo, Qhuinn pensava enquanto esfregava o peito e ouvia a voz de seu primo várias vezes: Diga uma coisa. Você já beijou um macho antes?
A imagem de Blay balançando a cabeça parecia uma cicatriz no cérebro de Qhuinn, o que o levou a ir direto para o outro lado da cozinha em direção à despensa, onde as caixas de bebida eram guardadas.
Mas que clichê. Embriagar-se por não querer lidar com as coisas.
Mas pelo menos isso ele faria de acordo com a tradição.
Voltando a atravessar a cozinha, percebeu que havia, pelo menos, uma graça salvadora. Quando os dois fossem partir para ação, teria que ser na casa de Saxton, porque nenhum visitante casual era permitido na casa do rei, nunca.
Quando saiu em direção à porta de entrada, parou de repente.
Blay estava entrando.
– De volta tão cedo – disse Qhuinn rispidamente. – Não me diga que meu primo é rápido.
Blay nem sequer fez uma pausa. Apenas continuou a subir as escadas.
– Seu primo é um cavalheiro.
Qhuinn saiu atrás do melhor amigo, seguindo ao seu encalço.
– Você acha? Na minha experiência, apenas parece um...
Isso fez com que Blay se virasse.
– Você sempre gostou dele. Era seu favorito. Lembro que falava dele como se fosse um deus.
– Eu cresci e perdi o interesse.
– Bem, eu gosto dele. Muito.
Qhuinn quis rosnar, mas matou o impulso abrindo a tequila que tinha surrupiado da prateleira e tomou um gole.
– Bom para você. Fico feliz por vocês dois.
– Sério? Então porque nem sequer está usando um copo?
Qhuinn passou rápido por seu amigo e não parou nem quando Blay disse “Onde estão John e Xhex?”.
– Fora. No mundo. Sozinhos.
– Achei que deveria ficar com eles.
– Fui temporariamente dispensado. – Qhuinn parou no topo da escada e tocou a lágrima tatuada abaixo de seu olho. – Ela é uma assassina, pelo amor de Deus. Pode cuidar dele muito bem. Além disso, estavam se divertindo na antiga casa de Tohr.
Quando chegou ao seu quarto, Qhuinn chutou a porta e tirou a roupa. Após beber um grande gole da garrafa, fechou os olhos e enviou uma convocação.
Layla seria uma boa companhia agora.
Esta era sua especialidade. Afinal, foi treinada para o sexo e tudo que ela queria era usá-lo como uma escola erótica. Não precisava se preocupar em magoá-la ou se ela se sentiria ligada a ele. Era uma profissional, por assim dizer.
Ou seria quando tivesse terminado de fazer algumas coisas com ela.
Quanto a Blay? Não fazia ideia do porquê o cara tinha voltado ao invés de se dirigir à cama de Saxton, mas uma coisa era clara. Os dois estavam atraídos um pelo outro e Saxton não era do tipo que espera muito quando deseja alguém.
Qhuinn e seu primo eram parentes, afinal.
Mas isso não salvaria o filho da mãe magricelo se partisse o coração de Blay.
CAPÍTULO 41
A festa na fazenda continuava e mais pessoas iam chegando, os carros estacionados no gramado, os corpos comprimidos nos cômodos do andar de baixo. A maioria dos que compareceram Lash conhecia do Parque Xtreme, mas não todos. E continuavam trazendo bebidas.
Só Deus sabia que tipo de coisas ilegais havia em seus bolsos.
Que droga, pensou. Talvez estivesse errado e o Ômega estivesse farto de suas perversões...
Quando sentiu uma brisa vinda do norte, Lash ficou imóvel, mantendo-se camuflado e travando sua mente.
Sombra... projetou uma sombra em si próprio, através dele e em torno dele.
A chegada do Ômega foi precedida por um eclipse da lua e os idiotas dentro não faziam a menor ideia do que estava acontecendo... mas aquele lixo sabia. O garoto saiu pela porta da frente, a luz de dentro derramando ao redor dele.
O pai de Lash tomou forma no gramado desalinhado, suas vestes brancas se agitavam em volta de seu corpo, sua chegada diminuiu ainda mais a temperatura do ar. Assim que tomou forma, o idiotinha caminhou até ele e os dois se abraçaram.
Houve uma tentação de atacar os dois, para dizer a seu pai que ele não era nada além de um pervertido inconstante e avisar ao ratinho filho da mãe que seus dias e noites estavam contados...
O rosto encapuzado do Ômega virou na direção de Lash.
Lash ficou totalmente imóvel e projetou em sua mente uma lousa totalmente em branco, para que permanecesse invisível por dentro e por fora. Sombra... sombra... sombra...
A pausa durou uma vida, porque sem dúvida se o Ômega sentisse que Lash estava por perto, seria o fim do jogo.
Depois de um momento, o Ômega voltou sua atenção para seu queridinho da vez, e quando fez isso, algum idiota tropeçou para fora da porta da frente, os braços se agitaram e as pernas ficaram desequilibradas enquanto tentava manter-se em pé. Quando caiu na grama, o cara se moveu em direção a um canteiro, mas não conseguiu: aterrissou em seus joelhos e vomitou por todo o alicerce da casa. Enquanto as pessoas riam dele e os sons da festa rolavam noite adentro, o Ômega deslizou até a porta.
A festa continuou quando ele entrou na casa, sem dúvida porque os bastardos estavam muito chapados para perceber que sob aquela cortina branca, o mal havia acabado de entrar.
No entanto, não continuaram na ignorância por muito tempo.
Uma enorme bomba de luz explodiu, a rajada de iluminação varreu a casa e fluiu para fora das janelas até a linha das árvores. Quando a iluminação se desvaneceu até chegar a um brilho suave, não havia sobreviventes em pé: todos os bêbados caíram ao chão de uma só vez. A diversão tinha acabado.
Caramba. Se a coisa continuasse indo naquela direção...
Lash esgueirou-se para a casa, tomando cuidado para não deixar nenhuma pegada, literal ou figurativamente e, quando se aproximou, ouviu um estranho som de arranhões.
Aproximando-se de uma das janelas da sala, olhou para dentro.
O bastardo estava arrastando os corpos, alinhando-os lado a lado no chão, de modo que todos os rostos ficaram em direção ao norte e havia aproximadamente trinta centímetros entre uma e outra cabeça. Jesus... havia tantos cadáveres que o procedimento do bom soldadinho de enfileirar os mortos se estendeu por todo o caminho entre o corredor até a sala de jantar.
O Ômega recuou como se estivesse apreciando a visão de seu brinquedo enquanto movia os corpos ao redor.
Que. Meigo.
Levou quase meia hora para alinhar todos, os caras do segundo andar foram arrastados para baixo pelas escadas de modo que a cabeça batia em cada degrau e deixava um rastro vermelho de sangue.
Fazia sentido. Era mais fácil puxar um peso morto pelos pés.
Quando todos estavam juntos, o cretino começou a trabalhar com uma faca e aquilo se tornou uma fila para a iniciação. Começando na sala de jantar, cortou a garganta, os pulsos, os tornozelos e o peito. O Ômega o seguia, derramando sangue preto sobre as costelas abertas, golpeando-os com eletricidade.
Nenhuma bacia para este lote. Quando os corações foram extraídos, foram lançados num canto.
Um grande abatedouro?
Quando tudo terminou, havia um lago de sangue no centro da sala onde o piso havia cedido e outro na base da escada que dava para a entrada. Lash não conseguia observar todo o caminho até a sala de jantar, mas tinha plena certeza de que havia muito sangue lá também.
Os gemidos dos induzidos começaram logo em seguida e a safra de miséria que havia sido colhida ficaria mais alta e mais confusa conforme a transição fosse superada e os últimos resquícios de sua humanidade fossem vomitados para fora.
No meio do coro de agonia e confusão, o Ômega virou-se, pisando sobre as massas que se contorciam, dançando para lá e para cá, arrastando o seu manto branco ao longo da porcaria coagulada no chão e, ainda assim, permanecia imaculado.
No canto, o idiotinha acendeu um baseado e deu uma longa tragada como se estivesse tomando fôlego depois de um trabalho bem feito.
Lash se afastou da janela e retirou-se em direção às árvores, sempre mantendo os olhos na casa.
Droga, deveria ter feito algo assim. Mas não tinha os contatos certos no mundo humano para isso. Ao contrário do idiotinha.
Cara, isso mudaria tudo para os vampiros. Aqueles desgraçados iriam enfrentar, de verdade, uma legião de inimigos novamente.
De volta a Mercedes, Lash ligou o motor e retirou-se da fazenda afastando-se pelo caminho mais longo. Atrás do volante, com o ar frio batendo no rosto graças à janela estilhaçada, seu humor era sombrio. Para o inferno com as fêmeas e todas aquelas besteiras. Seu único objetivo na vida era acabar com o idiotinha. Tomar o prêmio do Ômega. Destruir a Sociedade Redutora.
Bem... as fêmeas não faziam parte disso. Sentia-se totalmente esgotado, porque precisava se alimentar – o que quer que estivesse acontecendo à sua camada externa, seu interior ainda desejava sangue e tinha que resolver esse problema antes que pudesse enfrentar seu velho pai.
Ou iria se dar muito mal.
Enquanto dirigia para o centro, pegou o telefone e ficou maravilhado com o que estava prestes a fazer. Contudo, um inimigo em comum sempre acaba resultando em estranhas alianças.
De volta ao Complexo da Irmandade, Blay se despiu no banheiro e entrou debaixo do chuveiro. Ao pegar o sabão e fazer um pouco de espuma, pensou no beijo naquele beco.
Naquele macho.
Naquele... beijo.
Movendo as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e deixou a água quente escorrer por seu cabelo, suas costas, até seu traseiro. Seu corpo parecia querer se arquear com mais força e se deixar levar, alongando-se, deleitando-se naquela onde de calor. Gastou um tempo lavando seu cabelo com xampu e correndo a mão ensaboada e escorregadia por seu corpo.
Enquanto pensava um pouco mais sobre aquele beijo.
Deus, era como se a memória de seus lábios juntos fosse um imã que o arrastava de volta àquele momento repetidas vezes; o puxão foi muito forte para resistir, a conexão muito atraente para conseguir evitar.
Deslizando as palmas das mãos sobre o tronco, perguntava-se quando veria Saxton outra vez.
Quando ficariam sozinhos outra vez.
Movendo a mão mais para baixo, ele...
– Senhor?
Blay girou, seu calcanhar rangeu sobre o mármore. Cobrindo seu membro rígido e pesado com as duas mãos, tentou esquivar-se atrás da porta de vidro.
– Layla?
A Escolhida sorriu timidamente e correu os olhos por seu corpo.
– Fui chamada? Para servir?
– Eu não chamei. – Será que ela tinha confundido? A não ser que...
– Qhuinn me convocou. Concluí que seria neste quarto.
Blay fechou os olhos momentaneamente enquanto a ereção desvanecia. Então acabou com a festinha particular e fechou a água quente. Estendendo a mão, agarrou uma toalha e a envolveu em seus quadris.
– Não, Escolhida – disse calmamente. – Não é aqui. Mas no quarto dele.
– Oh, perdoe-me, senhor. – Iniciou seu caminho para fora do quarto, o rosto em chamas.
– Está tudo bem... cuidado! – Blay pulou para frente e a agarrou quando ela esbarrou na banheira e perdeu o equilíbrio. – Você está bem?
– Sim, eu deveria olhar por onde ando. – Ela observou seus olhos, as mãos descansando em seus braços nus. – Obrigada.
Olhando para o rosto perfeitamente belo, era óbvio o motivo pelo qual Qhuinn estava interessado. Ela era etérea, com certeza, mas havia algo além disso – especialmente quando abaixou as pálpebras e os olhos verdes brilharam.
Inocente, mas erótico. Era isso. Era a combinação cativante de pureza e sexo que era indiscutível aos homens normais – e Qhuinn não chegava nem perto de ser normal. Transava com qualquer coisa.
Imaginou se a Escolhida sabia disso. Ou se isso importaria para ela.
Com a testa franzida, Blay a afastou.
– Layla...
– Sim, senhor?
Bem, inferno... o que dizer? Estava muito claro que não havia sido chamada outra vez para alimentar Qhuinn, pois haviam se alimentado na noite anterior...
Cristo, talvez fosse isso. Já tinham tido relações sexuais uma vez e ela estava voltando para mais.
– Senhor?
– Nada. É melhor você ir. Tenho certeza de que ele está esperando.
– De fato. – O aroma de Layla pairou sobre o local, o cheiro de canela fez o nariz de Blay formigar. – E sou muito grata por isso.
Quando ela se virou e saiu, Blay observou o balançar de seus quadris e sentiu vontade de gritar. Não queria pensar em Qhuinn transando no quarto ao lado... Pelo amor de Deus, a mansão havia sido o único lugar que não havia sido contaminado por toda aquela atividade extracurricular.
Agora, porém, tudo que conseguia ver era Layla entrando no quarto de Qhuinn e deixando sua túnica branca cair ao deslizar pelos ombros; seus seios, ventre e coxas sendo revelados diante daqueles olhos díspares. Ela estaria em sua cama e sob seu corpo num piscar de olhos.
E Qhuinn a trataria bem. Isso era o que acontecia, pelo menos quando se tratava de sexo: ele era generoso com seu tempo e seu talento. Ele se dedicaria a ela com tudo o que tinha, as mãos, a boca...
Certo. Melhor não pensar no resto.
Enxugando-se rapidamente, ocorreu-lhe que talvez Layla fosse a parceira perfeita para o cara. Com seu treinamento, ela não só iria satisfazê-lo em todos os níveis, como nunca esperaria dele monogamia ou se ressentiria por suas façanhas nesse sentido ou forçaria ligações emocionais que ele não sentia. Provavelmente, ela até mesmo entraria na brincadeira, pois era evidente pela forma como andava que se sentia bem com seu corpo.
Era perfeita para ele. Melhor do que Blay, com certeza.
Além disso, Qhuinn havia deixado claro que iria acabar com uma fêmea... uma fêmea tradicional, com valores tradicionais, de preferência que fosse da aristocracia, isso assumindo que encontraria alguém que o aceitasse mesmo com o defeito dos olhos díspares.
Layla preenchia totalmente os requisitos – nada mais tradicional ou de sangue mais puro do que uma Escolhida e era evidente que ela o queria.
Sentindo-se como se tivesse sido amaldiçoado, Blay entrou em seu closet e vestiu uma bermuda e uma camiseta. Não havia chance alguma de sentar-se ali e se aconchegar com um bom livro, enquanto estivesse acontecendo o que quer que fosse na porta ao lado...
Pois é. Não precisava daquelas imagens, mesmo que hipoteticamente.
Saindo para o corredor de estátuas, apressou-se ao passar pelas figuras de mármore, invejando suas poses calmas e rostos serenos. Claro que fingir sempre que “está tudo bem” fazia a ideia de ser um objeto inanimado parecer muito boa. Mesmo significando que não sentiria alegria, também não teria que sentir aquela dor ardente.
Quando chegou ao saguão de entrada, contornou o corrimão e abaixou-se através da porta secreta. No túnel para o centro de treinamento, iniciou uma corrida como aquecimento, e quando passou através da parte traseira do armário de escritório, não diminuiu. A sala de musculação era o único lugar onde suportaria estar agora. Uma boa hora ou mais na esteira e talvez não sentisse mais vontade de descascar a própria pele com uma colher enferrujada.
Ao sair para o corredor, parou de repente quando viu uma figura solitária, encostada na parede de concreto.
– Xhex? O que está fazendo aqui? – Bem, além de encarar o chão.
A fêmea o olhou e seu olhar cinza escuro se assemelhava a poços vazios.
– Oi.
Blay franziu a testa enquanto caminhava até ela.
– Onde está John?
– Está lá dentro. – Ela acenou com a cabeça para a porta da sala de musculação.
O que explicava o barulho monótono que ouvia. Era evidente que alguém estava correndo sobre uma das esteiras.
– O que aconteceu? – Blay disse, somando a expressão dela aos movimentos que os tênis de John estavam fazendo... e chegando a uma conclusão terrível.
Xhex deixou cair a cabeça contra a parede que estava segurando seu corpo.
– Foi tudo o que eu pude fazer para trazê-lo de volta para cá.
– Por quê?
Seus olhos se acenderam ainda mais.
– Vamos apenas dizer que ele quer ir atrás de Lash.
– Bem, isso é compreensível.
– Sim.
Quando a palavra flutuou para fora da boca dela, teve a impressão de que não sabia nem da metade, mas ficou óbvio que aquele comentário era o máximo que ela diria sobre o assunto.
De repente, seu olhar cor de tempestade fixou-se no rosto dele.
– Então, você é a razão pela qual Qhuinn estava de mau humor hoje.
Blay recuou, e então balançou a cabeça.
– Não tem nada a ver comigo. Qhuinn geralmente fica de mau humor.
– Pessoas que tomam a direção errada ficam assim. Pinos redondos simplesmente não se encaixam em orifícios quadrados.
Blay pigarreou, pensando que os sympathos, mesmo aqueles que não estão contra você, não eram o tipo de pessoa que se quer por perto quando está tentando esconder algo. Como, por exemplo, quando o macho que você deseja está com uma Escolhida com rosto de anjo e um corpo feito para o pecado.
Só Deus sabia o que Xhex estava captando da cabeça dele.
– Bem... estou indo treinar. – Como se seu visual não deixasse isso claro.
– Bom. Talvez você consiga falar com ele.
– Eu vou. – Blay hesitou, pensando que Xhex parecia se sentir como ele. – Ouça, não é por nada, mas é evidente que você está exausta. Talvez fosse bom ir até um dos quartos de hóspedes e dormir.
Ela balançou a cabeça.
– Não vou deixá-lo. Estou aqui fora esperando só porque eu estava deixando-o louco. Ver-me... não é bom para sua saúde mental no momento. Espero que já não esteja mais assim depois que quebrar essa segunda esteira.
– Segunda?
– Tenho certeza que o cheiro de fumaça de uns quinze minutos atrás significa que ele correu até quebrá-la.
– Caramba.
– Sim.
Preparando-se, Blay abaixou-se e entrou na sala de musculação...
– Jesus... Cristo. John.
Sua voz não foi ouvida. No entanto, o barulho da esteira e os passos pesados de John teriam abafado o escapamento de um carro.
O corpo maciço do cara estava a todo vapor na máquina, sua camiseta e tronco estavam cobertos de suor, as gotas se movimentavam em seus punhos cerrados e criavam manchas idênticas de umidade de cada lado no chão. Havia manchas vermelhas em suas meias brancas que se espalhavam a partir dos calcanhares, como se um pedaço da pele tivesse sido arrancado e a bermuda preta que usava batia como uma toalha molhada.
– John? – Blay gritou, enquanto avaliava a esteira quebrada ao lado. – John!
Quando o grito não o fez girar a cabeça, Blay entrou na sua frente e acenou com a mão direita no campo visual do cara. E, então, desejou não ter feito isso. Os olhos que se fixaram nos dele ardiam com um ódio tão cruel que Blay deu um passo para trás.
Quando John voltou a focar o ar na frente de seu rosto, ficou muito claro que o maldito filho da mãe iria continuar correndo até que suas pernas caíssem.
– John, que tal sair daí? – Blay gritou. – Antes de cair?
Nenhuma resposta. Apenas os gritos da esteira e o som de um bombardeio intenso nos pés.
– John! Vamos, agora! Você está se matando!
Dane-se.
Blay deu a volta por trás do aparelho e arrancou o cabo de força da parede. A desaceleração brusca fez John tropeçar e cair para frente, mas segurou-se no apoio de mão. Ou talvez tenha apenas desabado sobre ele.
Sua respiração ofegante rasgava para dentro e para fora da boca e a cabeça pendia em seu braço.
Blay puxou um banco de um dos aparelhos e estacionou sobre ele para que pudesse olhar para o rosto do rapaz.
– John... o que diabos está acontecendo?
John soltou o apoio e caiu para trás, as pernas não suportaram seu peso. Após uma série de respirações entrecortadas, passou a mão pelo cabelo molhado.
– Fale comigo, John. Vou manter isso apenas entre nós. Juro pela vida da minha mãe.
Levou um tempo antes de John erguer a cabeça, e quando o fez, seus olhos estavam brilhantes. E não era pelo suor ou pelo esforço.
– Fale comigo, pois isso não irá a lugar algum – sussurrou Blay. – O que aconteceu? Diga-me.
Quando o cara finalmente começou a fazer os sinais, estava confuso, mas Blay leu as palavras muito bem.
Ele a machucou, Blay. Ele... a machucou.
– Bem, sim, eu sei. Ouvi falar sobre como ela estava quando...
John fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
No silêncio tenso que se seguiu, a pele da nuca de Blay se enrijeceu. Oh... droga.
Houve mais do que isso. Não houve?
– Ruim quanto? – resmungou Blay.
O pior possível, John assinalou com a boca.
– Filho da mãe. Desgraçado filho da mãe. Aquele cretino, filho da mãe, desgraçado!
Blay não costumava xingar, mas às vezes isso é tudo que se pode oferecer aos ouvidos dos outros: Xhex não era sua mulher, mas na opinião dele, não se pode machucar o sexo frágil. Seja lá qual for o motivo... e nunca, nunca dessa maneira.
Deus, a expressão de dor dela não tinha sido apenas por estar preocupada com John. Tinha sido por causa das lembranças. Lembranças horríveis, hediondas...
– John... eu sinto muito.
Gotas frescas caíram do queixo do rapaz na faixa preta da esteira e John enxugou os olhos algumas vezes antes de erguer o olhar. Em seu rosto, a angústia guerreava com uma fúria sem tamanho.
O que fazia todo sentido. Com sua história pessoal, aquilo era totalmente devastador.
Tenho que matá-lo, John gesticulou. Não poderei viver comigo mesmo se não acabar com ele.
Enquanto Blay concordava, os motivos da vingança se faziam óbvios. Um macho vinculado com um passado ruim? O mandado de morte de Lash acabava de receber o selo de APROVADO.
Blay fechou os dedos e ofereceu seus punhos.
– Qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser, estou com você. E não direi nenhuma palavra.
John esperou um momento e então bateu punho contra punho. Sabia que poderia contar com você, sinalizou com a boca.
– Sempre – prometeu Blay. – Sempre.
CAPÍTULO 42
A casa de Eliahu Rathboone ficou totalmente silenciosa mais ou menos uma hora depois que Gregg abortou sua viagem ao terceiro andar, mas ele esperou um bom tempo depois que o mordomo desceu as escadas para tentar subir outra vez.
Ele e Holly não passaram o tempo transando, que era o bom e velho hábito deles, mas conversando. E ele percebeu que quanto mais conversavam, menos sabia a respeito dela. Não fazia ideia de que seus passatempos podiam ser tão triviais quanto tricotar. Ou que sua maior ambição era seguir carreira no verdadeiro jornalismo televisivo – o que não era uma surpresa: a maioria das mulheres “cabeças de vento” do mundo dos reality shows tinham maiores ambições na TV. E ele até sabia que ela tinha tentado ingressar uma vez no noticiário local de Pittsburgh.
O que não fazia ideia era do verdadeiro motivo pelo qual ela deixou o primeiro emprego. O gerente, casado, esperava que ela fizesse um tipo diferente de serviço, mais privado, e quando ela disse “não”, ele a demitiu depois de dar um jeito para que ela falhasse na frente das câmeras.
Gregg viu a fita onde ela massacrava as palavras no ar. Afinal de contas, fez sua lição de casa, e apesar do seu teste com eles ter sido ótimo, ele sempre verificava as referências.
Talvez isso tenha sido o início de suas pressuposições sobre ela: rostinho bonito, boa postura, nada mais a oferecer.
Mas esse não era o pior de seus equívocos. Nunca soube que ela tinha um irmão. Que era deficiente físico. A quem ela sustentava.
Ela mostrou uma foto dos dois juntos.
E quando Gregg perguntou em voz alta como era possível ele não saber sobre aquele garoto, ela teve a honestidade de dizer-lhe o motivo: porque você ditou os limites e isso estava além.
Naturalmente, teve a reação masculina de se defender, mas o fato é que ela estava certa. Havia estabelecido os limites de maneira muito clara. O que significava nada de ciúmes, nada de explicações, nada permanente e nada pessoal.
Aquele não era exatamente um ambiente propício para se mostrar vulnerável.
A constatação disso foi o que o fez puxá-la contra seu peito e encostar o queixo em sua cabeça, alisando suas costas. Antes de ir para a terra dos sonhos, ela murmurou algo com uma voz suave. Algo sobre como aquela tinha sido a melhor noite que teve com ele.
E isso apesar dos orgasmos monstruosos que já tinha lhe proporcionado.
Bem, orgasmos dados quando lhe convinha. Houve vários encontros cancelados no último minuto, mensagens de celular sem resposta e menosprezo verbal e físico.
Cara... que lixo ele foi.
Quando Gregg finalmente levantou-se para sair, cobriu Holly, ligou a câmera que era ativada por movimentos e saiu para o corredor. Silêncio por toda parte.
Caminhando pelo corredor, voltou-se para o sinal de Saída e seguiu em direção à escada dos fundos. Subiu os degraus, virou, subiu outro patamar e, então, lá estava a porta.
Sem bater desta vez, pegou uma chave de fenda fina que era usada no equipamento da câmera e tentou arrombar a fechadura. Na verdade, foi mais fácil do que imaginava. Bastou uma cotovelada, um giro e a coisa se soltou.
A porta não chiou, o que o surpreendeu.
No entanto, o que estava do outro lado... o deixou extremamente chocado!
O terceiro andar tinha um espaço cavernoso, com um antiquado e grosseiro assoalho e com um teto inclinado em um ângulo agudo dos dois lados. Na outra extremidade, havia uma mesa com uma lâmpada a óleo e seu brilho fazia com que as paredes lisas ficassem de um tom amarelo-dourado... também iluminava as botas negras de alguém que estava sentado numa cadeira fora do alcance da luz.
Botas enormes.
E, de repente, não havia dúvidas de quem era o filho da mãe e o que ele tinha feito.
– Eu o filmei – Gregg disse para o sujeito.
A risada suave que veio como resposta fez a adrenalina de Gregg correr solta: baixa e fria, a risada era o tipo de som que assassinos fazem quando estão prestes a trabalhar com uma faca.
– Filmou? – Aquele sotaque. Mas que diabos era aquilo? Não era francês... nem húngaro...
Tanto faz. A ideia de Holly ter sido vítima de um abuso por parte dele fez Gregg mais alto e mais forte do que realmente era.
– Sei o que você fez na noite passada.
– Eu o convidaria para se sentar em uma cadeira, mas como pode ver, só tenho uma.
– Não estou brincando! – Gregg deu um passo à frente. – Sei o que aconteceu com ela. Ela não queria você.
– Ela queria o sexo.
Filho da mãe imbecil.
– Ela estava dormindo.
– Estava? – A ponta da bota balançou. – As aparências, assim como a mente, podem ser enganosas.
– Quem diabos você pensa que é?
– Sou dono desta bela casa. Isso é quem sou. Sou quem deu permissão para brincar por aí com suas câmeras.
– Bem, pode dar adeus a essa droga toda agora. Não vou fazer propaganda deste lugar.
– Oh, acho que fará. Está em sua natureza.
– Você não sabe nada sobre mim.
– Acho que é o contrário. É você que não sabe... nada, usando suas palavras... sobre você mesmo. Aliás, ela disse o seu nome. Quando gozou.
Gregg ficou furioso com isso, ao ponto de dar mais um passo adiante.
– Eu tomaria cuidado – a voz disse. – Você não quer se machucar. E sou considerado louco.
– Vou chamar a polícia.
– Não tem motivo. Consentimento entre adultos e tudo o mais.
– Ela estava dormindo!
A bota deu uma volta e plantou-se no chão.
– Olha o tom, rapaz.
Antes que houvesse tempo para retrucar o insulto, o homem se inclinou para frente na cadeira... e Gregg perdeu a voz.
O que apareceu sob a luz não fazia sentido algum. De maneira alguma.
Era o retrato. Da sala no andar de baixo. Só que vivo e respirando. A única diferença era que o cabelo não estava preso, estava solto sobre os ombros, era duas vezes maior que o de Gregg e a cor era uma mistura de preto com vermelho.
Oh, Deus... os olhos eram da cor do nascer do sol, brilhantes e cor de pêssego.
Totalmente hipnóticos.
E sim, um tanto enlouquecidos.
– Sugiro – disse arrastando as palavras com aquele sotaque estranho – que você saia deste sótão e volte a ficar com aquela moça adorável...
– Você é descendente de Rathboone?
O homem sorriu. Certo... havia algo de muito errado com seus dentes da frente.
– Ele e eu temos coisas em comum, na verdade...
– Jesus...
– É hora de você correr e terminar seu pequeno projeto. – Não sorria mais, o que era uma espécie de alívio. – E um conselho, no lugar de ceder à tentação de chutar o seu traseiro: deve cuidar melhor da sua mulher. Ela tem sentimentos sinceros por você, o que não é culpa dela e algo pelo qual, claramente, você não é merecedor, caso contrário não estaria cheirando à culpa neste momento. Tem sorte de ter a mulher que deseja ao seu lado, então pare de ser um completo idiota.
Gregg não ficava chocado assim com frequência. Mas, por sua vida, não fazia ideia do que dizer.
Como aquele estranho sabia tanto?
E Cristo, Gregg odiava o fato de Holly ter se deitado com outra pessoa... mas ela tinha dito o nome dele?
– Diga adeus. – Rathboone levantou sua própria mão, imitando um tchau infantil. – Prometo deixar sua mulher em paz, contanto que pare de ignorá-la. Agora vá, tchauzinho.
Agindo sob um reflexo que não era seu, Gregg levantou o braço e fez um aceno desajeitado antes de virar-se e começar a sair do local.
Deus, suas têmporas... que... droga... por que... onde... sua mente parou de funcionar, como se tivessem jogado cola nas engrenagens.
Descer para o segundo andar. Ir para o quarto.
Ao tirar a roupa e deitar na cama de cueca, colocou sua cabeça dolorida sobre o travesseiro perto de Holly, a puxou em um abraço e tentou se lembrar...
Ele tinha que fazer alguma coisa. O que era...?
O terceiro andar. Tinha que ir ao terceiro andar. Tinha que descobrir o que havia lá em cima...
Uma nova dor se lançou em seu cérebro, matando não apenas o impulso de ir a qualquer lugar, mas também matando qualquer interesse no que havia no sótão.
Fechando os olhos, teve uma estranha visão de um estrangeiro estranho com um rosto familiar... mas, em seguida, caiu num sono extremamente profundo e nada mais importava.
CAPÍTULO 43
A invasão na mansão ao lado não representava nenhum problema.
Depois de considerar a atividade da mansão e não encontrar nada que sugerisse qualquer movimento dentro das muralhas, Darius declarou que ele e Tohrment iriam entrar... e entraram. Desmaterializando-se na cerca de madeira que separava as duas propriedades, reapareceram ao lado da região da cozinha... então, simplesmente caminharam direto em direção à robusta moldura de madeira da porta.
Na verdade, o maior obstáculo para ultrapassar a parte externa era a superação do esmagador sentimento de pavor.
A cada passo e a cada respiração, Darius tinha que se esforçar para seguir em frente, seus instintos gritavam que estava no lugar errado. E, ainda assim, se recusava a voltar. Não queria utilizar outros meios práticos pelos quais poderia entrar e embora a filha de Sampsone pudesse muito bem não estar ali, uma vez que não tinha outras pistas, precisava fazer alguma coisa ou ficaria louco.
– Esta casa parece assombrada – murmurou Tohrment enquanto observavam os quartos dos empregados.
Darius assentiu.
– Mas lembre-se de que qualquer fantasma jaz apenas em sua mente e não se confunde com ninguém que esteja sob este teto. Venha, devemos localizar os quartos subterrâneos. Se os humanos a tomaram, devem mantê-la no subsolo.
Enquanto seguiam seu caminho em silêncio, passaram pela enorme cozinha e pelas carnes defumadas que pendiam nos ganchos, deixando claro que esta era uma casa humana. Tudo estava calmo ao redor, ao contrário da mansão vampira, onde haveria um momento de preparação para a Última Refeição.
Infelizmente, concluir que a casa pertencia à outra raça não era uma confirmação de que a fêmea não estivesse sendo mantida ali... e talvez tal conclusão fosse um indício. Embora os vampiros soubessem com certeza da existência da humanidade, não havia nada além de mitos sobre vampiros infestando a periferia cultural humana... era assim que os seres com presas sobreviviam com maior facilidade. Ainda assim, de vez em quando, havia contatos inevitáveis e genuínos entre aqueles que optaram por permanecer ocultos e aqueles de olhares curiosos... e esses raros esbarrões de um contra o outro explicavam as assustadoras e fantásticas histórias humanas sobre tudo desde “fadas”, “bruxas”, “fantasmas” e “sugadores de sangue”. Na verdade, a mente humana parecia sofrer com uma necessidade paralisante de inventar coisas na ausência de provas concretas. O que fazia sentido, considerando a compreensão autorreferencial das raças do mundo e seu lugar nele: algo que não se encaixava era forçado em uma superestrutura, mesmo que isso significasse a criação de elementos “paranormais”.
E que sorte seria para uma família rica capturar evidências físicas de tais superstições efêmeras.
Especialmente, provas lindas e indefesas.
Não se sabia o que vinha sendo observado por aquela família ao longo do tempo. Que estranhezas tinham sido testemunhadas naqueles vizinhos. Quais diferenças raciais foram expostas de forma inesperada e observadas sem qualquer dificuldade, em virtude das duas propriedades comporem a mesma paisagem.
Darius amaldiçoou baixinho e pensou que era por isso que os vampiros não deviam viver tão próximos aos seres humanos. A separação era o melhor. Congregação e separação.
Ele e Tohrment procuraram por todo o primeiro andar da mansão desmaterializando-se de sala em sala, deslocando-se conforme as sombras eram projetadas pelo luar, passando por todo o mobiliário esculpido e tapeçarias sem som ou substância.
A maior preocupação deles e o motivo de não atravessarem o chão de pedra andando? Cães adormecidos. Muitas das mansões os tinham como guardas e essa era uma grande complicação que poderiam muito bem passar sem. Com sorte, se houvesse algum animal na casa, estariam enrolados aos pés da cama do chefe da família.
E o mesmo valeria para qualquer tipo de guarda pessoal.
No entanto, a sorte estava ao lado deles. Nenhum cão. Nenhum guarda. Pelo menos que tivessem visto, escutado, ou cheirado... e foram capazes de encontrar a passagem que os levaria ao andar subterrâneo.
Ambos levavam velas e acenderam os pavios, as chamas cintilando sobre os passos apressados, rudes e descuidados e pelas paredes desiguais... tudo parecia indicar que a família nunca havia feito aquela jornada subterrânea, apenas os servos.
Mais uma prova de que não era uma família de vampiros. Alojamentos subterrâneos estavam entre os mais pródigos em tais casas.
Descendo para o nível mais baixo, a pedra sob seus pés deu lugar à terra batida e o ar ficou pesado com a umidade fria. Conforme progrediam sob a grande mansão, encontravam despensas cheias de caixotes de vinho e outras bebidas, caixotes de carnes salgadas e cestas de batatas e cebolas.
Na outra extremidade, Darius esperava encontrar um segundo conjunto de escadas que os levaria a sair na superfície. Em vez disso, chegaram ao final do salão subterrâneo. Nenhuma porta. Apenas uma parede.
Observou ao redor para ver se havia pegadas sobre o solo ou rachaduras nas pedras, indicando um painel ou uma seção oculta. Nada.
Para ter certeza, ele e Tohrment correram suas mãos sobre a superfície das paredes e pelo chão.
– Havia muitas janelas nos andares superiores – Tohrment murmurou. – Mas, talvez, se fosse para mantê-la lá em cima, poderiam ter colocado cortinas. Ou será que existem quartos sem janelas?
Enquanto a dupla enfrentava o beco sem saída que haviam atingido, aquela sensação de medo, de estar em um lugar errado, inchou no peito de Darius até sua respiração ficar curta e o suor brotar sob seus braços e sua coluna. Tinha a sensação de que Tohrment estava sofrendo de um ataque similar de apreensão ansiosa, pois o macho deslocava seu peso para trás e para frente, para trás e para frente.
Darius balançou a cabeça.
– Na verdade, ela parece estar em outro lugar...
– Grande verdade, vampiro.
Darius e Tohrment se viraram enquanto desembainhavam as adagas.
Olhando para aquilo que os tinha pegado de surpresa, Darius pensou... bem, isso explica o medo.
A figura de túnica branca bloqueando a saída não era humana e nem vampira.
Era um sympatho.
CAPÍTULO 44
Enquanto Xhex esperava do lado de fora da sala de musculação, encarava suas emoções com interesse desapaixonado. Isso era, ela supôs, como olhar para o rosto de um estranho e considerar as imperfeições, as cores e os traços por nenhuma outra razão além da simples observação.
Sua ânsia por vingança foi eclipsada por uma preocupação honesta por John.
Surpresa, surpresa.
Afinal, nunca tinha imaginado ver esse tipo de fúria tão de perto, especialmente de pessoas como John. Era como se ele tivesse uma fera interior que estivesse rugindo em sua cela.
Cara, um macho vinculado não é algo com que você pode brincar.
E ela não estava se enganando. Essa era a razão pela qual ele reagiu da forma como reagiu – e também a causa do aroma apimentado que ela cheirava perto dele desde que saiu da prisão de Lash: em algum momento durante as semanas de suas férias brutais, a atração e o respeito de John por ela haviam tomado forma de uma maneira irrevogável.
Droga. Que bagunça.
Quando o som da esteira parou de repente, ela poderia apostar que Blaylock havia puxado a tomada da parede e foi bom ele fazer isso.
Xhex tentou fazer com que parasse de tentar se matar na esteira, mas quando a argumentação mostrou ser absolutamente nula, decidiu ficar de sentinela do lado de fora.
Não havia chance alguma de vê-lo correndo até se acabar. Ouvir a punição já era ruim o suficiente.
Mais à frente no corredor, a porta de vidro do escritório se abriu e o Irmão Tohrment apareceu. A julgar pelo brilho que se emanou atrás dele, Lassiter estava no centro de treinamento também, mas o anjo caído ficou para trás.
– Como está John? – Quando o Irmão se aproximou, sua preocupação estava escrita em seu rosto duro e olhos cansados e também em sua grade emocional, que estava iluminada nos setores de arrependimento.
Fazia sentido de muitas maneiras.
Xhex olhou para a porta da sala de musculação.
– Parece que ele repensou a carreira e resolveu ser maratonista. Isso ou ele apenas está tentando quebrar outra esteira.
A altura elevada de Tohr obrigou-a a inclinar a cabeça para cima e foi surpreendente observar o que havia por trás de seus olhos azuis: havia conhecimento naquele olhar, conhecimento profundo que fez com que seus próprios circuitos emocionais queimassem com suspeita. Na experiência dela, estranhos que observam você daquela maneira são perigosos.
– Como você está? – ele perguntou suavemente.
Foi estranho. Ela não tinha muito contato com o Irmão, mas sempre que seus caminhos se cruzaram, ele sempre foi particularmente... gentil. Razão pela qual ela sempre o evitava. Lidava muito melhor com dureza do que com qualquer coisa delicada.
Sinceramente, ele a deixava nervosa.
Quando ficou quieta, o rosto dele se apertou como se ela o tivesse decepcionado, mas ele não a culpava pela inadequação.
– Tudo bem – ele disse. – Não vou me intrometer.
Jesus, ela era terrível.
– Não, está tudo bem. Só não pode exigir que eu responda a isso agora.
– É justo. – Os olhos dele se estreitaram na porta da sala de musculação e ela teve a nítida impressão que ele estava tão preso do lado de fora quanto ela, excluído pelo macho que estava sofrendo do outro lado. – Então, ligou para a cozinha para me chamar?
Pegou a chave que John usou para que pudessem entrar na antiga casa do cara.
– Apenas para lhe devolver isso e dizer que houve um problema.
A grade emocional do Irmão ficou negra e vaga, todas as luzes apagadas.
– Que tipo de problema?
– Uma de suas portas de vidro está quebrada. Vai precisar de duas folhas de madeira compensada para cobrir. Conseguimos ativar outra vez o alarme de segurança, então os detectores de movimento estão ligados, mas você terá trabalho por lá. Ficarei feliz em ajudar.
Isso supondo que John acabasse com o restante das máquinas de exercícios, com os tênis de corrida, ou caísse morto.
– Qual... – Tohr limpou a garganta. – Qual porta?
– A do quarto do John Matthew.
O Irmão franziu a testa.
– Estava quebrada quando vocês chegaram lá?
– Não... apenas explodiu espontaneamente.
– Vidro não faz isso sem uma boa razão.
E ela não tinha dado uma boa razão para John Matthew?
– É verdade.
Tohr a encarou e ela o encarou de volta. O silêncio tornou-se espesso como lama. No entanto, por mais gentil e bom soldado que fosse o Irmão, Xhex não tinha nada para compartilhar com ele.
– Com quem eu falo para conseguir alguma madeira de compensado? – ela se dispôs.
– Não se preocupe com isso. E obrigado por me informar.
Quando o Irmão se virou e caminhou de volta para o escritório, ela se sentiu um inferno – o que concluiu ser mais outra conexão que tinha com John Matthew. Só que ao invés de usar uma esteira até quebrar, ela apenas queria pegar uma faca e cortar a parte de dentro dos antebraços para aliviar a pressão.
Deus, às vezes parecia uma bebê chorona, de verdade. Afinal, aqueles silícios não eram apenas para manter o seu lado sympatho sob controle, eles a ajudavam a ofuscar coisas que ela não queria sentir.
O que era quaaase noventa e nove por cento emoção.
Dez minutos depois, Blaylock colocou a cabeça para fora da porta. Seus olhos estavam focados no chão e suas emoções estavam revoltas, o que fazia sentido. Ninguém gostava de ver seu amigo se autodestruir, e ter que conversar com a pessoa que havia jogado o pobre coitado naquela queda livre não era exatamente uma felicidade.
– Ouça, John foi para o vestiário tomar uma ducha. Consegui fazer que ele parasse com a ideia de correr, mas ele... ele precisa de um pouco mais de tempo, acho.
– Certo. Vou continuar esperando por ele aqui no corredor.
Blaylock assentiu e então houve uma pausa embaraçosa.
– Vou malhar agora.
Depois que a porta se fechou, ela pegou sua jaqueta e suas armas e vagou em direção ao vestiário. O escritório estava vazio, o que significava que Tohr tinha seguido seu caminho, sem dúvida para cumprir seu papel de Homem da Manutenção com algum doggen.
E o silêncio ressonante lhe dizia que não havia mais ninguém em nenhuma das salas de aula, ginásio ou clínica.
Deslizando pela parede, sentou-se sobre o chão e apoiou seus braços nos joelhos. Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos.
Deus, estava exausta...
– John ainda está lá?
Xhex acordou de repente, sua arma foi apontada direto no peito de Blaylock. Quando o cara pulou para trás, ela imediatamente travou a arma e baixou o cano.
– Desculpe, velhos hábitos são difíceis de morrer.
– Ah, sim. – O cara apontou sua toalha branca em direção ao vestiário. – John ainda está lá? Já passou mais de uma hora.
Ela ergueu o pulso e olhou para o relógio que tinha pegado em algum lugar.
– Cristo.
Xhex se colocou em pé e arrombou a porta. O som do chuveiro aberto não era muito um alívio.
– Existe outra saída que ele possa ter usado?
– Apenas na sala de musculação... mas que acaba dando neste mesmo corredor.
– Certo, vou falar com ele – ela disse, rezando para que fosse a coisa certa a fazer.
– Bom. Vou terminar meus exercícios. Ligue se precisar de mim.
Empurrou a porta, e lá dentro o lugar parecia padrão, todos os armários de metal bege separados por bancos de madeira. Seguindo o som da água caindo à direita, passou por compartimentos de mictórios e pias que pareciam solitários sem um monte de homens suados, nus e envolvidos em toalhas.
Encontrou John numa área aberta com dezenas de chuveiros e azulejos em todos os centímetros do chão, paredes e teto. Estava usando camiseta, bermuda de corrida e estava sentado encostado contra a parede, seus braços apoiados em seus joelhos, cabeça baixa, a água correndo sobre seus enormes ombros e tronco.
Seu primeiro pensamento foi de que ela própria estava exatamente na mesma posição do lado de fora.
O segundo pensamento foi que estava surpresa ao ver que ele conseguia se manter tão parado. A grade emocional dele não era a única coisa iluminada, aquela sombra atrás da grade estava queimando de angústia. Era como se duas partes dele estivessem juntas num tipo de luto, sem dúvida porque havia sofrido ou testemunhado perdas demais, todas cruéis, em sua vida... e talvez estivesse sofrendo outra agora. E o lugar onde tudo aquilo o levava emocionalmente a deixava apavorada. O denso vazio negro criado nele era tão poderoso que deformava a superestrutura da psique dele... levando-o onde ela havia estado naquela maldita sala de operações.
Levando-o à beira da loucura.
Pisando sobre a superfície azulejada do chão, a pele dela tremeu ao esbarrar com o ar frio que vinha dos sentimentos dele... e o fato é que ela estava fazendo isso outra vez. Era igual a Murhder, só que pior.
Jesus Cristo, ela era uma maldita viúva negra no que se referia a machos de valor.
– John?
Ele não olhou para cima, embora não tivesse certeza se estava ciente de que ela estava na frente dele. John estava de volta ao passado, preso por suas memórias...
Franzindo a testa, encontrou os olhos dele seguindo o caminho da água que deslizava sobre seu corpo e escorria pelo chão coberto de azulejos... até o ralo.
O ralo.
Algo com aquele ralo. Algo a ver com... Lash?
Dentro do abraço da solidão e contra o pano de fundo do som tranquilo do jato de água, ela liberou seu lado mau por uma boa finalidade: rapidamente, seus instintos sympatho mergulharam em John, penetrando ao longo de seu território físico e indo fundo em sua mente e suas lembranças.
Quando ele ergueu a cabeça e olhou para ela em choque, tudo se tornou vermelho e bidimensional, o azulejo tingiu-se de um rosa rubro. O cabelo escuro e úmido de John mudou para a cor do sangue; a água que corria parecia um champanhe rosa.
As imagens que ela captou estavam envoltas numa capa de terror e vergonha: uma escada escura num prédio parecido com aquele onde a tinha levado. John era apenas um garotinho pré-transição sendo forçado por um humano fétido...
Oh. Deus.
Não.
Os joelhos da Xhex cederam e ela cambaleou – então apenas deixou-se cair ao chão, aterrissando no azulejo liso tão duro que seus ossos e dentes se abalaram.
Não... não John, ela pensou. Não quando ainda era indefeso, inocente e tão sozinho. Não quando estava perdido no mundo humano, batalhando para sobreviver.
Não ele. Não assim.
Com seu lado sympatho liberado e seus olhos sem dúvida brilhando em vermelho, eles se sentaram ali encarando um ao outro. Ele sabia o que ela tinha visto e odiava seu conhecimento com uma fúria tal que ela, de maneira sábia, manteve qualquer pena para si mesma. No entanto, ele não parecia ressentido que ela o tivesse invadido. Era mais como se desejasse muito não ter dividido aquilo com ninguém.
– O que Lash tem a ver com isso? – disse com voz rouca. – Pois ele está por toda parte em sua mente.
Os olhos de John voltaram-se para o ralo no centro do local outra vez e ela teve a impressão de que ele estava vendo sangue acumulando-se em volta da tampa de aço inoxidável. Sangue de Lash.
Xhex estreitou os olhos, a história passada tornava-se muito previsível: Lash havia descoberto o segredo de John. De alguma maneira. E ela não precisava de seu lado sympatho para saber o que aquele desgraçado havia feito com uma informação como aquela.
Um locutor de beisebol procuraria menos plateia.
Quando o olhar de John voltou-se para ela, sentiu uma perturbadora comunhão com ele. Sem barreiras, sem preocupações sobre ser vulnerável. Mesmo estando completamente vestidos, cada um estava nu diante do outro.
Ela sabia muito bem que não encontraria isso nunca em nenhum outro macho. Ou em qualquer outra pessoa. Por sua vez, ele sabia, sem palavras, tudo o que tinha acontecido com ela e tudo o que aquele tipo de experiência gerava. E ela sabia o mesmo sobre ele.
E talvez aquela sombra em sua grade emocional fosse uma espécie de bifurcação em sua psique causada pelo trauma que tinha passado. Talvez sua mente e sua alma tivessem se reunido e decidido eliminar o passado e colocá-lo no fundo de seu sótão mental e emocional. Talvez fosse por isso que as duas partes estivessem em um movimento tão vívido.
Fazia sentido. Assim como a vingança que estava sentindo. Afinal, Lash esteve intimamente envolvido nos dois conjuntos de erros, no dele e no dela.
Informações como aquelas sobre John nas mãos erradas? Era quase tão ruim quanto o horror que havia realmente acontecido, porque você revive a maldita história toda vez que mais alguém fica sabendo. Razão pela qual Xhex nunca falava sobre seu tempo na colônia com seu pai, ou sobre aquela maldita clínica humana... ou...
John ergueu seu dedo indicador e deu tapinhas ao lado de seu olho.
– Os meus estão vermelhos? – ela murmurou. Quando ele assentiu, ela esfregou o rosto. – Desculpe. Provavelmente vou precisar de outro par de silícios.
Quando ele fechou a água, ela deixou cair as mãos.
– Quem mais sabe? Sobre o que aconteceu com você?
John franziu a testa. Então, assinalou com os lábios: Blay. Qhuinn. Zsadist. Havers. Um terapeuta. Quando ele balançou a cabeça, ela entendeu isso como sendo o fim da lista.
– Não vou dizer nada a ninguém.
Os olhos dela percorreram seu corpo imenso desde aqueles ombros até seus bíceps poderosos e aquelas coxas tremendas – e desejou que ele tivesse aquele tamanho lá atrás naquela escada suja. Pelo menos, não era mais o mesmo de quando foi ferido – se bem que isso era verdade apenas por fora. Por dentro, ele tinha todas as idades que havia vivido, o bebê que havia sido abandonado, a criança que ninguém quis, o garoto em fase de pré-transição sozinho no mundo... e agora o macho adulto.
Ele era um ótimo guerreiro no campo de batalha, um amigo leal e, considerando o que tinha feito àquele redutor naquela mansão e o que sem dúvida queria fazer com Lash, era um inimigo muito perigoso.
E a isso se somava um problema: em sua opinião, era ela quem deveria matar o filho do Ômega.
Não que precisassem falar sobre isso agora.
Quando a umidade dos azulejos molhou sua calça e a água escorreu de John, ficou surpresa com o que queria fazer.
De muitas maneiras, não fazia sentido, e com certeza não era uma ideia brilhante. Mas a lógica não era importante naquele momento.
Xhex se deslocou para frente e colocou as palmas das mãos no chão escorregadio do chuveiro. Deslocando-se devagar, moveu a mão, o joelho, a mão, o joelho, indo na direção dele.
Ela percebeu quando ele sentiu o cheiro dela.
Pois por baixo daquela bermuda esportiva ensopada, seu membro se contraiu e endureceu.
Quando estava cara a cara com ele, observou atentamente sua boca.
– Nossas mentes já estão unidas. Quero que nossos corpos sigam no mesmo sentido.
Com isso, inclinou-se e levantou a cabeça. Pouco antes de beijá-lo, ela fez uma pausa, mas não porque estivesse preocupada se iria afastá-la – ela sabia pelo aroma apimentado que John não estava interessado em recuar.
– Não, você entendeu tudo errado, John. – Lendo as emoções dele, negou com a cabeça. – Você não é metade do homem que poderia ser por causa do que foi feito. Você é duas vezes mais do que qualquer pessoa simplesmente porque sobreviveu.
Sabe? A vida o coloca em lugares que nunca imaginou estar.
Sob nenhuma circunstância, nem mesmo nos piores pesadelos que seu subconsciente havia exibido, John havia sequer pensado que seria capaz de lidar com Xhex se ela soubesse o quanto ele sofreu quando era jovem.
A questão era que não importava o quanto seu corpo tinha se tornado grande ou forte, isso nunca encobriu a realidade do quanto havia sido fraco. E a ameaça de que aqueles que ele respeitava descobrissem trouxe aquela fraqueza à tona não apenas uma vez, mas várias.
E lá estava ele novamente com seus demônios expostos.
E quanto ao seu banho de duas horas? Ainda estava morrendo por dentro por ela ter sido ferida daquele jeito... Era tão doloroso pensar naquilo, horrível demais para não se demorar. E adicione sua necessidade como macho vinculado de protegê-la e mantê-la em segurança. E o fato de que sabia exatamente o quão desagradável é ser vitimado daquela maneira.
Se apenas a tivesse encontrado mais cedo... se apenas tivesse trabalhado mais duro...
Sim, mas ela tinha se libertado. E fez isso sozinha. Não foi ele quem a libertou – pelo amor de Deus... esteve com ela no maldito quarto onde tinha sido estuprada e nem mesmo soube que ela estava lá.
Eram coisas demais para lidar, todas as camadas e interseções faziam sua cabeça zunir ao ponto de sentir como se seu cérebro fosse um helicóptero prestes a levantar voo, para o alto e avante, para nunca mais voltar.
A única coisa que o mantinha com os pés no chão era a perspectiva de matar Lash.
Enquanto aquele desgraçado estivesse lá fora, respirando, John tinha um foco para manter sua estabilidade mental. Matar Lash era sua única ligação à sanidade e ao propósito, uma proteção para que seu ser não enferrujasse.
Porém, se fracassasse mais uma vez, se não vingasse sua fêmea, estaria tudo acabado.
– John – disse Xhex, num evidente esforço de tirá-lo de seu estado de pânico.
Focando-se nela, encarou seus olhos vermelhos e brilhantes e lembrou-se de que era uma sympatho. O que significava que podia escavar dentro dele e acionar todos os seus alçapões interiores, liberando seus demônios apenas para observá-los dançar. Só que ela não fez isso, fez? Adentrou nele, sim, mas apenas para entender onde ele estava. E ao observar suas partes obscuras, não tinha se afastado e apontado um dedo inquisidor ou recuado enojada.
Ao invés disso, se aproximou delicadamente, dando a entender que queria beijá-lo.
Os olhos de John observaram seus lábios.
Quem diria, ele podia sim aguentar um pouco daquele tipo de conexão. Palavras não eram suficientes para aplacar a autoaversão que sentia, mas as mãos dela em sua pele, sua boca na dele, seu corpo contra o seu... aquilo, sem uma palavra, era o que ele precisava.
– É isso mesmo – ela disse, seus olhos ardendo, e não apenas por causa do lado sympatho. – Você e eu precisamos disso.
John levantou e colocou suas mãos frias e molhadas sobre a face dela. Então olhou ao redor. Aquela poderia ser a hora, mas não era o lugar.
Não ia fazer amor com ela no piso duro.
Venha comigo, fez com os lábios, levantando-se e puxando-a para seu lado.
Sua ereção estava evidente na frente de sua bermuda esportiva quando deixaram o vestiário, o desejo de possuí-la rugia em seu sangue, mas esse desejo foi controlado pela necessidade de proporcionar algo delicado a Xhex ao invés da violência que ela experimentou.
Ao invés de se dirigir para o túnel de volta à casa principal, ele os levou para a direita. De modo algum iria para seu quarto com ela debaixo do braço e ostentando uma ereção do tamanho de uma viga. Além do mais, estava encharcado.
Muita coisa para explicar para a plateia permanente que a mansão oferecia.
Próximo ao vestiário, mas não conectado a ele, havia uma sala adjacente com mesas de massagens e uma banheira de hidromassagem no canto. O lugar também tinha um monte de colchonetes azuis que nunca foram usados desde que haviam sido colocados ali – os Irmãos quase não tinham tempo para pugilismo, quanto mais para brincar de bailarina com seus preciosos tendões e glúteos.
John reforçou a porta fechada com uma cadeira de plástico e virou-se para encarar Xhex. Ela estava andando em volta da sala. Na opinião dele, seu corpo flexível e passos suaves eram melhores que um grande show de striptease.
Aproximando-se da lateral da porta, apagou as luzes.
O sinal branco e vermelho de saída em cima da porta criou uma piscina de luz fraca que seu corpo dividiu em duas, sua sombra era uma alta e escura divisão que se estendia por todo o piso azul até os pés de Xhex.
– Deus, eu quero você – ela disse.
Não precisaria dizer aquilo duas vezes. Chutando os sapatos para longe, puxou sua camiseta sobre sua cabeça e deixou cair sobre os colchonetes com uma batida. Então, colocou seus polegares na cintura de bermuda e a desceu sobre suas coxas. Seu membro se libertou e se elevou ereto diante dele. O fato de que estava apontado para ela como uma varinha de condão não era uma grande surpresa – tudo, desde seu cérebro, sangue, até o bater de seu coração, estava focado na fêmea parada a três metros de distância dele.
Mas não ia pular sobre ela e começar a se movimentar com força. Não. Nem mesmo se aquilo tornasse suas bolas azuis como um Smurf...
Seus pensamentos deixaram de fazer sentido quando as mãos dela se dirigiram para a cintura da blusa e, com um movimento elegante, deslizou a peça de roupa sobre seu tronco e cabeça. Embaixo disso, não havia nada além de sua linda pele suave e seus altos e firmes seios.
Quando o perfume dela surgiu do outro lado da sala e ele começou a ofegar, os dedos ágeis de Xhex começaram a abrir o laço de sua calça e o fino algodão verde caiu rapidamente em seus tornozelos.
Oh... meu Deus, ela estava gloriosamente despida para ele, e as linhas impressionantes de seu corpo eram maravilhosas: apesar de terem feito sexo duas vezes, ambas foram rápidas e quentes e não teve a chance de olhar para ela direito...
John piscou com força.
Por um momento, tudo que conseguia enxergar eram os hematomas em seu corpo, especialmente aqueles dentro de suas coxas. Saber agora que ela não os tinha conseguido por causa de luta corporal...
– Não pense nisso, John – ela disse roucamente. – Eu não estou pensando e você também não deveria. Simplesmente... não pense nisso. Ele já tirou muito de nós dois.
A garganta dele ficou tensa com um rugido de vingança, que tratou de abafar apenas porque sabia que ela estava certa. Com grande força de vontade, decidiu que aquela porta atrás dele, aquela que tinha bloqueado com a cadeira, ia manter do lado de fora não apenas as pessoas da mansão, mas seus fantasmas e erros também.
Haveria tempo depois para igualarem o placar.
Você é tão linda, disse com os lábios.
Mas claro que ela não conseguia ver seus lábios.
Então, teria que mostrar isso a ela.
John deu um passo à frente e outro e outro. E não era apenas ele indo em direção a ela. Xhex o encontrou no meio do caminho, a forma dela foi envolvida pela sombra lançada pelo corpo dele, mas mesmo assim, aquela era a única coisa que ele via.
Quando se encontraram, o peito dele estava pulsando e seu coração. Amo você, ele fez com os lábios no pedaço escuro que havia produzido sob a luz.
Alcançaram um ao outro no mesmo momento: ele foi direto para o rosto de Xhex. Ela colocou as mãos nas costelas dele. Suas bocas completaram a jornada no ar parado, elétrico, seus lábios se trancaram, suave contra suave, calor contra calor. Puxando-a contra seu peito nu, John envolveu seus braços grossos ao redor dos ombros dela e a segurou apertado enquanto aprofundava o beijo – e ela estava logo ali com ele, deslizando as palmas de suas mãos nas laterais de seu corpo e as escorregando pela parte inferior de suas costas.
Seu pênis dobrou-se entre eles, a fricção entre sua barriga e a dela enviou dardos de calor que subiam através de sua coluna. Mas ele não estava com pressa. Com empurrões preguiçosos, seus quadris se moveram para frente e para trás, acariciando-a com sua ereção enquanto movia suas mãos pelos braços dela e então para sua cintura.
Empurrando profundamente com a língua, arrastou uma das mãos até o cabelo curto que havia na nuca dela e deixou a outra cair na parte de trás de sua coxa. A perna dela subiu com o puxão gentil dele, os músculos macios flexionando...
Com um ágil movimento, ela saltou, pulando em cima dele e enlaçando a outra perna ao redor dos quadris dele. Quando seu membro tocou algo quente e úmido, ele gemeu e os levou para o chão, segurando-a enquanto mergulhavam nos colchonetes.
John quebrou o selo do beijo e recuou o suficiente para que pudesse correr sua língua pelo lado da garganta dela. Travando-a, sugou as linhas de seu pescoço e seguiu para baixo com suas presas, que vibrava com os impulsos de sua ereção. Enquanto descia, os dedos dela se enterravam no cabelo dele e o segurava contra sua pele, movendo-o na direção de seus seios.
Recuando, ergueu-se sobre ela e traçou com os olhos a maneira como seu corpo era destacado pela luz brilhante do sinal de saída. Seus mamilos estavam firmes, suas costelas estavam pulsando forte e os músculos de seu peitoral bombeavam enquanto ela movimentava os quadris. Entre suas coxas, seu sexo liso fez com que abrisse a boca em um assobio silencioso...
Sem aviso, ela estendeu a mão e a colocou sobre seu pênis.
O contato o fez jogar-se sobre seus braços e apoiar-se sobre as palmas das mãos.
– Caramba, você é lindo – ela disse num murmúrio.
A voz dela o colocou em ação e se inclinou para frente, libertando seu membro da mão dela e posicionando-se de modo a ficar ajoelhado entre suas coxas. Baixando a cabeça, cobriu um de seus mamilos com a boca e começou a excitá-la com a língua.
O gemido de Xhex quase o fez gozar ali mesmo e John teve que congelar seu corpo para recuperar o controle. Quando a maré de formigamento retrocedeu o suficiente, ele recomeçou a sugá-la... e deixou suas mãos flutuarem devagar pelas costelas dela, sua cintura e seus quadris.
Num movimento típico de Xhex, foi ela quem o colocou em seu sexo.
Xhex cobriu uma das mãos dele com a sua e a colocou exatamente onde os dois queriam que estivesse.
Quente. Sedoso. Escorregadio.
O orgasmo em sua ereção foi liberado no instante que seus dedos deslizaram e foram parar diretamente sobre a entrada de onde ele estava morrendo de vontade de penetrar: não havia absolutamente nada segurando a liberação e ela riu enquanto ele jorrava em suas pernas.
– Gosta de me ver assim? – ela murmurou.
Ele olhou em seus olhos, e ao invés de concordar, levou a mão até sua boca. Quando ele estendeu sua língua e deslizou entre seus lábios, ela também estremeceu, seu corpo se levantou dos colchonetes, seus seios se ergueram, suas coxas se abriram ainda mais.
Com as pálpebras semicerradas, manteve seu olhar fixado no dela enquanto plantava suas palmas dos dois lados de seus quadris e se abaixava em direção ao seu sexo.
Poderia ter continuado com aqueles beijos suaves. Poderia ter mostrado mais sensibilidade provocando-a com a língua e a ponta dos dedos.
Dane-se tudo isso.
Com uma necessidade primitiva e dolorosa, abocanhou seu núcleo, sugando-a para dentro dele, tomando-a profundamente, engolindo-a. Havia um pouco de seu próprio orgasmo dentro dela e John o provou junto com o mel de Xhex – e o macho vinculado nele adorou a combinação.
Sorte dele. No momento em que terminassem com aquela sessão, sua essência apimentada a teria envolvido completamente, por dentro e por fora.
Enquanto ele acariciava, lambia e penetrava, sentiu uma das pernas dela ser lançada sobre seu ombro, e então Xhex passou a comandar os movimentos contra seu queixo, lábios e boca, acrescentando mais à magia, levando-o a impulsioná-la mais forte.
Quando ela chegou ao orgasmo, disse seu nome. Duas vezes.
E John ficou feliz que, apesar de não ter voz, seus ouvidos funcionavam perfeitamente.