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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE MEU
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                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 20

A esperança é uma emoção traiçoeira.

Já havia passado duas noites até Darius finalmente entrar na casa da família da fêmea sequestrada e, conforme a grande porta se abria para ele e Tohrment, foram recebidos por um doggen cujos olhos estavam cheios da tragédia da esperança. Na verdade, a expressão do mordomo era de tanto respeito, que evidentemente acreditava estar dando as boas-vindas aos salvadores da casa de seu amo e não a pessoas comuns.

Somente o tempo e os caprichos do destino confirmariam se sua crença era real ou se estava equivocada.

Com entusiasmo, Darius e Tohrment foram guiados a um escritório oficial e o senhor que se levantou de uma cadeira revestida de seda teve que se firmar em seu peso.

– Bem-vindos, senhores, obrigado por terem vindo – Sampsone disse enquanto se aproximava com as duas mãos levantadas para apertar as mãos de Darius. – Sinto muito por não tê-los recebido nas duas noites passadas. Minha amada shellan...

A voz do macho falhou, e no silêncio, Darius deu um passo para o lado.

– Permita-me apresentar meu colega, Tohrment, filho de Hharm.

Enquanto Tohrment com reverência se curvava com a mão no coração, ficou claro que o filho tinha todas as boas maneiras que seu pai não tinha.

O mestre da casa retribuiu a deferência.

– Gostariam de beber ou comer alguma coisa?

Darius balançou a cabeça e sentou. Quando Tohrment colocou-se em pé atrás dele, disse:

– Obrigado. Mas, por ventura, poderíamos falar sobre o que aconteceu nesta mansão?

– Sim, sim, é claro. O que posso dizer?

– Tudo. Conte-nos... tudo.

– Minha filha... minha luz na escuridão... – O homem pegou um lenço. – Era de valor e cheia de virtude. A mais doce fêmea que poderiam se deparar...

Darius, consciente de que já tinham perdido duas noites, permitiu ao pai um certo tempo de lembranças, antes de colocá-lo no foco da questão.

– E naquela noite, senhor, naquela terrível noite – ele interrompeu quando houve uma pausa. – O que aconteceu nesta casa?

O macho balançou a cabeça e enxugou os olhos.

– Ela acordou de seu suave sono sentindo-se um pouco inquieta e então foi aconselhada a descansar em seus aposentos privados para o bem de sua saúde. Levaram comida até ela à meia noite e outra refeição antes da chegada da aurora. Foi a última vez em que foi vista. Seu aposento particular está lá em cima, mas também possui, assim como o resto da família, aposentos subterrâneos. Contudo, escolhia com frequência não ficar aqui conosco durante o dia, e como tínhamos acesso a ela através dos corredores internos, concluímos que estaria segura... – O homem engasgou neste ponto. – Como desejaria ter insistido mais.

Darius podia muito bem entender o arrependimento.

– Vamos encontrar sua filha. De um jeito ou de outro, vamos encontrá-la. Permitiria que fôssemos agora ao quarto dela?

– Por favor, sim. – Quando o macho gesticulou para o doggen, o mordomo se aproximou. – Silas ficará satisfeito em acompanhá-los. Prefiro... esperar aqui.

– Mas é claro.

Quando Darius se levantou, o homem se aproximou e agarrou sua mão.

– Uma palavra, se me permite? Entre você e eu?

Darius concordou, e conforme Tohrment seguiu o doggen, o mestre da casa deixou-se cair de volta em sua cadeira.

– Na verdade... minha filha era de valor. De virtudes. Intocada por...

Na pausa que se seguiu, Darius sabia com o quê o macho estava preocupado: se não a recuperassem em sua condição virginal, sua honra, assim como a da família, estaria em jogo.

– Não consigo dizer isso na frente de minha amada shellan – o macho continuou. – Mas nossa filha... se for corrompida... talvez seja melhor deixá-la...

Os olhos de Darius se estreitaram.

– Prefere que não seja encontrada?

Lágrimas surgiram daqueles olhos pálidos.

– Eu... – De repente, o macho balançou a cabeça. – Não... não. Eu a quero de volta. Não importa como, não importa em quais condições... claro que eu quero minha filha de volta.

Darius não estava disposto a oferecer apoio – tal negação a uma filha de seu sangue ter passado pela mente do macho foi grotesco.

– Gostaria de ir ao quarto dela agora.

O mestre da casa estalou os dedos e o doggen se aproximou do arco do escritório.

– Por aqui, senhor – o mordomo disse.

Enquanto ele e seu protegido andavam pela casa, Darius examinava as janelas e portas reforçadas. Havia aço por todos os lugares, separando os painéis de vidro ou fortificando os painéis de carvalho robusto. Entrar sem ser convidado não era fácil... e estava disposto a apostar que todos os quartos nos andares de cima eram iguais – inclusive os aposentos dos doggen.

Também avaliou cada pintura, tapete e objetos preciosos enquanto subia. Aquela família era de alto nível na glymera, com cofres sufocados de riquezas e uma linhagem sanguínea invejável. Assim, o fato de que sua filha virgem solteira sumisse não atingia apenas seus corações: era como um bem negociável. Sabendo disso, uma fêmea nessa idade e condição era um objeto de beleza... e uma implicação social e financeira.

E esta não era a única implicação disso. Como em qualquer avaliação, o inverso também era verdadeiro: ter uma filha arruinada, de fato ou por rumores, era uma mancha que levaria gerações para sequer ser ofuscada. O mestre daquela mansão, sem dúvida, amava sua filha de verdade, mas o peso de tudo isso distorcia a relação.

Darius acreditava muito que na visão do macho, seria melhor que sua filha voltasse numa caixa de pinho ao invés de respirando, mas corrompida. O último era uma maldição, o primeiro seria uma tragédia que reuniria muita simpatia. Darius odiava a glymera. Odiava mesmo.

– Aqui estão os aposentos privados dela – o doggen disse, abrindo a porta.

Quando Tohrment entrou no quarto iluminado por velas, Darius perguntou:

– O quarto foi limpo? Foi arrumado desde que ela se foi?

– Claro.

– Deixe-nos, por favor.

O doggen se curvou profundamente e desapareceu.

Tohrment vagou ao redor, olhando as cortinas de seda e uma área de estar muito bem decorada. Um alaúde estava em um canto e uma bela peça de bordado que foi parcialmente concluída em outro. Livros de autores humanos estavam empilhados ordenadamente em prateleiras, juntamente com pergaminhos no Antigo Idioma.

A primeira coisa que se percebia é que nada estava fora do lugar. Mas se isso era culpa dos empregados ou circunstâncias do desaparecimento, era difícil saber.

– Não toque em nada, certo? – Darius disse ao garoto.

– Mas é claro que não.

Darius adentrou no quarto luxuoso. As cortinas eram feitas de uma tapeçaria tão grossa e pesada que não se poderia esperar que a luz do sol penetrasse no aposento. A cama estava cercada pelo mesmo tecido, havia grandes painéis dele pendurados na cobertura.

No armário, abriu as portas esculpidas. Vestidos maravilhosos em safira, rubi, citrino e esmeralda estavam pendurados juntos, repletos de uma beleza potencial. E um único cabide repousava vazio, como se a última vestimenta que escolheu estivesse pendurada naquele objeto acolchoado.

Tinha uma escova de cabelos sobre a penteadeira e vários potes de unguentos, óleos perfumados e pós de coloração. Todos alinhados.

Darius abriu uma gaveta... e soltou uma pequena maldição. Estojos de joias. Estojos de joias de couro. Pegou um, abriu o fecho de ouro com um estalo e levantou a tampa.

Diamantes brilhavam sob a luz das velas.

Quando Darius voltou a colocar a caixa junto com as outras, Tohrment parou na porta, os olhos focando o tapete em tons de pêssego, amarelo e vermelho.

O leve rubor no rosto do macho entristeceu Darius por alguma razão.

– Nunca esteve no quarto de uma fêmea, certo?

Tohrment ficou ainda mais vermelho.

– Ah... não, senhor.

Darius fez um gesto com a mão.

– Bem, estamos aqui a trabalho. Melhor deixar qualquer timidez de lado.

Tohrment pigarreou.

– Sim. É claro.

Darius foi até a porta dupla francesa. As duas se abriam para um terraço e saiu com Tohrment em seu encalço.

– É possível enxergar através daquelas árvores distantes – o garoto murmurou, andando até a varanda.

De fato era possível. Através dos galhos torcidos e dos ramos desfolhados, uma mansão em outra propriedade era visível. A grande casa era comparável em tamanho e distinção, com metais finos em suas torres e grandes jardins... mas até onde Darius sabia, não era habitada por vampiros.

Virou-se e andou pela varanda, inspecionando todas as janelas, portas, maçanetas, dobradiças e fechaduras.

Não havia sinais de invasão, e considerando o frio que fazia, ela não teria deixado nada aberto facilitando assim a entrada dos elementos da natureza.

O que significava que a garota ou havia saído por vontade própria... ou deixado entrar quem quer que a tivesse levado. Isso assumindo que a entrada tivesse acontecido ali.

Olhou através do vidro para dentro dos aposentos da moça, tentando imaginar o que havia acontecido.

Para o inferno com a entrada, a saída era a questão, não era? Era muito improvável que o sequestrador a tenha arrastado pela casa: deve ter sido arrebatada na escuridão, ou então teria sido queimada até as cinzas e sempre havia gente do lado de fora durante a noite.

Não. Teriam que ter saído por aquele quarto.

Tohrment falou:

– Nada foi modificado, dentro ou fora. Sem riscos no chão, ou marcas na parede, o que significa...

– Que ela pode muito bem ter deixado alguém entrar e não lutou contra isso.

Darius voltou para dentro e pegou a escova de cabelo. Finos fios de cabelos loiros estavam presos nas cerdas duras. Nenhuma surpresa, já que o pai e a mãe eram claros.

A questão era: o que levava uma fêmea de valor a fugir da casa de sua família antes do amanhecer, não deixando rastros... e não levando nada consigo?

Uma resposta veio à mente: um macho.

Pais não sabem necessariamente tudo sobre as vidas de suas filhas, sabem?

Darius encarou a noite, examinando os caminhos, as árvores... e a mansão vizinha. Fios... havia fios para tecer aquele mistério.

A resposta que procurava estava ali em algum lugar. Só tinha que costurar os fios para encontrá-la.

– E agora? – Tohrment perguntou.

– Vamos conversar com os servos. Em particular.

Geralmente, em casas como aquela, os doggen nunca sonhariam em falar qualquer coisa fora dos limites necessários. Mas estas não eram circunstâncias normais e era muito possível que piedade e compaixão para com a pobre fêmea sobrepusessem a reticência dos funcionários.

E, às vezes, os fundos da casa sabiam coisas que a frente não sabia.

Darius virou-se e caminhou para a porta.

– Vamos despistar o senhor da mansão agora.

– Despistar?

Saíram juntos e Darius olhou para cima e para baixo no corredor.

– Sim. Venha por aqui.

Escolheu a esquerda, pois, no sentido oposto, havia um conjunto de portas duplas que dava para outra varanda no segundo andar – então era óbvio que o caminho que dava para os aposentos dos funcionários não era por ali. Enquanto caminhavam, passando por diversos cômodos mobiliados maravilhosamente, seu coração doía de tal forma que sua respiração ficou apertada. Depois de duas décadas, suas perdas ainda eram registradas, sua queda ainda ecoava ao longo de cada osso de seu corpo. Era de sua mãe quem mais sentia falta, na verdade. E por trás dessa dor estava o fim de uma vida civilizada que uma vez ele vivera.

Nasceu para isso e fez o que tinha sido treinado a fazer pela raça e alimentou certas... indulgências e ganhou respeito de seus companheiros na guerra. Mas não havia alegrias para ele nessa existência. Nenhuma maravilha. Nenhuma fascinação.

Tudo se resumia a coisas belas para ele? Era tão superficial assim? Se, algum dia, tivesse uma grande e linda casa, com aposentos incontáveis recheados com coisas finas, teria um coração mais leve?

Não, pensou. Não se ficasse sozinho sob o grandioso teto.

Sentia falta de pessoas com a mesma mentalidade convivendo juntas, de uma comunidade levantada por paredes firmes, de um grupo que fosse sua família por sangue e escolha. Na verdade, a Irmandade não vivia junta, pois isto era visto por Wrath, o Justo, como um risco à raça – se suas posições fossem delatadas ao inimigo de alguma maneira, todos estariam expostos.

Darius entendia a linha de pensamento, mas não tinha certeza se concordava com isso. Se os seres humanos podiam viver em seus castelos fortificados em meio aos campos de batalhas, os vampiros poderiam fazer o mesmo.

Contudo, sejamos justos, a Sociedade Redutora era um adversário bem mais perigoso.

Depois de caminhar pelo corredor por algum tempo, finalmente encontraram o que esperava: uma passagem que dava para uma escadaria nos fundos, completamente sem adornos.

Descendo os degraus de pinho, entraram numa pequena cozinha e o aparecimento deles interrompeu a refeição que estava sendo feita numa longa mesa de carvalho.

Os doggen soltaram suas canecas de cerveja e pedaços de pão e se colocaram em pé.

– Por favor, voltem a comer – disse Darius, insistindo com as mãos para que voltassem a seus lugares. – Desejamos falar com o mordomo do segundo andar e com a criada pessoal da filha.

Todos retornaram a seus lugares ao longo da bancada, com exceção de dois: uma fêmea de cabelos brancos e um jovem macho com um rosto gentil.

– Poderia nos sugerir um lugar com alguma privacidade? – Darius disse ao mordomo.

– Temos uma sala de estar indo por ali. – Assinalou em direção a uma porta perto da lareira. – Encontrarão o que procuram lá dentro.

Darius assentiu e se dirigiu à criada, que estava pálida e trêmula, como se estivesse em apuros.

– Não fez nada de errado, minha cara. Venha, isto será rápido e indolor, garanto.

Melhor começar com ela. Não tinha certeza se aguentaria esperar até terminarem com o mordomo.

Tohrment abriu o caminho e os três entraram em uma sala que tinha tanta personalidade quanto um amontoado de pergaminhos em branco.

Como sempre acontecia em grandes propriedades, os aposentos da família eram construídos com luxo e requinte. E os dos empregados não tinham nada além do básico.


CAPÍTULO 21

Quando o Bentley de Rehv saiu da estrada 149 Norte e entrou com cuidado em um caminho estreito de terra, John inclinou-se sobre o para-brisa. Os faróis iluminavam árvores desfolhadas enquanto o sedan serpenteava cada vez mais perto do rio, a paisagem era repleta de mato e pouco acolhedora.

A pequena cabana de caça que surgiu era absoluta e positivamente nada digno de nota. Pequena, escura e despretensiosa, com uma garagem independente da casa. Era rústica, mas estava em perfeito estado.

Saiu do carro e já estava caminhando para a porta da frente antes de Rehv sair de trás do volante. O sentimento predominante de medo que sentia era, na verdade, um bom sinal. Sentiu a mesma coisa no acampamento sympatho e fazia sentido ela proteger seu espaço particular com um campo de força semelhante.

O som de suas botas soou alto em seus ouvidos enquanto cruzava a terra batida da rua estreita, e então tudo ficou em silêncio ao atingir o gramado raso, marrom e desalinhado. Não bateu, mas estendeu a mão para a maçaneta e ordenou mentalmente que a fechadura se abrisse.

Só que... ela não se moveu.

– Não vai ser capaz de entrar aí usando sua mente. – Rehv chegou com uma chave de cobre, colocou a coisa em uso e abriu caminho.

Quando a forte e sólida porta foi colocada de lado, John estreitou o olhar para a escuridão e inclinou sua cabeça, esperando um alarme disparar.

– Ela não acredita em alarmes – disse Rehv calmamente antes de deter John enquanto corria para dentro. Em um tom mais alto, o homem gritou:

– Xhex? Xhex? Abaixe a arma... somos eu e John.

De alguma maneira sua voz não soava bem, pensou John.

E não houve resposta.

Rehv acendeu as luzes e soltou o braço de John enquanto entravam. A cozinha nada mais era do que uma pequena área com apenas o essencial: forno a gás, uma geladeira velha e uma pia de aço inoxidável. Mas tudo estava impecável e não havia desordem alguma. Sem correspondência, sem revistas. Nenhuma arma empunhada.

Mofo. O ar estava parado e mofado.

Do outro lado, havia um único quarto grande com janelas com vista para o rio. A mobília era mínima: nada além de duas cadeiras de vime, um sofá e uma mesa pequena.

Rehv atravessou, caminhando em direção à única porta fechada à direita.

– Xhex?

Outra vez com aquela voz. E, então, o macho colocou a mão no batente da porta e inclinou-se sobre os painéis, fechando os olhos.

Com um arrepio, Rehv abaixou os ombros enormes.

Ela não estava lá.

John adiantou-se e abriu caminho tateando pelo quarto. Vazio. Assim como o banheiro do outro lado.

– Maldição! – Rehv girou sobre os calcanhares e se afastou. Quando uma porta bateu na lateral da cabana que dava para o rio, John percebeu que o sujeito havia saído para a varanda e estava olhando para a água fixamente.

John amaldiçoou em pensamento enquanto olhava ao redor. Tudo estava limpo e organizado. Nada fora do lugar. Nenhuma abertura nas janelas para entrar ar fresco ou portas que haviam sido abertas recentemente.

A poeira fina sobre as maçanetas e fechaduras lhe disse isso.

Xhex poderia ter passado por ali, mas já tinha ido embora. E se veio, não ficou muito tempo ou fez muita coisa, porque não podia detectar nada de seu perfume.

Sentiu como se a tivesse perdido novamente.

Cristo, pensou que o fato de estar viva fosse o suficiente para sustentá-lo, mas a ideia de que ela se encontrava em lugar algum do planeta, mas longe dele, o paralisava de maneira muito estranha. Além disso, se sentia cego pela situação; ainda não sabia os “comos” e “porquês” e “ondes” de nada daquilo.

Estava péssimo, para ser sincero.

Por fim, saiu para juntar-se a Rehv na pequena varanda. Agarrando seu bloco de notas, rabiscou rapidamente e rezou para que o sympatho conseguisse entender aquilo que iria dizer.

Rehv olhou por cima do ombro e leu o que John segurava. Depois de um momento, disse:

– Sim, claro. Direi aos Irmãos que ela não estava aqui e que você foi comigo comer no restaurante de iAm. Isso vai te dar umas boas três, quatro horas no mínimo.

John colocou a mão no peito e curvou-se profundamente.

– Só não saia por aí lutando. Não preciso saber para onde está indo, isso é assunto seu. Mas se você se matar, arrumo noventa e nove problemas e você é o maior deles. – Rehv olhou de volta para o rio. – E não se preocupe com ela. Já fez isso antes. Esta é a segunda vez que... Xhex foi raptada.

A mão de John agarrou com força o antebraço do macho. Rehv nem sequer pestanejou... contudo, havia rumores de que não sentia nada por causa do que fazia para controlar seu lado sympatho.

– Sim. Esta é a segunda vez. Ela e Murhder estavam juntos... – Quando as presas de John apareceram, Rehv sorriu discretamente. – ... isso foi há muito tempo. Não precisa se preocupar. Mas ela acabou indo para a colônia por razões familiares. Porém, eles a prenderam lá e não a deixaram sair. Quando Murhder subiu para buscá-la, os sympathos o pegaram também e a situação ficou crítica. Eu tive que fazer uma barganha para soltar os dois, mas a família dela a vendeu no último segundo, bem debaixo do meu nariz.

John engoliu em seco e sinalizou sem pensar. Para quem?

– Humanos. Contudo, ela se libertou como fez dessa vez. E então foi embora por um tempo. – Os olhos de ametista de Rehv brilharam. – Ela sempre foi forte, mas depois do que aqueles humanos fizeram a ela, tornou-se muito dura.

Quando?, John gesticulou.

– Há uns vinte anos. – Rehv voltou a encarar a água. – Para sua informação, ela não estava brincando naquela mensagem. Não vai apreciar ninguém chegando e sendo seu herói com Lash. Vai ter que fazer isso sozinha. Quer ajudar nessa situação? Deixe que ela vá até você quando estiver pronta... e fique fora do seu caminho.

Sim, bem, provavelmente ela não teria pressa em mandar uma mensagem de texto, pensou John. E quanto à coisa com Lash? Não tinha certeza se conseguiria deixar essa passar. Nem mesmo por ela.

Para interromper seu próprio pensamento, John estendeu a mão. Os dois aproximaram peito com peito em um breve abraço e depois John se desmaterializou.

Quando tomou forma, estava de volta no Parque Xtreme, atrás do galpão, olhando para as rampas e obstáculos vazios. O líder dos traficantes não estava de volta. Também não havia nenhum skatista. As duas coisas faziam sentido. Uma batida na noite anterior com um monte de tiras surgindo? E com uma chuva de balas?

O lugar seria uma cidade fantasma por um tempo.

John inclinou-se contra a madeira áspera, seus sentidos em alerta. Estava consciente da passagem do tempo, tanto por causa da posição da lua bem no meio do céu, quanto porque seu cérebro deixou o estado maníaco e entrou numa agitação mais razoável. Que também era uma droga, mas era mais fácil de lidar.

Xhex estava livre e ele nem sequer sabia em que condições estava. Será que estava machucada? Será que precisava se alimentar? Será que ela...

Certo. Hora de parar com esse ciclo vicioso.

E provavelmente ele deveria cair fora. Wrath havia sido muito claro sobre aquele negócio de “não lutar sem Qhuinn” e o parque ainda podia ser considerado um lugar perigoso.

De repente, deu-se conta de onde precisava ir.

Levantando-se daquela posição, fez uma pausa e olhou em volta com a testa franzida. A sensação de estar sendo observado e seguido o envolveu mais uma vez... exatamente como aconteceu na loja de tatuagens.

Porém, naquela noite, simplesmente não tinha energia para suportar mais uma boa dose de paranoia, então apenas se desmaterializou, imaginando que quem quer ou o que quer que fosse iria segui-lo outra vez ou o perderia no ar... e não estava preocupado com o que seria.

Estava muito desgastado.

Quando tomou forma novamente, estava a apenas algumas quadras de onde tinha lutado com aquele redutor na noite anterior. Do bolso interno de sua jaqueta de couro, tirou uma chave de cobre que era exatamente igual a que Rehv usou na cabana de caça.

Estava com aquela coisa há mais ou menos um mês e meio. Xhex tinha lhe dado na noite em que dissera a ela que podia confiar nele sobre seu segredo sympatho e, assim como os cilícios, ele a levava por onde quer que fosse.

Esquivando-se sob as escadarias de uma casa de arenito, inseriu o pedaço de metal e abriu a porta. As luzes no corredor do porão foram ativadas pelo movimento e o trecho de pedras caiadas foi iluminado instantaneamente.

Teve o cuidado de trancar a porta atrás de si e desceu.

Ela ofereceu-lhe abrigo naquele lugar secreto antes. Tinha concedido acesso a seu quarto no porão quando precisou ficar sozinho. E ao aproveitar sua hospitalidade, aquilo o levou à perda de sua virgindade.

No entanto, ela se recusou a beijá-lo.

A mesma chave funcionou na porta do quarto, o mecanismo de trava se deslocou suavemente. Ao movimentar os amplos painéis de metal, a luz se acendeu e ele entrou.

John morreu um pouco com o que viu na cama: seu coração e sua respiração pararam, suas ondas cerebrais cessaram, seu sangue gelou nas veias.

O corpo nu de Xhex estava enrolado nos lençóis.

Quando o quarto foi inundado pela luz, a mão dela agarrou a arma que estava apoiada sobre o colchão e a apontou para a porta.

Não tinha forças nem para levantar a cabeça ou a arma, mas ele tinha certeza de que poderia puxar o gatilho.

Levantando os braços e mostrando as palmas das mãos, deu um passo para o lado e fechou a porta com o pé para protegê-la.

Sua voz era quase um sussurro.

– John...

Uma única lágrima cor vermelho-sangue surgiu e a assistiu escorrer devagar e com facilidade pelo nariz até pingar sobre o travesseiro.

A mão dela afastou-se da arma e foi para o rosto, movendo-se com cuidado a cada centímetro, como se precisasse de tudo o que tinha para fazer isso. Cobriu-se da única maneira que podia, com seu escudo de mãos e dedos escondendo as lágrimas.

Ela estava toda marcada por hematomas em vários estágios de cura e tinha perdido muito peso, seus ossos pareciam prestes a romper sua carne. Sua pele estava cinza ao invés de um rosa saudável e seu perfume natural era praticamente inexistente.

Ela estava morrendo.

O horror daquilo tudo fez com que seus joelhos vacilassem ao ponto de ser obrigado a se apoiar contra a porta.

Mas mesmo enquanto oscilava, sua mente não parava. A doutora Jane precisava vê-la e Xhex precisava se alimentar.

Não tinham muito tempo pela frente.

Para sobreviver, ele teria que assumir a partir daquele momento.

John arrancou sua jaqueta de couro e arregaçou as mangas enquanto se dirigia até ela. A primeira coisa que fez foi cobrir gentilmente sua nudez puxando o lençol sobre seu corpo. A segunda foi empurrar seu punho direto contra a boca dela... e esperar que seus instintos assumissem o controle.

Sua mente podia não desejá-lo, mas seu corpo não seria capaz de resistir ao que tinha para oferecer.

Sobrevivência sempre prevaleceu sobre os assuntos do coração. Ele era uma prova viva disso.


CAPÍTULO 22

Xhex sentiu um suave roçar em seu ombro e quadril enquanto John puxava o lençol em volta.

Por trás do aconchego de sua mão, ela inalou e tudo o que sentiu dizia respeito a um macho bom, limpo e saudável... e o cheiro provocou uma fome profunda dentro dela, seu apetite e necessidades a despertaram de seu sono com um rugido.

E isso foi antes de John colocar seu pulso tão perto dela que poderia beijá-lo.

Seus instintos sympatho serpentearam e leram as emoções dele.

Calmo e decidido. Totalmente centrado na cabeça e no coração: John iria salvá-la nem que fosse a última coisa que fizesse.

– John... – sussurrou.

O problema daquela situação... bem, um deles... era que não estava sozinho em saber o quão perto da morte ela estava.

Enquanto foi encarcerada e abusada, sua fúria contra Lash tinha sido um sustento e pensou que continuaria sendo quando saísse. Mas no instante em que ligou para Rehv, toda sua energia foi drenada e sobraram apenas as batidas de seu coração. E, mesmo isso, não era muito.

John colocou o pulso ainda mais perto... de modo que a pele dele roçou contra sua boca.

Seus caninos se alongaram num impulso lento ao mesmo tempo em que seu coração soluçou como se não estivesse trabalhando direito.

Tinha uma opção naquele momento silencioso e tenso: tomar sua veia e continuar vivendo. Ou negar isso e morrer na frente dele na próxima hora ou coisa assim. Porque ele não iria a lugar nenhum.

Afastando a mão do rosto, ela o percorreu com o olhar. Estava lindo como sempre, o tipo de rosto com que as fêmeas sonhavam.

Erguendo a palma da mão, ela o tocou.

A surpresa cintilou em seus olhos e então se inclinou para que sua mão pousasse sobre sua face quente. O esforço de manter o braço elevado mostrou ser algo extremo, mas quando seus dedos tremeram, ele colocou sua mão sobre a dela, segurando-a no lugar.

Seus profundos olhos azuis eram uma espécie de paraíso, com a cor de um céu quente ao escurecer.

Tinha que tomar uma decisão. Tomar sua veia ou...

Como não conseguia encontrar energia para terminar o pensamento, sentiu como se tivesse perdido a si mesma: considerando o fato de que parecia estar consciente, supôs que estava viva... mas, ainda assim, não sentia como se estivesse em sua própria pele. Sua luta tinha passado, a coisa que a tinha definido no mundo tinha evaporado. O que fazia sentido. Não tinha mais interesse em viver e não poderia fingir nem para ele, nem para si mesma.

Duas viagens ao parque dos prisioneiros a levaram longe demais.

Então... o que fazer, o que fazer?

Lambeu os lábios secos. Não nasceu sob condições que pudesse escolher, e seu tempo respirando, comendo, lutando e transando não trouxe melhoria alguma ao ponto de onde havia começado. Contudo, poderia partir sob suas próprias condições... e fazer isso depois que tivesse colocado as coisas em ordem.

Sim, essa era a resposta. Graças às três últimas semanas e meia, tinha uma ótima lista de coisas a fazer antes de morrer. Claro, havia apenas uma coisa nesta lista, mas algumas vezes isso é o suficiente para motivá-lo.

Num ímpeto de determinação, sua forte pele externa se reformou, a estranha sensação de flutuar que a confundia se dissipou e deixou uma aguda consciência de seu despertar. De repente, tirou a mão que estava embaixo da de John e a retirada cravou um surto de puro medo na grade emocional dele. Mas então puxou seu pulso e expôs suas presas.

O triunfo de John se traduziu numa onda de calor.

Pelo menos até tornar-se evidente que não tinha forças para romper a pele dele... seus caninos não fizeram nada além de arranhar a superfície. Porém, John estava atento. Com um movimento rápido, perfurou sua própria veia e levou aquela fonte até os lábios dela.

O primeiro gole foi... uma transformação. O sangue dele era tão puro que ardeu em sua boca e garganta... e o fogo que se acendeu em seu estômago percorreu todo seu corpo, descongelando-a, animando-a. Salvando-a.

Com ávidas sucções ela tomou dele para reviver, cada gole era um bote salva-vidas, uma corda sendo jogada no penhasco da sua morte, uma bússola que precisava para encontrar o caminho de volta para casa.

E ele deu isso a ela sem expectativas, esperanças ou impulsionado por emoções.

O que, aliás, em meio ao seu frenesi, lhe causou dor. Ela tinha mesmo partido seu coração: não sobrou nada de expectativa nele. Mas não havia abalado o macho – e isso fez com que o respeitasse como nada mais teria conseguido.

Enquanto se alimentava, o tempo corria assim como seu sangue, fluía no infinito e dentro dela.

Quando finalmente ficou saciada, liberou sua pele e lambeu para fechar a ferida.

O tremor começou logo depois. Iniciou-se nas mãos e pés e rapidamente se centralizou no peito, tremores incontroláveis que chacoalhavam seus dentes, seu cérebro e sua visão até que sentiu como se fosse um pé de meia jogado numa secadora.

Através do tremor, viu John tirando seu celular da jaqueta.

Tentou agarrar sua camisa.

– N-n-n-não. N-n-n-não...

Ele a ignorou, inclinando a maldita coisa e enviando uma mensagem de texto.

– D-d-d-droga... – ela grunhiu.

Quando fechou o telefone, disse:

– T-tentar me levar ao H-Havers a-agora n-n-não vai d-dar c-certo.

Seu medo de clínicas e de procedimentos médicos ia deixá-la no limite e, graças a ele, agora tinha energia para fazer algo com seu pânico. E não ia ser uma alegria para ninguém lidar com isso.

John pegou um bloco e rabiscou alguma coisa. Virou o papel e saiu um momento depois. Tudo que ela conseguiu fazer foi fechar os olhos quando a porta também se fechou.

Abrindo os lábios, respirou pela boca e imaginou se teria energia suficiente para levantar, se vestir e sair antes que a ideia brilhante de John aparecesse. Uma rápida avaliação a informou que não ia acontecer. Se não conseguia levantar a cabeça e mantê-la erguida do travesseiro por mais de um segundo e meio, não tinha jeito de conseguir ficar em pé.

Não levou muito tempo para que John voltasse com a doutora Jane, a médica pessoal da Irmandade da Adaga Negra. A fêmea fantasmagórica trazia uma maleta preta e transpirava o tipo de competência médica que Xhex valorizava – mas teria preferido infinitamente que toda aquela competência fosse aplicada a outros e não nela.

A doutora Jane se aproximou e colocou suas coisas no chão. Seu jaleco branco e sua roupa de hospital eram referências sólidas para os olhos, embora seu rosto e mãos fossem translúcidos. Porém, tudo mudou quando ela sentou na beirada da cama. Tudo nela tomou forma e a mão que pousou sobre o braço de Xhex era calorosa e firme.

No entanto, mesmo a compassiva médica fez a pele de Xhex formigar. Não queria mesmo ser tocada por ninguém.

Quando a boa doutora removeu a mão, teve a sensação que a fêmea sabia disso.

– Antes que me diga para ir embora, tem algumas coisas que precisa saber. Em primeiro lugar, não vou divulgar a sua localização a ninguém e não vou compartilhar nada que me diga ou qualquer coisa que eu descubra. Tenho que relatar a Wrath que a vi, mas qualquer descoberta clínica será sua e apenas sua.

Soava bem. Na teoria. Mas não queria a fêmea em nenhum lugar perto dela com o que havia naquela maleta preta.

A doutora Jane continuou:

– Segundo, eu não sei absolutamente nada sobre sympathos. Portanto, se há algo anatômico distinto ou significativo para essa sua metade... não vou necessariamente saber como tratar. Ainda consente em ser examinada por mim?

Xhex limpou a garganta e tentou travar os ombros, para que não tremesse tanto.

– Eu não q-quero ser examinada.

– Isso foi o que John disse. Mas você já passou por um trauma...

– N-n-não foi tão mal assim. – Sentia a resposta emocional de John vindo do canto de onde ele estava, mas não tinha energia para descobrir os detalhes do que estava sentindo. – E eu estou b-b-bem...

– Então deveria encarar isso como uma simples formalidade.

– Eu p-p-pareço com alguém que é formal?

O olhar verde-floresta da doutora Jane se estreitou.

– Você parece alguém que foi espancada. Que não se alimentou de maneira adequada. E que não dormiu. A não ser que queira me dizer que esse machucado roxo em seu ombro é maquiagem. Ou que essas bolsas debaixo dos seus olhos são uma miragem.

Xhex estava bem familiarizada com pessoas que não aceitavam “não” como resposta... pelo amor de Deus, trabalhou com Rehv por anos. E considerando aquele tom rígido e equilibrado, estava muito claro que a doutora iria fazer as coisas do jeito dela ou não iria embora. Nunca.

– M-m-maldição.

– Para sua informação, quanto mais cedo começarmos, mais cedo termina.

Xhex encarou John, pensando que se tinha que ser examinada, a presença dele ali não seria vantagem alguma. Ele realmente não precisava saber nada além do que provavelmente já supunha sobre a condição dela.

A doutora olhou sobre o ombro.

– John, você poderia, por favor, esperar no corredor?

John abaixou a cabeça e se inclinou para fora do quarto, a tremenda largura das suas costas desaparecendo pela porta. Quando a fechadura fez um clique, a boa doutora abriu aquela maldita maleta e o estetoscópio e o medidor de pressão foram os primeiros a sair.

– Só vou ouvir seu coração – disse, colocando o estetoscópio nas orelhas.

A visão dos instrumentos médicos foi gasolina para os tremores de Xhex, e estando fora de si como estava, ela se encolheu afastando-se.

A doutora Jane fez uma pausa.

– Não vou machucar você. E não vou fazer nada que você não queira.

Xhex fechou os olhos e virou de costas. De repente, cada músculo de seu corpo doeu.

– Vamos acabar logo com isso.

Quando o lençol foi levantado, uma corrente de ar frio correu sobre sua pele e um disco gelado foi colocado sobre seu peito. Flashbacks ameaçaram enviá-la para uma montanha-russa assustadora e começou a encarar o teto, apenas para tentar evitar sair levitando do maldito colchão.

– S-seja rápida, d-d-doutora. – Não conseguiria conter o pânico por muito tempo.

– Poderia respirar fundo para mim?

Xhex fez o melhor que podia e acabou estremecendo. Estava claro que uma ou mais das suas costelas estavam quebradas, provavelmente de bater na parede ao sair daquele quarto.

– Pode se sentar? – A Dra. Jane perguntou.

Xhex gemeu quando tentou levantar seu tronco da cama e falhou. A doutora Jane acabou tendo de ajudá-la, e quando fez isso, assoviou um pouco.

– Não dói tanto assim – Xhex exclamou.

– Difícil de acreditar. – De novo, o disco de metal andou sobre ela. –Respire o mais profundo que puder.

Xhex respirou fundo e ficou aliviada quando a mão gentil da doutora impulsionou suas costas contra os travesseiros e o lençol flutuou de volta para o lugar.

– Posso examinar os machucados de seus braços e pernas? – Quando Xhex deu de ombros, a doutora Jane colocou o estetoscópio de lado e se moveu ao redor da cama. Houve outra corrente de ar quando o lençol foi retirado... e então a outra fêmea hesitou.

– Marcas muito profundas de ataduras ao redor dos tornozelos – murmurou a doutora, quase para si mesma.

Bem, isso foi porque Lash a havia amarrado com arame algumas vezes.

– Muitas contusões...

Xhex interrompeu a inspeção quando o lençol foi puxado em direção aos quadris.

– Vamos apenas dizer que continuam por toda parte de cima, certo?

A doutora Jane recolocou o lençol onde estava.

– Posso apalpar sua barriga?

– Vá em frente.

Xhex se enrijeceu com a ideia de ser descoberta de novo, mas a doutora apenas esticou o lençol, empurrou e apalpou. Infelizmente não havia como esconder os tremores, especialmente quando as coisas se encaminharam para a parte inferior do estômago.

A doutora se acomodou e olhou dentro dos olhos de Xhex.

– Alguma chance de me deixar fazer um exame interno?

– Interno como em... – Quando entendeu o significado, Xhex balançou a cabeça. – Não. Não vai acontecer.

– Foi agredida sexualmente?

– Não.

A doutora Jane assentiu.

– Existe algo que eu precise saber e que você não me contou? Dor em algum lugar específico?

– Estou bem.

– Você está sangrando. Não tenho certeza se está ciente disso, mas está sangrando.

Xhex franziu a testa e olhou para seus braços trêmulos.

– Há sangue fresco na parte interna de suas coxas. Por isso perguntei se poderia fazer um exame interno.

Xhex sentiu uma onda de horror vindo sobre ela.

– Vou perguntar mais uma vez. Foi agredida sexualmente? – Não havia nenhuma emoção por trás das palavras técnicas e a doutora havia acertado nisso. Xhex não estava interessada em nenhuma histeria, choradeira ou piedade exagerada.

Quando não respondeu, a doutora Jane leu o silêncio corretamente e disse:

– Alguma chance de estar grávida?

Oh... Deus.

Os ciclos sympatho eram estranhos e imprevisíveis e estava tão afetada pelo drama do rapto e do cativeiro que nem tinha pensado nas consequências.

Naquele momento, desprezou ser uma fêmea. Realmente desprezou.

– Eu não sei.

A doutora assentiu.

– Como pode dizer se está?

Xhex apenas balançou a cabeça.

– Não tem como eu estar. Meu corpo passou por muita coisa.

– Deixe-me fazer o exame interno, ok? Apenas para ter certeza que não há nada acontecendo lá dentro. E então eu gostaria de levá-la ao complexo da Irmandade para que possa fazer um ultrassom. Sentiu-se muito mal quando examinei sua barriga. Pedi ao Vishous para vir com o carro... deve estar quase chegando.

Xhex mal conseguia ouvir o que estava sendo dito a ela. Estava ocupada demais relembrando as duas últimas semanas. Esteve com o John na véspera do rapto. Aquela última vez. Talvez...

Se estivesse grávida, recusava-se com todas as forças a acreditar que tinha alguma coisa a ver com Lash. Isso seria muito cruel. Cruel demais.

Além disso, talvez houvesse outra razão para o sangramento.

Parte de seu cérebro insistia em salientar que podia ser um aborto espontâneo.

– Faça isso – Xhex disse. – Mas faça rápido. Eu não lido bem com essa porcaria toda e não vou ficar muito entusiasmada se levar mais que alguns minutos.

– Serei rápida.

Enquanto fechava os olhos e se preparava, uma rápida mostra de slides se iniciou em sua cabeça. Primeira imagem: seu corpo numa mesa de aço inoxidável de uma sala de azulejos. Próxima imagem: seus tornozelos e pulsos presos no lugar. Próxima imagem: médicos humanos com olhos arregalados dizendo “olha só isso” aproximando-se dela. Próxima imagem: uma câmera de vídeo no seu rosto e descendo para produzir uma visão panorâmica. Próxima imagem: um bisturi capturando a luz.

Estalos.

Suas pálpebras se abriram com força com aqueles sons porque não tinha certeza se o que estava ouvindo era na sua cabeça ou no quarto. Era o último. A doutora Jane tinha colocado suas luvas de látex.

– Vou ser gentil – Jane disse.

O que era um termo relativo, claro.

Xhex agarrou os lençóis e sentiu espasmos na parte interna de suas coxas ao ficar rígida da cabeça aos pés. A boa notícia do ato de congelar com força foi que isso a curou daquela gagueira.

– Prefiro que seja rápida.

– Xhex... eu quero que olhe direto para mim. Agora.

O olhar disperso de Xhex voltou-se para ela.

– O que?

– Mantenha-se olhando em meus olhos. Bem aqui. – A doutora apontou para seus olhos. – Mantenha o olhar. Prenda-se em meu rosto e saiba que já passei por isso, certo? Sei exatamente o que estou fazendo e não apenas porque fui treinada.

Xhex se esforçou para focar e... Jesus, aquilo ajudava. Encontrar aquele olhar verde realmente ajudou.

– Você vai sentir.

– Como assim?

Xhex clareou a garganta.

– Se eu estiver... grávida, você vai sentir.

– Como?

– Quando você... haverá um padrão. Dentro. Não vai... – Respirou com dificuldade, recorrendo às fábulas que havia ouvido do povo de seu pai. – As paredes não estarão suaves.

A doutora Jane nem sequer piscou.

– Entendi. Pronta?

Não.

– Sim.

Xhex estava suando frio quando o exame terminou e a costela que estava quebrada gritou por causa de sua forte respiração entrecortada.

– E então? – disse ela com voz rouca.


CAPÍTULO 23

– Estou dizendo... Eliahu está vivo. Eliahu Rathboone... está vivo.

Em pé, em seu quarto, na mansão Rathboone, Gregg Winn olhou para fora da janela, observando o belo musgo espanhol típico da Carolina do Sul. Sob o luar aquela porcaria era assustadora, como uma sombra projetada por algum objeto desconhecido... ou corpo.

– Gregg, você me ouviu?

Depois de esfregar os olhos para dispersar o sono, olhou sobre o ombro em direção à sua jovem narradora. Holly Fleet estava do lado de dentro da porta, seu longo cabelo loiro puxado para trás, seu rosto sem maquiagem, seus olhos não eram tão grandes ou cativantes sem os cílios falsos ou o material cintilante que usava na frente da câmera. Mas o roupão de seda rosa não fazia nada, absolutamente nada para esconder seu corpo que era um arraso.

E estava praticamente vibrando, seu diapasão interno parecia ter sido acionado por uma maldita campainha.

– Está ciente – Gregg arrastou as palavras – de que o filho da mãe morreu há mais de 150 anos?

– Então, o fantasma dele está mesmo aqui.

– Fantasmas não existem. – Gregg voltou a olhar a paisagem. – Você, dentre todas as pessoas, deveria saber disso.

– Este aqui existe.

– E você me acordou de madrugada para dizer isso?

Não foi uma atitude legal da parte dela. Todos eles praticamente não dormiram na noite anterior e ele tinha passado o dia pendurado no telefone ligando para Los Angeles. Tinha deitado a cabeça no travesseiro há uma hora, sem a pretensão de cair no sono – mas felizmente seu corpo tinha planos diferentes.

Ou isso ou seu cérebro estava dizendo para desistir, pois as coisas não estavam indo bem. Aquele mordomo se recusava a ceder quanto à autorização. As duas tentativas de reaproximação de Gregg foram mal-sucedidas: a do café da manhã foi educadamente recusada e a do jantar completamente ignorada.

Enquanto isso, tinham feito ótimas imagens que já estavam sendo enviadas. Graças às evocativas cenas capturadas na surdina, o chefão havia lhe dado o aval para mudar a localização do especial – mas estavam pressionando-o para que enviasse uma prévia que pudessem transmitir o mais rápido possível.

O que não poderia acontecer até que o mordomo cedesse.

– Ei? – Holly exclamou. – Está me ouvindo?

– O quê?

– Quero ir embora.

Franziu a testa, pensando que ela não tinha neurônios suficientes para se assustar com nada menor que um caminhão de dezoito rodas com o nome dela na grade dianteira.

– Pra onde?

– De volta para Los Angeles.

Ele quase recuou.

– Los Angeles? Está brincando...? Certo, isso não vai acontecer. A não ser que queria viajar de volta como bagagem. Temos um trabalho a fazer aqui.

O que, considerando o problema com aquele mordomo idiota, isso incluiria muita paciência e súplica. E o último era a praia de Holly. E afinal... se estava assustada, aquilo funcionaria como vantagem. Poderia usar seu medo para influenciar o mordomo. Normalmente, homens respondem bem a esse tipo de coisa – em especial, os senhores gentis e educados que canalizam seu cavalheirismo por cada um de seus ossos secos e delgados.

– Eu estou mesmo... – Holly puxou as lapelas de seda para mais perto de seu pescoço... de modo que a frente de seu roupão ficou ainda mais esticada e apertada contra seus mamilos enrijecidos. – Estou em pânico.

Hum. Se isso era uma manobra para levá-lo para a cama... não estava tão cansado.

– Venha aqui.

Estendeu os braços, e quando ela se aproximou e colocou seu corpo contra o dele, Gregg sorriu. Deus, ela cheirava bem. Não era aquela droga de perfume floral que costumava usar, mas alguma coisa mais misteriosa. Era muito bom.

– Querida, sabe que tem que ficar conosco. Preciso de você para fazer sua mágica.

Lá fora, os musgos espanhóis balançavam com a brisa, a luz do luar os capturava e criava a ilusão de serem véus de seda, assim as árvores pareciam estar envoltas em mantos.

– Alguma coisa não está certa aqui – disse ela em seu peito.

Lá embaixo, no gramado, uma figura solitária caminhava vagarosamente em meio à paisagem. Ficou claro que Stan tinha saído para fumar.

Gregg balançou a cabeça.

– A única coisa que não está certa aqui é aquele maldito mordomo. Não quer ser famosa? Um especial aqui abrirá portas para você. Poderia ser convidada para a próxima Dança dos Famosos. Ou para o Big Brother.

Parece que conseguiu chamar sua atenção, pois o corpo dela relaxou, e para ajudá-la, acariciou suas costas.

– Essa é minha garota. – Gregg observou Stan caminhar, mãos nos bolsos, a cabeça olhando na direção oposta da casa, seu cabelo longo movia-se no vento. Mais alguns metros e seria banhado pelo luar, quando saísse do alcance das árvores. – Agora, quero que fique aqui comigo... como eu disse, você mais que todas as outras pessoas deveria saber que essas histórias de fantasmas nunca são nada além de tábuas de assoalho velho rangendo. Temos um trabalho só porque as pessoas gostam de acreditar nessas histórias sinistras e idiotas.

Como se estivesse aproveitando a deixa, alguém subiu os degraus, o suave som dos passos pareciam sair de um verdadeiro filme de terror, os lamentos e gemidos da madeira velha penetravam o silêncio.

– É disso que está com medo? De alguns ruídos no meio da noite? – disse, afastando-se e olhando para ela. Seus lábios carnudos trouxeram algumas boas lembranças e acariciou sua boca com o polegar, pensando que talvez ela tivesse colocado mais silicone ali. Parecia estar com um inchaço e uma beleza extra.

– Não... – ela sussurrou. – Não é isso.

– Então, por que acha que há um fantasma?

Uma batida na porta soou e a voz de Stan veio abafada.

– Vocês dois estão transando ou eu posso ir para a cama agora?

Gregg franziu a testa e virou a cabeça em direção à janela. Aquela figura solitária continuou, foi banhada pelo luar... e desapareceu no ar rarefeito.

– Porque eu acabei de transar com ele – Holly disse. – Fiz sexo com Eliahu Rathboone.


CAPÍTULO 24

Do lado de fora, no corredor do porão de Xhex, John já estava marcando um caminho no chão de pedra. Indo e voltando. Indo e voltando. Enquanto ouvia absolutamente nada pela porta do quarto.

O que supunha ser uma coisa boa – esperava que não ouvir gritos ou palavrões significasse que o exame da doutora Jane não estava causando dor.

Mandou uma mensagem para Rehvenge e disse ao macho que Xhex havia sido encontrada e iriam tentar levá-la ao complexo. No entanto, não mencionou o porão. Com certeza, ela gostaria de manter isso em segredo, pois se Rehv soubesse, teria insistido em ir até lá depois de ter verificado que ela não estava na cabana de caça.

Depois de olhar o relógio, John passou as mãos outra vez por entre seus cabelos e se perguntou como machos vinculados como Wrath, Rhage e Z. lidavam com uma situação assim... Cristo, Z. teve que assistir Bella dando à luz... como diabos eles...

A porta foi aberta e ele virou-se, suas solas chiaram no chão.

A doutora Jane estava séria.

– Ela concordou em ir ao complexo. V. deve estar lá fora esperando no Escalade... Pode ver se ele está lá?

John gesticulou: Ela está bem?

– Ela passou por muita coisa. Vá ver se o carro está lá, ok? E vai precisar carregá-la, certo? Não a quero andando e não vou usar uma maca porque não precisamos fazer uma cena na rua.

John não se demorou nada ali e correu para fora do porão. Estacionado na rua, com luzes apagadas, mas o motor ligado, estava o carro de Vishous. Atrás do volante, havia um brilho laranja enquanto V. inalava sua cigarrilha.

O Irmão abaixou a janela.

– Vamos levá-la?

John assentiu uma vez e voltou a entrar correndo.

Quando chegou à porta do quarto de Xhex, estava fechada, então bateu suavemente.

– Um minuto – a doutora Jane gritou, sua voz abafada. – Ok, pode entrar.

Abriu e encontrou Xhex ainda de lado. Uma toalha havia sido enrolada ao redor dela e um lençol limpo caía da cabeça aos pés. Cristo... ele desejava que a pele dela oferecesse um pouco mais de contraste com todo aquele tecido branco.

John se aproximou e pensou que era estranho. Nunca viu a si mesmo como mais alto que ela antes. Agora parecia bem maior, e não só porque estava deitada.

Vou levantar você agora, gesticulou enquanto expressava as palavras com a boca.

Os olhos dela fixaram-se nos dele, e então ela assentiu e tentou sentar. Quando ela começou a lutar, ele se inclinou e a pegou em seus braços.

Não pesava o suficiente.

Quando ele se endireitou, a doutora Jane tirou as cobertas da cama rapidamente e as dobrou e moveu-se em direção à porta.

A rigidez no corpo de Xhex estava custando sua energia e ele queria que relaxasse, mas mesmo se tivesse voz para dizer isso, teria sido um desperdício. Ela não era do tipo que gosta de ser carregada sob nenhuma circunstância, por ninguém.

Pelo menos não... normalmente.

O corredor pareceu ter vinte quilômetros, e do lado de fora, os três metros que andou para atravessar a calçada em direção ao carro tornou-se duas vezes mais distante.

V. saltou de trás do volante e abriu a porta traseira.

– Ela pode se esticar um pouco aqui. Coloquei cobertores antes de sair.

John assentiu e foi deitá-la no suave ninho.

A mão dela o alcançou e travou no ombro dele.

– Fique comigo. Por favor.

Ele congelou por uma fração de segundo... então, usando sua força bruta, subiu no carro enquanto continuava a segurá-la. Entrar ali foi desajeitado... mas, em dado momento, colocou Xhex e a si mesmo contra a parede do interior do carro com suas pernas dobradas no joelho e ela em seu colo, abraçada contra seu peito.

As portas foram fechadas e então houve mais duas batidas e o rugido do motor.

Através das janelas escurecidas, luzes flamejavam e diminuíam enquanto atravessavam a cidade a toda velocidade.

Quando Xhex começou a tremer, envolveu seus braços ainda mais apertados ao redor dela, desejando que seu calor entrasse nela. E talvez tenha funcionado, porque depois de um momento, ela deitou a cabeça contra seu peito e o tremor diminuiu.

Deus... desejou tanto tê-la em seus braços. Tinha imaginado e visualizado cenários onde isso acontecia.

Nenhum deles era bem assim.

Inalou profundamente, planejando soltar um suspiro... e sentiu a essência que ele mesmo estava soltando. Um profundo cheiro apimentado. O tipo que sentia nos Irmãos quando suas shellans estavam por perto. O que significava que seu corpo estava demonstrando suas emoções e que não havia volta.

Maldição, não tinha como esconder a vinculação e nem detê-la. Desde sempre, desde que a viu pela primeira vez, começou a avançar pouco a pouco para mais perto daquele penhasco e ficou claro que tinha se lançado sobre o precipício quando ela se alimentou dele.

– John? – ela sussurrou.

Ele bateu levemente em seu ombro, para que soubesse que a tinha ouvido.

– Obrigada.

Colocou sua bochecha sobre o cabelo dela e assentiu com a cabeça para que pudesse sentir.

Quando se afastou de seu rosto, ele não ficou surpreso... ao menos não até perceber que ela queria olhar para ele.

Oh, Jesus, odiou a expressão em seu rosto magro. Estava assustada, aterrorizada, seus profundos olhos cinza eram da cor do asfalto.

Você está bem, gesticulou com a boca. Vai ficar bem.

– Estou? – Os olhos dela se fecharam com força. – Estou mesmo?

Se depender dele, com certeza ela ficará.

As pálpebras dela abriram de novo.

– Eu sinto muito – disse com voz rouca.

Pelo quê?

– Por tudo. Tratá-lo como tratei. Ser quem eu sou. Você merece algo muito melhor. Eu sinto... sinto muito mesmo.

Por fim, sua voz se emudeceu, e quando começou a piscar, voltou a deitar a cabeça e colocou sua mão bem em cima do coração dele.

Era em momentos assim que desejava desesperadamente conseguir falar. Afinal, não tinha como mexer o corpo dela de lá para cá para que pudesse pegar seu maldito bloco de papel.

No final, apenas a segurou com cuidado porque isso era tudo o que tinha para oferecer.

E não ia confundir as coisas. Uma desculpa não era uma declaração de amor e nem sequer era necessária, pois já a tinha perdoado de qualquer jeito. Mesmo assim, aquilo o ajudou de alguma forma. Ainda havia uma longa distância do modo como tinha desejado que as coisas fossem entre eles, mas era mil vezes melhor que nada.

John puxou o lençol para cima, sobre o ombro dela, então deixou sua cabeça cair para trás. Olhando através da janela escurecida, seus olhos procuraram as estrelas que pontilhavam o denso, negro e aveludado céu noturno.

Engraçado, sentia como se o céu estivesse contra seu peito ao invés de acima de todo o mundo.

Xhex estava viva. E em seus braços. E ele a estava levando para casa.

Sim. De modo geral, as coisas poderiam ter sido muito piores.


CAPÍTULO 25

Lash refletiria mais tarde sobre o fato de você nunca saber com quem vai cruzar no caminho. Simplesmente nunca se sabe como uma simples decisão de virar à esquerda ou à direita numa esquina mudaria as coisas. Algumas vezes as escolhas não importam. Outras... levam você a lugares inesperados.

Contudo, naquele momento, não tinha percebido isso ainda. Estava apenas fora, no campo, dirigindo, pensando sobre o tempo.

Apenas naquele que dizia respeito ao passado recente.

– Quanto falta?

Lash olhou ao longo do interior do Mercedes. A prostituta que tinha escolhido em um beco no centro da cidade tinha boa aparência e silicone suficiente para fazer filmes pornôs, mas o vício em drogas a tinha deixado ossuda e encolhida.

Desesperada também. Tão viciada que tinha custado apenas cem dólares para colocá-la no Mercedes a caminho de uma “festa”.

– Não está longe – respondeu, voltando a focar a estrada.

Estava tremendamente desapontado. Quando imaginou aquela cena em sua cabeça, Xhex estava amarrada e amordaçada no banco traseiro... muito mais romântico. Em vez disso, estava preso àquela vadia. Mas não podia lutar contra a realidade em que vivia: precisava se alimentar, seu pai estava esperando para fazer negócios e encontrar Xhex ia exigir mais tempo do que poderia dispor.

Dentre a pior de todas as concessões estava aquela vadia que mal servia como humana: muito menos útil do que uma vampira, mas esperava que seus ovários trabalhassem a seu favor, quando chegasse a hora de chupar seu sangue.

O ponto principal era: não tinha sido capaz de encontrar alguém de sua espécie que vestisse uma saia.

– Sabe? – disse ela. – Eu costumava ser modelo.

– Sério?

– Em Manhattan. Mas, sabe, aqueles bastardos... não se importam nada com você. Só querem te usar, sabe?

Certo. Primeiro, ela precisava esquecer a expressão “sabe?”. E segundo, até parece que ela estava fazendo algo muito melhor por conta própria em Caldwell.

– Gosto do seu carro.

– Obrigado – ele murmurou.

Ela se inclinou, os seios juntando-se sobre o corselete cor-de-rosa que estava vestindo. A coisa tinha manchas de gordura dos lados, como se não tivesse sido lavado há vários dias e cheirava a cerejas falsas, suor e fumaça de crack.

– Sabe? Gosto de você...

A mão dela foi até a coxa dele e depois a cabeça dela caiu em seu colo. Quando sentiu que estava procurando algo em torno de seu zíper, pegou um pedaço do emaranhado cabelo loiro esbranquiçado e puxou-a para cima.

Ela nem percebeu a dor.

– Não vamos começar isso agora – disse ele. – Estamos quase lá.

A mulher lambeu os lábios.

– Claro. Está bem.

Os campos aparados dos dois lados da estrada estavam banhados pelo luar e as casas de madeira que pontilhavam o caminho brilhavam sob a luz branca. Na maioria das casas havia uma luz na varanda e isso era tudo. Por ali, qualquer coisa que acontecesse depois da meia-noite era beeeeeem depois da hora de dormir.

E isso fazia parte do motivo pelo qual fazia sentido ter um posto ali, na terra da torta de maçã quente e bandeiras americanas.

Cinco minutos depois, pararam na casa da fazenda e estacionaram perto da porta da frente.

– Não tem ninguém aqui – disse ela. – Somos os primeiros?

– Sim. – Inclinou-se para desligar o motor. – Vamos...

O som de um clique ao lado de sua orelha o congelou.

A voz da prostituta agora estava séria:

– Saia do carro, seu filho da mãe.

Lash girou a cabeça e quase deu um beijo de língua no cano de uma nove milímetros. Na outra ponta da arma, as mãos da prostituta estavam firmes como pedra e os olhos queimavam com o tipo de inteligência sagaz que ele tinha que respeitar.

Que surpresa, ele pensou.

– Saia. Agora – ela rosnou.

Ele sorriu lentamente.

– Já disparou essa coisa antes?

– Muitas. – Ela nem piscou. – E não tenho qualquer problema com sangue.

– Ah. Bom para você.

– Saia...

– Então, qual é o plano? Ordenar que eu saia do carro. Atirar na minha cabeça e me deixar morrer. Pegar o Mercedes, meu relógio e minha carteira?

– E o que tiver no porta-malas.

– Ah, você precisa de um pneu sobressalente? Sabe, você pode comprar um em qualquer loja da Firestone ou da Goodyear. Só para saber.

– Acha que eu não sei quem é você?

Oh, tinha plena certeza de que ela não tinha a menor ideia.

– Por que não me diz?

– Já vi este carro. Já o vi. Comprei suas drogas.

– Uma cliente. Que coisa boa.

– Saia. Agora.

Quando ele não se moveu, ela deslocou a arma um centímetro para o lado e puxou o gatilho. Quando a bala estourou a janela atrás dele, ficou irritado. Uma coisa era brincar nos arredores. Outra, causar danos à propriedade.

Quando ela moveu a ponta da arma de volta entre seus olhos, ele se desmaterializou.

Tomando forma do outro lado do carro, viu quando ela surtou em seu assento, olhando ao redor, os cabelos crespos voando de um lado a outro.

Pronto para lhe ensinar uma coisa ou duas, abriu com força a porta dela e arrastou-a pelo braço. Obter o controle da arma e também dela foi questão de um momento, apenas um pegar e um agarrar. E então estava enfiando a arma na parte de trás da sua cintura e segurando-a em seu peito com uma chave de braço.

– O que... O que...

– Você disse para eu sair do carro – disse ele em seu ouvido. – Então eu saí. – Seu corpo esguio parecia fraco como uma folha ao vento, nada além de um tremor em sua roupa barata de prostituta. Em comparação com as batalhas físicas que tinha com Xhex, aquilo era como um único suspiro lutando contra uma tempestade de furacões. Que entediante.

– Vamos entrar – murmurou, descendo a boca até sua garganta e passando uma presa sobre sua jugular. – O outro convidado da festa deve estar esperando por nós.

Quando conseguiu se afastar um pouco dele, virou o rosto e ele sorriu, exibindo seu equipamento. Seu grito incitou uma coruja em cima de um galho, e para garantir que ela parasse com aquela coisa tipo Hitchcock, deu um tapa em sua boca com a palma da mão livre e forçou-a em direção à porta da frente.

Dentro, o lugar cheirava à morte, graças à indução da noite anterior e todo o sangue nos baldes. No entanto, havia uma vantagem nos resíduos. Ao acender as luzes e a garota dar uma breve olhada na sala de jantar, ficou rígida de terror e então desmaiou.

Melhor assim. Colocá-la estendida e amarrada na mesa ficou bem mais fácil.

Após recuperar o fôlego, levou os baldes para a cozinha, lavou-os na pia, limpou as facas e desejou que o Sr. D ainda estivesse por perto para cuidar da porcaria daquele serviço.

Estava colocando o jato móvel da torneira de volta no lugar quando se deu conta que o redutor que tinham transformado na noite anterior não estava a vista.

Levando os baldes à sala de jantar, ajustou-os sob os pulsos e tornozelos da prostituta e, em seguida, fez uma rápida verificação no térreo. Quando tudo o que conseguiu foi um monte de vazio, correu até o segundo andar.

A porta do armário do quarto estava aberta e havia um cabide na cama de onde uma camisa tinha sido tirada. A ducha no banheiro tinha água fresca escorrendo pelas laterais.

Mas que droga é essa?

Como diabos aquele cara conseguiu ir embora? Não havia carro, então a única outra opção era caminhar pela pista. E depois pegar uma carona. Ou fazer uma ligação direta numa dessas caminhonetes de fazendeiros.

Lash desceu e descobriu que a prostituta tinha voltado a si e estava lutando contra a mordaça em sua boca, os olhos agitados enquanto se contorcia na mesa.

– Não vai demorar – disse a ela, percorrendo com o olhar suas pernas finas. Ela tinha tatuagens nas duas, mas eram uma bela bagunça com nenhum tema definido, apenas manchas aleatórias... algumas talvez pudesse identificar, outras ficaram arruinadas por outras tatuagens ruins que foram sobrepostas.

Muitas borboletas feitas em néon, ele supunha. Talvez tivesse sido esse o plano, afinal.

Andou ao redor, indo para a cozinha e depois voltando para a sala de jantar e descendo o corredor novamente. O som agudo de saltos batendo contra a mesa e o ranger de pele nua desapareceu à distância. Perguntava-se onde diabos estava o novo recruta e por que seu pai estava atrasado.

Meia hora depois, ainda tinha um monte de nada a fazer e enviou uma pequena mensagem mental para o outro lado.

Seu pai não respondeu.

Lash subiu e fechou a porta, pensando que talvez não estivesse se concentrando corretamente porque estava chateado e frustrado. Sentado na cama, colocou as mãos sobre os joelhos e se acalmou. Quando seu batimento cardíaco ficou lento e constante, respirou fundo, chamou novamente... e nada.

Será que tinha acontecido alguma coisa com o Ômega?

Com um fluxo de emoções precipitadas, decidiu ir para o Dhunhd por si mesmo.

Suas moléculas se dissolveram bem, mas, quando tentou retomar forma no outro plano de existência, foi bloqueado. Impedido. Negado.

Foi como bater numa parede sólida, e enquanto recuava de volta ao quarto imundo na casa da fazenda, seu corpo absorveu o choque de uma onda de náuseas.

Que. Droga.

Quando seu celular vibrou, arrancou-o do bolso do paletó e franziu a testa quando viu o número.

– Alô? – disse ele.

A gargalhada que chegou através do aparelho era jovial.

– Oi, seu desgraçado idiota. Aqui é seu novo patrão. Adivinha quem acabou de ser promovido? Aliás, seu pai diz para não incomodá-lo mais. Não fez nada bem em pedir mulheres a ele... você deveria conhecer seu pai melhor do que isso. Oh, e eu tenho que matá-lo agora. Vejo você em breve!

O novo recruta começou a rir. Aquele som perfurou a cabeça de Lash através da conexão, até que a chamada foi encerrada.

Pela outra parte.


Não estava grávida. Ao menos não que a doutora Jane soubesse.

Mas graças a uma cortesia daquela pequena e feliz pausa na cidade do pânico, Xhex não se lembrava de nada da viagem ao complexo. A ideia de que havia sequer uma chance de que pudesse estar...

Afinal, não estava usando seus cilícios... e seu propósito era matar as tendências sympatho nela, inclusive a ovulação.

O que será que ela fez?

Certo, chega de pensar nisso, precisava parar. Deus era testemunha de que já tinha o suficiente com que se preocupar na categoria do “acontecendo de verdade”.

Respirando fundo, inalou o cheiro de John e concentrou-se na batida forte e firme do seu coração. Não levou muito tempo para que o sono a levasse com força, a combinação da exaustão, da falta de energia após a alimentação e da necessidade de se retirar de sua vida por um tempo a carregou para um estado de sono profundo, sem sonhos, na parte traseira do carro.

Acordou com a sensação de ser levantada e seus olhos se abriram.

John estava levando-a através de algum tipo de área de estacionamento que, considerando as paredes e o teto cavernoso, tinha que ser subterrâneo. A porta de aço maciço foi aberta por Vishous, que parecia estar com uma disposição surpreendente para ajudar, e do outro lado... era um pesadelo.

O longo e anônimo corredor tinha ladrilhos claros no chão, as paredes eram de blocos de concreto e havia um teto baixo com luzes fluorescentes.

O passado começou a deslizar naquele lugar, o filtro da experiência anterior substituiu o que estava realmente acontecendo por um pesadelo lembrado. Nos braços de John, seu corpo foi de fraco a maníaco e ela começou a lutar contra o aperto que a envolvia, lutando para se libertar. A comoção foi instantânea, as pessoas vieram correndo em sua direção, um som alto como uma sirene estridente...

Quando sentiu vagamente que seu maxilar doía, percebeu que estava gritando.

E, de repente, tudo o que viu foi o rosto de John.

De alguma forma ele conseguiu girar seu corpo de modo a ficarem frente a frente, olhos nos olhos, as mãos envolviam suas laterais e seus quadris. Com a visão daquele corredor substituída por seu olhar azul, as garras do passado foram quebradas e ela foi capturada por ele.

Não disse nada. Apenas ficou quieto e permitiu que ficasse olhando para ele.

Era exatamente o que ela precisava. Ela se prendeu em seus olhos e os usou para fechar seu cérebro.

Quando ele assentiu, ela acenou de volta e John começou a avançar novamente. De vez em quando, seu olhar se afastava para verificar onde estavam indo, mas sempre retornava.

Sempre voltava.

Havia vozes e um monte de portas abrindo e fechando, e em seguida um monte de azulejos verde-claro: estava numa sala de exame, com um lustre de luzes múltiplas acima dela e todo tipo de suprimentos médicos em armários de vidro.

Quando John a colocou sobre a mesa, perdeu o controle novamente. Seus pulmões se recusavam a fazer seu trabalho, como se o ar estivesse envenenado e seus olhos se agitavam olhando ao redor, encontrando gatilhos que disparavam o pânico, como equipamentos, instrumentos e a mesa...

– Certo, vamos perdê-la novamente. – O tom da doutora Jane era implacavelmente equilibrado. – John, venha aqui.

O rosto de John voltou a se aproximar e Xhex se prendeu em seu olhar.

– Xhex? – A voz da doutora Jane vinha mais à esquerda. – Vou lhe dar um sedativo...

– Nada de drogas! – A resposta saiu de sua boca. – Prefiro estar aterrorizada... a estar impotente...

Sua respiração estava dolorosamente entrecortada e cada movimento impotente de suas costelas a convenciam de que a vida devia ser mais sofrimento que alegria. Houve muitos desses momentos, muitas vezes a dor e o medo haviam assumido o controle, muitas sombras que não apenas esconderam, mas sugaram toda a iluminação da noite onde ela existia.

– Deixe-me ir... deixe-me ir embora... – Quando os olhos de John se arregalaram, Xhex percebeu que tinha encontrado uma das facas dele, tinha desembainhado e estava tentando colocá-la na palma de sua mão. – Por favor, deixe-me ir... Eu não quero mais ficar aqui... Acabe com isso para sempre, por favor...

Os muitos corpos paralisados em torno dela a deixaram um pouco mais focada. Rhage e Mary estavam no canto. Rehv estava lá. Vishous e Zsadist. Ninguém falava ou se mexia sequer um centímetro.

John tomou a adaga da mão dela e isso foi o que a fez chorar. Porque ele não ia usá-la. Não contra ela. Não agora... nem nunca.

E não tinha forças para fazer isso sozinha.

De repente, uma emoção tremenda ferveu em suas entranhas, e quando a pressão se expandiu e cresceu dentro de seu corpo, olhou ao redor freneticamente enquanto prateleiras começavam a chacoalhar e o computador mais ao canto a saltar sobre a mesa.

No entanto John estava atento. E foi rápido. Começou a gesticular com o mesmo tipo de urgência que ela estava sentindo e, um instante depois, todos saíram.

Exceto ele.

Tentando desesperadamente não explodir, olhou para suas mãos. Tremiam tanto que eram como as asas de uma mosca... e foi ao olhar para elas que chegou ao fundo do poço.

O grito ressoou fora dela e o som era totalmente estranho, muito agudo e horrorizado.

John manteve-se firme. Mesmo quando gritou novamente.

Ele não iria a lugar algum. Não estava agitado. Estava apenas... ali.

Agarrando o lençol que a circulava, apertou a coisa em torno de seu corpo, muito consciente de que estava desmoronando, que a fissura tinha sido atingida por aquela viagem ao fundo do corredor e agora ela estava dividida. De fato, sentia como se houvesse duas de si na sala, a louca em cima da mesa gritando a plenos pulmões e chorando lágrimas de sangue... e uma calma e sã no canto, observando John e a si mesma.

Será que as duas partes se uniriam outra vez? Ou será que ficaria sempre assim, partida em pedaços?

Sua mente escolheu o personagem observador sobre a histeria e retirou-se para aquele lugar silencioso, onde assistiu a si mesma chorando ao ponto da asfixia. As manchas de sangue que corriam pelas faces brancas como papel não a deixaram enjoada e nem os loucos olhos arregalados ou as batidas epilépticas de seus braços e pernas.

Ficou triste pela situação da fêmea que havia sido levada a tal extremo. Que procurava manter-se distante de todas as emoções.

A fêmea tinha nascido sob uma maldição. A fêmea tinha praticado o mal e o mal foi feito a ela. A fêmea tinha se endurecido, sua mente e emoções tornaram-se aço.

A fêmea estava errada em se fechar, errada sobre aquela autocontenção.

Não era um caso de força, como sempre dizia a si mesma.

Era estritamente sobrevivência... e ela simplesmente não conseguia suportar mais.


CAPÍTULO 26

– Você fez... sexo. Com Eliahu Rathboone.

Gregg afastou Holly e encarou seu rosto, pensando que, com certeza, ela tinha perdido a cabeça... bem, perdeu o pouco do que tinha. Então, eram dois, porque estava claro que aquilo que tinha acabado de “ver” lá fora era fruto de sua imaginação.

Só que os olhos dela eram totalmente sinceros e sem malícia.

– Ele veio até mim. Eu já tinha adormecido...

Outra rodada de batidas na porta a interrompeu e, em seguida, veio a voz de Stan:

– Olá? Em que quarto vou...

– Mais tarde, Stan – Gregg interrompeu. Quando as queixas diminuíram, os passos no corredor se afastaram para o quarto de Holly e uma porta foi batida.

– Venha aqui – puxou Holly para a cama. – Sente-se e me diga... o que diabos acha que aconteceu?

Focou em seus lábios inchados enquanto ela falava.

– Bem, tinha acabado de sair do chuveiro. Estava exausta e deitei na cama para descansar meus olhos antes de vestir minha camisola. Devo ter adormecido... porque a próxima coisa que percebi foi que estava tendo aquele sonho...

Oh, pelo amor de Deus.

– Holly, só porque teve um pesadelo, não significa que...

– Eu não terminei – retrucou. – E não era um pesadelo.

– Pensei que estivesse em pânico.

– A coisa assustadora veio depois. – Arqueou uma sobrancelha. – Vai me deixar falar?

– Tudo bem. – Mas só pela esperança de que ela fizesse outra coisa com a boca mais tarde. Caramba, seus lábios pareciam deliciosos... – Faça isso.

– Comecei a sonhar que aquele homem tinha entrado em meu quarto. Era muito alto e musculoso... um dos maiores homens que já vi. Estava vestido de preto e ficou parado sobre a minha cama. Cheirava muito bem... e olhou para mim... – Sua mão envolveu seu pescoço e deslizou lentamente para baixo entre seus seios. – Tirei a toalha e puxei-o para cima de mim. Foi... indescritível....

Isso era bom. Porque de repente não queria ouvir mais nada sobre o que tinha acontecido em seguida.

– Ele me possuiu – mais daquela coisa de “mão no pescoço” – como eu nunca fui possuída antes. Ele era tão...

– ... bem dotado como uma mangueira de incêndio e a possuiu de doze maneiras diferentes? Parabéns. Seu subconsciente deveria dirigir um filme pornô. O que isso tem a ver com Eliahu Rathboone?

Holly o encarou... e depois puxou a gola da camisola para um lado:

– Porque quando acordei, eu tinha isso – apontou para o que certamente parecia ser um chupão no pescoço. – Eu realmente tive relações sexuais.

Gregg franziu a testa com força.

– Você... como sabe?

– Como acha que eu sei?

Gregg limpou a garganta.

– Você está bem? – Colocou a mão em seu braço. – Quero dizer... ah, quer chamar a polícia?

O riso de Holly foi baixo e dolorosamente sexy.

– Oh, foi consensual. Seja lá o que tenha sido. – Sua expressão perdeu o fulgor. – Esse é o ponto... não sei o que foi. Pensei que estivesse sonhando. Não achei que fosse real até que...

Até que encontrar uma evidência inegável de ter sido o contrário.

Gregg acariciou seus longos cabelos loiros por cima do ombro.

– Tem certeza de que está tudo bem?

– Acho que sim.

Cara, não precisou nem sequer de um segundo para decidir.

– Bem, é isso. Estamos indo embora amanhã.

– O quê? Oh, meu Deus, Gregg... não quero causar problemas... – Ela franziu a testa. – Talvez... talvez eu também tenha sonhado a parte em que acordei. Tomei outro banho... talvez nada disso tenha acontecido de verdade.

– Dane-se, vou ligar para Atlanta pela manhã e dizer a eles que voltamos atrás. Não vou ficar onde você não esteja segura.

– Meu Deus... quero dizer, isso é muito cavalheiro da sua parte, mas... eu não sei. Tudo está tão confuso, e agora eu me pergunto se simplesmente vou me sentir melhor de manhã. Estou realmente confusa... aquilo foi estranho. – Seus dedos se ergueram até suas têmporas e começou a esfregá-las em círculos, como se a cabeça estivesse doendo. – Vou dizer que o que aconteceu foi consensual, a cada passo do caminho...

– Sua porta estava trancada? – Queria uma resposta para a pergunta, mas também não precisava ouvir sobre o fantasma bem dotado.

– Sempre tranco a porta de um quarto de hotel antes de tomar um banho.

– Janelas?

– Fechadas. Acho que estavam trancadas. Não sei.

– Bem, você fica comigo esta noite. Estará segura aqui.

E não apenas porque não iria dar em cima dela agora. Levava uma arma. Sempre. Tinha licença para usar a coisa e sabia como fazer isso: quando as pessoas começaram a ser alvejadas no tráfego de Los Angeles, decidiu andar armado.

Juntos, estenderam-se sobre a cama.

– Vou deixar a luz acesa.

– Está tudo bem. Apenas tranque a porta.

Ele assentiu e saiu da cama, fechando o cadeado e também a pequena corrente, depois fez uma passagem rápida pelas janelas para inspecionar as travas. Quando deitou, ela se aninhou na curva de seu braço e suspirou.

Inclinou-se, tirou o edredom debaixo de suas pernas e o estendeu sobre eles, desligou a luz e se acomodou nos travesseiros.

Pensou no homem lá fora caminhando pelo jardim e quase rosnou. Mas. Que. Porcaria. Poderia ser um morador do local com uma chave-mestre ou algum funcionário que conseguiu forçar a fechadura.

Supondo que nada tivesse acontecido. Algo pelo qual tinha cada vez menos certeza...

Que seja. Estavam indo embora pela manhã e era isso.

Franziu a testa na escuridão.

– Holly?

– Sim?

– Por que você acha que foi Rathboone?

Ela deu um grande bocejo.

– Porque se parecia exatamente com o retrato na sala de estar.


CAPÍTULO 27

Na sala de exames, na clínica subterrânea, John estava em pé diante de Xhex e se sentiu totalmente impotente para ajudá-la. Quando ela se sentou gritando na mesa de aço inoxidável, seus braços tensos paralelos ao corpo, segurando no lençol, seu rosto esticado, seus lábios abertos, lágrimas vermelhas escorrendo de seus olhos e caindo em suas faces brancas... e ele não podia fazer nada sobre isso.

Sabia que ela estava passando por um território difícil. Sabia que não poderia alcançá-la no fundo do poço em que se encontrava – ele próprio já esteve numa situação assim. Sabia exatamente o que era tropeçar, cair e sofrer a agonia do duro impacto... mesmo que tecnicamente seu corpo não tenha ido a lugar algum.

A única diferença era que ela tinha uma voz para dar asas a sua dor.

Enquanto seus ouvidos zumbiam e seu coração se partia por ela, permaneceu firme contra a força do vendaval que ela emanava. Afinal, sabia que as palavras “estar aqui” e “ouvir” tinham significados muito próximos. Sendo sua testemunha naquele local, ele a ouvia e estava ali por ela, porque isso é tudo o que se pode fazer quando alguém desmorona.

Mas, Deus, doía ver o quanto ela sofria. Aquilo doía e o deixava mais focado. O rosto de Lash aparecia como um fantasma, adquirindo forma física no olhar mental de John. Enquanto ela gritava e gritava, jurou vingança até que seu coração não pulsasse mais com sangue, mas com a necessidade de vingança.

Então, Xhex respirou fundo várias vezes. E mais algumas vezes.

– Acho que já parei – disse com dificuldade.

Ele esperou um momento para ter certeza. Quando ela assentiu, pegou o bloco de papel e escreveu rapidamente.

Quando mostrou a folha para ela, seus olhos se voltaram para a escrita e precisou de algumas tentativas para entender o significado.

– Posso lavar o meu rosto antes?

Ele assentiu e foi até a pia de aço inoxidável. Deixando correr a água fria, pegou uma toalha limpa dentre uma pilha e a molhou. Quando Xhex estendeu as mãos, ele entregou a toalha úmida e assistiu enquanto ela a pressionava no rosto lentamente. Era difícil vê-la tão frágil comparado com o modo como a havia conhecido: forte, poderosa e destemida.

O cabelo dela havia crescido e começava e encaracolar nas pontas, sugerindo que se ela não o cortasse teria ondas de fios grossos. Deus, queria tocar aquela suavidade.

John baixou os olhos em direção à mesa e os arregalou de repente. O lençol estava retorcido embaixo dela... e havia uma mancha escura na toalha ao redor de seus quadris.

Ele inalou profundamente, sentiu o cheiro de sangue fresco e ficou surpreso de não ter percebido antes. Mas também, estava extremamente distraído.

Oh... Cristo. Ela estava sangrando...

Ele a tocou levemente nos braços e fez um movimento labial dizendo doutora Jane.

Xhex concordou e disse:

– Sim. Vamos acabar com isso.

Frenético, John se lançou pela porta da sala de exame. Fora, no corredor, havia uma legião de rostos preocupados, sendo a doutora Jane a líder do grupo.

– Ela está pronta para mim? – Quando John deu um passo para o lado e fez um gesto de urgência, a doutora avançou.

No entanto, ele a deteve. De costas para Xhex, gesticulou: Está machucada em algum lugar. Está sangrando.

A doutora Jane colocou a mão em seu ombro e fez uma manobra ao girá-lo para que trocassem de lugar.

– Eu sei. Por que não espera lá fora? Vou cuidar bem dela. Ehlena? Importa-se de me acompanhar? Vou precisar de mais duas mãos.

A shellan de Rehvenge foi para a sala de exame e John viu por cima da cabeça da médica quando a fêmea começou a lavar as mãos.

Por que Vishous não está ajudando?, gesticulou.

– Estamos apenas fazendo um ultrassom para nos certificarmos de que ela está bem. Não estou fazendo uma cirurgia ou coisa assim. – Jane sorriu de uma maneira profissional... o que foi estranhamente assustador. E, então, a porta foi fechada em seu rosto.

Olhou em volta para todos os outros. Todos os machos foram deixados no corredor. Apenas fêmeas estavam ali dentro com ela.

Sua mente começou a se agitar e não levou muito tempo para chegar a uma conclusão que não poderia estar certa.

Uma mão pesada pousou em seu ombro e a voz de V. soou baixa:

– Não, tem que ficar aqui fora John. Vamos lá.

Foi quando percebeu que sua mão havia agarrado a maçaneta da porta. Olhando para baixo, obrigou-se a soltar... e teve que enviar o comando mais duas vezes.

Não havia mais gritos. Nenhum som.

Ele esperou. E esperou. E caminhou e esperou um pouco mais. Vishous acendeu outra cigarrilha. Blay o acompanhou, acendendo um comum. Qhuinn tamborilava sobre suas coxas. Wrath acariciava a cabeça de George enquanto o golden retriever observava John com olhos marrons e bondosos.

Por fim, a doutora Jane colocou a cabeça para fora da porta e procurou por seu parceiro.

– Preciso de você.

Vishous apagou o cigarro na sola da bota e guardou a ponta no bolso de trás.

– Vamos entrar em cirurgia?

– Sim.

– Deixe-me trocar de roupa.

Quando o macho se dirigiu ao vestiário, o olhar da doutora encontrou o de John.

– Vou cuidar muito bem dela...

O que há de errado? Por que ela está sangrando?

– Vou cuidar dela.

E fechou a porta outra vez.

Quando V. retornou, tinha todo o aspecto de um guerreiro, mesmo estando sem as roupas de couro, e John esperava desesperadamente que a competência no campo de batalha do cara fosse igual na área médica.

Aqueles olhos de diamante brilharam e deu uma palmada no ombro de John antes de entrar silenciosamente na sala de exame... e era óbvio que agora funcionava como sala de cirurgia.

Quando a porta se fechou, John sentiu vontade de gritar.

Ao invés disso, continuou caminhando, indo e vindo no corredor. Indo e vindo. Indo... e vindo. Em dado momento, os outros se dispersaram, dirigindo-se a uma das salas de aula nas proximidades, mas não conseguiria juntar-se a eles.

Cada vez que passava pela porta fechada, aumentava o caminho a percorrer, até que a viagem o levou para a saída, para a garagem e depois de volta ao vestiário. Suas pernas longas consumiam a distância, transformando mais cinquenta metros no equivalente a poucos centímetros.

Ou pelo menos era o que parecia.

No que deveria ser sua quinta viagem ao vestiário, John deu uma volta e viu-se na frente da porta de vidro do escritório. A mesa, os armários e o computador pareciam normais de uma maneira implacável, e encontrou um extraordinário conforto nos objetos inanimados.

Mas a tranquilidade foi perdida quando continuou a andar outra vez.

Com sua visão periférica, viu as rachaduras na parede de concreto ao longo do caminho, as quais provinham de uma única fonte de impacto.

Lembrou-se da noite que tinha acontecido. Aquela noite horrível.

Ele e Tohr estavam sentados juntos no escritório, ele fazendo a lição da escola, o Irmão tentando manter a calma enquanto ligava para casa consecutivamente. Cada vez que Wellsie não atendia, toda vez que o correio de voz atendia, a tensão aumentava... até que Wrath apareceu com a Irmandade atrás dele.

A notícia de que Wellsie tinha morrido era trágica... mas Tohr reagiu apenas quando soube o “como”: não porque estava grávida de seu primeiro filho, mas porque um redutor a matou a sangue frio. Assassinou-a. Tirando sua vida e a de seu bebê.

Foi aquilo que causou aquelas marcas.

John se aproximou e passou as pontas dos dedos pelas finas linhas de concreto. A fúria foi tão intensa, Tohr literalmente explodiu como se fosse uma supernova, a sobrecarga emocional o desmaterializou para algum outro lugar.

John nunca soube para onde tinha ido.

Uma sensação de estar sendo observado o fez levantar a cabeça e olhar por cima do ombro. Tohr estava do outro lado da porta de vidro, em pé no escritório olhando-o fixamente.

Os olhares dos dois se encontraram e foi de macho para macho, não de mais velho para mais jovem.

John tinha uma idade diferente agora. E como tantas outras coisas naquela situação, aquilo não voltaria atrás.

– John? – A voz da Dra. Jane veio de longe no corredor e ele virou-se e correu para ela.

Como ela está? O que aconteceu? Ela está...

– Ela vai ficar bem. Está voltando da anestesia. Eu a manterei na cama pelas próximas seis horas mais ou menos. Soube que ela se alimentou de você? – Ele mostrou seu pulso e a doutora assentiu. – Bom. Eu agradeceria se você permanecesse com ela, para o caso dela precisar de novo.

Como se fosse estar em outro lugar.

Quando John entrou na sala de exame, avançou nas pontas dos pés, não queria perturbar ninguém, mas ela não estava ali.

– Foi movida para o outro quarto – V. disse por cima do aparelho de esterilização.

Antes de sair pela porta do fundo, ficou olhando o resultado do que foi feito com Xhex. Havia uma alarmante pilha de gazes ensanguentadas no chão e mais sangue na mesa sobre o espaço que ela ocupava. O lençol e a toalha que a envolviam estavam amassados de um lado.

Tanto sangue. E tão fresco.

John assobiou alto para que V. olhasse.

Alguém pode me dizer que diabos aconteceu aqui?

– Pode conversar com ela sobre isso. – Enquanto o Irmão pegava um saco laranja de lixo biológico e começava a recolher as gazes usadas, V. fez uma pausa, mas não encontrou o olhar de John. – Ela vai ficar bem.

E foi então que John teve certeza.

Por pior que imaginasse como ela tinha sido tratada, havia sido ainda pior. Muito pior.

Em termos gerais, quando havia lesões sofridas em combate ou em campo, a informação era passada sem tanta ponderação: fêmur quebrado, costelas esmagadas, facadas. Mas uma fêmea entrou, foi examinada sem machos presentes e ninguém falou uma palavra referente à intervenção cirúrgica?

Não é porque os redutores são impotentes que não podem fazer outras coisas com...

Uma brisa fria passou pela sala de cirurgia fazendo V. erguer a cabeça outra vez.

– Um conselho, John. Eu manteria as suposições para si. Concluindo que quer ser a pessoa que matará Lash, certo? Não faz sentido que Rehv ou os Sombras, por mais que eu os respeite, façam aquilo que é seu por direito.

Meu Deus, o Irmão era muito legal, John pensou.

Assentido uma vez com a cabeça, foi até o quarto de Xhex, pensando que aqueles machos não eram os únicos motivos pelo qual iria refletir profundamente sobre o assunto. Xhex também não precisava saber até onde estava disposto a chegar.


Xhex sentiu como se alguém tivesse estacionado um ônibus em seu útero.

A pressão era tanta, que levantou a cabeça para verificar se seu corpo havia inchado até as dimensões de uma garagem.

Não. Plano como sempre.

Deixou a cabeça cair outra vez.

De alguma maneira, não podia acreditar onde estava agora: no pós-operatório. Deitada em uma cama com suas pernas, braços e cabeça ainda imobilizados... e o vazamento em sua parede uterina estancado.

Quando estava sob os efeitos de sua fobia médica, não conseguia discernir o que seu cérebro marcava como mortal. Para ela, naquele estado enlouquecido, não estava em um ambiente seguro, mesmo rodeada de pessoas que conhecia e que podia confiar.

Agora, depois de ter passado pelo fogo, o fato de estar sã e salva lhe proporcionou uma estranha dose de endorfina.

Houve uma batida suave e sabia quem era pelo aroma que vinha por baixo da porta.

Tocando o cabelo, perguntou-se como diabos estaria sua aparência e decidiu que era melhor não saber.

– Entre.

A cabeça de John Matthew apareceu e suas sobrancelhas estavam erguidas como quem dissesse “como você está?”.

– Estou bem. Estou melhor. Ainda zonza por causa dos remédios.

John deslizou pela porta, entrou e se apoiou contra a parede, colocando as mãos nos bolsos e cruzando sua pesada bota sobre a outra. Sua camiseta era branca e simples, o que provavelmente era um bom sinal, considerando que já esteve manchada de sangue de redutor.

Cheirava como um macho deveria. Sabonete e suor limpo.

Tinha a aparência que um macho deveria ter. Alto, largo e mortal.

Deus, tinha mesmo perdido a cabeça daquele jeito na frente dele?

– Seu cabelo está mais curto – ela disse sem nenhuma razão específica.

Desvencilhou uma de suas mãos e acariciou o cabelo de maneira desajeitada. Com a cabeça inclinada para baixo, os poderosos músculos que vinham de seus ombros até seu pescoço se flexionavam sob sua pele dourada.

De repente, Xhex se perguntou se alguma vez voltaria a ter relações sexuais.

Foi um pensamento estranho, com certeza. Considerando como havia passado as últimas...

Ela franziu a testa.

– Por quantas semanas eu estive fora?

Ele sustentou quatro dedos e depois fez um movimento como um beliscão.

– Quase quatro?

Quando ele assentiu, ela endireitou cuidadosamente a dobra do lençol que passava por seu peito.

– Quase... quatro.

Bem, os humanos a prenderam por meses antes de conseguir escapar. Apenas quatro semanas deveria ser bem fácil de superar.

Ah, mas ela não estava pensando direito, estava? Não havia nada que “superar”. Tudo havia “acabado”.

– Quer sentar? – ela disse, indicando uma cadeira ao lado da cama. A coisa era padronizada e tradicional, o que significava que era tão confortável quanto uma facada, mas não queria que ele saísse.

As sobrancelhas de John se ergueram novamente e ele concordou com a cabeça enquanto se aproximava. Acomodando seu enorme corpo no pequeno assento, tentou primeiro cruzar as pernas na altura dos joelhos e depois na dos tornozelos. Terminou sentando estirado, com suas botas debaixo da cama e seus braços sobre o encosto da cadeira.

Ela brincou com o maldito lençol.

– Posso perguntar uma coisa?

Com sua visão periférica, ela o viu assentir, depois se endireitar e pegar um bloco de papel e sua caneta no bolso de trás.

Clareando a garganta, imaginava como exatamente expressar sua pergunta.

No final, se rendeu e fez isso como se fosse algo impessoal.

– Onde Lash foi visto pela última vez?

Ele assentiu e se inclinou sobre o papel, escrevendo rapidamente. Enquanto suas palavras tomavam forma na página branca, ela o observou... e percebeu que não queria que ele fosse embora. Ela o queria ali, sempre ao seu lado.

Segura. Ela estava realmente segura com ele por perto.

Ele se endireitou e estendeu o papel. Então pareceu congelar.

Por alguma razão, ela não conseguia focar no que tinha escrito e se esticou.

John baixou o braço lentamente.

– Espere, ainda não li. Você poderia... o quê? O que há de errado? – Maldição, agora seus olhos se recusavam a vê-lo claramente.

John se inclinou para um lado e ela ouviu um suave som de papel. Depois um lenço foi dado a ela.

– Oh, pelo amor de Deus. – Pegou o que ele ofereceu e pressionou contra os dois olhos. – Odeio ser uma garota. Realmente desprezo ser uma garota.

Quando começou um discurso sobre estrogênio, saias, esmalte rosa e sobre malditos saltos altos, John entregava um lenço seguido de outro, recolhendo os manchados de vermelho que ela ia usando.

– Eu nunca choro, sabia? – Ela o encarou. – Nunca.

Ele assentiu. E colocou outro maldito lenço em sua mão.

– Jesus Cristo. Primeiro eu dou um ataque de gritos, agora choro sem sentido. Poderia matar o Lash só por isso.

Um sopro de vento gelado entrou no quarto e Xhex olhou para John... apenas para recuar. Havia passado de compassivo para sociopata em uma fração de segundos. Ao ponto de ela ter quase certeza de que ele não havia percebido que tinha liberado suas presas.

Sua voz tornou-se um sussurro, e o que ela realmente queria perguntar saiu:

– Por que você ficou? Na sala de operação, mais cedo. – Desviou o olhar, focando-se nas manchas vermelhas que havia feito no lenço que tinha acabado de usar. – Você ficou e você... simplesmente parecia compreender.

No silêncio que se seguiu, deu-se conta de que conhecia muito bem o contexto de sua vida: com quem morava, o que ele fazia no campo de batalha, como lutava, onde passava seu tempo. Mas não sabia nada específico. Seu passado era um buraco negro.

E por alguma razão desconhecida, precisava de iluminação sobre isso.

Caramba, sabia exatamente o porquê: naquele incandescente horror que enfrentou na sala de operações, a única coisa que a ligava à terra tinha sido ele e era estranho, mas sentia-se ligada a John de uma maneira vital agora. Ele a viu em seu pior estado, em seu momento mais fraco e mais insano e não desviou o olhar. Não fugiu, não julgou e não se queimou.

Era como se o calor de sua fusão os derretesse juntos.

Isso era mais que emoção. Era uma questão de alma.

– Que inferno aconteceu com você John? No seu passado?

Suas sobrancelhas se estreitaram com força e seus braços foram cruzados sobre seu peito como se agora fosse ele quem tentasse descobrir como se expressar. Mas sua grade emocional de repente se iluminou com todo tipo de coisas obscuras e ela teve a impressão de que ele estava pensando em escapar.

– Olha, não quero pressioná-lo. – Droga. Que droga. – E se quer negar que não houve nada além de ótimo em sua vida, vou aceitar e seguir em frente. Mas é só que eu... a maioria das pessoas teria pelo menos vacilado. Que inferno. Até a doutora Jane me tratou com uma dose extra de cuidado depois que enlouqueci. Mas você? Apenas ficou firme. – Encarou seu rosto tenso e fechado. – Olhei dentro de seus olhos, John, e havia mais do que uma compreensão hipotética neles.

Depois de uma longa pausa, ele virou uma nova página em branco do bloco e escreveu com rapidez. Quando mostrou o que tinha escrito, conseguia entender o lado dele, mas quis soltar um palavrão:

Diga-me o que eles fizeram na sala de operações. Diga-me primeiro o que havia de errado com você.

Ah, sim o clássico toma lá, dá cá.


Só levou cerca de uma hora para Lash transportar a si mesmo, a prostituta e o Mercedes da fazenda de volta à casa na cidade. Estava em pleno modo de sobrevivência, se movendo rápida e decisivamente, fazendo apenas uma parada no caminho.

E esta parada foi em uma cabana na floresta onde pegou alguns itens importantes para a missão.

Quando entrou na garagem da casa, esperou até que a porta estivesse fechada para sair e arrastar a prostituta do banco traseiro. Enquanto carregava seu corpo retorcido até a cozinha, lançou uma boa dose daquilo com que havia aprisionado Xhex.

Contudo, a barreira mágica não era para a siliconada.

O Ômega sabia onde estavam seus redutores deste lado. Podia senti-los como um eco de sua própria existência. E seguindo essa linha de raciocínio, assassinos poderiam encontrar seus colegas com facilidade e acertar as contas.

Então a única chance que Lash tinha de se esconder era encarcerar a si mesmo. O Sr. D não sabia que Xhex estava naquele quarto. A confusão era óbvia todas as vezes que o mandava deixar comida lá.

Claro, a grande questão era se a camuflagem manteria Ômega à distância. E por quanto tempo.

Lash jogou a prostituta dentro do banheiro com o cuidado e preocupação que teria demonstrado com uma mochila barata cheia de roupa suja. Quando ela aterrissou com força na banheira e gemeu contra a fita adesiva sobre a boca, ele voltou ao carro.

Tirar as coisas do carro levou aproximadamente vinte minutos e colocou a porcaria toda no chão de concreto: sete armas de cano longo. Uma sacola de mercado cheia de dinheiro. Um quilo e meio de explosivo plástico C4. Dois detonadores remotos. Uma granada de mão. Quatro automáticas. Munição. Munição. Munição.

Ao chegar às escadas e apagar a luz do porão, foi até à porta dos fundos, abriu-a e colocou a mão para fora. O ar fresco noturno infiltrou o escudo, mas sua mão sentiu a restrição. Era forte... mas precisava ser ainda mais forte.

Olááá, vadiazinha assustada.

Lash fechou a porta, trancou e foi para o banheiro.

Estava muito concentrado ao sacar sua faca, cortar as ataduras dos pulsos dela e...

Ela se debateu até que Lash precisou dar um golpe em sua cabeça, nocauteando-a com força. Corta. Corta. Corta. Fez três cortes profundos em seus pulsos e pescoço e sentou para observar o sangue escorrer num lento gotejar.

– Vamos lá... sangre, vadia, sangre.

Quando olhou seu relógio, pensou que talvez deveria tê-la mantido consciente, porque isso garantiria um pulsar maior na pressão sanguínea. E encurtaria aquele espera inútil enquanto ela sangrava.

Observando o processo, não tinha ideia do quanto ainda tinha que sangrar, mas a piscina vermelha embaixo dela aumentava e seu corpete rosa começava a escurecer.

O pé da Lash batia no chão a mil por hora enquanto o tempo passava... e então percebeu que a pele dela não estava apenas pálida, mas cinza, e o sangue já não estava aumentando nas paredes da banheira. Dando o assunto por encerrado, cortou o pequeno corpete, expondo um horrível par de implantes, e lhe abriu o peito com um golpe da faca, enterrando a lâmina diretamente em seu peito.

O próximo corte foi em sua própria carne.

Segurando seu pulso sobre o buraco que havia aberto, viu gotas pretas caírem sobre o coração imóvel. Bem, não tinha certeza do quanto deveria dar e preferiu errar pelo excesso. Em seguida, concentrou energia em sua mão. Lash forçou as moléculas do ar a girar formando um tornado, até que transformou essa unidade num poder cinético que podia controlar.

Lash olhou para a prostituta, seu corpo todo violado, a maquiagem borrada em sua face; o cabelo asqueroso era mais uma peruca do que algo que se esperava ver nas ruas.

Precisava que aquilo funcionasse. Apenas manter a barreira mágica e uma pequena bola de fogo em sua mão já drenava muito de sua energia.

Aquilo precisava muito funcionar.

Lançou uma explosão que fez a cavidade torácica e os pulmões mortos se sacudirem como cauda de peixe contra as laterais da banheira. Quando o brilho da luz se apagou e dispersou, ele esperou... rezando para...

O suspiro que ela liberou foi horrível. E também uma dádiva.

Ficou fascinado quando o coração começou a bombear e o sangue negro foi absorvido pela carne aberta da caixa torácica, aquela reanimação fez com que seu pênis se contraísse de excitação. Isso era poder, pensou. Dane-se as porcarias que o dinheiro podia comprar.

Era mesmo um deus, assim como seu pai.

Lash sentou-se sobre os calcanhares e olhou a cor retornar à pele dela. Enquanto a vida retornava, sua mão se curvou contra a borda da banheira e a musculatura atrofiada de suas coxas tremeu.

O próximo passo era algo que não entendia completamente, mas que não questionaria. Quando ela parecia estar definitivamente voltando ao mundo dos vivos, ele estendeu as mãos e arrancou o coração do peito dela.

Mais arfadas. Mais engasgos. Blá, blá, blá.

Estava fascinado com o que tinha realizado, especialmente quando colocou a palma de sua mão sobre o peito dela e ordenou que a carne se reparasse por conta própria. E veja só, toda sua pele e ossos obedeceram e ela estava mais uma vez como era antes.

Só que melhor. Porque era útil para ele agora.

Lash estendeu a mão e ligou a ducha, o jato de água golpeou o corpo e rosto da mulher, seus olhos piscaram contra a chuva fria, suas mãos se agitavam de maneira deplorável.

Quanto tempo esperaria agora? Quanto tempo até que pudesse ver se estava mesmo a um passo mais próximo do que realmente o sustentaria?

Uma onda de esgotamento subiu por sua coluna vertebral e enevoou seu cérebro, e então ele caiu sobre os gabinetes que havia embaixo da pia. Fechando a porta com um chute, apoiou os antebraços sobre os joelhos e continuou testemunhando a prostituta se agitar.

Tão fraco.

Extremamente fraco.

Deveria ter sido sua Xhex. Deveria ter feito isso com ela e não com uma prostituta humana qualquer.

Colocando as mãos no rosto, baixou a cabeça enquanto a euforia o abandonava. Não era para ser assim. Não era isso que tinha planejado.

Fugindo. Sendo caçado. Debatendo-se no mundo.

Que diabos iria fazer sem seu pai?


CAPÍTULO 28

Enquanto John esperava Xhex responder à sua pergunta, concentrou-se nas palavras que tinha escrito, traçando-as com a caneta, escurecendo-as enquanto passava a caneta sobre elas outra vez.

Provavelmente não deveria estar fazendo perguntas, considerando o estado dela, mas precisava de algo em troca. Se fosse se despir, iria expor seus segredos não muito legais. Não poderia ser o único a ficar nu daquele jeito.

E também queria muito saber o que estava acontecendo com ela, e Xhex era a única que poderia dizer isso a ele.

Quando o silêncio continuou, tudo o que conseguia pensar era... droga, ela estava fechando a porta na cara dele. De novo. De certa forma, não era uma surpresa tão grande assim, então não deveria se importar. Deus era testemunha de que já tinha sido rejeitado por ela muitas vezes.

A realidade era que parecia outra morte a ser encarada...

– Vi você. Ontem.

A voz dela fez com que erguesse a cabeça.

O quê?

– Ele me manteve presa naquele quarto. Vi você. Entrou e foi até a cama. Foi embora com um travesseiro. Eu estava... ao seu lado durante todo o tempo em que esteve lá.

A mão de John se ergueu até seu próprio rosto e ela sorriu um pouco.

– Sim, eu toquei seu rosto.

Jesus Cristo...

Como?

– Não tenho certeza exata de como ele fez isso. Mas foi como conseguiu me capturar no primeiro momento. Estávamos todos naquela caverna, onde Rehv estava sendo mantido na colônia. Os sympathos entraram e Lash me pegou... tudo aconteceu tão rápido. De repente, fiquei sem equilíbrio e comecei a ser arrastada, mas não conseguia lutar e ninguém conseguia me ouvir gritando. É como um campo de força. Se você está dentro e tenta violá-lo, o choque é doloroso e rápido... só que é mais que uma simples aversão. Há uma barreira física. – Ergueu sua mão e empurrou o ar. – Uma trama. No entanto, a coisa mais estranha é que pode haver outras pessoas no mesmo espaço. Como quando você entrou.

John percebeu vagamente que suas mãos doíam por alguma razão. Olhando abaixo, viu que as havia fechado sobre os punhos e que o bloco de papel estava perfurando a carne. Assim como a caneta com a qual estava escrevendo.

Virando uma nova página, rabiscou:

Gostaria muito de saber que você estava lá. Teria feito alguma coisa. Juro que não sabia.

Quando leu o que tinha escrito, Xhex o alcançou e colocou uma das mãos em seu antebraço.

– Eu sei. Não é sua culpa.

Mas parecia. Ter estado bem ali com ela e não ter nem ideia de que estava...

Oh. Droga.

Escreveu rápido, depois mostrou.

Ele voltou? Depois que estivemos lá?

Quando Xhex balançou a cabeça, seu coração começou a bater de novo.

– Passou por lá dirigindo, mas não parou.

Como você escapou?, gesticulou com as mãos, sem pensar.

Enquanto procurava por uma nova página, ela disse:

– Como eu saí? – Quando ele assentiu, ela riu. – Sabe, vai ter que me ensinar a linguagem de sinais.

Ele piscou. Então fez com a boca: certo.

– E não se preocupe. Aprendo rápido. – Respirou profundamente. – A barreira foi forte o suficiente para me prender ali desde o momento em que me capturou. Mas, então, você foi até lá e saiu e... – Ela franziu a testa. – Foi você quem fez aquilo com aquele assassino lá embaixo?

Quando suas presas apareceram na boca, ele respondeu: Pode apostar.

O pequeno sorriso dela pareceu afiado como uma adaga.

– Bom trabalho. Eu ouvi a coisa toda. Enfim, foi depois que tudo silenciou que soube que tinha de sair dali ou...

Morreria, ele pensou. Por causa do que havia feito naquela cozinha.

– Então, eu fui...

Ele ergueu a mão para detê-la, então escreveu rapidamente. Quando mostrou as palavras, ela franziu a testa e, em seguida, balançou a cabeça.

– Oh, mas é claro que você não teria feito se soubesse que eu estava lá. Mas não sabia. E soou como se não pudesse evitar. Confie em mim, sou a última pessoa com quem precisa se desculpar pelo massacre de um daqueles bastardos.

Verdade, mas ainda suava frio ao pensar em como, inadvertidamente, a colocou em perigo.

Ela inalou profundamente outra vez.

– De qualquer maneira, depois que você saiu, parecia que a barreira estava enfraquecendo, e quando consegui esmurrar uma janela com meus punhos, soube que tinha uma chance. – Levantou uma de suas mãos e olhou para os dedos. – Eu acabei correndo para conseguir um impulso e atravessar a porta. Achei que ia precisar da força extra que havia em mim e estava certa.

Xhex se mexeu na cama, estremecendo.

– Acho que foi quando consegui o rompimento. No meu interior. Eu me machuquei bastante fugindo... foi como puxar meu corpo através de um concreto prestes a secar. Também bati muito forte na parede do corredor.

Sentiu a tentação de acreditar que os machucados que viu na pele dela foram resultado de sua fuga. Mas conhecia Lash. Olhou a crueldade no rosto do cara vezes o suficiente para ter certeza absoluta de que ela tinha passado por muita coisa nas mãos do inimigo.

– Foi por isso que precisei ser operada.

A declaração foi expressa de forma clara e equilibrada. Mas ela não encontrou seus olhos.

John virou uma nova página, escreveu cinco letras em maiúsculo e colocou um ponto de interrogação. Quando virou o bloco, ela mal olhou o MESMO?

Aquele olhar cinzento se afastou e se prendeu num canto afastado.

– Podia ter sido uma lesão que sofri quando lutei com ele. Mas não tive uma hemorragia interna assim antes de sair, então... por aí você deduz.

John exalou e pensou naquelas paredes riscadas e manchadas que vira naquela sala. O que escreveu em seguida o machucou.

Quando ela olhou para o que tinha escrito na página, a expressão de seu rosto se estreitou ao ponto do anonimato. Era como se estivesse olhando para uma estranha.

Ele olhou para as suas palavras: O quanto foi ruim?

Não deveria ter perguntado, pensou. Tinha visto a condição em que se encontrava. Tinha ouvido Xhex gritar na sala de operação e estava bem na frente dela quando teve um colapso nervoso. O que mais precisava saber?

Estava escrevendo um “me desculpe” quando ela falou com uma voz fina:

– Foi... normal... quero dizer...

Seus olhos fixaram-se em seu perfil e desejou que ela continuasse.

Xhex clareou a garganta.

– Não gosto de enganar a mim mesma. Não serve para nada. O fato de que se eu não saísse morreria em breve estava muito claro. – Balançou a cabeça lentamente para trás e para frente no travesseiro branco. – Estava ficando extremamente fraca por falta de sangue e por causa das lutas. Acontece que, na verdade, eu não tinha problemas com a parte de morrer. Ainda não tenho. A morte nada mais é que um processo, embora normalmente doloroso. Uma vez que está acabado e feito? Tudo bem, porque você não existe mais e toda a porcaria acabou.

Por alguma razão, o fato de estar tão indiferente o deixou ansioso e teve que se reacomodar na cadeira para evitar andar pelo quarto.

– Se foi ruim? – ela murmurou. – Sou uma lutadora por natureza. Então, até certo ponto, não foi nada especial. Nada com que eu não pudesse lidar. Quero dizer, sou forte. Perdi o controle na clínica porque odeio coisas relacionadas a médicos, e não por causa de Lash.

O passado dela, ele pensou.

– Vou lhe dizer uma coisa. – Seus olhos voltaram a encará-lo e ele se afastou diante do calor em seu olhar. – Sabe o que será ruim? O que fará com que as três últimas semanas tornem-se insuportáveis? Se eu não matá-lo. Isso será insuportável para mim.

O macho vinculado dentro de John rugiu, a ponto de se perguntar se Xhex sabia que ele não seria capaz de deixá-la dar um fim no desgraçado: machos protegem suas fêmeas. É a lei universal quando se é um homem de verdade.

Além disso, a ideia de ela ir a qualquer lugar perto daquele cara deixava John enlouquecido. Lash já a tinha sequestrado uma vez. E se ele usasse aquela porcaria que tinha o efeito de uma capa mágica de novo?

Não teriam uma segunda chance de resgatá-la. De jeito nenhum.

– Então – disse ela –, contei o meu segredo. Sua vez.

Certo. Tudo bem.

Agora era ele quem estava olhando para aquele canto distante. Jesus Cristo. Por onde começar.

Virou uma nova página em seu bloco, colocou a caneta para baixo e...

Um monte de nada veio a ele. O problema era que havia muita coisa para escrever, muito para dizer e não é que aquilo se mostrou muito deprimente?

Uma batida na porta fez com que a cabeça dos dois virasse.

– Maldição – disse ela baixinho. – Dê-nos um minuto!

O fato de que havia alguém esperando por uma audiência do outro lado da porta não o deixava exatamente disposto a compartilhar seus sentimentos. Isso, juntamente com a barreira da comunicação e sua tendência inata de se fechar, fez sua cabeça zumbir.

– Quem quer que seja, por mim, pode ficar fora a noite toda e durante todo o dia também. – Alisou o cobertor sobre seu estômago. – Quero ouvir o que você tem a dizer.

Engraçado, isso foi o que o desbloqueou, e então escreveu rapidamente:

Seria mais fácil mostrar.

As sobrancelhas se estreitaram quando leu isso e, então, acenou com a cabeça.

– Tudo bem. Quando?

Amanhã à noite. Se você tiver autorização para sair.

– Encontro marcado. – Levantou a mão... e a colocou levemente sobre seu antebraço. – Quero que saiba...

A nova batida que a interrompeu fez com que os dois amaldiçoassem.

– Precisamos de um minuto! – exclamou antes de se concentrar nele outra vez. – Quero que saiba... que pode confiar em mim.

John sustentou seu olhar e se viu imediatamente transportado para outro plano de existência. Poderia ser o céu outra vez. Quem sabia ou se importava? Tudo o que sabia era que havia apenas ela e ele juntos, o resto do mundo se afastava numa névoa.

Seria possível se apaixonar por alguém duas vezes?

– Que diabos você está fazendo aí?

A voz de Rehv do outro lado da porta quebrou o momento, mas não o apagou.

Nada jamais poderia, John pensou, enquanto ela se afastava e ele se levantava.

– Entre, idiota – ela retrucou.

No instante em que o macho de moicano entrou no quarto, John sentiu a mudança no ar e soube, quando se entreolharam e ficaram em silêncio, que estavam se comunicando como os sympathos faziam.

Para dar-lhes privacidade, dirigiu-se para a porta, e quando estava saindo, Xhex disse:

– Você vai voltar?

No início, pensou que ela estava falando com Rehv, mas então o macho agarrou seu braço e o deteve.

– Meu amigo? Você vai voltar?

John olhou para a cama. Esqueceu seu bloco e a caneta no pequeno criado mudo, então apenas acenou com a cabeça.

– Logo? – Xhex disse. – Porque não me sinto cansada e quero aprender a linguagem de sinais.

John assentiu com a cabeça novamente e depois bateu uma mão fechada contra outra de Rehvenge antes de sair da sala de operações.

Enquanto caminhava pelas macas vazias, estava contente por V. ter terminado a limpeza e não estar por perto. Pois mesmo que sua vida estivesse em jogo, John não conseguiria esconder o sorriso em seu rosto.


Em silêncio, Blay caminhou lado a lado com Qhuinn através do túnel subterrâneo que ficava entre o centro de treinamento e o saguão de entrada da mansão.

Os sons de seus dois pares de botas de combate se misturavam, mas isso era tudo. Nem ele nem Qhuinn diziam nada. E não havia nenhum contato.

Absolutamente nenhum toque.

Um tempo atrás, antes de se declarar para o cara, antes das coisas terem ido por água abaixo entre eles, Blay simplesmente teria perguntado no que Qhuinn estava pensando, porque era evidente que estava fervilhando com alguma coisa. Agora, porém, o que poderia ser apenas um comentário qualquer, pareceria uma intromissão inadequada.

Quando passaram pela porta escondida sob a escadaria da mansão, Blay começou a temer o resto da noite.

Claro, não havia passado muito tempo, mas duas horas poderiam parecer uma vida sob as circunstâncias corretas. Ou erradas, como era o caso.

– Layla deve estar esperando por nós – disse Qhuinn enquanto ia para o pé da escada.

Oh... excelente. Justamente o tipo de diversão que não estava procurando.

Depois de ter visto a maneira como a Escolhida olhou para Qhuinn, simplesmente não sentia vontade de olhar aquele monte de paixonite tímida outra vez. Ainda mais naquela noite. Era curioso como a quase perda de Xhex o tinha deixado ferido.

– Você vem? – Qhuinn perguntou, sua testa franzida puxava o piercing na sobrancelha esquerda.

Blay baixou o olhar em direção ao aro que rodeava o lábio inferior do cara.

– Blay? Você está bem? Olha, acho que precisa se alimentar, amigo. Tem acontecido muita coisa ultimamente.

“Amigo”... Cristo, odiava essa palavra.

Mas dane-se, precisava superar a tensão.

– Sim. Claro.

Qhuinn olhou para ele de uma maneira estranha.

– Meu quarto ou o seu?

Blay riu de maneira áspera e começou a subir as escadas.

– Isso realmente importa?

– Não.

– Exatamente.

Quando chegaram ao segundo andar, passaram pelo escritório de Wrath, as portas estavam fechadas e desceram o corredor de estátuas.

Chegaram primeiro ao quarto de Qhuinn, mas Blay continuou andando, pensando que algo poderia finalmente ser em seu território, sob seus termos.

Abrindo a porta larga, deixou a coisa como estava e ignorou o som de um clique suave, quando Qhuinn os fechou lá dentro.

No banheiro, Blay foi até a pia, abriu a torneira e se inclinou, espirrando água em seu rosto. Estava se enxugando quando sentiu o perfume de canela e sabia que Layla tinha chegado.

Apoiando as mãos sobre o mármore, inclinou-se sobre os braços e se encurvou. Lá fora, em seu quarto, ouviu as vozes se misturando, a mais baixa e a mais alta, revezando alguns momentos.

Jogando a toalha no chão, virou-se e começou a observar a dança: Qhuinn estava na cama, de costas contra a cabeceira, as botas cruzadas, os dedos cruzados sobre o grande peitoral, enquanto sorria à Escolhida. Layla estava corada ao ficar perto dele, os olhos sobre o tapete, suas mãos menores e delicadas se torciam frente a ela.

Quando Blay chegou, os dois olharam para ele. A expressão de Layla não se alterou. A de Qhuinn, porém, se fechou com força.

– Quem vai primeiro? – Blay perguntou, aproximando-se deles.

– Você – Qhuinn murmurou. – Você vai.

Blay não estava disposto a saltar sobre a cama, então foi até a espreguiçadeira e sentou. Layla vagou em sua direção e caiu de joelhos diante dele.

– Senhor – disse ela, oferecendo-lhe o pulso.

A TV foi ligada e os canais foram sendo trocados quando Qhuinn começou a clicar com o controle em direção à tela. Parou no canal Spike, vendo a reprise de um campeonato de vale tudo onde lutavam Hughes e Penn.

– Senhor? – Layla disse.

– Perdoe-me. – Blay inclinou-se, pegando seu fino antebraço, segurando com firmeza, mas sem muita pressão. – Agradeço sua dádiva.

Perfurou tão delicadamente quanto pôde e estremeceu quando ela saltou ligeiramente. Teria recolhido as presas para pedir desculpas, mas isso exigiria outro furo, então voltou a sugar sua veia.

Enquanto se alimentava, seus olhos se moveram para a cama. Qhuinn estava absorto na luta, sua mão direita levantada e fechada num punho.

– Caramba – o cara murmurou. – É disso que estou falando!

Blay se concentrou no que estava fazendo e terminou rapidamente. Quando soltou, olhou para o rosto adorável de Layla.

– Você foi muito graciosa, como sempre.

Seu sorriso era radiante.

– Senhor... é uma alegria servi-lo, como sempre.

Estendeu a mão e ajudou-a a levantar, aprovando sua graça inata. E, Deus, a força que ela lhe deu não era nada menos que miraculosa. Até mesmo depois de terminar podia sentir aquilo o energizando, sua cabeça parecia estar em névoas, uma vez que seu corpo estava focando aquilo que tinha sido dado a ele.

O que Layla tinha lhe dado.

Qhuinn ainda estava muito ligado na luta, suas presas arreganhadas, não para Layla, mas para quem estava perdendo. Ou ganhando. Ou seja lá como fosse.

A expressão de Layla se desvaneceu em uma resignação que Blay conhecia muuuito bem.

Blay franziu a testa.

– Qhuinn. Vai se alimentar?

Os olhos díspares de Qhuinn se mantiveram na tela até o árbitro terminar a disputa, então suas íris azul e verde recaíram sobre Layla. Em um impulso sensual, o cara se moveu na cama, abrindo espaço para ela.

– Venha cá, Escolhida.

As três palavras, acompanhadas por aquele olhar de pálpebras baixas, foram um golpe baixo para Blay... O problema era que Qhuinn não estava olhando Layla de nenhuma maneira especial. Ele era assim.

Sexo em cada respiração, cada batida, cada movimento.

Layla parecia sentir o mesmo, pois suas mãos esvoaçavam serpenteando ao redor de sua vestimenta, primeiro indo para o laço e depois para as lapelas.

Por alguma razão, Blay percebeu pela primeira vez que estava completamente nua sob as dobras brancas.

Qhuinn estendeu a mão e a palma de Layla tremia ao colocá-la contra aquela que lhe era oferecida.

– Está com frio? – perguntou ele, sentando-se. Era possível ver o contorno de seu abdômen definido debaixo da camiseta justa.

Quando negou com a cabeça, Blay entrou no banheiro, fechou a porta e ligou o chuveiro. Após tirar a roupa, ficou sob o jato e tentou esquecer tudo o que estava acontecendo em sua cama.

O que foi bem sucedido apenas quando tirou Layla da imagem.

Seu cérebro ficou preso numa fantasia onde ele e Qhuinn estavam estendidos juntos, bocas nos pescoços um do outro, presas rompendo a superfície da pele aveludada, corpos...

Era muito comum aos machos ficarem eretos após a alimentação. Especialmente quando pensavam em todo tipo de coisas para fazer estando nu. E o sabonete não ajudava.

E nem as imagens do que viria após os dois penetrarem as gargantas.

Blay plantou a palma de uma de suas mãos no mármore liso e a outra sobre seu pênis rígido.

O que fez foi rápido e tão gratificante quanto um pedaço de pizza fria: bom, mas não chegava nem perto de uma refeição de verdade.

O segundo passeio ao parque de diversões não melhorou a situação e recusou seu corpo a chance de um terceiro. Pois, fala sério. Que bizarro. Qhuinn e Layla estavam cuidando de suas vidas do outro lado da porta, enquanto ele ficava todo ofegante debaixo da água quente? Que droga.

Saindo, enxugou-se, colocou o roupão e percebeu que não tinha nada para vestir. Quando virou a maçaneta da porta, rezou para que as coisas estivessem como ele as havia deixado.

E estavam, muito obrigado, Virgem Escriba: Qhuinn tinha a boca no outro pulso de Layla e tomava o que precisava daquela Escolhida ajoelhada ao seu lado.

Nada abertamente sexual.

O alívio que se fixou no peito de Blay o fez perceber o quanto estava nervoso... e não apenas por isso, mas por tudo relacionado a Qhuinn.

Aquilo não era nada saudável. Para ninguém.

Mas afinal de contas, Qhuinn era culpado por ele se sentir daquela maneira? Ninguém pode escolher por quem se sente atraído... e por quem não se sente.

No armário, Blay puxou uma camisa de botão e uma calça de combate preta. Assim que virou a cabeça para o banheiro, Qhuinn ergueu a boca da veia de Layla.

O macho soltou um gemido saciado e estendeu sua língua em direção às feridas que tinha feito com suas presas. Quando um brilho de prata reluziu, as sobrancelhas de Blay se ergueram. O piercing da língua era novo e ele se perguntou quem teria feito.

Provavelmente Vishous. Os dois andavam passando muito tempo juntos e foi assim que conseguiram a tinta para a tatuagem de John... Qhuinn tinha pegado o recipiente.

A língua de Qhuinn passou na pele da Escolhida, aquele metal piscava a cada passagem.

– Obrigado, Layla. Você é boa para nós.

Deu um sorriso rápido, em seguida colocou as pernas para fora da cama, deixando evidente que já ia sair. Layla, por outro lado, não se mexeu. Ao invés de seguir o exemplo e ir embora, a cabeça dela desceu e os olhos se concentraram em seu colo...

Não, nos pulsos, que estavam aparecendo sob as mangas de sua túnica. Quando a viu cambalear, Blay franziu a testa.

– Layla? – disse ele, aproximando-se. – Você está bem?

Qhuinn também se aproximou da cama.

– Layla? O que está acontecendo?

Os dois ficaram de joelhos diante dela.

Blay falou claramente.

– Nós tomamos muito?

Qhuinn se adiantou e colocou seu próprio pulso frente a ela, oferecendo.

– Use-me.

Droga, ela tinha alimentado John na noite anterior. Será que aquilo aconteceu cedo demais?

Os olhos verdes pálidos da Escolhida se ergueram para enfrentar Qhuinn e não houve qualquer confusão em seu olhar. Apenas um desejo triste, antigo.

Qhuinn recuou.

– O que eu fiz?

– Nada – disse ela com uma voz muito profunda. – Se me der licença, vou me retirar ao santuário mais uma vez.

Layla começou a levantar-se, mas Qhuinn capturou sua mão e puxou-a para baixo.

– Layla, o que está fazendo?

Deus, aquela voz dele. Tão suave, tão gentil. E assim também era a mão que estendeu, agarrando seu queixo e levantando o olhar dela até o seu.

– Não posso falar sobre isso.

– Sim, você pode. – Qhuinn acenou com a cabeça na direção do Blay. – Ele e eu manteremos segredo.

A Escolhida respirou fundo e sua expiração foi de derrota, como se ela estivesse sem combustível, sem opções, sem força.

– De verdade? Vão permanecer em silêncio?

– Sim. Blay?

– Sim, com certeza. – Colocou a mão em seu coração. – Eu juro. Vamos fazer de tudo para ajudá-la. Qualquer coisa.

Ela focou em Qhuinn, seu olhar preso ao dele.

– Sou desagradável aos seus olhos, senhor? – Quando ele franziu a testa, ela baixou o olhar. – Desvio-me do ideal de alguma maneira que me torna...

– Deus, não. Do que você está falando? Você é linda.

– Então... por que nunca sou solicitada?

– Não entendo... Nós a solicitamos. Regularmente. Eu mesmo, John e Blay. Rhage e V. Você é a única que todos pedem, porque você...?

– Nenhum de vocês me usa para qualquer coisa além de sangue.

Blay se levantou de sua posição ajoelhada, recuou até suas pernas bateram na espreguiçadeira e sentou-se. Quando seu traseiro saltou sobre a almofada, a expressão no rosto de Qhuinn quase o fez rir. O cara nunca era pego de surpresa. Em parte porque já tinha sofrido de tudo em sua vida relativamente curta, tanto por escolha quanto por maldição. E parte era a sua personalidade. Dava-se bem em todas as situações. Ponto final.

Exceto nesta, óbvio. Qhuinn parecia como se tivesse sido atingido na nuca por um taco de bilhar.

– Eu... – Qhuinn pigarreou. – Eu... Eu...

Ah, sim, isso também era inédito: a gagueira.

Layla encheu o silêncio.

– Sirvo os machos e Irmãos desta casa com orgulho. Dou, sem receber nada em troca, porque faz parte da minha formação e tenho prazer em fazê-lo. Mas digo isso porque você pediu e... acho que devo. Toda vez que retorno para o santuário ou à casa do Primaz, sinto-me cada vez mais vazia. A ponto de achar que poderia me afastar. Em verdade... – balançou a cabeça – não posso continuar fazendo isso, mesmo sabendo que faz parte das minhas obrigações. Apenas... meu coração não pode continuar.

Qhuinn deixou cair as mãos e esfregou as coxas.

– Você quer... você gostaria de continuar se pudesse?

– Claro. – Sua voz era forte e segura. – Estou orgulhosa de estar a serviço.

Agora Qhuinn estava arrastando a mão por seu cabelo grosso.

– O que seria necessário... para satisfazê-la?

Era como assistir a um desastre de trem. Blay deveria ter saído, mas não conseguia se mover, tinha apenas que testemunhar a colisão.

E, naturalmente, o rubor brilhante de Layla a fez ainda mais bonita. Em seguida, seus lábios carnudos se entreabriram encantadores. Fecharam. Abriram... e fecharam outra vez.

– Está tudo bem – sussurrou Qhuinn. – Você não tem que dizer isso em voz alta. Eu sei o que você quer.

Blay sentiu um suor frio sair sobre o peito e as mãos se contorceram por baixo da roupa que tinha escolhido.

– Quem... – Qhuinn perguntou com voz rouca. – Quem você quer?

Houve outra longa pausa e então ela disse uma única palavra:

– Você.

Blay levantou-se.

– Vou deixar vocês a sós.

Estava totalmente cego quando saiu, e agarrou sua jaqueta de couro em seu caminho apenas por instinto.

Quando fechou a porta, ouviu Qhuinn dizer:

– Vamos fazer isso bem devagar. Se vamos fazer isso, iremos bem devagar.

No corredor, Blay abriu rapidamente uma boa distância entre ele e seu quarto e não se deu conta, até que chegou à porta dupla que dava para a ala dos empregados, de que estava andando pela casa de roupão. Deslizando pelo conjunto de escadas que levavam ao cinema no terceiro andar, mudou sua roupa na frente da máquina de pipoca desligada.

A raiva latente no fundo de suas entranhas era um tipo de câncer que o devorava. Mas era tão infundado. Tão inútil.

Blay parou em frente às prateleiras de DVDs, os títulos nas capas nada mais eram que um borrão para seus olhos.

Contudo, o que ele acabou pegando não foi um filme.

Tirou um pedaço de papel do bolso do casaco.


CAPÍTULO 29

Assim que a porta da sala de recuperação foi fechada, Xhex sentiu que devia dizer algo. Em voz alta. Para Rehvenge.

– Então. Ah... – Passou a mão pelo cabelo. – Tudo bem...?

Ele interrompeu suas desajeitadas divagações aproximando-se a passos largos, sua bengala vermelha era cravada nos ladrilhos, seus mocassins atingiam o chão do calcanhar à ponta dos pés. Sua expressão era feroz, seus olhos violeta ardiam.

Era suficiente para deixá-la perplexa.

Puxando para cima o lençol, Xhex murmurou.

– Que diabos há de errado com vo...? – Rehv mergulhou sobre ela com seus longos braços e a puxou para ele, aconchegando-a com todo cuidado contra seu peito. Apoiando a cabeça na dela, sua voz foi profunda e grave.

– Pensei que nunca mais a veria novamente.

Quando ele estremeceu, ela levantou as mãos até seu tronco. Depois de conter-se um momento... abraçou-o tão forte quanto ele a abraçava.

– Seu perfume é o mesmo – disse com voz rouca, colocando o nariz bem no pescoço da fina camisa de seda. – Oh... Deus, seu perfume é o mesmo.

A cara colônia à base de especiarias a levou de volta aos dias de ZeroSum quando os quatro trabalhavam juntos: ele no comando, iAm com os livros, Trez nas operações e ela na segurança.

O perfume foi o gancho que a arrastou e a fez dar um passo mais longe do trauma do sequestro, ligando-a ao seu passado, transpondo o horrível período das últimas três semanas.

Contudo, não queria essa amarra. Isso só faria com que sua partida ficasse mais difícil. Melhor concentrar-se nos acontecimentos e nos objetivos imediatos.

E depois simplesmente desaparecer, flutuando à deriva.

Rehv se afastou.

– Não quero cansá-la, então não vou ficar. Mas precisava... pois é.

– Eu sei.

Juntos, mantiveram-se um nos braços do outro, e como sempre, ela sentiu a comunicação entre eles, a parte de sangue mestiço que compartilhavam estabeleceu uma conexão como faziam os sympathos.

– Precisa de alguma coisa? – perguntou. – Comida?

– A doutora Jane disse nada sólido durante as próximas duas horas.

– Certo. Ouça, vamos falar sobre o futuro...

– No futuro. – Enquanto falava, projetou em sua mente uma imagem dos dois discutindo intensamente. Que foi produzida exclusivamente para despistá-lo, caso estivesse lendo.

Não ficou claro se ele mordeu a isca.

– Aliás, eu moro aqui agora – ele disse.

– Onde estou exatamente?

– No centro de treinamento da Irmandade. – Franziu a testa. – Pensei que você já havia estado aqui antes.

– Não nessa parte. Mas sim, imaginei que era para onde me trariam. Aliás, Ehlena foi realmente boa comigo. Lá dentro. – Assinalou com a cabeça para a sala de operações. – E antes que pergunte, vou ficar bem. Foi o que a doutora Jane disse.

– Ótimo! – Apertou com força a mão dela. – Vou chamar John.

– Obrigada.

Na porta, Rehv parou, em seguida, estreitando os olhos ametistas, lançou-lhe um olhar por sobre os ombros.

– Escute. – O “idiota” ficou implícito. – Você é importante. Não só para mim, mas para muita gente. Então, faça o que tem que fazer e coloque sua cabeça em ordem. Mas não pense que não sei de nada sobre o que tem planejado fazer depois.

Ela devolveu o olhar.

– Maldito devorador de pecados.

–Já sabe. – Rehv ergueu uma sobrancelha. – Eu lhe conheço muito bem. Não seja uma cabeça-dura, Xhex. Você tem todos nós ao seu lado e pode superar isso.

Enquanto ele saía, Xhex achou a fé que tinha nela admirável. Mas não ia cair nessa.

Na verdade, apenas o pensamento de qualquer futuro depois do funeral de Lash enviava uma onda de esgotamento pela sua corrente sanguínea. Com um gemido, fechou os olhos e rezou pelo amor de tudo o que era mais sagrado para que Rehvenge ficasse fora de seus assuntos...

Xhex despertou com um grito sufocado. Não fazia ideia de quanto tempo esteve dormindo. Ou onde John estava...

Bem, a segunda pergunta estava respondida: John estava no chão na frente da sua cama, deitado de lado, com a cabeça descansando no interior do braço que tinha dobrado para usar de travesseiro. Parecia cansado, mesmo enquanto dormia: as sobrancelhas tensas, a boca contraída em uma expressão fatigada.

O consolo que lhe veio ao olhar para ele foi chocante, mas não lutou contra isso. Não tinha energia suficiente... além disso, não havia testemunhas.

– John?

No instante em que pronunciou seu nome, levantou-se do chão de linóleo, assumindo uma postura de combate, com seu corpo de guerreiro entre ela e a porta do corredor. Ficou bastante claro que estava preparado para deixar em pedaços qualquer um que a ameaçasse.

O que era... realmente gentil.

E melhor que um buquê de flores na cabeceira da cama, o qual a faria espirrar.

– John... venha aqui.

Ele esperou um instante, erguendo a cabeça como se procurando por algum som. Logo deixou cair os punhos e andou. No instante em que seus olhos se voltaram para ela, o olhar brutal e as presas expostas se desvaneceram em meio a uma compaixão arrasadora.

Foi direto ao seu bloco, escreveu algo e lhe mostrou.

– Não, obrigada. Ainda não estou com fome. – Sempre foi assim para ela. Depois de se alimentar, não comia durante horas, algumas vezes durante um dia intero. – O que eu adoraria...

Seus olhos se moveram até o banheiro no canto.

Banho, ele escreveu e mostrou.

– Sim. Meu Deus... adoraria um pouco de água quente.

Estava todo disposto a ser um bom cuidador. Abriu a ducha, colocou as toalhas, o sabonete e uma escova de dentes sobre o balcão.

Sentindo-se um pouco preguiçosa, tentou se levantar... e ficou claro que alguém tinha atado uma casa ao redor de seu peito. Sentia-se como se estivesse levando uma casa colonial de dois andares sobre os ombros. Foi com um grande esforço que conseguiu colocar as pernas para fora do colchão... e com a convicção de que se não conseguisse se colocar na vertical sozinha, ele iria chamar a doutora e ela perderia o banho.

John chegou assim que as solas dos pés descalços tocaram o chão e foi muito atencioso equilibrando-a com o braço enquanto se colocava em pé. Quando os lençóis caíram de seu corpo, ambos tiveram um momento de... caramba, nua. Mas não era hora para recato.

– O que devo fazer com o curativo? – ela murmurou, baixando o olhar para a bandagem branca que se estendia ao longo de sua pélvis.

Quando John olhou para seu bloco de papel, como se estivesse tentando decidir se podia alcançar a coisa e continuar segurando-a, ela disse:

– Não, não quero a doutora Jane. Simplesmente vou tirar.

Escolheu uma ponta, e enquanto se firmava em pé, imaginou que provavelmente teria sido melhor fazer isso enquanto estava deitada... e sob supervisão médica. Mas dane-se.

– Oh... – Suspirou ao revelar lentamente a linha de pontos negros. – Maldição... a fêmea de V. é boa com uma linha e uma agulha, hum?

John pegou o monte de gaze ensaguentado e simplesmente o jogou na lata de lixo do canto. Então esperou como se soubesse bem que ela estava pensando em voltar para a cama.

Por alguma razão, a ideia de ter sido aberta a deixou tonta.

– Vamos fazer isso – disse rispidamente.

Ele deixou que ela estabelecesse o ritmo, o qual acabou sendo apenas um pouco mais rápido que dar marcha ré.

– Pode apagar as luzes lá dentro? – ela disse enquanto arrastava os pés, seus passos de bebê não avançavam mais que alguns centímetros. – Não quero ver a minha aparência naquele espelho sobre a pia.

No instante em que se aproximou o suficiente do interruptor, John estendeu o braço e clicou a coisa na parede.

– Obrigada.

A sensação do ar úmido e o som da água caindo aliviaram sua mente e sua coluna. O problema era que a tensão havia ajudado a mantê-la em pé e agora estava cedendo.

– John... – Era a sua voz? Tão fraca e fina. – John, entra comigo? Por favor.

Por falar em longos silêncios... mas, então, sob a luz que entrava do quarto, ele assentiu.

– Enquanto tira a roupa lá fora – ela disse – pode fechar a porta porque preciso usar o banheiro.

Com isso, segurou na barra que estava fixa à parede e se movimentou sozinha. Houve outra pausa e logo John deu um passo para trás e a ligeira fonte de luz se desvaneceu.

Depois que Xhex fez o que precisava, arrastou-se e entreabriu a porta.

O que viu foi um bloco de notas bem em frente ao rosto:

Teria ficado de cueca, mas não uso nada por baixo das calças de couro.

– Está bem. Não passo nem perto do tipo tímida.

Só que aquilo não foi demonstrado ser totalmente verdade quando os dois entraram no chuveiro juntos. Achou que depois de tudo o que passou, um pouco de contato com pele em um quarto escuro, com um macho em quem confiava e com quem já havia estado, não seria um grande desafio. Mas foi.

Especialmente quando o corpo dele roçou contra suas costas ao fechar a porta de vidro.

Concentre-se na água, disse a si mesma, imaginando se tinha enlouquecido.

Ao levantar a cabeça, começou a inclinar-se para o lado e a enorme mão masculina escorregou sobre seu braço para mantê-la em pé.

– Obrigada – disse ela asperamente.

Mesmo a situação sendo tão incômoda, a água quente estava maravilhosa ao encharcar seu cabelo até o couro cabeludo e a ideia de poder limpar-se foi repentinamente mais importante do que tudo que John Matthew não estava usando.

– Esqueci o sabonete, droga.

John fez outro movimento de se inclinar e investir sobre aquilo que precisava, e então seus quadris bateram nos dela. E embora ela tenha ficado tensa, preparando-se para algo sexual... ele não estava excitado.

O que foi um alívio. Depois das coisas que Lash lhe havia feito...

Quando colocou o sabonete em sua mão, Xhex bloqueou todos os pensamentos do que havia passado naquele quarto e simplesmente umedeceu a barra de sabão na ducha. Lavar-se. Secar-se. Voltar para a cama. Isso era tudo o que tinha que pensar.

O cheiro forte e diferente do sabonete flutuou no ambiente e aquilo a emocionou.

Era exatamente o que teria escolhido sozinha.


Incrível, pensou John enquanto permanecia em pé atrás de Xhex.

Se baixar o olhar para seu pênis e disser que caso se comporte mal irá cortá-lo em rodelas e enterrar no quintal dos fundos, realmente ele obedece.

Tinha que se lembrar disso.

O chuveiro era de um tamanho generoso para um macho, mas era bastante estreito para os dois e tinha que manter as costas pressionadas contra o azulejo frio para ter cem por cento de certeza de que o Senhor Espertinho e seus companheiros gêmeos de trabalho, Debi e Loide, ficariam longe dela.

Afinal, o discurso tinha feito maravilhas, mas não iria arriscar.

Além disso, estava chocado por Xhex estar tão fraca que tinha que segurá-la para que pudesse ficar em pé... mesmo depois de ter se alimentado. Mas não é fácil se livrar assim de quatro semanas de inferno, mesmo depois de um cochilo de duas horas. Que era o tempo que tinha dormido, de acordo com seu relógio.

Ao pegar o xampu, ela arqueou as costas e seus cabelos molhados roçaram no peito dele antes que Xhex se virasse para enxaguar a espuma. Ele mudou a posição, segurando primeiro seu antebraço direito, em seguida o esquerdo, então de novo o direito.

Os problemas surgiram quando ela se inclinou para lavar as pernas.

– Droga... – Ela mudou de posição rápido demais, o aperto dele escorregou do seu ensaboado bíceps e ela caiu diretamente contra o corpo dele.

John teve uma breve e vívida impressão de seu corpo ensaboado, úmido e cálido, e logo se lançou contra a parede e se moveu buscando uma forma de mantê-la em pé que não implicasse em contato total.

– Queria que tivesse um banco aqui – ela disse. – Acho que não consigo manter o maldito equilíbrio.

Houve uma pausa... em seguida ele pegou o sabonete. Deslocando-se lentamente, trocou de lugar com ela, colocando-a no canto em que havia apoiado as costas e fazendo com que ela apoiasse as mãos sobre seus ombros.

Enquanto se ajoelhava, girou o sabonete nas mãos, fazendo um monte de espuma; a água batia na parte de trás da cabeça e caía por sua coluna vertebral. Sentia o azulejo duro embaixo dos joelhos e tinha um dos dedos do pé pressionando o ralo, era como se a coisa tivesse dentes e estivesse lhe dando uma mordida, mas não se importava.

Estava preste a tocá-la. E isso era tudo o que importava.

Envolvendo o tornozelo dela com a mão, deu um puxão suave e, depois de um momento, ela apoiou o peso no outro lado e deu para ele o seu pé. Colocou a barra de sabonete no chão ao lado da porta e alisou a sola do pé subindo até o calcanhar, massageando, limpando...

Adorando sem esperar nada em troca.

Ia devagar, especialmente quando subia pela perna, fazendo uma pausa de vez em quando para se assegurar de que não estava pressionando nenhum de seus machucados. O músculo da panturrilha era duro como pedra e os ossos que sobressaíam no joelho pareciam tão fortes como os de um macho, mas era delicada à sua maneira. Ao menos comparada com ele.

Quando subiu ainda mais, até sua coxa, deslizou para a parte externa. A última coisa que queria era preocupá-la por dar em cima dela, e quando chegou ao quadril, parou e pegou o sabonete de novo.

Após enxaguar a sola do pé, puxou ligeiramente o outro tornozelo e sentiu uma pontada de alívio quando ela gentilmente lhe deu oportunidade de repetir o que tinha feito.

Massagens lentas, mãos lentas, progresso lento... e somente na parte externa e em direção à parte superior do corpo.

Quando terminou, levantou-se, os joelhos rangendo ao se erguer até alcançar toda a sua estatura e a colocou embaixo do jato d’água. Segurando-a pelo braço outra vez, deu-lhe o sabonete para que pudesse lavar qualquer outra coisa que fosse necessária.

– John? – ela disse.

Como estava escuro, assoviou um “o quê?”.

– Você é um macho de muito valor, sabe disso. Você realmente é.

Ergueu as mãos e envolveu o rosto dele.

Aconteceu tão rápido, ele não podia acreditar. Mais tarde, iria ver e rever aquilo várias e várias vezes, prolongando o momento infinitamente, revivendo e nutrindo aquilo de maneira estranha na memória, de novo e de novo.

Contudo, quando acabou, havia durado apenas um instante. Um impulso por parte dela. Um presente puro dado em gratidão a outro presente puro recebido.

Xhex ergueu-se na ponta dos pés e pressionou sua boca contra a dele.

Oh, tão macio. Seus lábios eram incrivelmente macios. E gentis. E calorosos. O contato foi muito rápido, porém poderia durar horas e horas e dizer que não tinha sido o suficiente.

– Venha deitar-se comigo – ela disse, abrindo a porta do chuveiro e saindo. – Eu não gosto de você no chão. Você merece coisa muito melhor do que isso.

De maneira indistinta, fechou a água e a seguiu, aceitando a toalha que ela entregou. Secaram-se juntos, ela envolveu todo o tronco com a toalha, ele cobriu os quadris.

Fora do banheiro, ele subiu na cama de hospital primeiro e sentiu que era a coisa mais natural do mundo abrir os braços. Se tivesse pensado, não haveria feito esse gesto, mas não estava pensando.

Mas tudo bem.

Porque ela foi até ele como tinha feito a água do chuveiro: o encharcou com uma onda morna que se infiltrava pela pele até a medula.

Mas, claro, Xhex penetrou ainda mais fundo dentro dele. Sempre fez isso.

Era como se tivesse perdido a sua alma na primeira vez que colocou os olhos nela.

Quando apagou a luz e ela se acomodou ainda mais perto dele, sentiu como se ela estivesse cavando diretamente em seu gelado coração e acampando ali, seu fogo descongelava a alma até que suspirou fundo e em paz pela primeira vez em meses.

John fechou os olhos, mas não esperava dormir.

Porém, ele dormiu. E muito, muito bem.


CAPÍTULO 30

Na ala de funcionários da mansão Sampsone, Darius concluiu sua entrevista com a criada da filha.

– Obrigado – disse ele enquanto se levantava e acenava para a fêmea. – Agradeço sua franqueza.

A doggen curvou-se profundamente.

– Por favor, encontre-a. E a traga de volta para casa, senhor.

– Faremos nosso melhor. – Ele lançou um olhar para Tohrment. – Seria muito gentil se trouxesse o mordomo.

Tohrment abriu a porta para a pequena fêmea e os dois saíram juntos.

Na ausência deles, Darius andou pelo chão sem ornamentos, suas botas de couro faziam um círculo em torno da escrivaninha que havia no centro da sala. A criada não sabia nada de relevante. Havia sido totalmente aberta e despretensiosa – mas não acrescentou absolutamente nada ao enigma.

Tohrment voltou com o mordomo e retornou a sua posição à direita da porta, permanecendo em silêncio. O que era bom. De uma maneira geral, durante um interrogatório no âmbito civil, não era necessário mais de um inquisidor. Entretanto, o garoto tinha outra utilidade. Seus olhos astutos não perdiam nada, assim talvez notasse algo que Darius deixasse passar durante a conversa.

– Obrigado por falar conosco – Darius disse ao mordomo.

O doggen curvou-se.

– Será um prazer servi-lo, senhor.

– Certamente – Darius murmurou enquanto sentava no banquinho duro que tinha usado enquanto falava com a criada. Os doggen, por natureza, tendem a valorizar o protocolo, e portanto preferiam que aqueles que detinham uma posição mais elevada ficassem sentados enquanto eles permaneciam em pé.

– Qual é o seu nome, mordomo?

Outra reverência profunda.

– Eu me chamo Fritzgelder Perlmutter.

– E há quanto tempo está com esta família?

– Eu nasci entre eles há 77 anos. – O mordomo uniu suas mãos atrás das costas e endireitou os ombros. – Tenho servido à família com orgulho desde meu quinto aniversário de nascimento.

– Longa história. Então, você conhece bem a filha.

– Sim. É uma fêmea de valor. Uma alegria para seus pais e sua linhagem.

Darius observou cuidadosamente o rosto do mordomo.

– E você não sabe de nada... que pudesse levá-lo a esperar tal desaparecimento?

A sobrancelha esquerda do serviçal se contraiu uma vez.

E houve um longo silêncio.

Darius baixou a voz a um sussurro.

– Se isso puder servir de alívio à sua consciência, tem minha palavra como um Irmão que nem eu nem meu colega revelaremos o que você disser. Nem mesmo ao próprio Rei.

Fritzgelder abriu a boca e respirou fundo.

Darius permaneceu em silêncio: pressionar o pobre macho só retardaria o processo de revelação. Na verdade, simplesmente falaria alguma coisa ou não e apressá-lo só iria atrasar sua decisão.

O mordomo alcançou o bolso interno de seu uniforme e retirou um lenço branco que estava dobrado em um quadrado exato. Apertou o lábio superior, atrapalhando-se para guardar a coisa.

– Nada sairá destas paredes – Darius sussurrou. – Nada.

O criado limpou a garganta duas vezes antes das suas cordas vocais produzirem algum som.

– De fato... ela estava acima de qualquer suspeita. Disso estou certo. Não havia nenhum... relacionamento com um macho que seus pais desconhecessem.

– Mas... – Darius murmurou.

Naquele momento, a porta foi aberta e o mordomo que os havia deixado entrar na mansão surgiu. Parecia totalmente surpreso com a reunião, a qual tinha sua total desaprovação. Não havia dúvida de que um de seus subordinados o tinha avisado.

– Você trabalha com uma boa equipe – Darius disse ao macho. – Meu colega e eu estamos muito impressionados.

A reverência não aliviou a expressão de desconfiança do macho.

– Estou lisonjeado, senhor.

– Estávamos saindo. Seu mestre está?

O mordomo se endireitou e seu alívio era evidente.

– Recolheu-se aos seus aposentos e por isso vim vê-los. Mandou-lhes dizer adeus, pois precisa cuidar de sua amada shellan.

Darius colocou-se em pé.

– Este seu criado estava prestes a nos mostrar a saída. Como está chovendo, tenho certeza de que prefere que um de seus funcionários nos guie sobre a grama molhada. Voltaremos aqui depois do pôr do sol. Obrigado por atender aos nossos pedidos.

Não havia nenhuma outra resposta a não ser a que o macho deu.

– Mas é claro.

Fritzgelder fez uma reverência ao seu superior e estendeu então o braço para uma porta no canto.

– Por aqui.

Lá fora, o ar carregava muito pouco das promessas de uma primavera de calor. De fato, estava um frio invernal quando atravessaram a neblina.

Fritzgelder sabia exatamente onde os estava levando, o mordomo caminhava com o objetivo de chegar aos fundos da mansão, para a parte do jardim que podia ser vista do quarto da fêmea.

Boa manobra, pensou Darius.

O mordomo parou bem debaixo da janela da filha de Sampsone, mas não encarava as pesadas paredes da casa. Olhava para fora... para além dos canteiros de flores e do labirinto... olhava para a propriedade vizinha. Então, deliberadamente virou-se para Darius e Tohrment.

– Levantem seus olhos até as árvores – disse ele enquanto apontava para a casa como se descrevesse algo importante, pois, sem dúvida, estavam sendo observados das janelas de chumbo da mansão. – Reparem bem a clareira.

De fato, havia uma brecha dentre os muitos galhos das árvores... foi por isso que conseguiram ver a mansão ao longe, quando estavam no segundo andar.

– Aquela visão não foi produzida por esta casa, senhor – o doggen disse suavemente. – E eu notei isso aproximadamente uma semana antes... de descobrir que ela tinha desaparecido. Estava limpando os quartos. A família estava nos aposentos subterrâneos já que era dia. Ouvi os sons de madeira sendo cortada e olhei pelas janelas, foi então que vi os galhos sendo arrancados.

Darius estreitou seu olhar.

– Foi um corte muito preciso, não?

– Muito preciso. E pensei que não era nada demais, pois só humanos moram ali. Mas agora...

– Agora gostaria de saber se havia algum propósito que não fosse o de jardinagem. Diga-me, a quem você mencionou isso?

– Para o mordomo chefe. Mas me implorou para que eu permanecesse calado. Ele é um bom macho, serve bem à família. Deseja muito que ela seja encontrada...

– Mas ele pretende evitar qualquer suposição de que ela tenha caído em mãos humanas.

Afinal, os humanos estavam apenas a uma cauda de distância de serem considerados como ratos pela glymera.

– Obrigado por isso – Darius disse. – Cumpriu bem o seu dever.

– Apenas encontre-a, por favor. Não me importo com a origem do sequestro... só a traga de volta para casa.

Darius focou no que conseguia ver da mansão vizinha.

– Faremos isso. De uma maneira... ou de outra.

Rezou para que os humanos daquela propriedade não tivessem se atrevido a levar um dos seus, pelo bem deles. A outra raça deveria ser evitada, por ordens do rei, mas e se tivessem a ousadia de agredir um vampiro? Uma fêmea nobre?

Darius mataria cada um deles em suas camas e deixaria os corpos apodrecerem em meio ao mau cheiro.


CAPÍTULO 31

Gregg Winn acordou com Holly em seus braços, seus exuberantes seios falsos eram como um par de travesseiros gêmeos pressionando-o.

Uma olhada rápida no relógio e viu que eram sete horas da manhã. Já poderiam fazer as malas e se dirigir para Atlanta.

– Holly. – Ele a tocou levemente com a mão. – Acorde.

Deixou soltar algo parecido com um ronronar e se espreguiçou, seu corpo se arqueando contra o dele, transformando sua ereção matinal numa necessidade primária sobre a qual estava disposto a fazer algo a respeito. No entanto, as memórias de como ela havia acabado em sua cama refrearam seu impulso.

Provando que em alguns aspectos era um cavalheiro.

– Holly. Vamos. Acorda logo. – Empurrou o cabelo dela para trás e o acariciou sobre o ombro. – Se sairmos agora, estaremos em Atlanta no final da tarde.

Considerando que aquela coisa de perseguir Rathboone tinha lhes custado um dia de viagem, isso viria bem a calhar.

– Tudo bem. Já acordei. Já acordei.

Na verdade, ele foi o único que levantou. Holly apenas se aninhou no espaço aquecido que Gregg tinha deixado e voltou a dormir em seguida.

Tomou um banho e depois encheu as malas com suas coisas fazendo tanto ruído quanto possível, mas ela estava morta para o mundo. Parecia mais um estado de coma do que de sonolência.

Estava prestes a sair atrás de Stan, que era ainda pior nessa coisa de acordar, quando uma batida soou na porta.

Será possível que aquele maluco já havia acordado?

Gregg começou a falar com seu cinegrafista enquanto abria a porta:

– Escuta, vamos arrumar a van...

Era o mordomo durão. Parecendo que alguém havia derramado vinho tinto por todo seu sofá.

Gregg ergueu a palma da mão.

– Estamos saindo, ok? Já estamos indo embora. Apenas nos dê...

– O proprietário decidiu permitir que vocês filmem aqui. Para seu episódio especial.

Gregg piscou como um idiota.

– Como?

O tom do mordomo ficou ainda mais enojado. Como se fosse possível.

– O proprietário falou comigo esta manhã. Disse que vocês têm a permissão de transmitir o programa daqui.

Um dia atrasado, Gregg pensou, soltando um palavrão em pensamento.

– Sinto muito. Minha equipe e eu estamos...

– Empolgados – Holly terminou por ele.

Enquanto olhava por cima do ombro, a apresentadora ajeitava o roupão conforme saía da cama.

– Isso é uma ótima notícia! – disse de maneira incisiva enquanto sorria para o mordomo, o qual parecia um ioiô entre reprovação e encantamento perante a visão de toda aquela beleza e naturalidade de Holly.

– Muito bem, então – o mordomo disse, depois de clarear a garganta. – Avisem-me se precisarem de algo.

Com uma reverência, desapareceu no corredor.

Gregg fechou a porta.

– Pensei que você queria sair daqui.

– Bem... eu estava segura com você, certo? – Esquivou-se até ele, acariciando seu peito. – Então vou ficar sempre perto de você.

A satisfação na voz dela o deixou desconfiado.

– Você fingiu pra mim? Sobre toda aquela coisa do sexo... com quem quer que seja?

Ela negou com a cabeça sem hesitar:

– Não... mas acredito mesmo que foi tudo um sonho.

– E quanto ao fato de ter dito que realmente fez sexo?

Franziu as sobrancelhas depiladas como se estivesse tentando ver através de um vidro fosco.

– É tudo muito vago para ter sido real. Na noite passada eu estava totalmente confusa, mas à luz do dia... tudo isso parece bobagem.

– Você tinha muita certeza quando entrou aqui.

Ela balançou a cabeça lentamente.

– Nada além de um sonho muito vívido e incrível... mas não aconteceu de verdade.

Examinou o rosto dela e não encontrou nada além de certeza. De repente, ela colocou as mãos sobre as têmporas.

– Tem aspirina?

– Dor de cabeça?

– Sim. Acabou de começar.

Aproximou-se da mala e tirou uma pequena bolsa.

– Escute, estou disposto a tentar, mas se decidirmos ficar, não tem volta. Precisamos preencher o nosso horário, então não podemos sair correndo para Atlanta em um ou dois dias.

Na verdade, já estavam bem atrasados.

– Eu entendo – ela disse enquanto sentava na cama. – Entendo muito bem.

Gregg entregou a aspirina, então foi até o banheiro e pegou um copo com água.

– Ouça, por que você não volta para a cama? Ainda é cedo e com certeza Stan ainda está desmaiado.

– O que você vai fazer? – Ela bocejou enquanto lhe devolvia o copo vazio.

Ele acenou para o notebook.

– Vou levar isso até a sala de estar lá embaixo e analisar a sequência que fizemos ontem à noite. Acho que devo estar com todas as câmeras remotas carregadas.

– Fique aqui – ela pediu ao movimentar os pés embaixo dos lençóis.

– Tem certeza?

O sorriso dela enquanto descansava a cabeça nos travesseiros mostraram seus dentes perfeitos... e o lado doce de sua personalidade.

– Sim, vou dormir melhor com você aqui. Além disso, você cheira bem depois do banho.

Cara, ela tinha um jeitinho: olhando-o da cama daquela maneira, teria sido necessário um exército para tirá-lo do quarto.

– Ok. Vá dormir, Lolli.

Ela sorriu diante do apelido carinhoso que lhe deu depois da primeira noite em que dormiram juntos.

– Vou. E obrigada por ficar aqui comigo.

Quando ela fechou os olhos, dirigiu-se até a cadeira perto da janela e ligou o laptop.

As gravações das minúsculas câmeras que tinham escondido no corredor do andar debaixo, na sala de estar e no grande carvalho perto da varanda de fato já tinham sido carregadas.

Por causa do que tinha acontecido, desejou que tivessem colocado uma câmera remota no quarto de Holly, mas essa era a questão: se os fantasmas realmente não existiam, por que se dar ao trabalho? As filmagens foram feitas apenas para captar a atmosfera do local... e para preparar toda a enganação que viria mais tarde, quando chegasse a hora do “invocamos os espíritos da casa!”.

Quando começou a olhar as imagens que haviam sido capturadas, percebeu que estava fazendo isso há quanto tempo? Dois anos? E mesmo assim não tinha visto ou ouvido nada que não pudesse ser explicado.

O que era bom. Não estava tentando provar a existência de espíritos. Estava apenas vendendo entretenimento.

A única coisa que tinha aprendido nos últimos 24 meses é que aquele era um bom trabalho, mentir nunca foi um problema para ele. De fato, seu total conforto com falsidade era a razão pela qual era um perfeito produtor de televisão: tudo girava em torno dos objetivos e detalhes, fossem locações, talentos, agentes, proprietários de casas ou seja lá o que estivesse no filme, não eram nada além de latas de sopas num armário para serem arrumadas segundo sua vontade. Para conseguir fazer seu trabalho, mentia sobre contratos, datas, imagens e sons. Havia falsificado, enganado e ameaçado com falácias.

Ele posicionava, mirava e...

Gregg franziu a testa e se inclinou para a tela.

Movendo o cursor em direção ao botão que retrocedia as imagens, repassou o segmento que havia sido gravado no corredor.

O que viu foi um vulto escuro movendo-se no corredor do lado de fora de seus quartos e... desaparecendo na frente do de Holly. O horário no canto inferior direito: 12h11 da manhã.

Exatamente 45 minutos antes dela procurá-lo.

Gregg repetiu o segmento, observando aquela sombra enorme caminhar pelo corredor mal iluminado, bloqueando a iluminação que entrava através da janela na outra extremidade.

Em sua mente, ouviu a voz de Holly: Porque eu acabei de transar com ele.

Raiva e ansiedade formavam um turbilhão em sua cabeça, deixou a gravação continuar, os minutos passando naquele canto direito. E então lá estava, alguém deixando o quarto de Holly, saindo, bloqueando a luz, mais ou menos trinta minutos depois.

A figura caminhou na direção oposta da que tinha vindo quase como se soubesse onde a câmera estava e não quisesse mostrar o rosto.

No exato momento em que Gregg estava prestes a chamar a polícia local... a maldita coisa desapareceu no ar.

Que. Droga. Foi. Essa?


CONTINUA

CAPÍTULO 20

A esperança é uma emoção traiçoeira.

Já havia passado duas noites até Darius finalmente entrar na casa da família da fêmea sequestrada e, conforme a grande porta se abria para ele e Tohrment, foram recebidos por um doggen cujos olhos estavam cheios da tragédia da esperança. Na verdade, a expressão do mordomo era de tanto respeito, que evidentemente acreditava estar dando as boas-vindas aos salvadores da casa de seu amo e não a pessoas comuns.

Somente o tempo e os caprichos do destino confirmariam se sua crença era real ou se estava equivocada.

Com entusiasmo, Darius e Tohrment foram guiados a um escritório oficial e o senhor que se levantou de uma cadeira revestida de seda teve que se firmar em seu peso.

– Bem-vindos, senhores, obrigado por terem vindo – Sampsone disse enquanto se aproximava com as duas mãos levantadas para apertar as mãos de Darius. – Sinto muito por não tê-los recebido nas duas noites passadas. Minha amada shellan...

A voz do macho falhou, e no silêncio, Darius deu um passo para o lado.

– Permita-me apresentar meu colega, Tohrment, filho de Hharm.

Enquanto Tohrment com reverência se curvava com a mão no coração, ficou claro que o filho tinha todas as boas maneiras que seu pai não tinha.

O mestre da casa retribuiu a deferência.

– Gostariam de beber ou comer alguma coisa?

Darius balançou a cabeça e sentou. Quando Tohrment colocou-se em pé atrás dele, disse:

– Obrigado. Mas, por ventura, poderíamos falar sobre o que aconteceu nesta mansão?

– Sim, sim, é claro. O que posso dizer?

– Tudo. Conte-nos... tudo.

– Minha filha... minha luz na escuridão... – O homem pegou um lenço. – Era de valor e cheia de virtude. A mais doce fêmea que poderiam se deparar...

Darius, consciente de que já tinham perdido duas noites, permitiu ao pai um certo tempo de lembranças, antes de colocá-lo no foco da questão.

– E naquela noite, senhor, naquela terrível noite – ele interrompeu quando houve uma pausa. – O que aconteceu nesta casa?

O macho balançou a cabeça e enxugou os olhos.

– Ela acordou de seu suave sono sentindo-se um pouco inquieta e então foi aconselhada a descansar em seus aposentos privados para o bem de sua saúde. Levaram comida até ela à meia noite e outra refeição antes da chegada da aurora. Foi a última vez em que foi vista. Seu aposento particular está lá em cima, mas também possui, assim como o resto da família, aposentos subterrâneos. Contudo, escolhia com frequência não ficar aqui conosco durante o dia, e como tínhamos acesso a ela através dos corredores internos, concluímos que estaria segura... – O homem engasgou neste ponto. – Como desejaria ter insistido mais.

Darius podia muito bem entender o arrependimento.

– Vamos encontrar sua filha. De um jeito ou de outro, vamos encontrá-la. Permitiria que fôssemos agora ao quarto dela?

– Por favor, sim. – Quando o macho gesticulou para o doggen, o mordomo se aproximou. – Silas ficará satisfeito em acompanhá-los. Prefiro... esperar aqui.

– Mas é claro.

Quando Darius se levantou, o homem se aproximou e agarrou sua mão.

– Uma palavra, se me permite? Entre você e eu?

Darius concordou, e conforme Tohrment seguiu o doggen, o mestre da casa deixou-se cair de volta em sua cadeira.

– Na verdade... minha filha era de valor. De virtudes. Intocada por...

Na pausa que se seguiu, Darius sabia com o quê o macho estava preocupado: se não a recuperassem em sua condição virginal, sua honra, assim como a da família, estaria em jogo.

– Não consigo dizer isso na frente de minha amada shellan – o macho continuou. – Mas nossa filha... se for corrompida... talvez seja melhor deixá-la...

Os olhos de Darius se estreitaram.

– Prefere que não seja encontrada?

Lágrimas surgiram daqueles olhos pálidos.

– Eu... – De repente, o macho balançou a cabeça. – Não... não. Eu a quero de volta. Não importa como, não importa em quais condições... claro que eu quero minha filha de volta.

Darius não estava disposto a oferecer apoio – tal negação a uma filha de seu sangue ter passado pela mente do macho foi grotesco.

– Gostaria de ir ao quarto dela agora.

O mestre da casa estalou os dedos e o doggen se aproximou do arco do escritório.

– Por aqui, senhor – o mordomo disse.

Enquanto ele e seu protegido andavam pela casa, Darius examinava as janelas e portas reforçadas. Havia aço por todos os lugares, separando os painéis de vidro ou fortificando os painéis de carvalho robusto. Entrar sem ser convidado não era fácil... e estava disposto a apostar que todos os quartos nos andares de cima eram iguais – inclusive os aposentos dos doggen.

Também avaliou cada pintura, tapete e objetos preciosos enquanto subia. Aquela família era de alto nível na glymera, com cofres sufocados de riquezas e uma linhagem sanguínea invejável. Assim, o fato de que sua filha virgem solteira sumisse não atingia apenas seus corações: era como um bem negociável. Sabendo disso, uma fêmea nessa idade e condição era um objeto de beleza... e uma implicação social e financeira.

E esta não era a única implicação disso. Como em qualquer avaliação, o inverso também era verdadeiro: ter uma filha arruinada, de fato ou por rumores, era uma mancha que levaria gerações para sequer ser ofuscada. O mestre daquela mansão, sem dúvida, amava sua filha de verdade, mas o peso de tudo isso distorcia a relação.

Darius acreditava muito que na visão do macho, seria melhor que sua filha voltasse numa caixa de pinho ao invés de respirando, mas corrompida. O último era uma maldição, o primeiro seria uma tragédia que reuniria muita simpatia. Darius odiava a glymera. Odiava mesmo.

– Aqui estão os aposentos privados dela – o doggen disse, abrindo a porta.

Quando Tohrment entrou no quarto iluminado por velas, Darius perguntou:

– O quarto foi limpo? Foi arrumado desde que ela se foi?

– Claro.

– Deixe-nos, por favor.

O doggen se curvou profundamente e desapareceu.

Tohrment vagou ao redor, olhando as cortinas de seda e uma área de estar muito bem decorada. Um alaúde estava em um canto e uma bela peça de bordado que foi parcialmente concluída em outro. Livros de autores humanos estavam empilhados ordenadamente em prateleiras, juntamente com pergaminhos no Antigo Idioma.

A primeira coisa que se percebia é que nada estava fora do lugar. Mas se isso era culpa dos empregados ou circunstâncias do desaparecimento, era difícil saber.

– Não toque em nada, certo? – Darius disse ao garoto.

– Mas é claro que não.

Darius adentrou no quarto luxuoso. As cortinas eram feitas de uma tapeçaria tão grossa e pesada que não se poderia esperar que a luz do sol penetrasse no aposento. A cama estava cercada pelo mesmo tecido, havia grandes painéis dele pendurados na cobertura.

No armário, abriu as portas esculpidas. Vestidos maravilhosos em safira, rubi, citrino e esmeralda estavam pendurados juntos, repletos de uma beleza potencial. E um único cabide repousava vazio, como se a última vestimenta que escolheu estivesse pendurada naquele objeto acolchoado.

Tinha uma escova de cabelos sobre a penteadeira e vários potes de unguentos, óleos perfumados e pós de coloração. Todos alinhados.

Darius abriu uma gaveta... e soltou uma pequena maldição. Estojos de joias. Estojos de joias de couro. Pegou um, abriu o fecho de ouro com um estalo e levantou a tampa.

Diamantes brilhavam sob a luz das velas.

Quando Darius voltou a colocar a caixa junto com as outras, Tohrment parou na porta, os olhos focando o tapete em tons de pêssego, amarelo e vermelho.

O leve rubor no rosto do macho entristeceu Darius por alguma razão.

– Nunca esteve no quarto de uma fêmea, certo?

Tohrment ficou ainda mais vermelho.

– Ah... não, senhor.

Darius fez um gesto com a mão.

– Bem, estamos aqui a trabalho. Melhor deixar qualquer timidez de lado.

Tohrment pigarreou.

– Sim. É claro.

Darius foi até a porta dupla francesa. As duas se abriam para um terraço e saiu com Tohrment em seu encalço.

– É possível enxergar através daquelas árvores distantes – o garoto murmurou, andando até a varanda.

De fato era possível. Através dos galhos torcidos e dos ramos desfolhados, uma mansão em outra propriedade era visível. A grande casa era comparável em tamanho e distinção, com metais finos em suas torres e grandes jardins... mas até onde Darius sabia, não era habitada por vampiros.

Virou-se e andou pela varanda, inspecionando todas as janelas, portas, maçanetas, dobradiças e fechaduras.

Não havia sinais de invasão, e considerando o frio que fazia, ela não teria deixado nada aberto facilitando assim a entrada dos elementos da natureza.

O que significava que a garota ou havia saído por vontade própria... ou deixado entrar quem quer que a tivesse levado. Isso assumindo que a entrada tivesse acontecido ali.

Olhou através do vidro para dentro dos aposentos da moça, tentando imaginar o que havia acontecido.

Para o inferno com a entrada, a saída era a questão, não era? Era muito improvável que o sequestrador a tenha arrastado pela casa: deve ter sido arrebatada na escuridão, ou então teria sido queimada até as cinzas e sempre havia gente do lado de fora durante a noite.

Não. Teriam que ter saído por aquele quarto.

Tohrment falou:

– Nada foi modificado, dentro ou fora. Sem riscos no chão, ou marcas na parede, o que significa...

– Que ela pode muito bem ter deixado alguém entrar e não lutou contra isso.

Darius voltou para dentro e pegou a escova de cabelo. Finos fios de cabelos loiros estavam presos nas cerdas duras. Nenhuma surpresa, já que o pai e a mãe eram claros.

A questão era: o que levava uma fêmea de valor a fugir da casa de sua família antes do amanhecer, não deixando rastros... e não levando nada consigo?

Uma resposta veio à mente: um macho.

Pais não sabem necessariamente tudo sobre as vidas de suas filhas, sabem?

Darius encarou a noite, examinando os caminhos, as árvores... e a mansão vizinha. Fios... havia fios para tecer aquele mistério.

A resposta que procurava estava ali em algum lugar. Só tinha que costurar os fios para encontrá-la.

– E agora? – Tohrment perguntou.

– Vamos conversar com os servos. Em particular.

Geralmente, em casas como aquela, os doggen nunca sonhariam em falar qualquer coisa fora dos limites necessários. Mas estas não eram circunstâncias normais e era muito possível que piedade e compaixão para com a pobre fêmea sobrepusessem a reticência dos funcionários.

E, às vezes, os fundos da casa sabiam coisas que a frente não sabia.

Darius virou-se e caminhou para a porta.

– Vamos despistar o senhor da mansão agora.

– Despistar?

Saíram juntos e Darius olhou para cima e para baixo no corredor.

– Sim. Venha por aqui.

Escolheu a esquerda, pois, no sentido oposto, havia um conjunto de portas duplas que dava para outra varanda no segundo andar – então era óbvio que o caminho que dava para os aposentos dos funcionários não era por ali. Enquanto caminhavam, passando por diversos cômodos mobiliados maravilhosamente, seu coração doía de tal forma que sua respiração ficou apertada. Depois de duas décadas, suas perdas ainda eram registradas, sua queda ainda ecoava ao longo de cada osso de seu corpo. Era de sua mãe quem mais sentia falta, na verdade. E por trás dessa dor estava o fim de uma vida civilizada que uma vez ele vivera.

Nasceu para isso e fez o que tinha sido treinado a fazer pela raça e alimentou certas... indulgências e ganhou respeito de seus companheiros na guerra. Mas não havia alegrias para ele nessa existência. Nenhuma maravilha. Nenhuma fascinação.

Tudo se resumia a coisas belas para ele? Era tão superficial assim? Se, algum dia, tivesse uma grande e linda casa, com aposentos incontáveis recheados com coisas finas, teria um coração mais leve?

Não, pensou. Não se ficasse sozinho sob o grandioso teto.

Sentia falta de pessoas com a mesma mentalidade convivendo juntas, de uma comunidade levantada por paredes firmes, de um grupo que fosse sua família por sangue e escolha. Na verdade, a Irmandade não vivia junta, pois isto era visto por Wrath, o Justo, como um risco à raça – se suas posições fossem delatadas ao inimigo de alguma maneira, todos estariam expostos.

Darius entendia a linha de pensamento, mas não tinha certeza se concordava com isso. Se os seres humanos podiam viver em seus castelos fortificados em meio aos campos de batalhas, os vampiros poderiam fazer o mesmo.

Contudo, sejamos justos, a Sociedade Redutora era um adversário bem mais perigoso.

Depois de caminhar pelo corredor por algum tempo, finalmente encontraram o que esperava: uma passagem que dava para uma escadaria nos fundos, completamente sem adornos.

Descendo os degraus de pinho, entraram numa pequena cozinha e o aparecimento deles interrompeu a refeição que estava sendo feita numa longa mesa de carvalho.

Os doggen soltaram suas canecas de cerveja e pedaços de pão e se colocaram em pé.

– Por favor, voltem a comer – disse Darius, insistindo com as mãos para que voltassem a seus lugares. – Desejamos falar com o mordomo do segundo andar e com a criada pessoal da filha.

Todos retornaram a seus lugares ao longo da bancada, com exceção de dois: uma fêmea de cabelos brancos e um jovem macho com um rosto gentil.

– Poderia nos sugerir um lugar com alguma privacidade? – Darius disse ao mordomo.

– Temos uma sala de estar indo por ali. – Assinalou em direção a uma porta perto da lareira. – Encontrarão o que procuram lá dentro.

Darius assentiu e se dirigiu à criada, que estava pálida e trêmula, como se estivesse em apuros.

– Não fez nada de errado, minha cara. Venha, isto será rápido e indolor, garanto.

Melhor começar com ela. Não tinha certeza se aguentaria esperar até terminarem com o mordomo.

Tohrment abriu o caminho e os três entraram em uma sala que tinha tanta personalidade quanto um amontoado de pergaminhos em branco.

Como sempre acontecia em grandes propriedades, os aposentos da família eram construídos com luxo e requinte. E os dos empregados não tinham nada além do básico.


CAPÍTULO 21

Quando o Bentley de Rehv saiu da estrada 149 Norte e entrou com cuidado em um caminho estreito de terra, John inclinou-se sobre o para-brisa. Os faróis iluminavam árvores desfolhadas enquanto o sedan serpenteava cada vez mais perto do rio, a paisagem era repleta de mato e pouco acolhedora.

A pequena cabana de caça que surgiu era absoluta e positivamente nada digno de nota. Pequena, escura e despretensiosa, com uma garagem independente da casa. Era rústica, mas estava em perfeito estado.

Saiu do carro e já estava caminhando para a porta da frente antes de Rehv sair de trás do volante. O sentimento predominante de medo que sentia era, na verdade, um bom sinal. Sentiu a mesma coisa no acampamento sympatho e fazia sentido ela proteger seu espaço particular com um campo de força semelhante.

O som de suas botas soou alto em seus ouvidos enquanto cruzava a terra batida da rua estreita, e então tudo ficou em silêncio ao atingir o gramado raso, marrom e desalinhado. Não bateu, mas estendeu a mão para a maçaneta e ordenou mentalmente que a fechadura se abrisse.

Só que... ela não se moveu.

– Não vai ser capaz de entrar aí usando sua mente. – Rehv chegou com uma chave de cobre, colocou a coisa em uso e abriu caminho.

Quando a forte e sólida porta foi colocada de lado, John estreitou o olhar para a escuridão e inclinou sua cabeça, esperando um alarme disparar.

– Ela não acredita em alarmes – disse Rehv calmamente antes de deter John enquanto corria para dentro. Em um tom mais alto, o homem gritou:

– Xhex? Xhex? Abaixe a arma... somos eu e John.

De alguma maneira sua voz não soava bem, pensou John.

E não houve resposta.

Rehv acendeu as luzes e soltou o braço de John enquanto entravam. A cozinha nada mais era do que uma pequena área com apenas o essencial: forno a gás, uma geladeira velha e uma pia de aço inoxidável. Mas tudo estava impecável e não havia desordem alguma. Sem correspondência, sem revistas. Nenhuma arma empunhada.

Mofo. O ar estava parado e mofado.

Do outro lado, havia um único quarto grande com janelas com vista para o rio. A mobília era mínima: nada além de duas cadeiras de vime, um sofá e uma mesa pequena.

Rehv atravessou, caminhando em direção à única porta fechada à direita.

– Xhex?

Outra vez com aquela voz. E, então, o macho colocou a mão no batente da porta e inclinou-se sobre os painéis, fechando os olhos.

Com um arrepio, Rehv abaixou os ombros enormes.

Ela não estava lá.

John adiantou-se e abriu caminho tateando pelo quarto. Vazio. Assim como o banheiro do outro lado.

– Maldição! – Rehv girou sobre os calcanhares e se afastou. Quando uma porta bateu na lateral da cabana que dava para o rio, John percebeu que o sujeito havia saído para a varanda e estava olhando para a água fixamente.

John amaldiçoou em pensamento enquanto olhava ao redor. Tudo estava limpo e organizado. Nada fora do lugar. Nenhuma abertura nas janelas para entrar ar fresco ou portas que haviam sido abertas recentemente.

A poeira fina sobre as maçanetas e fechaduras lhe disse isso.

Xhex poderia ter passado por ali, mas já tinha ido embora. E se veio, não ficou muito tempo ou fez muita coisa, porque não podia detectar nada de seu perfume.

Sentiu como se a tivesse perdido novamente.

Cristo, pensou que o fato de estar viva fosse o suficiente para sustentá-lo, mas a ideia de que ela se encontrava em lugar algum do planeta, mas longe dele, o paralisava de maneira muito estranha. Além disso, se sentia cego pela situação; ainda não sabia os “comos” e “porquês” e “ondes” de nada daquilo.

Estava péssimo, para ser sincero.

Por fim, saiu para juntar-se a Rehv na pequena varanda. Agarrando seu bloco de notas, rabiscou rapidamente e rezou para que o sympatho conseguisse entender aquilo que iria dizer.

Rehv olhou por cima do ombro e leu o que John segurava. Depois de um momento, disse:

– Sim, claro. Direi aos Irmãos que ela não estava aqui e que você foi comigo comer no restaurante de iAm. Isso vai te dar umas boas três, quatro horas no mínimo.

John colocou a mão no peito e curvou-se profundamente.

– Só não saia por aí lutando. Não preciso saber para onde está indo, isso é assunto seu. Mas se você se matar, arrumo noventa e nove problemas e você é o maior deles. – Rehv olhou de volta para o rio. – E não se preocupe com ela. Já fez isso antes. Esta é a segunda vez que... Xhex foi raptada.

A mão de John agarrou com força o antebraço do macho. Rehv nem sequer pestanejou... contudo, havia rumores de que não sentia nada por causa do que fazia para controlar seu lado sympatho.

– Sim. Esta é a segunda vez. Ela e Murhder estavam juntos... – Quando as presas de John apareceram, Rehv sorriu discretamente. – ... isso foi há muito tempo. Não precisa se preocupar. Mas ela acabou indo para a colônia por razões familiares. Porém, eles a prenderam lá e não a deixaram sair. Quando Murhder subiu para buscá-la, os sympathos o pegaram também e a situação ficou crítica. Eu tive que fazer uma barganha para soltar os dois, mas a família dela a vendeu no último segundo, bem debaixo do meu nariz.

John engoliu em seco e sinalizou sem pensar. Para quem?

– Humanos. Contudo, ela se libertou como fez dessa vez. E então foi embora por um tempo. – Os olhos de ametista de Rehv brilharam. – Ela sempre foi forte, mas depois do que aqueles humanos fizeram a ela, tornou-se muito dura.

Quando?, John gesticulou.

– Há uns vinte anos. – Rehv voltou a encarar a água. – Para sua informação, ela não estava brincando naquela mensagem. Não vai apreciar ninguém chegando e sendo seu herói com Lash. Vai ter que fazer isso sozinha. Quer ajudar nessa situação? Deixe que ela vá até você quando estiver pronta... e fique fora do seu caminho.

Sim, bem, provavelmente ela não teria pressa em mandar uma mensagem de texto, pensou John. E quanto à coisa com Lash? Não tinha certeza se conseguiria deixar essa passar. Nem mesmo por ela.

Para interromper seu próprio pensamento, John estendeu a mão. Os dois aproximaram peito com peito em um breve abraço e depois John se desmaterializou.

Quando tomou forma, estava de volta no Parque Xtreme, atrás do galpão, olhando para as rampas e obstáculos vazios. O líder dos traficantes não estava de volta. Também não havia nenhum skatista. As duas coisas faziam sentido. Uma batida na noite anterior com um monte de tiras surgindo? E com uma chuva de balas?

O lugar seria uma cidade fantasma por um tempo.

John inclinou-se contra a madeira áspera, seus sentidos em alerta. Estava consciente da passagem do tempo, tanto por causa da posição da lua bem no meio do céu, quanto porque seu cérebro deixou o estado maníaco e entrou numa agitação mais razoável. Que também era uma droga, mas era mais fácil de lidar.

Xhex estava livre e ele nem sequer sabia em que condições estava. Será que estava machucada? Será que precisava se alimentar? Será que ela...

Certo. Hora de parar com esse ciclo vicioso.

E provavelmente ele deveria cair fora. Wrath havia sido muito claro sobre aquele negócio de “não lutar sem Qhuinn” e o parque ainda podia ser considerado um lugar perigoso.

De repente, deu-se conta de onde precisava ir.

Levantando-se daquela posição, fez uma pausa e olhou em volta com a testa franzida. A sensação de estar sendo observado e seguido o envolveu mais uma vez... exatamente como aconteceu na loja de tatuagens.

Porém, naquela noite, simplesmente não tinha energia para suportar mais uma boa dose de paranoia, então apenas se desmaterializou, imaginando que quem quer ou o que quer que fosse iria segui-lo outra vez ou o perderia no ar... e não estava preocupado com o que seria.

Estava muito desgastado.

Quando tomou forma novamente, estava a apenas algumas quadras de onde tinha lutado com aquele redutor na noite anterior. Do bolso interno de sua jaqueta de couro, tirou uma chave de cobre que era exatamente igual a que Rehv usou na cabana de caça.

Estava com aquela coisa há mais ou menos um mês e meio. Xhex tinha lhe dado na noite em que dissera a ela que podia confiar nele sobre seu segredo sympatho e, assim como os cilícios, ele a levava por onde quer que fosse.

Esquivando-se sob as escadarias de uma casa de arenito, inseriu o pedaço de metal e abriu a porta. As luzes no corredor do porão foram ativadas pelo movimento e o trecho de pedras caiadas foi iluminado instantaneamente.

Teve o cuidado de trancar a porta atrás de si e desceu.

Ela ofereceu-lhe abrigo naquele lugar secreto antes. Tinha concedido acesso a seu quarto no porão quando precisou ficar sozinho. E ao aproveitar sua hospitalidade, aquilo o levou à perda de sua virgindade.

No entanto, ela se recusou a beijá-lo.

A mesma chave funcionou na porta do quarto, o mecanismo de trava se deslocou suavemente. Ao movimentar os amplos painéis de metal, a luz se acendeu e ele entrou.

John morreu um pouco com o que viu na cama: seu coração e sua respiração pararam, suas ondas cerebrais cessaram, seu sangue gelou nas veias.

O corpo nu de Xhex estava enrolado nos lençóis.

Quando o quarto foi inundado pela luz, a mão dela agarrou a arma que estava apoiada sobre o colchão e a apontou para a porta.

Não tinha forças nem para levantar a cabeça ou a arma, mas ele tinha certeza de que poderia puxar o gatilho.

Levantando os braços e mostrando as palmas das mãos, deu um passo para o lado e fechou a porta com o pé para protegê-la.

Sua voz era quase um sussurro.

– John...

Uma única lágrima cor vermelho-sangue surgiu e a assistiu escorrer devagar e com facilidade pelo nariz até pingar sobre o travesseiro.

A mão dela afastou-se da arma e foi para o rosto, movendo-se com cuidado a cada centímetro, como se precisasse de tudo o que tinha para fazer isso. Cobriu-se da única maneira que podia, com seu escudo de mãos e dedos escondendo as lágrimas.

Ela estava toda marcada por hematomas em vários estágios de cura e tinha perdido muito peso, seus ossos pareciam prestes a romper sua carne. Sua pele estava cinza ao invés de um rosa saudável e seu perfume natural era praticamente inexistente.

Ela estava morrendo.

O horror daquilo tudo fez com que seus joelhos vacilassem ao ponto de ser obrigado a se apoiar contra a porta.

Mas mesmo enquanto oscilava, sua mente não parava. A doutora Jane precisava vê-la e Xhex precisava se alimentar.

Não tinham muito tempo pela frente.

Para sobreviver, ele teria que assumir a partir daquele momento.

John arrancou sua jaqueta de couro e arregaçou as mangas enquanto se dirigia até ela. A primeira coisa que fez foi cobrir gentilmente sua nudez puxando o lençol sobre seu corpo. A segunda foi empurrar seu punho direto contra a boca dela... e esperar que seus instintos assumissem o controle.

Sua mente podia não desejá-lo, mas seu corpo não seria capaz de resistir ao que tinha para oferecer.

Sobrevivência sempre prevaleceu sobre os assuntos do coração. Ele era uma prova viva disso.


CAPÍTULO 22

Xhex sentiu um suave roçar em seu ombro e quadril enquanto John puxava o lençol em volta.

Por trás do aconchego de sua mão, ela inalou e tudo o que sentiu dizia respeito a um macho bom, limpo e saudável... e o cheiro provocou uma fome profunda dentro dela, seu apetite e necessidades a despertaram de seu sono com um rugido.

E isso foi antes de John colocar seu pulso tão perto dela que poderia beijá-lo.

Seus instintos sympatho serpentearam e leram as emoções dele.

Calmo e decidido. Totalmente centrado na cabeça e no coração: John iria salvá-la nem que fosse a última coisa que fizesse.

– John... – sussurrou.

O problema daquela situação... bem, um deles... era que não estava sozinho em saber o quão perto da morte ela estava.

Enquanto foi encarcerada e abusada, sua fúria contra Lash tinha sido um sustento e pensou que continuaria sendo quando saísse. Mas no instante em que ligou para Rehv, toda sua energia foi drenada e sobraram apenas as batidas de seu coração. E, mesmo isso, não era muito.

John colocou o pulso ainda mais perto... de modo que a pele dele roçou contra sua boca.

Seus caninos se alongaram num impulso lento ao mesmo tempo em que seu coração soluçou como se não estivesse trabalhando direito.

Tinha uma opção naquele momento silencioso e tenso: tomar sua veia e continuar vivendo. Ou negar isso e morrer na frente dele na próxima hora ou coisa assim. Porque ele não iria a lugar nenhum.

Afastando a mão do rosto, ela o percorreu com o olhar. Estava lindo como sempre, o tipo de rosto com que as fêmeas sonhavam.

Erguendo a palma da mão, ela o tocou.

A surpresa cintilou em seus olhos e então se inclinou para que sua mão pousasse sobre sua face quente. O esforço de manter o braço elevado mostrou ser algo extremo, mas quando seus dedos tremeram, ele colocou sua mão sobre a dela, segurando-a no lugar.

Seus profundos olhos azuis eram uma espécie de paraíso, com a cor de um céu quente ao escurecer.

Tinha que tomar uma decisão. Tomar sua veia ou...

Como não conseguia encontrar energia para terminar o pensamento, sentiu como se tivesse perdido a si mesma: considerando o fato de que parecia estar consciente, supôs que estava viva... mas, ainda assim, não sentia como se estivesse em sua própria pele. Sua luta tinha passado, a coisa que a tinha definido no mundo tinha evaporado. O que fazia sentido. Não tinha mais interesse em viver e não poderia fingir nem para ele, nem para si mesma.

Duas viagens ao parque dos prisioneiros a levaram longe demais.

Então... o que fazer, o que fazer?

Lambeu os lábios secos. Não nasceu sob condições que pudesse escolher, e seu tempo respirando, comendo, lutando e transando não trouxe melhoria alguma ao ponto de onde havia começado. Contudo, poderia partir sob suas próprias condições... e fazer isso depois que tivesse colocado as coisas em ordem.

Sim, essa era a resposta. Graças às três últimas semanas e meia, tinha uma ótima lista de coisas a fazer antes de morrer. Claro, havia apenas uma coisa nesta lista, mas algumas vezes isso é o suficiente para motivá-lo.

Num ímpeto de determinação, sua forte pele externa se reformou, a estranha sensação de flutuar que a confundia se dissipou e deixou uma aguda consciência de seu despertar. De repente, tirou a mão que estava embaixo da de John e a retirada cravou um surto de puro medo na grade emocional dele. Mas então puxou seu pulso e expôs suas presas.

O triunfo de John se traduziu numa onda de calor.

Pelo menos até tornar-se evidente que não tinha forças para romper a pele dele... seus caninos não fizeram nada além de arranhar a superfície. Porém, John estava atento. Com um movimento rápido, perfurou sua própria veia e levou aquela fonte até os lábios dela.

O primeiro gole foi... uma transformação. O sangue dele era tão puro que ardeu em sua boca e garganta... e o fogo que se acendeu em seu estômago percorreu todo seu corpo, descongelando-a, animando-a. Salvando-a.

Com ávidas sucções ela tomou dele para reviver, cada gole era um bote salva-vidas, uma corda sendo jogada no penhasco da sua morte, uma bússola que precisava para encontrar o caminho de volta para casa.

E ele deu isso a ela sem expectativas, esperanças ou impulsionado por emoções.

O que, aliás, em meio ao seu frenesi, lhe causou dor. Ela tinha mesmo partido seu coração: não sobrou nada de expectativa nele. Mas não havia abalado o macho – e isso fez com que o respeitasse como nada mais teria conseguido.

Enquanto se alimentava, o tempo corria assim como seu sangue, fluía no infinito e dentro dela.

Quando finalmente ficou saciada, liberou sua pele e lambeu para fechar a ferida.

O tremor começou logo depois. Iniciou-se nas mãos e pés e rapidamente se centralizou no peito, tremores incontroláveis que chacoalhavam seus dentes, seu cérebro e sua visão até que sentiu como se fosse um pé de meia jogado numa secadora.

Através do tremor, viu John tirando seu celular da jaqueta.

Tentou agarrar sua camisa.

– N-n-n-não. N-n-n-não...

Ele a ignorou, inclinando a maldita coisa e enviando uma mensagem de texto.

– D-d-d-droga... – ela grunhiu.

Quando fechou o telefone, disse:

– T-tentar me levar ao H-Havers a-agora n-n-não vai d-dar c-certo.

Seu medo de clínicas e de procedimentos médicos ia deixá-la no limite e, graças a ele, agora tinha energia para fazer algo com seu pânico. E não ia ser uma alegria para ninguém lidar com isso.

John pegou um bloco e rabiscou alguma coisa. Virou o papel e saiu um momento depois. Tudo que ela conseguiu fazer foi fechar os olhos quando a porta também se fechou.

Abrindo os lábios, respirou pela boca e imaginou se teria energia suficiente para levantar, se vestir e sair antes que a ideia brilhante de John aparecesse. Uma rápida avaliação a informou que não ia acontecer. Se não conseguia levantar a cabeça e mantê-la erguida do travesseiro por mais de um segundo e meio, não tinha jeito de conseguir ficar em pé.

Não levou muito tempo para que John voltasse com a doutora Jane, a médica pessoal da Irmandade da Adaga Negra. A fêmea fantasmagórica trazia uma maleta preta e transpirava o tipo de competência médica que Xhex valorizava – mas teria preferido infinitamente que toda aquela competência fosse aplicada a outros e não nela.

A doutora Jane se aproximou e colocou suas coisas no chão. Seu jaleco branco e sua roupa de hospital eram referências sólidas para os olhos, embora seu rosto e mãos fossem translúcidos. Porém, tudo mudou quando ela sentou na beirada da cama. Tudo nela tomou forma e a mão que pousou sobre o braço de Xhex era calorosa e firme.

No entanto, mesmo a compassiva médica fez a pele de Xhex formigar. Não queria mesmo ser tocada por ninguém.

Quando a boa doutora removeu a mão, teve a sensação que a fêmea sabia disso.

– Antes que me diga para ir embora, tem algumas coisas que precisa saber. Em primeiro lugar, não vou divulgar a sua localização a ninguém e não vou compartilhar nada que me diga ou qualquer coisa que eu descubra. Tenho que relatar a Wrath que a vi, mas qualquer descoberta clínica será sua e apenas sua.

Soava bem. Na teoria. Mas não queria a fêmea em nenhum lugar perto dela com o que havia naquela maleta preta.

A doutora Jane continuou:

– Segundo, eu não sei absolutamente nada sobre sympathos. Portanto, se há algo anatômico distinto ou significativo para essa sua metade... não vou necessariamente saber como tratar. Ainda consente em ser examinada por mim?

Xhex limpou a garganta e tentou travar os ombros, para que não tremesse tanto.

– Eu não q-quero ser examinada.

– Isso foi o que John disse. Mas você já passou por um trauma...

– N-n-não foi tão mal assim. – Sentia a resposta emocional de John vindo do canto de onde ele estava, mas não tinha energia para descobrir os detalhes do que estava sentindo. – E eu estou b-b-bem...

– Então deveria encarar isso como uma simples formalidade.

– Eu p-p-pareço com alguém que é formal?

O olhar verde-floresta da doutora Jane se estreitou.

– Você parece alguém que foi espancada. Que não se alimentou de maneira adequada. E que não dormiu. A não ser que queira me dizer que esse machucado roxo em seu ombro é maquiagem. Ou que essas bolsas debaixo dos seus olhos são uma miragem.

Xhex estava bem familiarizada com pessoas que não aceitavam “não” como resposta... pelo amor de Deus, trabalhou com Rehv por anos. E considerando aquele tom rígido e equilibrado, estava muito claro que a doutora iria fazer as coisas do jeito dela ou não iria embora. Nunca.

– M-m-maldição.

– Para sua informação, quanto mais cedo começarmos, mais cedo termina.

Xhex encarou John, pensando que se tinha que ser examinada, a presença dele ali não seria vantagem alguma. Ele realmente não precisava saber nada além do que provavelmente já supunha sobre a condição dela.

A doutora olhou sobre o ombro.

– John, você poderia, por favor, esperar no corredor?

John abaixou a cabeça e se inclinou para fora do quarto, a tremenda largura das suas costas desaparecendo pela porta. Quando a fechadura fez um clique, a boa doutora abriu aquela maldita maleta e o estetoscópio e o medidor de pressão foram os primeiros a sair.

– Só vou ouvir seu coração – disse, colocando o estetoscópio nas orelhas.

A visão dos instrumentos médicos foi gasolina para os tremores de Xhex, e estando fora de si como estava, ela se encolheu afastando-se.

A doutora Jane fez uma pausa.

– Não vou machucar você. E não vou fazer nada que você não queira.

Xhex fechou os olhos e virou de costas. De repente, cada músculo de seu corpo doeu.

– Vamos acabar logo com isso.

Quando o lençol foi levantado, uma corrente de ar frio correu sobre sua pele e um disco gelado foi colocado sobre seu peito. Flashbacks ameaçaram enviá-la para uma montanha-russa assustadora e começou a encarar o teto, apenas para tentar evitar sair levitando do maldito colchão.

– S-seja rápida, d-d-doutora. – Não conseguiria conter o pânico por muito tempo.

– Poderia respirar fundo para mim?

Xhex fez o melhor que podia e acabou estremecendo. Estava claro que uma ou mais das suas costelas estavam quebradas, provavelmente de bater na parede ao sair daquele quarto.

– Pode se sentar? – A Dra. Jane perguntou.

Xhex gemeu quando tentou levantar seu tronco da cama e falhou. A doutora Jane acabou tendo de ajudá-la, e quando fez isso, assoviou um pouco.

– Não dói tanto assim – Xhex exclamou.

– Difícil de acreditar. – De novo, o disco de metal andou sobre ela. –Respire o mais profundo que puder.

Xhex respirou fundo e ficou aliviada quando a mão gentil da doutora impulsionou suas costas contra os travesseiros e o lençol flutuou de volta para o lugar.

– Posso examinar os machucados de seus braços e pernas? – Quando Xhex deu de ombros, a doutora Jane colocou o estetoscópio de lado e se moveu ao redor da cama. Houve outra corrente de ar quando o lençol foi retirado... e então a outra fêmea hesitou.

– Marcas muito profundas de ataduras ao redor dos tornozelos – murmurou a doutora, quase para si mesma.

Bem, isso foi porque Lash a havia amarrado com arame algumas vezes.

– Muitas contusões...

Xhex interrompeu a inspeção quando o lençol foi puxado em direção aos quadris.

– Vamos apenas dizer que continuam por toda parte de cima, certo?

A doutora Jane recolocou o lençol onde estava.

– Posso apalpar sua barriga?

– Vá em frente.

Xhex se enrijeceu com a ideia de ser descoberta de novo, mas a doutora apenas esticou o lençol, empurrou e apalpou. Infelizmente não havia como esconder os tremores, especialmente quando as coisas se encaminharam para a parte inferior do estômago.

A doutora se acomodou e olhou dentro dos olhos de Xhex.

– Alguma chance de me deixar fazer um exame interno?

– Interno como em... – Quando entendeu o significado, Xhex balançou a cabeça. – Não. Não vai acontecer.

– Foi agredida sexualmente?

– Não.

A doutora Jane assentiu.

– Existe algo que eu precise saber e que você não me contou? Dor em algum lugar específico?

– Estou bem.

– Você está sangrando. Não tenho certeza se está ciente disso, mas está sangrando.

Xhex franziu a testa e olhou para seus braços trêmulos.

– Há sangue fresco na parte interna de suas coxas. Por isso perguntei se poderia fazer um exame interno.

Xhex sentiu uma onda de horror vindo sobre ela.

– Vou perguntar mais uma vez. Foi agredida sexualmente? – Não havia nenhuma emoção por trás das palavras técnicas e a doutora havia acertado nisso. Xhex não estava interessada em nenhuma histeria, choradeira ou piedade exagerada.

Quando não respondeu, a doutora Jane leu o silêncio corretamente e disse:

– Alguma chance de estar grávida?

Oh... Deus.

Os ciclos sympatho eram estranhos e imprevisíveis e estava tão afetada pelo drama do rapto e do cativeiro que nem tinha pensado nas consequências.

Naquele momento, desprezou ser uma fêmea. Realmente desprezou.

– Eu não sei.

A doutora assentiu.

– Como pode dizer se está?

Xhex apenas balançou a cabeça.

– Não tem como eu estar. Meu corpo passou por muita coisa.

– Deixe-me fazer o exame interno, ok? Apenas para ter certeza que não há nada acontecendo lá dentro. E então eu gostaria de levá-la ao complexo da Irmandade para que possa fazer um ultrassom. Sentiu-se muito mal quando examinei sua barriga. Pedi ao Vishous para vir com o carro... deve estar quase chegando.

Xhex mal conseguia ouvir o que estava sendo dito a ela. Estava ocupada demais relembrando as duas últimas semanas. Esteve com o John na véspera do rapto. Aquela última vez. Talvez...

Se estivesse grávida, recusava-se com todas as forças a acreditar que tinha alguma coisa a ver com Lash. Isso seria muito cruel. Cruel demais.

Além disso, talvez houvesse outra razão para o sangramento.

Parte de seu cérebro insistia em salientar que podia ser um aborto espontâneo.

– Faça isso – Xhex disse. – Mas faça rápido. Eu não lido bem com essa porcaria toda e não vou ficar muito entusiasmada se levar mais que alguns minutos.

– Serei rápida.

Enquanto fechava os olhos e se preparava, uma rápida mostra de slides se iniciou em sua cabeça. Primeira imagem: seu corpo numa mesa de aço inoxidável de uma sala de azulejos. Próxima imagem: seus tornozelos e pulsos presos no lugar. Próxima imagem: médicos humanos com olhos arregalados dizendo “olha só isso” aproximando-se dela. Próxima imagem: uma câmera de vídeo no seu rosto e descendo para produzir uma visão panorâmica. Próxima imagem: um bisturi capturando a luz.

Estalos.

Suas pálpebras se abriram com força com aqueles sons porque não tinha certeza se o que estava ouvindo era na sua cabeça ou no quarto. Era o último. A doutora Jane tinha colocado suas luvas de látex.

– Vou ser gentil – Jane disse.

O que era um termo relativo, claro.

Xhex agarrou os lençóis e sentiu espasmos na parte interna de suas coxas ao ficar rígida da cabeça aos pés. A boa notícia do ato de congelar com força foi que isso a curou daquela gagueira.

– Prefiro que seja rápida.

– Xhex... eu quero que olhe direto para mim. Agora.

O olhar disperso de Xhex voltou-se para ela.

– O que?

– Mantenha-se olhando em meus olhos. Bem aqui. – A doutora apontou para seus olhos. – Mantenha o olhar. Prenda-se em meu rosto e saiba que já passei por isso, certo? Sei exatamente o que estou fazendo e não apenas porque fui treinada.

Xhex se esforçou para focar e... Jesus, aquilo ajudava. Encontrar aquele olhar verde realmente ajudou.

– Você vai sentir.

– Como assim?

Xhex clareou a garganta.

– Se eu estiver... grávida, você vai sentir.

– Como?

– Quando você... haverá um padrão. Dentro. Não vai... – Respirou com dificuldade, recorrendo às fábulas que havia ouvido do povo de seu pai. – As paredes não estarão suaves.

A doutora Jane nem sequer piscou.

– Entendi. Pronta?

Não.

– Sim.

Xhex estava suando frio quando o exame terminou e a costela que estava quebrada gritou por causa de sua forte respiração entrecortada.

– E então? – disse ela com voz rouca.


CAPÍTULO 23

– Estou dizendo... Eliahu está vivo. Eliahu Rathboone... está vivo.

Em pé, em seu quarto, na mansão Rathboone, Gregg Winn olhou para fora da janela, observando o belo musgo espanhol típico da Carolina do Sul. Sob o luar aquela porcaria era assustadora, como uma sombra projetada por algum objeto desconhecido... ou corpo.

– Gregg, você me ouviu?

Depois de esfregar os olhos para dispersar o sono, olhou sobre o ombro em direção à sua jovem narradora. Holly Fleet estava do lado de dentro da porta, seu longo cabelo loiro puxado para trás, seu rosto sem maquiagem, seus olhos não eram tão grandes ou cativantes sem os cílios falsos ou o material cintilante que usava na frente da câmera. Mas o roupão de seda rosa não fazia nada, absolutamente nada para esconder seu corpo que era um arraso.

E estava praticamente vibrando, seu diapasão interno parecia ter sido acionado por uma maldita campainha.

– Está ciente – Gregg arrastou as palavras – de que o filho da mãe morreu há mais de 150 anos?

– Então, o fantasma dele está mesmo aqui.

– Fantasmas não existem. – Gregg voltou a olhar a paisagem. – Você, dentre todas as pessoas, deveria saber disso.

– Este aqui existe.

– E você me acordou de madrugada para dizer isso?

Não foi uma atitude legal da parte dela. Todos eles praticamente não dormiram na noite anterior e ele tinha passado o dia pendurado no telefone ligando para Los Angeles. Tinha deitado a cabeça no travesseiro há uma hora, sem a pretensão de cair no sono – mas felizmente seu corpo tinha planos diferentes.

Ou isso ou seu cérebro estava dizendo para desistir, pois as coisas não estavam indo bem. Aquele mordomo se recusava a ceder quanto à autorização. As duas tentativas de reaproximação de Gregg foram mal-sucedidas: a do café da manhã foi educadamente recusada e a do jantar completamente ignorada.

Enquanto isso, tinham feito ótimas imagens que já estavam sendo enviadas. Graças às evocativas cenas capturadas na surdina, o chefão havia lhe dado o aval para mudar a localização do especial – mas estavam pressionando-o para que enviasse uma prévia que pudessem transmitir o mais rápido possível.

O que não poderia acontecer até que o mordomo cedesse.

– Ei? – Holly exclamou. – Está me ouvindo?

– O quê?

– Quero ir embora.

Franziu a testa, pensando que ela não tinha neurônios suficientes para se assustar com nada menor que um caminhão de dezoito rodas com o nome dela na grade dianteira.

– Pra onde?

– De volta para Los Angeles.

Ele quase recuou.

– Los Angeles? Está brincando...? Certo, isso não vai acontecer. A não ser que queria viajar de volta como bagagem. Temos um trabalho a fazer aqui.

O que, considerando o problema com aquele mordomo idiota, isso incluiria muita paciência e súplica. E o último era a praia de Holly. E afinal... se estava assustada, aquilo funcionaria como vantagem. Poderia usar seu medo para influenciar o mordomo. Normalmente, homens respondem bem a esse tipo de coisa – em especial, os senhores gentis e educados que canalizam seu cavalheirismo por cada um de seus ossos secos e delgados.

– Eu estou mesmo... – Holly puxou as lapelas de seda para mais perto de seu pescoço... de modo que a frente de seu roupão ficou ainda mais esticada e apertada contra seus mamilos enrijecidos. – Estou em pânico.

Hum. Se isso era uma manobra para levá-lo para a cama... não estava tão cansado.

– Venha aqui.

Estendeu os braços, e quando ela se aproximou e colocou seu corpo contra o dele, Gregg sorriu. Deus, ela cheirava bem. Não era aquela droga de perfume floral que costumava usar, mas alguma coisa mais misteriosa. Era muito bom.

– Querida, sabe que tem que ficar conosco. Preciso de você para fazer sua mágica.

Lá fora, os musgos espanhóis balançavam com a brisa, a luz do luar os capturava e criava a ilusão de serem véus de seda, assim as árvores pareciam estar envoltas em mantos.

– Alguma coisa não está certa aqui – disse ela em seu peito.

Lá embaixo, no gramado, uma figura solitária caminhava vagarosamente em meio à paisagem. Ficou claro que Stan tinha saído para fumar.

Gregg balançou a cabeça.

– A única coisa que não está certa aqui é aquele maldito mordomo. Não quer ser famosa? Um especial aqui abrirá portas para você. Poderia ser convidada para a próxima Dança dos Famosos. Ou para o Big Brother.

Parece que conseguiu chamar sua atenção, pois o corpo dela relaxou, e para ajudá-la, acariciou suas costas.

– Essa é minha garota. – Gregg observou Stan caminhar, mãos nos bolsos, a cabeça olhando na direção oposta da casa, seu cabelo longo movia-se no vento. Mais alguns metros e seria banhado pelo luar, quando saísse do alcance das árvores. – Agora, quero que fique aqui comigo... como eu disse, você mais que todas as outras pessoas deveria saber que essas histórias de fantasmas nunca são nada além de tábuas de assoalho velho rangendo. Temos um trabalho só porque as pessoas gostam de acreditar nessas histórias sinistras e idiotas.

Como se estivesse aproveitando a deixa, alguém subiu os degraus, o suave som dos passos pareciam sair de um verdadeiro filme de terror, os lamentos e gemidos da madeira velha penetravam o silêncio.

– É disso que está com medo? De alguns ruídos no meio da noite? – disse, afastando-se e olhando para ela. Seus lábios carnudos trouxeram algumas boas lembranças e acariciou sua boca com o polegar, pensando que talvez ela tivesse colocado mais silicone ali. Parecia estar com um inchaço e uma beleza extra.

– Não... – ela sussurrou. – Não é isso.

– Então, por que acha que há um fantasma?

Uma batida na porta soou e a voz de Stan veio abafada.

– Vocês dois estão transando ou eu posso ir para a cama agora?

Gregg franziu a testa e virou a cabeça em direção à janela. Aquela figura solitária continuou, foi banhada pelo luar... e desapareceu no ar rarefeito.

– Porque eu acabei de transar com ele – Holly disse. – Fiz sexo com Eliahu Rathboone.


CAPÍTULO 24

Do lado de fora, no corredor do porão de Xhex, John já estava marcando um caminho no chão de pedra. Indo e voltando. Indo e voltando. Enquanto ouvia absolutamente nada pela porta do quarto.

O que supunha ser uma coisa boa – esperava que não ouvir gritos ou palavrões significasse que o exame da doutora Jane não estava causando dor.

Mandou uma mensagem para Rehvenge e disse ao macho que Xhex havia sido encontrada e iriam tentar levá-la ao complexo. No entanto, não mencionou o porão. Com certeza, ela gostaria de manter isso em segredo, pois se Rehv soubesse, teria insistido em ir até lá depois de ter verificado que ela não estava na cabana de caça.

Depois de olhar o relógio, John passou as mãos outra vez por entre seus cabelos e se perguntou como machos vinculados como Wrath, Rhage e Z. lidavam com uma situação assim... Cristo, Z. teve que assistir Bella dando à luz... como diabos eles...

A porta foi aberta e ele virou-se, suas solas chiaram no chão.

A doutora Jane estava séria.

– Ela concordou em ir ao complexo. V. deve estar lá fora esperando no Escalade... Pode ver se ele está lá?

John gesticulou: Ela está bem?

– Ela passou por muita coisa. Vá ver se o carro está lá, ok? E vai precisar carregá-la, certo? Não a quero andando e não vou usar uma maca porque não precisamos fazer uma cena na rua.

John não se demorou nada ali e correu para fora do porão. Estacionado na rua, com luzes apagadas, mas o motor ligado, estava o carro de Vishous. Atrás do volante, havia um brilho laranja enquanto V. inalava sua cigarrilha.

O Irmão abaixou a janela.

– Vamos levá-la?

John assentiu uma vez e voltou a entrar correndo.

Quando chegou à porta do quarto de Xhex, estava fechada, então bateu suavemente.

– Um minuto – a doutora Jane gritou, sua voz abafada. – Ok, pode entrar.

Abriu e encontrou Xhex ainda de lado. Uma toalha havia sido enrolada ao redor dela e um lençol limpo caía da cabeça aos pés. Cristo... ele desejava que a pele dela oferecesse um pouco mais de contraste com todo aquele tecido branco.

John se aproximou e pensou que era estranho. Nunca viu a si mesmo como mais alto que ela antes. Agora parecia bem maior, e não só porque estava deitada.

Vou levantar você agora, gesticulou enquanto expressava as palavras com a boca.

Os olhos dela fixaram-se nos dele, e então ela assentiu e tentou sentar. Quando ela começou a lutar, ele se inclinou e a pegou em seus braços.

Não pesava o suficiente.

Quando ele se endireitou, a doutora Jane tirou as cobertas da cama rapidamente e as dobrou e moveu-se em direção à porta.

A rigidez no corpo de Xhex estava custando sua energia e ele queria que relaxasse, mas mesmo se tivesse voz para dizer isso, teria sido um desperdício. Ela não era do tipo que gosta de ser carregada sob nenhuma circunstância, por ninguém.

Pelo menos não... normalmente.

O corredor pareceu ter vinte quilômetros, e do lado de fora, os três metros que andou para atravessar a calçada em direção ao carro tornou-se duas vezes mais distante.

V. saltou de trás do volante e abriu a porta traseira.

– Ela pode se esticar um pouco aqui. Coloquei cobertores antes de sair.

John assentiu e foi deitá-la no suave ninho.

A mão dela o alcançou e travou no ombro dele.

– Fique comigo. Por favor.

Ele congelou por uma fração de segundo... então, usando sua força bruta, subiu no carro enquanto continuava a segurá-la. Entrar ali foi desajeitado... mas, em dado momento, colocou Xhex e a si mesmo contra a parede do interior do carro com suas pernas dobradas no joelho e ela em seu colo, abraçada contra seu peito.

As portas foram fechadas e então houve mais duas batidas e o rugido do motor.

Através das janelas escurecidas, luzes flamejavam e diminuíam enquanto atravessavam a cidade a toda velocidade.

Quando Xhex começou a tremer, envolveu seus braços ainda mais apertados ao redor dela, desejando que seu calor entrasse nela. E talvez tenha funcionado, porque depois de um momento, ela deitou a cabeça contra seu peito e o tremor diminuiu.

Deus... desejou tanto tê-la em seus braços. Tinha imaginado e visualizado cenários onde isso acontecia.

Nenhum deles era bem assim.

Inalou profundamente, planejando soltar um suspiro... e sentiu a essência que ele mesmo estava soltando. Um profundo cheiro apimentado. O tipo que sentia nos Irmãos quando suas shellans estavam por perto. O que significava que seu corpo estava demonstrando suas emoções e que não havia volta.

Maldição, não tinha como esconder a vinculação e nem detê-la. Desde sempre, desde que a viu pela primeira vez, começou a avançar pouco a pouco para mais perto daquele penhasco e ficou claro que tinha se lançado sobre o precipício quando ela se alimentou dele.

– John? – ela sussurrou.

Ele bateu levemente em seu ombro, para que soubesse que a tinha ouvido.

– Obrigada.

Colocou sua bochecha sobre o cabelo dela e assentiu com a cabeça para que pudesse sentir.

Quando se afastou de seu rosto, ele não ficou surpreso... ao menos não até perceber que ela queria olhar para ele.

Oh, Jesus, odiou a expressão em seu rosto magro. Estava assustada, aterrorizada, seus profundos olhos cinza eram da cor do asfalto.

Você está bem, gesticulou com a boca. Vai ficar bem.

– Estou? – Os olhos dela se fecharam com força. – Estou mesmo?

Se depender dele, com certeza ela ficará.

As pálpebras dela abriram de novo.

– Eu sinto muito – disse com voz rouca.

Pelo quê?

– Por tudo. Tratá-lo como tratei. Ser quem eu sou. Você merece algo muito melhor. Eu sinto... sinto muito mesmo.

Por fim, sua voz se emudeceu, e quando começou a piscar, voltou a deitar a cabeça e colocou sua mão bem em cima do coração dele.

Era em momentos assim que desejava desesperadamente conseguir falar. Afinal, não tinha como mexer o corpo dela de lá para cá para que pudesse pegar seu maldito bloco de papel.

No final, apenas a segurou com cuidado porque isso era tudo o que tinha para oferecer.

E não ia confundir as coisas. Uma desculpa não era uma declaração de amor e nem sequer era necessária, pois já a tinha perdoado de qualquer jeito. Mesmo assim, aquilo o ajudou de alguma forma. Ainda havia uma longa distância do modo como tinha desejado que as coisas fossem entre eles, mas era mil vezes melhor que nada.

John puxou o lençol para cima, sobre o ombro dela, então deixou sua cabeça cair para trás. Olhando através da janela escurecida, seus olhos procuraram as estrelas que pontilhavam o denso, negro e aveludado céu noturno.

Engraçado, sentia como se o céu estivesse contra seu peito ao invés de acima de todo o mundo.

Xhex estava viva. E em seus braços. E ele a estava levando para casa.

Sim. De modo geral, as coisas poderiam ter sido muito piores.


CAPÍTULO 25

Lash refletiria mais tarde sobre o fato de você nunca saber com quem vai cruzar no caminho. Simplesmente nunca se sabe como uma simples decisão de virar à esquerda ou à direita numa esquina mudaria as coisas. Algumas vezes as escolhas não importam. Outras... levam você a lugares inesperados.

Contudo, naquele momento, não tinha percebido isso ainda. Estava apenas fora, no campo, dirigindo, pensando sobre o tempo.

Apenas naquele que dizia respeito ao passado recente.

– Quanto falta?

Lash olhou ao longo do interior do Mercedes. A prostituta que tinha escolhido em um beco no centro da cidade tinha boa aparência e silicone suficiente para fazer filmes pornôs, mas o vício em drogas a tinha deixado ossuda e encolhida.

Desesperada também. Tão viciada que tinha custado apenas cem dólares para colocá-la no Mercedes a caminho de uma “festa”.

– Não está longe – respondeu, voltando a focar a estrada.

Estava tremendamente desapontado. Quando imaginou aquela cena em sua cabeça, Xhex estava amarrada e amordaçada no banco traseiro... muito mais romântico. Em vez disso, estava preso àquela vadia. Mas não podia lutar contra a realidade em que vivia: precisava se alimentar, seu pai estava esperando para fazer negócios e encontrar Xhex ia exigir mais tempo do que poderia dispor.

Dentre a pior de todas as concessões estava aquela vadia que mal servia como humana: muito menos útil do que uma vampira, mas esperava que seus ovários trabalhassem a seu favor, quando chegasse a hora de chupar seu sangue.

O ponto principal era: não tinha sido capaz de encontrar alguém de sua espécie que vestisse uma saia.

– Sabe? – disse ela. – Eu costumava ser modelo.

– Sério?

– Em Manhattan. Mas, sabe, aqueles bastardos... não se importam nada com você. Só querem te usar, sabe?

Certo. Primeiro, ela precisava esquecer a expressão “sabe?”. E segundo, até parece que ela estava fazendo algo muito melhor por conta própria em Caldwell.

– Gosto do seu carro.

– Obrigado – ele murmurou.

Ela se inclinou, os seios juntando-se sobre o corselete cor-de-rosa que estava vestindo. A coisa tinha manchas de gordura dos lados, como se não tivesse sido lavado há vários dias e cheirava a cerejas falsas, suor e fumaça de crack.

– Sabe? Gosto de você...

A mão dela foi até a coxa dele e depois a cabeça dela caiu em seu colo. Quando sentiu que estava procurando algo em torno de seu zíper, pegou um pedaço do emaranhado cabelo loiro esbranquiçado e puxou-a para cima.

Ela nem percebeu a dor.

– Não vamos começar isso agora – disse ele. – Estamos quase lá.

A mulher lambeu os lábios.

– Claro. Está bem.

Os campos aparados dos dois lados da estrada estavam banhados pelo luar e as casas de madeira que pontilhavam o caminho brilhavam sob a luz branca. Na maioria das casas havia uma luz na varanda e isso era tudo. Por ali, qualquer coisa que acontecesse depois da meia-noite era beeeeeem depois da hora de dormir.

E isso fazia parte do motivo pelo qual fazia sentido ter um posto ali, na terra da torta de maçã quente e bandeiras americanas.

Cinco minutos depois, pararam na casa da fazenda e estacionaram perto da porta da frente.

– Não tem ninguém aqui – disse ela. – Somos os primeiros?

– Sim. – Inclinou-se para desligar o motor. – Vamos...

O som de um clique ao lado de sua orelha o congelou.

A voz da prostituta agora estava séria:

– Saia do carro, seu filho da mãe.

Lash girou a cabeça e quase deu um beijo de língua no cano de uma nove milímetros. Na outra ponta da arma, as mãos da prostituta estavam firmes como pedra e os olhos queimavam com o tipo de inteligência sagaz que ele tinha que respeitar.

Que surpresa, ele pensou.

– Saia. Agora – ela rosnou.

Ele sorriu lentamente.

– Já disparou essa coisa antes?

– Muitas. – Ela nem piscou. – E não tenho qualquer problema com sangue.

– Ah. Bom para você.

– Saia...

– Então, qual é o plano? Ordenar que eu saia do carro. Atirar na minha cabeça e me deixar morrer. Pegar o Mercedes, meu relógio e minha carteira?

– E o que tiver no porta-malas.

– Ah, você precisa de um pneu sobressalente? Sabe, você pode comprar um em qualquer loja da Firestone ou da Goodyear. Só para saber.

– Acha que eu não sei quem é você?

Oh, tinha plena certeza de que ela não tinha a menor ideia.

– Por que não me diz?

– Já vi este carro. Já o vi. Comprei suas drogas.

– Uma cliente. Que coisa boa.

– Saia. Agora.

Quando ele não se moveu, ela deslocou a arma um centímetro para o lado e puxou o gatilho. Quando a bala estourou a janela atrás dele, ficou irritado. Uma coisa era brincar nos arredores. Outra, causar danos à propriedade.

Quando ela moveu a ponta da arma de volta entre seus olhos, ele se desmaterializou.

Tomando forma do outro lado do carro, viu quando ela surtou em seu assento, olhando ao redor, os cabelos crespos voando de um lado a outro.

Pronto para lhe ensinar uma coisa ou duas, abriu com força a porta dela e arrastou-a pelo braço. Obter o controle da arma e também dela foi questão de um momento, apenas um pegar e um agarrar. E então estava enfiando a arma na parte de trás da sua cintura e segurando-a em seu peito com uma chave de braço.

– O que... O que...

– Você disse para eu sair do carro – disse ele em seu ouvido. – Então eu saí. – Seu corpo esguio parecia fraco como uma folha ao vento, nada além de um tremor em sua roupa barata de prostituta. Em comparação com as batalhas físicas que tinha com Xhex, aquilo era como um único suspiro lutando contra uma tempestade de furacões. Que entediante.

– Vamos entrar – murmurou, descendo a boca até sua garganta e passando uma presa sobre sua jugular. – O outro convidado da festa deve estar esperando por nós.

Quando conseguiu se afastar um pouco dele, virou o rosto e ele sorriu, exibindo seu equipamento. Seu grito incitou uma coruja em cima de um galho, e para garantir que ela parasse com aquela coisa tipo Hitchcock, deu um tapa em sua boca com a palma da mão livre e forçou-a em direção à porta da frente.

Dentro, o lugar cheirava à morte, graças à indução da noite anterior e todo o sangue nos baldes. No entanto, havia uma vantagem nos resíduos. Ao acender as luzes e a garota dar uma breve olhada na sala de jantar, ficou rígida de terror e então desmaiou.

Melhor assim. Colocá-la estendida e amarrada na mesa ficou bem mais fácil.

Após recuperar o fôlego, levou os baldes para a cozinha, lavou-os na pia, limpou as facas e desejou que o Sr. D ainda estivesse por perto para cuidar da porcaria daquele serviço.

Estava colocando o jato móvel da torneira de volta no lugar quando se deu conta que o redutor que tinham transformado na noite anterior não estava a vista.

Levando os baldes à sala de jantar, ajustou-os sob os pulsos e tornozelos da prostituta e, em seguida, fez uma rápida verificação no térreo. Quando tudo o que conseguiu foi um monte de vazio, correu até o segundo andar.

A porta do armário do quarto estava aberta e havia um cabide na cama de onde uma camisa tinha sido tirada. A ducha no banheiro tinha água fresca escorrendo pelas laterais.

Mas que droga é essa?

Como diabos aquele cara conseguiu ir embora? Não havia carro, então a única outra opção era caminhar pela pista. E depois pegar uma carona. Ou fazer uma ligação direta numa dessas caminhonetes de fazendeiros.

Lash desceu e descobriu que a prostituta tinha voltado a si e estava lutando contra a mordaça em sua boca, os olhos agitados enquanto se contorcia na mesa.

– Não vai demorar – disse a ela, percorrendo com o olhar suas pernas finas. Ela tinha tatuagens nas duas, mas eram uma bela bagunça com nenhum tema definido, apenas manchas aleatórias... algumas talvez pudesse identificar, outras ficaram arruinadas por outras tatuagens ruins que foram sobrepostas.

Muitas borboletas feitas em néon, ele supunha. Talvez tivesse sido esse o plano, afinal.

Andou ao redor, indo para a cozinha e depois voltando para a sala de jantar e descendo o corredor novamente. O som agudo de saltos batendo contra a mesa e o ranger de pele nua desapareceu à distância. Perguntava-se onde diabos estava o novo recruta e por que seu pai estava atrasado.

Meia hora depois, ainda tinha um monte de nada a fazer e enviou uma pequena mensagem mental para o outro lado.

Seu pai não respondeu.

Lash subiu e fechou a porta, pensando que talvez não estivesse se concentrando corretamente porque estava chateado e frustrado. Sentado na cama, colocou as mãos sobre os joelhos e se acalmou. Quando seu batimento cardíaco ficou lento e constante, respirou fundo, chamou novamente... e nada.

Será que tinha acontecido alguma coisa com o Ômega?

Com um fluxo de emoções precipitadas, decidiu ir para o Dhunhd por si mesmo.

Suas moléculas se dissolveram bem, mas, quando tentou retomar forma no outro plano de existência, foi bloqueado. Impedido. Negado.

Foi como bater numa parede sólida, e enquanto recuava de volta ao quarto imundo na casa da fazenda, seu corpo absorveu o choque de uma onda de náuseas.

Que. Droga.

Quando seu celular vibrou, arrancou-o do bolso do paletó e franziu a testa quando viu o número.

– Alô? – disse ele.

A gargalhada que chegou através do aparelho era jovial.

– Oi, seu desgraçado idiota. Aqui é seu novo patrão. Adivinha quem acabou de ser promovido? Aliás, seu pai diz para não incomodá-lo mais. Não fez nada bem em pedir mulheres a ele... você deveria conhecer seu pai melhor do que isso. Oh, e eu tenho que matá-lo agora. Vejo você em breve!

O novo recruta começou a rir. Aquele som perfurou a cabeça de Lash através da conexão, até que a chamada foi encerrada.

Pela outra parte.


Não estava grávida. Ao menos não que a doutora Jane soubesse.

Mas graças a uma cortesia daquela pequena e feliz pausa na cidade do pânico, Xhex não se lembrava de nada da viagem ao complexo. A ideia de que havia sequer uma chance de que pudesse estar...

Afinal, não estava usando seus cilícios... e seu propósito era matar as tendências sympatho nela, inclusive a ovulação.

O que será que ela fez?

Certo, chega de pensar nisso, precisava parar. Deus era testemunha de que já tinha o suficiente com que se preocupar na categoria do “acontecendo de verdade”.

Respirando fundo, inalou o cheiro de John e concentrou-se na batida forte e firme do seu coração. Não levou muito tempo para que o sono a levasse com força, a combinação da exaustão, da falta de energia após a alimentação e da necessidade de se retirar de sua vida por um tempo a carregou para um estado de sono profundo, sem sonhos, na parte traseira do carro.

Acordou com a sensação de ser levantada e seus olhos se abriram.

John estava levando-a através de algum tipo de área de estacionamento que, considerando as paredes e o teto cavernoso, tinha que ser subterrâneo. A porta de aço maciço foi aberta por Vishous, que parecia estar com uma disposição surpreendente para ajudar, e do outro lado... era um pesadelo.

O longo e anônimo corredor tinha ladrilhos claros no chão, as paredes eram de blocos de concreto e havia um teto baixo com luzes fluorescentes.

O passado começou a deslizar naquele lugar, o filtro da experiência anterior substituiu o que estava realmente acontecendo por um pesadelo lembrado. Nos braços de John, seu corpo foi de fraco a maníaco e ela começou a lutar contra o aperto que a envolvia, lutando para se libertar. A comoção foi instantânea, as pessoas vieram correndo em sua direção, um som alto como uma sirene estridente...

Quando sentiu vagamente que seu maxilar doía, percebeu que estava gritando.

E, de repente, tudo o que viu foi o rosto de John.

De alguma forma ele conseguiu girar seu corpo de modo a ficarem frente a frente, olhos nos olhos, as mãos envolviam suas laterais e seus quadris. Com a visão daquele corredor substituída por seu olhar azul, as garras do passado foram quebradas e ela foi capturada por ele.

Não disse nada. Apenas ficou quieto e permitiu que ficasse olhando para ele.

Era exatamente o que ela precisava. Ela se prendeu em seus olhos e os usou para fechar seu cérebro.

Quando ele assentiu, ela acenou de volta e John começou a avançar novamente. De vez em quando, seu olhar se afastava para verificar onde estavam indo, mas sempre retornava.

Sempre voltava.

Havia vozes e um monte de portas abrindo e fechando, e em seguida um monte de azulejos verde-claro: estava numa sala de exame, com um lustre de luzes múltiplas acima dela e todo tipo de suprimentos médicos em armários de vidro.

Quando John a colocou sobre a mesa, perdeu o controle novamente. Seus pulmões se recusavam a fazer seu trabalho, como se o ar estivesse envenenado e seus olhos se agitavam olhando ao redor, encontrando gatilhos que disparavam o pânico, como equipamentos, instrumentos e a mesa...

– Certo, vamos perdê-la novamente. – O tom da doutora Jane era implacavelmente equilibrado. – John, venha aqui.

O rosto de John voltou a se aproximar e Xhex se prendeu em seu olhar.

– Xhex? – A voz da doutora Jane vinha mais à esquerda. – Vou lhe dar um sedativo...

– Nada de drogas! – A resposta saiu de sua boca. – Prefiro estar aterrorizada... a estar impotente...

Sua respiração estava dolorosamente entrecortada e cada movimento impotente de suas costelas a convenciam de que a vida devia ser mais sofrimento que alegria. Houve muitos desses momentos, muitas vezes a dor e o medo haviam assumido o controle, muitas sombras que não apenas esconderam, mas sugaram toda a iluminação da noite onde ela existia.

– Deixe-me ir... deixe-me ir embora... – Quando os olhos de John se arregalaram, Xhex percebeu que tinha encontrado uma das facas dele, tinha desembainhado e estava tentando colocá-la na palma de sua mão. – Por favor, deixe-me ir... Eu não quero mais ficar aqui... Acabe com isso para sempre, por favor...

Os muitos corpos paralisados em torno dela a deixaram um pouco mais focada. Rhage e Mary estavam no canto. Rehv estava lá. Vishous e Zsadist. Ninguém falava ou se mexia sequer um centímetro.

John tomou a adaga da mão dela e isso foi o que a fez chorar. Porque ele não ia usá-la. Não contra ela. Não agora... nem nunca.

E não tinha forças para fazer isso sozinha.

De repente, uma emoção tremenda ferveu em suas entranhas, e quando a pressão se expandiu e cresceu dentro de seu corpo, olhou ao redor freneticamente enquanto prateleiras começavam a chacoalhar e o computador mais ao canto a saltar sobre a mesa.

No entanto John estava atento. E foi rápido. Começou a gesticular com o mesmo tipo de urgência que ela estava sentindo e, um instante depois, todos saíram.

Exceto ele.

Tentando desesperadamente não explodir, olhou para suas mãos. Tremiam tanto que eram como as asas de uma mosca... e foi ao olhar para elas que chegou ao fundo do poço.

O grito ressoou fora dela e o som era totalmente estranho, muito agudo e horrorizado.

John manteve-se firme. Mesmo quando gritou novamente.

Ele não iria a lugar algum. Não estava agitado. Estava apenas... ali.

Agarrando o lençol que a circulava, apertou a coisa em torno de seu corpo, muito consciente de que estava desmoronando, que a fissura tinha sido atingida por aquela viagem ao fundo do corredor e agora ela estava dividida. De fato, sentia como se houvesse duas de si na sala, a louca em cima da mesa gritando a plenos pulmões e chorando lágrimas de sangue... e uma calma e sã no canto, observando John e a si mesma.

Será que as duas partes se uniriam outra vez? Ou será que ficaria sempre assim, partida em pedaços?

Sua mente escolheu o personagem observador sobre a histeria e retirou-se para aquele lugar silencioso, onde assistiu a si mesma chorando ao ponto da asfixia. As manchas de sangue que corriam pelas faces brancas como papel não a deixaram enjoada e nem os loucos olhos arregalados ou as batidas epilépticas de seus braços e pernas.

Ficou triste pela situação da fêmea que havia sido levada a tal extremo. Que procurava manter-se distante de todas as emoções.

A fêmea tinha nascido sob uma maldição. A fêmea tinha praticado o mal e o mal foi feito a ela. A fêmea tinha se endurecido, sua mente e emoções tornaram-se aço.

A fêmea estava errada em se fechar, errada sobre aquela autocontenção.

Não era um caso de força, como sempre dizia a si mesma.

Era estritamente sobrevivência... e ela simplesmente não conseguia suportar mais.


CAPÍTULO 26

– Você fez... sexo. Com Eliahu Rathboone.

Gregg afastou Holly e encarou seu rosto, pensando que, com certeza, ela tinha perdido a cabeça... bem, perdeu o pouco do que tinha. Então, eram dois, porque estava claro que aquilo que tinha acabado de “ver” lá fora era fruto de sua imaginação.

Só que os olhos dela eram totalmente sinceros e sem malícia.

– Ele veio até mim. Eu já tinha adormecido...

Outra rodada de batidas na porta a interrompeu e, em seguida, veio a voz de Stan:

– Olá? Em que quarto vou...

– Mais tarde, Stan – Gregg interrompeu. Quando as queixas diminuíram, os passos no corredor se afastaram para o quarto de Holly e uma porta foi batida.

– Venha aqui – puxou Holly para a cama. – Sente-se e me diga... o que diabos acha que aconteceu?

Focou em seus lábios inchados enquanto ela falava.

– Bem, tinha acabado de sair do chuveiro. Estava exausta e deitei na cama para descansar meus olhos antes de vestir minha camisola. Devo ter adormecido... porque a próxima coisa que percebi foi que estava tendo aquele sonho...

Oh, pelo amor de Deus.

– Holly, só porque teve um pesadelo, não significa que...

– Eu não terminei – retrucou. – E não era um pesadelo.

– Pensei que estivesse em pânico.

– A coisa assustadora veio depois. – Arqueou uma sobrancelha. – Vai me deixar falar?

– Tudo bem. – Mas só pela esperança de que ela fizesse outra coisa com a boca mais tarde. Caramba, seus lábios pareciam deliciosos... – Faça isso.

– Comecei a sonhar que aquele homem tinha entrado em meu quarto. Era muito alto e musculoso... um dos maiores homens que já vi. Estava vestido de preto e ficou parado sobre a minha cama. Cheirava muito bem... e olhou para mim... – Sua mão envolveu seu pescoço e deslizou lentamente para baixo entre seus seios. – Tirei a toalha e puxei-o para cima de mim. Foi... indescritível....

Isso era bom. Porque de repente não queria ouvir mais nada sobre o que tinha acontecido em seguida.

– Ele me possuiu – mais daquela coisa de “mão no pescoço” – como eu nunca fui possuída antes. Ele era tão...

– ... bem dotado como uma mangueira de incêndio e a possuiu de doze maneiras diferentes? Parabéns. Seu subconsciente deveria dirigir um filme pornô. O que isso tem a ver com Eliahu Rathboone?

Holly o encarou... e depois puxou a gola da camisola para um lado:

– Porque quando acordei, eu tinha isso – apontou para o que certamente parecia ser um chupão no pescoço. – Eu realmente tive relações sexuais.

Gregg franziu a testa com força.

– Você... como sabe?

– Como acha que eu sei?

Gregg limpou a garganta.

– Você está bem? – Colocou a mão em seu braço. – Quero dizer... ah, quer chamar a polícia?

O riso de Holly foi baixo e dolorosamente sexy.

– Oh, foi consensual. Seja lá o que tenha sido. – Sua expressão perdeu o fulgor. – Esse é o ponto... não sei o que foi. Pensei que estivesse sonhando. Não achei que fosse real até que...

Até que encontrar uma evidência inegável de ter sido o contrário.

Gregg acariciou seus longos cabelos loiros por cima do ombro.

– Tem certeza de que está tudo bem?

– Acho que sim.

Cara, não precisou nem sequer de um segundo para decidir.

– Bem, é isso. Estamos indo embora amanhã.

– O quê? Oh, meu Deus, Gregg... não quero causar problemas... – Ela franziu a testa. – Talvez... talvez eu também tenha sonhado a parte em que acordei. Tomei outro banho... talvez nada disso tenha acontecido de verdade.

– Dane-se, vou ligar para Atlanta pela manhã e dizer a eles que voltamos atrás. Não vou ficar onde você não esteja segura.

– Meu Deus... quero dizer, isso é muito cavalheiro da sua parte, mas... eu não sei. Tudo está tão confuso, e agora eu me pergunto se simplesmente vou me sentir melhor de manhã. Estou realmente confusa... aquilo foi estranho. – Seus dedos se ergueram até suas têmporas e começou a esfregá-las em círculos, como se a cabeça estivesse doendo. – Vou dizer que o que aconteceu foi consensual, a cada passo do caminho...

– Sua porta estava trancada? – Queria uma resposta para a pergunta, mas também não precisava ouvir sobre o fantasma bem dotado.

– Sempre tranco a porta de um quarto de hotel antes de tomar um banho.

– Janelas?

– Fechadas. Acho que estavam trancadas. Não sei.

– Bem, você fica comigo esta noite. Estará segura aqui.

E não apenas porque não iria dar em cima dela agora. Levava uma arma. Sempre. Tinha licença para usar a coisa e sabia como fazer isso: quando as pessoas começaram a ser alvejadas no tráfego de Los Angeles, decidiu andar armado.

Juntos, estenderam-se sobre a cama.

– Vou deixar a luz acesa.

– Está tudo bem. Apenas tranque a porta.

Ele assentiu e saiu da cama, fechando o cadeado e também a pequena corrente, depois fez uma passagem rápida pelas janelas para inspecionar as travas. Quando deitou, ela se aninhou na curva de seu braço e suspirou.

Inclinou-se, tirou o edredom debaixo de suas pernas e o estendeu sobre eles, desligou a luz e se acomodou nos travesseiros.

Pensou no homem lá fora caminhando pelo jardim e quase rosnou. Mas. Que. Porcaria. Poderia ser um morador do local com uma chave-mestre ou algum funcionário que conseguiu forçar a fechadura.

Supondo que nada tivesse acontecido. Algo pelo qual tinha cada vez menos certeza...

Que seja. Estavam indo embora pela manhã e era isso.

Franziu a testa na escuridão.

– Holly?

– Sim?

– Por que você acha que foi Rathboone?

Ela deu um grande bocejo.

– Porque se parecia exatamente com o retrato na sala de estar.


CAPÍTULO 27

Na sala de exames, na clínica subterrânea, John estava em pé diante de Xhex e se sentiu totalmente impotente para ajudá-la. Quando ela se sentou gritando na mesa de aço inoxidável, seus braços tensos paralelos ao corpo, segurando no lençol, seu rosto esticado, seus lábios abertos, lágrimas vermelhas escorrendo de seus olhos e caindo em suas faces brancas... e ele não podia fazer nada sobre isso.

Sabia que ela estava passando por um território difícil. Sabia que não poderia alcançá-la no fundo do poço em que se encontrava – ele próprio já esteve numa situação assim. Sabia exatamente o que era tropeçar, cair e sofrer a agonia do duro impacto... mesmo que tecnicamente seu corpo não tenha ido a lugar algum.

A única diferença era que ela tinha uma voz para dar asas a sua dor.

Enquanto seus ouvidos zumbiam e seu coração se partia por ela, permaneceu firme contra a força do vendaval que ela emanava. Afinal, sabia que as palavras “estar aqui” e “ouvir” tinham significados muito próximos. Sendo sua testemunha naquele local, ele a ouvia e estava ali por ela, porque isso é tudo o que se pode fazer quando alguém desmorona.

Mas, Deus, doía ver o quanto ela sofria. Aquilo doía e o deixava mais focado. O rosto de Lash aparecia como um fantasma, adquirindo forma física no olhar mental de John. Enquanto ela gritava e gritava, jurou vingança até que seu coração não pulsasse mais com sangue, mas com a necessidade de vingança.

Então, Xhex respirou fundo várias vezes. E mais algumas vezes.

– Acho que já parei – disse com dificuldade.

Ele esperou um momento para ter certeza. Quando ela assentiu, pegou o bloco de papel e escreveu rapidamente.

Quando mostrou a folha para ela, seus olhos se voltaram para a escrita e precisou de algumas tentativas para entender o significado.

– Posso lavar o meu rosto antes?

Ele assentiu e foi até a pia de aço inoxidável. Deixando correr a água fria, pegou uma toalha limpa dentre uma pilha e a molhou. Quando Xhex estendeu as mãos, ele entregou a toalha úmida e assistiu enquanto ela a pressionava no rosto lentamente. Era difícil vê-la tão frágil comparado com o modo como a havia conhecido: forte, poderosa e destemida.

O cabelo dela havia crescido e começava e encaracolar nas pontas, sugerindo que se ela não o cortasse teria ondas de fios grossos. Deus, queria tocar aquela suavidade.

John baixou os olhos em direção à mesa e os arregalou de repente. O lençol estava retorcido embaixo dela... e havia uma mancha escura na toalha ao redor de seus quadris.

Ele inalou profundamente, sentiu o cheiro de sangue fresco e ficou surpreso de não ter percebido antes. Mas também, estava extremamente distraído.

Oh... Cristo. Ela estava sangrando...

Ele a tocou levemente nos braços e fez um movimento labial dizendo doutora Jane.

Xhex concordou e disse:

– Sim. Vamos acabar com isso.

Frenético, John se lançou pela porta da sala de exame. Fora, no corredor, havia uma legião de rostos preocupados, sendo a doutora Jane a líder do grupo.

– Ela está pronta para mim? – Quando John deu um passo para o lado e fez um gesto de urgência, a doutora avançou.

No entanto, ele a deteve. De costas para Xhex, gesticulou: Está machucada em algum lugar. Está sangrando.

A doutora Jane colocou a mão em seu ombro e fez uma manobra ao girá-lo para que trocassem de lugar.

– Eu sei. Por que não espera lá fora? Vou cuidar bem dela. Ehlena? Importa-se de me acompanhar? Vou precisar de mais duas mãos.

A shellan de Rehvenge foi para a sala de exame e John viu por cima da cabeça da médica quando a fêmea começou a lavar as mãos.

Por que Vishous não está ajudando?, gesticulou.

– Estamos apenas fazendo um ultrassom para nos certificarmos de que ela está bem. Não estou fazendo uma cirurgia ou coisa assim. – Jane sorriu de uma maneira profissional... o que foi estranhamente assustador. E, então, a porta foi fechada em seu rosto.

Olhou em volta para todos os outros. Todos os machos foram deixados no corredor. Apenas fêmeas estavam ali dentro com ela.

Sua mente começou a se agitar e não levou muito tempo para chegar a uma conclusão que não poderia estar certa.

Uma mão pesada pousou em seu ombro e a voz de V. soou baixa:

– Não, tem que ficar aqui fora John. Vamos lá.

Foi quando percebeu que sua mão havia agarrado a maçaneta da porta. Olhando para baixo, obrigou-se a soltar... e teve que enviar o comando mais duas vezes.

Não havia mais gritos. Nenhum som.

Ele esperou. E esperou. E caminhou e esperou um pouco mais. Vishous acendeu outra cigarrilha. Blay o acompanhou, acendendo um comum. Qhuinn tamborilava sobre suas coxas. Wrath acariciava a cabeça de George enquanto o golden retriever observava John com olhos marrons e bondosos.

Por fim, a doutora Jane colocou a cabeça para fora da porta e procurou por seu parceiro.

– Preciso de você.

Vishous apagou o cigarro na sola da bota e guardou a ponta no bolso de trás.

– Vamos entrar em cirurgia?

– Sim.

– Deixe-me trocar de roupa.

Quando o macho se dirigiu ao vestiário, o olhar da doutora encontrou o de John.

– Vou cuidar muito bem dela...

O que há de errado? Por que ela está sangrando?

– Vou cuidar dela.

E fechou a porta outra vez.

Quando V. retornou, tinha todo o aspecto de um guerreiro, mesmo estando sem as roupas de couro, e John esperava desesperadamente que a competência no campo de batalha do cara fosse igual na área médica.

Aqueles olhos de diamante brilharam e deu uma palmada no ombro de John antes de entrar silenciosamente na sala de exame... e era óbvio que agora funcionava como sala de cirurgia.

Quando a porta se fechou, John sentiu vontade de gritar.

Ao invés disso, continuou caminhando, indo e vindo no corredor. Indo e vindo. Indo... e vindo. Em dado momento, os outros se dispersaram, dirigindo-se a uma das salas de aula nas proximidades, mas não conseguiria juntar-se a eles.

Cada vez que passava pela porta fechada, aumentava o caminho a percorrer, até que a viagem o levou para a saída, para a garagem e depois de volta ao vestiário. Suas pernas longas consumiam a distância, transformando mais cinquenta metros no equivalente a poucos centímetros.

Ou pelo menos era o que parecia.

No que deveria ser sua quinta viagem ao vestiário, John deu uma volta e viu-se na frente da porta de vidro do escritório. A mesa, os armários e o computador pareciam normais de uma maneira implacável, e encontrou um extraordinário conforto nos objetos inanimados.

Mas a tranquilidade foi perdida quando continuou a andar outra vez.

Com sua visão periférica, viu as rachaduras na parede de concreto ao longo do caminho, as quais provinham de uma única fonte de impacto.

Lembrou-se da noite que tinha acontecido. Aquela noite horrível.

Ele e Tohr estavam sentados juntos no escritório, ele fazendo a lição da escola, o Irmão tentando manter a calma enquanto ligava para casa consecutivamente. Cada vez que Wellsie não atendia, toda vez que o correio de voz atendia, a tensão aumentava... até que Wrath apareceu com a Irmandade atrás dele.

A notícia de que Wellsie tinha morrido era trágica... mas Tohr reagiu apenas quando soube o “como”: não porque estava grávida de seu primeiro filho, mas porque um redutor a matou a sangue frio. Assassinou-a. Tirando sua vida e a de seu bebê.

Foi aquilo que causou aquelas marcas.

John se aproximou e passou as pontas dos dedos pelas finas linhas de concreto. A fúria foi tão intensa, Tohr literalmente explodiu como se fosse uma supernova, a sobrecarga emocional o desmaterializou para algum outro lugar.

John nunca soube para onde tinha ido.

Uma sensação de estar sendo observado o fez levantar a cabeça e olhar por cima do ombro. Tohr estava do outro lado da porta de vidro, em pé no escritório olhando-o fixamente.

Os olhares dos dois se encontraram e foi de macho para macho, não de mais velho para mais jovem.

John tinha uma idade diferente agora. E como tantas outras coisas naquela situação, aquilo não voltaria atrás.

– John? – A voz da Dra. Jane veio de longe no corredor e ele virou-se e correu para ela.

Como ela está? O que aconteceu? Ela está...

– Ela vai ficar bem. Está voltando da anestesia. Eu a manterei na cama pelas próximas seis horas mais ou menos. Soube que ela se alimentou de você? – Ele mostrou seu pulso e a doutora assentiu. – Bom. Eu agradeceria se você permanecesse com ela, para o caso dela precisar de novo.

Como se fosse estar em outro lugar.

Quando John entrou na sala de exame, avançou nas pontas dos pés, não queria perturbar ninguém, mas ela não estava ali.

– Foi movida para o outro quarto – V. disse por cima do aparelho de esterilização.

Antes de sair pela porta do fundo, ficou olhando o resultado do que foi feito com Xhex. Havia uma alarmante pilha de gazes ensanguentadas no chão e mais sangue na mesa sobre o espaço que ela ocupava. O lençol e a toalha que a envolviam estavam amassados de um lado.

Tanto sangue. E tão fresco.

John assobiou alto para que V. olhasse.

Alguém pode me dizer que diabos aconteceu aqui?

– Pode conversar com ela sobre isso. – Enquanto o Irmão pegava um saco laranja de lixo biológico e começava a recolher as gazes usadas, V. fez uma pausa, mas não encontrou o olhar de John. – Ela vai ficar bem.

E foi então que John teve certeza.

Por pior que imaginasse como ela tinha sido tratada, havia sido ainda pior. Muito pior.

Em termos gerais, quando havia lesões sofridas em combate ou em campo, a informação era passada sem tanta ponderação: fêmur quebrado, costelas esmagadas, facadas. Mas uma fêmea entrou, foi examinada sem machos presentes e ninguém falou uma palavra referente à intervenção cirúrgica?

Não é porque os redutores são impotentes que não podem fazer outras coisas com...

Uma brisa fria passou pela sala de cirurgia fazendo V. erguer a cabeça outra vez.

– Um conselho, John. Eu manteria as suposições para si. Concluindo que quer ser a pessoa que matará Lash, certo? Não faz sentido que Rehv ou os Sombras, por mais que eu os respeite, façam aquilo que é seu por direito.

Meu Deus, o Irmão era muito legal, John pensou.

Assentido uma vez com a cabeça, foi até o quarto de Xhex, pensando que aqueles machos não eram os únicos motivos pelo qual iria refletir profundamente sobre o assunto. Xhex também não precisava saber até onde estava disposto a chegar.


Xhex sentiu como se alguém tivesse estacionado um ônibus em seu útero.

A pressão era tanta, que levantou a cabeça para verificar se seu corpo havia inchado até as dimensões de uma garagem.

Não. Plano como sempre.

Deixou a cabeça cair outra vez.

De alguma maneira, não podia acreditar onde estava agora: no pós-operatório. Deitada em uma cama com suas pernas, braços e cabeça ainda imobilizados... e o vazamento em sua parede uterina estancado.

Quando estava sob os efeitos de sua fobia médica, não conseguia discernir o que seu cérebro marcava como mortal. Para ela, naquele estado enlouquecido, não estava em um ambiente seguro, mesmo rodeada de pessoas que conhecia e que podia confiar.

Agora, depois de ter passado pelo fogo, o fato de estar sã e salva lhe proporcionou uma estranha dose de endorfina.

Houve uma batida suave e sabia quem era pelo aroma que vinha por baixo da porta.

Tocando o cabelo, perguntou-se como diabos estaria sua aparência e decidiu que era melhor não saber.

– Entre.

A cabeça de John Matthew apareceu e suas sobrancelhas estavam erguidas como quem dissesse “como você está?”.

– Estou bem. Estou melhor. Ainda zonza por causa dos remédios.

John deslizou pela porta, entrou e se apoiou contra a parede, colocando as mãos nos bolsos e cruzando sua pesada bota sobre a outra. Sua camiseta era branca e simples, o que provavelmente era um bom sinal, considerando que já esteve manchada de sangue de redutor.

Cheirava como um macho deveria. Sabonete e suor limpo.

Tinha a aparência que um macho deveria ter. Alto, largo e mortal.

Deus, tinha mesmo perdido a cabeça daquele jeito na frente dele?

– Seu cabelo está mais curto – ela disse sem nenhuma razão específica.

Desvencilhou uma de suas mãos e acariciou o cabelo de maneira desajeitada. Com a cabeça inclinada para baixo, os poderosos músculos que vinham de seus ombros até seu pescoço se flexionavam sob sua pele dourada.

De repente, Xhex se perguntou se alguma vez voltaria a ter relações sexuais.

Foi um pensamento estranho, com certeza. Considerando como havia passado as últimas...

Ela franziu a testa.

– Por quantas semanas eu estive fora?

Ele sustentou quatro dedos e depois fez um movimento como um beliscão.

– Quase quatro?

Quando ele assentiu, ela endireitou cuidadosamente a dobra do lençol que passava por seu peito.

– Quase... quatro.

Bem, os humanos a prenderam por meses antes de conseguir escapar. Apenas quatro semanas deveria ser bem fácil de superar.

Ah, mas ela não estava pensando direito, estava? Não havia nada que “superar”. Tudo havia “acabado”.

– Quer sentar? – ela disse, indicando uma cadeira ao lado da cama. A coisa era padronizada e tradicional, o que significava que era tão confortável quanto uma facada, mas não queria que ele saísse.

As sobrancelhas de John se ergueram novamente e ele concordou com a cabeça enquanto se aproximava. Acomodando seu enorme corpo no pequeno assento, tentou primeiro cruzar as pernas na altura dos joelhos e depois na dos tornozelos. Terminou sentando estirado, com suas botas debaixo da cama e seus braços sobre o encosto da cadeira.

Ela brincou com o maldito lençol.

– Posso perguntar uma coisa?

Com sua visão periférica, ela o viu assentir, depois se endireitar e pegar um bloco de papel e sua caneta no bolso de trás.

Clareando a garganta, imaginava como exatamente expressar sua pergunta.

No final, se rendeu e fez isso como se fosse algo impessoal.

– Onde Lash foi visto pela última vez?

Ele assentiu e se inclinou sobre o papel, escrevendo rapidamente. Enquanto suas palavras tomavam forma na página branca, ela o observou... e percebeu que não queria que ele fosse embora. Ela o queria ali, sempre ao seu lado.

Segura. Ela estava realmente segura com ele por perto.

Ele se endireitou e estendeu o papel. Então pareceu congelar.

Por alguma razão, ela não conseguia focar no que tinha escrito e se esticou.

John baixou o braço lentamente.

– Espere, ainda não li. Você poderia... o quê? O que há de errado? – Maldição, agora seus olhos se recusavam a vê-lo claramente.

John se inclinou para um lado e ela ouviu um suave som de papel. Depois um lenço foi dado a ela.

– Oh, pelo amor de Deus. – Pegou o que ele ofereceu e pressionou contra os dois olhos. – Odeio ser uma garota. Realmente desprezo ser uma garota.

Quando começou um discurso sobre estrogênio, saias, esmalte rosa e sobre malditos saltos altos, John entregava um lenço seguido de outro, recolhendo os manchados de vermelho que ela ia usando.

– Eu nunca choro, sabia? – Ela o encarou. – Nunca.

Ele assentiu. E colocou outro maldito lenço em sua mão.

– Jesus Cristo. Primeiro eu dou um ataque de gritos, agora choro sem sentido. Poderia matar o Lash só por isso.

Um sopro de vento gelado entrou no quarto e Xhex olhou para John... apenas para recuar. Havia passado de compassivo para sociopata em uma fração de segundos. Ao ponto de ela ter quase certeza de que ele não havia percebido que tinha liberado suas presas.

Sua voz tornou-se um sussurro, e o que ela realmente queria perguntar saiu:

– Por que você ficou? Na sala de operação, mais cedo. – Desviou o olhar, focando-se nas manchas vermelhas que havia feito no lenço que tinha acabado de usar. – Você ficou e você... simplesmente parecia compreender.

No silêncio que se seguiu, deu-se conta de que conhecia muito bem o contexto de sua vida: com quem morava, o que ele fazia no campo de batalha, como lutava, onde passava seu tempo. Mas não sabia nada específico. Seu passado era um buraco negro.

E por alguma razão desconhecida, precisava de iluminação sobre isso.

Caramba, sabia exatamente o porquê: naquele incandescente horror que enfrentou na sala de operações, a única coisa que a ligava à terra tinha sido ele e era estranho, mas sentia-se ligada a John de uma maneira vital agora. Ele a viu em seu pior estado, em seu momento mais fraco e mais insano e não desviou o olhar. Não fugiu, não julgou e não se queimou.

Era como se o calor de sua fusão os derretesse juntos.

Isso era mais que emoção. Era uma questão de alma.

– Que inferno aconteceu com você John? No seu passado?

Suas sobrancelhas se estreitaram com força e seus braços foram cruzados sobre seu peito como se agora fosse ele quem tentasse descobrir como se expressar. Mas sua grade emocional de repente se iluminou com todo tipo de coisas obscuras e ela teve a impressão de que ele estava pensando em escapar.

– Olha, não quero pressioná-lo. – Droga. Que droga. – E se quer negar que não houve nada além de ótimo em sua vida, vou aceitar e seguir em frente. Mas é só que eu... a maioria das pessoas teria pelo menos vacilado. Que inferno. Até a doutora Jane me tratou com uma dose extra de cuidado depois que enlouqueci. Mas você? Apenas ficou firme. – Encarou seu rosto tenso e fechado. – Olhei dentro de seus olhos, John, e havia mais do que uma compreensão hipotética neles.

Depois de uma longa pausa, ele virou uma nova página em branco do bloco e escreveu com rapidez. Quando mostrou o que tinha escrito, conseguia entender o lado dele, mas quis soltar um palavrão:

Diga-me o que eles fizeram na sala de operações. Diga-me primeiro o que havia de errado com você.

Ah, sim o clássico toma lá, dá cá.


Só levou cerca de uma hora para Lash transportar a si mesmo, a prostituta e o Mercedes da fazenda de volta à casa na cidade. Estava em pleno modo de sobrevivência, se movendo rápida e decisivamente, fazendo apenas uma parada no caminho.

E esta parada foi em uma cabana na floresta onde pegou alguns itens importantes para a missão.

Quando entrou na garagem da casa, esperou até que a porta estivesse fechada para sair e arrastar a prostituta do banco traseiro. Enquanto carregava seu corpo retorcido até a cozinha, lançou uma boa dose daquilo com que havia aprisionado Xhex.

Contudo, a barreira mágica não era para a siliconada.

O Ômega sabia onde estavam seus redutores deste lado. Podia senti-los como um eco de sua própria existência. E seguindo essa linha de raciocínio, assassinos poderiam encontrar seus colegas com facilidade e acertar as contas.

Então a única chance que Lash tinha de se esconder era encarcerar a si mesmo. O Sr. D não sabia que Xhex estava naquele quarto. A confusão era óbvia todas as vezes que o mandava deixar comida lá.

Claro, a grande questão era se a camuflagem manteria Ômega à distância. E por quanto tempo.

Lash jogou a prostituta dentro do banheiro com o cuidado e preocupação que teria demonstrado com uma mochila barata cheia de roupa suja. Quando ela aterrissou com força na banheira e gemeu contra a fita adesiva sobre a boca, ele voltou ao carro.

Tirar as coisas do carro levou aproximadamente vinte minutos e colocou a porcaria toda no chão de concreto: sete armas de cano longo. Uma sacola de mercado cheia de dinheiro. Um quilo e meio de explosivo plástico C4. Dois detonadores remotos. Uma granada de mão. Quatro automáticas. Munição. Munição. Munição.

Ao chegar às escadas e apagar a luz do porão, foi até à porta dos fundos, abriu-a e colocou a mão para fora. O ar fresco noturno infiltrou o escudo, mas sua mão sentiu a restrição. Era forte... mas precisava ser ainda mais forte.

Olááá, vadiazinha assustada.

Lash fechou a porta, trancou e foi para o banheiro.

Estava muito concentrado ao sacar sua faca, cortar as ataduras dos pulsos dela e...

Ela se debateu até que Lash precisou dar um golpe em sua cabeça, nocauteando-a com força. Corta. Corta. Corta. Fez três cortes profundos em seus pulsos e pescoço e sentou para observar o sangue escorrer num lento gotejar.

– Vamos lá... sangre, vadia, sangre.

Quando olhou seu relógio, pensou que talvez deveria tê-la mantido consciente, porque isso garantiria um pulsar maior na pressão sanguínea. E encurtaria aquele espera inútil enquanto ela sangrava.

Observando o processo, não tinha ideia do quanto ainda tinha que sangrar, mas a piscina vermelha embaixo dela aumentava e seu corpete rosa começava a escurecer.

O pé da Lash batia no chão a mil por hora enquanto o tempo passava... e então percebeu que a pele dela não estava apenas pálida, mas cinza, e o sangue já não estava aumentando nas paredes da banheira. Dando o assunto por encerrado, cortou o pequeno corpete, expondo um horrível par de implantes, e lhe abriu o peito com um golpe da faca, enterrando a lâmina diretamente em seu peito.

O próximo corte foi em sua própria carne.

Segurando seu pulso sobre o buraco que havia aberto, viu gotas pretas caírem sobre o coração imóvel. Bem, não tinha certeza do quanto deveria dar e preferiu errar pelo excesso. Em seguida, concentrou energia em sua mão. Lash forçou as moléculas do ar a girar formando um tornado, até que transformou essa unidade num poder cinético que podia controlar.

Lash olhou para a prostituta, seu corpo todo violado, a maquiagem borrada em sua face; o cabelo asqueroso era mais uma peruca do que algo que se esperava ver nas ruas.

Precisava que aquilo funcionasse. Apenas manter a barreira mágica e uma pequena bola de fogo em sua mão já drenava muito de sua energia.

Aquilo precisava muito funcionar.

Lançou uma explosão que fez a cavidade torácica e os pulmões mortos se sacudirem como cauda de peixe contra as laterais da banheira. Quando o brilho da luz se apagou e dispersou, ele esperou... rezando para...

O suspiro que ela liberou foi horrível. E também uma dádiva.

Ficou fascinado quando o coração começou a bombear e o sangue negro foi absorvido pela carne aberta da caixa torácica, aquela reanimação fez com que seu pênis se contraísse de excitação. Isso era poder, pensou. Dane-se as porcarias que o dinheiro podia comprar.

Era mesmo um deus, assim como seu pai.

Lash sentou-se sobre os calcanhares e olhou a cor retornar à pele dela. Enquanto a vida retornava, sua mão se curvou contra a borda da banheira e a musculatura atrofiada de suas coxas tremeu.

O próximo passo era algo que não entendia completamente, mas que não questionaria. Quando ela parecia estar definitivamente voltando ao mundo dos vivos, ele estendeu as mãos e arrancou o coração do peito dela.

Mais arfadas. Mais engasgos. Blá, blá, blá.

Estava fascinado com o que tinha realizado, especialmente quando colocou a palma de sua mão sobre o peito dela e ordenou que a carne se reparasse por conta própria. E veja só, toda sua pele e ossos obedeceram e ela estava mais uma vez como era antes.

Só que melhor. Porque era útil para ele agora.

Lash estendeu a mão e ligou a ducha, o jato de água golpeou o corpo e rosto da mulher, seus olhos piscaram contra a chuva fria, suas mãos se agitavam de maneira deplorável.

Quanto tempo esperaria agora? Quanto tempo até que pudesse ver se estava mesmo a um passo mais próximo do que realmente o sustentaria?

Uma onda de esgotamento subiu por sua coluna vertebral e enevoou seu cérebro, e então ele caiu sobre os gabinetes que havia embaixo da pia. Fechando a porta com um chute, apoiou os antebraços sobre os joelhos e continuou testemunhando a prostituta se agitar.

Tão fraco.

Extremamente fraco.

Deveria ter sido sua Xhex. Deveria ter feito isso com ela e não com uma prostituta humana qualquer.

Colocando as mãos no rosto, baixou a cabeça enquanto a euforia o abandonava. Não era para ser assim. Não era isso que tinha planejado.

Fugindo. Sendo caçado. Debatendo-se no mundo.

Que diabos iria fazer sem seu pai?


CAPÍTULO 28

Enquanto John esperava Xhex responder à sua pergunta, concentrou-se nas palavras que tinha escrito, traçando-as com a caneta, escurecendo-as enquanto passava a caneta sobre elas outra vez.

Provavelmente não deveria estar fazendo perguntas, considerando o estado dela, mas precisava de algo em troca. Se fosse se despir, iria expor seus segredos não muito legais. Não poderia ser o único a ficar nu daquele jeito.

E também queria muito saber o que estava acontecendo com ela, e Xhex era a única que poderia dizer isso a ele.

Quando o silêncio continuou, tudo o que conseguia pensar era... droga, ela estava fechando a porta na cara dele. De novo. De certa forma, não era uma surpresa tão grande assim, então não deveria se importar. Deus era testemunha de que já tinha sido rejeitado por ela muitas vezes.

A realidade era que parecia outra morte a ser encarada...

– Vi você. Ontem.

A voz dela fez com que erguesse a cabeça.

O quê?

– Ele me manteve presa naquele quarto. Vi você. Entrou e foi até a cama. Foi embora com um travesseiro. Eu estava... ao seu lado durante todo o tempo em que esteve lá.

A mão de John se ergueu até seu próprio rosto e ela sorriu um pouco.

– Sim, eu toquei seu rosto.

Jesus Cristo...

Como?

– Não tenho certeza exata de como ele fez isso. Mas foi como conseguiu me capturar no primeiro momento. Estávamos todos naquela caverna, onde Rehv estava sendo mantido na colônia. Os sympathos entraram e Lash me pegou... tudo aconteceu tão rápido. De repente, fiquei sem equilíbrio e comecei a ser arrastada, mas não conseguia lutar e ninguém conseguia me ouvir gritando. É como um campo de força. Se você está dentro e tenta violá-lo, o choque é doloroso e rápido... só que é mais que uma simples aversão. Há uma barreira física. – Ergueu sua mão e empurrou o ar. – Uma trama. No entanto, a coisa mais estranha é que pode haver outras pessoas no mesmo espaço. Como quando você entrou.

John percebeu vagamente que suas mãos doíam por alguma razão. Olhando abaixo, viu que as havia fechado sobre os punhos e que o bloco de papel estava perfurando a carne. Assim como a caneta com a qual estava escrevendo.

Virando uma nova página, rabiscou:

Gostaria muito de saber que você estava lá. Teria feito alguma coisa. Juro que não sabia.

Quando leu o que tinha escrito, Xhex o alcançou e colocou uma das mãos em seu antebraço.

– Eu sei. Não é sua culpa.

Mas parecia. Ter estado bem ali com ela e não ter nem ideia de que estava...

Oh. Droga.

Escreveu rápido, depois mostrou.

Ele voltou? Depois que estivemos lá?

Quando Xhex balançou a cabeça, seu coração começou a bater de novo.

– Passou por lá dirigindo, mas não parou.

Como você escapou?, gesticulou com as mãos, sem pensar.

Enquanto procurava por uma nova página, ela disse:

– Como eu saí? – Quando ele assentiu, ela riu. – Sabe, vai ter que me ensinar a linguagem de sinais.

Ele piscou. Então fez com a boca: certo.

– E não se preocupe. Aprendo rápido. – Respirou profundamente. – A barreira foi forte o suficiente para me prender ali desde o momento em que me capturou. Mas, então, você foi até lá e saiu e... – Ela franziu a testa. – Foi você quem fez aquilo com aquele assassino lá embaixo?

Quando suas presas apareceram na boca, ele respondeu: Pode apostar.

O pequeno sorriso dela pareceu afiado como uma adaga.

– Bom trabalho. Eu ouvi a coisa toda. Enfim, foi depois que tudo silenciou que soube que tinha de sair dali ou...

Morreria, ele pensou. Por causa do que havia feito naquela cozinha.

– Então, eu fui...

Ele ergueu a mão para detê-la, então escreveu rapidamente. Quando mostrou as palavras, ela franziu a testa e, em seguida, balançou a cabeça.

– Oh, mas é claro que você não teria feito se soubesse que eu estava lá. Mas não sabia. E soou como se não pudesse evitar. Confie em mim, sou a última pessoa com quem precisa se desculpar pelo massacre de um daqueles bastardos.

Verdade, mas ainda suava frio ao pensar em como, inadvertidamente, a colocou em perigo.

Ela inalou profundamente outra vez.

– De qualquer maneira, depois que você saiu, parecia que a barreira estava enfraquecendo, e quando consegui esmurrar uma janela com meus punhos, soube que tinha uma chance. – Levantou uma de suas mãos e olhou para os dedos. – Eu acabei correndo para conseguir um impulso e atravessar a porta. Achei que ia precisar da força extra que havia em mim e estava certa.

Xhex se mexeu na cama, estremecendo.

– Acho que foi quando consegui o rompimento. No meu interior. Eu me machuquei bastante fugindo... foi como puxar meu corpo através de um concreto prestes a secar. Também bati muito forte na parede do corredor.

Sentiu a tentação de acreditar que os machucados que viu na pele dela foram resultado de sua fuga. Mas conhecia Lash. Olhou a crueldade no rosto do cara vezes o suficiente para ter certeza absoluta de que ela tinha passado por muita coisa nas mãos do inimigo.

– Foi por isso que precisei ser operada.

A declaração foi expressa de forma clara e equilibrada. Mas ela não encontrou seus olhos.

John virou uma nova página, escreveu cinco letras em maiúsculo e colocou um ponto de interrogação. Quando virou o bloco, ela mal olhou o MESMO?

Aquele olhar cinzento se afastou e se prendeu num canto afastado.

– Podia ter sido uma lesão que sofri quando lutei com ele. Mas não tive uma hemorragia interna assim antes de sair, então... por aí você deduz.

John exalou e pensou naquelas paredes riscadas e manchadas que vira naquela sala. O que escreveu em seguida o machucou.

Quando ela olhou para o que tinha escrito na página, a expressão de seu rosto se estreitou ao ponto do anonimato. Era como se estivesse olhando para uma estranha.

Ele olhou para as suas palavras: O quanto foi ruim?

Não deveria ter perguntado, pensou. Tinha visto a condição em que se encontrava. Tinha ouvido Xhex gritar na sala de operação e estava bem na frente dela quando teve um colapso nervoso. O que mais precisava saber?

Estava escrevendo um “me desculpe” quando ela falou com uma voz fina:

– Foi... normal... quero dizer...

Seus olhos fixaram-se em seu perfil e desejou que ela continuasse.

Xhex clareou a garganta.

– Não gosto de enganar a mim mesma. Não serve para nada. O fato de que se eu não saísse morreria em breve estava muito claro. – Balançou a cabeça lentamente para trás e para frente no travesseiro branco. – Estava ficando extremamente fraca por falta de sangue e por causa das lutas. Acontece que, na verdade, eu não tinha problemas com a parte de morrer. Ainda não tenho. A morte nada mais é que um processo, embora normalmente doloroso. Uma vez que está acabado e feito? Tudo bem, porque você não existe mais e toda a porcaria acabou.

Por alguma razão, o fato de estar tão indiferente o deixou ansioso e teve que se reacomodar na cadeira para evitar andar pelo quarto.

– Se foi ruim? – ela murmurou. – Sou uma lutadora por natureza. Então, até certo ponto, não foi nada especial. Nada com que eu não pudesse lidar. Quero dizer, sou forte. Perdi o controle na clínica porque odeio coisas relacionadas a médicos, e não por causa de Lash.

O passado dela, ele pensou.

– Vou lhe dizer uma coisa. – Seus olhos voltaram a encará-lo e ele se afastou diante do calor em seu olhar. – Sabe o que será ruim? O que fará com que as três últimas semanas tornem-se insuportáveis? Se eu não matá-lo. Isso será insuportável para mim.

O macho vinculado dentro de John rugiu, a ponto de se perguntar se Xhex sabia que ele não seria capaz de deixá-la dar um fim no desgraçado: machos protegem suas fêmeas. É a lei universal quando se é um homem de verdade.

Além disso, a ideia de ela ir a qualquer lugar perto daquele cara deixava John enlouquecido. Lash já a tinha sequestrado uma vez. E se ele usasse aquela porcaria que tinha o efeito de uma capa mágica de novo?

Não teriam uma segunda chance de resgatá-la. De jeito nenhum.

– Então – disse ela –, contei o meu segredo. Sua vez.

Certo. Tudo bem.

Agora era ele quem estava olhando para aquele canto distante. Jesus Cristo. Por onde começar.

Virou uma nova página em seu bloco, colocou a caneta para baixo e...

Um monte de nada veio a ele. O problema era que havia muita coisa para escrever, muito para dizer e não é que aquilo se mostrou muito deprimente?

Uma batida na porta fez com que a cabeça dos dois virasse.

– Maldição – disse ela baixinho. – Dê-nos um minuto!

O fato de que havia alguém esperando por uma audiência do outro lado da porta não o deixava exatamente disposto a compartilhar seus sentimentos. Isso, juntamente com a barreira da comunicação e sua tendência inata de se fechar, fez sua cabeça zumbir.

– Quem quer que seja, por mim, pode ficar fora a noite toda e durante todo o dia também. – Alisou o cobertor sobre seu estômago. – Quero ouvir o que você tem a dizer.

Engraçado, isso foi o que o desbloqueou, e então escreveu rapidamente:

Seria mais fácil mostrar.

As sobrancelhas se estreitaram quando leu isso e, então, acenou com a cabeça.

– Tudo bem. Quando?

Amanhã à noite. Se você tiver autorização para sair.

– Encontro marcado. – Levantou a mão... e a colocou levemente sobre seu antebraço. – Quero que saiba...

A nova batida que a interrompeu fez com que os dois amaldiçoassem.

– Precisamos de um minuto! – exclamou antes de se concentrar nele outra vez. – Quero que saiba... que pode confiar em mim.

John sustentou seu olhar e se viu imediatamente transportado para outro plano de existência. Poderia ser o céu outra vez. Quem sabia ou se importava? Tudo o que sabia era que havia apenas ela e ele juntos, o resto do mundo se afastava numa névoa.

Seria possível se apaixonar por alguém duas vezes?

– Que diabos você está fazendo aí?

A voz de Rehv do outro lado da porta quebrou o momento, mas não o apagou.

Nada jamais poderia, John pensou, enquanto ela se afastava e ele se levantava.

– Entre, idiota – ela retrucou.

No instante em que o macho de moicano entrou no quarto, John sentiu a mudança no ar e soube, quando se entreolharam e ficaram em silêncio, que estavam se comunicando como os sympathos faziam.

Para dar-lhes privacidade, dirigiu-se para a porta, e quando estava saindo, Xhex disse:

– Você vai voltar?

No início, pensou que ela estava falando com Rehv, mas então o macho agarrou seu braço e o deteve.

– Meu amigo? Você vai voltar?

John olhou para a cama. Esqueceu seu bloco e a caneta no pequeno criado mudo, então apenas acenou com a cabeça.

– Logo? – Xhex disse. – Porque não me sinto cansada e quero aprender a linguagem de sinais.

John assentiu com a cabeça novamente e depois bateu uma mão fechada contra outra de Rehvenge antes de sair da sala de operações.

Enquanto caminhava pelas macas vazias, estava contente por V. ter terminado a limpeza e não estar por perto. Pois mesmo que sua vida estivesse em jogo, John não conseguiria esconder o sorriso em seu rosto.


Em silêncio, Blay caminhou lado a lado com Qhuinn através do túnel subterrâneo que ficava entre o centro de treinamento e o saguão de entrada da mansão.

Os sons de seus dois pares de botas de combate se misturavam, mas isso era tudo. Nem ele nem Qhuinn diziam nada. E não havia nenhum contato.

Absolutamente nenhum toque.

Um tempo atrás, antes de se declarar para o cara, antes das coisas terem ido por água abaixo entre eles, Blay simplesmente teria perguntado no que Qhuinn estava pensando, porque era evidente que estava fervilhando com alguma coisa. Agora, porém, o que poderia ser apenas um comentário qualquer, pareceria uma intromissão inadequada.

Quando passaram pela porta escondida sob a escadaria da mansão, Blay começou a temer o resto da noite.

Claro, não havia passado muito tempo, mas duas horas poderiam parecer uma vida sob as circunstâncias corretas. Ou erradas, como era o caso.

– Layla deve estar esperando por nós – disse Qhuinn enquanto ia para o pé da escada.

Oh... excelente. Justamente o tipo de diversão que não estava procurando.

Depois de ter visto a maneira como a Escolhida olhou para Qhuinn, simplesmente não sentia vontade de olhar aquele monte de paixonite tímida outra vez. Ainda mais naquela noite. Era curioso como a quase perda de Xhex o tinha deixado ferido.

– Você vem? – Qhuinn perguntou, sua testa franzida puxava o piercing na sobrancelha esquerda.

Blay baixou o olhar em direção ao aro que rodeava o lábio inferior do cara.

– Blay? Você está bem? Olha, acho que precisa se alimentar, amigo. Tem acontecido muita coisa ultimamente.

“Amigo”... Cristo, odiava essa palavra.

Mas dane-se, precisava superar a tensão.

– Sim. Claro.

Qhuinn olhou para ele de uma maneira estranha.

– Meu quarto ou o seu?

Blay riu de maneira áspera e começou a subir as escadas.

– Isso realmente importa?

– Não.

– Exatamente.

Quando chegaram ao segundo andar, passaram pelo escritório de Wrath, as portas estavam fechadas e desceram o corredor de estátuas.

Chegaram primeiro ao quarto de Qhuinn, mas Blay continuou andando, pensando que algo poderia finalmente ser em seu território, sob seus termos.

Abrindo a porta larga, deixou a coisa como estava e ignorou o som de um clique suave, quando Qhuinn os fechou lá dentro.

No banheiro, Blay foi até a pia, abriu a torneira e se inclinou, espirrando água em seu rosto. Estava se enxugando quando sentiu o perfume de canela e sabia que Layla tinha chegado.

Apoiando as mãos sobre o mármore, inclinou-se sobre os braços e se encurvou. Lá fora, em seu quarto, ouviu as vozes se misturando, a mais baixa e a mais alta, revezando alguns momentos.

Jogando a toalha no chão, virou-se e começou a observar a dança: Qhuinn estava na cama, de costas contra a cabeceira, as botas cruzadas, os dedos cruzados sobre o grande peitoral, enquanto sorria à Escolhida. Layla estava corada ao ficar perto dele, os olhos sobre o tapete, suas mãos menores e delicadas se torciam frente a ela.

Quando Blay chegou, os dois olharam para ele. A expressão de Layla não se alterou. A de Qhuinn, porém, se fechou com força.

– Quem vai primeiro? – Blay perguntou, aproximando-se deles.

– Você – Qhuinn murmurou. – Você vai.

Blay não estava disposto a saltar sobre a cama, então foi até a espreguiçadeira e sentou. Layla vagou em sua direção e caiu de joelhos diante dele.

– Senhor – disse ela, oferecendo-lhe o pulso.

A TV foi ligada e os canais foram sendo trocados quando Qhuinn começou a clicar com o controle em direção à tela. Parou no canal Spike, vendo a reprise de um campeonato de vale tudo onde lutavam Hughes e Penn.

– Senhor? – Layla disse.

– Perdoe-me. – Blay inclinou-se, pegando seu fino antebraço, segurando com firmeza, mas sem muita pressão. – Agradeço sua dádiva.

Perfurou tão delicadamente quanto pôde e estremeceu quando ela saltou ligeiramente. Teria recolhido as presas para pedir desculpas, mas isso exigiria outro furo, então voltou a sugar sua veia.

Enquanto se alimentava, seus olhos se moveram para a cama. Qhuinn estava absorto na luta, sua mão direita levantada e fechada num punho.

– Caramba – o cara murmurou. – É disso que estou falando!

Blay se concentrou no que estava fazendo e terminou rapidamente. Quando soltou, olhou para o rosto adorável de Layla.

– Você foi muito graciosa, como sempre.

Seu sorriso era radiante.

– Senhor... é uma alegria servi-lo, como sempre.

Estendeu a mão e ajudou-a a levantar, aprovando sua graça inata. E, Deus, a força que ela lhe deu não era nada menos que miraculosa. Até mesmo depois de terminar podia sentir aquilo o energizando, sua cabeça parecia estar em névoas, uma vez que seu corpo estava focando aquilo que tinha sido dado a ele.

O que Layla tinha lhe dado.

Qhuinn ainda estava muito ligado na luta, suas presas arreganhadas, não para Layla, mas para quem estava perdendo. Ou ganhando. Ou seja lá como fosse.

A expressão de Layla se desvaneceu em uma resignação que Blay conhecia muuuito bem.

Blay franziu a testa.

– Qhuinn. Vai se alimentar?

Os olhos díspares de Qhuinn se mantiveram na tela até o árbitro terminar a disputa, então suas íris azul e verde recaíram sobre Layla. Em um impulso sensual, o cara se moveu na cama, abrindo espaço para ela.

– Venha cá, Escolhida.

As três palavras, acompanhadas por aquele olhar de pálpebras baixas, foram um golpe baixo para Blay... O problema era que Qhuinn não estava olhando Layla de nenhuma maneira especial. Ele era assim.

Sexo em cada respiração, cada batida, cada movimento.

Layla parecia sentir o mesmo, pois suas mãos esvoaçavam serpenteando ao redor de sua vestimenta, primeiro indo para o laço e depois para as lapelas.

Por alguma razão, Blay percebeu pela primeira vez que estava completamente nua sob as dobras brancas.

Qhuinn estendeu a mão e a palma de Layla tremia ao colocá-la contra aquela que lhe era oferecida.

– Está com frio? – perguntou ele, sentando-se. Era possível ver o contorno de seu abdômen definido debaixo da camiseta justa.

Quando negou com a cabeça, Blay entrou no banheiro, fechou a porta e ligou o chuveiro. Após tirar a roupa, ficou sob o jato e tentou esquecer tudo o que estava acontecendo em sua cama.

O que foi bem sucedido apenas quando tirou Layla da imagem.

Seu cérebro ficou preso numa fantasia onde ele e Qhuinn estavam estendidos juntos, bocas nos pescoços um do outro, presas rompendo a superfície da pele aveludada, corpos...

Era muito comum aos machos ficarem eretos após a alimentação. Especialmente quando pensavam em todo tipo de coisas para fazer estando nu. E o sabonete não ajudava.

E nem as imagens do que viria após os dois penetrarem as gargantas.

Blay plantou a palma de uma de suas mãos no mármore liso e a outra sobre seu pênis rígido.

O que fez foi rápido e tão gratificante quanto um pedaço de pizza fria: bom, mas não chegava nem perto de uma refeição de verdade.

O segundo passeio ao parque de diversões não melhorou a situação e recusou seu corpo a chance de um terceiro. Pois, fala sério. Que bizarro. Qhuinn e Layla estavam cuidando de suas vidas do outro lado da porta, enquanto ele ficava todo ofegante debaixo da água quente? Que droga.

Saindo, enxugou-se, colocou o roupão e percebeu que não tinha nada para vestir. Quando virou a maçaneta da porta, rezou para que as coisas estivessem como ele as havia deixado.

E estavam, muito obrigado, Virgem Escriba: Qhuinn tinha a boca no outro pulso de Layla e tomava o que precisava daquela Escolhida ajoelhada ao seu lado.

Nada abertamente sexual.

O alívio que se fixou no peito de Blay o fez perceber o quanto estava nervoso... e não apenas por isso, mas por tudo relacionado a Qhuinn.

Aquilo não era nada saudável. Para ninguém.

Mas afinal de contas, Qhuinn era culpado por ele se sentir daquela maneira? Ninguém pode escolher por quem se sente atraído... e por quem não se sente.

No armário, Blay puxou uma camisa de botão e uma calça de combate preta. Assim que virou a cabeça para o banheiro, Qhuinn ergueu a boca da veia de Layla.

O macho soltou um gemido saciado e estendeu sua língua em direção às feridas que tinha feito com suas presas. Quando um brilho de prata reluziu, as sobrancelhas de Blay se ergueram. O piercing da língua era novo e ele se perguntou quem teria feito.

Provavelmente Vishous. Os dois andavam passando muito tempo juntos e foi assim que conseguiram a tinta para a tatuagem de John... Qhuinn tinha pegado o recipiente.

A língua de Qhuinn passou na pele da Escolhida, aquele metal piscava a cada passagem.

– Obrigado, Layla. Você é boa para nós.

Deu um sorriso rápido, em seguida colocou as pernas para fora da cama, deixando evidente que já ia sair. Layla, por outro lado, não se mexeu. Ao invés de seguir o exemplo e ir embora, a cabeça dela desceu e os olhos se concentraram em seu colo...

Não, nos pulsos, que estavam aparecendo sob as mangas de sua túnica. Quando a viu cambalear, Blay franziu a testa.

– Layla? – disse ele, aproximando-se. – Você está bem?

Qhuinn também se aproximou da cama.

– Layla? O que está acontecendo?

Os dois ficaram de joelhos diante dela.

Blay falou claramente.

– Nós tomamos muito?

Qhuinn se adiantou e colocou seu próprio pulso frente a ela, oferecendo.

– Use-me.

Droga, ela tinha alimentado John na noite anterior. Será que aquilo aconteceu cedo demais?

Os olhos verdes pálidos da Escolhida se ergueram para enfrentar Qhuinn e não houve qualquer confusão em seu olhar. Apenas um desejo triste, antigo.

Qhuinn recuou.

– O que eu fiz?

– Nada – disse ela com uma voz muito profunda. – Se me der licença, vou me retirar ao santuário mais uma vez.

Layla começou a levantar-se, mas Qhuinn capturou sua mão e puxou-a para baixo.

– Layla, o que está fazendo?

Deus, aquela voz dele. Tão suave, tão gentil. E assim também era a mão que estendeu, agarrando seu queixo e levantando o olhar dela até o seu.

– Não posso falar sobre isso.

– Sim, você pode. – Qhuinn acenou com a cabeça na direção do Blay. – Ele e eu manteremos segredo.

A Escolhida respirou fundo e sua expiração foi de derrota, como se ela estivesse sem combustível, sem opções, sem força.

– De verdade? Vão permanecer em silêncio?

– Sim. Blay?

– Sim, com certeza. – Colocou a mão em seu coração. – Eu juro. Vamos fazer de tudo para ajudá-la. Qualquer coisa.

Ela focou em Qhuinn, seu olhar preso ao dele.

– Sou desagradável aos seus olhos, senhor? – Quando ele franziu a testa, ela baixou o olhar. – Desvio-me do ideal de alguma maneira que me torna...

– Deus, não. Do que você está falando? Você é linda.

– Então... por que nunca sou solicitada?

– Não entendo... Nós a solicitamos. Regularmente. Eu mesmo, John e Blay. Rhage e V. Você é a única que todos pedem, porque você...?

– Nenhum de vocês me usa para qualquer coisa além de sangue.

Blay se levantou de sua posição ajoelhada, recuou até suas pernas bateram na espreguiçadeira e sentou-se. Quando seu traseiro saltou sobre a almofada, a expressão no rosto de Qhuinn quase o fez rir. O cara nunca era pego de surpresa. Em parte porque já tinha sofrido de tudo em sua vida relativamente curta, tanto por escolha quanto por maldição. E parte era a sua personalidade. Dava-se bem em todas as situações. Ponto final.

Exceto nesta, óbvio. Qhuinn parecia como se tivesse sido atingido na nuca por um taco de bilhar.

– Eu... – Qhuinn pigarreou. – Eu... Eu...

Ah, sim, isso também era inédito: a gagueira.

Layla encheu o silêncio.

– Sirvo os machos e Irmãos desta casa com orgulho. Dou, sem receber nada em troca, porque faz parte da minha formação e tenho prazer em fazê-lo. Mas digo isso porque você pediu e... acho que devo. Toda vez que retorno para o santuário ou à casa do Primaz, sinto-me cada vez mais vazia. A ponto de achar que poderia me afastar. Em verdade... – balançou a cabeça – não posso continuar fazendo isso, mesmo sabendo que faz parte das minhas obrigações. Apenas... meu coração não pode continuar.

Qhuinn deixou cair as mãos e esfregou as coxas.

– Você quer... você gostaria de continuar se pudesse?

– Claro. – Sua voz era forte e segura. – Estou orgulhosa de estar a serviço.

Agora Qhuinn estava arrastando a mão por seu cabelo grosso.

– O que seria necessário... para satisfazê-la?

Era como assistir a um desastre de trem. Blay deveria ter saído, mas não conseguia se mover, tinha apenas que testemunhar a colisão.

E, naturalmente, o rubor brilhante de Layla a fez ainda mais bonita. Em seguida, seus lábios carnudos se entreabriram encantadores. Fecharam. Abriram... e fecharam outra vez.

– Está tudo bem – sussurrou Qhuinn. – Você não tem que dizer isso em voz alta. Eu sei o que você quer.

Blay sentiu um suor frio sair sobre o peito e as mãos se contorceram por baixo da roupa que tinha escolhido.

– Quem... – Qhuinn perguntou com voz rouca. – Quem você quer?

Houve outra longa pausa e então ela disse uma única palavra:

– Você.

Blay levantou-se.

– Vou deixar vocês a sós.

Estava totalmente cego quando saiu, e agarrou sua jaqueta de couro em seu caminho apenas por instinto.

Quando fechou a porta, ouviu Qhuinn dizer:

– Vamos fazer isso bem devagar. Se vamos fazer isso, iremos bem devagar.

No corredor, Blay abriu rapidamente uma boa distância entre ele e seu quarto e não se deu conta, até que chegou à porta dupla que dava para a ala dos empregados, de que estava andando pela casa de roupão. Deslizando pelo conjunto de escadas que levavam ao cinema no terceiro andar, mudou sua roupa na frente da máquina de pipoca desligada.

A raiva latente no fundo de suas entranhas era um tipo de câncer que o devorava. Mas era tão infundado. Tão inútil.

Blay parou em frente às prateleiras de DVDs, os títulos nas capas nada mais eram que um borrão para seus olhos.

Contudo, o que ele acabou pegando não foi um filme.

Tirou um pedaço de papel do bolso do casaco.


CAPÍTULO 29

Assim que a porta da sala de recuperação foi fechada, Xhex sentiu que devia dizer algo. Em voz alta. Para Rehvenge.

– Então. Ah... – Passou a mão pelo cabelo. – Tudo bem...?

Ele interrompeu suas desajeitadas divagações aproximando-se a passos largos, sua bengala vermelha era cravada nos ladrilhos, seus mocassins atingiam o chão do calcanhar à ponta dos pés. Sua expressão era feroz, seus olhos violeta ardiam.

Era suficiente para deixá-la perplexa.

Puxando para cima o lençol, Xhex murmurou.

– Que diabos há de errado com vo...? – Rehv mergulhou sobre ela com seus longos braços e a puxou para ele, aconchegando-a com todo cuidado contra seu peito. Apoiando a cabeça na dela, sua voz foi profunda e grave.

– Pensei que nunca mais a veria novamente.

Quando ele estremeceu, ela levantou as mãos até seu tronco. Depois de conter-se um momento... abraçou-o tão forte quanto ele a abraçava.

– Seu perfume é o mesmo – disse com voz rouca, colocando o nariz bem no pescoço da fina camisa de seda. – Oh... Deus, seu perfume é o mesmo.

A cara colônia à base de especiarias a levou de volta aos dias de ZeroSum quando os quatro trabalhavam juntos: ele no comando, iAm com os livros, Trez nas operações e ela na segurança.

O perfume foi o gancho que a arrastou e a fez dar um passo mais longe do trauma do sequestro, ligando-a ao seu passado, transpondo o horrível período das últimas três semanas.

Contudo, não queria essa amarra. Isso só faria com que sua partida ficasse mais difícil. Melhor concentrar-se nos acontecimentos e nos objetivos imediatos.

E depois simplesmente desaparecer, flutuando à deriva.

Rehv se afastou.

– Não quero cansá-la, então não vou ficar. Mas precisava... pois é.

– Eu sei.

Juntos, mantiveram-se um nos braços do outro, e como sempre, ela sentiu a comunicação entre eles, a parte de sangue mestiço que compartilhavam estabeleceu uma conexão como faziam os sympathos.

– Precisa de alguma coisa? – perguntou. – Comida?

– A doutora Jane disse nada sólido durante as próximas duas horas.

– Certo. Ouça, vamos falar sobre o futuro...

– No futuro. – Enquanto falava, projetou em sua mente uma imagem dos dois discutindo intensamente. Que foi produzida exclusivamente para despistá-lo, caso estivesse lendo.

Não ficou claro se ele mordeu a isca.

– Aliás, eu moro aqui agora – ele disse.

– Onde estou exatamente?

– No centro de treinamento da Irmandade. – Franziu a testa. – Pensei que você já havia estado aqui antes.

– Não nessa parte. Mas sim, imaginei que era para onde me trariam. Aliás, Ehlena foi realmente boa comigo. Lá dentro. – Assinalou com a cabeça para a sala de operações. – E antes que pergunte, vou ficar bem. Foi o que a doutora Jane disse.

– Ótimo! – Apertou com força a mão dela. – Vou chamar John.

– Obrigada.

Na porta, Rehv parou, em seguida, estreitando os olhos ametistas, lançou-lhe um olhar por sobre os ombros.

– Escute. – O “idiota” ficou implícito. – Você é importante. Não só para mim, mas para muita gente. Então, faça o que tem que fazer e coloque sua cabeça em ordem. Mas não pense que não sei de nada sobre o que tem planejado fazer depois.

Ela devolveu o olhar.

– Maldito devorador de pecados.

–Já sabe. – Rehv ergueu uma sobrancelha. – Eu lhe conheço muito bem. Não seja uma cabeça-dura, Xhex. Você tem todos nós ao seu lado e pode superar isso.

Enquanto ele saía, Xhex achou a fé que tinha nela admirável. Mas não ia cair nessa.

Na verdade, apenas o pensamento de qualquer futuro depois do funeral de Lash enviava uma onda de esgotamento pela sua corrente sanguínea. Com um gemido, fechou os olhos e rezou pelo amor de tudo o que era mais sagrado para que Rehvenge ficasse fora de seus assuntos...

Xhex despertou com um grito sufocado. Não fazia ideia de quanto tempo esteve dormindo. Ou onde John estava...

Bem, a segunda pergunta estava respondida: John estava no chão na frente da sua cama, deitado de lado, com a cabeça descansando no interior do braço que tinha dobrado para usar de travesseiro. Parecia cansado, mesmo enquanto dormia: as sobrancelhas tensas, a boca contraída em uma expressão fatigada.

O consolo que lhe veio ao olhar para ele foi chocante, mas não lutou contra isso. Não tinha energia suficiente... além disso, não havia testemunhas.

– John?

No instante em que pronunciou seu nome, levantou-se do chão de linóleo, assumindo uma postura de combate, com seu corpo de guerreiro entre ela e a porta do corredor. Ficou bastante claro que estava preparado para deixar em pedaços qualquer um que a ameaçasse.

O que era... realmente gentil.

E melhor que um buquê de flores na cabeceira da cama, o qual a faria espirrar.

– John... venha aqui.

Ele esperou um instante, erguendo a cabeça como se procurando por algum som. Logo deixou cair os punhos e andou. No instante em que seus olhos se voltaram para ela, o olhar brutal e as presas expostas se desvaneceram em meio a uma compaixão arrasadora.

Foi direto ao seu bloco, escreveu algo e lhe mostrou.

– Não, obrigada. Ainda não estou com fome. – Sempre foi assim para ela. Depois de se alimentar, não comia durante horas, algumas vezes durante um dia intero. – O que eu adoraria...

Seus olhos se moveram até o banheiro no canto.

Banho, ele escreveu e mostrou.

– Sim. Meu Deus... adoraria um pouco de água quente.

Estava todo disposto a ser um bom cuidador. Abriu a ducha, colocou as toalhas, o sabonete e uma escova de dentes sobre o balcão.

Sentindo-se um pouco preguiçosa, tentou se levantar... e ficou claro que alguém tinha atado uma casa ao redor de seu peito. Sentia-se como se estivesse levando uma casa colonial de dois andares sobre os ombros. Foi com um grande esforço que conseguiu colocar as pernas para fora do colchão... e com a convicção de que se não conseguisse se colocar na vertical sozinha, ele iria chamar a doutora e ela perderia o banho.

John chegou assim que as solas dos pés descalços tocaram o chão e foi muito atencioso equilibrando-a com o braço enquanto se colocava em pé. Quando os lençóis caíram de seu corpo, ambos tiveram um momento de... caramba, nua. Mas não era hora para recato.

– O que devo fazer com o curativo? – ela murmurou, baixando o olhar para a bandagem branca que se estendia ao longo de sua pélvis.

Quando John olhou para seu bloco de papel, como se estivesse tentando decidir se podia alcançar a coisa e continuar segurando-a, ela disse:

– Não, não quero a doutora Jane. Simplesmente vou tirar.

Escolheu uma ponta, e enquanto se firmava em pé, imaginou que provavelmente teria sido melhor fazer isso enquanto estava deitada... e sob supervisão médica. Mas dane-se.

– Oh... – Suspirou ao revelar lentamente a linha de pontos negros. – Maldição... a fêmea de V. é boa com uma linha e uma agulha, hum?

John pegou o monte de gaze ensaguentado e simplesmente o jogou na lata de lixo do canto. Então esperou como se soubesse bem que ela estava pensando em voltar para a cama.

Por alguma razão, a ideia de ter sido aberta a deixou tonta.

– Vamos fazer isso – disse rispidamente.

Ele deixou que ela estabelecesse o ritmo, o qual acabou sendo apenas um pouco mais rápido que dar marcha ré.

– Pode apagar as luzes lá dentro? – ela disse enquanto arrastava os pés, seus passos de bebê não avançavam mais que alguns centímetros. – Não quero ver a minha aparência naquele espelho sobre a pia.

No instante em que se aproximou o suficiente do interruptor, John estendeu o braço e clicou a coisa na parede.

– Obrigada.

A sensação do ar úmido e o som da água caindo aliviaram sua mente e sua coluna. O problema era que a tensão havia ajudado a mantê-la em pé e agora estava cedendo.

– John... – Era a sua voz? Tão fraca e fina. – John, entra comigo? Por favor.

Por falar em longos silêncios... mas, então, sob a luz que entrava do quarto, ele assentiu.

– Enquanto tira a roupa lá fora – ela disse – pode fechar a porta porque preciso usar o banheiro.

Com isso, segurou na barra que estava fixa à parede e se movimentou sozinha. Houve outra pausa e logo John deu um passo para trás e a ligeira fonte de luz se desvaneceu.

Depois que Xhex fez o que precisava, arrastou-se e entreabriu a porta.

O que viu foi um bloco de notas bem em frente ao rosto:

Teria ficado de cueca, mas não uso nada por baixo das calças de couro.

– Está bem. Não passo nem perto do tipo tímida.

Só que aquilo não foi demonstrado ser totalmente verdade quando os dois entraram no chuveiro juntos. Achou que depois de tudo o que passou, um pouco de contato com pele em um quarto escuro, com um macho em quem confiava e com quem já havia estado, não seria um grande desafio. Mas foi.

Especialmente quando o corpo dele roçou contra suas costas ao fechar a porta de vidro.

Concentre-se na água, disse a si mesma, imaginando se tinha enlouquecido.

Ao levantar a cabeça, começou a inclinar-se para o lado e a enorme mão masculina escorregou sobre seu braço para mantê-la em pé.

– Obrigada – disse ela asperamente.

Mesmo a situação sendo tão incômoda, a água quente estava maravilhosa ao encharcar seu cabelo até o couro cabeludo e a ideia de poder limpar-se foi repentinamente mais importante do que tudo que John Matthew não estava usando.

– Esqueci o sabonete, droga.

John fez outro movimento de se inclinar e investir sobre aquilo que precisava, e então seus quadris bateram nos dela. E embora ela tenha ficado tensa, preparando-se para algo sexual... ele não estava excitado.

O que foi um alívio. Depois das coisas que Lash lhe havia feito...

Quando colocou o sabonete em sua mão, Xhex bloqueou todos os pensamentos do que havia passado naquele quarto e simplesmente umedeceu a barra de sabão na ducha. Lavar-se. Secar-se. Voltar para a cama. Isso era tudo o que tinha que pensar.

O cheiro forte e diferente do sabonete flutuou no ambiente e aquilo a emocionou.

Era exatamente o que teria escolhido sozinha.


Incrível, pensou John enquanto permanecia em pé atrás de Xhex.

Se baixar o olhar para seu pênis e disser que caso se comporte mal irá cortá-lo em rodelas e enterrar no quintal dos fundos, realmente ele obedece.

Tinha que se lembrar disso.

O chuveiro era de um tamanho generoso para um macho, mas era bastante estreito para os dois e tinha que manter as costas pressionadas contra o azulejo frio para ter cem por cento de certeza de que o Senhor Espertinho e seus companheiros gêmeos de trabalho, Debi e Loide, ficariam longe dela.

Afinal, o discurso tinha feito maravilhas, mas não iria arriscar.

Além disso, estava chocado por Xhex estar tão fraca que tinha que segurá-la para que pudesse ficar em pé... mesmo depois de ter se alimentado. Mas não é fácil se livrar assim de quatro semanas de inferno, mesmo depois de um cochilo de duas horas. Que era o tempo que tinha dormido, de acordo com seu relógio.

Ao pegar o xampu, ela arqueou as costas e seus cabelos molhados roçaram no peito dele antes que Xhex se virasse para enxaguar a espuma. Ele mudou a posição, segurando primeiro seu antebraço direito, em seguida o esquerdo, então de novo o direito.

Os problemas surgiram quando ela se inclinou para lavar as pernas.

– Droga... – Ela mudou de posição rápido demais, o aperto dele escorregou do seu ensaboado bíceps e ela caiu diretamente contra o corpo dele.

John teve uma breve e vívida impressão de seu corpo ensaboado, úmido e cálido, e logo se lançou contra a parede e se moveu buscando uma forma de mantê-la em pé que não implicasse em contato total.

– Queria que tivesse um banco aqui – ela disse. – Acho que não consigo manter o maldito equilíbrio.

Houve uma pausa... em seguida ele pegou o sabonete. Deslocando-se lentamente, trocou de lugar com ela, colocando-a no canto em que havia apoiado as costas e fazendo com que ela apoiasse as mãos sobre seus ombros.

Enquanto se ajoelhava, girou o sabonete nas mãos, fazendo um monte de espuma; a água batia na parte de trás da cabeça e caía por sua coluna vertebral. Sentia o azulejo duro embaixo dos joelhos e tinha um dos dedos do pé pressionando o ralo, era como se a coisa tivesse dentes e estivesse lhe dando uma mordida, mas não se importava.

Estava preste a tocá-la. E isso era tudo o que importava.

Envolvendo o tornozelo dela com a mão, deu um puxão suave e, depois de um momento, ela apoiou o peso no outro lado e deu para ele o seu pé. Colocou a barra de sabonete no chão ao lado da porta e alisou a sola do pé subindo até o calcanhar, massageando, limpando...

Adorando sem esperar nada em troca.

Ia devagar, especialmente quando subia pela perna, fazendo uma pausa de vez em quando para se assegurar de que não estava pressionando nenhum de seus machucados. O músculo da panturrilha era duro como pedra e os ossos que sobressaíam no joelho pareciam tão fortes como os de um macho, mas era delicada à sua maneira. Ao menos comparada com ele.

Quando subiu ainda mais, até sua coxa, deslizou para a parte externa. A última coisa que queria era preocupá-la por dar em cima dela, e quando chegou ao quadril, parou e pegou o sabonete de novo.

Após enxaguar a sola do pé, puxou ligeiramente o outro tornozelo e sentiu uma pontada de alívio quando ela gentilmente lhe deu oportunidade de repetir o que tinha feito.

Massagens lentas, mãos lentas, progresso lento... e somente na parte externa e em direção à parte superior do corpo.

Quando terminou, levantou-se, os joelhos rangendo ao se erguer até alcançar toda a sua estatura e a colocou embaixo do jato d’água. Segurando-a pelo braço outra vez, deu-lhe o sabonete para que pudesse lavar qualquer outra coisa que fosse necessária.

– John? – ela disse.

Como estava escuro, assoviou um “o quê?”.

– Você é um macho de muito valor, sabe disso. Você realmente é.

Ergueu as mãos e envolveu o rosto dele.

Aconteceu tão rápido, ele não podia acreditar. Mais tarde, iria ver e rever aquilo várias e várias vezes, prolongando o momento infinitamente, revivendo e nutrindo aquilo de maneira estranha na memória, de novo e de novo.

Contudo, quando acabou, havia durado apenas um instante. Um impulso por parte dela. Um presente puro dado em gratidão a outro presente puro recebido.

Xhex ergueu-se na ponta dos pés e pressionou sua boca contra a dele.

Oh, tão macio. Seus lábios eram incrivelmente macios. E gentis. E calorosos. O contato foi muito rápido, porém poderia durar horas e horas e dizer que não tinha sido o suficiente.

– Venha deitar-se comigo – ela disse, abrindo a porta do chuveiro e saindo. – Eu não gosto de você no chão. Você merece coisa muito melhor do que isso.

De maneira indistinta, fechou a água e a seguiu, aceitando a toalha que ela entregou. Secaram-se juntos, ela envolveu todo o tronco com a toalha, ele cobriu os quadris.

Fora do banheiro, ele subiu na cama de hospital primeiro e sentiu que era a coisa mais natural do mundo abrir os braços. Se tivesse pensado, não haveria feito esse gesto, mas não estava pensando.

Mas tudo bem.

Porque ela foi até ele como tinha feito a água do chuveiro: o encharcou com uma onda morna que se infiltrava pela pele até a medula.

Mas, claro, Xhex penetrou ainda mais fundo dentro dele. Sempre fez isso.

Era como se tivesse perdido a sua alma na primeira vez que colocou os olhos nela.

Quando apagou a luz e ela se acomodou ainda mais perto dele, sentiu como se ela estivesse cavando diretamente em seu gelado coração e acampando ali, seu fogo descongelava a alma até que suspirou fundo e em paz pela primeira vez em meses.

John fechou os olhos, mas não esperava dormir.

Porém, ele dormiu. E muito, muito bem.


CAPÍTULO 30

Na ala de funcionários da mansão Sampsone, Darius concluiu sua entrevista com a criada da filha.

– Obrigado – disse ele enquanto se levantava e acenava para a fêmea. – Agradeço sua franqueza.

A doggen curvou-se profundamente.

– Por favor, encontre-a. E a traga de volta para casa, senhor.

– Faremos nosso melhor. – Ele lançou um olhar para Tohrment. – Seria muito gentil se trouxesse o mordomo.

Tohrment abriu a porta para a pequena fêmea e os dois saíram juntos.

Na ausência deles, Darius andou pelo chão sem ornamentos, suas botas de couro faziam um círculo em torno da escrivaninha que havia no centro da sala. A criada não sabia nada de relevante. Havia sido totalmente aberta e despretensiosa – mas não acrescentou absolutamente nada ao enigma.

Tohrment voltou com o mordomo e retornou a sua posição à direita da porta, permanecendo em silêncio. O que era bom. De uma maneira geral, durante um interrogatório no âmbito civil, não era necessário mais de um inquisidor. Entretanto, o garoto tinha outra utilidade. Seus olhos astutos não perdiam nada, assim talvez notasse algo que Darius deixasse passar durante a conversa.

– Obrigado por falar conosco – Darius disse ao mordomo.

O doggen curvou-se.

– Será um prazer servi-lo, senhor.

– Certamente – Darius murmurou enquanto sentava no banquinho duro que tinha usado enquanto falava com a criada. Os doggen, por natureza, tendem a valorizar o protocolo, e portanto preferiam que aqueles que detinham uma posição mais elevada ficassem sentados enquanto eles permaneciam em pé.

– Qual é o seu nome, mordomo?

Outra reverência profunda.

– Eu me chamo Fritzgelder Perlmutter.

– E há quanto tempo está com esta família?

– Eu nasci entre eles há 77 anos. – O mordomo uniu suas mãos atrás das costas e endireitou os ombros. – Tenho servido à família com orgulho desde meu quinto aniversário de nascimento.

– Longa história. Então, você conhece bem a filha.

– Sim. É uma fêmea de valor. Uma alegria para seus pais e sua linhagem.

Darius observou cuidadosamente o rosto do mordomo.

– E você não sabe de nada... que pudesse levá-lo a esperar tal desaparecimento?

A sobrancelha esquerda do serviçal se contraiu uma vez.

E houve um longo silêncio.

Darius baixou a voz a um sussurro.

– Se isso puder servir de alívio à sua consciência, tem minha palavra como um Irmão que nem eu nem meu colega revelaremos o que você disser. Nem mesmo ao próprio Rei.

Fritzgelder abriu a boca e respirou fundo.

Darius permaneceu em silêncio: pressionar o pobre macho só retardaria o processo de revelação. Na verdade, simplesmente falaria alguma coisa ou não e apressá-lo só iria atrasar sua decisão.

O mordomo alcançou o bolso interno de seu uniforme e retirou um lenço branco que estava dobrado em um quadrado exato. Apertou o lábio superior, atrapalhando-se para guardar a coisa.

– Nada sairá destas paredes – Darius sussurrou. – Nada.

O criado limpou a garganta duas vezes antes das suas cordas vocais produzirem algum som.

– De fato... ela estava acima de qualquer suspeita. Disso estou certo. Não havia nenhum... relacionamento com um macho que seus pais desconhecessem.

– Mas... – Darius murmurou.

Naquele momento, a porta foi aberta e o mordomo que os havia deixado entrar na mansão surgiu. Parecia totalmente surpreso com a reunião, a qual tinha sua total desaprovação. Não havia dúvida de que um de seus subordinados o tinha avisado.

– Você trabalha com uma boa equipe – Darius disse ao macho. – Meu colega e eu estamos muito impressionados.

A reverência não aliviou a expressão de desconfiança do macho.

– Estou lisonjeado, senhor.

– Estávamos saindo. Seu mestre está?

O mordomo se endireitou e seu alívio era evidente.

– Recolheu-se aos seus aposentos e por isso vim vê-los. Mandou-lhes dizer adeus, pois precisa cuidar de sua amada shellan.

Darius colocou-se em pé.

– Este seu criado estava prestes a nos mostrar a saída. Como está chovendo, tenho certeza de que prefere que um de seus funcionários nos guie sobre a grama molhada. Voltaremos aqui depois do pôr do sol. Obrigado por atender aos nossos pedidos.

Não havia nenhuma outra resposta a não ser a que o macho deu.

– Mas é claro.

Fritzgelder fez uma reverência ao seu superior e estendeu então o braço para uma porta no canto.

– Por aqui.

Lá fora, o ar carregava muito pouco das promessas de uma primavera de calor. De fato, estava um frio invernal quando atravessaram a neblina.

Fritzgelder sabia exatamente onde os estava levando, o mordomo caminhava com o objetivo de chegar aos fundos da mansão, para a parte do jardim que podia ser vista do quarto da fêmea.

Boa manobra, pensou Darius.

O mordomo parou bem debaixo da janela da filha de Sampsone, mas não encarava as pesadas paredes da casa. Olhava para fora... para além dos canteiros de flores e do labirinto... olhava para a propriedade vizinha. Então, deliberadamente virou-se para Darius e Tohrment.

– Levantem seus olhos até as árvores – disse ele enquanto apontava para a casa como se descrevesse algo importante, pois, sem dúvida, estavam sendo observados das janelas de chumbo da mansão. – Reparem bem a clareira.

De fato, havia uma brecha dentre os muitos galhos das árvores... foi por isso que conseguiram ver a mansão ao longe, quando estavam no segundo andar.

– Aquela visão não foi produzida por esta casa, senhor – o doggen disse suavemente. – E eu notei isso aproximadamente uma semana antes... de descobrir que ela tinha desaparecido. Estava limpando os quartos. A família estava nos aposentos subterrâneos já que era dia. Ouvi os sons de madeira sendo cortada e olhei pelas janelas, foi então que vi os galhos sendo arrancados.

Darius estreitou seu olhar.

– Foi um corte muito preciso, não?

– Muito preciso. E pensei que não era nada demais, pois só humanos moram ali. Mas agora...

– Agora gostaria de saber se havia algum propósito que não fosse o de jardinagem. Diga-me, a quem você mencionou isso?

– Para o mordomo chefe. Mas me implorou para que eu permanecesse calado. Ele é um bom macho, serve bem à família. Deseja muito que ela seja encontrada...

– Mas ele pretende evitar qualquer suposição de que ela tenha caído em mãos humanas.

Afinal, os humanos estavam apenas a uma cauda de distância de serem considerados como ratos pela glymera.

– Obrigado por isso – Darius disse. – Cumpriu bem o seu dever.

– Apenas encontre-a, por favor. Não me importo com a origem do sequestro... só a traga de volta para casa.

Darius focou no que conseguia ver da mansão vizinha.

– Faremos isso. De uma maneira... ou de outra.

Rezou para que os humanos daquela propriedade não tivessem se atrevido a levar um dos seus, pelo bem deles. A outra raça deveria ser evitada, por ordens do rei, mas e se tivessem a ousadia de agredir um vampiro? Uma fêmea nobre?

Darius mataria cada um deles em suas camas e deixaria os corpos apodrecerem em meio ao mau cheiro.


CAPÍTULO 31

Gregg Winn acordou com Holly em seus braços, seus exuberantes seios falsos eram como um par de travesseiros gêmeos pressionando-o.

Uma olhada rápida no relógio e viu que eram sete horas da manhã. Já poderiam fazer as malas e se dirigir para Atlanta.

– Holly. – Ele a tocou levemente com a mão. – Acorde.

Deixou soltar algo parecido com um ronronar e se espreguiçou, seu corpo se arqueando contra o dele, transformando sua ereção matinal numa necessidade primária sobre a qual estava disposto a fazer algo a respeito. No entanto, as memórias de como ela havia acabado em sua cama refrearam seu impulso.

Provando que em alguns aspectos era um cavalheiro.

– Holly. Vamos. Acorda logo. – Empurrou o cabelo dela para trás e o acariciou sobre o ombro. – Se sairmos agora, estaremos em Atlanta no final da tarde.

Considerando que aquela coisa de perseguir Rathboone tinha lhes custado um dia de viagem, isso viria bem a calhar.

– Tudo bem. Já acordei. Já acordei.

Na verdade, ele foi o único que levantou. Holly apenas se aninhou no espaço aquecido que Gregg tinha deixado e voltou a dormir em seguida.

Tomou um banho e depois encheu as malas com suas coisas fazendo tanto ruído quanto possível, mas ela estava morta para o mundo. Parecia mais um estado de coma do que de sonolência.

Estava prestes a sair atrás de Stan, que era ainda pior nessa coisa de acordar, quando uma batida soou na porta.

Será possível que aquele maluco já havia acordado?

Gregg começou a falar com seu cinegrafista enquanto abria a porta:

– Escuta, vamos arrumar a van...

Era o mordomo durão. Parecendo que alguém havia derramado vinho tinto por todo seu sofá.

Gregg ergueu a palma da mão.

– Estamos saindo, ok? Já estamos indo embora. Apenas nos dê...

– O proprietário decidiu permitir que vocês filmem aqui. Para seu episódio especial.

Gregg piscou como um idiota.

– Como?

O tom do mordomo ficou ainda mais enojado. Como se fosse possível.

– O proprietário falou comigo esta manhã. Disse que vocês têm a permissão de transmitir o programa daqui.

Um dia atrasado, Gregg pensou, soltando um palavrão em pensamento.

– Sinto muito. Minha equipe e eu estamos...

– Empolgados – Holly terminou por ele.

Enquanto olhava por cima do ombro, a apresentadora ajeitava o roupão conforme saía da cama.

– Isso é uma ótima notícia! – disse de maneira incisiva enquanto sorria para o mordomo, o qual parecia um ioiô entre reprovação e encantamento perante a visão de toda aquela beleza e naturalidade de Holly.

– Muito bem, então – o mordomo disse, depois de clarear a garganta. – Avisem-me se precisarem de algo.

Com uma reverência, desapareceu no corredor.

Gregg fechou a porta.

– Pensei que você queria sair daqui.

– Bem... eu estava segura com você, certo? – Esquivou-se até ele, acariciando seu peito. – Então vou ficar sempre perto de você.

A satisfação na voz dela o deixou desconfiado.

– Você fingiu pra mim? Sobre toda aquela coisa do sexo... com quem quer que seja?

Ela negou com a cabeça sem hesitar:

– Não... mas acredito mesmo que foi tudo um sonho.

– E quanto ao fato de ter dito que realmente fez sexo?

Franziu as sobrancelhas depiladas como se estivesse tentando ver através de um vidro fosco.

– É tudo muito vago para ter sido real. Na noite passada eu estava totalmente confusa, mas à luz do dia... tudo isso parece bobagem.

– Você tinha muita certeza quando entrou aqui.

Ela balançou a cabeça lentamente.

– Nada além de um sonho muito vívido e incrível... mas não aconteceu de verdade.

Examinou o rosto dela e não encontrou nada além de certeza. De repente, ela colocou as mãos sobre as têmporas.

– Tem aspirina?

– Dor de cabeça?

– Sim. Acabou de começar.

Aproximou-se da mala e tirou uma pequena bolsa.

– Escute, estou disposto a tentar, mas se decidirmos ficar, não tem volta. Precisamos preencher o nosso horário, então não podemos sair correndo para Atlanta em um ou dois dias.

Na verdade, já estavam bem atrasados.

– Eu entendo – ela disse enquanto sentava na cama. – Entendo muito bem.

Gregg entregou a aspirina, então foi até o banheiro e pegou um copo com água.

– Ouça, por que você não volta para a cama? Ainda é cedo e com certeza Stan ainda está desmaiado.

– O que você vai fazer? – Ela bocejou enquanto lhe devolvia o copo vazio.

Ele acenou para o notebook.

– Vou levar isso até a sala de estar lá embaixo e analisar a sequência que fizemos ontem à noite. Acho que devo estar com todas as câmeras remotas carregadas.

– Fique aqui – ela pediu ao movimentar os pés embaixo dos lençóis.

– Tem certeza?

O sorriso dela enquanto descansava a cabeça nos travesseiros mostraram seus dentes perfeitos... e o lado doce de sua personalidade.

– Sim, vou dormir melhor com você aqui. Além disso, você cheira bem depois do banho.

Cara, ela tinha um jeitinho: olhando-o da cama daquela maneira, teria sido necessário um exército para tirá-lo do quarto.

– Ok. Vá dormir, Lolli.

Ela sorriu diante do apelido carinhoso que lhe deu depois da primeira noite em que dormiram juntos.

– Vou. E obrigada por ficar aqui comigo.

Quando ela fechou os olhos, dirigiu-se até a cadeira perto da janela e ligou o laptop.

As gravações das minúsculas câmeras que tinham escondido no corredor do andar debaixo, na sala de estar e no grande carvalho perto da varanda de fato já tinham sido carregadas.

Por causa do que tinha acontecido, desejou que tivessem colocado uma câmera remota no quarto de Holly, mas essa era a questão: se os fantasmas realmente não existiam, por que se dar ao trabalho? As filmagens foram feitas apenas para captar a atmosfera do local... e para preparar toda a enganação que viria mais tarde, quando chegasse a hora do “invocamos os espíritos da casa!”.

Quando começou a olhar as imagens que haviam sido capturadas, percebeu que estava fazendo isso há quanto tempo? Dois anos? E mesmo assim não tinha visto ou ouvido nada que não pudesse ser explicado.

O que era bom. Não estava tentando provar a existência de espíritos. Estava apenas vendendo entretenimento.

A única coisa que tinha aprendido nos últimos 24 meses é que aquele era um bom trabalho, mentir nunca foi um problema para ele. De fato, seu total conforto com falsidade era a razão pela qual era um perfeito produtor de televisão: tudo girava em torno dos objetivos e detalhes, fossem locações, talentos, agentes, proprietários de casas ou seja lá o que estivesse no filme, não eram nada além de latas de sopas num armário para serem arrumadas segundo sua vontade. Para conseguir fazer seu trabalho, mentia sobre contratos, datas, imagens e sons. Havia falsificado, enganado e ameaçado com falácias.

Ele posicionava, mirava e...

Gregg franziu a testa e se inclinou para a tela.

Movendo o cursor em direção ao botão que retrocedia as imagens, repassou o segmento que havia sido gravado no corredor.

O que viu foi um vulto escuro movendo-se no corredor do lado de fora de seus quartos e... desaparecendo na frente do de Holly. O horário no canto inferior direito: 12h11 da manhã.

Exatamente 45 minutos antes dela procurá-lo.

Gregg repetiu o segmento, observando aquela sombra enorme caminhar pelo corredor mal iluminado, bloqueando a iluminação que entrava através da janela na outra extremidade.

Em sua mente, ouviu a voz de Holly: Porque eu acabei de transar com ele.

Raiva e ansiedade formavam um turbilhão em sua cabeça, deixou a gravação continuar, os minutos passando naquele canto direito. E então lá estava, alguém deixando o quarto de Holly, saindo, bloqueando a luz, mais ou menos trinta minutos depois.

A figura caminhou na direção oposta da que tinha vindo quase como se soubesse onde a câmera estava e não quisesse mostrar o rosto.

No exato momento em que Gregg estava prestes a chamar a polícia local... a maldita coisa desapareceu no ar.

Que. Droga. Foi. Essa?


CONTINUA

CAPÍTULO 20

A esperança é uma emoção traiçoeira.

Já havia passado duas noites até Darius finalmente entrar na casa da família da fêmea sequestrada e, conforme a grande porta se abria para ele e Tohrment, foram recebidos por um doggen cujos olhos estavam cheios da tragédia da esperança. Na verdade, a expressão do mordomo era de tanto respeito, que evidentemente acreditava estar dando as boas-vindas aos salvadores da casa de seu amo e não a pessoas comuns.

Somente o tempo e os caprichos do destino confirmariam se sua crença era real ou se estava equivocada.

Com entusiasmo, Darius e Tohrment foram guiados a um escritório oficial e o senhor que se levantou de uma cadeira revestida de seda teve que se firmar em seu peso.

– Bem-vindos, senhores, obrigado por terem vindo – Sampsone disse enquanto se aproximava com as duas mãos levantadas para apertar as mãos de Darius. – Sinto muito por não tê-los recebido nas duas noites passadas. Minha amada shellan...

A voz do macho falhou, e no silêncio, Darius deu um passo para o lado.

– Permita-me apresentar meu colega, Tohrment, filho de Hharm.

Enquanto Tohrment com reverência se curvava com a mão no coração, ficou claro que o filho tinha todas as boas maneiras que seu pai não tinha.

O mestre da casa retribuiu a deferência.

– Gostariam de beber ou comer alguma coisa?

Darius balançou a cabeça e sentou. Quando Tohrment colocou-se em pé atrás dele, disse:

– Obrigado. Mas, por ventura, poderíamos falar sobre o que aconteceu nesta mansão?

– Sim, sim, é claro. O que posso dizer?

– Tudo. Conte-nos... tudo.

– Minha filha... minha luz na escuridão... – O homem pegou um lenço. – Era de valor e cheia de virtude. A mais doce fêmea que poderiam se deparar...

Darius, consciente de que já tinham perdido duas noites, permitiu ao pai um certo tempo de lembranças, antes de colocá-lo no foco da questão.

– E naquela noite, senhor, naquela terrível noite – ele interrompeu quando houve uma pausa. – O que aconteceu nesta casa?

O macho balançou a cabeça e enxugou os olhos.

– Ela acordou de seu suave sono sentindo-se um pouco inquieta e então foi aconselhada a descansar em seus aposentos privados para o bem de sua saúde. Levaram comida até ela à meia noite e outra refeição antes da chegada da aurora. Foi a última vez em que foi vista. Seu aposento particular está lá em cima, mas também possui, assim como o resto da família, aposentos subterrâneos. Contudo, escolhia com frequência não ficar aqui conosco durante o dia, e como tínhamos acesso a ela através dos corredores internos, concluímos que estaria segura... – O homem engasgou neste ponto. – Como desejaria ter insistido mais.

Darius podia muito bem entender o arrependimento.

– Vamos encontrar sua filha. De um jeito ou de outro, vamos encontrá-la. Permitiria que fôssemos agora ao quarto dela?

– Por favor, sim. – Quando o macho gesticulou para o doggen, o mordomo se aproximou. – Silas ficará satisfeito em acompanhá-los. Prefiro... esperar aqui.

– Mas é claro.

Quando Darius se levantou, o homem se aproximou e agarrou sua mão.

– Uma palavra, se me permite? Entre você e eu?

Darius concordou, e conforme Tohrment seguiu o doggen, o mestre da casa deixou-se cair de volta em sua cadeira.

– Na verdade... minha filha era de valor. De virtudes. Intocada por...

Na pausa que se seguiu, Darius sabia com o quê o macho estava preocupado: se não a recuperassem em sua condição virginal, sua honra, assim como a da família, estaria em jogo.

– Não consigo dizer isso na frente de minha amada shellan – o macho continuou. – Mas nossa filha... se for corrompida... talvez seja melhor deixá-la...

Os olhos de Darius se estreitaram.

– Prefere que não seja encontrada?

Lágrimas surgiram daqueles olhos pálidos.

– Eu... – De repente, o macho balançou a cabeça. – Não... não. Eu a quero de volta. Não importa como, não importa em quais condições... claro que eu quero minha filha de volta.

Darius não estava disposto a oferecer apoio – tal negação a uma filha de seu sangue ter passado pela mente do macho foi grotesco.

– Gostaria de ir ao quarto dela agora.

O mestre da casa estalou os dedos e o doggen se aproximou do arco do escritório.

– Por aqui, senhor – o mordomo disse.

Enquanto ele e seu protegido andavam pela casa, Darius examinava as janelas e portas reforçadas. Havia aço por todos os lugares, separando os painéis de vidro ou fortificando os painéis de carvalho robusto. Entrar sem ser convidado não era fácil... e estava disposto a apostar que todos os quartos nos andares de cima eram iguais – inclusive os aposentos dos doggen.

Também avaliou cada pintura, tapete e objetos preciosos enquanto subia. Aquela família era de alto nível na glymera, com cofres sufocados de riquezas e uma linhagem sanguínea invejável. Assim, o fato de que sua filha virgem solteira sumisse não atingia apenas seus corações: era como um bem negociável. Sabendo disso, uma fêmea nessa idade e condição era um objeto de beleza... e uma implicação social e financeira.

E esta não era a única implicação disso. Como em qualquer avaliação, o inverso também era verdadeiro: ter uma filha arruinada, de fato ou por rumores, era uma mancha que levaria gerações para sequer ser ofuscada. O mestre daquela mansão, sem dúvida, amava sua filha de verdade, mas o peso de tudo isso distorcia a relação.

Darius acreditava muito que na visão do macho, seria melhor que sua filha voltasse numa caixa de pinho ao invés de respirando, mas corrompida. O último era uma maldição, o primeiro seria uma tragédia que reuniria muita simpatia. Darius odiava a glymera. Odiava mesmo.

– Aqui estão os aposentos privados dela – o doggen disse, abrindo a porta.

Quando Tohrment entrou no quarto iluminado por velas, Darius perguntou:

– O quarto foi limpo? Foi arrumado desde que ela se foi?

– Claro.

– Deixe-nos, por favor.

O doggen se curvou profundamente e desapareceu.

Tohrment vagou ao redor, olhando as cortinas de seda e uma área de estar muito bem decorada. Um alaúde estava em um canto e uma bela peça de bordado que foi parcialmente concluída em outro. Livros de autores humanos estavam empilhados ordenadamente em prateleiras, juntamente com pergaminhos no Antigo Idioma.

A primeira coisa que se percebia é que nada estava fora do lugar. Mas se isso era culpa dos empregados ou circunstâncias do desaparecimento, era difícil saber.

– Não toque em nada, certo? – Darius disse ao garoto.

– Mas é claro que não.

Darius adentrou no quarto luxuoso. As cortinas eram feitas de uma tapeçaria tão grossa e pesada que não se poderia esperar que a luz do sol penetrasse no aposento. A cama estava cercada pelo mesmo tecido, havia grandes painéis dele pendurados na cobertura.

No armário, abriu as portas esculpidas. Vestidos maravilhosos em safira, rubi, citrino e esmeralda estavam pendurados juntos, repletos de uma beleza potencial. E um único cabide repousava vazio, como se a última vestimenta que escolheu estivesse pendurada naquele objeto acolchoado.

Tinha uma escova de cabelos sobre a penteadeira e vários potes de unguentos, óleos perfumados e pós de coloração. Todos alinhados.

Darius abriu uma gaveta... e soltou uma pequena maldição. Estojos de joias. Estojos de joias de couro. Pegou um, abriu o fecho de ouro com um estalo e levantou a tampa.

Diamantes brilhavam sob a luz das velas.

Quando Darius voltou a colocar a caixa junto com as outras, Tohrment parou na porta, os olhos focando o tapete em tons de pêssego, amarelo e vermelho.

O leve rubor no rosto do macho entristeceu Darius por alguma razão.

– Nunca esteve no quarto de uma fêmea, certo?

Tohrment ficou ainda mais vermelho.

– Ah... não, senhor.

Darius fez um gesto com a mão.

– Bem, estamos aqui a trabalho. Melhor deixar qualquer timidez de lado.

Tohrment pigarreou.

– Sim. É claro.

Darius foi até a porta dupla francesa. As duas se abriam para um terraço e saiu com Tohrment em seu encalço.

– É possível enxergar através daquelas árvores distantes – o garoto murmurou, andando até a varanda.

De fato era possível. Através dos galhos torcidos e dos ramos desfolhados, uma mansão em outra propriedade era visível. A grande casa era comparável em tamanho e distinção, com metais finos em suas torres e grandes jardins... mas até onde Darius sabia, não era habitada por vampiros.

Virou-se e andou pela varanda, inspecionando todas as janelas, portas, maçanetas, dobradiças e fechaduras.

Não havia sinais de invasão, e considerando o frio que fazia, ela não teria deixado nada aberto facilitando assim a entrada dos elementos da natureza.

O que significava que a garota ou havia saído por vontade própria... ou deixado entrar quem quer que a tivesse levado. Isso assumindo que a entrada tivesse acontecido ali.

Olhou através do vidro para dentro dos aposentos da moça, tentando imaginar o que havia acontecido.

Para o inferno com a entrada, a saída era a questão, não era? Era muito improvável que o sequestrador a tenha arrastado pela casa: deve ter sido arrebatada na escuridão, ou então teria sido queimada até as cinzas e sempre havia gente do lado de fora durante a noite.

Não. Teriam que ter saído por aquele quarto.

Tohrment falou:

– Nada foi modificado, dentro ou fora. Sem riscos no chão, ou marcas na parede, o que significa...

– Que ela pode muito bem ter deixado alguém entrar e não lutou contra isso.

Darius voltou para dentro e pegou a escova de cabelo. Finos fios de cabelos loiros estavam presos nas cerdas duras. Nenhuma surpresa, já que o pai e a mãe eram claros.

A questão era: o que levava uma fêmea de valor a fugir da casa de sua família antes do amanhecer, não deixando rastros... e não levando nada consigo?

Uma resposta veio à mente: um macho.

Pais não sabem necessariamente tudo sobre as vidas de suas filhas, sabem?

Darius encarou a noite, examinando os caminhos, as árvores... e a mansão vizinha. Fios... havia fios para tecer aquele mistério.

A resposta que procurava estava ali em algum lugar. Só tinha que costurar os fios para encontrá-la.

– E agora? – Tohrment perguntou.

– Vamos conversar com os servos. Em particular.

Geralmente, em casas como aquela, os doggen nunca sonhariam em falar qualquer coisa fora dos limites necessários. Mas estas não eram circunstâncias normais e era muito possível que piedade e compaixão para com a pobre fêmea sobrepusessem a reticência dos funcionários.

E, às vezes, os fundos da casa sabiam coisas que a frente não sabia.

Darius virou-se e caminhou para a porta.

– Vamos despistar o senhor da mansão agora.

– Despistar?

Saíram juntos e Darius olhou para cima e para baixo no corredor.

– Sim. Venha por aqui.

Escolheu a esquerda, pois, no sentido oposto, havia um conjunto de portas duplas que dava para outra varanda no segundo andar – então era óbvio que o caminho que dava para os aposentos dos funcionários não era por ali. Enquanto caminhavam, passando por diversos cômodos mobiliados maravilhosamente, seu coração doía de tal forma que sua respiração ficou apertada. Depois de duas décadas, suas perdas ainda eram registradas, sua queda ainda ecoava ao longo de cada osso de seu corpo. Era de sua mãe quem mais sentia falta, na verdade. E por trás dessa dor estava o fim de uma vida civilizada que uma vez ele vivera.

Nasceu para isso e fez o que tinha sido treinado a fazer pela raça e alimentou certas... indulgências e ganhou respeito de seus companheiros na guerra. Mas não havia alegrias para ele nessa existência. Nenhuma maravilha. Nenhuma fascinação.

Tudo se resumia a coisas belas para ele? Era tão superficial assim? Se, algum dia, tivesse uma grande e linda casa, com aposentos incontáveis recheados com coisas finas, teria um coração mais leve?

Não, pensou. Não se ficasse sozinho sob o grandioso teto.

Sentia falta de pessoas com a mesma mentalidade convivendo juntas, de uma comunidade levantada por paredes firmes, de um grupo que fosse sua família por sangue e escolha. Na verdade, a Irmandade não vivia junta, pois isto era visto por Wrath, o Justo, como um risco à raça – se suas posições fossem delatadas ao inimigo de alguma maneira, todos estariam expostos.

Darius entendia a linha de pensamento, mas não tinha certeza se concordava com isso. Se os seres humanos podiam viver em seus castelos fortificados em meio aos campos de batalhas, os vampiros poderiam fazer o mesmo.

Contudo, sejamos justos, a Sociedade Redutora era um adversário bem mais perigoso.

Depois de caminhar pelo corredor por algum tempo, finalmente encontraram o que esperava: uma passagem que dava para uma escadaria nos fundos, completamente sem adornos.

Descendo os degraus de pinho, entraram numa pequena cozinha e o aparecimento deles interrompeu a refeição que estava sendo feita numa longa mesa de carvalho.

Os doggen soltaram suas canecas de cerveja e pedaços de pão e se colocaram em pé.

– Por favor, voltem a comer – disse Darius, insistindo com as mãos para que voltassem a seus lugares. – Desejamos falar com o mordomo do segundo andar e com a criada pessoal da filha.

Todos retornaram a seus lugares ao longo da bancada, com exceção de dois: uma fêmea de cabelos brancos e um jovem macho com um rosto gentil.

– Poderia nos sugerir um lugar com alguma privacidade? – Darius disse ao mordomo.

– Temos uma sala de estar indo por ali. – Assinalou em direção a uma porta perto da lareira. – Encontrarão o que procuram lá dentro.

Darius assentiu e se dirigiu à criada, que estava pálida e trêmula, como se estivesse em apuros.

– Não fez nada de errado, minha cara. Venha, isto será rápido e indolor, garanto.

Melhor começar com ela. Não tinha certeza se aguentaria esperar até terminarem com o mordomo.

Tohrment abriu o caminho e os três entraram em uma sala que tinha tanta personalidade quanto um amontoado de pergaminhos em branco.

Como sempre acontecia em grandes propriedades, os aposentos da família eram construídos com luxo e requinte. E os dos empregados não tinham nada além do básico.


CAPÍTULO 21

Quando o Bentley de Rehv saiu da estrada 149 Norte e entrou com cuidado em um caminho estreito de terra, John inclinou-se sobre o para-brisa. Os faróis iluminavam árvores desfolhadas enquanto o sedan serpenteava cada vez mais perto do rio, a paisagem era repleta de mato e pouco acolhedora.

A pequena cabana de caça que surgiu era absoluta e positivamente nada digno de nota. Pequena, escura e despretensiosa, com uma garagem independente da casa. Era rústica, mas estava em perfeito estado.

Saiu do carro e já estava caminhando para a porta da frente antes de Rehv sair de trás do volante. O sentimento predominante de medo que sentia era, na verdade, um bom sinal. Sentiu a mesma coisa no acampamento sympatho e fazia sentido ela proteger seu espaço particular com um campo de força semelhante.

O som de suas botas soou alto em seus ouvidos enquanto cruzava a terra batida da rua estreita, e então tudo ficou em silêncio ao atingir o gramado raso, marrom e desalinhado. Não bateu, mas estendeu a mão para a maçaneta e ordenou mentalmente que a fechadura se abrisse.

Só que... ela não se moveu.

– Não vai ser capaz de entrar aí usando sua mente. – Rehv chegou com uma chave de cobre, colocou a coisa em uso e abriu caminho.

Quando a forte e sólida porta foi colocada de lado, John estreitou o olhar para a escuridão e inclinou sua cabeça, esperando um alarme disparar.

– Ela não acredita em alarmes – disse Rehv calmamente antes de deter John enquanto corria para dentro. Em um tom mais alto, o homem gritou:

– Xhex? Xhex? Abaixe a arma... somos eu e John.

De alguma maneira sua voz não soava bem, pensou John.

E não houve resposta.

Rehv acendeu as luzes e soltou o braço de John enquanto entravam. A cozinha nada mais era do que uma pequena área com apenas o essencial: forno a gás, uma geladeira velha e uma pia de aço inoxidável. Mas tudo estava impecável e não havia desordem alguma. Sem correspondência, sem revistas. Nenhuma arma empunhada.

Mofo. O ar estava parado e mofado.

Do outro lado, havia um único quarto grande com janelas com vista para o rio. A mobília era mínima: nada além de duas cadeiras de vime, um sofá e uma mesa pequena.

Rehv atravessou, caminhando em direção à única porta fechada à direita.

– Xhex?

Outra vez com aquela voz. E, então, o macho colocou a mão no batente da porta e inclinou-se sobre os painéis, fechando os olhos.

Com um arrepio, Rehv abaixou os ombros enormes.

Ela não estava lá.

John adiantou-se e abriu caminho tateando pelo quarto. Vazio. Assim como o banheiro do outro lado.

– Maldição! – Rehv girou sobre os calcanhares e se afastou. Quando uma porta bateu na lateral da cabana que dava para o rio, John percebeu que o sujeito havia saído para a varanda e estava olhando para a água fixamente.

John amaldiçoou em pensamento enquanto olhava ao redor. Tudo estava limpo e organizado. Nada fora do lugar. Nenhuma abertura nas janelas para entrar ar fresco ou portas que haviam sido abertas recentemente.

A poeira fina sobre as maçanetas e fechaduras lhe disse isso.

Xhex poderia ter passado por ali, mas já tinha ido embora. E se veio, não ficou muito tempo ou fez muita coisa, porque não podia detectar nada de seu perfume.

Sentiu como se a tivesse perdido novamente.

Cristo, pensou que o fato de estar viva fosse o suficiente para sustentá-lo, mas a ideia de que ela se encontrava em lugar algum do planeta, mas longe dele, o paralisava de maneira muito estranha. Além disso, se sentia cego pela situação; ainda não sabia os “comos” e “porquês” e “ondes” de nada daquilo.

Estava péssimo, para ser sincero.

Por fim, saiu para juntar-se a Rehv na pequena varanda. Agarrando seu bloco de notas, rabiscou rapidamente e rezou para que o sympatho conseguisse entender aquilo que iria dizer.

Rehv olhou por cima do ombro e leu o que John segurava. Depois de um momento, disse:

– Sim, claro. Direi aos Irmãos que ela não estava aqui e que você foi comigo comer no restaurante de iAm. Isso vai te dar umas boas três, quatro horas no mínimo.

John colocou a mão no peito e curvou-se profundamente.

– Só não saia por aí lutando. Não preciso saber para onde está indo, isso é assunto seu. Mas se você se matar, arrumo noventa e nove problemas e você é o maior deles. – Rehv olhou de volta para o rio. – E não se preocupe com ela. Já fez isso antes. Esta é a segunda vez que... Xhex foi raptada.

A mão de John agarrou com força o antebraço do macho. Rehv nem sequer pestanejou... contudo, havia rumores de que não sentia nada por causa do que fazia para controlar seu lado sympatho.

– Sim. Esta é a segunda vez. Ela e Murhder estavam juntos... – Quando as presas de John apareceram, Rehv sorriu discretamente. – ... isso foi há muito tempo. Não precisa se preocupar. Mas ela acabou indo para a colônia por razões familiares. Porém, eles a prenderam lá e não a deixaram sair. Quando Murhder subiu para buscá-la, os sympathos o pegaram também e a situação ficou crítica. Eu tive que fazer uma barganha para soltar os dois, mas a família dela a vendeu no último segundo, bem debaixo do meu nariz.

John engoliu em seco e sinalizou sem pensar. Para quem?

– Humanos. Contudo, ela se libertou como fez dessa vez. E então foi embora por um tempo. – Os olhos de ametista de Rehv brilharam. – Ela sempre foi forte, mas depois do que aqueles humanos fizeram a ela, tornou-se muito dura.

Quando?, John gesticulou.

– Há uns vinte anos. – Rehv voltou a encarar a água. – Para sua informação, ela não estava brincando naquela mensagem. Não vai apreciar ninguém chegando e sendo seu herói com Lash. Vai ter que fazer isso sozinha. Quer ajudar nessa situação? Deixe que ela vá até você quando estiver pronta... e fique fora do seu caminho.

Sim, bem, provavelmente ela não teria pressa em mandar uma mensagem de texto, pensou John. E quanto à coisa com Lash? Não tinha certeza se conseguiria deixar essa passar. Nem mesmo por ela.

Para interromper seu próprio pensamento, John estendeu a mão. Os dois aproximaram peito com peito em um breve abraço e depois John se desmaterializou.

Quando tomou forma, estava de volta no Parque Xtreme, atrás do galpão, olhando para as rampas e obstáculos vazios. O líder dos traficantes não estava de volta. Também não havia nenhum skatista. As duas coisas faziam sentido. Uma batida na noite anterior com um monte de tiras surgindo? E com uma chuva de balas?

O lugar seria uma cidade fantasma por um tempo.

John inclinou-se contra a madeira áspera, seus sentidos em alerta. Estava consciente da passagem do tempo, tanto por causa da posição da lua bem no meio do céu, quanto porque seu cérebro deixou o estado maníaco e entrou numa agitação mais razoável. Que também era uma droga, mas era mais fácil de lidar.

Xhex estava livre e ele nem sequer sabia em que condições estava. Será que estava machucada? Será que precisava se alimentar? Será que ela...

Certo. Hora de parar com esse ciclo vicioso.

E provavelmente ele deveria cair fora. Wrath havia sido muito claro sobre aquele negócio de “não lutar sem Qhuinn” e o parque ainda podia ser considerado um lugar perigoso.

De repente, deu-se conta de onde precisava ir.

Levantando-se daquela posição, fez uma pausa e olhou em volta com a testa franzida. A sensação de estar sendo observado e seguido o envolveu mais uma vez... exatamente como aconteceu na loja de tatuagens.

Porém, naquela noite, simplesmente não tinha energia para suportar mais uma boa dose de paranoia, então apenas se desmaterializou, imaginando que quem quer ou o que quer que fosse iria segui-lo outra vez ou o perderia no ar... e não estava preocupado com o que seria.

Estava muito desgastado.

Quando tomou forma novamente, estava a apenas algumas quadras de onde tinha lutado com aquele redutor na noite anterior. Do bolso interno de sua jaqueta de couro, tirou uma chave de cobre que era exatamente igual a que Rehv usou na cabana de caça.

Estava com aquela coisa há mais ou menos um mês e meio. Xhex tinha lhe dado na noite em que dissera a ela que podia confiar nele sobre seu segredo sympatho e, assim como os cilícios, ele a levava por onde quer que fosse.

Esquivando-se sob as escadarias de uma casa de arenito, inseriu o pedaço de metal e abriu a porta. As luzes no corredor do porão foram ativadas pelo movimento e o trecho de pedras caiadas foi iluminado instantaneamente.

Teve o cuidado de trancar a porta atrás de si e desceu.

Ela ofereceu-lhe abrigo naquele lugar secreto antes. Tinha concedido acesso a seu quarto no porão quando precisou ficar sozinho. E ao aproveitar sua hospitalidade, aquilo o levou à perda de sua virgindade.

No entanto, ela se recusou a beijá-lo.

A mesma chave funcionou na porta do quarto, o mecanismo de trava se deslocou suavemente. Ao movimentar os amplos painéis de metal, a luz se acendeu e ele entrou.

John morreu um pouco com o que viu na cama: seu coração e sua respiração pararam, suas ondas cerebrais cessaram, seu sangue gelou nas veias.

O corpo nu de Xhex estava enrolado nos lençóis.

Quando o quarto foi inundado pela luz, a mão dela agarrou a arma que estava apoiada sobre o colchão e a apontou para a porta.

Não tinha forças nem para levantar a cabeça ou a arma, mas ele tinha certeza de que poderia puxar o gatilho.

Levantando os braços e mostrando as palmas das mãos, deu um passo para o lado e fechou a porta com o pé para protegê-la.

Sua voz era quase um sussurro.

– John...

Uma única lágrima cor vermelho-sangue surgiu e a assistiu escorrer devagar e com facilidade pelo nariz até pingar sobre o travesseiro.

A mão dela afastou-se da arma e foi para o rosto, movendo-se com cuidado a cada centímetro, como se precisasse de tudo o que tinha para fazer isso. Cobriu-se da única maneira que podia, com seu escudo de mãos e dedos escondendo as lágrimas.

Ela estava toda marcada por hematomas em vários estágios de cura e tinha perdido muito peso, seus ossos pareciam prestes a romper sua carne. Sua pele estava cinza ao invés de um rosa saudável e seu perfume natural era praticamente inexistente.

Ela estava morrendo.

O horror daquilo tudo fez com que seus joelhos vacilassem ao ponto de ser obrigado a se apoiar contra a porta.

Mas mesmo enquanto oscilava, sua mente não parava. A doutora Jane precisava vê-la e Xhex precisava se alimentar.

Não tinham muito tempo pela frente.

Para sobreviver, ele teria que assumir a partir daquele momento.

John arrancou sua jaqueta de couro e arregaçou as mangas enquanto se dirigia até ela. A primeira coisa que fez foi cobrir gentilmente sua nudez puxando o lençol sobre seu corpo. A segunda foi empurrar seu punho direto contra a boca dela... e esperar que seus instintos assumissem o controle.

Sua mente podia não desejá-lo, mas seu corpo não seria capaz de resistir ao que tinha para oferecer.

Sobrevivência sempre prevaleceu sobre os assuntos do coração. Ele era uma prova viva disso.


CAPÍTULO 22

Xhex sentiu um suave roçar em seu ombro e quadril enquanto John puxava o lençol em volta.

Por trás do aconchego de sua mão, ela inalou e tudo o que sentiu dizia respeito a um macho bom, limpo e saudável... e o cheiro provocou uma fome profunda dentro dela, seu apetite e necessidades a despertaram de seu sono com um rugido.

E isso foi antes de John colocar seu pulso tão perto dela que poderia beijá-lo.

Seus instintos sympatho serpentearam e leram as emoções dele.

Calmo e decidido. Totalmente centrado na cabeça e no coração: John iria salvá-la nem que fosse a última coisa que fizesse.

– John... – sussurrou.

O problema daquela situação... bem, um deles... era que não estava sozinho em saber o quão perto da morte ela estava.

Enquanto foi encarcerada e abusada, sua fúria contra Lash tinha sido um sustento e pensou que continuaria sendo quando saísse. Mas no instante em que ligou para Rehv, toda sua energia foi drenada e sobraram apenas as batidas de seu coração. E, mesmo isso, não era muito.

John colocou o pulso ainda mais perto... de modo que a pele dele roçou contra sua boca.

Seus caninos se alongaram num impulso lento ao mesmo tempo em que seu coração soluçou como se não estivesse trabalhando direito.

Tinha uma opção naquele momento silencioso e tenso: tomar sua veia e continuar vivendo. Ou negar isso e morrer na frente dele na próxima hora ou coisa assim. Porque ele não iria a lugar nenhum.

Afastando a mão do rosto, ela o percorreu com o olhar. Estava lindo como sempre, o tipo de rosto com que as fêmeas sonhavam.

Erguendo a palma da mão, ela o tocou.

A surpresa cintilou em seus olhos e então se inclinou para que sua mão pousasse sobre sua face quente. O esforço de manter o braço elevado mostrou ser algo extremo, mas quando seus dedos tremeram, ele colocou sua mão sobre a dela, segurando-a no lugar.

Seus profundos olhos azuis eram uma espécie de paraíso, com a cor de um céu quente ao escurecer.

Tinha que tomar uma decisão. Tomar sua veia ou...

Como não conseguia encontrar energia para terminar o pensamento, sentiu como se tivesse perdido a si mesma: considerando o fato de que parecia estar consciente, supôs que estava viva... mas, ainda assim, não sentia como se estivesse em sua própria pele. Sua luta tinha passado, a coisa que a tinha definido no mundo tinha evaporado. O que fazia sentido. Não tinha mais interesse em viver e não poderia fingir nem para ele, nem para si mesma.

Duas viagens ao parque dos prisioneiros a levaram longe demais.

Então... o que fazer, o que fazer?

Lambeu os lábios secos. Não nasceu sob condições que pudesse escolher, e seu tempo respirando, comendo, lutando e transando não trouxe melhoria alguma ao ponto de onde havia começado. Contudo, poderia partir sob suas próprias condições... e fazer isso depois que tivesse colocado as coisas em ordem.

Sim, essa era a resposta. Graças às três últimas semanas e meia, tinha uma ótima lista de coisas a fazer antes de morrer. Claro, havia apenas uma coisa nesta lista, mas algumas vezes isso é o suficiente para motivá-lo.

Num ímpeto de determinação, sua forte pele externa se reformou, a estranha sensação de flutuar que a confundia se dissipou e deixou uma aguda consciência de seu despertar. De repente, tirou a mão que estava embaixo da de John e a retirada cravou um surto de puro medo na grade emocional dele. Mas então puxou seu pulso e expôs suas presas.

O triunfo de John se traduziu numa onda de calor.

Pelo menos até tornar-se evidente que não tinha forças para romper a pele dele... seus caninos não fizeram nada além de arranhar a superfície. Porém, John estava atento. Com um movimento rápido, perfurou sua própria veia e levou aquela fonte até os lábios dela.

O primeiro gole foi... uma transformação. O sangue dele era tão puro que ardeu em sua boca e garganta... e o fogo que se acendeu em seu estômago percorreu todo seu corpo, descongelando-a, animando-a. Salvando-a.

Com ávidas sucções ela tomou dele para reviver, cada gole era um bote salva-vidas, uma corda sendo jogada no penhasco da sua morte, uma bússola que precisava para encontrar o caminho de volta para casa.

E ele deu isso a ela sem expectativas, esperanças ou impulsionado por emoções.

O que, aliás, em meio ao seu frenesi, lhe causou dor. Ela tinha mesmo partido seu coração: não sobrou nada de expectativa nele. Mas não havia abalado o macho – e isso fez com que o respeitasse como nada mais teria conseguido.

Enquanto se alimentava, o tempo corria assim como seu sangue, fluía no infinito e dentro dela.

Quando finalmente ficou saciada, liberou sua pele e lambeu para fechar a ferida.

O tremor começou logo depois. Iniciou-se nas mãos e pés e rapidamente se centralizou no peito, tremores incontroláveis que chacoalhavam seus dentes, seu cérebro e sua visão até que sentiu como se fosse um pé de meia jogado numa secadora.

Através do tremor, viu John tirando seu celular da jaqueta.

Tentou agarrar sua camisa.

– N-n-n-não. N-n-n-não...

Ele a ignorou, inclinando a maldita coisa e enviando uma mensagem de texto.

– D-d-d-droga... – ela grunhiu.

Quando fechou o telefone, disse:

– T-tentar me levar ao H-Havers a-agora n-n-não vai d-dar c-certo.

Seu medo de clínicas e de procedimentos médicos ia deixá-la no limite e, graças a ele, agora tinha energia para fazer algo com seu pânico. E não ia ser uma alegria para ninguém lidar com isso.

John pegou um bloco e rabiscou alguma coisa. Virou o papel e saiu um momento depois. Tudo que ela conseguiu fazer foi fechar os olhos quando a porta também se fechou.

Abrindo os lábios, respirou pela boca e imaginou se teria energia suficiente para levantar, se vestir e sair antes que a ideia brilhante de John aparecesse. Uma rápida avaliação a informou que não ia acontecer. Se não conseguia levantar a cabeça e mantê-la erguida do travesseiro por mais de um segundo e meio, não tinha jeito de conseguir ficar em pé.

Não levou muito tempo para que John voltasse com a doutora Jane, a médica pessoal da Irmandade da Adaga Negra. A fêmea fantasmagórica trazia uma maleta preta e transpirava o tipo de competência médica que Xhex valorizava – mas teria preferido infinitamente que toda aquela competência fosse aplicada a outros e não nela.

A doutora Jane se aproximou e colocou suas coisas no chão. Seu jaleco branco e sua roupa de hospital eram referências sólidas para os olhos, embora seu rosto e mãos fossem translúcidos. Porém, tudo mudou quando ela sentou na beirada da cama. Tudo nela tomou forma e a mão que pousou sobre o braço de Xhex era calorosa e firme.

No entanto, mesmo a compassiva médica fez a pele de Xhex formigar. Não queria mesmo ser tocada por ninguém.

Quando a boa doutora removeu a mão, teve a sensação que a fêmea sabia disso.

– Antes que me diga para ir embora, tem algumas coisas que precisa saber. Em primeiro lugar, não vou divulgar a sua localização a ninguém e não vou compartilhar nada que me diga ou qualquer coisa que eu descubra. Tenho que relatar a Wrath que a vi, mas qualquer descoberta clínica será sua e apenas sua.

Soava bem. Na teoria. Mas não queria a fêmea em nenhum lugar perto dela com o que havia naquela maleta preta.

A doutora Jane continuou:

– Segundo, eu não sei absolutamente nada sobre sympathos. Portanto, se há algo anatômico distinto ou significativo para essa sua metade... não vou necessariamente saber como tratar. Ainda consente em ser examinada por mim?

Xhex limpou a garganta e tentou travar os ombros, para que não tremesse tanto.

– Eu não q-quero ser examinada.

– Isso foi o que John disse. Mas você já passou por um trauma...

– N-n-não foi tão mal assim. – Sentia a resposta emocional de John vindo do canto de onde ele estava, mas não tinha energia para descobrir os detalhes do que estava sentindo. – E eu estou b-b-bem...

– Então deveria encarar isso como uma simples formalidade.

– Eu p-p-pareço com alguém que é formal?

O olhar verde-floresta da doutora Jane se estreitou.

– Você parece alguém que foi espancada. Que não se alimentou de maneira adequada. E que não dormiu. A não ser que queira me dizer que esse machucado roxo em seu ombro é maquiagem. Ou que essas bolsas debaixo dos seus olhos são uma miragem.

Xhex estava bem familiarizada com pessoas que não aceitavam “não” como resposta... pelo amor de Deus, trabalhou com Rehv por anos. E considerando aquele tom rígido e equilibrado, estava muito claro que a doutora iria fazer as coisas do jeito dela ou não iria embora. Nunca.

– M-m-maldição.

– Para sua informação, quanto mais cedo começarmos, mais cedo termina.

Xhex encarou John, pensando que se tinha que ser examinada, a presença dele ali não seria vantagem alguma. Ele realmente não precisava saber nada além do que provavelmente já supunha sobre a condição dela.

A doutora olhou sobre o ombro.

– John, você poderia, por favor, esperar no corredor?

John abaixou a cabeça e se inclinou para fora do quarto, a tremenda largura das suas costas desaparecendo pela porta. Quando a fechadura fez um clique, a boa doutora abriu aquela maldita maleta e o estetoscópio e o medidor de pressão foram os primeiros a sair.

– Só vou ouvir seu coração – disse, colocando o estetoscópio nas orelhas.

A visão dos instrumentos médicos foi gasolina para os tremores de Xhex, e estando fora de si como estava, ela se encolheu afastando-se.

A doutora Jane fez uma pausa.

– Não vou machucar você. E não vou fazer nada que você não queira.

Xhex fechou os olhos e virou de costas. De repente, cada músculo de seu corpo doeu.

– Vamos acabar logo com isso.

Quando o lençol foi levantado, uma corrente de ar frio correu sobre sua pele e um disco gelado foi colocado sobre seu peito. Flashbacks ameaçaram enviá-la para uma montanha-russa assustadora e começou a encarar o teto, apenas para tentar evitar sair levitando do maldito colchão.

– S-seja rápida, d-d-doutora. – Não conseguiria conter o pânico por muito tempo.

– Poderia respirar fundo para mim?

Xhex fez o melhor que podia e acabou estremecendo. Estava claro que uma ou mais das suas costelas estavam quebradas, provavelmente de bater na parede ao sair daquele quarto.

– Pode se sentar? – A Dra. Jane perguntou.

Xhex gemeu quando tentou levantar seu tronco da cama e falhou. A doutora Jane acabou tendo de ajudá-la, e quando fez isso, assoviou um pouco.

– Não dói tanto assim – Xhex exclamou.

– Difícil de acreditar. – De novo, o disco de metal andou sobre ela. –Respire o mais profundo que puder.

Xhex respirou fundo e ficou aliviada quando a mão gentil da doutora impulsionou suas costas contra os travesseiros e o lençol flutuou de volta para o lugar.

– Posso examinar os machucados de seus braços e pernas? – Quando Xhex deu de ombros, a doutora Jane colocou o estetoscópio de lado e se moveu ao redor da cama. Houve outra corrente de ar quando o lençol foi retirado... e então a outra fêmea hesitou.

– Marcas muito profundas de ataduras ao redor dos tornozelos – murmurou a doutora, quase para si mesma.

Bem, isso foi porque Lash a havia amarrado com arame algumas vezes.

– Muitas contusões...

Xhex interrompeu a inspeção quando o lençol foi puxado em direção aos quadris.

– Vamos apenas dizer que continuam por toda parte de cima, certo?

A doutora Jane recolocou o lençol onde estava.

– Posso apalpar sua barriga?

– Vá em frente.

Xhex se enrijeceu com a ideia de ser descoberta de novo, mas a doutora apenas esticou o lençol, empurrou e apalpou. Infelizmente não havia como esconder os tremores, especialmente quando as coisas se encaminharam para a parte inferior do estômago.

A doutora se acomodou e olhou dentro dos olhos de Xhex.

– Alguma chance de me deixar fazer um exame interno?

– Interno como em... – Quando entendeu o significado, Xhex balançou a cabeça. – Não. Não vai acontecer.

– Foi agredida sexualmente?

– Não.

A doutora Jane assentiu.

– Existe algo que eu precise saber e que você não me contou? Dor em algum lugar específico?

– Estou bem.

– Você está sangrando. Não tenho certeza se está ciente disso, mas está sangrando.

Xhex franziu a testa e olhou para seus braços trêmulos.

– Há sangue fresco na parte interna de suas coxas. Por isso perguntei se poderia fazer um exame interno.

Xhex sentiu uma onda de horror vindo sobre ela.

– Vou perguntar mais uma vez. Foi agredida sexualmente? – Não havia nenhuma emoção por trás das palavras técnicas e a doutora havia acertado nisso. Xhex não estava interessada em nenhuma histeria, choradeira ou piedade exagerada.

Quando não respondeu, a doutora Jane leu o silêncio corretamente e disse:

– Alguma chance de estar grávida?

Oh... Deus.

Os ciclos sympatho eram estranhos e imprevisíveis e estava tão afetada pelo drama do rapto e do cativeiro que nem tinha pensado nas consequências.

Naquele momento, desprezou ser uma fêmea. Realmente desprezou.

– Eu não sei.

A doutora assentiu.

– Como pode dizer se está?

Xhex apenas balançou a cabeça.

– Não tem como eu estar. Meu corpo passou por muita coisa.

– Deixe-me fazer o exame interno, ok? Apenas para ter certeza que não há nada acontecendo lá dentro. E então eu gostaria de levá-la ao complexo da Irmandade para que possa fazer um ultrassom. Sentiu-se muito mal quando examinei sua barriga. Pedi ao Vishous para vir com o carro... deve estar quase chegando.

Xhex mal conseguia ouvir o que estava sendo dito a ela. Estava ocupada demais relembrando as duas últimas semanas. Esteve com o John na véspera do rapto. Aquela última vez. Talvez...

Se estivesse grávida, recusava-se com todas as forças a acreditar que tinha alguma coisa a ver com Lash. Isso seria muito cruel. Cruel demais.

Além disso, talvez houvesse outra razão para o sangramento.

Parte de seu cérebro insistia em salientar que podia ser um aborto espontâneo.

– Faça isso – Xhex disse. – Mas faça rápido. Eu não lido bem com essa porcaria toda e não vou ficar muito entusiasmada se levar mais que alguns minutos.

– Serei rápida.

Enquanto fechava os olhos e se preparava, uma rápida mostra de slides se iniciou em sua cabeça. Primeira imagem: seu corpo numa mesa de aço inoxidável de uma sala de azulejos. Próxima imagem: seus tornozelos e pulsos presos no lugar. Próxima imagem: médicos humanos com olhos arregalados dizendo “olha só isso” aproximando-se dela. Próxima imagem: uma câmera de vídeo no seu rosto e descendo para produzir uma visão panorâmica. Próxima imagem: um bisturi capturando a luz.

Estalos.

Suas pálpebras se abriram com força com aqueles sons porque não tinha certeza se o que estava ouvindo era na sua cabeça ou no quarto. Era o último. A doutora Jane tinha colocado suas luvas de látex.

– Vou ser gentil – Jane disse.

O que era um termo relativo, claro.

Xhex agarrou os lençóis e sentiu espasmos na parte interna de suas coxas ao ficar rígida da cabeça aos pés. A boa notícia do ato de congelar com força foi que isso a curou daquela gagueira.

– Prefiro que seja rápida.

– Xhex... eu quero que olhe direto para mim. Agora.

O olhar disperso de Xhex voltou-se para ela.

– O que?

– Mantenha-se olhando em meus olhos. Bem aqui. – A doutora apontou para seus olhos. – Mantenha o olhar. Prenda-se em meu rosto e saiba que já passei por isso, certo? Sei exatamente o que estou fazendo e não apenas porque fui treinada.

Xhex se esforçou para focar e... Jesus, aquilo ajudava. Encontrar aquele olhar verde realmente ajudou.

– Você vai sentir.

– Como assim?

Xhex clareou a garganta.

– Se eu estiver... grávida, você vai sentir.

– Como?

– Quando você... haverá um padrão. Dentro. Não vai... – Respirou com dificuldade, recorrendo às fábulas que havia ouvido do povo de seu pai. – As paredes não estarão suaves.

A doutora Jane nem sequer piscou.

– Entendi. Pronta?

Não.

– Sim.

Xhex estava suando frio quando o exame terminou e a costela que estava quebrada gritou por causa de sua forte respiração entrecortada.

– E então? – disse ela com voz rouca.


CAPÍTULO 23

– Estou dizendo... Eliahu está vivo. Eliahu Rathboone... está vivo.

Em pé, em seu quarto, na mansão Rathboone, Gregg Winn olhou para fora da janela, observando o belo musgo espanhol típico da Carolina do Sul. Sob o luar aquela porcaria era assustadora, como uma sombra projetada por algum objeto desconhecido... ou corpo.

– Gregg, você me ouviu?

Depois de esfregar os olhos para dispersar o sono, olhou sobre o ombro em direção à sua jovem narradora. Holly Fleet estava do lado de dentro da porta, seu longo cabelo loiro puxado para trás, seu rosto sem maquiagem, seus olhos não eram tão grandes ou cativantes sem os cílios falsos ou o material cintilante que usava na frente da câmera. Mas o roupão de seda rosa não fazia nada, absolutamente nada para esconder seu corpo que era um arraso.

E estava praticamente vibrando, seu diapasão interno parecia ter sido acionado por uma maldita campainha.

– Está ciente – Gregg arrastou as palavras – de que o filho da mãe morreu há mais de 150 anos?

– Então, o fantasma dele está mesmo aqui.

– Fantasmas não existem. – Gregg voltou a olhar a paisagem. – Você, dentre todas as pessoas, deveria saber disso.

– Este aqui existe.

– E você me acordou de madrugada para dizer isso?

Não foi uma atitude legal da parte dela. Todos eles praticamente não dormiram na noite anterior e ele tinha passado o dia pendurado no telefone ligando para Los Angeles. Tinha deitado a cabeça no travesseiro há uma hora, sem a pretensão de cair no sono – mas felizmente seu corpo tinha planos diferentes.

Ou isso ou seu cérebro estava dizendo para desistir, pois as coisas não estavam indo bem. Aquele mordomo se recusava a ceder quanto à autorização. As duas tentativas de reaproximação de Gregg foram mal-sucedidas: a do café da manhã foi educadamente recusada e a do jantar completamente ignorada.

Enquanto isso, tinham feito ótimas imagens que já estavam sendo enviadas. Graças às evocativas cenas capturadas na surdina, o chefão havia lhe dado o aval para mudar a localização do especial – mas estavam pressionando-o para que enviasse uma prévia que pudessem transmitir o mais rápido possível.

O que não poderia acontecer até que o mordomo cedesse.

– Ei? – Holly exclamou. – Está me ouvindo?

– O quê?

– Quero ir embora.

Franziu a testa, pensando que ela não tinha neurônios suficientes para se assustar com nada menor que um caminhão de dezoito rodas com o nome dela na grade dianteira.

– Pra onde?

– De volta para Los Angeles.

Ele quase recuou.

– Los Angeles? Está brincando...? Certo, isso não vai acontecer. A não ser que queria viajar de volta como bagagem. Temos um trabalho a fazer aqui.

O que, considerando o problema com aquele mordomo idiota, isso incluiria muita paciência e súplica. E o último era a praia de Holly. E afinal... se estava assustada, aquilo funcionaria como vantagem. Poderia usar seu medo para influenciar o mordomo. Normalmente, homens respondem bem a esse tipo de coisa – em especial, os senhores gentis e educados que canalizam seu cavalheirismo por cada um de seus ossos secos e delgados.

– Eu estou mesmo... – Holly puxou as lapelas de seda para mais perto de seu pescoço... de modo que a frente de seu roupão ficou ainda mais esticada e apertada contra seus mamilos enrijecidos. – Estou em pânico.

Hum. Se isso era uma manobra para levá-lo para a cama... não estava tão cansado.

– Venha aqui.

Estendeu os braços, e quando ela se aproximou e colocou seu corpo contra o dele, Gregg sorriu. Deus, ela cheirava bem. Não era aquela droga de perfume floral que costumava usar, mas alguma coisa mais misteriosa. Era muito bom.

– Querida, sabe que tem que ficar conosco. Preciso de você para fazer sua mágica.

Lá fora, os musgos espanhóis balançavam com a brisa, a luz do luar os capturava e criava a ilusão de serem véus de seda, assim as árvores pareciam estar envoltas em mantos.

– Alguma coisa não está certa aqui – disse ela em seu peito.

Lá embaixo, no gramado, uma figura solitária caminhava vagarosamente em meio à paisagem. Ficou claro que Stan tinha saído para fumar.

Gregg balançou a cabeça.

– A única coisa que não está certa aqui é aquele maldito mordomo. Não quer ser famosa? Um especial aqui abrirá portas para você. Poderia ser convidada para a próxima Dança dos Famosos. Ou para o Big Brother.

Parece que conseguiu chamar sua atenção, pois o corpo dela relaxou, e para ajudá-la, acariciou suas costas.

– Essa é minha garota. – Gregg observou Stan caminhar, mãos nos bolsos, a cabeça olhando na direção oposta da casa, seu cabelo longo movia-se no vento. Mais alguns metros e seria banhado pelo luar, quando saísse do alcance das árvores. – Agora, quero que fique aqui comigo... como eu disse, você mais que todas as outras pessoas deveria saber que essas histórias de fantasmas nunca são nada além de tábuas de assoalho velho rangendo. Temos um trabalho só porque as pessoas gostam de acreditar nessas histórias sinistras e idiotas.

Como se estivesse aproveitando a deixa, alguém subiu os degraus, o suave som dos passos pareciam sair de um verdadeiro filme de terror, os lamentos e gemidos da madeira velha penetravam o silêncio.

– É disso que está com medo? De alguns ruídos no meio da noite? – disse, afastando-se e olhando para ela. Seus lábios carnudos trouxeram algumas boas lembranças e acariciou sua boca com o polegar, pensando que talvez ela tivesse colocado mais silicone ali. Parecia estar com um inchaço e uma beleza extra.

– Não... – ela sussurrou. – Não é isso.

– Então, por que acha que há um fantasma?

Uma batida na porta soou e a voz de Stan veio abafada.

– Vocês dois estão transando ou eu posso ir para a cama agora?

Gregg franziu a testa e virou a cabeça em direção à janela. Aquela figura solitária continuou, foi banhada pelo luar... e desapareceu no ar rarefeito.

– Porque eu acabei de transar com ele – Holly disse. – Fiz sexo com Eliahu Rathboone.


CAPÍTULO 24

Do lado de fora, no corredor do porão de Xhex, John já estava marcando um caminho no chão de pedra. Indo e voltando. Indo e voltando. Enquanto ouvia absolutamente nada pela porta do quarto.

O que supunha ser uma coisa boa – esperava que não ouvir gritos ou palavrões significasse que o exame da doutora Jane não estava causando dor.

Mandou uma mensagem para Rehvenge e disse ao macho que Xhex havia sido encontrada e iriam tentar levá-la ao complexo. No entanto, não mencionou o porão. Com certeza, ela gostaria de manter isso em segredo, pois se Rehv soubesse, teria insistido em ir até lá depois de ter verificado que ela não estava na cabana de caça.

Depois de olhar o relógio, John passou as mãos outra vez por entre seus cabelos e se perguntou como machos vinculados como Wrath, Rhage e Z. lidavam com uma situação assim... Cristo, Z. teve que assistir Bella dando à luz... como diabos eles...

A porta foi aberta e ele virou-se, suas solas chiaram no chão.

A doutora Jane estava séria.

– Ela concordou em ir ao complexo. V. deve estar lá fora esperando no Escalade... Pode ver se ele está lá?

John gesticulou: Ela está bem?

– Ela passou por muita coisa. Vá ver se o carro está lá, ok? E vai precisar carregá-la, certo? Não a quero andando e não vou usar uma maca porque não precisamos fazer uma cena na rua.

John não se demorou nada ali e correu para fora do porão. Estacionado na rua, com luzes apagadas, mas o motor ligado, estava o carro de Vishous. Atrás do volante, havia um brilho laranja enquanto V. inalava sua cigarrilha.

O Irmão abaixou a janela.

– Vamos levá-la?

John assentiu uma vez e voltou a entrar correndo.

Quando chegou à porta do quarto de Xhex, estava fechada, então bateu suavemente.

– Um minuto – a doutora Jane gritou, sua voz abafada. – Ok, pode entrar.

Abriu e encontrou Xhex ainda de lado. Uma toalha havia sido enrolada ao redor dela e um lençol limpo caía da cabeça aos pés. Cristo... ele desejava que a pele dela oferecesse um pouco mais de contraste com todo aquele tecido branco.

John se aproximou e pensou que era estranho. Nunca viu a si mesmo como mais alto que ela antes. Agora parecia bem maior, e não só porque estava deitada.

Vou levantar você agora, gesticulou enquanto expressava as palavras com a boca.

Os olhos dela fixaram-se nos dele, e então ela assentiu e tentou sentar. Quando ela começou a lutar, ele se inclinou e a pegou em seus braços.

Não pesava o suficiente.

Quando ele se endireitou, a doutora Jane tirou as cobertas da cama rapidamente e as dobrou e moveu-se em direção à porta.

A rigidez no corpo de Xhex estava custando sua energia e ele queria que relaxasse, mas mesmo se tivesse voz para dizer isso, teria sido um desperdício. Ela não era do tipo que gosta de ser carregada sob nenhuma circunstância, por ninguém.

Pelo menos não... normalmente.

O corredor pareceu ter vinte quilômetros, e do lado de fora, os três metros que andou para atravessar a calçada em direção ao carro tornou-se duas vezes mais distante.

V. saltou de trás do volante e abriu a porta traseira.

– Ela pode se esticar um pouco aqui. Coloquei cobertores antes de sair.

John assentiu e foi deitá-la no suave ninho.

A mão dela o alcançou e travou no ombro dele.

– Fique comigo. Por favor.

Ele congelou por uma fração de segundo... então, usando sua força bruta, subiu no carro enquanto continuava a segurá-la. Entrar ali foi desajeitado... mas, em dado momento, colocou Xhex e a si mesmo contra a parede do interior do carro com suas pernas dobradas no joelho e ela em seu colo, abraçada contra seu peito.

As portas foram fechadas e então houve mais duas batidas e o rugido do motor.

Através das janelas escurecidas, luzes flamejavam e diminuíam enquanto atravessavam a cidade a toda velocidade.

Quando Xhex começou a tremer, envolveu seus braços ainda mais apertados ao redor dela, desejando que seu calor entrasse nela. E talvez tenha funcionado, porque depois de um momento, ela deitou a cabeça contra seu peito e o tremor diminuiu.

Deus... desejou tanto tê-la em seus braços. Tinha imaginado e visualizado cenários onde isso acontecia.

Nenhum deles era bem assim.

Inalou profundamente, planejando soltar um suspiro... e sentiu a essência que ele mesmo estava soltando. Um profundo cheiro apimentado. O tipo que sentia nos Irmãos quando suas shellans estavam por perto. O que significava que seu corpo estava demonstrando suas emoções e que não havia volta.

Maldição, não tinha como esconder a vinculação e nem detê-la. Desde sempre, desde que a viu pela primeira vez, começou a avançar pouco a pouco para mais perto daquele penhasco e ficou claro que tinha se lançado sobre o precipício quando ela se alimentou dele.

– John? – ela sussurrou.

Ele bateu levemente em seu ombro, para que soubesse que a tinha ouvido.

– Obrigada.

Colocou sua bochecha sobre o cabelo dela e assentiu com a cabeça para que pudesse sentir.

Quando se afastou de seu rosto, ele não ficou surpreso... ao menos não até perceber que ela queria olhar para ele.

Oh, Jesus, odiou a expressão em seu rosto magro. Estava assustada, aterrorizada, seus profundos olhos cinza eram da cor do asfalto.

Você está bem, gesticulou com a boca. Vai ficar bem.

– Estou? – Os olhos dela se fecharam com força. – Estou mesmo?

Se depender dele, com certeza ela ficará.

As pálpebras dela abriram de novo.

– Eu sinto muito – disse com voz rouca.

Pelo quê?

– Por tudo. Tratá-lo como tratei. Ser quem eu sou. Você merece algo muito melhor. Eu sinto... sinto muito mesmo.

Por fim, sua voz se emudeceu, e quando começou a piscar, voltou a deitar a cabeça e colocou sua mão bem em cima do coração dele.

Era em momentos assim que desejava desesperadamente conseguir falar. Afinal, não tinha como mexer o corpo dela de lá para cá para que pudesse pegar seu maldito bloco de papel.

No final, apenas a segurou com cuidado porque isso era tudo o que tinha para oferecer.

E não ia confundir as coisas. Uma desculpa não era uma declaração de amor e nem sequer era necessária, pois já a tinha perdoado de qualquer jeito. Mesmo assim, aquilo o ajudou de alguma forma. Ainda havia uma longa distância do modo como tinha desejado que as coisas fossem entre eles, mas era mil vezes melhor que nada.

John puxou o lençol para cima, sobre o ombro dela, então deixou sua cabeça cair para trás. Olhando através da janela escurecida, seus olhos procuraram as estrelas que pontilhavam o denso, negro e aveludado céu noturno.

Engraçado, sentia como se o céu estivesse contra seu peito ao invés de acima de todo o mundo.

Xhex estava viva. E em seus braços. E ele a estava levando para casa.

Sim. De modo geral, as coisas poderiam ter sido muito piores.


CAPÍTULO 25

Lash refletiria mais tarde sobre o fato de você nunca saber com quem vai cruzar no caminho. Simplesmente nunca se sabe como uma simples decisão de virar à esquerda ou à direita numa esquina mudaria as coisas. Algumas vezes as escolhas não importam. Outras... levam você a lugares inesperados.

Contudo, naquele momento, não tinha percebido isso ainda. Estava apenas fora, no campo, dirigindo, pensando sobre o tempo.

Apenas naquele que dizia respeito ao passado recente.

– Quanto falta?

Lash olhou ao longo do interior do Mercedes. A prostituta que tinha escolhido em um beco no centro da cidade tinha boa aparência e silicone suficiente para fazer filmes pornôs, mas o vício em drogas a tinha deixado ossuda e encolhida.

Desesperada também. Tão viciada que tinha custado apenas cem dólares para colocá-la no Mercedes a caminho de uma “festa”.

– Não está longe – respondeu, voltando a focar a estrada.

Estava tremendamente desapontado. Quando imaginou aquela cena em sua cabeça, Xhex estava amarrada e amordaçada no banco traseiro... muito mais romântico. Em vez disso, estava preso àquela vadia. Mas não podia lutar contra a realidade em que vivia: precisava se alimentar, seu pai estava esperando para fazer negócios e encontrar Xhex ia exigir mais tempo do que poderia dispor.

Dentre a pior de todas as concessões estava aquela vadia que mal servia como humana: muito menos útil do que uma vampira, mas esperava que seus ovários trabalhassem a seu favor, quando chegasse a hora de chupar seu sangue.

O ponto principal era: não tinha sido capaz de encontrar alguém de sua espécie que vestisse uma saia.

– Sabe? – disse ela. – Eu costumava ser modelo.

– Sério?

– Em Manhattan. Mas, sabe, aqueles bastardos... não se importam nada com você. Só querem te usar, sabe?

Certo. Primeiro, ela precisava esquecer a expressão “sabe?”. E segundo, até parece que ela estava fazendo algo muito melhor por conta própria em Caldwell.

– Gosto do seu carro.

– Obrigado – ele murmurou.

Ela se inclinou, os seios juntando-se sobre o corselete cor-de-rosa que estava vestindo. A coisa tinha manchas de gordura dos lados, como se não tivesse sido lavado há vários dias e cheirava a cerejas falsas, suor e fumaça de crack.

– Sabe? Gosto de você...

A mão dela foi até a coxa dele e depois a cabeça dela caiu em seu colo. Quando sentiu que estava procurando algo em torno de seu zíper, pegou um pedaço do emaranhado cabelo loiro esbranquiçado e puxou-a para cima.

Ela nem percebeu a dor.

– Não vamos começar isso agora – disse ele. – Estamos quase lá.

A mulher lambeu os lábios.

– Claro. Está bem.

Os campos aparados dos dois lados da estrada estavam banhados pelo luar e as casas de madeira que pontilhavam o caminho brilhavam sob a luz branca. Na maioria das casas havia uma luz na varanda e isso era tudo. Por ali, qualquer coisa que acontecesse depois da meia-noite era beeeeeem depois da hora de dormir.

E isso fazia parte do motivo pelo qual fazia sentido ter um posto ali, na terra da torta de maçã quente e bandeiras americanas.

Cinco minutos depois, pararam na casa da fazenda e estacionaram perto da porta da frente.

– Não tem ninguém aqui – disse ela. – Somos os primeiros?

– Sim. – Inclinou-se para desligar o motor. – Vamos...

O som de um clique ao lado de sua orelha o congelou.

A voz da prostituta agora estava séria:

– Saia do carro, seu filho da mãe.

Lash girou a cabeça e quase deu um beijo de língua no cano de uma nove milímetros. Na outra ponta da arma, as mãos da prostituta estavam firmes como pedra e os olhos queimavam com o tipo de inteligência sagaz que ele tinha que respeitar.

Que surpresa, ele pensou.

– Saia. Agora – ela rosnou.

Ele sorriu lentamente.

– Já disparou essa coisa antes?

– Muitas. – Ela nem piscou. – E não tenho qualquer problema com sangue.

– Ah. Bom para você.

– Saia...

– Então, qual é o plano? Ordenar que eu saia do carro. Atirar na minha cabeça e me deixar morrer. Pegar o Mercedes, meu relógio e minha carteira?

– E o que tiver no porta-malas.

– Ah, você precisa de um pneu sobressalente? Sabe, você pode comprar um em qualquer loja da Firestone ou da Goodyear. Só para saber.

– Acha que eu não sei quem é você?

Oh, tinha plena certeza de que ela não tinha a menor ideia.

– Por que não me diz?

– Já vi este carro. Já o vi. Comprei suas drogas.

– Uma cliente. Que coisa boa.

– Saia. Agora.

Quando ele não se moveu, ela deslocou a arma um centímetro para o lado e puxou o gatilho. Quando a bala estourou a janela atrás dele, ficou irritado. Uma coisa era brincar nos arredores. Outra, causar danos à propriedade.

Quando ela moveu a ponta da arma de volta entre seus olhos, ele se desmaterializou.

Tomando forma do outro lado do carro, viu quando ela surtou em seu assento, olhando ao redor, os cabelos crespos voando de um lado a outro.

Pronto para lhe ensinar uma coisa ou duas, abriu com força a porta dela e arrastou-a pelo braço. Obter o controle da arma e também dela foi questão de um momento, apenas um pegar e um agarrar. E então estava enfiando a arma na parte de trás da sua cintura e segurando-a em seu peito com uma chave de braço.

– O que... O que...

– Você disse para eu sair do carro – disse ele em seu ouvido. – Então eu saí. – Seu corpo esguio parecia fraco como uma folha ao vento, nada além de um tremor em sua roupa barata de prostituta. Em comparação com as batalhas físicas que tinha com Xhex, aquilo era como um único suspiro lutando contra uma tempestade de furacões. Que entediante.

– Vamos entrar – murmurou, descendo a boca até sua garganta e passando uma presa sobre sua jugular. – O outro convidado da festa deve estar esperando por nós.

Quando conseguiu se afastar um pouco dele, virou o rosto e ele sorriu, exibindo seu equipamento. Seu grito incitou uma coruja em cima de um galho, e para garantir que ela parasse com aquela coisa tipo Hitchcock, deu um tapa em sua boca com a palma da mão livre e forçou-a em direção à porta da frente.

Dentro, o lugar cheirava à morte, graças à indução da noite anterior e todo o sangue nos baldes. No entanto, havia uma vantagem nos resíduos. Ao acender as luzes e a garota dar uma breve olhada na sala de jantar, ficou rígida de terror e então desmaiou.

Melhor assim. Colocá-la estendida e amarrada na mesa ficou bem mais fácil.

Após recuperar o fôlego, levou os baldes para a cozinha, lavou-os na pia, limpou as facas e desejou que o Sr. D ainda estivesse por perto para cuidar da porcaria daquele serviço.

Estava colocando o jato móvel da torneira de volta no lugar quando se deu conta que o redutor que tinham transformado na noite anterior não estava a vista.

Levando os baldes à sala de jantar, ajustou-os sob os pulsos e tornozelos da prostituta e, em seguida, fez uma rápida verificação no térreo. Quando tudo o que conseguiu foi um monte de vazio, correu até o segundo andar.

A porta do armário do quarto estava aberta e havia um cabide na cama de onde uma camisa tinha sido tirada. A ducha no banheiro tinha água fresca escorrendo pelas laterais.

Mas que droga é essa?

Como diabos aquele cara conseguiu ir embora? Não havia carro, então a única outra opção era caminhar pela pista. E depois pegar uma carona. Ou fazer uma ligação direta numa dessas caminhonetes de fazendeiros.

Lash desceu e descobriu que a prostituta tinha voltado a si e estava lutando contra a mordaça em sua boca, os olhos agitados enquanto se contorcia na mesa.

– Não vai demorar – disse a ela, percorrendo com o olhar suas pernas finas. Ela tinha tatuagens nas duas, mas eram uma bela bagunça com nenhum tema definido, apenas manchas aleatórias... algumas talvez pudesse identificar, outras ficaram arruinadas por outras tatuagens ruins que foram sobrepostas.

Muitas borboletas feitas em néon, ele supunha. Talvez tivesse sido esse o plano, afinal.

Andou ao redor, indo para a cozinha e depois voltando para a sala de jantar e descendo o corredor novamente. O som agudo de saltos batendo contra a mesa e o ranger de pele nua desapareceu à distância. Perguntava-se onde diabos estava o novo recruta e por que seu pai estava atrasado.

Meia hora depois, ainda tinha um monte de nada a fazer e enviou uma pequena mensagem mental para o outro lado.

Seu pai não respondeu.

Lash subiu e fechou a porta, pensando que talvez não estivesse se concentrando corretamente porque estava chateado e frustrado. Sentado na cama, colocou as mãos sobre os joelhos e se acalmou. Quando seu batimento cardíaco ficou lento e constante, respirou fundo, chamou novamente... e nada.

Será que tinha acontecido alguma coisa com o Ômega?

Com um fluxo de emoções precipitadas, decidiu ir para o Dhunhd por si mesmo.

Suas moléculas se dissolveram bem, mas, quando tentou retomar forma no outro plano de existência, foi bloqueado. Impedido. Negado.

Foi como bater numa parede sólida, e enquanto recuava de volta ao quarto imundo na casa da fazenda, seu corpo absorveu o choque de uma onda de náuseas.

Que. Droga.

Quando seu celular vibrou, arrancou-o do bolso do paletó e franziu a testa quando viu o número.

– Alô? – disse ele.

A gargalhada que chegou através do aparelho era jovial.

– Oi, seu desgraçado idiota. Aqui é seu novo patrão. Adivinha quem acabou de ser promovido? Aliás, seu pai diz para não incomodá-lo mais. Não fez nada bem em pedir mulheres a ele... você deveria conhecer seu pai melhor do que isso. Oh, e eu tenho que matá-lo agora. Vejo você em breve!

O novo recruta começou a rir. Aquele som perfurou a cabeça de Lash através da conexão, até que a chamada foi encerrada.

Pela outra parte.


Não estava grávida. Ao menos não que a doutora Jane soubesse.

Mas graças a uma cortesia daquela pequena e feliz pausa na cidade do pânico, Xhex não se lembrava de nada da viagem ao complexo. A ideia de que havia sequer uma chance de que pudesse estar...

Afinal, não estava usando seus cilícios... e seu propósito era matar as tendências sympatho nela, inclusive a ovulação.

O que será que ela fez?

Certo, chega de pensar nisso, precisava parar. Deus era testemunha de que já tinha o suficiente com que se preocupar na categoria do “acontecendo de verdade”.

Respirando fundo, inalou o cheiro de John e concentrou-se na batida forte e firme do seu coração. Não levou muito tempo para que o sono a levasse com força, a combinação da exaustão, da falta de energia após a alimentação e da necessidade de se retirar de sua vida por um tempo a carregou para um estado de sono profundo, sem sonhos, na parte traseira do carro.

Acordou com a sensação de ser levantada e seus olhos se abriram.

John estava levando-a através de algum tipo de área de estacionamento que, considerando as paredes e o teto cavernoso, tinha que ser subterrâneo. A porta de aço maciço foi aberta por Vishous, que parecia estar com uma disposição surpreendente para ajudar, e do outro lado... era um pesadelo.

O longo e anônimo corredor tinha ladrilhos claros no chão, as paredes eram de blocos de concreto e havia um teto baixo com luzes fluorescentes.

O passado começou a deslizar naquele lugar, o filtro da experiência anterior substituiu o que estava realmente acontecendo por um pesadelo lembrado. Nos braços de John, seu corpo foi de fraco a maníaco e ela começou a lutar contra o aperto que a envolvia, lutando para se libertar. A comoção foi instantânea, as pessoas vieram correndo em sua direção, um som alto como uma sirene estridente...

Quando sentiu vagamente que seu maxilar doía, percebeu que estava gritando.

E, de repente, tudo o que viu foi o rosto de John.

De alguma forma ele conseguiu girar seu corpo de modo a ficarem frente a frente, olhos nos olhos, as mãos envolviam suas laterais e seus quadris. Com a visão daquele corredor substituída por seu olhar azul, as garras do passado foram quebradas e ela foi capturada por ele.

Não disse nada. Apenas ficou quieto e permitiu que ficasse olhando para ele.

Era exatamente o que ela precisava. Ela se prendeu em seus olhos e os usou para fechar seu cérebro.

Quando ele assentiu, ela acenou de volta e John começou a avançar novamente. De vez em quando, seu olhar se afastava para verificar onde estavam indo, mas sempre retornava.

Sempre voltava.

Havia vozes e um monte de portas abrindo e fechando, e em seguida um monte de azulejos verde-claro: estava numa sala de exame, com um lustre de luzes múltiplas acima dela e todo tipo de suprimentos médicos em armários de vidro.

Quando John a colocou sobre a mesa, perdeu o controle novamente. Seus pulmões se recusavam a fazer seu trabalho, como se o ar estivesse envenenado e seus olhos se agitavam olhando ao redor, encontrando gatilhos que disparavam o pânico, como equipamentos, instrumentos e a mesa...

– Certo, vamos perdê-la novamente. – O tom da doutora Jane era implacavelmente equilibrado. – John, venha aqui.

O rosto de John voltou a se aproximar e Xhex se prendeu em seu olhar.

– Xhex? – A voz da doutora Jane vinha mais à esquerda. – Vou lhe dar um sedativo...

– Nada de drogas! – A resposta saiu de sua boca. – Prefiro estar aterrorizada... a estar impotente...

Sua respiração estava dolorosamente entrecortada e cada movimento impotente de suas costelas a convenciam de que a vida devia ser mais sofrimento que alegria. Houve muitos desses momentos, muitas vezes a dor e o medo haviam assumido o controle, muitas sombras que não apenas esconderam, mas sugaram toda a iluminação da noite onde ela existia.

– Deixe-me ir... deixe-me ir embora... – Quando os olhos de John se arregalaram, Xhex percebeu que tinha encontrado uma das facas dele, tinha desembainhado e estava tentando colocá-la na palma de sua mão. – Por favor, deixe-me ir... Eu não quero mais ficar aqui... Acabe com isso para sempre, por favor...

Os muitos corpos paralisados em torno dela a deixaram um pouco mais focada. Rhage e Mary estavam no canto. Rehv estava lá. Vishous e Zsadist. Ninguém falava ou se mexia sequer um centímetro.

John tomou a adaga da mão dela e isso foi o que a fez chorar. Porque ele não ia usá-la. Não contra ela. Não agora... nem nunca.

E não tinha forças para fazer isso sozinha.

De repente, uma emoção tremenda ferveu em suas entranhas, e quando a pressão se expandiu e cresceu dentro de seu corpo, olhou ao redor freneticamente enquanto prateleiras começavam a chacoalhar e o computador mais ao canto a saltar sobre a mesa.

No entanto John estava atento. E foi rápido. Começou a gesticular com o mesmo tipo de urgência que ela estava sentindo e, um instante depois, todos saíram.

Exceto ele.

Tentando desesperadamente não explodir, olhou para suas mãos. Tremiam tanto que eram como as asas de uma mosca... e foi ao olhar para elas que chegou ao fundo do poço.

O grito ressoou fora dela e o som era totalmente estranho, muito agudo e horrorizado.

John manteve-se firme. Mesmo quando gritou novamente.

Ele não iria a lugar algum. Não estava agitado. Estava apenas... ali.

Agarrando o lençol que a circulava, apertou a coisa em torno de seu corpo, muito consciente de que estava desmoronando, que a fissura tinha sido atingida por aquela viagem ao fundo do corredor e agora ela estava dividida. De fato, sentia como se houvesse duas de si na sala, a louca em cima da mesa gritando a plenos pulmões e chorando lágrimas de sangue... e uma calma e sã no canto, observando John e a si mesma.

Será que as duas partes se uniriam outra vez? Ou será que ficaria sempre assim, partida em pedaços?

Sua mente escolheu o personagem observador sobre a histeria e retirou-se para aquele lugar silencioso, onde assistiu a si mesma chorando ao ponto da asfixia. As manchas de sangue que corriam pelas faces brancas como papel não a deixaram enjoada e nem os loucos olhos arregalados ou as batidas epilépticas de seus braços e pernas.

Ficou triste pela situação da fêmea que havia sido levada a tal extremo. Que procurava manter-se distante de todas as emoções.

A fêmea tinha nascido sob uma maldição. A fêmea tinha praticado o mal e o mal foi feito a ela. A fêmea tinha se endurecido, sua mente e emoções tornaram-se aço.

A fêmea estava errada em se fechar, errada sobre aquela autocontenção.

Não era um caso de força, como sempre dizia a si mesma.

Era estritamente sobrevivência... e ela simplesmente não conseguia suportar mais.


CAPÍTULO 26

– Você fez... sexo. Com Eliahu Rathboone.

Gregg afastou Holly e encarou seu rosto, pensando que, com certeza, ela tinha perdido a cabeça... bem, perdeu o pouco do que tinha. Então, eram dois, porque estava claro que aquilo que tinha acabado de “ver” lá fora era fruto de sua imaginação.

Só que os olhos dela eram totalmente sinceros e sem malícia.

– Ele veio até mim. Eu já tinha adormecido...

Outra rodada de batidas na porta a interrompeu e, em seguida, veio a voz de Stan:

– Olá? Em que quarto vou...

– Mais tarde, Stan – Gregg interrompeu. Quando as queixas diminuíram, os passos no corredor se afastaram para o quarto de Holly e uma porta foi batida.

– Venha aqui – puxou Holly para a cama. – Sente-se e me diga... o que diabos acha que aconteceu?

Focou em seus lábios inchados enquanto ela falava.

– Bem, tinha acabado de sair do chuveiro. Estava exausta e deitei na cama para descansar meus olhos antes de vestir minha camisola. Devo ter adormecido... porque a próxima coisa que percebi foi que estava tendo aquele sonho...

Oh, pelo amor de Deus.

– Holly, só porque teve um pesadelo, não significa que...

– Eu não terminei – retrucou. – E não era um pesadelo.

– Pensei que estivesse em pânico.

– A coisa assustadora veio depois. – Arqueou uma sobrancelha. – Vai me deixar falar?

– Tudo bem. – Mas só pela esperança de que ela fizesse outra coisa com a boca mais tarde. Caramba, seus lábios pareciam deliciosos... – Faça isso.

– Comecei a sonhar que aquele homem tinha entrado em meu quarto. Era muito alto e musculoso... um dos maiores homens que já vi. Estava vestido de preto e ficou parado sobre a minha cama. Cheirava muito bem... e olhou para mim... – Sua mão envolveu seu pescoço e deslizou lentamente para baixo entre seus seios. – Tirei a toalha e puxei-o para cima de mim. Foi... indescritível....

Isso era bom. Porque de repente não queria ouvir mais nada sobre o que tinha acontecido em seguida.

– Ele me possuiu – mais daquela coisa de “mão no pescoço” – como eu nunca fui possuída antes. Ele era tão...

– ... bem dotado como uma mangueira de incêndio e a possuiu de doze maneiras diferentes? Parabéns. Seu subconsciente deveria dirigir um filme pornô. O que isso tem a ver com Eliahu Rathboone?

Holly o encarou... e depois puxou a gola da camisola para um lado:

– Porque quando acordei, eu tinha isso – apontou para o que certamente parecia ser um chupão no pescoço. – Eu realmente tive relações sexuais.

Gregg franziu a testa com força.

– Você... como sabe?

– Como acha que eu sei?

Gregg limpou a garganta.

– Você está bem? – Colocou a mão em seu braço. – Quero dizer... ah, quer chamar a polícia?

O riso de Holly foi baixo e dolorosamente sexy.

– Oh, foi consensual. Seja lá o que tenha sido. – Sua expressão perdeu o fulgor. – Esse é o ponto... não sei o que foi. Pensei que estivesse sonhando. Não achei que fosse real até que...

Até que encontrar uma evidência inegável de ter sido o contrário.

Gregg acariciou seus longos cabelos loiros por cima do ombro.

– Tem certeza de que está tudo bem?

– Acho que sim.

Cara, não precisou nem sequer de um segundo para decidir.

– Bem, é isso. Estamos indo embora amanhã.

– O quê? Oh, meu Deus, Gregg... não quero causar problemas... – Ela franziu a testa. – Talvez... talvez eu também tenha sonhado a parte em que acordei. Tomei outro banho... talvez nada disso tenha acontecido de verdade.

– Dane-se, vou ligar para Atlanta pela manhã e dizer a eles que voltamos atrás. Não vou ficar onde você não esteja segura.

– Meu Deus... quero dizer, isso é muito cavalheiro da sua parte, mas... eu não sei. Tudo está tão confuso, e agora eu me pergunto se simplesmente vou me sentir melhor de manhã. Estou realmente confusa... aquilo foi estranho. – Seus dedos se ergueram até suas têmporas e começou a esfregá-las em círculos, como se a cabeça estivesse doendo. – Vou dizer que o que aconteceu foi consensual, a cada passo do caminho...

– Sua porta estava trancada? – Queria uma resposta para a pergunta, mas também não precisava ouvir sobre o fantasma bem dotado.

– Sempre tranco a porta de um quarto de hotel antes de tomar um banho.

– Janelas?

– Fechadas. Acho que estavam trancadas. Não sei.

– Bem, você fica comigo esta noite. Estará segura aqui.

E não apenas porque não iria dar em cima dela agora. Levava uma arma. Sempre. Tinha licença para usar a coisa e sabia como fazer isso: quando as pessoas começaram a ser alvejadas no tráfego de Los Angeles, decidiu andar armado.

Juntos, estenderam-se sobre a cama.

– Vou deixar a luz acesa.

– Está tudo bem. Apenas tranque a porta.

Ele assentiu e saiu da cama, fechando o cadeado e também a pequena corrente, depois fez uma passagem rápida pelas janelas para inspecionar as travas. Quando deitou, ela se aninhou na curva de seu braço e suspirou.

Inclinou-se, tirou o edredom debaixo de suas pernas e o estendeu sobre eles, desligou a luz e se acomodou nos travesseiros.

Pensou no homem lá fora caminhando pelo jardim e quase rosnou. Mas. Que. Porcaria. Poderia ser um morador do local com uma chave-mestre ou algum funcionário que conseguiu forçar a fechadura.

Supondo que nada tivesse acontecido. Algo pelo qual tinha cada vez menos certeza...

Que seja. Estavam indo embora pela manhã e era isso.

Franziu a testa na escuridão.

– Holly?

– Sim?

– Por que você acha que foi Rathboone?

Ela deu um grande bocejo.

– Porque se parecia exatamente com o retrato na sala de estar.


CAPÍTULO 27

Na sala de exames, na clínica subterrânea, John estava em pé diante de Xhex e se sentiu totalmente impotente para ajudá-la. Quando ela se sentou gritando na mesa de aço inoxidável, seus braços tensos paralelos ao corpo, segurando no lençol, seu rosto esticado, seus lábios abertos, lágrimas vermelhas escorrendo de seus olhos e caindo em suas faces brancas... e ele não podia fazer nada sobre isso.

Sabia que ela estava passando por um território difícil. Sabia que não poderia alcançá-la no fundo do poço em que se encontrava – ele próprio já esteve numa situação assim. Sabia exatamente o que era tropeçar, cair e sofrer a agonia do duro impacto... mesmo que tecnicamente seu corpo não tenha ido a lugar algum.

A única diferença era que ela tinha uma voz para dar asas a sua dor.

Enquanto seus ouvidos zumbiam e seu coração se partia por ela, permaneceu firme contra a força do vendaval que ela emanava. Afinal, sabia que as palavras “estar aqui” e “ouvir” tinham significados muito próximos. Sendo sua testemunha naquele local, ele a ouvia e estava ali por ela, porque isso é tudo o que se pode fazer quando alguém desmorona.

Mas, Deus, doía ver o quanto ela sofria. Aquilo doía e o deixava mais focado. O rosto de Lash aparecia como um fantasma, adquirindo forma física no olhar mental de John. Enquanto ela gritava e gritava, jurou vingança até que seu coração não pulsasse mais com sangue, mas com a necessidade de vingança.

Então, Xhex respirou fundo várias vezes. E mais algumas vezes.

– Acho que já parei – disse com dificuldade.

Ele esperou um momento para ter certeza. Quando ela assentiu, pegou o bloco de papel e escreveu rapidamente.

Quando mostrou a folha para ela, seus olhos se voltaram para a escrita e precisou de algumas tentativas para entender o significado.

– Posso lavar o meu rosto antes?

Ele assentiu e foi até a pia de aço inoxidável. Deixando correr a água fria, pegou uma toalha limpa dentre uma pilha e a molhou. Quando Xhex estendeu as mãos, ele entregou a toalha úmida e assistiu enquanto ela a pressionava no rosto lentamente. Era difícil vê-la tão frágil comparado com o modo como a havia conhecido: forte, poderosa e destemida.

O cabelo dela havia crescido e começava e encaracolar nas pontas, sugerindo que se ela não o cortasse teria ondas de fios grossos. Deus, queria tocar aquela suavidade.

John baixou os olhos em direção à mesa e os arregalou de repente. O lençol estava retorcido embaixo dela... e havia uma mancha escura na toalha ao redor de seus quadris.

Ele inalou profundamente, sentiu o cheiro de sangue fresco e ficou surpreso de não ter percebido antes. Mas também, estava extremamente distraído.

Oh... Cristo. Ela estava sangrando...

Ele a tocou levemente nos braços e fez um movimento labial dizendo doutora Jane.

Xhex concordou e disse:

– Sim. Vamos acabar com isso.

Frenético, John se lançou pela porta da sala de exame. Fora, no corredor, havia uma legião de rostos preocupados, sendo a doutora Jane a líder do grupo.

– Ela está pronta para mim? – Quando John deu um passo para o lado e fez um gesto de urgência, a doutora avançou.

No entanto, ele a deteve. De costas para Xhex, gesticulou: Está machucada em algum lugar. Está sangrando.

A doutora Jane colocou a mão em seu ombro e fez uma manobra ao girá-lo para que trocassem de lugar.

– Eu sei. Por que não espera lá fora? Vou cuidar bem dela. Ehlena? Importa-se de me acompanhar? Vou precisar de mais duas mãos.

A shellan de Rehvenge foi para a sala de exame e John viu por cima da cabeça da médica quando a fêmea começou a lavar as mãos.

Por que Vishous não está ajudando?, gesticulou.

– Estamos apenas fazendo um ultrassom para nos certificarmos de que ela está bem. Não estou fazendo uma cirurgia ou coisa assim. – Jane sorriu de uma maneira profissional... o que foi estranhamente assustador. E, então, a porta foi fechada em seu rosto.

Olhou em volta para todos os outros. Todos os machos foram deixados no corredor. Apenas fêmeas estavam ali dentro com ela.

Sua mente começou a se agitar e não levou muito tempo para chegar a uma conclusão que não poderia estar certa.

Uma mão pesada pousou em seu ombro e a voz de V. soou baixa:

– Não, tem que ficar aqui fora John. Vamos lá.

Foi quando percebeu que sua mão havia agarrado a maçaneta da porta. Olhando para baixo, obrigou-se a soltar... e teve que enviar o comando mais duas vezes.

Não havia mais gritos. Nenhum som.

Ele esperou. E esperou. E caminhou e esperou um pouco mais. Vishous acendeu outra cigarrilha. Blay o acompanhou, acendendo um comum. Qhuinn tamborilava sobre suas coxas. Wrath acariciava a cabeça de George enquanto o golden retriever observava John com olhos marrons e bondosos.

Por fim, a doutora Jane colocou a cabeça para fora da porta e procurou por seu parceiro.

– Preciso de você.

Vishous apagou o cigarro na sola da bota e guardou a ponta no bolso de trás.

– Vamos entrar em cirurgia?

– Sim.

– Deixe-me trocar de roupa.

Quando o macho se dirigiu ao vestiário, o olhar da doutora encontrou o de John.

– Vou cuidar muito bem dela...

O que há de errado? Por que ela está sangrando?

– Vou cuidar dela.

E fechou a porta outra vez.

Quando V. retornou, tinha todo o aspecto de um guerreiro, mesmo estando sem as roupas de couro, e John esperava desesperadamente que a competência no campo de batalha do cara fosse igual na área médica.

Aqueles olhos de diamante brilharam e deu uma palmada no ombro de John antes de entrar silenciosamente na sala de exame... e era óbvio que agora funcionava como sala de cirurgia.

Quando a porta se fechou, John sentiu vontade de gritar.

Ao invés disso, continuou caminhando, indo e vindo no corredor. Indo e vindo. Indo... e vindo. Em dado momento, os outros se dispersaram, dirigindo-se a uma das salas de aula nas proximidades, mas não conseguiria juntar-se a eles.

Cada vez que passava pela porta fechada, aumentava o caminho a percorrer, até que a viagem o levou para a saída, para a garagem e depois de volta ao vestiário. Suas pernas longas consumiam a distância, transformando mais cinquenta metros no equivalente a poucos centímetros.

Ou pelo menos era o que parecia.

No que deveria ser sua quinta viagem ao vestiário, John deu uma volta e viu-se na frente da porta de vidro do escritório. A mesa, os armários e o computador pareciam normais de uma maneira implacável, e encontrou um extraordinário conforto nos objetos inanimados.

Mas a tranquilidade foi perdida quando continuou a andar outra vez.

Com sua visão periférica, viu as rachaduras na parede de concreto ao longo do caminho, as quais provinham de uma única fonte de impacto.

Lembrou-se da noite que tinha acontecido. Aquela noite horrível.

Ele e Tohr estavam sentados juntos no escritório, ele fazendo a lição da escola, o Irmão tentando manter a calma enquanto ligava para casa consecutivamente. Cada vez que Wellsie não atendia, toda vez que o correio de voz atendia, a tensão aumentava... até que Wrath apareceu com a Irmandade atrás dele.

A notícia de que Wellsie tinha morrido era trágica... mas Tohr reagiu apenas quando soube o “como”: não porque estava grávida de seu primeiro filho, mas porque um redutor a matou a sangue frio. Assassinou-a. Tirando sua vida e a de seu bebê.

Foi aquilo que causou aquelas marcas.

John se aproximou e passou as pontas dos dedos pelas finas linhas de concreto. A fúria foi tão intensa, Tohr literalmente explodiu como se fosse uma supernova, a sobrecarga emocional o desmaterializou para algum outro lugar.

John nunca soube para onde tinha ido.

Uma sensação de estar sendo observado o fez levantar a cabeça e olhar por cima do ombro. Tohr estava do outro lado da porta de vidro, em pé no escritório olhando-o fixamente.

Os olhares dos dois se encontraram e foi de macho para macho, não de mais velho para mais jovem.

John tinha uma idade diferente agora. E como tantas outras coisas naquela situação, aquilo não voltaria atrás.

– John? – A voz da Dra. Jane veio de longe no corredor e ele virou-se e correu para ela.

Como ela está? O que aconteceu? Ela está...

– Ela vai ficar bem. Está voltando da anestesia. Eu a manterei na cama pelas próximas seis horas mais ou menos. Soube que ela se alimentou de você? – Ele mostrou seu pulso e a doutora assentiu. – Bom. Eu agradeceria se você permanecesse com ela, para o caso dela precisar de novo.

Como se fosse estar em outro lugar.

Quando John entrou na sala de exame, avançou nas pontas dos pés, não queria perturbar ninguém, mas ela não estava ali.

– Foi movida para o outro quarto – V. disse por cima do aparelho de esterilização.

Antes de sair pela porta do fundo, ficou olhando o resultado do que foi feito com Xhex. Havia uma alarmante pilha de gazes ensanguentadas no chão e mais sangue na mesa sobre o espaço que ela ocupava. O lençol e a toalha que a envolviam estavam amassados de um lado.

Tanto sangue. E tão fresco.

John assobiou alto para que V. olhasse.

Alguém pode me dizer que diabos aconteceu aqui?

– Pode conversar com ela sobre isso. – Enquanto o Irmão pegava um saco laranja de lixo biológico e começava a recolher as gazes usadas, V. fez uma pausa, mas não encontrou o olhar de John. – Ela vai ficar bem.

E foi então que John teve certeza.

Por pior que imaginasse como ela tinha sido tratada, havia sido ainda pior. Muito pior.

Em termos gerais, quando havia lesões sofridas em combate ou em campo, a informação era passada sem tanta ponderação: fêmur quebrado, costelas esmagadas, facadas. Mas uma fêmea entrou, foi examinada sem machos presentes e ninguém falou uma palavra referente à intervenção cirúrgica?

Não é porque os redutores são impotentes que não podem fazer outras coisas com...

Uma brisa fria passou pela sala de cirurgia fazendo V. erguer a cabeça outra vez.

– Um conselho, John. Eu manteria as suposições para si. Concluindo que quer ser a pessoa que matará Lash, certo? Não faz sentido que Rehv ou os Sombras, por mais que eu os respeite, façam aquilo que é seu por direito.

Meu Deus, o Irmão era muito legal, John pensou.

Assentido uma vez com a cabeça, foi até o quarto de Xhex, pensando que aqueles machos não eram os únicos motivos pelo qual iria refletir profundamente sobre o assunto. Xhex também não precisava saber até onde estava disposto a chegar.


Xhex sentiu como se alguém tivesse estacionado um ônibus em seu útero.

A pressão era tanta, que levantou a cabeça para verificar se seu corpo havia inchado até as dimensões de uma garagem.

Não. Plano como sempre.

Deixou a cabeça cair outra vez.

De alguma maneira, não podia acreditar onde estava agora: no pós-operatório. Deitada em uma cama com suas pernas, braços e cabeça ainda imobilizados... e o vazamento em sua parede uterina estancado.

Quando estava sob os efeitos de sua fobia médica, não conseguia discernir o que seu cérebro marcava como mortal. Para ela, naquele estado enlouquecido, não estava em um ambiente seguro, mesmo rodeada de pessoas que conhecia e que podia confiar.

Agora, depois de ter passado pelo fogo, o fato de estar sã e salva lhe proporcionou uma estranha dose de endorfina.

Houve uma batida suave e sabia quem era pelo aroma que vinha por baixo da porta.

Tocando o cabelo, perguntou-se como diabos estaria sua aparência e decidiu que era melhor não saber.

– Entre.

A cabeça de John Matthew apareceu e suas sobrancelhas estavam erguidas como quem dissesse “como você está?”.

– Estou bem. Estou melhor. Ainda zonza por causa dos remédios.

John deslizou pela porta, entrou e se apoiou contra a parede, colocando as mãos nos bolsos e cruzando sua pesada bota sobre a outra. Sua camiseta era branca e simples, o que provavelmente era um bom sinal, considerando que já esteve manchada de sangue de redutor.

Cheirava como um macho deveria. Sabonete e suor limpo.

Tinha a aparência que um macho deveria ter. Alto, largo e mortal.

Deus, tinha mesmo perdido a cabeça daquele jeito na frente dele?

– Seu cabelo está mais curto – ela disse sem nenhuma razão específica.

Desvencilhou uma de suas mãos e acariciou o cabelo de maneira desajeitada. Com a cabeça inclinada para baixo, os poderosos músculos que vinham de seus ombros até seu pescoço se flexionavam sob sua pele dourada.

De repente, Xhex se perguntou se alguma vez voltaria a ter relações sexuais.

Foi um pensamento estranho, com certeza. Considerando como havia passado as últimas...

Ela franziu a testa.

– Por quantas semanas eu estive fora?

Ele sustentou quatro dedos e depois fez um movimento como um beliscão.

– Quase quatro?

Quando ele assentiu, ela endireitou cuidadosamente a dobra do lençol que passava por seu peito.

– Quase... quatro.

Bem, os humanos a prenderam por meses antes de conseguir escapar. Apenas quatro semanas deveria ser bem fácil de superar.

Ah, mas ela não estava pensando direito, estava? Não havia nada que “superar”. Tudo havia “acabado”.

– Quer sentar? – ela disse, indicando uma cadeira ao lado da cama. A coisa era padronizada e tradicional, o que significava que era tão confortável quanto uma facada, mas não queria que ele saísse.

As sobrancelhas de John se ergueram novamente e ele concordou com a cabeça enquanto se aproximava. Acomodando seu enorme corpo no pequeno assento, tentou primeiro cruzar as pernas na altura dos joelhos e depois na dos tornozelos. Terminou sentando estirado, com suas botas debaixo da cama e seus braços sobre o encosto da cadeira.

Ela brincou com o maldito lençol.

– Posso perguntar uma coisa?

Com sua visão periférica, ela o viu assentir, depois se endireitar e pegar um bloco de papel e sua caneta no bolso de trás.

Clareando a garganta, imaginava como exatamente expressar sua pergunta.

No final, se rendeu e fez isso como se fosse algo impessoal.

– Onde Lash foi visto pela última vez?

Ele assentiu e se inclinou sobre o papel, escrevendo rapidamente. Enquanto suas palavras tomavam forma na página branca, ela o observou... e percebeu que não queria que ele fosse embora. Ela o queria ali, sempre ao seu lado.

Segura. Ela estava realmente segura com ele por perto.

Ele se endireitou e estendeu o papel. Então pareceu congelar.

Por alguma razão, ela não conseguia focar no que tinha escrito e se esticou.

John baixou o braço lentamente.

– Espere, ainda não li. Você poderia... o quê? O que há de errado? – Maldição, agora seus olhos se recusavam a vê-lo claramente.

John se inclinou para um lado e ela ouviu um suave som de papel. Depois um lenço foi dado a ela.

– Oh, pelo amor de Deus. – Pegou o que ele ofereceu e pressionou contra os dois olhos. – Odeio ser uma garota. Realmente desprezo ser uma garota.

Quando começou um discurso sobre estrogênio, saias, esmalte rosa e sobre malditos saltos altos, John entregava um lenço seguido de outro, recolhendo os manchados de vermelho que ela ia usando.

– Eu nunca choro, sabia? – Ela o encarou. – Nunca.

Ele assentiu. E colocou outro maldito lenço em sua mão.

– Jesus Cristo. Primeiro eu dou um ataque de gritos, agora choro sem sentido. Poderia matar o Lash só por isso.

Um sopro de vento gelado entrou no quarto e Xhex olhou para John... apenas para recuar. Havia passado de compassivo para sociopata em uma fração de segundos. Ao ponto de ela ter quase certeza de que ele não havia percebido que tinha liberado suas presas.

Sua voz tornou-se um sussurro, e o que ela realmente queria perguntar saiu:

– Por que você ficou? Na sala de operação, mais cedo. – Desviou o olhar, focando-se nas manchas vermelhas que havia feito no lenço que tinha acabado de usar. – Você ficou e você... simplesmente parecia compreender.

No silêncio que se seguiu, deu-se conta de que conhecia muito bem o contexto de sua vida: com quem morava, o que ele fazia no campo de batalha, como lutava, onde passava seu tempo. Mas não sabia nada específico. Seu passado era um buraco negro.

E por alguma razão desconhecida, precisava de iluminação sobre isso.

Caramba, sabia exatamente o porquê: naquele incandescente horror que enfrentou na sala de operações, a única coisa que a ligava à terra tinha sido ele e era estranho, mas sentia-se ligada a John de uma maneira vital agora. Ele a viu em seu pior estado, em seu momento mais fraco e mais insano e não desviou o olhar. Não fugiu, não julgou e não se queimou.

Era como se o calor de sua fusão os derretesse juntos.

Isso era mais que emoção. Era uma questão de alma.

– Que inferno aconteceu com você John? No seu passado?

Suas sobrancelhas se estreitaram com força e seus braços foram cruzados sobre seu peito como se agora fosse ele quem tentasse descobrir como se expressar. Mas sua grade emocional de repente se iluminou com todo tipo de coisas obscuras e ela teve a impressão de que ele estava pensando em escapar.

– Olha, não quero pressioná-lo. – Droga. Que droga. – E se quer negar que não houve nada além de ótimo em sua vida, vou aceitar e seguir em frente. Mas é só que eu... a maioria das pessoas teria pelo menos vacilado. Que inferno. Até a doutora Jane me tratou com uma dose extra de cuidado depois que enlouqueci. Mas você? Apenas ficou firme. – Encarou seu rosto tenso e fechado. – Olhei dentro de seus olhos, John, e havia mais do que uma compreensão hipotética neles.

Depois de uma longa pausa, ele virou uma nova página em branco do bloco e escreveu com rapidez. Quando mostrou o que tinha escrito, conseguia entender o lado dele, mas quis soltar um palavrão:

Diga-me o que eles fizeram na sala de operações. Diga-me primeiro o que havia de errado com você.

Ah, sim o clássico toma lá, dá cá.


Só levou cerca de uma hora para Lash transportar a si mesmo, a prostituta e o Mercedes da fazenda de volta à casa na cidade. Estava em pleno modo de sobrevivência, se movendo rápida e decisivamente, fazendo apenas uma parada no caminho.

E esta parada foi em uma cabana na floresta onde pegou alguns itens importantes para a missão.

Quando entrou na garagem da casa, esperou até que a porta estivesse fechada para sair e arrastar a prostituta do banco traseiro. Enquanto carregava seu corpo retorcido até a cozinha, lançou uma boa dose daquilo com que havia aprisionado Xhex.

Contudo, a barreira mágica não era para a siliconada.

O Ômega sabia onde estavam seus redutores deste lado. Podia senti-los como um eco de sua própria existência. E seguindo essa linha de raciocínio, assassinos poderiam encontrar seus colegas com facilidade e acertar as contas.

Então a única chance que Lash tinha de se esconder era encarcerar a si mesmo. O Sr. D não sabia que Xhex estava naquele quarto. A confusão era óbvia todas as vezes que o mandava deixar comida lá.

Claro, a grande questão era se a camuflagem manteria Ômega à distância. E por quanto tempo.

Lash jogou a prostituta dentro do banheiro com o cuidado e preocupação que teria demonstrado com uma mochila barata cheia de roupa suja. Quando ela aterrissou com força na banheira e gemeu contra a fita adesiva sobre a boca, ele voltou ao carro.

Tirar as coisas do carro levou aproximadamente vinte minutos e colocou a porcaria toda no chão de concreto: sete armas de cano longo. Uma sacola de mercado cheia de dinheiro. Um quilo e meio de explosivo plástico C4. Dois detonadores remotos. Uma granada de mão. Quatro automáticas. Munição. Munição. Munição.

Ao chegar às escadas e apagar a luz do porão, foi até à porta dos fundos, abriu-a e colocou a mão para fora. O ar fresco noturno infiltrou o escudo, mas sua mão sentiu a restrição. Era forte... mas precisava ser ainda mais forte.

Olááá, vadiazinha assustada.

Lash fechou a porta, trancou e foi para o banheiro.

Estava muito concentrado ao sacar sua faca, cortar as ataduras dos pulsos dela e...

Ela se debateu até que Lash precisou dar um golpe em sua cabeça, nocauteando-a com força. Corta. Corta. Corta. Fez três cortes profundos em seus pulsos e pescoço e sentou para observar o sangue escorrer num lento gotejar.

– Vamos lá... sangre, vadia, sangre.

Quando olhou seu relógio, pensou que talvez deveria tê-la mantido consciente, porque isso garantiria um pulsar maior na pressão sanguínea. E encurtaria aquele espera inútil enquanto ela sangrava.

Observando o processo, não tinha ideia do quanto ainda tinha que sangrar, mas a piscina vermelha embaixo dela aumentava e seu corpete rosa começava a escurecer.

O pé da Lash batia no chão a mil por hora enquanto o tempo passava... e então percebeu que a pele dela não estava apenas pálida, mas cinza, e o sangue já não estava aumentando nas paredes da banheira. Dando o assunto por encerrado, cortou o pequeno corpete, expondo um horrível par de implantes, e lhe abriu o peito com um golpe da faca, enterrando a lâmina diretamente em seu peito.

O próximo corte foi em sua própria carne.

Segurando seu pulso sobre o buraco que havia aberto, viu gotas pretas caírem sobre o coração imóvel. Bem, não tinha certeza do quanto deveria dar e preferiu errar pelo excesso. Em seguida, concentrou energia em sua mão. Lash forçou as moléculas do ar a girar formando um tornado, até que transformou essa unidade num poder cinético que podia controlar.

Lash olhou para a prostituta, seu corpo todo violado, a maquiagem borrada em sua face; o cabelo asqueroso era mais uma peruca do que algo que se esperava ver nas ruas.

Precisava que aquilo funcionasse. Apenas manter a barreira mágica e uma pequena bola de fogo em sua mão já drenava muito de sua energia.

Aquilo precisava muito funcionar.

Lançou uma explosão que fez a cavidade torácica e os pulmões mortos se sacudirem como cauda de peixe contra as laterais da banheira. Quando o brilho da luz se apagou e dispersou, ele esperou... rezando para...

O suspiro que ela liberou foi horrível. E também uma dádiva.

Ficou fascinado quando o coração começou a bombear e o sangue negro foi absorvido pela carne aberta da caixa torácica, aquela reanimação fez com que seu pênis se contraísse de excitação. Isso era poder, pensou. Dane-se as porcarias que o dinheiro podia comprar.

Era mesmo um deus, assim como seu pai.

Lash sentou-se sobre os calcanhares e olhou a cor retornar à pele dela. Enquanto a vida retornava, sua mão se curvou contra a borda da banheira e a musculatura atrofiada de suas coxas tremeu.

O próximo passo era algo que não entendia completamente, mas que não questionaria. Quando ela parecia estar definitivamente voltando ao mundo dos vivos, ele estendeu as mãos e arrancou o coração do peito dela.

Mais arfadas. Mais engasgos. Blá, blá, blá.

Estava fascinado com o que tinha realizado, especialmente quando colocou a palma de sua mão sobre o peito dela e ordenou que a carne se reparasse por conta própria. E veja só, toda sua pele e ossos obedeceram e ela estava mais uma vez como era antes.

Só que melhor. Porque era útil para ele agora.

Lash estendeu a mão e ligou a ducha, o jato de água golpeou o corpo e rosto da mulher, seus olhos piscaram contra a chuva fria, suas mãos se agitavam de maneira deplorável.

Quanto tempo esperaria agora? Quanto tempo até que pudesse ver se estava mesmo a um passo mais próximo do que realmente o sustentaria?

Uma onda de esgotamento subiu por sua coluna vertebral e enevoou seu cérebro, e então ele caiu sobre os gabinetes que havia embaixo da pia. Fechando a porta com um chute, apoiou os antebraços sobre os joelhos e continuou testemunhando a prostituta se agitar.

Tão fraco.

Extremamente fraco.

Deveria ter sido sua Xhex. Deveria ter feito isso com ela e não com uma prostituta humana qualquer.

Colocando as mãos no rosto, baixou a cabeça enquanto a euforia o abandonava. Não era para ser assim. Não era isso que tinha planejado.

Fugindo. Sendo caçado. Debatendo-se no mundo.

Que diabos iria fazer sem seu pai?


CAPÍTULO 28

Enquanto John esperava Xhex responder à sua pergunta, concentrou-se nas palavras que tinha escrito, traçando-as com a caneta, escurecendo-as enquanto passava a caneta sobre elas outra vez.

Provavelmente não deveria estar fazendo perguntas, considerando o estado dela, mas precisava de algo em troca. Se fosse se despir, iria expor seus segredos não muito legais. Não poderia ser o único a ficar nu daquele jeito.

E também queria muito saber o que estava acontecendo com ela, e Xhex era a única que poderia dizer isso a ele.

Quando o silêncio continuou, tudo o que conseguia pensar era... droga, ela estava fechando a porta na cara dele. De novo. De certa forma, não era uma surpresa tão grande assim, então não deveria se importar. Deus era testemunha de que já tinha sido rejeitado por ela muitas vezes.

A realidade era que parecia outra morte a ser encarada...

– Vi você. Ontem.

A voz dela fez com que erguesse a cabeça.

O quê?

– Ele me manteve presa naquele quarto. Vi você. Entrou e foi até a cama. Foi embora com um travesseiro. Eu estava... ao seu lado durante todo o tempo em que esteve lá.

A mão de John se ergueu até seu próprio rosto e ela sorriu um pouco.

– Sim, eu toquei seu rosto.

Jesus Cristo...

Como?

– Não tenho certeza exata de como ele fez isso. Mas foi como conseguiu me capturar no primeiro momento. Estávamos todos naquela caverna, onde Rehv estava sendo mantido na colônia. Os sympathos entraram e Lash me pegou... tudo aconteceu tão rápido. De repente, fiquei sem equilíbrio e comecei a ser arrastada, mas não conseguia lutar e ninguém conseguia me ouvir gritando. É como um campo de força. Se você está dentro e tenta violá-lo, o choque é doloroso e rápido... só que é mais que uma simples aversão. Há uma barreira física. – Ergueu sua mão e empurrou o ar. – Uma trama. No entanto, a coisa mais estranha é que pode haver outras pessoas no mesmo espaço. Como quando você entrou.

John percebeu vagamente que suas mãos doíam por alguma razão. Olhando abaixo, viu que as havia fechado sobre os punhos e que o bloco de papel estava perfurando a carne. Assim como a caneta com a qual estava escrevendo.

Virando uma nova página, rabiscou:

Gostaria muito de saber que você estava lá. Teria feito alguma coisa. Juro que não sabia.

Quando leu o que tinha escrito, Xhex o alcançou e colocou uma das mãos em seu antebraço.

– Eu sei. Não é sua culpa.

Mas parecia. Ter estado bem ali com ela e não ter nem ideia de que estava...

Oh. Droga.

Escreveu rápido, depois mostrou.

Ele voltou? Depois que estivemos lá?

Quando Xhex balançou a cabeça, seu coração começou a bater de novo.

– Passou por lá dirigindo, mas não parou.

Como você escapou?, gesticulou com as mãos, sem pensar.

Enquanto procurava por uma nova página, ela disse:

– Como eu saí? – Quando ele assentiu, ela riu. – Sabe, vai ter que me ensinar a linguagem de sinais.

Ele piscou. Então fez com a boca: certo.

– E não se preocupe. Aprendo rápido. – Respirou profundamente. – A barreira foi forte o suficiente para me prender ali desde o momento em que me capturou. Mas, então, você foi até lá e saiu e... – Ela franziu a testa. – Foi você quem fez aquilo com aquele assassino lá embaixo?

Quando suas presas apareceram na boca, ele respondeu: Pode apostar.

O pequeno sorriso dela pareceu afiado como uma adaga.

– Bom trabalho. Eu ouvi a coisa toda. Enfim, foi depois que tudo silenciou que soube que tinha de sair dali ou...

Morreria, ele pensou. Por causa do que havia feito naquela cozinha.

– Então, eu fui...

Ele ergueu a mão para detê-la, então escreveu rapidamente. Quando mostrou as palavras, ela franziu a testa e, em seguida, balançou a cabeça.

– Oh, mas é claro que você não teria feito se soubesse que eu estava lá. Mas não sabia. E soou como se não pudesse evitar. Confie em mim, sou a última pessoa com quem precisa se desculpar pelo massacre de um daqueles bastardos.

Verdade, mas ainda suava frio ao pensar em como, inadvertidamente, a colocou em perigo.

Ela inalou profundamente outra vez.

– De qualquer maneira, depois que você saiu, parecia que a barreira estava enfraquecendo, e quando consegui esmurrar uma janela com meus punhos, soube que tinha uma chance. – Levantou uma de suas mãos e olhou para os dedos. – Eu acabei correndo para conseguir um impulso e atravessar a porta. Achei que ia precisar da força extra que havia em mim e estava certa.

Xhex se mexeu na cama, estremecendo.

– Acho que foi quando consegui o rompimento. No meu interior. Eu me machuquei bastante fugindo... foi como puxar meu corpo através de um concreto prestes a secar. Também bati muito forte na parede do corredor.

Sentiu a tentação de acreditar que os machucados que viu na pele dela foram resultado de sua fuga. Mas conhecia Lash. Olhou a crueldade no rosto do cara vezes o suficiente para ter certeza absoluta de que ela tinha passado por muita coisa nas mãos do inimigo.

– Foi por isso que precisei ser operada.

A declaração foi expressa de forma clara e equilibrada. Mas ela não encontrou seus olhos.

John virou uma nova página, escreveu cinco letras em maiúsculo e colocou um ponto de interrogação. Quando virou o bloco, ela mal olhou o MESMO?

Aquele olhar cinzento se afastou e se prendeu num canto afastado.

– Podia ter sido uma lesão que sofri quando lutei com ele. Mas não tive uma hemorragia interna assim antes de sair, então... por aí você deduz.

John exalou e pensou naquelas paredes riscadas e manchadas que vira naquela sala. O que escreveu em seguida o machucou.

Quando ela olhou para o que tinha escrito na página, a expressão de seu rosto se estreitou ao ponto do anonimato. Era como se estivesse olhando para uma estranha.

Ele olhou para as suas palavras: O quanto foi ruim?

Não deveria ter perguntado, pensou. Tinha visto a condição em que se encontrava. Tinha ouvido Xhex gritar na sala de operação e estava bem na frente dela quando teve um colapso nervoso. O que mais precisava saber?

Estava escrevendo um “me desculpe” quando ela falou com uma voz fina:

– Foi... normal... quero dizer...

Seus olhos fixaram-se em seu perfil e desejou que ela continuasse.

Xhex clareou a garganta.

– Não gosto de enganar a mim mesma. Não serve para nada. O fato de que se eu não saísse morreria em breve estava muito claro. – Balançou a cabeça lentamente para trás e para frente no travesseiro branco. – Estava ficando extremamente fraca por falta de sangue e por causa das lutas. Acontece que, na verdade, eu não tinha problemas com a parte de morrer. Ainda não tenho. A morte nada mais é que um processo, embora normalmente doloroso. Uma vez que está acabado e feito? Tudo bem, porque você não existe mais e toda a porcaria acabou.

Por alguma razão, o fato de estar tão indiferente o deixou ansioso e teve que se reacomodar na cadeira para evitar andar pelo quarto.

– Se foi ruim? – ela murmurou. – Sou uma lutadora por natureza. Então, até certo ponto, não foi nada especial. Nada com que eu não pudesse lidar. Quero dizer, sou forte. Perdi o controle na clínica porque odeio coisas relacionadas a médicos, e não por causa de Lash.

O passado dela, ele pensou.

– Vou lhe dizer uma coisa. – Seus olhos voltaram a encará-lo e ele se afastou diante do calor em seu olhar. – Sabe o que será ruim? O que fará com que as três últimas semanas tornem-se insuportáveis? Se eu não matá-lo. Isso será insuportável para mim.

O macho vinculado dentro de John rugiu, a ponto de se perguntar se Xhex sabia que ele não seria capaz de deixá-la dar um fim no desgraçado: machos protegem suas fêmeas. É a lei universal quando se é um homem de verdade.

Além disso, a ideia de ela ir a qualquer lugar perto daquele cara deixava John enlouquecido. Lash já a tinha sequestrado uma vez. E se ele usasse aquela porcaria que tinha o efeito de uma capa mágica de novo?

Não teriam uma segunda chance de resgatá-la. De jeito nenhum.

– Então – disse ela –, contei o meu segredo. Sua vez.

Certo. Tudo bem.

Agora era ele quem estava olhando para aquele canto distante. Jesus Cristo. Por onde começar.

Virou uma nova página em seu bloco, colocou a caneta para baixo e...

Um monte de nada veio a ele. O problema era que havia muita coisa para escrever, muito para dizer e não é que aquilo se mostrou muito deprimente?

Uma batida na porta fez com que a cabeça dos dois virasse.

– Maldição – disse ela baixinho. – Dê-nos um minuto!

O fato de que havia alguém esperando por uma audiência do outro lado da porta não o deixava exatamente disposto a compartilhar seus sentimentos. Isso, juntamente com a barreira da comunicação e sua tendência inata de se fechar, fez sua cabeça zumbir.

– Quem quer que seja, por mim, pode ficar fora a noite toda e durante todo o dia também. – Alisou o cobertor sobre seu estômago. – Quero ouvir o que você tem a dizer.

Engraçado, isso foi o que o desbloqueou, e então escreveu rapidamente:

Seria mais fácil mostrar.

As sobrancelhas se estreitaram quando leu isso e, então, acenou com a cabeça.

– Tudo bem. Quando?

Amanhã à noite. Se você tiver autorização para sair.

– Encontro marcado. – Levantou a mão... e a colocou levemente sobre seu antebraço. – Quero que saiba...

A nova batida que a interrompeu fez com que os dois amaldiçoassem.

– Precisamos de um minuto! – exclamou antes de se concentrar nele outra vez. – Quero que saiba... que pode confiar em mim.

John sustentou seu olhar e se viu imediatamente transportado para outro plano de existência. Poderia ser o céu outra vez. Quem sabia ou se importava? Tudo o que sabia era que havia apenas ela e ele juntos, o resto do mundo se afastava numa névoa.

Seria possível se apaixonar por alguém duas vezes?

– Que diabos você está fazendo aí?

A voz de Rehv do outro lado da porta quebrou o momento, mas não o apagou.

Nada jamais poderia, John pensou, enquanto ela se afastava e ele se levantava.

– Entre, idiota – ela retrucou.

No instante em que o macho de moicano entrou no quarto, John sentiu a mudança no ar e soube, quando se entreolharam e ficaram em silêncio, que estavam se comunicando como os sympathos faziam.

Para dar-lhes privacidade, dirigiu-se para a porta, e quando estava saindo, Xhex disse:

– Você vai voltar?

No início, pensou que ela estava falando com Rehv, mas então o macho agarrou seu braço e o deteve.

– Meu amigo? Você vai voltar?

John olhou para a cama. Esqueceu seu bloco e a caneta no pequeno criado mudo, então apenas acenou com a cabeça.

– Logo? – Xhex disse. – Porque não me sinto cansada e quero aprender a linguagem de sinais.

John assentiu com a cabeça novamente e depois bateu uma mão fechada contra outra de Rehvenge antes de sair da sala de operações.

Enquanto caminhava pelas macas vazias, estava contente por V. ter terminado a limpeza e não estar por perto. Pois mesmo que sua vida estivesse em jogo, John não conseguiria esconder o sorriso em seu rosto.


Em silêncio, Blay caminhou lado a lado com Qhuinn através do túnel subterrâneo que ficava entre o centro de treinamento e o saguão de entrada da mansão.

Os sons de seus dois pares de botas de combate se misturavam, mas isso era tudo. Nem ele nem Qhuinn diziam nada. E não havia nenhum contato.

Absolutamente nenhum toque.

Um tempo atrás, antes de se declarar para o cara, antes das coisas terem ido por água abaixo entre eles, Blay simplesmente teria perguntado no que Qhuinn estava pensando, porque era evidente que estava fervilhando com alguma coisa. Agora, porém, o que poderia ser apenas um comentário qualquer, pareceria uma intromissão inadequada.

Quando passaram pela porta escondida sob a escadaria da mansão, Blay começou a temer o resto da noite.

Claro, não havia passado muito tempo, mas duas horas poderiam parecer uma vida sob as circunstâncias corretas. Ou erradas, como era o caso.

– Layla deve estar esperando por nós – disse Qhuinn enquanto ia para o pé da escada.

Oh... excelente. Justamente o tipo de diversão que não estava procurando.

Depois de ter visto a maneira como a Escolhida olhou para Qhuinn, simplesmente não sentia vontade de olhar aquele monte de paixonite tímida outra vez. Ainda mais naquela noite. Era curioso como a quase perda de Xhex o tinha deixado ferido.

– Você vem? – Qhuinn perguntou, sua testa franzida puxava o piercing na sobrancelha esquerda.

Blay baixou o olhar em direção ao aro que rodeava o lábio inferior do cara.

– Blay? Você está bem? Olha, acho que precisa se alimentar, amigo. Tem acontecido muita coisa ultimamente.

“Amigo”... Cristo, odiava essa palavra.

Mas dane-se, precisava superar a tensão.

– Sim. Claro.

Qhuinn olhou para ele de uma maneira estranha.

– Meu quarto ou o seu?

Blay riu de maneira áspera e começou a subir as escadas.

– Isso realmente importa?

– Não.

– Exatamente.

Quando chegaram ao segundo andar, passaram pelo escritório de Wrath, as portas estavam fechadas e desceram o corredor de estátuas.

Chegaram primeiro ao quarto de Qhuinn, mas Blay continuou andando, pensando que algo poderia finalmente ser em seu território, sob seus termos.

Abrindo a porta larga, deixou a coisa como estava e ignorou o som de um clique suave, quando Qhuinn os fechou lá dentro.

No banheiro, Blay foi até a pia, abriu a torneira e se inclinou, espirrando água em seu rosto. Estava se enxugando quando sentiu o perfume de canela e sabia que Layla tinha chegado.

Apoiando as mãos sobre o mármore, inclinou-se sobre os braços e se encurvou. Lá fora, em seu quarto, ouviu as vozes se misturando, a mais baixa e a mais alta, revezando alguns momentos.

Jogando a toalha no chão, virou-se e começou a observar a dança: Qhuinn estava na cama, de costas contra a cabeceira, as botas cruzadas, os dedos cruzados sobre o grande peitoral, enquanto sorria à Escolhida. Layla estava corada ao ficar perto dele, os olhos sobre o tapete, suas mãos menores e delicadas se torciam frente a ela.

Quando Blay chegou, os dois olharam para ele. A expressão de Layla não se alterou. A de Qhuinn, porém, se fechou com força.

– Quem vai primeiro? – Blay perguntou, aproximando-se deles.

– Você – Qhuinn murmurou. – Você vai.

Blay não estava disposto a saltar sobre a cama, então foi até a espreguiçadeira e sentou. Layla vagou em sua direção e caiu de joelhos diante dele.

– Senhor – disse ela, oferecendo-lhe o pulso.

A TV foi ligada e os canais foram sendo trocados quando Qhuinn começou a clicar com o controle em direção à tela. Parou no canal Spike, vendo a reprise de um campeonato de vale tudo onde lutavam Hughes e Penn.

– Senhor? – Layla disse.

– Perdoe-me. – Blay inclinou-se, pegando seu fino antebraço, segurando com firmeza, mas sem muita pressão. – Agradeço sua dádiva.

Perfurou tão delicadamente quanto pôde e estremeceu quando ela saltou ligeiramente. Teria recolhido as presas para pedir desculpas, mas isso exigiria outro furo, então voltou a sugar sua veia.

Enquanto se alimentava, seus olhos se moveram para a cama. Qhuinn estava absorto na luta, sua mão direita levantada e fechada num punho.

– Caramba – o cara murmurou. – É disso que estou falando!

Blay se concentrou no que estava fazendo e terminou rapidamente. Quando soltou, olhou para o rosto adorável de Layla.

– Você foi muito graciosa, como sempre.

Seu sorriso era radiante.

– Senhor... é uma alegria servi-lo, como sempre.

Estendeu a mão e ajudou-a a levantar, aprovando sua graça inata. E, Deus, a força que ela lhe deu não era nada menos que miraculosa. Até mesmo depois de terminar podia sentir aquilo o energizando, sua cabeça parecia estar em névoas, uma vez que seu corpo estava focando aquilo que tinha sido dado a ele.

O que Layla tinha lhe dado.

Qhuinn ainda estava muito ligado na luta, suas presas arreganhadas, não para Layla, mas para quem estava perdendo. Ou ganhando. Ou seja lá como fosse.

A expressão de Layla se desvaneceu em uma resignação que Blay conhecia muuuito bem.

Blay franziu a testa.

– Qhuinn. Vai se alimentar?

Os olhos díspares de Qhuinn se mantiveram na tela até o árbitro terminar a disputa, então suas íris azul e verde recaíram sobre Layla. Em um impulso sensual, o cara se moveu na cama, abrindo espaço para ela.

– Venha cá, Escolhida.

As três palavras, acompanhadas por aquele olhar de pálpebras baixas, foram um golpe baixo para Blay... O problema era que Qhuinn não estava olhando Layla de nenhuma maneira especial. Ele era assim.

Sexo em cada respiração, cada batida, cada movimento.

Layla parecia sentir o mesmo, pois suas mãos esvoaçavam serpenteando ao redor de sua vestimenta, primeiro indo para o laço e depois para as lapelas.

Por alguma razão, Blay percebeu pela primeira vez que estava completamente nua sob as dobras brancas.

Qhuinn estendeu a mão e a palma de Layla tremia ao colocá-la contra aquela que lhe era oferecida.

– Está com frio? – perguntou ele, sentando-se. Era possível ver o contorno de seu abdômen definido debaixo da camiseta justa.

Quando negou com a cabeça, Blay entrou no banheiro, fechou a porta e ligou o chuveiro. Após tirar a roupa, ficou sob o jato e tentou esquecer tudo o que estava acontecendo em sua cama.

O que foi bem sucedido apenas quando tirou Layla da imagem.

Seu cérebro ficou preso numa fantasia onde ele e Qhuinn estavam estendidos juntos, bocas nos pescoços um do outro, presas rompendo a superfície da pele aveludada, corpos...

Era muito comum aos machos ficarem eretos após a alimentação. Especialmente quando pensavam em todo tipo de coisas para fazer estando nu. E o sabonete não ajudava.

E nem as imagens do que viria após os dois penetrarem as gargantas.

Blay plantou a palma de uma de suas mãos no mármore liso e a outra sobre seu pênis rígido.

O que fez foi rápido e tão gratificante quanto um pedaço de pizza fria: bom, mas não chegava nem perto de uma refeição de verdade.

O segundo passeio ao parque de diversões não melhorou a situação e recusou seu corpo a chance de um terceiro. Pois, fala sério. Que bizarro. Qhuinn e Layla estavam cuidando de suas vidas do outro lado da porta, enquanto ele ficava todo ofegante debaixo da água quente? Que droga.

Saindo, enxugou-se, colocou o roupão e percebeu que não tinha nada para vestir. Quando virou a maçaneta da porta, rezou para que as coisas estivessem como ele as havia deixado.

E estavam, muito obrigado, Virgem Escriba: Qhuinn tinha a boca no outro pulso de Layla e tomava o que precisava daquela Escolhida ajoelhada ao seu lado.

Nada abertamente sexual.

O alívio que se fixou no peito de Blay o fez perceber o quanto estava nervoso... e não apenas por isso, mas por tudo relacionado a Qhuinn.

Aquilo não era nada saudável. Para ninguém.

Mas afinal de contas, Qhuinn era culpado por ele se sentir daquela maneira? Ninguém pode escolher por quem se sente atraído... e por quem não se sente.

No armário, Blay puxou uma camisa de botão e uma calça de combate preta. Assim que virou a cabeça para o banheiro, Qhuinn ergueu a boca da veia de Layla.

O macho soltou um gemido saciado e estendeu sua língua em direção às feridas que tinha feito com suas presas. Quando um brilho de prata reluziu, as sobrancelhas de Blay se ergueram. O piercing da língua era novo e ele se perguntou quem teria feito.

Provavelmente Vishous. Os dois andavam passando muito tempo juntos e foi assim que conseguiram a tinta para a tatuagem de John... Qhuinn tinha pegado o recipiente.

A língua de Qhuinn passou na pele da Escolhida, aquele metal piscava a cada passagem.

– Obrigado, Layla. Você é boa para nós.

Deu um sorriso rápido, em seguida colocou as pernas para fora da cama, deixando evidente que já ia sair. Layla, por outro lado, não se mexeu. Ao invés de seguir o exemplo e ir embora, a cabeça dela desceu e os olhos se concentraram em seu colo...

Não, nos pulsos, que estavam aparecendo sob as mangas de sua túnica. Quando a viu cambalear, Blay franziu a testa.

– Layla? – disse ele, aproximando-se. – Você está bem?

Qhuinn também se aproximou da cama.

– Layla? O que está acontecendo?

Os dois ficaram de joelhos diante dela.

Blay falou claramente.

– Nós tomamos muito?

Qhuinn se adiantou e colocou seu próprio pulso frente a ela, oferecendo.

– Use-me.

Droga, ela tinha alimentado John na noite anterior. Será que aquilo aconteceu cedo demais?

Os olhos verdes pálidos da Escolhida se ergueram para enfrentar Qhuinn e não houve qualquer confusão em seu olhar. Apenas um desejo triste, antigo.

Qhuinn recuou.

– O que eu fiz?

– Nada – disse ela com uma voz muito profunda. – Se me der licença, vou me retirar ao santuário mais uma vez.

Layla começou a levantar-se, mas Qhuinn capturou sua mão e puxou-a para baixo.

– Layla, o que está fazendo?

Deus, aquela voz dele. Tão suave, tão gentil. E assim também era a mão que estendeu, agarrando seu queixo e levantando o olhar dela até o seu.

– Não posso falar sobre isso.

– Sim, você pode. – Qhuinn acenou com a cabeça na direção do Blay. – Ele e eu manteremos segredo.

A Escolhida respirou fundo e sua expiração foi de derrota, como se ela estivesse sem combustível, sem opções, sem força.

– De verdade? Vão permanecer em silêncio?

– Sim. Blay?

– Sim, com certeza. – Colocou a mão em seu coração. – Eu juro. Vamos fazer de tudo para ajudá-la. Qualquer coisa.

Ela focou em Qhuinn, seu olhar preso ao dele.

– Sou desagradável aos seus olhos, senhor? – Quando ele franziu a testa, ela baixou o olhar. – Desvio-me do ideal de alguma maneira que me torna...

– Deus, não. Do que você está falando? Você é linda.

– Então... por que nunca sou solicitada?

– Não entendo... Nós a solicitamos. Regularmente. Eu mesmo, John e Blay. Rhage e V. Você é a única que todos pedem, porque você...?

– Nenhum de vocês me usa para qualquer coisa além de sangue.

Blay se levantou de sua posição ajoelhada, recuou até suas pernas bateram na espreguiçadeira e sentou-se. Quando seu traseiro saltou sobre a almofada, a expressão no rosto de Qhuinn quase o fez rir. O cara nunca era pego de surpresa. Em parte porque já tinha sofrido de tudo em sua vida relativamente curta, tanto por escolha quanto por maldição. E parte era a sua personalidade. Dava-se bem em todas as situações. Ponto final.

Exceto nesta, óbvio. Qhuinn parecia como se tivesse sido atingido na nuca por um taco de bilhar.

– Eu... – Qhuinn pigarreou. – Eu... Eu...

Ah, sim, isso também era inédito: a gagueira.

Layla encheu o silêncio.

– Sirvo os machos e Irmãos desta casa com orgulho. Dou, sem receber nada em troca, porque faz parte da minha formação e tenho prazer em fazê-lo. Mas digo isso porque você pediu e... acho que devo. Toda vez que retorno para o santuário ou à casa do Primaz, sinto-me cada vez mais vazia. A ponto de achar que poderia me afastar. Em verdade... – balançou a cabeça – não posso continuar fazendo isso, mesmo sabendo que faz parte das minhas obrigações. Apenas... meu coração não pode continuar.

Qhuinn deixou cair as mãos e esfregou as coxas.

– Você quer... você gostaria de continuar se pudesse?

– Claro. – Sua voz era forte e segura. – Estou orgulhosa de estar a serviço.

Agora Qhuinn estava arrastando a mão por seu cabelo grosso.

– O que seria necessário... para satisfazê-la?

Era como assistir a um desastre de trem. Blay deveria ter saído, mas não conseguia se mover, tinha apenas que testemunhar a colisão.

E, naturalmente, o rubor brilhante de Layla a fez ainda mais bonita. Em seguida, seus lábios carnudos se entreabriram encantadores. Fecharam. Abriram... e fecharam outra vez.

– Está tudo bem – sussurrou Qhuinn. – Você não tem que dizer isso em voz alta. Eu sei o que você quer.

Blay sentiu um suor frio sair sobre o peito e as mãos se contorceram por baixo da roupa que tinha escolhido.

– Quem... – Qhuinn perguntou com voz rouca. – Quem você quer?

Houve outra longa pausa e então ela disse uma única palavra:

– Você.

Blay levantou-se.

– Vou deixar vocês a sós.

Estava totalmente cego quando saiu, e agarrou sua jaqueta de couro em seu caminho apenas por instinto.

Quando fechou a porta, ouviu Qhuinn dizer:

– Vamos fazer isso bem devagar. Se vamos fazer isso, iremos bem devagar.

No corredor, Blay abriu rapidamente uma boa distância entre ele e seu quarto e não se deu conta, até que chegou à porta dupla que dava para a ala dos empregados, de que estava andando pela casa de roupão. Deslizando pelo conjunto de escadas que levavam ao cinema no terceiro andar, mudou sua roupa na frente da máquina de pipoca desligada.

A raiva latente no fundo de suas entranhas era um tipo de câncer que o devorava. Mas era tão infundado. Tão inútil.

Blay parou em frente às prateleiras de DVDs, os títulos nas capas nada mais eram que um borrão para seus olhos.

Contudo, o que ele acabou pegando não foi um filme.

Tirou um pedaço de papel do bolso do casaco.


CAPÍTULO 29

Assim que a porta da sala de recuperação foi fechada, Xhex sentiu que devia dizer algo. Em voz alta. Para Rehvenge.

– Então. Ah... – Passou a mão pelo cabelo. – Tudo bem...?

Ele interrompeu suas desajeitadas divagações aproximando-se a passos largos, sua bengala vermelha era cravada nos ladrilhos, seus mocassins atingiam o chão do calcanhar à ponta dos pés. Sua expressão era feroz, seus olhos violeta ardiam.

Era suficiente para deixá-la perplexa.

Puxando para cima o lençol, Xhex murmurou.

– Que diabos há de errado com vo...? – Rehv mergulhou sobre ela com seus longos braços e a puxou para ele, aconchegando-a com todo cuidado contra seu peito. Apoiando a cabeça na dela, sua voz foi profunda e grave.

– Pensei que nunca mais a veria novamente.

Quando ele estremeceu, ela levantou as mãos até seu tronco. Depois de conter-se um momento... abraçou-o tão forte quanto ele a abraçava.

– Seu perfume é o mesmo – disse com voz rouca, colocando o nariz bem no pescoço da fina camisa de seda. – Oh... Deus, seu perfume é o mesmo.

A cara colônia à base de especiarias a levou de volta aos dias de ZeroSum quando os quatro trabalhavam juntos: ele no comando, iAm com os livros, Trez nas operações e ela na segurança.

O perfume foi o gancho que a arrastou e a fez dar um passo mais longe do trauma do sequestro, ligando-a ao seu passado, transpondo o horrível período das últimas três semanas.

Contudo, não queria essa amarra. Isso só faria com que sua partida ficasse mais difícil. Melhor concentrar-se nos acontecimentos e nos objetivos imediatos.

E depois simplesmente desaparecer, flutuando à deriva.

Rehv se afastou.

– Não quero cansá-la, então não vou ficar. Mas precisava... pois é.

– Eu sei.

Juntos, mantiveram-se um nos braços do outro, e como sempre, ela sentiu a comunicação entre eles, a parte de sangue mestiço que compartilhavam estabeleceu uma conexão como faziam os sympathos.

– Precisa de alguma coisa? – perguntou. – Comida?

– A doutora Jane disse nada sólido durante as próximas duas horas.

– Certo. Ouça, vamos falar sobre o futuro...

– No futuro. – Enquanto falava, projetou em sua mente uma imagem dos dois discutindo intensamente. Que foi produzida exclusivamente para despistá-lo, caso estivesse lendo.

Não ficou claro se ele mordeu a isca.

– Aliás, eu moro aqui agora – ele disse.

– Onde estou exatamente?

– No centro de treinamento da Irmandade. – Franziu a testa. – Pensei que você já havia estado aqui antes.

– Não nessa parte. Mas sim, imaginei que era para onde me trariam. Aliás, Ehlena foi realmente boa comigo. Lá dentro. – Assinalou com a cabeça para a sala de operações. – E antes que pergunte, vou ficar bem. Foi o que a doutora Jane disse.

– Ótimo! – Apertou com força a mão dela. – Vou chamar John.

– Obrigada.

Na porta, Rehv parou, em seguida, estreitando os olhos ametistas, lançou-lhe um olhar por sobre os ombros.

– Escute. – O “idiota” ficou implícito. – Você é importante. Não só para mim, mas para muita gente. Então, faça o que tem que fazer e coloque sua cabeça em ordem. Mas não pense que não sei de nada sobre o que tem planejado fazer depois.

Ela devolveu o olhar.

– Maldito devorador de pecados.

–Já sabe. – Rehv ergueu uma sobrancelha. – Eu lhe conheço muito bem. Não seja uma cabeça-dura, Xhex. Você tem todos nós ao seu lado e pode superar isso.

Enquanto ele saía, Xhex achou a fé que tinha nela admirável. Mas não ia cair nessa.

Na verdade, apenas o pensamento de qualquer futuro depois do funeral de Lash enviava uma onda de esgotamento pela sua corrente sanguínea. Com um gemido, fechou os olhos e rezou pelo amor de tudo o que era mais sagrado para que Rehvenge ficasse fora de seus assuntos...

Xhex despertou com um grito sufocado. Não fazia ideia de quanto tempo esteve dormindo. Ou onde John estava...

Bem, a segunda pergunta estava respondida: John estava no chão na frente da sua cama, deitado de lado, com a cabeça descansando no interior do braço que tinha dobrado para usar de travesseiro. Parecia cansado, mesmo enquanto dormia: as sobrancelhas tensas, a boca contraída em uma expressão fatigada.

O consolo que lhe veio ao olhar para ele foi chocante, mas não lutou contra isso. Não tinha energia suficiente... além disso, não havia testemunhas.

– John?

No instante em que pronunciou seu nome, levantou-se do chão de linóleo, assumindo uma postura de combate, com seu corpo de guerreiro entre ela e a porta do corredor. Ficou bastante claro que estava preparado para deixar em pedaços qualquer um que a ameaçasse.

O que era... realmente gentil.

E melhor que um buquê de flores na cabeceira da cama, o qual a faria espirrar.

– John... venha aqui.

Ele esperou um instante, erguendo a cabeça como se procurando por algum som. Logo deixou cair os punhos e andou. No instante em que seus olhos se voltaram para ela, o olhar brutal e as presas expostas se desvaneceram em meio a uma compaixão arrasadora.

Foi direto ao seu bloco, escreveu algo e lhe mostrou.

– Não, obrigada. Ainda não estou com fome. – Sempre foi assim para ela. Depois de se alimentar, não comia durante horas, algumas vezes durante um dia intero. – O que eu adoraria...

Seus olhos se moveram até o banheiro no canto.

Banho, ele escreveu e mostrou.

– Sim. Meu Deus... adoraria um pouco de água quente.

Estava todo disposto a ser um bom cuidador. Abriu a ducha, colocou as toalhas, o sabonete e uma escova de dentes sobre o balcão.

Sentindo-se um pouco preguiçosa, tentou se levantar... e ficou claro que alguém tinha atado uma casa ao redor de seu peito. Sentia-se como se estivesse levando uma casa colonial de dois andares sobre os ombros. Foi com um grande esforço que conseguiu colocar as pernas para fora do colchão... e com a convicção de que se não conseguisse se colocar na vertical sozinha, ele iria chamar a doutora e ela perderia o banho.

John chegou assim que as solas dos pés descalços tocaram o chão e foi muito atencioso equilibrando-a com o braço enquanto se colocava em pé. Quando os lençóis caíram de seu corpo, ambos tiveram um momento de... caramba, nua. Mas não era hora para recato.

– O que devo fazer com o curativo? – ela murmurou, baixando o olhar para a bandagem branca que se estendia ao longo de sua pélvis.

Quando John olhou para seu bloco de papel, como se estivesse tentando decidir se podia alcançar a coisa e continuar segurando-a, ela disse:

– Não, não quero a doutora Jane. Simplesmente vou tirar.

Escolheu uma ponta, e enquanto se firmava em pé, imaginou que provavelmente teria sido melhor fazer isso enquanto estava deitada... e sob supervisão médica. Mas dane-se.

– Oh... – Suspirou ao revelar lentamente a linha de pontos negros. – Maldição... a fêmea de V. é boa com uma linha e uma agulha, hum?

John pegou o monte de gaze ensaguentado e simplesmente o jogou na lata de lixo do canto. Então esperou como se soubesse bem que ela estava pensando em voltar para a cama.

Por alguma razão, a ideia de ter sido aberta a deixou tonta.

– Vamos fazer isso – disse rispidamente.

Ele deixou que ela estabelecesse o ritmo, o qual acabou sendo apenas um pouco mais rápido que dar marcha ré.

– Pode apagar as luzes lá dentro? – ela disse enquanto arrastava os pés, seus passos de bebê não avançavam mais que alguns centímetros. – Não quero ver a minha aparência naquele espelho sobre a pia.

No instante em que se aproximou o suficiente do interruptor, John estendeu o braço e clicou a coisa na parede.

– Obrigada.

A sensação do ar úmido e o som da água caindo aliviaram sua mente e sua coluna. O problema era que a tensão havia ajudado a mantê-la em pé e agora estava cedendo.

– John... – Era a sua voz? Tão fraca e fina. – John, entra comigo? Por favor.

Por falar em longos silêncios... mas, então, sob a luz que entrava do quarto, ele assentiu.

– Enquanto tira a roupa lá fora – ela disse – pode fechar a porta porque preciso usar o banheiro.

Com isso, segurou na barra que estava fixa à parede e se movimentou sozinha. Houve outra pausa e logo John deu um passo para trás e a ligeira fonte de luz se desvaneceu.

Depois que Xhex fez o que precisava, arrastou-se e entreabriu a porta.

O que viu foi um bloco de notas bem em frente ao rosto:

Teria ficado de cueca, mas não uso nada por baixo das calças de couro.

– Está bem. Não passo nem perto do tipo tímida.

Só que aquilo não foi demonstrado ser totalmente verdade quando os dois entraram no chuveiro juntos. Achou que depois de tudo o que passou, um pouco de contato com pele em um quarto escuro, com um macho em quem confiava e com quem já havia estado, não seria um grande desafio. Mas foi.

Especialmente quando o corpo dele roçou contra suas costas ao fechar a porta de vidro.

Concentre-se na água, disse a si mesma, imaginando se tinha enlouquecido.

Ao levantar a cabeça, começou a inclinar-se para o lado e a enorme mão masculina escorregou sobre seu braço para mantê-la em pé.

– Obrigada – disse ela asperamente.

Mesmo a situação sendo tão incômoda, a água quente estava maravilhosa ao encharcar seu cabelo até o couro cabeludo e a ideia de poder limpar-se foi repentinamente mais importante do que tudo que John Matthew não estava usando.

– Esqueci o sabonete, droga.

John fez outro movimento de se inclinar e investir sobre aquilo que precisava, e então seus quadris bateram nos dela. E embora ela tenha ficado tensa, preparando-se para algo sexual... ele não estava excitado.

O que foi um alívio. Depois das coisas que Lash lhe havia feito...

Quando colocou o sabonete em sua mão, Xhex bloqueou todos os pensamentos do que havia passado naquele quarto e simplesmente umedeceu a barra de sabão na ducha. Lavar-se. Secar-se. Voltar para a cama. Isso era tudo o que tinha que pensar.

O cheiro forte e diferente do sabonete flutuou no ambiente e aquilo a emocionou.

Era exatamente o que teria escolhido sozinha.


Incrível, pensou John enquanto permanecia em pé atrás de Xhex.

Se baixar o olhar para seu pênis e disser que caso se comporte mal irá cortá-lo em rodelas e enterrar no quintal dos fundos, realmente ele obedece.

Tinha que se lembrar disso.

O chuveiro era de um tamanho generoso para um macho, mas era bastante estreito para os dois e tinha que manter as costas pressionadas contra o azulejo frio para ter cem por cento de certeza de que o Senhor Espertinho e seus companheiros gêmeos de trabalho, Debi e Loide, ficariam longe dela.

Afinal, o discurso tinha feito maravilhas, mas não iria arriscar.

Além disso, estava chocado por Xhex estar tão fraca que tinha que segurá-la para que pudesse ficar em pé... mesmo depois de ter se alimentado. Mas não é fácil se livrar assim de quatro semanas de inferno, mesmo depois de um cochilo de duas horas. Que era o tempo que tinha dormido, de acordo com seu relógio.

Ao pegar o xampu, ela arqueou as costas e seus cabelos molhados roçaram no peito dele antes que Xhex se virasse para enxaguar a espuma. Ele mudou a posição, segurando primeiro seu antebraço direito, em seguida o esquerdo, então de novo o direito.

Os problemas surgiram quando ela se inclinou para lavar as pernas.

– Droga... – Ela mudou de posição rápido demais, o aperto dele escorregou do seu ensaboado bíceps e ela caiu diretamente contra o corpo dele.

John teve uma breve e vívida impressão de seu corpo ensaboado, úmido e cálido, e logo se lançou contra a parede e se moveu buscando uma forma de mantê-la em pé que não implicasse em contato total.

– Queria que tivesse um banco aqui – ela disse. – Acho que não consigo manter o maldito equilíbrio.

Houve uma pausa... em seguida ele pegou o sabonete. Deslocando-se lentamente, trocou de lugar com ela, colocando-a no canto em que havia apoiado as costas e fazendo com que ela apoiasse as mãos sobre seus ombros.

Enquanto se ajoelhava, girou o sabonete nas mãos, fazendo um monte de espuma; a água batia na parte de trás da cabeça e caía por sua coluna vertebral. Sentia o azulejo duro embaixo dos joelhos e tinha um dos dedos do pé pressionando o ralo, era como se a coisa tivesse dentes e estivesse lhe dando uma mordida, mas não se importava.

Estava preste a tocá-la. E isso era tudo o que importava.

Envolvendo o tornozelo dela com a mão, deu um puxão suave e, depois de um momento, ela apoiou o peso no outro lado e deu para ele o seu pé. Colocou a barra de sabonete no chão ao lado da porta e alisou a sola do pé subindo até o calcanhar, massageando, limpando...

Adorando sem esperar nada em troca.

Ia devagar, especialmente quando subia pela perna, fazendo uma pausa de vez em quando para se assegurar de que não estava pressionando nenhum de seus machucados. O músculo da panturrilha era duro como pedra e os ossos que sobressaíam no joelho pareciam tão fortes como os de um macho, mas era delicada à sua maneira. Ao menos comparada com ele.

Quando subiu ainda mais, até sua coxa, deslizou para a parte externa. A última coisa que queria era preocupá-la por dar em cima dela, e quando chegou ao quadril, parou e pegou o sabonete de novo.

Após enxaguar a sola do pé, puxou ligeiramente o outro tornozelo e sentiu uma pontada de alívio quando ela gentilmente lhe deu oportunidade de repetir o que tinha feito.

Massagens lentas, mãos lentas, progresso lento... e somente na parte externa e em direção à parte superior do corpo.

Quando terminou, levantou-se, os joelhos rangendo ao se erguer até alcançar toda a sua estatura e a colocou embaixo do jato d’água. Segurando-a pelo braço outra vez, deu-lhe o sabonete para que pudesse lavar qualquer outra coisa que fosse necessária.

– John? – ela disse.

Como estava escuro, assoviou um “o quê?”.

– Você é um macho de muito valor, sabe disso. Você realmente é.

Ergueu as mãos e envolveu o rosto dele.

Aconteceu tão rápido, ele não podia acreditar. Mais tarde, iria ver e rever aquilo várias e várias vezes, prolongando o momento infinitamente, revivendo e nutrindo aquilo de maneira estranha na memória, de novo e de novo.

Contudo, quando acabou, havia durado apenas um instante. Um impulso por parte dela. Um presente puro dado em gratidão a outro presente puro recebido.

Xhex ergueu-se na ponta dos pés e pressionou sua boca contra a dele.

Oh, tão macio. Seus lábios eram incrivelmente macios. E gentis. E calorosos. O contato foi muito rápido, porém poderia durar horas e horas e dizer que não tinha sido o suficiente.

– Venha deitar-se comigo – ela disse, abrindo a porta do chuveiro e saindo. – Eu não gosto de você no chão. Você merece coisa muito melhor do que isso.

De maneira indistinta, fechou a água e a seguiu, aceitando a toalha que ela entregou. Secaram-se juntos, ela envolveu todo o tronco com a toalha, ele cobriu os quadris.

Fora do banheiro, ele subiu na cama de hospital primeiro e sentiu que era a coisa mais natural do mundo abrir os braços. Se tivesse pensado, não haveria feito esse gesto, mas não estava pensando.

Mas tudo bem.

Porque ela foi até ele como tinha feito a água do chuveiro: o encharcou com uma onda morna que se infiltrava pela pele até a medula.

Mas, claro, Xhex penetrou ainda mais fundo dentro dele. Sempre fez isso.

Era como se tivesse perdido a sua alma na primeira vez que colocou os olhos nela.

Quando apagou a luz e ela se acomodou ainda mais perto dele, sentiu como se ela estivesse cavando diretamente em seu gelado coração e acampando ali, seu fogo descongelava a alma até que suspirou fundo e em paz pela primeira vez em meses.

John fechou os olhos, mas não esperava dormir.

Porém, ele dormiu. E muito, muito bem.


CAPÍTULO 30

Na ala de funcionários da mansão Sampsone, Darius concluiu sua entrevista com a criada da filha.

– Obrigado – disse ele enquanto se levantava e acenava para a fêmea. – Agradeço sua franqueza.

A doggen curvou-se profundamente.

– Por favor, encontre-a. E a traga de volta para casa, senhor.

– Faremos nosso melhor. – Ele lançou um olhar para Tohrment. – Seria muito gentil se trouxesse o mordomo.

Tohrment abriu a porta para a pequena fêmea e os dois saíram juntos.

Na ausência deles, Darius andou pelo chão sem ornamentos, suas botas de couro faziam um círculo em torno da escrivaninha que havia no centro da sala. A criada não sabia nada de relevante. Havia sido totalmente aberta e despretensiosa – mas não acrescentou absolutamente nada ao enigma.

Tohrment voltou com o mordomo e retornou a sua posição à direita da porta, permanecendo em silêncio. O que era bom. De uma maneira geral, durante um interrogatório no âmbito civil, não era necessário mais de um inquisidor. Entretanto, o garoto tinha outra utilidade. Seus olhos astutos não perdiam nada, assim talvez notasse algo que Darius deixasse passar durante a conversa.

– Obrigado por falar conosco – Darius disse ao mordomo.

O doggen curvou-se.

– Será um prazer servi-lo, senhor.

– Certamente – Darius murmurou enquanto sentava no banquinho duro que tinha usado enquanto falava com a criada. Os doggen, por natureza, tendem a valorizar o protocolo, e portanto preferiam que aqueles que detinham uma posição mais elevada ficassem sentados enquanto eles permaneciam em pé.

– Qual é o seu nome, mordomo?

Outra reverência profunda.

– Eu me chamo Fritzgelder Perlmutter.

– E há quanto tempo está com esta família?

– Eu nasci entre eles há 77 anos. – O mordomo uniu suas mãos atrás das costas e endireitou os ombros. – Tenho servido à família com orgulho desde meu quinto aniversário de nascimento.

– Longa história. Então, você conhece bem a filha.

– Sim. É uma fêmea de valor. Uma alegria para seus pais e sua linhagem.

Darius observou cuidadosamente o rosto do mordomo.

– E você não sabe de nada... que pudesse levá-lo a esperar tal desaparecimento?

A sobrancelha esquerda do serviçal se contraiu uma vez.

E houve um longo silêncio.

Darius baixou a voz a um sussurro.

– Se isso puder servir de alívio à sua consciência, tem minha palavra como um Irmão que nem eu nem meu colega revelaremos o que você disser. Nem mesmo ao próprio Rei.

Fritzgelder abriu a boca e respirou fundo.

Darius permaneceu em silêncio: pressionar o pobre macho só retardaria o processo de revelação. Na verdade, simplesmente falaria alguma coisa ou não e apressá-lo só iria atrasar sua decisão.

O mordomo alcançou o bolso interno de seu uniforme e retirou um lenço branco que estava dobrado em um quadrado exato. Apertou o lábio superior, atrapalhando-se para guardar a coisa.

– Nada sairá destas paredes – Darius sussurrou. – Nada.

O criado limpou a garganta duas vezes antes das suas cordas vocais produzirem algum som.

– De fato... ela estava acima de qualquer suspeita. Disso estou certo. Não havia nenhum... relacionamento com um macho que seus pais desconhecessem.

– Mas... – Darius murmurou.

Naquele momento, a porta foi aberta e o mordomo que os havia deixado entrar na mansão surgiu. Parecia totalmente surpreso com a reunião, a qual tinha sua total desaprovação. Não havia dúvida de que um de seus subordinados o tinha avisado.

– Você trabalha com uma boa equipe – Darius disse ao macho. – Meu colega e eu estamos muito impressionados.

A reverência não aliviou a expressão de desconfiança do macho.

– Estou lisonjeado, senhor.

– Estávamos saindo. Seu mestre está?

O mordomo se endireitou e seu alívio era evidente.

– Recolheu-se aos seus aposentos e por isso vim vê-los. Mandou-lhes dizer adeus, pois precisa cuidar de sua amada shellan.

Darius colocou-se em pé.

– Este seu criado estava prestes a nos mostrar a saída. Como está chovendo, tenho certeza de que prefere que um de seus funcionários nos guie sobre a grama molhada. Voltaremos aqui depois do pôr do sol. Obrigado por atender aos nossos pedidos.

Não havia nenhuma outra resposta a não ser a que o macho deu.

– Mas é claro.

Fritzgelder fez uma reverência ao seu superior e estendeu então o braço para uma porta no canto.

– Por aqui.

Lá fora, o ar carregava muito pouco das promessas de uma primavera de calor. De fato, estava um frio invernal quando atravessaram a neblina.

Fritzgelder sabia exatamente onde os estava levando, o mordomo caminhava com o objetivo de chegar aos fundos da mansão, para a parte do jardim que podia ser vista do quarto da fêmea.

Boa manobra, pensou Darius.

O mordomo parou bem debaixo da janela da filha de Sampsone, mas não encarava as pesadas paredes da casa. Olhava para fora... para além dos canteiros de flores e do labirinto... olhava para a propriedade vizinha. Então, deliberadamente virou-se para Darius e Tohrment.

– Levantem seus olhos até as árvores – disse ele enquanto apontava para a casa como se descrevesse algo importante, pois, sem dúvida, estavam sendo observados das janelas de chumbo da mansão. – Reparem bem a clareira.

De fato, havia uma brecha dentre os muitos galhos das árvores... foi por isso que conseguiram ver a mansão ao longe, quando estavam no segundo andar.

– Aquela visão não foi produzida por esta casa, senhor – o doggen disse suavemente. – E eu notei isso aproximadamente uma semana antes... de descobrir que ela tinha desaparecido. Estava limpando os quartos. A família estava nos aposentos subterrâneos já que era dia. Ouvi os sons de madeira sendo cortada e olhei pelas janelas, foi então que vi os galhos sendo arrancados.

Darius estreitou seu olhar.

– Foi um corte muito preciso, não?

– Muito preciso. E pensei que não era nada demais, pois só humanos moram ali. Mas agora...

– Agora gostaria de saber se havia algum propósito que não fosse o de jardinagem. Diga-me, a quem você mencionou isso?

– Para o mordomo chefe. Mas me implorou para que eu permanecesse calado. Ele é um bom macho, serve bem à família. Deseja muito que ela seja encontrada...

– Mas ele pretende evitar qualquer suposição de que ela tenha caído em mãos humanas.

Afinal, os humanos estavam apenas a uma cauda de distância de serem considerados como ratos pela glymera.

– Obrigado por isso – Darius disse. – Cumpriu bem o seu dever.

– Apenas encontre-a, por favor. Não me importo com a origem do sequestro... só a traga de volta para casa.

Darius focou no que conseguia ver da mansão vizinha.

– Faremos isso. De uma maneira... ou de outra.

Rezou para que os humanos daquela propriedade não tivessem se atrevido a levar um dos seus, pelo bem deles. A outra raça deveria ser evitada, por ordens do rei, mas e se tivessem a ousadia de agredir um vampiro? Uma fêmea nobre?

Darius mataria cada um deles em suas camas e deixaria os corpos apodrecerem em meio ao mau cheiro.


CAPÍTULO 31

Gregg Winn acordou com Holly em seus braços, seus exuberantes seios falsos eram como um par de travesseiros gêmeos pressionando-o.

Uma olhada rápida no relógio e viu que eram sete horas da manhã. Já poderiam fazer as malas e se dirigir para Atlanta.

– Holly. – Ele a tocou levemente com a mão. – Acorde.

Deixou soltar algo parecido com um ronronar e se espreguiçou, seu corpo se arqueando contra o dele, transformando sua ereção matinal numa necessidade primária sobre a qual estava disposto a fazer algo a respeito. No entanto, as memórias de como ela havia acabado em sua cama refrearam seu impulso.

Provando que em alguns aspectos era um cavalheiro.

– Holly. Vamos. Acorda logo. – Empurrou o cabelo dela para trás e o acariciou sobre o ombro. – Se sairmos agora, estaremos em Atlanta no final da tarde.

Considerando que aquela coisa de perseguir Rathboone tinha lhes custado um dia de viagem, isso viria bem a calhar.

– Tudo bem. Já acordei. Já acordei.

Na verdade, ele foi o único que levantou. Holly apenas se aninhou no espaço aquecido que Gregg tinha deixado e voltou a dormir em seguida.

Tomou um banho e depois encheu as malas com suas coisas fazendo tanto ruído quanto possível, mas ela estava morta para o mundo. Parecia mais um estado de coma do que de sonolência.

Estava prestes a sair atrás de Stan, que era ainda pior nessa coisa de acordar, quando uma batida soou na porta.

Será possível que aquele maluco já havia acordado?

Gregg começou a falar com seu cinegrafista enquanto abria a porta:

– Escuta, vamos arrumar a van...

Era o mordomo durão. Parecendo que alguém havia derramado vinho tinto por todo seu sofá.

Gregg ergueu a palma da mão.

– Estamos saindo, ok? Já estamos indo embora. Apenas nos dê...

– O proprietário decidiu permitir que vocês filmem aqui. Para seu episódio especial.

Gregg piscou como um idiota.

– Como?

O tom do mordomo ficou ainda mais enojado. Como se fosse possível.

– O proprietário falou comigo esta manhã. Disse que vocês têm a permissão de transmitir o programa daqui.

Um dia atrasado, Gregg pensou, soltando um palavrão em pensamento.

– Sinto muito. Minha equipe e eu estamos...

– Empolgados – Holly terminou por ele.

Enquanto olhava por cima do ombro, a apresentadora ajeitava o roupão conforme saía da cama.

– Isso é uma ótima notícia! – disse de maneira incisiva enquanto sorria para o mordomo, o qual parecia um ioiô entre reprovação e encantamento perante a visão de toda aquela beleza e naturalidade de Holly.

– Muito bem, então – o mordomo disse, depois de clarear a garganta. – Avisem-me se precisarem de algo.

Com uma reverência, desapareceu no corredor.

Gregg fechou a porta.

– Pensei que você queria sair daqui.

– Bem... eu estava segura com você, certo? – Esquivou-se até ele, acariciando seu peito. – Então vou ficar sempre perto de você.

A satisfação na voz dela o deixou desconfiado.

– Você fingiu pra mim? Sobre toda aquela coisa do sexo... com quem quer que seja?

Ela negou com a cabeça sem hesitar:

– Não... mas acredito mesmo que foi tudo um sonho.

– E quanto ao fato de ter dito que realmente fez sexo?

Franziu as sobrancelhas depiladas como se estivesse tentando ver através de um vidro fosco.

– É tudo muito vago para ter sido real. Na noite passada eu estava totalmente confusa, mas à luz do dia... tudo isso parece bobagem.

– Você tinha muita certeza quando entrou aqui.

Ela balançou a cabeça lentamente.

– Nada além de um sonho muito vívido e incrível... mas não aconteceu de verdade.

Examinou o rosto dela e não encontrou nada além de certeza. De repente, ela colocou as mãos sobre as têmporas.

– Tem aspirina?

– Dor de cabeça?

– Sim. Acabou de começar.

Aproximou-se da mala e tirou uma pequena bolsa.

– Escute, estou disposto a tentar, mas se decidirmos ficar, não tem volta. Precisamos preencher o nosso horário, então não podemos sair correndo para Atlanta em um ou dois dias.

Na verdade, já estavam bem atrasados.

– Eu entendo – ela disse enquanto sentava na cama. – Entendo muito bem.

Gregg entregou a aspirina, então foi até o banheiro e pegou um copo com água.

– Ouça, por que você não volta para a cama? Ainda é cedo e com certeza Stan ainda está desmaiado.

– O que você vai fazer? – Ela bocejou enquanto lhe devolvia o copo vazio.

Ele acenou para o notebook.

– Vou levar isso até a sala de estar lá embaixo e analisar a sequência que fizemos ontem à noite. Acho que devo estar com todas as câmeras remotas carregadas.

– Fique aqui – ela pediu ao movimentar os pés embaixo dos lençóis.

– Tem certeza?

O sorriso dela enquanto descansava a cabeça nos travesseiros mostraram seus dentes perfeitos... e o lado doce de sua personalidade.

– Sim, vou dormir melhor com você aqui. Além disso, você cheira bem depois do banho.

Cara, ela tinha um jeitinho: olhando-o da cama daquela maneira, teria sido necessário um exército para tirá-lo do quarto.

– Ok. Vá dormir, Lolli.

Ela sorriu diante do apelido carinhoso que lhe deu depois da primeira noite em que dormiram juntos.

– Vou. E obrigada por ficar aqui comigo.

Quando ela fechou os olhos, dirigiu-se até a cadeira perto da janela e ligou o laptop.

As gravações das minúsculas câmeras que tinham escondido no corredor do andar debaixo, na sala de estar e no grande carvalho perto da varanda de fato já tinham sido carregadas.

Por causa do que tinha acontecido, desejou que tivessem colocado uma câmera remota no quarto de Holly, mas essa era a questão: se os fantasmas realmente não existiam, por que se dar ao trabalho? As filmagens foram feitas apenas para captar a atmosfera do local... e para preparar toda a enganação que viria mais tarde, quando chegasse a hora do “invocamos os espíritos da casa!”.

Quando começou a olhar as imagens que haviam sido capturadas, percebeu que estava fazendo isso há quanto tempo? Dois anos? E mesmo assim não tinha visto ou ouvido nada que não pudesse ser explicado.

O que era bom. Não estava tentando provar a existência de espíritos. Estava apenas vendendo entretenimento.

A única coisa que tinha aprendido nos últimos 24 meses é que aquele era um bom trabalho, mentir nunca foi um problema para ele. De fato, seu total conforto com falsidade era a razão pela qual era um perfeito produtor de televisão: tudo girava em torno dos objetivos e detalhes, fossem locações, talentos, agentes, proprietários de casas ou seja lá o que estivesse no filme, não eram nada além de latas de sopas num armário para serem arrumadas segundo sua vontade. Para conseguir fazer seu trabalho, mentia sobre contratos, datas, imagens e sons. Havia falsificado, enganado e ameaçado com falácias.

Ele posicionava, mirava e...

Gregg franziu a testa e se inclinou para a tela.

Movendo o cursor em direção ao botão que retrocedia as imagens, repassou o segmento que havia sido gravado no corredor.

O que viu foi um vulto escuro movendo-se no corredor do lado de fora de seus quartos e... desaparecendo na frente do de Holly. O horário no canto inferior direito: 12h11 da manhã.

Exatamente 45 minutos antes dela procurá-lo.

Gregg repetiu o segmento, observando aquela sombra enorme caminhar pelo corredor mal iluminado, bloqueando a iluminação que entrava através da janela na outra extremidade.

Em sua mente, ouviu a voz de Holly: Porque eu acabei de transar com ele.

Raiva e ansiedade formavam um turbilhão em sua cabeça, deixou a gravação continuar, os minutos passando naquele canto direito. E então lá estava, alguém deixando o quarto de Holly, saindo, bloqueando a luz, mais ou menos trinta minutos depois.

A figura caminhou na direção oposta da que tinha vindo quase como se soubesse onde a câmera estava e não quisesse mostrar o rosto.

No exato momento em que Gregg estava prestes a chamar a polícia local... a maldita coisa desapareceu no ar.

Que. Droga. Foi. Essa?


CONTINUA

CAPÍTULO 20

A esperança é uma emoção traiçoeira.

Já havia passado duas noites até Darius finalmente entrar na casa da família da fêmea sequestrada e, conforme a grande porta se abria para ele e Tohrment, foram recebidos por um doggen cujos olhos estavam cheios da tragédia da esperança. Na verdade, a expressão do mordomo era de tanto respeito, que evidentemente acreditava estar dando as boas-vindas aos salvadores da casa de seu amo e não a pessoas comuns.

Somente o tempo e os caprichos do destino confirmariam se sua crença era real ou se estava equivocada.

Com entusiasmo, Darius e Tohrment foram guiados a um escritório oficial e o senhor que se levantou de uma cadeira revestida de seda teve que se firmar em seu peso.

– Bem-vindos, senhores, obrigado por terem vindo – Sampsone disse enquanto se aproximava com as duas mãos levantadas para apertar as mãos de Darius. – Sinto muito por não tê-los recebido nas duas noites passadas. Minha amada shellan...

A voz do macho falhou, e no silêncio, Darius deu um passo para o lado.

– Permita-me apresentar meu colega, Tohrment, filho de Hharm.

Enquanto Tohrment com reverência se curvava com a mão no coração, ficou claro que o filho tinha todas as boas maneiras que seu pai não tinha.

O mestre da casa retribuiu a deferência.

– Gostariam de beber ou comer alguma coisa?

Darius balançou a cabeça e sentou. Quando Tohrment colocou-se em pé atrás dele, disse:

– Obrigado. Mas, por ventura, poderíamos falar sobre o que aconteceu nesta mansão?

– Sim, sim, é claro. O que posso dizer?

– Tudo. Conte-nos... tudo.

– Minha filha... minha luz na escuridão... – O homem pegou um lenço. – Era de valor e cheia de virtude. A mais doce fêmea que poderiam se deparar...

Darius, consciente de que já tinham perdido duas noites, permitiu ao pai um certo tempo de lembranças, antes de colocá-lo no foco da questão.

– E naquela noite, senhor, naquela terrível noite – ele interrompeu quando houve uma pausa. – O que aconteceu nesta casa?

O macho balançou a cabeça e enxugou os olhos.

– Ela acordou de seu suave sono sentindo-se um pouco inquieta e então foi aconselhada a descansar em seus aposentos privados para o bem de sua saúde. Levaram comida até ela à meia noite e outra refeição antes da chegada da aurora. Foi a última vez em que foi vista. Seu aposento particular está lá em cima, mas também possui, assim como o resto da família, aposentos subterrâneos. Contudo, escolhia com frequência não ficar aqui conosco durante o dia, e como tínhamos acesso a ela através dos corredores internos, concluímos que estaria segura... – O homem engasgou neste ponto. – Como desejaria ter insistido mais.

Darius podia muito bem entender o arrependimento.

– Vamos encontrar sua filha. De um jeito ou de outro, vamos encontrá-la. Permitiria que fôssemos agora ao quarto dela?

– Por favor, sim. – Quando o macho gesticulou para o doggen, o mordomo se aproximou. – Silas ficará satisfeito em acompanhá-los. Prefiro... esperar aqui.

– Mas é claro.

Quando Darius se levantou, o homem se aproximou e agarrou sua mão.

– Uma palavra, se me permite? Entre você e eu?

Darius concordou, e conforme Tohrment seguiu o doggen, o mestre da casa deixou-se cair de volta em sua cadeira.

– Na verdade... minha filha era de valor. De virtudes. Intocada por...

Na pausa que se seguiu, Darius sabia com o quê o macho estava preocupado: se não a recuperassem em sua condição virginal, sua honra, assim como a da família, estaria em jogo.

– Não consigo dizer isso na frente de minha amada shellan – o macho continuou. – Mas nossa filha... se for corrompida... talvez seja melhor deixá-la...

Os olhos de Darius se estreitaram.

– Prefere que não seja encontrada?

Lágrimas surgiram daqueles olhos pálidos.

– Eu... – De repente, o macho balançou a cabeça. – Não... não. Eu a quero de volta. Não importa como, não importa em quais condições... claro que eu quero minha filha de volta.

Darius não estava disposto a oferecer apoio – tal negação a uma filha de seu sangue ter passado pela mente do macho foi grotesco.

– Gostaria de ir ao quarto dela agora.

O mestre da casa estalou os dedos e o doggen se aproximou do arco do escritório.

– Por aqui, senhor – o mordomo disse.

Enquanto ele e seu protegido andavam pela casa, Darius examinava as janelas e portas reforçadas. Havia aço por todos os lugares, separando os painéis de vidro ou fortificando os painéis de carvalho robusto. Entrar sem ser convidado não era fácil... e estava disposto a apostar que todos os quartos nos andares de cima eram iguais – inclusive os aposentos dos doggen.

Também avaliou cada pintura, tapete e objetos preciosos enquanto subia. Aquela família era de alto nível na glymera, com cofres sufocados de riquezas e uma linhagem sanguínea invejável. Assim, o fato de que sua filha virgem solteira sumisse não atingia apenas seus corações: era como um bem negociável. Sabendo disso, uma fêmea nessa idade e condição era um objeto de beleza... e uma implicação social e financeira.

E esta não era a única implicação disso. Como em qualquer avaliação, o inverso também era verdadeiro: ter uma filha arruinada, de fato ou por rumores, era uma mancha que levaria gerações para sequer ser ofuscada. O mestre daquela mansão, sem dúvida, amava sua filha de verdade, mas o peso de tudo isso distorcia a relação.

Darius acreditava muito que na visão do macho, seria melhor que sua filha voltasse numa caixa de pinho ao invés de respirando, mas corrompida. O último era uma maldição, o primeiro seria uma tragédia que reuniria muita simpatia. Darius odiava a glymera. Odiava mesmo.

– Aqui estão os aposentos privados dela – o doggen disse, abrindo a porta.

Quando Tohrment entrou no quarto iluminado por velas, Darius perguntou:

– O quarto foi limpo? Foi arrumado desde que ela se foi?

– Claro.

– Deixe-nos, por favor.

O doggen se curvou profundamente e desapareceu.

Tohrment vagou ao redor, olhando as cortinas de seda e uma área de estar muito bem decorada. Um alaúde estava em um canto e uma bela peça de bordado que foi parcialmente concluída em outro. Livros de autores humanos estavam empilhados ordenadamente em prateleiras, juntamente com pergaminhos no Antigo Idioma.

A primeira coisa que se percebia é que nada estava fora do lugar. Mas se isso era culpa dos empregados ou circunstâncias do desaparecimento, era difícil saber.

– Não toque em nada, certo? – Darius disse ao garoto.

– Mas é claro que não.

Darius adentrou no quarto luxuoso. As cortinas eram feitas de uma tapeçaria tão grossa e pesada que não se poderia esperar que a luz do sol penetrasse no aposento. A cama estava cercada pelo mesmo tecido, havia grandes painéis dele pendurados na cobertura.

No armário, abriu as portas esculpidas. Vestidos maravilhosos em safira, rubi, citrino e esmeralda estavam pendurados juntos, repletos de uma beleza potencial. E um único cabide repousava vazio, como se a última vestimenta que escolheu estivesse pendurada naquele objeto acolchoado.

Tinha uma escova de cabelos sobre a penteadeira e vários potes de unguentos, óleos perfumados e pós de coloração. Todos alinhados.

Darius abriu uma gaveta... e soltou uma pequena maldição. Estojos de joias. Estojos de joias de couro. Pegou um, abriu o fecho de ouro com um estalo e levantou a tampa.

Diamantes brilhavam sob a luz das velas.

Quando Darius voltou a colocar a caixa junto com as outras, Tohrment parou na porta, os olhos focando o tapete em tons de pêssego, amarelo e vermelho.

O leve rubor no rosto do macho entristeceu Darius por alguma razão.

– Nunca esteve no quarto de uma fêmea, certo?

Tohrment ficou ainda mais vermelho.

– Ah... não, senhor.

Darius fez um gesto com a mão.

– Bem, estamos aqui a trabalho. Melhor deixar qualquer timidez de lado.

Tohrment pigarreou.

– Sim. É claro.

Darius foi até a porta dupla francesa. As duas se abriam para um terraço e saiu com Tohrment em seu encalço.

– É possível enxergar através daquelas árvores distantes – o garoto murmurou, andando até a varanda.

De fato era possível. Através dos galhos torcidos e dos ramos desfolhados, uma mansão em outra propriedade era visível. A grande casa era comparável em tamanho e distinção, com metais finos em suas torres e grandes jardins... mas até onde Darius sabia, não era habitada por vampiros.

Virou-se e andou pela varanda, inspecionando todas as janelas, portas, maçanetas, dobradiças e fechaduras.

Não havia sinais de invasão, e considerando o frio que fazia, ela não teria deixado nada aberto facilitando assim a entrada dos elementos da natureza.

O que significava que a garota ou havia saído por vontade própria... ou deixado entrar quem quer que a tivesse levado. Isso assumindo que a entrada tivesse acontecido ali.

Olhou através do vidro para dentro dos aposentos da moça, tentando imaginar o que havia acontecido.

Para o inferno com a entrada, a saída era a questão, não era? Era muito improvável que o sequestrador a tenha arrastado pela casa: deve ter sido arrebatada na escuridão, ou então teria sido queimada até as cinzas e sempre havia gente do lado de fora durante a noite.

Não. Teriam que ter saído por aquele quarto.

Tohrment falou:

– Nada foi modificado, dentro ou fora. Sem riscos no chão, ou marcas na parede, o que significa...

– Que ela pode muito bem ter deixado alguém entrar e não lutou contra isso.

Darius voltou para dentro e pegou a escova de cabelo. Finos fios de cabelos loiros estavam presos nas cerdas duras. Nenhuma surpresa, já que o pai e a mãe eram claros.

A questão era: o que levava uma fêmea de valor a fugir da casa de sua família antes do amanhecer, não deixando rastros... e não levando nada consigo?

Uma resposta veio à mente: um macho.

Pais não sabem necessariamente tudo sobre as vidas de suas filhas, sabem?

Darius encarou a noite, examinando os caminhos, as árvores... e a mansão vizinha. Fios... havia fios para tecer aquele mistério.

A resposta que procurava estava ali em algum lugar. Só tinha que costurar os fios para encontrá-la.

– E agora? – Tohrment perguntou.

– Vamos conversar com os servos. Em particular.

Geralmente, em casas como aquela, os doggen nunca sonhariam em falar qualquer coisa fora dos limites necessários. Mas estas não eram circunstâncias normais e era muito possível que piedade e compaixão para com a pobre fêmea sobrepusessem a reticência dos funcionários.

E, às vezes, os fundos da casa sabiam coisas que a frente não sabia.

Darius virou-se e caminhou para a porta.

– Vamos despistar o senhor da mansão agora.

– Despistar?

Saíram juntos e Darius olhou para cima e para baixo no corredor.

– Sim. Venha por aqui.

Escolheu a esquerda, pois, no sentido oposto, havia um conjunto de portas duplas que dava para outra varanda no segundo andar – então era óbvio que o caminho que dava para os aposentos dos funcionários não era por ali. Enquanto caminhavam, passando por diversos cômodos mobiliados maravilhosamente, seu coração doía de tal forma que sua respiração ficou apertada. Depois de duas décadas, suas perdas ainda eram registradas, sua queda ainda ecoava ao longo de cada osso de seu corpo. Era de sua mãe quem mais sentia falta, na verdade. E por trás dessa dor estava o fim de uma vida civilizada que uma vez ele vivera.

Nasceu para isso e fez o que tinha sido treinado a fazer pela raça e alimentou certas... indulgências e ganhou respeito de seus companheiros na guerra. Mas não havia alegrias para ele nessa existência. Nenhuma maravilha. Nenhuma fascinação.

Tudo se resumia a coisas belas para ele? Era tão superficial assim? Se, algum dia, tivesse uma grande e linda casa, com aposentos incontáveis recheados com coisas finas, teria um coração mais leve?

Não, pensou. Não se ficasse sozinho sob o grandioso teto.

Sentia falta de pessoas com a mesma mentalidade convivendo juntas, de uma comunidade levantada por paredes firmes, de um grupo que fosse sua família por sangue e escolha. Na verdade, a Irmandade não vivia junta, pois isto era visto por Wrath, o Justo, como um risco à raça – se suas posições fossem delatadas ao inimigo de alguma maneira, todos estariam expostos.

Darius entendia a linha de pensamento, mas não tinha certeza se concordava com isso. Se os seres humanos podiam viver em seus castelos fortificados em meio aos campos de batalhas, os vampiros poderiam fazer o mesmo.

Contudo, sejamos justos, a Sociedade Redutora era um adversário bem mais perigoso.

Depois de caminhar pelo corredor por algum tempo, finalmente encontraram o que esperava: uma passagem que dava para uma escadaria nos fundos, completamente sem adornos.

Descendo os degraus de pinho, entraram numa pequena cozinha e o aparecimento deles interrompeu a refeição que estava sendo feita numa longa mesa de carvalho.

Os doggen soltaram suas canecas de cerveja e pedaços de pão e se colocaram em pé.

– Por favor, voltem a comer – disse Darius, insistindo com as mãos para que voltassem a seus lugares. – Desejamos falar com o mordomo do segundo andar e com a criada pessoal da filha.

Todos retornaram a seus lugares ao longo da bancada, com exceção de dois: uma fêmea de cabelos brancos e um jovem macho com um rosto gentil.

– Poderia nos sugerir um lugar com alguma privacidade? – Darius disse ao mordomo.

– Temos uma sala de estar indo por ali. – Assinalou em direção a uma porta perto da lareira. – Encontrarão o que procuram lá dentro.

Darius assentiu e se dirigiu à criada, que estava pálida e trêmula, como se estivesse em apuros.

– Não fez nada de errado, minha cara. Venha, isto será rápido e indolor, garanto.

Melhor começar com ela. Não tinha certeza se aguentaria esperar até terminarem com o mordomo.

Tohrment abriu o caminho e os três entraram em uma sala que tinha tanta personalidade quanto um amontoado de pergaminhos em branco.

Como sempre acontecia em grandes propriedades, os aposentos da família eram construídos com luxo e requinte. E os dos empregados não tinham nada além do básico.


CAPÍTULO 21

Quando o Bentley de Rehv saiu da estrada 149 Norte e entrou com cuidado em um caminho estreito de terra, John inclinou-se sobre o para-brisa. Os faróis iluminavam árvores desfolhadas enquanto o sedan serpenteava cada vez mais perto do rio, a paisagem era repleta de mato e pouco acolhedora.

A pequena cabana de caça que surgiu era absoluta e positivamente nada digno de nota. Pequena, escura e despretensiosa, com uma garagem independente da casa. Era rústica, mas estava em perfeito estado.

Saiu do carro e já estava caminhando para a porta da frente antes de Rehv sair de trás do volante. O sentimento predominante de medo que sentia era, na verdade, um bom sinal. Sentiu a mesma coisa no acampamento sympatho e fazia sentido ela proteger seu espaço particular com um campo de força semelhante.

O som de suas botas soou alto em seus ouvidos enquanto cruzava a terra batida da rua estreita, e então tudo ficou em silêncio ao atingir o gramado raso, marrom e desalinhado. Não bateu, mas estendeu a mão para a maçaneta e ordenou mentalmente que a fechadura se abrisse.

Só que... ela não se moveu.

– Não vai ser capaz de entrar aí usando sua mente. – Rehv chegou com uma chave de cobre, colocou a coisa em uso e abriu caminho.

Quando a forte e sólida porta foi colocada de lado, John estreitou o olhar para a escuridão e inclinou sua cabeça, esperando um alarme disparar.

– Ela não acredita em alarmes – disse Rehv calmamente antes de deter John enquanto corria para dentro. Em um tom mais alto, o homem gritou:

– Xhex? Xhex? Abaixe a arma... somos eu e John.

De alguma maneira sua voz não soava bem, pensou John.

E não houve resposta.

Rehv acendeu as luzes e soltou o braço de John enquanto entravam. A cozinha nada mais era do que uma pequena área com apenas o essencial: forno a gás, uma geladeira velha e uma pia de aço inoxidável. Mas tudo estava impecável e não havia desordem alguma. Sem correspondência, sem revistas. Nenhuma arma empunhada.

Mofo. O ar estava parado e mofado.

Do outro lado, havia um único quarto grande com janelas com vista para o rio. A mobília era mínima: nada além de duas cadeiras de vime, um sofá e uma mesa pequena.

Rehv atravessou, caminhando em direção à única porta fechada à direita.

– Xhex?

Outra vez com aquela voz. E, então, o macho colocou a mão no batente da porta e inclinou-se sobre os painéis, fechando os olhos.

Com um arrepio, Rehv abaixou os ombros enormes.

Ela não estava lá.

John adiantou-se e abriu caminho tateando pelo quarto. Vazio. Assim como o banheiro do outro lado.

– Maldição! – Rehv girou sobre os calcanhares e se afastou. Quando uma porta bateu na lateral da cabana que dava para o rio, John percebeu que o sujeito havia saído para a varanda e estava olhando para a água fixamente.

John amaldiçoou em pensamento enquanto olhava ao redor. Tudo estava limpo e organizado. Nada fora do lugar. Nenhuma abertura nas janelas para entrar ar fresco ou portas que haviam sido abertas recentemente.

A poeira fina sobre as maçanetas e fechaduras lhe disse isso.

Xhex poderia ter passado por ali, mas já tinha ido embora. E se veio, não ficou muito tempo ou fez muita coisa, porque não podia detectar nada de seu perfume.

Sentiu como se a tivesse perdido novamente.

Cristo, pensou que o fato de estar viva fosse o suficiente para sustentá-lo, mas a ideia de que ela se encontrava em lugar algum do planeta, mas longe dele, o paralisava de maneira muito estranha. Além disso, se sentia cego pela situação; ainda não sabia os “comos” e “porquês” e “ondes” de nada daquilo.

Estava péssimo, para ser sincero.

Por fim, saiu para juntar-se a Rehv na pequena varanda. Agarrando seu bloco de notas, rabiscou rapidamente e rezou para que o sympatho conseguisse entender aquilo que iria dizer.

Rehv olhou por cima do ombro e leu o que John segurava. Depois de um momento, disse:

– Sim, claro. Direi aos Irmãos que ela não estava aqui e que você foi comigo comer no restaurante de iAm. Isso vai te dar umas boas três, quatro horas no mínimo.

John colocou a mão no peito e curvou-se profundamente.

– Só não saia por aí lutando. Não preciso saber para onde está indo, isso é assunto seu. Mas se você se matar, arrumo noventa e nove problemas e você é o maior deles. – Rehv olhou de volta para o rio. – E não se preocupe com ela. Já fez isso antes. Esta é a segunda vez que... Xhex foi raptada.

A mão de John agarrou com força o antebraço do macho. Rehv nem sequer pestanejou... contudo, havia rumores de que não sentia nada por causa do que fazia para controlar seu lado sympatho.

– Sim. Esta é a segunda vez. Ela e Murhder estavam juntos... – Quando as presas de John apareceram, Rehv sorriu discretamente. – ... isso foi há muito tempo. Não precisa se preocupar. Mas ela acabou indo para a colônia por razões familiares. Porém, eles a prenderam lá e não a deixaram sair. Quando Murhder subiu para buscá-la, os sympathos o pegaram também e a situação ficou crítica. Eu tive que fazer uma barganha para soltar os dois, mas a família dela a vendeu no último segundo, bem debaixo do meu nariz.

John engoliu em seco e sinalizou sem pensar. Para quem?

– Humanos. Contudo, ela se libertou como fez dessa vez. E então foi embora por um tempo. – Os olhos de ametista de Rehv brilharam. – Ela sempre foi forte, mas depois do que aqueles humanos fizeram a ela, tornou-se muito dura.

Quando?, John gesticulou.

– Há uns vinte anos. – Rehv voltou a encarar a água. – Para sua informação, ela não estava brincando naquela mensagem. Não vai apreciar ninguém chegando e sendo seu herói com Lash. Vai ter que fazer isso sozinha. Quer ajudar nessa situação? Deixe que ela vá até você quando estiver pronta... e fique fora do seu caminho.

Sim, bem, provavelmente ela não teria pressa em mandar uma mensagem de texto, pensou John. E quanto à coisa com Lash? Não tinha certeza se conseguiria deixar essa passar. Nem mesmo por ela.

Para interromper seu próprio pensamento, John estendeu a mão. Os dois aproximaram peito com peito em um breve abraço e depois John se desmaterializou.

Quando tomou forma, estava de volta no Parque Xtreme, atrás do galpão, olhando para as rampas e obstáculos vazios. O líder dos traficantes não estava de volta. Também não havia nenhum skatista. As duas coisas faziam sentido. Uma batida na noite anterior com um monte de tiras surgindo? E com uma chuva de balas?

O lugar seria uma cidade fantasma por um tempo.

John inclinou-se contra a madeira áspera, seus sentidos em alerta. Estava consciente da passagem do tempo, tanto por causa da posição da lua bem no meio do céu, quanto porque seu cérebro deixou o estado maníaco e entrou numa agitação mais razoável. Que também era uma droga, mas era mais fácil de lidar.

Xhex estava livre e ele nem sequer sabia em que condições estava. Será que estava machucada? Será que precisava se alimentar? Será que ela...

Certo. Hora de parar com esse ciclo vicioso.

E provavelmente ele deveria cair fora. Wrath havia sido muito claro sobre aquele negócio de “não lutar sem Qhuinn” e o parque ainda podia ser considerado um lugar perigoso.

De repente, deu-se conta de onde precisava ir.

Levantando-se daquela posição, fez uma pausa e olhou em volta com a testa franzida. A sensação de estar sendo observado e seguido o envolveu mais uma vez... exatamente como aconteceu na loja de tatuagens.

Porém, naquela noite, simplesmente não tinha energia para suportar mais uma boa dose de paranoia, então apenas se desmaterializou, imaginando que quem quer ou o que quer que fosse iria segui-lo outra vez ou o perderia no ar... e não estava preocupado com o que seria.

Estava muito desgastado.

Quando tomou forma novamente, estava a apenas algumas quadras de onde tinha lutado com aquele redutor na noite anterior. Do bolso interno de sua jaqueta de couro, tirou uma chave de cobre que era exatamente igual a que Rehv usou na cabana de caça.

Estava com aquela coisa há mais ou menos um mês e meio. Xhex tinha lhe dado na noite em que dissera a ela que podia confiar nele sobre seu segredo sympatho e, assim como os cilícios, ele a levava por onde quer que fosse.

Esquivando-se sob as escadarias de uma casa de arenito, inseriu o pedaço de metal e abriu a porta. As luzes no corredor do porão foram ativadas pelo movimento e o trecho de pedras caiadas foi iluminado instantaneamente.

Teve o cuidado de trancar a porta atrás de si e desceu.

Ela ofereceu-lhe abrigo naquele lugar secreto antes. Tinha concedido acesso a seu quarto no porão quando precisou ficar sozinho. E ao aproveitar sua hospitalidade, aquilo o levou à perda de sua virgindade.

No entanto, ela se recusou a beijá-lo.

A mesma chave funcionou na porta do quarto, o mecanismo de trava se deslocou suavemente. Ao movimentar os amplos painéis de metal, a luz se acendeu e ele entrou.

John morreu um pouco com o que viu na cama: seu coração e sua respiração pararam, suas ondas cerebrais cessaram, seu sangue gelou nas veias.

O corpo nu de Xhex estava enrolado nos lençóis.

Quando o quarto foi inundado pela luz, a mão dela agarrou a arma que estava apoiada sobre o colchão e a apontou para a porta.

Não tinha forças nem para levantar a cabeça ou a arma, mas ele tinha certeza de que poderia puxar o gatilho.

Levantando os braços e mostrando as palmas das mãos, deu um passo para o lado e fechou a porta com o pé para protegê-la.

Sua voz era quase um sussurro.

– John...

Uma única lágrima cor vermelho-sangue surgiu e a assistiu escorrer devagar e com facilidade pelo nariz até pingar sobre o travesseiro.

A mão dela afastou-se da arma e foi para o rosto, movendo-se com cuidado a cada centímetro, como se precisasse de tudo o que tinha para fazer isso. Cobriu-se da única maneira que podia, com seu escudo de mãos e dedos escondendo as lágrimas.

Ela estava toda marcada por hematomas em vários estágios de cura e tinha perdido muito peso, seus ossos pareciam prestes a romper sua carne. Sua pele estava cinza ao invés de um rosa saudável e seu perfume natural era praticamente inexistente.

Ela estava morrendo.

O horror daquilo tudo fez com que seus joelhos vacilassem ao ponto de ser obrigado a se apoiar contra a porta.

Mas mesmo enquanto oscilava, sua mente não parava. A doutora Jane precisava vê-la e Xhex precisava se alimentar.

Não tinham muito tempo pela frente.

Para sobreviver, ele teria que assumir a partir daquele momento.

John arrancou sua jaqueta de couro e arregaçou as mangas enquanto se dirigia até ela. A primeira coisa que fez foi cobrir gentilmente sua nudez puxando o lençol sobre seu corpo. A segunda foi empurrar seu punho direto contra a boca dela... e esperar que seus instintos assumissem o controle.

Sua mente podia não desejá-lo, mas seu corpo não seria capaz de resistir ao que tinha para oferecer.

Sobrevivência sempre prevaleceu sobre os assuntos do coração. Ele era uma prova viva disso.


CAPÍTULO 22

Xhex sentiu um suave roçar em seu ombro e quadril enquanto John puxava o lençol em volta.

Por trás do aconchego de sua mão, ela inalou e tudo o que sentiu dizia respeito a um macho bom, limpo e saudável... e o cheiro provocou uma fome profunda dentro dela, seu apetite e necessidades a despertaram de seu sono com um rugido.

E isso foi antes de John colocar seu pulso tão perto dela que poderia beijá-lo.

Seus instintos sympatho serpentearam e leram as emoções dele.

Calmo e decidido. Totalmente centrado na cabeça e no coração: John iria salvá-la nem que fosse a última coisa que fizesse.

– John... – sussurrou.

O problema daquela situação... bem, um deles... era que não estava sozinho em saber o quão perto da morte ela estava.

Enquanto foi encarcerada e abusada, sua fúria contra Lash tinha sido um sustento e pensou que continuaria sendo quando saísse. Mas no instante em que ligou para Rehv, toda sua energia foi drenada e sobraram apenas as batidas de seu coração. E, mesmo isso, não era muito.

John colocou o pulso ainda mais perto... de modo que a pele dele roçou contra sua boca.

Seus caninos se alongaram num impulso lento ao mesmo tempo em que seu coração soluçou como se não estivesse trabalhando direito.

Tinha uma opção naquele momento silencioso e tenso: tomar sua veia e continuar vivendo. Ou negar isso e morrer na frente dele na próxima hora ou coisa assim. Porque ele não iria a lugar nenhum.

Afastando a mão do rosto, ela o percorreu com o olhar. Estava lindo como sempre, o tipo de rosto com que as fêmeas sonhavam.

Erguendo a palma da mão, ela o tocou.

A surpresa cintilou em seus olhos e então se inclinou para que sua mão pousasse sobre sua face quente. O esforço de manter o braço elevado mostrou ser algo extremo, mas quando seus dedos tremeram, ele colocou sua mão sobre a dela, segurando-a no lugar.

Seus profundos olhos azuis eram uma espécie de paraíso, com a cor de um céu quente ao escurecer.

Tinha que tomar uma decisão. Tomar sua veia ou...

Como não conseguia encontrar energia para terminar o pensamento, sentiu como se tivesse perdido a si mesma: considerando o fato de que parecia estar consciente, supôs que estava viva... mas, ainda assim, não sentia como se estivesse em sua própria pele. Sua luta tinha passado, a coisa que a tinha definido no mundo tinha evaporado. O que fazia sentido. Não tinha mais interesse em viver e não poderia fingir nem para ele, nem para si mesma.

Duas viagens ao parque dos prisioneiros a levaram longe demais.

Então... o que fazer, o que fazer?

Lambeu os lábios secos. Não nasceu sob condições que pudesse escolher, e seu tempo respirando, comendo, lutando e transando não trouxe melhoria alguma ao ponto de onde havia começado. Contudo, poderia partir sob suas próprias condições... e fazer isso depois que tivesse colocado as coisas em ordem.

Sim, essa era a resposta. Graças às três últimas semanas e meia, tinha uma ótima lista de coisas a fazer antes de morrer. Claro, havia apenas uma coisa nesta lista, mas algumas vezes isso é o suficiente para motivá-lo.

Num ímpeto de determinação, sua forte pele externa se reformou, a estranha sensação de flutuar que a confundia se dissipou e deixou uma aguda consciência de seu despertar. De repente, tirou a mão que estava embaixo da de John e a retirada cravou um surto de puro medo na grade emocional dele. Mas então puxou seu pulso e expôs suas presas.

O triunfo de John se traduziu numa onda de calor.

Pelo menos até tornar-se evidente que não tinha forças para romper a pele dele... seus caninos não fizeram nada além de arranhar a superfície. Porém, John estava atento. Com um movimento rápido, perfurou sua própria veia e levou aquela fonte até os lábios dela.

O primeiro gole foi... uma transformação. O sangue dele era tão puro que ardeu em sua boca e garganta... e o fogo que se acendeu em seu estômago percorreu todo seu corpo, descongelando-a, animando-a. Salvando-a.

Com ávidas sucções ela tomou dele para reviver, cada gole era um bote salva-vidas, uma corda sendo jogada no penhasco da sua morte, uma bússola que precisava para encontrar o caminho de volta para casa.

E ele deu isso a ela sem expectativas, esperanças ou impulsionado por emoções.

O que, aliás, em meio ao seu frenesi, lhe causou dor. Ela tinha mesmo partido seu coração: não sobrou nada de expectativa nele. Mas não havia abalado o macho – e isso fez com que o respeitasse como nada mais teria conseguido.

Enquanto se alimentava, o tempo corria assim como seu sangue, fluía no infinito e dentro dela.

Quando finalmente ficou saciada, liberou sua pele e lambeu para fechar a ferida.

O tremor começou logo depois. Iniciou-se nas mãos e pés e rapidamente se centralizou no peito, tremores incontroláveis que chacoalhavam seus dentes, seu cérebro e sua visão até que sentiu como se fosse um pé de meia jogado numa secadora.

Através do tremor, viu John tirando seu celular da jaqueta.

Tentou agarrar sua camisa.

– N-n-n-não. N-n-n-não...

Ele a ignorou, inclinando a maldita coisa e enviando uma mensagem de texto.

– D-d-d-droga... – ela grunhiu.

Quando fechou o telefone, disse:

– T-tentar me levar ao H-Havers a-agora n-n-não vai d-dar c-certo.

Seu medo de clínicas e de procedimentos médicos ia deixá-la no limite e, graças a ele, agora tinha energia para fazer algo com seu pânico. E não ia ser uma alegria para ninguém lidar com isso.

John pegou um bloco e rabiscou alguma coisa. Virou o papel e saiu um momento depois. Tudo que ela conseguiu fazer foi fechar os olhos quando a porta também se fechou.

Abrindo os lábios, respirou pela boca e imaginou se teria energia suficiente para levantar, se vestir e sair antes que a ideia brilhante de John aparecesse. Uma rápida avaliação a informou que não ia acontecer. Se não conseguia levantar a cabeça e mantê-la erguida do travesseiro por mais de um segundo e meio, não tinha jeito de conseguir ficar em pé.

Não levou muito tempo para que John voltasse com a doutora Jane, a médica pessoal da Irmandade da Adaga Negra. A fêmea fantasmagórica trazia uma maleta preta e transpirava o tipo de competência médica que Xhex valorizava – mas teria preferido infinitamente que toda aquela competência fosse aplicada a outros e não nela.

A doutora Jane se aproximou e colocou suas coisas no chão. Seu jaleco branco e sua roupa de hospital eram referências sólidas para os olhos, embora seu rosto e mãos fossem translúcidos. Porém, tudo mudou quando ela sentou na beirada da cama. Tudo nela tomou forma e a mão que pousou sobre o braço de Xhex era calorosa e firme.

No entanto, mesmo a compassiva médica fez a pele de Xhex formigar. Não queria mesmo ser tocada por ninguém.

Quando a boa doutora removeu a mão, teve a sensação que a fêmea sabia disso.

– Antes que me diga para ir embora, tem algumas coisas que precisa saber. Em primeiro lugar, não vou divulgar a sua localização a ninguém e não vou compartilhar nada que me diga ou qualquer coisa que eu descubra. Tenho que relatar a Wrath que a vi, mas qualquer descoberta clínica será sua e apenas sua.

Soava bem. Na teoria. Mas não queria a fêmea em nenhum lugar perto dela com o que havia naquela maleta preta.

A doutora Jane continuou:

– Segundo, eu não sei absolutamente nada sobre sympathos. Portanto, se há algo anatômico distinto ou significativo para essa sua metade... não vou necessariamente saber como tratar. Ainda consente em ser examinada por mim?

Xhex limpou a garganta e tentou travar os ombros, para que não tremesse tanto.

– Eu não q-quero ser examinada.

– Isso foi o que John disse. Mas você já passou por um trauma...

– N-n-não foi tão mal assim. – Sentia a resposta emocional de John vindo do canto de onde ele estava, mas não tinha energia para descobrir os detalhes do que estava sentindo. – E eu estou b-b-bem...

– Então deveria encarar isso como uma simples formalidade.

– Eu p-p-pareço com alguém que é formal?

O olhar verde-floresta da doutora Jane se estreitou.

– Você parece alguém que foi espancada. Que não se alimentou de maneira adequada. E que não dormiu. A não ser que queira me dizer que esse machucado roxo em seu ombro é maquiagem. Ou que essas bolsas debaixo dos seus olhos são uma miragem.

Xhex estava bem familiarizada com pessoas que não aceitavam “não” como resposta... pelo amor de Deus, trabalhou com Rehv por anos. E considerando aquele tom rígido e equilibrado, estava muito claro que a doutora iria fazer as coisas do jeito dela ou não iria embora. Nunca.

– M-m-maldição.

– Para sua informação, quanto mais cedo começarmos, mais cedo termina.

Xhex encarou John, pensando que se tinha que ser examinada, a presença dele ali não seria vantagem alguma. Ele realmente não precisava saber nada além do que provavelmente já supunha sobre a condição dela.

A doutora olhou sobre o ombro.

– John, você poderia, por favor, esperar no corredor?

John abaixou a cabeça e se inclinou para fora do quarto, a tremenda largura das suas costas desaparecendo pela porta. Quando a fechadura fez um clique, a boa doutora abriu aquela maldita maleta e o estetoscópio e o medidor de pressão foram os primeiros a sair.

– Só vou ouvir seu coração – disse, colocando o estetoscópio nas orelhas.

A visão dos instrumentos médicos foi gasolina para os tremores de Xhex, e estando fora de si como estava, ela se encolheu afastando-se.

A doutora Jane fez uma pausa.

– Não vou machucar você. E não vou fazer nada que você não queira.

Xhex fechou os olhos e virou de costas. De repente, cada músculo de seu corpo doeu.

– Vamos acabar logo com isso.

Quando o lençol foi levantado, uma corrente de ar frio correu sobre sua pele e um disco gelado foi colocado sobre seu peito. Flashbacks ameaçaram enviá-la para uma montanha-russa assustadora e começou a encarar o teto, apenas para tentar evitar sair levitando do maldito colchão.

– S-seja rápida, d-d-doutora. – Não conseguiria conter o pânico por muito tempo.

– Poderia respirar fundo para mim?

Xhex fez o melhor que podia e acabou estremecendo. Estava claro que uma ou mais das suas costelas estavam quebradas, provavelmente de bater na parede ao sair daquele quarto.

– Pode se sentar? – A Dra. Jane perguntou.

Xhex gemeu quando tentou levantar seu tronco da cama e falhou. A doutora Jane acabou tendo de ajudá-la, e quando fez isso, assoviou um pouco.

– Não dói tanto assim – Xhex exclamou.

– Difícil de acreditar. – De novo, o disco de metal andou sobre ela. –Respire o mais profundo que puder.

Xhex respirou fundo e ficou aliviada quando a mão gentil da doutora impulsionou suas costas contra os travesseiros e o lençol flutuou de volta para o lugar.

– Posso examinar os machucados de seus braços e pernas? – Quando Xhex deu de ombros, a doutora Jane colocou o estetoscópio de lado e se moveu ao redor da cama. Houve outra corrente de ar quando o lençol foi retirado... e então a outra fêmea hesitou.

– Marcas muito profundas de ataduras ao redor dos tornozelos – murmurou a doutora, quase para si mesma.

Bem, isso foi porque Lash a havia amarrado com arame algumas vezes.

– Muitas contusões...

Xhex interrompeu a inspeção quando o lençol foi puxado em direção aos quadris.

– Vamos apenas dizer que continuam por toda parte de cima, certo?

A doutora Jane recolocou o lençol onde estava.

– Posso apalpar sua barriga?

– Vá em frente.

Xhex se enrijeceu com a ideia de ser descoberta de novo, mas a doutora apenas esticou o lençol, empurrou e apalpou. Infelizmente não havia como esconder os tremores, especialmente quando as coisas se encaminharam para a parte inferior do estômago.

A doutora se acomodou e olhou dentro dos olhos de Xhex.

– Alguma chance de me deixar fazer um exame interno?

– Interno como em... – Quando entendeu o significado, Xhex balançou a cabeça. – Não. Não vai acontecer.

– Foi agredida sexualmente?

– Não.

A doutora Jane assentiu.

– Existe algo que eu precise saber e que você não me contou? Dor em algum lugar específico?

– Estou bem.

– Você está sangrando. Não tenho certeza se está ciente disso, mas está sangrando.

Xhex franziu a testa e olhou para seus braços trêmulos.

– Há sangue fresco na parte interna de suas coxas. Por isso perguntei se poderia fazer um exame interno.

Xhex sentiu uma onda de horror vindo sobre ela.

– Vou perguntar mais uma vez. Foi agredida sexualmente? – Não havia nenhuma emoção por trás das palavras técnicas e a doutora havia acertado nisso. Xhex não estava interessada em nenhuma histeria, choradeira ou piedade exagerada.

Quando não respondeu, a doutora Jane leu o silêncio corretamente e disse:

– Alguma chance de estar grávida?

Oh... Deus.

Os ciclos sympatho eram estranhos e imprevisíveis e estava tão afetada pelo drama do rapto e do cativeiro que nem tinha pensado nas consequências.

Naquele momento, desprezou ser uma fêmea. Realmente desprezou.

– Eu não sei.

A doutora assentiu.

– Como pode dizer se está?

Xhex apenas balançou a cabeça.

– Não tem como eu estar. Meu corpo passou por muita coisa.

– Deixe-me fazer o exame interno, ok? Apenas para ter certeza que não há nada acontecendo lá dentro. E então eu gostaria de levá-la ao complexo da Irmandade para que possa fazer um ultrassom. Sentiu-se muito mal quando examinei sua barriga. Pedi ao Vishous para vir com o carro... deve estar quase chegando.

Xhex mal conseguia ouvir o que estava sendo dito a ela. Estava ocupada demais relembrando as duas últimas semanas. Esteve com o John na véspera do rapto. Aquela última vez. Talvez...

Se estivesse grávida, recusava-se com todas as forças a acreditar que tinha alguma coisa a ver com Lash. Isso seria muito cruel. Cruel demais.

Além disso, talvez houvesse outra razão para o sangramento.

Parte de seu cérebro insistia em salientar que podia ser um aborto espontâneo.

– Faça isso – Xhex disse. – Mas faça rápido. Eu não lido bem com essa porcaria toda e não vou ficar muito entusiasmada se levar mais que alguns minutos.

– Serei rápida.

Enquanto fechava os olhos e se preparava, uma rápida mostra de slides se iniciou em sua cabeça. Primeira imagem: seu corpo numa mesa de aço inoxidável de uma sala de azulejos. Próxima imagem: seus tornozelos e pulsos presos no lugar. Próxima imagem: médicos humanos com olhos arregalados dizendo “olha só isso” aproximando-se dela. Próxima imagem: uma câmera de vídeo no seu rosto e descendo para produzir uma visão panorâmica. Próxima imagem: um bisturi capturando a luz.

Estalos.

Suas pálpebras se abriram com força com aqueles sons porque não tinha certeza se o que estava ouvindo era na sua cabeça ou no quarto. Era o último. A doutora Jane tinha colocado suas luvas de látex.

– Vou ser gentil – Jane disse.

O que era um termo relativo, claro.

Xhex agarrou os lençóis e sentiu espasmos na parte interna de suas coxas ao ficar rígida da cabeça aos pés. A boa notícia do ato de congelar com força foi que isso a curou daquela gagueira.

– Prefiro que seja rápida.

– Xhex... eu quero que olhe direto para mim. Agora.

O olhar disperso de Xhex voltou-se para ela.

– O que?

– Mantenha-se olhando em meus olhos. Bem aqui. – A doutora apontou para seus olhos. – Mantenha o olhar. Prenda-se em meu rosto e saiba que já passei por isso, certo? Sei exatamente o que estou fazendo e não apenas porque fui treinada.

Xhex se esforçou para focar e... Jesus, aquilo ajudava. Encontrar aquele olhar verde realmente ajudou.

– Você vai sentir.

– Como assim?

Xhex clareou a garganta.

– Se eu estiver... grávida, você vai sentir.

– Como?

– Quando você... haverá um padrão. Dentro. Não vai... – Respirou com dificuldade, recorrendo às fábulas que havia ouvido do povo de seu pai. – As paredes não estarão suaves.

A doutora Jane nem sequer piscou.

– Entendi. Pronta?

Não.

– Sim.

Xhex estava suando frio quando o exame terminou e a costela que estava quebrada gritou por causa de sua forte respiração entrecortada.

– E então? – disse ela com voz rouca.


CAPÍTULO 23

– Estou dizendo... Eliahu está vivo. Eliahu Rathboone... está vivo.

Em pé, em seu quarto, na mansão Rathboone, Gregg Winn olhou para fora da janela, observando o belo musgo espanhol típico da Carolina do Sul. Sob o luar aquela porcaria era assustadora, como uma sombra projetada por algum objeto desconhecido... ou corpo.

– Gregg, você me ouviu?

Depois de esfregar os olhos para dispersar o sono, olhou sobre o ombro em direção à sua jovem narradora. Holly Fleet estava do lado de dentro da porta, seu longo cabelo loiro puxado para trás, seu rosto sem maquiagem, seus olhos não eram tão grandes ou cativantes sem os cílios falsos ou o material cintilante que usava na frente da câmera. Mas o roupão de seda rosa não fazia nada, absolutamente nada para esconder seu corpo que era um arraso.

E estava praticamente vibrando, seu diapasão interno parecia ter sido acionado por uma maldita campainha.

– Está ciente – Gregg arrastou as palavras – de que o filho da mãe morreu há mais de 150 anos?

– Então, o fantasma dele está mesmo aqui.

– Fantasmas não existem. – Gregg voltou a olhar a paisagem. – Você, dentre todas as pessoas, deveria saber disso.

– Este aqui existe.

– E você me acordou de madrugada para dizer isso?

Não foi uma atitude legal da parte dela. Todos eles praticamente não dormiram na noite anterior e ele tinha passado o dia pendurado no telefone ligando para Los Angeles. Tinha deitado a cabeça no travesseiro há uma hora, sem a pretensão de cair no sono – mas felizmente seu corpo tinha planos diferentes.

Ou isso ou seu cérebro estava dizendo para desistir, pois as coisas não estavam indo bem. Aquele mordomo se recusava a ceder quanto à autorização. As duas tentativas de reaproximação de Gregg foram mal-sucedidas: a do café da manhã foi educadamente recusada e a do jantar completamente ignorada.

Enquanto isso, tinham feito ótimas imagens que já estavam sendo enviadas. Graças às evocativas cenas capturadas na surdina, o chefão havia lhe dado o aval para mudar a localização do especial – mas estavam pressionando-o para que enviasse uma prévia que pudessem transmitir o mais rápido possível.

O que não poderia acontecer até que o mordomo cedesse.

– Ei? – Holly exclamou. – Está me ouvindo?

– O quê?

– Quero ir embora.

Franziu a testa, pensando que ela não tinha neurônios suficientes para se assustar com nada menor que um caminhão de dezoito rodas com o nome dela na grade dianteira.

– Pra onde?

– De volta para Los Angeles.

Ele quase recuou.

– Los Angeles? Está brincando...? Certo, isso não vai acontecer. A não ser que queria viajar de volta como bagagem. Temos um trabalho a fazer aqui.

O que, considerando o problema com aquele mordomo idiota, isso incluiria muita paciência e súplica. E o último era a praia de Holly. E afinal... se estava assustada, aquilo funcionaria como vantagem. Poderia usar seu medo para influenciar o mordomo. Normalmente, homens respondem bem a esse tipo de coisa – em especial, os senhores gentis e educados que canalizam seu cavalheirismo por cada um de seus ossos secos e delgados.

– Eu estou mesmo... – Holly puxou as lapelas de seda para mais perto de seu pescoço... de modo que a frente de seu roupão ficou ainda mais esticada e apertada contra seus mamilos enrijecidos. – Estou em pânico.

Hum. Se isso era uma manobra para levá-lo para a cama... não estava tão cansado.

– Venha aqui.

Estendeu os braços, e quando ela se aproximou e colocou seu corpo contra o dele, Gregg sorriu. Deus, ela cheirava bem. Não era aquela droga de perfume floral que costumava usar, mas alguma coisa mais misteriosa. Era muito bom.

– Querida, sabe que tem que ficar conosco. Preciso de você para fazer sua mágica.

Lá fora, os musgos espanhóis balançavam com a brisa, a luz do luar os capturava e criava a ilusão de serem véus de seda, assim as árvores pareciam estar envoltas em mantos.

– Alguma coisa não está certa aqui – disse ela em seu peito.

Lá embaixo, no gramado, uma figura solitária caminhava vagarosamente em meio à paisagem. Ficou claro que Stan tinha saído para fumar.

Gregg balançou a cabeça.

– A única coisa que não está certa aqui é aquele maldito mordomo. Não quer ser famosa? Um especial aqui abrirá portas para você. Poderia ser convidada para a próxima Dança dos Famosos. Ou para o Big Brother.

Parece que conseguiu chamar sua atenção, pois o corpo dela relaxou, e para ajudá-la, acariciou suas costas.

– Essa é minha garota. – Gregg observou Stan caminhar, mãos nos bolsos, a cabeça olhando na direção oposta da casa, seu cabelo longo movia-se no vento. Mais alguns metros e seria banhado pelo luar, quando saísse do alcance das árvores. – Agora, quero que fique aqui comigo... como eu disse, você mais que todas as outras pessoas deveria saber que essas histórias de fantasmas nunca são nada além de tábuas de assoalho velho rangendo. Temos um trabalho só porque as pessoas gostam de acreditar nessas histórias sinistras e idiotas.

Como se estivesse aproveitando a deixa, alguém subiu os degraus, o suave som dos passos pareciam sair de um verdadeiro filme de terror, os lamentos e gemidos da madeira velha penetravam o silêncio.

– É disso que está com medo? De alguns ruídos no meio da noite? – disse, afastando-se e olhando para ela. Seus lábios carnudos trouxeram algumas boas lembranças e acariciou sua boca com o polegar, pensando que talvez ela tivesse colocado mais silicone ali. Parecia estar com um inchaço e uma beleza extra.

– Não... – ela sussurrou. – Não é isso.

– Então, por que acha que há um fantasma?

Uma batida na porta soou e a voz de Stan veio abafada.

– Vocês dois estão transando ou eu posso ir para a cama agora?

Gregg franziu a testa e virou a cabeça em direção à janela. Aquela figura solitária continuou, foi banhada pelo luar... e desapareceu no ar rarefeito.

– Porque eu acabei de transar com ele – Holly disse. – Fiz sexo com Eliahu Rathboone.


CAPÍTULO 24

Do lado de fora, no corredor do porão de Xhex, John já estava marcando um caminho no chão de pedra. Indo e voltando. Indo e voltando. Enquanto ouvia absolutamente nada pela porta do quarto.

O que supunha ser uma coisa boa – esperava que não ouvir gritos ou palavrões significasse que o exame da doutora Jane não estava causando dor.

Mandou uma mensagem para Rehvenge e disse ao macho que Xhex havia sido encontrada e iriam tentar levá-la ao complexo. No entanto, não mencionou o porão. Com certeza, ela gostaria de manter isso em segredo, pois se Rehv soubesse, teria insistido em ir até lá depois de ter verificado que ela não estava na cabana de caça.

Depois de olhar o relógio, John passou as mãos outra vez por entre seus cabelos e se perguntou como machos vinculados como Wrath, Rhage e Z. lidavam com uma situação assim... Cristo, Z. teve que assistir Bella dando à luz... como diabos eles...

A porta foi aberta e ele virou-se, suas solas chiaram no chão.

A doutora Jane estava séria.

– Ela concordou em ir ao complexo. V. deve estar lá fora esperando no Escalade... Pode ver se ele está lá?

John gesticulou: Ela está bem?

– Ela passou por muita coisa. Vá ver se o carro está lá, ok? E vai precisar carregá-la, certo? Não a quero andando e não vou usar uma maca porque não precisamos fazer uma cena na rua.

John não se demorou nada ali e correu para fora do porão. Estacionado na rua, com luzes apagadas, mas o motor ligado, estava o carro de Vishous. Atrás do volante, havia um brilho laranja enquanto V. inalava sua cigarrilha.

O Irmão abaixou a janela.

– Vamos levá-la?

John assentiu uma vez e voltou a entrar correndo.

Quando chegou à porta do quarto de Xhex, estava fechada, então bateu suavemente.

– Um minuto – a doutora Jane gritou, sua voz abafada. – Ok, pode entrar.

Abriu e encontrou Xhex ainda de lado. Uma toalha havia sido enrolada ao redor dela e um lençol limpo caía da cabeça aos pés. Cristo... ele desejava que a pele dela oferecesse um pouco mais de contraste com todo aquele tecido branco.

John se aproximou e pensou que era estranho. Nunca viu a si mesmo como mais alto que ela antes. Agora parecia bem maior, e não só porque estava deitada.

Vou levantar você agora, gesticulou enquanto expressava as palavras com a boca.

Os olhos dela fixaram-se nos dele, e então ela assentiu e tentou sentar. Quando ela começou a lutar, ele se inclinou e a pegou em seus braços.

Não pesava o suficiente.

Quando ele se endireitou, a doutora Jane tirou as cobertas da cama rapidamente e as dobrou e moveu-se em direção à porta.

A rigidez no corpo de Xhex estava custando sua energia e ele queria que relaxasse, mas mesmo se tivesse voz para dizer isso, teria sido um desperdício. Ela não era do tipo que gosta de ser carregada sob nenhuma circunstância, por ninguém.

Pelo menos não... normalmente.

O corredor pareceu ter vinte quilômetros, e do lado de fora, os três metros que andou para atravessar a calçada em direção ao carro tornou-se duas vezes mais distante.

V. saltou de trás do volante e abriu a porta traseira.

– Ela pode se esticar um pouco aqui. Coloquei cobertores antes de sair.

John assentiu e foi deitá-la no suave ninho.

A mão dela o alcançou e travou no ombro dele.

– Fique comigo. Por favor.

Ele congelou por uma fração de segundo... então, usando sua força bruta, subiu no carro enquanto continuava a segurá-la. Entrar ali foi desajeitado... mas, em dado momento, colocou Xhex e a si mesmo contra a parede do interior do carro com suas pernas dobradas no joelho e ela em seu colo, abraçada contra seu peito.

As portas foram fechadas e então houve mais duas batidas e o rugido do motor.

Através das janelas escurecidas, luzes flamejavam e diminuíam enquanto atravessavam a cidade a toda velocidade.

Quando Xhex começou a tremer, envolveu seus braços ainda mais apertados ao redor dela, desejando que seu calor entrasse nela. E talvez tenha funcionado, porque depois de um momento, ela deitou a cabeça contra seu peito e o tremor diminuiu.

Deus... desejou tanto tê-la em seus braços. Tinha imaginado e visualizado cenários onde isso acontecia.

Nenhum deles era bem assim.

Inalou profundamente, planejando soltar um suspiro... e sentiu a essência que ele mesmo estava soltando. Um profundo cheiro apimentado. O tipo que sentia nos Irmãos quando suas shellans estavam por perto. O que significava que seu corpo estava demonstrando suas emoções e que não havia volta.

Maldição, não tinha como esconder a vinculação e nem detê-la. Desde sempre, desde que a viu pela primeira vez, começou a avançar pouco a pouco para mais perto daquele penhasco e ficou claro que tinha se lançado sobre o precipício quando ela se alimentou dele.

– John? – ela sussurrou.

Ele bateu levemente em seu ombro, para que soubesse que a tinha ouvido.

– Obrigada.

Colocou sua bochecha sobre o cabelo dela e assentiu com a cabeça para que pudesse sentir.

Quando se afastou de seu rosto, ele não ficou surpreso... ao menos não até perceber que ela queria olhar para ele.

Oh, Jesus, odiou a expressão em seu rosto magro. Estava assustada, aterrorizada, seus profundos olhos cinza eram da cor do asfalto.

Você está bem, gesticulou com a boca. Vai ficar bem.

– Estou? – Os olhos dela se fecharam com força. – Estou mesmo?

Se depender dele, com certeza ela ficará.

As pálpebras dela abriram de novo.

– Eu sinto muito – disse com voz rouca.

Pelo quê?

– Por tudo. Tratá-lo como tratei. Ser quem eu sou. Você merece algo muito melhor. Eu sinto... sinto muito mesmo.

Por fim, sua voz se emudeceu, e quando começou a piscar, voltou a deitar a cabeça e colocou sua mão bem em cima do coração dele.

Era em momentos assim que desejava desesperadamente conseguir falar. Afinal, não tinha como mexer o corpo dela de lá para cá para que pudesse pegar seu maldito bloco de papel.

No final, apenas a segurou com cuidado porque isso era tudo o que tinha para oferecer.

E não ia confundir as coisas. Uma desculpa não era uma declaração de amor e nem sequer era necessária, pois já a tinha perdoado de qualquer jeito. Mesmo assim, aquilo o ajudou de alguma forma. Ainda havia uma longa distância do modo como tinha desejado que as coisas fossem entre eles, mas era mil vezes melhor que nada.

John puxou o lençol para cima, sobre o ombro dela, então deixou sua cabeça cair para trás. Olhando através da janela escurecida, seus olhos procuraram as estrelas que pontilhavam o denso, negro e aveludado céu noturno.

Engraçado, sentia como se o céu estivesse contra seu peito ao invés de acima de todo o mundo.

Xhex estava viva. E em seus braços. E ele a estava levando para casa.

Sim. De modo geral, as coisas poderiam ter sido muito piores.


CAPÍTULO 25

Lash refletiria mais tarde sobre o fato de você nunca saber com quem vai cruzar no caminho. Simplesmente nunca se sabe como uma simples decisão de virar à esquerda ou à direita numa esquina mudaria as coisas. Algumas vezes as escolhas não importam. Outras... levam você a lugares inesperados.

Contudo, naquele momento, não tinha percebido isso ainda. Estava apenas fora, no campo, dirigindo, pensando sobre o tempo.

Apenas naquele que dizia respeito ao passado recente.

– Quanto falta?

Lash olhou ao longo do interior do Mercedes. A prostituta que tinha escolhido em um beco no centro da cidade tinha boa aparência e silicone suficiente para fazer filmes pornôs, mas o vício em drogas a tinha deixado ossuda e encolhida.

Desesperada também. Tão viciada que tinha custado apenas cem dólares para colocá-la no Mercedes a caminho de uma “festa”.

– Não está longe – respondeu, voltando a focar a estrada.

Estava tremendamente desapontado. Quando imaginou aquela cena em sua cabeça, Xhex estava amarrada e amordaçada no banco traseiro... muito mais romântico. Em vez disso, estava preso àquela vadia. Mas não podia lutar contra a realidade em que vivia: precisava se alimentar, seu pai estava esperando para fazer negócios e encontrar Xhex ia exigir mais tempo do que poderia dispor.

Dentre a pior de todas as concessões estava aquela vadia que mal servia como humana: muito menos útil do que uma vampira, mas esperava que seus ovários trabalhassem a seu favor, quando chegasse a hora de chupar seu sangue.

O ponto principal era: não tinha sido capaz de encontrar alguém de sua espécie que vestisse uma saia.

– Sabe? – disse ela. – Eu costumava ser modelo.

– Sério?

– Em Manhattan. Mas, sabe, aqueles bastardos... não se importam nada com você. Só querem te usar, sabe?

Certo. Primeiro, ela precisava esquecer a expressão “sabe?”. E segundo, até parece que ela estava fazendo algo muito melhor por conta própria em Caldwell.

– Gosto do seu carro.

– Obrigado – ele murmurou.

Ela se inclinou, os seios juntando-se sobre o corselete cor-de-rosa que estava vestindo. A coisa tinha manchas de gordura dos lados, como se não tivesse sido lavado há vários dias e cheirava a cerejas falsas, suor e fumaça de crack.

– Sabe? Gosto de você...

A mão dela foi até a coxa dele e depois a cabeça dela caiu em seu colo. Quando sentiu que estava procurando algo em torno de seu zíper, pegou um pedaço do emaranhado cabelo loiro esbranquiçado e puxou-a para cima.

Ela nem percebeu a dor.

– Não vamos começar isso agora – disse ele. – Estamos quase lá.

A mulher lambeu os lábios.

– Claro. Está bem.

Os campos aparados dos dois lados da estrada estavam banhados pelo luar e as casas de madeira que pontilhavam o caminho brilhavam sob a luz branca. Na maioria das casas havia uma luz na varanda e isso era tudo. Por ali, qualquer coisa que acontecesse depois da meia-noite era beeeeeem depois da hora de dormir.

E isso fazia parte do motivo pelo qual fazia sentido ter um posto ali, na terra da torta de maçã quente e bandeiras americanas.

Cinco minutos depois, pararam na casa da fazenda e estacionaram perto da porta da frente.

– Não tem ninguém aqui – disse ela. – Somos os primeiros?

– Sim. – Inclinou-se para desligar o motor. – Vamos...

O som de um clique ao lado de sua orelha o congelou.

A voz da prostituta agora estava séria:

– Saia do carro, seu filho da mãe.

Lash girou a cabeça e quase deu um beijo de língua no cano de uma nove milímetros. Na outra ponta da arma, as mãos da prostituta estavam firmes como pedra e os olhos queimavam com o tipo de inteligência sagaz que ele tinha que respeitar.

Que surpresa, ele pensou.

– Saia. Agora – ela rosnou.

Ele sorriu lentamente.

– Já disparou essa coisa antes?

– Muitas. – Ela nem piscou. – E não tenho qualquer problema com sangue.

– Ah. Bom para você.

– Saia...

– Então, qual é o plano? Ordenar que eu saia do carro. Atirar na minha cabeça e me deixar morrer. Pegar o Mercedes, meu relógio e minha carteira?

– E o que tiver no porta-malas.

– Ah, você precisa de um pneu sobressalente? Sabe, você pode comprar um em qualquer loja da Firestone ou da Goodyear. Só para saber.

– Acha que eu não sei quem é você?

Oh, tinha plena certeza de que ela não tinha a menor ideia.

– Por que não me diz?

– Já vi este carro. Já o vi. Comprei suas drogas.

– Uma cliente. Que coisa boa.

– Saia. Agora.

Quando ele não se moveu, ela deslocou a arma um centímetro para o lado e puxou o gatilho. Quando a bala estourou a janela atrás dele, ficou irritado. Uma coisa era brincar nos arredores. Outra, causar danos à propriedade.

Quando ela moveu a ponta da arma de volta entre seus olhos, ele se desmaterializou.

Tomando forma do outro lado do carro, viu quando ela surtou em seu assento, olhando ao redor, os cabelos crespos voando de um lado a outro.

Pronto para lhe ensinar uma coisa ou duas, abriu com força a porta dela e arrastou-a pelo braço. Obter o controle da arma e também dela foi questão de um momento, apenas um pegar e um agarrar. E então estava enfiando a arma na parte de trás da sua cintura e segurando-a em seu peito com uma chave de braço.

– O que... O que...

– Você disse para eu sair do carro – disse ele em seu ouvido. – Então eu saí. – Seu corpo esguio parecia fraco como uma folha ao vento, nada além de um tremor em sua roupa barata de prostituta. Em comparação com as batalhas físicas que tinha com Xhex, aquilo era como um único suspiro lutando contra uma tempestade de furacões. Que entediante.

– Vamos entrar – murmurou, descendo a boca até sua garganta e passando uma presa sobre sua jugular. – O outro convidado da festa deve estar esperando por nós.

Quando conseguiu se afastar um pouco dele, virou o rosto e ele sorriu, exibindo seu equipamento. Seu grito incitou uma coruja em cima de um galho, e para garantir que ela parasse com aquela coisa tipo Hitchcock, deu um tapa em sua boca com a palma da mão livre e forçou-a em direção à porta da frente.

Dentro, o lugar cheirava à morte, graças à indução da noite anterior e todo o sangue nos baldes. No entanto, havia uma vantagem nos resíduos. Ao acender as luzes e a garota dar uma breve olhada na sala de jantar, ficou rígida de terror e então desmaiou.

Melhor assim. Colocá-la estendida e amarrada na mesa ficou bem mais fácil.

Após recuperar o fôlego, levou os baldes para a cozinha, lavou-os na pia, limpou as facas e desejou que o Sr. D ainda estivesse por perto para cuidar da porcaria daquele serviço.

Estava colocando o jato móvel da torneira de volta no lugar quando se deu conta que o redutor que tinham transformado na noite anterior não estava a vista.

Levando os baldes à sala de jantar, ajustou-os sob os pulsos e tornozelos da prostituta e, em seguida, fez uma rápida verificação no térreo. Quando tudo o que conseguiu foi um monte de vazio, correu até o segundo andar.

A porta do armário do quarto estava aberta e havia um cabide na cama de onde uma camisa tinha sido tirada. A ducha no banheiro tinha água fresca escorrendo pelas laterais.

Mas que droga é essa?

Como diabos aquele cara conseguiu ir embora? Não havia carro, então a única outra opção era caminhar pela pista. E depois pegar uma carona. Ou fazer uma ligação direta numa dessas caminhonetes de fazendeiros.

Lash desceu e descobriu que a prostituta tinha voltado a si e estava lutando contra a mordaça em sua boca, os olhos agitados enquanto se contorcia na mesa.

– Não vai demorar – disse a ela, percorrendo com o olhar suas pernas finas. Ela tinha tatuagens nas duas, mas eram uma bela bagunça com nenhum tema definido, apenas manchas aleatórias... algumas talvez pudesse identificar, outras ficaram arruinadas por outras tatuagens ruins que foram sobrepostas.

Muitas borboletas feitas em néon, ele supunha. Talvez tivesse sido esse o plano, afinal.

Andou ao redor, indo para a cozinha e depois voltando para a sala de jantar e descendo o corredor novamente. O som agudo de saltos batendo contra a mesa e o ranger de pele nua desapareceu à distância. Perguntava-se onde diabos estava o novo recruta e por que seu pai estava atrasado.

Meia hora depois, ainda tinha um monte de nada a fazer e enviou uma pequena mensagem mental para o outro lado.

Seu pai não respondeu.

Lash subiu e fechou a porta, pensando que talvez não estivesse se concentrando corretamente porque estava chateado e frustrado. Sentado na cama, colocou as mãos sobre os joelhos e se acalmou. Quando seu batimento cardíaco ficou lento e constante, respirou fundo, chamou novamente... e nada.

Será que tinha acontecido alguma coisa com o Ômega?

Com um fluxo de emoções precipitadas, decidiu ir para o Dhunhd por si mesmo.

Suas moléculas se dissolveram bem, mas, quando tentou retomar forma no outro plano de existência, foi bloqueado. Impedido. Negado.

Foi como bater numa parede sólida, e enquanto recuava de volta ao quarto imundo na casa da fazenda, seu corpo absorveu o choque de uma onda de náuseas.

Que. Droga.

Quando seu celular vibrou, arrancou-o do bolso do paletó e franziu a testa quando viu o número.

– Alô? – disse ele.

A gargalhada que chegou através do aparelho era jovial.

– Oi, seu desgraçado idiota. Aqui é seu novo patrão. Adivinha quem acabou de ser promovido? Aliás, seu pai diz para não incomodá-lo mais. Não fez nada bem em pedir mulheres a ele... você deveria conhecer seu pai melhor do que isso. Oh, e eu tenho que matá-lo agora. Vejo você em breve!

O novo recruta começou a rir. Aquele som perfurou a cabeça de Lash através da conexão, até que a chamada foi encerrada.

Pela outra parte.


Não estava grávida. Ao menos não que a doutora Jane soubesse.

Mas graças a uma cortesia daquela pequena e feliz pausa na cidade do pânico, Xhex não se lembrava de nada da viagem ao complexo. A ideia de que havia sequer uma chance de que pudesse estar...

Afinal, não estava usando seus cilícios... e seu propósito era matar as tendências sympatho nela, inclusive a ovulação.

O que será que ela fez?

Certo, chega de pensar nisso, precisava parar. Deus era testemunha de que já tinha o suficiente com que se preocupar na categoria do “acontecendo de verdade”.

Respirando fundo, inalou o cheiro de John e concentrou-se na batida forte e firme do seu coração. Não levou muito tempo para que o sono a levasse com força, a combinação da exaustão, da falta de energia após a alimentação e da necessidade de se retirar de sua vida por um tempo a carregou para um estado de sono profundo, sem sonhos, na parte traseira do carro.

Acordou com a sensação de ser levantada e seus olhos se abriram.

John estava levando-a através de algum tipo de área de estacionamento que, considerando as paredes e o teto cavernoso, tinha que ser subterrâneo. A porta de aço maciço foi aberta por Vishous, que parecia estar com uma disposição surpreendente para ajudar, e do outro lado... era um pesadelo.

O longo e anônimo corredor tinha ladrilhos claros no chão, as paredes eram de blocos de concreto e havia um teto baixo com luzes fluorescentes.

O passado começou a deslizar naquele lugar, o filtro da experiência anterior substituiu o que estava realmente acontecendo por um pesadelo lembrado. Nos braços de John, seu corpo foi de fraco a maníaco e ela começou a lutar contra o aperto que a envolvia, lutando para se libertar. A comoção foi instantânea, as pessoas vieram correndo em sua direção, um som alto como uma sirene estridente...

Quando sentiu vagamente que seu maxilar doía, percebeu que estava gritando.

E, de repente, tudo o que viu foi o rosto de John.

De alguma forma ele conseguiu girar seu corpo de modo a ficarem frente a frente, olhos nos olhos, as mãos envolviam suas laterais e seus quadris. Com a visão daquele corredor substituída por seu olhar azul, as garras do passado foram quebradas e ela foi capturada por ele.

Não disse nada. Apenas ficou quieto e permitiu que ficasse olhando para ele.

Era exatamente o que ela precisava. Ela se prendeu em seus olhos e os usou para fechar seu cérebro.

Quando ele assentiu, ela acenou de volta e John começou a avançar novamente. De vez em quando, seu olhar se afastava para verificar onde estavam indo, mas sempre retornava.

Sempre voltava.

Havia vozes e um monte de portas abrindo e fechando, e em seguida um monte de azulejos verde-claro: estava numa sala de exame, com um lustre de luzes múltiplas acima dela e todo tipo de suprimentos médicos em armários de vidro.

Quando John a colocou sobre a mesa, perdeu o controle novamente. Seus pulmões se recusavam a fazer seu trabalho, como se o ar estivesse envenenado e seus olhos se agitavam olhando ao redor, encontrando gatilhos que disparavam o pânico, como equipamentos, instrumentos e a mesa...

– Certo, vamos perdê-la novamente. – O tom da doutora Jane era implacavelmente equilibrado. – John, venha aqui.

O rosto de John voltou a se aproximar e Xhex se prendeu em seu olhar.

– Xhex? – A voz da doutora Jane vinha mais à esquerda. – Vou lhe dar um sedativo...

– Nada de drogas! – A resposta saiu de sua boca. – Prefiro estar aterrorizada... a estar impotente...

Sua respiração estava dolorosamente entrecortada e cada movimento impotente de suas costelas a convenciam de que a vida devia ser mais sofrimento que alegria. Houve muitos desses momentos, muitas vezes a dor e o medo haviam assumido o controle, muitas sombras que não apenas esconderam, mas sugaram toda a iluminação da noite onde ela existia.

– Deixe-me ir... deixe-me ir embora... – Quando os olhos de John se arregalaram, Xhex percebeu que tinha encontrado uma das facas dele, tinha desembainhado e estava tentando colocá-la na palma de sua mão. – Por favor, deixe-me ir... Eu não quero mais ficar aqui... Acabe com isso para sempre, por favor...

Os muitos corpos paralisados em torno dela a deixaram um pouco mais focada. Rhage e Mary estavam no canto. Rehv estava lá. Vishous e Zsadist. Ninguém falava ou se mexia sequer um centímetro.

John tomou a adaga da mão dela e isso foi o que a fez chorar. Porque ele não ia usá-la. Não contra ela. Não agora... nem nunca.

E não tinha forças para fazer isso sozinha.

De repente, uma emoção tremenda ferveu em suas entranhas, e quando a pressão se expandiu e cresceu dentro de seu corpo, olhou ao redor freneticamente enquanto prateleiras começavam a chacoalhar e o computador mais ao canto a saltar sobre a mesa.

No entanto John estava atento. E foi rápido. Começou a gesticular com o mesmo tipo de urgência que ela estava sentindo e, um instante depois, todos saíram.

Exceto ele.

Tentando desesperadamente não explodir, olhou para suas mãos. Tremiam tanto que eram como as asas de uma mosca... e foi ao olhar para elas que chegou ao fundo do poço.

O grito ressoou fora dela e o som era totalmente estranho, muito agudo e horrorizado.

John manteve-se firme. Mesmo quando gritou novamente.

Ele não iria a lugar algum. Não estava agitado. Estava apenas... ali.

Agarrando o lençol que a circulava, apertou a coisa em torno de seu corpo, muito consciente de que estava desmoronando, que a fissura tinha sido atingida por aquela viagem ao fundo do corredor e agora ela estava dividida. De fato, sentia como se houvesse duas de si na sala, a louca em cima da mesa gritando a plenos pulmões e chorando lágrimas de sangue... e uma calma e sã no canto, observando John e a si mesma.

Será que as duas partes se uniriam outra vez? Ou será que ficaria sempre assim, partida em pedaços?

Sua mente escolheu o personagem observador sobre a histeria e retirou-se para aquele lugar silencioso, onde assistiu a si mesma chorando ao ponto da asfixia. As manchas de sangue que corriam pelas faces brancas como papel não a deixaram enjoada e nem os loucos olhos arregalados ou as batidas epilépticas de seus braços e pernas.

Ficou triste pela situação da fêmea que havia sido levada a tal extremo. Que procurava manter-se distante de todas as emoções.

A fêmea tinha nascido sob uma maldição. A fêmea tinha praticado o mal e o mal foi feito a ela. A fêmea tinha se endurecido, sua mente e emoções tornaram-se aço.

A fêmea estava errada em se fechar, errada sobre aquela autocontenção.

Não era um caso de força, como sempre dizia a si mesma.

Era estritamente sobrevivência... e ela simplesmente não conseguia suportar mais.


CAPÍTULO 26

– Você fez... sexo. Com Eliahu Rathboone.

Gregg afastou Holly e encarou seu rosto, pensando que, com certeza, ela tinha perdido a cabeça... bem, perdeu o pouco do que tinha. Então, eram dois, porque estava claro que aquilo que tinha acabado de “ver” lá fora era fruto de sua imaginação.

Só que os olhos dela eram totalmente sinceros e sem malícia.

– Ele veio até mim. Eu já tinha adormecido...

Outra rodada de batidas na porta a interrompeu e, em seguida, veio a voz de Stan:

– Olá? Em que quarto vou...

– Mais tarde, Stan – Gregg interrompeu. Quando as queixas diminuíram, os passos no corredor se afastaram para o quarto de Holly e uma porta foi batida.

– Venha aqui – puxou Holly para a cama. – Sente-se e me diga... o que diabos acha que aconteceu?

Focou em seus lábios inchados enquanto ela falava.

– Bem, tinha acabado de sair do chuveiro. Estava exausta e deitei na cama para descansar meus olhos antes de vestir minha camisola. Devo ter adormecido... porque a próxima coisa que percebi foi que estava tendo aquele sonho...

Oh, pelo amor de Deus.

– Holly, só porque teve um pesadelo, não significa que...

– Eu não terminei – retrucou. – E não era um pesadelo.

– Pensei que estivesse em pânico.

– A coisa assustadora veio depois. – Arqueou uma sobrancelha. – Vai me deixar falar?

– Tudo bem. – Mas só pela esperança de que ela fizesse outra coisa com a boca mais tarde. Caramba, seus lábios pareciam deliciosos... – Faça isso.

– Comecei a sonhar que aquele homem tinha entrado em meu quarto. Era muito alto e musculoso... um dos maiores homens que já vi. Estava vestido de preto e ficou parado sobre a minha cama. Cheirava muito bem... e olhou para mim... – Sua mão envolveu seu pescoço e deslizou lentamente para baixo entre seus seios. – Tirei a toalha e puxei-o para cima de mim. Foi... indescritível....

Isso era bom. Porque de repente não queria ouvir mais nada sobre o que tinha acontecido em seguida.

– Ele me possuiu – mais daquela coisa de “mão no pescoço” – como eu nunca fui possuída antes. Ele era tão...

– ... bem dotado como uma mangueira de incêndio e a possuiu de doze maneiras diferentes? Parabéns. Seu subconsciente deveria dirigir um filme pornô. O que isso tem a ver com Eliahu Rathboone?

Holly o encarou... e depois puxou a gola da camisola para um lado:

– Porque quando acordei, eu tinha isso – apontou para o que certamente parecia ser um chupão no pescoço. – Eu realmente tive relações sexuais.

Gregg franziu a testa com força.

– Você... como sabe?

– Como acha que eu sei?

Gregg limpou a garganta.

– Você está bem? – Colocou a mão em seu braço. – Quero dizer... ah, quer chamar a polícia?

O riso de Holly foi baixo e dolorosamente sexy.

– Oh, foi consensual. Seja lá o que tenha sido. – Sua expressão perdeu o fulgor. – Esse é o ponto... não sei o que foi. Pensei que estivesse sonhando. Não achei que fosse real até que...

Até que encontrar uma evidência inegável de ter sido o contrário.

Gregg acariciou seus longos cabelos loiros por cima do ombro.

– Tem certeza de que está tudo bem?

– Acho que sim.

Cara, não precisou nem sequer de um segundo para decidir.

– Bem, é isso. Estamos indo embora amanhã.

– O quê? Oh, meu Deus, Gregg... não quero causar problemas... – Ela franziu a testa. – Talvez... talvez eu também tenha sonhado a parte em que acordei. Tomei outro banho... talvez nada disso tenha acontecido de verdade.

– Dane-se, vou ligar para Atlanta pela manhã e dizer a eles que voltamos atrás. Não vou ficar onde você não esteja segura.

– Meu Deus... quero dizer, isso é muito cavalheiro da sua parte, mas... eu não sei. Tudo está tão confuso, e agora eu me pergunto se simplesmente vou me sentir melhor de manhã. Estou realmente confusa... aquilo foi estranho. – Seus dedos se ergueram até suas têmporas e começou a esfregá-las em círculos, como se a cabeça estivesse doendo. – Vou dizer que o que aconteceu foi consensual, a cada passo do caminho...

– Sua porta estava trancada? – Queria uma resposta para a pergunta, mas também não precisava ouvir sobre o fantasma bem dotado.

– Sempre tranco a porta de um quarto de hotel antes de tomar um banho.

– Janelas?

– Fechadas. Acho que estavam trancadas. Não sei.

– Bem, você fica comigo esta noite. Estará segura aqui.

E não apenas porque não iria dar em cima dela agora. Levava uma arma. Sempre. Tinha licença para usar a coisa e sabia como fazer isso: quando as pessoas começaram a ser alvejadas no tráfego de Los Angeles, decidiu andar armado.

Juntos, estenderam-se sobre a cama.

– Vou deixar a luz acesa.

– Está tudo bem. Apenas tranque a porta.

Ele assentiu e saiu da cama, fechando o cadeado e também a pequena corrente, depois fez uma passagem rápida pelas janelas para inspecionar as travas. Quando deitou, ela se aninhou na curva de seu braço e suspirou.

Inclinou-se, tirou o edredom debaixo de suas pernas e o estendeu sobre eles, desligou a luz e se acomodou nos travesseiros.

Pensou no homem lá fora caminhando pelo jardim e quase rosnou. Mas. Que. Porcaria. Poderia ser um morador do local com uma chave-mestre ou algum funcionário que conseguiu forçar a fechadura.

Supondo que nada tivesse acontecido. Algo pelo qual tinha cada vez menos certeza...

Que seja. Estavam indo embora pela manhã e era isso.

Franziu a testa na escuridão.

– Holly?

– Sim?

– Por que você acha que foi Rathboone?

Ela deu um grande bocejo.

– Porque se parecia exatamente com o retrato na sala de estar.


CAPÍTULO 27

Na sala de exames, na clínica subterrânea, John estava em pé diante de Xhex e se sentiu totalmente impotente para ajudá-la. Quando ela se sentou gritando na mesa de aço inoxidável, seus braços tensos paralelos ao corpo, segurando no lençol, seu rosto esticado, seus lábios abertos, lágrimas vermelhas escorrendo de seus olhos e caindo em suas faces brancas... e ele não podia fazer nada sobre isso.

Sabia que ela estava passando por um território difícil. Sabia que não poderia alcançá-la no fundo do poço em que se encontrava – ele próprio já esteve numa situação assim. Sabia exatamente o que era tropeçar, cair e sofrer a agonia do duro impacto... mesmo que tecnicamente seu corpo não tenha ido a lugar algum.

A única diferença era que ela tinha uma voz para dar asas a sua dor.

Enquanto seus ouvidos zumbiam e seu coração se partia por ela, permaneceu firme contra a força do vendaval que ela emanava. Afinal, sabia que as palavras “estar aqui” e “ouvir” tinham significados muito próximos. Sendo sua testemunha naquele local, ele a ouvia e estava ali por ela, porque isso é tudo o que se pode fazer quando alguém desmorona.

Mas, Deus, doía ver o quanto ela sofria. Aquilo doía e o deixava mais focado. O rosto de Lash aparecia como um fantasma, adquirindo forma física no olhar mental de John. Enquanto ela gritava e gritava, jurou vingança até que seu coração não pulsasse mais com sangue, mas com a necessidade de vingança.

Então, Xhex respirou fundo várias vezes. E mais algumas vezes.

– Acho que já parei – disse com dificuldade.

Ele esperou um momento para ter certeza. Quando ela assentiu, pegou o bloco de papel e escreveu rapidamente.

Quando mostrou a folha para ela, seus olhos se voltaram para a escrita e precisou de algumas tentativas para entender o significado.

– Posso lavar o meu rosto antes?

Ele assentiu e foi até a pia de aço inoxidável. Deixando correr a água fria, pegou uma toalha limpa dentre uma pilha e a molhou. Quando Xhex estendeu as mãos, ele entregou a toalha úmida e assistiu enquanto ela a pressionava no rosto lentamente. Era difícil vê-la tão frágil comparado com o modo como a havia conhecido: forte, poderosa e destemida.

O cabelo dela havia crescido e começava e encaracolar nas pontas, sugerindo que se ela não o cortasse teria ondas de fios grossos. Deus, queria tocar aquela suavidade.

John baixou os olhos em direção à mesa e os arregalou de repente. O lençol estava retorcido embaixo dela... e havia uma mancha escura na toalha ao redor de seus quadris.

Ele inalou profundamente, sentiu o cheiro de sangue fresco e ficou surpreso de não ter percebido antes. Mas também, estava extremamente distraído.

Oh... Cristo. Ela estava sangrando...

Ele a tocou levemente nos braços e fez um movimento labial dizendo doutora Jane.

Xhex concordou e disse:

– Sim. Vamos acabar com isso.

Frenético, John se lançou pela porta da sala de exame. Fora, no corredor, havia uma legião de rostos preocupados, sendo a doutora Jane a líder do grupo.

– Ela está pronta para mim? – Quando John deu um passo para o lado e fez um gesto de urgência, a doutora avançou.

No entanto, ele a deteve. De costas para Xhex, gesticulou: Está machucada em algum lugar. Está sangrando.

A doutora Jane colocou a mão em seu ombro e fez uma manobra ao girá-lo para que trocassem de lugar.

– Eu sei. Por que não espera lá fora? Vou cuidar bem dela. Ehlena? Importa-se de me acompanhar? Vou precisar de mais duas mãos.

A shellan de Rehvenge foi para a sala de exame e John viu por cima da cabeça da médica quando a fêmea começou a lavar as mãos.

Por que Vishous não está ajudando?, gesticulou.

– Estamos apenas fazendo um ultrassom para nos certificarmos de que ela está bem. Não estou fazendo uma cirurgia ou coisa assim. – Jane sorriu de uma maneira profissional... o que foi estranhamente assustador. E, então, a porta foi fechada em seu rosto.

Olhou em volta para todos os outros. Todos os machos foram deixados no corredor. Apenas fêmeas estavam ali dentro com ela.

Sua mente começou a se agitar e não levou muito tempo para chegar a uma conclusão que não poderia estar certa.

Uma mão pesada pousou em seu ombro e a voz de V. soou baixa:

– Não, tem que ficar aqui fora John. Vamos lá.

Foi quando percebeu que sua mão havia agarrado a maçaneta da porta. Olhando para baixo, obrigou-se a soltar... e teve que enviar o comando mais duas vezes.

Não havia mais gritos. Nenhum som.

Ele esperou. E esperou. E caminhou e esperou um pouco mais. Vishous acendeu outra cigarrilha. Blay o acompanhou, acendendo um comum. Qhuinn tamborilava sobre suas coxas. Wrath acariciava a cabeça de George enquanto o golden retriever observava John com olhos marrons e bondosos.

Por fim, a doutora Jane colocou a cabeça para fora da porta e procurou por seu parceiro.

– Preciso de você.

Vishous apagou o cigarro na sola da bota e guardou a ponta no bolso de trás.

– Vamos entrar em cirurgia?

– Sim.

– Deixe-me trocar de roupa.

Quando o macho se dirigiu ao vestiário, o olhar da doutora encontrou o de John.

– Vou cuidar muito bem dela...

O que há de errado? Por que ela está sangrando?

– Vou cuidar dela.

E fechou a porta outra vez.

Quando V. retornou, tinha todo o aspecto de um guerreiro, mesmo estando sem as roupas de couro, e John esperava desesperadamente que a competência no campo de batalha do cara fosse igual na área médica.

Aqueles olhos de diamante brilharam e deu uma palmada no ombro de John antes de entrar silenciosamente na sala de exame... e era óbvio que agora funcionava como sala de cirurgia.

Quando a porta se fechou, John sentiu vontade de gritar.

Ao invés disso, continuou caminhando, indo e vindo no corredor. Indo e vindo. Indo... e vindo. Em dado momento, os outros se dispersaram, dirigindo-se a uma das salas de aula nas proximidades, mas não conseguiria juntar-se a eles.

Cada vez que passava pela porta fechada, aumentava o caminho a percorrer, até que a viagem o levou para a saída, para a garagem e depois de volta ao vestiário. Suas pernas longas consumiam a distância, transformando mais cinquenta metros no equivalente a poucos centímetros.

Ou pelo menos era o que parecia.

No que deveria ser sua quinta viagem ao vestiário, John deu uma volta e viu-se na frente da porta de vidro do escritório. A mesa, os armários e o computador pareciam normais de uma maneira implacável, e encontrou um extraordinário conforto nos objetos inanimados.

Mas a tranquilidade foi perdida quando continuou a andar outra vez.

Com sua visão periférica, viu as rachaduras na parede de concreto ao longo do caminho, as quais provinham de uma única fonte de impacto.

Lembrou-se da noite que tinha acontecido. Aquela noite horrível.

Ele e Tohr estavam sentados juntos no escritório, ele fazendo a lição da escola, o Irmão tentando manter a calma enquanto ligava para casa consecutivamente. Cada vez que Wellsie não atendia, toda vez que o correio de voz atendia, a tensão aumentava... até que Wrath apareceu com a Irmandade atrás dele.

A notícia de que Wellsie tinha morrido era trágica... mas Tohr reagiu apenas quando soube o “como”: não porque estava grávida de seu primeiro filho, mas porque um redutor a matou a sangue frio. Assassinou-a. Tirando sua vida e a de seu bebê.

Foi aquilo que causou aquelas marcas.

John se aproximou e passou as pontas dos dedos pelas finas linhas de concreto. A fúria foi tão intensa, Tohr literalmente explodiu como se fosse uma supernova, a sobrecarga emocional o desmaterializou para algum outro lugar.

John nunca soube para onde tinha ido.

Uma sensação de estar sendo observado o fez levantar a cabeça e olhar por cima do ombro. Tohr estava do outro lado da porta de vidro, em pé no escritório olhando-o fixamente.

Os olhares dos dois se encontraram e foi de macho para macho, não de mais velho para mais jovem.

John tinha uma idade diferente agora. E como tantas outras coisas naquela situação, aquilo não voltaria atrás.

– John? – A voz da Dra. Jane veio de longe no corredor e ele virou-se e correu para ela.

Como ela está? O que aconteceu? Ela está...

– Ela vai ficar bem. Está voltando da anestesia. Eu a manterei na cama pelas próximas seis horas mais ou menos. Soube que ela se alimentou de você? – Ele mostrou seu pulso e a doutora assentiu. – Bom. Eu agradeceria se você permanecesse com ela, para o caso dela precisar de novo.

Como se fosse estar em outro lugar.

Quando John entrou na sala de exame, avançou nas pontas dos pés, não queria perturbar ninguém, mas ela não estava ali.

– Foi movida para o outro quarto – V. disse por cima do aparelho de esterilização.

Antes de sair pela porta do fundo, ficou olhando o resultado do que foi feito com Xhex. Havia uma alarmante pilha de gazes ensanguentadas no chão e mais sangue na mesa sobre o espaço que ela ocupava. O lençol e a toalha que a envolviam estavam amassados de um lado.

Tanto sangue. E tão fresco.

John assobiou alto para que V. olhasse.

Alguém pode me dizer que diabos aconteceu aqui?

– Pode conversar com ela sobre isso. – Enquanto o Irmão pegava um saco laranja de lixo biológico e começava a recolher as gazes usadas, V. fez uma pausa, mas não encontrou o olhar de John. – Ela vai ficar bem.

E foi então que John teve certeza.

Por pior que imaginasse como ela tinha sido tratada, havia sido ainda pior. Muito pior.

Em termos gerais, quando havia lesões sofridas em combate ou em campo, a informação era passada sem tanta ponderação: fêmur quebrado, costelas esmagadas, facadas. Mas uma fêmea entrou, foi examinada sem machos presentes e ninguém falou uma palavra referente à intervenção cirúrgica?

Não é porque os redutores são impotentes que não podem fazer outras coisas com...

Uma brisa fria passou pela sala de cirurgia fazendo V. erguer a cabeça outra vez.

– Um conselho, John. Eu manteria as suposições para si. Concluindo que quer ser a pessoa que matará Lash, certo? Não faz sentido que Rehv ou os Sombras, por mais que eu os respeite, façam aquilo que é seu por direito.

Meu Deus, o Irmão era muito legal, John pensou.

Assentido uma vez com a cabeça, foi até o quarto de Xhex, pensando que aqueles machos não eram os únicos motivos pelo qual iria refletir profundamente sobre o assunto. Xhex também não precisava saber até onde estava disposto a chegar.


Xhex sentiu como se alguém tivesse estacionado um ônibus em seu útero.

A pressão era tanta, que levantou a cabeça para verificar se seu corpo havia inchado até as dimensões de uma garagem.

Não. Plano como sempre.

Deixou a cabeça cair outra vez.

De alguma maneira, não podia acreditar onde estava agora: no pós-operatório. Deitada em uma cama com suas pernas, braços e cabeça ainda imobilizados... e o vazamento em sua parede uterina estancado.

Quando estava sob os efeitos de sua fobia médica, não conseguia discernir o que seu cérebro marcava como mortal. Para ela, naquele estado enlouquecido, não estava em um ambiente seguro, mesmo rodeada de pessoas que conhecia e que podia confiar.

Agora, depois de ter passado pelo fogo, o fato de estar sã e salva lhe proporcionou uma estranha dose de endorfina.

Houve uma batida suave e sabia quem era pelo aroma que vinha por baixo da porta.

Tocando o cabelo, perguntou-se como diabos estaria sua aparência e decidiu que era melhor não saber.

– Entre.

A cabeça de John Matthew apareceu e suas sobrancelhas estavam erguidas como quem dissesse “como você está?”.

– Estou bem. Estou melhor. Ainda zonza por causa dos remédios.

John deslizou pela porta, entrou e se apoiou contra a parede, colocando as mãos nos bolsos e cruzando sua pesada bota sobre a outra. Sua camiseta era branca e simples, o que provavelmente era um bom sinal, considerando que já esteve manchada de sangue de redutor.

Cheirava como um macho deveria. Sabonete e suor limpo.

Tinha a aparência que um macho deveria ter. Alto, largo e mortal.

Deus, tinha mesmo perdido a cabeça daquele jeito na frente dele?

– Seu cabelo está mais curto – ela disse sem nenhuma razão específica.

Desvencilhou uma de suas mãos e acariciou o cabelo de maneira desajeitada. Com a cabeça inclinada para baixo, os poderosos músculos que vinham de seus ombros até seu pescoço se flexionavam sob sua pele dourada.

De repente, Xhex se perguntou se alguma vez voltaria a ter relações sexuais.

Foi um pensamento estranho, com certeza. Considerando como havia passado as últimas...

Ela franziu a testa.

– Por quantas semanas eu estive fora?

Ele sustentou quatro dedos e depois fez um movimento como um beliscão.

– Quase quatro?

Quando ele assentiu, ela endireitou cuidadosamente a dobra do lençol que passava por seu peito.

– Quase... quatro.

Bem, os humanos a prenderam por meses antes de conseguir escapar. Apenas quatro semanas deveria ser bem fácil de superar.

Ah, mas ela não estava pensando direito, estava? Não havia nada que “superar”. Tudo havia “acabado”.

– Quer sentar? – ela disse, indicando uma cadeira ao lado da cama. A coisa era padronizada e tradicional, o que significava que era tão confortável quanto uma facada, mas não queria que ele saísse.

As sobrancelhas de John se ergueram novamente e ele concordou com a cabeça enquanto se aproximava. Acomodando seu enorme corpo no pequeno assento, tentou primeiro cruzar as pernas na altura dos joelhos e depois na dos tornozelos. Terminou sentando estirado, com suas botas debaixo da cama e seus braços sobre o encosto da cadeira.

Ela brincou com o maldito lençol.

– Posso perguntar uma coisa?

Com sua visão periférica, ela o viu assentir, depois se endireitar e pegar um bloco de papel e sua caneta no bolso de trás.

Clareando a garganta, imaginava como exatamente expressar sua pergunta.

No final, se rendeu e fez isso como se fosse algo impessoal.

– Onde Lash foi visto pela última vez?

Ele assentiu e se inclinou sobre o papel, escrevendo rapidamente. Enquanto suas palavras tomavam forma na página branca, ela o observou... e percebeu que não queria que ele fosse embora. Ela o queria ali, sempre ao seu lado.

Segura. Ela estava realmente segura com ele por perto.

Ele se endireitou e estendeu o papel. Então pareceu congelar.

Por alguma razão, ela não conseguia focar no que tinha escrito e se esticou.

John baixou o braço lentamente.

– Espere, ainda não li. Você poderia... o quê? O que há de errado? – Maldição, agora seus olhos se recusavam a vê-lo claramente.

John se inclinou para um lado e ela ouviu um suave som de papel. Depois um lenço foi dado a ela.

– Oh, pelo amor de Deus. – Pegou o que ele ofereceu e pressionou contra os dois olhos. – Odeio ser uma garota. Realmente desprezo ser uma garota.

Quando começou um discurso sobre estrogênio, saias, esmalte rosa e sobre malditos saltos altos, John entregava um lenço seguido de outro, recolhendo os manchados de vermelho que ela ia usando.

– Eu nunca choro, sabia? – Ela o encarou. – Nunca.

Ele assentiu. E colocou outro maldito lenço em sua mão.

– Jesus Cristo. Primeiro eu dou um ataque de gritos, agora choro sem sentido. Poderia matar o Lash só por isso.

Um sopro de vento gelado entrou no quarto e Xhex olhou para John... apenas para recuar. Havia passado de compassivo para sociopata em uma fração de segundos. Ao ponto de ela ter quase certeza de que ele não havia percebido que tinha liberado suas presas.

Sua voz tornou-se um sussurro, e o que ela realmente queria perguntar saiu:

– Por que você ficou? Na sala de operação, mais cedo. – Desviou o olhar, focando-se nas manchas vermelhas que havia feito no lenço que tinha acabado de usar. – Você ficou e você... simplesmente parecia compreender.

No silêncio que se seguiu, deu-se conta de que conhecia muito bem o contexto de sua vida: com quem morava, o que ele fazia no campo de batalha, como lutava, onde passava seu tempo. Mas não sabia nada específico. Seu passado era um buraco negro.

E por alguma razão desconhecida, precisava de iluminação sobre isso.

Caramba, sabia exatamente o porquê: naquele incandescente horror que enfrentou na sala de operações, a única coisa que a ligava à terra tinha sido ele e era estranho, mas sentia-se ligada a John de uma maneira vital agora. Ele a viu em seu pior estado, em seu momento mais fraco e mais insano e não desviou o olhar. Não fugiu, não julgou e não se queimou.

Era como se o calor de sua fusão os derretesse juntos.

Isso era mais que emoção. Era uma questão de alma.

– Que inferno aconteceu com você John? No seu passado?

Suas sobrancelhas se estreitaram com força e seus braços foram cruzados sobre seu peito como se agora fosse ele quem tentasse descobrir como se expressar. Mas sua grade emocional de repente se iluminou com todo tipo de coisas obscuras e ela teve a impressão de que ele estava pensando em escapar.

– Olha, não quero pressioná-lo. – Droga. Que droga. – E se quer negar que não houve nada além de ótimo em sua vida, vou aceitar e seguir em frente. Mas é só que eu... a maioria das pessoas teria pelo menos vacilado. Que inferno. Até a doutora Jane me tratou com uma dose extra de cuidado depois que enlouqueci. Mas você? Apenas ficou firme. – Encarou seu rosto tenso e fechado. – Olhei dentro de seus olhos, John, e havia mais do que uma compreensão hipotética neles.

Depois de uma longa pausa, ele virou uma nova página em branco do bloco e escreveu com rapidez. Quando mostrou o que tinha escrito, conseguia entender o lado dele, mas quis soltar um palavrão:

Diga-me o que eles fizeram na sala de operações. Diga-me primeiro o que havia de errado com você.

Ah, sim o clássico toma lá, dá cá.


Só levou cerca de uma hora para Lash transportar a si mesmo, a prostituta e o Mercedes da fazenda de volta à casa na cidade. Estava em pleno modo de sobrevivência, se movendo rápida e decisivamente, fazendo apenas uma parada no caminho.

E esta parada foi em uma cabana na floresta onde pegou alguns itens importantes para a missão.

Quando entrou na garagem da casa, esperou até que a porta estivesse fechada para sair e arrastar a prostituta do banco traseiro. Enquanto carregava seu corpo retorcido até a cozinha, lançou uma boa dose daquilo com que havia aprisionado Xhex.

Contudo, a barreira mágica não era para a siliconada.

O Ômega sabia onde estavam seus redutores deste lado. Podia senti-los como um eco de sua própria existência. E seguindo essa linha de raciocínio, assassinos poderiam encontrar seus colegas com facilidade e acertar as contas.

Então a única chance que Lash tinha de se esconder era encarcerar a si mesmo. O Sr. D não sabia que Xhex estava naquele quarto. A confusão era óbvia todas as vezes que o mandava deixar comida lá.

Claro, a grande questão era se a camuflagem manteria Ômega à distância. E por quanto tempo.

Lash jogou a prostituta dentro do banheiro com o cuidado e preocupação que teria demonstrado com uma mochila barata cheia de roupa suja. Quando ela aterrissou com força na banheira e gemeu contra a fita adesiva sobre a boca, ele voltou ao carro.

Tirar as coisas do carro levou aproximadamente vinte minutos e colocou a porcaria toda no chão de concreto: sete armas de cano longo. Uma sacola de mercado cheia de dinheiro. Um quilo e meio de explosivo plástico C4. Dois detonadores remotos. Uma granada de mão. Quatro automáticas. Munição. Munição. Munição.

Ao chegar às escadas e apagar a luz do porão, foi até à porta dos fundos, abriu-a e colocou a mão para fora. O ar fresco noturno infiltrou o escudo, mas sua mão sentiu a restrição. Era forte... mas precisava ser ainda mais forte.

Olááá, vadiazinha assustada.

Lash fechou a porta, trancou e foi para o banheiro.

Estava muito concentrado ao sacar sua faca, cortar as ataduras dos pulsos dela e...

Ela se debateu até que Lash precisou dar um golpe em sua cabeça, nocauteando-a com força. Corta. Corta. Corta. Fez três cortes profundos em seus pulsos e pescoço e sentou para observar o sangue escorrer num lento gotejar.

– Vamos lá... sangre, vadia, sangre.

Quando olhou seu relógio, pensou que talvez deveria tê-la mantido consciente, porque isso garantiria um pulsar maior na pressão sanguínea. E encurtaria aquele espera inútil enquanto ela sangrava.

Observando o processo, não tinha ideia do quanto ainda tinha que sangrar, mas a piscina vermelha embaixo dela aumentava e seu corpete rosa começava a escurecer.

O pé da Lash batia no chão a mil por hora enquanto o tempo passava... e então percebeu que a pele dela não estava apenas pálida, mas cinza, e o sangue já não estava aumentando nas paredes da banheira. Dando o assunto por encerrado, cortou o pequeno corpete, expondo um horrível par de implantes, e lhe abriu o peito com um golpe da faca, enterrando a lâmina diretamente em seu peito.

O próximo corte foi em sua própria carne.

Segurando seu pulso sobre o buraco que havia aberto, viu gotas pretas caírem sobre o coração imóvel. Bem, não tinha certeza do quanto deveria dar e preferiu errar pelo excesso. Em seguida, concentrou energia em sua mão. Lash forçou as moléculas do ar a girar formando um tornado, até que transformou essa unidade num poder cinético que podia controlar.

Lash olhou para a prostituta, seu corpo todo violado, a maquiagem borrada em sua face; o cabelo asqueroso era mais uma peruca do que algo que se esperava ver nas ruas.

Precisava que aquilo funcionasse. Apenas manter a barreira mágica e uma pequena bola de fogo em sua mão já drenava muito de sua energia.

Aquilo precisava muito funcionar.

Lançou uma explosão que fez a cavidade torácica e os pulmões mortos se sacudirem como cauda de peixe contra as laterais da banheira. Quando o brilho da luz se apagou e dispersou, ele esperou... rezando para...

O suspiro que ela liberou foi horrível. E também uma dádiva.

Ficou fascinado quando o coração começou a bombear e o sangue negro foi absorvido pela carne aberta da caixa torácica, aquela reanimação fez com que seu pênis se contraísse de excitação. Isso era poder, pensou. Dane-se as porcarias que o dinheiro podia comprar.

Era mesmo um deus, assim como seu pai.

Lash sentou-se sobre os calcanhares e olhou a cor retornar à pele dela. Enquanto a vida retornava, sua mão se curvou contra a borda da banheira e a musculatura atrofiada de suas coxas tremeu.

O próximo passo era algo que não entendia completamente, mas que não questionaria. Quando ela parecia estar definitivamente voltando ao mundo dos vivos, ele estendeu as mãos e arrancou o coração do peito dela.

Mais arfadas. Mais engasgos. Blá, blá, blá.

Estava fascinado com o que tinha realizado, especialmente quando colocou a palma de sua mão sobre o peito dela e ordenou que a carne se reparasse por conta própria. E veja só, toda sua pele e ossos obedeceram e ela estava mais uma vez como era antes.

Só que melhor. Porque era útil para ele agora.

Lash estendeu a mão e ligou a ducha, o jato de água golpeou o corpo e rosto da mulher, seus olhos piscaram contra a chuva fria, suas mãos se agitavam de maneira deplorável.

Quanto tempo esperaria agora? Quanto tempo até que pudesse ver se estava mesmo a um passo mais próximo do que realmente o sustentaria?

Uma onda de esgotamento subiu por sua coluna vertebral e enevoou seu cérebro, e então ele caiu sobre os gabinetes que havia embaixo da pia. Fechando a porta com um chute, apoiou os antebraços sobre os joelhos e continuou testemunhando a prostituta se agitar.

Tão fraco.

Extremamente fraco.

Deveria ter sido sua Xhex. Deveria ter feito isso com ela e não com uma prostituta humana qualquer.

Colocando as mãos no rosto, baixou a cabeça enquanto a euforia o abandonava. Não era para ser assim. Não era isso que tinha planejado.

Fugindo. Sendo caçado. Debatendo-se no mundo.

Que diabos iria fazer sem seu pai?


CAPÍTULO 28

Enquanto John esperava Xhex responder à sua pergunta, concentrou-se nas palavras que tinha escrito, traçando-as com a caneta, escurecendo-as enquanto passava a caneta sobre elas outra vez.

Provavelmente não deveria estar fazendo perguntas, considerando o estado dela, mas precisava de algo em troca. Se fosse se despir, iria expor seus segredos não muito legais. Não poderia ser o único a ficar nu daquele jeito.

E também queria muito saber o que estava acontecendo com ela, e Xhex era a única que poderia dizer isso a ele.

Quando o silêncio continuou, tudo o que conseguia pensar era... droga, ela estava fechando a porta na cara dele. De novo. De certa forma, não era uma surpresa tão grande assim, então não deveria se importar. Deus era testemunha de que já tinha sido rejeitado por ela muitas vezes.

A realidade era que parecia outra morte a ser encarada...

– Vi você. Ontem.

A voz dela fez com que erguesse a cabeça.

O quê?

– Ele me manteve presa naquele quarto. Vi você. Entrou e foi até a cama. Foi embora com um travesseiro. Eu estava... ao seu lado durante todo o tempo em que esteve lá.

A mão de John se ergueu até seu próprio rosto e ela sorriu um pouco.

– Sim, eu toquei seu rosto.

Jesus Cristo...

Como?

– Não tenho certeza exata de como ele fez isso. Mas foi como conseguiu me capturar no primeiro momento. Estávamos todos naquela caverna, onde Rehv estava sendo mantido na colônia. Os sympathos entraram e Lash me pegou... tudo aconteceu tão rápido. De repente, fiquei sem equilíbrio e comecei a ser arrastada, mas não conseguia lutar e ninguém conseguia me ouvir gritando. É como um campo de força. Se você está dentro e tenta violá-lo, o choque é doloroso e rápido... só que é mais que uma simples aversão. Há uma barreira física. – Ergueu sua mão e empurrou o ar. – Uma trama. No entanto, a coisa mais estranha é que pode haver outras pessoas no mesmo espaço. Como quando você entrou.

John percebeu vagamente que suas mãos doíam por alguma razão. Olhando abaixo, viu que as havia fechado sobre os punhos e que o bloco de papel estava perfurando a carne. Assim como a caneta com a qual estava escrevendo.

Virando uma nova página, rabiscou:

Gostaria muito de saber que você estava lá. Teria feito alguma coisa. Juro que não sabia.

Quando leu o que tinha escrito, Xhex o alcançou e colocou uma das mãos em seu antebraço.

– Eu sei. Não é sua culpa.

Mas parecia. Ter estado bem ali com ela e não ter nem ideia de que estava...

Oh. Droga.

Escreveu rápido, depois mostrou.

Ele voltou? Depois que estivemos lá?

Quando Xhex balançou a cabeça, seu coração começou a bater de novo.

– Passou por lá dirigindo, mas não parou.

Como você escapou?, gesticulou com as mãos, sem pensar.

Enquanto procurava por uma nova página, ela disse:

– Como eu saí? – Quando ele assentiu, ela riu. – Sabe, vai ter que me ensinar a linguagem de sinais.

Ele piscou. Então fez com a boca: certo.

– E não se preocupe. Aprendo rápido. – Respirou profundamente. – A barreira foi forte o suficiente para me prender ali desde o momento em que me capturou. Mas, então, você foi até lá e saiu e... – Ela franziu a testa. – Foi você quem fez aquilo com aquele assassino lá embaixo?

Quando suas presas apareceram na boca, ele respondeu: Pode apostar.

O pequeno sorriso dela pareceu afiado como uma adaga.

– Bom trabalho. Eu ouvi a coisa toda. Enfim, foi depois que tudo silenciou que soube que tinha de sair dali ou...

Morreria, ele pensou. Por causa do que havia feito naquela cozinha.

– Então, eu fui...

Ele ergueu a mão para detê-la, então escreveu rapidamente. Quando mostrou as palavras, ela franziu a testa e, em seguida, balançou a cabeça.

– Oh, mas é claro que você não teria feito se soubesse que eu estava lá. Mas não sabia. E soou como se não pudesse evitar. Confie em mim, sou a última pessoa com quem precisa se desculpar pelo massacre de um daqueles bastardos.

Verdade, mas ainda suava frio ao pensar em como, inadvertidamente, a colocou em perigo.

Ela inalou profundamente outra vez.

– De qualquer maneira, depois que você saiu, parecia que a barreira estava enfraquecendo, e quando consegui esmurrar uma janela com meus punhos, soube que tinha uma chance. – Levantou uma de suas mãos e olhou para os dedos. – Eu acabei correndo para conseguir um impulso e atravessar a porta. Achei que ia precisar da força extra que havia em mim e estava certa.

Xhex se mexeu na cama, estremecendo.

– Acho que foi quando consegui o rompimento. No meu interior. Eu me machuquei bastante fugindo... foi como puxar meu corpo através de um concreto prestes a secar. Também bati muito forte na parede do corredor.

Sentiu a tentação de acreditar que os machucados que viu na pele dela foram resultado de sua fuga. Mas conhecia Lash. Olhou a crueldade no rosto do cara vezes o suficiente para ter certeza absoluta de que ela tinha passado por muita coisa nas mãos do inimigo.

– Foi por isso que precisei ser operada.

A declaração foi expressa de forma clara e equilibrada. Mas ela não encontrou seus olhos.

John virou uma nova página, escreveu cinco letras em maiúsculo e colocou um ponto de interrogação. Quando virou o bloco, ela mal olhou o MESMO?

Aquele olhar cinzento se afastou e se prendeu num canto afastado.

– Podia ter sido uma lesão que sofri quando lutei com ele. Mas não tive uma hemorragia interna assim antes de sair, então... por aí você deduz.

John exalou e pensou naquelas paredes riscadas e manchadas que vira naquela sala. O que escreveu em seguida o machucou.

Quando ela olhou para o que tinha escrito na página, a expressão de seu rosto se estreitou ao ponto do anonimato. Era como se estivesse olhando para uma estranha.

Ele olhou para as suas palavras: O quanto foi ruim?

Não deveria ter perguntado, pensou. Tinha visto a condição em que se encontrava. Tinha ouvido Xhex gritar na sala de operação e estava bem na frente dela quando teve um colapso nervoso. O que mais precisava saber?

Estava escrevendo um “me desculpe” quando ela falou com uma voz fina:

– Foi... normal... quero dizer...

Seus olhos fixaram-se em seu perfil e desejou que ela continuasse.

Xhex clareou a garganta.

– Não gosto de enganar a mim mesma. Não serve para nada. O fato de que se eu não saísse morreria em breve estava muito claro. – Balançou a cabeça lentamente para trás e para frente no travesseiro branco. – Estava ficando extremamente fraca por falta de sangue e por causa das lutas. Acontece que, na verdade, eu não tinha problemas com a parte de morrer. Ainda não tenho. A morte nada mais é que um processo, embora normalmente doloroso. Uma vez que está acabado e feito? Tudo bem, porque você não existe mais e toda a porcaria acabou.

Por alguma razão, o fato de estar tão indiferente o deixou ansioso e teve que se reacomodar na cadeira para evitar andar pelo quarto.

– Se foi ruim? – ela murmurou. – Sou uma lutadora por natureza. Então, até certo ponto, não foi nada especial. Nada com que eu não pudesse lidar. Quero dizer, sou forte. Perdi o controle na clínica porque odeio coisas relacionadas a médicos, e não por causa de Lash.

O passado dela, ele pensou.

– Vou lhe dizer uma coisa. – Seus olhos voltaram a encará-lo e ele se afastou diante do calor em seu olhar. – Sabe o que será ruim? O que fará com que as três últimas semanas tornem-se insuportáveis? Se eu não matá-lo. Isso será insuportável para mim.

O macho vinculado dentro de John rugiu, a ponto de se perguntar se Xhex sabia que ele não seria capaz de deixá-la dar um fim no desgraçado: machos protegem suas fêmeas. É a lei universal quando se é um homem de verdade.

Além disso, a ideia de ela ir a qualquer lugar perto daquele cara deixava John enlouquecido. Lash já a tinha sequestrado uma vez. E se ele usasse aquela porcaria que tinha o efeito de uma capa mágica de novo?

Não teriam uma segunda chance de resgatá-la. De jeito nenhum.

– Então – disse ela –, contei o meu segredo. Sua vez.

Certo. Tudo bem.

Agora era ele quem estava olhando para aquele canto distante. Jesus Cristo. Por onde começar.

Virou uma nova página em seu bloco, colocou a caneta para baixo e...

Um monte de nada veio a ele. O problema era que havia muita coisa para escrever, muito para dizer e não é que aquilo se mostrou muito deprimente?

Uma batida na porta fez com que a cabeça dos dois virasse.

– Maldição – disse ela baixinho. – Dê-nos um minuto!

O fato de que havia alguém esperando por uma audiência do outro lado da porta não o deixava exatamente disposto a compartilhar seus sentimentos. Isso, juntamente com a barreira da comunicação e sua tendência inata de se fechar, fez sua cabeça zumbir.

– Quem quer que seja, por mim, pode ficar fora a noite toda e durante todo o dia também. – Alisou o cobertor sobre seu estômago. – Quero ouvir o que você tem a dizer.

Engraçado, isso foi o que o desbloqueou, e então escreveu rapidamente:

Seria mais fácil mostrar.

As sobrancelhas se estreitaram quando leu isso e, então, acenou com a cabeça.

– Tudo bem. Quando?

Amanhã à noite. Se você tiver autorização para sair.

– Encontro marcado. – Levantou a mão... e a colocou levemente sobre seu antebraço. – Quero que saiba...

A nova batida que a interrompeu fez com que os dois amaldiçoassem.

– Precisamos de um minuto! – exclamou antes de se concentrar nele outra vez. – Quero que saiba... que pode confiar em mim.

John sustentou seu olhar e se viu imediatamente transportado para outro plano de existência. Poderia ser o céu outra vez. Quem sabia ou se importava? Tudo o que sabia era que havia apenas ela e ele juntos, o resto do mundo se afastava numa névoa.

Seria possível se apaixonar por alguém duas vezes?

– Que diabos você está fazendo aí?

A voz de Rehv do outro lado da porta quebrou o momento, mas não o apagou.

Nada jamais poderia, John pensou, enquanto ela se afastava e ele se levantava.

– Entre, idiota – ela retrucou.

No instante em que o macho de moicano entrou no quarto, John sentiu a mudança no ar e soube, quando se entreolharam e ficaram em silêncio, que estavam se comunicando como os sympathos faziam.

Para dar-lhes privacidade, dirigiu-se para a porta, e quando estava saindo, Xhex disse:

– Você vai voltar?

No início, pensou que ela estava falando com Rehv, mas então o macho agarrou seu braço e o deteve.

– Meu amigo? Você vai voltar?

John olhou para a cama. Esqueceu seu bloco e a caneta no pequeno criado mudo, então apenas acenou com a cabeça.

– Logo? – Xhex disse. – Porque não me sinto cansada e quero aprender a linguagem de sinais.

John assentiu com a cabeça novamente e depois bateu uma mão fechada contra outra de Rehvenge antes de sair da sala de operações.

Enquanto caminhava pelas macas vazias, estava contente por V. ter terminado a limpeza e não estar por perto. Pois mesmo que sua vida estivesse em jogo, John não conseguiria esconder o sorriso em seu rosto.


Em silêncio, Blay caminhou lado a lado com Qhuinn através do túnel subterrâneo que ficava entre o centro de treinamento e o saguão de entrada da mansão.

Os sons de seus dois pares de botas de combate se misturavam, mas isso era tudo. Nem ele nem Qhuinn diziam nada. E não havia nenhum contato.

Absolutamente nenhum toque.

Um tempo atrás, antes de se declarar para o cara, antes das coisas terem ido por água abaixo entre eles, Blay simplesmente teria perguntado no que Qhuinn estava pensando, porque era evidente que estava fervilhando com alguma coisa. Agora, porém, o que poderia ser apenas um comentário qualquer, pareceria uma intromissão inadequada.

Quando passaram pela porta escondida sob a escadaria da mansão, Blay começou a temer o resto da noite.

Claro, não havia passado muito tempo, mas duas horas poderiam parecer uma vida sob as circunstâncias corretas. Ou erradas, como era o caso.

– Layla deve estar esperando por nós – disse Qhuinn enquanto ia para o pé da escada.

Oh... excelente. Justamente o tipo de diversão que não estava procurando.

Depois de ter visto a maneira como a Escolhida olhou para Qhuinn, simplesmente não sentia vontade de olhar aquele monte de paixonite tímida outra vez. Ainda mais naquela noite. Era curioso como a quase perda de Xhex o tinha deixado ferido.

– Você vem? – Qhuinn perguntou, sua testa franzida puxava o piercing na sobrancelha esquerda.

Blay baixou o olhar em direção ao aro que rodeava o lábio inferior do cara.

– Blay? Você está bem? Olha, acho que precisa se alimentar, amigo. Tem acontecido muita coisa ultimamente.

“Amigo”... Cristo, odiava essa palavra.

Mas dane-se, precisava superar a tensão.

– Sim. Claro.

Qhuinn olhou para ele de uma maneira estranha.

– Meu quarto ou o seu?

Blay riu de maneira áspera e começou a subir as escadas.

– Isso realmente importa?

– Não.

– Exatamente.

Quando chegaram ao segundo andar, passaram pelo escritório de Wrath, as portas estavam fechadas e desceram o corredor de estátuas.

Chegaram primeiro ao quarto de Qhuinn, mas Blay continuou andando, pensando que algo poderia finalmente ser em seu território, sob seus termos.

Abrindo a porta larga, deixou a coisa como estava e ignorou o som de um clique suave, quando Qhuinn os fechou lá dentro.

No banheiro, Blay foi até a pia, abriu a torneira e se inclinou, espirrando água em seu rosto. Estava se enxugando quando sentiu o perfume de canela e sabia que Layla tinha chegado.

Apoiando as mãos sobre o mármore, inclinou-se sobre os braços e se encurvou. Lá fora, em seu quarto, ouviu as vozes se misturando, a mais baixa e a mais alta, revezando alguns momentos.

Jogando a toalha no chão, virou-se e começou a observar a dança: Qhuinn estava na cama, de costas contra a cabeceira, as botas cruzadas, os dedos cruzados sobre o grande peitoral, enquanto sorria à Escolhida. Layla estava corada ao ficar perto dele, os olhos sobre o tapete, suas mãos menores e delicadas se torciam frente a ela.

Quando Blay chegou, os dois olharam para ele. A expressão de Layla não se alterou. A de Qhuinn, porém, se fechou com força.

– Quem vai primeiro? – Blay perguntou, aproximando-se deles.

– Você – Qhuinn murmurou. – Você vai.

Blay não estava disposto a saltar sobre a cama, então foi até a espreguiçadeira e sentou. Layla vagou em sua direção e caiu de joelhos diante dele.

– Senhor – disse ela, oferecendo-lhe o pulso.

A TV foi ligada e os canais foram sendo trocados quando Qhuinn começou a clicar com o controle em direção à tela. Parou no canal Spike, vendo a reprise de um campeonato de vale tudo onde lutavam Hughes e Penn.

– Senhor? – Layla disse.

– Perdoe-me. – Blay inclinou-se, pegando seu fino antebraço, segurando com firmeza, mas sem muita pressão. – Agradeço sua dádiva.

Perfurou tão delicadamente quanto pôde e estremeceu quando ela saltou ligeiramente. Teria recolhido as presas para pedir desculpas, mas isso exigiria outro furo, então voltou a sugar sua veia.

Enquanto se alimentava, seus olhos se moveram para a cama. Qhuinn estava absorto na luta, sua mão direita levantada e fechada num punho.

– Caramba – o cara murmurou. – É disso que estou falando!

Blay se concentrou no que estava fazendo e terminou rapidamente. Quando soltou, olhou para o rosto adorável de Layla.

– Você foi muito graciosa, como sempre.

Seu sorriso era radiante.

– Senhor... é uma alegria servi-lo, como sempre.

Estendeu a mão e ajudou-a a levantar, aprovando sua graça inata. E, Deus, a força que ela lhe deu não era nada menos que miraculosa. Até mesmo depois de terminar podia sentir aquilo o energizando, sua cabeça parecia estar em névoas, uma vez que seu corpo estava focando aquilo que tinha sido dado a ele.

O que Layla tinha lhe dado.

Qhuinn ainda estava muito ligado na luta, suas presas arreganhadas, não para Layla, mas para quem estava perdendo. Ou ganhando. Ou seja lá como fosse.

A expressão de Layla se desvaneceu em uma resignação que Blay conhecia muuuito bem.

Blay franziu a testa.

– Qhuinn. Vai se alimentar?

Os olhos díspares de Qhuinn se mantiveram na tela até o árbitro terminar a disputa, então suas íris azul e verde recaíram sobre Layla. Em um impulso sensual, o cara se moveu na cama, abrindo espaço para ela.

– Venha cá, Escolhida.

As três palavras, acompanhadas por aquele olhar de pálpebras baixas, foram um golpe baixo para Blay... O problema era que Qhuinn não estava olhando Layla de nenhuma maneira especial. Ele era assim.

Sexo em cada respiração, cada batida, cada movimento.

Layla parecia sentir o mesmo, pois suas mãos esvoaçavam serpenteando ao redor de sua vestimenta, primeiro indo para o laço e depois para as lapelas.

Por alguma razão, Blay percebeu pela primeira vez que estava completamente nua sob as dobras brancas.

Qhuinn estendeu a mão e a palma de Layla tremia ao colocá-la contra aquela que lhe era oferecida.

– Está com frio? – perguntou ele, sentando-se. Era possível ver o contorno de seu abdômen definido debaixo da camiseta justa.

Quando negou com a cabeça, Blay entrou no banheiro, fechou a porta e ligou o chuveiro. Após tirar a roupa, ficou sob o jato e tentou esquecer tudo o que estava acontecendo em sua cama.

O que foi bem sucedido apenas quando tirou Layla da imagem.

Seu cérebro ficou preso numa fantasia onde ele e Qhuinn estavam estendidos juntos, bocas nos pescoços um do outro, presas rompendo a superfície da pele aveludada, corpos...

Era muito comum aos machos ficarem eretos após a alimentação. Especialmente quando pensavam em todo tipo de coisas para fazer estando nu. E o sabonete não ajudava.

E nem as imagens do que viria após os dois penetrarem as gargantas.

Blay plantou a palma de uma de suas mãos no mármore liso e a outra sobre seu pênis rígido.

O que fez foi rápido e tão gratificante quanto um pedaço de pizza fria: bom, mas não chegava nem perto de uma refeição de verdade.

O segundo passeio ao parque de diversões não melhorou a situação e recusou seu corpo a chance de um terceiro. Pois, fala sério. Que bizarro. Qhuinn e Layla estavam cuidando de suas vidas do outro lado da porta, enquanto ele ficava todo ofegante debaixo da água quente? Que droga.

Saindo, enxugou-se, colocou o roupão e percebeu que não tinha nada para vestir. Quando virou a maçaneta da porta, rezou para que as coisas estivessem como ele as havia deixado.

E estavam, muito obrigado, Virgem Escriba: Qhuinn tinha a boca no outro pulso de Layla e tomava o que precisava daquela Escolhida ajoelhada ao seu lado.

Nada abertamente sexual.

O alívio que se fixou no peito de Blay o fez perceber o quanto estava nervoso... e não apenas por isso, mas por tudo relacionado a Qhuinn.

Aquilo não era nada saudável. Para ninguém.

Mas afinal de contas, Qhuinn era culpado por ele se sentir daquela maneira? Ninguém pode escolher por quem se sente atraído... e por quem não se sente.

No armário, Blay puxou uma camisa de botão e uma calça de combate preta. Assim que virou a cabeça para o banheiro, Qhuinn ergueu a boca da veia de Layla.

O macho soltou um gemido saciado e estendeu sua língua em direção às feridas que tinha feito com suas presas. Quando um brilho de prata reluziu, as sobrancelhas de Blay se ergueram. O piercing da língua era novo e ele se perguntou quem teria feito.

Provavelmente Vishous. Os dois andavam passando muito tempo juntos e foi assim que conseguiram a tinta para a tatuagem de John... Qhuinn tinha pegado o recipiente.

A língua de Qhuinn passou na pele da Escolhida, aquele metal piscava a cada passagem.

– Obrigado, Layla. Você é boa para nós.

Deu um sorriso rápido, em seguida colocou as pernas para fora da cama, deixando evidente que já ia sair. Layla, por outro lado, não se mexeu. Ao invés de seguir o exemplo e ir embora, a cabeça dela desceu e os olhos se concentraram em seu colo...

Não, nos pulsos, que estavam aparecendo sob as mangas de sua túnica. Quando a viu cambalear, Blay franziu a testa.

– Layla? – disse ele, aproximando-se. – Você está bem?

Qhuinn também se aproximou da cama.

– Layla? O que está acontecendo?

Os dois ficaram de joelhos diante dela.

Blay falou claramente.

– Nós tomamos muito?

Qhuinn se adiantou e colocou seu próprio pulso frente a ela, oferecendo.

– Use-me.

Droga, ela tinha alimentado John na noite anterior. Será que aquilo aconteceu cedo demais?

Os olhos verdes pálidos da Escolhida se ergueram para enfrentar Qhuinn e não houve qualquer confusão em seu olhar. Apenas um desejo triste, antigo.

Qhuinn recuou.

– O que eu fiz?

– Nada – disse ela com uma voz muito profunda. – Se me der licença, vou me retirar ao santuário mais uma vez.

Layla começou a levantar-se, mas Qhuinn capturou sua mão e puxou-a para baixo.

– Layla, o que está fazendo?

Deus, aquela voz dele. Tão suave, tão gentil. E assim também era a mão que estendeu, agarrando seu queixo e levantando o olhar dela até o seu.

– Não posso falar sobre isso.

– Sim, você pode. – Qhuinn acenou com a cabeça na direção do Blay. – Ele e eu manteremos segredo.

A Escolhida respirou fundo e sua expiração foi de derrota, como se ela estivesse sem combustível, sem opções, sem força.

– De verdade? Vão permanecer em silêncio?

– Sim. Blay?

– Sim, com certeza. – Colocou a mão em seu coração. – Eu juro. Vamos fazer de tudo para ajudá-la. Qualquer coisa.

Ela focou em Qhuinn, seu olhar preso ao dele.

– Sou desagradável aos seus olhos, senhor? – Quando ele franziu a testa, ela baixou o olhar. – Desvio-me do ideal de alguma maneira que me torna...

– Deus, não. Do que você está falando? Você é linda.

– Então... por que nunca sou solicitada?

– Não entendo... Nós a solicitamos. Regularmente. Eu mesmo, John e Blay. Rhage e V. Você é a única que todos pedem, porque você...?

– Nenhum de vocês me usa para qualquer coisa além de sangue.

Blay se levantou de sua posição ajoelhada, recuou até suas pernas bateram na espreguiçadeira e sentou-se. Quando seu traseiro saltou sobre a almofada, a expressão no rosto de Qhuinn quase o fez rir. O cara nunca era pego de surpresa. Em parte porque já tinha sofrido de tudo em sua vida relativamente curta, tanto por escolha quanto por maldição. E parte era a sua personalidade. Dava-se bem em todas as situações. Ponto final.

Exceto nesta, óbvio. Qhuinn parecia como se tivesse sido atingido na nuca por um taco de bilhar.

– Eu... – Qhuinn pigarreou. – Eu... Eu...

Ah, sim, isso também era inédito: a gagueira.

Layla encheu o silêncio.

– Sirvo os machos e Irmãos desta casa com orgulho. Dou, sem receber nada em troca, porque faz parte da minha formação e tenho prazer em fazê-lo. Mas digo isso porque você pediu e... acho que devo. Toda vez que retorno para o santuário ou à casa do Primaz, sinto-me cada vez mais vazia. A ponto de achar que poderia me afastar. Em verdade... – balançou a cabeça – não posso continuar fazendo isso, mesmo sabendo que faz parte das minhas obrigações. Apenas... meu coração não pode continuar.

Qhuinn deixou cair as mãos e esfregou as coxas.

– Você quer... você gostaria de continuar se pudesse?

– Claro. – Sua voz era forte e segura. – Estou orgulhosa de estar a serviço.

Agora Qhuinn estava arrastando a mão por seu cabelo grosso.

– O que seria necessário... para satisfazê-la?

Era como assistir a um desastre de trem. Blay deveria ter saído, mas não conseguia se mover, tinha apenas que testemunhar a colisão.

E, naturalmente, o rubor brilhante de Layla a fez ainda mais bonita. Em seguida, seus lábios carnudos se entreabriram encantadores. Fecharam. Abriram... e fecharam outra vez.

– Está tudo bem – sussurrou Qhuinn. – Você não tem que dizer isso em voz alta. Eu sei o que você quer.

Blay sentiu um suor frio sair sobre o peito e as mãos se contorceram por baixo da roupa que tinha escolhido.

– Quem... – Qhuinn perguntou com voz rouca. – Quem você quer?

Houve outra longa pausa e então ela disse uma única palavra:

– Você.

Blay levantou-se.

– Vou deixar vocês a sós.

Estava totalmente cego quando saiu, e agarrou sua jaqueta de couro em seu caminho apenas por instinto.

Quando fechou a porta, ouviu Qhuinn dizer:

– Vamos fazer isso bem devagar. Se vamos fazer isso, iremos bem devagar.

No corredor, Blay abriu rapidamente uma boa distância entre ele e seu quarto e não se deu conta, até que chegou à porta dupla que dava para a ala dos empregados, de que estava andando pela casa de roupão. Deslizando pelo conjunto de escadas que levavam ao cinema no terceiro andar, mudou sua roupa na frente da máquina de pipoca desligada.

A raiva latente no fundo de suas entranhas era um tipo de câncer que o devorava. Mas era tão infundado. Tão inútil.

Blay parou em frente às prateleiras de DVDs, os títulos nas capas nada mais eram que um borrão para seus olhos.

Contudo, o que ele acabou pegando não foi um filme.

Tirou um pedaço de papel do bolso do casaco.


CAPÍTULO 29

Assim que a porta da sala de recuperação foi fechada, Xhex sentiu que devia dizer algo. Em voz alta. Para Rehvenge.

– Então. Ah... – Passou a mão pelo cabelo. – Tudo bem...?

Ele interrompeu suas desajeitadas divagações aproximando-se a passos largos, sua bengala vermelha era cravada nos ladrilhos, seus mocassins atingiam o chão do calcanhar à ponta dos pés. Sua expressão era feroz, seus olhos violeta ardiam.

Era suficiente para deixá-la perplexa.

Puxando para cima o lençol, Xhex murmurou.

– Que diabos há de errado com vo...? – Rehv mergulhou sobre ela com seus longos braços e a puxou para ele, aconchegando-a com todo cuidado contra seu peito. Apoiando a cabeça na dela, sua voz foi profunda e grave.

– Pensei que nunca mais a veria novamente.

Quando ele estremeceu, ela levantou as mãos até seu tronco. Depois de conter-se um momento... abraçou-o tão forte quanto ele a abraçava.

– Seu perfume é o mesmo – disse com voz rouca, colocando o nariz bem no pescoço da fina camisa de seda. – Oh... Deus, seu perfume é o mesmo.

A cara colônia à base de especiarias a levou de volta aos dias de ZeroSum quando os quatro trabalhavam juntos: ele no comando, iAm com os livros, Trez nas operações e ela na segurança.

O perfume foi o gancho que a arrastou e a fez dar um passo mais longe do trauma do sequestro, ligando-a ao seu passado, transpondo o horrível período das últimas três semanas.

Contudo, não queria essa amarra. Isso só faria com que sua partida ficasse mais difícil. Melhor concentrar-se nos acontecimentos e nos objetivos imediatos.

E depois simplesmente desaparecer, flutuando à deriva.

Rehv se afastou.

– Não quero cansá-la, então não vou ficar. Mas precisava... pois é.

– Eu sei.

Juntos, mantiveram-se um nos braços do outro, e como sempre, ela sentiu a comunicação entre eles, a parte de sangue mestiço que compartilhavam estabeleceu uma conexão como faziam os sympathos.

– Precisa de alguma coisa? – perguntou. – Comida?

– A doutora Jane disse nada sólido durante as próximas duas horas.

– Certo. Ouça, vamos falar sobre o futuro...

– No futuro. – Enquanto falava, projetou em sua mente uma imagem dos dois discutindo intensamente. Que foi produzida exclusivamente para despistá-lo, caso estivesse lendo.

Não ficou claro se ele mordeu a isca.

– Aliás, eu moro aqui agora – ele disse.

– Onde estou exatamente?

– No centro de treinamento da Irmandade. – Franziu a testa. – Pensei que você já havia estado aqui antes.

– Não nessa parte. Mas sim, imaginei que era para onde me trariam. Aliás, Ehlena foi realmente boa comigo. Lá dentro. – Assinalou com a cabeça para a sala de operações. – E antes que pergunte, vou ficar bem. Foi o que a doutora Jane disse.

– Ótimo! – Apertou com força a mão dela. – Vou chamar John.

– Obrigada.

Na porta, Rehv parou, em seguida, estreitando os olhos ametistas, lançou-lhe um olhar por sobre os ombros.

– Escute. – O “idiota” ficou implícito. – Você é importante. Não só para mim, mas para muita gente. Então, faça o que tem que fazer e coloque sua cabeça em ordem. Mas não pense que não sei de nada sobre o que tem planejado fazer depois.

Ela devolveu o olhar.

– Maldito devorador de pecados.

–Já sabe. – Rehv ergueu uma sobrancelha. – Eu lhe conheço muito bem. Não seja uma cabeça-dura, Xhex. Você tem todos nós ao seu lado e pode superar isso.

Enquanto ele saía, Xhex achou a fé que tinha nela admirável. Mas não ia cair nessa.

Na verdade, apenas o pensamento de qualquer futuro depois do funeral de Lash enviava uma onda de esgotamento pela sua corrente sanguínea. Com um gemido, fechou os olhos e rezou pelo amor de tudo o que era mais sagrado para que Rehvenge ficasse fora de seus assuntos...

Xhex despertou com um grito sufocado. Não fazia ideia de quanto tempo esteve dormindo. Ou onde John estava...

Bem, a segunda pergunta estava respondida: John estava no chão na frente da sua cama, deitado de lado, com a cabeça descansando no interior do braço que tinha dobrado para usar de travesseiro. Parecia cansado, mesmo enquanto dormia: as sobrancelhas tensas, a boca contraída em uma expressão fatigada.

O consolo que lhe veio ao olhar para ele foi chocante, mas não lutou contra isso. Não tinha energia suficiente... além disso, não havia testemunhas.

– John?

No instante em que pronunciou seu nome, levantou-se do chão de linóleo, assumindo uma postura de combate, com seu corpo de guerreiro entre ela e a porta do corredor. Ficou bastante claro que estava preparado para deixar em pedaços qualquer um que a ameaçasse.

O que era... realmente gentil.

E melhor que um buquê de flores na cabeceira da cama, o qual a faria espirrar.

– John... venha aqui.

Ele esperou um instante, erguendo a cabeça como se procurando por algum som. Logo deixou cair os punhos e andou. No instante em que seus olhos se voltaram para ela, o olhar brutal e as presas expostas se desvaneceram em meio a uma compaixão arrasadora.

Foi direto ao seu bloco, escreveu algo e lhe mostrou.

– Não, obrigada. Ainda não estou com fome. – Sempre foi assim para ela. Depois de se alimentar, não comia durante horas, algumas vezes durante um dia intero. – O que eu adoraria...

Seus olhos se moveram até o banheiro no canto.

Banho, ele escreveu e mostrou.

– Sim. Meu Deus... adoraria um pouco de água quente.

Estava todo disposto a ser um bom cuidador. Abriu a ducha, colocou as toalhas, o sabonete e uma escova de dentes sobre o balcão.

Sentindo-se um pouco preguiçosa, tentou se levantar... e ficou claro que alguém tinha atado uma casa ao redor de seu peito. Sentia-se como se estivesse levando uma casa colonial de dois andares sobre os ombros. Foi com um grande esforço que conseguiu colocar as pernas para fora do colchão... e com a convicção de que se não conseguisse se colocar na vertical sozinha, ele iria chamar a doutora e ela perderia o banho.

John chegou assim que as solas dos pés descalços tocaram o chão e foi muito atencioso equilibrando-a com o braço enquanto se colocava em pé. Quando os lençóis caíram de seu corpo, ambos tiveram um momento de... caramba, nua. Mas não era hora para recato.

– O que devo fazer com o curativo? – ela murmurou, baixando o olhar para a bandagem branca que se estendia ao longo de sua pélvis.

Quando John olhou para seu bloco de papel, como se estivesse tentando decidir se podia alcançar a coisa e continuar segurando-a, ela disse:

– Não, não quero a doutora Jane. Simplesmente vou tirar.

Escolheu uma ponta, e enquanto se firmava em pé, imaginou que provavelmente teria sido melhor fazer isso enquanto estava deitada... e sob supervisão médica. Mas dane-se.

– Oh... – Suspirou ao revelar lentamente a linha de pontos negros. – Maldição... a fêmea de V. é boa com uma linha e uma agulha, hum?

John pegou o monte de gaze ensaguentado e simplesmente o jogou na lata de lixo do canto. Então esperou como se soubesse bem que ela estava pensando em voltar para a cama.

Por alguma razão, a ideia de ter sido aberta a deixou tonta.

– Vamos fazer isso – disse rispidamente.

Ele deixou que ela estabelecesse o ritmo, o qual acabou sendo apenas um pouco mais rápido que dar marcha ré.

– Pode apagar as luzes lá dentro? – ela disse enquanto arrastava os pés, seus passos de bebê não avançavam mais que alguns centímetros. – Não quero ver a minha aparência naquele espelho sobre a pia.

No instante em que se aproximou o suficiente do interruptor, John estendeu o braço e clicou a coisa na parede.

– Obrigada.

A sensação do ar úmido e o som da água caindo aliviaram sua mente e sua coluna. O problema era que a tensão havia ajudado a mantê-la em pé e agora estava cedendo.

– John... – Era a sua voz? Tão fraca e fina. – John, entra comigo? Por favor.

Por falar em longos silêncios... mas, então, sob a luz que entrava do quarto, ele assentiu.

– Enquanto tira a roupa lá fora – ela disse – pode fechar a porta porque preciso usar o banheiro.

Com isso, segurou na barra que estava fixa à parede e se movimentou sozinha. Houve outra pausa e logo John deu um passo para trás e a ligeira fonte de luz se desvaneceu.

Depois que Xhex fez o que precisava, arrastou-se e entreabriu a porta.

O que viu foi um bloco de notas bem em frente ao rosto:

Teria ficado de cueca, mas não uso nada por baixo das calças de couro.

– Está bem. Não passo nem perto do tipo tímida.

Só que aquilo não foi demonstrado ser totalmente verdade quando os dois entraram no chuveiro juntos. Achou que depois de tudo o que passou, um pouco de contato com pele em um quarto escuro, com um macho em quem confiava e com quem já havia estado, não seria um grande desafio. Mas foi.

Especialmente quando o corpo dele roçou contra suas costas ao fechar a porta de vidro.

Concentre-se na água, disse a si mesma, imaginando se tinha enlouquecido.

Ao levantar a cabeça, começou a inclinar-se para o lado e a enorme mão masculina escorregou sobre seu braço para mantê-la em pé.

– Obrigada – disse ela asperamente.

Mesmo a situação sendo tão incômoda, a água quente estava maravilhosa ao encharcar seu cabelo até o couro cabeludo e a ideia de poder limpar-se foi repentinamente mais importante do que tudo que John Matthew não estava usando.

– Esqueci o sabonete, droga.

John fez outro movimento de se inclinar e investir sobre aquilo que precisava, e então seus quadris bateram nos dela. E embora ela tenha ficado tensa, preparando-se para algo sexual... ele não estava excitado.

O que foi um alívio. Depois das coisas que Lash lhe havia feito...

Quando colocou o sabonete em sua mão, Xhex bloqueou todos os pensamentos do que havia passado naquele quarto e simplesmente umedeceu a barra de sabão na ducha. Lavar-se. Secar-se. Voltar para a cama. Isso era tudo o que tinha que pensar.

O cheiro forte e diferente do sabonete flutuou no ambiente e aquilo a emocionou.

Era exatamente o que teria escolhido sozinha.


Incrível, pensou John enquanto permanecia em pé atrás de Xhex.

Se baixar o olhar para seu pênis e disser que caso se comporte mal irá cortá-lo em rodelas e enterrar no quintal dos fundos, realmente ele obedece.

Tinha que se lembrar disso.

O chuveiro era de um tamanho generoso para um macho, mas era bastante estreito para os dois e tinha que manter as costas pressionadas contra o azulejo frio para ter cem por cento de certeza de que o Senhor Espertinho e seus companheiros gêmeos de trabalho, Debi e Loide, ficariam longe dela.

Afinal, o discurso tinha feito maravilhas, mas não iria arriscar.

Além disso, estava chocado por Xhex estar tão fraca que tinha que segurá-la para que pudesse ficar em pé... mesmo depois de ter se alimentado. Mas não é fácil se livrar assim de quatro semanas de inferno, mesmo depois de um cochilo de duas horas. Que era o tempo que tinha dormido, de acordo com seu relógio.

Ao pegar o xampu, ela arqueou as costas e seus cabelos molhados roçaram no peito dele antes que Xhex se virasse para enxaguar a espuma. Ele mudou a posição, segurando primeiro seu antebraço direito, em seguida o esquerdo, então de novo o direito.

Os problemas surgiram quando ela se inclinou para lavar as pernas.

– Droga... – Ela mudou de posição rápido demais, o aperto dele escorregou do seu ensaboado bíceps e ela caiu diretamente contra o corpo dele.

John teve uma breve e vívida impressão de seu corpo ensaboado, úmido e cálido, e logo se lançou contra a parede e se moveu buscando uma forma de mantê-la em pé que não implicasse em contato total.

– Queria que tivesse um banco aqui – ela disse. – Acho que não consigo manter o maldito equilíbrio.

Houve uma pausa... em seguida ele pegou o sabonete. Deslocando-se lentamente, trocou de lugar com ela, colocando-a no canto em que havia apoiado as costas e fazendo com que ela apoiasse as mãos sobre seus ombros.

Enquanto se ajoelhava, girou o sabonete nas mãos, fazendo um monte de espuma; a água batia na parte de trás da cabeça e caía por sua coluna vertebral. Sentia o azulejo duro embaixo dos joelhos e tinha um dos dedos do pé pressionando o ralo, era como se a coisa tivesse dentes e estivesse lhe dando uma mordida, mas não se importava.

Estava preste a tocá-la. E isso era tudo o que importava.

Envolvendo o tornozelo dela com a mão, deu um puxão suave e, depois de um momento, ela apoiou o peso no outro lado e deu para ele o seu pé. Colocou a barra de sabonete no chão ao lado da porta e alisou a sola do pé subindo até o calcanhar, massageando, limpando...

Adorando sem esperar nada em troca.

Ia devagar, especialmente quando subia pela perna, fazendo uma pausa de vez em quando para se assegurar de que não estava pressionando nenhum de seus machucados. O músculo da panturrilha era duro como pedra e os ossos que sobressaíam no joelho pareciam tão fortes como os de um macho, mas era delicada à sua maneira. Ao menos comparada com ele.

Quando subiu ainda mais, até sua coxa, deslizou para a parte externa. A última coisa que queria era preocupá-la por dar em cima dela, e quando chegou ao quadril, parou e pegou o sabonete de novo.

Após enxaguar a sola do pé, puxou ligeiramente o outro tornozelo e sentiu uma pontada de alívio quando ela gentilmente lhe deu oportunidade de repetir o que tinha feito.

Massagens lentas, mãos lentas, progresso lento... e somente na parte externa e em direção à parte superior do corpo.

Quando terminou, levantou-se, os joelhos rangendo ao se erguer até alcançar toda a sua estatura e a colocou embaixo do jato d’água. Segurando-a pelo braço outra vez, deu-lhe o sabonete para que pudesse lavar qualquer outra coisa que fosse necessária.

– John? – ela disse.

Como estava escuro, assoviou um “o quê?”.

– Você é um macho de muito valor, sabe disso. Você realmente é.

Ergueu as mãos e envolveu o rosto dele.

Aconteceu tão rápido, ele não podia acreditar. Mais tarde, iria ver e rever aquilo várias e várias vezes, prolongando o momento infinitamente, revivendo e nutrindo aquilo de maneira estranha na memória, de novo e de novo.

Contudo, quando acabou, havia durado apenas um instante. Um impulso por parte dela. Um presente puro dado em gratidão a outro presente puro recebido.

Xhex ergueu-se na ponta dos pés e pressionou sua boca contra a dele.

Oh, tão macio. Seus lábios eram incrivelmente macios. E gentis. E calorosos. O contato foi muito rápido, porém poderia durar horas e horas e dizer que não tinha sido o suficiente.

– Venha deitar-se comigo – ela disse, abrindo a porta do chuveiro e saindo. – Eu não gosto de você no chão. Você merece coisa muito melhor do que isso.

De maneira indistinta, fechou a água e a seguiu, aceitando a toalha que ela entregou. Secaram-se juntos, ela envolveu todo o tronco com a toalha, ele cobriu os quadris.

Fora do banheiro, ele subiu na cama de hospital primeiro e sentiu que era a coisa mais natural do mundo abrir os braços. Se tivesse pensado, não haveria feito esse gesto, mas não estava pensando.

Mas tudo bem.

Porque ela foi até ele como tinha feito a água do chuveiro: o encharcou com uma onda morna que se infiltrava pela pele até a medula.

Mas, claro, Xhex penetrou ainda mais fundo dentro dele. Sempre fez isso.

Era como se tivesse perdido a sua alma na primeira vez que colocou os olhos nela.

Quando apagou a luz e ela se acomodou ainda mais perto dele, sentiu como se ela estivesse cavando diretamente em seu gelado coração e acampando ali, seu fogo descongelava a alma até que suspirou fundo e em paz pela primeira vez em meses.

John fechou os olhos, mas não esperava dormir.

Porém, ele dormiu. E muito, muito bem.


CAPÍTULO 30

Na ala de funcionários da mansão Sampsone, Darius concluiu sua entrevista com a criada da filha.

– Obrigado – disse ele enquanto se levantava e acenava para a fêmea. – Agradeço sua franqueza.

A doggen curvou-se profundamente.

– Por favor, encontre-a. E a traga de volta para casa, senhor.

– Faremos nosso melhor. – Ele lançou um olhar para Tohrment. – Seria muito gentil se trouxesse o mordomo.

Tohrment abriu a porta para a pequena fêmea e os dois saíram juntos.

Na ausência deles, Darius andou pelo chão sem ornamentos, suas botas de couro faziam um círculo em torno da escrivaninha que havia no centro da sala. A criada não sabia nada de relevante. Havia sido totalmente aberta e despretensiosa – mas não acrescentou absolutamente nada ao enigma.

Tohrment voltou com o mordomo e retornou a sua posição à direita da porta, permanecendo em silêncio. O que era bom. De uma maneira geral, durante um interrogatório no âmbito civil, não era necessário mais de um inquisidor. Entretanto, o garoto tinha outra utilidade. Seus olhos astutos não perdiam nada, assim talvez notasse algo que Darius deixasse passar durante a conversa.

– Obrigado por falar conosco – Darius disse ao mordomo.

O doggen curvou-se.

– Será um prazer servi-lo, senhor.

– Certamente – Darius murmurou enquanto sentava no banquinho duro que tinha usado enquanto falava com a criada. Os doggen, por natureza, tendem a valorizar o protocolo, e portanto preferiam que aqueles que detinham uma posição mais elevada ficassem sentados enquanto eles permaneciam em pé.

– Qual é o seu nome, mordomo?

Outra reverência profunda.

– Eu me chamo Fritzgelder Perlmutter.

– E há quanto tempo está com esta família?

– Eu nasci entre eles há 77 anos. – O mordomo uniu suas mãos atrás das costas e endireitou os ombros. – Tenho servido à família com orgulho desde meu quinto aniversário de nascimento.

– Longa história. Então, você conhece bem a filha.

– Sim. É uma fêmea de valor. Uma alegria para seus pais e sua linhagem.

Darius observou cuidadosamente o rosto do mordomo.

– E você não sabe de nada... que pudesse levá-lo a esperar tal desaparecimento?

A sobrancelha esquerda do serviçal se contraiu uma vez.

E houve um longo silêncio.

Darius baixou a voz a um sussurro.

– Se isso puder servir de alívio à sua consciência, tem minha palavra como um Irmão que nem eu nem meu colega revelaremos o que você disser. Nem mesmo ao próprio Rei.

Fritzgelder abriu a boca e respirou fundo.

Darius permaneceu em silêncio: pressionar o pobre macho só retardaria o processo de revelação. Na verdade, simplesmente falaria alguma coisa ou não e apressá-lo só iria atrasar sua decisão.

O mordomo alcançou o bolso interno de seu uniforme e retirou um lenço branco que estava dobrado em um quadrado exato. Apertou o lábio superior, atrapalhando-se para guardar a coisa.

– Nada sairá destas paredes – Darius sussurrou. – Nada.

O criado limpou a garganta duas vezes antes das suas cordas vocais produzirem algum som.

– De fato... ela estava acima de qualquer suspeita. Disso estou certo. Não havia nenhum... relacionamento com um macho que seus pais desconhecessem.

– Mas... – Darius murmurou.

Naquele momento, a porta foi aberta e o mordomo que os havia deixado entrar na mansão surgiu. Parecia totalmente surpreso com a reunião, a qual tinha sua total desaprovação. Não havia dúvida de que um de seus subordinados o tinha avisado.

– Você trabalha com uma boa equipe – Darius disse ao macho. – Meu colega e eu estamos muito impressionados.

A reverência não aliviou a expressão de desconfiança do macho.

– Estou lisonjeado, senhor.

– Estávamos saindo. Seu mestre está?

O mordomo se endireitou e seu alívio era evidente.

– Recolheu-se aos seus aposentos e por isso vim vê-los. Mandou-lhes dizer adeus, pois precisa cuidar de sua amada shellan.

Darius colocou-se em pé.

– Este seu criado estava prestes a nos mostrar a saída. Como está chovendo, tenho certeza de que prefere que um de seus funcionários nos guie sobre a grama molhada. Voltaremos aqui depois do pôr do sol. Obrigado por atender aos nossos pedidos.

Não havia nenhuma outra resposta a não ser a que o macho deu.

– Mas é claro.

Fritzgelder fez uma reverência ao seu superior e estendeu então o braço para uma porta no canto.

– Por aqui.

Lá fora, o ar carregava muito pouco das promessas de uma primavera de calor. De fato, estava um frio invernal quando atravessaram a neblina.

Fritzgelder sabia exatamente onde os estava levando, o mordomo caminhava com o objetivo de chegar aos fundos da mansão, para a parte do jardim que podia ser vista do quarto da fêmea.

Boa manobra, pensou Darius.

O mordomo parou bem debaixo da janela da filha de Sampsone, mas não encarava as pesadas paredes da casa. Olhava para fora... para além dos canteiros de flores e do labirinto... olhava para a propriedade vizinha. Então, deliberadamente virou-se para Darius e Tohrment.

– Levantem seus olhos até as árvores – disse ele enquanto apontava para a casa como se descrevesse algo importante, pois, sem dúvida, estavam sendo observados das janelas de chumbo da mansão. – Reparem bem a clareira.

De fato, havia uma brecha dentre os muitos galhos das árvores... foi por isso que conseguiram ver a mansão ao longe, quando estavam no segundo andar.

– Aquela visão não foi produzida por esta casa, senhor – o doggen disse suavemente. – E eu notei isso aproximadamente uma semana antes... de descobrir que ela tinha desaparecido. Estava limpando os quartos. A família estava nos aposentos subterrâneos já que era dia. Ouvi os sons de madeira sendo cortada e olhei pelas janelas, foi então que vi os galhos sendo arrancados.

Darius estreitou seu olhar.

– Foi um corte muito preciso, não?

– Muito preciso. E pensei que não era nada demais, pois só humanos moram ali. Mas agora...

– Agora gostaria de saber se havia algum propósito que não fosse o de jardinagem. Diga-me, a quem você mencionou isso?

– Para o mordomo chefe. Mas me implorou para que eu permanecesse calado. Ele é um bom macho, serve bem à família. Deseja muito que ela seja encontrada...

– Mas ele pretende evitar qualquer suposição de que ela tenha caído em mãos humanas.

Afinal, os humanos estavam apenas a uma cauda de distância de serem considerados como ratos pela glymera.

– Obrigado por isso – Darius disse. – Cumpriu bem o seu dever.

– Apenas encontre-a, por favor. Não me importo com a origem do sequestro... só a traga de volta para casa.

Darius focou no que conseguia ver da mansão vizinha.

– Faremos isso. De uma maneira... ou de outra.

Rezou para que os humanos daquela propriedade não tivessem se atrevido a levar um dos seus, pelo bem deles. A outra raça deveria ser evitada, por ordens do rei, mas e se tivessem a ousadia de agredir um vampiro? Uma fêmea nobre?

Darius mataria cada um deles em suas camas e deixaria os corpos apodrecerem em meio ao mau cheiro.


CAPÍTULO 31

Gregg Winn acordou com Holly em seus braços, seus exuberantes seios falsos eram como um par de travesseiros gêmeos pressionando-o.

Uma olhada rápida no relógio e viu que eram sete horas da manhã. Já poderiam fazer as malas e se dirigir para Atlanta.

– Holly. – Ele a tocou levemente com a mão. – Acorde.

Deixou soltar algo parecido com um ronronar e se espreguiçou, seu corpo se arqueando contra o dele, transformando sua ereção matinal numa necessidade primária sobre a qual estava disposto a fazer algo a respeito. No entanto, as memórias de como ela havia acabado em sua cama refrearam seu impulso.

Provando que em alguns aspectos era um cavalheiro.

– Holly. Vamos. Acorda logo. – Empurrou o cabelo dela para trás e o acariciou sobre o ombro. – Se sairmos agora, estaremos em Atlanta no final da tarde.

Considerando que aquela coisa de perseguir Rathboone tinha lhes custado um dia de viagem, isso viria bem a calhar.

– Tudo bem. Já acordei. Já acordei.

Na verdade, ele foi o único que levantou. Holly apenas se aninhou no espaço aquecido que Gregg tinha deixado e voltou a dormir em seguida.

Tomou um banho e depois encheu as malas com suas coisas fazendo tanto ruído quanto possível, mas ela estava morta para o mundo. Parecia mais um estado de coma do que de sonolência.

Estava prestes a sair atrás de Stan, que era ainda pior nessa coisa de acordar, quando uma batida soou na porta.

Será possível que aquele maluco já havia acordado?

Gregg começou a falar com seu cinegrafista enquanto abria a porta:

– Escuta, vamos arrumar a van...

Era o mordomo durão. Parecendo que alguém havia derramado vinho tinto por todo seu sofá.

Gregg ergueu a palma da mão.

– Estamos saindo, ok? Já estamos indo embora. Apenas nos dê...

– O proprietário decidiu permitir que vocês filmem aqui. Para seu episódio especial.

Gregg piscou como um idiota.

– Como?

O tom do mordomo ficou ainda mais enojado. Como se fosse possível.

– O proprietário falou comigo esta manhã. Disse que vocês têm a permissão de transmitir o programa daqui.

Um dia atrasado, Gregg pensou, soltando um palavrão em pensamento.

– Sinto muito. Minha equipe e eu estamos...

– Empolgados – Holly terminou por ele.

Enquanto olhava por cima do ombro, a apresentadora ajeitava o roupão conforme saía da cama.

– Isso é uma ótima notícia! – disse de maneira incisiva enquanto sorria para o mordomo, o qual parecia um ioiô entre reprovação e encantamento perante a visão de toda aquela beleza e naturalidade de Holly.

– Muito bem, então – o mordomo disse, depois de clarear a garganta. – Avisem-me se precisarem de algo.

Com uma reverência, desapareceu no corredor.

Gregg fechou a porta.

– Pensei que você queria sair daqui.

– Bem... eu estava segura com você, certo? – Esquivou-se até ele, acariciando seu peito. – Então vou ficar sempre perto de você.

A satisfação na voz dela o deixou desconfiado.

– Você fingiu pra mim? Sobre toda aquela coisa do sexo... com quem quer que seja?

Ela negou com a cabeça sem hesitar:

– Não... mas acredito mesmo que foi tudo um sonho.

– E quanto ao fato de ter dito que realmente fez sexo?

Franziu as sobrancelhas depiladas como se estivesse tentando ver através de um vidro fosco.

– É tudo muito vago para ter sido real. Na noite passada eu estava totalmente confusa, mas à luz do dia... tudo isso parece bobagem.

– Você tinha muita certeza quando entrou aqui.

Ela balançou a cabeça lentamente.

– Nada além de um sonho muito vívido e incrível... mas não aconteceu de verdade.

Examinou o rosto dela e não encontrou nada além de certeza. De repente, ela colocou as mãos sobre as têmporas.

– Tem aspirina?

– Dor de cabeça?

– Sim. Acabou de começar.

Aproximou-se da mala e tirou uma pequena bolsa.

– Escute, estou disposto a tentar, mas se decidirmos ficar, não tem volta. Precisamos preencher o nosso horário, então não podemos sair correndo para Atlanta em um ou dois dias.

Na verdade, já estavam bem atrasados.

– Eu entendo – ela disse enquanto sentava na cama. – Entendo muito bem.

Gregg entregou a aspirina, então foi até o banheiro e pegou um copo com água.

– Ouça, por que você não volta para a cama? Ainda é cedo e com certeza Stan ainda está desmaiado.

– O que você vai fazer? – Ela bocejou enquanto lhe devolvia o copo vazio.

Ele acenou para o notebook.

– Vou levar isso até a sala de estar lá embaixo e analisar a sequência que fizemos ontem à noite. Acho que devo estar com todas as câmeras remotas carregadas.

– Fique aqui – ela pediu ao movimentar os pés embaixo dos lençóis.

– Tem certeza?

O sorriso dela enquanto descansava a cabeça nos travesseiros mostraram seus dentes perfeitos... e o lado doce de sua personalidade.

– Sim, vou dormir melhor com você aqui. Além disso, você cheira bem depois do banho.

Cara, ela tinha um jeitinho: olhando-o da cama daquela maneira, teria sido necessário um exército para tirá-lo do quarto.

– Ok. Vá dormir, Lolli.

Ela sorriu diante do apelido carinhoso que lhe deu depois da primeira noite em que dormiram juntos.

– Vou. E obrigada por ficar aqui comigo.

Quando ela fechou os olhos, dirigiu-se até a cadeira perto da janela e ligou o laptop.

As gravações das minúsculas câmeras que tinham escondido no corredor do andar debaixo, na sala de estar e no grande carvalho perto da varanda de fato já tinham sido carregadas.

Por causa do que tinha acontecido, desejou que tivessem colocado uma câmera remota no quarto de Holly, mas essa era a questão: se os fantasmas realmente não existiam, por que se dar ao trabalho? As filmagens foram feitas apenas para captar a atmosfera do local... e para preparar toda a enganação que viria mais tarde, quando chegasse a hora do “invocamos os espíritos da casa!”.

Quando começou a olhar as imagens que haviam sido capturadas, percebeu que estava fazendo isso há quanto tempo? Dois anos? E mesmo assim não tinha visto ou ouvido nada que não pudesse ser explicado.

O que era bom. Não estava tentando provar a existência de espíritos. Estava apenas vendendo entretenimento.

A única coisa que tinha aprendido nos últimos 24 meses é que aquele era um bom trabalho, mentir nunca foi um problema para ele. De fato, seu total conforto com falsidade era a razão pela qual era um perfeito produtor de televisão: tudo girava em torno dos objetivos e detalhes, fossem locações, talentos, agentes, proprietários de casas ou seja lá o que estivesse no filme, não eram nada além de latas de sopas num armário para serem arrumadas segundo sua vontade. Para conseguir fazer seu trabalho, mentia sobre contratos, datas, imagens e sons. Havia falsificado, enganado e ameaçado com falácias.

Ele posicionava, mirava e...

Gregg franziu a testa e se inclinou para a tela.

Movendo o cursor em direção ao botão que retrocedia as imagens, repassou o segmento que havia sido gravado no corredor.

O que viu foi um vulto escuro movendo-se no corredor do lado de fora de seus quartos e... desaparecendo na frente do de Holly. O horário no canto inferior direito: 12h11 da manhã.

Exatamente 45 minutos antes dela procurá-lo.

Gregg repetiu o segmento, observando aquela sombra enorme caminhar pelo corredor mal iluminado, bloqueando a iluminação que entrava através da janela na outra extremidade.

Em sua mente, ouviu a voz de Holly: Porque eu acabei de transar com ele.

Raiva e ansiedade formavam um turbilhão em sua cabeça, deixou a gravação continuar, os minutos passando naquele canto direito. E então lá estava, alguém deixando o quarto de Holly, saindo, bloqueando a luz, mais ou menos trinta minutos depois.

A figura caminhou na direção oposta da que tinha vindo quase como se soubesse onde a câmera estava e não quisesse mostrar o rosto.

No exato momento em que Gregg estava prestes a chamar a polícia local... a maldita coisa desapareceu no ar.

Que. Droga. Foi. Essa?

 

 


                               CONTINUA