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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE VINGADO / J. R. Ward
AMANTE VINGADO / J. R. Ward

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

Nas sombras da noite em Caldwell, Nova Iorque, desenrola-se uma guerra letal entre os vampiros e seus assassinos. Também existe uma Irmandade secreta que não se compara a nenhuma outra que tenha existido. Agora, enquanto os guerreiros vampiros defendem a sua raça daqueles que querem exterminá-los, a lealdade de um homem para a Irmandade será posta a prova — e sua perigosa natureza será revelada...
Rehvenge sempre manteve distância da Irmandade, mesmo que sua irmã esteja casada com um de seus membros, pois guarda um letal secreto que poderia fazer dele um grande lastro em sua guerra contra os restrictores. E enquanto as conspirações dentro e fora da Irmandade ameaçam revelar a verdade sobre o Rehvenge, ele se aproximará da única luz que ilumina seu mundo de escuridão e que trata de sustentá-lo, Ehlena, uma vampira que nunca conheceu a corrupção e traição... a única pessoa que pode salvá-lo da destruição eterna.

 

 

 


Capítulo 1


— O rei deve morrer.
Quatro palavras, algumas sílabas. Separadas não eram nada em especial. Juntas? São um mau agouro de todo tipo de merda. Assassinato. Deslealdade. Traição.
 Morte.
No tenso momento que houve logo depois de que as dissessem, Rehvenge se manteve em silêncio deixando que o quarteto permanecesse suspenso no carregado ar do escritório, quatro pontas de uma sinistra e maligna bússola com a qual estava intimamente familiarizado.
— Tem alguma resposta? – perguntou Montrag, filho de Rehm.
— Não.
Montrag piscou e brincou com a gravata de seda que tinha posta no pescoço. Como a maioria dos membros da glymera, tinha ambos os sapatos de veludo firmemente plantados na seca e rarefeita areia de sua classe. O que simplesmente significava que era francamente pedante, arrogante em todo aspecto. Com sua jaqueta de smoking, e suas impecáveis calças… Merda, na verdade eram polainas? Parecia saído das páginas de uma Vanity Fair. De uns cem anos atrás. E no que se referia à política, com sua infinidade de atitudes condescendentes e suas brilhantes e fodidas idéias era como Kissinger sem um presidente: toda análise sem nada de autoridade o que deveria explicar esta reunião não é assim?
— Não te detenha agora. – disse Rehv — Já que você saltou do edifício. A aterrissagem não será mais suave.
Montrag franziu o cenho.
— Não posso ver isto com a mesma rapidez que você.
— Quem está rindo?
Um golpe na porta do escritório fez com que Montrag girasse a cabeça, tinha o perfil de um cavalheiro irlandês: todo nariz.
— Entre.
A doggen que respondeu à ordem entrou lutando com o peso do serviço de prata que carregava. Com uma bandeja de ébano do tamanho de um alpendre nas mãos começou a atravessar o cômodo, encurvada devido a carga.
Até que levantou a cabeça e viu Rehv.
Congelou-se como uma fotografia instantânea.
— Tomaremos o chá aqui. — Montrag apontou à mesa que havia no meio dos dois sofás de seda nos que estavam sentados — Aqui.
A doggen não se moveu, ficou olhando fixamente o rosto de Rehv.
— O que foi? — perguntou Montrag quando as xícaras começaram a tremer, e um som tilintante começou a surgir da bandeja — Ponha nosso chá aqui, agora.
A doggen inclinou a cabeça, murmurou algo, e se adiantou lentamente, pondo um pé diante do outro como se estivesse se aproximando de uma serpente enroscada. Ficou tão afastada de Rehv como pôde, e depois de deixar o serviço, suas trementes mãos mal eram capazes de pôr as xícaras sobre os pires.
Quando foi agarrar o bule, era evidente que ia derramar a merda por todos os lados.
— Deixe que eu faça. — disse Rehv, esticando a mão.
Quando a doggen fez um movimento brusco para afastar-se dele, o bule virou na mão e o chá começou uma queda livre.
Rehv apanhou a prata quente entre suas palmas.
— O que você fez! — exclamou Montrag, levantando-se de um salto do sofá.
A doggen se encolheu, levando as mãos à cara.
— Sinto muito, amo. Verdadeiramente, o…
— Oh, te cale, e nos traga um pouco de gelo…
— Não é sua culpa. — Rehv desviou a mão tranqüilamente para o bule e começou a servir — E eu estou perfeitamente bem.
Ambos o olharam como se estivessem esperando que desse um salto e começasse a sacudir o traseiro ao ritmo de ow—ow—ow.
Deixou o bule de prata e olhou os pálidos olhos de Montrag.
— Um torrão. Ou dois?
— Posso… Posso te oferecer algo para essa queimadura?
Sorriu, mostrando as presas a seu anfitrião.
— Estou perfeitamente bem.
Montrag pareceu ofendido pelo fato de não poder fazer nada, e voltou seu desgosto para a criada.
— É uma desgraça absoluta. Vá.
Rehv olhou a doggen. Para ele suas emoções eram como um ralo tridimensional de medo, vergonha e pânico, e a trama trançada enchia o espaço que a rodeava tão certamente como o faziam seus ossos, seus músculos e sua pele.
— Fique tranqüila. — disse-lhe com o pensamento — E tenha certeza que endireitarei isto.
O assombro relampejou em seu rosto, seus ombros afrouxaram a tensão e se girou aparentando estar muito mais tranqüila.
Quando se foi, Montrag clareou a garganta e voltou a sentar.
— Não acredito que vá prestar. É absolutamente incompetente.
— Por que não começamos com um torrão? — Rehv deixou cair um cubo de açúcar dentro do chá — E veremos se deseja outro.
Estendeu a mão com a xícara, mas não muito afastada, para que Montrag se visse forçado a levantar-se novamente do sofá e a inclinar-se sobre a mesa.
— Obrigado.
Rehv não soltou o pires enquanto promovia uma mudança de parecer na mente de seu anfitrião.
— Deixo as fêmeas nervosas. Não foi sua culpa.
Abriu a mão abruptamente e Montrag lutou para pegar a Royal Doulton[1].
— Oops. Não o derrame. — Rehv voltou a se reclinar contra o sofá — Seria uma pena manchar este tapete tão fino. Aubusson, verdade?
 — Ah… Sim. — Montrag voltou a sentar-se e franziu o cenho, como se não tivesse idéia de porque tinha trocado de opinião com respeito a sua criada — Errr… Sim, é. Meu pai comprou faz muitos anos. Tinha um gosto apurado, não é mesmo? Construímos esta sala especialmente para este tapete, porque é muito grande, e a cor das paredes foi escolhida especificamente para fazer ressaltar seus matizes cor pêssego.
Montrag passeou a vista pelo escritório e sorriu para si mesmo enquanto sorvia, com o dedo mindinho estendido no ar como se fosse uma bandeira.
— Como está seu chá?
— Perfeito, mas você não tomará um pouco?
— Não sou bebedor de chá. — Rehv esperou até que a xícara estivesse nos lábios do macho — Então estava falando de assassinar Wrath?
Montrag cuspiu o Earl Grey[2], salpicou a frente de sua jaqueta de smoking cor vermelha sangue e sujou o estupendo tapete do papai.
Quando o macho começou a bater fracamente as manchas, Rehv lhe ofereceu um guardanapo.
— Tome, use isto.
Montrag pegou o quadrado de damasco, e acariciou torpemente seu peito, logo o deslizou pelo tapete com igual falta de resultados. Era evidente, que era o tipo de macho que fazia tramas e não do tipo que os solucionava.
— Em que estávamos? — murmurou Rehv.
Montrag atirou o guardanapo na bandeja e ficou de pé, esquecendo o chá, para passear pelo cômodo. Deteve-se frente a uma grande paisagem montanhosa e pareceu estar admirando a dramática cena, iluminada por focos, de um soldado colonial rezando aos céus.
Falou com a pintura.
— Está a par de que muitos irmãos de sangue foram abatidos nas incursões dos lessers.
— E eu aqui pensando que tinham me escolhido leahdyre[3] do conselho devido a minha animada personalidade.
Montrag o olhou agressivamente por cima do ombro, seu queixo elevado de forma tipicamente aristocrática.
— Perdi a meu pai, a minha mãe e a todos os meus primos e irmãos. Enterrei a todos e cada um deles. Pensa que isso é motivo de regozijo?
— Minhas desculpas. — Rehv colocou a palma da mão direita sobre o coração e inclinou a cabeça, apesar de que não lhe importava uma merda. Não ia ser manipulado pela menção de suas perdas. Especialmente quando todas as emoções do cara falavam de cobiça e não de dor.
Montrag deu as costas à pintura, e sua cabeça ocupou o lugar da montanha sobre a qual estava o soldado colonial… Pelo que dava a impressão que o pequeno homem de uniforme vermelho estava tratando de subir pela sua orelha.
— Devido às incursões, a glymera suportou perdas sem igual. Não só em vidas, mas também em propriedades. Casas saqueadas, antiguidades e obras de arte roubadas, contas de banco desaparecidas. E o que Wrath fez? Nada. Não deu resposta às freqüentes perguntas a respeito de como foram encontradas as residências dessas famílias… Por que a Irmandade não deteve os ataques… Onde foram parar todos esses bens? Não há um plano para assegurar-se que nunca mais volte a ocorrer algo assim. Não oferecem a segurança a nós, poucos membros restantes da aristocracia, de que se retornássemos a Caldwell, estaríamos protegidos. — Montrag realmente se entusiasmou, sua voz se elevava e ricocheteava contra a parte mais alta do teto dourado com molduras — Nossa raça está morrendo e precisamos de uma verdadeira liderança. Não obstante, por Lei, enquanto o coração de Wrath siga pulsando em seu peito, seguirá sendo rei. A vida de um é mais valiosa que a vida de muitos? Examine seu coração.
Oh, Rehv estava olhando em seu interior, esse era, esse negro e maldito músculo.
— E... Logo o que?
— Assumimos o controle e fazemos o correto. Durante seu reinado, Wrath reestruturou as coisas… Olhe o que fez às Escolhidas. Agora estão autorizadas a emparelhar-se deste lado… Algo nunca visto! E a escravidão está abolida, junto com a Sehclusion das fêmeas. Virgem Escriba querida, quando quiserem acordar haverá um integrante da Irmandade com saia. Se nós estivermos na liderança, podemos reverter o que ele tem feito e reformar as leis adequadamente para preservar as tradições. Podemos organizar uma nova ofensiva contra a Sociedade Lessening. Podemos triunfar.
— Está empregando muitos “nós”, e por alguma razão não acredito que isso represente exatamente o que tem em mente.
 — Bom, é obvio que deverá haver um indivíduo que seja o primeiro entre seus iguais. — Montrag alisou as lapelas da sua jaqueta de smoking e inclinou a cabeça e o corpo como se tivesse posando para uma estátua de bronze ou talvez para um bilhete — Um macho de valor que esteja à altura do cargo e resulte ser o escolhido.
— E como seria escolhido este modelo de virtudes?
— Nos tornaremos uma democracia. Uma democracia que foi longamente postergada e que substituirá o injusto e desigual costume da monarquia.
Quando o bate-papo seguiu seu curso, Rehv se reclinou para trás, cruzou as pernas à altura do joelho e uniu os dedos das mãos formando uma carpa. Sentado no acolchoado sofá de Montrag, suas duas metades entraram em conflito, o vampiro e o symphath colidiram.
O único benefício disso era que o combate interno gritante sufocava o som nasal de todo esse “Eu-sei-tudo”.
A intenção era óbvia: livrar-se do Rei e tomar o controle da raça.
O ato era inconcebível: matar a um bom macho, um bom líder e… Uma espécie de amigo.
—… e escolheríamos a quem nos lideraria. O faríamos responsável pelo Conselho. Asseguraríamo-nos que nossas preocupações fossem atendidas. — Montrag retornou a seu sofá, sentou-se e ficou cômodo como se fosse seguir com esse bate-papo exagerado e vazio sobre o futuro durante horas — A monarquia não está funcionando e a democracia é a única maneira…
Rehv lhe interrompeu:
— Em geral a democracia implica que todo mundo pode votar. Digo-lhe isso só se por acaso não está familiarizado com a definição.
— E assim o faríamos. Todos os que servimos no Conselho estaríamos na junta eleitoral. Todo mundo seria considerado.
— PTI, o termo abrange algumas pessoas mais além de “todos os que são como nós”.
Montrag lhe dirigiu um olhar carregado de “Oh-por-favor-fale-sério”.
— Honestamente confiaria a raça às classes baixas?
— Não depende de mim.
— Poderia. — Montrag levou a xícara aos lábios e o olhou por cima da borda com olhos penetrantes — Poderia perfeitamente. É nosso Leahdyre.
Olhando fixamente ao homem, Rehv viu o caminho tão claramente como se estivesse pavimentado e iluminado com fachos de luzes halogênias: se Wrath fosse assassinado, sua linhagem real terminaria, porque ainda não tinha gerado um filho. Às sociedades, particularmente aquelas que estavam em guerra como a dos vampiros, aborreciam os vazios na liderança, por isso uma mudança radical da monarquia à “democracia” não resultava tão inconcebível como teria sido em outra época mais racional e segura.
A glymera poderia estar fora de Caldwell e escondida nos refúgios dispersados por toda a Nova Inglaterra, mas essa turma de filhos da puta decadentes tinha dinheiro e influências e sempre tinham desejado tomar o poder. Com este plano em particular, podiam disfarçar suas ambições com as vestimentas da democracia e fazer ver que estavam protegendo às pessoas sem status.
A infausta natureza do Rehv se agitou como um criminoso preso impaciente para obter a liberdade condicional. As más ações e os jogos de poder eram uma compulsão inerente a aqueles que levavam o sangue de seu pai, e parte dele desejava criar o caos… E entrar nele.
Interrompeu as tolices presunçosas de Montrag.
— Economize a propaganda. O que é que está sugerindo exatamente?
O macho fez toda uma elaborada demonstração de como deixar uma xícara de chá, como se quisesse aparentar que estava reunindo as palavras. Enfim. Rehv estava disposto a apostar que o homem sabia exatamente o que ia dizer. Uma coisa dessa natureza, não era algo que simplesmente se pensa na hora, e havia outros envolvidos. Tinha que ter.
 — Como bem sabe o Conselho vai reunir-se em Caldwell dentro de alguns dias especificamente para ter uma audiência com o Rei. Wrath chegará e… Ocorrerá um evento mortal.
— Ele viaja com a Irmandade. E não é especialmente o tipo de força muscular que possa ser evitada facilmente.
— A morte pode levar muitas máscaras. E tem muitos e variados cenários onde atuar.
— E meu papel seria…? — embora já tivesse compreendido.
Os pálidos olhos de Montrag pareciam de gelo, resplandecentes e frios.
— Sei que classe de macho é. Assim sei precisamente do que é capaz.
Isto não era uma surpresa. Durante os últimos vinte e cinco anos Rehv tinha sido um senhor das drogas, e embora não houvesse publicado sua ocupação dentro da aristocracia, os vampiros iam a seus clubes regularmente, e parte deles estavam nas filas de seus clientes químicos.
Ninguém além dos Irmãos sabia de seu lado symphath… E era sua escolha continuar oculto. Nas últimas duas décadas tinha estado pagando bem a seu chantagista para assegurar-se que continuasse sendo segredo.
— É por isso que fui a ti. — disse Montrag — Você saberá como se encarregar disto.
— É certo.
— Como Leahdyre do Conselho, estará em uma posição de enorme poder. Ainda se não eleito presidente, o Conselho persistirá. E fique tranqüilo com respeito à Irmandade da Adaga Negra. Sei que sua irmã está emparelhada com um deles. Os Irmãos não se verão afetados por isso.
— Não acredita que isto os enfurecerá? Wrath não é só seu rei. É de seu sangue.
— Proteger a nossa raça é sua obrigação primária. Eles devem nos seguir aonde vamos. E deve saber que há muitos que pensam que ultimamente estiveram fazendo um mau trabalho. Penso que talvez requeiram uma melhor liderança.
— De tua parte. Sim. Claro.
Isso seria como um decorador de interiores tratando de comandar um destacamento de tanques: um fodido carregamento de ruidosos gorjeios até que um dos soldados terminasse com o boneco de pano temporário e lhe agitasse o corpo um par de vezes. 
Esse era o plano perfeito. Sim.
E de todas as formas… Quem dizia que Montrag tinha que ser o eleito? Os acidentes ocorriam tanto aos reis como aos aristocratas.
— Devo te dizer, — continuou Montrag — o mesmo que meu pai estava acostumado a me dizer, a coordenação é tudo. Devemos nos apressar. Podemos confiar em você, meu amigo?
Rehv ficou de pé, erguendo-se sobre o outro macho. Com um rápido puxão às abas de sua jaqueta, arrumou seu Tom Ford[4], logo esticou a mão para sua bengala. Não sentia nada em seu corpo, nem sua roupa nem o peso que tinha ido de seu traseiro à planta de seus pés, nem a ponta da bengala contra a palma da mão que se queimou. O intumescimento era um efeito secundário da droga que utilizava para evitar que aflorasse seu lado mau quando estava com companhia variada, a prisão onde encerrava suas tendências sociopatas.
Não obstante, tudo o que necessitava para voltar para suas origens era pular uma dose. E uma hora depois? A maldade nele estava vivinha, abanando o rabo e pronta para brincar.
— O que me diz? — incitou Montrag.
E não era essa a pergunta?
Às vezes na vida, entre a miríade de decisões corriqueiras como, o que comer, onde dormir, e o que vestir, aparecia uma verdadeira encruzilhada. Nesses momentos, quando a névoa da relativa irrelevância se levanta e o destino te estende uma demanda de livre-arbítrio, só há esquerda ou direita… Nada de te lançar em um terreno que há entre os dois caminhos, não havia forma de negociar com a escolha que te expor.
Deve responder à chamada e escolher seu caminho. E não há volta.
Não obstante, o problema era que navegar por uma paisagem moralista era algo que tinha tido que aprender para se encaixar com os vampiros. A lição que tinha aprendido tinha perseverado, embora só até certo ponto.
E suas drogas só funcionavam de certa maneira.
Subitamente, o rosto pálido de Montrag se tingiu de uma variedade de tons de rosa pastel, o cabelo escuro do macho se tornou cor de rosa e a jaqueta de seu smoking ficou da cor do Ketchup. Enquanto uma pátina avermelhada coloria tudo, o campo visual de Rehv se achatou voltando-se como uma tela de cinema onde se via o mundo.
E talvez isto explicasse o motivo pelo qual resultava fácil aos symphaths utilizar às pessoas. Com seu lado escuro assumindo o controle, o universo tinha a profundidade de um tabuleiro de xadrez e as pessoas que haviam nele eram como peões em sua mão onisciente. Todos eles. Os inimigos… E os amigos.
— Eu me encarregarei. — anunciou Rehv — Como disse, sei o que tenho que fazer.
— Sua palavra. — Montrag estendeu a suave palma de sua mão — Dê-me sua palavra de que isto se levará a cabo em segredo e silenciosamente.
Rehv deixou que essa mão pendurasse livremente no ar, mas sorriu, revelando uma vez mais suas presas.
— Confie em mim.


Capítulo 2


Enquanto Wrath, filho de Wrath, percorria um dos becos urbanos de Caldwell, sangrava em dois lugares. Tinha uma navalhada ao longo de seu ombro esquerdo, feita por uma faca serrada, e lhe faltava uma parte da coxa, graças ao canto oxidado de um contêiner de lixo. O lesser que ia na frente, o que estava a ponto de estripar como a um peixe, não tinha sido o responsável por nenhum: os dois camaradas de cabelo branco, que cheiravam a talco de bebê, eram os artífices do dano.
E o tinham feito a uns duzentos e setenta metros dali, fazia três minutos, justo antes de ser reduzidos a um par de bolsas de adubo de minhoca.
Esse bastardo diante de si era o objetivo real.
O assassino estava movendo o traseiro rápido, mas Wrath era mais rápido ainda... Não só porque suas pernas eram mais longas, apesar do fato de que estava gotejando como uma cisterna furada. Não havia dúvida de que o terceiro morreria.
Era uma questão de vontade.
O lesser tinha escolhido o caminho errado essa noite... Embora não ao escolher esse beco em particular. Isso era o único adequado e justo, e provavelmente o não-morto fazia isso durante décadas, porque a privacidade era importante para lutar. O último que a Irmandade ou a Sociedade Lessening precisavam era à polícia humana envolvida em algo que tivesse a ver com esta guerra.
Não, o erro “Sinto-essa-não-é-a-resposta-correta” do bastardo tinha sido há uns quinze minutos atrás, quando tinha assassinado a um macho civil. Com um sorriso na cara. Diante de Wrath.
Tinha sido pela fragrância de sangue fresco de vampiro que o rei tinha encontrado ao trio de assassinos em primeiro lugar, lhes apanhando no ato de tentar seqüestrar a um de seus civis. Tinha resultado evidente que sabiam que era, no mínimo, um membro da Irmandade, porque esse lesser que ia na sua frente tinha matado ao macho para que ele e seu esquadrão pudessem ter as mãos livres e pudessem enfocar-se completamente na briga.
A parte triste era que a chegada de Wrath tinha economizado ao civil uma larga e lenta morte por tortura em um dos acampamentos de tortura da Sociedade. Mas ainda assim lhe arderam às vísceras ao ver como fatiavam a um apavorado inocente e o atiravam sobre o frio e gretado pavimento como se fosse uma marmita vazia.
Assim que esse filho da puta dali ia cair.
Olho-por-olho e tudo isso.
Ao chegar ao final do beco sem saída, o lesser fez um salto de preparação, girando, plantando os pés e tirando sua faca. Wrath não retardou seu avanço. No meio da corrida, liberou um de seus shuriken[5] e lançou a arma com um golpe de mão, alardeando com o lançamento.
Algumas vezes queria que seu oponente soubesse o que lhe era atirado.
O lesser seguiu a coreografia à perfeição, trocando seu ponto de apoio e afrouxando sua postura de combate. Enquanto Wrath cortava a distância, lançou outra estrela e outra mais, impulsionando o lesser para uma posição escondida.
O Rei Cego se desmaterializou justo sobre o idiota, golpeando de cima, despiu as presas para fechá-las na nuca do assassino. A aguda doçura do sangue do lesser era o sabor do triunfo, e o coro da vitória tampouco demorou a chegar, quando Wrath agarrou ao bastardo pela parte superior de ambos os braços.
A vingança era um estalo. Ou melhor dizendo, dois.
A coisa gritou quando ambos os ossos saíram de suas cavidades, mas o uivo não viajou muito longe depois que Wrath lhe fechasse a boca com a palma da mão.
— Isto é só o aquecimento. — vaiou Wrath — É importante relaxar antes de começar a exercitar-se.
O rei girou o assassino e baixou o olhar para a coisa. Desde trás dos envolventes óculos, seus olhos débeis estavam mais agudos do que o habitual, a adrenalina navegava ao longo de suas veias lhe dando um aumento de acuidade visual. O que era bom. Precisava ver o que tinha matado com uma forma que não tinha nada a ver assegurando a precisão de um golpe mortal.
Enquanto o lesser lutava para respirar, a pele de seu rosto brilhava com uma pátina irreal e plástica — como se a estrutura óssea tivesse sido estofada com a merda com a que fabricava os sacos de arroz — e os olhos estavam se esbugalhando, o fedor doce da coisa parecia a doçura de um animal atropelado na estrada durante uma noite cálida.
Wrath soltou a corrente de aço que pendurava do ombro de sua jaqueta de motoqueiro e desenrolou os elos brilhantes tirando-os de debaixo de seu braço. Segurando o grande peso na mão direita, envolveu seu punho, ampliando a envergadura de seus nódulos, aumentando seus duros contornos.
— Diga “uísque”.
Wrath golpeou à coisa no olho. Uma vez. Duas. Três vezes. Seu punho era um aríete, a órbita do olho cedia terreno como se não fosse mais que uma porta. Com cada excruciante impacto, o sangue negro saltava e salpicava, golpeando Wrath na cara, na jaqueta e nos óculos. Sentia todas as salpicadas, apesar do couro que vestia, e desejava mais.
Era um glutão para esse tipo de comida.
Com um sorriso duro, deixou que a corrente se desenrolasse de seu punho, e golpeasse o sujo asfalto com uma risada efervescente, metálica, como se tivesse desfrutado tanto como ele. A seus pés, o lesser não estava morto. Embora fosse indubitável que a coisa estava desenvolvendo hematomas sub-durais maciços na parte dianteira e traseira do cérebro, ainda vivia, porque só havia duas formas de matar a um assassino.
Uma era lhe atravessar o peito com as adagas negras que os Irmãos tinham embainhadas ao peito. Isso enviava aos PDM[6] de volta com seu criador, o Omega, mas era só uma solução temporária, porque o mal simplesmente utilizava essa essência para converter a outro humano em uma máquina assassina. Não era uma morte, a não ser um atraso.
O outro modo era permanente.
Wrath tirou seu celular e ligou. Quando respondeu uma voz masculina com acento de Boston, disse:
— Oito e Trade. Três caídos.
Butch O'Neal, também conhecido como Dhestroyer, descendente de Wrath, filho de Wrath, era caracteristicamente fleumático em suas respostas. Realmente centrista. Tolerante. Deixando muito espaço para a interpretação de suas palavras:
— Oh, caralho, pelo amor de Deus. Está brincando? Wrath, tem que acabar com esta merda de multiuso. Agora é o rei. Já não é um Irmão...
Wrath fechou o telefone.
Sim. A outra forma de livrar-se destes filhos da puta, a forma permanente, estaria ali em cinco minutos. Com sua língua solta. Infelizmente.
Wrath se sentou sobre os calcanhares, voltando a enrolar a corrente em seu ombro, e levantou o olhar para o quadrado de céu noturno visível sobre os telhados. Quando sua adrenalina decaiu, só foi capaz de distinguir ligeiramente os escuros esqueletos dos edifícios que se elevavam contra o plano da galáxia, e franziu os olhos com força.
Já não é um Irmão.
É uma merda que não o era. Não lhe importava o que dissesse a lei. Sua raça necessitava que fosse mais que um burocrata.
Com uma maldição na Antiga Língua, voltou para sua atividade, e revisou a jaqueta e as calças do assassino em busca de uma identificação. No bolso de trás, encontrou uma fina carteira com uma carteira de motorista e dois dólares dentro...
— Creio... Que ele era um dos seus...
A voz do assassino era de uma vez aflautada e maliciosa, e o som de filme de horror detonou a agressividade de Wrath uma vez mais. Repentinamente, sua visão se tornou mais aguda, e pôde enfocar pela metade seu inimigo.
— O que disse?
O lesser sorriu um pouco, parecendo não notar que a metade de sua cara tinha a consistência de uma omelete muito líquida.
— Sempre foi... Um dos nossos.
— De que merda está falando?
— Como... Acredita... — o lesser tomou um tremente fôlego — Que encontramos... Todas aquelas casas neste verão...?
A chegada de um veículo cortou as palavras, e Wrath girou a cabeça precipitadamente. Graças ao fodido Deus era o Escalade negro que estava esperando e não algum humano com um celular ligado em uma chamada ao 911.
Butch O'Neal saiu de trás do volante, com suas mandíbulas funcionando a toda marcha.
— Você perdeu a fodida cabeça? O que vamos fazer contigo? Vai...
Enquanto o polícia continuava com todo o maldito repertório, Wrath voltou o olhar para o assassino.
— Como as encontraram? As casas?
O assassino começou a rir, o débil ofego era o tipo de coisas que ouvia de um desequilibrado.
— Porque ele tinha estado em todas elas... Assim é como o fizemos.
O bastardo desmaiou, e lhe sacudir não ajudou a lhe trazer de volta. Tampouco o fez uma bofetada nem duas.
Wrath ficou em pé e a frustração desencadeou a fúria.
— Faz seu trabalho, polícia. Os outros dois estão depois do contêiner da quadra seguinte.
O polícia simplesmente o olhou.
— Supõe-se que você não luta.
— Sou o rei. Posso fazer o que me dê a maldita vontade.
Wrath começou a afastar-se, mas Butch lhe agarrou o braço.
— Beth sabe onde está? O que está fazendo? Disse a ela? Ou é só a mim a quem está pedindo que guarde este segredo?
— Preocupa-se disso. — Wrath assinalou ao assassino — Não por mim e minha shellan.
Quando se liberou, Butch ladrou.
— Aonde vai?
Wrath avançou e encarou ao polícia.
— Pensei em ir recolher o cadáver de um civil para levá-lo até o Escalade. Tem algum problema com isso, filho?
Butch se manteve firme. Só mais uma amostra do sangue que compartilhavam.
— Perdemos você como rei e a raça inteira está fodida.
— E só ficam quatro Irmãos no campo de batalha. Você gosta dessa matemática? Eu não.
— Mas...
— Faz seu trabalho, Butch. E fique à margem do meu.
Wrath percorreu a pernadas os duzentos e setenta metros de volta onde tinha começado a briga. Os assassinos vencidos estavam justo onde os tinha deixado: gemendo no chão, com suas extremidades formando ângulos estranhos, seu sangue negro gotejando e formando asquerosos atoleiros lamacentos sob seus corpos. Entretanto, já não eram assunto dele. Rodeando o contêiner olhou ao civil morto e se precaveu que lhe dificultava a respiração.
O rei se ajoelhou e cuidadosamente afastou o cabelo da cara golpeada como a merda do macho. Evidentemente, o cara se defendeu, recebendo um bom número de golpes antes que lhe apunhalassem o coração. Um pirralho valente.
Wrath espalmou a mão sob a nuca do macho, deslizou o outro braço sob os joelhos, e o levantou lentamente. O peso do morto era mais pesado que os quilos do corpo. Enquanto se afastava do contêiner e se aproximava do Escalade, Wrath se sentia como se sustentasse à raça inteira em seus braços, e se alegrou de ter que levar óculos de sol para proteger seus débeis olhos.
Seus óculos envolventes ocultavam o brilho das lágrimas.
Passou junto a Butch enquanto o polícia caminhava para os destroçados assassinos para fazer o seu trabalho. Depois que as pisadas do homem se detiveram, Wrath ouviu uma larga e profunda inalação que soava como o vaio de um balão desinflando-se lentamente. O vômito que seguiu foi muito mais ruidoso.
Enquanto a sucção e as arcadas se repetiam, Wrath deitou ao morto na parte de trás do Escalade e lhe revistou os bolsos. Não havia nada... Nem carteira, nem telefone, nem sequer um pacote de chiclete.
— Foda.
Wrath deu a volta e se sentou no pára-choque traseiro do SUV. Um dos lessers já lhe tinha limpado no curso da luta... E como todos os assassinos acabavam de ser inalados, isso significava que a identificação do civil já era pó.
Enquanto Butch se aproximava do Escalade cambaleando pelo beco, o polícia parecia um bêbado farreando e já não cheirava a Acqua di Parma. Fedia a lesser, como se tivesse secado sua roupa com lenços umedecidos Downy, como se tivesse um par de ambientadores de carro com fragrância de baunilha sob as axilas, e tivesse caído sobre algum peixe morto.
Wrath se levantou e fechou a parte traseira do Escalade.
— Está certo que pode dirigir? — perguntou quando Butch se colocou cuidadosamente atrás do volante, com pinta de estar a ponto de vomitar.
— Sim. Estou bem.
Wrath sacudiu a cabeça ante a voz rouca e examinou o beco. Não havia janelas nos edifícios, e fazer Vishous vir imediatamente para aliviar ao polícia não levaria muito tempo, mas entre as brigas e a limpeza tinham ocorrido muitas coisas ali durante a última meia hora. Deviam sair da zona.
Originalmente, o plano de Wrath tinha sido tirar uma foto da identidade do assassino com a câmara de seu celular, aumentá-la o suficiente para poder ler o endereço, e logo ir atrás desse estúpido. Não obstante não podia deixar Butch sozinho.
O polícia pareceu surpreso quando Wrath entrou no assento do passageiro do Escalade.
— O que está...?
— Levaremos o corpo à clínica. V pode encontrar-se contigo ali e se ocupar de você.
— Wrath...
— Discutimos pelo caminho, o que acha, primo?
Butch arrancou o SUV, saiu de marcha ré do beco, e girou ao chegar ao primeiro cruzamento das ruas. Quando chegou ao Trade, dobrou à esquerda e se dirigiu às pontes que se estendiam sobre o Rio Hudson. Enquanto conduzia, tinha os nódulos brancos sobre o volante... Não porque tivesse medo, mas sim porque indubitavelmente estava tentando conter a bílis no estômago.
— Não posso seguir mentindo assim. — resmungou Butch quando alcançaram o outro lado de Caldwell.
Uma arcada foi seguida por uma tosse.
— Sim, pode.
O polícia levantou o olhar.
— Está me matando. Beth deve saber.
— Não quero que se preocupe.
— Entendo isso... — Butch emitiu um som afogado — Espera.
O polícia estacionou sobre a borda gelada, abriu a porta de repente, e vomitou como se seu fígado tivesse recebido ordens de evacuação de seu cólon.
Wrath deixou que sua cabeça caísse para trás, uma dor tinha se instalado detrás de seus olhos. A dor não era uma surpresa, em absoluto. Ultimamente tinha enxaquecas como os alérgicos tinham espirros.
Butch estendeu a mão para trás e apalpou o console central, com a parte superior de seu corpo ainda arqueada para fora do Escalade.
— Quer a água? — perguntou Wrath.
— S... — as náuseas cortaram o resto da palavra.
Wrath agarrou uma garrafa de Poland Spring, abriu-a, e a pôs na mão de Butch.
Quando se produziu uma pausa na “vomitação”, o polícia tragou um pouco de água, mas a merda não permaneceu dentro.
Wrath tirou seu celular.
— Vou chamar o V agora.
— Dê-me só um minuto.
Levou dez, mas finalmente, o polícia conseguiu voltar para o carro e lhes devolveu à estrada. Ambos permaneceram em silêncio durante um par de quilômetros, o cérebro de Wrath correndo enquanto sua dor de cabeça piorava.
Já não é um Irmão.
Já não é um Irmão.
Mas tinha que ser. Sua raça precisava dele.
Clareou a garganta.
— Quando V aparecer no necrotério, você vai dizer que encontrou o corpo do civil e fez essa merda com os lessers.
— Ele quererá saber por que você estava ali.
— Diremos que estava na quadra seguinte me reunindo com o Rehvenge no ZeroSum e pressenti que precisava de ajuda. — Wrath se inclinou no assento dianteiro e fechou uma mão sobre o antebraço do cara — Ninguém vai saber, entendido?
— Isto não é boa idéia. Isto não é boa idéia.
— É uma merda que não.
Enquanto permaneciam em silêncio, as luzes dos carros do outro lado da auto-estrada fizeram que Wrath fizesse uma careta, apesar de que suas pálpebras estavam baixas e os óculos escuros em seu lugar. Para evitar o brilho, girou o rosto para o lado, como se olhasse pela janela.
— V suspeita que algo esteja acontecendo. — resmungou Butch depois de um momento.
— E pode seguir suspeitando. Preciso estar no campo de batalha.
— E se ferirem você?
Wrath colocou o antebraço sobre o rosto com a esperança de bloquear esses malditos faróis dianteiros. Caralho, agora era ele quem tinha náuseas.
— Não me ferirão. Não se preocupe.


Capítulo 3


— Preparado para seu suco, pai?
Quando não houve resposta, Ehlena, filha de sangue de Alyne, deteve-se no processo de abotoar o uniforme.
— Pai?
Da sala e por cima das melodiosas notas de Chopin lhe chegou o som de um par de pantufas movendo-se sobre as tábuas do piso de madeira nuas e uma suave cascata de apressadas palavras, como um maço de cartas ao ser embaralhadas.
Isso era bom. Levantou-se por si mesmo.
Ehlena jogou o cabelo para trás, e utilizou uma rede branca para manter o coque em seu lugar. Entretanto no meio do caminho mudou de opinião, ia ter que refazer o coque. Havers, o médico da raça, exigia que suas enfermeiras fossem tão esticadas, engomadas e bem organizas como tudo em sua clínica.
Sempre dizia que as normas eram críticas.
No caminho para seu dormitório, recolheu uma mochila de ombro negra que tinha comprado na Target. Dezenove dólares. Um roubo. Nela colocou a saia curta e a camiseta pólo de imitação que ia trocar pelo uniforme ao redor de duas horas antes do amanhecer.
Um encontro. Realmente ia ter um encontro.
A ida ao andar superior onde estava a cozinha implicava só um lance de escadas, e o primeiro que fez quando emergiu do porão foi dirigir-se para o antiquado refrigerador Frigidaire . Dentro, havia dezoito pequenas garrafas de Ocean Spray Cranraspberry[7] em três filas de seis. Pegou uma da frente e depois, cuidadosamente moveu as outras para que estivessem todas alinhadas.
As pílulas estavam localizadas atrás da poeirenta pilha de livros de cozinha. Pegou uma trifluoropiperacina e dois loxacepina e as pôs em uma xícara branca. A colher de aço inoxidável que utilizou para amassá-las estava dobrada em um ligeiro ângulo, e também todas as demais.
Já levava perto de dois anos esmagando pílulas como estas.
O CranRas golpeou o fino pó branco e se mesclou com ele, e para assegurar-se de que o sabor ficava adequadamente oculto, pôs dois cubinhos de gelo na xícara. Quanto mais frio melhor.
— Pai, seu suco está preparado. — deixou a xícara na mesinha, bem em cima de um círculo de fita que delineava onde tinha que ser colocada.
As seis estantes que havia em frente estavam igual ordenadas e relativamente vazias como a geladeira, de uma delas agarrou uma caixa de Wheaties[8], e de outra tirou uma tigela. Depois de servir-se de alguns cereais foi pegar leite, e logo que terminou de utilizá-lo, voltou a deixá-lo onde estava: junto a outros dois iguais, com as etiquetas com a marca Hood  para fora.
Deu uma olhada em seu relógio e falou na Antiga Língua.
— Pai? Tenho que partir.
O sol se pôs, e isso significava que seu turno, que começava quinze minutos depois de escurecer, estava a ponto de começar.
Observou a janela que havia sobre a pia da cozinha, embora não era como se pudesse medir quanto escuro estava. Os vidros estavam cobertos por lâminas de alumínio fixas às molduras com fita adesiva.
Inclusive mesmo se ela e seu pai não fossem vampiros e incapazes de suportar a luz do sol, essas persianas Reynolds Wrap teriam sido igualmente colocadas em cada janela da casa: eram cobertas para o resto do mundo, mantendo-o fora, contendo-o a fim de que sua miserável casinha alugada estivesse protegida e isolada... De ameaças que só seu pai podia perceber.
Quando terminou o café da manhã de Campeões[9], lavou e secou sua tigela com toalhas de papel, porque as esponjas e panos de cozinha não estavam permitidos, e, junto com a colher que tinha utilizado, voltou a pôr tudo em seu lugar.
— Meu pai?
Apoiou o quadril contra o maltratado balcão de fórmica e esperou, tentando não olhar muito atentamente o maltratado papel de parede nem o chão de linóleo desgastado.
A casa era apenas um pouco melhor que um sórdido abrigo, mas era tudo o que podia permitir-se. Entre as visitas de seu pai ao médico, os remédios e a enfermeira particular não era muito que ficava de seu salário, e fazia muito que tinham gasto o pouco que ficava do dinheiro da família, prata, antiguidades, e jóias.
Apenas se mantinham a tona.
E ainda assim, quando seu pai apareceu na soleira do porão, teve que sorrir. Seu fino cabelo cinza se expandia se sobressaindo de sua cabeça para formar um halo de penugem que o fazia parecer-se com Beethoven, além de seus olhos excessivamente observadores e ligeiramente frenéticos que lhe davam o aspecto de gênio louco. Ainda assim, parecia melhor do que tinha estado em muito tempo. Por sua vez, estava vestindo um roupão desfiado de cetim e seu pijama de seda bem arrumado... Tudo para frente, a parte de cima e de baixo certas e o cinto preso. Além disso, estava limpo, recém banhado e cheirando a pós-barba de Laurel.
Era uma enorme contradição: necessitava que seu ambiente estivesse imaculado e excessivamente organizado, mas sua higiene pessoal e o que vestia não lhe representava nenhum problema. Embora talvez tivesse sentido. Ao estar compenetrado no matagal de seus pensamentos, distraía-se muito com seus delírios para ser consciente de si mesmo.
Entretanto os remédios estavam ajudando, e notou quando encontrou seu olhar e realmente a viu.
— Minha filha. — disse na Antiga Língua — Que tal está esta noite?
Ela respondeu como ele preferia, na língua mãe.
— Bem, meu pai. E você?
Ele se inclinou com a graça do aristocrata que era por linhagem e tinha sido por posição.
— Como sempre estou encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável de sua parte.
Seu pai se sentou com um movimento de seu roupão, e recolheu a xícara de cerâmica como se fosse fina porcelana inglesa.
— Aonde vai?
— Ao trabalho. Vou trabalhar.
Seu pai franziu o cenho enquanto bebia.
— Sabe bem que não aprovo que trabalhe fora de casa. Uma dama de sua estirpe não deveria estar oferecendo seu tempo dessa forma.
— Sei, meu pai. Mas me faz feliz.
Seu rosto se suavizou.
— Bom, isso é outra coisa. Ai de mim, não entendo à geração mais jovem. Sua mãe se encarregava da casa, dos serventes e os jardins, e isso era suficiente para ocupar seu ímpeto durante as noites.
Ehlena baixou o olhar, pensando que sua mãe choraria se visse como tinham terminado.
— Sei.
— Não obstante deve fazer o que desejar, e eu sempre te amarei.
Ela sorriu ante as palavras que tinha ouvido durante toda sua vida. E falando desse tema...
— Pai?
Ele baixou a xícara.
— Sim?
— Pode ser que chegue um pouco tarde esta noite.
— Seriamente? Por quê?
— Vou tomar um café com um macho...
— O que é isso?
A mudança em seu tom a fez levantar a cabeça, e olhou a seu redor para ver que... Oh, não.
— Nada, pai, de verdade, não é nada. — se equilibrou rapidamente sobre a colher que tinha utilizado para esmagar as pílulas e a recolheu, correndo para a pia como se tivesse uma queimadura que necessitasse água fria imediatamente.
A voz de seu pai tremeu.
— O que... O que isso estava fazendo aí? Eu...
Ehlena secou rapidamente a colher e a deslizou na gaveta.
— Vê? Foi-se. Vê? — assinalou aonde tinha estado a colher — A mesa está limpa. Não há nada aí.
— Estava ali... Eu a vi. Não deve deixar os objetos de metal fora... Não é seguro... Quem a deixou... Quem deixou... Quem deixou a colher...?
— A criada.
— A criada! Outra vez! Deve ser despedida. Já disse... Nada de metal fora, nada de metal fora, nada de metal. Eles estão observando, e castigarão quem desobedecer, é preciso acreditar.
No princípio, quando tinham tido lugar os primeiros ataques de seu pai, Ehlena se aproximava dele no momento em que começava a agitar-se, pensando que uma palmada no ombro ou uma mão reconfortante lhe ajudariam. Agora tinha mais experiência. Quanto menos informação sensorial entrasse em seu cérebro, mais rapidamente passava a histeria avassaladora: por conselho de sua enfermeira, Ehlena lhe assinalava a realidade uma vez e depois não se movia nem falava.
Entretanto era difícil, lhe observar sofrer e ser incapaz de fazer nada para ajudar. Especialmente quando era culpa dela.
A cabeça de seu pai se sacudia para frente e para trás, a agitação alvoroçava seu cabelo convertendo-o em uma peruca arrepiada de cachos loucos, enquanto que em seu cambaleante punho, o suco saltava fora da xícara, salpicando sobre sua mão venosa, a manga do roupão e o revestimento de fórmica, cheio de buracos, da mesa. Em seus trementes lábios, o gaguejar de sílabas se incrementava, seu gravador interno funcionando a velocidade máxima, o rubor de loucura subindo pela coluna de sua garganta e flamejando em suas bochechas.
Ehlena rezou porque este não fosse um dos maus. Os ataques, quando vinham, variavam de intensidade e duração, e as drogas ajudavam minimizando ambas as medidas. Mas algumas vezes a enfermidade superava a ingestão química.
Quando as palavras de seu pai se tornaram muito atropeladas para compreender e deixou cair à xícara ao chão, tudo o que Ehlena pôde fazer foi esperar e rezar à Virgem Escriba para que passasse logo. Obrigando seus pés a ficar presos ao gasto linóleo, fechou os olhos e envolveu o torso com os braços.
Se tivesse lembrado de guardar a colher. Se houvesse...
Quando a cadeira de seu pai caiu para trás e golpeou o chão, soube que ia chegar tarde ao trabalho.
Outra vez.
*******
Os humanos são realmente gado, pensou Xhex enquanto olhava por cima de todas as cabeças e ombros apinhados ao redor do bar para o público em geral do ZeroSum.
Era como se algum fazendeiro tivesse enchido um cocho de grãos e a granja inteira estivesse lutando para afundar o focinho nele.
Não é que as características bovinas do Homo Sapiens fossem má coisa. A mentalidade de rebanho fazia mais fácil a coisa do ponto de vista da segurança; e em certo modo, como com as vacas, a gente podia alimentar-se deles: com toda essa aglomeração em torno dessas garrafas só era questão de purgar carteiras, com a maré fluindo em um só sentido... Para o cofre.
As vendas de licor eram boas. Mas as drogas e o sexo deixavam, inclusive mais altas margens de lucro.
Xhex passeava lentamente pelo lado exterior do bar, extinguindo com olhadas duras a especulação ardente de homens heterossexuais e mulheres homossexuais. Caralho, não entendia. Nunca tinha feito. Para ser uma fêmea que não vestia nada mais que camisas sem manga, calças de couro e usava o cabelo curto como um soldado, captava atenção tanto como as prostitutas seminuas da zona VIP.
Mas bom, nestes dias o sexo duro estava na moda, e os voluntários para a asfixia auto-erótica, os látegos açoita-traseiros e as algemas triplas eram como os ratos no sistema de bocas-de-lobo de Caldwell: estavam em todas as partes e saíam de noite. O que supunha uma terceira parte dos benefícios mensais do clube.
Muito obrigado.
Entretanto, ao contrário das garotas do clube, ela nunca aceitava dinheiro em troca de sexo. Na realidade não praticava sexo, absolutamente. Exceto pelo Butch O'Neal, esse polícia. Bom, esse polícia...
Xhex chegou à altura da corda de veludo da seção VIP e deu uma olhada para a parte exclusiva do clube.
Merda. Ele estava aqui.
Bem o que necessitava esta noite.
O caramelo favorito de sua libido estava sentado na parte mais afastada, na mesa da Irmandade, seus dois camaradas lhe flanqueavam e se defendiam das três garotas que também se apertavam no banco. Demônios, parecia enorme nesse reservado, vestido com uma camiseta Affliction e uma jaqueta de couro negra que era meio motoqueiro meio colete anti-balas.
Havia armas debaixo dela. Pistolas. Facas.
Como as coisas tinham mudado. A primeira vez que tinha aparecido por ali, era do tamanho de um tamborete do bar, apenas com músculos suficientes para partir um palito para mexer coquetéis. Mas esse já não era o caso.
Enquanto ela saudava com a cabeça ao segurança e subia os três degraus, John Matthew elevou o olhar de sua Corona[10]. Inclusive através da penumbra, seus profundos olhos azuis brilharam quando a viu, cintilando como um par de safiras.
Cara, não poderia provocá-lo, o filho da puta acabava de passar sua transição. O rei era seu whard. Vivia com a Irmandade. E era um maldito mudo.
Cristo. E ela tinha acreditado que Murhder tinha sido uma má idéia? Qualquer um acreditaria que tinha aprendido a lição fazia duas décadas com esse Irmão. Mas nãããããooooo...
A questão era, que enquanto olhava ao pirralho, tudo o que podia ver era a ele estendido nu sobre uma cama, com seu grosso pênis na mão e a palma baixando e subindo... Até que seu nome escapava desses lábios em um gemido surdo e gozava sobre seu firme abdômen definido.
O trágico era que o que via não era uma fantasia. Esses exercícios pneumáticos de punho realmente tinham ocorrido. Com freqüência. E como sabia? Porque, como uma imbecil, tinha lido a mente dele e captado o Memorex[11], em uma versão tão boa como se fosse ao vivo e a cores.
Cansada até a indigestão de si mesma, Xhex se enfiou mais profundamente na seção VIP, permanecendo separada dele, e dirigindo-se a comprovar como estava a chefe das garotas. Marie-Terese era uma morena com pernas magníficas e aspecto de cara. Era um de seus melhores ativos, e uma excelente profissional e conseqüentemente exatamente a classe de PRAC que queria: nunca caía em tolices maliciosas, sempre chegava na hora a seus turnos, e nunca trazia o que quer que fosse mal em sua vida pessoal ao trabalho. Era uma boa mulher com um trabalho horrível, fazendo dinheiro à mãos cheias por uma boa razão.
— Como vão? — perguntou Xhex — Necessita algo de mim ou meus meninos?
Marie-Terese percorreu com o olhar às outras garotas, suas maçãs do rosto altas captando a tênue luz, fazendo-a parecer não só sexualmente atraente, a não ser categoricamente formosa.
— Vamos bem por enquanto. Neste momento há duas na parte de trás. Tão ocupadas como é habitual, exceto pelo fato de que nossa garota não está aqui.
Xhex juntou as sobrancelhas bruscamente.
— Chrissy outra vez?
Marie-Terese inclinou a cabeça agitando seu comprido, negro e precioso cabelo.
— Terá que fazer algo com esse cavalheiro que a reclama.
— Já fez algo, mas não o suficiente. E se esse é um cavalheiro, eu sou a safada Estée Lauder. — Xhex apertou ambos os punhos — Esse filho da puta...
— Chefe?
Xhex olhou sobre seu ombro. Além da montanha de segurança que estava tentando atrair sua atenção, captou outra visão de John Matthew. Que ainda a olhava fixamente.
— Chefe?
Xhex se concentrou.
— O que?
— Há um policial aqui que quer te ver.
Não afastou os olhos do segurança.
— Marie-Terese, diga às garotas que descansem dez minutos.
— Feito.
A puta se moveu rápido enquanto aparentava que só passeava sobre seus saltos altos, indo de uma garota a outra e lhes aplaudindo o ombro esquerdo, para depois ir bater uma vez em cada uma das portas dos banheiros privados que havia pelo escuro corredor da direita.
Quando o lugar ficou vazio de prostitutas, Xhex disse:
— Quem e por quê?
— Detetive de homicídios. — o guarda lhe ofereceu um cartão — Disse que seu nome era José da Cruz.
Xhex pegou o cartão e soube exatamente por que tinha vindo o homem. E por que Chrissy não.
— Faça-o esperar em meu escritório. Estarei ali em dois minutos.
— Entendido.
Xhex levou seu relógio de pulso aos lábios.
— Trez? iAm? Temos movimento na casa. Diga aos corredores de apostas que esfriem e ao Rally que detenha o caixa.
Quando chegou a confirmação a seu fone, comprovou outra vez se todas as garotas tinham abandonado o andar; depois se dirigiu de volta à parte pública do clube.
Enquanto abandonava a seção VIP, pôde sentir os olhos de John Matthew nela e tentou não pensar no que tinha feito fazia dois amanhecer, ao chegar a sua casa... E o que provavelmente voltaria a fazer quando estivesse sozinha ao final da noite.
John Matthew sacana. Desde que tinha se colocado em seu cérebro e tinha visto o que fazia a si mesmo cada vez que pensava nela... Ela tinha estado fazendo o mesmo.
Sacana. John Matthew.
Como se ela necessitasse desta merda.
Agora, enquanto atravessava o rebanho humano, foi rude, e não lhe importou empurrar  um casal de bailarinos com força. Quase esperava que alguém se queixasse para poder derrubá-lo sobre o traseiro.
Seu escritório estava na parte de atrás da sobreloja, tão longe como era possível de onde tinha lugar o sexo contratado e do espaço privado de Rehvenge onde se levavam a cabo os entendimentos e as surras. Como chefe de segurança, ela era a interface primária com a polícia, e não havia razão alguma para levar os uniformes azuis mais perto da ação do que devessem estar.
Limpar as mentes dos humanos era uma ferramenta útil, mas tinha suas complicações.
Sua porta estava aberta e avaliou o detetive de costas. Não era muito alto, mas aprovava sua constituição bem fornida. Sua jaqueta esporte era do Men's Wearhouse, seus sapatos, Florsheim. O relógio que aparecia por debaixo de sua manga era Seiko.
Quando se voltou para olhá-la, seus olhos escuros eram ardilosos como os do Sherlock. Pode ser que não estivesse ganhando um montão de dinheiro, mas não era tolo.
— Detetive. — lhe disse, fechando a porta e passando junto a ele para tomar seu lugar atrás da mesa.
Seu escritório estava virtualmente vazio. Não havia fotos. Nem plantas. Nem sequer um telefone ou um computador. Os arquivos que estavam nas prateleiras de três ferrolhos a prova de fogo eram relativos à parte legítima do negócio, e o cesto de papéis era um triturador de papel.
O que significava que o Detetive da Cruz não tinha averiguado absolutamente nada durante os cento e vinte segundos que tinha passado sozinho no cômodo.
Da Cruz tirou sua credencial e a mostrou.
— Estou aqui por causa de uma de suas empregadas.
Xhex fingiu inclinar-se e estudar a credencial, mas não precisava. Seu lado symphath lhe dizia tudo o que precisava saber. As emoções do detetive continham a mescla adequada de suspicácia, preocupação, resolução e encher o saco. Levava seu trabalho a sério, e estava aqui por negócios.
— Que empregada? — perguntou.
— Chrissy Andrews.
Xhex se recostou para trás em sua cadeira.
— Quando foi assassinada?
— Como sabe que está morta?
— Não brinque comigo, Detetive. Por qual outra razão alguém da Homicídios ia perguntar por ela?
— Sinto muito, estou em modo interrogatório. — deslizou sua credencial de volta no bolso interior do peito e se sentou de frente a ela na cadeira de respaldo duro — O inquilino de baixo de seu apartamento despertou com uma mancha de sangue no teto e chamou à polícia. Ninguém no edifício de apartamentos admitiu conhecer a Senhora Andrews, e não tinha nenhum parente próximo a que possamos localizar. Não obstante, enquanto revistávamos sua casa, encontramos declarações de impostos deste clube como empregador dela. Para abreviar, necessitamos que alguém identifique o corpo...
Xhex se levantou, com a palavra filho da puta rondando por seu crânio.
— Eu o farei. Deixe-me organizar a meus homens para poder sair.
Da Cruz piscou, como se estivesse surpreso de que fosse tão rápida.
— Você... Ah, quer que a leve ao necrotério?
— St. Francis?
— Sim.
— Conheço o caminho. Encontrarei-me ali com você em vinte minutos.
Da Cruz ficou em pé lentamente, com os olhos fixos em seu rosto, como se estivesse procurando sinais de nervosismo.
— Suponho que isso é um transtorno.
— Não se preocupe, Detetive. Não vou desmaiar à vista de um cadáver.
Ele a olhou de cima a abaixo.
— Sabe… De certo modo isso não me preocupa.


Capítulo 4

 
Quando o carro de Rehvenge estava dentro dos limites da cidade de Caldwell, desejou como o inferno ir diretamente ao ZeroSum. Entretanto, era mais esperto que isso. Tinha problemas.
Desde que tinha deixado o refúgio de Montrag em Connecticut, já tinha estacionado seu Bentley a um lado da estrada duas vezes para injetar-se dopamina. De todas as formas, sua droga milagrosa voltava a falhar. Se tivesse mais dessa merda no carro, teria se disparado outra injeção, mas já tinha acabado.
A ironia de um camelo[12] tendo que ir a outro camelo rapidamente não tinha desperdício, e era uma maldita vergonha que não houvesse mais demanda de neurotransmissores no mercado negro. Tal como a coisa estava, o único fornecimento de Rehv era através de meios legítimos, mas ia ter que arrumar isso. Se era o bastante esperto para subministrar X, coca, erva, meta, OxyC, e heroína através de seus dois clubes, certamente poderia averiguar como demônios conseguir suas próprias ampolas de dopamina.
— Ah, vamos, move o rabo. É só uma maldita rampa de saída. Você com certeza já viu uma antes.
Fazia um bom tempo na auto-estrada, mas agora que estava na cidade, o tráfego atrasava seu progresso, e não só por causa do congestionamento. Com sua falta de percepção de profundidade, julgar distâncias entre pára-choques era problemático, assim tinha que ir com muito mais cuidado do que gostava.
E, além disso, tinha este fodido idiota com seu calhambeque de mil e duzentos anos e seus exagerados hábitos de freadas.
— Não... Não... Por tudo quanto for sagrado não troque de pista. Já de onde está nem sequer pode ver por seu retrovisor…
Rehv pisou nos freios porque Senhor Tímido realmente estava pensando que seu lugar estava na via rápida e parecia pensar que a forma de conseguir entrar nela requeria parar por completo.
Normalmente, Rehv adorava dirigir. Inclusive preferia dirigir a desmaterializar-se porque estando medicado, era o único momento no que se sentia como se fosse ele mesmo: rápido, ágil e poderoso. Conduzia um Bentley não só porque era chique e pudesse permitir-se um, mas sim pelos seiscentos cavalos que tinha sob o capô. Estar intumescido e confiar em uma bengala para manter o equilíbrio o faziam sentir-se como um macho velho e aleijado a maior parte do tempo, e era bom ser... Normal.
É obvio, a questão de não-sentir tinha seus benefícios. Por exemplo, quando golpeasse a testa contra o volante em outro par de minutos, só ia ver as estrelas. A dor de cabeça? Não representava um problema.
A clínica encoberta da raça vampiro estava quinze minutos depois da ponte que justamente estava subindo, e as instalações não eram suficientes para as necessidades de seus pacientes, sendo pouco mais que um refúgio convertido em hospital de campo. Ainda assim a alternativa Ave Maria era tudo o que a raça tinha no momento, um jogador substituto posto em jogo porque a perna do quarteback[13] se partiu no meio.
Depois das incursões acontecidas durante o verão, Wrath estava trabalhando com o médico da raça para conseguir um novo estabelecimento permanente, mas como tudo, isso levava seu tempo. Com tantos lugares saqueados pela Sociedade Lessening, ninguém pensava que fosse boa idéia utilizar imóveis que já fossem propriedade da raça, porque só Deus sabia quantas localizações mais tinham sido infiltradas. O rei estava procurando outro lugar para comprar, mas tinha que estar isolado...
Rehv pensou em Montrag.
A guerra realmente tinha ficado circunscrita ao assassinato de Wrath?
A retórica, iniciada pelo lado vampiro dado por sua mãe, ondeou através de sua mente, mas não provocou nenhuma emoção absolutamente. O cálculo alagava seus pensamentos. O cálculo sem as travas da moralidade. A conclusão que tinha alcançado quando tinha deixado a casa de Montrag não vacilou, sua resolução só se fez mais forte.
— Obrigado, queridíssima Virgem Escriba. — resmungou quando o calhambeque deslizou fora de seu caminho e sua saída lhe apresentou como um presente, o sinal verde incandescente tinha uma etiqueta com seu nome.
Verde...?
Rehv olhou a seu redor. A pátina vermelha tinha começado a reduzir-se em sua visão, mas as outras cores do mundo reapareciam através da névoa bidimensional, e tomou um profundo fôlego de alívio. Não queria ir drogado à clínica.
Como se tivesse previsto, começou a sentir frio, apesar de que sem dúvida o Bentley estava a uns balsâmicos setenta graus, estendeu o braço para frente e girou o controle do calor. Os calafrios eram outro bom, embora inconveniente, sinal de que a medicação começava a surtir efeito.
Durante toda sua vida, viu-se obrigado a manter em segredo o que era. Os proscritos como ele tinham duas escolhas: se fazer passar por normais ou ser enviados para fora do estado, à colônia, deportados da sociedade como o lixo tóxico que eram. Que fosse mestiço não importava. Se tivesse um pouco de symphath em você, era considerado um deles, e com toda razão. A questão com os symphath era que adoravam muito a maldade em si mesmo para poder confiar neles.
Foda, sua sina foi fixada esta noite. Olhe o que estava disposto a fazer. Uma conversa e ia apertar o gatilho... Nem sequer porque tivesse que fazê-lo, só porque desejava. Necessitava-o, dizendo bem. Os jogos de poder eram oxigênio para seu lado malvado, eram inegáveis e substanciosos por sua uma vez. E os motivos atrás de sua escolha eram tipicamente symphath: serviam a ele e a ninguém mais, nem sequer ao rei com quem tinha uma espécie de amizade.
Essa era a razão pela qual, que se um vampiro comum sabia de um proscrito que andasse rondando entre a população geral, a lei opinava que tinha que dar parte do indivíduo, para sua deportação ou enfrentar cargos criminais: regular o paradeiro dos sociopatas e mantê-los afastados dos cidadãos morais e respeitosos da lei era um saudável instinto de sobrevivência em qualquer sociedade.
Vinte minutos mais tarde, Rehv estacionou ante uma grade de ferro que definitivamente estava manufaturada para fazer prevalecer sua função por cima de seu aspecto. A coisa não tinha nenhuma graça absolutamente, não eram mais que sólidas varas fixadas e soldadas entre si coroadas na parte superior com uma bobina de arame farpado. À esquerda havia um intercomunicador, e quando baixou o vidro para apertar o botão de chamada, as câmeras de segurança enfocaram a placa de seu carro, o pára-brisa dianteiro e a porta do condutor.
Assim não lhe surpreendeu o tom tenso da voz feminina que respondeu.
— Senhor... Não tinha conhecimento de que tivesse uma consulta.
— Não tenho.
Pausa.
— Como paciente ambulatorial que não necessita urgência, o tempo de espera poderia ser bastante longo. Talvez prefira programar uma consulta...
Fulminou com o olhar o visor da câmera mais próxima.
— Deixe-me entrar. Agora. Tenho que ver o Havers. E é uma emergência.
Tinha que voltar para o clube e marcar presença. As quatro horas que já tinha perdido essa noite eram toda uma vida quando se tratava de administrar lugares como o ZeroSum e o Iron Mask. A merda não só ocorria em lugares como esses, eram nosso pão de cada dia, e em seu braço tinha tatuado Eu Digo Que Vou A Missa nos nódulos.
Depois de um momento, essas feias grades, sólidas como rochas se abriram, e não perdeu tempo no caminho de acesso de um quilômetro de comprimento.
Quando virou na última curva, a casa que apareceu diante dele não merecia o tipo de segurança que tinha, ao menos não a primeira vista. A estrutura de dois andares era apenas colonial, e estava totalmente nua. Sem alpendres. Sem portinhas. Sem chaminés. Sem plantas.
Comparada com a velha casa e clínica do Havers ficava como um pobre abrigo de ferramentas no jardim.
Estacionou em frente da fileira de garagens independentes onde se guardavam as ambulâncias e saiu. O fato de que a fria noite de dezembro lhe fizesse estremecer foi outro bom sinal, e estendeu o braço para o assento traseiro do Bentley para tirar sua bengala e um de seus sobretudos de Zibelina. Junto com o intumescimento, a desvantagem de sua máscara química era uma queda na temperatura interna que convertia suas veias em espirais de ar condicionado. Viver noite e dia com um corpo que não podia sentir nem esquentar não era uma festa, mas tampouco é que tivesse escolha.
Talvez se sua mãe e sua irmã não tivessem sido normais, poderia ter cedido ao Darth Vader e abraçado o lado escuro, vivendo seus dias fodendo com as mentes de seus camaradas e fazer dano. Mas tinha posto a si mesmo em situação de ser o cabeça de seu grupo familiar, e isso lhe mantinha nesta situação que não estava nem aqui nem ali.
Rehv caminhou ao longo da casa colonial, fechando o sobretudo mais firmemente sobre a garganta. Quando chegou à altura da porta de aspecto insignificante, apertou o botão que estava embutido na lateral de alumínio e olhou o olho eletrônico. Um momento mais tarde, uma fechadura de ar se abriu com um chiado, e entrou em uma sala branca do tamanho de um armário embutido. Depois de olhar fixamente de cara à câmara, abriu-se outro ferrolho, um painel oculto retrocedeu, e desceu um lance de escadas. Outra comprovação. Outra porta. E então enfim dentro.
A área de recepção era como a espera para pacientes e familiares de qualquer clínica, com filas de cadeiras e revistas sobre mesinhas, uma TV e algumas plantas. Era menor que a da antiga clínica, mas estava limpa e bem ordenada. As duas fêmeas sentadas ficaram tensas e lhe olharam.
— Por aqui, senhor.
Rehv sorriu à enfermeira que saiu detrás do escritório de recepção. Para ele, uma “longa espera” era sempre uma espera em uma sala de exame. Às enfermeiras não gostavam que pusesse nervosa às pessoas que estavam naquelas filas de cadeiras, e a estas tampouco gostava de tê-lo por perto.
Parecia bem a ele. Não era do tipo sociável.
A sala de exame a que foi conduzido estava localizada no lado de não-emergência da clínica e era uma em que já tinha estado antes. Tinha estado em todas elas antes.
— O doutor está em cirurgia e o resto do pessoal está com outros pacientes, mas farei que uma colega venha tomar seus sinais vitais assim que possa.
A enfermeira lhe deixou como se alguém tivesse tido uma parada cardíaca corredor abaixo e ela fosse a única com pás desfibriladoras.
Rehv subiu à maca, permanecendo com o casaco e com a bengala na palma da mão. Para passar o tempo, fechou os olhos e deixou que as emoções do lugar gotejassem nele como uma vista panorâmica: as paredes do porão se dissolveram, e os ralos emocionais de cada indivíduo emergiram na escuridão, uma multidão de diferentes vulnerabilidades, ansiedades e debilidades foram expostas a seu lado symphath.
Ele tinha o controle remoto para todas elas, sabendo instintivamente que botões pulsar na enfermeira fêmea que estava na sala do lado e a quem lhe preocupava que seu hellren já não se sentisse atraído por ela... Mas que de todas as formas tinha comido muito na Primeira Comida. E no macho que estava tratando por que tinha caído pelas escadas cortando o braço... Porque tinha estado bebendo. E o farmacêutico do outro lado do corredor que até a pouco estava roubando Xanax para seu uso pessoal... Até que tinha descoberto que as câmeras ocultas que havia no lugar o estavam enfocando.
A autodestruição em outros era o reality show favorito de um sympath, e era especialmente bom quando você era o produtor. E apesar de que sua visão tinha voltado para a “normalidade” e seu corpo estava intumescido e frio, o que era em seu interior estava somente reprimido, mas não esgotado.
Para toda classe de funções que podia preparar, havia uma fonte interminável de inspiração e financiamento.
 
  —Merda.
Enquanto Butch estacionava o Escalade em frente às garagens da clínica, a boca de Wrath seguiu exercitando-se no terreno das maldições. Ante os faróis do SUV, Vishous ficou iluminado como se fosse uma garota de calendário, todo estendido sobre o capô de um Bentley muito familiar.
Wrath soltou seu cinto de segurança e abriu a porta.
— Surpresa, surpresa, meu senhor. — disse V enquanto se endireitava e dava uns golpes no capô do sedã — Deve ter sido uma reunião muito curta no centro da cidade com nosso amigo Rehvenge, né? A menos que esse cara tenha descoberto como estar em dois lugares ao mesmo tempo Em todo caso, tenho que conhecer seu segredo, não?
Filho. Da. Puta.
Wrath saiu do SUV e decidiu que o melhor curso de ação era ignorar o Irmão. Outras opções incluíam tentar debater até encontrar uma saída para a mentira dita, o que não era uma boa idéia porque de todos os defeitos de V, nenhum era no terreno intelectual; ou a outra alternativa; instigar uma briga a murros, o que seria só uma distração temporária e esbanjaria tempo quando ambos tinham que reparar a seu Humpty Dumpty[14].
Rodeando o carro, Wrath abriu a porta traseira do Escalade.
— Cure o seu menino. Eu me encarrego do corpo.
Quando carregou o peso sem vida do civil e se girou, V olhou fixamente o rosto que tinha sido golpeado até ficar irreconhecível.
— Maldita seja. — ofegou V.
Nesse momento, Butch saiu cambaleando-se detrás do volante, feito uma merda. Enquanto o aroma de talco para bebês flutuava sobre eles, lhe afrouxaram os joelhos e logo que pôde agarrou a porta em busca de apoio.
Vishous se aproximou como um raio e tomou ao polícia em seus braços, lhe segurando firmemente.
— Merda, homem, como está?
— Preparado... Para tudo. — Butch se pendurou em seu melhor amigo — Só preciso estar sob o abajur de calor um momento.
— Cure-o. — disse Wrath enquanto começava a caminhar para a clínica — Eu vou entrar.
Enquanto se afastava, as portas do Escalade se fecharam uma depois da outra, e depois houve um brilho como se as nuvens houvessem se separado deixando ver à lua. Sabia o que esses dois estavam fazendo no interior do SUV, porque tinha visto a rotina uma ou duas vezes: abraçavam um ao outro e a luz branca da mão de V banhava a ambos, o mal que Butch tinha inalado se filtrava no V.
Graças a Deus que havia uma forma de limpar essa merda do polícia. E ser um curador também era bom para o V.
Wrath chegou à primeira porta da clínica e simplesmente olhou à câmera de segurança. Abriram-lhe imediatamente, e imediatamente a fechadura de ar comprimido se soltou e o painel oculto para as escadas se abriu. Não demorou nada em descer à clínica.
Ao rei da raça com um macho morto nos braços não retinham nem um nano segundo.
Deteve-se no patamar enquanto se abria a última fechadura. Olhando à câmera, disse:
— Antes de mais nada, tragam uma maca e um lençol.
— Estamos fazendo isso agora mesmo, meu senhor. — disse uma voz diminuta.
Não mais de um segundo depois, duas enfermeiras abriram a porta, alguém estava convertendo um lençol em uma cortina para guardar a privacidade enquanto a outra empurrava uma maca até o pé das escadas. Com braços fortes e gentis, Wrath pousou ao civil tão cuidadosamente como se o homem estivesse vivo e cada osso de seu corpo fraturado; então a enfermeira que tinha dirigido a maca tomou outro lençol que vinha dobrado com forma de quadrado e o agitou para desdobrá-lo. Wrath a deteve antes que cobrisse o corpo.
— Eu o farei. — disse, tomando o lençol.
Ela o entregou com uma reverência.
Pronunciando as palavras sagradas na Antiga Língua, Wrath converteu a humilde capa de algodão em um apropriado sudário mortuário. Depois de ter rezado pela alma do homem e lhe desejar uma viagem livre e fácil ao Fade, ele e as enfermeiras guardaram um momento de silêncio antes que o corpo fosse coberto.
— Não temos identificação. — disse Wrath suspirando enquanto alisava a borda do lençol — Alguma de vocês reconhece sua roupa? O relógio? Algo?
Ambas as enfermeiras sacudiram as cabeças, e uma murmurou:
— Poremos no necrotério e esperaremos. É tudo o que podemos fazer. Sua família virá procurar por ele.
Wrath retrocedeu e observou como levavam o corpo na maca. Por nenhuma razão em particular, notou que a roda dianteira direita rebolava ao avançar, como se fosse nova no trabalho e lhe preocupasse sua atuação... Embora não fosse por isso que se fixou nela, mas sim pelo suave assobio de sua má calibrada.
Não encaixava bem. Não agüentava bem sua carga.
Wrath se sentiu identificado com ela.
Esta chatíssima guerra com a Sociedade Lessening já durava muito, e inclusive com todo o poder que ele tinha e toda a resolução que sentia em seu coração, sua raça não estava ganhando: agüentar firmemente contra o inimigo era simplesmente uma forma de perder por pontos, porque inocentes seguiam morrendo.
Girou para as escadas e cheirou o medo e respeito das duas fêmeas sentadas nas cadeiras de plástico da área de espera. Com um frenético arrastar de pés, ficaram em pé e se inclinaram ante ele, a deferência ressonou em suas vísceras como uma patada nas partes baixas. Aqui estava ele entregando a mais recente, mas nem de longe a última, vítima casual na luta, e estas duas ainda lhe apresentavam seus respeitos.
Devolveu-lhes a inclinação, mas não pôde pronunciar nenhuma palavra. O único vocabulário que tinha nesse momento estava cheio do melhor do George Carlin, e tudo isso dirigido contra si mesmo.
A enfermeira que tinha cumprido com seu dever de escudo terminou de dobrar o lençol que tinha utilizado.
— Meu senhor, talvez tenha um momento para ver o Havers. Deverá sair de cirurgia em uns quinze minutos. Parece que você está ferido.
— Tenho que voltar para... — deteve-se antes que lhe escapassem as palavras “campo de batalha” — Tenho que ir. Por favor, me façam saber o que averiguarem da família desse macho, ok? Quero conhecê-los.
Ela fez uma reverência e esperou, porque tinha intenção de beijar o enorme diamante negro que descansava no dedo anelar da mão direita de Wrath.
Wrath fechou com força seus débeis olhos e estendeu aquilo que ela estava procurando para render comemoração.
Sentiu os dedos da mulher, frescos e ligeiros sobre sua pele, seu fôlego e seus lábios foram o mais ligeiro roce. E ainda assim sentiu como se lhe açoitassem.
Enquanto se endireitava, disse-lhe com reverência:
— Que tudo corra esta noite, meu senhor
— Para você em suas horas também, leal súdita.
Deu a volta e subiu trotando as escadas, necessitando mais oxigênio do que havia na clínica. Justo quando chegava à última porta, tropeçou com uma enfermeira que estava entrando tão rápido como ele ia saindo. O impacto arrancou a bolsa negra do ombro da mulher e só teve tempo de apanhá-la antes que caísse ao chão junto com esta.
— Oh, caralho. — ladrou, deixando cair de joelhos para lhe recolher as coisas — Sinto.
— Meu senhor! — ela fez uma profunda reverência e logo obviamente se precaveu de que estava recolhendo as coisas — Não deve fazer isso. Por favor, me deixe...
— Não, foi minha culpa.
Colocou bruscamente o que parecia ser uma saia e um suéter de volta no interior da bolsa e depois quase lhe parte a cabeça ao levantar-se repentinamente.
Voltou a agarrá-la pelo braço.
— Merda, sinto muito. Outra vez...
— Estou bem... De verdade.
A bolsa trocou de mãos em uma precipitada confusão, passando de alguém que tinha pressa a alguém que estava sobressaltado.
— Pegou? — perguntou ele, preparado para começar a suplicar à Virgem Escriba que lhe deixasse sair.
— Ah, sim, mas... — seu tom mudou de reverente a clínico — Está sangrando, meu senhor.
Ele ignorou o comentário e a soltou. Aliviado ao ver que se mantinha em pé por si mesma, desejou-lhe boa noite e que fosse bem na Antiga Língua.
— Meu senhor, deveria ver...
— Lamento tê-la derrubado. — gritou por cima de seu ombro.
Abriu de um golpe a última porta e se dobrou enquanto o ar fresco lhe alagava. As profundas inspirações lhe esclareceram cabeça, e permitiu a si mesmo apoiar-se contra o revestimento de alumínio da clínica.
Quando a dor de cabeça começou a instalar-se atrás de seus olhos novamente, subiu os óculos escuros e esfregou o osso do nariz. Bem. Próxima parada... O endereço falso do lesser.
Tinha uma jarra para recolher.
Deixando cair os óculos de volta ao seu lugar, endireitou-se e...
— Não tão rápido, meu senhor. — disse V, materializando-se de repente diante dele — Você e eu temos que conversar.
Wrath despiu as presas.
— Não estou de humor para conversas, V.
— Genial. Merda.
 

Capítulo 5


Ehlena observou o rei da raça se afastar e quase partir a porta em duas ao sair.
Cara, o vampiro era grande e tinha um aspecto temível. E ser virtualmente enrolada por ele pôs a cereja final de esgotamento sobre o bolo do drama.
Alisando o cabelo e pendurando a bolsa em seu lugar, começou a descer pela escada depois de passar o ponto de controle interno. Só estava chegando uma hora atrasada para trabalhar porque — milagre dos milagres — a enfermeira de seu pai estava livre e conseguiu ir cedo. Agradecia à Virgem Escriba por Lusie.
No que se referia a ataques fortes, o de seu pai não tinha sido tão terrível como poderia ter sido, e tinha a sensação de que devia isso ao fato de que acabara de tomar os medicamentos logo antes que lhe golpeasse o ataque. Antes das pílulas, a pior de suas crises tinha durado toda a noite, assim em certo sentido, esta noite tinha sido um sinal de progresso.
Entretanto, isso não evitava que lhe rompesse o maldito coração.
Enquanto se aproximava da última câmera, Ehlena sentiu que o peso de sua bolsa se incrementava. Tinha estado pronta para cancelar seu encontro e deixar a muda de roupa em casa, mas Lusie a tinha convencido do contrário. A pergunta que a outra enfermeira tinha feito lhe tinha tocado fundo:
— Quando foi a última vez que saiu desta casa para outra coisa que não fosse trabalho?
Ehlena não tinha respondido por que era reservada por natureza… E porque ficou em branco, sem resposta.
O que era um ponto a favor de Lusie, não? Os enfermeiros tinham que ocupar-se de si mesmos, e isso implicava ter uma vida além de qualquer enfermidade que lhes tivesse obrigado a desempenhar-se como profissionais. Deus sabia que Ehlena falava disto com os membros da família de seus pacientes com enfermidades crônicas o tempo todo, e o conselho era tão sensato como prático.
Ao menos quando se tratava dos outros. Dizendo a si mesma, sentia-se egoísta.
Assim… Estava enrolando em relação ao encontro. Com seu turno terminando perto da alvorada, não teria tempo para ir para sua casa a verificar seu pai primeiro. Tal como as coisas estavam, ela e o macho que a tinha convidado para sair teriam sorte se conseguissem ter sequer uma hora de bate-papo no restaurante que permanecia aberto toda a noite antes que a intrometida luz do sol pusesse fim ao assunto.
E apesar de tudo, tinha estado ansiosa para sair, ao ponto do desespero, o que a fazia sentir-se tremendamente culpada.
Deus… Isso era típico. A consciência impulsionando-a em uma direção, a solidão em outra.
Na área de recepção, foi diretamente para a supervisora de enfermaria, que estava em frente à mesa do computador.
— Sinto muito, eu…
Catya fez uma pausa no que estava fazendo e estendeu uma mão.
— Como vai?
Por uma fração de segundo, Ehlena só pôde piscar. Odiava que todo mundo no trabalho estivesse informado dos problemas de seu pai e que alguns inclusive o tivessem visto em seu pior momento.
Embora a enfermidade o tivesse despojado de seu orgulho, ela ainda tinha algum em seu nome.
Deu uma rápida palmada na mão de sua chefe e ficou fora de seu alcance.
— Obrigado por perguntar. Agora está calmo e sua enfermeira está com ele. Por sorte, eu acabava de lhe dar sua medicação.
— Precisa de um minuto?
— Não. Como estamos?
O sorriso de Catya parecia mais uma careta que um sorriso, como se estivesse mordendo a língua. Outra vez.
— Não tem que ser forte assim.
— Sim. Tenho que ser. — Ehlena olhou a seu redor e guardou um estremecimento para si. Mais integrantes do pessoal se aproximavam dela pelo corredor, um destacamento de dez pessoas caminhando lado a lado levando uma enorme quantidade de preocupada determinação — Onde precisa de mim?
Tinha que evitar… Não teve sorte.
No momento todas as enfermeiras, exceto as da Sala de Operações que estavam ocupadas com o Havers, tinham formado um círculo ao redor dela, e Ehlena fechou a garganta quando seus colegas soltaram um coro de “Como está?”. Deus, sentia tanta claustrofobia como uma fêmea grávida presa em um elevador sufocante.
— Estou bem, obrigada a todas…
A última integrante do pessoal se aproximou. Depois de expressar sua compaixão, a fêmea sacudiu a cabeça.
— Não é minha intenção falar de trabalho…
— Por favor, faça-o. — resmungou Ehlena.
A enfermeira sorriu com respeito, como se estivesse impressionada pela fortaleza de Ehlena.
— Bom… Ele retornou e está em uma das salas de exame. Pego a moeda?
Todo mundo gemeu. Havia só um ele dentro da legião de pacientes machos que tratavam, e jogar a moeda era o que habitualmente fazia o pessoal para decidir quem devia ocupar-se dele. Era como um encontro as escuras levado a extremo.
Falando de um modo geral, todas as enfermeiras mantinham uma distância profissional com seus pacientes, porque ou o fazia, ou te consumia. Entretanto com ele, o pessoal permanecia afastado por outros motivos que não estavam relacionados com o trabalho. A maioria das fêmeas ficava nervosa em sua presença… Mesmo as mais fortes.
Ehlena? Nem tanto. Sim, o cara tinha um ar ao estilo político importante, com aqueles trajes negros de estilo diplomático, seu corte de cabelo moicano e seus olhos de ametista irradiando uma mensagem “não me irrite se quer continuar respirando”. E era certo, quando te encontrava presa em uma das salas de exame com ele, sentia-se impulsionada a manter o olho na saída se por acaso tinha que usá-la. E logo vinham aquelas tatuagens que tinha no peito… E o fato de que conservasse sua bengala com ele como se esta não só fosse uma ajuda para caminhar, mas também uma arma. E…
De acordo, então o cara também a punha nervosa.
Mas de todas as formas interrompeu uma discussão sobre quem conseguiu ter o ano 1977.
— Eu faço. Assim compensarei meu atraso.
— Tem certeza? — perguntou alguém — Eu tenho a impressão de que esta noite você já pagou suas dívidas.
— Só me deixe conseguir um pouco de café. Em que sala?
— Coloquei-o na três. — disse a enfermeira.
Entre ovações de “Essa é a minha garota”, Ehlena foi à sala de pessoal, pôs suas coisas em sua mesa, e se serviu de uma xícara de quente e fumegante café “levanta defunto”. O café era forte o bastante para ser considerado um estimulante e fez o seu trabalho maravilhosamente, apagando confusão a mental até deixá-la limpa.
Bom, em sua maior parte limpa.
Enquanto bebia pequenos goles, contemplou a fileira de armários cor nata, os pares de sapatos de rua colocados aqui e lá e os casacos de inverno que penduravam em ganchos. No refeitório, os funcionários tinham suas xícaras favoritas sobre o balcão e seus petiscos prediletos nas estantes, e sobre a mesa redonda havia uma travessa cheia de, o que era esta noite? Petiscos Skittles. Em cima da mesa havia um jornal de anúncios coberto com folhetos sobre eventos, cupons e estúpidas tiras de historietas cômicas e fotos de caras bonitos. A lista de escalas estava a seguir, a parede branca tinha um quadriculado desenhado que representava as próximas duas semanas e estava cheia com nomes escritos em diferentes cores.
Isto era o retrato de uma vida normal, nada disso parecia significativo até que se pensava em toda aquela gente que havia no planeta que não podia manter um emprego, nem desfrutar de uma existência independente nem podia permitir-se dedicar sua energia mental a pequenas distrações… Como, digamos, o fato de que o papel higiênico Cottonelle era cinqüenta centavos mais barato se comprasse o pacote de doze rolos duplos.
Pensar em tudo isto, fez-lhe recordar, uma vez mais que, sair ao mundo real era um privilégio dado por questão de sorte, não um direito, e lhe chateava pensar em seu pai escondido naquela espantosa casinha, lutando com demônios que existiam só em sua mente.
Ele tinha tido uma vida uma vez, uma vida plena. Tinha sido um membro da aristocracia, tinha servido no conselho e tinha sido um erudito de renome. Teve uma shellan a que adorou, uma filha da que sempre tinha estado orgulhoso e uma mansão reconhecida por suas festas. Agora tudo o que tinha era alucinações que lhe torturavam, e embora estas fossem unicamente uma percepção, nunca uma realidade, as vozes não deixavam de ser um cárcere blindado só pelo fato de que ninguém mais pudesse ver as grades nem ouvir o guardião.
Enquanto Ehlena lavava sua xícara, não pôde evitar pensar na injustiça de tudo isso. O que estava bem, supôs. Apesar de tudo o que via em seu trabalho, não tinha se acostumado ao sofrimento, e rezava para não fazê-lo nunca.
Antes de deixar o vestiário, fez-se uma rápida revisão no espelho de corpo inteiro que havia ao lado da porta. Seu uniforme branco estava perfeitamente engomado e limpo como a gaze estéril. Suas meias não tinham fios puxados. Seus sapatos de sola de borracha estavam livres de manchas e de arranhões.
Seu cabelo estava tão bagunçado como ela se sentia.
Soltou-o com um rápido puxão, retorceu-o, e o prendou com o elástico, logo se dirigiu para a sala de exame número três.
O histórico clínico do paciente estava no suporte de plástico transparente montado na parede junto à porta, e respirou fundo quando a tirou e abriu. A coisa era fina, considerando a freqüência com que viam o macho, e não havia quase nenhuma informação registrada na capa, só seu nome, um telefone móvel, e o nome de uma fêmea como familiar mais próximo.
Depois de bater na porta, entrou na sala demonstrando uma confiança que não sentia, com a cabeça alta, a coluna direita e sua inquietação camuflada por uma combinação de atitude e concentração profissional.
— Que tal está esta tarde? — disse, olhando o paciente diretamente nos olhos.
No instante em que seu penetrante olhar ametista enfrentou o seu, não poderia lhe haver dito nem a uma alma o que acabava de sair de sua boca ou se ele tinha respondido. Rehvenge, filho de Rempoon, sugou o pensamento diretamente de sua cabeça, tão certamente como se tivesse drenado o tanque do gerador de seu cérebro e a tivesse deixado sem nada com o que captar uma faísca intelectual solta.
E logo sorriu.
Este macho era uma cobra, era verdadeiramente… Hipnotizante porque era mortal e porque era formoso. Com esse moicano, seu rosto severo e elegante e seu grande corpo, ele era sexo, poder e imprevisibilidade todo envolto em… Bem, um traje negro de estilo diplomático que claramente tinha sido feito sob medida.
— Estou bem, obrigado. — respondeu, solucionando o mistério quanto ao que lhe tinha perguntado — E você?
Quando ela fez uma pausa, ele sorriu um pouco, sem dúvida porque era totalmente consciente de que nenhuma das enfermeiras gostava de compartilhar o mesmo espaço fechado com ele, e evidentemente desfrutava desse fato. Ao menos, assim foi como ela leu sua controlada e velada expressão.
— Perguntei-lhe como estava. — disse arrastando as palavras.
Ehlena pôs o prontuário clínico na escrivaninha e tirou o estetoscópio do bolso.
— Estou muito bem.
— Está certa disso?
— Certíssima. — girando-se para ele, disse — Só vou tirar sua pressão arterial e o ritmo cardíaco.
— E também a temperatura.
— Sim.
— Quer que abra a boca para você agora?
A pele de Ehlena se ruborizou, e disse que não era porque aquela voz profunda com a que tinha feito a pergunta parecesse tão sensual como uma preguiçosa carícia sobre um peito nu.
— Errr… Não.
— Pena.
— Por favor, tire a jaqueta.
— Que grande idéia. Retiro totalmente o “pena”.
Bom plano, pensou ela, pois se sentia propensa a lhe fazer engolir a palavra com o termômetro.
Os ombros de Rehvenge giraram quando fez o que lhe tinha pedido, e com um movimento informal da mão, jogou o que evidentemente era uma peça de arte de roupa de cavalheiro sobre o casaco de Zibelina que tinha dobrado cuidadosamente sobre uma cadeira. Era estranho: sem importar a estação que fosse, ele sempre usava uma daquelas peles.
Essas coisas custavam mais que a casa que Ehlena alugava.
Quando seus dedos longos foram para a abotoadura de diamantes que tinha no pulso direito, deteve-o.
— Poderia, por favor, subir o outro lado? — disse assinalando com a cabeça a parede que havia junto a ele — Há mais espaço para mim a sua esquerda.
Ele vacilou, logo foi subir a manga contrária. Elevando a seda negra por cima do cotovelo, sobre seus bíceps grossos, manteve seu braço girado para seu torso.
Ehlena tirou o esfignomanômetro[15] de uma gaveta e começou a abri-lo enquanto se aproximava dele. Tocá-lo era sempre uma experiência, e esfregou a mão no quadril para preparar-se. Não ajudou. Como era habitual, quando entrou em contato com seu pulso, uma corrente lhe lambeu o braço subindo por ele até aterrissar em seu coração, fazendo que a maldita coisa pulsasse ao ritmo de James Brown até que a shimmy-shimmies[16]* lhe obrigaram a tragar um ofego.
Rezando para que isto não lhe levasse muito tempo, moveu-lhe o braço situando-o em posição para lhe pôr o punho do esfignomanômetro e…
— Bom… Senhor.
As veias que subiam pela curva de seu cotovelo estavam dizimadas pelo uso excessivo, inchadas, arroxeadas, tão rasgadas como se tivesse estado usando pregos em vez de agulhas.
Seus olhos se dispararam aos dele.
— Deve estar muito dolorido.
Fez girar o pulso, liberando-se de seu agarre.
— Não. Não me incomoda.
Um cara duro. Como é que não lhe surpreendia?
— Certo, posso entender por que precisa ver o Havers.
Intencionadamente, estendeu a mão, voltou a lhe girar o braço e pressionou brandamente uma linha vermelha que subia por seus bíceps, dirigindo-se para seu coração.
— Há sinais de infecção.
— Estarei bem.
Tudo o que ela pôde fazer foi arquear as sobrancelhas.
— Alguma vez ouviu falar de sepsis?
— A banda de música alternativa? Claro, mas nunca me passou pela cabeça que você tivesse ouvido falar dela.
Fuzilou-o com o olhar.
— Sepsis como em uma infecção do sangue?
— Hmm, queira inclinar-se sobre a escrivaninha um pouco e me desenhar um quadro explicativo? — seus olhos vagaram, descendendo por suas pernas — Acredito que o encontraria... Muito educativo.
Se qualquer outro macho tivesse saído com esse tipo de linha, lhe teria esbofeteado até lhe fazer ver as estrelas. Infelizmente, quando era essa voz de barítono divina a que falava e esse olhar penetrante de ametista o que fazia o percurso, realmente não se sentia lascivamente manuseada.
Sentia-se acariciada por um amante.
Ehlena resistiu à urgência de um V8 em sua frente. Que demônios estava fazendo? Esta noite tinha um encontro. Com um agradável e razoável macho civil que não tinha sido outra coisa salvo agradável, razoável e muito civilizado.
— Não tenho que lhe desenhar um quadro explicativo. — disse assinalando seu braço com a cabeça — Pode ver por si mesmo aí. Se isso não se curar, vai ficar sistêmico.
E embora levasse roupas elegantes como o manequim sonhado por todo alfaiate, a fria capa cinza da morte não ficava bem.
Ele manteve seu braço contra seus fortes abdominais.
— Levarei em consideração.
Ehlena sacudiu a cabeça e recordou a si mesma que não podia salvar às pessoas de sua própria estupidez só porque tinha uma bata branca pendurando dos ombros e a palavra ENFERMEIRA ao final de seu nome. Além disso, Havers ia ver isso em toda sua glória quando lhe examinasse.
— Muito bem, mas vou tirar a leitura no outro braço. E vou ter que lhe pedir que tire a camisa. O doutor vai quer ver quão longe a infecção chegou.
A boca de Rehvenge se elevou formando um sorriso enquanto alcançava o botão superior de sua camisa.
— Continue assim e logo estarei nu.
Ehlena afastou rapidamente o olhar e desejou com todas as suas forças poder considerá-lo um asco. Certamente lhe viria bem uma injeção de justa indignação que lhe ajudasse a defender-se dele.
— Já sabe, não sou tímido. — disse com essa voz baixa tão sua — Pode olhar se quiser.
— Não, obrigado.
— Pena. — em um tom mais enigmático, acrescentou — Não me importaria que me olhasse.
Enquanto o som da seda movendo-se contra a carne se elevava da mesa de exame, Ehlena revisou desnecessariamente seu histórico médico, voltando a verificar dados que eram absolutamente corretos.
Era estranho. Pelo que as outras enfermeiras haviam dito, não se comportava com elas dessa maneira tão libertina. De fato, mal falava com suas colegas, e essa era parte da razão pela que ficavam tão ansiosas quando estavam com ele. Com um macho assim grande, o silêncio se interpretava como uma ameaça. Isso era um fato da vida. E isso antes que lhe acrescentasse a tatuagem e o moicano de caçador.
— Estou preparado. — disse.
Ehlena girou sobre si mesma e manteve os olhos fixos na parede junto à cabeça dele. Entretanto sua visão periférica funcionava verdadeiramente bem, e era difícil não sentir-se agradecida. O peito de Rehvenge era magnífico, a pele de uma quente cor morena dourada, com músculos que estavam definidos apesar de que seu corpo estivesse relaxado. Em cada um de seus peitorais tinha uma estrela vermelha de cinco pontas tatuada na parte superior, e sabia que tinha mais.
Em seu estômago.
Não é que o tivesse olhado.
Era certo, porque na realidade, ficou embevecida.
— Vai examinar-me o braço? — disse brandamente.
— Não, isso o doutor fará. — esperou que voltasse a dizer “Pena”.
— Acredito que já usei essa palavra suficientes vezes em sua companhia.
Então o olhou nos olhos. Era desse estranho tipo de vampiro que podia ler as mentes dos de sua própria espécie, mas de algum jeito não lhe surpreendeu que este macho formasse parte desse pequeno e estranho grupo.
— Não seja grosseiro. — lhe disse — E não quero que volte a fazer isso.
— Sinto muito.
Ehlena deslizou o punho do esfignomanômetro ao redor de seus bíceps, colocou o estetoscópio nos ouvidos, e tirou a pressão arterial. Entre os pequenos piff-piff-piff do globo ao inflar a manga para que estivesse ajustada, sentiu o fio nele, o tenso poder, e seu coração deu um salto. Estava particularmente incisivo esta noite, e se perguntou por que.
Salvo que isso não era assunto dela, ou era?
Quando liberou a válvula e o punho soltou um assobio comprido e lento de liberação, deu um passo atrás se afastando. Ele era simplesmente… Muito, por todos os lados. Especialmente nesse momento.
— Não tenha medo. — sussurrou.
— Não tenho.
— Tem certeza?
— Muita certeza. — mentiu.


Capítulo 6


Mentia, pensou Rehv. Definitivamente tinha medo dele. Falando de pena...
Esta era a enfermeira que Rehv esperava que lhe tocasse cada vez que ia ali. Era a que fazia com que suas visitas fossem parcialmente suportáveis. Esta era sua Ehlena.
Ok, não era nem um pouco sua. Sabia seu nome só porque estava escrito na placa azul e branca de sua bata. Via-o sozinha quando vinha a tratamento. E não gostava dele absolutamente.
Mas igualmente pensava nela como dele, e assim eram as coisas. A questão era, que tinham algo em comum, algo que transcendia os limites entre espécies e eclipsava as diferentes camadas sociais e os unia embora ela o teria negado.
Ela também estava sozinha, e da mesma forma em que ele estava.
Seu ralo emocional tinha o mesmo rastro que o dele, a que tinha Xhex, Trez e iAm: Seus sentimentos estavam rodeados pelo vazio de desconexão de alguém separado de sua tribo. Vivendo entre outros, mas essencialmente separado de tudo. Um ermitão, um pária, alguém que tinha sido expulso.
Não conhecia os motivos, mas estava fodidamente seguro de que a vida era assim para ela, e isso era o que tinha captado sua atenção primeiro quando a tinha conhecido. Seus olhos, sua voz e sua fragrância tinham sido o seguinte. Sua inteligência e boca rápida tinham selado o trato.
— Cento e sessenta e oito por noventa e cinco. É alta. — desabotoou o punho com um rápido puxão, sem dúvida desejando que fosse uma tira de sua pele — Acredito que seu corpo está tentando lutar contra a infecção de seu braço.
Oh, seu corpo estava lutando contra algo, com certeza, mas não tinha absolutamente nada a ver com o que fosse que se cozinhava na zona onde se injetava. Com seu lado sympath lutando contra a dopamina, a condição de impotência na qual normalmente se achava quando estava totalmente medicado ainda não se apresentara.
Resultado?
Seu pênis estava rígido como um taco de beisebol dentro das calças folgadas. O que, contra a opinião popular, na realidade não era um bom sinal... Especialmente esta noite. Depois dessa conversa com Montrag, sentia-se faminto, estimulado... Um pouco amalucado pelo ardor interior.
E Ehlena era simplesmente tão... Formosa.
Embora não como estava acostumado a ser suas garotas, não de uma forma tão óbvia, exagerada, injetada, implantada e escultural. Ehlena era naturalmente encantadora, tinha traços finos e delicados, o cabelo loiro dourado e umas pernas longas e esbeltas. Seus lábios eram rosados porque eram rosados... Não por uma capa de maquiagem brilhante e cristalizada com uma durabilidade de dezoito horas. E seus olhos cor caramelo eram luminescentes porque eram uma mescla de amarelo, vermelho e dourado... Não por um montão de camadas de sombra de olhos e rímel. E suas bochechas estavam ruborizadas porque ele lhe estava colocando sob a pele.
O que, embora pressentia que tinha sido uma noite dura para ela, não lhe importava absolutamente.
Mas esse é o symphath em ti, não? Pensou com ironia.
Curioso, a maior parte do tempo não lhe importava ser o que era. Sua vida como a tinha conhecido, sempre tinha sido uma miragem constante que alternava mentiras e enganos e isso era o que havia. Não obstante quando estava com ela, desejava ser normal.
— Vemos sua temperatura? — disse ela, indo procurar um termômetro eletrônico na mesa.
— Está mais alta do que o normal.
Seus olhos âmbar voaram para os dele.
— Por seu braço.
— Não, por seus olhos.
Ela piscou, depois pareceu sacudir a si mesma.
— Tenho sérias dúvidas a respeito disso.
— Então subestima seu atrativo.
Quando sacudiu a cabeça e colocou uma capinha plástica sobre a varinha prateada, ele pôde perceber o aroma fugaz de seu perfume.
Suas presas se alargaram.
— Abra. — levantou o termômetro e esperou — E bem?
Rehv olhou fixamente esses assombrosos olhos tricolores e deixou cair a mandíbula. Ela se inclinou, tão profissional como sempre, só para ficar congelada. Enquanto lhe estudava os caninos, em sua fragrância aflorou algo escuro e erótico.
O triunfo inflamou as veias de Rehv enquanto grunhia.
— Faça-me isso.
Passou um comprido momento, durante o qual os dois estiveram unidos por fios invisíveis de paixão e desejo. Depois a boca dela formou uma linha.
— Nunca, mas tomarei a temperatura, porque devo fazê-lo.
Embutiu-lhe o termômetro entre os lábios e ele teve que apertar os dentes para evitar que a coisa lhe cravasse uma das amídalas.
Entretanto, estava tudo bem. Embora não pudesse tê-la, excitava-a. E isso era mais do que se merecia.
Produziu-se um bip, um intervalo, e outro bip.
— Cento e quarenta e nove. — disse ela enquanto retrocedia e atirava a capinha de plástico ao cesto de lixo de risco biológico — Havers estará com você logo que seja possível.
A porta se fechou atrás dela com a dura bofetada silábica da palavra que começava com o F.
Homem, era ardente.
Rehv franziu o cenho, toda a questão da atração sexual lhe recordava algo em que não gostava de pensar.
Alguém, mas bem.
A ereção que tinha se desinflou instantaneamente quando se deu conta que era segunda-feira de noite. O que significava que amanhã era terça-feira. Primeira terça-feira do último mês do ano.
O sympath nele vibrou apesar de que cada centímetro de sua pele se esticou como se seus bolsos estivessem cheios de aranhas.
Amanhã de noite ele e sua chantagista teriam outra de seus encontros. Jesus, como era possível que tivesse passado outro mês? Parecia que cada vez que se dava a volta era a primeira terça-feira de novo e estivesse conduzindo para o norte do estado para essa cabana deixada pela mão de Deus para outra atuação obrigada.
O alcoviteiro convertido em puta.
Jogos de poder, extremos afiados e foder eram basicamente a moeda de troca nas reuniões com sua chantagista, e tinham sido as bases de sua vida “amorosa” durante os últimos vinte e cinco anos. Tudo isso era sujo e lhe ofendia, era malvado e degradante, e o fazia uma e outra vez para manter seu segredo a salvo.
E também porque seu lado escuro se liberava com isso. Era Amor, ao Estilo Symphath, o único momento em que podia ser como era sem conter-se absolutamente, um tanto de horrorosa liberdade. Depois de tudo, por muito que medicasse a si mesmo e tentasse encaixar, estava preso pelo legado de seu pai morto, pelo sangue malvado que corria por suas veias. Não podia negociar com seu DNA, e embora fosse mestiço, o proscrito nele era dominante.
Assim quando se tratava de uma mulher de valor como Ehlena, ele sempre ia estar no lado mais afastado do vidro, pressionando o nariz contra ele, com as palmas estendidas pelo desejo, sem jamais poder aproximar-se o suficiente para tocar. Era o mais justo para ela. Ao contrário que sua chantagista, ela não merecia o que ele tinha para oferecer.
Os princípios morais que ensinou a si mesmo indicavam que ao menos isso era certo.
Sim. Yu-hu. Bom pra ele.
Sua próxima tatuagem ia ser de um fodido halo sobre a cabeça.
Quando baixou o olhar ao desastre que se estendia por seu braço esquerdo, viu com total clareza que estava piorando. Não só era uma infecção bacteriana devido a que utilizava deliberadamente agulhas sem esterilizar sobre a pele que não tinha sido limpa com álcool. Era um lento suicídio, e essa era a razão pela qual preferia que o condenassem antes que mostrar-lhe ao doutor. Sabia exatamente o que ocorreria se esse veneno se metia profundamente dentro de sua corrente sangüínea, e desejava que acontecesse logo e se apoderasse dele.
A porta se abriu e levantou o olhar, preparado para dançar o tango com o Havers... Exceto que não era o doutor. A enfermeira de Rehv havia retornado, e não parecia feliz.
De fato, parecia exausta, como se ele não fosse mais que uma moléstia a mais em sua lista e não tivesse energia para tratar com a merda que trazia quando estava com ela.
— Falei com o doutor. — lhe disse — Está na sala de cirurgia fechando, assim demorará um pouco. Pediu-me que lhe tirasse um pouco de sangue...
— Sinto. — balbuciou Rehv.
A mão de Ehlena foi até o pescoço de seu uniforme e puxou as duas metades para fechá-las um pouco mais.
— Perdão?
— Lamento ter jogado com você. Não necessita isso de um paciente. Especialmente em uma noite como esta.
Ela franziu o cenho.
— Estou bem.
— Não, não está. E não, não estou lendo sua mente. É só que parece cansada. —repentinamente, soube como ela se sentia — Eu gostaria de compensar isso.
— Não é necessário...
— Convidando você para jantar.
Bom, não tinha querido dizer isso. E dado que acabava de auto felicitar-se por saber manter a distância, isto também lhe convertia em um hipócrita consigo mesmo.
Evidentemente a próxima tatuagem devia estar mais na linha de umas orelhas de burro.
Porque estava atuando como um.
Depois de seu convite, não lhe surpreendeu nem um pouco que Ehlena lhe olhasse como se estivesse louco. Em termos gerais, quando um macho se comportava como ele tinha feito, a última coisa que qualquer fêmea desejaria fazer era passar mais tempo com ele.
— Sinto muito, não. — nem sequer alinhavou o obrigado — Nunca saio com pacientes.
— Ok. Entendo.
Enquanto preparava os instrumentos para tirar sangue e colocava um par de luvas de borracha, Rehv estendeu o braço para a jaqueta de seu traje e tirou seu cartão, ocultando-o em sua grande palma.
Foi rápida no procedimento, trabalhando sobre seu braço bom, enchendo com rapidez as ampolas de alumínio. Menos mal que não eram de vidro e que Havers fazia todas as provas ele mesmo. O sangue de vampiro era vermelho. O de symphath era azul. A cor do seu era algo entre ambas, mas ele e Havers tinham um acordo. Certo, o doutor não era consciente de como funcionavam as coisas entre eles, mas era a única forma de ser tratado sem comprometer o médico da raça.
Quando Ehlena acabou, selou as ampolas com plugues de plástico branco, tirou as luvas e se dirigiu para a porta como se ele fosse um mau aroma.
— Espera. — lhe disse.
— Quer algum calmante para o braço?
— Não, quero que fique com isto. — estendeu seu cartão — E me ligue se alguma vez está de humor para me fazer um favor.
— Com o risco de soar pouco profissional, nunca vou estar de humor para você. Sob nenhuma circunstância.
Ouch. Não é que a culpasse.
— O favor é me perdoar. Não tem nada que ver com um encontro.
Ela baixou o olhar ao cartão, depois sacudiu a cabeça.
— Será melhor que fique com isso. Para que possa usar alguma vez.
Quando a porta se fechou, ele amassou o cartão em sua mão.
Merda. Em que demônios estava pensando de todos os modos? Provavelmente ela tivesse uma pequena vida agradável em uma simples casinha com dois pais excessivamente amorosos. Talvez até tivesse um namorado, que algum dia se converteria em seu hellren.
Sim, sendo ele o amigável senhor da droga da vizinhança, alcoviteiro e valentão realmente encaixaria com a rotina Norman Rockwell. Totalmente.
Atirou seu cartão no cesto de papéis que havia junto a mesa, e observou como fazia um arco, e logo caía entre os Kleenex[17], os papéis enrugados e uma lata de Coca-Cola vazia.
Enquanto esperava o doutor, olhou o lixo descartado, pensando que para ele a maioria das pessoas do planeta era como essas coisas: coisas para usar e descartar sem remorsos de nenhum tipo. Graças a seu lado mau e ao negócio que dirigia, tinha quebrado um montão de ossos, tinha partido um montão de cabeças e tinha sido a causa de muitas overdoses de drogas.
Ehlena, por outro lado, passava suas noites salvando as pessoas.
Sim, tinham muitíssimo em comum, certamente.
Os esforços dele possibilitavam que ela tivesse um trabalho.
Oras. Perfeito.
******************
Fora da clínica, no ar gelado, Wrath estava se enfrentando peito a peito com o Vishous.
— Sai de meu caminho, V.
Vishous, é obvio, não retrocedeu nada. Não era de surpreender-se. Inclusive antes do pequeno flash informativo que informava que a Virgem Escriba lhe tinha dado a luz, o guerreiro sempre tinha sido um agente totalmente livre.
Um Irmão teria tido melhor sorte dando ordens a uma pedra.
— Wrath...
— Não, V. Aqui não. Agora não...
— Vi você. Esta tarde, em meus sonhos. — a dor nessa voz escura era do tipo que normalmente se associa com funerais — Tive uma visão.
Wrath falou sem desejar.
— O que viu?
— Estava de pé só em um campo escuro. Todos lhe rodeávamos na periferia, mas ninguém podia te alcançar. Você se afastava de nós e nós de você. — o Irmão estendeu a mão e lhe agarrou com força — Por intermédio de Butch, sei que está saindo sozinho e mantive a boca fechada. Mas não posso permitir que siga fazendo isto. Se você morrer a raça está fodida, e nem sei dizer o que lhe faria à Irmandade.
Os olhos de Wrath se esforçavam para enfocar o rosto de V, mas a luz de segurança que havia sobre a porta era um fluorescente e o brilho dessa coisa cravava como a merda.
— Não sabe o que quer dizer o sonho.
— E você tampouco.
Wrath pensou no peso desse civil em seus braços.
— Poderia não ser nada...
— Pergunte-me quando tive a visão pela primeira vez.
—... Mais que um medo que tem.
— Pergunte-me. Quando tive a visão pela primeira vez.
— Quando?
— Mil novecentos e nove. Passaram cem anos desde que a vi pela primeira vez. Agora me pergunte quantas vezes a tive mês passado.
— Não.
— Sete vezes, Wrath. Esta tarde foi a gota que transbordou o copo.
Wrath se soltou do agarre do Irmão.
— Solte-me. Se me seguir, vai encontrar briga.
— Não pode sair sozinho. Não é seguro.
— Está brincando, verdade? — Wrath lhe olhou furiosamente através de seus óculos escuros — Nossa raça está caindo e você me repreende por ir atrás de nosso inimigo? Uma merda. Não vou ficar sentado mofando atrás de nenhum fodido escritório passando papéis enquanto meus irmãos estão ali fora fazendo algo verdadeiramente...
— Mas você é o rei. É mais importante que nós...
— Ao inferno com isso! Sou um de vocês! Fui recrutado, bebi dos Irmãos e eles de mim, quero lutar!
— Olhe, Wrath... — V assumiu um tom tão grunhido que lhe fazia saltar todos os dentes. Com uma tocha — Sei exatamente o que é não querer ser quem nasceste para ser. Acredita que eu não gostaria de me liberar de ter estes fodidos sonhos? Acredita que ter este sabre laser é uma festa? — levantou a mão enluvada como se a ajuda visual fosse um valor acrescentado a sua “discussão” — Não pode mudar quem é. Não pode desfazer o acoplamento em que seus pais lhe fizeram. É o rei, e as regras se aplicam de forma diferente para você, e assim é como são as coisas.
Wrath fez seu melhor esforço para ter a calma, tranqüilidade e compostura de V.
— E eu digo que estive lutando durante trezentos anos, assim não sou exatamente um principiante na batalha. E eu também gostaria de assinalar que ser o rei não significa ter perdido o direito de escolher...
— Não tem herdeiro. E pelo que ouvi de minha shellan, manda Beth se calar quando ela diz que quer tentar ter um quando vier sua primeira necessidade. Sossega-a com dureza. Como disse que o diz? Oh... Sim. “Não quero nenhuma cria em um futuro próximo... Se é que alguma vez vou querer”.
O fôlego de Wrath escapou em uma rajada.
— Não posso acreditar que acaba de tocar nesse assunto.
— Em resumo? Se você morrer? A malha da sociedade da raça se desmantelaria, e se acha que isso vai ajudar na guerra é que tem a cabeça tão metida no rabo que está utilizando seu esfíncter como boca. Aceite, Wrath. Você é o coração de todos nós... Assim não, não pode ir por aí sem mais, lutando sozinho porque te dá a vontade de fazê-lo. As coisas não funcionam assim para você...
Wrath agarrou as lapelas do Irmão e o estrelou contra o edifício da clínica.
— Cuidado, V. Está caminhando pela maldita e fina linha que limita com a falta de respeito.
— Se acredita que me amassar vai mudar as coisas, vá em frente. Mas te garanto que depois de que os murros terminem e ambos estejamos sangrando no chão, a situação seguirá sendo exatamente a mesma. Não pode mudar quem é por nascimento.
Ao fundo, Butch saiu do Escalade e subiu o cinto como se estivesse se preparando para interromper uma briga.
— A raça precisa de você vivo, imbecil. — disse V— Não me obrigue a apertar o gatilho, porque o farei.
Wrath voltou a fixar seus olhos débeis em V.
— Pensei que me queria vivinho e abanando o rabo. Além disso, me disparar seria traição e se castiga com a morte. Sem importar de quem seja filho.
— Olhe, não estou dizendo que não deva...
— Cala a boca, V. Só uma vez, só fecha a maldita boca.
Wrath soltou a jaqueta de couro do cara e retrocedeu. Jesus Cristo, tinha que ir ou esta confrontação ia escalar exatamente até o que Butch estava temendo.
Wrath apontou um dedo à cara de V.
— Nada de me seguir. Estamos entendidos? Não me siga.
— Estúpido imbecil. — disse V com absoluto cansaço — É o rei. Todos devemos te seguir.
Wrath se desmaterializou com uma maldição, suas moléculas apressando-se através da cidade. Enquanto viajava, não podia acreditar que V tivesse jogado na sua cara o assunto de Beth e o bebê. Ou que Beth tivesse compartilhado esse tipo de questões privadas com a Doutora Jane.
Falando de ter a cabeça no rabo, por certo. V estava louco se pensava que Wrath ia pôr a vida de sua amada em perigo deixando-a grávida quando passasse por sua necessidade dentro de um ano ou assim. As fêmeas morriam no parto, com mais freqüência que as que não morriam.
Daria sua própria vida pela raça se tivesse que fazê-lo, mas de nenhum fodido e louco modo poria a de sua shellan em um perigo assim.
E inclusive se tivesse a garantia que sobreviveria a tudo isso, não queria que seu filho terminasse justo onde ele estava... Preso e sem escolha, servindo a sua gente com pesar enquanto um a um morriam em uma guerra que pouco ou nada podia fazer para terminar.

Capítulo 7


O complexo do Hospital St. Francis era uma cidade dentro da cidade, uma aglomeração sempre em expansão de blocos arquitetônicos de diferentes épocas, com cada um dos componentes formando sua própria mini-vizinhança e as partes conectando-se com o conjunto por uma série de sinuosas ruas e calçadas. Estava o estilo McMansion que podia ver na seção de administração, o da simplicidade suburbana do nível das estadias de unidades de pacientes externos e o das torres de hospitalização parecidas com apartamentos com suas janelas amontoadas. O único que dava unidade à extensão, e que era um dom do céu, eram os sinais direcionais vermelhos e brancos com suas flechas assinalando a direita e esquerda e diretamente para frente dependendo de aonde queria ir.
De todas as formas o destino de Xhex era óbvio.
O departamento de emergências era a dependência mais recente do centro médico, um de tecnologia avançada, de vidro e aço que era como um clube noturno sempre brilhantemente iluminado e constantemente ronronando.
Era impossível passar batido. Impossível perder de vista.
Xhex caminhou à sombra de algumas árvores que tinham sido plantadas em círculo ao redor de uns bancos. Enquanto caminhava para a fileira de portas giratórias da unidade de Emergências, estava integrada ao ambiente e ao mesmo tempo absolutamente à margem dele. Embora alterasse seu trajeto para evitar outros transeuntes, cheirava o tabaco da denominada choça de fumantes e sentia o ar frio no rosto, estava muito perturbada pela batalha que se livrava em seu interior para observar muito.
Quando entrou na instalação, suas mãos estavam úmidas, um suor frio brotava de sua testa e ficou paralisada pela luz fluorescente, o linóleo branco e o pessoal que andava por ali com seus uniformes cirúrgicos.
— Precisa de ajuda?
Xhex girou e subiu as mãos, adotando bruscamente uma posição de luta. O doutor que lhe tinha falado manteve sua postura, mas pareceu surpreso.
— Calma. Tranqüila.
— Lamento. — deixou cair os braços e leu a lapela de seu jaleco branco: Dr. MANUEL MANELLO, CHEFE DE CIRURGIA. Franziu o cenho ao percebê-lo, ao captar seu aroma.
— Está bem?
Não. Não era nada de sua conta.
— Tenho que ir ao depósito de cadáveres.
O médico não pareceu impressionado, como se fosse perfeitamente possível que alguém com sua maneira de mover conhecesse um par de cadáveres com dedos etiquetados.
— OK, bem, vê aquele corredor daí? Vá até o fundo. Verá uma porta com um letreiro para o depósito de cadáveres. Só siga as flechas dali. Está no porão.
— Obrigado.
— De nada.
O doutor saiu pela porta giratória pela que ela tinha entrado, e Xhex passou pelo detector de metais pelo que ele acabava de passar. Não soou nenhum «bip», e lançou um tenso sorriso ao vigilante que por sua vez jogou uma olhada.
A faca que levava na parte baixa das costas era de cerâmica e tinha substituído seus cilícios de metal por uns de couro e pedra. Sem problemas.
— Boa noite, Oficial. — lhe disse.
O cara a saudou com a cabeça ao passar, mas manteve a mão na culatra de sua arma.
Ao final do corredor, encontrou a porta que procurava, abriu-a de um golpe e encarou as escadas, seguindo as flechas vermelhas como o doutor lhe tinha indicado. Quando deu com um lance de parede de cimento branqueado calculou que já estava perto, e tinha razão. Mais adiante no corredor estava o detetive Cruz, junto a um par de portas duplas de aço inoxidável rotuladas com as palavras DEPÓSITO DE CADÁVERES e SÓ PESSOAL AUTORIZADO.
— Obrigado por vir. — disse ele quando ela esteve mais perto — Entraremos na sala de observação que está um pouco mais à frente. Irei dizer-lhes que chegou.
O detetive abriu uma das portas de um empurrão, e através da fresta ela pôde ver uma frota de mesas metálicas com blocos para as cabeças dos mortos.
Seu coração se deteve e logo trovejou, apesar de estar repetindo uma e outra vez que ela não era a prejudicada. Que ela não estava aí dentro. Que isto não era o passado. Que não havia ninguém com uma roupa branca erguendo-se sobre ela e fazendo coisas “em nome da ciência”.
E, além disso, ela tinha superado todo isso, fazia uma década…
Um som começou baixo e aumentou de volume, reverberando detrás dela. Girou em redondo e ficou congelada, sentindo tanto temor que lhe cravaram os pés no chão…
Mas só era um empregado da limpeza que vinha dobrando a esquina, empurrando um carrinho de roupa suja do tamanho de um carro. Ao passar nem sequer levantou a vista, estava inclinado para frente sobre a borda, utilizando toda sua energia.
Por um momento, Xhex piscou e viu outro carrinho rodando. Um cheio de membros enredados e imóveis, as pernas e os braços dos cadáveres sobrepondo-se como se fosse lenha.
Esfregou os olhos. Ok, tinha superado o acontecido… Sempre e quando não estivesse em uma clínica ou hospital.
Jesus..! Devia sair dali.
— Realmente quer fazer isto? — perguntou da Cruz junto a ela.
Tragou a saliva com força, e levantou a mão, duvidando de que o homem entendesse que o que a assustava era um montão de lençóis em um carro e não o cadáver que estava a ponto de ver.
— Sim. Podemos entrar agora?
Ele a contemplou durante um momento.
— Escute, quer tomar um minuto? Tomar um pouco de café?
— Não. — como não se moveu, ela mesma se encaminhou para a porta rotulada como VISITAS PRIVADAS.
Da Cruz se apressou a adiantar-se e abriu a porta. A sala de espera que havia mais à frente tinha três cadeiras de plástico negras e duas portas e cheirava como morangos químicos, resultado do formaldeído misturado com um ambientador Glade PlugIn. Num canto, longe dos assentos, havia uma mesa pequena com um par de copos descartáveis de papel meio cheios de café que parecia lodo tirado de um atoleiro.
Ao que parecia, havia dois tipos de pessoa, o tipo que passeava e o tipo que permanecia sentado, e se fosse do tipo que permanecia sentado, esperava-se que equilibrasse a cafeína extraída da máquina sobre seu joelho.
Enquanto olhava ao seu redor, percebeu as emoções que tinham sido sentidas nessa área e que persistiam como o mofo que fica depois da água fétida. Às pessoas que tinha transpassado a porta desse lugar lhe tinham acontecido coisas más. Corações que foram quebrados. Vidas que foram destroçadas. Mundos que nunca voltaram a ser o mesmo.
Pensou que não deveriam dar café a esta gente antes que fizessem o que tinham vindo a fazer aqui. Já estavam nervosos o suficiente.
— Por aqui.
Da Cruz a fez passar a uma sala estreita que em sua opinião estava empapelada[18] com um estampado em relevo de claustrofobia: a coisa era do tamanho de uma caixa de fósforos quase sem ventilação, tinha luzes fluorescentes que vacilavam e flutuavam, e a única janela que havia definitivamente não dava a um prado de flores silvestres.
A cortina que pendurava no lado oposto do vidro estava corrida de um lado a outro, bloqueando a vista.
— Está bem? — perguntou de novo o detetive.
— Podemos fazer isto logo?
Da Cruz se inclinou para a esquerda e apertou o botão do timbre. Ante o som do zumbido, as cortinas se separaram, abrindo-se pela metade com uma lenta sacudida, revelando um corpo que estava coberto pelo mesmo tipo de lençol branco que havia no cesto da roupa suja. Um macho humano vestido com uniforme médico verde estava de pé na cabeceira, e quando o detetive fez um gesto com a cabeça, o homem esticou uma mão para frente e retirou o sudário.
Os olhos de Chrissy Andrews estavam fechados e seus cílios estavam pousados sobre as bochechas que tinham a cor cinza pálida das nuvens de dezembro. Não tinha aspecto de estar em paz em seu repouso permanente. Sua boca era um talho azul, seus lábios estavam partidos pelo que poderia ter sido um punho, uma frigideira ou a ombreira de uma porta.
As dobras do lençol que descansava sobre sua garganta ocultavam em sua maior parte os sinais de estrangulamento.
— Sei quem fez isto. — disse Xhex.
— Só para que fique claro, identifica-a como Chrissy Andrews?
— Sim. E sei quem o fez.
O detetive fez um gesto com a cabeça para o clínico, que cobriu o rosto de Chrissy e fechou as cortinas.
— O namorado?
— Sim.
— Há um longo histórico de chamadas por violência doméstica.
— Muito longo. É obvio, isso já acabou. O filho da puta finalmente conseguiu fazer o trabalho, verdade?
Xhex saiu pela porta e entrou na sala de espera, e o detetive teve que se apressar para não ficar atrás.
— Detenha-se...
— Tenho que voltar para o trabalho.
Enquanto saíam bruscamente e entravam no corredor do porão, o detetive a obrigou a deter-se.
— Quero que saiba que o DPC[19] está levando a cabo uma adequada investigação de assassinato, e nos encarregaremos de qualquer suspeito de maneira apropriada e legal.
— Estou certa de que o fará.
— E você fez sua parte. Agora tem que deixar que nos ocupemos dela e cheguemos ao final deste assunto. Deixe-nos encontrá-lo, ok? Não a quero em plano vigilante.
Veio-lhe à mente a imagem do cabelo de Chrissy. A mulher tinha sido suscetível sobre esse assunto, estava acostumada a escová-lo para trás, depois alisava a capa superior e o orvalhava com laquê para mantê-lo em seu lugar até que ficasse como a parte superior de um peão de xadrez.
Totalmente ao estilo de uma habitante de Melrose Place[20] (seriado dos anos 90), a época em que Heather Locklear usava o cabelo dourado.
O cabelo que havia embaixo daquele sudário estava esmagado como uma tabua de picar, amassado de ambos os lados, devido sem dúvida à bolsa para cadáveres em que tinha sido transportada.
— Você já fez sua parte. — disse da Cruz.
Não, ainda não.
— Que tenha uma boa noite, Oficial. E boa sorte encontrando ao Grady.
Ele franziu o cenho, logo pareceu engolir atuação de “serei uma boa garota”.
— Necessita que a leve de volta?
— Não, obrigado. E de verdade, não se preocupe comigo. — sorriu tensamente — Não farei nada estúpido.
Ao contrário, era uma assassina muito preparada. Treinada pelo melhor.
E olho por olho era mais que uma frase pegajosa.
José da Cruz não era um cientista de naves espaciais nem um membro do Mensa nem um geneticista molecular. Tampouco era um apostador, e não só devido a sua fé Católica.
Não tinha motivos para apostar. Tinha um instinto que se assemelhava à bola de cristal de uma vidente.
Assim sabia exatamente o que fazia quando ficou seguindo, a uma distância discreta, a senhora Alex Hess em seu caminho da saída do hospital. Depois de sair pelas portas giratórias, não foi à esquerda para o estacionamento nem à direita, em volta dos três táxis estacionados à entrada. Seguiu em linha reta, andando entre os carros que recolhiam e deixavam pacientes e entre os táxis que estavam livres. Depois de subir ao meio-fio, continuou pela grama congelada e seguiu caminhando em linha reta, cruzando a estrada e metendo-se entre as árvores que a cidade tinha plantado fazia um par de anos para incrementar a vegetação no centro da cidade.
Entre uma piscada e a seguinte tinha desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.
O que era, é obvio, impossível. Estava escuro e ele tinha levantado às quatro da manhã fazia duas noites, por isso seus olhos eram tão agudos como quando estava debaixo da água.
Ia ter que vigiar a aquela mulher. Sabia de primeira mão quão duro era perder a um colega, e estava claro que ela tinha apreciado à moça morta. Não obstante, este caso não necessitava um curinga civil quebrando as leis e possivelmente chegando até o extremo de assassinar ao principal suspeito do DPC.
José se dirigiu de volta ao carro civil que tinha deixado na parte de atrás onde lavavam as ambulâncias e os médicos esperavam durante as pausas no trabalho.
O namorado de Chrissy Andrews, Robert Grady, aliás, Bobby G, tinha alugado um apartamento mensalmente, desde que ela o tinha largado esse verão. Ao redor da uma dessa tarde José tinha batido na porta do chiqueiro encontrando-o vazio, e uma ordem de registro, expedida em apoio às chamadas ao 911 que Chrissy tinha estado fazendo os seis meses passados, para reportar a seu namorado, tinha permitido ordenar ao proprietário que abrisse o lugar.
Tinha encontrado montões de comida apodrecendo-se na cozinha, pratos sujos na sala de estar e roupa suja atirada por todo o dormitório.
Também havia numerosas trouxinhas de celofane com pó branco o qual — Oh Meu Deus! — tinha resultado ser heroína. Quem haveria imaginado?
Ao namorado não o via por nenhuma parte. A última vez que o tinham visto no apartamento, tinha sido a noite anterior ao redor das dez. O vizinho do lado tinha ouvido o Bobby G gritar. E depois uma portada.
E os arquivos que já tinham obtido do fornecedor do serviço de telefonia móvel dele indicavam que realizou uma chamada para o telefone da Chrissy as nove e trinta e seis.
A vigilância de policiais a paisana tinha sido estabelecida imediatamente, e os detetives informavam com regularidade, mas até agora não tinha nenhuma notícia. E José não pensava que fosse haver nenhuma por esse front. Havia boas possibilidades de que o lugar fosse permanecer como um povoado fantasma.
Assim havia duas coisas em seu radar: encontrar o namorado. E seguir a pista da chefe de segurança do ZeroSum.
E seus instintos lhe diziam que seria melhor para todos se ele encontrasse o Bobby G antes que Alex Hess o fizesse.


Capítulo 8


Enquanto Havers consultava o Rehvenge, Ehlena reabastecia um armário de fornecimentos. Que justamente dava a casualidade de estar junto à sala de exame número três. Empilhou bandagens da marca Ace. Fez uma torre com os pacotes plásticos dos cilindros de gaze. Criou uma obra a La Modigliani[21] com caixas de Kleenex, Band-Aids e capas para termômetros.
Estava ficando sem coisas que organizar quando a porta da sala de exame foi aberta emitindo um estalo. Apareceu uma cabeça no corredor.
Havers tinha o aspecto de um verdadeiro médico, com seus óculos com aro de tartaruga marinha, seu cabelo castanho, que penteava com uma risca ao meio, sua gravata-borboleta e a roupa branca. Também se comportava como um, sempre administrando calma e refletividade ao pessoal, as instalações e acima de tudo aos pacientes.
Mas enquanto permanecia de pé nesse corredor não parecia ele mesmo, com o cenho franzido como se estivesse confuso e massageando as têmporas como se lhe doessem.
— Está bem, doutor? — perguntou-lhe.
Ele olhou em sua direção, detrás dos óculos, seu olhar era estranhamente inexpressivo.
— Errr... Sim, obrigado. — sacudindo a si mesmo, entregou-lhe uma receita que tinha em cima do histórico médico de Rehvenge — Eu… Ah… Seria tão amável de trazer a dopamina a este paciente, assim como duas dose de antídoto contra veneno de escorpião? Faria eu mesmo, mas me parece que tenho que conseguir algo para comer. Sinto-me um pouco hipoglicêmico.
— Sim, Doutor. Em seguida.
Havers fez um gesto afirmativo com a cabeça e deixou o histórico do paciente no suporte que havia junto à porta.
— Obrigado, é muito amável.
O doutor se afastou como se estivesse parcialmente em transe.
O pobre macho devia estar exausto. Tinha estado na sala de cirurgia a maior parte das últimas duas noites e seus respectivos dias, atendendo o parto de uma fêmea, a um macho que tinha sofrido um acidente de trânsito, e a um menino pequeno que tinha sofrido graves queimaduras ao tentar alcançar uma caçarola com água fervendo que estava sobre a fornalha. E se somava a isso o fato de que nos dois anos que ela levava na clínica, nunca tinha tirado nem um dia de descanso. Sempre estava de guarda, sempre estava ali.
Parecido a como estava ela com seu pai.
Por isso, sim, ela sabia exatamente quão cansado devia estar.
Na farmácia, entregou a receita ao farmacêutico, que nunca mantinha conversa com ninguém e esse dia tampouco rompeu a tradição. O macho foi para o fundo e retornou com seis caixas de ampolas de dopamina e um pouco de antídoto.
Depois de lhe entregar os medicamentos, deu volta no pôster que dizia, VOLTO EM 15 MINUTOS e saiu pela porta de vaivém do mostrador.
— Espera. — lhe disse, lutando por segurar a carga — Isto não pode estar certo.
O macho já tinha o cigarro e o isqueiro na mão.
— Está.
— Não, isto é… Onde está a receita?
Nenhuma fêmea tinha enfrentado fúria maior que aquela que enfrentou ela ao obstruir o caminho de um fumante que finalmente tinha alcançado a hora de seu descanso. Mas não lhe importava nem um pouco.
— Vá me trazer a receita.
O farmacêutico resmungou todo o caminho com o passar do mostrador, e logo se ouviu um excessivo ruído de papéis, como se talvez tivesse a esperança de poder começar um incêndio ao esfregar as receitas entre si.
— Despachar seis caixas de dopamina. — girou a receita para ela para que pudesse vê-la — Vê?
Ela se aproximou. Bom, certo, dizia seis caixas e não seis ampolas.
— O doutor sempre receita o mesmo a este paciente. Isso e o antídoto.
— Sempre?
A expressão do macho foi “menina me dá um tempo”, e lhe falou lentamente, como se ela não falasse o idioma correntemente.
— Sim. Geralmente é o doutor mesmo que vem procurar. Está satisfeita ou quer ir falar disto com Havers?
— Não… E obrigado.
— Muito castigo.
Voltou a atirar a receita sobre a pilha e apressou o passo para sair dali como se temesse que pudesse lhe ocorrer outra brilhante idéia para um projeto de investigação.
Que tipo de fodida enfermidade requeria cento e quarenta e quatro doses de dopamina? E o antídoto?
A não ser que Rehvenge fosse sair em uma loooooooga viagem fora da cidade. A um lugar hostil que tivesse uma quantidade de escorpiões ao estilo do filme A Múmia.
Ehlena caminhou pelo corredor para a sala de exame, equilibrando precariamente as caixas: assim que apanhava uma que estava caindo, tinha que ir atrás de outra. Golpeou à porta com o pé e logo ao girar o trinco quase faz cair sua carga como se fossem fichas de dominó.
— Isso é tudo? — perguntou Rehvenge em um tom severo.
E que mais queria, uma mala cheia?
— Sim.
Deixou que as caixas caíssem sobre a mesa e logo as arrumou rapidamente.
— Deveria lhe conseguir uma sacola.
— Está bem. Eu dou um jeito.
— Precisa de alguma seringa?
— Tenho muitas. — disse com tom irônico.
Desceu da maca de exame com cuidado e colocou o casaco de zibelina que alongou ainda mais a grande amplitude de seus ombros, até lhe fazer ter um aspecto ameaçador mesmo estando do outro lado da sala. Com o olhar fixo nela, pegou sua bengala e se aproximou devagar, como se estivesse inseguro com respeito a seu equilíbrio… E sua receptividade.
— Obrigado. — lhe disse.
Deus, a palavra era tão simples e tão freqüentemente dita e, entretanto, vinda dele, significava mais do que gostaria.
Na realidade, era menos significativa sua forma de expressá-lo que a expressão de seu rosto: havia certa vulnerabilidade nesse olhar ametista, enterrada muito profundamente.
Ou talvez não.
Talvez fosse ela que se sentisse vulnerável e estava procurando comiseração do macho que tinha provocado esse estado. E nesse momento se sentia muito débil. Com o Rehvenge de pé ao seu lado, recolhendo as caixas da mesa para ir pondo uma por uma nos bolsos ocultos nas dobras de seu casaco de zibelina, sentia-se nua apesar de estar com seu uniforme, desmascarada apesar de que não tinha tido nada ocultando seu rosto.
Afastou a vista, mas o único que via era essa visão.
— Cuide-se… — seu tom de voz era muito profundo — E como já disse, obrigado. Já sabe, por ter cuidado de mim.
— De nada. — disse à mesa de exame — Espero que tenha obtido o que necessitava.
— Algumas coisas em todo caso.
Ehlena não se virou até que ouviu o clique da porta ao fechar-se. Logo, proferindo uma maldição, sentou-se na cadeira que estava frente ao escritório e voltou a perguntar-se se devia ir ao encontro dessa noite. Não só devido a seu pai, mas também devido a…
Oh, bem. Essa era uma linha de pensamento muito construtiva. Por que não rechaçar a um doce menino perfeitamente normal devido a que se sentia atraída por um absoluto impossível de outro planeta onde se usava roupas que valiam mais que carros. Genial.
Se seguisse assim poderia ganhar o Prêmio Nobel de estupidez, uma meta que fixou em sua vida e que não podia esperar para ver cumprida.
Passeou os olhos pela sala enquanto tratava de fortalecer-se para voltar a pôr os pés sobre a terra… Até que ficaram fixos no cesto de papéis. Em cima de uma lata de Coca-Cola, havia um cartão de negócios cor creme feito uma bolinha parcialmente enrugada.
REHVENGE, FILHO DE REMPOON.
Debaixo só havia um número, sem nenhum endereço.
Agachou-se e o pegou, alisando-o contra a mesa. Ao percorrer a frente do cartão com a palma da mão algumas vezes, não encontrou nenhum desenho em relevo em sua superfície, unicamente uma leve depressão. Gravada. É obvio.
Ah, Rempoon. Conhecia esse nome, e agora encontrava sentido no parente próximo do Rehvenge. A pessoa que estava cotada, Madalina, era uma Escolhida renegada que tinha acolhido a outras para lhe dar orientação espiritual, uma amada fêmea de valor de quem Ehlena tinha ouvido falar, mas que nunca tinha conhecido pessoalmente. A fêmea se emparelhou com Rempoon, um macho de uma das linhagens mais antigas e proeminentes. Mãe. Pai.
Então esses casacos de zibelina não eram só uma demonstração de riqueza exibida por um novo-rico. Rehvenge procedia do lugar que Ehlena e sua família estavam acostumadas a formar parte, a glymera… O nível mais elevado da sociedade civil dos vampiros, os árbitros do bom gosto, o bastão da distinção… E o enclave mais cruel de sabichões do planeta, capazes de fazer com que os ladrões de Manhattan parecessem pessoas às quais poderia convidar para jantar.
Desejava-lhe sorte com esse grupo. Deus sabia que ela e sua família não tinham se dado bem com eles: seu pai tinha sido traído e expulso, sacrificado para que um ramo mais poderoso de sua linhagem pudesse sobreviver financeira e socialmente. E esse tinha sido o verdadeiro começo de sua ruína.
Ao sair da sala de exame, jogou o cartão de volta no cesto de papéis e recolheu o histórico médico de seu suporte. Depois de reportar-se com Catya, Ehlena se dirigiu à área de registro para cobrir à enfermeira que estava em seu descanso e ingressar no sistema as breves nota de Havers a respeito de Rehvenge e as receitas entregues.
Não havia menção à enfermidade subjacente. Mas talvez tivesse sido tratada durante tanto tempo que a referência tenha sido feita nos primeiros registros.
Havers não confiava nos computadores e fazia todo seu trabalho no papel, felizmente três anos atrás Catya tinha insistido em conservar uma cópia eletrônica de tudo e também tinha pedido que um grupo de doggens transferisse a totalidade dos históricos médicos de cada um dos pacientes ao servidor. E graças à Virgem Escriba por isso. Quando tinham mudado às instalações novas como resultado das incursões, o único que ficara eram os históricos eletrônicos dos pacientes.
Impulsivamente, percorreu a parte mais recente do histórico de Rehvenge. Nos últimos dois anos as doses de dopamina tinham se incrementando. E o antídoto também.
Saiu da sessão e se reclinou contra a cadeira do escritório, cruzando os braços sobre o peito e fixando a vista no monitor. Quando ativou o descanso de tela, apareceu uma chuva de estrelas que emanavam das profundidades do monitor à velocidade da luz da Millennium Falcon2[22].
Decidiu que ia a esse condenado encontro.
— Ehlena?
Levantou o olhar para Catya.
— Sim?
— Vai chegar um paciente em ambulância. TEA[23], dois minutos. Overdose, com substância desconhecida. Paciente entubado e com respiração assistida. Você e eu assistiremos.
Quando outro membro do pessoal apareceu para encarregar-se dos registros, Ehlena saltou da cadeira e saiu correndo pelo corredor atrás de Catya em direção às salas de emergência. Havers já estava ali, apressando-se a terminar o que parecia um sanduíche de presunto em pão de centeio.
No momento em que estava entregando o prato vazio a um doggen, o paciente entrou pelo túnel subterrâneo que comunicava com as garagens das ambulâncias. Os TEM[24] eram dois vampiros machos vestidos iguais aos paramédicos humanos, porque passar despercebidos era vital para seu encargo.
O paciente estava inconsciente, e permanecia com vida, só graças ao médico que estava junto a sua cabeça bombeando o respirador a um ritmo lento e constante.
— Seu amigo nos ligou, — disse o macho — e prontamente lhe deixou desacordado no beco frio próximo ao ZeroSum. As pupilas não respondem. A pressão arterial é de setenta e dois sobre trinta e oito. O pulso é de trinta e dois.
Que desperdício, pensou Ehlena enquanto se punha a trabalhar.
As drogas urbanas eram um mal totalmente isento de escrúpulos.

Do outro lado da cidade, na parte de Caldwell conhecida como Minimall Sprawlopolis[25], Wrath encontrava o apartamento do lesser com bastante facilidade. O complexo residencial no que se encontrava se chamava Hunterbred Farms[26], e as instalações de edifícios de dois andares de altura estavam decoradas com um motivo eqüino que era tão autêntico como as toalhas de plástico de um restaurante italiano barato.
Não existia nada parecido a uma raça de cavalos de caça. E a palavra fazenda não era habitualmente associada com cem unidades de dormitório embutidas entre uma concessionária Ford/Mercury e um supermercado. Agrário? Sim, com certeza. As extensões de grama estavam perdendo terreno na batalha contra o asfalto por uma margem de quatro a um e resultava evidente que o único lago que podia encontrar ali, tinha sido feito pelo homem.
A maldita coisa tinha borda de cimento como uma piscina, e a fina capa de gelo que o cobria era da cor da urina, como se houvesse um tratamento químico em ação.
Considerando a quantidade de humanos que viviam nas unidades, era surpreendente que a Sociedade Lessening pusesse suas tropas em um lugar tão conspícuo, mas talvez isto só fosse algo temporário. Ou possivelmente todo o puto lugar estivesse repleto de assassinos.
Cada edifício tinha quatro apartamentos agrupados ao redor de uma escada comum e os números engastados na parede exterior estavam iluminados do chão. Resolveu a provocação visual que apresentava utilizando o método, de comprovada qualidade, de toca e decifra. Quando encontrou uma fileira de dígitos em relevo que se parecia com oito um dois escritos em letra itálica, apagou as luzes de segurança com a mente e se desmaterializou para a parte superior das escadas.
O ferrolho da unidade oito um dois era frágil e foi fácil manipulá-lo com a mente, mas não dava nada por certo. De pé, encostado contra a parede, girou o trinco com forma de ferradura e abriu na porta só uma fresta.
Fechou seus inúteis olhos e escutou. Nenhum movimento, só o zumbido de um refrigerador. Considerando que seu ouvido era agudo o suficiente para ouvir a respiração de um camundongo, imaginou que estava seguro e logo depois de colocar uma estrela alojada na palma de sua mão, deslizou para dentro.
Havia boas probabilidades de que houvesse um sistema de segurança piscando em algum lado, mas não planejava ficar tempo suficiente para dançar com o inimigo. Além disso, embora aparecesse o assassino não poderia suscitar uma briga. O lugar fervia de humanos.
Em definitivo, ia procurar as jarras e ponto. Depois de tudo, a sensação de umidade que descia por sua perna não era devido a que tivesse pisado em um atoleiro de lodo na entrada. Estava sangrando dentro de sua bota por causa da batalha liberada no beco, assim, sim, se alguém que cheirasse a bolo de creme e coco misturado com xampu barato aparecesse, ele desapareceria.
Ao menos… Isso é o que havia dito a si mesmo.
Fechando a porta, Wrath inalou, longa e lentamente… E desejou poder fazer uma limpeza na pressão no interior do nariz e no fundo de sua garganta. E apesar, de que começou a fazer arcadas, as notícias eram boas: havia três aromas doces diferentes misturados no ar viciado o que significava que ali ficavam três lessers.
Enquanto se dirigia à parte de trás, onde os aromas enjoativos estavam mais concentrados, perguntava-se que demônios estava acontecendo. Os lessers raramente viviam em grupo porque brigavam entre eles... Que era o que acontecia quando só recrutava a maníacos homicidas. Demônios, o tipo de homens que o Omega escolhia não podia aplacar seu Michael Myers[27] interior só porque ocorrera à Sociedade economizar um pouco na renda.
Entretanto, podia ser que tivessem um Fore-lesser muito forte a cargo.
Depois das incursões do verão, era difícil acreditar que os lessers tivessem escassez de dinheiro, mas que outra razão poderia ter para consolidar as tropas? Por outro lado, os Irmãos, e Wrath tinham estado vendo coisas cada vez menos sofisticadas nas pistolas. Antes quando lutava com os assassinos tinham que estar preparado para qualquer tipo de modificação especial que tivesse saído ao mercado para qualquer tipo de arma. Ultimamente? Tinham lutado contra velhas navalhas escolares, nódulos de metal, e a semana passada até — gulp — uma fodida clava, todas armas baratas que não requeriam balas nem manutenção. E agora estavam brincando de The Walton’s aqui nas “Fazenda-fachada-de-Caçador”? Que merda estava acontecendo?
O primeiro dormitório que encontrou estava marcado por cheiro de perfumes, e encontrou duas jarras junto às camas de um lugar desprovidos de lençóis e mantas.
O seguinte cheirava também a uma variedade distinta de anciã… A isso e algo mais. Uma rápida inspiração disse a Wrath que se tratava de… Cristo, Old Spice[28].
Quem teria imaginado. Com a forma que esses imbecis cheiravam, como se fossem querer acrescentar algo à mistura…
Santa merda.
Wrath inalou profundamente, e fez com que seu cérebro filtrasse algo remotamente doce.
Pólvora.
Seguindo o picante aroma metálico que havia no ar, foi para um armário que tinha o tipo de portas finas que esperaria encontrar em uma casa de bonecas. Ao abri-las o eau d’ammo[29] floresceu, enquanto se agachava e media com as mãos a seu redor.
Caixas de madeira. Quatro. Todas fechadas com pregos.
Tirou conclusão que as armas que havia dentro definitivamente tinham sido disparadas, mas não recentemente. O que indicava que esta bem poderia ser uma compra SMC[30].
Não obstante ser de segunda mão não dava saber quem tinha sido o dono anterior.
Fosse como fosse, não ia deixar ali. O esconderijo ia ser usado pelo inimigo contra seus civis e seus irmãos, por isso era necessário fazer voar todo o apartamento antes de permitir que essas armas fossem utilizadas na guerra.
Mas informaria isto à Irmandade? Seu segredo seria revelado. O problema era, que levar essas caixas nas costas se por acaso só era uma situação de “seguro-como-não”? Não tinha carro, e não havia forma de se desmaterializar com esse tipo de peso nas costas embora mesmo se o separasse em cargas menores.
Wrath se afastou do armário e fez um inventário do cômodo usando o tato tanto quanto a vista. Oh, bem. À esquerda havia uma janela.
Proferindo uma maldição tirou seu celular e o abriu…
Alguém estava subindo a escada.
Ficou imóvel e fechando os olhos se concentrou ainda mais. Humano ou lesser?
Só um lhe preocupava.
Wrath se inclinou para um lado e deixou as duas jarras das que se apropriou em uma gaveta, encontrando, naturalmente, a terceira e um frasco de Old Spice. Sustentando na mão a calibre quarenta, firmou-se sobre seus shitkickers[31] e apontou a arma para o curto corredor, diretamente para a porta de entrada.
Houve um tinido de chaves, logo um “clang” como se lhe tivesse caído da mão.
A maldição foi de uma mulher.
Enquanto seu corpo se afrouxava, deixou que sua arma caísse sobre sua coxa. A Sociedade, igual à Irmandade, aceitava só machos em suas filas, assim que esse não era nenhum assassino jogando palitos chineses com as chaves.
Ouviu como fechava a porta do apartamento que estava em frente, e o repentino som surround da TV que alcançou um volume tão alto que pôde escutar a repetição do The Office[32].
Tinha gostado deste episódio. Era no que se perdia o taco de beisebol…
Alguns gritos chegaram até ele, gerados pela comédia da situação.
Sim. Agora estava voando o taco de beisebol.
Com a mulher certamente ocupada, voltou a enfocar-se, mas permaneceu onde estava, rezando para que o som de “bem-vindo-a-casa” fosse um tema que o inimigo ouvisse e seguisse seu caminho. Não obstante, ficar como uma estátua respirando levianamente não melhorou a proporção de lessers que havia no lugar. Uns quinze, talvez vinte minutos depois, ainda seguia rodeado de absolutamente nenhum assassino.
Mas não tinha sido uma perda total. Estava captando o agradável murmúrio de uma pequena parte da comédia, era a cena de Dwight e o taco de beisebol na cozinha do The Office.
Era hora de mover-se.
Chamou o Butch, deu ao Irmão o endereço, e disse ao polícia que conduzisse como se seu pé fosse feito de pedra. O certo era, Wrath queria tirar as armas dali antes que chegasse alguém. Mas além de seu irmão para ajudar a tirar as caixas rapidamente, Butch podia levá-las, e assim talvez Wrath pudesse ficar nas imediações pelo lapso de outra hora mais ou menos.
Para passar o tempo, revisou o apartamento, medindo as superfícies com as palmas das mãos em uma tentativa de encontrar computadores, telefones, ou mais condenadas armas.
Acabava de retornar ao segundo dormitório quando algo ricocheteou contra a janela.
Wrath voltou a desencapar sua quarenta e encostou as costas à parede próxima à janela. Com a mão, tirou o ferrolho e abriu a parte de vidro apenas uma fresta.
O acento de Boston do policial foi quase tão sutil como um alto-falante.
— Oi Rapunzel, vai deixar cair seu fodido cabelo?
— Shh, quer acordar os vizinhos?
— Como se fossem ouvir algo com o som dessa TV? Hey, esse é o episódio do taco de beisebol…
Wrath deixou Butch falando consigo mesmo, e voltando a guardar a pistola em seu quadril, abriu a janela amplamente, e logo se dirigiu ao armário. A única advertência que deu ao polícia enquanto fazia voar a caixa de noventa quilos de peso foi:
— Prepare-se, Effie.
— Jesus Bendi… — um grunhido interrompeu o juramento.
Wrath pôs a cabeça pela janela e sussurrou:
— Supõe-se que é um bom católico. Isso não foi uma blasfêmia?
O tom de Butch foi como se alguém tivesse urinado em sua cama.
— Acaba de me atirar com meio carro, sem mais advertência que uma fala da chata Sra. Doubtfire[33].
— Amadureça e aceite.
Wrath se encaminhou para o armário, enquanto o polícia amaldiçoava todo o caminho de ida para o Escalade, o qual tinha engenhado para estacionar debaixo de uns pinheiros.
Quando Butch retornou, Wrath lhe lançou outra.
— Faltam dois.
Ouviu-se outro grunhido e um falatório.
— Foda-me.
— Não nesta vida.
— Muito bem. Foda-se.
Quando a última caixa esteve embalada como um bebê dormindo nos braços de Butch, Wrath apareceu.
— Adeusinho.
— Não quer que te leve de volta à mansão?
— Não.
Houve uma pausa, como se Butch estivesse esperando que Wrath lhe informasse como tinha intenções de ocupar as poucas horas que ficavam da noite.
— Vá pra casa. — indicou ao polícia.
— O que digo aos outros?
— Que é um gênio e que encontrou as caixas com armas quando estava caçando.
— Está sangrando.
— Está começando a me encher que todos me digam isso.
— De acordo então, deixa de te comportar como um imbecil e vá ver a Doutora Jane.
— Acaso não me despedi de você já?
— Wrath…
Wrath fechou a janela, foi para a gaveta, e meteu as três jarras na jaqueta.
A Sociedade Lessening queria reclamar os corações de seus mortos tanto quanto os Irmãos, por isso nem bem um assassino se inteirava de que um de seus homens tinha caído, averiguavam o endereço do lesser e se dirigiam ali. Certamente algum dos bastardos que tinha matado essa noite tinha pedido reforços durante o processo. Tinham que estar cientes.
Tinham que vir.
Wrath escolheu a melhor posição defensiva, que era no dormitório do fundo, e apontou seu clique-clique-Bang-Bang[34] para a porta dianteira.
Não sairia dali até que fosse absolutamente necessário.


Capítulo 9


Nos subúrbios da cidade de Caldwell podia se encontrar fazendas ou bosques, e, além disso, havia duas variedades de fazendas, as leiteiras ou as que cultivavam trigo… Predominando as leiteiras, dado o curto período de desenvolvimento necessário. Os bosques eram também binários, e tinha para escolher entre os de pinheiros que precediam os flancos das montanhas, e os de carvalhos que levavam aos pântanos do Rio Hudson.
Sem importar a paisagem, campestre ou industrializado, encontra estradas que eram pouco transitadas, casas que distavam quilômetros umas das outras e, vizinhos que eram tão solitários e de gatilho fácil como qualquer solitário pudesse desejar.
Lash, filho de Omega, estava sentado a uma mesa dobrável de cozinha em uma cabana de um só cômodo situada em uma das áreas cobertas com bosques. Em frente a ele sobre a gasta superfície de pinheiro estavam estendido todos os registros financeiros da Sociedade Lessening que tinha sido capaz de encontrar, imprimir ou descarregar em seu computador portátil.
Isto era uma puta merda. Estendeu a mão e recolheu um extrato do Banco Evergreen que tinha lido uma dúzia de vezes. A maior conta da Sociedade tinha cento e vinte e sete mil, quinhentos e quarenta e dois dólares e quinze centavos. As demais, que estavam alojadas em outros seis bancos, incluindo o Glens Falls National e o Farrel Bank & Trust, tinham saldos entre vinte dólares e vinte mil.
Se isto era tudo que a Sociedade tinha, estavam balançando-se sobre a borda a ponto de desmoronar-se em bancarrota.
As incursões feitas durante o verão tinham produzido alguns bons benefícios em forma de uma pilhagem de antiguidades e prata, mas acessar a esses recursos era complicado porque implicava um monte de contato humano. E tinham se apropriado de algumas contas financeiras, mas, uma vez mais, extrair dinheiro dos bancos humanos era uma confusão complicada. Como tinha aprendido do modo mais duro.
— Querem um pouco mais de café?
Lash levantou o olhar até seu número dois e pensou que era um milagre que o senhor D ainda permanecesse com ele. Quando Lash tinha entrado pela primeira vez neste mundo, logo depois de ter renascido por obra de seu verdadeiro pai, o Omega, havia se sentido extraviado, havendo convertido o inimigo em sua família. O senhor D tinha sido seu guia, embora como todos os mapas de turistas, Lash tinha assumido que o bastardo deixaria de ter utilidade quando o novo terreno tivesse sido aprendido pelo condutor.
Não foi assim. O pequeno texano que tinha sido o instrutor de Lash era agora seu discípulo.
— Sim, — disse Lash — e que tal um pouco de comida?
— Sim, senhor. Conseguirei um pouco de bacon gordurento agora mesmo, e esse queijo que gosta.
O café foi servido generosa e lentamente na xícara de Lash. Em seguida lhe pôs açúcar, e a colher utilizada para mexer produziu um suave tinido. O senhor D teria limpado alegremente o traseiro de Lash se tivesse pedido, mas ele não era uma joaninha. O pequeno imbecil podia matar como ninguém no negócio, era o boneco Chucky dos assassinos. Grande cozinheiro de comida rápida, e além disso fazia panquecas altas, esponjadas como um travesseiro.
Lash consultou seu relógio. O Jacob & CO. Estava coberto de diamantes, e à luz tênue da tela do computador pareciam como mil pontos de luz. Mas a coisa era um falso substituto que tinha conseguido no EBay. Queria outro autêntico exceto... Jesus Cristo... Não podia permitir-se. Claro que tinha conservado todas as contas de seus “pais” depois de matar o casal de vampiros que lhe tinham criado como se fosse seu filho, mas embora houvesse uma boa quantidade de verdes dólares nesses sacos, era reticente a gastar algo disso em frivolidades.
Tinha faturas a pagar. Como as hipotecas, armas, munições, roupas, aluguel e arrendamento de carros. Os lessers não comiam, mas consumiam um montão de recursos, e o Omega não se preocupava com o efetivo. Mas claro, ele vivia no inferno e tinha a habilidade de conjurar algo do ar mesmo. De uma comida quente às capas Liberace com que gostava de cobrir seu negro e sombrio corpo.
Lash odiava admitir, mas tinha a sensação de que seu verdadeiro pai era um pouco folgado. Nenhum autêntico homem estaria totalmente preso nessa merda cintilante.
Ao elevar sua xícara de café, seu relógio brilhou e ele franziu o cenho.
Seja como for, era um símbolo de status.
— Seus meninos chegam tarde. — se queixou.
— Estão no caminho. — o senhor D se levantou e abriu a geladeira dos anos setenta. Que não só tinha uma porta que chiava e era da cor de uma azeitona podre, mas sim babava como um cão.
Isto era fodidamente ridículo. Precisavam modernizar suas guaridas. E senão todas, ao menos seu quartel general
Ao menos o café era perfeito, embora guardasse isso para si mesmo.
— Eu não gosto de esperar.
— Estão a caminho, não se preocupe. Três ovos na omelete?
— Quatro.
Enquanto uma série de rangidos e estalos se difundiam através da cabana, Lash golpeou ligeiramente a ponta de seu Waterman  sobre o resumo do Evergreen. Os gastos da Sociedade, incluindo as faturas de celulares, conexões de internet, aluguéis/hipotecas, armas, roupa, e carros giravam facilmente em torno de uns cinqüenta mil ao mês.
Quando se colocou pela primeira vez em seu novo papel, esteve endemoniadamente seguro de que alguém em suas filas estava cortando a maçã. Mas durante meses tinha estudado as coisas cuidadosamente, e não havia nenhum Kenneth Lay  que ele pudesse encontrar. Era uma simples questão de contabilidade, não de fraude de livros ou desvio: os custos eram mais altos que os lucros. E ponto.
Estava fazendo o que podia para armar a suas tropas, inclusive tinha chegado tão baixo para comprar quatro caixas de armas de motoqueiros que tinha conhecido na prisão durante o verão. Mas não era suficiente. Seus homens necessitavam algo melhor que Red Ryders reabilitados para acabar com a Irmandade.
E já que estava com a lista de desejos, precisava de mais homens. Tinha acreditado que os motoqueiros seriam um bom poço de recrutamento, mas tinham provado ser muito coesivos. Apoiando-se em seus entendimentos com eles, sua intuição lhe dizia que tinha que atrair a todos ou a nenhum... Porque estava claro como a merda que se escolhia, os escolhidos voltariam para sua casa-clube e contariam a seus colegas sobre seu novo entretenimento matando vampiros. E se recrutava a todos, depois correria o risco de que se rebelassem contra sua autoridade.
O recrutamento um por um ia ser a melhor estratégia, mas não era como se tivesse tempo para fazer nada disso. Entre as sessões de treinamento com seu pai — as quais, apesar de suas críticas ao vestuário de papai, estavam provando ser monstruosamente úteis — seu seguimento dos acampamentos de persuasão, saque de armazéns, e tentar conseguir que seus homens se concentrassem no trabalho que tinham entre mãos, não ficava nem sequer uma hora livre ao dia.
Assim que a merda se estava pondo crítica: para ser um bem-sucedido líder militar se requeriam três coisas, os recursos e os recrutas eram duas delas. E embora ser filho de Omega lhe proporcionava muitas vantagens, o tempo era o tempo, não se detinha por nenhum homem, nem vampiro, e tampouco por nenhuma semente do mal.
Considerando o estado das contas, sabia que tinha que começar com os primeiro recursos. Depois poderia ocupar-se dos outros dois.
O som de um carro estacionando junto à cabana lhe fez pôr a palma sobre uma quarenta e o senhor D foi pegar seu Magnum 357. Lash manteve seu ferro sob a mesa, mas o senhor D ficou todo fanfarrão com o seu, segurando a peça no alto com o braço estendido em uma linha reta desde seu ombro.
Quando ouviu o chamado, Lash disse afiadamente:
— Será melhor que seja quem acredito que é.
O lesser respondeu do modo correto.
— Sou eu, e o senhor A e seu encargo.
— Entre. — disse o senhor D, sempre tão bom anfitrião, apesar de que conservou sua 357 levantada e pronta para a ação.
Os dois assassinos que atravessaram a porta eram os últimos dos macilentos, o casal final de veteranos que tinham estado na Sociedade o suficiente para ter perdido sua coloração de cabelo e olhos original.
O humano que foi arrastado para dentro era um tipo mirrado de um metro e oitenta de altura sem nada particularmente interessante, um menino branco de vinte anos com um rosto comum e entradas que seriam um problema em outro par de anos. O aspecto de playboy, e a atitude de “quem lhe importa?” explicava além de toda dúvida por que se vestia como fazia: com uma jaqueta de couro com uma águia bordada à costas, uma camisa Fender Rock & Roll Religion, correntes pendurando dos jeans e tênis Ed Hardy.
Triste. Realmente triste. Era como pôr aros de vinte e quatro polegadas em um Toyota Camry. E se o menino estivesse armado? Sem dúvida estava com uma navalha Suíça que usava principalmente como palito de dentes.
Mas não necessariamente tinha que ser um lutador para ser de utilidade. Lash tinha desses. Deste PDM[35] necessitava algo mais.
O homem olhou à boas-vindas oferecida pela Magnum do senhor D e olhou para trás, em direção à porta, como se perguntando se poderia correr mais rápido que uma bala. O senhor A resolveu a questão fechando a porta com todos eles dentro e ficando diante da saída.
O humano olhou o Lash e franziu o cenho.
— Hey... Conheço você. Da prisão.
— Sim, claro. — Lash permaneceu sentado e sorriu um pouco — Então, quer saber os prós e os contras desta reunião?
O humano tragou e voltou a concentrar-se no canhão do senhor D.
— Sim. Claro.
— Foi fácil de encontrar. Tudo o que meus homens tiveram que fazer foi ir ao Screamer's e esperar um momento e... Aqui está. — Lash se recostou em sua cadeira e o assento de vime rangeu. Quando o olhar do humano se moveu inquieto, teve a tentação de lhe dizer que se esquecesse do som e se preocupasse com a quarenta que tinha debaixo da mesa apontada às jóias da família — Você se manteve fora de problemas desde que te vi na prisão?
O humano sacudiu a cabeça e disse:
— Sim.
Lash riu.
— Quer tentar de novo? Não está em sincronia.
— Quero dizer, ainda me mantenho em meu negócio, mas não me pegaram.
— Bom, bem. — quando os olhos do homem voltaram a saltar para o senhor D, Lash riu — Se eu fosse você, ia querer saber por que me trouxeram aqui.
— Ah... Sim. Isso seria genial.
— Minhas tropas estiveram lhe observando.
— Tropas?
— Tem um negócio firme na cidade.
— Ganho um bom dinheiro.
— Você gostaria de fazer mais?
Agora o humano olhou ao Lash, com um olhar ávido e lisonjeador nos olhos.
— Quanto mais?
O dinheiro era realmente um grande motivador, não?
— Faz bem para um vendedor em pequenas quantidades, mas neste momento é de pouca subida. Felizmente para você, estou de humor para fazer um investimento em alguém como você, alguém que necessite um empurrão para passar ao nível seguinte. Quero que seja algo mais que um vendedor em pequenas quantidades, quero te converter em um intermediário com as pessoas importantes.
O humano levou uma mão ao queixo e a desceu por seu pescoço como se tivesse que despertar seu cérebro massageando a garganta. No silêncio, Lash franziu o cenho. Os nódulos do tipo estavam esfolados e faltava a pedra do anel barato do Instituto Secundário de Caldwell.
— Isso parece interessante. — murmurou o humano — Mas... Tenho que pensar um pouco.
— Como não. — cara, se esta era uma tática negociadora, Lash estava mais que preparado para assinalar que havia outros cem distribuidores menores que saltariam ante este tipo de trato.
Logo lhe faria um gesto com a cabeça ao senhor D e o assassino procederia a colocar uma bala na jaqueta de águia embaixo das exageradas entradas.
— Eu, ah, não posso voltar a Caldie[36]. Durante um tempo.
— Por quê?
— Não está relacionado com a distribuição de drogas.
— Tem algo a ver com seus nódulos esfolados? — o humano escondeu rapidamente o braço depois disso — Foi o que pensei. Pergunta: se tem que te manter na clandestinidade, que demônios fazia no Screamer's esta noite?
— Digamos que queria fazer uma compra para mim mesmo.
— É idiota se tomar o que vende. — e não um bom candidato para o que Lash tinha em mente. Não queria fazer negócios com um idiota.
— Não se tratava de drogas.
— Uma nova identidade?
— Talvez.
— Conseguiu o que procurava? No clube?
— Não.
— Posso te ajudar com isso. — a Sociedade tinha sua própria plastificadora, pelo amor de Deus — E aí vai minha proposta. Meus homens, os que tem a sua esquerda e atrás de você, trabalharão contigo. Se não puder ser o homem que dá a cara na rua, pode conseguir a mercadoria e eles podem movê-la depois de que lhes mostre como funciona tudo. — Lash olhou o Senhor D — Meu café da manhã?
O Senhor D deixou a arma junto ao chapéu de cowboy que tirava só quando estava dentro de casa e depois avivou a chama sob uma caçarola que havia sobre o pequeno fogão.
— De que tipo de dinheiro estamos falando? — perguntou o homem.
— Cem dos grandes como primeiro investimento.
Os olhos do homem pareciam máquinas registradoras, todo “ding-ding-ding” de excitação.
— Bom... Merda, isso é suficiente para começar o jogo. Mas quanto há para mim?
— Repartiremos os lucros. Setenta para mim. Trinta para você. De todas as vendas.
— Como sei que posso confiar em você?
— Não sabe.
Quando o Senhor D pôs um pouco de bacon ao fogo, o chiado e o cheiro encheu a casa e Lash sorriu ante o som.
O humano olhou a seu redor, e virtualmente se podiam ler seus pensamentos: cabana no meio do nada, quatro tipos contra ele, ao menos um dos quais tinha uma arma capaz de converter uma vaca em hambúrguer.
— Bem. Sim. De acordo.
O que era, é obvio, a única resposta.
Lash pôs a trava em sua arma, e quando pousou sua automática sobre a mesa, os olhos do humano se arregalaram.
— Vamos, como não pensou que te deixava coberto? Por favor.
— Sim. Ok. Certo.
Lash se levantou e rodeou a mesa em direção ao homem. Enquanto estendia a mão, disse:
— Como se chama, Jaqueta de Águia?
— Nick Carter.
Lash riu com força.
— Tenta de novo, imbecil. Quero o autêntico.
Bob Grady. Mas me chamam de Bobby G.
Apertaram as mãos e Lash apertou forte, esmagando seus nódulos machucados.
— Alegro-me alegro de fazer negócios com você, Bobby. Eu sou Lash. Mas pode me chamar de Deus.
******
John Matthew examinou as pessoas da área VIP do ZeroSum não porque estivesse procurando paquera, como Qhuinn fazia, nem porque estivesse perguntando com quem Qhuinn ia querer paquerar, como Blay fazia.
Não, John tinha suas próprias fixações.
Normalmente Xhex aparecia a cada meia hora, mas fazia um momento seu segurança tinha se aproximado e ela partiu com pressa, e desde esse momento tinha desaparecido.
Quando uma ruiva passou brandamente junto a eles, Qhuinn se moveu no banco, sua bota de combate tamborilando sob a mesa. A mulher humana media ao redor de um metro e setenta e tinha as pernas de uma gazela, longas, frágeis e encantadoras. E não era uma profissional... Ia de braço com um homem com aspecto de homem de negócios.
Isso não significava que não se entregasse por dinheiro, mas o fazia em uma modalidade mais legal chamada relação.
— Merda. — resmungou Qhuinn, seus olhos desiguais eram os de um predador.
John deu um tapinha na perna de seu colega e na Linguagem de Sinais Americano disse:
Olhe, por que não vai atrás com alguém. Está me enlouquecendo com esse estalo continuado.
Qhuinn assinalou a lágrima que tinha tatuada sob o olho.
— Supõe-se que não devo te deixar. Nunca. Esse é o ponto de ter um ahstrux nohstrum.
E se não fizer sexo logo, vai ser inútil.
Qhuinn observou como a ruiva arrumava a saia curta para poder sentar-se sem desdobrar o que sem dúvida era nada menos que uma depilação brasileira com cera (assim chamada, pois é uma depilação quase total) .
A mulher passeou a vista pelo lugar sem demonstrar interesse... Até que chegou ao Qhuinn. No momento em que lhe viu, seus olhos se iluminaram como se tivesse encontrado uma promoção na Neiman Marcus. Não lhe surpreendeu. A maioria das mulheres e fêmeas fazia o mesmo, e era compreensível. Qhuinn se vestia simplesmente, mas seu estilo era o de um cara duro: camisa negra metida em Z-Brands azuis escuro. As botas negras de combate. Piercings de metal negro percorrendo toda a longitude de uma de suas orelhas. O cabelo penteado formando picos negros. E recentemente tinha furado o lábio inferior no centro colocando um aro negro.
Qhuinn parecia o tipo de indivíduo que mantinha sua jaqueta de couro no colo porque levava armas nela.
O que fazia.
— Não, estou genial. — resmungou Qhuinn antes de terminar sua Corona — As ruivas não me caem bem.
Blay afastou o olhar bruscamente, assumindo um repentino e fingido interesse por uma morena. A verdade era que estava interessado em uma só pessoa, e essa pessoa lhe tinha rechaçado tão sólida e amavelmente como só um melhor amigo podia.
Era evidente, muito claro e bem certo que ao Qhuinn não fossem as ruivas.
Quando foi a última vez que esteve com alguém? Gesticulou John.
— Não sei. — Qhuinn pediu por gestos outra rodada de cervejas — Um tempo.
John tentou recordar e se deu conta que não tinha sido desde... Cristo, do verão, com essa garota da Abercrombie & Fitch. Considerando que Qhuinn costumava fazê-lo ao menos com três pessoas em uma noite, isso era um inferno de seca, e era difícil imaginar que uma dieta restrita a base de clímax conseguidos mediante masturbação fosse contentar. Merda, inclusive quando se alimentava das Escolhidas, tinha estado mantendo as mãos para si mesmo, apesar do fato de que suas ereções cresciam até chegar a lhe provocar suores frios. Por outro lado, os três se alimentavam da mesma fêmea ao mesmo tempo, e por muito que Qhuinn não tivesse problema algum em ter audiência, conservava as calças em seu lugar por deferência a Blay e John.
Sério, Qhuinn, que demônios vai me acontecer? Blay está aqui.
— Wrath disse que sempre contigo. Assim devo estar. Sempre. Contigo.
Acredito que está levando isso muito a sério. Como que, muito a sério.
Do outro lado da seção VIP, a gazela ruiva se acomodou em seu assento de forma que os atributos que tinha mais abaixo da cintura se desdobrassem completamente, suas suaves pernas emergiram de debaixo da mesa e ficaram a plena vista de Qhuinn.
Esta vez quando o cara se moveu, foi bastante óbvio que estava reacomodando algo duro em seu colo. E não era uma de suas armas.
Pelo amor de Deus, Qhuinn, não digo que tenha que ser ela. Mas temos que conseguir que alguém se ocupe de...
— Disse que estava bem. — interveio Blay — Deixe-o em paz.
— Há um modo. — os olhos desiguais de Qhuinn se voltaram para John — Poderia vir comigo. Não é que vamos fazer nada, sei que não vai. Mas você também poderia conseguir alguém. Se quiser. Poderíamos fazê-lo em um dos banheiros privados, e você poderia ficar com o reservado e dessa forma poderia ver você. Você tem a palavra, ok? Não voltarei a puxar o assunto.
Enquanto Qhuinn afastava o olhar com atitude despreocupada e casual, se fazia difícil não simpatizar com o cara. Tanto a consideração, como a rudeza, vinha em um montão de variedades diferentes, e a gentil oferta de ter uma agradável sessão de sexo por partida dupla era uma espécie de amabilidade: Qhuinn e Blay sabiam o motivo pelo qual apesar de já ter passado oito meses da transição de John, não tinha estado com uma fêmea. Sabiam o motivo e ainda assim seguiam saindo com ele.
Deixar cair à bomba que John tinha estado ocultando tinha sido a patada final de Lash antes de morrer.
Tinha sido a razão pela que Qhuinn tinha matado ao estúpido.
Quando a garçonete trouxe uma nova rodada de cervejas, John olhou à ruiva e, para sua surpresa, lhe sorriu quando lhe pegou olhando.
Qhuinn riu baixinho.
— Possivelmente não sou o único que gosta.
John levou a Corona à boca e tomou um gole para ocultar seu rubor. A questão era, que desejava ter sexo e, como Blay, desejava-o com alguém em particular. Mas tendo perdido já uma ereção diante de uma fêmea nua e disposta, não tinha nenhum apuro em tentar de novo, especialmente não com a pessoa que lhe interessava.
Demônios. Não. Xhex não era o tipo de fêmea diante da qual quisesse nem sequer te engasgar com uma asa de frango. Desinflar porque foi muito covarde para entrar em ação? Seu ego nunca voltaria a ser o mesmo...
Uma onda de inquietação na multidão fez com que deixasse de lado todos os “pobrezinho de mim” e se endireitasse no assento.
Um cara de olhos selvagens estava sendo escoltado através da área VIP por dois enormes seguranças, cada um com uma mão sobre a parte superior de seu braço. Estava sapateando sobre seus sapatos caros, com seus pés mal tocando o chão, e sua boca dançava de igual modo, parecendo uma imitação de Fred Astaire, embora John não pudesse ouvir o que estava dizendo por cima da música.
O trio entrou no escritório privado da parte de trás.
John acabou sua Corona e olhou fixamente a porta enquanto se fechava. Ocorriam coisas más às pessoas que eram levadas ali. Especialmente se eram arrastados por um par de seguranças.
Repentinamente, um silêncio atenuou todo o bate-papo da área VIP, fazendo com que a música parecesse estar muito alta.
John soube quem era antes de virar a cabeça.
Rehvenge tinha entrado pela porta lateral, sua entrada foi silenciosa, mas tão óbvia como o estalo de uma granada. No meio de seus clientes bem vestidos com suas bonecas de braço, as garotas com seus encantos expostos para ser comprados e as garçonetes correndo com as bandejas, ele diminuía o tamanho do espaço, e não só porque era um macho enorme vestido com um sobretudo de zibelina, mas sim pela forma em que olhava a seu redor.
Seus brilhantes olhos cor ametista viam todos e não se preocupavam com ninguém.
Rehv... Ou o Reverendo, como lhe chamava a clientela humana... Era um senhor da droga e um alcoviteiro que não dava uma merda pela vasta maioria. O que significava que era capaz de, e freqüentemente fazia, algo que lhe desse um real ganho.
Especialmente a caras do estilo do bailarino.
Caralho, a noite ia terminar mal para esse cara.
Quando Rehv passou a seu lado, saudou com a cabeça ao John e os meninos, e eles lhe devolveram a saudação, elevando suas Coronas em deferência. A questão era que Rehv era uma espécie de aliado da Irmandade, tendo sido nomeado leahdyre do conselho da glymera depois dos assaltos... Porque era o único desses aristocratas com culhões para permanecer em Caldwell.
Assim que lhe importava muito poucas coisas e estava a cargo de um diabólico montão de coisas.
John girou para a corda de veludo, sem sequer incomodar-se em dissimular. Certamente isto significava que Xhex tinha que estar...
Apareceu na porta da seção VIP, com o aspecto de um trilhão de dólares, ao menos em sua opinião: quando se inclinou ao redor de um dos seguranças para que o cara pudesse lhe sussurrar ao ouvido, seu corpo estava tão tenso que os músculos de seu estômago se insinuavam através da camiseta sem mangas que lhe ajustava como uma segunda pele.
Falando de revolver-se no assento, agora era ele que tinha problemas de posição.
Entretanto, enquanto ela caminhava para o escritório privado de Rehv, sua libido se gelou. Nunca tinha sido do tipo que sorria muito, mas quando passou a seu lado, estava sombria. Igual ao Rehv.
Evidentemente, estava acontecendo algo, e John não pôde evitar o impulso ao estilo “cavalheiro-de-armadura-brilhante” que acendeu em seu peito. Mas vamos, Xhex não precisava de um salvador. Por acaso era do tipo de pessoa que estaria no cavalo, lutando contra o dragão.
— Parece um pouco apertado aí. — disse Qhuinn baixinho quando Xhex entrou no escritório — Mantém minha oferta em mente, John. Não sou o único que sofre, verdade?
— Se me desculpam. — disse Blay, ficando em pé e pegando sua Red Dunhills e seu isqueiro dourado — Preciso de um pouco de ar fresco.
O macho tinha começado a fumar recentemente, um hábito que Qhuinn desprezava apesar do fato de que os vampiros não podiam desenvolver câncer. Entretanto, John o entendia. A frustração devia se resolver de algum modo, e só até certo ponto podia liberá-la a sós em seu dormitório ou com seus amigos na sala de musculação.
Demônios, todos eles tinham ganhado músculos nos últimos três meses, seus ombros, braços e coxas tinham ultrapassado a sua roupa. Fazia que um cara pensasse em dar razão aos lutadores a respeito de não ter nada de sexo antes dos torneios. Se seguissem ganhando músculos assim, iam acabar parecendo uma turma de lutadores profissionais.
Qhuinn baixou o olhar a sua Corona.
— Quer sair daqui? Por favor, me diga que quer sair daqui.
John desviou o olhar para a porta do escritório de Rehv.
— Ficamos. — resmungou Qhuinn enquanto fazia gestos à garçonete, que se aproximou do momento — Vou precisar de outra destas. Ou talvez uma caixa.


CONTINUA

Nas sombras da noite em Caldwell, Nova Iorque, desenrola-se uma guerra letal entre os vampiros e seus assassinos. Também existe uma Irmandade secreta que não se compara a nenhuma outra que tenha existido. Agora, enquanto os guerreiros vampiros defendem a sua raça daqueles que querem exterminá-los, a lealdade de um homem para a Irmandade será posta a prova — e sua perigosa natureza será revelada...
Rehvenge sempre manteve distância da Irmandade, mesmo que sua irmã esteja casada com um de seus membros, pois guarda um letal secreto que poderia fazer dele um grande lastro em sua guerra contra os restrictores. E enquanto as conspirações dentro e fora da Irmandade ameaçam revelar a verdade sobre o Rehvenge, ele se aproximará da única luz que ilumina seu mundo de escuridão e que trata de sustentá-lo, Ehlena, uma vampira que nunca conheceu a corrupção e traição... a única pessoa que pode salvá-lo da destruição eterna.


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Capítulo 1


— O rei deve morrer.
Quatro palavras, algumas sílabas. Separadas não eram nada em especial. Juntas? São um mau agouro de todo tipo de merda. Assassinato. Deslealdade. Traição.
 Morte.
No tenso momento que houve logo depois de que as dissessem, Rehvenge se manteve em silêncio deixando que o quarteto permanecesse suspenso no carregado ar do escritório, quatro pontas de uma sinistra e maligna bússola com a qual estava intimamente familiarizado.
— Tem alguma resposta? – perguntou Montrag, filho de Rehm.
— Não.
Montrag piscou e brincou com a gravata de seda que tinha posta no pescoço. Como a maioria dos membros da glymera, tinha ambos os sapatos de veludo firmemente plantados na seca e rarefeita areia de sua classe. O que simplesmente significava que era francamente pedante, arrogante em todo aspecto. Com sua jaqueta de smoking, e suas impecáveis calças… Merda, na verdade eram polainas? Parecia saído das páginas de uma Vanity Fair. De uns cem anos atrás. E no que se referia à política, com sua infinidade de atitudes condescendentes e suas brilhantes e fodidas idéias era como Kissinger sem um presidente: toda análise sem nada de autoridade o que deveria explicar esta reunião não é assim?
— Não te detenha agora. – disse Rehv — Já que você saltou do edifício. A aterrissagem não será mais suave.
Montrag franziu o cenho.
— Não posso ver isto com a mesma rapidez que você.
— Quem está rindo?
Um golpe na porta do escritório fez com que Montrag girasse a cabeça, tinha o perfil de um cavalheiro irlandês: todo nariz.
— Entre.
A doggen que respondeu à ordem entrou lutando com o peso do serviço de prata que carregava. Com uma bandeja de ébano do tamanho de um alpendre nas mãos começou a atravessar o cômodo, encurvada devido a carga.
Até que levantou a cabeça e viu Rehv.
Congelou-se como uma fotografia instantânea.
— Tomaremos o chá aqui. — Montrag apontou à mesa que havia no meio dos dois sofás de seda nos que estavam sentados — Aqui.
A doggen não se moveu, ficou olhando fixamente o rosto de Rehv.
— O que foi? — perguntou Montrag quando as xícaras começaram a tremer, e um som tilintante começou a surgir da bandeja — Ponha nosso chá aqui, agora.
A doggen inclinou a cabeça, murmurou algo, e se adiantou lentamente, pondo um pé diante do outro como se estivesse se aproximando de uma serpente enroscada. Ficou tão afastada de Rehv como pôde, e depois de deixar o serviço, suas trementes mãos mal eram capazes de pôr as xícaras sobre os pires.
Quando foi agarrar o bule, era evidente que ia derramar a merda por todos os lados.
— Deixe que eu faça. — disse Rehv, esticando a mão.
Quando a doggen fez um movimento brusco para afastar-se dele, o bule virou na mão e o chá começou uma queda livre.
Rehv apanhou a prata quente entre suas palmas.
— O que você fez! — exclamou Montrag, levantando-se de um salto do sofá.
A doggen se encolheu, levando as mãos à cara.
— Sinto muito, amo. Verdadeiramente, o…
— Oh, te cale, e nos traga um pouco de gelo…
— Não é sua culpa. — Rehv desviou a mão tranqüilamente para o bule e começou a servir — E eu estou perfeitamente bem.
Ambos o olharam como se estivessem esperando que desse um salto e começasse a sacudir o traseiro ao ritmo de ow—ow—ow.
Deixou o bule de prata e olhou os pálidos olhos de Montrag.
— Um torrão. Ou dois?
— Posso… Posso te oferecer algo para essa queimadura?
Sorriu, mostrando as presas a seu anfitrião.
— Estou perfeitamente bem.
Montrag pareceu ofendido pelo fato de não poder fazer nada, e voltou seu desgosto para a criada.
— É uma desgraça absoluta. Vá.
Rehv olhou a doggen. Para ele suas emoções eram como um ralo tridimensional de medo, vergonha e pânico, e a trama trançada enchia o espaço que a rodeava tão certamente como o faziam seus ossos, seus músculos e sua pele.
— Fique tranqüila. — disse-lhe com o pensamento — E tenha certeza que endireitarei isto.
O assombro relampejou em seu rosto, seus ombros afrouxaram a tensão e se girou aparentando estar muito mais tranqüila.
Quando se foi, Montrag clareou a garganta e voltou a sentar.
— Não acredito que vá prestar. É absolutamente incompetente.
— Por que não começamos com um torrão? — Rehv deixou cair um cubo de açúcar dentro do chá — E veremos se deseja outro.
Estendeu a mão com a xícara, mas não muito afastada, para que Montrag se visse forçado a levantar-se novamente do sofá e a inclinar-se sobre a mesa.
— Obrigado.
Rehv não soltou o pires enquanto promovia uma mudança de parecer na mente de seu anfitrião.
— Deixo as fêmeas nervosas. Não foi sua culpa.
Abriu a mão abruptamente e Montrag lutou para pegar a Royal Doulton[1].
— Oops. Não o derrame. — Rehv voltou a se reclinar contra o sofá — Seria uma pena manchar este tapete tão fino. Aubusson, verdade?
 — Ah… Sim. — Montrag voltou a sentar-se e franziu o cenho, como se não tivesse idéia de porque tinha trocado de opinião com respeito a sua criada — Errr… Sim, é. Meu pai comprou faz muitos anos. Tinha um gosto apurado, não é mesmo? Construímos esta sala especialmente para este tapete, porque é muito grande, e a cor das paredes foi escolhida especificamente para fazer ressaltar seus matizes cor pêssego.
Montrag passeou a vista pelo escritório e sorriu para si mesmo enquanto sorvia, com o dedo mindinho estendido no ar como se fosse uma bandeira.
— Como está seu chá?
— Perfeito, mas você não tomará um pouco?
— Não sou bebedor de chá. — Rehv esperou até que a xícara estivesse nos lábios do macho — Então estava falando de assassinar Wrath?
Montrag cuspiu o Earl Grey[2], salpicou a frente de sua jaqueta de smoking cor vermelha sangue e sujou o estupendo tapete do papai.
Quando o macho começou a bater fracamente as manchas, Rehv lhe ofereceu um guardanapo.
— Tome, use isto.
Montrag pegou o quadrado de damasco, e acariciou torpemente seu peito, logo o deslizou pelo tapete com igual falta de resultados. Era evidente, que era o tipo de macho que fazia tramas e não do tipo que os solucionava.
— Em que estávamos? — murmurou Rehv.
Montrag atirou o guardanapo na bandeja e ficou de pé, esquecendo o chá, para passear pelo cômodo. Deteve-se frente a uma grande paisagem montanhosa e pareceu estar admirando a dramática cena, iluminada por focos, de um soldado colonial rezando aos céus.
Falou com a pintura.
— Está a par de que muitos irmãos de sangue foram abatidos nas incursões dos lessers.
— E eu aqui pensando que tinham me escolhido leahdyre[3] do conselho devido a minha animada personalidade.
Montrag o olhou agressivamente por cima do ombro, seu queixo elevado de forma tipicamente aristocrática.
— Perdi a meu pai, a minha mãe e a todos os meus primos e irmãos. Enterrei a todos e cada um deles. Pensa que isso é motivo de regozijo?
— Minhas desculpas. — Rehv colocou a palma da mão direita sobre o coração e inclinou a cabeça, apesar de que não lhe importava uma merda. Não ia ser manipulado pela menção de suas perdas. Especialmente quando todas as emoções do cara falavam de cobiça e não de dor.
Montrag deu as costas à pintura, e sua cabeça ocupou o lugar da montanha sobre a qual estava o soldado colonial… Pelo que dava a impressão que o pequeno homem de uniforme vermelho estava tratando de subir pela sua orelha.
— Devido às incursões, a glymera suportou perdas sem igual. Não só em vidas, mas também em propriedades. Casas saqueadas, antiguidades e obras de arte roubadas, contas de banco desaparecidas. E o que Wrath fez? Nada. Não deu resposta às freqüentes perguntas a respeito de como foram encontradas as residências dessas famílias… Por que a Irmandade não deteve os ataques… Onde foram parar todos esses bens? Não há um plano para assegurar-se que nunca mais volte a ocorrer algo assim. Não oferecem a segurança a nós, poucos membros restantes da aristocracia, de que se retornássemos a Caldwell, estaríamos protegidos. — Montrag realmente se entusiasmou, sua voz se elevava e ricocheteava contra a parte mais alta do teto dourado com molduras — Nossa raça está morrendo e precisamos de uma verdadeira liderança. Não obstante, por Lei, enquanto o coração de Wrath siga pulsando em seu peito, seguirá sendo rei. A vida de um é mais valiosa que a vida de muitos? Examine seu coração.
Oh, Rehv estava olhando em seu interior, esse era, esse negro e maldito músculo.
— E... Logo o que?
— Assumimos o controle e fazemos o correto. Durante seu reinado, Wrath reestruturou as coisas… Olhe o que fez às Escolhidas. Agora estão autorizadas a emparelhar-se deste lado… Algo nunca visto! E a escravidão está abolida, junto com a Sehclusion das fêmeas. Virgem Escriba querida, quando quiserem acordar haverá um integrante da Irmandade com saia. Se nós estivermos na liderança, podemos reverter o que ele tem feito e reformar as leis adequadamente para preservar as tradições. Podemos organizar uma nova ofensiva contra a Sociedade Lessening. Podemos triunfar.
— Está empregando muitos “nós”, e por alguma razão não acredito que isso represente exatamente o que tem em mente.
 — Bom, é obvio que deverá haver um indivíduo que seja o primeiro entre seus iguais. — Montrag alisou as lapelas da sua jaqueta de smoking e inclinou a cabeça e o corpo como se tivesse posando para uma estátua de bronze ou talvez para um bilhete — Um macho de valor que esteja à altura do cargo e resulte ser o escolhido.
— E como seria escolhido este modelo de virtudes?
— Nos tornaremos uma democracia. Uma democracia que foi longamente postergada e que substituirá o injusto e desigual costume da monarquia.
Quando o bate-papo seguiu seu curso, Rehv se reclinou para trás, cruzou as pernas à altura do joelho e uniu os dedos das mãos formando uma carpa. Sentado no acolchoado sofá de Montrag, suas duas metades entraram em conflito, o vampiro e o symphath colidiram.
O único benefício disso era que o combate interno gritante sufocava o som nasal de todo esse “Eu-sei-tudo”.
A intenção era óbvia: livrar-se do Rei e tomar o controle da raça.
O ato era inconcebível: matar a um bom macho, um bom líder e… Uma espécie de amigo.
—… e escolheríamos a quem nos lideraria. O faríamos responsável pelo Conselho. Asseguraríamo-nos que nossas preocupações fossem atendidas. — Montrag retornou a seu sofá, sentou-se e ficou cômodo como se fosse seguir com esse bate-papo exagerado e vazio sobre o futuro durante horas — A monarquia não está funcionando e a democracia é a única maneira…
Rehv lhe interrompeu:
— Em geral a democracia implica que todo mundo pode votar. Digo-lhe isso só se por acaso não está familiarizado com a definição.
— E assim o faríamos. Todos os que servimos no Conselho estaríamos na junta eleitoral. Todo mundo seria considerado.
— PTI, o termo abrange algumas pessoas mais além de “todos os que são como nós”.
Montrag lhe dirigiu um olhar carregado de “Oh-por-favor-fale-sério”.
— Honestamente confiaria a raça às classes baixas?
— Não depende de mim.
— Poderia. — Montrag levou a xícara aos lábios e o olhou por cima da borda com olhos penetrantes — Poderia perfeitamente. É nosso Leahdyre.
Olhando fixamente ao homem, Rehv viu o caminho tão claramente como se estivesse pavimentado e iluminado com fachos de luzes halogênias: se Wrath fosse assassinado, sua linhagem real terminaria, porque ainda não tinha gerado um filho. Às sociedades, particularmente aquelas que estavam em guerra como a dos vampiros, aborreciam os vazios na liderança, por isso uma mudança radical da monarquia à “democracia” não resultava tão inconcebível como teria sido em outra época mais racional e segura.
A glymera poderia estar fora de Caldwell e escondida nos refúgios dispersados por toda a Nova Inglaterra, mas essa turma de filhos da puta decadentes tinha dinheiro e influências e sempre tinham desejado tomar o poder. Com este plano em particular, podiam disfarçar suas ambições com as vestimentas da democracia e fazer ver que estavam protegendo às pessoas sem status.
A infausta natureza do Rehv se agitou como um criminoso preso impaciente para obter a liberdade condicional. As más ações e os jogos de poder eram uma compulsão inerente a aqueles que levavam o sangue de seu pai, e parte dele desejava criar o caos… E entrar nele.
Interrompeu as tolices presunçosas de Montrag.
— Economize a propaganda. O que é que está sugerindo exatamente?
O macho fez toda uma elaborada demonstração de como deixar uma xícara de chá, como se quisesse aparentar que estava reunindo as palavras. Enfim. Rehv estava disposto a apostar que o homem sabia exatamente o que ia dizer. Uma coisa dessa natureza, não era algo que simplesmente se pensa na hora, e havia outros envolvidos. Tinha que ter.
 — Como bem sabe o Conselho vai reunir-se em Caldwell dentro de alguns dias especificamente para ter uma audiência com o Rei. Wrath chegará e… Ocorrerá um evento mortal.
— Ele viaja com a Irmandade. E não é especialmente o tipo de força muscular que possa ser evitada facilmente.
— A morte pode levar muitas máscaras. E tem muitos e variados cenários onde atuar.
— E meu papel seria…? — embora já tivesse compreendido.
Os pálidos olhos de Montrag pareciam de gelo, resplandecentes e frios.
— Sei que classe de macho é. Assim sei precisamente do que é capaz.
Isto não era uma surpresa. Durante os últimos vinte e cinco anos Rehv tinha sido um senhor das drogas, e embora não houvesse publicado sua ocupação dentro da aristocracia, os vampiros iam a seus clubes regularmente, e parte deles estavam nas filas de seus clientes químicos.
Ninguém além dos Irmãos sabia de seu lado symphath… E era sua escolha continuar oculto. Nas últimas duas décadas tinha estado pagando bem a seu chantagista para assegurar-se que continuasse sendo segredo.
— É por isso que fui a ti. — disse Montrag — Você saberá como se encarregar disto.
— É certo.
— Como Leahdyre do Conselho, estará em uma posição de enorme poder. Ainda se não eleito presidente, o Conselho persistirá. E fique tranqüilo com respeito à Irmandade da Adaga Negra. Sei que sua irmã está emparelhada com um deles. Os Irmãos não se verão afetados por isso.
— Não acredita que isto os enfurecerá? Wrath não é só seu rei. É de seu sangue.
— Proteger a nossa raça é sua obrigação primária. Eles devem nos seguir aonde vamos. E deve saber que há muitos que pensam que ultimamente estiveram fazendo um mau trabalho. Penso que talvez requeiram uma melhor liderança.
— De tua parte. Sim. Claro.
Isso seria como um decorador de interiores tratando de comandar um destacamento de tanques: um fodido carregamento de ruidosos gorjeios até que um dos soldados terminasse com o boneco de pano temporário e lhe agitasse o corpo um par de vezes. 
Esse era o plano perfeito. Sim.
E de todas as formas… Quem dizia que Montrag tinha que ser o eleito? Os acidentes ocorriam tanto aos reis como aos aristocratas.
— Devo te dizer, — continuou Montrag — o mesmo que meu pai estava acostumado a me dizer, a coordenação é tudo. Devemos nos apressar. Podemos confiar em você, meu amigo?
Rehv ficou de pé, erguendo-se sobre o outro macho. Com um rápido puxão às abas de sua jaqueta, arrumou seu Tom Ford[4], logo esticou a mão para sua bengala. Não sentia nada em seu corpo, nem sua roupa nem o peso que tinha ido de seu traseiro à planta de seus pés, nem a ponta da bengala contra a palma da mão que se queimou. O intumescimento era um efeito secundário da droga que utilizava para evitar que aflorasse seu lado mau quando estava com companhia variada, a prisão onde encerrava suas tendências sociopatas.
Não obstante, tudo o que necessitava para voltar para suas origens era pular uma dose. E uma hora depois? A maldade nele estava vivinha, abanando o rabo e pronta para brincar.
— O que me diz? — incitou Montrag.
E não era essa a pergunta?
Às vezes na vida, entre a miríade de decisões corriqueiras como, o que comer, onde dormir, e o que vestir, aparecia uma verdadeira encruzilhada. Nesses momentos, quando a névoa da relativa irrelevância se levanta e o destino te estende uma demanda de livre-arbítrio, só há esquerda ou direita… Nada de te lançar em um terreno que há entre os dois caminhos, não havia forma de negociar com a escolha que te expor.
Deve responder à chamada e escolher seu caminho. E não há volta.
Não obstante, o problema era que navegar por uma paisagem moralista era algo que tinha tido que aprender para se encaixar com os vampiros. A lição que tinha aprendido tinha perseverado, embora só até certo ponto.
E suas drogas só funcionavam de certa maneira.
Subitamente, o rosto pálido de Montrag se tingiu de uma variedade de tons de rosa pastel, o cabelo escuro do macho se tornou cor de rosa e a jaqueta de seu smoking ficou da cor do Ketchup. Enquanto uma pátina avermelhada coloria tudo, o campo visual de Rehv se achatou voltando-se como uma tela de cinema onde se via o mundo.
E talvez isto explicasse o motivo pelo qual resultava fácil aos symphaths utilizar às pessoas. Com seu lado escuro assumindo o controle, o universo tinha a profundidade de um tabuleiro de xadrez e as pessoas que haviam nele eram como peões em sua mão onisciente. Todos eles. Os inimigos… E os amigos.
— Eu me encarregarei. — anunciou Rehv — Como disse, sei o que tenho que fazer.
— Sua palavra. — Montrag estendeu a suave palma de sua mão — Dê-me sua palavra de que isto se levará a cabo em segredo e silenciosamente.
Rehv deixou que essa mão pendurasse livremente no ar, mas sorriu, revelando uma vez mais suas presas.
— Confie em mim.


Capítulo 2


Enquanto Wrath, filho de Wrath, percorria um dos becos urbanos de Caldwell, sangrava em dois lugares. Tinha uma navalhada ao longo de seu ombro esquerdo, feita por uma faca serrada, e lhe faltava uma parte da coxa, graças ao canto oxidado de um contêiner de lixo. O lesser que ia na frente, o que estava a ponto de estripar como a um peixe, não tinha sido o responsável por nenhum: os dois camaradas de cabelo branco, que cheiravam a talco de bebê, eram os artífices do dano.
E o tinham feito a uns duzentos e setenta metros dali, fazia três minutos, justo antes de ser reduzidos a um par de bolsas de adubo de minhoca.
Esse bastardo diante de si era o objetivo real.
O assassino estava movendo o traseiro rápido, mas Wrath era mais rápido ainda... Não só porque suas pernas eram mais longas, apesar do fato de que estava gotejando como uma cisterna furada. Não havia dúvida de que o terceiro morreria.
Era uma questão de vontade.
O lesser tinha escolhido o caminho errado essa noite... Embora não ao escolher esse beco em particular. Isso era o único adequado e justo, e provavelmente o não-morto fazia isso durante décadas, porque a privacidade era importante para lutar. O último que a Irmandade ou a Sociedade Lessening precisavam era à polícia humana envolvida em algo que tivesse a ver com esta guerra.
Não, o erro “Sinto-essa-não-é-a-resposta-correta” do bastardo tinha sido há uns quinze minutos atrás, quando tinha assassinado a um macho civil. Com um sorriso na cara. Diante de Wrath.
Tinha sido pela fragrância de sangue fresco de vampiro que o rei tinha encontrado ao trio de assassinos em primeiro lugar, lhes apanhando no ato de tentar seqüestrar a um de seus civis. Tinha resultado evidente que sabiam que era, no mínimo, um membro da Irmandade, porque esse lesser que ia na sua frente tinha matado ao macho para que ele e seu esquadrão pudessem ter as mãos livres e pudessem enfocar-se completamente na briga.
A parte triste era que a chegada de Wrath tinha economizado ao civil uma larga e lenta morte por tortura em um dos acampamentos de tortura da Sociedade. Mas ainda assim lhe arderam às vísceras ao ver como fatiavam a um apavorado inocente e o atiravam sobre o frio e gretado pavimento como se fosse uma marmita vazia.
Assim que esse filho da puta dali ia cair.
Olho-por-olho e tudo isso.
Ao chegar ao final do beco sem saída, o lesser fez um salto de preparação, girando, plantando os pés e tirando sua faca. Wrath não retardou seu avanço. No meio da corrida, liberou um de seus shuriken[5] e lançou a arma com um golpe de mão, alardeando com o lançamento.
Algumas vezes queria que seu oponente soubesse o que lhe era atirado.
O lesser seguiu a coreografia à perfeição, trocando seu ponto de apoio e afrouxando sua postura de combate. Enquanto Wrath cortava a distância, lançou outra estrela e outra mais, impulsionando o lesser para uma posição escondida.
O Rei Cego se desmaterializou justo sobre o idiota, golpeando de cima, despiu as presas para fechá-las na nuca do assassino. A aguda doçura do sangue do lesser era o sabor do triunfo, e o coro da vitória tampouco demorou a chegar, quando Wrath agarrou ao bastardo pela parte superior de ambos os braços.
A vingança era um estalo. Ou melhor dizendo, dois.
A coisa gritou quando ambos os ossos saíram de suas cavidades, mas o uivo não viajou muito longe depois que Wrath lhe fechasse a boca com a palma da mão.
— Isto é só o aquecimento. — vaiou Wrath — É importante relaxar antes de começar a exercitar-se.
O rei girou o assassino e baixou o olhar para a coisa. Desde trás dos envolventes óculos, seus olhos débeis estavam mais agudos do que o habitual, a adrenalina navegava ao longo de suas veias lhe dando um aumento de acuidade visual. O que era bom. Precisava ver o que tinha matado com uma forma que não tinha nada a ver assegurando a precisão de um golpe mortal.
Enquanto o lesser lutava para respirar, a pele de seu rosto brilhava com uma pátina irreal e plástica — como se a estrutura óssea tivesse sido estofada com a merda com a que fabricava os sacos de arroz — e os olhos estavam se esbugalhando, o fedor doce da coisa parecia a doçura de um animal atropelado na estrada durante uma noite cálida.
Wrath soltou a corrente de aço que pendurava do ombro de sua jaqueta de motoqueiro e desenrolou os elos brilhantes tirando-os de debaixo de seu braço. Segurando o grande peso na mão direita, envolveu seu punho, ampliando a envergadura de seus nódulos, aumentando seus duros contornos.
— Diga “uísque”.
Wrath golpeou à coisa no olho. Uma vez. Duas. Três vezes. Seu punho era um aríete, a órbita do olho cedia terreno como se não fosse mais que uma porta. Com cada excruciante impacto, o sangue negro saltava e salpicava, golpeando Wrath na cara, na jaqueta e nos óculos. Sentia todas as salpicadas, apesar do couro que vestia, e desejava mais.
Era um glutão para esse tipo de comida.
Com um sorriso duro, deixou que a corrente se desenrolasse de seu punho, e golpeasse o sujo asfalto com uma risada efervescente, metálica, como se tivesse desfrutado tanto como ele. A seus pés, o lesser não estava morto. Embora fosse indubitável que a coisa estava desenvolvendo hematomas sub-durais maciços na parte dianteira e traseira do cérebro, ainda vivia, porque só havia duas formas de matar a um assassino.
Uma era lhe atravessar o peito com as adagas negras que os Irmãos tinham embainhadas ao peito. Isso enviava aos PDM[6] de volta com seu criador, o Omega, mas era só uma solução temporária, porque o mal simplesmente utilizava essa essência para converter a outro humano em uma máquina assassina. Não era uma morte, a não ser um atraso.
O outro modo era permanente.
Wrath tirou seu celular e ligou. Quando respondeu uma voz masculina com acento de Boston, disse:
— Oito e Trade. Três caídos.
Butch O'Neal, também conhecido como Dhestroyer, descendente de Wrath, filho de Wrath, era caracteristicamente fleumático em suas respostas. Realmente centrista. Tolerante. Deixando muito espaço para a interpretação de suas palavras:
— Oh, caralho, pelo amor de Deus. Está brincando? Wrath, tem que acabar com esta merda de multiuso. Agora é o rei. Já não é um Irmão...
Wrath fechou o telefone.
Sim. A outra forma de livrar-se destes filhos da puta, a forma permanente, estaria ali em cinco minutos. Com sua língua solta. Infelizmente.
Wrath se sentou sobre os calcanhares, voltando a enrolar a corrente em seu ombro, e levantou o olhar para o quadrado de céu noturno visível sobre os telhados. Quando sua adrenalina decaiu, só foi capaz de distinguir ligeiramente os escuros esqueletos dos edifícios que se elevavam contra o plano da galáxia, e franziu os olhos com força.
Já não é um Irmão.
É uma merda que não o era. Não lhe importava o que dissesse a lei. Sua raça necessitava que fosse mais que um burocrata.
Com uma maldição na Antiga Língua, voltou para sua atividade, e revisou a jaqueta e as calças do assassino em busca de uma identificação. No bolso de trás, encontrou uma fina carteira com uma carteira de motorista e dois dólares dentro...
— Creio... Que ele era um dos seus...
A voz do assassino era de uma vez aflautada e maliciosa, e o som de filme de horror detonou a agressividade de Wrath uma vez mais. Repentinamente, sua visão se tornou mais aguda, e pôde enfocar pela metade seu inimigo.
— O que disse?
O lesser sorriu um pouco, parecendo não notar que a metade de sua cara tinha a consistência de uma omelete muito líquida.
— Sempre foi... Um dos nossos.
— De que merda está falando?
— Como... Acredita... — o lesser tomou um tremente fôlego — Que encontramos... Todas aquelas casas neste verão...?
A chegada de um veículo cortou as palavras, e Wrath girou a cabeça precipitadamente. Graças ao fodido Deus era o Escalade negro que estava esperando e não algum humano com um celular ligado em uma chamada ao 911.
Butch O'Neal saiu de trás do volante, com suas mandíbulas funcionando a toda marcha.
— Você perdeu a fodida cabeça? O que vamos fazer contigo? Vai...
Enquanto o polícia continuava com todo o maldito repertório, Wrath voltou o olhar para o assassino.
— Como as encontraram? As casas?
O assassino começou a rir, o débil ofego era o tipo de coisas que ouvia de um desequilibrado.
— Porque ele tinha estado em todas elas... Assim é como o fizemos.
O bastardo desmaiou, e lhe sacudir não ajudou a lhe trazer de volta. Tampouco o fez uma bofetada nem duas.
Wrath ficou em pé e a frustração desencadeou a fúria.
— Faz seu trabalho, polícia. Os outros dois estão depois do contêiner da quadra seguinte.
O polícia simplesmente o olhou.
— Supõe-se que você não luta.
— Sou o rei. Posso fazer o que me dê a maldita vontade.
Wrath começou a afastar-se, mas Butch lhe agarrou o braço.
— Beth sabe onde está? O que está fazendo? Disse a ela? Ou é só a mim a quem está pedindo que guarde este segredo?
— Preocupa-se disso. — Wrath assinalou ao assassino — Não por mim e minha shellan.
Quando se liberou, Butch ladrou.
— Aonde vai?
Wrath avançou e encarou ao polícia.
— Pensei em ir recolher o cadáver de um civil para levá-lo até o Escalade. Tem algum problema com isso, filho?
Butch se manteve firme. Só mais uma amostra do sangue que compartilhavam.
— Perdemos você como rei e a raça inteira está fodida.
— E só ficam quatro Irmãos no campo de batalha. Você gosta dessa matemática? Eu não.
— Mas...
— Faz seu trabalho, Butch. E fique à margem do meu.
Wrath percorreu a pernadas os duzentos e setenta metros de volta onde tinha começado a briga. Os assassinos vencidos estavam justo onde os tinha deixado: gemendo no chão, com suas extremidades formando ângulos estranhos, seu sangue negro gotejando e formando asquerosos atoleiros lamacentos sob seus corpos. Entretanto, já não eram assunto dele. Rodeando o contêiner olhou ao civil morto e se precaveu que lhe dificultava a respiração.
O rei se ajoelhou e cuidadosamente afastou o cabelo da cara golpeada como a merda do macho. Evidentemente, o cara se defendeu, recebendo um bom número de golpes antes que lhe apunhalassem o coração. Um pirralho valente.
Wrath espalmou a mão sob a nuca do macho, deslizou o outro braço sob os joelhos, e o levantou lentamente. O peso do morto era mais pesado que os quilos do corpo. Enquanto se afastava do contêiner e se aproximava do Escalade, Wrath se sentia como se sustentasse à raça inteira em seus braços, e se alegrou de ter que levar óculos de sol para proteger seus débeis olhos.
Seus óculos envolventes ocultavam o brilho das lágrimas.
Passou junto a Butch enquanto o polícia caminhava para os destroçados assassinos para fazer o seu trabalho. Depois que as pisadas do homem se detiveram, Wrath ouviu uma larga e profunda inalação que soava como o vaio de um balão desinflando-se lentamente. O vômito que seguiu foi muito mais ruidoso.
Enquanto a sucção e as arcadas se repetiam, Wrath deitou ao morto na parte de trás do Escalade e lhe revistou os bolsos. Não havia nada... Nem carteira, nem telefone, nem sequer um pacote de chiclete.
— Foda.
Wrath deu a volta e se sentou no pára-choque traseiro do SUV. Um dos lessers já lhe tinha limpado no curso da luta... E como todos os assassinos acabavam de ser inalados, isso significava que a identificação do civil já era pó.
Enquanto Butch se aproximava do Escalade cambaleando pelo beco, o polícia parecia um bêbado farreando e já não cheirava a Acqua di Parma. Fedia a lesser, como se tivesse secado sua roupa com lenços umedecidos Downy, como se tivesse um par de ambientadores de carro com fragrância de baunilha sob as axilas, e tivesse caído sobre algum peixe morto.
Wrath se levantou e fechou a parte traseira do Escalade.
— Está certo que pode dirigir? — perguntou quando Butch se colocou cuidadosamente atrás do volante, com pinta de estar a ponto de vomitar.
— Sim. Estou bem.
Wrath sacudiu a cabeça ante a voz rouca e examinou o beco. Não havia janelas nos edifícios, e fazer Vishous vir imediatamente para aliviar ao polícia não levaria muito tempo, mas entre as brigas e a limpeza tinham ocorrido muitas coisas ali durante a última meia hora. Deviam sair da zona.
Originalmente, o plano de Wrath tinha sido tirar uma foto da identidade do assassino com a câmara de seu celular, aumentá-la o suficiente para poder ler o endereço, e logo ir atrás desse estúpido. Não obstante não podia deixar Butch sozinho.
O polícia pareceu surpreso quando Wrath entrou no assento do passageiro do Escalade.
— O que está...?
— Levaremos o corpo à clínica. V pode encontrar-se contigo ali e se ocupar de você.
— Wrath...
— Discutimos pelo caminho, o que acha, primo?
Butch arrancou o SUV, saiu de marcha ré do beco, e girou ao chegar ao primeiro cruzamento das ruas. Quando chegou ao Trade, dobrou à esquerda e se dirigiu às pontes que se estendiam sobre o Rio Hudson. Enquanto conduzia, tinha os nódulos brancos sobre o volante... Não porque tivesse medo, mas sim porque indubitavelmente estava tentando conter a bílis no estômago.
— Não posso seguir mentindo assim. — resmungou Butch quando alcançaram o outro lado de Caldwell.
Uma arcada foi seguida por uma tosse.
— Sim, pode.
O polícia levantou o olhar.
— Está me matando. Beth deve saber.
— Não quero que se preocupe.
— Entendo isso... — Butch emitiu um som afogado — Espera.
O polícia estacionou sobre a borda gelada, abriu a porta de repente, e vomitou como se seu fígado tivesse recebido ordens de evacuação de seu cólon.
Wrath deixou que sua cabeça caísse para trás, uma dor tinha se instalado detrás de seus olhos. A dor não era uma surpresa, em absoluto. Ultimamente tinha enxaquecas como os alérgicos tinham espirros.
Butch estendeu a mão para trás e apalpou o console central, com a parte superior de seu corpo ainda arqueada para fora do Escalade.
— Quer a água? — perguntou Wrath.
— S... — as náuseas cortaram o resto da palavra.
Wrath agarrou uma garrafa de Poland Spring, abriu-a, e a pôs na mão de Butch.
Quando se produziu uma pausa na “vomitação”, o polícia tragou um pouco de água, mas a merda não permaneceu dentro.
Wrath tirou seu celular.
— Vou chamar o V agora.
— Dê-me só um minuto.
Levou dez, mas finalmente, o polícia conseguiu voltar para o carro e lhes devolveu à estrada. Ambos permaneceram em silêncio durante um par de quilômetros, o cérebro de Wrath correndo enquanto sua dor de cabeça piorava.
Já não é um Irmão.
Já não é um Irmão.
Mas tinha que ser. Sua raça precisava dele.
Clareou a garganta.
— Quando V aparecer no necrotério, você vai dizer que encontrou o corpo do civil e fez essa merda com os lessers.
— Ele quererá saber por que você estava ali.
— Diremos que estava na quadra seguinte me reunindo com o Rehvenge no ZeroSum e pressenti que precisava de ajuda. — Wrath se inclinou no assento dianteiro e fechou uma mão sobre o antebraço do cara — Ninguém vai saber, entendido?
— Isto não é boa idéia. Isto não é boa idéia.
— É uma merda que não.
Enquanto permaneciam em silêncio, as luzes dos carros do outro lado da auto-estrada fizeram que Wrath fizesse uma careta, apesar de que suas pálpebras estavam baixas e os óculos escuros em seu lugar. Para evitar o brilho, girou o rosto para o lado, como se olhasse pela janela.
— V suspeita que algo esteja acontecendo. — resmungou Butch depois de um momento.
— E pode seguir suspeitando. Preciso estar no campo de batalha.
— E se ferirem você?
Wrath colocou o antebraço sobre o rosto com a esperança de bloquear esses malditos faróis dianteiros. Caralho, agora era ele quem tinha náuseas.
— Não me ferirão. Não se preocupe.


Capítulo 3


— Preparado para seu suco, pai?
Quando não houve resposta, Ehlena, filha de sangue de Alyne, deteve-se no processo de abotoar o uniforme.
— Pai?
Da sala e por cima das melodiosas notas de Chopin lhe chegou o som de um par de pantufas movendo-se sobre as tábuas do piso de madeira nuas e uma suave cascata de apressadas palavras, como um maço de cartas ao ser embaralhadas.
Isso era bom. Levantou-se por si mesmo.
Ehlena jogou o cabelo para trás, e utilizou uma rede branca para manter o coque em seu lugar. Entretanto no meio do caminho mudou de opinião, ia ter que refazer o coque. Havers, o médico da raça, exigia que suas enfermeiras fossem tão esticadas, engomadas e bem organizas como tudo em sua clínica.
Sempre dizia que as normas eram críticas.
No caminho para seu dormitório, recolheu uma mochila de ombro negra que tinha comprado na Target. Dezenove dólares. Um roubo. Nela colocou a saia curta e a camiseta pólo de imitação que ia trocar pelo uniforme ao redor de duas horas antes do amanhecer.
Um encontro. Realmente ia ter um encontro.
A ida ao andar superior onde estava a cozinha implicava só um lance de escadas, e o primeiro que fez quando emergiu do porão foi dirigir-se para o antiquado refrigerador Frigidaire . Dentro, havia dezoito pequenas garrafas de Ocean Spray Cranraspberry[7] em três filas de seis. Pegou uma da frente e depois, cuidadosamente moveu as outras para que estivessem todas alinhadas.
As pílulas estavam localizadas atrás da poeirenta pilha de livros de cozinha. Pegou uma trifluoropiperacina e dois loxacepina e as pôs em uma xícara branca. A colher de aço inoxidável que utilizou para amassá-las estava dobrada em um ligeiro ângulo, e também todas as demais.
Já levava perto de dois anos esmagando pílulas como estas.
O CranRas golpeou o fino pó branco e se mesclou com ele, e para assegurar-se de que o sabor ficava adequadamente oculto, pôs dois cubinhos de gelo na xícara. Quanto mais frio melhor.
— Pai, seu suco está preparado. — deixou a xícara na mesinha, bem em cima de um círculo de fita que delineava onde tinha que ser colocada.
As seis estantes que havia em frente estavam igual ordenadas e relativamente vazias como a geladeira, de uma delas agarrou uma caixa de Wheaties[8], e de outra tirou uma tigela. Depois de servir-se de alguns cereais foi pegar leite, e logo que terminou de utilizá-lo, voltou a deixá-lo onde estava: junto a outros dois iguais, com as etiquetas com a marca Hood  para fora.
Deu uma olhada em seu relógio e falou na Antiga Língua.
— Pai? Tenho que partir.
O sol se pôs, e isso significava que seu turno, que começava quinze minutos depois de escurecer, estava a ponto de começar.
Observou a janela que havia sobre a pia da cozinha, embora não era como se pudesse medir quanto escuro estava. Os vidros estavam cobertos por lâminas de alumínio fixas às molduras com fita adesiva.
Inclusive mesmo se ela e seu pai não fossem vampiros e incapazes de suportar a luz do sol, essas persianas Reynolds Wrap teriam sido igualmente colocadas em cada janela da casa: eram cobertas para o resto do mundo, mantendo-o fora, contendo-o a fim de que sua miserável casinha alugada estivesse protegida e isolada... De ameaças que só seu pai podia perceber.
Quando terminou o café da manhã de Campeões[9], lavou e secou sua tigela com toalhas de papel, porque as esponjas e panos de cozinha não estavam permitidos, e, junto com a colher que tinha utilizado, voltou a pôr tudo em seu lugar.
— Meu pai?
Apoiou o quadril contra o maltratado balcão de fórmica e esperou, tentando não olhar muito atentamente o maltratado papel de parede nem o chão de linóleo desgastado.
A casa era apenas um pouco melhor que um sórdido abrigo, mas era tudo o que podia permitir-se. Entre as visitas de seu pai ao médico, os remédios e a enfermeira particular não era muito que ficava de seu salário, e fazia muito que tinham gasto o pouco que ficava do dinheiro da família, prata, antiguidades, e jóias.
Apenas se mantinham a tona.
E ainda assim, quando seu pai apareceu na soleira do porão, teve que sorrir. Seu fino cabelo cinza se expandia se sobressaindo de sua cabeça para formar um halo de penugem que o fazia parecer-se com Beethoven, além de seus olhos excessivamente observadores e ligeiramente frenéticos que lhe davam o aspecto de gênio louco. Ainda assim, parecia melhor do que tinha estado em muito tempo. Por sua vez, estava vestindo um roupão desfiado de cetim e seu pijama de seda bem arrumado... Tudo para frente, a parte de cima e de baixo certas e o cinto preso. Além disso, estava limpo, recém banhado e cheirando a pós-barba de Laurel.
Era uma enorme contradição: necessitava que seu ambiente estivesse imaculado e excessivamente organizado, mas sua higiene pessoal e o que vestia não lhe representava nenhum problema. Embora talvez tivesse sentido. Ao estar compenetrado no matagal de seus pensamentos, distraía-se muito com seus delírios para ser consciente de si mesmo.
Entretanto os remédios estavam ajudando, e notou quando encontrou seu olhar e realmente a viu.
— Minha filha. — disse na Antiga Língua — Que tal está esta noite?
Ela respondeu como ele preferia, na língua mãe.
— Bem, meu pai. E você?
Ele se inclinou com a graça do aristocrata que era por linhagem e tinha sido por posição.
— Como sempre estou encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável de sua parte.
Seu pai se sentou com um movimento de seu roupão, e recolheu a xícara de cerâmica como se fosse fina porcelana inglesa.
— Aonde vai?
— Ao trabalho. Vou trabalhar.
Seu pai franziu o cenho enquanto bebia.
— Sabe bem que não aprovo que trabalhe fora de casa. Uma dama de sua estirpe não deveria estar oferecendo seu tempo dessa forma.
— Sei, meu pai. Mas me faz feliz.
Seu rosto se suavizou.
— Bom, isso é outra coisa. Ai de mim, não entendo à geração mais jovem. Sua mãe se encarregava da casa, dos serventes e os jardins, e isso era suficiente para ocupar seu ímpeto durante as noites.
Ehlena baixou o olhar, pensando que sua mãe choraria se visse como tinham terminado.
— Sei.
— Não obstante deve fazer o que desejar, e eu sempre te amarei.
Ela sorriu ante as palavras que tinha ouvido durante toda sua vida. E falando desse tema...
— Pai?
Ele baixou a xícara.
— Sim?
— Pode ser que chegue um pouco tarde esta noite.
— Seriamente? Por quê?
— Vou tomar um café com um macho...
— O que é isso?
A mudança em seu tom a fez levantar a cabeça, e olhou a seu redor para ver que... Oh, não.
— Nada, pai, de verdade, não é nada. — se equilibrou rapidamente sobre a colher que tinha utilizado para esmagar as pílulas e a recolheu, correndo para a pia como se tivesse uma queimadura que necessitasse água fria imediatamente.
A voz de seu pai tremeu.
— O que... O que isso estava fazendo aí? Eu...
Ehlena secou rapidamente a colher e a deslizou na gaveta.
— Vê? Foi-se. Vê? — assinalou aonde tinha estado a colher — A mesa está limpa. Não há nada aí.
— Estava ali... Eu a vi. Não deve deixar os objetos de metal fora... Não é seguro... Quem a deixou... Quem deixou... Quem deixou a colher...?
— A criada.
— A criada! Outra vez! Deve ser despedida. Já disse... Nada de metal fora, nada de metal fora, nada de metal. Eles estão observando, e castigarão quem desobedecer, é preciso acreditar.
No princípio, quando tinham tido lugar os primeiros ataques de seu pai, Ehlena se aproximava dele no momento em que começava a agitar-se, pensando que uma palmada no ombro ou uma mão reconfortante lhe ajudariam. Agora tinha mais experiência. Quanto menos informação sensorial entrasse em seu cérebro, mais rapidamente passava a histeria avassaladora: por conselho de sua enfermeira, Ehlena lhe assinalava a realidade uma vez e depois não se movia nem falava.
Entretanto era difícil, lhe observar sofrer e ser incapaz de fazer nada para ajudar. Especialmente quando era culpa dela.
A cabeça de seu pai se sacudia para frente e para trás, a agitação alvoroçava seu cabelo convertendo-o em uma peruca arrepiada de cachos loucos, enquanto que em seu cambaleante punho, o suco saltava fora da xícara, salpicando sobre sua mão venosa, a manga do roupão e o revestimento de fórmica, cheio de buracos, da mesa. Em seus trementes lábios, o gaguejar de sílabas se incrementava, seu gravador interno funcionando a velocidade máxima, o rubor de loucura subindo pela coluna de sua garganta e flamejando em suas bochechas.
Ehlena rezou porque este não fosse um dos maus. Os ataques, quando vinham, variavam de intensidade e duração, e as drogas ajudavam minimizando ambas as medidas. Mas algumas vezes a enfermidade superava a ingestão química.
Quando as palavras de seu pai se tornaram muito atropeladas para compreender e deixou cair à xícara ao chão, tudo o que Ehlena pôde fazer foi esperar e rezar à Virgem Escriba para que passasse logo. Obrigando seus pés a ficar presos ao gasto linóleo, fechou os olhos e envolveu o torso com os braços.
Se tivesse lembrado de guardar a colher. Se houvesse...
Quando a cadeira de seu pai caiu para trás e golpeou o chão, soube que ia chegar tarde ao trabalho.
Outra vez.
*******
Os humanos são realmente gado, pensou Xhex enquanto olhava por cima de todas as cabeças e ombros apinhados ao redor do bar para o público em geral do ZeroSum.
Era como se algum fazendeiro tivesse enchido um cocho de grãos e a granja inteira estivesse lutando para afundar o focinho nele.
Não é que as características bovinas do Homo Sapiens fossem má coisa. A mentalidade de rebanho fazia mais fácil a coisa do ponto de vista da segurança; e em certo modo, como com as vacas, a gente podia alimentar-se deles: com toda essa aglomeração em torno dessas garrafas só era questão de purgar carteiras, com a maré fluindo em um só sentido... Para o cofre.
As vendas de licor eram boas. Mas as drogas e o sexo deixavam, inclusive mais altas margens de lucro.
Xhex passeava lentamente pelo lado exterior do bar, extinguindo com olhadas duras a especulação ardente de homens heterossexuais e mulheres homossexuais. Caralho, não entendia. Nunca tinha feito. Para ser uma fêmea que não vestia nada mais que camisas sem manga, calças de couro e usava o cabelo curto como um soldado, captava atenção tanto como as prostitutas seminuas da zona VIP.
Mas bom, nestes dias o sexo duro estava na moda, e os voluntários para a asfixia auto-erótica, os látegos açoita-traseiros e as algemas triplas eram como os ratos no sistema de bocas-de-lobo de Caldwell: estavam em todas as partes e saíam de noite. O que supunha uma terceira parte dos benefícios mensais do clube.
Muito obrigado.
Entretanto, ao contrário das garotas do clube, ela nunca aceitava dinheiro em troca de sexo. Na realidade não praticava sexo, absolutamente. Exceto pelo Butch O'Neal, esse polícia. Bom, esse polícia...
Xhex chegou à altura da corda de veludo da seção VIP e deu uma olhada para a parte exclusiva do clube.
Merda. Ele estava aqui.
Bem o que necessitava esta noite.
O caramelo favorito de sua libido estava sentado na parte mais afastada, na mesa da Irmandade, seus dois camaradas lhe flanqueavam e se defendiam das três garotas que também se apertavam no banco. Demônios, parecia enorme nesse reservado, vestido com uma camiseta Affliction e uma jaqueta de couro negra que era meio motoqueiro meio colete anti-balas.
Havia armas debaixo dela. Pistolas. Facas.
Como as coisas tinham mudado. A primeira vez que tinha aparecido por ali, era do tamanho de um tamborete do bar, apenas com músculos suficientes para partir um palito para mexer coquetéis. Mas esse já não era o caso.
Enquanto ela saudava com a cabeça ao segurança e subia os três degraus, John Matthew elevou o olhar de sua Corona[10]. Inclusive através da penumbra, seus profundos olhos azuis brilharam quando a viu, cintilando como um par de safiras.
Cara, não poderia provocá-lo, o filho da puta acabava de passar sua transição. O rei era seu whard. Vivia com a Irmandade. E era um maldito mudo.
Cristo. E ela tinha acreditado que Murhder tinha sido uma má idéia? Qualquer um acreditaria que tinha aprendido a lição fazia duas décadas com esse Irmão. Mas nãããããooooo...
A questão era, que enquanto olhava ao pirralho, tudo o que podia ver era a ele estendido nu sobre uma cama, com seu grosso pênis na mão e a palma baixando e subindo... Até que seu nome escapava desses lábios em um gemido surdo e gozava sobre seu firme abdômen definido.
O trágico era que o que via não era uma fantasia. Esses exercícios pneumáticos de punho realmente tinham ocorrido. Com freqüência. E como sabia? Porque, como uma imbecil, tinha lido a mente dele e captado o Memorex[11], em uma versão tão boa como se fosse ao vivo e a cores.
Cansada até a indigestão de si mesma, Xhex se enfiou mais profundamente na seção VIP, permanecendo separada dele, e dirigindo-se a comprovar como estava a chefe das garotas. Marie-Terese era uma morena com pernas magníficas e aspecto de cara. Era um de seus melhores ativos, e uma excelente profissional e conseqüentemente exatamente a classe de PRAC que queria: nunca caía em tolices maliciosas, sempre chegava na hora a seus turnos, e nunca trazia o que quer que fosse mal em sua vida pessoal ao trabalho. Era uma boa mulher com um trabalho horrível, fazendo dinheiro à mãos cheias por uma boa razão.
— Como vão? — perguntou Xhex — Necessita algo de mim ou meus meninos?
Marie-Terese percorreu com o olhar às outras garotas, suas maçãs do rosto altas captando a tênue luz, fazendo-a parecer não só sexualmente atraente, a não ser categoricamente formosa.
— Vamos bem por enquanto. Neste momento há duas na parte de trás. Tão ocupadas como é habitual, exceto pelo fato de que nossa garota não está aqui.
Xhex juntou as sobrancelhas bruscamente.
— Chrissy outra vez?
Marie-Terese inclinou a cabeça agitando seu comprido, negro e precioso cabelo.
— Terá que fazer algo com esse cavalheiro que a reclama.
— Já fez algo, mas não o suficiente. E se esse é um cavalheiro, eu sou a safada Estée Lauder. — Xhex apertou ambos os punhos — Esse filho da puta...
— Chefe?
Xhex olhou sobre seu ombro. Além da montanha de segurança que estava tentando atrair sua atenção, captou outra visão de John Matthew. Que ainda a olhava fixamente.
— Chefe?
Xhex se concentrou.
— O que?
— Há um policial aqui que quer te ver.
Não afastou os olhos do segurança.
— Marie-Terese, diga às garotas que descansem dez minutos.
— Feito.
A puta se moveu rápido enquanto aparentava que só passeava sobre seus saltos altos, indo de uma garota a outra e lhes aplaudindo o ombro esquerdo, para depois ir bater uma vez em cada uma das portas dos banheiros privados que havia pelo escuro corredor da direita.
Quando o lugar ficou vazio de prostitutas, Xhex disse:
— Quem e por quê?
— Detetive de homicídios. — o guarda lhe ofereceu um cartão — Disse que seu nome era José da Cruz.
Xhex pegou o cartão e soube exatamente por que tinha vindo o homem. E por que Chrissy não.
— Faça-o esperar em meu escritório. Estarei ali em dois minutos.
— Entendido.
Xhex levou seu relógio de pulso aos lábios.
— Trez? iAm? Temos movimento na casa. Diga aos corredores de apostas que esfriem e ao Rally que detenha o caixa.
Quando chegou a confirmação a seu fone, comprovou outra vez se todas as garotas tinham abandonado o andar; depois se dirigiu de volta à parte pública do clube.
Enquanto abandonava a seção VIP, pôde sentir os olhos de John Matthew nela e tentou não pensar no que tinha feito fazia dois amanhecer, ao chegar a sua casa... E o que provavelmente voltaria a fazer quando estivesse sozinha ao final da noite.
John Matthew sacana. Desde que tinha se colocado em seu cérebro e tinha visto o que fazia a si mesmo cada vez que pensava nela... Ela tinha estado fazendo o mesmo.
Sacana. John Matthew.
Como se ela necessitasse desta merda.
Agora, enquanto atravessava o rebanho humano, foi rude, e não lhe importou empurrar  um casal de bailarinos com força. Quase esperava que alguém se queixasse para poder derrubá-lo sobre o traseiro.
Seu escritório estava na parte de atrás da sobreloja, tão longe como era possível de onde tinha lugar o sexo contratado e do espaço privado de Rehvenge onde se levavam a cabo os entendimentos e as surras. Como chefe de segurança, ela era a interface primária com a polícia, e não havia razão alguma para levar os uniformes azuis mais perto da ação do que devessem estar.
Limpar as mentes dos humanos era uma ferramenta útil, mas tinha suas complicações.
Sua porta estava aberta e avaliou o detetive de costas. Não era muito alto, mas aprovava sua constituição bem fornida. Sua jaqueta esporte era do Men's Wearhouse, seus sapatos, Florsheim. O relógio que aparecia por debaixo de sua manga era Seiko.
Quando se voltou para olhá-la, seus olhos escuros eram ardilosos como os do Sherlock. Pode ser que não estivesse ganhando um montão de dinheiro, mas não era tolo.
— Detetive. — lhe disse, fechando a porta e passando junto a ele para tomar seu lugar atrás da mesa.
Seu escritório estava virtualmente vazio. Não havia fotos. Nem plantas. Nem sequer um telefone ou um computador. Os arquivos que estavam nas prateleiras de três ferrolhos a prova de fogo eram relativos à parte legítima do negócio, e o cesto de papéis era um triturador de papel.
O que significava que o Detetive da Cruz não tinha averiguado absolutamente nada durante os cento e vinte segundos que tinha passado sozinho no cômodo.
Da Cruz tirou sua credencial e a mostrou.
— Estou aqui por causa de uma de suas empregadas.
Xhex fingiu inclinar-se e estudar a credencial, mas não precisava. Seu lado symphath lhe dizia tudo o que precisava saber. As emoções do detetive continham a mescla adequada de suspicácia, preocupação, resolução e encher o saco. Levava seu trabalho a sério, e estava aqui por negócios.
— Que empregada? — perguntou.
— Chrissy Andrews.
Xhex se recostou para trás em sua cadeira.
— Quando foi assassinada?
— Como sabe que está morta?
— Não brinque comigo, Detetive. Por qual outra razão alguém da Homicídios ia perguntar por ela?
— Sinto muito, estou em modo interrogatório. — deslizou sua credencial de volta no bolso interior do peito e se sentou de frente a ela na cadeira de respaldo duro — O inquilino de baixo de seu apartamento despertou com uma mancha de sangue no teto e chamou à polícia. Ninguém no edifício de apartamentos admitiu conhecer a Senhora Andrews, e não tinha nenhum parente próximo a que possamos localizar. Não obstante, enquanto revistávamos sua casa, encontramos declarações de impostos deste clube como empregador dela. Para abreviar, necessitamos que alguém identifique o corpo...
Xhex se levantou, com a palavra filho da puta rondando por seu crânio.
— Eu o farei. Deixe-me organizar a meus homens para poder sair.
Da Cruz piscou, como se estivesse surpreso de que fosse tão rápida.
— Você... Ah, quer que a leve ao necrotério?
— St. Francis?
— Sim.
— Conheço o caminho. Encontrarei-me ali com você em vinte minutos.
Da Cruz ficou em pé lentamente, com os olhos fixos em seu rosto, como se estivesse procurando sinais de nervosismo.
— Suponho que isso é um transtorno.
— Não se preocupe, Detetive. Não vou desmaiar à vista de um cadáver.
Ele a olhou de cima a abaixo.
— Sabe… De certo modo isso não me preocupa.


Capítulo 4

 
Quando o carro de Rehvenge estava dentro dos limites da cidade de Caldwell, desejou como o inferno ir diretamente ao ZeroSum. Entretanto, era mais esperto que isso. Tinha problemas.
Desde que tinha deixado o refúgio de Montrag em Connecticut, já tinha estacionado seu Bentley a um lado da estrada duas vezes para injetar-se dopamina. De todas as formas, sua droga milagrosa voltava a falhar. Se tivesse mais dessa merda no carro, teria se disparado outra injeção, mas já tinha acabado.
A ironia de um camelo[12] tendo que ir a outro camelo rapidamente não tinha desperdício, e era uma maldita vergonha que não houvesse mais demanda de neurotransmissores no mercado negro. Tal como a coisa estava, o único fornecimento de Rehv era através de meios legítimos, mas ia ter que arrumar isso. Se era o bastante esperto para subministrar X, coca, erva, meta, OxyC, e heroína através de seus dois clubes, certamente poderia averiguar como demônios conseguir suas próprias ampolas de dopamina.
— Ah, vamos, move o rabo. É só uma maldita rampa de saída. Você com certeza já viu uma antes.
Fazia um bom tempo na auto-estrada, mas agora que estava na cidade, o tráfego atrasava seu progresso, e não só por causa do congestionamento. Com sua falta de percepção de profundidade, julgar distâncias entre pára-choques era problemático, assim tinha que ir com muito mais cuidado do que gostava.
E, além disso, tinha este fodido idiota com seu calhambeque de mil e duzentos anos e seus exagerados hábitos de freadas.
— Não... Não... Por tudo quanto for sagrado não troque de pista. Já de onde está nem sequer pode ver por seu retrovisor…
Rehv pisou nos freios porque Senhor Tímido realmente estava pensando que seu lugar estava na via rápida e parecia pensar que a forma de conseguir entrar nela requeria parar por completo.
Normalmente, Rehv adorava dirigir. Inclusive preferia dirigir a desmaterializar-se porque estando medicado, era o único momento no que se sentia como se fosse ele mesmo: rápido, ágil e poderoso. Conduzia um Bentley não só porque era chique e pudesse permitir-se um, mas sim pelos seiscentos cavalos que tinha sob o capô. Estar intumescido e confiar em uma bengala para manter o equilíbrio o faziam sentir-se como um macho velho e aleijado a maior parte do tempo, e era bom ser... Normal.
É obvio, a questão de não-sentir tinha seus benefícios. Por exemplo, quando golpeasse a testa contra o volante em outro par de minutos, só ia ver as estrelas. A dor de cabeça? Não representava um problema.
A clínica encoberta da raça vampiro estava quinze minutos depois da ponte que justamente estava subindo, e as instalações não eram suficientes para as necessidades de seus pacientes, sendo pouco mais que um refúgio convertido em hospital de campo. Ainda assim a alternativa Ave Maria era tudo o que a raça tinha no momento, um jogador substituto posto em jogo porque a perna do quarteback[13] se partiu no meio.
Depois das incursões acontecidas durante o verão, Wrath estava trabalhando com o médico da raça para conseguir um novo estabelecimento permanente, mas como tudo, isso levava seu tempo. Com tantos lugares saqueados pela Sociedade Lessening, ninguém pensava que fosse boa idéia utilizar imóveis que já fossem propriedade da raça, porque só Deus sabia quantas localizações mais tinham sido infiltradas. O rei estava procurando outro lugar para comprar, mas tinha que estar isolado...
Rehv pensou em Montrag.
A guerra realmente tinha ficado circunscrita ao assassinato de Wrath?
A retórica, iniciada pelo lado vampiro dado por sua mãe, ondeou através de sua mente, mas não provocou nenhuma emoção absolutamente. O cálculo alagava seus pensamentos. O cálculo sem as travas da moralidade. A conclusão que tinha alcançado quando tinha deixado a casa de Montrag não vacilou, sua resolução só se fez mais forte.
— Obrigado, queridíssima Virgem Escriba. — resmungou quando o calhambeque deslizou fora de seu caminho e sua saída lhe apresentou como um presente, o sinal verde incandescente tinha uma etiqueta com seu nome.
Verde...?
Rehv olhou a seu redor. A pátina vermelha tinha começado a reduzir-se em sua visão, mas as outras cores do mundo reapareciam através da névoa bidimensional, e tomou um profundo fôlego de alívio. Não queria ir drogado à clínica.
Como se tivesse previsto, começou a sentir frio, apesar de que sem dúvida o Bentley estava a uns balsâmicos setenta graus, estendeu o braço para frente e girou o controle do calor. Os calafrios eram outro bom, embora inconveniente, sinal de que a medicação começava a surtir efeito.
Durante toda sua vida, viu-se obrigado a manter em segredo o que era. Os proscritos como ele tinham duas escolhas: se fazer passar por normais ou ser enviados para fora do estado, à colônia, deportados da sociedade como o lixo tóxico que eram. Que fosse mestiço não importava. Se tivesse um pouco de symphath em você, era considerado um deles, e com toda razão. A questão com os symphath era que adoravam muito a maldade em si mesmo para poder confiar neles.
Foda, sua sina foi fixada esta noite. Olhe o que estava disposto a fazer. Uma conversa e ia apertar o gatilho... Nem sequer porque tivesse que fazê-lo, só porque desejava. Necessitava-o, dizendo bem. Os jogos de poder eram oxigênio para seu lado malvado, eram inegáveis e substanciosos por sua uma vez. E os motivos atrás de sua escolha eram tipicamente symphath: serviam a ele e a ninguém mais, nem sequer ao rei com quem tinha uma espécie de amizade.
Essa era a razão pela qual, que se um vampiro comum sabia de um proscrito que andasse rondando entre a população geral, a lei opinava que tinha que dar parte do indivíduo, para sua deportação ou enfrentar cargos criminais: regular o paradeiro dos sociopatas e mantê-los afastados dos cidadãos morais e respeitosos da lei era um saudável instinto de sobrevivência em qualquer sociedade.
Vinte minutos mais tarde, Rehv estacionou ante uma grade de ferro que definitivamente estava manufaturada para fazer prevalecer sua função por cima de seu aspecto. A coisa não tinha nenhuma graça absolutamente, não eram mais que sólidas varas fixadas e soldadas entre si coroadas na parte superior com uma bobina de arame farpado. À esquerda havia um intercomunicador, e quando baixou o vidro para apertar o botão de chamada, as câmeras de segurança enfocaram a placa de seu carro, o pára-brisa dianteiro e a porta do condutor.
Assim não lhe surpreendeu o tom tenso da voz feminina que respondeu.
— Senhor... Não tinha conhecimento de que tivesse uma consulta.
— Não tenho.
Pausa.
— Como paciente ambulatorial que não necessita urgência, o tempo de espera poderia ser bastante longo. Talvez prefira programar uma consulta...
Fulminou com o olhar o visor da câmera mais próxima.
— Deixe-me entrar. Agora. Tenho que ver o Havers. E é uma emergência.
Tinha que voltar para o clube e marcar presença. As quatro horas que já tinha perdido essa noite eram toda uma vida quando se tratava de administrar lugares como o ZeroSum e o Iron Mask. A merda não só ocorria em lugares como esses, eram nosso pão de cada dia, e em seu braço tinha tatuado Eu Digo Que Vou A Missa nos nódulos.
Depois de um momento, essas feias grades, sólidas como rochas se abriram, e não perdeu tempo no caminho de acesso de um quilômetro de comprimento.
Quando virou na última curva, a casa que apareceu diante dele não merecia o tipo de segurança que tinha, ao menos não a primeira vista. A estrutura de dois andares era apenas colonial, e estava totalmente nua. Sem alpendres. Sem portinhas. Sem chaminés. Sem plantas.
Comparada com a velha casa e clínica do Havers ficava como um pobre abrigo de ferramentas no jardim.
Estacionou em frente da fileira de garagens independentes onde se guardavam as ambulâncias e saiu. O fato de que a fria noite de dezembro lhe fizesse estremecer foi outro bom sinal, e estendeu o braço para o assento traseiro do Bentley para tirar sua bengala e um de seus sobretudos de Zibelina. Junto com o intumescimento, a desvantagem de sua máscara química era uma queda na temperatura interna que convertia suas veias em espirais de ar condicionado. Viver noite e dia com um corpo que não podia sentir nem esquentar não era uma festa, mas tampouco é que tivesse escolha.
Talvez se sua mãe e sua irmã não tivessem sido normais, poderia ter cedido ao Darth Vader e abraçado o lado escuro, vivendo seus dias fodendo com as mentes de seus camaradas e fazer dano. Mas tinha posto a si mesmo em situação de ser o cabeça de seu grupo familiar, e isso lhe mantinha nesta situação que não estava nem aqui nem ali.
Rehv caminhou ao longo da casa colonial, fechando o sobretudo mais firmemente sobre a garganta. Quando chegou à altura da porta de aspecto insignificante, apertou o botão que estava embutido na lateral de alumínio e olhou o olho eletrônico. Um momento mais tarde, uma fechadura de ar se abriu com um chiado, e entrou em uma sala branca do tamanho de um armário embutido. Depois de olhar fixamente de cara à câmara, abriu-se outro ferrolho, um painel oculto retrocedeu, e desceu um lance de escadas. Outra comprovação. Outra porta. E então enfim dentro.
A área de recepção era como a espera para pacientes e familiares de qualquer clínica, com filas de cadeiras e revistas sobre mesinhas, uma TV e algumas plantas. Era menor que a da antiga clínica, mas estava limpa e bem ordenada. As duas fêmeas sentadas ficaram tensas e lhe olharam.
— Por aqui, senhor.
Rehv sorriu à enfermeira que saiu detrás do escritório de recepção. Para ele, uma “longa espera” era sempre uma espera em uma sala de exame. Às enfermeiras não gostavam que pusesse nervosa às pessoas que estavam naquelas filas de cadeiras, e a estas tampouco gostava de tê-lo por perto.
Parecia bem a ele. Não era do tipo sociável.
A sala de exame a que foi conduzido estava localizada no lado de não-emergência da clínica e era uma em que já tinha estado antes. Tinha estado em todas elas antes.
— O doutor está em cirurgia e o resto do pessoal está com outros pacientes, mas farei que uma colega venha tomar seus sinais vitais assim que possa.
A enfermeira lhe deixou como se alguém tivesse tido uma parada cardíaca corredor abaixo e ela fosse a única com pás desfibriladoras.
Rehv subiu à maca, permanecendo com o casaco e com a bengala na palma da mão. Para passar o tempo, fechou os olhos e deixou que as emoções do lugar gotejassem nele como uma vista panorâmica: as paredes do porão se dissolveram, e os ralos emocionais de cada indivíduo emergiram na escuridão, uma multidão de diferentes vulnerabilidades, ansiedades e debilidades foram expostas a seu lado symphath.
Ele tinha o controle remoto para todas elas, sabendo instintivamente que botões pulsar na enfermeira fêmea que estava na sala do lado e a quem lhe preocupava que seu hellren já não se sentisse atraído por ela... Mas que de todas as formas tinha comido muito na Primeira Comida. E no macho que estava tratando por que tinha caído pelas escadas cortando o braço... Porque tinha estado bebendo. E o farmacêutico do outro lado do corredor que até a pouco estava roubando Xanax para seu uso pessoal... Até que tinha descoberto que as câmeras ocultas que havia no lugar o estavam enfocando.
A autodestruição em outros era o reality show favorito de um sympath, e era especialmente bom quando você era o produtor. E apesar de que sua visão tinha voltado para a “normalidade” e seu corpo estava intumescido e frio, o que era em seu interior estava somente reprimido, mas não esgotado.
Para toda classe de funções que podia preparar, havia uma fonte interminável de inspiração e financiamento.
 
  —Merda.
Enquanto Butch estacionava o Escalade em frente às garagens da clínica, a boca de Wrath seguiu exercitando-se no terreno das maldições. Ante os faróis do SUV, Vishous ficou iluminado como se fosse uma garota de calendário, todo estendido sobre o capô de um Bentley muito familiar.
Wrath soltou seu cinto de segurança e abriu a porta.
— Surpresa, surpresa, meu senhor. — disse V enquanto se endireitava e dava uns golpes no capô do sedã — Deve ter sido uma reunião muito curta no centro da cidade com nosso amigo Rehvenge, né? A menos que esse cara tenha descoberto como estar em dois lugares ao mesmo tempo Em todo caso, tenho que conhecer seu segredo, não?
Filho. Da. Puta.
Wrath saiu do SUV e decidiu que o melhor curso de ação era ignorar o Irmão. Outras opções incluíam tentar debater até encontrar uma saída para a mentira dita, o que não era uma boa idéia porque de todos os defeitos de V, nenhum era no terreno intelectual; ou a outra alternativa; instigar uma briga a murros, o que seria só uma distração temporária e esbanjaria tempo quando ambos tinham que reparar a seu Humpty Dumpty[14].
Rodeando o carro, Wrath abriu a porta traseira do Escalade.
— Cure o seu menino. Eu me encarrego do corpo.
Quando carregou o peso sem vida do civil e se girou, V olhou fixamente o rosto que tinha sido golpeado até ficar irreconhecível.
— Maldita seja. — ofegou V.
Nesse momento, Butch saiu cambaleando-se detrás do volante, feito uma merda. Enquanto o aroma de talco para bebês flutuava sobre eles, lhe afrouxaram os joelhos e logo que pôde agarrou a porta em busca de apoio.
Vishous se aproximou como um raio e tomou ao polícia em seus braços, lhe segurando firmemente.
— Merda, homem, como está?
— Preparado... Para tudo. — Butch se pendurou em seu melhor amigo — Só preciso estar sob o abajur de calor um momento.
— Cure-o. — disse Wrath enquanto começava a caminhar para a clínica — Eu vou entrar.
Enquanto se afastava, as portas do Escalade se fecharam uma depois da outra, e depois houve um brilho como se as nuvens houvessem se separado deixando ver à lua. Sabia o que esses dois estavam fazendo no interior do SUV, porque tinha visto a rotina uma ou duas vezes: abraçavam um ao outro e a luz branca da mão de V banhava a ambos, o mal que Butch tinha inalado se filtrava no V.
Graças a Deus que havia uma forma de limpar essa merda do polícia. E ser um curador também era bom para o V.
Wrath chegou à primeira porta da clínica e simplesmente olhou à câmera de segurança. Abriram-lhe imediatamente, e imediatamente a fechadura de ar comprimido se soltou e o painel oculto para as escadas se abriu. Não demorou nada em descer à clínica.
Ao rei da raça com um macho morto nos braços não retinham nem um nano segundo.
Deteve-se no patamar enquanto se abria a última fechadura. Olhando à câmera, disse:
— Antes de mais nada, tragam uma maca e um lençol.
— Estamos fazendo isso agora mesmo, meu senhor. — disse uma voz diminuta.
Não mais de um segundo depois, duas enfermeiras abriram a porta, alguém estava convertendo um lençol em uma cortina para guardar a privacidade enquanto a outra empurrava uma maca até o pé das escadas. Com braços fortes e gentis, Wrath pousou ao civil tão cuidadosamente como se o homem estivesse vivo e cada osso de seu corpo fraturado; então a enfermeira que tinha dirigido a maca tomou outro lençol que vinha dobrado com forma de quadrado e o agitou para desdobrá-lo. Wrath a deteve antes que cobrisse o corpo.
— Eu o farei. — disse, tomando o lençol.
Ela o entregou com uma reverência.
Pronunciando as palavras sagradas na Antiga Língua, Wrath converteu a humilde capa de algodão em um apropriado sudário mortuário. Depois de ter rezado pela alma do homem e lhe desejar uma viagem livre e fácil ao Fade, ele e as enfermeiras guardaram um momento de silêncio antes que o corpo fosse coberto.
— Não temos identificação. — disse Wrath suspirando enquanto alisava a borda do lençol — Alguma de vocês reconhece sua roupa? O relógio? Algo?
Ambas as enfermeiras sacudiram as cabeças, e uma murmurou:
— Poremos no necrotério e esperaremos. É tudo o que podemos fazer. Sua família virá procurar por ele.
Wrath retrocedeu e observou como levavam o corpo na maca. Por nenhuma razão em particular, notou que a roda dianteira direita rebolava ao avançar, como se fosse nova no trabalho e lhe preocupasse sua atuação... Embora não fosse por isso que se fixou nela, mas sim pelo suave assobio de sua má calibrada.
Não encaixava bem. Não agüentava bem sua carga.
Wrath se sentiu identificado com ela.
Esta chatíssima guerra com a Sociedade Lessening já durava muito, e inclusive com todo o poder que ele tinha e toda a resolução que sentia em seu coração, sua raça não estava ganhando: agüentar firmemente contra o inimigo era simplesmente uma forma de perder por pontos, porque inocentes seguiam morrendo.
Girou para as escadas e cheirou o medo e respeito das duas fêmeas sentadas nas cadeiras de plástico da área de espera. Com um frenético arrastar de pés, ficaram em pé e se inclinaram ante ele, a deferência ressonou em suas vísceras como uma patada nas partes baixas. Aqui estava ele entregando a mais recente, mas nem de longe a última, vítima casual na luta, e estas duas ainda lhe apresentavam seus respeitos.
Devolveu-lhes a inclinação, mas não pôde pronunciar nenhuma palavra. O único vocabulário que tinha nesse momento estava cheio do melhor do George Carlin, e tudo isso dirigido contra si mesmo.
A enfermeira que tinha cumprido com seu dever de escudo terminou de dobrar o lençol que tinha utilizado.
— Meu senhor, talvez tenha um momento para ver o Havers. Deverá sair de cirurgia em uns quinze minutos. Parece que você está ferido.
— Tenho que voltar para... — deteve-se antes que lhe escapassem as palavras “campo de batalha” — Tenho que ir. Por favor, me façam saber o que averiguarem da família desse macho, ok? Quero conhecê-los.
Ela fez uma reverência e esperou, porque tinha intenção de beijar o enorme diamante negro que descansava no dedo anelar da mão direita de Wrath.
Wrath fechou com força seus débeis olhos e estendeu aquilo que ela estava procurando para render comemoração.
Sentiu os dedos da mulher, frescos e ligeiros sobre sua pele, seu fôlego e seus lábios foram o mais ligeiro roce. E ainda assim sentiu como se lhe açoitassem.
Enquanto se endireitava, disse-lhe com reverência:
— Que tudo corra esta noite, meu senhor
— Para você em suas horas também, leal súdita.
Deu a volta e subiu trotando as escadas, necessitando mais oxigênio do que havia na clínica. Justo quando chegava à última porta, tropeçou com uma enfermeira que estava entrando tão rápido como ele ia saindo. O impacto arrancou a bolsa negra do ombro da mulher e só teve tempo de apanhá-la antes que caísse ao chão junto com esta.
— Oh, caralho. — ladrou, deixando cair de joelhos para lhe recolher as coisas — Sinto.
— Meu senhor! — ela fez uma profunda reverência e logo obviamente se precaveu de que estava recolhendo as coisas — Não deve fazer isso. Por favor, me deixe...
— Não, foi minha culpa.
Colocou bruscamente o que parecia ser uma saia e um suéter de volta no interior da bolsa e depois quase lhe parte a cabeça ao levantar-se repentinamente.
Voltou a agarrá-la pelo braço.
— Merda, sinto muito. Outra vez...
— Estou bem... De verdade.
A bolsa trocou de mãos em uma precipitada confusão, passando de alguém que tinha pressa a alguém que estava sobressaltado.
— Pegou? — perguntou ele, preparado para começar a suplicar à Virgem Escriba que lhe deixasse sair.
— Ah, sim, mas... — seu tom mudou de reverente a clínico — Está sangrando, meu senhor.
Ele ignorou o comentário e a soltou. Aliviado ao ver que se mantinha em pé por si mesma, desejou-lhe boa noite e que fosse bem na Antiga Língua.
— Meu senhor, deveria ver...
— Lamento tê-la derrubado. — gritou por cima de seu ombro.
Abriu de um golpe a última porta e se dobrou enquanto o ar fresco lhe alagava. As profundas inspirações lhe esclareceram cabeça, e permitiu a si mesmo apoiar-se contra o revestimento de alumínio da clínica.
Quando a dor de cabeça começou a instalar-se atrás de seus olhos novamente, subiu os óculos escuros e esfregou o osso do nariz. Bem. Próxima parada... O endereço falso do lesser.
Tinha uma jarra para recolher.
Deixando cair os óculos de volta ao seu lugar, endireitou-se e...
— Não tão rápido, meu senhor. — disse V, materializando-se de repente diante dele — Você e eu temos que conversar.
Wrath despiu as presas.
— Não estou de humor para conversas, V.
— Genial. Merda.
 

Capítulo 5


Ehlena observou o rei da raça se afastar e quase partir a porta em duas ao sair.
Cara, o vampiro era grande e tinha um aspecto temível. E ser virtualmente enrolada por ele pôs a cereja final de esgotamento sobre o bolo do drama.
Alisando o cabelo e pendurando a bolsa em seu lugar, começou a descer pela escada depois de passar o ponto de controle interno. Só estava chegando uma hora atrasada para trabalhar porque — milagre dos milagres — a enfermeira de seu pai estava livre e conseguiu ir cedo. Agradecia à Virgem Escriba por Lusie.
No que se referia a ataques fortes, o de seu pai não tinha sido tão terrível como poderia ter sido, e tinha a sensação de que devia isso ao fato de que acabara de tomar os medicamentos logo antes que lhe golpeasse o ataque. Antes das pílulas, a pior de suas crises tinha durado toda a noite, assim em certo sentido, esta noite tinha sido um sinal de progresso.
Entretanto, isso não evitava que lhe rompesse o maldito coração.
Enquanto se aproximava da última câmera, Ehlena sentiu que o peso de sua bolsa se incrementava. Tinha estado pronta para cancelar seu encontro e deixar a muda de roupa em casa, mas Lusie a tinha convencido do contrário. A pergunta que a outra enfermeira tinha feito lhe tinha tocado fundo:
— Quando foi a última vez que saiu desta casa para outra coisa que não fosse trabalho?
Ehlena não tinha respondido por que era reservada por natureza… E porque ficou em branco, sem resposta.
O que era um ponto a favor de Lusie, não? Os enfermeiros tinham que ocupar-se de si mesmos, e isso implicava ter uma vida além de qualquer enfermidade que lhes tivesse obrigado a desempenhar-se como profissionais. Deus sabia que Ehlena falava disto com os membros da família de seus pacientes com enfermidades crônicas o tempo todo, e o conselho era tão sensato como prático.
Ao menos quando se tratava dos outros. Dizendo a si mesma, sentia-se egoísta.
Assim… Estava enrolando em relação ao encontro. Com seu turno terminando perto da alvorada, não teria tempo para ir para sua casa a verificar seu pai primeiro. Tal como as coisas estavam, ela e o macho que a tinha convidado para sair teriam sorte se conseguissem ter sequer uma hora de bate-papo no restaurante que permanecia aberto toda a noite antes que a intrometida luz do sol pusesse fim ao assunto.
E apesar de tudo, tinha estado ansiosa para sair, ao ponto do desespero, o que a fazia sentir-se tremendamente culpada.
Deus… Isso era típico. A consciência impulsionando-a em uma direção, a solidão em outra.
Na área de recepção, foi diretamente para a supervisora de enfermaria, que estava em frente à mesa do computador.
— Sinto muito, eu…
Catya fez uma pausa no que estava fazendo e estendeu uma mão.
— Como vai?
Por uma fração de segundo, Ehlena só pôde piscar. Odiava que todo mundo no trabalho estivesse informado dos problemas de seu pai e que alguns inclusive o tivessem visto em seu pior momento.
Embora a enfermidade o tivesse despojado de seu orgulho, ela ainda tinha algum em seu nome.
Deu uma rápida palmada na mão de sua chefe e ficou fora de seu alcance.
— Obrigado por perguntar. Agora está calmo e sua enfermeira está com ele. Por sorte, eu acabava de lhe dar sua medicação.
— Precisa de um minuto?
— Não. Como estamos?
O sorriso de Catya parecia mais uma careta que um sorriso, como se estivesse mordendo a língua. Outra vez.
— Não tem que ser forte assim.
— Sim. Tenho que ser. — Ehlena olhou a seu redor e guardou um estremecimento para si. Mais integrantes do pessoal se aproximavam dela pelo corredor, um destacamento de dez pessoas caminhando lado a lado levando uma enorme quantidade de preocupada determinação — Onde precisa de mim?
Tinha que evitar… Não teve sorte.
No momento todas as enfermeiras, exceto as da Sala de Operações que estavam ocupadas com o Havers, tinham formado um círculo ao redor dela, e Ehlena fechou a garganta quando seus colegas soltaram um coro de “Como está?”. Deus, sentia tanta claustrofobia como uma fêmea grávida presa em um elevador sufocante.
— Estou bem, obrigada a todas…
A última integrante do pessoal se aproximou. Depois de expressar sua compaixão, a fêmea sacudiu a cabeça.
— Não é minha intenção falar de trabalho…
— Por favor, faça-o. — resmungou Ehlena.
A enfermeira sorriu com respeito, como se estivesse impressionada pela fortaleza de Ehlena.
— Bom… Ele retornou e está em uma das salas de exame. Pego a moeda?
Todo mundo gemeu. Havia só um ele dentro da legião de pacientes machos que tratavam, e jogar a moeda era o que habitualmente fazia o pessoal para decidir quem devia ocupar-se dele. Era como um encontro as escuras levado a extremo.
Falando de um modo geral, todas as enfermeiras mantinham uma distância profissional com seus pacientes, porque ou o fazia, ou te consumia. Entretanto com ele, o pessoal permanecia afastado por outros motivos que não estavam relacionados com o trabalho. A maioria das fêmeas ficava nervosa em sua presença… Mesmo as mais fortes.
Ehlena? Nem tanto. Sim, o cara tinha um ar ao estilo político importante, com aqueles trajes negros de estilo diplomático, seu corte de cabelo moicano e seus olhos de ametista irradiando uma mensagem “não me irrite se quer continuar respirando”. E era certo, quando te encontrava presa em uma das salas de exame com ele, sentia-se impulsionada a manter o olho na saída se por acaso tinha que usá-la. E logo vinham aquelas tatuagens que tinha no peito… E o fato de que conservasse sua bengala com ele como se esta não só fosse uma ajuda para caminhar, mas também uma arma. E…
De acordo, então o cara também a punha nervosa.
Mas de todas as formas interrompeu uma discussão sobre quem conseguiu ter o ano 1977.
— Eu faço. Assim compensarei meu atraso.
— Tem certeza? — perguntou alguém — Eu tenho a impressão de que esta noite você já pagou suas dívidas.
— Só me deixe conseguir um pouco de café. Em que sala?
— Coloquei-o na três. — disse a enfermeira.
Entre ovações de “Essa é a minha garota”, Ehlena foi à sala de pessoal, pôs suas coisas em sua mesa, e se serviu de uma xícara de quente e fumegante café “levanta defunto”. O café era forte o bastante para ser considerado um estimulante e fez o seu trabalho maravilhosamente, apagando confusão a mental até deixá-la limpa.
Bom, em sua maior parte limpa.
Enquanto bebia pequenos goles, contemplou a fileira de armários cor nata, os pares de sapatos de rua colocados aqui e lá e os casacos de inverno que penduravam em ganchos. No refeitório, os funcionários tinham suas xícaras favoritas sobre o balcão e seus petiscos prediletos nas estantes, e sobre a mesa redonda havia uma travessa cheia de, o que era esta noite? Petiscos Skittles. Em cima da mesa havia um jornal de anúncios coberto com folhetos sobre eventos, cupons e estúpidas tiras de historietas cômicas e fotos de caras bonitos. A lista de escalas estava a seguir, a parede branca tinha um quadriculado desenhado que representava as próximas duas semanas e estava cheia com nomes escritos em diferentes cores.
Isto era o retrato de uma vida normal, nada disso parecia significativo até que se pensava em toda aquela gente que havia no planeta que não podia manter um emprego, nem desfrutar de uma existência independente nem podia permitir-se dedicar sua energia mental a pequenas distrações… Como, digamos, o fato de que o papel higiênico Cottonelle era cinqüenta centavos mais barato se comprasse o pacote de doze rolos duplos.
Pensar em tudo isto, fez-lhe recordar, uma vez mais que, sair ao mundo real era um privilégio dado por questão de sorte, não um direito, e lhe chateava pensar em seu pai escondido naquela espantosa casinha, lutando com demônios que existiam só em sua mente.
Ele tinha tido uma vida uma vez, uma vida plena. Tinha sido um membro da aristocracia, tinha servido no conselho e tinha sido um erudito de renome. Teve uma shellan a que adorou, uma filha da que sempre tinha estado orgulhoso e uma mansão reconhecida por suas festas. Agora tudo o que tinha era alucinações que lhe torturavam, e embora estas fossem unicamente uma percepção, nunca uma realidade, as vozes não deixavam de ser um cárcere blindado só pelo fato de que ninguém mais pudesse ver as grades nem ouvir o guardião.
Enquanto Ehlena lavava sua xícara, não pôde evitar pensar na injustiça de tudo isso. O que estava bem, supôs. Apesar de tudo o que via em seu trabalho, não tinha se acostumado ao sofrimento, e rezava para não fazê-lo nunca.
Antes de deixar o vestiário, fez-se uma rápida revisão no espelho de corpo inteiro que havia ao lado da porta. Seu uniforme branco estava perfeitamente engomado e limpo como a gaze estéril. Suas meias não tinham fios puxados. Seus sapatos de sola de borracha estavam livres de manchas e de arranhões.
Seu cabelo estava tão bagunçado como ela se sentia.
Soltou-o com um rápido puxão, retorceu-o, e o prendou com o elástico, logo se dirigiu para a sala de exame número três.
O histórico clínico do paciente estava no suporte de plástico transparente montado na parede junto à porta, e respirou fundo quando a tirou e abriu. A coisa era fina, considerando a freqüência com que viam o macho, e não havia quase nenhuma informação registrada na capa, só seu nome, um telefone móvel, e o nome de uma fêmea como familiar mais próximo.
Depois de bater na porta, entrou na sala demonstrando uma confiança que não sentia, com a cabeça alta, a coluna direita e sua inquietação camuflada por uma combinação de atitude e concentração profissional.
— Que tal está esta tarde? — disse, olhando o paciente diretamente nos olhos.
No instante em que seu penetrante olhar ametista enfrentou o seu, não poderia lhe haver dito nem a uma alma o que acabava de sair de sua boca ou se ele tinha respondido. Rehvenge, filho de Rempoon, sugou o pensamento diretamente de sua cabeça, tão certamente como se tivesse drenado o tanque do gerador de seu cérebro e a tivesse deixado sem nada com o que captar uma faísca intelectual solta.
E logo sorriu.
Este macho era uma cobra, era verdadeiramente… Hipnotizante porque era mortal e porque era formoso. Com esse moicano, seu rosto severo e elegante e seu grande corpo, ele era sexo, poder e imprevisibilidade todo envolto em… Bem, um traje negro de estilo diplomático que claramente tinha sido feito sob medida.
— Estou bem, obrigado. — respondeu, solucionando o mistério quanto ao que lhe tinha perguntado — E você?
Quando ela fez uma pausa, ele sorriu um pouco, sem dúvida porque era totalmente consciente de que nenhuma das enfermeiras gostava de compartilhar o mesmo espaço fechado com ele, e evidentemente desfrutava desse fato. Ao menos, assim foi como ela leu sua controlada e velada expressão.
— Perguntei-lhe como estava. — disse arrastando as palavras.
Ehlena pôs o prontuário clínico na escrivaninha e tirou o estetoscópio do bolso.
— Estou muito bem.
— Está certa disso?
— Certíssima. — girando-se para ele, disse — Só vou tirar sua pressão arterial e o ritmo cardíaco.
— E também a temperatura.
— Sim.
— Quer que abra a boca para você agora?
A pele de Ehlena se ruborizou, e disse que não era porque aquela voz profunda com a que tinha feito a pergunta parecesse tão sensual como uma preguiçosa carícia sobre um peito nu.
— Errr… Não.
— Pena.
— Por favor, tire a jaqueta.
— Que grande idéia. Retiro totalmente o “pena”.
Bom plano, pensou ela, pois se sentia propensa a lhe fazer engolir a palavra com o termômetro.
Os ombros de Rehvenge giraram quando fez o que lhe tinha pedido, e com um movimento informal da mão, jogou o que evidentemente era uma peça de arte de roupa de cavalheiro sobre o casaco de Zibelina que tinha dobrado cuidadosamente sobre uma cadeira. Era estranho: sem importar a estação que fosse, ele sempre usava uma daquelas peles.
Essas coisas custavam mais que a casa que Ehlena alugava.
Quando seus dedos longos foram para a abotoadura de diamantes que tinha no pulso direito, deteve-o.
— Poderia, por favor, subir o outro lado? — disse assinalando com a cabeça a parede que havia junto a ele — Há mais espaço para mim a sua esquerda.
Ele vacilou, logo foi subir a manga contrária. Elevando a seda negra por cima do cotovelo, sobre seus bíceps grossos, manteve seu braço girado para seu torso.
Ehlena tirou o esfignomanômetro[15] de uma gaveta e começou a abri-lo enquanto se aproximava dele. Tocá-lo era sempre uma experiência, e esfregou a mão no quadril para preparar-se. Não ajudou. Como era habitual, quando entrou em contato com seu pulso, uma corrente lhe lambeu o braço subindo por ele até aterrissar em seu coração, fazendo que a maldita coisa pulsasse ao ritmo de James Brown até que a shimmy-shimmies[16]* lhe obrigaram a tragar um ofego.
Rezando para que isto não lhe levasse muito tempo, moveu-lhe o braço situando-o em posição para lhe pôr o punho do esfignomanômetro e…
— Bom… Senhor.
As veias que subiam pela curva de seu cotovelo estavam dizimadas pelo uso excessivo, inchadas, arroxeadas, tão rasgadas como se tivesse estado usando pregos em vez de agulhas.
Seus olhos se dispararam aos dele.
— Deve estar muito dolorido.
Fez girar o pulso, liberando-se de seu agarre.
— Não. Não me incomoda.
Um cara duro. Como é que não lhe surpreendia?
— Certo, posso entender por que precisa ver o Havers.
Intencionadamente, estendeu a mão, voltou a lhe girar o braço e pressionou brandamente uma linha vermelha que subia por seus bíceps, dirigindo-se para seu coração.
— Há sinais de infecção.
— Estarei bem.
Tudo o que ela pôde fazer foi arquear as sobrancelhas.
— Alguma vez ouviu falar de sepsis?
— A banda de música alternativa? Claro, mas nunca me passou pela cabeça que você tivesse ouvido falar dela.
Fuzilou-o com o olhar.
— Sepsis como em uma infecção do sangue?
— Hmm, queira inclinar-se sobre a escrivaninha um pouco e me desenhar um quadro explicativo? — seus olhos vagaram, descendendo por suas pernas — Acredito que o encontraria... Muito educativo.
Se qualquer outro macho tivesse saído com esse tipo de linha, lhe teria esbofeteado até lhe fazer ver as estrelas. Infelizmente, quando era essa voz de barítono divina a que falava e esse olhar penetrante de ametista o que fazia o percurso, realmente não se sentia lascivamente manuseada.
Sentia-se acariciada por um amante.
Ehlena resistiu à urgência de um V8 em sua frente. Que demônios estava fazendo? Esta noite tinha um encontro. Com um agradável e razoável macho civil que não tinha sido outra coisa salvo agradável, razoável e muito civilizado.
— Não tenho que lhe desenhar um quadro explicativo. — disse assinalando seu braço com a cabeça — Pode ver por si mesmo aí. Se isso não se curar, vai ficar sistêmico.
E embora levasse roupas elegantes como o manequim sonhado por todo alfaiate, a fria capa cinza da morte não ficava bem.
Ele manteve seu braço contra seus fortes abdominais.
— Levarei em consideração.
Ehlena sacudiu a cabeça e recordou a si mesma que não podia salvar às pessoas de sua própria estupidez só porque tinha uma bata branca pendurando dos ombros e a palavra ENFERMEIRA ao final de seu nome. Além disso, Havers ia ver isso em toda sua glória quando lhe examinasse.
— Muito bem, mas vou tirar a leitura no outro braço. E vou ter que lhe pedir que tire a camisa. O doutor vai quer ver quão longe a infecção chegou.
A boca de Rehvenge se elevou formando um sorriso enquanto alcançava o botão superior de sua camisa.
— Continue assim e logo estarei nu.
Ehlena afastou rapidamente o olhar e desejou com todas as suas forças poder considerá-lo um asco. Certamente lhe viria bem uma injeção de justa indignação que lhe ajudasse a defender-se dele.
— Já sabe, não sou tímido. — disse com essa voz baixa tão sua — Pode olhar se quiser.
— Não, obrigado.
— Pena. — em um tom mais enigmático, acrescentou — Não me importaria que me olhasse.
Enquanto o som da seda movendo-se contra a carne se elevava da mesa de exame, Ehlena revisou desnecessariamente seu histórico médico, voltando a verificar dados que eram absolutamente corretos.
Era estranho. Pelo que as outras enfermeiras haviam dito, não se comportava com elas dessa maneira tão libertina. De fato, mal falava com suas colegas, e essa era parte da razão pela que ficavam tão ansiosas quando estavam com ele. Com um macho assim grande, o silêncio se interpretava como uma ameaça. Isso era um fato da vida. E isso antes que lhe acrescentasse a tatuagem e o moicano de caçador.
— Estou preparado. — disse.
Ehlena girou sobre si mesma e manteve os olhos fixos na parede junto à cabeça dele. Entretanto sua visão periférica funcionava verdadeiramente bem, e era difícil não sentir-se agradecida. O peito de Rehvenge era magnífico, a pele de uma quente cor morena dourada, com músculos que estavam definidos apesar de que seu corpo estivesse relaxado. Em cada um de seus peitorais tinha uma estrela vermelha de cinco pontas tatuada na parte superior, e sabia que tinha mais.
Em seu estômago.
Não é que o tivesse olhado.
Era certo, porque na realidade, ficou embevecida.
— Vai examinar-me o braço? — disse brandamente.
— Não, isso o doutor fará. — esperou que voltasse a dizer “Pena”.
— Acredito que já usei essa palavra suficientes vezes em sua companhia.
Então o olhou nos olhos. Era desse estranho tipo de vampiro que podia ler as mentes dos de sua própria espécie, mas de algum jeito não lhe surpreendeu que este macho formasse parte desse pequeno e estranho grupo.
— Não seja grosseiro. — lhe disse — E não quero que volte a fazer isso.
— Sinto muito.
Ehlena deslizou o punho do esfignomanômetro ao redor de seus bíceps, colocou o estetoscópio nos ouvidos, e tirou a pressão arterial. Entre os pequenos piff-piff-piff do globo ao inflar a manga para que estivesse ajustada, sentiu o fio nele, o tenso poder, e seu coração deu um salto. Estava particularmente incisivo esta noite, e se perguntou por que.
Salvo que isso não era assunto dela, ou era?
Quando liberou a válvula e o punho soltou um assobio comprido e lento de liberação, deu um passo atrás se afastando. Ele era simplesmente… Muito, por todos os lados. Especialmente nesse momento.
— Não tenha medo. — sussurrou.
— Não tenho.
— Tem certeza?
— Muita certeza. — mentiu.


Capítulo 6


Mentia, pensou Rehv. Definitivamente tinha medo dele. Falando de pena...
Esta era a enfermeira que Rehv esperava que lhe tocasse cada vez que ia ali. Era a que fazia com que suas visitas fossem parcialmente suportáveis. Esta era sua Ehlena.
Ok, não era nem um pouco sua. Sabia seu nome só porque estava escrito na placa azul e branca de sua bata. Via-o sozinha quando vinha a tratamento. E não gostava dele absolutamente.
Mas igualmente pensava nela como dele, e assim eram as coisas. A questão era, que tinham algo em comum, algo que transcendia os limites entre espécies e eclipsava as diferentes camadas sociais e os unia embora ela o teria negado.
Ela também estava sozinha, e da mesma forma em que ele estava.
Seu ralo emocional tinha o mesmo rastro que o dele, a que tinha Xhex, Trez e iAm: Seus sentimentos estavam rodeados pelo vazio de desconexão de alguém separado de sua tribo. Vivendo entre outros, mas essencialmente separado de tudo. Um ermitão, um pária, alguém que tinha sido expulso.
Não conhecia os motivos, mas estava fodidamente seguro de que a vida era assim para ela, e isso era o que tinha captado sua atenção primeiro quando a tinha conhecido. Seus olhos, sua voz e sua fragrância tinham sido o seguinte. Sua inteligência e boca rápida tinham selado o trato.
— Cento e sessenta e oito por noventa e cinco. É alta. — desabotoou o punho com um rápido puxão, sem dúvida desejando que fosse uma tira de sua pele — Acredito que seu corpo está tentando lutar contra a infecção de seu braço.
Oh, seu corpo estava lutando contra algo, com certeza, mas não tinha absolutamente nada a ver com o que fosse que se cozinhava na zona onde se injetava. Com seu lado sympath lutando contra a dopamina, a condição de impotência na qual normalmente se achava quando estava totalmente medicado ainda não se apresentara.
Resultado?
Seu pênis estava rígido como um taco de beisebol dentro das calças folgadas. O que, contra a opinião popular, na realidade não era um bom sinal... Especialmente esta noite. Depois dessa conversa com Montrag, sentia-se faminto, estimulado... Um pouco amalucado pelo ardor interior.
E Ehlena era simplesmente tão... Formosa.
Embora não como estava acostumado a ser suas garotas, não de uma forma tão óbvia, exagerada, injetada, implantada e escultural. Ehlena era naturalmente encantadora, tinha traços finos e delicados, o cabelo loiro dourado e umas pernas longas e esbeltas. Seus lábios eram rosados porque eram rosados... Não por uma capa de maquiagem brilhante e cristalizada com uma durabilidade de dezoito horas. E seus olhos cor caramelo eram luminescentes porque eram uma mescla de amarelo, vermelho e dourado... Não por um montão de camadas de sombra de olhos e rímel. E suas bochechas estavam ruborizadas porque ele lhe estava colocando sob a pele.
O que, embora pressentia que tinha sido uma noite dura para ela, não lhe importava absolutamente.
Mas esse é o symphath em ti, não? Pensou com ironia.
Curioso, a maior parte do tempo não lhe importava ser o que era. Sua vida como a tinha conhecido, sempre tinha sido uma miragem constante que alternava mentiras e enganos e isso era o que havia. Não obstante quando estava com ela, desejava ser normal.
— Vemos sua temperatura? — disse ela, indo procurar um termômetro eletrônico na mesa.
— Está mais alta do que o normal.
Seus olhos âmbar voaram para os dele.
— Por seu braço.
— Não, por seus olhos.
Ela piscou, depois pareceu sacudir a si mesma.
— Tenho sérias dúvidas a respeito disso.
— Então subestima seu atrativo.
Quando sacudiu a cabeça e colocou uma capinha plástica sobre a varinha prateada, ele pôde perceber o aroma fugaz de seu perfume.
Suas presas se alargaram.
— Abra. — levantou o termômetro e esperou — E bem?
Rehv olhou fixamente esses assombrosos olhos tricolores e deixou cair a mandíbula. Ela se inclinou, tão profissional como sempre, só para ficar congelada. Enquanto lhe estudava os caninos, em sua fragrância aflorou algo escuro e erótico.
O triunfo inflamou as veias de Rehv enquanto grunhia.
— Faça-me isso.
Passou um comprido momento, durante o qual os dois estiveram unidos por fios invisíveis de paixão e desejo. Depois a boca dela formou uma linha.
— Nunca, mas tomarei a temperatura, porque devo fazê-lo.
Embutiu-lhe o termômetro entre os lábios e ele teve que apertar os dentes para evitar que a coisa lhe cravasse uma das amídalas.
Entretanto, estava tudo bem. Embora não pudesse tê-la, excitava-a. E isso era mais do que se merecia.
Produziu-se um bip, um intervalo, e outro bip.
— Cento e quarenta e nove. — disse ela enquanto retrocedia e atirava a capinha de plástico ao cesto de lixo de risco biológico — Havers estará com você logo que seja possível.
A porta se fechou atrás dela com a dura bofetada silábica da palavra que começava com o F.
Homem, era ardente.
Rehv franziu o cenho, toda a questão da atração sexual lhe recordava algo em que não gostava de pensar.
Alguém, mas bem.
A ereção que tinha se desinflou instantaneamente quando se deu conta que era segunda-feira de noite. O que significava que amanhã era terça-feira. Primeira terça-feira do último mês do ano.
O sympath nele vibrou apesar de que cada centímetro de sua pele se esticou como se seus bolsos estivessem cheios de aranhas.
Amanhã de noite ele e sua chantagista teriam outra de seus encontros. Jesus, como era possível que tivesse passado outro mês? Parecia que cada vez que se dava a volta era a primeira terça-feira de novo e estivesse conduzindo para o norte do estado para essa cabana deixada pela mão de Deus para outra atuação obrigada.
O alcoviteiro convertido em puta.
Jogos de poder, extremos afiados e foder eram basicamente a moeda de troca nas reuniões com sua chantagista, e tinham sido as bases de sua vida “amorosa” durante os últimos vinte e cinco anos. Tudo isso era sujo e lhe ofendia, era malvado e degradante, e o fazia uma e outra vez para manter seu segredo a salvo.
E também porque seu lado escuro se liberava com isso. Era Amor, ao Estilo Symphath, o único momento em que podia ser como era sem conter-se absolutamente, um tanto de horrorosa liberdade. Depois de tudo, por muito que medicasse a si mesmo e tentasse encaixar, estava preso pelo legado de seu pai morto, pelo sangue malvado que corria por suas veias. Não podia negociar com seu DNA, e embora fosse mestiço, o proscrito nele era dominante.
Assim quando se tratava de uma mulher de valor como Ehlena, ele sempre ia estar no lado mais afastado do vidro, pressionando o nariz contra ele, com as palmas estendidas pelo desejo, sem jamais poder aproximar-se o suficiente para tocar. Era o mais justo para ela. Ao contrário que sua chantagista, ela não merecia o que ele tinha para oferecer.
Os princípios morais que ensinou a si mesmo indicavam que ao menos isso era certo.
Sim. Yu-hu. Bom pra ele.
Sua próxima tatuagem ia ser de um fodido halo sobre a cabeça.
Quando baixou o olhar ao desastre que se estendia por seu braço esquerdo, viu com total clareza que estava piorando. Não só era uma infecção bacteriana devido a que utilizava deliberadamente agulhas sem esterilizar sobre a pele que não tinha sido limpa com álcool. Era um lento suicídio, e essa era a razão pela qual preferia que o condenassem antes que mostrar-lhe ao doutor. Sabia exatamente o que ocorreria se esse veneno se metia profundamente dentro de sua corrente sangüínea, e desejava que acontecesse logo e se apoderasse dele.
A porta se abriu e levantou o olhar, preparado para dançar o tango com o Havers... Exceto que não era o doutor. A enfermeira de Rehv havia retornado, e não parecia feliz.
De fato, parecia exausta, como se ele não fosse mais que uma moléstia a mais em sua lista e não tivesse energia para tratar com a merda que trazia quando estava com ela.
— Falei com o doutor. — lhe disse — Está na sala de cirurgia fechando, assim demorará um pouco. Pediu-me que lhe tirasse um pouco de sangue...
— Sinto. — balbuciou Rehv.
A mão de Ehlena foi até o pescoço de seu uniforme e puxou as duas metades para fechá-las um pouco mais.
— Perdão?
— Lamento ter jogado com você. Não necessita isso de um paciente. Especialmente em uma noite como esta.
Ela franziu o cenho.
— Estou bem.
— Não, não está. E não, não estou lendo sua mente. É só que parece cansada. —repentinamente, soube como ela se sentia — Eu gostaria de compensar isso.
— Não é necessário...
— Convidando você para jantar.
Bom, não tinha querido dizer isso. E dado que acabava de auto felicitar-se por saber manter a distância, isto também lhe convertia em um hipócrita consigo mesmo.
Evidentemente a próxima tatuagem devia estar mais na linha de umas orelhas de burro.
Porque estava atuando como um.
Depois de seu convite, não lhe surpreendeu nem um pouco que Ehlena lhe olhasse como se estivesse louco. Em termos gerais, quando um macho se comportava como ele tinha feito, a última coisa que qualquer fêmea desejaria fazer era passar mais tempo com ele.
— Sinto muito, não. — nem sequer alinhavou o obrigado — Nunca saio com pacientes.
— Ok. Entendo.
Enquanto preparava os instrumentos para tirar sangue e colocava um par de luvas de borracha, Rehv estendeu o braço para a jaqueta de seu traje e tirou seu cartão, ocultando-o em sua grande palma.
Foi rápida no procedimento, trabalhando sobre seu braço bom, enchendo com rapidez as ampolas de alumínio. Menos mal que não eram de vidro e que Havers fazia todas as provas ele mesmo. O sangue de vampiro era vermelho. O de symphath era azul. A cor do seu era algo entre ambas, mas ele e Havers tinham um acordo. Certo, o doutor não era consciente de como funcionavam as coisas entre eles, mas era a única forma de ser tratado sem comprometer o médico da raça.
Quando Ehlena acabou, selou as ampolas com plugues de plástico branco, tirou as luvas e se dirigiu para a porta como se ele fosse um mau aroma.
— Espera. — lhe disse.
— Quer algum calmante para o braço?
— Não, quero que fique com isto. — estendeu seu cartão — E me ligue se alguma vez está de humor para me fazer um favor.
— Com o risco de soar pouco profissional, nunca vou estar de humor para você. Sob nenhuma circunstância.
Ouch. Não é que a culpasse.
— O favor é me perdoar. Não tem nada que ver com um encontro.
Ela baixou o olhar ao cartão, depois sacudiu a cabeça.
— Será melhor que fique com isso. Para que possa usar alguma vez.
Quando a porta se fechou, ele amassou o cartão em sua mão.
Merda. Em que demônios estava pensando de todos os modos? Provavelmente ela tivesse uma pequena vida agradável em uma simples casinha com dois pais excessivamente amorosos. Talvez até tivesse um namorado, que algum dia se converteria em seu hellren.
Sim, sendo ele o amigável senhor da droga da vizinhança, alcoviteiro e valentão realmente encaixaria com a rotina Norman Rockwell. Totalmente.
Atirou seu cartão no cesto de papéis que havia junto a mesa, e observou como fazia um arco, e logo caía entre os Kleenex[17], os papéis enrugados e uma lata de Coca-Cola vazia.
Enquanto esperava o doutor, olhou o lixo descartado, pensando que para ele a maioria das pessoas do planeta era como essas coisas: coisas para usar e descartar sem remorsos de nenhum tipo. Graças a seu lado mau e ao negócio que dirigia, tinha quebrado um montão de ossos, tinha partido um montão de cabeças e tinha sido a causa de muitas overdoses de drogas.
Ehlena, por outro lado, passava suas noites salvando as pessoas.
Sim, tinham muitíssimo em comum, certamente.
Os esforços dele possibilitavam que ela tivesse um trabalho.
Oras. Perfeito.
******************
Fora da clínica, no ar gelado, Wrath estava se enfrentando peito a peito com o Vishous.
— Sai de meu caminho, V.
Vishous, é obvio, não retrocedeu nada. Não era de surpreender-se. Inclusive antes do pequeno flash informativo que informava que a Virgem Escriba lhe tinha dado a luz, o guerreiro sempre tinha sido um agente totalmente livre.
Um Irmão teria tido melhor sorte dando ordens a uma pedra.
— Wrath...
— Não, V. Aqui não. Agora não...
— Vi você. Esta tarde, em meus sonhos. — a dor nessa voz escura era do tipo que normalmente se associa com funerais — Tive uma visão.
Wrath falou sem desejar.
— O que viu?
— Estava de pé só em um campo escuro. Todos lhe rodeávamos na periferia, mas ninguém podia te alcançar. Você se afastava de nós e nós de você. — o Irmão estendeu a mão e lhe agarrou com força — Por intermédio de Butch, sei que está saindo sozinho e mantive a boca fechada. Mas não posso permitir que siga fazendo isto. Se você morrer a raça está fodida, e nem sei dizer o que lhe faria à Irmandade.
Os olhos de Wrath se esforçavam para enfocar o rosto de V, mas a luz de segurança que havia sobre a porta era um fluorescente e o brilho dessa coisa cravava como a merda.
— Não sabe o que quer dizer o sonho.
— E você tampouco.
Wrath pensou no peso desse civil em seus braços.
— Poderia não ser nada...
— Pergunte-me quando tive a visão pela primeira vez.
—... Mais que um medo que tem.
— Pergunte-me. Quando tive a visão pela primeira vez.
— Quando?
— Mil novecentos e nove. Passaram cem anos desde que a vi pela primeira vez. Agora me pergunte quantas vezes a tive mês passado.
— Não.
— Sete vezes, Wrath. Esta tarde foi a gota que transbordou o copo.
Wrath se soltou do agarre do Irmão.
— Solte-me. Se me seguir, vai encontrar briga.
— Não pode sair sozinho. Não é seguro.
— Está brincando, verdade? — Wrath lhe olhou furiosamente através de seus óculos escuros — Nossa raça está caindo e você me repreende por ir atrás de nosso inimigo? Uma merda. Não vou ficar sentado mofando atrás de nenhum fodido escritório passando papéis enquanto meus irmãos estão ali fora fazendo algo verdadeiramente...
— Mas você é o rei. É mais importante que nós...
— Ao inferno com isso! Sou um de vocês! Fui recrutado, bebi dos Irmãos e eles de mim, quero lutar!
— Olhe, Wrath... — V assumiu um tom tão grunhido que lhe fazia saltar todos os dentes. Com uma tocha — Sei exatamente o que é não querer ser quem nasceste para ser. Acredita que eu não gostaria de me liberar de ter estes fodidos sonhos? Acredita que ter este sabre laser é uma festa? — levantou a mão enluvada como se a ajuda visual fosse um valor acrescentado a sua “discussão” — Não pode mudar quem é. Não pode desfazer o acoplamento em que seus pais lhe fizeram. É o rei, e as regras se aplicam de forma diferente para você, e assim é como são as coisas.
Wrath fez seu melhor esforço para ter a calma, tranqüilidade e compostura de V.
— E eu digo que estive lutando durante trezentos anos, assim não sou exatamente um principiante na batalha. E eu também gostaria de assinalar que ser o rei não significa ter perdido o direito de escolher...
— Não tem herdeiro. E pelo que ouvi de minha shellan, manda Beth se calar quando ela diz que quer tentar ter um quando vier sua primeira necessidade. Sossega-a com dureza. Como disse que o diz? Oh... Sim. “Não quero nenhuma cria em um futuro próximo... Se é que alguma vez vou querer”.
O fôlego de Wrath escapou em uma rajada.
— Não posso acreditar que acaba de tocar nesse assunto.
— Em resumo? Se você morrer? A malha da sociedade da raça se desmantelaria, e se acha que isso vai ajudar na guerra é que tem a cabeça tão metida no rabo que está utilizando seu esfíncter como boca. Aceite, Wrath. Você é o coração de todos nós... Assim não, não pode ir por aí sem mais, lutando sozinho porque te dá a vontade de fazê-lo. As coisas não funcionam assim para você...
Wrath agarrou as lapelas do Irmão e o estrelou contra o edifício da clínica.
— Cuidado, V. Está caminhando pela maldita e fina linha que limita com a falta de respeito.
— Se acredita que me amassar vai mudar as coisas, vá em frente. Mas te garanto que depois de que os murros terminem e ambos estejamos sangrando no chão, a situação seguirá sendo exatamente a mesma. Não pode mudar quem é por nascimento.
Ao fundo, Butch saiu do Escalade e subiu o cinto como se estivesse se preparando para interromper uma briga.
— A raça precisa de você vivo, imbecil. — disse V— Não me obrigue a apertar o gatilho, porque o farei.
Wrath voltou a fixar seus olhos débeis em V.
— Pensei que me queria vivinho e abanando o rabo. Além disso, me disparar seria traição e se castiga com a morte. Sem importar de quem seja filho.
— Olhe, não estou dizendo que não deva...
— Cala a boca, V. Só uma vez, só fecha a maldita boca.
Wrath soltou a jaqueta de couro do cara e retrocedeu. Jesus Cristo, tinha que ir ou esta confrontação ia escalar exatamente até o que Butch estava temendo.
Wrath apontou um dedo à cara de V.
— Nada de me seguir. Estamos entendidos? Não me siga.
— Estúpido imbecil. — disse V com absoluto cansaço — É o rei. Todos devemos te seguir.
Wrath se desmaterializou com uma maldição, suas moléculas apressando-se através da cidade. Enquanto viajava, não podia acreditar que V tivesse jogado na sua cara o assunto de Beth e o bebê. Ou que Beth tivesse compartilhado esse tipo de questões privadas com a Doutora Jane.
Falando de ter a cabeça no rabo, por certo. V estava louco se pensava que Wrath ia pôr a vida de sua amada em perigo deixando-a grávida quando passasse por sua necessidade dentro de um ano ou assim. As fêmeas morriam no parto, com mais freqüência que as que não morriam.
Daria sua própria vida pela raça se tivesse que fazê-lo, mas de nenhum fodido e louco modo poria a de sua shellan em um perigo assim.
E inclusive se tivesse a garantia que sobreviveria a tudo isso, não queria que seu filho terminasse justo onde ele estava... Preso e sem escolha, servindo a sua gente com pesar enquanto um a um morriam em uma guerra que pouco ou nada podia fazer para terminar.

Capítulo 7


O complexo do Hospital St. Francis era uma cidade dentro da cidade, uma aglomeração sempre em expansão de blocos arquitetônicos de diferentes épocas, com cada um dos componentes formando sua própria mini-vizinhança e as partes conectando-se com o conjunto por uma série de sinuosas ruas e calçadas. Estava o estilo McMansion que podia ver na seção de administração, o da simplicidade suburbana do nível das estadias de unidades de pacientes externos e o das torres de hospitalização parecidas com apartamentos com suas janelas amontoadas. O único que dava unidade à extensão, e que era um dom do céu, eram os sinais direcionais vermelhos e brancos com suas flechas assinalando a direita e esquerda e diretamente para frente dependendo de aonde queria ir.
De todas as formas o destino de Xhex era óbvio.
O departamento de emergências era a dependência mais recente do centro médico, um de tecnologia avançada, de vidro e aço que era como um clube noturno sempre brilhantemente iluminado e constantemente ronronando.
Era impossível passar batido. Impossível perder de vista.
Xhex caminhou à sombra de algumas árvores que tinham sido plantadas em círculo ao redor de uns bancos. Enquanto caminhava para a fileira de portas giratórias da unidade de Emergências, estava integrada ao ambiente e ao mesmo tempo absolutamente à margem dele. Embora alterasse seu trajeto para evitar outros transeuntes, cheirava o tabaco da denominada choça de fumantes e sentia o ar frio no rosto, estava muito perturbada pela batalha que se livrava em seu interior para observar muito.
Quando entrou na instalação, suas mãos estavam úmidas, um suor frio brotava de sua testa e ficou paralisada pela luz fluorescente, o linóleo branco e o pessoal que andava por ali com seus uniformes cirúrgicos.
— Precisa de ajuda?
Xhex girou e subiu as mãos, adotando bruscamente uma posição de luta. O doutor que lhe tinha falado manteve sua postura, mas pareceu surpreso.
— Calma. Tranqüila.
— Lamento. — deixou cair os braços e leu a lapela de seu jaleco branco: Dr. MANUEL MANELLO, CHEFE DE CIRURGIA. Franziu o cenho ao percebê-lo, ao captar seu aroma.
— Está bem?
Não. Não era nada de sua conta.
— Tenho que ir ao depósito de cadáveres.
O médico não pareceu impressionado, como se fosse perfeitamente possível que alguém com sua maneira de mover conhecesse um par de cadáveres com dedos etiquetados.
— OK, bem, vê aquele corredor daí? Vá até o fundo. Verá uma porta com um letreiro para o depósito de cadáveres. Só siga as flechas dali. Está no porão.
— Obrigado.
— De nada.
O doutor saiu pela porta giratória pela que ela tinha entrado, e Xhex passou pelo detector de metais pelo que ele acabava de passar. Não soou nenhum «bip», e lançou um tenso sorriso ao vigilante que por sua vez jogou uma olhada.
A faca que levava na parte baixa das costas era de cerâmica e tinha substituído seus cilícios de metal por uns de couro e pedra. Sem problemas.
— Boa noite, Oficial. — lhe disse.
O cara a saudou com a cabeça ao passar, mas manteve a mão na culatra de sua arma.
Ao final do corredor, encontrou a porta que procurava, abriu-a de um golpe e encarou as escadas, seguindo as flechas vermelhas como o doutor lhe tinha indicado. Quando deu com um lance de parede de cimento branqueado calculou que já estava perto, e tinha razão. Mais adiante no corredor estava o detetive Cruz, junto a um par de portas duplas de aço inoxidável rotuladas com as palavras DEPÓSITO DE CADÁVERES e SÓ PESSOAL AUTORIZADO.
— Obrigado por vir. — disse ele quando ela esteve mais perto — Entraremos na sala de observação que está um pouco mais à frente. Irei dizer-lhes que chegou.
O detetive abriu uma das portas de um empurrão, e através da fresta ela pôde ver uma frota de mesas metálicas com blocos para as cabeças dos mortos.
Seu coração se deteve e logo trovejou, apesar de estar repetindo uma e outra vez que ela não era a prejudicada. Que ela não estava aí dentro. Que isto não era o passado. Que não havia ninguém com uma roupa branca erguendo-se sobre ela e fazendo coisas “em nome da ciência”.
E, além disso, ela tinha superado todo isso, fazia uma década…
Um som começou baixo e aumentou de volume, reverberando detrás dela. Girou em redondo e ficou congelada, sentindo tanto temor que lhe cravaram os pés no chão…
Mas só era um empregado da limpeza que vinha dobrando a esquina, empurrando um carrinho de roupa suja do tamanho de um carro. Ao passar nem sequer levantou a vista, estava inclinado para frente sobre a borda, utilizando toda sua energia.
Por um momento, Xhex piscou e viu outro carrinho rodando. Um cheio de membros enredados e imóveis, as pernas e os braços dos cadáveres sobrepondo-se como se fosse lenha.
Esfregou os olhos. Ok, tinha superado o acontecido… Sempre e quando não estivesse em uma clínica ou hospital.
Jesus..! Devia sair dali.
— Realmente quer fazer isto? — perguntou da Cruz junto a ela.
Tragou a saliva com força, e levantou a mão, duvidando de que o homem entendesse que o que a assustava era um montão de lençóis em um carro e não o cadáver que estava a ponto de ver.
— Sim. Podemos entrar agora?
Ele a contemplou durante um momento.
— Escute, quer tomar um minuto? Tomar um pouco de café?
— Não. — como não se moveu, ela mesma se encaminhou para a porta rotulada como VISITAS PRIVADAS.
Da Cruz se apressou a adiantar-se e abriu a porta. A sala de espera que havia mais à frente tinha três cadeiras de plástico negras e duas portas e cheirava como morangos químicos, resultado do formaldeído misturado com um ambientador Glade PlugIn. Num canto, longe dos assentos, havia uma mesa pequena com um par de copos descartáveis de papel meio cheios de café que parecia lodo tirado de um atoleiro.
Ao que parecia, havia dois tipos de pessoa, o tipo que passeava e o tipo que permanecia sentado, e se fosse do tipo que permanecia sentado, esperava-se que equilibrasse a cafeína extraída da máquina sobre seu joelho.
Enquanto olhava ao seu redor, percebeu as emoções que tinham sido sentidas nessa área e que persistiam como o mofo que fica depois da água fétida. Às pessoas que tinha transpassado a porta desse lugar lhe tinham acontecido coisas más. Corações que foram quebrados. Vidas que foram destroçadas. Mundos que nunca voltaram a ser o mesmo.
Pensou que não deveriam dar café a esta gente antes que fizessem o que tinham vindo a fazer aqui. Já estavam nervosos o suficiente.
— Por aqui.
Da Cruz a fez passar a uma sala estreita que em sua opinião estava empapelada[18] com um estampado em relevo de claustrofobia: a coisa era do tamanho de uma caixa de fósforos quase sem ventilação, tinha luzes fluorescentes que vacilavam e flutuavam, e a única janela que havia definitivamente não dava a um prado de flores silvestres.
A cortina que pendurava no lado oposto do vidro estava corrida de um lado a outro, bloqueando a vista.
— Está bem? — perguntou de novo o detetive.
— Podemos fazer isto logo?
Da Cruz se inclinou para a esquerda e apertou o botão do timbre. Ante o som do zumbido, as cortinas se separaram, abrindo-se pela metade com uma lenta sacudida, revelando um corpo que estava coberto pelo mesmo tipo de lençol branco que havia no cesto da roupa suja. Um macho humano vestido com uniforme médico verde estava de pé na cabeceira, e quando o detetive fez um gesto com a cabeça, o homem esticou uma mão para frente e retirou o sudário.
Os olhos de Chrissy Andrews estavam fechados e seus cílios estavam pousados sobre as bochechas que tinham a cor cinza pálida das nuvens de dezembro. Não tinha aspecto de estar em paz em seu repouso permanente. Sua boca era um talho azul, seus lábios estavam partidos pelo que poderia ter sido um punho, uma frigideira ou a ombreira de uma porta.
As dobras do lençol que descansava sobre sua garganta ocultavam em sua maior parte os sinais de estrangulamento.
— Sei quem fez isto. — disse Xhex.
— Só para que fique claro, identifica-a como Chrissy Andrews?
— Sim. E sei quem o fez.
O detetive fez um gesto com a cabeça para o clínico, que cobriu o rosto de Chrissy e fechou as cortinas.
— O namorado?
— Sim.
— Há um longo histórico de chamadas por violência doméstica.
— Muito longo. É obvio, isso já acabou. O filho da puta finalmente conseguiu fazer o trabalho, verdade?
Xhex saiu pela porta e entrou na sala de espera, e o detetive teve que se apressar para não ficar atrás.
— Detenha-se...
— Tenho que voltar para o trabalho.
Enquanto saíam bruscamente e entravam no corredor do porão, o detetive a obrigou a deter-se.
— Quero que saiba que o DPC[19] está levando a cabo uma adequada investigação de assassinato, e nos encarregaremos de qualquer suspeito de maneira apropriada e legal.
— Estou certa de que o fará.
— E você fez sua parte. Agora tem que deixar que nos ocupemos dela e cheguemos ao final deste assunto. Deixe-nos encontrá-lo, ok? Não a quero em plano vigilante.
Veio-lhe à mente a imagem do cabelo de Chrissy. A mulher tinha sido suscetível sobre esse assunto, estava acostumada a escová-lo para trás, depois alisava a capa superior e o orvalhava com laquê para mantê-lo em seu lugar até que ficasse como a parte superior de um peão de xadrez.
Totalmente ao estilo de uma habitante de Melrose Place[20] (seriado dos anos 90), a época em que Heather Locklear usava o cabelo dourado.
O cabelo que havia embaixo daquele sudário estava esmagado como uma tabua de picar, amassado de ambos os lados, devido sem dúvida à bolsa para cadáveres em que tinha sido transportada.
— Você já fez sua parte. — disse da Cruz.
Não, ainda não.
— Que tenha uma boa noite, Oficial. E boa sorte encontrando ao Grady.
Ele franziu o cenho, logo pareceu engolir atuação de “serei uma boa garota”.
— Necessita que a leve de volta?
— Não, obrigado. E de verdade, não se preocupe comigo. — sorriu tensamente — Não farei nada estúpido.
Ao contrário, era uma assassina muito preparada. Treinada pelo melhor.
E olho por olho era mais que uma frase pegajosa.
José da Cruz não era um cientista de naves espaciais nem um membro do Mensa nem um geneticista molecular. Tampouco era um apostador, e não só devido a sua fé Católica.
Não tinha motivos para apostar. Tinha um instinto que se assemelhava à bola de cristal de uma vidente.
Assim sabia exatamente o que fazia quando ficou seguindo, a uma distância discreta, a senhora Alex Hess em seu caminho da saída do hospital. Depois de sair pelas portas giratórias, não foi à esquerda para o estacionamento nem à direita, em volta dos três táxis estacionados à entrada. Seguiu em linha reta, andando entre os carros que recolhiam e deixavam pacientes e entre os táxis que estavam livres. Depois de subir ao meio-fio, continuou pela grama congelada e seguiu caminhando em linha reta, cruzando a estrada e metendo-se entre as árvores que a cidade tinha plantado fazia um par de anos para incrementar a vegetação no centro da cidade.
Entre uma piscada e a seguinte tinha desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.
O que era, é obvio, impossível. Estava escuro e ele tinha levantado às quatro da manhã fazia duas noites, por isso seus olhos eram tão agudos como quando estava debaixo da água.
Ia ter que vigiar a aquela mulher. Sabia de primeira mão quão duro era perder a um colega, e estava claro que ela tinha apreciado à moça morta. Não obstante, este caso não necessitava um curinga civil quebrando as leis e possivelmente chegando até o extremo de assassinar ao principal suspeito do DPC.
José se dirigiu de volta ao carro civil que tinha deixado na parte de atrás onde lavavam as ambulâncias e os médicos esperavam durante as pausas no trabalho.
O namorado de Chrissy Andrews, Robert Grady, aliás, Bobby G, tinha alugado um apartamento mensalmente, desde que ela o tinha largado esse verão. Ao redor da uma dessa tarde José tinha batido na porta do chiqueiro encontrando-o vazio, e uma ordem de registro, expedida em apoio às chamadas ao 911 que Chrissy tinha estado fazendo os seis meses passados, para reportar a seu namorado, tinha permitido ordenar ao proprietário que abrisse o lugar.
Tinha encontrado montões de comida apodrecendo-se na cozinha, pratos sujos na sala de estar e roupa suja atirada por todo o dormitório.
Também havia numerosas trouxinhas de celofane com pó branco o qual — Oh Meu Deus! — tinha resultado ser heroína. Quem haveria imaginado?
Ao namorado não o via por nenhuma parte. A última vez que o tinham visto no apartamento, tinha sido a noite anterior ao redor das dez. O vizinho do lado tinha ouvido o Bobby G gritar. E depois uma portada.
E os arquivos que já tinham obtido do fornecedor do serviço de telefonia móvel dele indicavam que realizou uma chamada para o telefone da Chrissy as nove e trinta e seis.
A vigilância de policiais a paisana tinha sido estabelecida imediatamente, e os detetives informavam com regularidade, mas até agora não tinha nenhuma notícia. E José não pensava que fosse haver nenhuma por esse front. Havia boas possibilidades de que o lugar fosse permanecer como um povoado fantasma.
Assim havia duas coisas em seu radar: encontrar o namorado. E seguir a pista da chefe de segurança do ZeroSum.
E seus instintos lhe diziam que seria melhor para todos se ele encontrasse o Bobby G antes que Alex Hess o fizesse.


Capítulo 8


Enquanto Havers consultava o Rehvenge, Ehlena reabastecia um armário de fornecimentos. Que justamente dava a casualidade de estar junto à sala de exame número três. Empilhou bandagens da marca Ace. Fez uma torre com os pacotes plásticos dos cilindros de gaze. Criou uma obra a La Modigliani[21] com caixas de Kleenex, Band-Aids e capas para termômetros.
Estava ficando sem coisas que organizar quando a porta da sala de exame foi aberta emitindo um estalo. Apareceu uma cabeça no corredor.
Havers tinha o aspecto de um verdadeiro médico, com seus óculos com aro de tartaruga marinha, seu cabelo castanho, que penteava com uma risca ao meio, sua gravata-borboleta e a roupa branca. Também se comportava como um, sempre administrando calma e refletividade ao pessoal, as instalações e acima de tudo aos pacientes.
Mas enquanto permanecia de pé nesse corredor não parecia ele mesmo, com o cenho franzido como se estivesse confuso e massageando as têmporas como se lhe doessem.
— Está bem, doutor? — perguntou-lhe.
Ele olhou em sua direção, detrás dos óculos, seu olhar era estranhamente inexpressivo.
— Errr... Sim, obrigado. — sacudindo a si mesmo, entregou-lhe uma receita que tinha em cima do histórico médico de Rehvenge — Eu… Ah… Seria tão amável de trazer a dopamina a este paciente, assim como duas dose de antídoto contra veneno de escorpião? Faria eu mesmo, mas me parece que tenho que conseguir algo para comer. Sinto-me um pouco hipoglicêmico.
— Sim, Doutor. Em seguida.
Havers fez um gesto afirmativo com a cabeça e deixou o histórico do paciente no suporte que havia junto à porta.
— Obrigado, é muito amável.
O doutor se afastou como se estivesse parcialmente em transe.
O pobre macho devia estar exausto. Tinha estado na sala de cirurgia a maior parte das últimas duas noites e seus respectivos dias, atendendo o parto de uma fêmea, a um macho que tinha sofrido um acidente de trânsito, e a um menino pequeno que tinha sofrido graves queimaduras ao tentar alcançar uma caçarola com água fervendo que estava sobre a fornalha. E se somava a isso o fato de que nos dois anos que ela levava na clínica, nunca tinha tirado nem um dia de descanso. Sempre estava de guarda, sempre estava ali.
Parecido a como estava ela com seu pai.
Por isso, sim, ela sabia exatamente quão cansado devia estar.
Na farmácia, entregou a receita ao farmacêutico, que nunca mantinha conversa com ninguém e esse dia tampouco rompeu a tradição. O macho foi para o fundo e retornou com seis caixas de ampolas de dopamina e um pouco de antídoto.
Depois de lhe entregar os medicamentos, deu volta no pôster que dizia, VOLTO EM 15 MINUTOS e saiu pela porta de vaivém do mostrador.
— Espera. — lhe disse, lutando por segurar a carga — Isto não pode estar certo.
O macho já tinha o cigarro e o isqueiro na mão.
— Está.
— Não, isto é… Onde está a receita?
Nenhuma fêmea tinha enfrentado fúria maior que aquela que enfrentou ela ao obstruir o caminho de um fumante que finalmente tinha alcançado a hora de seu descanso. Mas não lhe importava nem um pouco.
— Vá me trazer a receita.
O farmacêutico resmungou todo o caminho com o passar do mostrador, e logo se ouviu um excessivo ruído de papéis, como se talvez tivesse a esperança de poder começar um incêndio ao esfregar as receitas entre si.
— Despachar seis caixas de dopamina. — girou a receita para ela para que pudesse vê-la — Vê?
Ela se aproximou. Bom, certo, dizia seis caixas e não seis ampolas.
— O doutor sempre receita o mesmo a este paciente. Isso e o antídoto.
— Sempre?
A expressão do macho foi “menina me dá um tempo”, e lhe falou lentamente, como se ela não falasse o idioma correntemente.
— Sim. Geralmente é o doutor mesmo que vem procurar. Está satisfeita ou quer ir falar disto com Havers?
— Não… E obrigado.
— Muito castigo.
Voltou a atirar a receita sobre a pilha e apressou o passo para sair dali como se temesse que pudesse lhe ocorrer outra brilhante idéia para um projeto de investigação.
Que tipo de fodida enfermidade requeria cento e quarenta e quatro doses de dopamina? E o antídoto?
A não ser que Rehvenge fosse sair em uma loooooooga viagem fora da cidade. A um lugar hostil que tivesse uma quantidade de escorpiões ao estilo do filme A Múmia.
Ehlena caminhou pelo corredor para a sala de exame, equilibrando precariamente as caixas: assim que apanhava uma que estava caindo, tinha que ir atrás de outra. Golpeou à porta com o pé e logo ao girar o trinco quase faz cair sua carga como se fossem fichas de dominó.
— Isso é tudo? — perguntou Rehvenge em um tom severo.
E que mais queria, uma mala cheia?
— Sim.
Deixou que as caixas caíssem sobre a mesa e logo as arrumou rapidamente.
— Deveria lhe conseguir uma sacola.
— Está bem. Eu dou um jeito.
— Precisa de alguma seringa?
— Tenho muitas. — disse com tom irônico.
Desceu da maca de exame com cuidado e colocou o casaco de zibelina que alongou ainda mais a grande amplitude de seus ombros, até lhe fazer ter um aspecto ameaçador mesmo estando do outro lado da sala. Com o olhar fixo nela, pegou sua bengala e se aproximou devagar, como se estivesse inseguro com respeito a seu equilíbrio… E sua receptividade.
— Obrigado. — lhe disse.
Deus, a palavra era tão simples e tão freqüentemente dita e, entretanto, vinda dele, significava mais do que gostaria.
Na realidade, era menos significativa sua forma de expressá-lo que a expressão de seu rosto: havia certa vulnerabilidade nesse olhar ametista, enterrada muito profundamente.
Ou talvez não.
Talvez fosse ela que se sentisse vulnerável e estava procurando comiseração do macho que tinha provocado esse estado. E nesse momento se sentia muito débil. Com o Rehvenge de pé ao seu lado, recolhendo as caixas da mesa para ir pondo uma por uma nos bolsos ocultos nas dobras de seu casaco de zibelina, sentia-se nua apesar de estar com seu uniforme, desmascarada apesar de que não tinha tido nada ocultando seu rosto.
Afastou a vista, mas o único que via era essa visão.
— Cuide-se… — seu tom de voz era muito profundo — E como já disse, obrigado. Já sabe, por ter cuidado de mim.
— De nada. — disse à mesa de exame — Espero que tenha obtido o que necessitava.
— Algumas coisas em todo caso.
Ehlena não se virou até que ouviu o clique da porta ao fechar-se. Logo, proferindo uma maldição, sentou-se na cadeira que estava frente ao escritório e voltou a perguntar-se se devia ir ao encontro dessa noite. Não só devido a seu pai, mas também devido a…
Oh, bem. Essa era uma linha de pensamento muito construtiva. Por que não rechaçar a um doce menino perfeitamente normal devido a que se sentia atraída por um absoluto impossível de outro planeta onde se usava roupas que valiam mais que carros. Genial.
Se seguisse assim poderia ganhar o Prêmio Nobel de estupidez, uma meta que fixou em sua vida e que não podia esperar para ver cumprida.
Passeou os olhos pela sala enquanto tratava de fortalecer-se para voltar a pôr os pés sobre a terra… Até que ficaram fixos no cesto de papéis. Em cima de uma lata de Coca-Cola, havia um cartão de negócios cor creme feito uma bolinha parcialmente enrugada.
REHVENGE, FILHO DE REMPOON.
Debaixo só havia um número, sem nenhum endereço.
Agachou-se e o pegou, alisando-o contra a mesa. Ao percorrer a frente do cartão com a palma da mão algumas vezes, não encontrou nenhum desenho em relevo em sua superfície, unicamente uma leve depressão. Gravada. É obvio.
Ah, Rempoon. Conhecia esse nome, e agora encontrava sentido no parente próximo do Rehvenge. A pessoa que estava cotada, Madalina, era uma Escolhida renegada que tinha acolhido a outras para lhe dar orientação espiritual, uma amada fêmea de valor de quem Ehlena tinha ouvido falar, mas que nunca tinha conhecido pessoalmente. A fêmea se emparelhou com Rempoon, um macho de uma das linhagens mais antigas e proeminentes. Mãe. Pai.
Então esses casacos de zibelina não eram só uma demonstração de riqueza exibida por um novo-rico. Rehvenge procedia do lugar que Ehlena e sua família estavam acostumadas a formar parte, a glymera… O nível mais elevado da sociedade civil dos vampiros, os árbitros do bom gosto, o bastão da distinção… E o enclave mais cruel de sabichões do planeta, capazes de fazer com que os ladrões de Manhattan parecessem pessoas às quais poderia convidar para jantar.
Desejava-lhe sorte com esse grupo. Deus sabia que ela e sua família não tinham se dado bem com eles: seu pai tinha sido traído e expulso, sacrificado para que um ramo mais poderoso de sua linhagem pudesse sobreviver financeira e socialmente. E esse tinha sido o verdadeiro começo de sua ruína.
Ao sair da sala de exame, jogou o cartão de volta no cesto de papéis e recolheu o histórico médico de seu suporte. Depois de reportar-se com Catya, Ehlena se dirigiu à área de registro para cobrir à enfermeira que estava em seu descanso e ingressar no sistema as breves nota de Havers a respeito de Rehvenge e as receitas entregues.
Não havia menção à enfermidade subjacente. Mas talvez tivesse sido tratada durante tanto tempo que a referência tenha sido feita nos primeiros registros.
Havers não confiava nos computadores e fazia todo seu trabalho no papel, felizmente três anos atrás Catya tinha insistido em conservar uma cópia eletrônica de tudo e também tinha pedido que um grupo de doggens transferisse a totalidade dos históricos médicos de cada um dos pacientes ao servidor. E graças à Virgem Escriba por isso. Quando tinham mudado às instalações novas como resultado das incursões, o único que ficara eram os históricos eletrônicos dos pacientes.
Impulsivamente, percorreu a parte mais recente do histórico de Rehvenge. Nos últimos dois anos as doses de dopamina tinham se incrementando. E o antídoto também.
Saiu da sessão e se reclinou contra a cadeira do escritório, cruzando os braços sobre o peito e fixando a vista no monitor. Quando ativou o descanso de tela, apareceu uma chuva de estrelas que emanavam das profundidades do monitor à velocidade da luz da Millennium Falcon2[22].
Decidiu que ia a esse condenado encontro.
— Ehlena?
Levantou o olhar para Catya.
— Sim?
— Vai chegar um paciente em ambulância. TEA[23], dois minutos. Overdose, com substância desconhecida. Paciente entubado e com respiração assistida. Você e eu assistiremos.
Quando outro membro do pessoal apareceu para encarregar-se dos registros, Ehlena saltou da cadeira e saiu correndo pelo corredor atrás de Catya em direção às salas de emergência. Havers já estava ali, apressando-se a terminar o que parecia um sanduíche de presunto em pão de centeio.
No momento em que estava entregando o prato vazio a um doggen, o paciente entrou pelo túnel subterrâneo que comunicava com as garagens das ambulâncias. Os TEM[24] eram dois vampiros machos vestidos iguais aos paramédicos humanos, porque passar despercebidos era vital para seu encargo.
O paciente estava inconsciente, e permanecia com vida, só graças ao médico que estava junto a sua cabeça bombeando o respirador a um ritmo lento e constante.
— Seu amigo nos ligou, — disse o macho — e prontamente lhe deixou desacordado no beco frio próximo ao ZeroSum. As pupilas não respondem. A pressão arterial é de setenta e dois sobre trinta e oito. O pulso é de trinta e dois.
Que desperdício, pensou Ehlena enquanto se punha a trabalhar.
As drogas urbanas eram um mal totalmente isento de escrúpulos.

Do outro lado da cidade, na parte de Caldwell conhecida como Minimall Sprawlopolis[25], Wrath encontrava o apartamento do lesser com bastante facilidade. O complexo residencial no que se encontrava se chamava Hunterbred Farms[26], e as instalações de edifícios de dois andares de altura estavam decoradas com um motivo eqüino que era tão autêntico como as toalhas de plástico de um restaurante italiano barato.
Não existia nada parecido a uma raça de cavalos de caça. E a palavra fazenda não era habitualmente associada com cem unidades de dormitório embutidas entre uma concessionária Ford/Mercury e um supermercado. Agrário? Sim, com certeza. As extensões de grama estavam perdendo terreno na batalha contra o asfalto por uma margem de quatro a um e resultava evidente que o único lago que podia encontrar ali, tinha sido feito pelo homem.
A maldita coisa tinha borda de cimento como uma piscina, e a fina capa de gelo que o cobria era da cor da urina, como se houvesse um tratamento químico em ação.
Considerando a quantidade de humanos que viviam nas unidades, era surpreendente que a Sociedade Lessening pusesse suas tropas em um lugar tão conspícuo, mas talvez isto só fosse algo temporário. Ou possivelmente todo o puto lugar estivesse repleto de assassinos.
Cada edifício tinha quatro apartamentos agrupados ao redor de uma escada comum e os números engastados na parede exterior estavam iluminados do chão. Resolveu a provocação visual que apresentava utilizando o método, de comprovada qualidade, de toca e decifra. Quando encontrou uma fileira de dígitos em relevo que se parecia com oito um dois escritos em letra itálica, apagou as luzes de segurança com a mente e se desmaterializou para a parte superior das escadas.
O ferrolho da unidade oito um dois era frágil e foi fácil manipulá-lo com a mente, mas não dava nada por certo. De pé, encostado contra a parede, girou o trinco com forma de ferradura e abriu na porta só uma fresta.
Fechou seus inúteis olhos e escutou. Nenhum movimento, só o zumbido de um refrigerador. Considerando que seu ouvido era agudo o suficiente para ouvir a respiração de um camundongo, imaginou que estava seguro e logo depois de colocar uma estrela alojada na palma de sua mão, deslizou para dentro.
Havia boas probabilidades de que houvesse um sistema de segurança piscando em algum lado, mas não planejava ficar tempo suficiente para dançar com o inimigo. Além disso, embora aparecesse o assassino não poderia suscitar uma briga. O lugar fervia de humanos.
Em definitivo, ia procurar as jarras e ponto. Depois de tudo, a sensação de umidade que descia por sua perna não era devido a que tivesse pisado em um atoleiro de lodo na entrada. Estava sangrando dentro de sua bota por causa da batalha liberada no beco, assim, sim, se alguém que cheirasse a bolo de creme e coco misturado com xampu barato aparecesse, ele desapareceria.
Ao menos… Isso é o que havia dito a si mesmo.
Fechando a porta, Wrath inalou, longa e lentamente… E desejou poder fazer uma limpeza na pressão no interior do nariz e no fundo de sua garganta. E apesar, de que começou a fazer arcadas, as notícias eram boas: havia três aromas doces diferentes misturados no ar viciado o que significava que ali ficavam três lessers.
Enquanto se dirigia à parte de trás, onde os aromas enjoativos estavam mais concentrados, perguntava-se que demônios estava acontecendo. Os lessers raramente viviam em grupo porque brigavam entre eles... Que era o que acontecia quando só recrutava a maníacos homicidas. Demônios, o tipo de homens que o Omega escolhia não podia aplacar seu Michael Myers[27] interior só porque ocorrera à Sociedade economizar um pouco na renda.
Entretanto, podia ser que tivessem um Fore-lesser muito forte a cargo.
Depois das incursões do verão, era difícil acreditar que os lessers tivessem escassez de dinheiro, mas que outra razão poderia ter para consolidar as tropas? Por outro lado, os Irmãos, e Wrath tinham estado vendo coisas cada vez menos sofisticadas nas pistolas. Antes quando lutava com os assassinos tinham que estar preparado para qualquer tipo de modificação especial que tivesse saído ao mercado para qualquer tipo de arma. Ultimamente? Tinham lutado contra velhas navalhas escolares, nódulos de metal, e a semana passada até — gulp — uma fodida clava, todas armas baratas que não requeriam balas nem manutenção. E agora estavam brincando de The Walton’s aqui nas “Fazenda-fachada-de-Caçador”? Que merda estava acontecendo?
O primeiro dormitório que encontrou estava marcado por cheiro de perfumes, e encontrou duas jarras junto às camas de um lugar desprovidos de lençóis e mantas.
O seguinte cheirava também a uma variedade distinta de anciã… A isso e algo mais. Uma rápida inspiração disse a Wrath que se tratava de… Cristo, Old Spice[28].
Quem teria imaginado. Com a forma que esses imbecis cheiravam, como se fossem querer acrescentar algo à mistura…
Santa merda.
Wrath inalou profundamente, e fez com que seu cérebro filtrasse algo remotamente doce.
Pólvora.
Seguindo o picante aroma metálico que havia no ar, foi para um armário que tinha o tipo de portas finas que esperaria encontrar em uma casa de bonecas. Ao abri-las o eau d’ammo[29] floresceu, enquanto se agachava e media com as mãos a seu redor.
Caixas de madeira. Quatro. Todas fechadas com pregos.
Tirou conclusão que as armas que havia dentro definitivamente tinham sido disparadas, mas não recentemente. O que indicava que esta bem poderia ser uma compra SMC[30].
Não obstante ser de segunda mão não dava saber quem tinha sido o dono anterior.
Fosse como fosse, não ia deixar ali. O esconderijo ia ser usado pelo inimigo contra seus civis e seus irmãos, por isso era necessário fazer voar todo o apartamento antes de permitir que essas armas fossem utilizadas na guerra.
Mas informaria isto à Irmandade? Seu segredo seria revelado. O problema era, que levar essas caixas nas costas se por acaso só era uma situação de “seguro-como-não”? Não tinha carro, e não havia forma de se desmaterializar com esse tipo de peso nas costas embora mesmo se o separasse em cargas menores.
Wrath se afastou do armário e fez um inventário do cômodo usando o tato tanto quanto a vista. Oh, bem. À esquerda havia uma janela.
Proferindo uma maldição tirou seu celular e o abriu…
Alguém estava subindo a escada.
Ficou imóvel e fechando os olhos se concentrou ainda mais. Humano ou lesser?
Só um lhe preocupava.
Wrath se inclinou para um lado e deixou as duas jarras das que se apropriou em uma gaveta, encontrando, naturalmente, a terceira e um frasco de Old Spice. Sustentando na mão a calibre quarenta, firmou-se sobre seus shitkickers[31] e apontou a arma para o curto corredor, diretamente para a porta de entrada.
Houve um tinido de chaves, logo um “clang” como se lhe tivesse caído da mão.
A maldição foi de uma mulher.
Enquanto seu corpo se afrouxava, deixou que sua arma caísse sobre sua coxa. A Sociedade, igual à Irmandade, aceitava só machos em suas filas, assim que esse não era nenhum assassino jogando palitos chineses com as chaves.
Ouviu como fechava a porta do apartamento que estava em frente, e o repentino som surround da TV que alcançou um volume tão alto que pôde escutar a repetição do The Office[32].
Tinha gostado deste episódio. Era no que se perdia o taco de beisebol…
Alguns gritos chegaram até ele, gerados pela comédia da situação.
Sim. Agora estava voando o taco de beisebol.
Com a mulher certamente ocupada, voltou a enfocar-se, mas permaneceu onde estava, rezando para que o som de “bem-vindo-a-casa” fosse um tema que o inimigo ouvisse e seguisse seu caminho. Não obstante, ficar como uma estátua respirando levianamente não melhorou a proporção de lessers que havia no lugar. Uns quinze, talvez vinte minutos depois, ainda seguia rodeado de absolutamente nenhum assassino.
Mas não tinha sido uma perda total. Estava captando o agradável murmúrio de uma pequena parte da comédia, era a cena de Dwight e o taco de beisebol na cozinha do The Office.
Era hora de mover-se.
Chamou o Butch, deu ao Irmão o endereço, e disse ao polícia que conduzisse como se seu pé fosse feito de pedra. O certo era, Wrath queria tirar as armas dali antes que chegasse alguém. Mas além de seu irmão para ajudar a tirar as caixas rapidamente, Butch podia levá-las, e assim talvez Wrath pudesse ficar nas imediações pelo lapso de outra hora mais ou menos.
Para passar o tempo, revisou o apartamento, medindo as superfícies com as palmas das mãos em uma tentativa de encontrar computadores, telefones, ou mais condenadas armas.
Acabava de retornar ao segundo dormitório quando algo ricocheteou contra a janela.
Wrath voltou a desencapar sua quarenta e encostou as costas à parede próxima à janela. Com a mão, tirou o ferrolho e abriu a parte de vidro apenas uma fresta.
O acento de Boston do policial foi quase tão sutil como um alto-falante.
— Oi Rapunzel, vai deixar cair seu fodido cabelo?
— Shh, quer acordar os vizinhos?
— Como se fossem ouvir algo com o som dessa TV? Hey, esse é o episódio do taco de beisebol…
Wrath deixou Butch falando consigo mesmo, e voltando a guardar a pistola em seu quadril, abriu a janela amplamente, e logo se dirigiu ao armário. A única advertência que deu ao polícia enquanto fazia voar a caixa de noventa quilos de peso foi:
— Prepare-se, Effie.
— Jesus Bendi… — um grunhido interrompeu o juramento.
Wrath pôs a cabeça pela janela e sussurrou:
— Supõe-se que é um bom católico. Isso não foi uma blasfêmia?
O tom de Butch foi como se alguém tivesse urinado em sua cama.
— Acaba de me atirar com meio carro, sem mais advertência que uma fala da chata Sra. Doubtfire[33].
— Amadureça e aceite.
Wrath se encaminhou para o armário, enquanto o polícia amaldiçoava todo o caminho de ida para o Escalade, o qual tinha engenhado para estacionar debaixo de uns pinheiros.
Quando Butch retornou, Wrath lhe lançou outra.
— Faltam dois.
Ouviu-se outro grunhido e um falatório.
— Foda-me.
— Não nesta vida.
— Muito bem. Foda-se.
Quando a última caixa esteve embalada como um bebê dormindo nos braços de Butch, Wrath apareceu.
— Adeusinho.
— Não quer que te leve de volta à mansão?
— Não.
Houve uma pausa, como se Butch estivesse esperando que Wrath lhe informasse como tinha intenções de ocupar as poucas horas que ficavam da noite.
— Vá pra casa. — indicou ao polícia.
— O que digo aos outros?
— Que é um gênio e que encontrou as caixas com armas quando estava caçando.
— Está sangrando.
— Está começando a me encher que todos me digam isso.
— De acordo então, deixa de te comportar como um imbecil e vá ver a Doutora Jane.
— Acaso não me despedi de você já?
— Wrath…
Wrath fechou a janela, foi para a gaveta, e meteu as três jarras na jaqueta.
A Sociedade Lessening queria reclamar os corações de seus mortos tanto quanto os Irmãos, por isso nem bem um assassino se inteirava de que um de seus homens tinha caído, averiguavam o endereço do lesser e se dirigiam ali. Certamente algum dos bastardos que tinha matado essa noite tinha pedido reforços durante o processo. Tinham que estar cientes.
Tinham que vir.
Wrath escolheu a melhor posição defensiva, que era no dormitório do fundo, e apontou seu clique-clique-Bang-Bang[34] para a porta dianteira.
Não sairia dali até que fosse absolutamente necessário.


Capítulo 9


Nos subúrbios da cidade de Caldwell podia se encontrar fazendas ou bosques, e, além disso, havia duas variedades de fazendas, as leiteiras ou as que cultivavam trigo… Predominando as leiteiras, dado o curto período de desenvolvimento necessário. Os bosques eram também binários, e tinha para escolher entre os de pinheiros que precediam os flancos das montanhas, e os de carvalhos que levavam aos pântanos do Rio Hudson.
Sem importar a paisagem, campestre ou industrializado, encontra estradas que eram pouco transitadas, casas que distavam quilômetros umas das outras e, vizinhos que eram tão solitários e de gatilho fácil como qualquer solitário pudesse desejar.
Lash, filho de Omega, estava sentado a uma mesa dobrável de cozinha em uma cabana de um só cômodo situada em uma das áreas cobertas com bosques. Em frente a ele sobre a gasta superfície de pinheiro estavam estendido todos os registros financeiros da Sociedade Lessening que tinha sido capaz de encontrar, imprimir ou descarregar em seu computador portátil.
Isto era uma puta merda. Estendeu a mão e recolheu um extrato do Banco Evergreen que tinha lido uma dúzia de vezes. A maior conta da Sociedade tinha cento e vinte e sete mil, quinhentos e quarenta e dois dólares e quinze centavos. As demais, que estavam alojadas em outros seis bancos, incluindo o Glens Falls National e o Farrel Bank & Trust, tinham saldos entre vinte dólares e vinte mil.
Se isto era tudo que a Sociedade tinha, estavam balançando-se sobre a borda a ponto de desmoronar-se em bancarrota.
As incursões feitas durante o verão tinham produzido alguns bons benefícios em forma de uma pilhagem de antiguidades e prata, mas acessar a esses recursos era complicado porque implicava um monte de contato humano. E tinham se apropriado de algumas contas financeiras, mas, uma vez mais, extrair dinheiro dos bancos humanos era uma confusão complicada. Como tinha aprendido do modo mais duro.
— Querem um pouco mais de café?
Lash levantou o olhar até seu número dois e pensou que era um milagre que o senhor D ainda permanecesse com ele. Quando Lash tinha entrado pela primeira vez neste mundo, logo depois de ter renascido por obra de seu verdadeiro pai, o Omega, havia se sentido extraviado, havendo convertido o inimigo em sua família. O senhor D tinha sido seu guia, embora como todos os mapas de turistas, Lash tinha assumido que o bastardo deixaria de ter utilidade quando o novo terreno tivesse sido aprendido pelo condutor.
Não foi assim. O pequeno texano que tinha sido o instrutor de Lash era agora seu discípulo.
— Sim, — disse Lash — e que tal um pouco de comida?
— Sim, senhor. Conseguirei um pouco de bacon gordurento agora mesmo, e esse queijo que gosta.
O café foi servido generosa e lentamente na xícara de Lash. Em seguida lhe pôs açúcar, e a colher utilizada para mexer produziu um suave tinido. O senhor D teria limpado alegremente o traseiro de Lash se tivesse pedido, mas ele não era uma joaninha. O pequeno imbecil podia matar como ninguém no negócio, era o boneco Chucky dos assassinos. Grande cozinheiro de comida rápida, e além disso fazia panquecas altas, esponjadas como um travesseiro.
Lash consultou seu relógio. O Jacob & CO. Estava coberto de diamantes, e à luz tênue da tela do computador pareciam como mil pontos de luz. Mas a coisa era um falso substituto que tinha conseguido no EBay. Queria outro autêntico exceto... Jesus Cristo... Não podia permitir-se. Claro que tinha conservado todas as contas de seus “pais” depois de matar o casal de vampiros que lhe tinham criado como se fosse seu filho, mas embora houvesse uma boa quantidade de verdes dólares nesses sacos, era reticente a gastar algo disso em frivolidades.
Tinha faturas a pagar. Como as hipotecas, armas, munições, roupas, aluguel e arrendamento de carros. Os lessers não comiam, mas consumiam um montão de recursos, e o Omega não se preocupava com o efetivo. Mas claro, ele vivia no inferno e tinha a habilidade de conjurar algo do ar mesmo. De uma comida quente às capas Liberace com que gostava de cobrir seu negro e sombrio corpo.
Lash odiava admitir, mas tinha a sensação de que seu verdadeiro pai era um pouco folgado. Nenhum autêntico homem estaria totalmente preso nessa merda cintilante.
Ao elevar sua xícara de café, seu relógio brilhou e ele franziu o cenho.
Seja como for, era um símbolo de status.
— Seus meninos chegam tarde. — se queixou.
— Estão no caminho. — o senhor D se levantou e abriu a geladeira dos anos setenta. Que não só tinha uma porta que chiava e era da cor de uma azeitona podre, mas sim babava como um cão.
Isto era fodidamente ridículo. Precisavam modernizar suas guaridas. E senão todas, ao menos seu quartel general
Ao menos o café era perfeito, embora guardasse isso para si mesmo.
— Eu não gosto de esperar.
— Estão a caminho, não se preocupe. Três ovos na omelete?
— Quatro.
Enquanto uma série de rangidos e estalos se difundiam através da cabana, Lash golpeou ligeiramente a ponta de seu Waterman  sobre o resumo do Evergreen. Os gastos da Sociedade, incluindo as faturas de celulares, conexões de internet, aluguéis/hipotecas, armas, roupa, e carros giravam facilmente em torno de uns cinqüenta mil ao mês.
Quando se colocou pela primeira vez em seu novo papel, esteve endemoniadamente seguro de que alguém em suas filas estava cortando a maçã. Mas durante meses tinha estudado as coisas cuidadosamente, e não havia nenhum Kenneth Lay  que ele pudesse encontrar. Era uma simples questão de contabilidade, não de fraude de livros ou desvio: os custos eram mais altos que os lucros. E ponto.
Estava fazendo o que podia para armar a suas tropas, inclusive tinha chegado tão baixo para comprar quatro caixas de armas de motoqueiros que tinha conhecido na prisão durante o verão. Mas não era suficiente. Seus homens necessitavam algo melhor que Red Ryders reabilitados para acabar com a Irmandade.
E já que estava com a lista de desejos, precisava de mais homens. Tinha acreditado que os motoqueiros seriam um bom poço de recrutamento, mas tinham provado ser muito coesivos. Apoiando-se em seus entendimentos com eles, sua intuição lhe dizia que tinha que atrair a todos ou a nenhum... Porque estava claro como a merda que se escolhia, os escolhidos voltariam para sua casa-clube e contariam a seus colegas sobre seu novo entretenimento matando vampiros. E se recrutava a todos, depois correria o risco de que se rebelassem contra sua autoridade.
O recrutamento um por um ia ser a melhor estratégia, mas não era como se tivesse tempo para fazer nada disso. Entre as sessões de treinamento com seu pai — as quais, apesar de suas críticas ao vestuário de papai, estavam provando ser monstruosamente úteis — seu seguimento dos acampamentos de persuasão, saque de armazéns, e tentar conseguir que seus homens se concentrassem no trabalho que tinham entre mãos, não ficava nem sequer uma hora livre ao dia.
Assim que a merda se estava pondo crítica: para ser um bem-sucedido líder militar se requeriam três coisas, os recursos e os recrutas eram duas delas. E embora ser filho de Omega lhe proporcionava muitas vantagens, o tempo era o tempo, não se detinha por nenhum homem, nem vampiro, e tampouco por nenhuma semente do mal.
Considerando o estado das contas, sabia que tinha que começar com os primeiro recursos. Depois poderia ocupar-se dos outros dois.
O som de um carro estacionando junto à cabana lhe fez pôr a palma sobre uma quarenta e o senhor D foi pegar seu Magnum 357. Lash manteve seu ferro sob a mesa, mas o senhor D ficou todo fanfarrão com o seu, segurando a peça no alto com o braço estendido em uma linha reta desde seu ombro.
Quando ouviu o chamado, Lash disse afiadamente:
— Será melhor que seja quem acredito que é.
O lesser respondeu do modo correto.
— Sou eu, e o senhor A e seu encargo.
— Entre. — disse o senhor D, sempre tão bom anfitrião, apesar de que conservou sua 357 levantada e pronta para a ação.
Os dois assassinos que atravessaram a porta eram os últimos dos macilentos, o casal final de veteranos que tinham estado na Sociedade o suficiente para ter perdido sua coloração de cabelo e olhos original.
O humano que foi arrastado para dentro era um tipo mirrado de um metro e oitenta de altura sem nada particularmente interessante, um menino branco de vinte anos com um rosto comum e entradas que seriam um problema em outro par de anos. O aspecto de playboy, e a atitude de “quem lhe importa?” explicava além de toda dúvida por que se vestia como fazia: com uma jaqueta de couro com uma águia bordada à costas, uma camisa Fender Rock & Roll Religion, correntes pendurando dos jeans e tênis Ed Hardy.
Triste. Realmente triste. Era como pôr aros de vinte e quatro polegadas em um Toyota Camry. E se o menino estivesse armado? Sem dúvida estava com uma navalha Suíça que usava principalmente como palito de dentes.
Mas não necessariamente tinha que ser um lutador para ser de utilidade. Lash tinha desses. Deste PDM[35] necessitava algo mais.
O homem olhou à boas-vindas oferecida pela Magnum do senhor D e olhou para trás, em direção à porta, como se perguntando se poderia correr mais rápido que uma bala. O senhor A resolveu a questão fechando a porta com todos eles dentro e ficando diante da saída.
O humano olhou o Lash e franziu o cenho.
— Hey... Conheço você. Da prisão.
— Sim, claro. — Lash permaneceu sentado e sorriu um pouco — Então, quer saber os prós e os contras desta reunião?
O humano tragou e voltou a concentrar-se no canhão do senhor D.
— Sim. Claro.
— Foi fácil de encontrar. Tudo o que meus homens tiveram que fazer foi ir ao Screamer's e esperar um momento e... Aqui está. — Lash se recostou em sua cadeira e o assento de vime rangeu. Quando o olhar do humano se moveu inquieto, teve a tentação de lhe dizer que se esquecesse do som e se preocupasse com a quarenta que tinha debaixo da mesa apontada às jóias da família — Você se manteve fora de problemas desde que te vi na prisão?
O humano sacudiu a cabeça e disse:
— Sim.
Lash riu.
— Quer tentar de novo? Não está em sincronia.
— Quero dizer, ainda me mantenho em meu negócio, mas não me pegaram.
— Bom, bem. — quando os olhos do homem voltaram a saltar para o senhor D, Lash riu — Se eu fosse você, ia querer saber por que me trouxeram aqui.
— Ah... Sim. Isso seria genial.
— Minhas tropas estiveram lhe observando.
— Tropas?
— Tem um negócio firme na cidade.
— Ganho um bom dinheiro.
— Você gostaria de fazer mais?
Agora o humano olhou ao Lash, com um olhar ávido e lisonjeador nos olhos.
— Quanto mais?
O dinheiro era realmente um grande motivador, não?
— Faz bem para um vendedor em pequenas quantidades, mas neste momento é de pouca subida. Felizmente para você, estou de humor para fazer um investimento em alguém como você, alguém que necessite um empurrão para passar ao nível seguinte. Quero que seja algo mais que um vendedor em pequenas quantidades, quero te converter em um intermediário com as pessoas importantes.
O humano levou uma mão ao queixo e a desceu por seu pescoço como se tivesse que despertar seu cérebro massageando a garganta. No silêncio, Lash franziu o cenho. Os nódulos do tipo estavam esfolados e faltava a pedra do anel barato do Instituto Secundário de Caldwell.
— Isso parece interessante. — murmurou o humano — Mas... Tenho que pensar um pouco.
— Como não. — cara, se esta era uma tática negociadora, Lash estava mais que preparado para assinalar que havia outros cem distribuidores menores que saltariam ante este tipo de trato.
Logo lhe faria um gesto com a cabeça ao senhor D e o assassino procederia a colocar uma bala na jaqueta de águia embaixo das exageradas entradas.
— Eu, ah, não posso voltar a Caldie[36]. Durante um tempo.
— Por quê?
— Não está relacionado com a distribuição de drogas.
— Tem algo a ver com seus nódulos esfolados? — o humano escondeu rapidamente o braço depois disso — Foi o que pensei. Pergunta: se tem que te manter na clandestinidade, que demônios fazia no Screamer's esta noite?
— Digamos que queria fazer uma compra para mim mesmo.
— É idiota se tomar o que vende. — e não um bom candidato para o que Lash tinha em mente. Não queria fazer negócios com um idiota.
— Não se tratava de drogas.
— Uma nova identidade?
— Talvez.
— Conseguiu o que procurava? No clube?
— Não.
— Posso te ajudar com isso. — a Sociedade tinha sua própria plastificadora, pelo amor de Deus — E aí vai minha proposta. Meus homens, os que tem a sua esquerda e atrás de você, trabalharão contigo. Se não puder ser o homem que dá a cara na rua, pode conseguir a mercadoria e eles podem movê-la depois de que lhes mostre como funciona tudo. — Lash olhou o Senhor D — Meu café da manhã?
O Senhor D deixou a arma junto ao chapéu de cowboy que tirava só quando estava dentro de casa e depois avivou a chama sob uma caçarola que havia sobre o pequeno fogão.
— De que tipo de dinheiro estamos falando? — perguntou o homem.
— Cem dos grandes como primeiro investimento.
Os olhos do homem pareciam máquinas registradoras, todo “ding-ding-ding” de excitação.
— Bom... Merda, isso é suficiente para começar o jogo. Mas quanto há para mim?
— Repartiremos os lucros. Setenta para mim. Trinta para você. De todas as vendas.
— Como sei que posso confiar em você?
— Não sabe.
Quando o Senhor D pôs um pouco de bacon ao fogo, o chiado e o cheiro encheu a casa e Lash sorriu ante o som.
O humano olhou a seu redor, e virtualmente se podiam ler seus pensamentos: cabana no meio do nada, quatro tipos contra ele, ao menos um dos quais tinha uma arma capaz de converter uma vaca em hambúrguer.
— Bem. Sim. De acordo.
O que era, é obvio, a única resposta.
Lash pôs a trava em sua arma, e quando pousou sua automática sobre a mesa, os olhos do humano se arregalaram.
— Vamos, como não pensou que te deixava coberto? Por favor.
— Sim. Ok. Certo.
Lash se levantou e rodeou a mesa em direção ao homem. Enquanto estendia a mão, disse:
— Como se chama, Jaqueta de Águia?
— Nick Carter.
Lash riu com força.
— Tenta de novo, imbecil. Quero o autêntico.
Bob Grady. Mas me chamam de Bobby G.
Apertaram as mãos e Lash apertou forte, esmagando seus nódulos machucados.
— Alegro-me alegro de fazer negócios com você, Bobby. Eu sou Lash. Mas pode me chamar de Deus.
******
John Matthew examinou as pessoas da área VIP do ZeroSum não porque estivesse procurando paquera, como Qhuinn fazia, nem porque estivesse perguntando com quem Qhuinn ia querer paquerar, como Blay fazia.
Não, John tinha suas próprias fixações.
Normalmente Xhex aparecia a cada meia hora, mas fazia um momento seu segurança tinha se aproximado e ela partiu com pressa, e desde esse momento tinha desaparecido.
Quando uma ruiva passou brandamente junto a eles, Qhuinn se moveu no banco, sua bota de combate tamborilando sob a mesa. A mulher humana media ao redor de um metro e setenta e tinha as pernas de uma gazela, longas, frágeis e encantadoras. E não era uma profissional... Ia de braço com um homem com aspecto de homem de negócios.
Isso não significava que não se entregasse por dinheiro, mas o fazia em uma modalidade mais legal chamada relação.
— Merda. — resmungou Qhuinn, seus olhos desiguais eram os de um predador.
John deu um tapinha na perna de seu colega e na Linguagem de Sinais Americano disse:
Olhe, por que não vai atrás com alguém. Está me enlouquecendo com esse estalo continuado.
Qhuinn assinalou a lágrima que tinha tatuada sob o olho.
— Supõe-se que não devo te deixar. Nunca. Esse é o ponto de ter um ahstrux nohstrum.
E se não fizer sexo logo, vai ser inútil.
Qhuinn observou como a ruiva arrumava a saia curta para poder sentar-se sem desdobrar o que sem dúvida era nada menos que uma depilação brasileira com cera (assim chamada, pois é uma depilação quase total) .
A mulher passeou a vista pelo lugar sem demonstrar interesse... Até que chegou ao Qhuinn. No momento em que lhe viu, seus olhos se iluminaram como se tivesse encontrado uma promoção na Neiman Marcus. Não lhe surpreendeu. A maioria das mulheres e fêmeas fazia o mesmo, e era compreensível. Qhuinn se vestia simplesmente, mas seu estilo era o de um cara duro: camisa negra metida em Z-Brands azuis escuro. As botas negras de combate. Piercings de metal negro percorrendo toda a longitude de uma de suas orelhas. O cabelo penteado formando picos negros. E recentemente tinha furado o lábio inferior no centro colocando um aro negro.
Qhuinn parecia o tipo de indivíduo que mantinha sua jaqueta de couro no colo porque levava armas nela.
O que fazia.
— Não, estou genial. — resmungou Qhuinn antes de terminar sua Corona — As ruivas não me caem bem.
Blay afastou o olhar bruscamente, assumindo um repentino e fingido interesse por uma morena. A verdade era que estava interessado em uma só pessoa, e essa pessoa lhe tinha rechaçado tão sólida e amavelmente como só um melhor amigo podia.
Era evidente, muito claro e bem certo que ao Qhuinn não fossem as ruivas.
Quando foi a última vez que esteve com alguém? Gesticulou John.
— Não sei. — Qhuinn pediu por gestos outra rodada de cervejas — Um tempo.
John tentou recordar e se deu conta que não tinha sido desde... Cristo, do verão, com essa garota da Abercrombie & Fitch. Considerando que Qhuinn costumava fazê-lo ao menos com três pessoas em uma noite, isso era um inferno de seca, e era difícil imaginar que uma dieta restrita a base de clímax conseguidos mediante masturbação fosse contentar. Merda, inclusive quando se alimentava das Escolhidas, tinha estado mantendo as mãos para si mesmo, apesar do fato de que suas ereções cresciam até chegar a lhe provocar suores frios. Por outro lado, os três se alimentavam da mesma fêmea ao mesmo tempo, e por muito que Qhuinn não tivesse problema algum em ter audiência, conservava as calças em seu lugar por deferência a Blay e John.
Sério, Qhuinn, que demônios vai me acontecer? Blay está aqui.
— Wrath disse que sempre contigo. Assim devo estar. Sempre. Contigo.
Acredito que está levando isso muito a sério. Como que, muito a sério.
Do outro lado da seção VIP, a gazela ruiva se acomodou em seu assento de forma que os atributos que tinha mais abaixo da cintura se desdobrassem completamente, suas suaves pernas emergiram de debaixo da mesa e ficaram a plena vista de Qhuinn.
Esta vez quando o cara se moveu, foi bastante óbvio que estava reacomodando algo duro em seu colo. E não era uma de suas armas.
Pelo amor de Deus, Qhuinn, não digo que tenha que ser ela. Mas temos que conseguir que alguém se ocupe de...
— Disse que estava bem. — interveio Blay — Deixe-o em paz.
— Há um modo. — os olhos desiguais de Qhuinn se voltaram para John — Poderia vir comigo. Não é que vamos fazer nada, sei que não vai. Mas você também poderia conseguir alguém. Se quiser. Poderíamos fazê-lo em um dos banheiros privados, e você poderia ficar com o reservado e dessa forma poderia ver você. Você tem a palavra, ok? Não voltarei a puxar o assunto.
Enquanto Qhuinn afastava o olhar com atitude despreocupada e casual, se fazia difícil não simpatizar com o cara. Tanto a consideração, como a rudeza, vinha em um montão de variedades diferentes, e a gentil oferta de ter uma agradável sessão de sexo por partida dupla era uma espécie de amabilidade: Qhuinn e Blay sabiam o motivo pelo qual apesar de já ter passado oito meses da transição de John, não tinha estado com uma fêmea. Sabiam o motivo e ainda assim seguiam saindo com ele.
Deixar cair à bomba que John tinha estado ocultando tinha sido a patada final de Lash antes de morrer.
Tinha sido a razão pela que Qhuinn tinha matado ao estúpido.
Quando a garçonete trouxe uma nova rodada de cervejas, John olhou à ruiva e, para sua surpresa, lhe sorriu quando lhe pegou olhando.
Qhuinn riu baixinho.
— Possivelmente não sou o único que gosta.
John levou a Corona à boca e tomou um gole para ocultar seu rubor. A questão era, que desejava ter sexo e, como Blay, desejava-o com alguém em particular. Mas tendo perdido já uma ereção diante de uma fêmea nua e disposta, não tinha nenhum apuro em tentar de novo, especialmente não com a pessoa que lhe interessava.
Demônios. Não. Xhex não era o tipo de fêmea diante da qual quisesse nem sequer te engasgar com uma asa de frango. Desinflar porque foi muito covarde para entrar em ação? Seu ego nunca voltaria a ser o mesmo...
Uma onda de inquietação na multidão fez com que deixasse de lado todos os “pobrezinho de mim” e se endireitasse no assento.
Um cara de olhos selvagens estava sendo escoltado através da área VIP por dois enormes seguranças, cada um com uma mão sobre a parte superior de seu braço. Estava sapateando sobre seus sapatos caros, com seus pés mal tocando o chão, e sua boca dançava de igual modo, parecendo uma imitação de Fred Astaire, embora John não pudesse ouvir o que estava dizendo por cima da música.
O trio entrou no escritório privado da parte de trás.
John acabou sua Corona e olhou fixamente a porta enquanto se fechava. Ocorriam coisas más às pessoas que eram levadas ali. Especialmente se eram arrastados por um par de seguranças.
Repentinamente, um silêncio atenuou todo o bate-papo da área VIP, fazendo com que a música parecesse estar muito alta.
John soube quem era antes de virar a cabeça.
Rehvenge tinha entrado pela porta lateral, sua entrada foi silenciosa, mas tão óbvia como o estalo de uma granada. No meio de seus clientes bem vestidos com suas bonecas de braço, as garotas com seus encantos expostos para ser comprados e as garçonetes correndo com as bandejas, ele diminuía o tamanho do espaço, e não só porque era um macho enorme vestido com um sobretudo de zibelina, mas sim pela forma em que olhava a seu redor.
Seus brilhantes olhos cor ametista viam todos e não se preocupavam com ninguém.
Rehv... Ou o Reverendo, como lhe chamava a clientela humana... Era um senhor da droga e um alcoviteiro que não dava uma merda pela vasta maioria. O que significava que era capaz de, e freqüentemente fazia, algo que lhe desse um real ganho.
Especialmente a caras do estilo do bailarino.
Caralho, a noite ia terminar mal para esse cara.
Quando Rehv passou a seu lado, saudou com a cabeça ao John e os meninos, e eles lhe devolveram a saudação, elevando suas Coronas em deferência. A questão era que Rehv era uma espécie de aliado da Irmandade, tendo sido nomeado leahdyre do conselho da glymera depois dos assaltos... Porque era o único desses aristocratas com culhões para permanecer em Caldwell.
Assim que lhe importava muito poucas coisas e estava a cargo de um diabólico montão de coisas.
John girou para a corda de veludo, sem sequer incomodar-se em dissimular. Certamente isto significava que Xhex tinha que estar...
Apareceu na porta da seção VIP, com o aspecto de um trilhão de dólares, ao menos em sua opinião: quando se inclinou ao redor de um dos seguranças para que o cara pudesse lhe sussurrar ao ouvido, seu corpo estava tão tenso que os músculos de seu estômago se insinuavam através da camiseta sem mangas que lhe ajustava como uma segunda pele.
Falando de revolver-se no assento, agora era ele que tinha problemas de posição.
Entretanto, enquanto ela caminhava para o escritório privado de Rehv, sua libido se gelou. Nunca tinha sido do tipo que sorria muito, mas quando passou a seu lado, estava sombria. Igual ao Rehv.
Evidentemente, estava acontecendo algo, e John não pôde evitar o impulso ao estilo “cavalheiro-de-armadura-brilhante” que acendeu em seu peito. Mas vamos, Xhex não precisava de um salvador. Por acaso era do tipo de pessoa que estaria no cavalo, lutando contra o dragão.
— Parece um pouco apertado aí. — disse Qhuinn baixinho quando Xhex entrou no escritório — Mantém minha oferta em mente, John. Não sou o único que sofre, verdade?
— Se me desculpam. — disse Blay, ficando em pé e pegando sua Red Dunhills e seu isqueiro dourado — Preciso de um pouco de ar fresco.
O macho tinha começado a fumar recentemente, um hábito que Qhuinn desprezava apesar do fato de que os vampiros não podiam desenvolver câncer. Entretanto, John o entendia. A frustração devia se resolver de algum modo, e só até certo ponto podia liberá-la a sós em seu dormitório ou com seus amigos na sala de musculação.
Demônios, todos eles tinham ganhado músculos nos últimos três meses, seus ombros, braços e coxas tinham ultrapassado a sua roupa. Fazia que um cara pensasse em dar razão aos lutadores a respeito de não ter nada de sexo antes dos torneios. Se seguissem ganhando músculos assim, iam acabar parecendo uma turma de lutadores profissionais.
Qhuinn baixou o olhar a sua Corona.
— Quer sair daqui? Por favor, me diga que quer sair daqui.
John desviou o olhar para a porta do escritório de Rehv.
— Ficamos. — resmungou Qhuinn enquanto fazia gestos à garçonete, que se aproximou do momento — Vou precisar de outra destas. Ou talvez uma caixa.


CONTINUA

Nas sombras da noite em Caldwell, Nova Iorque, desenrola-se uma guerra letal entre os vampiros e seus assassinos. Também existe uma Irmandade secreta que não se compara a nenhuma outra que tenha existido. Agora, enquanto os guerreiros vampiros defendem a sua raça daqueles que querem exterminá-los, a lealdade de um homem para a Irmandade será posta a prova — e sua perigosa natureza será revelada...
Rehvenge sempre manteve distância da Irmandade, mesmo que sua irmã esteja casada com um de seus membros, pois guarda um letal secreto que poderia fazer dele um grande lastro em sua guerra contra os restrictores. E enquanto as conspirações dentro e fora da Irmandade ameaçam revelar a verdade sobre o Rehvenge, ele se aproximará da única luz que ilumina seu mundo de escuridão e que trata de sustentá-lo, Ehlena, uma vampira que nunca conheceu a corrupção e traição... a única pessoa que pode salvá-lo da destruição eterna.


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Capítulo 1


— O rei deve morrer.
Quatro palavras, algumas sílabas. Separadas não eram nada em especial. Juntas? São um mau agouro de todo tipo de merda. Assassinato. Deslealdade. Traição.
 Morte.
No tenso momento que houve logo depois de que as dissessem, Rehvenge se manteve em silêncio deixando que o quarteto permanecesse suspenso no carregado ar do escritório, quatro pontas de uma sinistra e maligna bússola com a qual estava intimamente familiarizado.
— Tem alguma resposta? – perguntou Montrag, filho de Rehm.
— Não.
Montrag piscou e brincou com a gravata de seda que tinha posta no pescoço. Como a maioria dos membros da glymera, tinha ambos os sapatos de veludo firmemente plantados na seca e rarefeita areia de sua classe. O que simplesmente significava que era francamente pedante, arrogante em todo aspecto. Com sua jaqueta de smoking, e suas impecáveis calças… Merda, na verdade eram polainas? Parecia saído das páginas de uma Vanity Fair. De uns cem anos atrás. E no que se referia à política, com sua infinidade de atitudes condescendentes e suas brilhantes e fodidas idéias era como Kissinger sem um presidente: toda análise sem nada de autoridade o que deveria explicar esta reunião não é assim?
— Não te detenha agora. – disse Rehv — Já que você saltou do edifício. A aterrissagem não será mais suave.
Montrag franziu o cenho.
— Não posso ver isto com a mesma rapidez que você.
— Quem está rindo?
Um golpe na porta do escritório fez com que Montrag girasse a cabeça, tinha o perfil de um cavalheiro irlandês: todo nariz.
— Entre.
A doggen que respondeu à ordem entrou lutando com o peso do serviço de prata que carregava. Com uma bandeja de ébano do tamanho de um alpendre nas mãos começou a atravessar o cômodo, encurvada devido a carga.
Até que levantou a cabeça e viu Rehv.
Congelou-se como uma fotografia instantânea.
— Tomaremos o chá aqui. — Montrag apontou à mesa que havia no meio dos dois sofás de seda nos que estavam sentados — Aqui.
A doggen não se moveu, ficou olhando fixamente o rosto de Rehv.
— O que foi? — perguntou Montrag quando as xícaras começaram a tremer, e um som tilintante começou a surgir da bandeja — Ponha nosso chá aqui, agora.
A doggen inclinou a cabeça, murmurou algo, e se adiantou lentamente, pondo um pé diante do outro como se estivesse se aproximando de uma serpente enroscada. Ficou tão afastada de Rehv como pôde, e depois de deixar o serviço, suas trementes mãos mal eram capazes de pôr as xícaras sobre os pires.
Quando foi agarrar o bule, era evidente que ia derramar a merda por todos os lados.
— Deixe que eu faça. — disse Rehv, esticando a mão.
Quando a doggen fez um movimento brusco para afastar-se dele, o bule virou na mão e o chá começou uma queda livre.
Rehv apanhou a prata quente entre suas palmas.
— O que você fez! — exclamou Montrag, levantando-se de um salto do sofá.
A doggen se encolheu, levando as mãos à cara.
— Sinto muito, amo. Verdadeiramente, o…
— Oh, te cale, e nos traga um pouco de gelo…
— Não é sua culpa. — Rehv desviou a mão tranqüilamente para o bule e começou a servir — E eu estou perfeitamente bem.
Ambos o olharam como se estivessem esperando que desse um salto e começasse a sacudir o traseiro ao ritmo de ow—ow—ow.
Deixou o bule de prata e olhou os pálidos olhos de Montrag.
— Um torrão. Ou dois?
— Posso… Posso te oferecer algo para essa queimadura?
Sorriu, mostrando as presas a seu anfitrião.
— Estou perfeitamente bem.
Montrag pareceu ofendido pelo fato de não poder fazer nada, e voltou seu desgosto para a criada.
— É uma desgraça absoluta. Vá.
Rehv olhou a doggen. Para ele suas emoções eram como um ralo tridimensional de medo, vergonha e pânico, e a trama trançada enchia o espaço que a rodeava tão certamente como o faziam seus ossos, seus músculos e sua pele.
— Fique tranqüila. — disse-lhe com o pensamento — E tenha certeza que endireitarei isto.
O assombro relampejou em seu rosto, seus ombros afrouxaram a tensão e se girou aparentando estar muito mais tranqüila.
Quando se foi, Montrag clareou a garganta e voltou a sentar.
— Não acredito que vá prestar. É absolutamente incompetente.
— Por que não começamos com um torrão? — Rehv deixou cair um cubo de açúcar dentro do chá — E veremos se deseja outro.
Estendeu a mão com a xícara, mas não muito afastada, para que Montrag se visse forçado a levantar-se novamente do sofá e a inclinar-se sobre a mesa.
— Obrigado.
Rehv não soltou o pires enquanto promovia uma mudança de parecer na mente de seu anfitrião.
— Deixo as fêmeas nervosas. Não foi sua culpa.
Abriu a mão abruptamente e Montrag lutou para pegar a Royal Doulton[1].
— Oops. Não o derrame. — Rehv voltou a se reclinar contra o sofá — Seria uma pena manchar este tapete tão fino. Aubusson, verdade?
 — Ah… Sim. — Montrag voltou a sentar-se e franziu o cenho, como se não tivesse idéia de porque tinha trocado de opinião com respeito a sua criada — Errr… Sim, é. Meu pai comprou faz muitos anos. Tinha um gosto apurado, não é mesmo? Construímos esta sala especialmente para este tapete, porque é muito grande, e a cor das paredes foi escolhida especificamente para fazer ressaltar seus matizes cor pêssego.
Montrag passeou a vista pelo escritório e sorriu para si mesmo enquanto sorvia, com o dedo mindinho estendido no ar como se fosse uma bandeira.
— Como está seu chá?
— Perfeito, mas você não tomará um pouco?
— Não sou bebedor de chá. — Rehv esperou até que a xícara estivesse nos lábios do macho — Então estava falando de assassinar Wrath?
Montrag cuspiu o Earl Grey[2], salpicou a frente de sua jaqueta de smoking cor vermelha sangue e sujou o estupendo tapete do papai.
Quando o macho começou a bater fracamente as manchas, Rehv lhe ofereceu um guardanapo.
— Tome, use isto.
Montrag pegou o quadrado de damasco, e acariciou torpemente seu peito, logo o deslizou pelo tapete com igual falta de resultados. Era evidente, que era o tipo de macho que fazia tramas e não do tipo que os solucionava.
— Em que estávamos? — murmurou Rehv.
Montrag atirou o guardanapo na bandeja e ficou de pé, esquecendo o chá, para passear pelo cômodo. Deteve-se frente a uma grande paisagem montanhosa e pareceu estar admirando a dramática cena, iluminada por focos, de um soldado colonial rezando aos céus.
Falou com a pintura.
— Está a par de que muitos irmãos de sangue foram abatidos nas incursões dos lessers.
— E eu aqui pensando que tinham me escolhido leahdyre[3] do conselho devido a minha animada personalidade.
Montrag o olhou agressivamente por cima do ombro, seu queixo elevado de forma tipicamente aristocrática.
— Perdi a meu pai, a minha mãe e a todos os meus primos e irmãos. Enterrei a todos e cada um deles. Pensa que isso é motivo de regozijo?
— Minhas desculpas. — Rehv colocou a palma da mão direita sobre o coração e inclinou a cabeça, apesar de que não lhe importava uma merda. Não ia ser manipulado pela menção de suas perdas. Especialmente quando todas as emoções do cara falavam de cobiça e não de dor.
Montrag deu as costas à pintura, e sua cabeça ocupou o lugar da montanha sobre a qual estava o soldado colonial… Pelo que dava a impressão que o pequeno homem de uniforme vermelho estava tratando de subir pela sua orelha.
— Devido às incursões, a glymera suportou perdas sem igual. Não só em vidas, mas também em propriedades. Casas saqueadas, antiguidades e obras de arte roubadas, contas de banco desaparecidas. E o que Wrath fez? Nada. Não deu resposta às freqüentes perguntas a respeito de como foram encontradas as residências dessas famílias… Por que a Irmandade não deteve os ataques… Onde foram parar todos esses bens? Não há um plano para assegurar-se que nunca mais volte a ocorrer algo assim. Não oferecem a segurança a nós, poucos membros restantes da aristocracia, de que se retornássemos a Caldwell, estaríamos protegidos. — Montrag realmente se entusiasmou, sua voz se elevava e ricocheteava contra a parte mais alta do teto dourado com molduras — Nossa raça está morrendo e precisamos de uma verdadeira liderança. Não obstante, por Lei, enquanto o coração de Wrath siga pulsando em seu peito, seguirá sendo rei. A vida de um é mais valiosa que a vida de muitos? Examine seu coração.
Oh, Rehv estava olhando em seu interior, esse era, esse negro e maldito músculo.
— E... Logo o que?
— Assumimos o controle e fazemos o correto. Durante seu reinado, Wrath reestruturou as coisas… Olhe o que fez às Escolhidas. Agora estão autorizadas a emparelhar-se deste lado… Algo nunca visto! E a escravidão está abolida, junto com a Sehclusion das fêmeas. Virgem Escriba querida, quando quiserem acordar haverá um integrante da Irmandade com saia. Se nós estivermos na liderança, podemos reverter o que ele tem feito e reformar as leis adequadamente para preservar as tradições. Podemos organizar uma nova ofensiva contra a Sociedade Lessening. Podemos triunfar.
— Está empregando muitos “nós”, e por alguma razão não acredito que isso represente exatamente o que tem em mente.
 — Bom, é obvio que deverá haver um indivíduo que seja o primeiro entre seus iguais. — Montrag alisou as lapelas da sua jaqueta de smoking e inclinou a cabeça e o corpo como se tivesse posando para uma estátua de bronze ou talvez para um bilhete — Um macho de valor que esteja à altura do cargo e resulte ser o escolhido.
— E como seria escolhido este modelo de virtudes?
— Nos tornaremos uma democracia. Uma democracia que foi longamente postergada e que substituirá o injusto e desigual costume da monarquia.
Quando o bate-papo seguiu seu curso, Rehv se reclinou para trás, cruzou as pernas à altura do joelho e uniu os dedos das mãos formando uma carpa. Sentado no acolchoado sofá de Montrag, suas duas metades entraram em conflito, o vampiro e o symphath colidiram.
O único benefício disso era que o combate interno gritante sufocava o som nasal de todo esse “Eu-sei-tudo”.
A intenção era óbvia: livrar-se do Rei e tomar o controle da raça.
O ato era inconcebível: matar a um bom macho, um bom líder e… Uma espécie de amigo.
—… e escolheríamos a quem nos lideraria. O faríamos responsável pelo Conselho. Asseguraríamo-nos que nossas preocupações fossem atendidas. — Montrag retornou a seu sofá, sentou-se e ficou cômodo como se fosse seguir com esse bate-papo exagerado e vazio sobre o futuro durante horas — A monarquia não está funcionando e a democracia é a única maneira…
Rehv lhe interrompeu:
— Em geral a democracia implica que todo mundo pode votar. Digo-lhe isso só se por acaso não está familiarizado com a definição.
— E assim o faríamos. Todos os que servimos no Conselho estaríamos na junta eleitoral. Todo mundo seria considerado.
— PTI, o termo abrange algumas pessoas mais além de “todos os que são como nós”.
Montrag lhe dirigiu um olhar carregado de “Oh-por-favor-fale-sério”.
— Honestamente confiaria a raça às classes baixas?
— Não depende de mim.
— Poderia. — Montrag levou a xícara aos lábios e o olhou por cima da borda com olhos penetrantes — Poderia perfeitamente. É nosso Leahdyre.
Olhando fixamente ao homem, Rehv viu o caminho tão claramente como se estivesse pavimentado e iluminado com fachos de luzes halogênias: se Wrath fosse assassinado, sua linhagem real terminaria, porque ainda não tinha gerado um filho. Às sociedades, particularmente aquelas que estavam em guerra como a dos vampiros, aborreciam os vazios na liderança, por isso uma mudança radical da monarquia à “democracia” não resultava tão inconcebível como teria sido em outra época mais racional e segura.
A glymera poderia estar fora de Caldwell e escondida nos refúgios dispersados por toda a Nova Inglaterra, mas essa turma de filhos da puta decadentes tinha dinheiro e influências e sempre tinham desejado tomar o poder. Com este plano em particular, podiam disfarçar suas ambições com as vestimentas da democracia e fazer ver que estavam protegendo às pessoas sem status.
A infausta natureza do Rehv se agitou como um criminoso preso impaciente para obter a liberdade condicional. As más ações e os jogos de poder eram uma compulsão inerente a aqueles que levavam o sangue de seu pai, e parte dele desejava criar o caos… E entrar nele.
Interrompeu as tolices presunçosas de Montrag.
— Economize a propaganda. O que é que está sugerindo exatamente?
O macho fez toda uma elaborada demonstração de como deixar uma xícara de chá, como se quisesse aparentar que estava reunindo as palavras. Enfim. Rehv estava disposto a apostar que o homem sabia exatamente o que ia dizer. Uma coisa dessa natureza, não era algo que simplesmente se pensa na hora, e havia outros envolvidos. Tinha que ter.
 — Como bem sabe o Conselho vai reunir-se em Caldwell dentro de alguns dias especificamente para ter uma audiência com o Rei. Wrath chegará e… Ocorrerá um evento mortal.
— Ele viaja com a Irmandade. E não é especialmente o tipo de força muscular que possa ser evitada facilmente.
— A morte pode levar muitas máscaras. E tem muitos e variados cenários onde atuar.
— E meu papel seria…? — embora já tivesse compreendido.
Os pálidos olhos de Montrag pareciam de gelo, resplandecentes e frios.
— Sei que classe de macho é. Assim sei precisamente do que é capaz.
Isto não era uma surpresa. Durante os últimos vinte e cinco anos Rehv tinha sido um senhor das drogas, e embora não houvesse publicado sua ocupação dentro da aristocracia, os vampiros iam a seus clubes regularmente, e parte deles estavam nas filas de seus clientes químicos.
Ninguém além dos Irmãos sabia de seu lado symphath… E era sua escolha continuar oculto. Nas últimas duas décadas tinha estado pagando bem a seu chantagista para assegurar-se que continuasse sendo segredo.
— É por isso que fui a ti. — disse Montrag — Você saberá como se encarregar disto.
— É certo.
— Como Leahdyre do Conselho, estará em uma posição de enorme poder. Ainda se não eleito presidente, o Conselho persistirá. E fique tranqüilo com respeito à Irmandade da Adaga Negra. Sei que sua irmã está emparelhada com um deles. Os Irmãos não se verão afetados por isso.
— Não acredita que isto os enfurecerá? Wrath não é só seu rei. É de seu sangue.
— Proteger a nossa raça é sua obrigação primária. Eles devem nos seguir aonde vamos. E deve saber que há muitos que pensam que ultimamente estiveram fazendo um mau trabalho. Penso que talvez requeiram uma melhor liderança.
— De tua parte. Sim. Claro.
Isso seria como um decorador de interiores tratando de comandar um destacamento de tanques: um fodido carregamento de ruidosos gorjeios até que um dos soldados terminasse com o boneco de pano temporário e lhe agitasse o corpo um par de vezes. 
Esse era o plano perfeito. Sim.
E de todas as formas… Quem dizia que Montrag tinha que ser o eleito? Os acidentes ocorriam tanto aos reis como aos aristocratas.
— Devo te dizer, — continuou Montrag — o mesmo que meu pai estava acostumado a me dizer, a coordenação é tudo. Devemos nos apressar. Podemos confiar em você, meu amigo?
Rehv ficou de pé, erguendo-se sobre o outro macho. Com um rápido puxão às abas de sua jaqueta, arrumou seu Tom Ford[4], logo esticou a mão para sua bengala. Não sentia nada em seu corpo, nem sua roupa nem o peso que tinha ido de seu traseiro à planta de seus pés, nem a ponta da bengala contra a palma da mão que se queimou. O intumescimento era um efeito secundário da droga que utilizava para evitar que aflorasse seu lado mau quando estava com companhia variada, a prisão onde encerrava suas tendências sociopatas.
Não obstante, tudo o que necessitava para voltar para suas origens era pular uma dose. E uma hora depois? A maldade nele estava vivinha, abanando o rabo e pronta para brincar.
— O que me diz? — incitou Montrag.
E não era essa a pergunta?
Às vezes na vida, entre a miríade de decisões corriqueiras como, o que comer, onde dormir, e o que vestir, aparecia uma verdadeira encruzilhada. Nesses momentos, quando a névoa da relativa irrelevância se levanta e o destino te estende uma demanda de livre-arbítrio, só há esquerda ou direita… Nada de te lançar em um terreno que há entre os dois caminhos, não havia forma de negociar com a escolha que te expor.
Deve responder à chamada e escolher seu caminho. E não há volta.
Não obstante, o problema era que navegar por uma paisagem moralista era algo que tinha tido que aprender para se encaixar com os vampiros. A lição que tinha aprendido tinha perseverado, embora só até certo ponto.
E suas drogas só funcionavam de certa maneira.
Subitamente, o rosto pálido de Montrag se tingiu de uma variedade de tons de rosa pastel, o cabelo escuro do macho se tornou cor de rosa e a jaqueta de seu smoking ficou da cor do Ketchup. Enquanto uma pátina avermelhada coloria tudo, o campo visual de Rehv se achatou voltando-se como uma tela de cinema onde se via o mundo.
E talvez isto explicasse o motivo pelo qual resultava fácil aos symphaths utilizar às pessoas. Com seu lado escuro assumindo o controle, o universo tinha a profundidade de um tabuleiro de xadrez e as pessoas que haviam nele eram como peões em sua mão onisciente. Todos eles. Os inimigos… E os amigos.
— Eu me encarregarei. — anunciou Rehv — Como disse, sei o que tenho que fazer.
— Sua palavra. — Montrag estendeu a suave palma de sua mão — Dê-me sua palavra de que isto se levará a cabo em segredo e silenciosamente.
Rehv deixou que essa mão pendurasse livremente no ar, mas sorriu, revelando uma vez mais suas presas.
— Confie em mim.


Capítulo 2


Enquanto Wrath, filho de Wrath, percorria um dos becos urbanos de Caldwell, sangrava em dois lugares. Tinha uma navalhada ao longo de seu ombro esquerdo, feita por uma faca serrada, e lhe faltava uma parte da coxa, graças ao canto oxidado de um contêiner de lixo. O lesser que ia na frente, o que estava a ponto de estripar como a um peixe, não tinha sido o responsável por nenhum: os dois camaradas de cabelo branco, que cheiravam a talco de bebê, eram os artífices do dano.
E o tinham feito a uns duzentos e setenta metros dali, fazia três minutos, justo antes de ser reduzidos a um par de bolsas de adubo de minhoca.
Esse bastardo diante de si era o objetivo real.
O assassino estava movendo o traseiro rápido, mas Wrath era mais rápido ainda... Não só porque suas pernas eram mais longas, apesar do fato de que estava gotejando como uma cisterna furada. Não havia dúvida de que o terceiro morreria.
Era uma questão de vontade.
O lesser tinha escolhido o caminho errado essa noite... Embora não ao escolher esse beco em particular. Isso era o único adequado e justo, e provavelmente o não-morto fazia isso durante décadas, porque a privacidade era importante para lutar. O último que a Irmandade ou a Sociedade Lessening precisavam era à polícia humana envolvida em algo que tivesse a ver com esta guerra.
Não, o erro “Sinto-essa-não-é-a-resposta-correta” do bastardo tinha sido há uns quinze minutos atrás, quando tinha assassinado a um macho civil. Com um sorriso na cara. Diante de Wrath.
Tinha sido pela fragrância de sangue fresco de vampiro que o rei tinha encontrado ao trio de assassinos em primeiro lugar, lhes apanhando no ato de tentar seqüestrar a um de seus civis. Tinha resultado evidente que sabiam que era, no mínimo, um membro da Irmandade, porque esse lesser que ia na sua frente tinha matado ao macho para que ele e seu esquadrão pudessem ter as mãos livres e pudessem enfocar-se completamente na briga.
A parte triste era que a chegada de Wrath tinha economizado ao civil uma larga e lenta morte por tortura em um dos acampamentos de tortura da Sociedade. Mas ainda assim lhe arderam às vísceras ao ver como fatiavam a um apavorado inocente e o atiravam sobre o frio e gretado pavimento como se fosse uma marmita vazia.
Assim que esse filho da puta dali ia cair.
Olho-por-olho e tudo isso.
Ao chegar ao final do beco sem saída, o lesser fez um salto de preparação, girando, plantando os pés e tirando sua faca. Wrath não retardou seu avanço. No meio da corrida, liberou um de seus shuriken[5] e lançou a arma com um golpe de mão, alardeando com o lançamento.
Algumas vezes queria que seu oponente soubesse o que lhe era atirado.
O lesser seguiu a coreografia à perfeição, trocando seu ponto de apoio e afrouxando sua postura de combate. Enquanto Wrath cortava a distância, lançou outra estrela e outra mais, impulsionando o lesser para uma posição escondida.
O Rei Cego se desmaterializou justo sobre o idiota, golpeando de cima, despiu as presas para fechá-las na nuca do assassino. A aguda doçura do sangue do lesser era o sabor do triunfo, e o coro da vitória tampouco demorou a chegar, quando Wrath agarrou ao bastardo pela parte superior de ambos os braços.
A vingança era um estalo. Ou melhor dizendo, dois.
A coisa gritou quando ambos os ossos saíram de suas cavidades, mas o uivo não viajou muito longe depois que Wrath lhe fechasse a boca com a palma da mão.
— Isto é só o aquecimento. — vaiou Wrath — É importante relaxar antes de começar a exercitar-se.
O rei girou o assassino e baixou o olhar para a coisa. Desde trás dos envolventes óculos, seus olhos débeis estavam mais agudos do que o habitual, a adrenalina navegava ao longo de suas veias lhe dando um aumento de acuidade visual. O que era bom. Precisava ver o que tinha matado com uma forma que não tinha nada a ver assegurando a precisão de um golpe mortal.
Enquanto o lesser lutava para respirar, a pele de seu rosto brilhava com uma pátina irreal e plástica — como se a estrutura óssea tivesse sido estofada com a merda com a que fabricava os sacos de arroz — e os olhos estavam se esbugalhando, o fedor doce da coisa parecia a doçura de um animal atropelado na estrada durante uma noite cálida.
Wrath soltou a corrente de aço que pendurava do ombro de sua jaqueta de motoqueiro e desenrolou os elos brilhantes tirando-os de debaixo de seu braço. Segurando o grande peso na mão direita, envolveu seu punho, ampliando a envergadura de seus nódulos, aumentando seus duros contornos.
— Diga “uísque”.
Wrath golpeou à coisa no olho. Uma vez. Duas. Três vezes. Seu punho era um aríete, a órbita do olho cedia terreno como se não fosse mais que uma porta. Com cada excruciante impacto, o sangue negro saltava e salpicava, golpeando Wrath na cara, na jaqueta e nos óculos. Sentia todas as salpicadas, apesar do couro que vestia, e desejava mais.
Era um glutão para esse tipo de comida.
Com um sorriso duro, deixou que a corrente se desenrolasse de seu punho, e golpeasse o sujo asfalto com uma risada efervescente, metálica, como se tivesse desfrutado tanto como ele. A seus pés, o lesser não estava morto. Embora fosse indubitável que a coisa estava desenvolvendo hematomas sub-durais maciços na parte dianteira e traseira do cérebro, ainda vivia, porque só havia duas formas de matar a um assassino.
Uma era lhe atravessar o peito com as adagas negras que os Irmãos tinham embainhadas ao peito. Isso enviava aos PDM[6] de volta com seu criador, o Omega, mas era só uma solução temporária, porque o mal simplesmente utilizava essa essência para converter a outro humano em uma máquina assassina. Não era uma morte, a não ser um atraso.
O outro modo era permanente.
Wrath tirou seu celular e ligou. Quando respondeu uma voz masculina com acento de Boston, disse:
— Oito e Trade. Três caídos.
Butch O'Neal, também conhecido como Dhestroyer, descendente de Wrath, filho de Wrath, era caracteristicamente fleumático em suas respostas. Realmente centrista. Tolerante. Deixando muito espaço para a interpretação de suas palavras:
— Oh, caralho, pelo amor de Deus. Está brincando? Wrath, tem que acabar com esta merda de multiuso. Agora é o rei. Já não é um Irmão...
Wrath fechou o telefone.
Sim. A outra forma de livrar-se destes filhos da puta, a forma permanente, estaria ali em cinco minutos. Com sua língua solta. Infelizmente.
Wrath se sentou sobre os calcanhares, voltando a enrolar a corrente em seu ombro, e levantou o olhar para o quadrado de céu noturno visível sobre os telhados. Quando sua adrenalina decaiu, só foi capaz de distinguir ligeiramente os escuros esqueletos dos edifícios que se elevavam contra o plano da galáxia, e franziu os olhos com força.
Já não é um Irmão.
É uma merda que não o era. Não lhe importava o que dissesse a lei. Sua raça necessitava que fosse mais que um burocrata.
Com uma maldição na Antiga Língua, voltou para sua atividade, e revisou a jaqueta e as calças do assassino em busca de uma identificação. No bolso de trás, encontrou uma fina carteira com uma carteira de motorista e dois dólares dentro...
— Creio... Que ele era um dos seus...
A voz do assassino era de uma vez aflautada e maliciosa, e o som de filme de horror detonou a agressividade de Wrath uma vez mais. Repentinamente, sua visão se tornou mais aguda, e pôde enfocar pela metade seu inimigo.
— O que disse?
O lesser sorriu um pouco, parecendo não notar que a metade de sua cara tinha a consistência de uma omelete muito líquida.
— Sempre foi... Um dos nossos.
— De que merda está falando?
— Como... Acredita... — o lesser tomou um tremente fôlego — Que encontramos... Todas aquelas casas neste verão...?
A chegada de um veículo cortou as palavras, e Wrath girou a cabeça precipitadamente. Graças ao fodido Deus era o Escalade negro que estava esperando e não algum humano com um celular ligado em uma chamada ao 911.
Butch O'Neal saiu de trás do volante, com suas mandíbulas funcionando a toda marcha.
— Você perdeu a fodida cabeça? O que vamos fazer contigo? Vai...
Enquanto o polícia continuava com todo o maldito repertório, Wrath voltou o olhar para o assassino.
— Como as encontraram? As casas?
O assassino começou a rir, o débil ofego era o tipo de coisas que ouvia de um desequilibrado.
— Porque ele tinha estado em todas elas... Assim é como o fizemos.
O bastardo desmaiou, e lhe sacudir não ajudou a lhe trazer de volta. Tampouco o fez uma bofetada nem duas.
Wrath ficou em pé e a frustração desencadeou a fúria.
— Faz seu trabalho, polícia. Os outros dois estão depois do contêiner da quadra seguinte.
O polícia simplesmente o olhou.
— Supõe-se que você não luta.
— Sou o rei. Posso fazer o que me dê a maldita vontade.
Wrath começou a afastar-se, mas Butch lhe agarrou o braço.
— Beth sabe onde está? O que está fazendo? Disse a ela? Ou é só a mim a quem está pedindo que guarde este segredo?
— Preocupa-se disso. — Wrath assinalou ao assassino — Não por mim e minha shellan.
Quando se liberou, Butch ladrou.
— Aonde vai?
Wrath avançou e encarou ao polícia.
— Pensei em ir recolher o cadáver de um civil para levá-lo até o Escalade. Tem algum problema com isso, filho?
Butch se manteve firme. Só mais uma amostra do sangue que compartilhavam.
— Perdemos você como rei e a raça inteira está fodida.
— E só ficam quatro Irmãos no campo de batalha. Você gosta dessa matemática? Eu não.
— Mas...
— Faz seu trabalho, Butch. E fique à margem do meu.
Wrath percorreu a pernadas os duzentos e setenta metros de volta onde tinha começado a briga. Os assassinos vencidos estavam justo onde os tinha deixado: gemendo no chão, com suas extremidades formando ângulos estranhos, seu sangue negro gotejando e formando asquerosos atoleiros lamacentos sob seus corpos. Entretanto, já não eram assunto dele. Rodeando o contêiner olhou ao civil morto e se precaveu que lhe dificultava a respiração.
O rei se ajoelhou e cuidadosamente afastou o cabelo da cara golpeada como a merda do macho. Evidentemente, o cara se defendeu, recebendo um bom número de golpes antes que lhe apunhalassem o coração. Um pirralho valente.
Wrath espalmou a mão sob a nuca do macho, deslizou o outro braço sob os joelhos, e o levantou lentamente. O peso do morto era mais pesado que os quilos do corpo. Enquanto se afastava do contêiner e se aproximava do Escalade, Wrath se sentia como se sustentasse à raça inteira em seus braços, e se alegrou de ter que levar óculos de sol para proteger seus débeis olhos.
Seus óculos envolventes ocultavam o brilho das lágrimas.
Passou junto a Butch enquanto o polícia caminhava para os destroçados assassinos para fazer o seu trabalho. Depois que as pisadas do homem se detiveram, Wrath ouviu uma larga e profunda inalação que soava como o vaio de um balão desinflando-se lentamente. O vômito que seguiu foi muito mais ruidoso.
Enquanto a sucção e as arcadas se repetiam, Wrath deitou ao morto na parte de trás do Escalade e lhe revistou os bolsos. Não havia nada... Nem carteira, nem telefone, nem sequer um pacote de chiclete.
— Foda.
Wrath deu a volta e se sentou no pára-choque traseiro do SUV. Um dos lessers já lhe tinha limpado no curso da luta... E como todos os assassinos acabavam de ser inalados, isso significava que a identificação do civil já era pó.
Enquanto Butch se aproximava do Escalade cambaleando pelo beco, o polícia parecia um bêbado farreando e já não cheirava a Acqua di Parma. Fedia a lesser, como se tivesse secado sua roupa com lenços umedecidos Downy, como se tivesse um par de ambientadores de carro com fragrância de baunilha sob as axilas, e tivesse caído sobre algum peixe morto.
Wrath se levantou e fechou a parte traseira do Escalade.
— Está certo que pode dirigir? — perguntou quando Butch se colocou cuidadosamente atrás do volante, com pinta de estar a ponto de vomitar.
— Sim. Estou bem.
Wrath sacudiu a cabeça ante a voz rouca e examinou o beco. Não havia janelas nos edifícios, e fazer Vishous vir imediatamente para aliviar ao polícia não levaria muito tempo, mas entre as brigas e a limpeza tinham ocorrido muitas coisas ali durante a última meia hora. Deviam sair da zona.
Originalmente, o plano de Wrath tinha sido tirar uma foto da identidade do assassino com a câmara de seu celular, aumentá-la o suficiente para poder ler o endereço, e logo ir atrás desse estúpido. Não obstante não podia deixar Butch sozinho.
O polícia pareceu surpreso quando Wrath entrou no assento do passageiro do Escalade.
— O que está...?
— Levaremos o corpo à clínica. V pode encontrar-se contigo ali e se ocupar de você.
— Wrath...
— Discutimos pelo caminho, o que acha, primo?
Butch arrancou o SUV, saiu de marcha ré do beco, e girou ao chegar ao primeiro cruzamento das ruas. Quando chegou ao Trade, dobrou à esquerda e se dirigiu às pontes que se estendiam sobre o Rio Hudson. Enquanto conduzia, tinha os nódulos brancos sobre o volante... Não porque tivesse medo, mas sim porque indubitavelmente estava tentando conter a bílis no estômago.
— Não posso seguir mentindo assim. — resmungou Butch quando alcançaram o outro lado de Caldwell.
Uma arcada foi seguida por uma tosse.
— Sim, pode.
O polícia levantou o olhar.
— Está me matando. Beth deve saber.
— Não quero que se preocupe.
— Entendo isso... — Butch emitiu um som afogado — Espera.
O polícia estacionou sobre a borda gelada, abriu a porta de repente, e vomitou como se seu fígado tivesse recebido ordens de evacuação de seu cólon.
Wrath deixou que sua cabeça caísse para trás, uma dor tinha se instalado detrás de seus olhos. A dor não era uma surpresa, em absoluto. Ultimamente tinha enxaquecas como os alérgicos tinham espirros.
Butch estendeu a mão para trás e apalpou o console central, com a parte superior de seu corpo ainda arqueada para fora do Escalade.
— Quer a água? — perguntou Wrath.
— S... — as náuseas cortaram o resto da palavra.
Wrath agarrou uma garrafa de Poland Spring, abriu-a, e a pôs na mão de Butch.
Quando se produziu uma pausa na “vomitação”, o polícia tragou um pouco de água, mas a merda não permaneceu dentro.
Wrath tirou seu celular.
— Vou chamar o V agora.
— Dê-me só um minuto.
Levou dez, mas finalmente, o polícia conseguiu voltar para o carro e lhes devolveu à estrada. Ambos permaneceram em silêncio durante um par de quilômetros, o cérebro de Wrath correndo enquanto sua dor de cabeça piorava.
Já não é um Irmão.
Já não é um Irmão.
Mas tinha que ser. Sua raça precisava dele.
Clareou a garganta.
— Quando V aparecer no necrotério, você vai dizer que encontrou o corpo do civil e fez essa merda com os lessers.
— Ele quererá saber por que você estava ali.
— Diremos que estava na quadra seguinte me reunindo com o Rehvenge no ZeroSum e pressenti que precisava de ajuda. — Wrath se inclinou no assento dianteiro e fechou uma mão sobre o antebraço do cara — Ninguém vai saber, entendido?
— Isto não é boa idéia. Isto não é boa idéia.
— É uma merda que não.
Enquanto permaneciam em silêncio, as luzes dos carros do outro lado da auto-estrada fizeram que Wrath fizesse uma careta, apesar de que suas pálpebras estavam baixas e os óculos escuros em seu lugar. Para evitar o brilho, girou o rosto para o lado, como se olhasse pela janela.
— V suspeita que algo esteja acontecendo. — resmungou Butch depois de um momento.
— E pode seguir suspeitando. Preciso estar no campo de batalha.
— E se ferirem você?
Wrath colocou o antebraço sobre o rosto com a esperança de bloquear esses malditos faróis dianteiros. Caralho, agora era ele quem tinha náuseas.
— Não me ferirão. Não se preocupe.


Capítulo 3


— Preparado para seu suco, pai?
Quando não houve resposta, Ehlena, filha de sangue de Alyne, deteve-se no processo de abotoar o uniforme.
— Pai?
Da sala e por cima das melodiosas notas de Chopin lhe chegou o som de um par de pantufas movendo-se sobre as tábuas do piso de madeira nuas e uma suave cascata de apressadas palavras, como um maço de cartas ao ser embaralhadas.
Isso era bom. Levantou-se por si mesmo.
Ehlena jogou o cabelo para trás, e utilizou uma rede branca para manter o coque em seu lugar. Entretanto no meio do caminho mudou de opinião, ia ter que refazer o coque. Havers, o médico da raça, exigia que suas enfermeiras fossem tão esticadas, engomadas e bem organizas como tudo em sua clínica.
Sempre dizia que as normas eram críticas.
No caminho para seu dormitório, recolheu uma mochila de ombro negra que tinha comprado na Target. Dezenove dólares. Um roubo. Nela colocou a saia curta e a camiseta pólo de imitação que ia trocar pelo uniforme ao redor de duas horas antes do amanhecer.
Um encontro. Realmente ia ter um encontro.
A ida ao andar superior onde estava a cozinha implicava só um lance de escadas, e o primeiro que fez quando emergiu do porão foi dirigir-se para o antiquado refrigerador Frigidaire . Dentro, havia dezoito pequenas garrafas de Ocean Spray Cranraspberry[7] em três filas de seis. Pegou uma da frente e depois, cuidadosamente moveu as outras para que estivessem todas alinhadas.
As pílulas estavam localizadas atrás da poeirenta pilha de livros de cozinha. Pegou uma trifluoropiperacina e dois loxacepina e as pôs em uma xícara branca. A colher de aço inoxidável que utilizou para amassá-las estava dobrada em um ligeiro ângulo, e também todas as demais.
Já levava perto de dois anos esmagando pílulas como estas.
O CranRas golpeou o fino pó branco e se mesclou com ele, e para assegurar-se de que o sabor ficava adequadamente oculto, pôs dois cubinhos de gelo na xícara. Quanto mais frio melhor.
— Pai, seu suco está preparado. — deixou a xícara na mesinha, bem em cima de um círculo de fita que delineava onde tinha que ser colocada.
As seis estantes que havia em frente estavam igual ordenadas e relativamente vazias como a geladeira, de uma delas agarrou uma caixa de Wheaties[8], e de outra tirou uma tigela. Depois de servir-se de alguns cereais foi pegar leite, e logo que terminou de utilizá-lo, voltou a deixá-lo onde estava: junto a outros dois iguais, com as etiquetas com a marca Hood  para fora.
Deu uma olhada em seu relógio e falou na Antiga Língua.
— Pai? Tenho que partir.
O sol se pôs, e isso significava que seu turno, que começava quinze minutos depois de escurecer, estava a ponto de começar.
Observou a janela que havia sobre a pia da cozinha, embora não era como se pudesse medir quanto escuro estava. Os vidros estavam cobertos por lâminas de alumínio fixas às molduras com fita adesiva.
Inclusive mesmo se ela e seu pai não fossem vampiros e incapazes de suportar a luz do sol, essas persianas Reynolds Wrap teriam sido igualmente colocadas em cada janela da casa: eram cobertas para o resto do mundo, mantendo-o fora, contendo-o a fim de que sua miserável casinha alugada estivesse protegida e isolada... De ameaças que só seu pai podia perceber.
Quando terminou o café da manhã de Campeões[9], lavou e secou sua tigela com toalhas de papel, porque as esponjas e panos de cozinha não estavam permitidos, e, junto com a colher que tinha utilizado, voltou a pôr tudo em seu lugar.
— Meu pai?
Apoiou o quadril contra o maltratado balcão de fórmica e esperou, tentando não olhar muito atentamente o maltratado papel de parede nem o chão de linóleo desgastado.
A casa era apenas um pouco melhor que um sórdido abrigo, mas era tudo o que podia permitir-se. Entre as visitas de seu pai ao médico, os remédios e a enfermeira particular não era muito que ficava de seu salário, e fazia muito que tinham gasto o pouco que ficava do dinheiro da família, prata, antiguidades, e jóias.
Apenas se mantinham a tona.
E ainda assim, quando seu pai apareceu na soleira do porão, teve que sorrir. Seu fino cabelo cinza se expandia se sobressaindo de sua cabeça para formar um halo de penugem que o fazia parecer-se com Beethoven, além de seus olhos excessivamente observadores e ligeiramente frenéticos que lhe davam o aspecto de gênio louco. Ainda assim, parecia melhor do que tinha estado em muito tempo. Por sua vez, estava vestindo um roupão desfiado de cetim e seu pijama de seda bem arrumado... Tudo para frente, a parte de cima e de baixo certas e o cinto preso. Além disso, estava limpo, recém banhado e cheirando a pós-barba de Laurel.
Era uma enorme contradição: necessitava que seu ambiente estivesse imaculado e excessivamente organizado, mas sua higiene pessoal e o que vestia não lhe representava nenhum problema. Embora talvez tivesse sentido. Ao estar compenetrado no matagal de seus pensamentos, distraía-se muito com seus delírios para ser consciente de si mesmo.
Entretanto os remédios estavam ajudando, e notou quando encontrou seu olhar e realmente a viu.
— Minha filha. — disse na Antiga Língua — Que tal está esta noite?
Ela respondeu como ele preferia, na língua mãe.
— Bem, meu pai. E você?
Ele se inclinou com a graça do aristocrata que era por linhagem e tinha sido por posição.
— Como sempre estou encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável de sua parte.
Seu pai se sentou com um movimento de seu roupão, e recolheu a xícara de cerâmica como se fosse fina porcelana inglesa.
— Aonde vai?
— Ao trabalho. Vou trabalhar.
Seu pai franziu o cenho enquanto bebia.
— Sabe bem que não aprovo que trabalhe fora de casa. Uma dama de sua estirpe não deveria estar oferecendo seu tempo dessa forma.
— Sei, meu pai. Mas me faz feliz.
Seu rosto se suavizou.
— Bom, isso é outra coisa. Ai de mim, não entendo à geração mais jovem. Sua mãe se encarregava da casa, dos serventes e os jardins, e isso era suficiente para ocupar seu ímpeto durante as noites.
Ehlena baixou o olhar, pensando que sua mãe choraria se visse como tinham terminado.
— Sei.
— Não obstante deve fazer o que desejar, e eu sempre te amarei.
Ela sorriu ante as palavras que tinha ouvido durante toda sua vida. E falando desse tema...
— Pai?
Ele baixou a xícara.
— Sim?
— Pode ser que chegue um pouco tarde esta noite.
— Seriamente? Por quê?
— Vou tomar um café com um macho...
— O que é isso?
A mudança em seu tom a fez levantar a cabeça, e olhou a seu redor para ver que... Oh, não.
— Nada, pai, de verdade, não é nada. — se equilibrou rapidamente sobre a colher que tinha utilizado para esmagar as pílulas e a recolheu, correndo para a pia como se tivesse uma queimadura que necessitasse água fria imediatamente.
A voz de seu pai tremeu.
— O que... O que isso estava fazendo aí? Eu...
Ehlena secou rapidamente a colher e a deslizou na gaveta.
— Vê? Foi-se. Vê? — assinalou aonde tinha estado a colher — A mesa está limpa. Não há nada aí.
— Estava ali... Eu a vi. Não deve deixar os objetos de metal fora... Não é seguro... Quem a deixou... Quem deixou... Quem deixou a colher...?
— A criada.
— A criada! Outra vez! Deve ser despedida. Já disse... Nada de metal fora, nada de metal fora, nada de metal. Eles estão observando, e castigarão quem desobedecer, é preciso acreditar.
No princípio, quando tinham tido lugar os primeiros ataques de seu pai, Ehlena se aproximava dele no momento em que começava a agitar-se, pensando que uma palmada no ombro ou uma mão reconfortante lhe ajudariam. Agora tinha mais experiência. Quanto menos informação sensorial entrasse em seu cérebro, mais rapidamente passava a histeria avassaladora: por conselho de sua enfermeira, Ehlena lhe assinalava a realidade uma vez e depois não se movia nem falava.
Entretanto era difícil, lhe observar sofrer e ser incapaz de fazer nada para ajudar. Especialmente quando era culpa dela.
A cabeça de seu pai se sacudia para frente e para trás, a agitação alvoroçava seu cabelo convertendo-o em uma peruca arrepiada de cachos loucos, enquanto que em seu cambaleante punho, o suco saltava fora da xícara, salpicando sobre sua mão venosa, a manga do roupão e o revestimento de fórmica, cheio de buracos, da mesa. Em seus trementes lábios, o gaguejar de sílabas se incrementava, seu gravador interno funcionando a velocidade máxima, o rubor de loucura subindo pela coluna de sua garganta e flamejando em suas bochechas.
Ehlena rezou porque este não fosse um dos maus. Os ataques, quando vinham, variavam de intensidade e duração, e as drogas ajudavam minimizando ambas as medidas. Mas algumas vezes a enfermidade superava a ingestão química.
Quando as palavras de seu pai se tornaram muito atropeladas para compreender e deixou cair à xícara ao chão, tudo o que Ehlena pôde fazer foi esperar e rezar à Virgem Escriba para que passasse logo. Obrigando seus pés a ficar presos ao gasto linóleo, fechou os olhos e envolveu o torso com os braços.
Se tivesse lembrado de guardar a colher. Se houvesse...
Quando a cadeira de seu pai caiu para trás e golpeou o chão, soube que ia chegar tarde ao trabalho.
Outra vez.
*******
Os humanos são realmente gado, pensou Xhex enquanto olhava por cima de todas as cabeças e ombros apinhados ao redor do bar para o público em geral do ZeroSum.
Era como se algum fazendeiro tivesse enchido um cocho de grãos e a granja inteira estivesse lutando para afundar o focinho nele.
Não é que as características bovinas do Homo Sapiens fossem má coisa. A mentalidade de rebanho fazia mais fácil a coisa do ponto de vista da segurança; e em certo modo, como com as vacas, a gente podia alimentar-se deles: com toda essa aglomeração em torno dessas garrafas só era questão de purgar carteiras, com a maré fluindo em um só sentido... Para o cofre.
As vendas de licor eram boas. Mas as drogas e o sexo deixavam, inclusive mais altas margens de lucro.
Xhex passeava lentamente pelo lado exterior do bar, extinguindo com olhadas duras a especulação ardente de homens heterossexuais e mulheres homossexuais. Caralho, não entendia. Nunca tinha feito. Para ser uma fêmea que não vestia nada mais que camisas sem manga, calças de couro e usava o cabelo curto como um soldado, captava atenção tanto como as prostitutas seminuas da zona VIP.
Mas bom, nestes dias o sexo duro estava na moda, e os voluntários para a asfixia auto-erótica, os látegos açoita-traseiros e as algemas triplas eram como os ratos no sistema de bocas-de-lobo de Caldwell: estavam em todas as partes e saíam de noite. O que supunha uma terceira parte dos benefícios mensais do clube.
Muito obrigado.
Entretanto, ao contrário das garotas do clube, ela nunca aceitava dinheiro em troca de sexo. Na realidade não praticava sexo, absolutamente. Exceto pelo Butch O'Neal, esse polícia. Bom, esse polícia...
Xhex chegou à altura da corda de veludo da seção VIP e deu uma olhada para a parte exclusiva do clube.
Merda. Ele estava aqui.
Bem o que necessitava esta noite.
O caramelo favorito de sua libido estava sentado na parte mais afastada, na mesa da Irmandade, seus dois camaradas lhe flanqueavam e se defendiam das três garotas que também se apertavam no banco. Demônios, parecia enorme nesse reservado, vestido com uma camiseta Affliction e uma jaqueta de couro negra que era meio motoqueiro meio colete anti-balas.
Havia armas debaixo dela. Pistolas. Facas.
Como as coisas tinham mudado. A primeira vez que tinha aparecido por ali, era do tamanho de um tamborete do bar, apenas com músculos suficientes para partir um palito para mexer coquetéis. Mas esse já não era o caso.
Enquanto ela saudava com a cabeça ao segurança e subia os três degraus, John Matthew elevou o olhar de sua Corona[10]. Inclusive através da penumbra, seus profundos olhos azuis brilharam quando a viu, cintilando como um par de safiras.
Cara, não poderia provocá-lo, o filho da puta acabava de passar sua transição. O rei era seu whard. Vivia com a Irmandade. E era um maldito mudo.
Cristo. E ela tinha acreditado que Murhder tinha sido uma má idéia? Qualquer um acreditaria que tinha aprendido a lição fazia duas décadas com esse Irmão. Mas nãããããooooo...
A questão era, que enquanto olhava ao pirralho, tudo o que podia ver era a ele estendido nu sobre uma cama, com seu grosso pênis na mão e a palma baixando e subindo... Até que seu nome escapava desses lábios em um gemido surdo e gozava sobre seu firme abdômen definido.
O trágico era que o que via não era uma fantasia. Esses exercícios pneumáticos de punho realmente tinham ocorrido. Com freqüência. E como sabia? Porque, como uma imbecil, tinha lido a mente dele e captado o Memorex[11], em uma versão tão boa como se fosse ao vivo e a cores.
Cansada até a indigestão de si mesma, Xhex se enfiou mais profundamente na seção VIP, permanecendo separada dele, e dirigindo-se a comprovar como estava a chefe das garotas. Marie-Terese era uma morena com pernas magníficas e aspecto de cara. Era um de seus melhores ativos, e uma excelente profissional e conseqüentemente exatamente a classe de PRAC que queria: nunca caía em tolices maliciosas, sempre chegava na hora a seus turnos, e nunca trazia o que quer que fosse mal em sua vida pessoal ao trabalho. Era uma boa mulher com um trabalho horrível, fazendo dinheiro à mãos cheias por uma boa razão.
— Como vão? — perguntou Xhex — Necessita algo de mim ou meus meninos?
Marie-Terese percorreu com o olhar às outras garotas, suas maçãs do rosto altas captando a tênue luz, fazendo-a parecer não só sexualmente atraente, a não ser categoricamente formosa.
— Vamos bem por enquanto. Neste momento há duas na parte de trás. Tão ocupadas como é habitual, exceto pelo fato de que nossa garota não está aqui.
Xhex juntou as sobrancelhas bruscamente.
— Chrissy outra vez?
Marie-Terese inclinou a cabeça agitando seu comprido, negro e precioso cabelo.
— Terá que fazer algo com esse cavalheiro que a reclama.
— Já fez algo, mas não o suficiente. E se esse é um cavalheiro, eu sou a safada Estée Lauder. — Xhex apertou ambos os punhos — Esse filho da puta...
— Chefe?
Xhex olhou sobre seu ombro. Além da montanha de segurança que estava tentando atrair sua atenção, captou outra visão de John Matthew. Que ainda a olhava fixamente.
— Chefe?
Xhex se concentrou.
— O que?
— Há um policial aqui que quer te ver.
Não afastou os olhos do segurança.
— Marie-Terese, diga às garotas que descansem dez minutos.
— Feito.
A puta se moveu rápido enquanto aparentava que só passeava sobre seus saltos altos, indo de uma garota a outra e lhes aplaudindo o ombro esquerdo, para depois ir bater uma vez em cada uma das portas dos banheiros privados que havia pelo escuro corredor da direita.
Quando o lugar ficou vazio de prostitutas, Xhex disse:
— Quem e por quê?
— Detetive de homicídios. — o guarda lhe ofereceu um cartão — Disse que seu nome era José da Cruz.
Xhex pegou o cartão e soube exatamente por que tinha vindo o homem. E por que Chrissy não.
— Faça-o esperar em meu escritório. Estarei ali em dois minutos.
— Entendido.
Xhex levou seu relógio de pulso aos lábios.
— Trez? iAm? Temos movimento na casa. Diga aos corredores de apostas que esfriem e ao Rally que detenha o caixa.
Quando chegou a confirmação a seu fone, comprovou outra vez se todas as garotas tinham abandonado o andar; depois se dirigiu de volta à parte pública do clube.
Enquanto abandonava a seção VIP, pôde sentir os olhos de John Matthew nela e tentou não pensar no que tinha feito fazia dois amanhecer, ao chegar a sua casa... E o que provavelmente voltaria a fazer quando estivesse sozinha ao final da noite.
John Matthew sacana. Desde que tinha se colocado em seu cérebro e tinha visto o que fazia a si mesmo cada vez que pensava nela... Ela tinha estado fazendo o mesmo.
Sacana. John Matthew.
Como se ela necessitasse desta merda.
Agora, enquanto atravessava o rebanho humano, foi rude, e não lhe importou empurrar  um casal de bailarinos com força. Quase esperava que alguém se queixasse para poder derrubá-lo sobre o traseiro.
Seu escritório estava na parte de atrás da sobreloja, tão longe como era possível de onde tinha lugar o sexo contratado e do espaço privado de Rehvenge onde se levavam a cabo os entendimentos e as surras. Como chefe de segurança, ela era a interface primária com a polícia, e não havia razão alguma para levar os uniformes azuis mais perto da ação do que devessem estar.
Limpar as mentes dos humanos era uma ferramenta útil, mas tinha suas complicações.
Sua porta estava aberta e avaliou o detetive de costas. Não era muito alto, mas aprovava sua constituição bem fornida. Sua jaqueta esporte era do Men's Wearhouse, seus sapatos, Florsheim. O relógio que aparecia por debaixo de sua manga era Seiko.
Quando se voltou para olhá-la, seus olhos escuros eram ardilosos como os do Sherlock. Pode ser que não estivesse ganhando um montão de dinheiro, mas não era tolo.
— Detetive. — lhe disse, fechando a porta e passando junto a ele para tomar seu lugar atrás da mesa.
Seu escritório estava virtualmente vazio. Não havia fotos. Nem plantas. Nem sequer um telefone ou um computador. Os arquivos que estavam nas prateleiras de três ferrolhos a prova de fogo eram relativos à parte legítima do negócio, e o cesto de papéis era um triturador de papel.
O que significava que o Detetive da Cruz não tinha averiguado absolutamente nada durante os cento e vinte segundos que tinha passado sozinho no cômodo.
Da Cruz tirou sua credencial e a mostrou.
— Estou aqui por causa de uma de suas empregadas.
Xhex fingiu inclinar-se e estudar a credencial, mas não precisava. Seu lado symphath lhe dizia tudo o que precisava saber. As emoções do detetive continham a mescla adequada de suspicácia, preocupação, resolução e encher o saco. Levava seu trabalho a sério, e estava aqui por negócios.
— Que empregada? — perguntou.
— Chrissy Andrews.
Xhex se recostou para trás em sua cadeira.
— Quando foi assassinada?
— Como sabe que está morta?
— Não brinque comigo, Detetive. Por qual outra razão alguém da Homicídios ia perguntar por ela?
— Sinto muito, estou em modo interrogatório. — deslizou sua credencial de volta no bolso interior do peito e se sentou de frente a ela na cadeira de respaldo duro — O inquilino de baixo de seu apartamento despertou com uma mancha de sangue no teto e chamou à polícia. Ninguém no edifício de apartamentos admitiu conhecer a Senhora Andrews, e não tinha nenhum parente próximo a que possamos localizar. Não obstante, enquanto revistávamos sua casa, encontramos declarações de impostos deste clube como empregador dela. Para abreviar, necessitamos que alguém identifique o corpo...
Xhex se levantou, com a palavra filho da puta rondando por seu crânio.
— Eu o farei. Deixe-me organizar a meus homens para poder sair.
Da Cruz piscou, como se estivesse surpreso de que fosse tão rápida.
— Você... Ah, quer que a leve ao necrotério?
— St. Francis?
— Sim.
— Conheço o caminho. Encontrarei-me ali com você em vinte minutos.
Da Cruz ficou em pé lentamente, com os olhos fixos em seu rosto, como se estivesse procurando sinais de nervosismo.
— Suponho que isso é um transtorno.
— Não se preocupe, Detetive. Não vou desmaiar à vista de um cadáver.
Ele a olhou de cima a abaixo.
— Sabe… De certo modo isso não me preocupa.


Capítulo 4

 
Quando o carro de Rehvenge estava dentro dos limites da cidade de Caldwell, desejou como o inferno ir diretamente ao ZeroSum. Entretanto, era mais esperto que isso. Tinha problemas.
Desde que tinha deixado o refúgio de Montrag em Connecticut, já tinha estacionado seu Bentley a um lado da estrada duas vezes para injetar-se dopamina. De todas as formas, sua droga milagrosa voltava a falhar. Se tivesse mais dessa merda no carro, teria se disparado outra injeção, mas já tinha acabado.
A ironia de um camelo[12] tendo que ir a outro camelo rapidamente não tinha desperdício, e era uma maldita vergonha que não houvesse mais demanda de neurotransmissores no mercado negro. Tal como a coisa estava, o único fornecimento de Rehv era através de meios legítimos, mas ia ter que arrumar isso. Se era o bastante esperto para subministrar X, coca, erva, meta, OxyC, e heroína através de seus dois clubes, certamente poderia averiguar como demônios conseguir suas próprias ampolas de dopamina.
— Ah, vamos, move o rabo. É só uma maldita rampa de saída. Você com certeza já viu uma antes.
Fazia um bom tempo na auto-estrada, mas agora que estava na cidade, o tráfego atrasava seu progresso, e não só por causa do congestionamento. Com sua falta de percepção de profundidade, julgar distâncias entre pára-choques era problemático, assim tinha que ir com muito mais cuidado do que gostava.
E, além disso, tinha este fodido idiota com seu calhambeque de mil e duzentos anos e seus exagerados hábitos de freadas.
— Não... Não... Por tudo quanto for sagrado não troque de pista. Já de onde está nem sequer pode ver por seu retrovisor…
Rehv pisou nos freios porque Senhor Tímido realmente estava pensando que seu lugar estava na via rápida e parecia pensar que a forma de conseguir entrar nela requeria parar por completo.
Normalmente, Rehv adorava dirigir. Inclusive preferia dirigir a desmaterializar-se porque estando medicado, era o único momento no que se sentia como se fosse ele mesmo: rápido, ágil e poderoso. Conduzia um Bentley não só porque era chique e pudesse permitir-se um, mas sim pelos seiscentos cavalos que tinha sob o capô. Estar intumescido e confiar em uma bengala para manter o equilíbrio o faziam sentir-se como um macho velho e aleijado a maior parte do tempo, e era bom ser... Normal.
É obvio, a questão de não-sentir tinha seus benefícios. Por exemplo, quando golpeasse a testa contra o volante em outro par de minutos, só ia ver as estrelas. A dor de cabeça? Não representava um problema.
A clínica encoberta da raça vampiro estava quinze minutos depois da ponte que justamente estava subindo, e as instalações não eram suficientes para as necessidades de seus pacientes, sendo pouco mais que um refúgio convertido em hospital de campo. Ainda assim a alternativa Ave Maria era tudo o que a raça tinha no momento, um jogador substituto posto em jogo porque a perna do quarteback[13] se partiu no meio.
Depois das incursões acontecidas durante o verão, Wrath estava trabalhando com o médico da raça para conseguir um novo estabelecimento permanente, mas como tudo, isso levava seu tempo. Com tantos lugares saqueados pela Sociedade Lessening, ninguém pensava que fosse boa idéia utilizar imóveis que já fossem propriedade da raça, porque só Deus sabia quantas localizações mais tinham sido infiltradas. O rei estava procurando outro lugar para comprar, mas tinha que estar isolado...
Rehv pensou em Montrag.
A guerra realmente tinha ficado circunscrita ao assassinato de Wrath?
A retórica, iniciada pelo lado vampiro dado por sua mãe, ondeou através de sua mente, mas não provocou nenhuma emoção absolutamente. O cálculo alagava seus pensamentos. O cálculo sem as travas da moralidade. A conclusão que tinha alcançado quando tinha deixado a casa de Montrag não vacilou, sua resolução só se fez mais forte.
— Obrigado, queridíssima Virgem Escriba. — resmungou quando o calhambeque deslizou fora de seu caminho e sua saída lhe apresentou como um presente, o sinal verde incandescente tinha uma etiqueta com seu nome.
Verde...?
Rehv olhou a seu redor. A pátina vermelha tinha começado a reduzir-se em sua visão, mas as outras cores do mundo reapareciam através da névoa bidimensional, e tomou um profundo fôlego de alívio. Não queria ir drogado à clínica.
Como se tivesse previsto, começou a sentir frio, apesar de que sem dúvida o Bentley estava a uns balsâmicos setenta graus, estendeu o braço para frente e girou o controle do calor. Os calafrios eram outro bom, embora inconveniente, sinal de que a medicação começava a surtir efeito.
Durante toda sua vida, viu-se obrigado a manter em segredo o que era. Os proscritos como ele tinham duas escolhas: se fazer passar por normais ou ser enviados para fora do estado, à colônia, deportados da sociedade como o lixo tóxico que eram. Que fosse mestiço não importava. Se tivesse um pouco de symphath em você, era considerado um deles, e com toda razão. A questão com os symphath era que adoravam muito a maldade em si mesmo para poder confiar neles.
Foda, sua sina foi fixada esta noite. Olhe o que estava disposto a fazer. Uma conversa e ia apertar o gatilho... Nem sequer porque tivesse que fazê-lo, só porque desejava. Necessitava-o, dizendo bem. Os jogos de poder eram oxigênio para seu lado malvado, eram inegáveis e substanciosos por sua uma vez. E os motivos atrás de sua escolha eram tipicamente symphath: serviam a ele e a ninguém mais, nem sequer ao rei com quem tinha uma espécie de amizade.
Essa era a razão pela qual, que se um vampiro comum sabia de um proscrito que andasse rondando entre a população geral, a lei opinava que tinha que dar parte do indivíduo, para sua deportação ou enfrentar cargos criminais: regular o paradeiro dos sociopatas e mantê-los afastados dos cidadãos morais e respeitosos da lei era um saudável instinto de sobrevivência em qualquer sociedade.
Vinte minutos mais tarde, Rehv estacionou ante uma grade de ferro que definitivamente estava manufaturada para fazer prevalecer sua função por cima de seu aspecto. A coisa não tinha nenhuma graça absolutamente, não eram mais que sólidas varas fixadas e soldadas entre si coroadas na parte superior com uma bobina de arame farpado. À esquerda havia um intercomunicador, e quando baixou o vidro para apertar o botão de chamada, as câmeras de segurança enfocaram a placa de seu carro, o pára-brisa dianteiro e a porta do condutor.
Assim não lhe surpreendeu o tom tenso da voz feminina que respondeu.
— Senhor... Não tinha conhecimento de que tivesse uma consulta.
— Não tenho.
Pausa.
— Como paciente ambulatorial que não necessita urgência, o tempo de espera poderia ser bastante longo. Talvez prefira programar uma consulta...
Fulminou com o olhar o visor da câmera mais próxima.
— Deixe-me entrar. Agora. Tenho que ver o Havers. E é uma emergência.
Tinha que voltar para o clube e marcar presença. As quatro horas que já tinha perdido essa noite eram toda uma vida quando se tratava de administrar lugares como o ZeroSum e o Iron Mask. A merda não só ocorria em lugares como esses, eram nosso pão de cada dia, e em seu braço tinha tatuado Eu Digo Que Vou A Missa nos nódulos.
Depois de um momento, essas feias grades, sólidas como rochas se abriram, e não perdeu tempo no caminho de acesso de um quilômetro de comprimento.
Quando virou na última curva, a casa que apareceu diante dele não merecia o tipo de segurança que tinha, ao menos não a primeira vista. A estrutura de dois andares era apenas colonial, e estava totalmente nua. Sem alpendres. Sem portinhas. Sem chaminés. Sem plantas.
Comparada com a velha casa e clínica do Havers ficava como um pobre abrigo de ferramentas no jardim.
Estacionou em frente da fileira de garagens independentes onde se guardavam as ambulâncias e saiu. O fato de que a fria noite de dezembro lhe fizesse estremecer foi outro bom sinal, e estendeu o braço para o assento traseiro do Bentley para tirar sua bengala e um de seus sobretudos de Zibelina. Junto com o intumescimento, a desvantagem de sua máscara química era uma queda na temperatura interna que convertia suas veias em espirais de ar condicionado. Viver noite e dia com um corpo que não podia sentir nem esquentar não era uma festa, mas tampouco é que tivesse escolha.
Talvez se sua mãe e sua irmã não tivessem sido normais, poderia ter cedido ao Darth Vader e abraçado o lado escuro, vivendo seus dias fodendo com as mentes de seus camaradas e fazer dano. Mas tinha posto a si mesmo em situação de ser o cabeça de seu grupo familiar, e isso lhe mantinha nesta situação que não estava nem aqui nem ali.
Rehv caminhou ao longo da casa colonial, fechando o sobretudo mais firmemente sobre a garganta. Quando chegou à altura da porta de aspecto insignificante, apertou o botão que estava embutido na lateral de alumínio e olhou o olho eletrônico. Um momento mais tarde, uma fechadura de ar se abriu com um chiado, e entrou em uma sala branca do tamanho de um armário embutido. Depois de olhar fixamente de cara à câmara, abriu-se outro ferrolho, um painel oculto retrocedeu, e desceu um lance de escadas. Outra comprovação. Outra porta. E então enfim dentro.
A área de recepção era como a espera para pacientes e familiares de qualquer clínica, com filas de cadeiras e revistas sobre mesinhas, uma TV e algumas plantas. Era menor que a da antiga clínica, mas estava limpa e bem ordenada. As duas fêmeas sentadas ficaram tensas e lhe olharam.
— Por aqui, senhor.
Rehv sorriu à enfermeira que saiu detrás do escritório de recepção. Para ele, uma “longa espera” era sempre uma espera em uma sala de exame. Às enfermeiras não gostavam que pusesse nervosa às pessoas que estavam naquelas filas de cadeiras, e a estas tampouco gostava de tê-lo por perto.
Parecia bem a ele. Não era do tipo sociável.
A sala de exame a que foi conduzido estava localizada no lado de não-emergência da clínica e era uma em que já tinha estado antes. Tinha estado em todas elas antes.
— O doutor está em cirurgia e o resto do pessoal está com outros pacientes, mas farei que uma colega venha tomar seus sinais vitais assim que possa.
A enfermeira lhe deixou como se alguém tivesse tido uma parada cardíaca corredor abaixo e ela fosse a única com pás desfibriladoras.
Rehv subiu à maca, permanecendo com o casaco e com a bengala na palma da mão. Para passar o tempo, fechou os olhos e deixou que as emoções do lugar gotejassem nele como uma vista panorâmica: as paredes do porão se dissolveram, e os ralos emocionais de cada indivíduo emergiram na escuridão, uma multidão de diferentes vulnerabilidades, ansiedades e debilidades foram expostas a seu lado symphath.
Ele tinha o controle remoto para todas elas, sabendo instintivamente que botões pulsar na enfermeira fêmea que estava na sala do lado e a quem lhe preocupava que seu hellren já não se sentisse atraído por ela... Mas que de todas as formas tinha comido muito na Primeira Comida. E no macho que estava tratando por que tinha caído pelas escadas cortando o braço... Porque tinha estado bebendo. E o farmacêutico do outro lado do corredor que até a pouco estava roubando Xanax para seu uso pessoal... Até que tinha descoberto que as câmeras ocultas que havia no lugar o estavam enfocando.
A autodestruição em outros era o reality show favorito de um sympath, e era especialmente bom quando você era o produtor. E apesar de que sua visão tinha voltado para a “normalidade” e seu corpo estava intumescido e frio, o que era em seu interior estava somente reprimido, mas não esgotado.
Para toda classe de funções que podia preparar, havia uma fonte interminável de inspiração e financiamento.
 
  —Merda.
Enquanto Butch estacionava o Escalade em frente às garagens da clínica, a boca de Wrath seguiu exercitando-se no terreno das maldições. Ante os faróis do SUV, Vishous ficou iluminado como se fosse uma garota de calendário, todo estendido sobre o capô de um Bentley muito familiar.
Wrath soltou seu cinto de segurança e abriu a porta.
— Surpresa, surpresa, meu senhor. — disse V enquanto se endireitava e dava uns golpes no capô do sedã — Deve ter sido uma reunião muito curta no centro da cidade com nosso amigo Rehvenge, né? A menos que esse cara tenha descoberto como estar em dois lugares ao mesmo tempo Em todo caso, tenho que conhecer seu segredo, não?
Filho. Da. Puta.
Wrath saiu do SUV e decidiu que o melhor curso de ação era ignorar o Irmão. Outras opções incluíam tentar debater até encontrar uma saída para a mentira dita, o que não era uma boa idéia porque de todos os defeitos de V, nenhum era no terreno intelectual; ou a outra alternativa; instigar uma briga a murros, o que seria só uma distração temporária e esbanjaria tempo quando ambos tinham que reparar a seu Humpty Dumpty[14].
Rodeando o carro, Wrath abriu a porta traseira do Escalade.
— Cure o seu menino. Eu me encarrego do corpo.
Quando carregou o peso sem vida do civil e se girou, V olhou fixamente o rosto que tinha sido golpeado até ficar irreconhecível.
— Maldita seja. — ofegou V.
Nesse momento, Butch saiu cambaleando-se detrás do volante, feito uma merda. Enquanto o aroma de talco para bebês flutuava sobre eles, lhe afrouxaram os joelhos e logo que pôde agarrou a porta em busca de apoio.
Vishous se aproximou como um raio e tomou ao polícia em seus braços, lhe segurando firmemente.
— Merda, homem, como está?
— Preparado... Para tudo. — Butch se pendurou em seu melhor amigo — Só preciso estar sob o abajur de calor um momento.
— Cure-o. — disse Wrath enquanto começava a caminhar para a clínica — Eu vou entrar.
Enquanto se afastava, as portas do Escalade se fecharam uma depois da outra, e depois houve um brilho como se as nuvens houvessem se separado deixando ver à lua. Sabia o que esses dois estavam fazendo no interior do SUV, porque tinha visto a rotina uma ou duas vezes: abraçavam um ao outro e a luz branca da mão de V banhava a ambos, o mal que Butch tinha inalado se filtrava no V.
Graças a Deus que havia uma forma de limpar essa merda do polícia. E ser um curador também era bom para o V.
Wrath chegou à primeira porta da clínica e simplesmente olhou à câmera de segurança. Abriram-lhe imediatamente, e imediatamente a fechadura de ar comprimido se soltou e o painel oculto para as escadas se abriu. Não demorou nada em descer à clínica.
Ao rei da raça com um macho morto nos braços não retinham nem um nano segundo.
Deteve-se no patamar enquanto se abria a última fechadura. Olhando à câmera, disse:
— Antes de mais nada, tragam uma maca e um lençol.
— Estamos fazendo isso agora mesmo, meu senhor. — disse uma voz diminuta.
Não mais de um segundo depois, duas enfermeiras abriram a porta, alguém estava convertendo um lençol em uma cortina para guardar a privacidade enquanto a outra empurrava uma maca até o pé das escadas. Com braços fortes e gentis, Wrath pousou ao civil tão cuidadosamente como se o homem estivesse vivo e cada osso de seu corpo fraturado; então a enfermeira que tinha dirigido a maca tomou outro lençol que vinha dobrado com forma de quadrado e o agitou para desdobrá-lo. Wrath a deteve antes que cobrisse o corpo.
— Eu o farei. — disse, tomando o lençol.
Ela o entregou com uma reverência.
Pronunciando as palavras sagradas na Antiga Língua, Wrath converteu a humilde capa de algodão em um apropriado sudário mortuário. Depois de ter rezado pela alma do homem e lhe desejar uma viagem livre e fácil ao Fade, ele e as enfermeiras guardaram um momento de silêncio antes que o corpo fosse coberto.
— Não temos identificação. — disse Wrath suspirando enquanto alisava a borda do lençol — Alguma de vocês reconhece sua roupa? O relógio? Algo?
Ambas as enfermeiras sacudiram as cabeças, e uma murmurou:
— Poremos no necrotério e esperaremos. É tudo o que podemos fazer. Sua família virá procurar por ele.
Wrath retrocedeu e observou como levavam o corpo na maca. Por nenhuma razão em particular, notou que a roda dianteira direita rebolava ao avançar, como se fosse nova no trabalho e lhe preocupasse sua atuação... Embora não fosse por isso que se fixou nela, mas sim pelo suave assobio de sua má calibrada.
Não encaixava bem. Não agüentava bem sua carga.
Wrath se sentiu identificado com ela.
Esta chatíssima guerra com a Sociedade Lessening já durava muito, e inclusive com todo o poder que ele tinha e toda a resolução que sentia em seu coração, sua raça não estava ganhando: agüentar firmemente contra o inimigo era simplesmente uma forma de perder por pontos, porque inocentes seguiam morrendo.
Girou para as escadas e cheirou o medo e respeito das duas fêmeas sentadas nas cadeiras de plástico da área de espera. Com um frenético arrastar de pés, ficaram em pé e se inclinaram ante ele, a deferência ressonou em suas vísceras como uma patada nas partes baixas. Aqui estava ele entregando a mais recente, mas nem de longe a última, vítima casual na luta, e estas duas ainda lhe apresentavam seus respeitos.
Devolveu-lhes a inclinação, mas não pôde pronunciar nenhuma palavra. O único vocabulário que tinha nesse momento estava cheio do melhor do George Carlin, e tudo isso dirigido contra si mesmo.
A enfermeira que tinha cumprido com seu dever de escudo terminou de dobrar o lençol que tinha utilizado.
— Meu senhor, talvez tenha um momento para ver o Havers. Deverá sair de cirurgia em uns quinze minutos. Parece que você está ferido.
— Tenho que voltar para... — deteve-se antes que lhe escapassem as palavras “campo de batalha” — Tenho que ir. Por favor, me façam saber o que averiguarem da família desse macho, ok? Quero conhecê-los.
Ela fez uma reverência e esperou, porque tinha intenção de beijar o enorme diamante negro que descansava no dedo anelar da mão direita de Wrath.
Wrath fechou com força seus débeis olhos e estendeu aquilo que ela estava procurando para render comemoração.
Sentiu os dedos da mulher, frescos e ligeiros sobre sua pele, seu fôlego e seus lábios foram o mais ligeiro roce. E ainda assim sentiu como se lhe açoitassem.
Enquanto se endireitava, disse-lhe com reverência:
— Que tudo corra esta noite, meu senhor
— Para você em suas horas também, leal súdita.
Deu a volta e subiu trotando as escadas, necessitando mais oxigênio do que havia na clínica. Justo quando chegava à última porta, tropeçou com uma enfermeira que estava entrando tão rápido como ele ia saindo. O impacto arrancou a bolsa negra do ombro da mulher e só teve tempo de apanhá-la antes que caísse ao chão junto com esta.
— Oh, caralho. — ladrou, deixando cair de joelhos para lhe recolher as coisas — Sinto.
— Meu senhor! — ela fez uma profunda reverência e logo obviamente se precaveu de que estava recolhendo as coisas — Não deve fazer isso. Por favor, me deixe...
— Não, foi minha culpa.
Colocou bruscamente o que parecia ser uma saia e um suéter de volta no interior da bolsa e depois quase lhe parte a cabeça ao levantar-se repentinamente.
Voltou a agarrá-la pelo braço.
— Merda, sinto muito. Outra vez...
— Estou bem... De verdade.
A bolsa trocou de mãos em uma precipitada confusão, passando de alguém que tinha pressa a alguém que estava sobressaltado.
— Pegou? — perguntou ele, preparado para começar a suplicar à Virgem Escriba que lhe deixasse sair.
— Ah, sim, mas... — seu tom mudou de reverente a clínico — Está sangrando, meu senhor.
Ele ignorou o comentário e a soltou. Aliviado ao ver que se mantinha em pé por si mesma, desejou-lhe boa noite e que fosse bem na Antiga Língua.
— Meu senhor, deveria ver...
— Lamento tê-la derrubado. — gritou por cima de seu ombro.
Abriu de um golpe a última porta e se dobrou enquanto o ar fresco lhe alagava. As profundas inspirações lhe esclareceram cabeça, e permitiu a si mesmo apoiar-se contra o revestimento de alumínio da clínica.
Quando a dor de cabeça começou a instalar-se atrás de seus olhos novamente, subiu os óculos escuros e esfregou o osso do nariz. Bem. Próxima parada... O endereço falso do lesser.
Tinha uma jarra para recolher.
Deixando cair os óculos de volta ao seu lugar, endireitou-se e...
— Não tão rápido, meu senhor. — disse V, materializando-se de repente diante dele — Você e eu temos que conversar.
Wrath despiu as presas.
— Não estou de humor para conversas, V.
— Genial. Merda.
 

Capítulo 5


Ehlena observou o rei da raça se afastar e quase partir a porta em duas ao sair.
Cara, o vampiro era grande e tinha um aspecto temível. E ser virtualmente enrolada por ele pôs a cereja final de esgotamento sobre o bolo do drama.
Alisando o cabelo e pendurando a bolsa em seu lugar, começou a descer pela escada depois de passar o ponto de controle interno. Só estava chegando uma hora atrasada para trabalhar porque — milagre dos milagres — a enfermeira de seu pai estava livre e conseguiu ir cedo. Agradecia à Virgem Escriba por Lusie.
No que se referia a ataques fortes, o de seu pai não tinha sido tão terrível como poderia ter sido, e tinha a sensação de que devia isso ao fato de que acabara de tomar os medicamentos logo antes que lhe golpeasse o ataque. Antes das pílulas, a pior de suas crises tinha durado toda a noite, assim em certo sentido, esta noite tinha sido um sinal de progresso.
Entretanto, isso não evitava que lhe rompesse o maldito coração.
Enquanto se aproximava da última câmera, Ehlena sentiu que o peso de sua bolsa se incrementava. Tinha estado pronta para cancelar seu encontro e deixar a muda de roupa em casa, mas Lusie a tinha convencido do contrário. A pergunta que a outra enfermeira tinha feito lhe tinha tocado fundo:
— Quando foi a última vez que saiu desta casa para outra coisa que não fosse trabalho?
Ehlena não tinha respondido por que era reservada por natureza… E porque ficou em branco, sem resposta.
O que era um ponto a favor de Lusie, não? Os enfermeiros tinham que ocupar-se de si mesmos, e isso implicava ter uma vida além de qualquer enfermidade que lhes tivesse obrigado a desempenhar-se como profissionais. Deus sabia que Ehlena falava disto com os membros da família de seus pacientes com enfermidades crônicas o tempo todo, e o conselho era tão sensato como prático.
Ao menos quando se tratava dos outros. Dizendo a si mesma, sentia-se egoísta.
Assim… Estava enrolando em relação ao encontro. Com seu turno terminando perto da alvorada, não teria tempo para ir para sua casa a verificar seu pai primeiro. Tal como as coisas estavam, ela e o macho que a tinha convidado para sair teriam sorte se conseguissem ter sequer uma hora de bate-papo no restaurante que permanecia aberto toda a noite antes que a intrometida luz do sol pusesse fim ao assunto.
E apesar de tudo, tinha estado ansiosa para sair, ao ponto do desespero, o que a fazia sentir-se tremendamente culpada.
Deus… Isso era típico. A consciência impulsionando-a em uma direção, a solidão em outra.
Na área de recepção, foi diretamente para a supervisora de enfermaria, que estava em frente à mesa do computador.
— Sinto muito, eu…
Catya fez uma pausa no que estava fazendo e estendeu uma mão.
— Como vai?
Por uma fração de segundo, Ehlena só pôde piscar. Odiava que todo mundo no trabalho estivesse informado dos problemas de seu pai e que alguns inclusive o tivessem visto em seu pior momento.
Embora a enfermidade o tivesse despojado de seu orgulho, ela ainda tinha algum em seu nome.
Deu uma rápida palmada na mão de sua chefe e ficou fora de seu alcance.
— Obrigado por perguntar. Agora está calmo e sua enfermeira está com ele. Por sorte, eu acabava de lhe dar sua medicação.
— Precisa de um minuto?
— Não. Como estamos?
O sorriso de Catya parecia mais uma careta que um sorriso, como se estivesse mordendo a língua. Outra vez.
— Não tem que ser forte assim.
— Sim. Tenho que ser. — Ehlena olhou a seu redor e guardou um estremecimento para si. Mais integrantes do pessoal se aproximavam dela pelo corredor, um destacamento de dez pessoas caminhando lado a lado levando uma enorme quantidade de preocupada determinação — Onde precisa de mim?
Tinha que evitar… Não teve sorte.
No momento todas as enfermeiras, exceto as da Sala de Operações que estavam ocupadas com o Havers, tinham formado um círculo ao redor dela, e Ehlena fechou a garganta quando seus colegas soltaram um coro de “Como está?”. Deus, sentia tanta claustrofobia como uma fêmea grávida presa em um elevador sufocante.
— Estou bem, obrigada a todas…
A última integrante do pessoal se aproximou. Depois de expressar sua compaixão, a fêmea sacudiu a cabeça.
— Não é minha intenção falar de trabalho…
— Por favor, faça-o. — resmungou Ehlena.
A enfermeira sorriu com respeito, como se estivesse impressionada pela fortaleza de Ehlena.
— Bom… Ele retornou e está em uma das salas de exame. Pego a moeda?
Todo mundo gemeu. Havia só um ele dentro da legião de pacientes machos que tratavam, e jogar a moeda era o que habitualmente fazia o pessoal para decidir quem devia ocupar-se dele. Era como um encontro as escuras levado a extremo.
Falando de um modo geral, todas as enfermeiras mantinham uma distância profissional com seus pacientes, porque ou o fazia, ou te consumia. Entretanto com ele, o pessoal permanecia afastado por outros motivos que não estavam relacionados com o trabalho. A maioria das fêmeas ficava nervosa em sua presença… Mesmo as mais fortes.
Ehlena? Nem tanto. Sim, o cara tinha um ar ao estilo político importante, com aqueles trajes negros de estilo diplomático, seu corte de cabelo moicano e seus olhos de ametista irradiando uma mensagem “não me irrite se quer continuar respirando”. E era certo, quando te encontrava presa em uma das salas de exame com ele, sentia-se impulsionada a manter o olho na saída se por acaso tinha que usá-la. E logo vinham aquelas tatuagens que tinha no peito… E o fato de que conservasse sua bengala com ele como se esta não só fosse uma ajuda para caminhar, mas também uma arma. E…
De acordo, então o cara também a punha nervosa.
Mas de todas as formas interrompeu uma discussão sobre quem conseguiu ter o ano 1977.
— Eu faço. Assim compensarei meu atraso.
— Tem certeza? — perguntou alguém — Eu tenho a impressão de que esta noite você já pagou suas dívidas.
— Só me deixe conseguir um pouco de café. Em que sala?
— Coloquei-o na três. — disse a enfermeira.
Entre ovações de “Essa é a minha garota”, Ehlena foi à sala de pessoal, pôs suas coisas em sua mesa, e se serviu de uma xícara de quente e fumegante café “levanta defunto”. O café era forte o bastante para ser considerado um estimulante e fez o seu trabalho maravilhosamente, apagando confusão a mental até deixá-la limpa.
Bom, em sua maior parte limpa.
Enquanto bebia pequenos goles, contemplou a fileira de armários cor nata, os pares de sapatos de rua colocados aqui e lá e os casacos de inverno que penduravam em ganchos. No refeitório, os funcionários tinham suas xícaras favoritas sobre o balcão e seus petiscos prediletos nas estantes, e sobre a mesa redonda havia uma travessa cheia de, o que era esta noite? Petiscos Skittles. Em cima da mesa havia um jornal de anúncios coberto com folhetos sobre eventos, cupons e estúpidas tiras de historietas cômicas e fotos de caras bonitos. A lista de escalas estava a seguir, a parede branca tinha um quadriculado desenhado que representava as próximas duas semanas e estava cheia com nomes escritos em diferentes cores.
Isto era o retrato de uma vida normal, nada disso parecia significativo até que se pensava em toda aquela gente que havia no planeta que não podia manter um emprego, nem desfrutar de uma existência independente nem podia permitir-se dedicar sua energia mental a pequenas distrações… Como, digamos, o fato de que o papel higiênico Cottonelle era cinqüenta centavos mais barato se comprasse o pacote de doze rolos duplos.
Pensar em tudo isto, fez-lhe recordar, uma vez mais que, sair ao mundo real era um privilégio dado por questão de sorte, não um direito, e lhe chateava pensar em seu pai escondido naquela espantosa casinha, lutando com demônios que existiam só em sua mente.
Ele tinha tido uma vida uma vez, uma vida plena. Tinha sido um membro da aristocracia, tinha servido no conselho e tinha sido um erudito de renome. Teve uma shellan a que adorou, uma filha da que sempre tinha estado orgulhoso e uma mansão reconhecida por suas festas. Agora tudo o que tinha era alucinações que lhe torturavam, e embora estas fossem unicamente uma percepção, nunca uma realidade, as vozes não deixavam de ser um cárcere blindado só pelo fato de que ninguém mais pudesse ver as grades nem ouvir o guardião.
Enquanto Ehlena lavava sua xícara, não pôde evitar pensar na injustiça de tudo isso. O que estava bem, supôs. Apesar de tudo o que via em seu trabalho, não tinha se acostumado ao sofrimento, e rezava para não fazê-lo nunca.
Antes de deixar o vestiário, fez-se uma rápida revisão no espelho de corpo inteiro que havia ao lado da porta. Seu uniforme branco estava perfeitamente engomado e limpo como a gaze estéril. Suas meias não tinham fios puxados. Seus sapatos de sola de borracha estavam livres de manchas e de arranhões.
Seu cabelo estava tão bagunçado como ela se sentia.
Soltou-o com um rápido puxão, retorceu-o, e o prendou com o elástico, logo se dirigiu para a sala de exame número três.
O histórico clínico do paciente estava no suporte de plástico transparente montado na parede junto à porta, e respirou fundo quando a tirou e abriu. A coisa era fina, considerando a freqüência com que viam o macho, e não havia quase nenhuma informação registrada na capa, só seu nome, um telefone móvel, e o nome de uma fêmea como familiar mais próximo.
Depois de bater na porta, entrou na sala demonstrando uma confiança que não sentia, com a cabeça alta, a coluna direita e sua inquietação camuflada por uma combinação de atitude e concentração profissional.
— Que tal está esta tarde? — disse, olhando o paciente diretamente nos olhos.
No instante em que seu penetrante olhar ametista enfrentou o seu, não poderia lhe haver dito nem a uma alma o que acabava de sair de sua boca ou se ele tinha respondido. Rehvenge, filho de Rempoon, sugou o pensamento diretamente de sua cabeça, tão certamente como se tivesse drenado o tanque do gerador de seu cérebro e a tivesse deixado sem nada com o que captar uma faísca intelectual solta.
E logo sorriu.
Este macho era uma cobra, era verdadeiramente… Hipnotizante porque era mortal e porque era formoso. Com esse moicano, seu rosto severo e elegante e seu grande corpo, ele era sexo, poder e imprevisibilidade todo envolto em… Bem, um traje negro de estilo diplomático que claramente tinha sido feito sob medida.
— Estou bem, obrigado. — respondeu, solucionando o mistério quanto ao que lhe tinha perguntado — E você?
Quando ela fez uma pausa, ele sorriu um pouco, sem dúvida porque era totalmente consciente de que nenhuma das enfermeiras gostava de compartilhar o mesmo espaço fechado com ele, e evidentemente desfrutava desse fato. Ao menos, assim foi como ela leu sua controlada e velada expressão.
— Perguntei-lhe como estava. — disse arrastando as palavras.
Ehlena pôs o prontuário clínico na escrivaninha e tirou o estetoscópio do bolso.
— Estou muito bem.
— Está certa disso?
— Certíssima. — girando-se para ele, disse — Só vou tirar sua pressão arterial e o ritmo cardíaco.
— E também a temperatura.
— Sim.
— Quer que abra a boca para você agora?
A pele de Ehlena se ruborizou, e disse que não era porque aquela voz profunda com a que tinha feito a pergunta parecesse tão sensual como uma preguiçosa carícia sobre um peito nu.
— Errr… Não.
— Pena.
— Por favor, tire a jaqueta.
— Que grande idéia. Retiro totalmente o “pena”.
Bom plano, pensou ela, pois se sentia propensa a lhe fazer engolir a palavra com o termômetro.
Os ombros de Rehvenge giraram quando fez o que lhe tinha pedido, e com um movimento informal da mão, jogou o que evidentemente era uma peça de arte de roupa de cavalheiro sobre o casaco de Zibelina que tinha dobrado cuidadosamente sobre uma cadeira. Era estranho: sem importar a estação que fosse, ele sempre usava uma daquelas peles.
Essas coisas custavam mais que a casa que Ehlena alugava.
Quando seus dedos longos foram para a abotoadura de diamantes que tinha no pulso direito, deteve-o.
— Poderia, por favor, subir o outro lado? — disse assinalando com a cabeça a parede que havia junto a ele — Há mais espaço para mim a sua esquerda.
Ele vacilou, logo foi subir a manga contrária. Elevando a seda negra por cima do cotovelo, sobre seus bíceps grossos, manteve seu braço girado para seu torso.
Ehlena tirou o esfignomanômetro[15] de uma gaveta e começou a abri-lo enquanto se aproximava dele. Tocá-lo era sempre uma experiência, e esfregou a mão no quadril para preparar-se. Não ajudou. Como era habitual, quando entrou em contato com seu pulso, uma corrente lhe lambeu o braço subindo por ele até aterrissar em seu coração, fazendo que a maldita coisa pulsasse ao ritmo de James Brown até que a shimmy-shimmies[16]* lhe obrigaram a tragar um ofego.
Rezando para que isto não lhe levasse muito tempo, moveu-lhe o braço situando-o em posição para lhe pôr o punho do esfignomanômetro e…
— Bom… Senhor.
As veias que subiam pela curva de seu cotovelo estavam dizimadas pelo uso excessivo, inchadas, arroxeadas, tão rasgadas como se tivesse estado usando pregos em vez de agulhas.
Seus olhos se dispararam aos dele.
— Deve estar muito dolorido.
Fez girar o pulso, liberando-se de seu agarre.
— Não. Não me incomoda.
Um cara duro. Como é que não lhe surpreendia?
— Certo, posso entender por que precisa ver o Havers.
Intencionadamente, estendeu a mão, voltou a lhe girar o braço e pressionou brandamente uma linha vermelha que subia por seus bíceps, dirigindo-se para seu coração.
— Há sinais de infecção.
— Estarei bem.
Tudo o que ela pôde fazer foi arquear as sobrancelhas.
— Alguma vez ouviu falar de sepsis?
— A banda de música alternativa? Claro, mas nunca me passou pela cabeça que você tivesse ouvido falar dela.
Fuzilou-o com o olhar.
— Sepsis como em uma infecção do sangue?
— Hmm, queira inclinar-se sobre a escrivaninha um pouco e me desenhar um quadro explicativo? — seus olhos vagaram, descendendo por suas pernas — Acredito que o encontraria... Muito educativo.
Se qualquer outro macho tivesse saído com esse tipo de linha, lhe teria esbofeteado até lhe fazer ver as estrelas. Infelizmente, quando era essa voz de barítono divina a que falava e esse olhar penetrante de ametista o que fazia o percurso, realmente não se sentia lascivamente manuseada.
Sentia-se acariciada por um amante.
Ehlena resistiu à urgência de um V8 em sua frente. Que demônios estava fazendo? Esta noite tinha um encontro. Com um agradável e razoável macho civil que não tinha sido outra coisa salvo agradável, razoável e muito civilizado.
— Não tenho que lhe desenhar um quadro explicativo. — disse assinalando seu braço com a cabeça — Pode ver por si mesmo aí. Se isso não se curar, vai ficar sistêmico.
E embora levasse roupas elegantes como o manequim sonhado por todo alfaiate, a fria capa cinza da morte não ficava bem.
Ele manteve seu braço contra seus fortes abdominais.
— Levarei em consideração.
Ehlena sacudiu a cabeça e recordou a si mesma que não podia salvar às pessoas de sua própria estupidez só porque tinha uma bata branca pendurando dos ombros e a palavra ENFERMEIRA ao final de seu nome. Além disso, Havers ia ver isso em toda sua glória quando lhe examinasse.
— Muito bem, mas vou tirar a leitura no outro braço. E vou ter que lhe pedir que tire a camisa. O doutor vai quer ver quão longe a infecção chegou.
A boca de Rehvenge se elevou formando um sorriso enquanto alcançava o botão superior de sua camisa.
— Continue assim e logo estarei nu.
Ehlena afastou rapidamente o olhar e desejou com todas as suas forças poder considerá-lo um asco. Certamente lhe viria bem uma injeção de justa indignação que lhe ajudasse a defender-se dele.
— Já sabe, não sou tímido. — disse com essa voz baixa tão sua — Pode olhar se quiser.
— Não, obrigado.
— Pena. — em um tom mais enigmático, acrescentou — Não me importaria que me olhasse.
Enquanto o som da seda movendo-se contra a carne se elevava da mesa de exame, Ehlena revisou desnecessariamente seu histórico médico, voltando a verificar dados que eram absolutamente corretos.
Era estranho. Pelo que as outras enfermeiras haviam dito, não se comportava com elas dessa maneira tão libertina. De fato, mal falava com suas colegas, e essa era parte da razão pela que ficavam tão ansiosas quando estavam com ele. Com um macho assim grande, o silêncio se interpretava como uma ameaça. Isso era um fato da vida. E isso antes que lhe acrescentasse a tatuagem e o moicano de caçador.
— Estou preparado. — disse.
Ehlena girou sobre si mesma e manteve os olhos fixos na parede junto à cabeça dele. Entretanto sua visão periférica funcionava verdadeiramente bem, e era difícil não sentir-se agradecida. O peito de Rehvenge era magnífico, a pele de uma quente cor morena dourada, com músculos que estavam definidos apesar de que seu corpo estivesse relaxado. Em cada um de seus peitorais tinha uma estrela vermelha de cinco pontas tatuada na parte superior, e sabia que tinha mais.
Em seu estômago.
Não é que o tivesse olhado.
Era certo, porque na realidade, ficou embevecida.
— Vai examinar-me o braço? — disse brandamente.
— Não, isso o doutor fará. — esperou que voltasse a dizer “Pena”.
— Acredito que já usei essa palavra suficientes vezes em sua companhia.
Então o olhou nos olhos. Era desse estranho tipo de vampiro que podia ler as mentes dos de sua própria espécie, mas de algum jeito não lhe surpreendeu que este macho formasse parte desse pequeno e estranho grupo.
— Não seja grosseiro. — lhe disse — E não quero que volte a fazer isso.
— Sinto muito.
Ehlena deslizou o punho do esfignomanômetro ao redor de seus bíceps, colocou o estetoscópio nos ouvidos, e tirou a pressão arterial. Entre os pequenos piff-piff-piff do globo ao inflar a manga para que estivesse ajustada, sentiu o fio nele, o tenso poder, e seu coração deu um salto. Estava particularmente incisivo esta noite, e se perguntou por que.
Salvo que isso não era assunto dela, ou era?
Quando liberou a válvula e o punho soltou um assobio comprido e lento de liberação, deu um passo atrás se afastando. Ele era simplesmente… Muito, por todos os lados. Especialmente nesse momento.
— Não tenha medo. — sussurrou.
— Não tenho.
— Tem certeza?
— Muita certeza. — mentiu.


Capítulo 6


Mentia, pensou Rehv. Definitivamente tinha medo dele. Falando de pena...
Esta era a enfermeira que Rehv esperava que lhe tocasse cada vez que ia ali. Era a que fazia com que suas visitas fossem parcialmente suportáveis. Esta era sua Ehlena.
Ok, não era nem um pouco sua. Sabia seu nome só porque estava escrito na placa azul e branca de sua bata. Via-o sozinha quando vinha a tratamento. E não gostava dele absolutamente.
Mas igualmente pensava nela como dele, e assim eram as coisas. A questão era, que tinham algo em comum, algo que transcendia os limites entre espécies e eclipsava as diferentes camadas sociais e os unia embora ela o teria negado.
Ela também estava sozinha, e da mesma forma em que ele estava.
Seu ralo emocional tinha o mesmo rastro que o dele, a que tinha Xhex, Trez e iAm: Seus sentimentos estavam rodeados pelo vazio de desconexão de alguém separado de sua tribo. Vivendo entre outros, mas essencialmente separado de tudo. Um ermitão, um pária, alguém que tinha sido expulso.
Não conhecia os motivos, mas estava fodidamente seguro de que a vida era assim para ela, e isso era o que tinha captado sua atenção primeiro quando a tinha conhecido. Seus olhos, sua voz e sua fragrância tinham sido o seguinte. Sua inteligência e boca rápida tinham selado o trato.
— Cento e sessenta e oito por noventa e cinco. É alta. — desabotoou o punho com um rápido puxão, sem dúvida desejando que fosse uma tira de sua pele — Acredito que seu corpo está tentando lutar contra a infecção de seu braço.
Oh, seu corpo estava lutando contra algo, com certeza, mas não tinha absolutamente nada a ver com o que fosse que se cozinhava na zona onde se injetava. Com seu lado sympath lutando contra a dopamina, a condição de impotência na qual normalmente se achava quando estava totalmente medicado ainda não se apresentara.
Resultado?
Seu pênis estava rígido como um taco de beisebol dentro das calças folgadas. O que, contra a opinião popular, na realidade não era um bom sinal... Especialmente esta noite. Depois dessa conversa com Montrag, sentia-se faminto, estimulado... Um pouco amalucado pelo ardor interior.
E Ehlena era simplesmente tão... Formosa.
Embora não como estava acostumado a ser suas garotas, não de uma forma tão óbvia, exagerada, injetada, implantada e escultural. Ehlena era naturalmente encantadora, tinha traços finos e delicados, o cabelo loiro dourado e umas pernas longas e esbeltas. Seus lábios eram rosados porque eram rosados... Não por uma capa de maquiagem brilhante e cristalizada com uma durabilidade de dezoito horas. E seus olhos cor caramelo eram luminescentes porque eram uma mescla de amarelo, vermelho e dourado... Não por um montão de camadas de sombra de olhos e rímel. E suas bochechas estavam ruborizadas porque ele lhe estava colocando sob a pele.
O que, embora pressentia que tinha sido uma noite dura para ela, não lhe importava absolutamente.
Mas esse é o symphath em ti, não? Pensou com ironia.
Curioso, a maior parte do tempo não lhe importava ser o que era. Sua vida como a tinha conhecido, sempre tinha sido uma miragem constante que alternava mentiras e enganos e isso era o que havia. Não obstante quando estava com ela, desejava ser normal.
— Vemos sua temperatura? — disse ela, indo procurar um termômetro eletrônico na mesa.
— Está mais alta do que o normal.
Seus olhos âmbar voaram para os dele.
— Por seu braço.
— Não, por seus olhos.
Ela piscou, depois pareceu sacudir a si mesma.
— Tenho sérias dúvidas a respeito disso.
— Então subestima seu atrativo.
Quando sacudiu a cabeça e colocou uma capinha plástica sobre a varinha prateada, ele pôde perceber o aroma fugaz de seu perfume.
Suas presas se alargaram.
— Abra. — levantou o termômetro e esperou — E bem?
Rehv olhou fixamente esses assombrosos olhos tricolores e deixou cair a mandíbula. Ela se inclinou, tão profissional como sempre, só para ficar congelada. Enquanto lhe estudava os caninos, em sua fragrância aflorou algo escuro e erótico.
O triunfo inflamou as veias de Rehv enquanto grunhia.
— Faça-me isso.
Passou um comprido momento, durante o qual os dois estiveram unidos por fios invisíveis de paixão e desejo. Depois a boca dela formou uma linha.
— Nunca, mas tomarei a temperatura, porque devo fazê-lo.
Embutiu-lhe o termômetro entre os lábios e ele teve que apertar os dentes para evitar que a coisa lhe cravasse uma das amídalas.
Entretanto, estava tudo bem. Embora não pudesse tê-la, excitava-a. E isso era mais do que se merecia.
Produziu-se um bip, um intervalo, e outro bip.
— Cento e quarenta e nove. — disse ela enquanto retrocedia e atirava a capinha de plástico ao cesto de lixo de risco biológico — Havers estará com você logo que seja possível.
A porta se fechou atrás dela com a dura bofetada silábica da palavra que começava com o F.
Homem, era ardente.
Rehv franziu o cenho, toda a questão da atração sexual lhe recordava algo em que não gostava de pensar.
Alguém, mas bem.
A ereção que tinha se desinflou instantaneamente quando se deu conta que era segunda-feira de noite. O que significava que amanhã era terça-feira. Primeira terça-feira do último mês do ano.
O sympath nele vibrou apesar de que cada centímetro de sua pele se esticou como se seus bolsos estivessem cheios de aranhas.
Amanhã de noite ele e sua chantagista teriam outra de seus encontros. Jesus, como era possível que tivesse passado outro mês? Parecia que cada vez que se dava a volta era a primeira terça-feira de novo e estivesse conduzindo para o norte do estado para essa cabana deixada pela mão de Deus para outra atuação obrigada.
O alcoviteiro convertido em puta.
Jogos de poder, extremos afiados e foder eram basicamente a moeda de troca nas reuniões com sua chantagista, e tinham sido as bases de sua vida “amorosa” durante os últimos vinte e cinco anos. Tudo isso era sujo e lhe ofendia, era malvado e degradante, e o fazia uma e outra vez para manter seu segredo a salvo.
E também porque seu lado escuro se liberava com isso. Era Amor, ao Estilo Symphath, o único momento em que podia ser como era sem conter-se absolutamente, um tanto de horrorosa liberdade. Depois de tudo, por muito que medicasse a si mesmo e tentasse encaixar, estava preso pelo legado de seu pai morto, pelo sangue malvado que corria por suas veias. Não podia negociar com seu DNA, e embora fosse mestiço, o proscrito nele era dominante.
Assim quando se tratava de uma mulher de valor como Ehlena, ele sempre ia estar no lado mais afastado do vidro, pressionando o nariz contra ele, com as palmas estendidas pelo desejo, sem jamais poder aproximar-se o suficiente para tocar. Era o mais justo para ela. Ao contrário que sua chantagista, ela não merecia o que ele tinha para oferecer.
Os princípios morais que ensinou a si mesmo indicavam que ao menos isso era certo.
Sim. Yu-hu. Bom pra ele.
Sua próxima tatuagem ia ser de um fodido halo sobre a cabeça.
Quando baixou o olhar ao desastre que se estendia por seu braço esquerdo, viu com total clareza que estava piorando. Não só era uma infecção bacteriana devido a que utilizava deliberadamente agulhas sem esterilizar sobre a pele que não tinha sido limpa com álcool. Era um lento suicídio, e essa era a razão pela qual preferia que o condenassem antes que mostrar-lhe ao doutor. Sabia exatamente o que ocorreria se esse veneno se metia profundamente dentro de sua corrente sangüínea, e desejava que acontecesse logo e se apoderasse dele.
A porta se abriu e levantou o olhar, preparado para dançar o tango com o Havers... Exceto que não era o doutor. A enfermeira de Rehv havia retornado, e não parecia feliz.
De fato, parecia exausta, como se ele não fosse mais que uma moléstia a mais em sua lista e não tivesse energia para tratar com a merda que trazia quando estava com ela.
— Falei com o doutor. — lhe disse — Está na sala de cirurgia fechando, assim demorará um pouco. Pediu-me que lhe tirasse um pouco de sangue...
— Sinto. — balbuciou Rehv.
A mão de Ehlena foi até o pescoço de seu uniforme e puxou as duas metades para fechá-las um pouco mais.
— Perdão?
— Lamento ter jogado com você. Não necessita isso de um paciente. Especialmente em uma noite como esta.
Ela franziu o cenho.
— Estou bem.
— Não, não está. E não, não estou lendo sua mente. É só que parece cansada. —repentinamente, soube como ela se sentia — Eu gostaria de compensar isso.
— Não é necessário...
— Convidando você para jantar.
Bom, não tinha querido dizer isso. E dado que acabava de auto felicitar-se por saber manter a distância, isto também lhe convertia em um hipócrita consigo mesmo.
Evidentemente a próxima tatuagem devia estar mais na linha de umas orelhas de burro.
Porque estava atuando como um.
Depois de seu convite, não lhe surpreendeu nem um pouco que Ehlena lhe olhasse como se estivesse louco. Em termos gerais, quando um macho se comportava como ele tinha feito, a última coisa que qualquer fêmea desejaria fazer era passar mais tempo com ele.
— Sinto muito, não. — nem sequer alinhavou o obrigado — Nunca saio com pacientes.
— Ok. Entendo.
Enquanto preparava os instrumentos para tirar sangue e colocava um par de luvas de borracha, Rehv estendeu o braço para a jaqueta de seu traje e tirou seu cartão, ocultando-o em sua grande palma.
Foi rápida no procedimento, trabalhando sobre seu braço bom, enchendo com rapidez as ampolas de alumínio. Menos mal que não eram de vidro e que Havers fazia todas as provas ele mesmo. O sangue de vampiro era vermelho. O de symphath era azul. A cor do seu era algo entre ambas, mas ele e Havers tinham um acordo. Certo, o doutor não era consciente de como funcionavam as coisas entre eles, mas era a única forma de ser tratado sem comprometer o médico da raça.
Quando Ehlena acabou, selou as ampolas com plugues de plástico branco, tirou as luvas e se dirigiu para a porta como se ele fosse um mau aroma.
— Espera. — lhe disse.
— Quer algum calmante para o braço?
— Não, quero que fique com isto. — estendeu seu cartão — E me ligue se alguma vez está de humor para me fazer um favor.
— Com o risco de soar pouco profissional, nunca vou estar de humor para você. Sob nenhuma circunstância.
Ouch. Não é que a culpasse.
— O favor é me perdoar. Não tem nada que ver com um encontro.
Ela baixou o olhar ao cartão, depois sacudiu a cabeça.
— Será melhor que fique com isso. Para que possa usar alguma vez.
Quando a porta se fechou, ele amassou o cartão em sua mão.
Merda. Em que demônios estava pensando de todos os modos? Provavelmente ela tivesse uma pequena vida agradável em uma simples casinha com dois pais excessivamente amorosos. Talvez até tivesse um namorado, que algum dia se converteria em seu hellren.
Sim, sendo ele o amigável senhor da droga da vizinhança, alcoviteiro e valentão realmente encaixaria com a rotina Norman Rockwell. Totalmente.
Atirou seu cartão no cesto de papéis que havia junto a mesa, e observou como fazia um arco, e logo caía entre os Kleenex[17], os papéis enrugados e uma lata de Coca-Cola vazia.
Enquanto esperava o doutor, olhou o lixo descartado, pensando que para ele a maioria das pessoas do planeta era como essas coisas: coisas para usar e descartar sem remorsos de nenhum tipo. Graças a seu lado mau e ao negócio que dirigia, tinha quebrado um montão de ossos, tinha partido um montão de cabeças e tinha sido a causa de muitas overdoses de drogas.
Ehlena, por outro lado, passava suas noites salvando as pessoas.
Sim, tinham muitíssimo em comum, certamente.
Os esforços dele possibilitavam que ela tivesse um trabalho.
Oras. Perfeito.
******************
Fora da clínica, no ar gelado, Wrath estava se enfrentando peito a peito com o Vishous.
— Sai de meu caminho, V.
Vishous, é obvio, não retrocedeu nada. Não era de surpreender-se. Inclusive antes do pequeno flash informativo que informava que a Virgem Escriba lhe tinha dado a luz, o guerreiro sempre tinha sido um agente totalmente livre.
Um Irmão teria tido melhor sorte dando ordens a uma pedra.
— Wrath...
— Não, V. Aqui não. Agora não...
— Vi você. Esta tarde, em meus sonhos. — a dor nessa voz escura era do tipo que normalmente se associa com funerais — Tive uma visão.
Wrath falou sem desejar.
— O que viu?
— Estava de pé só em um campo escuro. Todos lhe rodeávamos na periferia, mas ninguém podia te alcançar. Você se afastava de nós e nós de você. — o Irmão estendeu a mão e lhe agarrou com força — Por intermédio de Butch, sei que está saindo sozinho e mantive a boca fechada. Mas não posso permitir que siga fazendo isto. Se você morrer a raça está fodida, e nem sei dizer o que lhe faria à Irmandade.
Os olhos de Wrath se esforçavam para enfocar o rosto de V, mas a luz de segurança que havia sobre a porta era um fluorescente e o brilho dessa coisa cravava como a merda.
— Não sabe o que quer dizer o sonho.
— E você tampouco.
Wrath pensou no peso desse civil em seus braços.
— Poderia não ser nada...
— Pergunte-me quando tive a visão pela primeira vez.
—... Mais que um medo que tem.
— Pergunte-me. Quando tive a visão pela primeira vez.
— Quando?
— Mil novecentos e nove. Passaram cem anos desde que a vi pela primeira vez. Agora me pergunte quantas vezes a tive mês passado.
— Não.
— Sete vezes, Wrath. Esta tarde foi a gota que transbordou o copo.
Wrath se soltou do agarre do Irmão.
— Solte-me. Se me seguir, vai encontrar briga.
— Não pode sair sozinho. Não é seguro.
— Está brincando, verdade? — Wrath lhe olhou furiosamente através de seus óculos escuros — Nossa raça está caindo e você me repreende por ir atrás de nosso inimigo? Uma merda. Não vou ficar sentado mofando atrás de nenhum fodido escritório passando papéis enquanto meus irmãos estão ali fora fazendo algo verdadeiramente...
— Mas você é o rei. É mais importante que nós...
— Ao inferno com isso! Sou um de vocês! Fui recrutado, bebi dos Irmãos e eles de mim, quero lutar!
— Olhe, Wrath... — V assumiu um tom tão grunhido que lhe fazia saltar todos os dentes. Com uma tocha — Sei exatamente o que é não querer ser quem nasceste para ser. Acredita que eu não gostaria de me liberar de ter estes fodidos sonhos? Acredita que ter este sabre laser é uma festa? — levantou a mão enluvada como se a ajuda visual fosse um valor acrescentado a sua “discussão” — Não pode mudar quem é. Não pode desfazer o acoplamento em que seus pais lhe fizeram. É o rei, e as regras se aplicam de forma diferente para você, e assim é como são as coisas.
Wrath fez seu melhor esforço para ter a calma, tranqüilidade e compostura de V.
— E eu digo que estive lutando durante trezentos anos, assim não sou exatamente um principiante na batalha. E eu também gostaria de assinalar que ser o rei não significa ter perdido o direito de escolher...
— Não tem herdeiro. E pelo que ouvi de minha shellan, manda Beth se calar quando ela diz que quer tentar ter um quando vier sua primeira necessidade. Sossega-a com dureza. Como disse que o diz? Oh... Sim. “Não quero nenhuma cria em um futuro próximo... Se é que alguma vez vou querer”.
O fôlego de Wrath escapou em uma rajada.
— Não posso acreditar que acaba de tocar nesse assunto.
— Em resumo? Se você morrer? A malha da sociedade da raça se desmantelaria, e se acha que isso vai ajudar na guerra é que tem a cabeça tão metida no rabo que está utilizando seu esfíncter como boca. Aceite, Wrath. Você é o coração de todos nós... Assim não, não pode ir por aí sem mais, lutando sozinho porque te dá a vontade de fazê-lo. As coisas não funcionam assim para você...
Wrath agarrou as lapelas do Irmão e o estrelou contra o edifício da clínica.
— Cuidado, V. Está caminhando pela maldita e fina linha que limita com a falta de respeito.
— Se acredita que me amassar vai mudar as coisas, vá em frente. Mas te garanto que depois de que os murros terminem e ambos estejamos sangrando no chão, a situação seguirá sendo exatamente a mesma. Não pode mudar quem é por nascimento.
Ao fundo, Butch saiu do Escalade e subiu o cinto como se estivesse se preparando para interromper uma briga.
— A raça precisa de você vivo, imbecil. — disse V— Não me obrigue a apertar o gatilho, porque o farei.
Wrath voltou a fixar seus olhos débeis em V.
— Pensei que me queria vivinho e abanando o rabo. Além disso, me disparar seria traição e se castiga com a morte. Sem importar de quem seja filho.
— Olhe, não estou dizendo que não deva...
— Cala a boca, V. Só uma vez, só fecha a maldita boca.
Wrath soltou a jaqueta de couro do cara e retrocedeu. Jesus Cristo, tinha que ir ou esta confrontação ia escalar exatamente até o que Butch estava temendo.
Wrath apontou um dedo à cara de V.
— Nada de me seguir. Estamos entendidos? Não me siga.
— Estúpido imbecil. — disse V com absoluto cansaço — É o rei. Todos devemos te seguir.
Wrath se desmaterializou com uma maldição, suas moléculas apressando-se através da cidade. Enquanto viajava, não podia acreditar que V tivesse jogado na sua cara o assunto de Beth e o bebê. Ou que Beth tivesse compartilhado esse tipo de questões privadas com a Doutora Jane.
Falando de ter a cabeça no rabo, por certo. V estava louco se pensava que Wrath ia pôr a vida de sua amada em perigo deixando-a grávida quando passasse por sua necessidade dentro de um ano ou assim. As fêmeas morriam no parto, com mais freqüência que as que não morriam.
Daria sua própria vida pela raça se tivesse que fazê-lo, mas de nenhum fodido e louco modo poria a de sua shellan em um perigo assim.
E inclusive se tivesse a garantia que sobreviveria a tudo isso, não queria que seu filho terminasse justo onde ele estava... Preso e sem escolha, servindo a sua gente com pesar enquanto um a um morriam em uma guerra que pouco ou nada podia fazer para terminar.

Capítulo 7


O complexo do Hospital St. Francis era uma cidade dentro da cidade, uma aglomeração sempre em expansão de blocos arquitetônicos de diferentes épocas, com cada um dos componentes formando sua própria mini-vizinhança e as partes conectando-se com o conjunto por uma série de sinuosas ruas e calçadas. Estava o estilo McMansion que podia ver na seção de administração, o da simplicidade suburbana do nível das estadias de unidades de pacientes externos e o das torres de hospitalização parecidas com apartamentos com suas janelas amontoadas. O único que dava unidade à extensão, e que era um dom do céu, eram os sinais direcionais vermelhos e brancos com suas flechas assinalando a direita e esquerda e diretamente para frente dependendo de aonde queria ir.
De todas as formas o destino de Xhex era óbvio.
O departamento de emergências era a dependência mais recente do centro médico, um de tecnologia avançada, de vidro e aço que era como um clube noturno sempre brilhantemente iluminado e constantemente ronronando.
Era impossível passar batido. Impossível perder de vista.
Xhex caminhou à sombra de algumas árvores que tinham sido plantadas em círculo ao redor de uns bancos. Enquanto caminhava para a fileira de portas giratórias da unidade de Emergências, estava integrada ao ambiente e ao mesmo tempo absolutamente à margem dele. Embora alterasse seu trajeto para evitar outros transeuntes, cheirava o tabaco da denominada choça de fumantes e sentia o ar frio no rosto, estava muito perturbada pela batalha que se livrava em seu interior para observar muito.
Quando entrou na instalação, suas mãos estavam úmidas, um suor frio brotava de sua testa e ficou paralisada pela luz fluorescente, o linóleo branco e o pessoal que andava por ali com seus uniformes cirúrgicos.
— Precisa de ajuda?
Xhex girou e subiu as mãos, adotando bruscamente uma posição de luta. O doutor que lhe tinha falado manteve sua postura, mas pareceu surpreso.
— Calma. Tranqüila.
— Lamento. — deixou cair os braços e leu a lapela de seu jaleco branco: Dr. MANUEL MANELLO, CHEFE DE CIRURGIA. Franziu o cenho ao percebê-lo, ao captar seu aroma.
— Está bem?
Não. Não era nada de sua conta.
— Tenho que ir ao depósito de cadáveres.
O médico não pareceu impressionado, como se fosse perfeitamente possível que alguém com sua maneira de mover conhecesse um par de cadáveres com dedos etiquetados.
— OK, bem, vê aquele corredor daí? Vá até o fundo. Verá uma porta com um letreiro para o depósito de cadáveres. Só siga as flechas dali. Está no porão.
— Obrigado.
— De nada.
O doutor saiu pela porta giratória pela que ela tinha entrado, e Xhex passou pelo detector de metais pelo que ele acabava de passar. Não soou nenhum «bip», e lançou um tenso sorriso ao vigilante que por sua vez jogou uma olhada.
A faca que levava na parte baixa das costas era de cerâmica e tinha substituído seus cilícios de metal por uns de couro e pedra. Sem problemas.
— Boa noite, Oficial. — lhe disse.
O cara a saudou com a cabeça ao passar, mas manteve a mão na culatra de sua arma.
Ao final do corredor, encontrou a porta que procurava, abriu-a de um golpe e encarou as escadas, seguindo as flechas vermelhas como o doutor lhe tinha indicado. Quando deu com um lance de parede de cimento branqueado calculou que já estava perto, e tinha razão. Mais adiante no corredor estava o detetive Cruz, junto a um par de portas duplas de aço inoxidável rotuladas com as palavras DEPÓSITO DE CADÁVERES e SÓ PESSOAL AUTORIZADO.
— Obrigado por vir. — disse ele quando ela esteve mais perto — Entraremos na sala de observação que está um pouco mais à frente. Irei dizer-lhes que chegou.
O detetive abriu uma das portas de um empurrão, e através da fresta ela pôde ver uma frota de mesas metálicas com blocos para as cabeças dos mortos.
Seu coração se deteve e logo trovejou, apesar de estar repetindo uma e outra vez que ela não era a prejudicada. Que ela não estava aí dentro. Que isto não era o passado. Que não havia ninguém com uma roupa branca erguendo-se sobre ela e fazendo coisas “em nome da ciência”.
E, além disso, ela tinha superado todo isso, fazia uma década…
Um som começou baixo e aumentou de volume, reverberando detrás dela. Girou em redondo e ficou congelada, sentindo tanto temor que lhe cravaram os pés no chão…
Mas só era um empregado da limpeza que vinha dobrando a esquina, empurrando um carrinho de roupa suja do tamanho de um carro. Ao passar nem sequer levantou a vista, estava inclinado para frente sobre a borda, utilizando toda sua energia.
Por um momento, Xhex piscou e viu outro carrinho rodando. Um cheio de membros enredados e imóveis, as pernas e os braços dos cadáveres sobrepondo-se como se fosse lenha.
Esfregou os olhos. Ok, tinha superado o acontecido… Sempre e quando não estivesse em uma clínica ou hospital.
Jesus..! Devia sair dali.
— Realmente quer fazer isto? — perguntou da Cruz junto a ela.
Tragou a saliva com força, e levantou a mão, duvidando de que o homem entendesse que o que a assustava era um montão de lençóis em um carro e não o cadáver que estava a ponto de ver.
— Sim. Podemos entrar agora?
Ele a contemplou durante um momento.
— Escute, quer tomar um minuto? Tomar um pouco de café?
— Não. — como não se moveu, ela mesma se encaminhou para a porta rotulada como VISITAS PRIVADAS.
Da Cruz se apressou a adiantar-se e abriu a porta. A sala de espera que havia mais à frente tinha três cadeiras de plástico negras e duas portas e cheirava como morangos químicos, resultado do formaldeído misturado com um ambientador Glade PlugIn. Num canto, longe dos assentos, havia uma mesa pequena com um par de copos descartáveis de papel meio cheios de café que parecia lodo tirado de um atoleiro.
Ao que parecia, havia dois tipos de pessoa, o tipo que passeava e o tipo que permanecia sentado, e se fosse do tipo que permanecia sentado, esperava-se que equilibrasse a cafeína extraída da máquina sobre seu joelho.
Enquanto olhava ao seu redor, percebeu as emoções que tinham sido sentidas nessa área e que persistiam como o mofo que fica depois da água fétida. Às pessoas que tinha transpassado a porta desse lugar lhe tinham acontecido coisas más. Corações que foram quebrados. Vidas que foram destroçadas. Mundos que nunca voltaram a ser o mesmo.
Pensou que não deveriam dar café a esta gente antes que fizessem o que tinham vindo a fazer aqui. Já estavam nervosos o suficiente.
— Por aqui.
Da Cruz a fez passar a uma sala estreita que em sua opinião estava empapelada[18] com um estampado em relevo de claustrofobia: a coisa era do tamanho de uma caixa de fósforos quase sem ventilação, tinha luzes fluorescentes que vacilavam e flutuavam, e a única janela que havia definitivamente não dava a um prado de flores silvestres.
A cortina que pendurava no lado oposto do vidro estava corrida de um lado a outro, bloqueando a vista.
— Está bem? — perguntou de novo o detetive.
— Podemos fazer isto logo?
Da Cruz se inclinou para a esquerda e apertou o botão do timbre. Ante o som do zumbido, as cortinas se separaram, abrindo-se pela metade com uma lenta sacudida, revelando um corpo que estava coberto pelo mesmo tipo de lençol branco que havia no cesto da roupa suja. Um macho humano vestido com uniforme médico verde estava de pé na cabeceira, e quando o detetive fez um gesto com a cabeça, o homem esticou uma mão para frente e retirou o sudário.
Os olhos de Chrissy Andrews estavam fechados e seus cílios estavam pousados sobre as bochechas que tinham a cor cinza pálida das nuvens de dezembro. Não tinha aspecto de estar em paz em seu repouso permanente. Sua boca era um talho azul, seus lábios estavam partidos pelo que poderia ter sido um punho, uma frigideira ou a ombreira de uma porta.
As dobras do lençol que descansava sobre sua garganta ocultavam em sua maior parte os sinais de estrangulamento.
— Sei quem fez isto. — disse Xhex.
— Só para que fique claro, identifica-a como Chrissy Andrews?
— Sim. E sei quem o fez.
O detetive fez um gesto com a cabeça para o clínico, que cobriu o rosto de Chrissy e fechou as cortinas.
— O namorado?
— Sim.
— Há um longo histórico de chamadas por violência doméstica.
— Muito longo. É obvio, isso já acabou. O filho da puta finalmente conseguiu fazer o trabalho, verdade?
Xhex saiu pela porta e entrou na sala de espera, e o detetive teve que se apressar para não ficar atrás.
— Detenha-se...
— Tenho que voltar para o trabalho.
Enquanto saíam bruscamente e entravam no corredor do porão, o detetive a obrigou a deter-se.
— Quero que saiba que o DPC[19] está levando a cabo uma adequada investigação de assassinato, e nos encarregaremos de qualquer suspeito de maneira apropriada e legal.
— Estou certa de que o fará.
— E você fez sua parte. Agora tem que deixar que nos ocupemos dela e cheguemos ao final deste assunto. Deixe-nos encontrá-lo, ok? Não a quero em plano vigilante.
Veio-lhe à mente a imagem do cabelo de Chrissy. A mulher tinha sido suscetível sobre esse assunto, estava acostumada a escová-lo para trás, depois alisava a capa superior e o orvalhava com laquê para mantê-lo em seu lugar até que ficasse como a parte superior de um peão de xadrez.
Totalmente ao estilo de uma habitante de Melrose Place[20] (seriado dos anos 90), a época em que Heather Locklear usava o cabelo dourado.
O cabelo que havia embaixo daquele sudário estava esmagado como uma tabua de picar, amassado de ambos os lados, devido sem dúvida à bolsa para cadáveres em que tinha sido transportada.
— Você já fez sua parte. — disse da Cruz.
Não, ainda não.
— Que tenha uma boa noite, Oficial. E boa sorte encontrando ao Grady.
Ele franziu o cenho, logo pareceu engolir atuação de “serei uma boa garota”.
— Necessita que a leve de volta?
— Não, obrigado. E de verdade, não se preocupe comigo. — sorriu tensamente — Não farei nada estúpido.
Ao contrário, era uma assassina muito preparada. Treinada pelo melhor.
E olho por olho era mais que uma frase pegajosa.
José da Cruz não era um cientista de naves espaciais nem um membro do Mensa nem um geneticista molecular. Tampouco era um apostador, e não só devido a sua fé Católica.
Não tinha motivos para apostar. Tinha um instinto que se assemelhava à bola de cristal de uma vidente.
Assim sabia exatamente o que fazia quando ficou seguindo, a uma distância discreta, a senhora Alex Hess em seu caminho da saída do hospital. Depois de sair pelas portas giratórias, não foi à esquerda para o estacionamento nem à direita, em volta dos três táxis estacionados à entrada. Seguiu em linha reta, andando entre os carros que recolhiam e deixavam pacientes e entre os táxis que estavam livres. Depois de subir ao meio-fio, continuou pela grama congelada e seguiu caminhando em linha reta, cruzando a estrada e metendo-se entre as árvores que a cidade tinha plantado fazia um par de anos para incrementar a vegetação no centro da cidade.
Entre uma piscada e a seguinte tinha desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.
O que era, é obvio, impossível. Estava escuro e ele tinha levantado às quatro da manhã fazia duas noites, por isso seus olhos eram tão agudos como quando estava debaixo da água.
Ia ter que vigiar a aquela mulher. Sabia de primeira mão quão duro era perder a um colega, e estava claro que ela tinha apreciado à moça morta. Não obstante, este caso não necessitava um curinga civil quebrando as leis e possivelmente chegando até o extremo de assassinar ao principal suspeito do DPC.
José se dirigiu de volta ao carro civil que tinha deixado na parte de atrás onde lavavam as ambulâncias e os médicos esperavam durante as pausas no trabalho.
O namorado de Chrissy Andrews, Robert Grady, aliás, Bobby G, tinha alugado um apartamento mensalmente, desde que ela o tinha largado esse verão. Ao redor da uma dessa tarde José tinha batido na porta do chiqueiro encontrando-o vazio, e uma ordem de registro, expedida em apoio às chamadas ao 911 que Chrissy tinha estado fazendo os seis meses passados, para reportar a seu namorado, tinha permitido ordenar ao proprietário que abrisse o lugar.
Tinha encontrado montões de comida apodrecendo-se na cozinha, pratos sujos na sala de estar e roupa suja atirada por todo o dormitório.
Também havia numerosas trouxinhas de celofane com pó branco o qual — Oh Meu Deus! — tinha resultado ser heroína. Quem haveria imaginado?
Ao namorado não o via por nenhuma parte. A última vez que o tinham visto no apartamento, tinha sido a noite anterior ao redor das dez. O vizinho do lado tinha ouvido o Bobby G gritar. E depois uma portada.
E os arquivos que já tinham obtido do fornecedor do serviço de telefonia móvel dele indicavam que realizou uma chamada para o telefone da Chrissy as nove e trinta e seis.
A vigilância de policiais a paisana tinha sido estabelecida imediatamente, e os detetives informavam com regularidade, mas até agora não tinha nenhuma notícia. E José não pensava que fosse haver nenhuma por esse front. Havia boas possibilidades de que o lugar fosse permanecer como um povoado fantasma.
Assim havia duas coisas em seu radar: encontrar o namorado. E seguir a pista da chefe de segurança do ZeroSum.
E seus instintos lhe diziam que seria melhor para todos se ele encontrasse o Bobby G antes que Alex Hess o fizesse.


Capítulo 8


Enquanto Havers consultava o Rehvenge, Ehlena reabastecia um armário de fornecimentos. Que justamente dava a casualidade de estar junto à sala de exame número três. Empilhou bandagens da marca Ace. Fez uma torre com os pacotes plásticos dos cilindros de gaze. Criou uma obra a La Modigliani[21] com caixas de Kleenex, Band-Aids e capas para termômetros.
Estava ficando sem coisas que organizar quando a porta da sala de exame foi aberta emitindo um estalo. Apareceu uma cabeça no corredor.
Havers tinha o aspecto de um verdadeiro médico, com seus óculos com aro de tartaruga marinha, seu cabelo castanho, que penteava com uma risca ao meio, sua gravata-borboleta e a roupa branca. Também se comportava como um, sempre administrando calma e refletividade ao pessoal, as instalações e acima de tudo aos pacientes.
Mas enquanto permanecia de pé nesse corredor não parecia ele mesmo, com o cenho franzido como se estivesse confuso e massageando as têmporas como se lhe doessem.
— Está bem, doutor? — perguntou-lhe.
Ele olhou em sua direção, detrás dos óculos, seu olhar era estranhamente inexpressivo.
— Errr... Sim, obrigado. — sacudindo a si mesmo, entregou-lhe uma receita que tinha em cima do histórico médico de Rehvenge — Eu… Ah… Seria tão amável de trazer a dopamina a este paciente, assim como duas dose de antídoto contra veneno de escorpião? Faria eu mesmo, mas me parece que tenho que conseguir algo para comer. Sinto-me um pouco hipoglicêmico.
— Sim, Doutor. Em seguida.
Havers fez um gesto afirmativo com a cabeça e deixou o histórico do paciente no suporte que havia junto à porta.
— Obrigado, é muito amável.
O doutor se afastou como se estivesse parcialmente em transe.
O pobre macho devia estar exausto. Tinha estado na sala de cirurgia a maior parte das últimas duas noites e seus respectivos dias, atendendo o parto de uma fêmea, a um macho que tinha sofrido um acidente de trânsito, e a um menino pequeno que tinha sofrido graves queimaduras ao tentar alcançar uma caçarola com água fervendo que estava sobre a fornalha. E se somava a isso o fato de que nos dois anos que ela levava na clínica, nunca tinha tirado nem um dia de descanso. Sempre estava de guarda, sempre estava ali.
Parecido a como estava ela com seu pai.
Por isso, sim, ela sabia exatamente quão cansado devia estar.
Na farmácia, entregou a receita ao farmacêutico, que nunca mantinha conversa com ninguém e esse dia tampouco rompeu a tradição. O macho foi para o fundo e retornou com seis caixas de ampolas de dopamina e um pouco de antídoto.
Depois de lhe entregar os medicamentos, deu volta no pôster que dizia, VOLTO EM 15 MINUTOS e saiu pela porta de vaivém do mostrador.
— Espera. — lhe disse, lutando por segurar a carga — Isto não pode estar certo.
O macho já tinha o cigarro e o isqueiro na mão.
— Está.
— Não, isto é… Onde está a receita?
Nenhuma fêmea tinha enfrentado fúria maior que aquela que enfrentou ela ao obstruir o caminho de um fumante que finalmente tinha alcançado a hora de seu descanso. Mas não lhe importava nem um pouco.
— Vá me trazer a receita.
O farmacêutico resmungou todo o caminho com o passar do mostrador, e logo se ouviu um excessivo ruído de papéis, como se talvez tivesse a esperança de poder começar um incêndio ao esfregar as receitas entre si.
— Despachar seis caixas de dopamina. — girou a receita para ela para que pudesse vê-la — Vê?
Ela se aproximou. Bom, certo, dizia seis caixas e não seis ampolas.
— O doutor sempre receita o mesmo a este paciente. Isso e o antídoto.
— Sempre?
A expressão do macho foi “menina me dá um tempo”, e lhe falou lentamente, como se ela não falasse o idioma correntemente.
— Sim. Geralmente é o doutor mesmo que vem procurar. Está satisfeita ou quer ir falar disto com Havers?
— Não… E obrigado.
— Muito castigo.
Voltou a atirar a receita sobre a pilha e apressou o passo para sair dali como se temesse que pudesse lhe ocorrer outra brilhante idéia para um projeto de investigação.
Que tipo de fodida enfermidade requeria cento e quarenta e quatro doses de dopamina? E o antídoto?
A não ser que Rehvenge fosse sair em uma loooooooga viagem fora da cidade. A um lugar hostil que tivesse uma quantidade de escorpiões ao estilo do filme A Múmia.
Ehlena caminhou pelo corredor para a sala de exame, equilibrando precariamente as caixas: assim que apanhava uma que estava caindo, tinha que ir atrás de outra. Golpeou à porta com o pé e logo ao girar o trinco quase faz cair sua carga como se fossem fichas de dominó.
— Isso é tudo? — perguntou Rehvenge em um tom severo.
E que mais queria, uma mala cheia?
— Sim.
Deixou que as caixas caíssem sobre a mesa e logo as arrumou rapidamente.
— Deveria lhe conseguir uma sacola.
— Está bem. Eu dou um jeito.
— Precisa de alguma seringa?
— Tenho muitas. — disse com tom irônico.
Desceu da maca de exame com cuidado e colocou o casaco de zibelina que alongou ainda mais a grande amplitude de seus ombros, até lhe fazer ter um aspecto ameaçador mesmo estando do outro lado da sala. Com o olhar fixo nela, pegou sua bengala e se aproximou devagar, como se estivesse inseguro com respeito a seu equilíbrio… E sua receptividade.
— Obrigado. — lhe disse.
Deus, a palavra era tão simples e tão freqüentemente dita e, entretanto, vinda dele, significava mais do que gostaria.
Na realidade, era menos significativa sua forma de expressá-lo que a expressão de seu rosto: havia certa vulnerabilidade nesse olhar ametista, enterrada muito profundamente.
Ou talvez não.
Talvez fosse ela que se sentisse vulnerável e estava procurando comiseração do macho que tinha provocado esse estado. E nesse momento se sentia muito débil. Com o Rehvenge de pé ao seu lado, recolhendo as caixas da mesa para ir pondo uma por uma nos bolsos ocultos nas dobras de seu casaco de zibelina, sentia-se nua apesar de estar com seu uniforme, desmascarada apesar de que não tinha tido nada ocultando seu rosto.
Afastou a vista, mas o único que via era essa visão.
— Cuide-se… — seu tom de voz era muito profundo — E como já disse, obrigado. Já sabe, por ter cuidado de mim.
— De nada. — disse à mesa de exame — Espero que tenha obtido o que necessitava.
— Algumas coisas em todo caso.
Ehlena não se virou até que ouviu o clique da porta ao fechar-se. Logo, proferindo uma maldição, sentou-se na cadeira que estava frente ao escritório e voltou a perguntar-se se devia ir ao encontro dessa noite. Não só devido a seu pai, mas também devido a…
Oh, bem. Essa era uma linha de pensamento muito construtiva. Por que não rechaçar a um doce menino perfeitamente normal devido a que se sentia atraída por um absoluto impossível de outro planeta onde se usava roupas que valiam mais que carros. Genial.
Se seguisse assim poderia ganhar o Prêmio Nobel de estupidez, uma meta que fixou em sua vida e que não podia esperar para ver cumprida.
Passeou os olhos pela sala enquanto tratava de fortalecer-se para voltar a pôr os pés sobre a terra… Até que ficaram fixos no cesto de papéis. Em cima de uma lata de Coca-Cola, havia um cartão de negócios cor creme feito uma bolinha parcialmente enrugada.
REHVENGE, FILHO DE REMPOON.
Debaixo só havia um número, sem nenhum endereço.
Agachou-se e o pegou, alisando-o contra a mesa. Ao percorrer a frente do cartão com a palma da mão algumas vezes, não encontrou nenhum desenho em relevo em sua superfície, unicamente uma leve depressão. Gravada. É obvio.
Ah, Rempoon. Conhecia esse nome, e agora encontrava sentido no parente próximo do Rehvenge. A pessoa que estava cotada, Madalina, era uma Escolhida renegada que tinha acolhido a outras para lhe dar orientação espiritual, uma amada fêmea de valor de quem Ehlena tinha ouvido falar, mas que nunca tinha conhecido pessoalmente. A fêmea se emparelhou com Rempoon, um macho de uma das linhagens mais antigas e proeminentes. Mãe. Pai.
Então esses casacos de zibelina não eram só uma demonstração de riqueza exibida por um novo-rico. Rehvenge procedia do lugar que Ehlena e sua família estavam acostumadas a formar parte, a glymera… O nível mais elevado da sociedade civil dos vampiros, os árbitros do bom gosto, o bastão da distinção… E o enclave mais cruel de sabichões do planeta, capazes de fazer com que os ladrões de Manhattan parecessem pessoas às quais poderia convidar para jantar.
Desejava-lhe sorte com esse grupo. Deus sabia que ela e sua família não tinham se dado bem com eles: seu pai tinha sido traído e expulso, sacrificado para que um ramo mais poderoso de sua linhagem pudesse sobreviver financeira e socialmente. E esse tinha sido o verdadeiro começo de sua ruína.
Ao sair da sala de exame, jogou o cartão de volta no cesto de papéis e recolheu o histórico médico de seu suporte. Depois de reportar-se com Catya, Ehlena se dirigiu à área de registro para cobrir à enfermeira que estava em seu descanso e ingressar no sistema as breves nota de Havers a respeito de Rehvenge e as receitas entregues.
Não havia menção à enfermidade subjacente. Mas talvez tivesse sido tratada durante tanto tempo que a referência tenha sido feita nos primeiros registros.
Havers não confiava nos computadores e fazia todo seu trabalho no papel, felizmente três anos atrás Catya tinha insistido em conservar uma cópia eletrônica de tudo e também tinha pedido que um grupo de doggens transferisse a totalidade dos históricos médicos de cada um dos pacientes ao servidor. E graças à Virgem Escriba por isso. Quando tinham mudado às instalações novas como resultado das incursões, o único que ficara eram os históricos eletrônicos dos pacientes.
Impulsivamente, percorreu a parte mais recente do histórico de Rehvenge. Nos últimos dois anos as doses de dopamina tinham se incrementando. E o antídoto também.
Saiu da sessão e se reclinou contra a cadeira do escritório, cruzando os braços sobre o peito e fixando a vista no monitor. Quando ativou o descanso de tela, apareceu uma chuva de estrelas que emanavam das profundidades do monitor à velocidade da luz da Millennium Falcon2[22].
Decidiu que ia a esse condenado encontro.
— Ehlena?
Levantou o olhar para Catya.
— Sim?
— Vai chegar um paciente em ambulância. TEA[23], dois minutos. Overdose, com substância desconhecida. Paciente entubado e com respiração assistida. Você e eu assistiremos.
Quando outro membro do pessoal apareceu para encarregar-se dos registros, Ehlena saltou da cadeira e saiu correndo pelo corredor atrás de Catya em direção às salas de emergência. Havers já estava ali, apressando-se a terminar o que parecia um sanduíche de presunto em pão de centeio.
No momento em que estava entregando o prato vazio a um doggen, o paciente entrou pelo túnel subterrâneo que comunicava com as garagens das ambulâncias. Os TEM[24] eram dois vampiros machos vestidos iguais aos paramédicos humanos, porque passar despercebidos era vital para seu encargo.
O paciente estava inconsciente, e permanecia com vida, só graças ao médico que estava junto a sua cabeça bombeando o respirador a um ritmo lento e constante.
— Seu amigo nos ligou, — disse o macho — e prontamente lhe deixou desacordado no beco frio próximo ao ZeroSum. As pupilas não respondem. A pressão arterial é de setenta e dois sobre trinta e oito. O pulso é de trinta e dois.
Que desperdício, pensou Ehlena enquanto se punha a trabalhar.
As drogas urbanas eram um mal totalmente isento de escrúpulos.

Do outro lado da cidade, na parte de Caldwell conhecida como Minimall Sprawlopolis[25], Wrath encontrava o apartamento do lesser com bastante facilidade. O complexo residencial no que se encontrava se chamava Hunterbred Farms[26], e as instalações de edifícios de dois andares de altura estavam decoradas com um motivo eqüino que era tão autêntico como as toalhas de plástico de um restaurante italiano barato.
Não existia nada parecido a uma raça de cavalos de caça. E a palavra fazenda não era habitualmente associada com cem unidades de dormitório embutidas entre uma concessionária Ford/Mercury e um supermercado. Agrário? Sim, com certeza. As extensões de grama estavam perdendo terreno na batalha contra o asfalto por uma margem de quatro a um e resultava evidente que o único lago que podia encontrar ali, tinha sido feito pelo homem.
A maldita coisa tinha borda de cimento como uma piscina, e a fina capa de gelo que o cobria era da cor da urina, como se houvesse um tratamento químico em ação.
Considerando a quantidade de humanos que viviam nas unidades, era surpreendente que a Sociedade Lessening pusesse suas tropas em um lugar tão conspícuo, mas talvez isto só fosse algo temporário. Ou possivelmente todo o puto lugar estivesse repleto de assassinos.
Cada edifício tinha quatro apartamentos agrupados ao redor de uma escada comum e os números engastados na parede exterior estavam iluminados do chão. Resolveu a provocação visual que apresentava utilizando o método, de comprovada qualidade, de toca e decifra. Quando encontrou uma fileira de dígitos em relevo que se parecia com oito um dois escritos em letra itálica, apagou as luzes de segurança com a mente e se desmaterializou para a parte superior das escadas.
O ferrolho da unidade oito um dois era frágil e foi fácil manipulá-lo com a mente, mas não dava nada por certo. De pé, encostado contra a parede, girou o trinco com forma de ferradura e abriu na porta só uma fresta.
Fechou seus inúteis olhos e escutou. Nenhum movimento, só o zumbido de um refrigerador. Considerando que seu ouvido era agudo o suficiente para ouvir a respiração de um camundongo, imaginou que estava seguro e logo depois de colocar uma estrela alojada na palma de sua mão, deslizou para dentro.
Havia boas probabilidades de que houvesse um sistema de segurança piscando em algum lado, mas não planejava ficar tempo suficiente para dançar com o inimigo. Além disso, embora aparecesse o assassino não poderia suscitar uma briga. O lugar fervia de humanos.
Em definitivo, ia procurar as jarras e ponto. Depois de tudo, a sensação de umidade que descia por sua perna não era devido a que tivesse pisado em um atoleiro de lodo na entrada. Estava sangrando dentro de sua bota por causa da batalha liberada no beco, assim, sim, se alguém que cheirasse a bolo de creme e coco misturado com xampu barato aparecesse, ele desapareceria.
Ao menos… Isso é o que havia dito a si mesmo.
Fechando a porta, Wrath inalou, longa e lentamente… E desejou poder fazer uma limpeza na pressão no interior do nariz e no fundo de sua garganta. E apesar, de que começou a fazer arcadas, as notícias eram boas: havia três aromas doces diferentes misturados no ar viciado o que significava que ali ficavam três lessers.
Enquanto se dirigia à parte de trás, onde os aromas enjoativos estavam mais concentrados, perguntava-se que demônios estava acontecendo. Os lessers raramente viviam em grupo porque brigavam entre eles... Que era o que acontecia quando só recrutava a maníacos homicidas. Demônios, o tipo de homens que o Omega escolhia não podia aplacar seu Michael Myers[27] interior só porque ocorrera à Sociedade economizar um pouco na renda.
Entretanto, podia ser que tivessem um Fore-lesser muito forte a cargo.
Depois das incursões do verão, era difícil acreditar que os lessers tivessem escassez de dinheiro, mas que outra razão poderia ter para consolidar as tropas? Por outro lado, os Irmãos, e Wrath tinham estado vendo coisas cada vez menos sofisticadas nas pistolas. Antes quando lutava com os assassinos tinham que estar preparado para qualquer tipo de modificação especial que tivesse saído ao mercado para qualquer tipo de arma. Ultimamente? Tinham lutado contra velhas navalhas escolares, nódulos de metal, e a semana passada até — gulp — uma fodida clava, todas armas baratas que não requeriam balas nem manutenção. E agora estavam brincando de The Walton’s aqui nas “Fazenda-fachada-de-Caçador”? Que merda estava acontecendo?
O primeiro dormitório que encontrou estava marcado por cheiro de perfumes, e encontrou duas jarras junto às camas de um lugar desprovidos de lençóis e mantas.
O seguinte cheirava também a uma variedade distinta de anciã… A isso e algo mais. Uma rápida inspiração disse a Wrath que se tratava de… Cristo, Old Spice[28].
Quem teria imaginado. Com a forma que esses imbecis cheiravam, como se fossem querer acrescentar algo à mistura…
Santa merda.
Wrath inalou profundamente, e fez com que seu cérebro filtrasse algo remotamente doce.
Pólvora.
Seguindo o picante aroma metálico que havia no ar, foi para um armário que tinha o tipo de portas finas que esperaria encontrar em uma casa de bonecas. Ao abri-las o eau d’ammo[29] floresceu, enquanto se agachava e media com as mãos a seu redor.
Caixas de madeira. Quatro. Todas fechadas com pregos.
Tirou conclusão que as armas que havia dentro definitivamente tinham sido disparadas, mas não recentemente. O que indicava que esta bem poderia ser uma compra SMC[30].
Não obstante ser de segunda mão não dava saber quem tinha sido o dono anterior.
Fosse como fosse, não ia deixar ali. O esconderijo ia ser usado pelo inimigo contra seus civis e seus irmãos, por isso era necessário fazer voar todo o apartamento antes de permitir que essas armas fossem utilizadas na guerra.
Mas informaria isto à Irmandade? Seu segredo seria revelado. O problema era, que levar essas caixas nas costas se por acaso só era uma situação de “seguro-como-não”? Não tinha carro, e não havia forma de se desmaterializar com esse tipo de peso nas costas embora mesmo se o separasse em cargas menores.
Wrath se afastou do armário e fez um inventário do cômodo usando o tato tanto quanto a vista. Oh, bem. À esquerda havia uma janela.
Proferindo uma maldição tirou seu celular e o abriu…
Alguém estava subindo a escada.
Ficou imóvel e fechando os olhos se concentrou ainda mais. Humano ou lesser?
Só um lhe preocupava.
Wrath se inclinou para um lado e deixou as duas jarras das que se apropriou em uma gaveta, encontrando, naturalmente, a terceira e um frasco de Old Spice. Sustentando na mão a calibre quarenta, firmou-se sobre seus shitkickers[31] e apontou a arma para o curto corredor, diretamente para a porta de entrada.
Houve um tinido de chaves, logo um “clang” como se lhe tivesse caído da mão.
A maldição foi de uma mulher.
Enquanto seu corpo se afrouxava, deixou que sua arma caísse sobre sua coxa. A Sociedade, igual à Irmandade, aceitava só machos em suas filas, assim que esse não era nenhum assassino jogando palitos chineses com as chaves.
Ouviu como fechava a porta do apartamento que estava em frente, e o repentino som surround da TV que alcançou um volume tão alto que pôde escutar a repetição do The Office[32].
Tinha gostado deste episódio. Era no que se perdia o taco de beisebol…
Alguns gritos chegaram até ele, gerados pela comédia da situação.
Sim. Agora estava voando o taco de beisebol.
Com a mulher certamente ocupada, voltou a enfocar-se, mas permaneceu onde estava, rezando para que o som de “bem-vindo-a-casa” fosse um tema que o inimigo ouvisse e seguisse seu caminho. Não obstante, ficar como uma estátua respirando levianamente não melhorou a proporção de lessers que havia no lugar. Uns quinze, talvez vinte minutos depois, ainda seguia rodeado de absolutamente nenhum assassino.
Mas não tinha sido uma perda total. Estava captando o agradável murmúrio de uma pequena parte da comédia, era a cena de Dwight e o taco de beisebol na cozinha do The Office.
Era hora de mover-se.
Chamou o Butch, deu ao Irmão o endereço, e disse ao polícia que conduzisse como se seu pé fosse feito de pedra. O certo era, Wrath queria tirar as armas dali antes que chegasse alguém. Mas além de seu irmão para ajudar a tirar as caixas rapidamente, Butch podia levá-las, e assim talvez Wrath pudesse ficar nas imediações pelo lapso de outra hora mais ou menos.
Para passar o tempo, revisou o apartamento, medindo as superfícies com as palmas das mãos em uma tentativa de encontrar computadores, telefones, ou mais condenadas armas.
Acabava de retornar ao segundo dormitório quando algo ricocheteou contra a janela.
Wrath voltou a desencapar sua quarenta e encostou as costas à parede próxima à janela. Com a mão, tirou o ferrolho e abriu a parte de vidro apenas uma fresta.
O acento de Boston do policial foi quase tão sutil como um alto-falante.
— Oi Rapunzel, vai deixar cair seu fodido cabelo?
— Shh, quer acordar os vizinhos?
— Como se fossem ouvir algo com o som dessa TV? Hey, esse é o episódio do taco de beisebol…
Wrath deixou Butch falando consigo mesmo, e voltando a guardar a pistola em seu quadril, abriu a janela amplamente, e logo se dirigiu ao armário. A única advertência que deu ao polícia enquanto fazia voar a caixa de noventa quilos de peso foi:
— Prepare-se, Effie.
— Jesus Bendi… — um grunhido interrompeu o juramento.
Wrath pôs a cabeça pela janela e sussurrou:
— Supõe-se que é um bom católico. Isso não foi uma blasfêmia?
O tom de Butch foi como se alguém tivesse urinado em sua cama.
— Acaba de me atirar com meio carro, sem mais advertência que uma fala da chata Sra. Doubtfire[33].
— Amadureça e aceite.
Wrath se encaminhou para o armário, enquanto o polícia amaldiçoava todo o caminho de ida para o Escalade, o qual tinha engenhado para estacionar debaixo de uns pinheiros.
Quando Butch retornou, Wrath lhe lançou outra.
— Faltam dois.
Ouviu-se outro grunhido e um falatório.
— Foda-me.
— Não nesta vida.
— Muito bem. Foda-se.
Quando a última caixa esteve embalada como um bebê dormindo nos braços de Butch, Wrath apareceu.
— Adeusinho.
— Não quer que te leve de volta à mansão?
— Não.
Houve uma pausa, como se Butch estivesse esperando que Wrath lhe informasse como tinha intenções de ocupar as poucas horas que ficavam da noite.
— Vá pra casa. — indicou ao polícia.
— O que digo aos outros?
— Que é um gênio e que encontrou as caixas com armas quando estava caçando.
— Está sangrando.
— Está começando a me encher que todos me digam isso.
— De acordo então, deixa de te comportar como um imbecil e vá ver a Doutora Jane.
— Acaso não me despedi de você já?
— Wrath…
Wrath fechou a janela, foi para a gaveta, e meteu as três jarras na jaqueta.
A Sociedade Lessening queria reclamar os corações de seus mortos tanto quanto os Irmãos, por isso nem bem um assassino se inteirava de que um de seus homens tinha caído, averiguavam o endereço do lesser e se dirigiam ali. Certamente algum dos bastardos que tinha matado essa noite tinha pedido reforços durante o processo. Tinham que estar cientes.
Tinham que vir.
Wrath escolheu a melhor posição defensiva, que era no dormitório do fundo, e apontou seu clique-clique-Bang-Bang[34] para a porta dianteira.
Não sairia dali até que fosse absolutamente necessário.


Capítulo 9


Nos subúrbios da cidade de Caldwell podia se encontrar fazendas ou bosques, e, além disso, havia duas variedades de fazendas, as leiteiras ou as que cultivavam trigo… Predominando as leiteiras, dado o curto período de desenvolvimento necessário. Os bosques eram também binários, e tinha para escolher entre os de pinheiros que precediam os flancos das montanhas, e os de carvalhos que levavam aos pântanos do Rio Hudson.
Sem importar a paisagem, campestre ou industrializado, encontra estradas que eram pouco transitadas, casas que distavam quilômetros umas das outras e, vizinhos que eram tão solitários e de gatilho fácil como qualquer solitário pudesse desejar.
Lash, filho de Omega, estava sentado a uma mesa dobrável de cozinha em uma cabana de um só cômodo situada em uma das áreas cobertas com bosques. Em frente a ele sobre a gasta superfície de pinheiro estavam estendido todos os registros financeiros da Sociedade Lessening que tinha sido capaz de encontrar, imprimir ou descarregar em seu computador portátil.
Isto era uma puta merda. Estendeu a mão e recolheu um extrato do Banco Evergreen que tinha lido uma dúzia de vezes. A maior conta da Sociedade tinha cento e vinte e sete mil, quinhentos e quarenta e dois dólares e quinze centavos. As demais, que estavam alojadas em outros seis bancos, incluindo o Glens Falls National e o Farrel Bank & Trust, tinham saldos entre vinte dólares e vinte mil.
Se isto era tudo que a Sociedade tinha, estavam balançando-se sobre a borda a ponto de desmoronar-se em bancarrota.
As incursões feitas durante o verão tinham produzido alguns bons benefícios em forma de uma pilhagem de antiguidades e prata, mas acessar a esses recursos era complicado porque implicava um monte de contato humano. E tinham se apropriado de algumas contas financeiras, mas, uma vez mais, extrair dinheiro dos bancos humanos era uma confusão complicada. Como tinha aprendido do modo mais duro.
— Querem um pouco mais de café?
Lash levantou o olhar até seu número dois e pensou que era um milagre que o senhor D ainda permanecesse com ele. Quando Lash tinha entrado pela primeira vez neste mundo, logo depois de ter renascido por obra de seu verdadeiro pai, o Omega, havia se sentido extraviado, havendo convertido o inimigo em sua família. O senhor D tinha sido seu guia, embora como todos os mapas de turistas, Lash tinha assumido que o bastardo deixaria de ter utilidade quando o novo terreno tivesse sido aprendido pelo condutor.
Não foi assim. O pequeno texano que tinha sido o instrutor de Lash era agora seu discípulo.
— Sim, — disse Lash — e que tal um pouco de comida?
— Sim, senhor. Conseguirei um pouco de bacon gordurento agora mesmo, e esse queijo que gosta.
O café foi servido generosa e lentamente na xícara de Lash. Em seguida lhe pôs açúcar, e a colher utilizada para mexer produziu um suave tinido. O senhor D teria limpado alegremente o traseiro de Lash se tivesse pedido, mas ele não era uma joaninha. O pequeno imbecil podia matar como ninguém no negócio, era o boneco Chucky dos assassinos. Grande cozinheiro de comida rápida, e além disso fazia panquecas altas, esponjadas como um travesseiro.
Lash consultou seu relógio. O Jacob & CO. Estava coberto de diamantes, e à luz tênue da tela do computador pareciam como mil pontos de luz. Mas a coisa era um falso substituto que tinha conseguido no EBay. Queria outro autêntico exceto... Jesus Cristo... Não podia permitir-se. Claro que tinha conservado todas as contas de seus “pais” depois de matar o casal de vampiros que lhe tinham criado como se fosse seu filho, mas embora houvesse uma boa quantidade de verdes dólares nesses sacos, era reticente a gastar algo disso em frivolidades.
Tinha faturas a pagar. Como as hipotecas, armas, munições, roupas, aluguel e arrendamento de carros. Os lessers não comiam, mas consumiam um montão de recursos, e o Omega não se preocupava com o efetivo. Mas claro, ele vivia no inferno e tinha a habilidade de conjurar algo do ar mesmo. De uma comida quente às capas Liberace com que gostava de cobrir seu negro e sombrio corpo.
Lash odiava admitir, mas tinha a sensação de que seu verdadeiro pai era um pouco folgado. Nenhum autêntico homem estaria totalmente preso nessa merda cintilante.
Ao elevar sua xícara de café, seu relógio brilhou e ele franziu o cenho.
Seja como for, era um símbolo de status.
— Seus meninos chegam tarde. — se queixou.
— Estão no caminho. — o senhor D se levantou e abriu a geladeira dos anos setenta. Que não só tinha uma porta que chiava e era da cor de uma azeitona podre, mas sim babava como um cão.
Isto era fodidamente ridículo. Precisavam modernizar suas guaridas. E senão todas, ao menos seu quartel general
Ao menos o café era perfeito, embora guardasse isso para si mesmo.
— Eu não gosto de esperar.
— Estão a caminho, não se preocupe. Três ovos na omelete?
— Quatro.
Enquanto uma série de rangidos e estalos se difundiam através da cabana, Lash golpeou ligeiramente a ponta de seu Waterman  sobre o resumo do Evergreen. Os gastos da Sociedade, incluindo as faturas de celulares, conexões de internet, aluguéis/hipotecas, armas, roupa, e carros giravam facilmente em torno de uns cinqüenta mil ao mês.
Quando se colocou pela primeira vez em seu novo papel, esteve endemoniadamente seguro de que alguém em suas filas estava cortando a maçã. Mas durante meses tinha estudado as coisas cuidadosamente, e não havia nenhum Kenneth Lay  que ele pudesse encontrar. Era uma simples questão de contabilidade, não de fraude de livros ou desvio: os custos eram mais altos que os lucros. E ponto.
Estava fazendo o que podia para armar a suas tropas, inclusive tinha chegado tão baixo para comprar quatro caixas de armas de motoqueiros que tinha conhecido na prisão durante o verão. Mas não era suficiente. Seus homens necessitavam algo melhor que Red Ryders reabilitados para acabar com a Irmandade.
E já que estava com a lista de desejos, precisava de mais homens. Tinha acreditado que os motoqueiros seriam um bom poço de recrutamento, mas tinham provado ser muito coesivos. Apoiando-se em seus entendimentos com eles, sua intuição lhe dizia que tinha que atrair a todos ou a nenhum... Porque estava claro como a merda que se escolhia, os escolhidos voltariam para sua casa-clube e contariam a seus colegas sobre seu novo entretenimento matando vampiros. E se recrutava a todos, depois correria o risco de que se rebelassem contra sua autoridade.
O recrutamento um por um ia ser a melhor estratégia, mas não era como se tivesse tempo para fazer nada disso. Entre as sessões de treinamento com seu pai — as quais, apesar de suas críticas ao vestuário de papai, estavam provando ser monstruosamente úteis — seu seguimento dos acampamentos de persuasão, saque de armazéns, e tentar conseguir que seus homens se concentrassem no trabalho que tinham entre mãos, não ficava nem sequer uma hora livre ao dia.
Assim que a merda se estava pondo crítica: para ser um bem-sucedido líder militar se requeriam três coisas, os recursos e os recrutas eram duas delas. E embora ser filho de Omega lhe proporcionava muitas vantagens, o tempo era o tempo, não se detinha por nenhum homem, nem vampiro, e tampouco por nenhuma semente do mal.
Considerando o estado das contas, sabia que tinha que começar com os primeiro recursos. Depois poderia ocupar-se dos outros dois.
O som de um carro estacionando junto à cabana lhe fez pôr a palma sobre uma quarenta e o senhor D foi pegar seu Magnum 357. Lash manteve seu ferro sob a mesa, mas o senhor D ficou todo fanfarrão com o seu, segurando a peça no alto com o braço estendido em uma linha reta desde seu ombro.
Quando ouviu o chamado, Lash disse afiadamente:
— Será melhor que seja quem acredito que é.
O lesser respondeu do modo correto.
— Sou eu, e o senhor A e seu encargo.
— Entre. — disse o senhor D, sempre tão bom anfitrião, apesar de que conservou sua 357 levantada e pronta para a ação.
Os dois assassinos que atravessaram a porta eram os últimos dos macilentos, o casal final de veteranos que tinham estado na Sociedade o suficiente para ter perdido sua coloração de cabelo e olhos original.
O humano que foi arrastado para dentro era um tipo mirrado de um metro e oitenta de altura sem nada particularmente interessante, um menino branco de vinte anos com um rosto comum e entradas que seriam um problema em outro par de anos. O aspecto de playboy, e a atitude de “quem lhe importa?” explicava além de toda dúvida por que se vestia como fazia: com uma jaqueta de couro com uma águia bordada à costas, uma camisa Fender Rock & Roll Religion, correntes pendurando dos jeans e tênis Ed Hardy.
Triste. Realmente triste. Era como pôr aros de vinte e quatro polegadas em um Toyota Camry. E se o menino estivesse armado? Sem dúvida estava com uma navalha Suíça que usava principalmente como palito de dentes.
Mas não necessariamente tinha que ser um lutador para ser de utilidade. Lash tinha desses. Deste PDM[35] necessitava algo mais.
O homem olhou à boas-vindas oferecida pela Magnum do senhor D e olhou para trás, em direção à porta, como se perguntando se poderia correr mais rápido que uma bala. O senhor A resolveu a questão fechando a porta com todos eles dentro e ficando diante da saída.
O humano olhou o Lash e franziu o cenho.
— Hey... Conheço você. Da prisão.
— Sim, claro. — Lash permaneceu sentado e sorriu um pouco — Então, quer saber os prós e os contras desta reunião?
O humano tragou e voltou a concentrar-se no canhão do senhor D.
— Sim. Claro.
— Foi fácil de encontrar. Tudo o que meus homens tiveram que fazer foi ir ao Screamer's e esperar um momento e... Aqui está. — Lash se recostou em sua cadeira e o assento de vime rangeu. Quando o olhar do humano se moveu inquieto, teve a tentação de lhe dizer que se esquecesse do som e se preocupasse com a quarenta que tinha debaixo da mesa apontada às jóias da família — Você se manteve fora de problemas desde que te vi na prisão?
O humano sacudiu a cabeça e disse:
— Sim.
Lash riu.
— Quer tentar de novo? Não está em sincronia.
— Quero dizer, ainda me mantenho em meu negócio, mas não me pegaram.
— Bom, bem. — quando os olhos do homem voltaram a saltar para o senhor D, Lash riu — Se eu fosse você, ia querer saber por que me trouxeram aqui.
— Ah... Sim. Isso seria genial.
— Minhas tropas estiveram lhe observando.
— Tropas?
— Tem um negócio firme na cidade.
— Ganho um bom dinheiro.
— Você gostaria de fazer mais?
Agora o humano olhou ao Lash, com um olhar ávido e lisonjeador nos olhos.
— Quanto mais?
O dinheiro era realmente um grande motivador, não?
— Faz bem para um vendedor em pequenas quantidades, mas neste momento é de pouca subida. Felizmente para você, estou de humor para fazer um investimento em alguém como você, alguém que necessite um empurrão para passar ao nível seguinte. Quero que seja algo mais que um vendedor em pequenas quantidades, quero te converter em um intermediário com as pessoas importantes.
O humano levou uma mão ao queixo e a desceu por seu pescoço como se tivesse que despertar seu cérebro massageando a garganta. No silêncio, Lash franziu o cenho. Os nódulos do tipo estavam esfolados e faltava a pedra do anel barato do Instituto Secundário de Caldwell.
— Isso parece interessante. — murmurou o humano — Mas... Tenho que pensar um pouco.
— Como não. — cara, se esta era uma tática negociadora, Lash estava mais que preparado para assinalar que havia outros cem distribuidores menores que saltariam ante este tipo de trato.
Logo lhe faria um gesto com a cabeça ao senhor D e o assassino procederia a colocar uma bala na jaqueta de águia embaixo das exageradas entradas.
— Eu, ah, não posso voltar a Caldie[36]. Durante um tempo.
— Por quê?
— Não está relacionado com a distribuição de drogas.
— Tem algo a ver com seus nódulos esfolados? — o humano escondeu rapidamente o braço depois disso — Foi o que pensei. Pergunta: se tem que te manter na clandestinidade, que demônios fazia no Screamer's esta noite?
— Digamos que queria fazer uma compra para mim mesmo.
— É idiota se tomar o que vende. — e não um bom candidato para o que Lash tinha em mente. Não queria fazer negócios com um idiota.
— Não se tratava de drogas.
— Uma nova identidade?
— Talvez.
— Conseguiu o que procurava? No clube?
— Não.
— Posso te ajudar com isso. — a Sociedade tinha sua própria plastificadora, pelo amor de Deus — E aí vai minha proposta. Meus homens, os que tem a sua esquerda e atrás de você, trabalharão contigo. Se não puder ser o homem que dá a cara na rua, pode conseguir a mercadoria e eles podem movê-la depois de que lhes mostre como funciona tudo. — Lash olhou o Senhor D — Meu café da manhã?
O Senhor D deixou a arma junto ao chapéu de cowboy que tirava só quando estava dentro de casa e depois avivou a chama sob uma caçarola que havia sobre o pequeno fogão.
— De que tipo de dinheiro estamos falando? — perguntou o homem.
— Cem dos grandes como primeiro investimento.
Os olhos do homem pareciam máquinas registradoras, todo “ding-ding-ding” de excitação.
— Bom... Merda, isso é suficiente para começar o jogo. Mas quanto há para mim?
— Repartiremos os lucros. Setenta para mim. Trinta para você. De todas as vendas.
— Como sei que posso confiar em você?
— Não sabe.
Quando o Senhor D pôs um pouco de bacon ao fogo, o chiado e o cheiro encheu a casa e Lash sorriu ante o som.
O humano olhou a seu redor, e virtualmente se podiam ler seus pensamentos: cabana no meio do nada, quatro tipos contra ele, ao menos um dos quais tinha uma arma capaz de converter uma vaca em hambúrguer.
— Bem. Sim. De acordo.
O que era, é obvio, a única resposta.
Lash pôs a trava em sua arma, e quando pousou sua automática sobre a mesa, os olhos do humano se arregalaram.
— Vamos, como não pensou que te deixava coberto? Por favor.
— Sim. Ok. Certo.
Lash se levantou e rodeou a mesa em direção ao homem. Enquanto estendia a mão, disse:
— Como se chama, Jaqueta de Águia?
— Nick Carter.
Lash riu com força.
— Tenta de novo, imbecil. Quero o autêntico.
Bob Grady. Mas me chamam de Bobby G.
Apertaram as mãos e Lash apertou forte, esmagando seus nódulos machucados.
— Alegro-me alegro de fazer negócios com você, Bobby. Eu sou Lash. Mas pode me chamar de Deus.
******
John Matthew examinou as pessoas da área VIP do ZeroSum não porque estivesse procurando paquera, como Qhuinn fazia, nem porque estivesse perguntando com quem Qhuinn ia querer paquerar, como Blay fazia.
Não, John tinha suas próprias fixações.
Normalmente Xhex aparecia a cada meia hora, mas fazia um momento seu segurança tinha se aproximado e ela partiu com pressa, e desde esse momento tinha desaparecido.
Quando uma ruiva passou brandamente junto a eles, Qhuinn se moveu no banco, sua bota de combate tamborilando sob a mesa. A mulher humana media ao redor de um metro e setenta e tinha as pernas de uma gazela, longas, frágeis e encantadoras. E não era uma profissional... Ia de braço com um homem com aspecto de homem de negócios.
Isso não significava que não se entregasse por dinheiro, mas o fazia em uma modalidade mais legal chamada relação.
— Merda. — resmungou Qhuinn, seus olhos desiguais eram os de um predador.
John deu um tapinha na perna de seu colega e na Linguagem de Sinais Americano disse:
Olhe, por que não vai atrás com alguém. Está me enlouquecendo com esse estalo continuado.
Qhuinn assinalou a lágrima que tinha tatuada sob o olho.
— Supõe-se que não devo te deixar. Nunca. Esse é o ponto de ter um ahstrux nohstrum.
E se não fizer sexo logo, vai ser inútil.
Qhuinn observou como a ruiva arrumava a saia curta para poder sentar-se sem desdobrar o que sem dúvida era nada menos que uma depilação brasileira com cera (assim chamada, pois é uma depilação quase total) .
A mulher passeou a vista pelo lugar sem demonstrar interesse... Até que chegou ao Qhuinn. No momento em que lhe viu, seus olhos se iluminaram como se tivesse encontrado uma promoção na Neiman Marcus. Não lhe surpreendeu. A maioria das mulheres e fêmeas fazia o mesmo, e era compreensível. Qhuinn se vestia simplesmente, mas seu estilo era o de um cara duro: camisa negra metida em Z-Brands azuis escuro. As botas negras de combate. Piercings de metal negro percorrendo toda a longitude de uma de suas orelhas. O cabelo penteado formando picos negros. E recentemente tinha furado o lábio inferior no centro colocando um aro negro.
Qhuinn parecia o tipo de indivíduo que mantinha sua jaqueta de couro no colo porque levava armas nela.
O que fazia.
— Não, estou genial. — resmungou Qhuinn antes de terminar sua Corona — As ruivas não me caem bem.
Blay afastou o olhar bruscamente, assumindo um repentino e fingido interesse por uma morena. A verdade era que estava interessado em uma só pessoa, e essa pessoa lhe tinha rechaçado tão sólida e amavelmente como só um melhor amigo podia.
Era evidente, muito claro e bem certo que ao Qhuinn não fossem as ruivas.
Quando foi a última vez que esteve com alguém? Gesticulou John.
— Não sei. — Qhuinn pediu por gestos outra rodada de cervejas — Um tempo.
John tentou recordar e se deu conta que não tinha sido desde... Cristo, do verão, com essa garota da Abercrombie & Fitch. Considerando que Qhuinn costumava fazê-lo ao menos com três pessoas em uma noite, isso era um inferno de seca, e era difícil imaginar que uma dieta restrita a base de clímax conseguidos mediante masturbação fosse contentar. Merda, inclusive quando se alimentava das Escolhidas, tinha estado mantendo as mãos para si mesmo, apesar do fato de que suas ereções cresciam até chegar a lhe provocar suores frios. Por outro lado, os três se alimentavam da mesma fêmea ao mesmo tempo, e por muito que Qhuinn não tivesse problema algum em ter audiência, conservava as calças em seu lugar por deferência a Blay e John.
Sério, Qhuinn, que demônios vai me acontecer? Blay está aqui.
— Wrath disse que sempre contigo. Assim devo estar. Sempre. Contigo.
Acredito que está levando isso muito a sério. Como que, muito a sério.
Do outro lado da seção VIP, a gazela ruiva se acomodou em seu assento de forma que os atributos que tinha mais abaixo da cintura se desdobrassem completamente, suas suaves pernas emergiram de debaixo da mesa e ficaram a plena vista de Qhuinn.
Esta vez quando o cara se moveu, foi bastante óbvio que estava reacomodando algo duro em seu colo. E não era uma de suas armas.
Pelo amor de Deus, Qhuinn, não digo que tenha que ser ela. Mas temos que conseguir que alguém se ocupe de...
— Disse que estava bem. — interveio Blay — Deixe-o em paz.
— Há um modo. — os olhos desiguais de Qhuinn se voltaram para John — Poderia vir comigo. Não é que vamos fazer nada, sei que não vai. Mas você também poderia conseguir alguém. Se quiser. Poderíamos fazê-lo em um dos banheiros privados, e você poderia ficar com o reservado e dessa forma poderia ver você. Você tem a palavra, ok? Não voltarei a puxar o assunto.
Enquanto Qhuinn afastava o olhar com atitude despreocupada e casual, se fazia difícil não simpatizar com o cara. Tanto a consideração, como a rudeza, vinha em um montão de variedades diferentes, e a gentil oferta de ter uma agradável sessão de sexo por partida dupla era uma espécie de amabilidade: Qhuinn e Blay sabiam o motivo pelo qual apesar de já ter passado oito meses da transição de John, não tinha estado com uma fêmea. Sabiam o motivo e ainda assim seguiam saindo com ele.
Deixar cair à bomba que John tinha estado ocultando tinha sido a patada final de Lash antes de morrer.
Tinha sido a razão pela que Qhuinn tinha matado ao estúpido.
Quando a garçonete trouxe uma nova rodada de cervejas, John olhou à ruiva e, para sua surpresa, lhe sorriu quando lhe pegou olhando.
Qhuinn riu baixinho.
— Possivelmente não sou o único que gosta.
John levou a Corona à boca e tomou um gole para ocultar seu rubor. A questão era, que desejava ter sexo e, como Blay, desejava-o com alguém em particular. Mas tendo perdido já uma ereção diante de uma fêmea nua e disposta, não tinha nenhum apuro em tentar de novo, especialmente não com a pessoa que lhe interessava.
Demônios. Não. Xhex não era o tipo de fêmea diante da qual quisesse nem sequer te engasgar com uma asa de frango. Desinflar porque foi muito covarde para entrar em ação? Seu ego nunca voltaria a ser o mesmo...
Uma onda de inquietação na multidão fez com que deixasse de lado todos os “pobrezinho de mim” e se endireitasse no assento.
Um cara de olhos selvagens estava sendo escoltado através da área VIP por dois enormes seguranças, cada um com uma mão sobre a parte superior de seu braço. Estava sapateando sobre seus sapatos caros, com seus pés mal tocando o chão, e sua boca dançava de igual modo, parecendo uma imitação de Fred Astaire, embora John não pudesse ouvir o que estava dizendo por cima da música.
O trio entrou no escritório privado da parte de trás.
John acabou sua Corona e olhou fixamente a porta enquanto se fechava. Ocorriam coisas más às pessoas que eram levadas ali. Especialmente se eram arrastados por um par de seguranças.
Repentinamente, um silêncio atenuou todo o bate-papo da área VIP, fazendo com que a música parecesse estar muito alta.
John soube quem era antes de virar a cabeça.
Rehvenge tinha entrado pela porta lateral, sua entrada foi silenciosa, mas tão óbvia como o estalo de uma granada. No meio de seus clientes bem vestidos com suas bonecas de braço, as garotas com seus encantos expostos para ser comprados e as garçonetes correndo com as bandejas, ele diminuía o tamanho do espaço, e não só porque era um macho enorme vestido com um sobretudo de zibelina, mas sim pela forma em que olhava a seu redor.
Seus brilhantes olhos cor ametista viam todos e não se preocupavam com ninguém.
Rehv... Ou o Reverendo, como lhe chamava a clientela humana... Era um senhor da droga e um alcoviteiro que não dava uma merda pela vasta maioria. O que significava que era capaz de, e freqüentemente fazia, algo que lhe desse um real ganho.
Especialmente a caras do estilo do bailarino.
Caralho, a noite ia terminar mal para esse cara.
Quando Rehv passou a seu lado, saudou com a cabeça ao John e os meninos, e eles lhe devolveram a saudação, elevando suas Coronas em deferência. A questão era que Rehv era uma espécie de aliado da Irmandade, tendo sido nomeado leahdyre do conselho da glymera depois dos assaltos... Porque era o único desses aristocratas com culhões para permanecer em Caldwell.
Assim que lhe importava muito poucas coisas e estava a cargo de um diabólico montão de coisas.
John girou para a corda de veludo, sem sequer incomodar-se em dissimular. Certamente isto significava que Xhex tinha que estar...
Apareceu na porta da seção VIP, com o aspecto de um trilhão de dólares, ao menos em sua opinião: quando se inclinou ao redor de um dos seguranças para que o cara pudesse lhe sussurrar ao ouvido, seu corpo estava tão tenso que os músculos de seu estômago se insinuavam através da camiseta sem mangas que lhe ajustava como uma segunda pele.
Falando de revolver-se no assento, agora era ele que tinha problemas de posição.
Entretanto, enquanto ela caminhava para o escritório privado de Rehv, sua libido se gelou. Nunca tinha sido do tipo que sorria muito, mas quando passou a seu lado, estava sombria. Igual ao Rehv.
Evidentemente, estava acontecendo algo, e John não pôde evitar o impulso ao estilo “cavalheiro-de-armadura-brilhante” que acendeu em seu peito. Mas vamos, Xhex não precisava de um salvador. Por acaso era do tipo de pessoa que estaria no cavalo, lutando contra o dragão.
— Parece um pouco apertado aí. — disse Qhuinn baixinho quando Xhex entrou no escritório — Mantém minha oferta em mente, John. Não sou o único que sofre, verdade?
— Se me desculpam. — disse Blay, ficando em pé e pegando sua Red Dunhills e seu isqueiro dourado — Preciso de um pouco de ar fresco.
O macho tinha começado a fumar recentemente, um hábito que Qhuinn desprezava apesar do fato de que os vampiros não podiam desenvolver câncer. Entretanto, John o entendia. A frustração devia se resolver de algum modo, e só até certo ponto podia liberá-la a sós em seu dormitório ou com seus amigos na sala de musculação.
Demônios, todos eles tinham ganhado músculos nos últimos três meses, seus ombros, braços e coxas tinham ultrapassado a sua roupa. Fazia que um cara pensasse em dar razão aos lutadores a respeito de não ter nada de sexo antes dos torneios. Se seguissem ganhando músculos assim, iam acabar parecendo uma turma de lutadores profissionais.
Qhuinn baixou o olhar a sua Corona.
— Quer sair daqui? Por favor, me diga que quer sair daqui.
John desviou o olhar para a porta do escritório de Rehv.
— Ficamos. — resmungou Qhuinn enquanto fazia gestos à garçonete, que se aproximou do momento — Vou precisar de outra destas. Ou talvez uma caixa.


CONTINUA

Nas sombras da noite em Caldwell, Nova Iorque, desenrola-se uma guerra letal entre os vampiros e seus assassinos. Também existe uma Irmandade secreta que não se compara a nenhuma outra que tenha existido. Agora, enquanto os guerreiros vampiros defendem a sua raça daqueles que querem exterminá-los, a lealdade de um homem para a Irmandade será posta a prova — e sua perigosa natureza será revelada...
Rehvenge sempre manteve distância da Irmandade, mesmo que sua irmã esteja casada com um de seus membros, pois guarda um letal secreto que poderia fazer dele um grande lastro em sua guerra contra os restrictores. E enquanto as conspirações dentro e fora da Irmandade ameaçam revelar a verdade sobre o Rehvenge, ele se aproximará da única luz que ilumina seu mundo de escuridão e que trata de sustentá-lo, Ehlena, uma vampira que nunca conheceu a corrupção e traição... a única pessoa que pode salvá-lo da destruição eterna.


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Capítulo 1


— O rei deve morrer.
Quatro palavras, algumas sílabas. Separadas não eram nada em especial. Juntas? São um mau agouro de todo tipo de merda. Assassinato. Deslealdade. Traição.
 Morte.
No tenso momento que houve logo depois de que as dissessem, Rehvenge se manteve em silêncio deixando que o quarteto permanecesse suspenso no carregado ar do escritório, quatro pontas de uma sinistra e maligna bússola com a qual estava intimamente familiarizado.
— Tem alguma resposta? – perguntou Montrag, filho de Rehm.
— Não.
Montrag piscou e brincou com a gravata de seda que tinha posta no pescoço. Como a maioria dos membros da glymera, tinha ambos os sapatos de veludo firmemente plantados na seca e rarefeita areia de sua classe. O que simplesmente significava que era francamente pedante, arrogante em todo aspecto. Com sua jaqueta de smoking, e suas impecáveis calças… Merda, na verdade eram polainas? Parecia saído das páginas de uma Vanity Fair. De uns cem anos atrás. E no que se referia à política, com sua infinidade de atitudes condescendentes e suas brilhantes e fodidas idéias era como Kissinger sem um presidente: toda análise sem nada de autoridade o que deveria explicar esta reunião não é assim?
— Não te detenha agora. – disse Rehv — Já que você saltou do edifício. A aterrissagem não será mais suave.
Montrag franziu o cenho.
— Não posso ver isto com a mesma rapidez que você.
— Quem está rindo?
Um golpe na porta do escritório fez com que Montrag girasse a cabeça, tinha o perfil de um cavalheiro irlandês: todo nariz.
— Entre.
A doggen que respondeu à ordem entrou lutando com o peso do serviço de prata que carregava. Com uma bandeja de ébano do tamanho de um alpendre nas mãos começou a atravessar o cômodo, encurvada devido a carga.
Até que levantou a cabeça e viu Rehv.
Congelou-se como uma fotografia instantânea.
— Tomaremos o chá aqui. — Montrag apontou à mesa que havia no meio dos dois sofás de seda nos que estavam sentados — Aqui.
A doggen não se moveu, ficou olhando fixamente o rosto de Rehv.
— O que foi? — perguntou Montrag quando as xícaras começaram a tremer, e um som tilintante começou a surgir da bandeja — Ponha nosso chá aqui, agora.
A doggen inclinou a cabeça, murmurou algo, e se adiantou lentamente, pondo um pé diante do outro como se estivesse se aproximando de uma serpente enroscada. Ficou tão afastada de Rehv como pôde, e depois de deixar o serviço, suas trementes mãos mal eram capazes de pôr as xícaras sobre os pires.
Quando foi agarrar o bule, era evidente que ia derramar a merda por todos os lados.
— Deixe que eu faça. — disse Rehv, esticando a mão.
Quando a doggen fez um movimento brusco para afastar-se dele, o bule virou na mão e o chá começou uma queda livre.
Rehv apanhou a prata quente entre suas palmas.
— O que você fez! — exclamou Montrag, levantando-se de um salto do sofá.
A doggen se encolheu, levando as mãos à cara.
— Sinto muito, amo. Verdadeiramente, o…
— Oh, te cale, e nos traga um pouco de gelo…
— Não é sua culpa. — Rehv desviou a mão tranqüilamente para o bule e começou a servir — E eu estou perfeitamente bem.
Ambos o olharam como se estivessem esperando que desse um salto e começasse a sacudir o traseiro ao ritmo de ow—ow—ow.
Deixou o bule de prata e olhou os pálidos olhos de Montrag.
— Um torrão. Ou dois?
— Posso… Posso te oferecer algo para essa queimadura?
Sorriu, mostrando as presas a seu anfitrião.
— Estou perfeitamente bem.
Montrag pareceu ofendido pelo fato de não poder fazer nada, e voltou seu desgosto para a criada.
— É uma desgraça absoluta. Vá.
Rehv olhou a doggen. Para ele suas emoções eram como um ralo tridimensional de medo, vergonha e pânico, e a trama trançada enchia o espaço que a rodeava tão certamente como o faziam seus ossos, seus músculos e sua pele.
— Fique tranqüila. — disse-lhe com o pensamento — E tenha certeza que endireitarei isto.
O assombro relampejou em seu rosto, seus ombros afrouxaram a tensão e se girou aparentando estar muito mais tranqüila.
Quando se foi, Montrag clareou a garganta e voltou a sentar.
— Não acredito que vá prestar. É absolutamente incompetente.
— Por que não começamos com um torrão? — Rehv deixou cair um cubo de açúcar dentro do chá — E veremos se deseja outro.
Estendeu a mão com a xícara, mas não muito afastada, para que Montrag se visse forçado a levantar-se novamente do sofá e a inclinar-se sobre a mesa.
— Obrigado.
Rehv não soltou o pires enquanto promovia uma mudança de parecer na mente de seu anfitrião.
— Deixo as fêmeas nervosas. Não foi sua culpa.
Abriu a mão abruptamente e Montrag lutou para pegar a Royal Doulton[1].
— Oops. Não o derrame. — Rehv voltou a se reclinar contra o sofá — Seria uma pena manchar este tapete tão fino. Aubusson, verdade?
 — Ah… Sim. — Montrag voltou a sentar-se e franziu o cenho, como se não tivesse idéia de porque tinha trocado de opinião com respeito a sua criada — Errr… Sim, é. Meu pai comprou faz muitos anos. Tinha um gosto apurado, não é mesmo? Construímos esta sala especialmente para este tapete, porque é muito grande, e a cor das paredes foi escolhida especificamente para fazer ressaltar seus matizes cor pêssego.
Montrag passeou a vista pelo escritório e sorriu para si mesmo enquanto sorvia, com o dedo mindinho estendido no ar como se fosse uma bandeira.
— Como está seu chá?
— Perfeito, mas você não tomará um pouco?
— Não sou bebedor de chá. — Rehv esperou até que a xícara estivesse nos lábios do macho — Então estava falando de assassinar Wrath?
Montrag cuspiu o Earl Grey[2], salpicou a frente de sua jaqueta de smoking cor vermelha sangue e sujou o estupendo tapete do papai.
Quando o macho começou a bater fracamente as manchas, Rehv lhe ofereceu um guardanapo.
— Tome, use isto.
Montrag pegou o quadrado de damasco, e acariciou torpemente seu peito, logo o deslizou pelo tapete com igual falta de resultados. Era evidente, que era o tipo de macho que fazia tramas e não do tipo que os solucionava.
— Em que estávamos? — murmurou Rehv.
Montrag atirou o guardanapo na bandeja e ficou de pé, esquecendo o chá, para passear pelo cômodo. Deteve-se frente a uma grande paisagem montanhosa e pareceu estar admirando a dramática cena, iluminada por focos, de um soldado colonial rezando aos céus.
Falou com a pintura.
— Está a par de que muitos irmãos de sangue foram abatidos nas incursões dos lessers.
— E eu aqui pensando que tinham me escolhido leahdyre[3] do conselho devido a minha animada personalidade.
Montrag o olhou agressivamente por cima do ombro, seu queixo elevado de forma tipicamente aristocrática.
— Perdi a meu pai, a minha mãe e a todos os meus primos e irmãos. Enterrei a todos e cada um deles. Pensa que isso é motivo de regozijo?
— Minhas desculpas. — Rehv colocou a palma da mão direita sobre o coração e inclinou a cabeça, apesar de que não lhe importava uma merda. Não ia ser manipulado pela menção de suas perdas. Especialmente quando todas as emoções do cara falavam de cobiça e não de dor.
Montrag deu as costas à pintura, e sua cabeça ocupou o lugar da montanha sobre a qual estava o soldado colonial… Pelo que dava a impressão que o pequeno homem de uniforme vermelho estava tratando de subir pela sua orelha.
— Devido às incursões, a glymera suportou perdas sem igual. Não só em vidas, mas também em propriedades. Casas saqueadas, antiguidades e obras de arte roubadas, contas de banco desaparecidas. E o que Wrath fez? Nada. Não deu resposta às freqüentes perguntas a respeito de como foram encontradas as residências dessas famílias… Por que a Irmandade não deteve os ataques… Onde foram parar todos esses bens? Não há um plano para assegurar-se que nunca mais volte a ocorrer algo assim. Não oferecem a segurança a nós, poucos membros restantes da aristocracia, de que se retornássemos a Caldwell, estaríamos protegidos. — Montrag realmente se entusiasmou, sua voz se elevava e ricocheteava contra a parte mais alta do teto dourado com molduras — Nossa raça está morrendo e precisamos de uma verdadeira liderança. Não obstante, por Lei, enquanto o coração de Wrath siga pulsando em seu peito, seguirá sendo rei. A vida de um é mais valiosa que a vida de muitos? Examine seu coração.
Oh, Rehv estava olhando em seu interior, esse era, esse negro e maldito músculo.
— E... Logo o que?
— Assumimos o controle e fazemos o correto. Durante seu reinado, Wrath reestruturou as coisas… Olhe o que fez às Escolhidas. Agora estão autorizadas a emparelhar-se deste lado… Algo nunca visto! E a escravidão está abolida, junto com a Sehclusion das fêmeas. Virgem Escriba querida, quando quiserem acordar haverá um integrante da Irmandade com saia. Se nós estivermos na liderança, podemos reverter o que ele tem feito e reformar as leis adequadamente para preservar as tradições. Podemos organizar uma nova ofensiva contra a Sociedade Lessening. Podemos triunfar.
— Está empregando muitos “nós”, e por alguma razão não acredito que isso represente exatamente o que tem em mente.
 — Bom, é obvio que deverá haver um indivíduo que seja o primeiro entre seus iguais. — Montrag alisou as lapelas da sua jaqueta de smoking e inclinou a cabeça e o corpo como se tivesse posando para uma estátua de bronze ou talvez para um bilhete — Um macho de valor que esteja à altura do cargo e resulte ser o escolhido.
— E como seria escolhido este modelo de virtudes?
— Nos tornaremos uma democracia. Uma democracia que foi longamente postergada e que substituirá o injusto e desigual costume da monarquia.
Quando o bate-papo seguiu seu curso, Rehv se reclinou para trás, cruzou as pernas à altura do joelho e uniu os dedos das mãos formando uma carpa. Sentado no acolchoado sofá de Montrag, suas duas metades entraram em conflito, o vampiro e o symphath colidiram.
O único benefício disso era que o combate interno gritante sufocava o som nasal de todo esse “Eu-sei-tudo”.
A intenção era óbvia: livrar-se do Rei e tomar o controle da raça.
O ato era inconcebível: matar a um bom macho, um bom líder e… Uma espécie de amigo.
—… e escolheríamos a quem nos lideraria. O faríamos responsável pelo Conselho. Asseguraríamo-nos que nossas preocupações fossem atendidas. — Montrag retornou a seu sofá, sentou-se e ficou cômodo como se fosse seguir com esse bate-papo exagerado e vazio sobre o futuro durante horas — A monarquia não está funcionando e a democracia é a única maneira…
Rehv lhe interrompeu:
— Em geral a democracia implica que todo mundo pode votar. Digo-lhe isso só se por acaso não está familiarizado com a definição.
— E assim o faríamos. Todos os que servimos no Conselho estaríamos na junta eleitoral. Todo mundo seria considerado.
— PTI, o termo abrange algumas pessoas mais além de “todos os que são como nós”.
Montrag lhe dirigiu um olhar carregado de “Oh-por-favor-fale-sério”.
— Honestamente confiaria a raça às classes baixas?
— Não depende de mim.
— Poderia. — Montrag levou a xícara aos lábios e o olhou por cima da borda com olhos penetrantes — Poderia perfeitamente. É nosso Leahdyre.
Olhando fixamente ao homem, Rehv viu o caminho tão claramente como se estivesse pavimentado e iluminado com fachos de luzes halogênias: se Wrath fosse assassinado, sua linhagem real terminaria, porque ainda não tinha gerado um filho. Às sociedades, particularmente aquelas que estavam em guerra como a dos vampiros, aborreciam os vazios na liderança, por isso uma mudança radical da monarquia à “democracia” não resultava tão inconcebível como teria sido em outra época mais racional e segura.
A glymera poderia estar fora de Caldwell e escondida nos refúgios dispersados por toda a Nova Inglaterra, mas essa turma de filhos da puta decadentes tinha dinheiro e influências e sempre tinham desejado tomar o poder. Com este plano em particular, podiam disfarçar suas ambições com as vestimentas da democracia e fazer ver que estavam protegendo às pessoas sem status.
A infausta natureza do Rehv se agitou como um criminoso preso impaciente para obter a liberdade condicional. As más ações e os jogos de poder eram uma compulsão inerente a aqueles que levavam o sangue de seu pai, e parte dele desejava criar o caos… E entrar nele.
Interrompeu as tolices presunçosas de Montrag.
— Economize a propaganda. O que é que está sugerindo exatamente?
O macho fez toda uma elaborada demonstração de como deixar uma xícara de chá, como se quisesse aparentar que estava reunindo as palavras. Enfim. Rehv estava disposto a apostar que o homem sabia exatamente o que ia dizer. Uma coisa dessa natureza, não era algo que simplesmente se pensa na hora, e havia outros envolvidos. Tinha que ter.
 — Como bem sabe o Conselho vai reunir-se em Caldwell dentro de alguns dias especificamente para ter uma audiência com o Rei. Wrath chegará e… Ocorrerá um evento mortal.
— Ele viaja com a Irmandade. E não é especialmente o tipo de força muscular que possa ser evitada facilmente.
— A morte pode levar muitas máscaras. E tem muitos e variados cenários onde atuar.
— E meu papel seria…? — embora já tivesse compreendido.
Os pálidos olhos de Montrag pareciam de gelo, resplandecentes e frios.
— Sei que classe de macho é. Assim sei precisamente do que é capaz.
Isto não era uma surpresa. Durante os últimos vinte e cinco anos Rehv tinha sido um senhor das drogas, e embora não houvesse publicado sua ocupação dentro da aristocracia, os vampiros iam a seus clubes regularmente, e parte deles estavam nas filas de seus clientes químicos.
Ninguém além dos Irmãos sabia de seu lado symphath… E era sua escolha continuar oculto. Nas últimas duas décadas tinha estado pagando bem a seu chantagista para assegurar-se que continuasse sendo segredo.
— É por isso que fui a ti. — disse Montrag — Você saberá como se encarregar disto.
— É certo.
— Como Leahdyre do Conselho, estará em uma posição de enorme poder. Ainda se não eleito presidente, o Conselho persistirá. E fique tranqüilo com respeito à Irmandade da Adaga Negra. Sei que sua irmã está emparelhada com um deles. Os Irmãos não se verão afetados por isso.
— Não acredita que isto os enfurecerá? Wrath não é só seu rei. É de seu sangue.
— Proteger a nossa raça é sua obrigação primária. Eles devem nos seguir aonde vamos. E deve saber que há muitos que pensam que ultimamente estiveram fazendo um mau trabalho. Penso que talvez requeiram uma melhor liderança.
— De tua parte. Sim. Claro.
Isso seria como um decorador de interiores tratando de comandar um destacamento de tanques: um fodido carregamento de ruidosos gorjeios até que um dos soldados terminasse com o boneco de pano temporário e lhe agitasse o corpo um par de vezes. 
Esse era o plano perfeito. Sim.
E de todas as formas… Quem dizia que Montrag tinha que ser o eleito? Os acidentes ocorriam tanto aos reis como aos aristocratas.
— Devo te dizer, — continuou Montrag — o mesmo que meu pai estava acostumado a me dizer, a coordenação é tudo. Devemos nos apressar. Podemos confiar em você, meu amigo?
Rehv ficou de pé, erguendo-se sobre o outro macho. Com um rápido puxão às abas de sua jaqueta, arrumou seu Tom Ford[4], logo esticou a mão para sua bengala. Não sentia nada em seu corpo, nem sua roupa nem o peso que tinha ido de seu traseiro à planta de seus pés, nem a ponta da bengala contra a palma da mão que se queimou. O intumescimento era um efeito secundário da droga que utilizava para evitar que aflorasse seu lado mau quando estava com companhia variada, a prisão onde encerrava suas tendências sociopatas.
Não obstante, tudo o que necessitava para voltar para suas origens era pular uma dose. E uma hora depois? A maldade nele estava vivinha, abanando o rabo e pronta para brincar.
— O que me diz? — incitou Montrag.
E não era essa a pergunta?
Às vezes na vida, entre a miríade de decisões corriqueiras como, o que comer, onde dormir, e o que vestir, aparecia uma verdadeira encruzilhada. Nesses momentos, quando a névoa da relativa irrelevância se levanta e o destino te estende uma demanda de livre-arbítrio, só há esquerda ou direita… Nada de te lançar em um terreno que há entre os dois caminhos, não havia forma de negociar com a escolha que te expor.
Deve responder à chamada e escolher seu caminho. E não há volta.
Não obstante, o problema era que navegar por uma paisagem moralista era algo que tinha tido que aprender para se encaixar com os vampiros. A lição que tinha aprendido tinha perseverado, embora só até certo ponto.
E suas drogas só funcionavam de certa maneira.
Subitamente, o rosto pálido de Montrag se tingiu de uma variedade de tons de rosa pastel, o cabelo escuro do macho se tornou cor de rosa e a jaqueta de seu smoking ficou da cor do Ketchup. Enquanto uma pátina avermelhada coloria tudo, o campo visual de Rehv se achatou voltando-se como uma tela de cinema onde se via o mundo.
E talvez isto explicasse o motivo pelo qual resultava fácil aos symphaths utilizar às pessoas. Com seu lado escuro assumindo o controle, o universo tinha a profundidade de um tabuleiro de xadrez e as pessoas que haviam nele eram como peões em sua mão onisciente. Todos eles. Os inimigos… E os amigos.
— Eu me encarregarei. — anunciou Rehv — Como disse, sei o que tenho que fazer.
— Sua palavra. — Montrag estendeu a suave palma de sua mão — Dê-me sua palavra de que isto se levará a cabo em segredo e silenciosamente.
Rehv deixou que essa mão pendurasse livremente no ar, mas sorriu, revelando uma vez mais suas presas.
— Confie em mim.


Capítulo 2


Enquanto Wrath, filho de Wrath, percorria um dos becos urbanos de Caldwell, sangrava em dois lugares. Tinha uma navalhada ao longo de seu ombro esquerdo, feita por uma faca serrada, e lhe faltava uma parte da coxa, graças ao canto oxidado de um contêiner de lixo. O lesser que ia na frente, o que estava a ponto de estripar como a um peixe, não tinha sido o responsável por nenhum: os dois camaradas de cabelo branco, que cheiravam a talco de bebê, eram os artífices do dano.
E o tinham feito a uns duzentos e setenta metros dali, fazia três minutos, justo antes de ser reduzidos a um par de bolsas de adubo de minhoca.
Esse bastardo diante de si era o objetivo real.
O assassino estava movendo o traseiro rápido, mas Wrath era mais rápido ainda... Não só porque suas pernas eram mais longas, apesar do fato de que estava gotejando como uma cisterna furada. Não havia dúvida de que o terceiro morreria.
Era uma questão de vontade.
O lesser tinha escolhido o caminho errado essa noite... Embora não ao escolher esse beco em particular. Isso era o único adequado e justo, e provavelmente o não-morto fazia isso durante décadas, porque a privacidade era importante para lutar. O último que a Irmandade ou a Sociedade Lessening precisavam era à polícia humana envolvida em algo que tivesse a ver com esta guerra.
Não, o erro “Sinto-essa-não-é-a-resposta-correta” do bastardo tinha sido há uns quinze minutos atrás, quando tinha assassinado a um macho civil. Com um sorriso na cara. Diante de Wrath.
Tinha sido pela fragrância de sangue fresco de vampiro que o rei tinha encontrado ao trio de assassinos em primeiro lugar, lhes apanhando no ato de tentar seqüestrar a um de seus civis. Tinha resultado evidente que sabiam que era, no mínimo, um membro da Irmandade, porque esse lesser que ia na sua frente tinha matado ao macho para que ele e seu esquadrão pudessem ter as mãos livres e pudessem enfocar-se completamente na briga.
A parte triste era que a chegada de Wrath tinha economizado ao civil uma larga e lenta morte por tortura em um dos acampamentos de tortura da Sociedade. Mas ainda assim lhe arderam às vísceras ao ver como fatiavam a um apavorado inocente e o atiravam sobre o frio e gretado pavimento como se fosse uma marmita vazia.
Assim que esse filho da puta dali ia cair.
Olho-por-olho e tudo isso.
Ao chegar ao final do beco sem saída, o lesser fez um salto de preparação, girando, plantando os pés e tirando sua faca. Wrath não retardou seu avanço. No meio da corrida, liberou um de seus shuriken[5] e lançou a arma com um golpe de mão, alardeando com o lançamento.
Algumas vezes queria que seu oponente soubesse o que lhe era atirado.
O lesser seguiu a coreografia à perfeição, trocando seu ponto de apoio e afrouxando sua postura de combate. Enquanto Wrath cortava a distância, lançou outra estrela e outra mais, impulsionando o lesser para uma posição escondida.
O Rei Cego se desmaterializou justo sobre o idiota, golpeando de cima, despiu as presas para fechá-las na nuca do assassino. A aguda doçura do sangue do lesser era o sabor do triunfo, e o coro da vitória tampouco demorou a chegar, quando Wrath agarrou ao bastardo pela parte superior de ambos os braços.
A vingança era um estalo. Ou melhor dizendo, dois.
A coisa gritou quando ambos os ossos saíram de suas cavidades, mas o uivo não viajou muito longe depois que Wrath lhe fechasse a boca com a palma da mão.
— Isto é só o aquecimento. — vaiou Wrath — É importante relaxar antes de começar a exercitar-se.
O rei girou o assassino e baixou o olhar para a coisa. Desde trás dos envolventes óculos, seus olhos débeis estavam mais agudos do que o habitual, a adrenalina navegava ao longo de suas veias lhe dando um aumento de acuidade visual. O que era bom. Precisava ver o que tinha matado com uma forma que não tinha nada a ver assegurando a precisão de um golpe mortal.
Enquanto o lesser lutava para respirar, a pele de seu rosto brilhava com uma pátina irreal e plástica — como se a estrutura óssea tivesse sido estofada com a merda com a que fabricava os sacos de arroz — e os olhos estavam se esbugalhando, o fedor doce da coisa parecia a doçura de um animal atropelado na estrada durante uma noite cálida.
Wrath soltou a corrente de aço que pendurava do ombro de sua jaqueta de motoqueiro e desenrolou os elos brilhantes tirando-os de debaixo de seu braço. Segurando o grande peso na mão direita, envolveu seu punho, ampliando a envergadura de seus nódulos, aumentando seus duros contornos.
— Diga “uísque”.
Wrath golpeou à coisa no olho. Uma vez. Duas. Três vezes. Seu punho era um aríete, a órbita do olho cedia terreno como se não fosse mais que uma porta. Com cada excruciante impacto, o sangue negro saltava e salpicava, golpeando Wrath na cara, na jaqueta e nos óculos. Sentia todas as salpicadas, apesar do couro que vestia, e desejava mais.
Era um glutão para esse tipo de comida.
Com um sorriso duro, deixou que a corrente se desenrolasse de seu punho, e golpeasse o sujo asfalto com uma risada efervescente, metálica, como se tivesse desfrutado tanto como ele. A seus pés, o lesser não estava morto. Embora fosse indubitável que a coisa estava desenvolvendo hematomas sub-durais maciços na parte dianteira e traseira do cérebro, ainda vivia, porque só havia duas formas de matar a um assassino.
Uma era lhe atravessar o peito com as adagas negras que os Irmãos tinham embainhadas ao peito. Isso enviava aos PDM[6] de volta com seu criador, o Omega, mas era só uma solução temporária, porque o mal simplesmente utilizava essa essência para converter a outro humano em uma máquina assassina. Não era uma morte, a não ser um atraso.
O outro modo era permanente.
Wrath tirou seu celular e ligou. Quando respondeu uma voz masculina com acento de Boston, disse:
— Oito e Trade. Três caídos.
Butch O'Neal, também conhecido como Dhestroyer, descendente de Wrath, filho de Wrath, era caracteristicamente fleumático em suas respostas. Realmente centrista. Tolerante. Deixando muito espaço para a interpretação de suas palavras:
— Oh, caralho, pelo amor de Deus. Está brincando? Wrath, tem que acabar com esta merda de multiuso. Agora é o rei. Já não é um Irmão...
Wrath fechou o telefone.
Sim. A outra forma de livrar-se destes filhos da puta, a forma permanente, estaria ali em cinco minutos. Com sua língua solta. Infelizmente.
Wrath se sentou sobre os calcanhares, voltando a enrolar a corrente em seu ombro, e levantou o olhar para o quadrado de céu noturno visível sobre os telhados. Quando sua adrenalina decaiu, só foi capaz de distinguir ligeiramente os escuros esqueletos dos edifícios que se elevavam contra o plano da galáxia, e franziu os olhos com força.
Já não é um Irmão.
É uma merda que não o era. Não lhe importava o que dissesse a lei. Sua raça necessitava que fosse mais que um burocrata.
Com uma maldição na Antiga Língua, voltou para sua atividade, e revisou a jaqueta e as calças do assassino em busca de uma identificação. No bolso de trás, encontrou uma fina carteira com uma carteira de motorista e dois dólares dentro...
— Creio... Que ele era um dos seus...
A voz do assassino era de uma vez aflautada e maliciosa, e o som de filme de horror detonou a agressividade de Wrath uma vez mais. Repentinamente, sua visão se tornou mais aguda, e pôde enfocar pela metade seu inimigo.
— O que disse?
O lesser sorriu um pouco, parecendo não notar que a metade de sua cara tinha a consistência de uma omelete muito líquida.
— Sempre foi... Um dos nossos.
— De que merda está falando?
— Como... Acredita... — o lesser tomou um tremente fôlego — Que encontramos... Todas aquelas casas neste verão...?
A chegada de um veículo cortou as palavras, e Wrath girou a cabeça precipitadamente. Graças ao fodido Deus era o Escalade negro que estava esperando e não algum humano com um celular ligado em uma chamada ao 911.
Butch O'Neal saiu de trás do volante, com suas mandíbulas funcionando a toda marcha.
— Você perdeu a fodida cabeça? O que vamos fazer contigo? Vai...
Enquanto o polícia continuava com todo o maldito repertório, Wrath voltou o olhar para o assassino.
— Como as encontraram? As casas?
O assassino começou a rir, o débil ofego era o tipo de coisas que ouvia de um desequilibrado.
— Porque ele tinha estado em todas elas... Assim é como o fizemos.
O bastardo desmaiou, e lhe sacudir não ajudou a lhe trazer de volta. Tampouco o fez uma bofetada nem duas.
Wrath ficou em pé e a frustração desencadeou a fúria.
— Faz seu trabalho, polícia. Os outros dois estão depois do contêiner da quadra seguinte.
O polícia simplesmente o olhou.
— Supõe-se que você não luta.
— Sou o rei. Posso fazer o que me dê a maldita vontade.
Wrath começou a afastar-se, mas Butch lhe agarrou o braço.
— Beth sabe onde está? O que está fazendo? Disse a ela? Ou é só a mim a quem está pedindo que guarde este segredo?
— Preocupa-se disso. — Wrath assinalou ao assassino — Não por mim e minha shellan.
Quando se liberou, Butch ladrou.
— Aonde vai?
Wrath avançou e encarou ao polícia.
— Pensei em ir recolher o cadáver de um civil para levá-lo até o Escalade. Tem algum problema com isso, filho?
Butch se manteve firme. Só mais uma amostra do sangue que compartilhavam.
— Perdemos você como rei e a raça inteira está fodida.
— E só ficam quatro Irmãos no campo de batalha. Você gosta dessa matemática? Eu não.
— Mas...
— Faz seu trabalho, Butch. E fique à margem do meu.
Wrath percorreu a pernadas os duzentos e setenta metros de volta onde tinha começado a briga. Os assassinos vencidos estavam justo onde os tinha deixado: gemendo no chão, com suas extremidades formando ângulos estranhos, seu sangue negro gotejando e formando asquerosos atoleiros lamacentos sob seus corpos. Entretanto, já não eram assunto dele. Rodeando o contêiner olhou ao civil morto e se precaveu que lhe dificultava a respiração.
O rei se ajoelhou e cuidadosamente afastou o cabelo da cara golpeada como a merda do macho. Evidentemente, o cara se defendeu, recebendo um bom número de golpes antes que lhe apunhalassem o coração. Um pirralho valente.
Wrath espalmou a mão sob a nuca do macho, deslizou o outro braço sob os joelhos, e o levantou lentamente. O peso do morto era mais pesado que os quilos do corpo. Enquanto se afastava do contêiner e se aproximava do Escalade, Wrath se sentia como se sustentasse à raça inteira em seus braços, e se alegrou de ter que levar óculos de sol para proteger seus débeis olhos.
Seus óculos envolventes ocultavam o brilho das lágrimas.
Passou junto a Butch enquanto o polícia caminhava para os destroçados assassinos para fazer o seu trabalho. Depois que as pisadas do homem se detiveram, Wrath ouviu uma larga e profunda inalação que soava como o vaio de um balão desinflando-se lentamente. O vômito que seguiu foi muito mais ruidoso.
Enquanto a sucção e as arcadas se repetiam, Wrath deitou ao morto na parte de trás do Escalade e lhe revistou os bolsos. Não havia nada... Nem carteira, nem telefone, nem sequer um pacote de chiclete.
— Foda.
Wrath deu a volta e se sentou no pára-choque traseiro do SUV. Um dos lessers já lhe tinha limpado no curso da luta... E como todos os assassinos acabavam de ser inalados, isso significava que a identificação do civil já era pó.
Enquanto Butch se aproximava do Escalade cambaleando pelo beco, o polícia parecia um bêbado farreando e já não cheirava a Acqua di Parma. Fedia a lesser, como se tivesse secado sua roupa com lenços umedecidos Downy, como se tivesse um par de ambientadores de carro com fragrância de baunilha sob as axilas, e tivesse caído sobre algum peixe morto.
Wrath se levantou e fechou a parte traseira do Escalade.
— Está certo que pode dirigir? — perguntou quando Butch se colocou cuidadosamente atrás do volante, com pinta de estar a ponto de vomitar.
— Sim. Estou bem.
Wrath sacudiu a cabeça ante a voz rouca e examinou o beco. Não havia janelas nos edifícios, e fazer Vishous vir imediatamente para aliviar ao polícia não levaria muito tempo, mas entre as brigas e a limpeza tinham ocorrido muitas coisas ali durante a última meia hora. Deviam sair da zona.
Originalmente, o plano de Wrath tinha sido tirar uma foto da identidade do assassino com a câmara de seu celular, aumentá-la o suficiente para poder ler o endereço, e logo ir atrás desse estúpido. Não obstante não podia deixar Butch sozinho.
O polícia pareceu surpreso quando Wrath entrou no assento do passageiro do Escalade.
— O que está...?
— Levaremos o corpo à clínica. V pode encontrar-se contigo ali e se ocupar de você.
— Wrath...
— Discutimos pelo caminho, o que acha, primo?
Butch arrancou o SUV, saiu de marcha ré do beco, e girou ao chegar ao primeiro cruzamento das ruas. Quando chegou ao Trade, dobrou à esquerda e se dirigiu às pontes que se estendiam sobre o Rio Hudson. Enquanto conduzia, tinha os nódulos brancos sobre o volante... Não porque tivesse medo, mas sim porque indubitavelmente estava tentando conter a bílis no estômago.
— Não posso seguir mentindo assim. — resmungou Butch quando alcançaram o outro lado de Caldwell.
Uma arcada foi seguida por uma tosse.
— Sim, pode.
O polícia levantou o olhar.
— Está me matando. Beth deve saber.
— Não quero que se preocupe.
— Entendo isso... — Butch emitiu um som afogado — Espera.
O polícia estacionou sobre a borda gelada, abriu a porta de repente, e vomitou como se seu fígado tivesse recebido ordens de evacuação de seu cólon.
Wrath deixou que sua cabeça caísse para trás, uma dor tinha se instalado detrás de seus olhos. A dor não era uma surpresa, em absoluto. Ultimamente tinha enxaquecas como os alérgicos tinham espirros.
Butch estendeu a mão para trás e apalpou o console central, com a parte superior de seu corpo ainda arqueada para fora do Escalade.
— Quer a água? — perguntou Wrath.
— S... — as náuseas cortaram o resto da palavra.
Wrath agarrou uma garrafa de Poland Spring, abriu-a, e a pôs na mão de Butch.
Quando se produziu uma pausa na “vomitação”, o polícia tragou um pouco de água, mas a merda não permaneceu dentro.
Wrath tirou seu celular.
— Vou chamar o V agora.
— Dê-me só um minuto.
Levou dez, mas finalmente, o polícia conseguiu voltar para o carro e lhes devolveu à estrada. Ambos permaneceram em silêncio durante um par de quilômetros, o cérebro de Wrath correndo enquanto sua dor de cabeça piorava.
Já não é um Irmão.
Já não é um Irmão.
Mas tinha que ser. Sua raça precisava dele.
Clareou a garganta.
— Quando V aparecer no necrotério, você vai dizer que encontrou o corpo do civil e fez essa merda com os lessers.
— Ele quererá saber por que você estava ali.
— Diremos que estava na quadra seguinte me reunindo com o Rehvenge no ZeroSum e pressenti que precisava de ajuda. — Wrath se inclinou no assento dianteiro e fechou uma mão sobre o antebraço do cara — Ninguém vai saber, entendido?
— Isto não é boa idéia. Isto não é boa idéia.
— É uma merda que não.
Enquanto permaneciam em silêncio, as luzes dos carros do outro lado da auto-estrada fizeram que Wrath fizesse uma careta, apesar de que suas pálpebras estavam baixas e os óculos escuros em seu lugar. Para evitar o brilho, girou o rosto para o lado, como se olhasse pela janela.
— V suspeita que algo esteja acontecendo. — resmungou Butch depois de um momento.
— E pode seguir suspeitando. Preciso estar no campo de batalha.
— E se ferirem você?
Wrath colocou o antebraço sobre o rosto com a esperança de bloquear esses malditos faróis dianteiros. Caralho, agora era ele quem tinha náuseas.
— Não me ferirão. Não se preocupe.


Capítulo 3


— Preparado para seu suco, pai?
Quando não houve resposta, Ehlena, filha de sangue de Alyne, deteve-se no processo de abotoar o uniforme.
— Pai?
Da sala e por cima das melodiosas notas de Chopin lhe chegou o som de um par de pantufas movendo-se sobre as tábuas do piso de madeira nuas e uma suave cascata de apressadas palavras, como um maço de cartas ao ser embaralhadas.
Isso era bom. Levantou-se por si mesmo.
Ehlena jogou o cabelo para trás, e utilizou uma rede branca para manter o coque em seu lugar. Entretanto no meio do caminho mudou de opinião, ia ter que refazer o coque. Havers, o médico da raça, exigia que suas enfermeiras fossem tão esticadas, engomadas e bem organizas como tudo em sua clínica.
Sempre dizia que as normas eram críticas.
No caminho para seu dormitório, recolheu uma mochila de ombro negra que tinha comprado na Target. Dezenove dólares. Um roubo. Nela colocou a saia curta e a camiseta pólo de imitação que ia trocar pelo uniforme ao redor de duas horas antes do amanhecer.
Um encontro. Realmente ia ter um encontro.
A ida ao andar superior onde estava a cozinha implicava só um lance de escadas, e o primeiro que fez quando emergiu do porão foi dirigir-se para o antiquado refrigerador Frigidaire . Dentro, havia dezoito pequenas garrafas de Ocean Spray Cranraspberry[7] em três filas de seis. Pegou uma da frente e depois, cuidadosamente moveu as outras para que estivessem todas alinhadas.
As pílulas estavam localizadas atrás da poeirenta pilha de livros de cozinha. Pegou uma trifluoropiperacina e dois loxacepina e as pôs em uma xícara branca. A colher de aço inoxidável que utilizou para amassá-las estava dobrada em um ligeiro ângulo, e também todas as demais.
Já levava perto de dois anos esmagando pílulas como estas.
O CranRas golpeou o fino pó branco e se mesclou com ele, e para assegurar-se de que o sabor ficava adequadamente oculto, pôs dois cubinhos de gelo na xícara. Quanto mais frio melhor.
— Pai, seu suco está preparado. — deixou a xícara na mesinha, bem em cima de um círculo de fita que delineava onde tinha que ser colocada.
As seis estantes que havia em frente estavam igual ordenadas e relativamente vazias como a geladeira, de uma delas agarrou uma caixa de Wheaties[8], e de outra tirou uma tigela. Depois de servir-se de alguns cereais foi pegar leite, e logo que terminou de utilizá-lo, voltou a deixá-lo onde estava: junto a outros dois iguais, com as etiquetas com a marca Hood  para fora.
Deu uma olhada em seu relógio e falou na Antiga Língua.
— Pai? Tenho que partir.
O sol se pôs, e isso significava que seu turno, que começava quinze minutos depois de escurecer, estava a ponto de começar.
Observou a janela que havia sobre a pia da cozinha, embora não era como se pudesse medir quanto escuro estava. Os vidros estavam cobertos por lâminas de alumínio fixas às molduras com fita adesiva.
Inclusive mesmo se ela e seu pai não fossem vampiros e incapazes de suportar a luz do sol, essas persianas Reynolds Wrap teriam sido igualmente colocadas em cada janela da casa: eram cobertas para o resto do mundo, mantendo-o fora, contendo-o a fim de que sua miserável casinha alugada estivesse protegida e isolada... De ameaças que só seu pai podia perceber.
Quando terminou o café da manhã de Campeões[9], lavou e secou sua tigela com toalhas de papel, porque as esponjas e panos de cozinha não estavam permitidos, e, junto com a colher que tinha utilizado, voltou a pôr tudo em seu lugar.
— Meu pai?
Apoiou o quadril contra o maltratado balcão de fórmica e esperou, tentando não olhar muito atentamente o maltratado papel de parede nem o chão de linóleo desgastado.
A casa era apenas um pouco melhor que um sórdido abrigo, mas era tudo o que podia permitir-se. Entre as visitas de seu pai ao médico, os remédios e a enfermeira particular não era muito que ficava de seu salário, e fazia muito que tinham gasto o pouco que ficava do dinheiro da família, prata, antiguidades, e jóias.
Apenas se mantinham a tona.
E ainda assim, quando seu pai apareceu na soleira do porão, teve que sorrir. Seu fino cabelo cinza se expandia se sobressaindo de sua cabeça para formar um halo de penugem que o fazia parecer-se com Beethoven, além de seus olhos excessivamente observadores e ligeiramente frenéticos que lhe davam o aspecto de gênio louco. Ainda assim, parecia melhor do que tinha estado em muito tempo. Por sua vez, estava vestindo um roupão desfiado de cetim e seu pijama de seda bem arrumado... Tudo para frente, a parte de cima e de baixo certas e o cinto preso. Além disso, estava limpo, recém banhado e cheirando a pós-barba de Laurel.
Era uma enorme contradição: necessitava que seu ambiente estivesse imaculado e excessivamente organizado, mas sua higiene pessoal e o que vestia não lhe representava nenhum problema. Embora talvez tivesse sentido. Ao estar compenetrado no matagal de seus pensamentos, distraía-se muito com seus delírios para ser consciente de si mesmo.
Entretanto os remédios estavam ajudando, e notou quando encontrou seu olhar e realmente a viu.
— Minha filha. — disse na Antiga Língua — Que tal está esta noite?
Ela respondeu como ele preferia, na língua mãe.
— Bem, meu pai. E você?
Ele se inclinou com a graça do aristocrata que era por linhagem e tinha sido por posição.
— Como sempre estou encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável de sua parte.
Seu pai se sentou com um movimento de seu roupão, e recolheu a xícara de cerâmica como se fosse fina porcelana inglesa.
— Aonde vai?
— Ao trabalho. Vou trabalhar.
Seu pai franziu o cenho enquanto bebia.
— Sabe bem que não aprovo que trabalhe fora de casa. Uma dama de sua estirpe não deveria estar oferecendo seu tempo dessa forma.
— Sei, meu pai. Mas me faz feliz.
Seu rosto se suavizou.
— Bom, isso é outra coisa. Ai de mim, não entendo à geração mais jovem. Sua mãe se encarregava da casa, dos serventes e os jardins, e isso era suficiente para ocupar seu ímpeto durante as noites.
Ehlena baixou o olhar, pensando que sua mãe choraria se visse como tinham terminado.
— Sei.
— Não obstante deve fazer o que desejar, e eu sempre te amarei.
Ela sorriu ante as palavras que tinha ouvido durante toda sua vida. E falando desse tema...
— Pai?
Ele baixou a xícara.
— Sim?
— Pode ser que chegue um pouco tarde esta noite.
— Seriamente? Por quê?
— Vou tomar um café com um macho...
— O que é isso?
A mudança em seu tom a fez levantar a cabeça, e olhou a seu redor para ver que... Oh, não.
— Nada, pai, de verdade, não é nada. — se equilibrou rapidamente sobre a colher que tinha utilizado para esmagar as pílulas e a recolheu, correndo para a pia como se tivesse uma queimadura que necessitasse água fria imediatamente.
A voz de seu pai tremeu.
— O que... O que isso estava fazendo aí? Eu...
Ehlena secou rapidamente a colher e a deslizou na gaveta.
— Vê? Foi-se. Vê? — assinalou aonde tinha estado a colher — A mesa está limpa. Não há nada aí.
— Estava ali... Eu a vi. Não deve deixar os objetos de metal fora... Não é seguro... Quem a deixou... Quem deixou... Quem deixou a colher...?
— A criada.
— A criada! Outra vez! Deve ser despedida. Já disse... Nada de metal fora, nada de metal fora, nada de metal. Eles estão observando, e castigarão quem desobedecer, é preciso acreditar.
No princípio, quando tinham tido lugar os primeiros ataques de seu pai, Ehlena se aproximava dele no momento em que começava a agitar-se, pensando que uma palmada no ombro ou uma mão reconfortante lhe ajudariam. Agora tinha mais experiência. Quanto menos informação sensorial entrasse em seu cérebro, mais rapidamente passava a histeria avassaladora: por conselho de sua enfermeira, Ehlena lhe assinalava a realidade uma vez e depois não se movia nem falava.
Entretanto era difícil, lhe observar sofrer e ser incapaz de fazer nada para ajudar. Especialmente quando era culpa dela.
A cabeça de seu pai se sacudia para frente e para trás, a agitação alvoroçava seu cabelo convertendo-o em uma peruca arrepiada de cachos loucos, enquanto que em seu cambaleante punho, o suco saltava fora da xícara, salpicando sobre sua mão venosa, a manga do roupão e o revestimento de fórmica, cheio de buracos, da mesa. Em seus trementes lábios, o gaguejar de sílabas se incrementava, seu gravador interno funcionando a velocidade máxima, o rubor de loucura subindo pela coluna de sua garganta e flamejando em suas bochechas.
Ehlena rezou porque este não fosse um dos maus. Os ataques, quando vinham, variavam de intensidade e duração, e as drogas ajudavam minimizando ambas as medidas. Mas algumas vezes a enfermidade superava a ingestão química.
Quando as palavras de seu pai se tornaram muito atropeladas para compreender e deixou cair à xícara ao chão, tudo o que Ehlena pôde fazer foi esperar e rezar à Virgem Escriba para que passasse logo. Obrigando seus pés a ficar presos ao gasto linóleo, fechou os olhos e envolveu o torso com os braços.
Se tivesse lembrado de guardar a colher. Se houvesse...
Quando a cadeira de seu pai caiu para trás e golpeou o chão, soube que ia chegar tarde ao trabalho.
Outra vez.
*******
Os humanos são realmente gado, pensou Xhex enquanto olhava por cima de todas as cabeças e ombros apinhados ao redor do bar para o público em geral do ZeroSum.
Era como se algum fazendeiro tivesse enchido um cocho de grãos e a granja inteira estivesse lutando para afundar o focinho nele.
Não é que as características bovinas do Homo Sapiens fossem má coisa. A mentalidade de rebanho fazia mais fácil a coisa do ponto de vista da segurança; e em certo modo, como com as vacas, a gente podia alimentar-se deles: com toda essa aglomeração em torno dessas garrafas só era questão de purgar carteiras, com a maré fluindo em um só sentido... Para o cofre.
As vendas de licor eram boas. Mas as drogas e o sexo deixavam, inclusive mais altas margens de lucro.
Xhex passeava lentamente pelo lado exterior do bar, extinguindo com olhadas duras a especulação ardente de homens heterossexuais e mulheres homossexuais. Caralho, não entendia. Nunca tinha feito. Para ser uma fêmea que não vestia nada mais que camisas sem manga, calças de couro e usava o cabelo curto como um soldado, captava atenção tanto como as prostitutas seminuas da zona VIP.
Mas bom, nestes dias o sexo duro estava na moda, e os voluntários para a asfixia auto-erótica, os látegos açoita-traseiros e as algemas triplas eram como os ratos no sistema de bocas-de-lobo de Caldwell: estavam em todas as partes e saíam de noite. O que supunha uma terceira parte dos benefícios mensais do clube.
Muito obrigado.
Entretanto, ao contrário das garotas do clube, ela nunca aceitava dinheiro em troca de sexo. Na realidade não praticava sexo, absolutamente. Exceto pelo Butch O'Neal, esse polícia. Bom, esse polícia...
Xhex chegou à altura da corda de veludo da seção VIP e deu uma olhada para a parte exclusiva do clube.
Merda. Ele estava aqui.
Bem o que necessitava esta noite.
O caramelo favorito de sua libido estava sentado na parte mais afastada, na mesa da Irmandade, seus dois camaradas lhe flanqueavam e se defendiam das três garotas que também se apertavam no banco. Demônios, parecia enorme nesse reservado, vestido com uma camiseta Affliction e uma jaqueta de couro negra que era meio motoqueiro meio colete anti-balas.
Havia armas debaixo dela. Pistolas. Facas.
Como as coisas tinham mudado. A primeira vez que tinha aparecido por ali, era do tamanho de um tamborete do bar, apenas com músculos suficientes para partir um palito para mexer coquetéis. Mas esse já não era o caso.
Enquanto ela saudava com a cabeça ao segurança e subia os três degraus, John Matthew elevou o olhar de sua Corona[10]. Inclusive através da penumbra, seus profundos olhos azuis brilharam quando a viu, cintilando como um par de safiras.
Cara, não poderia provocá-lo, o filho da puta acabava de passar sua transição. O rei era seu whard. Vivia com a Irmandade. E era um maldito mudo.
Cristo. E ela tinha acreditado que Murhder tinha sido uma má idéia? Qualquer um acreditaria que tinha aprendido a lição fazia duas décadas com esse Irmão. Mas nãããããooooo...
A questão era, que enquanto olhava ao pirralho, tudo o que podia ver era a ele estendido nu sobre uma cama, com seu grosso pênis na mão e a palma baixando e subindo... Até que seu nome escapava desses lábios em um gemido surdo e gozava sobre seu firme abdômen definido.
O trágico era que o que via não era uma fantasia. Esses exercícios pneumáticos de punho realmente tinham ocorrido. Com freqüência. E como sabia? Porque, como uma imbecil, tinha lido a mente dele e captado o Memorex[11], em uma versão tão boa como se fosse ao vivo e a cores.
Cansada até a indigestão de si mesma, Xhex se enfiou mais profundamente na seção VIP, permanecendo separada dele, e dirigindo-se a comprovar como estava a chefe das garotas. Marie-Terese era uma morena com pernas magníficas e aspecto de cara. Era um de seus melhores ativos, e uma excelente profissional e conseqüentemente exatamente a classe de PRAC que queria: nunca caía em tolices maliciosas, sempre chegava na hora a seus turnos, e nunca trazia o que quer que fosse mal em sua vida pessoal ao trabalho. Era uma boa mulher com um trabalho horrível, fazendo dinheiro à mãos cheias por uma boa razão.
— Como vão? — perguntou Xhex — Necessita algo de mim ou meus meninos?
Marie-Terese percorreu com o olhar às outras garotas, suas maçãs do rosto altas captando a tênue luz, fazendo-a parecer não só sexualmente atraente, a não ser categoricamente formosa.
— Vamos bem por enquanto. Neste momento há duas na parte de trás. Tão ocupadas como é habitual, exceto pelo fato de que nossa garota não está aqui.
Xhex juntou as sobrancelhas bruscamente.
— Chrissy outra vez?
Marie-Terese inclinou a cabeça agitando seu comprido, negro e precioso cabelo.
— Terá que fazer algo com esse cavalheiro que a reclama.
— Já fez algo, mas não o suficiente. E se esse é um cavalheiro, eu sou a safada Estée Lauder. — Xhex apertou ambos os punhos — Esse filho da puta...
— Chefe?
Xhex olhou sobre seu ombro. Além da montanha de segurança que estava tentando atrair sua atenção, captou outra visão de John Matthew. Que ainda a olhava fixamente.
— Chefe?
Xhex se concentrou.
— O que?
— Há um policial aqui que quer te ver.
Não afastou os olhos do segurança.
— Marie-Terese, diga às garotas que descansem dez minutos.
— Feito.
A puta se moveu rápido enquanto aparentava que só passeava sobre seus saltos altos, indo de uma garota a outra e lhes aplaudindo o ombro esquerdo, para depois ir bater uma vez em cada uma das portas dos banheiros privados que havia pelo escuro corredor da direita.
Quando o lugar ficou vazio de prostitutas, Xhex disse:
— Quem e por quê?
— Detetive de homicídios. — o guarda lhe ofereceu um cartão — Disse que seu nome era José da Cruz.
Xhex pegou o cartão e soube exatamente por que tinha vindo o homem. E por que Chrissy não.
— Faça-o esperar em meu escritório. Estarei ali em dois minutos.
— Entendido.
Xhex levou seu relógio de pulso aos lábios.
— Trez? iAm? Temos movimento na casa. Diga aos corredores de apostas que esfriem e ao Rally que detenha o caixa.
Quando chegou a confirmação a seu fone, comprovou outra vez se todas as garotas tinham abandonado o andar; depois se dirigiu de volta à parte pública do clube.
Enquanto abandonava a seção VIP, pôde sentir os olhos de John Matthew nela e tentou não pensar no que tinha feito fazia dois amanhecer, ao chegar a sua casa... E o que provavelmente voltaria a fazer quando estivesse sozinha ao final da noite.
John Matthew sacana. Desde que tinha se colocado em seu cérebro e tinha visto o que fazia a si mesmo cada vez que pensava nela... Ela tinha estado fazendo o mesmo.
Sacana. John Matthew.
Como se ela necessitasse desta merda.
Agora, enquanto atravessava o rebanho humano, foi rude, e não lhe importou empurrar  um casal de bailarinos com força. Quase esperava que alguém se queixasse para poder derrubá-lo sobre o traseiro.
Seu escritório estava na parte de atrás da sobreloja, tão longe como era possível de onde tinha lugar o sexo contratado e do espaço privado de Rehvenge onde se levavam a cabo os entendimentos e as surras. Como chefe de segurança, ela era a interface primária com a polícia, e não havia razão alguma para levar os uniformes azuis mais perto da ação do que devessem estar.
Limpar as mentes dos humanos era uma ferramenta útil, mas tinha suas complicações.
Sua porta estava aberta e avaliou o detetive de costas. Não era muito alto, mas aprovava sua constituição bem fornida. Sua jaqueta esporte era do Men's Wearhouse, seus sapatos, Florsheim. O relógio que aparecia por debaixo de sua manga era Seiko.
Quando se voltou para olhá-la, seus olhos escuros eram ardilosos como os do Sherlock. Pode ser que não estivesse ganhando um montão de dinheiro, mas não era tolo.
— Detetive. — lhe disse, fechando a porta e passando junto a ele para tomar seu lugar atrás da mesa.
Seu escritório estava virtualmente vazio. Não havia fotos. Nem plantas. Nem sequer um telefone ou um computador. Os arquivos que estavam nas prateleiras de três ferrolhos a prova de fogo eram relativos à parte legítima do negócio, e o cesto de papéis era um triturador de papel.
O que significava que o Detetive da Cruz não tinha averiguado absolutamente nada durante os cento e vinte segundos que tinha passado sozinho no cômodo.
Da Cruz tirou sua credencial e a mostrou.
— Estou aqui por causa de uma de suas empregadas.
Xhex fingiu inclinar-se e estudar a credencial, mas não precisava. Seu lado symphath lhe dizia tudo o que precisava saber. As emoções do detetive continham a mescla adequada de suspicácia, preocupação, resolução e encher o saco. Levava seu trabalho a sério, e estava aqui por negócios.
— Que empregada? — perguntou.
— Chrissy Andrews.
Xhex se recostou para trás em sua cadeira.
— Quando foi assassinada?
— Como sabe que está morta?
— Não brinque comigo, Detetive. Por qual outra razão alguém da Homicídios ia perguntar por ela?
— Sinto muito, estou em modo interrogatório. — deslizou sua credencial de volta no bolso interior do peito e se sentou de frente a ela na cadeira de respaldo duro — O inquilino de baixo de seu apartamento despertou com uma mancha de sangue no teto e chamou à polícia. Ninguém no edifício de apartamentos admitiu conhecer a Senhora Andrews, e não tinha nenhum parente próximo a que possamos localizar. Não obstante, enquanto revistávamos sua casa, encontramos declarações de impostos deste clube como empregador dela. Para abreviar, necessitamos que alguém identifique o corpo...
Xhex se levantou, com a palavra filho da puta rondando por seu crânio.
— Eu o farei. Deixe-me organizar a meus homens para poder sair.
Da Cruz piscou, como se estivesse surpreso de que fosse tão rápida.
— Você... Ah, quer que a leve ao necrotério?
— St. Francis?
— Sim.
— Conheço o caminho. Encontrarei-me ali com você em vinte minutos.
Da Cruz ficou em pé lentamente, com os olhos fixos em seu rosto, como se estivesse procurando sinais de nervosismo.
— Suponho que isso é um transtorno.
— Não se preocupe, Detetive. Não vou desmaiar à vista de um cadáver.
Ele a olhou de cima a abaixo.
— Sabe… De certo modo isso não me preocupa.


Capítulo 4

 
Quando o carro de Rehvenge estava dentro dos limites da cidade de Caldwell, desejou como o inferno ir diretamente ao ZeroSum. Entretanto, era mais esperto que isso. Tinha problemas.
Desde que tinha deixado o refúgio de Montrag em Connecticut, já tinha estacionado seu Bentley a um lado da estrada duas vezes para injetar-se dopamina. De todas as formas, sua droga milagrosa voltava a falhar. Se tivesse mais dessa merda no carro, teria se disparado outra injeção, mas já tinha acabado.
A ironia de um camelo[12] tendo que ir a outro camelo rapidamente não tinha desperdício, e era uma maldita vergonha que não houvesse mais demanda de neurotransmissores no mercado negro. Tal como a coisa estava, o único fornecimento de Rehv era através de meios legítimos, mas ia ter que arrumar isso. Se era o bastante esperto para subministrar X, coca, erva, meta, OxyC, e heroína através de seus dois clubes, certamente poderia averiguar como demônios conseguir suas próprias ampolas de dopamina.
— Ah, vamos, move o rabo. É só uma maldita rampa de saída. Você com certeza já viu uma antes.
Fazia um bom tempo na auto-estrada, mas agora que estava na cidade, o tráfego atrasava seu progresso, e não só por causa do congestionamento. Com sua falta de percepção de profundidade, julgar distâncias entre pára-choques era problemático, assim tinha que ir com muito mais cuidado do que gostava.
E, além disso, tinha este fodido idiota com seu calhambeque de mil e duzentos anos e seus exagerados hábitos de freadas.
— Não... Não... Por tudo quanto for sagrado não troque de pista. Já de onde está nem sequer pode ver por seu retrovisor…
Rehv pisou nos freios porque Senhor Tímido realmente estava pensando que seu lugar estava na via rápida e parecia pensar que a forma de conseguir entrar nela requeria parar por completo.
Normalmente, Rehv adorava dirigir. Inclusive preferia dirigir a desmaterializar-se porque estando medicado, era o único momento no que se sentia como se fosse ele mesmo: rápido, ágil e poderoso. Conduzia um Bentley não só porque era chique e pudesse permitir-se um, mas sim pelos seiscentos cavalos que tinha sob o capô. Estar intumescido e confiar em uma bengala para manter o equilíbrio o faziam sentir-se como um macho velho e aleijado a maior parte do tempo, e era bom ser... Normal.
É obvio, a questão de não-sentir tinha seus benefícios. Por exemplo, quando golpeasse a testa contra o volante em outro par de minutos, só ia ver as estrelas. A dor de cabeça? Não representava um problema.
A clínica encoberta da raça vampiro estava quinze minutos depois da ponte que justamente estava subindo, e as instalações não eram suficientes para as necessidades de seus pacientes, sendo pouco mais que um refúgio convertido em hospital de campo. Ainda assim a alternativa Ave Maria era tudo o que a raça tinha no momento, um jogador substituto posto em jogo porque a perna do quarteback[13] se partiu no meio.
Depois das incursões acontecidas durante o verão, Wrath estava trabalhando com o médico da raça para conseguir um novo estabelecimento permanente, mas como tudo, isso levava seu tempo. Com tantos lugares saqueados pela Sociedade Lessening, ninguém pensava que fosse boa idéia utilizar imóveis que já fossem propriedade da raça, porque só Deus sabia quantas localizações mais tinham sido infiltradas. O rei estava procurando outro lugar para comprar, mas tinha que estar isolado...
Rehv pensou em Montrag.
A guerra realmente tinha ficado circunscrita ao assassinato de Wrath?
A retórica, iniciada pelo lado vampiro dado por sua mãe, ondeou através de sua mente, mas não provocou nenhuma emoção absolutamente. O cálculo alagava seus pensamentos. O cálculo sem as travas da moralidade. A conclusão que tinha alcançado quando tinha deixado a casa de Montrag não vacilou, sua resolução só se fez mais forte.
— Obrigado, queridíssima Virgem Escriba. — resmungou quando o calhambeque deslizou fora de seu caminho e sua saída lhe apresentou como um presente, o sinal verde incandescente tinha uma etiqueta com seu nome.
Verde...?
Rehv olhou a seu redor. A pátina vermelha tinha começado a reduzir-se em sua visão, mas as outras cores do mundo reapareciam através da névoa bidimensional, e tomou um profundo fôlego de alívio. Não queria ir drogado à clínica.
Como se tivesse previsto, começou a sentir frio, apesar de que sem dúvida o Bentley estava a uns balsâmicos setenta graus, estendeu o braço para frente e girou o controle do calor. Os calafrios eram outro bom, embora inconveniente, sinal de que a medicação começava a surtir efeito.
Durante toda sua vida, viu-se obrigado a manter em segredo o que era. Os proscritos como ele tinham duas escolhas: se fazer passar por normais ou ser enviados para fora do estado, à colônia, deportados da sociedade como o lixo tóxico que eram. Que fosse mestiço não importava. Se tivesse um pouco de symphath em você, era considerado um deles, e com toda razão. A questão com os symphath era que adoravam muito a maldade em si mesmo para poder confiar neles.
Foda, sua sina foi fixada esta noite. Olhe o que estava disposto a fazer. Uma conversa e ia apertar o gatilho... Nem sequer porque tivesse que fazê-lo, só porque desejava. Necessitava-o, dizendo bem. Os jogos de poder eram oxigênio para seu lado malvado, eram inegáveis e substanciosos por sua uma vez. E os motivos atrás de sua escolha eram tipicamente symphath: serviam a ele e a ninguém mais, nem sequer ao rei com quem tinha uma espécie de amizade.
Essa era a razão pela qual, que se um vampiro comum sabia de um proscrito que andasse rondando entre a população geral, a lei opinava que tinha que dar parte do indivíduo, para sua deportação ou enfrentar cargos criminais: regular o paradeiro dos sociopatas e mantê-los afastados dos cidadãos morais e respeitosos da lei era um saudável instinto de sobrevivência em qualquer sociedade.
Vinte minutos mais tarde, Rehv estacionou ante uma grade de ferro que definitivamente estava manufaturada para fazer prevalecer sua função por cima de seu aspecto. A coisa não tinha nenhuma graça absolutamente, não eram mais que sólidas varas fixadas e soldadas entre si coroadas na parte superior com uma bobina de arame farpado. À esquerda havia um intercomunicador, e quando baixou o vidro para apertar o botão de chamada, as câmeras de segurança enfocaram a placa de seu carro, o pára-brisa dianteiro e a porta do condutor.
Assim não lhe surpreendeu o tom tenso da voz feminina que respondeu.
— Senhor... Não tinha conhecimento de que tivesse uma consulta.
— Não tenho.
Pausa.
— Como paciente ambulatorial que não necessita urgência, o tempo de espera poderia ser bastante longo. Talvez prefira programar uma consulta...
Fulminou com o olhar o visor da câmera mais próxima.
— Deixe-me entrar. Agora. Tenho que ver o Havers. E é uma emergência.
Tinha que voltar para o clube e marcar presença. As quatro horas que já tinha perdido essa noite eram toda uma vida quando se tratava de administrar lugares como o ZeroSum e o Iron Mask. A merda não só ocorria em lugares como esses, eram nosso pão de cada dia, e em seu braço tinha tatuado Eu Digo Que Vou A Missa nos nódulos.
Depois de um momento, essas feias grades, sólidas como rochas se abriram, e não perdeu tempo no caminho de acesso de um quilômetro de comprimento.
Quando virou na última curva, a casa que apareceu diante dele não merecia o tipo de segurança que tinha, ao menos não a primeira vista. A estrutura de dois andares era apenas colonial, e estava totalmente nua. Sem alpendres. Sem portinhas. Sem chaminés. Sem plantas.
Comparada com a velha casa e clínica do Havers ficava como um pobre abrigo de ferramentas no jardim.
Estacionou em frente da fileira de garagens independentes onde se guardavam as ambulâncias e saiu. O fato de que a fria noite de dezembro lhe fizesse estremecer foi outro bom sinal, e estendeu o braço para o assento traseiro do Bentley para tirar sua bengala e um de seus sobretudos de Zibelina. Junto com o intumescimento, a desvantagem de sua máscara química era uma queda na temperatura interna que convertia suas veias em espirais de ar condicionado. Viver noite e dia com um corpo que não podia sentir nem esquentar não era uma festa, mas tampouco é que tivesse escolha.
Talvez se sua mãe e sua irmã não tivessem sido normais, poderia ter cedido ao Darth Vader e abraçado o lado escuro, vivendo seus dias fodendo com as mentes de seus camaradas e fazer dano. Mas tinha posto a si mesmo em situação de ser o cabeça de seu grupo familiar, e isso lhe mantinha nesta situação que não estava nem aqui nem ali.
Rehv caminhou ao longo da casa colonial, fechando o sobretudo mais firmemente sobre a garganta. Quando chegou à altura da porta de aspecto insignificante, apertou o botão que estava embutido na lateral de alumínio e olhou o olho eletrônico. Um momento mais tarde, uma fechadura de ar se abriu com um chiado, e entrou em uma sala branca do tamanho de um armário embutido. Depois de olhar fixamente de cara à câmara, abriu-se outro ferrolho, um painel oculto retrocedeu, e desceu um lance de escadas. Outra comprovação. Outra porta. E então enfim dentro.
A área de recepção era como a espera para pacientes e familiares de qualquer clínica, com filas de cadeiras e revistas sobre mesinhas, uma TV e algumas plantas. Era menor que a da antiga clínica, mas estava limpa e bem ordenada. As duas fêmeas sentadas ficaram tensas e lhe olharam.
— Por aqui, senhor.
Rehv sorriu à enfermeira que saiu detrás do escritório de recepção. Para ele, uma “longa espera” era sempre uma espera em uma sala de exame. Às enfermeiras não gostavam que pusesse nervosa às pessoas que estavam naquelas filas de cadeiras, e a estas tampouco gostava de tê-lo por perto.
Parecia bem a ele. Não era do tipo sociável.
A sala de exame a que foi conduzido estava localizada no lado de não-emergência da clínica e era uma em que já tinha estado antes. Tinha estado em todas elas antes.
— O doutor está em cirurgia e o resto do pessoal está com outros pacientes, mas farei que uma colega venha tomar seus sinais vitais assim que possa.
A enfermeira lhe deixou como se alguém tivesse tido uma parada cardíaca corredor abaixo e ela fosse a única com pás desfibriladoras.
Rehv subiu à maca, permanecendo com o casaco e com a bengala na palma da mão. Para passar o tempo, fechou os olhos e deixou que as emoções do lugar gotejassem nele como uma vista panorâmica: as paredes do porão se dissolveram, e os ralos emocionais de cada indivíduo emergiram na escuridão, uma multidão de diferentes vulnerabilidades, ansiedades e debilidades foram expostas a seu lado symphath.
Ele tinha o controle remoto para todas elas, sabendo instintivamente que botões pulsar na enfermeira fêmea que estava na sala do lado e a quem lhe preocupava que seu hellren já não se sentisse atraído por ela... Mas que de todas as formas tinha comido muito na Primeira Comida. E no macho que estava tratando por que tinha caído pelas escadas cortando o braço... Porque tinha estado bebendo. E o farmacêutico do outro lado do corredor que até a pouco estava roubando Xanax para seu uso pessoal... Até que tinha descoberto que as câmeras ocultas que havia no lugar o estavam enfocando.
A autodestruição em outros era o reality show favorito de um sympath, e era especialmente bom quando você era o produtor. E apesar de que sua visão tinha voltado para a “normalidade” e seu corpo estava intumescido e frio, o que era em seu interior estava somente reprimido, mas não esgotado.
Para toda classe de funções que podia preparar, havia uma fonte interminável de inspiração e financiamento.
 
  —Merda.
Enquanto Butch estacionava o Escalade em frente às garagens da clínica, a boca de Wrath seguiu exercitando-se no terreno das maldições. Ante os faróis do SUV, Vishous ficou iluminado como se fosse uma garota de calendário, todo estendido sobre o capô de um Bentley muito familiar.
Wrath soltou seu cinto de segurança e abriu a porta.
— Surpresa, surpresa, meu senhor. — disse V enquanto se endireitava e dava uns golpes no capô do sedã — Deve ter sido uma reunião muito curta no centro da cidade com nosso amigo Rehvenge, né? A menos que esse cara tenha descoberto como estar em dois lugares ao mesmo tempo Em todo caso, tenho que conhecer seu segredo, não?
Filho. Da. Puta.
Wrath saiu do SUV e decidiu que o melhor curso de ação era ignorar o Irmão. Outras opções incluíam tentar debater até encontrar uma saída para a mentira dita, o que não era uma boa idéia porque de todos os defeitos de V, nenhum era no terreno intelectual; ou a outra alternativa; instigar uma briga a murros, o que seria só uma distração temporária e esbanjaria tempo quando ambos tinham que reparar a seu Humpty Dumpty[14].
Rodeando o carro, Wrath abriu a porta traseira do Escalade.
— Cure o seu menino. Eu me encarrego do corpo.
Quando carregou o peso sem vida do civil e se girou, V olhou fixamente o rosto que tinha sido golpeado até ficar irreconhecível.
— Maldita seja. — ofegou V.
Nesse momento, Butch saiu cambaleando-se detrás do volante, feito uma merda. Enquanto o aroma de talco para bebês flutuava sobre eles, lhe afrouxaram os joelhos e logo que pôde agarrou a porta em busca de apoio.
Vishous se aproximou como um raio e tomou ao polícia em seus braços, lhe segurando firmemente.
— Merda, homem, como está?
— Preparado... Para tudo. — Butch se pendurou em seu melhor amigo — Só preciso estar sob o abajur de calor um momento.
— Cure-o. — disse Wrath enquanto começava a caminhar para a clínica — Eu vou entrar.
Enquanto se afastava, as portas do Escalade se fecharam uma depois da outra, e depois houve um brilho como se as nuvens houvessem se separado deixando ver à lua. Sabia o que esses dois estavam fazendo no interior do SUV, porque tinha visto a rotina uma ou duas vezes: abraçavam um ao outro e a luz branca da mão de V banhava a ambos, o mal que Butch tinha inalado se filtrava no V.
Graças a Deus que havia uma forma de limpar essa merda do polícia. E ser um curador também era bom para o V.
Wrath chegou à primeira porta da clínica e simplesmente olhou à câmera de segurança. Abriram-lhe imediatamente, e imediatamente a fechadura de ar comprimido se soltou e o painel oculto para as escadas se abriu. Não demorou nada em descer à clínica.
Ao rei da raça com um macho morto nos braços não retinham nem um nano segundo.
Deteve-se no patamar enquanto se abria a última fechadura. Olhando à câmera, disse:
— Antes de mais nada, tragam uma maca e um lençol.
— Estamos fazendo isso agora mesmo, meu senhor. — disse uma voz diminuta.
Não mais de um segundo depois, duas enfermeiras abriram a porta, alguém estava convertendo um lençol em uma cortina para guardar a privacidade enquanto a outra empurrava uma maca até o pé das escadas. Com braços fortes e gentis, Wrath pousou ao civil tão cuidadosamente como se o homem estivesse vivo e cada osso de seu corpo fraturado; então a enfermeira que tinha dirigido a maca tomou outro lençol que vinha dobrado com forma de quadrado e o agitou para desdobrá-lo. Wrath a deteve antes que cobrisse o corpo.
— Eu o farei. — disse, tomando o lençol.
Ela o entregou com uma reverência.
Pronunciando as palavras sagradas na Antiga Língua, Wrath converteu a humilde capa de algodão em um apropriado sudário mortuário. Depois de ter rezado pela alma do homem e lhe desejar uma viagem livre e fácil ao Fade, ele e as enfermeiras guardaram um momento de silêncio antes que o corpo fosse coberto.
— Não temos identificação. — disse Wrath suspirando enquanto alisava a borda do lençol — Alguma de vocês reconhece sua roupa? O relógio? Algo?
Ambas as enfermeiras sacudiram as cabeças, e uma murmurou:
— Poremos no necrotério e esperaremos. É tudo o que podemos fazer. Sua família virá procurar por ele.
Wrath retrocedeu e observou como levavam o corpo na maca. Por nenhuma razão em particular, notou que a roda dianteira direita rebolava ao avançar, como se fosse nova no trabalho e lhe preocupasse sua atuação... Embora não fosse por isso que se fixou nela, mas sim pelo suave assobio de sua má calibrada.
Não encaixava bem. Não agüentava bem sua carga.
Wrath se sentiu identificado com ela.
Esta chatíssima guerra com a Sociedade Lessening já durava muito, e inclusive com todo o poder que ele tinha e toda a resolução que sentia em seu coração, sua raça não estava ganhando: agüentar firmemente contra o inimigo era simplesmente uma forma de perder por pontos, porque inocentes seguiam morrendo.
Girou para as escadas e cheirou o medo e respeito das duas fêmeas sentadas nas cadeiras de plástico da área de espera. Com um frenético arrastar de pés, ficaram em pé e se inclinaram ante ele, a deferência ressonou em suas vísceras como uma patada nas partes baixas. Aqui estava ele entregando a mais recente, mas nem de longe a última, vítima casual na luta, e estas duas ainda lhe apresentavam seus respeitos.
Devolveu-lhes a inclinação, mas não pôde pronunciar nenhuma palavra. O único vocabulário que tinha nesse momento estava cheio do melhor do George Carlin, e tudo isso dirigido contra si mesmo.
A enfermeira que tinha cumprido com seu dever de escudo terminou de dobrar o lençol que tinha utilizado.
— Meu senhor, talvez tenha um momento para ver o Havers. Deverá sair de cirurgia em uns quinze minutos. Parece que você está ferido.
— Tenho que voltar para... — deteve-se antes que lhe escapassem as palavras “campo de batalha” — Tenho que ir. Por favor, me façam saber o que averiguarem da família desse macho, ok? Quero conhecê-los.
Ela fez uma reverência e esperou, porque tinha intenção de beijar o enorme diamante negro que descansava no dedo anelar da mão direita de Wrath.
Wrath fechou com força seus débeis olhos e estendeu aquilo que ela estava procurando para render comemoração.
Sentiu os dedos da mulher, frescos e ligeiros sobre sua pele, seu fôlego e seus lábios foram o mais ligeiro roce. E ainda assim sentiu como se lhe açoitassem.
Enquanto se endireitava, disse-lhe com reverência:
— Que tudo corra esta noite, meu senhor
— Para você em suas horas também, leal súdita.
Deu a volta e subiu trotando as escadas, necessitando mais oxigênio do que havia na clínica. Justo quando chegava à última porta, tropeçou com uma enfermeira que estava entrando tão rápido como ele ia saindo. O impacto arrancou a bolsa negra do ombro da mulher e só teve tempo de apanhá-la antes que caísse ao chão junto com esta.
— Oh, caralho. — ladrou, deixando cair de joelhos para lhe recolher as coisas — Sinto.
— Meu senhor! — ela fez uma profunda reverência e logo obviamente se precaveu de que estava recolhendo as coisas — Não deve fazer isso. Por favor, me deixe...
— Não, foi minha culpa.
Colocou bruscamente o que parecia ser uma saia e um suéter de volta no interior da bolsa e depois quase lhe parte a cabeça ao levantar-se repentinamente.
Voltou a agarrá-la pelo braço.
— Merda, sinto muito. Outra vez...
— Estou bem... De verdade.
A bolsa trocou de mãos em uma precipitada confusão, passando de alguém que tinha pressa a alguém que estava sobressaltado.
— Pegou? — perguntou ele, preparado para começar a suplicar à Virgem Escriba que lhe deixasse sair.
— Ah, sim, mas... — seu tom mudou de reverente a clínico — Está sangrando, meu senhor.
Ele ignorou o comentário e a soltou. Aliviado ao ver que se mantinha em pé por si mesma, desejou-lhe boa noite e que fosse bem na Antiga Língua.
— Meu senhor, deveria ver...
— Lamento tê-la derrubado. — gritou por cima de seu ombro.
Abriu de um golpe a última porta e se dobrou enquanto o ar fresco lhe alagava. As profundas inspirações lhe esclareceram cabeça, e permitiu a si mesmo apoiar-se contra o revestimento de alumínio da clínica.
Quando a dor de cabeça começou a instalar-se atrás de seus olhos novamente, subiu os óculos escuros e esfregou o osso do nariz. Bem. Próxima parada... O endereço falso do lesser.
Tinha uma jarra para recolher.
Deixando cair os óculos de volta ao seu lugar, endireitou-se e...
— Não tão rápido, meu senhor. — disse V, materializando-se de repente diante dele — Você e eu temos que conversar.
Wrath despiu as presas.
— Não estou de humor para conversas, V.
— Genial. Merda.
 

Capítulo 5


Ehlena observou o rei da raça se afastar e quase partir a porta em duas ao sair.
Cara, o vampiro era grande e tinha um aspecto temível. E ser virtualmente enrolada por ele pôs a cereja final de esgotamento sobre o bolo do drama.
Alisando o cabelo e pendurando a bolsa em seu lugar, começou a descer pela escada depois de passar o ponto de controle interno. Só estava chegando uma hora atrasada para trabalhar porque — milagre dos milagres — a enfermeira de seu pai estava livre e conseguiu ir cedo. Agradecia à Virgem Escriba por Lusie.
No que se referia a ataques fortes, o de seu pai não tinha sido tão terrível como poderia ter sido, e tinha a sensação de que devia isso ao fato de que acabara de tomar os medicamentos logo antes que lhe golpeasse o ataque. Antes das pílulas, a pior de suas crises tinha durado toda a noite, assim em certo sentido, esta noite tinha sido um sinal de progresso.
Entretanto, isso não evitava que lhe rompesse o maldito coração.
Enquanto se aproximava da última câmera, Ehlena sentiu que o peso de sua bolsa se incrementava. Tinha estado pronta para cancelar seu encontro e deixar a muda de roupa em casa, mas Lusie a tinha convencido do contrário. A pergunta que a outra enfermeira tinha feito lhe tinha tocado fundo:
— Quando foi a última vez que saiu desta casa para outra coisa que não fosse trabalho?
Ehlena não tinha respondido por que era reservada por natureza… E porque ficou em branco, sem resposta.
O que era um ponto a favor de Lusie, não? Os enfermeiros tinham que ocupar-se de si mesmos, e isso implicava ter uma vida além de qualquer enfermidade que lhes tivesse obrigado a desempenhar-se como profissionais. Deus sabia que Ehlena falava disto com os membros da família de seus pacientes com enfermidades crônicas o tempo todo, e o conselho era tão sensato como prático.
Ao menos quando se tratava dos outros. Dizendo a si mesma, sentia-se egoísta.
Assim… Estava enrolando em relação ao encontro. Com seu turno terminando perto da alvorada, não teria tempo para ir para sua casa a verificar seu pai primeiro. Tal como as coisas estavam, ela e o macho que a tinha convidado para sair teriam sorte se conseguissem ter sequer uma hora de bate-papo no restaurante que permanecia aberto toda a noite antes que a intrometida luz do sol pusesse fim ao assunto.
E apesar de tudo, tinha estado ansiosa para sair, ao ponto do desespero, o que a fazia sentir-se tremendamente culpada.
Deus… Isso era típico. A consciência impulsionando-a em uma direção, a solidão em outra.
Na área de recepção, foi diretamente para a supervisora de enfermaria, que estava em frente à mesa do computador.
— Sinto muito, eu…
Catya fez uma pausa no que estava fazendo e estendeu uma mão.
— Como vai?
Por uma fração de segundo, Ehlena só pôde piscar. Odiava que todo mundo no trabalho estivesse informado dos problemas de seu pai e que alguns inclusive o tivessem visto em seu pior momento.
Embora a enfermidade o tivesse despojado de seu orgulho, ela ainda tinha algum em seu nome.
Deu uma rápida palmada na mão de sua chefe e ficou fora de seu alcance.
— Obrigado por perguntar. Agora está calmo e sua enfermeira está com ele. Por sorte, eu acabava de lhe dar sua medicação.
— Precisa de um minuto?
— Não. Como estamos?
O sorriso de Catya parecia mais uma careta que um sorriso, como se estivesse mordendo a língua. Outra vez.
— Não tem que ser forte assim.
— Sim. Tenho que ser. — Ehlena olhou a seu redor e guardou um estremecimento para si. Mais integrantes do pessoal se aproximavam dela pelo corredor, um destacamento de dez pessoas caminhando lado a lado levando uma enorme quantidade de preocupada determinação — Onde precisa de mim?
Tinha que evitar… Não teve sorte.
No momento todas as enfermeiras, exceto as da Sala de Operações que estavam ocupadas com o Havers, tinham formado um círculo ao redor dela, e Ehlena fechou a garganta quando seus colegas soltaram um coro de “Como está?”. Deus, sentia tanta claustrofobia como uma fêmea grávida presa em um elevador sufocante.
— Estou bem, obrigada a todas…
A última integrante do pessoal se aproximou. Depois de expressar sua compaixão, a fêmea sacudiu a cabeça.
— Não é minha intenção falar de trabalho…
— Por favor, faça-o. — resmungou Ehlena.
A enfermeira sorriu com respeito, como se estivesse impressionada pela fortaleza de Ehlena.
— Bom… Ele retornou e está em uma das salas de exame. Pego a moeda?
Todo mundo gemeu. Havia só um ele dentro da legião de pacientes machos que tratavam, e jogar a moeda era o que habitualmente fazia o pessoal para decidir quem devia ocupar-se dele. Era como um encontro as escuras levado a extremo.
Falando de um modo geral, todas as enfermeiras mantinham uma distância profissional com seus pacientes, porque ou o fazia, ou te consumia. Entretanto com ele, o pessoal permanecia afastado por outros motivos que não estavam relacionados com o trabalho. A maioria das fêmeas ficava nervosa em sua presença… Mesmo as mais fortes.
Ehlena? Nem tanto. Sim, o cara tinha um ar ao estilo político importante, com aqueles trajes negros de estilo diplomático, seu corte de cabelo moicano e seus olhos de ametista irradiando uma mensagem “não me irrite se quer continuar respirando”. E era certo, quando te encontrava presa em uma das salas de exame com ele, sentia-se impulsionada a manter o olho na saída se por acaso tinha que usá-la. E logo vinham aquelas tatuagens que tinha no peito… E o fato de que conservasse sua bengala com ele como se esta não só fosse uma ajuda para caminhar, mas também uma arma. E…
De acordo, então o cara também a punha nervosa.
Mas de todas as formas interrompeu uma discussão sobre quem conseguiu ter o ano 1977.
— Eu faço. Assim compensarei meu atraso.
— Tem certeza? — perguntou alguém — Eu tenho a impressão de que esta noite você já pagou suas dívidas.
— Só me deixe conseguir um pouco de café. Em que sala?
— Coloquei-o na três. — disse a enfermeira.
Entre ovações de “Essa é a minha garota”, Ehlena foi à sala de pessoal, pôs suas coisas em sua mesa, e se serviu de uma xícara de quente e fumegante café “levanta defunto”. O café era forte o bastante para ser considerado um estimulante e fez o seu trabalho maravilhosamente, apagando confusão a mental até deixá-la limpa.
Bom, em sua maior parte limpa.
Enquanto bebia pequenos goles, contemplou a fileira de armários cor nata, os pares de sapatos de rua colocados aqui e lá e os casacos de inverno que penduravam em ganchos. No refeitório, os funcionários tinham suas xícaras favoritas sobre o balcão e seus petiscos prediletos nas estantes, e sobre a mesa redonda havia uma travessa cheia de, o que era esta noite? Petiscos Skittles. Em cima da mesa havia um jornal de anúncios coberto com folhetos sobre eventos, cupons e estúpidas tiras de historietas cômicas e fotos de caras bonitos. A lista de escalas estava a seguir, a parede branca tinha um quadriculado desenhado que representava as próximas duas semanas e estava cheia com nomes escritos em diferentes cores.
Isto era o retrato de uma vida normal, nada disso parecia significativo até que se pensava em toda aquela gente que havia no planeta que não podia manter um emprego, nem desfrutar de uma existência independente nem podia permitir-se dedicar sua energia mental a pequenas distrações… Como, digamos, o fato de que o papel higiênico Cottonelle era cinqüenta centavos mais barato se comprasse o pacote de doze rolos duplos.
Pensar em tudo isto, fez-lhe recordar, uma vez mais que, sair ao mundo real era um privilégio dado por questão de sorte, não um direito, e lhe chateava pensar em seu pai escondido naquela espantosa casinha, lutando com demônios que existiam só em sua mente.
Ele tinha tido uma vida uma vez, uma vida plena. Tinha sido um membro da aristocracia, tinha servido no conselho e tinha sido um erudito de renome. Teve uma shellan a que adorou, uma filha da que sempre tinha estado orgulhoso e uma mansão reconhecida por suas festas. Agora tudo o que tinha era alucinações que lhe torturavam, e embora estas fossem unicamente uma percepção, nunca uma realidade, as vozes não deixavam de ser um cárcere blindado só pelo fato de que ninguém mais pudesse ver as grades nem ouvir o guardião.
Enquanto Ehlena lavava sua xícara, não pôde evitar pensar na injustiça de tudo isso. O que estava bem, supôs. Apesar de tudo o que via em seu trabalho, não tinha se acostumado ao sofrimento, e rezava para não fazê-lo nunca.
Antes de deixar o vestiário, fez-se uma rápida revisão no espelho de corpo inteiro que havia ao lado da porta. Seu uniforme branco estava perfeitamente engomado e limpo como a gaze estéril. Suas meias não tinham fios puxados. Seus sapatos de sola de borracha estavam livres de manchas e de arranhões.
Seu cabelo estava tão bagunçado como ela se sentia.
Soltou-o com um rápido puxão, retorceu-o, e o prendou com o elástico, logo se dirigiu para a sala de exame número três.
O histórico clínico do paciente estava no suporte de plástico transparente montado na parede junto à porta, e respirou fundo quando a tirou e abriu. A coisa era fina, considerando a freqüência com que viam o macho, e não havia quase nenhuma informação registrada na capa, só seu nome, um telefone móvel, e o nome de uma fêmea como familiar mais próximo.
Depois de bater na porta, entrou na sala demonstrando uma confiança que não sentia, com a cabeça alta, a coluna direita e sua inquietação camuflada por uma combinação de atitude e concentração profissional.
— Que tal está esta tarde? — disse, olhando o paciente diretamente nos olhos.
No instante em que seu penetrante olhar ametista enfrentou o seu, não poderia lhe haver dito nem a uma alma o que acabava de sair de sua boca ou se ele tinha respondido. Rehvenge, filho de Rempoon, sugou o pensamento diretamente de sua cabeça, tão certamente como se tivesse drenado o tanque do gerador de seu cérebro e a tivesse deixado sem nada com o que captar uma faísca intelectual solta.
E logo sorriu.
Este macho era uma cobra, era verdadeiramente… Hipnotizante porque era mortal e porque era formoso. Com esse moicano, seu rosto severo e elegante e seu grande corpo, ele era sexo, poder e imprevisibilidade todo envolto em… Bem, um traje negro de estilo diplomático que claramente tinha sido feito sob medida.
— Estou bem, obrigado. — respondeu, solucionando o mistério quanto ao que lhe tinha perguntado — E você?
Quando ela fez uma pausa, ele sorriu um pouco, sem dúvida porque era totalmente consciente de que nenhuma das enfermeiras gostava de compartilhar o mesmo espaço fechado com ele, e evidentemente desfrutava desse fato. Ao menos, assim foi como ela leu sua controlada e velada expressão.
— Perguntei-lhe como estava. — disse arrastando as palavras.
Ehlena pôs o prontuário clínico na escrivaninha e tirou o estetoscópio do bolso.
— Estou muito bem.
— Está certa disso?
— Certíssima. — girando-se para ele, disse — Só vou tirar sua pressão arterial e o ritmo cardíaco.
— E também a temperatura.
— Sim.
— Quer que abra a boca para você agora?
A pele de Ehlena se ruborizou, e disse que não era porque aquela voz profunda com a que tinha feito a pergunta parecesse tão sensual como uma preguiçosa carícia sobre um peito nu.
— Errr… Não.
— Pena.
— Por favor, tire a jaqueta.
— Que grande idéia. Retiro totalmente o “pena”.
Bom plano, pensou ela, pois se sentia propensa a lhe fazer engolir a palavra com o termômetro.
Os ombros de Rehvenge giraram quando fez o que lhe tinha pedido, e com um movimento informal da mão, jogou o que evidentemente era uma peça de arte de roupa de cavalheiro sobre o casaco de Zibelina que tinha dobrado cuidadosamente sobre uma cadeira. Era estranho: sem importar a estação que fosse, ele sempre usava uma daquelas peles.
Essas coisas custavam mais que a casa que Ehlena alugava.
Quando seus dedos longos foram para a abotoadura de diamantes que tinha no pulso direito, deteve-o.
— Poderia, por favor, subir o outro lado? — disse assinalando com a cabeça a parede que havia junto a ele — Há mais espaço para mim a sua esquerda.
Ele vacilou, logo foi subir a manga contrária. Elevando a seda negra por cima do cotovelo, sobre seus bíceps grossos, manteve seu braço girado para seu torso.
Ehlena tirou o esfignomanômetro[15] de uma gaveta e começou a abri-lo enquanto se aproximava dele. Tocá-lo era sempre uma experiência, e esfregou a mão no quadril para preparar-se. Não ajudou. Como era habitual, quando entrou em contato com seu pulso, uma corrente lhe lambeu o braço subindo por ele até aterrissar em seu coração, fazendo que a maldita coisa pulsasse ao ritmo de James Brown até que a shimmy-shimmies[16]* lhe obrigaram a tragar um ofego.
Rezando para que isto não lhe levasse muito tempo, moveu-lhe o braço situando-o em posição para lhe pôr o punho do esfignomanômetro e…
— Bom… Senhor.
As veias que subiam pela curva de seu cotovelo estavam dizimadas pelo uso excessivo, inchadas, arroxeadas, tão rasgadas como se tivesse estado usando pregos em vez de agulhas.
Seus olhos se dispararam aos dele.
— Deve estar muito dolorido.
Fez girar o pulso, liberando-se de seu agarre.
— Não. Não me incomoda.
Um cara duro. Como é que não lhe surpreendia?
— Certo, posso entender por que precisa ver o Havers.
Intencionadamente, estendeu a mão, voltou a lhe girar o braço e pressionou brandamente uma linha vermelha que subia por seus bíceps, dirigindo-se para seu coração.
— Há sinais de infecção.
— Estarei bem.
Tudo o que ela pôde fazer foi arquear as sobrancelhas.
— Alguma vez ouviu falar de sepsis?
— A banda de música alternativa? Claro, mas nunca me passou pela cabeça que você tivesse ouvido falar dela.
Fuzilou-o com o olhar.
— Sepsis como em uma infecção do sangue?
— Hmm, queira inclinar-se sobre a escrivaninha um pouco e me desenhar um quadro explicativo? — seus olhos vagaram, descendendo por suas pernas — Acredito que o encontraria... Muito educativo.
Se qualquer outro macho tivesse saído com esse tipo de linha, lhe teria esbofeteado até lhe fazer ver as estrelas. Infelizmente, quando era essa voz de barítono divina a que falava e esse olhar penetrante de ametista o que fazia o percurso, realmente não se sentia lascivamente manuseada.
Sentia-se acariciada por um amante.
Ehlena resistiu à urgência de um V8 em sua frente. Que demônios estava fazendo? Esta noite tinha um encontro. Com um agradável e razoável macho civil que não tinha sido outra coisa salvo agradável, razoável e muito civilizado.
— Não tenho que lhe desenhar um quadro explicativo. — disse assinalando seu braço com a cabeça — Pode ver por si mesmo aí. Se isso não se curar, vai ficar sistêmico.
E embora levasse roupas elegantes como o manequim sonhado por todo alfaiate, a fria capa cinza da morte não ficava bem.
Ele manteve seu braço contra seus fortes abdominais.
— Levarei em consideração.
Ehlena sacudiu a cabeça e recordou a si mesma que não podia salvar às pessoas de sua própria estupidez só porque tinha uma bata branca pendurando dos ombros e a palavra ENFERMEIRA ao final de seu nome. Além disso, Havers ia ver isso em toda sua glória quando lhe examinasse.
— Muito bem, mas vou tirar a leitura no outro braço. E vou ter que lhe pedir que tire a camisa. O doutor vai quer ver quão longe a infecção chegou.
A boca de Rehvenge se elevou formando um sorriso enquanto alcançava o botão superior de sua camisa.
— Continue assim e logo estarei nu.
Ehlena afastou rapidamente o olhar e desejou com todas as suas forças poder considerá-lo um asco. Certamente lhe viria bem uma injeção de justa indignação que lhe ajudasse a defender-se dele.
— Já sabe, não sou tímido. — disse com essa voz baixa tão sua — Pode olhar se quiser.
— Não, obrigado.
— Pena. — em um tom mais enigmático, acrescentou — Não me importaria que me olhasse.
Enquanto o som da seda movendo-se contra a carne se elevava da mesa de exame, Ehlena revisou desnecessariamente seu histórico médico, voltando a verificar dados que eram absolutamente corretos.
Era estranho. Pelo que as outras enfermeiras haviam dito, não se comportava com elas dessa maneira tão libertina. De fato, mal falava com suas colegas, e essa era parte da razão pela que ficavam tão ansiosas quando estavam com ele. Com um macho assim grande, o silêncio se interpretava como uma ameaça. Isso era um fato da vida. E isso antes que lhe acrescentasse a tatuagem e o moicano de caçador.
— Estou preparado. — disse.
Ehlena girou sobre si mesma e manteve os olhos fixos na parede junto à cabeça dele. Entretanto sua visão periférica funcionava verdadeiramente bem, e era difícil não sentir-se agradecida. O peito de Rehvenge era magnífico, a pele de uma quente cor morena dourada, com músculos que estavam definidos apesar de que seu corpo estivesse relaxado. Em cada um de seus peitorais tinha uma estrela vermelha de cinco pontas tatuada na parte superior, e sabia que tinha mais.
Em seu estômago.
Não é que o tivesse olhado.
Era certo, porque na realidade, ficou embevecida.
— Vai examinar-me o braço? — disse brandamente.
— Não, isso o doutor fará. — esperou que voltasse a dizer “Pena”.
— Acredito que já usei essa palavra suficientes vezes em sua companhia.
Então o olhou nos olhos. Era desse estranho tipo de vampiro que podia ler as mentes dos de sua própria espécie, mas de algum jeito não lhe surpreendeu que este macho formasse parte desse pequeno e estranho grupo.
— Não seja grosseiro. — lhe disse — E não quero que volte a fazer isso.
— Sinto muito.
Ehlena deslizou o punho do esfignomanômetro ao redor de seus bíceps, colocou o estetoscópio nos ouvidos, e tirou a pressão arterial. Entre os pequenos piff-piff-piff do globo ao inflar a manga para que estivesse ajustada, sentiu o fio nele, o tenso poder, e seu coração deu um salto. Estava particularmente incisivo esta noite, e se perguntou por que.
Salvo que isso não era assunto dela, ou era?
Quando liberou a válvula e o punho soltou um assobio comprido e lento de liberação, deu um passo atrás se afastando. Ele era simplesmente… Muito, por todos os lados. Especialmente nesse momento.
— Não tenha medo. — sussurrou.
— Não tenho.
— Tem certeza?
— Muita certeza. — mentiu.


Capítulo 6


Mentia, pensou Rehv. Definitivamente tinha medo dele. Falando de pena...
Esta era a enfermeira que Rehv esperava que lhe tocasse cada vez que ia ali. Era a que fazia com que suas visitas fossem parcialmente suportáveis. Esta era sua Ehlena.
Ok, não era nem um pouco sua. Sabia seu nome só porque estava escrito na placa azul e branca de sua bata. Via-o sozinha quando vinha a tratamento. E não gostava dele absolutamente.
Mas igualmente pensava nela como dele, e assim eram as coisas. A questão era, que tinham algo em comum, algo que transcendia os limites entre espécies e eclipsava as diferentes camadas sociais e os unia embora ela o teria negado.
Ela também estava sozinha, e da mesma forma em que ele estava.
Seu ralo emocional tinha o mesmo rastro que o dele, a que tinha Xhex, Trez e iAm: Seus sentimentos estavam rodeados pelo vazio de desconexão de alguém separado de sua tribo. Vivendo entre outros, mas essencialmente separado de tudo. Um ermitão, um pária, alguém que tinha sido expulso.
Não conhecia os motivos, mas estava fodidamente seguro de que a vida era assim para ela, e isso era o que tinha captado sua atenção primeiro quando a tinha conhecido. Seus olhos, sua voz e sua fragrância tinham sido o seguinte. Sua inteligência e boca rápida tinham selado o trato.
— Cento e sessenta e oito por noventa e cinco. É alta. — desabotoou o punho com um rápido puxão, sem dúvida desejando que fosse uma tira de sua pele — Acredito que seu corpo está tentando lutar contra a infecção de seu braço.
Oh, seu corpo estava lutando contra algo, com certeza, mas não tinha absolutamente nada a ver com o que fosse que se cozinhava na zona onde se injetava. Com seu lado sympath lutando contra a dopamina, a condição de impotência na qual normalmente se achava quando estava totalmente medicado ainda não se apresentara.
Resultado?
Seu pênis estava rígido como um taco de beisebol dentro das calças folgadas. O que, contra a opinião popular, na realidade não era um bom sinal... Especialmente esta noite. Depois dessa conversa com Montrag, sentia-se faminto, estimulado... Um pouco amalucado pelo ardor interior.
E Ehlena era simplesmente tão... Formosa.
Embora não como estava acostumado a ser suas garotas, não de uma forma tão óbvia, exagerada, injetada, implantada e escultural. Ehlena era naturalmente encantadora, tinha traços finos e delicados, o cabelo loiro dourado e umas pernas longas e esbeltas. Seus lábios eram rosados porque eram rosados... Não por uma capa de maquiagem brilhante e cristalizada com uma durabilidade de dezoito horas. E seus olhos cor caramelo eram luminescentes porque eram uma mescla de amarelo, vermelho e dourado... Não por um montão de camadas de sombra de olhos e rímel. E suas bochechas estavam ruborizadas porque ele lhe estava colocando sob a pele.
O que, embora pressentia que tinha sido uma noite dura para ela, não lhe importava absolutamente.
Mas esse é o symphath em ti, não? Pensou com ironia.
Curioso, a maior parte do tempo não lhe importava ser o que era. Sua vida como a tinha conhecido, sempre tinha sido uma miragem constante que alternava mentiras e enganos e isso era o que havia. Não obstante quando estava com ela, desejava ser normal.
— Vemos sua temperatura? — disse ela, indo procurar um termômetro eletrônico na mesa.
— Está mais alta do que o normal.
Seus olhos âmbar voaram para os dele.
— Por seu braço.
— Não, por seus olhos.
Ela piscou, depois pareceu sacudir a si mesma.
— Tenho sérias dúvidas a respeito disso.
— Então subestima seu atrativo.
Quando sacudiu a cabeça e colocou uma capinha plástica sobre a varinha prateada, ele pôde perceber o aroma fugaz de seu perfume.
Suas presas se alargaram.
— Abra. — levantou o termômetro e esperou — E bem?
Rehv olhou fixamente esses assombrosos olhos tricolores e deixou cair a mandíbula. Ela se inclinou, tão profissional como sempre, só para ficar congelada. Enquanto lhe estudava os caninos, em sua fragrância aflorou algo escuro e erótico.
O triunfo inflamou as veias de Rehv enquanto grunhia.
— Faça-me isso.
Passou um comprido momento, durante o qual os dois estiveram unidos por fios invisíveis de paixão e desejo. Depois a boca dela formou uma linha.
— Nunca, mas tomarei a temperatura, porque devo fazê-lo.
Embutiu-lhe o termômetro entre os lábios e ele teve que apertar os dentes para evitar que a coisa lhe cravasse uma das amídalas.
Entretanto, estava tudo bem. Embora não pudesse tê-la, excitava-a. E isso era mais do que se merecia.
Produziu-se um bip, um intervalo, e outro bip.
— Cento e quarenta e nove. — disse ela enquanto retrocedia e atirava a capinha de plástico ao cesto de lixo de risco biológico — Havers estará com você logo que seja possível.
A porta se fechou atrás dela com a dura bofetada silábica da palavra que começava com o F.
Homem, era ardente.
Rehv franziu o cenho, toda a questão da atração sexual lhe recordava algo em que não gostava de pensar.
Alguém, mas bem.
A ereção que tinha se desinflou instantaneamente quando se deu conta que era segunda-feira de noite. O que significava que amanhã era terça-feira. Primeira terça-feira do último mês do ano.
O sympath nele vibrou apesar de que cada centímetro de sua pele se esticou como se seus bolsos estivessem cheios de aranhas.
Amanhã de noite ele e sua chantagista teriam outra de seus encontros. Jesus, como era possível que tivesse passado outro mês? Parecia que cada vez que se dava a volta era a primeira terça-feira de novo e estivesse conduzindo para o norte do estado para essa cabana deixada pela mão de Deus para outra atuação obrigada.
O alcoviteiro convertido em puta.
Jogos de poder, extremos afiados e foder eram basicamente a moeda de troca nas reuniões com sua chantagista, e tinham sido as bases de sua vida “amorosa” durante os últimos vinte e cinco anos. Tudo isso era sujo e lhe ofendia, era malvado e degradante, e o fazia uma e outra vez para manter seu segredo a salvo.
E também porque seu lado escuro se liberava com isso. Era Amor, ao Estilo Symphath, o único momento em que podia ser como era sem conter-se absolutamente, um tanto de horrorosa liberdade. Depois de tudo, por muito que medicasse a si mesmo e tentasse encaixar, estava preso pelo legado de seu pai morto, pelo sangue malvado que corria por suas veias. Não podia negociar com seu DNA, e embora fosse mestiço, o proscrito nele era dominante.
Assim quando se tratava de uma mulher de valor como Ehlena, ele sempre ia estar no lado mais afastado do vidro, pressionando o nariz contra ele, com as palmas estendidas pelo desejo, sem jamais poder aproximar-se o suficiente para tocar. Era o mais justo para ela. Ao contrário que sua chantagista, ela não merecia o que ele tinha para oferecer.
Os princípios morais que ensinou a si mesmo indicavam que ao menos isso era certo.
Sim. Yu-hu. Bom pra ele.
Sua próxima tatuagem ia ser de um fodido halo sobre a cabeça.
Quando baixou o olhar ao desastre que se estendia por seu braço esquerdo, viu com total clareza que estava piorando. Não só era uma infecção bacteriana devido a que utilizava deliberadamente agulhas sem esterilizar sobre a pele que não tinha sido limpa com álcool. Era um lento suicídio, e essa era a razão pela qual preferia que o condenassem antes que mostrar-lhe ao doutor. Sabia exatamente o que ocorreria se esse veneno se metia profundamente dentro de sua corrente sangüínea, e desejava que acontecesse logo e se apoderasse dele.
A porta se abriu e levantou o olhar, preparado para dançar o tango com o Havers... Exceto que não era o doutor. A enfermeira de Rehv havia retornado, e não parecia feliz.
De fato, parecia exausta, como se ele não fosse mais que uma moléstia a mais em sua lista e não tivesse energia para tratar com a merda que trazia quando estava com ela.
— Falei com o doutor. — lhe disse — Está na sala de cirurgia fechando, assim demorará um pouco. Pediu-me que lhe tirasse um pouco de sangue...
— Sinto. — balbuciou Rehv.
A mão de Ehlena foi até o pescoço de seu uniforme e puxou as duas metades para fechá-las um pouco mais.
— Perdão?
— Lamento ter jogado com você. Não necessita isso de um paciente. Especialmente em uma noite como esta.
Ela franziu o cenho.
— Estou bem.
— Não, não está. E não, não estou lendo sua mente. É só que parece cansada. —repentinamente, soube como ela se sentia — Eu gostaria de compensar isso.
— Não é necessário...
— Convidando você para jantar.
Bom, não tinha querido dizer isso. E dado que acabava de auto felicitar-se por saber manter a distância, isto também lhe convertia em um hipócrita consigo mesmo.
Evidentemente a próxima tatuagem devia estar mais na linha de umas orelhas de burro.
Porque estava atuando como um.
Depois de seu convite, não lhe surpreendeu nem um pouco que Ehlena lhe olhasse como se estivesse louco. Em termos gerais, quando um macho se comportava como ele tinha feito, a última coisa que qualquer fêmea desejaria fazer era passar mais tempo com ele.
— Sinto muito, não. — nem sequer alinhavou o obrigado — Nunca saio com pacientes.
— Ok. Entendo.
Enquanto preparava os instrumentos para tirar sangue e colocava um par de luvas de borracha, Rehv estendeu o braço para a jaqueta de seu traje e tirou seu cartão, ocultando-o em sua grande palma.
Foi rápida no procedimento, trabalhando sobre seu braço bom, enchendo com rapidez as ampolas de alumínio. Menos mal que não eram de vidro e que Havers fazia todas as provas ele mesmo. O sangue de vampiro era vermelho. O de symphath era azul. A cor do seu era algo entre ambas, mas ele e Havers tinham um acordo. Certo, o doutor não era consciente de como funcionavam as coisas entre eles, mas era a única forma de ser tratado sem comprometer o médico da raça.
Quando Ehlena acabou, selou as ampolas com plugues de plástico branco, tirou as luvas e se dirigiu para a porta como se ele fosse um mau aroma.
— Espera. — lhe disse.
— Quer algum calmante para o braço?
— Não, quero que fique com isto. — estendeu seu cartão — E me ligue se alguma vez está de humor para me fazer um favor.
— Com o risco de soar pouco profissional, nunca vou estar de humor para você. Sob nenhuma circunstância.
Ouch. Não é que a culpasse.
— O favor é me perdoar. Não tem nada que ver com um encontro.
Ela baixou o olhar ao cartão, depois sacudiu a cabeça.
— Será melhor que fique com isso. Para que possa usar alguma vez.
Quando a porta se fechou, ele amassou o cartão em sua mão.
Merda. Em que demônios estava pensando de todos os modos? Provavelmente ela tivesse uma pequena vida agradável em uma simples casinha com dois pais excessivamente amorosos. Talvez até tivesse um namorado, que algum dia se converteria em seu hellren.
Sim, sendo ele o amigável senhor da droga da vizinhança, alcoviteiro e valentão realmente encaixaria com a rotina Norman Rockwell. Totalmente.
Atirou seu cartão no cesto de papéis que havia junto a mesa, e observou como fazia um arco, e logo caía entre os Kleenex[17], os papéis enrugados e uma lata de Coca-Cola vazia.
Enquanto esperava o doutor, olhou o lixo descartado, pensando que para ele a maioria das pessoas do planeta era como essas coisas: coisas para usar e descartar sem remorsos de nenhum tipo. Graças a seu lado mau e ao negócio que dirigia, tinha quebrado um montão de ossos, tinha partido um montão de cabeças e tinha sido a causa de muitas overdoses de drogas.
Ehlena, por outro lado, passava suas noites salvando as pessoas.
Sim, tinham muitíssimo em comum, certamente.
Os esforços dele possibilitavam que ela tivesse um trabalho.
Oras. Perfeito.
******************
Fora da clínica, no ar gelado, Wrath estava se enfrentando peito a peito com o Vishous.
— Sai de meu caminho, V.
Vishous, é obvio, não retrocedeu nada. Não era de surpreender-se. Inclusive antes do pequeno flash informativo que informava que a Virgem Escriba lhe tinha dado a luz, o guerreiro sempre tinha sido um agente totalmente livre.
Um Irmão teria tido melhor sorte dando ordens a uma pedra.
— Wrath...
— Não, V. Aqui não. Agora não...
— Vi você. Esta tarde, em meus sonhos. — a dor nessa voz escura era do tipo que normalmente se associa com funerais — Tive uma visão.
Wrath falou sem desejar.
— O que viu?
— Estava de pé só em um campo escuro. Todos lhe rodeávamos na periferia, mas ninguém podia te alcançar. Você se afastava de nós e nós de você. — o Irmão estendeu a mão e lhe agarrou com força — Por intermédio de Butch, sei que está saindo sozinho e mantive a boca fechada. Mas não posso permitir que siga fazendo isto. Se você morrer a raça está fodida, e nem sei dizer o que lhe faria à Irmandade.
Os olhos de Wrath se esforçavam para enfocar o rosto de V, mas a luz de segurança que havia sobre a porta era um fluorescente e o brilho dessa coisa cravava como a merda.
— Não sabe o que quer dizer o sonho.
— E você tampouco.
Wrath pensou no peso desse civil em seus braços.
— Poderia não ser nada...
— Pergunte-me quando tive a visão pela primeira vez.
—... Mais que um medo que tem.
— Pergunte-me. Quando tive a visão pela primeira vez.
— Quando?
— Mil novecentos e nove. Passaram cem anos desde que a vi pela primeira vez. Agora me pergunte quantas vezes a tive mês passado.
— Não.
— Sete vezes, Wrath. Esta tarde foi a gota que transbordou o copo.
Wrath se soltou do agarre do Irmão.
— Solte-me. Se me seguir, vai encontrar briga.
— Não pode sair sozinho. Não é seguro.
— Está brincando, verdade? — Wrath lhe olhou furiosamente através de seus óculos escuros — Nossa raça está caindo e você me repreende por ir atrás de nosso inimigo? Uma merda. Não vou ficar sentado mofando atrás de nenhum fodido escritório passando papéis enquanto meus irmãos estão ali fora fazendo algo verdadeiramente...
— Mas você é o rei. É mais importante que nós...
— Ao inferno com isso! Sou um de vocês! Fui recrutado, bebi dos Irmãos e eles de mim, quero lutar!
— Olhe, Wrath... — V assumiu um tom tão grunhido que lhe fazia saltar todos os dentes. Com uma tocha — Sei exatamente o que é não querer ser quem nasceste para ser. Acredita que eu não gostaria de me liberar de ter estes fodidos sonhos? Acredita que ter este sabre laser é uma festa? — levantou a mão enluvada como se a ajuda visual fosse um valor acrescentado a sua “discussão” — Não pode mudar quem é. Não pode desfazer o acoplamento em que seus pais lhe fizeram. É o rei, e as regras se aplicam de forma diferente para você, e assim é como são as coisas.
Wrath fez seu melhor esforço para ter a calma, tranqüilidade e compostura de V.
— E eu digo que estive lutando durante trezentos anos, assim não sou exatamente um principiante na batalha. E eu também gostaria de assinalar que ser o rei não significa ter perdido o direito de escolher...
— Não tem herdeiro. E pelo que ouvi de minha shellan, manda Beth se calar quando ela diz que quer tentar ter um quando vier sua primeira necessidade. Sossega-a com dureza. Como disse que o diz? Oh... Sim. “Não quero nenhuma cria em um futuro próximo... Se é que alguma vez vou querer”.
O fôlego de Wrath escapou em uma rajada.
— Não posso acreditar que acaba de tocar nesse assunto.
— Em resumo? Se você morrer? A malha da sociedade da raça se desmantelaria, e se acha que isso vai ajudar na guerra é que tem a cabeça tão metida no rabo que está utilizando seu esfíncter como boca. Aceite, Wrath. Você é o coração de todos nós... Assim não, não pode ir por aí sem mais, lutando sozinho porque te dá a vontade de fazê-lo. As coisas não funcionam assim para você...
Wrath agarrou as lapelas do Irmão e o estrelou contra o edifício da clínica.
— Cuidado, V. Está caminhando pela maldita e fina linha que limita com a falta de respeito.
— Se acredita que me amassar vai mudar as coisas, vá em frente. Mas te garanto que depois de que os murros terminem e ambos estejamos sangrando no chão, a situação seguirá sendo exatamente a mesma. Não pode mudar quem é por nascimento.
Ao fundo, Butch saiu do Escalade e subiu o cinto como se estivesse se preparando para interromper uma briga.
— A raça precisa de você vivo, imbecil. — disse V— Não me obrigue a apertar o gatilho, porque o farei.
Wrath voltou a fixar seus olhos débeis em V.
— Pensei que me queria vivinho e abanando o rabo. Além disso, me disparar seria traição e se castiga com a morte. Sem importar de quem seja filho.
— Olhe, não estou dizendo que não deva...
— Cala a boca, V. Só uma vez, só fecha a maldita boca.
Wrath soltou a jaqueta de couro do cara e retrocedeu. Jesus Cristo, tinha que ir ou esta confrontação ia escalar exatamente até o que Butch estava temendo.
Wrath apontou um dedo à cara de V.
— Nada de me seguir. Estamos entendidos? Não me siga.
— Estúpido imbecil. — disse V com absoluto cansaço — É o rei. Todos devemos te seguir.
Wrath se desmaterializou com uma maldição, suas moléculas apressando-se através da cidade. Enquanto viajava, não podia acreditar que V tivesse jogado na sua cara o assunto de Beth e o bebê. Ou que Beth tivesse compartilhado esse tipo de questões privadas com a Doutora Jane.
Falando de ter a cabeça no rabo, por certo. V estava louco se pensava que Wrath ia pôr a vida de sua amada em perigo deixando-a grávida quando passasse por sua necessidade dentro de um ano ou assim. As fêmeas morriam no parto, com mais freqüência que as que não morriam.
Daria sua própria vida pela raça se tivesse que fazê-lo, mas de nenhum fodido e louco modo poria a de sua shellan em um perigo assim.
E inclusive se tivesse a garantia que sobreviveria a tudo isso, não queria que seu filho terminasse justo onde ele estava... Preso e sem escolha, servindo a sua gente com pesar enquanto um a um morriam em uma guerra que pouco ou nada podia fazer para terminar.

Capítulo 7


O complexo do Hospital St. Francis era uma cidade dentro da cidade, uma aglomeração sempre em expansão de blocos arquitetônicos de diferentes épocas, com cada um dos componentes formando sua própria mini-vizinhança e as partes conectando-se com o conjunto por uma série de sinuosas ruas e calçadas. Estava o estilo McMansion que podia ver na seção de administração, o da simplicidade suburbana do nível das estadias de unidades de pacientes externos e o das torres de hospitalização parecidas com apartamentos com suas janelas amontoadas. O único que dava unidade à extensão, e que era um dom do céu, eram os sinais direcionais vermelhos e brancos com suas flechas assinalando a direita e esquerda e diretamente para frente dependendo de aonde queria ir.
De todas as formas o destino de Xhex era óbvio.
O departamento de emergências era a dependência mais recente do centro médico, um de tecnologia avançada, de vidro e aço que era como um clube noturno sempre brilhantemente iluminado e constantemente ronronando.
Era impossível passar batido. Impossível perder de vista.
Xhex caminhou à sombra de algumas árvores que tinham sido plantadas em círculo ao redor de uns bancos. Enquanto caminhava para a fileira de portas giratórias da unidade de Emergências, estava integrada ao ambiente e ao mesmo tempo absolutamente à margem dele. Embora alterasse seu trajeto para evitar outros transeuntes, cheirava o tabaco da denominada choça de fumantes e sentia o ar frio no rosto, estava muito perturbada pela batalha que se livrava em seu interior para observar muito.
Quando entrou na instalação, suas mãos estavam úmidas, um suor frio brotava de sua testa e ficou paralisada pela luz fluorescente, o linóleo branco e o pessoal que andava por ali com seus uniformes cirúrgicos.
— Precisa de ajuda?
Xhex girou e subiu as mãos, adotando bruscamente uma posição de luta. O doutor que lhe tinha falado manteve sua postura, mas pareceu surpreso.
— Calma. Tranqüila.
— Lamento. — deixou cair os braços e leu a lapela de seu jaleco branco: Dr. MANUEL MANELLO, CHEFE DE CIRURGIA. Franziu o cenho ao percebê-lo, ao captar seu aroma.
— Está bem?
Não. Não era nada de sua conta.
— Tenho que ir ao depósito de cadáveres.
O médico não pareceu impressionado, como se fosse perfeitamente possível que alguém com sua maneira de mover conhecesse um par de cadáveres com dedos etiquetados.
— OK, bem, vê aquele corredor daí? Vá até o fundo. Verá uma porta com um letreiro para o depósito de cadáveres. Só siga as flechas dali. Está no porão.
— Obrigado.
— De nada.
O doutor saiu pela porta giratória pela que ela tinha entrado, e Xhex passou pelo detector de metais pelo que ele acabava de passar. Não soou nenhum «bip», e lançou um tenso sorriso ao vigilante que por sua vez jogou uma olhada.
A faca que levava na parte baixa das costas era de cerâmica e tinha substituído seus cilícios de metal por uns de couro e pedra. Sem problemas.
— Boa noite, Oficial. — lhe disse.
O cara a saudou com a cabeça ao passar, mas manteve a mão na culatra de sua arma.
Ao final do corredor, encontrou a porta que procurava, abriu-a de um golpe e encarou as escadas, seguindo as flechas vermelhas como o doutor lhe tinha indicado. Quando deu com um lance de parede de cimento branqueado calculou que já estava perto, e tinha razão. Mais adiante no corredor estava o detetive Cruz, junto a um par de portas duplas de aço inoxidável rotuladas com as palavras DEPÓSITO DE CADÁVERES e SÓ PESSOAL AUTORIZADO.
— Obrigado por vir. — disse ele quando ela esteve mais perto — Entraremos na sala de observação que está um pouco mais à frente. Irei dizer-lhes que chegou.
O detetive abriu uma das portas de um empurrão, e através da fresta ela pôde ver uma frota de mesas metálicas com blocos para as cabeças dos mortos.
Seu coração se deteve e logo trovejou, apesar de estar repetindo uma e outra vez que ela não era a prejudicada. Que ela não estava aí dentro. Que isto não era o passado. Que não havia ninguém com uma roupa branca erguendo-se sobre ela e fazendo coisas “em nome da ciência”.
E, além disso, ela tinha superado todo isso, fazia uma década…
Um som começou baixo e aumentou de volume, reverberando detrás dela. Girou em redondo e ficou congelada, sentindo tanto temor que lhe cravaram os pés no chão…
Mas só era um empregado da limpeza que vinha dobrando a esquina, empurrando um carrinho de roupa suja do tamanho de um carro. Ao passar nem sequer levantou a vista, estava inclinado para frente sobre a borda, utilizando toda sua energia.
Por um momento, Xhex piscou e viu outro carrinho rodando. Um cheio de membros enredados e imóveis, as pernas e os braços dos cadáveres sobrepondo-se como se fosse lenha.
Esfregou os olhos. Ok, tinha superado o acontecido… Sempre e quando não estivesse em uma clínica ou hospital.
Jesus..! Devia sair dali.
— Realmente quer fazer isto? — perguntou da Cruz junto a ela.
Tragou a saliva com força, e levantou a mão, duvidando de que o homem entendesse que o que a assustava era um montão de lençóis em um carro e não o cadáver que estava a ponto de ver.
— Sim. Podemos entrar agora?
Ele a contemplou durante um momento.
— Escute, quer tomar um minuto? Tomar um pouco de café?
— Não. — como não se moveu, ela mesma se encaminhou para a porta rotulada como VISITAS PRIVADAS.
Da Cruz se apressou a adiantar-se e abriu a porta. A sala de espera que havia mais à frente tinha três cadeiras de plástico negras e duas portas e cheirava como morangos químicos, resultado do formaldeído misturado com um ambientador Glade PlugIn. Num canto, longe dos assentos, havia uma mesa pequena com um par de copos descartáveis de papel meio cheios de café que parecia lodo tirado de um atoleiro.
Ao que parecia, havia dois tipos de pessoa, o tipo que passeava e o tipo que permanecia sentado, e se fosse do tipo que permanecia sentado, esperava-se que equilibrasse a cafeína extraída da máquina sobre seu joelho.
Enquanto olhava ao seu redor, percebeu as emoções que tinham sido sentidas nessa área e que persistiam como o mofo que fica depois da água fétida. Às pessoas que tinha transpassado a porta desse lugar lhe tinham acontecido coisas más. Corações que foram quebrados. Vidas que foram destroçadas. Mundos que nunca voltaram a ser o mesmo.
Pensou que não deveriam dar café a esta gente antes que fizessem o que tinham vindo a fazer aqui. Já estavam nervosos o suficiente.
— Por aqui.
Da Cruz a fez passar a uma sala estreita que em sua opinião estava empapelada[18] com um estampado em relevo de claustrofobia: a coisa era do tamanho de uma caixa de fósforos quase sem ventilação, tinha luzes fluorescentes que vacilavam e flutuavam, e a única janela que havia definitivamente não dava a um prado de flores silvestres.
A cortina que pendurava no lado oposto do vidro estava corrida de um lado a outro, bloqueando a vista.
— Está bem? — perguntou de novo o detetive.
— Podemos fazer isto logo?
Da Cruz se inclinou para a esquerda e apertou o botão do timbre. Ante o som do zumbido, as cortinas se separaram, abrindo-se pela metade com uma lenta sacudida, revelando um corpo que estava coberto pelo mesmo tipo de lençol branco que havia no cesto da roupa suja. Um macho humano vestido com uniforme médico verde estava de pé na cabeceira, e quando o detetive fez um gesto com a cabeça, o homem esticou uma mão para frente e retirou o sudário.
Os olhos de Chrissy Andrews estavam fechados e seus cílios estavam pousados sobre as bochechas que tinham a cor cinza pálida das nuvens de dezembro. Não tinha aspecto de estar em paz em seu repouso permanente. Sua boca era um talho azul, seus lábios estavam partidos pelo que poderia ter sido um punho, uma frigideira ou a ombreira de uma porta.
As dobras do lençol que descansava sobre sua garganta ocultavam em sua maior parte os sinais de estrangulamento.
— Sei quem fez isto. — disse Xhex.
— Só para que fique claro, identifica-a como Chrissy Andrews?
— Sim. E sei quem o fez.
O detetive fez um gesto com a cabeça para o clínico, que cobriu o rosto de Chrissy e fechou as cortinas.
— O namorado?
— Sim.
— Há um longo histórico de chamadas por violência doméstica.
— Muito longo. É obvio, isso já acabou. O filho da puta finalmente conseguiu fazer o trabalho, verdade?
Xhex saiu pela porta e entrou na sala de espera, e o detetive teve que se apressar para não ficar atrás.
— Detenha-se...
— Tenho que voltar para o trabalho.
Enquanto saíam bruscamente e entravam no corredor do porão, o detetive a obrigou a deter-se.
— Quero que saiba que o DPC[19] está levando a cabo uma adequada investigação de assassinato, e nos encarregaremos de qualquer suspeito de maneira apropriada e legal.
— Estou certa de que o fará.
— E você fez sua parte. Agora tem que deixar que nos ocupemos dela e cheguemos ao final deste assunto. Deixe-nos encontrá-lo, ok? Não a quero em plano vigilante.
Veio-lhe à mente a imagem do cabelo de Chrissy. A mulher tinha sido suscetível sobre esse assunto, estava acostumada a escová-lo para trás, depois alisava a capa superior e o orvalhava com laquê para mantê-lo em seu lugar até que ficasse como a parte superior de um peão de xadrez.
Totalmente ao estilo de uma habitante de Melrose Place[20] (seriado dos anos 90), a época em que Heather Locklear usava o cabelo dourado.
O cabelo que havia embaixo daquele sudário estava esmagado como uma tabua de picar, amassado de ambos os lados, devido sem dúvida à bolsa para cadáveres em que tinha sido transportada.
— Você já fez sua parte. — disse da Cruz.
Não, ainda não.
— Que tenha uma boa noite, Oficial. E boa sorte encontrando ao Grady.
Ele franziu o cenho, logo pareceu engolir atuação de “serei uma boa garota”.
— Necessita que a leve de volta?
— Não, obrigado. E de verdade, não se preocupe comigo. — sorriu tensamente — Não farei nada estúpido.
Ao contrário, era uma assassina muito preparada. Treinada pelo melhor.
E olho por olho era mais que uma frase pegajosa.
José da Cruz não era um cientista de naves espaciais nem um membro do Mensa nem um geneticista molecular. Tampouco era um apostador, e não só devido a sua fé Católica.
Não tinha motivos para apostar. Tinha um instinto que se assemelhava à bola de cristal de uma vidente.
Assim sabia exatamente o que fazia quando ficou seguindo, a uma distância discreta, a senhora Alex Hess em seu caminho da saída do hospital. Depois de sair pelas portas giratórias, não foi à esquerda para o estacionamento nem à direita, em volta dos três táxis estacionados à entrada. Seguiu em linha reta, andando entre os carros que recolhiam e deixavam pacientes e entre os táxis que estavam livres. Depois de subir ao meio-fio, continuou pela grama congelada e seguiu caminhando em linha reta, cruzando a estrada e metendo-se entre as árvores que a cidade tinha plantado fazia um par de anos para incrementar a vegetação no centro da cidade.
Entre uma piscada e a seguinte tinha desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.
O que era, é obvio, impossível. Estava escuro e ele tinha levantado às quatro da manhã fazia duas noites, por isso seus olhos eram tão agudos como quando estava debaixo da água.
Ia ter que vigiar a aquela mulher. Sabia de primeira mão quão duro era perder a um colega, e estava claro que ela tinha apreciado à moça morta. Não obstante, este caso não necessitava um curinga civil quebrando as leis e possivelmente chegando até o extremo de assassinar ao principal suspeito do DPC.
José se dirigiu de volta ao carro civil que tinha deixado na parte de atrás onde lavavam as ambulâncias e os médicos esperavam durante as pausas no trabalho.
O namorado de Chrissy Andrews, Robert Grady, aliás, Bobby G, tinha alugado um apartamento mensalmente, desde que ela o tinha largado esse verão. Ao redor da uma dessa tarde José tinha batido na porta do chiqueiro encontrando-o vazio, e uma ordem de registro, expedida em apoio às chamadas ao 911 que Chrissy tinha estado fazendo os seis meses passados, para reportar a seu namorado, tinha permitido ordenar ao proprietário que abrisse o lugar.
Tinha encontrado montões de comida apodrecendo-se na cozinha, pratos sujos na sala de estar e roupa suja atirada por todo o dormitório.
Também havia numerosas trouxinhas de celofane com pó branco o qual — Oh Meu Deus! — tinha resultado ser heroína. Quem haveria imaginado?
Ao namorado não o via por nenhuma parte. A última vez que o tinham visto no apartamento, tinha sido a noite anterior ao redor das dez. O vizinho do lado tinha ouvido o Bobby G gritar. E depois uma portada.
E os arquivos que já tinham obtido do fornecedor do serviço de telefonia móvel dele indicavam que realizou uma chamada para o telefone da Chrissy as nove e trinta e seis.
A vigilância de policiais a paisana tinha sido estabelecida imediatamente, e os detetives informavam com regularidade, mas até agora não tinha nenhuma notícia. E José não pensava que fosse haver nenhuma por esse front. Havia boas possibilidades de que o lugar fosse permanecer como um povoado fantasma.
Assim havia duas coisas em seu radar: encontrar o namorado. E seguir a pista da chefe de segurança do ZeroSum.
E seus instintos lhe diziam que seria melhor para todos se ele encontrasse o Bobby G antes que Alex Hess o fizesse.


Capítulo 8


Enquanto Havers consultava o Rehvenge, Ehlena reabastecia um armário de fornecimentos. Que justamente dava a casualidade de estar junto à sala de exame número três. Empilhou bandagens da marca Ace. Fez uma torre com os pacotes plásticos dos cilindros de gaze. Criou uma obra a La Modigliani[21] com caixas de Kleenex, Band-Aids e capas para termômetros.
Estava ficando sem coisas que organizar quando a porta da sala de exame foi aberta emitindo um estalo. Apareceu uma cabeça no corredor.
Havers tinha o aspecto de um verdadeiro médico, com seus óculos com aro de tartaruga marinha, seu cabelo castanho, que penteava com uma risca ao meio, sua gravata-borboleta e a roupa branca. Também se comportava como um, sempre administrando calma e refletividade ao pessoal, as instalações e acima de tudo aos pacientes.
Mas enquanto permanecia de pé nesse corredor não parecia ele mesmo, com o cenho franzido como se estivesse confuso e massageando as têmporas como se lhe doessem.
— Está bem, doutor? — perguntou-lhe.
Ele olhou em sua direção, detrás dos óculos, seu olhar era estranhamente inexpressivo.
— Errr... Sim, obrigado. — sacudindo a si mesmo, entregou-lhe uma receita que tinha em cima do histórico médico de Rehvenge — Eu… Ah… Seria tão amável de trazer a dopamina a este paciente, assim como duas dose de antídoto contra veneno de escorpião? Faria eu mesmo, mas me parece que tenho que conseguir algo para comer. Sinto-me um pouco hipoglicêmico.
— Sim, Doutor. Em seguida.
Havers fez um gesto afirmativo com a cabeça e deixou o histórico do paciente no suporte que havia junto à porta.
— Obrigado, é muito amável.
O doutor se afastou como se estivesse parcialmente em transe.
O pobre macho devia estar exausto. Tinha estado na sala de cirurgia a maior parte das últimas duas noites e seus respectivos dias, atendendo o parto de uma fêmea, a um macho que tinha sofrido um acidente de trânsito, e a um menino pequeno que tinha sofrido graves queimaduras ao tentar alcançar uma caçarola com água fervendo que estava sobre a fornalha. E se somava a isso o fato de que nos dois anos que ela levava na clínica, nunca tinha tirado nem um dia de descanso. Sempre estava de guarda, sempre estava ali.
Parecido a como estava ela com seu pai.
Por isso, sim, ela sabia exatamente quão cansado devia estar.
Na farmácia, entregou a receita ao farmacêutico, que nunca mantinha conversa com ninguém e esse dia tampouco rompeu a tradição. O macho foi para o fundo e retornou com seis caixas de ampolas de dopamina e um pouco de antídoto.
Depois de lhe entregar os medicamentos, deu volta no pôster que dizia, VOLTO EM 15 MINUTOS e saiu pela porta de vaivém do mostrador.
— Espera. — lhe disse, lutando por segurar a carga — Isto não pode estar certo.
O macho já tinha o cigarro e o isqueiro na mão.
— Está.
— Não, isto é… Onde está a receita?
Nenhuma fêmea tinha enfrentado fúria maior que aquela que enfrentou ela ao obstruir o caminho de um fumante que finalmente tinha alcançado a hora de seu descanso. Mas não lhe importava nem um pouco.
— Vá me trazer a receita.
O farmacêutico resmungou todo o caminho com o passar do mostrador, e logo se ouviu um excessivo ruído de papéis, como se talvez tivesse a esperança de poder começar um incêndio ao esfregar as receitas entre si.
— Despachar seis caixas de dopamina. — girou a receita para ela para que pudesse vê-la — Vê?
Ela se aproximou. Bom, certo, dizia seis caixas e não seis ampolas.
— O doutor sempre receita o mesmo a este paciente. Isso e o antídoto.
— Sempre?
A expressão do macho foi “menina me dá um tempo”, e lhe falou lentamente, como se ela não falasse o idioma correntemente.
— Sim. Geralmente é o doutor mesmo que vem procurar. Está satisfeita ou quer ir falar disto com Havers?
— Não… E obrigado.
— Muito castigo.
Voltou a atirar a receita sobre a pilha e apressou o passo para sair dali como se temesse que pudesse lhe ocorrer outra brilhante idéia para um projeto de investigação.
Que tipo de fodida enfermidade requeria cento e quarenta e quatro doses de dopamina? E o antídoto?
A não ser que Rehvenge fosse sair em uma loooooooga viagem fora da cidade. A um lugar hostil que tivesse uma quantidade de escorpiões ao estilo do filme A Múmia.
Ehlena caminhou pelo corredor para a sala de exame, equilibrando precariamente as caixas: assim que apanhava uma que estava caindo, tinha que ir atrás de outra. Golpeou à porta com o pé e logo ao girar o trinco quase faz cair sua carga como se fossem fichas de dominó.
— Isso é tudo? — perguntou Rehvenge em um tom severo.
E que mais queria, uma mala cheia?
— Sim.
Deixou que as caixas caíssem sobre a mesa e logo as arrumou rapidamente.
— Deveria lhe conseguir uma sacola.
— Está bem. Eu dou um jeito.
— Precisa de alguma seringa?
— Tenho muitas. — disse com tom irônico.
Desceu da maca de exame com cuidado e colocou o casaco de zibelina que alongou ainda mais a grande amplitude de seus ombros, até lhe fazer ter um aspecto ameaçador mesmo estando do outro lado da sala. Com o olhar fixo nela, pegou sua bengala e se aproximou devagar, como se estivesse inseguro com respeito a seu equilíbrio… E sua receptividade.
— Obrigado. — lhe disse.
Deus, a palavra era tão simples e tão freqüentemente dita e, entretanto, vinda dele, significava mais do que gostaria.
Na realidade, era menos significativa sua forma de expressá-lo que a expressão de seu rosto: havia certa vulnerabilidade nesse olhar ametista, enterrada muito profundamente.
Ou talvez não.
Talvez fosse ela que se sentisse vulnerável e estava procurando comiseração do macho que tinha provocado esse estado. E nesse momento se sentia muito débil. Com o Rehvenge de pé ao seu lado, recolhendo as caixas da mesa para ir pondo uma por uma nos bolsos ocultos nas dobras de seu casaco de zibelina, sentia-se nua apesar de estar com seu uniforme, desmascarada apesar de que não tinha tido nada ocultando seu rosto.
Afastou a vista, mas o único que via era essa visão.
— Cuide-se… — seu tom de voz era muito profundo — E como já disse, obrigado. Já sabe, por ter cuidado de mim.
— De nada. — disse à mesa de exame — Espero que tenha obtido o que necessitava.
— Algumas coisas em todo caso.
Ehlena não se virou até que ouviu o clique da porta ao fechar-se. Logo, proferindo uma maldição, sentou-se na cadeira que estava frente ao escritório e voltou a perguntar-se se devia ir ao encontro dessa noite. Não só devido a seu pai, mas também devido a…
Oh, bem. Essa era uma linha de pensamento muito construtiva. Por que não rechaçar a um doce menino perfeitamente normal devido a que se sentia atraída por um absoluto impossível de outro planeta onde se usava roupas que valiam mais que carros. Genial.
Se seguisse assim poderia ganhar o Prêmio Nobel de estupidez, uma meta que fixou em sua vida e que não podia esperar para ver cumprida.
Passeou os olhos pela sala enquanto tratava de fortalecer-se para voltar a pôr os pés sobre a terra… Até que ficaram fixos no cesto de papéis. Em cima de uma lata de Coca-Cola, havia um cartão de negócios cor creme feito uma bolinha parcialmente enrugada.
REHVENGE, FILHO DE REMPOON.
Debaixo só havia um número, sem nenhum endereço.
Agachou-se e o pegou, alisando-o contra a mesa. Ao percorrer a frente do cartão com a palma da mão algumas vezes, não encontrou nenhum desenho em relevo em sua superfície, unicamente uma leve depressão. Gravada. É obvio.
Ah, Rempoon. Conhecia esse nome, e agora encontrava sentido no parente próximo do Rehvenge. A pessoa que estava cotada, Madalina, era uma Escolhida renegada que tinha acolhido a outras para lhe dar orientação espiritual, uma amada fêmea de valor de quem Ehlena tinha ouvido falar, mas que nunca tinha conhecido pessoalmente. A fêmea se emparelhou com Rempoon, um macho de uma das linhagens mais antigas e proeminentes. Mãe. Pai.
Então esses casacos de zibelina não eram só uma demonstração de riqueza exibida por um novo-rico. Rehvenge procedia do lugar que Ehlena e sua família estavam acostumadas a formar parte, a glymera… O nível mais elevado da sociedade civil dos vampiros, os árbitros do bom gosto, o bastão da distinção… E o enclave mais cruel de sabichões do planeta, capazes de fazer com que os ladrões de Manhattan parecessem pessoas às quais poderia convidar para jantar.
Desejava-lhe sorte com esse grupo. Deus sabia que ela e sua família não tinham se dado bem com eles: seu pai tinha sido traído e expulso, sacrificado para que um ramo mais poderoso de sua linhagem pudesse sobreviver financeira e socialmente. E esse tinha sido o verdadeiro começo de sua ruína.
Ao sair da sala de exame, jogou o cartão de volta no cesto de papéis e recolheu o histórico médico de seu suporte. Depois de reportar-se com Catya, Ehlena se dirigiu à área de registro para cobrir à enfermeira que estava em seu descanso e ingressar no sistema as breves nota de Havers a respeito de Rehvenge e as receitas entregues.
Não havia menção à enfermidade subjacente. Mas talvez tivesse sido tratada durante tanto tempo que a referência tenha sido feita nos primeiros registros.
Havers não confiava nos computadores e fazia todo seu trabalho no papel, felizmente três anos atrás Catya tinha insistido em conservar uma cópia eletrônica de tudo e também tinha pedido que um grupo de doggens transferisse a totalidade dos históricos médicos de cada um dos pacientes ao servidor. E graças à Virgem Escriba por isso. Quando tinham mudado às instalações novas como resultado das incursões, o único que ficara eram os históricos eletrônicos dos pacientes.
Impulsivamente, percorreu a parte mais recente do histórico de Rehvenge. Nos últimos dois anos as doses de dopamina tinham se incrementando. E o antídoto também.
Saiu da sessão e se reclinou contra a cadeira do escritório, cruzando os braços sobre o peito e fixando a vista no monitor. Quando ativou o descanso de tela, apareceu uma chuva de estrelas que emanavam das profundidades do monitor à velocidade da luz da Millennium Falcon2[22].
Decidiu que ia a esse condenado encontro.
— Ehlena?
Levantou o olhar para Catya.
— Sim?
— Vai chegar um paciente em ambulância. TEA[23], dois minutos. Overdose, com substância desconhecida. Paciente entubado e com respiração assistida. Você e eu assistiremos.
Quando outro membro do pessoal apareceu para encarregar-se dos registros, Ehlena saltou da cadeira e saiu correndo pelo corredor atrás de Catya em direção às salas de emergência. Havers já estava ali, apressando-se a terminar o que parecia um sanduíche de presunto em pão de centeio.
No momento em que estava entregando o prato vazio a um doggen, o paciente entrou pelo túnel subterrâneo que comunicava com as garagens das ambulâncias. Os TEM[24] eram dois vampiros machos vestidos iguais aos paramédicos humanos, porque passar despercebidos era vital para seu encargo.
O paciente estava inconsciente, e permanecia com vida, só graças ao médico que estava junto a sua cabeça bombeando o respirador a um ritmo lento e constante.
— Seu amigo nos ligou, — disse o macho — e prontamente lhe deixou desacordado no beco frio próximo ao ZeroSum. As pupilas não respondem. A pressão arterial é de setenta e dois sobre trinta e oito. O pulso é de trinta e dois.
Que desperdício, pensou Ehlena enquanto se punha a trabalhar.
As drogas urbanas eram um mal totalmente isento de escrúpulos.

Do outro lado da cidade, na parte de Caldwell conhecida como Minimall Sprawlopolis[25], Wrath encontrava o apartamento do lesser com bastante facilidade. O complexo residencial no que se encontrava se chamava Hunterbred Farms[26], e as instalações de edifícios de dois andares de altura estavam decoradas com um motivo eqüino que era tão autêntico como as toalhas de plástico de um restaurante italiano barato.
Não existia nada parecido a uma raça de cavalos de caça. E a palavra fazenda não era habitualmente associada com cem unidades de dormitório embutidas entre uma concessionária Ford/Mercury e um supermercado. Agrário? Sim, com certeza. As extensões de grama estavam perdendo terreno na batalha contra o asfalto por uma margem de quatro a um e resultava evidente que o único lago que podia encontrar ali, tinha sido feito pelo homem.
A maldita coisa tinha borda de cimento como uma piscina, e a fina capa de gelo que o cobria era da cor da urina, como se houvesse um tratamento químico em ação.
Considerando a quantidade de humanos que viviam nas unidades, era surpreendente que a Sociedade Lessening pusesse suas tropas em um lugar tão conspícuo, mas talvez isto só fosse algo temporário. Ou possivelmente todo o puto lugar estivesse repleto de assassinos.
Cada edifício tinha quatro apartamentos agrupados ao redor de uma escada comum e os números engastados na parede exterior estavam iluminados do chão. Resolveu a provocação visual que apresentava utilizando o método, de comprovada qualidade, de toca e decifra. Quando encontrou uma fileira de dígitos em relevo que se parecia com oito um dois escritos em letra itálica, apagou as luzes de segurança com a mente e se desmaterializou para a parte superior das escadas.
O ferrolho da unidade oito um dois era frágil e foi fácil manipulá-lo com a mente, mas não dava nada por certo. De pé, encostado contra a parede, girou o trinco com forma de ferradura e abriu na porta só uma fresta.
Fechou seus inúteis olhos e escutou. Nenhum movimento, só o zumbido de um refrigerador. Considerando que seu ouvido era agudo o suficiente para ouvir a respiração de um camundongo, imaginou que estava seguro e logo depois de colocar uma estrela alojada na palma de sua mão, deslizou para dentro.
Havia boas probabilidades de que houvesse um sistema de segurança piscando em algum lado, mas não planejava ficar tempo suficiente para dançar com o inimigo. Além disso, embora aparecesse o assassino não poderia suscitar uma briga. O lugar fervia de humanos.
Em definitivo, ia procurar as jarras e ponto. Depois de tudo, a sensação de umidade que descia por sua perna não era devido a que tivesse pisado em um atoleiro de lodo na entrada. Estava sangrando dentro de sua bota por causa da batalha liberada no beco, assim, sim, se alguém que cheirasse a bolo de creme e coco misturado com xampu barato aparecesse, ele desapareceria.
Ao menos… Isso é o que havia dito a si mesmo.
Fechando a porta, Wrath inalou, longa e lentamente… E desejou poder fazer uma limpeza na pressão no interior do nariz e no fundo de sua garganta. E apesar, de que começou a fazer arcadas, as notícias eram boas: havia três aromas doces diferentes misturados no ar viciado o que significava que ali ficavam três lessers.
Enquanto se dirigia à parte de trás, onde os aromas enjoativos estavam mais concentrados, perguntava-se que demônios estava acontecendo. Os lessers raramente viviam em grupo porque brigavam entre eles... Que era o que acontecia quando só recrutava a maníacos homicidas. Demônios, o tipo de homens que o Omega escolhia não podia aplacar seu Michael Myers[27] interior só porque ocorrera à Sociedade economizar um pouco na renda.
Entretanto, podia ser que tivessem um Fore-lesser muito forte a cargo.
Depois das incursões do verão, era difícil acreditar que os lessers tivessem escassez de dinheiro, mas que outra razão poderia ter para consolidar as tropas? Por outro lado, os Irmãos, e Wrath tinham estado vendo coisas cada vez menos sofisticadas nas pistolas. Antes quando lutava com os assassinos tinham que estar preparado para qualquer tipo de modificação especial que tivesse saído ao mercado para qualquer tipo de arma. Ultimamente? Tinham lutado contra velhas navalhas escolares, nódulos de metal, e a semana passada até — gulp — uma fodida clava, todas armas baratas que não requeriam balas nem manutenção. E agora estavam brincando de The Walton’s aqui nas “Fazenda-fachada-de-Caçador”? Que merda estava acontecendo?
O primeiro dormitório que encontrou estava marcado por cheiro de perfumes, e encontrou duas jarras junto às camas de um lugar desprovidos de lençóis e mantas.
O seguinte cheirava também a uma variedade distinta de anciã… A isso e algo mais. Uma rápida inspiração disse a Wrath que se tratava de… Cristo, Old Spice[28].
Quem teria imaginado. Com a forma que esses imbecis cheiravam, como se fossem querer acrescentar algo à mistura…
Santa merda.
Wrath inalou profundamente, e fez com que seu cérebro filtrasse algo remotamente doce.
Pólvora.
Seguindo o picante aroma metálico que havia no ar, foi para um armário que tinha o tipo de portas finas que esperaria encontrar em uma casa de bonecas. Ao abri-las o eau d’ammo[29] floresceu, enquanto se agachava e media com as mãos a seu redor.
Caixas de madeira. Quatro. Todas fechadas com pregos.
Tirou conclusão que as armas que havia dentro definitivamente tinham sido disparadas, mas não recentemente. O que indicava que esta bem poderia ser uma compra SMC[30].
Não obstante ser de segunda mão não dava saber quem tinha sido o dono anterior.
Fosse como fosse, não ia deixar ali. O esconderijo ia ser usado pelo inimigo contra seus civis e seus irmãos, por isso era necessário fazer voar todo o apartamento antes de permitir que essas armas fossem utilizadas na guerra.
Mas informaria isto à Irmandade? Seu segredo seria revelado. O problema era, que levar essas caixas nas costas se por acaso só era uma situação de “seguro-como-não”? Não tinha carro, e não havia forma de se desmaterializar com esse tipo de peso nas costas embora mesmo se o separasse em cargas menores.
Wrath se afastou do armário e fez um inventário do cômodo usando o tato tanto quanto a vista. Oh, bem. À esquerda havia uma janela.
Proferindo uma maldição tirou seu celular e o abriu…
Alguém estava subindo a escada.
Ficou imóvel e fechando os olhos se concentrou ainda mais. Humano ou lesser?
Só um lhe preocupava.
Wrath se inclinou para um lado e deixou as duas jarras das que se apropriou em uma gaveta, encontrando, naturalmente, a terceira e um frasco de Old Spice. Sustentando na mão a calibre quarenta, firmou-se sobre seus shitkickers[31] e apontou a arma para o curto corredor, diretamente para a porta de entrada.
Houve um tinido de chaves, logo um “clang” como se lhe tivesse caído da mão.
A maldição foi de uma mulher.
Enquanto seu corpo se afrouxava, deixou que sua arma caísse sobre sua coxa. A Sociedade, igual à Irmandade, aceitava só machos em suas filas, assim que esse não era nenhum assassino jogando palitos chineses com as chaves.
Ouviu como fechava a porta do apartamento que estava em frente, e o repentino som surround da TV que alcançou um volume tão alto que pôde escutar a repetição do The Office[32].
Tinha gostado deste episódio. Era no que se perdia o taco de beisebol…
Alguns gritos chegaram até ele, gerados pela comédia da situação.
Sim. Agora estava voando o taco de beisebol.
Com a mulher certamente ocupada, voltou a enfocar-se, mas permaneceu onde estava, rezando para que o som de “bem-vindo-a-casa” fosse um tema que o inimigo ouvisse e seguisse seu caminho. Não obstante, ficar como uma estátua respirando levianamente não melhorou a proporção de lessers que havia no lugar. Uns quinze, talvez vinte minutos depois, ainda seguia rodeado de absolutamente nenhum assassino.
Mas não tinha sido uma perda total. Estava captando o agradável murmúrio de uma pequena parte da comédia, era a cena de Dwight e o taco de beisebol na cozinha do The Office.
Era hora de mover-se.
Chamou o Butch, deu ao Irmão o endereço, e disse ao polícia que conduzisse como se seu pé fosse feito de pedra. O certo era, Wrath queria tirar as armas dali antes que chegasse alguém. Mas além de seu irmão para ajudar a tirar as caixas rapidamente, Butch podia levá-las, e assim talvez Wrath pudesse ficar nas imediações pelo lapso de outra hora mais ou menos.
Para passar o tempo, revisou o apartamento, medindo as superfícies com as palmas das mãos em uma tentativa de encontrar computadores, telefones, ou mais condenadas armas.
Acabava de retornar ao segundo dormitório quando algo ricocheteou contra a janela.
Wrath voltou a desencapar sua quarenta e encostou as costas à parede próxima à janela. Com a mão, tirou o ferrolho e abriu a parte de vidro apenas uma fresta.
O acento de Boston do policial foi quase tão sutil como um alto-falante.
— Oi Rapunzel, vai deixar cair seu fodido cabelo?
— Shh, quer acordar os vizinhos?
— Como se fossem ouvir algo com o som dessa TV? Hey, esse é o episódio do taco de beisebol…
Wrath deixou Butch falando consigo mesmo, e voltando a guardar a pistola em seu quadril, abriu a janela amplamente, e logo se dirigiu ao armário. A única advertência que deu ao polícia enquanto fazia voar a caixa de noventa quilos de peso foi:
— Prepare-se, Effie.
— Jesus Bendi… — um grunhido interrompeu o juramento.
Wrath pôs a cabeça pela janela e sussurrou:
— Supõe-se que é um bom católico. Isso não foi uma blasfêmia?
O tom de Butch foi como se alguém tivesse urinado em sua cama.
— Acaba de me atirar com meio carro, sem mais advertência que uma fala da chata Sra. Doubtfire[33].
— Amadureça e aceite.
Wrath se encaminhou para o armário, enquanto o polícia amaldiçoava todo o caminho de ida para o Escalade, o qual tinha engenhado para estacionar debaixo de uns pinheiros.
Quando Butch retornou, Wrath lhe lançou outra.
— Faltam dois.
Ouviu-se outro grunhido e um falatório.
— Foda-me.
— Não nesta vida.
— Muito bem. Foda-se.
Quando a última caixa esteve embalada como um bebê dormindo nos braços de Butch, Wrath apareceu.
— Adeusinho.
— Não quer que te leve de volta à mansão?
— Não.
Houve uma pausa, como se Butch estivesse esperando que Wrath lhe informasse como tinha intenções de ocupar as poucas horas que ficavam da noite.
— Vá pra casa. — indicou ao polícia.
— O que digo aos outros?
— Que é um gênio e que encontrou as caixas com armas quando estava caçando.
— Está sangrando.
— Está começando a me encher que todos me digam isso.
— De acordo então, deixa de te comportar como um imbecil e vá ver a Doutora Jane.
— Acaso não me despedi de você já?
— Wrath…
Wrath fechou a janela, foi para a gaveta, e meteu as três jarras na jaqueta.
A Sociedade Lessening queria reclamar os corações de seus mortos tanto quanto os Irmãos, por isso nem bem um assassino se inteirava de que um de seus homens tinha caído, averiguavam o endereço do lesser e se dirigiam ali. Certamente algum dos bastardos que tinha matado essa noite tinha pedido reforços durante o processo. Tinham que estar cientes.
Tinham que vir.
Wrath escolheu a melhor posição defensiva, que era no dormitório do fundo, e apontou seu clique-clique-Bang-Bang[34] para a porta dianteira.
Não sairia dali até que fosse absolutamente necessário.


Capítulo 9


Nos subúrbios da cidade de Caldwell podia se encontrar fazendas ou bosques, e, além disso, havia duas variedades de fazendas, as leiteiras ou as que cultivavam trigo… Predominando as leiteiras, dado o curto período de desenvolvimento necessário. Os bosques eram também binários, e tinha para escolher entre os de pinheiros que precediam os flancos das montanhas, e os de carvalhos que levavam aos pântanos do Rio Hudson.
Sem importar a paisagem, campestre ou industrializado, encontra estradas que eram pouco transitadas, casas que distavam quilômetros umas das outras e, vizinhos que eram tão solitários e de gatilho fácil como qualquer solitário pudesse desejar.
Lash, filho de Omega, estava sentado a uma mesa dobrável de cozinha em uma cabana de um só cômodo situada em uma das áreas cobertas com bosques. Em frente a ele sobre a gasta superfície de pinheiro estavam estendido todos os registros financeiros da Sociedade Lessening que tinha sido capaz de encontrar, imprimir ou descarregar em seu computador portátil.
Isto era uma puta merda. Estendeu a mão e recolheu um extrato do Banco Evergreen que tinha lido uma dúzia de vezes. A maior conta da Sociedade tinha cento e vinte e sete mil, quinhentos e quarenta e dois dólares e quinze centavos. As demais, que estavam alojadas em outros seis bancos, incluindo o Glens Falls National e o Farrel Bank & Trust, tinham saldos entre vinte dólares e vinte mil.
Se isto era tudo que a Sociedade tinha, estavam balançando-se sobre a borda a ponto de desmoronar-se em bancarrota.
As incursões feitas durante o verão tinham produzido alguns bons benefícios em forma de uma pilhagem de antiguidades e prata, mas acessar a esses recursos era complicado porque implicava um monte de contato humano. E tinham se apropriado de algumas contas financeiras, mas, uma vez mais, extrair dinheiro dos bancos humanos era uma confusão complicada. Como tinha aprendido do modo mais duro.
— Querem um pouco mais de café?
Lash levantou o olhar até seu número dois e pensou que era um milagre que o senhor D ainda permanecesse com ele. Quando Lash tinha entrado pela primeira vez neste mundo, logo depois de ter renascido por obra de seu verdadeiro pai, o Omega, havia se sentido extraviado, havendo convertido o inimigo em sua família. O senhor D tinha sido seu guia, embora como todos os mapas de turistas, Lash tinha assumido que o bastardo deixaria de ter utilidade quando o novo terreno tivesse sido aprendido pelo condutor.
Não foi assim. O pequeno texano que tinha sido o instrutor de Lash era agora seu discípulo.
— Sim, — disse Lash — e que tal um pouco de comida?
— Sim, senhor. Conseguirei um pouco de bacon gordurento agora mesmo, e esse queijo que gosta.
O café foi servido generosa e lentamente na xícara de Lash. Em seguida lhe pôs açúcar, e a colher utilizada para mexer produziu um suave tinido. O senhor D teria limpado alegremente o traseiro de Lash se tivesse pedido, mas ele não era uma joaninha. O pequeno imbecil podia matar como ninguém no negócio, era o boneco Chucky dos assassinos. Grande cozinheiro de comida rápida, e além disso fazia panquecas altas, esponjadas como um travesseiro.
Lash consultou seu relógio. O Jacob & CO. Estava coberto de diamantes, e à luz tênue da tela do computador pareciam como mil pontos de luz. Mas a coisa era um falso substituto que tinha conseguido no EBay. Queria outro autêntico exceto... Jesus Cristo... Não podia permitir-se. Claro que tinha conservado todas as contas de seus “pais” depois de matar o casal de vampiros que lhe tinham criado como se fosse seu filho, mas embora houvesse uma boa quantidade de verdes dólares nesses sacos, era reticente a gastar algo disso em frivolidades.
Tinha faturas a pagar. Como as hipotecas, armas, munições, roupas, aluguel e arrendamento de carros. Os lessers não comiam, mas consumiam um montão de recursos, e o Omega não se preocupava com o efetivo. Mas claro, ele vivia no inferno e tinha a habilidade de conjurar algo do ar mesmo. De uma comida quente às capas Liberace com que gostava de cobrir seu negro e sombrio corpo.
Lash odiava admitir, mas tinha a sensação de que seu verdadeiro pai era um pouco folgado. Nenhum autêntico homem estaria totalmente preso nessa merda cintilante.
Ao elevar sua xícara de café, seu relógio brilhou e ele franziu o cenho.
Seja como for, era um símbolo de status.
— Seus meninos chegam tarde. — se queixou.
— Estão no caminho. — o senhor D se levantou e abriu a geladeira dos anos setenta. Que não só tinha uma porta que chiava e era da cor de uma azeitona podre, mas sim babava como um cão.
Isto era fodidamente ridículo. Precisavam modernizar suas guaridas. E senão todas, ao menos seu quartel general
Ao menos o café era perfeito, embora guardasse isso para si mesmo.
— Eu não gosto de esperar.
— Estão a caminho, não se preocupe. Três ovos na omelete?
— Quatro.
Enquanto uma série de rangidos e estalos se difundiam através da cabana, Lash golpeou ligeiramente a ponta de seu Waterman  sobre o resumo do Evergreen. Os gastos da Sociedade, incluindo as faturas de celulares, conexões de internet, aluguéis/hipotecas, armas, roupa, e carros giravam facilmente em torno de uns cinqüenta mil ao mês.
Quando se colocou pela primeira vez em seu novo papel, esteve endemoniadamente seguro de que alguém em suas filas estava cortando a maçã. Mas durante meses tinha estudado as coisas cuidadosamente, e não havia nenhum Kenneth Lay  que ele pudesse encontrar. Era uma simples questão de contabilidade, não de fraude de livros ou desvio: os custos eram mais altos que os lucros. E ponto.
Estava fazendo o que podia para armar a suas tropas, inclusive tinha chegado tão baixo para comprar quatro caixas de armas de motoqueiros que tinha conhecido na prisão durante o verão. Mas não era suficiente. Seus homens necessitavam algo melhor que Red Ryders reabilitados para acabar com a Irmandade.
E já que estava com a lista de desejos, precisava de mais homens. Tinha acreditado que os motoqueiros seriam um bom poço de recrutamento, mas tinham provado ser muito coesivos. Apoiando-se em seus entendimentos com eles, sua intuição lhe dizia que tinha que atrair a todos ou a nenhum... Porque estava claro como a merda que se escolhia, os escolhidos voltariam para sua casa-clube e contariam a seus colegas sobre seu novo entretenimento matando vampiros. E se recrutava a todos, depois correria o risco de que se rebelassem contra sua autoridade.
O recrutamento um por um ia ser a melhor estratégia, mas não era como se tivesse tempo para fazer nada disso. Entre as sessões de treinamento com seu pai — as quais, apesar de suas críticas ao vestuário de papai, estavam provando ser monstruosamente úteis — seu seguimento dos acampamentos de persuasão, saque de armazéns, e tentar conseguir que seus homens se concentrassem no trabalho que tinham entre mãos, não ficava nem sequer uma hora livre ao dia.
Assim que a merda se estava pondo crítica: para ser um bem-sucedido líder militar se requeriam três coisas, os recursos e os recrutas eram duas delas. E embora ser filho de Omega lhe proporcionava muitas vantagens, o tempo era o tempo, não se detinha por nenhum homem, nem vampiro, e tampouco por nenhuma semente do mal.
Considerando o estado das contas, sabia que tinha que começar com os primeiro recursos. Depois poderia ocupar-se dos outros dois.
O som de um carro estacionando junto à cabana lhe fez pôr a palma sobre uma quarenta e o senhor D foi pegar seu Magnum 357. Lash manteve seu ferro sob a mesa, mas o senhor D ficou todo fanfarrão com o seu, segurando a peça no alto com o braço estendido em uma linha reta desde seu ombro.
Quando ouviu o chamado, Lash disse afiadamente:
— Será melhor que seja quem acredito que é.
O lesser respondeu do modo correto.
— Sou eu, e o senhor A e seu encargo.
— Entre. — disse o senhor D, sempre tão bom anfitrião, apesar de que conservou sua 357 levantada e pronta para a ação.
Os dois assassinos que atravessaram a porta eram os últimos dos macilentos, o casal final de veteranos que tinham estado na Sociedade o suficiente para ter perdido sua coloração de cabelo e olhos original.
O humano que foi arrastado para dentro era um tipo mirrado de um metro e oitenta de altura sem nada particularmente interessante, um menino branco de vinte anos com um rosto comum e entradas que seriam um problema em outro par de anos. O aspecto de playboy, e a atitude de “quem lhe importa?” explicava além de toda dúvida por que se vestia como fazia: com uma jaqueta de couro com uma águia bordada à costas, uma camisa Fender Rock & Roll Religion, correntes pendurando dos jeans e tênis Ed Hardy.
Triste. Realmente triste. Era como pôr aros de vinte e quatro polegadas em um Toyota Camry. E se o menino estivesse armado? Sem dúvida estava com uma navalha Suíça que usava principalmente como palito de dentes.
Mas não necessariamente tinha que ser um lutador para ser de utilidade. Lash tinha desses. Deste PDM[35] necessitava algo mais.
O homem olhou à boas-vindas oferecida pela Magnum do senhor D e olhou para trás, em direção à porta, como se perguntando se poderia correr mais rápido que uma bala. O senhor A resolveu a questão fechando a porta com todos eles dentro e ficando diante da saída.
O humano olhou o Lash e franziu o cenho.
— Hey... Conheço você. Da prisão.
— Sim, claro. — Lash permaneceu sentado e sorriu um pouco — Então, quer saber os prós e os contras desta reunião?
O humano tragou e voltou a concentrar-se no canhão do senhor D.
— Sim. Claro.
— Foi fácil de encontrar. Tudo o que meus homens tiveram que fazer foi ir ao Screamer's e esperar um momento e... Aqui está. — Lash se recostou em sua cadeira e o assento de vime rangeu. Quando o olhar do humano se moveu inquieto, teve a tentação de lhe dizer que se esquecesse do som e se preocupasse com a quarenta que tinha debaixo da mesa apontada às jóias da família — Você se manteve fora de problemas desde que te vi na prisão?
O humano sacudiu a cabeça e disse:
— Sim.
Lash riu.
— Quer tentar de novo? Não está em sincronia.
— Quero dizer, ainda me mantenho em meu negócio, mas não me pegaram.
— Bom, bem. — quando os olhos do homem voltaram a saltar para o senhor D, Lash riu — Se eu fosse você, ia querer saber por que me trouxeram aqui.
— Ah... Sim. Isso seria genial.
— Minhas tropas estiveram lhe observando.
— Tropas?
— Tem um negócio firme na cidade.
— Ganho um bom dinheiro.
— Você gostaria de fazer mais?
Agora o humano olhou ao Lash, com um olhar ávido e lisonjeador nos olhos.
— Quanto mais?
O dinheiro era realmente um grande motivador, não?
— Faz bem para um vendedor em pequenas quantidades, mas neste momento é de pouca subida. Felizmente para você, estou de humor para fazer um investimento em alguém como você, alguém que necessite um empurrão para passar ao nível seguinte. Quero que seja algo mais que um vendedor em pequenas quantidades, quero te converter em um intermediário com as pessoas importantes.
O humano levou uma mão ao queixo e a desceu por seu pescoço como se tivesse que despertar seu cérebro massageando a garganta. No silêncio, Lash franziu o cenho. Os nódulos do tipo estavam esfolados e faltava a pedra do anel barato do Instituto Secundário de Caldwell.
— Isso parece interessante. — murmurou o humano — Mas... Tenho que pensar um pouco.
— Como não. — cara, se esta era uma tática negociadora, Lash estava mais que preparado para assinalar que havia outros cem distribuidores menores que saltariam ante este tipo de trato.
Logo lhe faria um gesto com a cabeça ao senhor D e o assassino procederia a colocar uma bala na jaqueta de águia embaixo das exageradas entradas.
— Eu, ah, não posso voltar a Caldie[36]. Durante um tempo.
— Por quê?
— Não está relacionado com a distribuição de drogas.
— Tem algo a ver com seus nódulos esfolados? — o humano escondeu rapidamente o braço depois disso — Foi o que pensei. Pergunta: se tem que te manter na clandestinidade, que demônios fazia no Screamer's esta noite?
— Digamos que queria fazer uma compra para mim mesmo.
— É idiota se tomar o que vende. — e não um bom candidato para o que Lash tinha em mente. Não queria fazer negócios com um idiota.
— Não se tratava de drogas.
— Uma nova identidade?
— Talvez.
— Conseguiu o que procurava? No clube?
— Não.
— Posso te ajudar com isso. — a Sociedade tinha sua própria plastificadora, pelo amor de Deus — E aí vai minha proposta. Meus homens, os que tem a sua esquerda e atrás de você, trabalharão contigo. Se não puder ser o homem que dá a cara na rua, pode conseguir a mercadoria e eles podem movê-la depois de que lhes mostre como funciona tudo. — Lash olhou o Senhor D — Meu café da manhã?
O Senhor D deixou a arma junto ao chapéu de cowboy que tirava só quando estava dentro de casa e depois avivou a chama sob uma caçarola que havia sobre o pequeno fogão.
— De que tipo de dinheiro estamos falando? — perguntou o homem.
— Cem dos grandes como primeiro investimento.
Os olhos do homem pareciam máquinas registradoras, todo “ding-ding-ding” de excitação.
— Bom... Merda, isso é suficiente para começar o jogo. Mas quanto há para mim?
— Repartiremos os lucros. Setenta para mim. Trinta para você. De todas as vendas.
— Como sei que posso confiar em você?
— Não sabe.
Quando o Senhor D pôs um pouco de bacon ao fogo, o chiado e o cheiro encheu a casa e Lash sorriu ante o som.
O humano olhou a seu redor, e virtualmente se podiam ler seus pensamentos: cabana no meio do nada, quatro tipos contra ele, ao menos um dos quais tinha uma arma capaz de converter uma vaca em hambúrguer.
— Bem. Sim. De acordo.
O que era, é obvio, a única resposta.
Lash pôs a trava em sua arma, e quando pousou sua automática sobre a mesa, os olhos do humano se arregalaram.
— Vamos, como não pensou que te deixava coberto? Por favor.
— Sim. Ok. Certo.
Lash se levantou e rodeou a mesa em direção ao homem. Enquanto estendia a mão, disse:
— Como se chama, Jaqueta de Águia?
— Nick Carter.
Lash riu com força.
— Tenta de novo, imbecil. Quero o autêntico.
Bob Grady. Mas me chamam de Bobby G.
Apertaram as mãos e Lash apertou forte, esmagando seus nódulos machucados.
— Alegro-me alegro de fazer negócios com você, Bobby. Eu sou Lash. Mas pode me chamar de Deus.
******
John Matthew examinou as pessoas da área VIP do ZeroSum não porque estivesse procurando paquera, como Qhuinn fazia, nem porque estivesse perguntando com quem Qhuinn ia querer paquerar, como Blay fazia.
Não, John tinha suas próprias fixações.
Normalmente Xhex aparecia a cada meia hora, mas fazia um momento seu segurança tinha se aproximado e ela partiu com pressa, e desde esse momento tinha desaparecido.
Quando uma ruiva passou brandamente junto a eles, Qhuinn se moveu no banco, sua bota de combate tamborilando sob a mesa. A mulher humana media ao redor de um metro e setenta e tinha as pernas de uma gazela, longas, frágeis e encantadoras. E não era uma profissional... Ia de braço com um homem com aspecto de homem de negócios.
Isso não significava que não se entregasse por dinheiro, mas o fazia em uma modalidade mais legal chamada relação.
— Merda. — resmungou Qhuinn, seus olhos desiguais eram os de um predador.
John deu um tapinha na perna de seu colega e na Linguagem de Sinais Americano disse:
Olhe, por que não vai atrás com alguém. Está me enlouquecendo com esse estalo continuado.
Qhuinn assinalou a lágrima que tinha tatuada sob o olho.
— Supõe-se que não devo te deixar. Nunca. Esse é o ponto de ter um ahstrux nohstrum.
E se não fizer sexo logo, vai ser inútil.
Qhuinn observou como a ruiva arrumava a saia curta para poder sentar-se sem desdobrar o que sem dúvida era nada menos que uma depilação brasileira com cera (assim chamada, pois é uma depilação quase total) .
A mulher passeou a vista pelo lugar sem demonstrar interesse... Até que chegou ao Qhuinn. No momento em que lhe viu, seus olhos se iluminaram como se tivesse encontrado uma promoção na Neiman Marcus. Não lhe surpreendeu. A maioria das mulheres e fêmeas fazia o mesmo, e era compreensível. Qhuinn se vestia simplesmente, mas seu estilo era o de um cara duro: camisa negra metida em Z-Brands azuis escuro. As botas negras de combate. Piercings de metal negro percorrendo toda a longitude de uma de suas orelhas. O cabelo penteado formando picos negros. E recentemente tinha furado o lábio inferior no centro colocando um aro negro.
Qhuinn parecia o tipo de indivíduo que mantinha sua jaqueta de couro no colo porque levava armas nela.
O que fazia.
— Não, estou genial. — resmungou Qhuinn antes de terminar sua Corona — As ruivas não me caem bem.
Blay afastou o olhar bruscamente, assumindo um repentino e fingido interesse por uma morena. A verdade era que estava interessado em uma só pessoa, e essa pessoa lhe tinha rechaçado tão sólida e amavelmente como só um melhor amigo podia.
Era evidente, muito claro e bem certo que ao Qhuinn não fossem as ruivas.
Quando foi a última vez que esteve com alguém? Gesticulou John.
— Não sei. — Qhuinn pediu por gestos outra rodada de cervejas — Um tempo.
John tentou recordar e se deu conta que não tinha sido desde... Cristo, do verão, com essa garota da Abercrombie & Fitch. Considerando que Qhuinn costumava fazê-lo ao menos com três pessoas em uma noite, isso era um inferno de seca, e era difícil imaginar que uma dieta restrita a base de clímax conseguidos mediante masturbação fosse contentar. Merda, inclusive quando se alimentava das Escolhidas, tinha estado mantendo as mãos para si mesmo, apesar do fato de que suas ereções cresciam até chegar a lhe provocar suores frios. Por outro lado, os três se alimentavam da mesma fêmea ao mesmo tempo, e por muito que Qhuinn não tivesse problema algum em ter audiência, conservava as calças em seu lugar por deferência a Blay e John.
Sério, Qhuinn, que demônios vai me acontecer? Blay está aqui.
— Wrath disse que sempre contigo. Assim devo estar. Sempre. Contigo.
Acredito que está levando isso muito a sério. Como que, muito a sério.
Do outro lado da seção VIP, a gazela ruiva se acomodou em seu assento de forma que os atributos que tinha mais abaixo da cintura se desdobrassem completamente, suas suaves pernas emergiram de debaixo da mesa e ficaram a plena vista de Qhuinn.
Esta vez quando o cara se moveu, foi bastante óbvio que estava reacomodando algo duro em seu colo. E não era uma de suas armas.
Pelo amor de Deus, Qhuinn, não digo que tenha que ser ela. Mas temos que conseguir que alguém se ocupe de...
— Disse que estava bem. — interveio Blay — Deixe-o em paz.
— Há um modo. — os olhos desiguais de Qhuinn se voltaram para John — Poderia vir comigo. Não é que vamos fazer nada, sei que não vai. Mas você também poderia conseguir alguém. Se quiser. Poderíamos fazê-lo em um dos banheiros privados, e você poderia ficar com o reservado e dessa forma poderia ver você. Você tem a palavra, ok? Não voltarei a puxar o assunto.
Enquanto Qhuinn afastava o olhar com atitude despreocupada e casual, se fazia difícil não simpatizar com o cara. Tanto a consideração, como a rudeza, vinha em um montão de variedades diferentes, e a gentil oferta de ter uma agradável sessão de sexo por partida dupla era uma espécie de amabilidade: Qhuinn e Blay sabiam o motivo pelo qual apesar de já ter passado oito meses da transição de John, não tinha estado com uma fêmea. Sabiam o motivo e ainda assim seguiam saindo com ele.
Deixar cair à bomba que John tinha estado ocultando tinha sido a patada final de Lash antes de morrer.
Tinha sido a razão pela que Qhuinn tinha matado ao estúpido.
Quando a garçonete trouxe uma nova rodada de cervejas, John olhou à ruiva e, para sua surpresa, lhe sorriu quando lhe pegou olhando.
Qhuinn riu baixinho.
— Possivelmente não sou o único que gosta.
John levou a Corona à boca e tomou um gole para ocultar seu rubor. A questão era, que desejava ter sexo e, como Blay, desejava-o com alguém em particular. Mas tendo perdido já uma ereção diante de uma fêmea nua e disposta, não tinha nenhum apuro em tentar de novo, especialmente não com a pessoa que lhe interessava.
Demônios. Não. Xhex não era o tipo de fêmea diante da qual quisesse nem sequer te engasgar com uma asa de frango. Desinflar porque foi muito covarde para entrar em ação? Seu ego nunca voltaria a ser o mesmo...
Uma onda de inquietação na multidão fez com que deixasse de lado todos os “pobrezinho de mim” e se endireitasse no assento.
Um cara de olhos selvagens estava sendo escoltado através da área VIP por dois enormes seguranças, cada um com uma mão sobre a parte superior de seu braço. Estava sapateando sobre seus sapatos caros, com seus pés mal tocando o chão, e sua boca dançava de igual modo, parecendo uma imitação de Fred Astaire, embora John não pudesse ouvir o que estava dizendo por cima da música.
O trio entrou no escritório privado da parte de trás.
John acabou sua Corona e olhou fixamente a porta enquanto se fechava. Ocorriam coisas más às pessoas que eram levadas ali. Especialmente se eram arrastados por um par de seguranças.
Repentinamente, um silêncio atenuou todo o bate-papo da área VIP, fazendo com que a música parecesse estar muito alta.
John soube quem era antes de virar a cabeça.
Rehvenge tinha entrado pela porta lateral, sua entrada foi silenciosa, mas tão óbvia como o estalo de uma granada. No meio de seus clientes bem vestidos com suas bonecas de braço, as garotas com seus encantos expostos para ser comprados e as garçonetes correndo com as bandejas, ele diminuía o tamanho do espaço, e não só porque era um macho enorme vestido com um sobretudo de zibelina, mas sim pela forma em que olhava a seu redor.
Seus brilhantes olhos cor ametista viam todos e não se preocupavam com ninguém.
Rehv... Ou o Reverendo, como lhe chamava a clientela humana... Era um senhor da droga e um alcoviteiro que não dava uma merda pela vasta maioria. O que significava que era capaz de, e freqüentemente fazia, algo que lhe desse um real ganho.
Especialmente a caras do estilo do bailarino.
Caralho, a noite ia terminar mal para esse cara.
Quando Rehv passou a seu lado, saudou com a cabeça ao John e os meninos, e eles lhe devolveram a saudação, elevando suas Coronas em deferência. A questão era que Rehv era uma espécie de aliado da Irmandade, tendo sido nomeado leahdyre do conselho da glymera depois dos assaltos... Porque era o único desses aristocratas com culhões para permanecer em Caldwell.
Assim que lhe importava muito poucas coisas e estava a cargo de um diabólico montão de coisas.
John girou para a corda de veludo, sem sequer incomodar-se em dissimular. Certamente isto significava que Xhex tinha que estar...
Apareceu na porta da seção VIP, com o aspecto de um trilhão de dólares, ao menos em sua opinião: quando se inclinou ao redor de um dos seguranças para que o cara pudesse lhe sussurrar ao ouvido, seu corpo estava tão tenso que os músculos de seu estômago se insinuavam através da camiseta sem mangas que lhe ajustava como uma segunda pele.
Falando de revolver-se no assento, agora era ele que tinha problemas de posição.
Entretanto, enquanto ela caminhava para o escritório privado de Rehv, sua libido se gelou. Nunca tinha sido do tipo que sorria muito, mas quando passou a seu lado, estava sombria. Igual ao Rehv.
Evidentemente, estava acontecendo algo, e John não pôde evitar o impulso ao estilo “cavalheiro-de-armadura-brilhante” que acendeu em seu peito. Mas vamos, Xhex não precisava de um salvador. Por acaso era do tipo de pessoa que estaria no cavalo, lutando contra o dragão.
— Parece um pouco apertado aí. — disse Qhuinn baixinho quando Xhex entrou no escritório — Mantém minha oferta em mente, John. Não sou o único que sofre, verdade?
— Se me desculpam. — disse Blay, ficando em pé e pegando sua Red Dunhills e seu isqueiro dourado — Preciso de um pouco de ar fresco.
O macho tinha começado a fumar recentemente, um hábito que Qhuinn desprezava apesar do fato de que os vampiros não podiam desenvolver câncer. Entretanto, John o entendia. A frustração devia se resolver de algum modo, e só até certo ponto podia liberá-la a sós em seu dormitório ou com seus amigos na sala de musculação.
Demônios, todos eles tinham ganhado músculos nos últimos três meses, seus ombros, braços e coxas tinham ultrapassado a sua roupa. Fazia que um cara pensasse em dar razão aos lutadores a respeito de não ter nada de sexo antes dos torneios. Se seguissem ganhando músculos assim, iam acabar parecendo uma turma de lutadores profissionais.
Qhuinn baixou o olhar a sua Corona.
— Quer sair daqui? Por favor, me diga que quer sair daqui.
John desviou o olhar para a porta do escritório de Rehv.
— Ficamos. — resmungou Qhuinn enquanto fazia gestos à garçonete, que se aproximou do momento — Vou precisar de outra destas. Ou talvez uma caixa.

 

 


                                  CONTINUA