Irmandade da "Adaga Negra"
Capítulo 10
Rehvenge fechou a porta de seu escritório e sorriu tensamente, para evitar que suas presas aparecessem. Entretanto, ainda sem a exibição dos caninos, para o recolhedor de apostas espremido entre Trez e iAm foi suficiente para saber que estava em sérios problemas.
— Reverendo o que é tudo isto? Por que me chama assim? — disse o tipo precipitadamente — Estava me ocupando de meu negócio, para o senhor e de repente estes dois...
— Ouvi algo interessante sobre você. — disse Rehv, rodeando seu escritório.
Quando estava se sentando, Xhex entrou no escritório, com uma expressão dura nos olhos cinza. Após fechar a porta, apoiou as costas contra ela, sendo melhor que qualquer Master Lock quando se tratava de manter aos recolhedores de apostas trapaceiros dentro e longe dos olhos curiosos de fora.
— É mentira, é uma absoluta mentira...
— Você não gosta de cantar? — Rehv se recostou em sua cadeira, seu corpo intumescido encontrando uma posição familiar atrás da mesa de escritório negra — Não foi você que deu um pequeno espetáculo a La Tony Bennett para a multidão do Sal's a outra noite?
O recolhedor de apostas franziu o cenho.
— Bom, sim... Tinha alguns ouvintes.
Rehv fez um gesto com a cabeça a iAm, quem como sempre, tinha o rosto inexpressivo. O cara nunca demonstrava suas emoções, exceto quando se tratava de um cappuccino perfeito. Então podia vê-lo radiante de alegria.
— Meu companheiro aqui... Diz que cantou realmente bem. Que verdadeiramente agradou à multidão. O que cantou, iAm?
A voz de iAm era como a de James Earl Jones, baixa e profunda.
— Três Moedas na Fonte.
O recolhedor de apostas subiu as calças de um puxão em um gesto orgulhoso.
— Tenho habilidade. Tenho ritmo.
— Assim é um tenor como o bom e prezado senhor Bennett, não é? — Rehv tirou o casaco com um encolhimento de ombros — Os tenores são os meus favoritos.
— Sim. — o recolhedor de apostas olhou aos seguranças — Olhe, se importaria em me dizer o que é tudo isto?
— Quero que cante para mim.
— Quer dizer, como em uma festa? Faria qualquer coisa por você, chefe, já sabe. Tudo o que tem que fazer é pedir... Quero dizer, isto não era necessário.
— Não em uma festa, embora nós quatro desfrutemos ouvindo sua atuação. É para me compensar pelo que me roubou o último mês.
O rosto do recolhedor de apostas empalideceu.
— Eu não roubei...
— Sim, fez. Olhe, iAm é um contador fantástico. A cada semana, dá seus informes. Quanto, em que equipes, e que extensão. Acredita que não confere as contas? Apoiado nos informes do último mês deveria ter pagado... Qual era a cifra, iAm?
— Cento e setenta e oito mil quatrocentos e oitenta e dois.
— Isso mesmo. — Rehv fez um rápido gesto com a cabeça em sinal de agradecimento a iAm — Mas em vez disso veio com... Quanto?
— Cento e trinta mil novecentos e oitenta e dois. — replicou rapidamente iAm.
O recolhedor começou a falar imediatamente.
— Está enganado...
Rehv sacudiu a cabeça.
— Adivinha de quanto é a diferença... Embora não é como se já não soubesse. iAm?
— Quarenta e sete mil e quinhentos.
— O que casualmente é igual à soma de vinte e cinco dos grandes mais um interesse de noventa por cento. Não é assim, iAm? — quando o segurança assentiu com a cabeça uma vez, Rehv golpeou o chão com sua bengala e ficou em pé — E resulta que esse é o interesse de cortesia aplicado pela máfia de Esquente. Então Trez se dedicou a escavar um pouco, e o que foi que averiguou?
— Meu amigo Mike diz que emprestou vinte e cinco dos grandes a este cara aqui justamente antes do Rose Bowl12.
Rehv deixou sua bengala sobre a cadeira e rodeou a mesa do escritório, mantendo uma mão sobre a superfície para estabilizar-se. Os seguranças voltaram a ficar em posição, ladeando ao recolhedor de apostas, voltando a segurá-lo pela parte superior dos braços.
Rehv se deteve justamente diante do homem.
— Assim perguntarei isso uma vez mais, acredita que ninguém comprovaria as contas?
— Reverendo! Chefe... Por favor, ia lhe devolver isso! Por favor... Machucariam-me...
— Sim, é claro que vai fazê-lo. E vai me pagar o que cobro dos bastardos que tentam brincar disso comigo. Um castigo cento e cinqüenta por cento de interesse ao final deste mês ou sua esposa vai receber por correio seus pedacinhos. Oh, e está despedido.
O homem estalou em lágrimas, e não eram do tipo das de crocodilo. Eram autênticas, da classe que fazia que o nariz de um homem avermelhasse e os olhos inchassem.
— Por favor... iAm me danificar...
Rehv estendeu a mão de repente e a fechou entre as pernas do tipo. O uivo, quase um guincho, lhe indicou que embora ele não pudesse sentir nada, o recolhedor de apostas podia, e que a pressão estava sendo exercida no ponto exato.
— Não gosto que me roubem. — disse Rehv no ouvido do homem — Eu fico de saco cheio. E, se acredita que o que a máfia te faria é mau, garanto que sou capaz de algo pior. Agora... Quero que cante para mim, filho da puta.
Rehv retorceu com força e o tipo gritou com tudo o que tinha, o som foi alto e agudo, e ecoou na sala do andar de baixo. Quando o chiado começou a desvanecer-se porque o recolhedor de apostas tinha esgotado seu fornecimento de ar, Rehv cedeu e lhe deu oportunidade de refrescar as cordas vocais com um e outro ofego. E depois disso...
O segundo grito foi mais alto e ruidoso que o primeiro, provando que os vocalistas o faziam melhor depois de um pequeno aquecimento.
O recolhedor se sacudiu e saltou entre os seguranças, e Rehv seguiu apertando, seu lado symphath observando absorto, como se fosse o melhor espetáculo da televisão.
O homem demorou ao redor de nove minutos para perder a consciência.
Depois de ter apagado, Rehv o soltou e voltou para sua cadeira. Fez um gesto com a cabeça em direção a Trez e iAm e estes tiraram o humano pela porta de trás, para o beco, onde o frio o reviveria finalmente.
Quando partiram, Rehv teve uma súbita imagem de Ehlena balançando todas aquelas caixas de dopamina em seus braços enquanto entrava na sala de exame. O que pensaria dele se soubesse o que fazia para manter seu negócio em movimento? O que diria se soubesse que, quando disse ao recolhedor de apostas que ou pagava ou sua esposa receberia pacotes de FedEx que gotejariam sangue sobre os degraus de sua entrada, não tinha sido apenas uma ameaça? O que faria se soubesse que estava completamente preparado para cortá-lo ele mesmo em pedacinhos ou ordenar a Xhex, Trez ou iAm que o fizessem por ele?
Bom, já tinha a resposta, não?
Sua voz, essa clara e encantadora voz, voltou a ressonar em sua mente: Será melhor que guarde isto. Para alguém que vá utilizar alguma vez.
Certamente, ela não conhecia os detalhes, mas era esperta o bastante para rechaçar seu cartão de visita.
Rehv se concentrou em Xhex, que não se moveu de sua posição contra a porta de entrada. Quando o silêncio se prolongou, ela baixou o olhar ao tapete negro de pelo curto, desenhando um círculo ao redor de si mesma com o salto de sua bota.
— O que foi? — perguntou. Quando ela não levantou o olhar, pressentiu sua luta para recompor-se — Que merda aconteceu?
Trez e iAm voltaram a entrar no escritório e se colocaram contra a parede negra que estava frente à mesa de escritório de Rehv. Cruzaram os braços diante de seus enormes peitos e mantiveram a boca fechada.
O silêncio era algo característico nas Sombras... Mas combinado com a expressão tensa de Xhex e a rotina semicircular que estava realizando com essa bota, queria dizer que a merda era profunda.
— Fale. Já!
Os olhos de Xhex voaram aos seus.
— Chrissy Andrews está morta.
— Como? — embora soubesse.
— Golpeada e estrangulada até morrer em seu apartamento. Tive que ir ao necrotério para identificar o corpo.
— Filho da puta!
— Ocuparei-me do assunto. — Xhex não estava pedindo permissão, e sem importar o que ele dissesse, ia atrás desse pedaço de merda do namorado — E o farei rápido.
Tecnicamente falando, Rehv estava no comando, mas, neste assunto não ia se interpor em seu caminho. Para ele, suas garotas não eram somente uma fonte de ganhos... Eram empregadas pelas quais se preocupava e com as quais se identificava intimamente. Assim, se alguém machucava a alguma, fosse um cliente, um namorado ou um marido, tomava um interesse pessoal na vingança.
As putas mereciam respeito, e as suas o conseguiam.
— Ensina-o uma lição primeiro. — grunhiu Rehv.
— Não se preocupe com isso.
— Merda... É minha culpa. — murmurou Rehv enquanto estendia o braço para frente e recolhia seu abridor de cartas. A coisa tinha forma de adaga e também estava tão afiada como uma arma — Deveríamos tê-lo matado antes.
— Ela parecia estar melhor.
— Talvez somente escondesse melhor.
Os quatro ficaram em silêncio um momento. Em sua profissão sofriam um montão de perdas — que as pessoas acabassem mortas não era nenhuma novidade — mas na maioria dessas mortes, ele e sua equipe eram os sinais negativos da equação: eles eram os que faziam com que os outros desaparecessem. Perder a um dos seus nas mãos de algum outro ficava mal.
— Quer ouvir as novidades desta noite? — perguntou Xhex.
— Ainda não. Também trago uma pequena notícia para compartilhar. — forçando sua cabeça a trabalhar, olhou Trez e iAm — O que estou a ponto de dizer revolverá bastante as coisas, e quero dar a ambos a oportunidade de partir. Xhex, você não tem essa opção. Sinto muito.
Trez e iAm permaneceram imóveis, o que não o surpreendeu absolutamente. Trez ainda lhe mostrou o dedo maior. Isso tampouco foi uma surpresa.
— Fui à Connecticut. — disse Rehv.
— Também foi à clínica. — acrescentou Xhex — Por quê?
O GPS era um saco algumas vezes. Era difícil ter um pouco de privacidade.
— Esquece a porra da clínica. Escutem, preciso que façam um trabalho para mim.
— Um trabalho como...?
— Pensa no namorado de Chrissy como em um aperitivo antes do jantar.
Isto arrancou um sorriso frio de Xhex.
— Conte.
Rehv olhou fixamente a ponta de seu abridor de cartas, pensando em que ele e Wrath riram porque ambos tinham um. Depois das incursões do verão, o rei tinha lhe feito uma visita, para discutir assuntos do conselho, e tinha visto a coisa sobre o escritório. Wrath tinha brincado a respeito de que em seu trabalho diário ambos administravam por meio da espada, ainda quando tinham uma pluma entre as mãos.
Não se afastava muito da verdade. Embora Wrath tivesse a moralidade de seu lado e Rehv só o interesse próprio.
De maneira que não tinha empregado um ponto de vista moral ao tomar a decisão e escolher o caminho a seguir. Tinha-o feito, como sempre, apoiado no que mais lhe convinha.
— Não vai ser fácil. — murmurou.
— O divertido nunca é.
Rehv se concentrou na ponta afiada do abridor de cartas.
— Este... Não é por diversão.
Ao se aproximar o fim da noite e com seu turno a ponto de terminar, Ehlena se sentia inquieta. Hora do encontro. Hora de decidir. Supunha-se que em vinte minutos o macho viria à clínica para recolhê-la.
Deus! Divagava novamente.
Seu nome era Stephan. Stephan, filho de Tehm, embora não conhecia nem a ele nem a sua família. Era um civil, não um aristocrata, e tinha ido ali com seu primo, que machucara a mão quando cortava lenha para o fogo. Enquanto preenchia a papelada de alta, falara com Stephan de todas essas coisas das que falam os solteiros: gostava de Radiohead, ela também. Gostava de comida da Indonésia, ele também. Ele trabalhava no mundo humano, programando computadores, graças à comunicação virtual. Ela era enfermeira, algo óbvio não? Ele vivia em casa com seus pais, era o único filho de uma sólida família civil... Ou ao menos tinha divulgado como sendo sólidos civis, seu pai trabalhava para empreiteiros vampiros, sua mãe ensinava a Antiga Língua por conta própria.
Agradável, normal. Confiável.
Levando em consideração o que os aristocratas tinham feito à saúde mental de seu pai, lhe ocorreu que tudo isso parecia uma boa aposta, e, quando Stephan a tinha convidado para tomar um café, havia dito que sim, tinham combinado para essa noite, e tinham trocado os números de celulares.
Mas, o que ia fazer? Chamá-lo e dizer que não podia por causa de sua situação familiar? Ir de todos os modos, e preocupar-se com seu pai?
Entretanto, um rápido telefonema para Lusie do vestuário, trouxe notícias favoráveis: seu pai Ehlena teve uma longa sesta e agora estava trabalhando tranqüilamente nos papéis de seu escritório.
Meia hora de jantar. Talvez dividir uma sobremesa. Que mal podia fazer?
Quando ao fim decidiu ir, não apreciou a imagem que relampejou em sua mente. Agora que acabava de decidir que iria a um encontro com um macho, não deveria estar pensando no peito nu de Rehv com essas estrelas vermelhas tatuadas.
O que precisava era se concentrar em tirar o uniforme e em melhorar sua aparência, ao menos nominalmente.
Entre o pessoal do dia que entrava e os que trabalharam durante a noite que saiam, trocou o uniforme pela saia e o suéter que trouxera...
Tinha esquecido os sapatos.
Genial. Os sapatos brancos com sola de borracha não eram muito sexy.
— O que acontece? — disse Catya.
Girou-se.
— Alguma possibilidade de que estes dois botes brancos em meus pés não arruínem totalmente esta roupa.
— Hã... Honestamente? Não estão tão mal.
— Não mente nada bem.
— Ao menos tentei.
Ehlena guardou o uniforme em sua mochila, refez o penteado, e comprovou a situação da maquiagem. É obvio, tinha esquecido o delineador de olhos e também o rímel, assim, como quem diz, a cavalaria ficou sem cavalos nesse flanco.
— Alegro-me de que saia. — disse Catya enquanto apagava a lista de nomes do horário noturno da lousa branca.
— Considerando que é minha chefe, isso me põe nervosa. Bem preferiria que se alegrasse por ver-me entrar na clínica.
— Não, não se trata do trabalho. Alegro-me que esta noite saia para se divertir.
Ehlena franziu o cenho e olhou ao seu redor. Por algum milagre, estavam sozinhas.
— Quem diz que vou a alguma parte que não seja para casa?
— Uma fêmea que vai para casa não troca o uniforme aqui. E não se preocupa de como estão os sapatos com a saia. Economizarei o “quem é ele”.
— É um alívio.
— A menos que queira compartilhá-lo voluntariamente?
Ehlena riu em voz alta.
— Não, prefiro mantê-lo em privado. Mas, se chegar a alguma parte... Desembucharei.
— Obrigarei que cumpra sua palavra. — Catya foi a seu armário e simplesmente ficou olhando.
— Está bem? — disse Ehlena.
— Odeio esta maldita guerra. Odeio receber os mortos e ver em seus rostos o quanto sofreram. — Catya abriu o armário e se ocupou em tirar sua parka — Sinto, não queria ser desmancha-prazeres.
Ehlena se aproximou e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Sei exatamente como se sente.
Houve um momento de entendimento entre elas durante o qual sustentaram seus olhares. E, logo Catya aclarou a garganta.
— Bem, vá. Seu macho te espera.
— Virá me recolher aqui.
— Ooooh, talvez fique por aqui e fume um cigarro lá fora.
— Você não fuma.
— Demônios, frustrada outra vez.
De caminho à saída, Ehlena se apresentou na tela de registro para assegurar-se de que não havia nada mais que tivesse que fazer antes da substituição do novo turno. Satisfeita de que tudo estivesse em ordem, atravessou as portas e subiu as escadas até que finalmente esteve fora da clínica.
A noite estava mais à frente do código postal CEP que indicava fresco e entrando em cidade fria, e em sua opinião o ar cheirava a azul, se é que a cor podia ter alguma fragrância: é que sentia algo que simplesmente era muito fresco, glacial e claro quando respirava profundamente e exalava formando suaves nuvens. Com cada inalação, sentia-se como se estivesse tomando as safiras pulverizadas pelos céus em seus pulmões, e, que as estrelas eram faíscas que saltavam através de seu corpo.
Foi despedindo-se das atrasadas, enquanto as últimas enfermeiras partiam, desmaterializando-se ou conduzindo, dependendo do que tivessem planejado. Depois também Catya chegou e se foi.
Ehlena tamborilou com o pé e comprovou seu relógio. Seu macho estava dez minutos atrasado. Não era para tanto.
Recostando-se contra o revestimento de alumínio, sentiu que seu sangue cantava em suas veias, uma estranha sensação de liberdade inchando seu peito enquanto pensava em sair a alguma parte com um macho por sua própria...
Sangue. Veias.
Rehvenge não tratou de seu braço!
O pensamento penetrou em sua mente e permaneceu ali como o eco de um grande ruído. Não tinha tratado o braço. Não houvera nada no relatório sobre a infecção, e Havers era tão escrupuloso em suas notas como era com os uniformes do pessoal, a limpeza dos quartos dos pacientes e a organização dos armários de fornecimentos.
Quando retornara da farmácia com as drogas, Rehvenge tinha a camisa posta e os punhos abotoados, mas tinha assumido que era porque o exame tinha terminado. Entretanto, estava disposta a apostar que os tinha abotoado assim que ela terminou de lhe tirar sangue.
Mas... Não era assunto dela, não? Rehvenge era um macho adulto que tinha todo o direito a tomar más decisões sobre sua saúde. Igual aquele com overdose de drogas que mal sobrevivera à noite, e igualmente ao grande número de pacientes que assentiam muito quando o médico estava diante deles, mas que quando iam para casa deixavam de lado o indicado em suas receitas e os cuidados pós-operatórios.
Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar a alguém que não queria ser salvo. Nada. E essa era uma das maiores tragédias de seu trabalho. Tudo o que podia fazer era indicar as opções e as conseqüências e esperar que o paciente escolhesse sabiamente.
Soprou uma brisa, penetrando dentro de sua saia e fazendo-a invejar o casaco de pele de Rehvenge. Afastando-se da lateral da clínica, tentou ver o caminho abaixo, procurando faróis de carro.
Dez minutos mais tarde, voltou a olhar seu relógio.
E dez minutos depois desses, elevou o punho uma vez mais.
Tinham-na deixado plantada!
Não era uma surpresa. O encontro tinha sido marcado de maneira muito apressada, e em realidade não conheciam um ao outro, verdade?
Quando outra brisa fria a golpeou, tirou seu celular e escreveu: Olá, Stephan sinto não tê-lo visto esta noite. Talvez em outro momento. E.
Retornou o telefone a seu bolso e se desmaterializou para sua casa. Em vez de entrar em seguida, agasalhou-se com seu casaco e passeou daqui para lá pela calçada gretada que corria com o passar da lateral da casa até a porta traseira. Quando o vento gelado voltou a soprar, uma rajada lhe deu totalmente no rosto.
Picavam-lhe os olhos.
Ao dar as costas ao vendaval, algumas mechas de cabelo voaram para frente como se estivessem tentando fugir do frio, e ela estremeceu.
Genial. Agora, quando sua visão se empanasse, não teria a desculpa da brisa fria.
Deus estava chorando? Isso podia ser simplesmente um mal-entendido? Por um homem que mal conhecia? Por que lhe importava tanto?
Ah, mas não era por ele absolutamente. O problema era ela. Odiava estar onde tinha estado ao abandonar a casa: sozinha.
Tentando conseguir um apoio, literalmente, estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira, mas não pôde obrigar-se a entrar. A imagem dessa cozinha miserável e muito organizada, o conhecido som dessas escadas rangentes que conduziam ao porão, e o aroma de pó e papel do dormitório de seu pai lhe eram tão familiares como seu próprio reflexo em qualquer espelho. Esta noite tudo resultava muito claro, um brilhante brilho que lhe cravava em ambos os olhos, um rugido soando em seus ouvidos, um enjoativo fedor bombardeando seu nariz.
Deixou cair o braço. O encontro tinha sido um passe de “saída da prisão”. Uma balsa para abandonar a ilha. Uma mão estendida sobre o precipício do qual ela estava pendurada.
O desespero a fez voltar bruscamente para a realidade como nenhuma outra coisa podia tê-lo feito. Não servia de nada sair com alguém se essa era sua atitude. Não era justo para o homem nem são para ela. Quando Stephan ligasse outra vez, se o fizesse, simplesmente diria que estava muito ocupada...
— Ehlena? Está bem?
Ehlena saltou afastando-se da porta que evidentemente acabava de se abrir amplamente.
— Lusie! Sinto muito, somente... Só estava pensando muito. Como está papai?
— Bem, honestamente bem. Está dormindo outra vez.
Lusie saiu da casa e fechou evitando que o calor escapasse da cozinha. Depois de dois anos, era uma figura dolorosamente familiar, sua roupa boêmia e seu comprido cabelo grisalho resultavam reconfortantes. Como de costume, tinha sua bolsa de remédios em uma mão e sua enorme bolsa pendurada do ombro oposto. Dentro da bolsa de remédios havia um medidor de pressão sangüínea padrão, um estetoscópio, e medicamentos de sob nível... Tudo o qual Ehlena a tinha visto usar. Dentro da bolsa levava as palavras cruzadas do New York Time, chicletes de hortelã Wrigley’s que gostava de mascar, a carteira e o batom cor pêssego que passava pelos lábios a intervalos regulares. Ehlena sabia das palavras cruzadas porque Lusie e seu pai as faziam juntos, do chiclete pelos pacotes que havia no cesto de papéis, e o batom era evidente, a carteira era uma hipótese.
— Como está? — Lusie esperou, seus olhos cinza claros enfocados — Você retornou um pouco cedo.
— Deixou-me plantada.
A forma que a mão de Lusie aterrissou sobre o ombro de Ehlena era o que fazia da fêmea uma grande enfermeira: com um toque te transmitia consolo, calidez e empatia, tudo o que ajudava a reduzir a pressão sangüínea, o ritmo cardíaco e a agitação.
Tudo o que ajudava a restabelecer uma mente emaranhada.
— Sinto-o. — disse Lusie.
— Oh, não, é melhor assim. Quero dizer, esperava muito.
— De verdade? Pareceu-me bastante sensata quando me falou disso. Somente iam tomar um café...
Por alguma razão disse a verdade:
— Não. Estava procurando uma saída. A que nunca chegará, porque nunca o deixaria. — Ehlena sacudiu a cabeça — De todos os modos, muito obrigado por vir...
— Não tem que ser uma situação disto ou aquilo. Seu pai e você...
— Realmente aprecio que tenha vindo cedo esta noite. Foi muito amável de sua parte.
Lusie sorriu da mesma forma que Catya tinha feito mais cedo, essa mesma noite, tensa e tristemente.
— De acordo, deixarei estar, mas tenho razão nisto. Pode ter uma relação e seguir sendo uma boa filha para seu pai. — Lusie olhou para a porta — Escute, terá que vigiar essa ferida da perna. A que se fez com a unha. Pus uma vendagem nova, mas estou preocupada com ela. Acredito que está infectando.
— Farei, e obrigada.
Depois que Lusie se desmaterializou, Ehlena entrou na cozinha, fechou a porta, passou a chave, e se dirigiu ao porão.
Seu pai estava em seu quarto, dormindo na enorme cama vitoriana, a enorme cabeceira esculpida parecia o arco lavrado de uma tumba. Sua cabeça descansava contra uma pilha de travesseiros brancos de seda, e o edredom de veludo vermelho sangue estava dobrado precisamente a meio caminho de seu peito.
Parecia um rei em repouso.
Quando a enfermidade mental se apropriou dele, seu cabelo e barba se tornaram brancos, fazendo que Ehlena se preocupasse que estivessem começando a aparecer nele as mudanças do final da vida. Mas depois de cinqüenta anos, ainda parecia o mesmo, seu rosto não apresentava rugas e suas mãos seguiam sendo fortes e firmes.
Era tão difícil. Não podia imaginar a vida sem ele. E não podia imaginar-se tendo uma vida com ele.
Ehlena fechou parcialmente a porta e foi para seu próprio quarto, onde tomou banho, trocou-se e se esticou sobre a cama. Tudo o que tinha era uma cama de um lugar sem cabeceira, um travesseiro e lençóis de algodão, mas o luxo não lhe importava. Só necessitava um lugar onde esticar seus ossos cansados cada dia e isso era tudo.
Normalmente lia um pouco antes de dormir, mas hoje não. Realmente não tinha energias. Estendendo a mão para um lado, apagou o abajur, cruzou os pés à altura dos tornozelos e estendeu os braços retos.
Com um sorriso, compreendeu que ela e seu pai dormiam exatamente na mesma posição, verdade?
Na escuridão, pensou em Lusie e a forma em que tinha insistido no corte de seu pai. Ser uma boa enfermeira era preocupar-se com o bem-estar dos pacientes, inclusive depois de deixá-los. Tratava-se de treinar aos familiares em como continuar com os cuidados necessários, e ser um apoio.
Não era o tipo de trabalho que simplesmente se ia porque tinha terminado seu turno.
Religou o abajur com um clique.
Levantando-se, foi ao computador que tinha conseguido grátis na clínica quando os sistemas de TI13 tinham sido melhorados. A conexão de internet era lenta, como sempre, mas finalmente pôde acessar a base de dados dos registros médicos da clínica.
Colocou sua contra-senha, efetuou uma busca, logo outra. A primeira foi por compulsão, a segunda por curiosidade.
Gravou ambas, desligou o portátil e pegou seu telefone.
Capítulo 11
Quando estava amanhecendo, justo antes que a luz começasse a se reunir no céu do leste, Wrath tomou forma nos densos bosques da parte norte da montanha da Irmandade. Não aparecera ninguém pelo Hunterbred, e a iminente luz do dia o tinha forçado a abandonar o lugar.
A grama rangia ruidosamente sob seus shitkickers, as finas agulhas dos pinheiros estavam quebradiças pelo frio. Ainda não havia neve para atenuar os sons, mas podia cheirá-la no ar, podia sentir essa gelada dentada na profundidade de seus seios nasais.
A entrada secreta do Sancto Santorum da Irmandade da Adaga Negra estava no extremo mais afastado de uma caverna, bem no fundo. Suas mãos localizaram por meio do tato o abridor na porta de pedra, e o pesado portal se deslizou detrás da parede de rocha. Entrando em um piso revestido de suave mármore negro, avançou por ele enquanto a porta se fechava as suas costas.
A sua vontade, as tochas se acenderam de cada lado, estendendo-se a uma longa distância e iluminando as enormes portas de ferro instaladas nos fins do século dezoito quando a Irmandade converteu essa caverna na Tumba.
Ao se aproximar, as grossas barras da porta adquiriram a aparência de uma fila de sentinelas armados ante sua visão imprecisa, as chamas trementes animavam algo que na realidade não tinha movimento. Com sua mente, abriu as duas metades e continuou seu caminho, entrando em um comprido passadiço cheio de prateleiras que iam do chão ao teto, a uns doze metros de altura.
Jarras de lessers de todo tipo e espécie estavam empilhadas uma junto à outra, em um desdobramento que marcava gerações de matanças feitas pela Irmandade. As jarras mais antigas eram somente toscos copos feitos à mão que tinham sido trazidos do Antigo País. A cada metro que avançava as jarras se tornavam mais modernas, até se chegar ao próximo jogo de portas e encontrar as porcarias chinesas produzidas em série vendidas na Target.
Não ficava muito espaço livre nas prateleiras e isso o deprimiu. Com suas próprias mãos ajudou a construir este monumento à morte de seus inimigos, junto com o Darius, Tohrment e Vishous, todos eles trabalharam em excesso durante um mês seguido, trabalhando durante o dia e dormindo sobre o chão de mármore. Tinha sido ele, que decidiu quanto aprofundar na terra, e estendeu o corredor das prateleiras vários metros a mais do que considerava necessário. Quando ele e seus irmãos terminaram de instalar tudo e logo depois de empilhar as jarras mais antigas, se convenceram de que não necessitariam tanto espaço para armazenamento. Tiveram a segurança de que no momento em que enchessem as três quartas partes disso, a guerra teria terminado.
E aí estava, séculos mais tarde, tratando de encontrar espaço suficiente.
Com uma pavorosa sensação de presságio, Wrath estimou com sua reduzida vista os últimos espaços que ficavam nas prateleiras originais. Era difícil não vê-lo como uma evidência de que a guerra estava chegando a seu fim, que o equivalente vampiro do finito calendário Maia estava nessas paredes de rocha grosseiramente esculpidas.
Não era com o brilho da obtenção da vitória que previa o depósito da última jarra junto às demais.
Uma das duas ou ficariam sem raça a qual proteger ou ficariam sem Irmãos para protegê-los.
Wrath tirou as três jarras de sua jaqueta e as pôs juntas formando um pequeno grupo, logo deu um passo atrás.
Tinha sido responsável por muitas dessas jarras... Antes de converter-se em Rei.
— Já sabia que tinha saído para lutar.
Ante o som da voz autoritária da Virgem Escriba, Wrath girou a cabeça bruscamente. Sua Santidade estava flutuando junto às portas de ferro, sua túnica negra estava a trinta centímetros acima do chão de pedra e sua luz resplandecia por debaixo da prega.
Houve um tempo em que seu resplendor foi cegamente brilhante. Agora apenas lançava sombra.
Wrath voltou a girar-se para as jarras.
— Assim, V se referia a isso quando disse que ia apertar o gatilho.
— Sim, meu filho foi até mim.
— Mas já estava inteirada. E, a propósito, isso não foi uma pergunta.
— Sim. — ela odiava perguntas.
Wrath levantou a vista e observou V atravessar as portas.
— Bom, olhem esta merda. — manifestou Wrath — A reconciliação entre mãe e filho… Ocorrerá em tão somente um instante. — deixou que a poesia lírica parafraseada ficasse flutuando no ar — Ou não.
A Virgem Escriba se adiantou, movendo-se lentamente entre as jarras. Na antiguidade — ou, demônios, tão somente no ano anterior — teria assumido o controle da conversa. Agora apenas flutuava.
Vishous fez um som de desgosto, como se tivesse esperado muito para que sua Queridíssima Mamãe[37] começasse a dar o sermão de “nem-mais-uma-palavra” para seu rei, e não se sentiu impressionado ao ver que não lhe fazia frente.
— Wrath, não me deixou terminar.
— E acredita que agora o farei? — esticou a mão para cima e com os dedos tocou a beira de uma das três jarras que acrescentou à coleção.
— Deixará que termine. — disse a Virgem Escriba em um tom desinteressado.
Vishous avançou a pernadas, seus shitkickers pisavam firmemente o chão que ele mesmo tinha ajudado a colocar.
— A questão é que se vai sair, vá com reforços. E diga à Beth. De outra forma se converte em um mentiroso… E tem uma melhor oportunidade de deixá-la viúva. Maldito seja, ignore minha visão, se quiser. Mas ao menos seja prático.
Wrath caminhou para cima e para baixo, pensando que o cenário para este cerco era fodidamente perfeito: estava rodeado por testemunhos da guerra.
Finalmente se deteve frente às três jarras que tinha obtido essa noite.
— Beth pensa que fui ao norte do Estado me encontrar com Phury. Sabem, para trabalhar com as Escolhidas. Mentir enche o saco! Mas e o conhecimento de que tenhamos só quatro Irmãos no campo de batalha? É pior.
Houve um longo silêncio, durante o qual o único som que se escutava era o vibrante chispar das chamas das tochas.
Vishous rompeu o silêncio.
— Acredito que deveria ter uma reunião com a Irmandade, e dizer a verdade para Beth. Como falei se for lutar, lute. Mas faça abertamente, entende? Dessa forma não estará saindo sozinho. E, tampouco o fará algum de nós. Neste momento, quando ocorre o rodízio para descanso, alguém sempre termina lutando sem companheiro. Se você o fizesse legitimamente resolveria esse problema.
Wrath teve que sorrir.
— Cristo, se tivesse pensado que estaria de acordo comigo, teria falado antes. — olhou à Virgem Escriba — Mas, e o que me diz das leis. Da tradição.
A mãe da raça se voltou para enfrentá-lo e com voz distante disse:
— Tantas coisas mudaram. Que diferença faz uma mais. Fiquem bem, Wrath filho de Wrath e Vishous meu filho.
A Virgem Escriba desapareceu como uma brisa na noite fria, dissipando-se no éter como se nunca tivesse estado ali.
Wrath se reclinou contra as prateleiras, e, quando a cabeça começou a lhe pulsar, subiu os óculos e esfregou seus olhos inúteis. Quando se deteve, fechou as pálpebras e ficou tão quieto como a rocha que o rodeava.
— Parece moído. — murmurou V.
Sim, estava, verdade? E que triste isso era.
O tráfico de drogas era um negócio muito lucrativo.
Em seu escritório privado do ZeroSum, Rehvenge estava em frente a sua mesa no escritório revisando as faturas dessa noite, comprovando meticulosamente as quantidades, até o último centavo. iAm estava fazendo o mesmo no restaurante de Sal, e o primeiro dever de cada noite era encontrar-se ali para comparar resultados.
Na maioria das vezes chegavam ao mesmo total. Quando não era assim, ele os remetia ao iAm.
Entre o álcool, as drogas, e o sexo as importâncias em bruto das faturas superava os duzentos e noventa mil só para o ZeroSum. No clube trabalhavam vinte e duas pessoas com salário fixo, isso incluía dez seguranças, três barmans, seis prostitutas, Trez, iAm e Xhex, o custo por todos eles girava em torno dos setenta e cinco mil dos grandes por noite. Os recolhedores de apostas e os traficantes autorizados a trabalhar no local, ou seja, aqueles vendedores de drogas que ele autorizava a vender sob suas premissas, eram comissionados, e o que restava após cobrarem sua parte, era dele. Também, uma vez por semana, ele ou Xhex e os seguranças realizavam entendimentos por quantidades mais importantes com um seleto número de distribuidores que tinham suas próprias redes de tráfico de drogas fora de Caldwell ou em Manhattan.
Calculando tudo, e depois de subtrair os custos do pessoal, ficavam aproximadamente duzentos mil por noite para pagar as drogas e o álcool vendidos, cobrir a calefação e a eletricidade, para a melhoria de bens de uso e o pagamento da equipe de limpeza de sete pessoas que entrava às cinco da manhã.
Cada ano tirava perto de cinqüenta milhões de seus negócios… O que parecia obsceno, e era, especialmente considerando que pagava impostos somente por uma fração disso. A questão era que as drogas e o sexo eram negócios arriscados, mas os lucros potenciais eram enormes. E necessitava dinheiro. Muito. Manter sua mãe no estilo de vida a que estava acostumada, e que bem merecia, era um assunto multimilionário. Além disso, ele tinha suas próprias casas e a cada ano trocava o Bentley assim que os novos modelos estavam disponíveis.
Entretanto, o gasto pessoal mais custoso de todos, disparado, eram as pequenas bolsas negras de veludo.
Rehv estendeu a mão sobre suas folhas de cálculo e recolheu a que enviaram do distrito de diamantes da Grande Maçã. Agora as entregas chegavam às segundas-feiras… antes costumava ser às últimas sextas-feiras do mês, mas agora ao abrir o Iron Mask, o dia livre do ZeroSum tinha mudado para domingo.
Desatou o cordão de cetim e abriu o pescoço da bolsa, vertendo um punhado de brilhantes rubis. Um quarto de milhão de dólares em pedras cor vermelho sangue. Voltou a colocá-las na bolsa, atou o cordão com um nó apertado, e olhou seu relógio. Faltavam dezesseis horas para que tivesse que empreender sua viagem para o norte.
A primeira terça-feira do mês era quando pagava seu resgate, e pagava à princesa de duas maneiras. Uma era com pedras preciosas. A outra com seu corpo.
Entretanto fazia que custasse a ela também.
Pensar aonde iria e o que se veria obrigado a fazer lhe provocou cócegas na nuca, e não o surpreendeu que sua vista começasse a mudar, e que o rosa escuro e o vermelho sangue substituíssem o negro e o branco de seu escritório, e que seu campo visual se nivelasse como por obra de uma escavadora convertendo-se em um nível plano.
Abrindo uma gaveta, tirou uma de suas bonitas caixas novas de dopamina e agarrou a seringa que tinha usado as últimas duas vezes que se injetou em seu escritório. Arregaçando o braço esquerdo, fez um torniquete no meio do bíceps mais por hábito que por verdadeira necessidade. Suas veias estavam tão inchadas que parecia que várias toupeiras haviam feito suas tocas debaixo de sua pele, e sentiu uma pontada de satisfação ante o horrível estado em que estavam.
A agulha não tinha tampa que tirar, assim encheu o êmbolo da seringa com a prática de um usuário habitual. Levou-lhe um momento encontrar uma veia que fosse viável, e colocou a diminuta agulha de aço em seu corpo sem sentir nada de nada. Soube que finalmente tinha dado no lugar adequado quando puxou o êmbolo e viu que o sangue se mesclava com a solução clara da droga.
Enquanto liberava o torniquete e pressionava com o dedo polegar para fazer entrar o líquido, olhou fixamente a ulceração de seu braço e pensou em Ehlena. Ainda quando não confiava nele e não desejava sentir-se atraída por ele e embora evidentemente seria capaz de mover céu e terra para não sair com ele, seguia querendo ser uma salvadora. Seguia querendo o melhor para ele e sua saúde.
Isso era o que significava ser uma fêmea de valor.
Já tinha injetado a metade quando seu celular tocou. Um rápido olhar à tela indicou que o número não era conhecido, por isso deixou que a chamada se perdesse. As únicas pessoas que tinham seu número eram aquelas com as quais queria falar, e essa era uma lista endemoniadamente curta: sua irmã, sua mãe, Xhex, Trez e iAm. E o Irmão Zsadist, o hellren de sua irmã.
Isso era tudo.
Enquanto tirava a agulha de seu ralo vascular, amaldiçoou ante o assobio que indicava que tinham deixado um correio de voz. De tanto em tanto recebia um desses, gente deixando partes e retalhos de suas vidas em seu pequeno rincão de espaço tecnológico, pensando que era o de outra pessoa. Ele nunca devolvia a chamada, jamais mandava uma mensagem de texto com um: Este não é quem pensa que é. Já se dariam conta quando quem quer que pensassem estar chamando não devolvesse o favor.
Fechando os olhos se recostou contra o respaldo da cadeira e atirou a seringa sobre as folhas de cálculo, não podia importar menos se a droga funcionava.
Sentado a sós em sua guarida de iniqüidade, na hora silenciosa em que todos se foram e o pessoal da limpeza não tinha entrado ainda, não lhe importava uma merda se os planos de sua visão retornavam a um modo tridimensional. Não lhe importava se reaparecia o espectro a toda cor. Não se perguntava a cada segundo que passava se retornaria à “normalidade” ou não.
Deu-se conta que isto tinha mudado. Até agora sempre se desesperou esperando que a droga funcionasse.
O que tinha feito a situação mudar?
Deixou a pergunta no ar enquanto recolhia o celular e agarrava a bengala. Com um gemido, ficou cuidadosamente de pé e caminhou para seu dormitório privado. O intumescimento estava retornando rapidamente a seus pés e pernas, mais rapidamente de quando conduzia vindo de Connecticut, mas bom, isso era típico. Quanto menos impulsos symphath se desencadeassem, melhor funcionava a droga. E caramba! Tornava-se gracioso, mas ser selecionado para matar o rei o tinha exasperado.
Enquanto que estar sentado a sós no que podia chamar lar, não o fazia.
O sistema de segurança já estava ativo em seu escritório, e ativou outro para suas habitações privadas, logo se fechou no dormitório sem janelas no qual pernoitava de quando em quando. O banheiro estava do outro lado do quarto e atirou seu casaco de zibelina sobre a cama antes de entrar e abrir a ducha. Enquanto se movia pelo lugar, um frio que impregnava até os ossos se apoderou de seu corpo, fluindo de dentro para fora, como se tivesse se injetado Freon.
Isto sim ele temia. Odiava ter frio todo o tempo. Merda, talvez devesse ter se deixado ir. De toda forma não ia interatuar com ninguém.
Sim, mas se saltava muitas doses, voltar a nivelar-se era uma merda.
O vapor ondeou atrás da porta de vidro da ducha, se despiu deixando seu traje, a gravata e a camisa sobre o balcão de mármore que havia entre as duas pias. Ficando sob a ducha, tremeu violentamente e os dentes tilintaram.
Por um momento, derrubou-se contra as suaves paredes de mármore, mantendo a si mesmo no centro das quatro rosetas da ducha. Enquanto a água quente, que não podia sentir, caía em forma de cascata descendo por seu peito e seu abdômen, tratou de não pensar no que viria na noite seguinte, e falhou.
Oh, Deus… Seria capaz de voltar a fazê-lo? Ir ali acima e prostituir a si mesmo com essa cadela?
Sim, e a alternativa era… Que o denunciasse ante o conselho por ser um symphath e que deportassem seu rabo à colônia.
A escolha era clara.
À merda com isso, não havia escolha. Bella não sabia o que era, e descobrir a mentira familiar a mataria. E ela não seria a única vítima. Sua mãe se desmoronaria. Xhex ficaria furiosa e se mataria tratando de salvá-lo. Trez e iAm fariam o mesmo.
Todo o castelo de cartas cairia.
Compulsivamente, agarrou uma brilhante barra de sabão dourado do suporte de cerâmica que estava montado na parede e o esfregou entre suas mãos até fazer espuma. A merda que usava não era do tipo elegante e fino. Era o comum Dial, um desinfetante que sobre a pele parecia como um nivelador de pavimento.
Suas putas usavam o mesmo. Era com o que abastecia suas duchas, a pedido delas.
Sua regra era três vezes. Três vezes para cima e para baixo por seus braços e suas pernas, seus peitorais e seu abdômen, seu pescoço e seus ombros. Três vezes o afundava entre suas coxas, ensaboando o membro e os testículos. O ritual era estúpido, mas era algo compulsivo. Poderia ter usado três dúzias de barras de Dial e ainda assim seguir sentindo-se sujo.
Era gracioso, suas putas sempre se surpreendiam pelo trato que recebiam. Cada vez que chegava uma nova, esperava ter que excitá-lo como parte de seu trabalho, e sempre estavam preparadas para serem agredidas. Em vez disso, obtinham seu vestiário privado com ducha, um horário seguro, e a segurança de que nunca, jamais seriam agredidas, e essa coisa chamada respeito… Que significava que podiam escolher os seus clientes, e, se os filhos da puta que pagavam pelo privilégio de estar com elas lhe tocavam embora fosse somente um de seus cabelos, tudo o que tinham de fazer era dizer e uma montanha de merda caía sobre o ofensor.
Mais de uma vez, aparecia alguma das mulheres na porta de seu escritório e pedia para falar com ele em particular. Geralmente isso acontecia aproximadamente um mês depois que começasse a exercer, e o que diziam era sempre o mesmo e sempre era expresso com uma espécie de confusão, que se ele fosse normal, teria lhe quebrado o coração:
— Obrigado.
Não era muito viciado nos abraços, mas era sabido que as atraía a seus braços e as abraçava durante um instante. Nenhuma delas compreendia que não era devido a ele ser um bom homem, mas sim porque era igual a elas. A dura realidade era que a vida tinha posto a todos onde não desejavam estar, quer dizer sobre suas costas frente a pessoas com as quais não queriam estar fodendo. Sim, havia algumas que não lhes importava o trabalho, mas como todo mundo, não queriam trabalhar todo o tempo. E Deus sabia que os clientes sempre apareciam.
Assim como sua chantagista.
Sair da ducha era um absoluto e puro inferno, e adiou o profundo congelamento o máximo que pôde, encolhendo-se sob a ducha enquanto discutia consigo mesmo sobre a saída. Enquanto o debate continuava, ouvia a água tilintar contra o mármore e tagarelar no deságüe de bronze, mas seu corpo totalmente intumescido não sentia nada salvo um leve alívio de seu Alaska interior. Quando acabou a água quente, soube somente devido a seus tremores piorarem e as unhas de suas mãos passaram de uma cor cinza pálida a um azul profundo.
De caminho à cama, secou-se com uma toalha e logo se lançou sob o edredom de visom o mais rápido que pôde.
Justo quando estava puxando as mantas para subir até sua garganta, seu celular emitiu um assobio. Outra mensagem de voz.
Fodida Central Geral com seu celular.
Ao verificar suas chamadas perdidas, descobriu que a última era de sua mãe, e se endireitou rapidamente, embora mudar para a posição vertical significasse que seu peito ficasse descoberto. Como a dama que era não ligava nunca, porque não queria “interromper seu trabalho”.
Pressionou alguns botões, pôs sua contra-senha, e se preparou para apagar a mensagem de número equivocado que sairia primeiro.
“Mensagem do 518—blah—blah—blah…” Pressionou a tecla de numeral para mandá-la a merda e se preparou para golpear o sete e desfazer-se da coisa.
Seu dedo estava encaminhando-se para baixo quando a voz de uma fêmea disse:
— Olá, eu…
Essa voz… Essa voz era… Ehlena?
— Porra!
De toda forma, o correio de voz era inexorável, sem importar-se uma merda que uma mensagem dela fosse o último que ele escolheria apagar. Enquanto amaldiçoava, o sistema continuou agitando-se até que escutou a suave voz de sua mãe falando na Antiga Língua.
— Saudações, queridíssimo filho, espero que esteja bem. Por favor, desculpe a intromissão, mas me perguntava se poderia passar pela casa nos próximos dias? Há um assunto sobre o qual devo falar contigo. Amo-te. Adeus, meu primogênito de sangue.
Rehv franziu o cenho. Tão formal, o equivalente verbal a uma atenta nota escrita por sua formosa mão, mas a solicitude era atípica nela, e isso dava o caráter de urgente. Mas estava fodido… Má escolha de palavras. Amanhã de noite era impossível devido a seu “encontro”, assim teria que ser a noite seguinte, assumindo que se encontrasse o suficientemente bem.
Ligou a casa, e quando uma das doggen atendeu disse à criada que estaria ali na quarta-feira de noite assim que o sol se pusesse.
— Senhor, se me permite. — disse a criada — Verdadeiramente me alegra que venha.
— O que está acontecendo? — quando houve uma longa pausa, sua frieza interior, piorou — Diga!
— Ela está… — a voz do outro lado se agitou — Está tão encantadora como de costume, mas nos alegra que venha. Se me desculpar, irei transmitir sua mensagem.
A linha ficou muda. No fundo de sua mente, tinha percebido o que ocorria, mas sistematicamente ignorou tal convicção. Verdadeiramente não podia pensar nisso. Definitivamente não podia.
Além disso, era provável que não fosse nada. Depois, toda paranóia era um efeito secundário quando se consumia muita dopamina, e Deus sabia que estava tomando mais que sua cota. Iria ao refúgio assim que pudesse, e ela estaria bem… Espere! O solstício de verão. Devia tratar-se disso. Sem dúvida desejava planejar as festividades que incluía Bella e Z e à menina, já que seria o primeiro ritual de solstício de Nalla, e sua mãe levava esse tipo de coisas muito a sério. Podia viver neste lado, mas as tradições das Escolhidas sob as quais tinha sido criada ainda formavam parte dela.
Era certo que se tratava disso.
Aliviado, pôs o número de Ehlena em sua caderneta de memória e ligou para ela.
Em tudo o que podia pensar enquanto o telefone chamava, além de em, “responde, responde, responde”, era em que confiava que estivesse bem. O que era uma loucura. Como se fosse chamar a ele se tivesse algum problema?
Então por que haveria…
— Olá?
O som de sua voz no ouvido obteve algo que a ducha quente, o visom e a temperatura ambiente de oitenta graus não tinham obtido. O calor se estendeu desde seu peito, fazendo retroceder o intumescimento e o frio, cobrindo-o com… Vida.
Apagou as luzes para poder concentrar-se nela com tudo o que tinha.
— Rehvenge? — disse ela depois de um momento.
Reclinou-se contra os travesseiros e sorriu na escuridão.
— Olá.
Capítulo 12
— Sua camisa está ensangüentada… E… Oh, Deus… A perna de sua calça. Wrath, o que aconteceu?
De pé em seu escritório na mansão da Irmandade, enfrentando a sua amada shellan, Wrath puxou as duas metades de sua jaqueta de motoqueiro para fechá-las mais sobre seu peito, e pensou que era bom que ao menos lavou o sangue de lesser das mãos.
A voz de Beth ficou mais baixa.
— Quanto do que estou vendo é teu?
A seus olhos estava tão formosa como sempre, era a única fêmea a quem desejava, a única companheira possível para ele. Com jeans e seu suéter negro de pescoço alto, e o cabelo escuro caindo sobre seus ombros, era a coisa mais atrativa que tinha visto. Seguia sendo.
— Wrath!
— Não todo. — o corte de seu ombro sem dúvida tinha gotejado sobre sua camiseta sem mangas, mas também tinha segurado o macho civil contra seu peito, por isso o sangue do macho sem dúvida se mesclou com o seu próprio.
Incapaz de permanecer quieto caminhou pelo escritório, indo da mesa à janela ida e volta. O tapete que seus shitkickers cruzavam era azul, cinza e creme, um Aubusson cujas cores faziam par com o azul pálido das paredes e cujas espirais curvilíneas se inspiravam nos delicados móveis Louis XIV, os acessórios e os redemoinhos das molduras.
Realmente, nunca tinha apreciado a decoração. E tampouco o fez agora.
— Wrath… Como chegou aí? — o tom duro de Beth lhe indicou que já sabia a resposta, mas que ainda conservava a esperança de que houvesse outra explicação.
Juntando forças, voltou-se para enfrentar o amor de sua vida através da extensão carregada do escritório.
— Estou lutando outra vez.
— Está o que?
— Estou lutando.
Quando Beth ficou em silêncio. Alegrou-se de que a porta do escritório estivesse fechada. Viu os cálculos mentais que estava fazendo e sabia que o resultado do que estava somando ia adicionar-se a uma e só uma coisa: estava pensando em todas essas “noites no norte” com Phury e as Escolhidas. Todas as vezes que foi para a cama com camisetas de manga longa, úteis para ocultar hematomas, porque “estava resfriado”. Todas essas desculpas de “estou coxeando porque me exercitei muito”.
— Está lutando! — afundou as mãos nos bolsos de seu jeans, e, embora não pudesse ver muito, sabia endemoniadamente bem que o suéter negro de pescoço alto era o perfeito complemento para seu olhar — Somente para que fique claro. Está me dizendo que, vai começar a lutar. Ou que esteve lutando.
Isso era uma pergunta retórica, mas evidentemente queria que ele reconhecesse a mentira completa.
— Estive. Durante o último par de meses.
A fúria e a dor fluíram dela, derramando-se sobre ele, cheirando a madeira chamuscada e a plástico queimado.
— Olhe Beth, tinha que…
— Tinha que ser honesto comigo! — disse asperamente — Isso é o que tinha que fazer.
— Não esperava ter que sair por mais de um mês ou dois…
— Um mês ou dois! Quantos demônios fazem… — clareou a garganta e baixou a voz — Quanto faz que o está fazendo?
Quando disse, voltou a ficar calada. Logo disse:
— Desde agosto? Agosto.
Desejava que desse rédea solta a seu temperamento. Que lhe gritasse. Que lhe insultasse.
— Sinto muito. Eu… Merda, realmente sinto.
Ela não disse nada mais, e o aroma de suas emoções se afastou à deriva, dispersado pelo ar quente que soprava pelos ralos da calefação que havia no chão. No corredor, um doggen estava passando o aspirador, o som do acessório para tapetes zumbia acima e abaixo, acima e abaixo. No silêncio que reinava entre eles, esses sons habituais, cotidianos eram algo ao que apegar-se… Pois era o tipo de coisa que ouvia todo o tempo e raramente notava porque estava ocupado lutando com a papelada, ou distraído pelo fato de que tinha fome, ou tratando de decidir se preferia relaxar vendo a TV ou no ginásio… Era um som seguro.
E, neste momento, devastador para sua união, apegava-se à canção de berço de Dyson com todas as suas forças, perguntando-se se alguma vez teria a sorte de poder ignorá-la outra vez.
— Nunca me passou pela cabeça… — clareou a garganta uma vez mais — Nunca me passou pela cabeça que haveria algo do qual não pudesse falar comigo. Sempre assumi que me dizia… Tudo o que podia.
Quando deixou de falar, ele estava gelado até os ossos. Sua voz tinha adquirido o tom que usava quando respondia chamadas equivocadas no telefone: dirigia-se a ele como se fosse um estranho, sem nenhuma calidez nem interesse particular.
— Olhe Beth, devo estar lá fora. Devo…
Ela sacudiu a cabeça e levantou a mão para detê-lo.
— Não se trata de que esteja lutando.
Beth o olhou fixamente durante um segundo. Logo se voltou e se dirigiu para as portas duplas.
— Beth. — esse grasnido estrangulado era sua voz?
— Não, me deixe. Preciso de um pouco de espaço.
— Beth, escute, não temos guerreiros suficientes no campo de batalha…
— Não é pela luta! — girou e o enfrentou — Mentiu para mim! Mentiu. E não só uma vez, mas sim durante quatro meses.
Wrath queria discutir, defender-se, assinalar que tinha perdido a noção do tempo, que essas cento e vinte noites e dias tinham passado à velocidade da luz, que tudo o que esteve fazendo era pôr um pé na frente do outro, frente ao primeiro, andando minuto a minuto, hora a hora, tratando de manter a raça sem submergir, tratando de conter os lessers. Não teve intenção de continuar fazendo-o durante tanto tempo. Não tinha planejado enganá-la durante todo esse tempo.
— Só me responda uma coisa. — disse — Uma única coisa. É melhor que me diga a verdade, ou que Deus me ajude, mas vou… — levou a mão à boca, apanhando um débil soluço com mão débil — Honestamente, Wrath… Sinceramente pensou que fosse te deter? No fundo de seu coração, verdadeiramente acreditou que fosse fazê-lo..?
Ele tragou com força enquanto ela pronunciava as palavras com voz estrangulada.
Wrath respirou fundo. No transcurso de sua vida, tinha sido ferido muitas, muitas vezes. Mas nada, nenhuma ferida que pudessem ter lhe infligido alguma vez a sua pessoa, tinha-lhe doído uma fração da dor que sentiu ao lhe responder.
— Não. — voltou a respirar fundo — Não, não acredito… Que fosse me deter.
— Quem falou com você esta noite? Quem foi que te convenceu para que me dissesse isso?
— Vishous.
— Deviria ter sabido. Ele é provavelmente a única pessoa, tirando o Tohr que poderia tê-lo… — Beth cruzou os braços, abraçando a si mesma, e ele teria dado a mão com que empunhava a adaga para ter sido ele, que a estivesse abraçando — Que esteja aí fora lutando me assusta como a merda, mas esquece algo… Emparelhei-me contigo sem saber que não se esperava que o rei estivesse no campo de batalha. Estava preparada para te apoiar ainda quando me aterrorizasse… Porque lutar nesta guerra está em sua natureza e em seu sangue. Idiota… — sua voz se quebrou — Tolo, teria te deixado fazê-lo. Mas em troca…
— Beth…
Interrompeu-o.
— Lembra-se da noite em que saiu no princípio do verão? Quando interveio para salvar o Z e logo permaneceu no centro da cidade lutando com os outros?
Seguro como o demônio que a recordava. Quando tinha retornado para casa, a tinha perseguido pelas escadas e fizeram sexo sobre o tapete da salinha do segundo andar. Várias vezes. Conservava como lembrança os shorts jeans que arrancou de seus quadris.
Jesus… Agora que pensava… Essa tinha sido a última vez que estiveram juntos.
— Disse-me que era somente por uma noite. — disse — Uma noite. Somente. Jurou, e confiei em você.
— Merda… O sinto.
— Quatro meses. — sacudiu a cabeça, e seu magnífico cabelo negro balançou sobre seus ombros, capturando a luz de uma maneira tão formosa que até seus inúteis olhos registraram seu esplendor — Sabe o que mais me dói? Que os Irmãos sabiam e eu não. Sempre aceitei esse assunto da sociedade secreta, entendi que há coisas que não posso saber…
— Eles tampouco sabiam. — bom Butch sabia, mas não havia razão para jogá-lo sob o ônibus — V se inteirou esta noite.
Ela cambaleou, e se encostou contra uma das paredes cor azul pálida.
— Esteve saindo sozinho?
— Sim. — estendeu a mão para lhe tocar o braço, mas ela o afastou — Beth…
Abriu a porta de um puxão.
— Não me toque…
A coisa se fechou de um golpe atrás dela.
A raiva contra si mesmo fez com que Wrath girasse sobre si e ficasse frente a seu escritório, e no instante em que viu todos os documentos, todas as solicitações, todas as queixas, todos os problemas, foi como se alguém tivesse conectado dois cabos cortados à suas omoplatas e lhe tivesse dado uma descarga. Lançou-se para frente, varreu com seus braços a superfície do escritório e fez voar a merda por toda parte.
Enquanto os papéis revoavam, caindo como neve, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos, a dor de cabeça lhe estava atravessando o lóbulo frontal. Ficou sem fôlego, cambaleou, encontrou sua cadeira pelo tato e se derrubou sobre a maldita coisa. Com um áspero grunhido, deixou que sua cabeça caísse para trás. Ultimamente estas enxaquecas por estresse se estavam convertendo em um sucesso diário, aniquilando-o e prolongando-se como uma gripe que se recusava a ser erradicada.
Beth. Sua Beth…
Quando ouviu um golpe na porta, deu um bom treinamento a sua boca com a palavra F.
O golpe voltou a soar.
— O que? — ladrou.
A cabeça de Rhage apareceu uma fresta, logo ficou imóvel.
— Ah…
— O que?
— Sim, bom… Ah, dados enviados… E, uau, o forte vento que evidentemente acaba de soprar sobre seu escritório… Segue querendo manter uma reunião conosco?
Oh, Deus… Como faria para manter outra dessas conversas.
Mas bom, talvez devesse ter pensado nisso antes de decidir mentir a seus seres mais próximos e queridos.
— Meu Senhor? — a voz de Rhage adquiriu um tom gentil — Deseja ver a Irmandade?
Não.
— Sim.
— Quer o Phury no viva-voz do telefone?
— Sim. Escuta, não quero os meninos nesta reunião. Blay, John e Qhuinn… Não estão convidados.
— Imaginava. Hey, o que te parece se te ajudo a limpar?
Wrath olhou o tapete coberto de papéis.
— Eu me encarrego.
Hollywood provou sua inteligência ao não voltar a oferecer-se nem tampouco sair com um “então?”. Simplesmente saiu e fechou a porta.
Do outro lado, o relógio de pé que estava em um rincão, badalou. Era outro som familiar que geralmente Wrath não ouvia, mas agora enquanto permanecia sentado a sós no escritório, as badaladas soavam como se fossem emitidas através de alto-falantes de concerto.
Deixou as mãos caírem sobre os braços da frágil cadeira giratória e estes se viram diminuídos. A peça de mobiliário era mais do estilo de algo que uma fêmea usaria ao final da noite para apoiar o pé e tirar as meias.
Não era um trono. E essa era a razão pela qual a usava.
Não quis aceitar a coroa por muitos motivos, tinha chegado a ser rei por direito de nascimento, não por inclinação e em trezentos anos não tinha assumido. Mas, tão logo Beth chegou as coisas mudaram e finalmente tinha ido ver a Virgem Escriba.
Isso tinha acontecido dois anos atrás. Duas primaveras, dois verões, dois outonos e dois invernos.
Naquele tempo tinha grandes planos, no início. Geniais e maravilhosos planos para unir à Irmandade, para que todos estivessem sob o mesmo teto, consolidando forças, escorando-se contra a Sociedade Lessening. Triunfando.
Salvando.
Reclamando.
Em troca, a glymera tinha sido sacrificada. Havia mais civis mortos. E havia ainda menos Irmãos.
Não tinham progredido. Tinham perdido terreno.
A cabeça de Rhage apareceu outra vez.
— Ainda estamos aqui fora.
— Maldito seja, disse que precisa de algum…
O relógio de pé voltou a soar, e enquanto Wrath escutava a quantidade de badaladas, deu-se conta que fazia uma hora que estava sentado a sós.
Esfregou os olhos doloridos.
— Dê-me outro minuto.
— Tudo o que necessite meu Senhor. Tome seu tempo.
Capítulo 13
Quando o olá de Rehvenge saiu pelo auricular de seu celular, Ehlena se ergueu na cama abandonando o travesseiro sobre o qual esteve deitada até esse momento, tragando um “Santa merda”… Logo se perguntou por que estava tão surpresa. Ela tinha ligado para ele, e segundo o manual, a forma em que a as pessoas encaravam esse tipo de situações era… Bom, pois, te devolvendo a ligação. Uau.
— Olá. — respondeu.
— Não atendi sua ligação apenas porque não reconheci o número.
Homem, sua voz era sexy. Profunda. De baixo. Como se supunha que devesse ser a de um macho.
No silêncio que seguiu, pensou, “tinha ligado para ele por que…?” Oh, sim.
— Quis fazer o acompanhamento depois de sua consulta. Quando preparei os papéis para a alta, notei que não tinha recebido nada para seu braço.
— Ah.
A pausa que seguiu foi uma que não pôde interpretar. Talvez estivesse zangado por sua interferência?
— Só queria me assegurar que estivesse bem.
— Está acostumada a fazer isto com todos os pacientes?
— Sim. — mentiu.
— Havers sabe que está comprovando seu trabalho?
— Ao menos olhou suas veias?
A risada de Rehvenge foi baixa.
— Preferia que tivesse ligado por uma razão diferente.
— Não entendo. — disse com tom tenso.
— O que? Que alguém possa querer fazer algo com você fora do trabalho? Não é cega. Olhou-se no espelho. E certamente sabe que é inteligente, assim não se trata de um agradável adorno de vidraça.
No que a ela concernia, estava falando em um idioma estrangeiro.
— Não entendo por que não se cuida.
— Hmmmm. —riu brandamente, ela além de escutar o ronrono em seu ouvido pôde percebê-lo fisicamente — Oh… Também pode ser que esteja fingindo para poder vê-la outra vez.
— Olhe, a única razão pela que liguei foi…
— Porque precisava de uma desculpa. Rechaçou-me na sala de exame, mas na realidade queria falar comigo. Assim, me liga com a desculpa de meu braço para obter que a atenda por telefone. E agora me tem. — sua voz baixou outro tom — Deixará-me escolher o que quero que faça comigo?
Ela permaneceu em silêncio. Até que ele disse:
— Olá?
— Terminou? Ou quer seguir dando voltas ao assunto um momento mais, procurando todo tipo de significados a respeito do que estou fazendo?
Houve um instante de silêncio, e logo ele irrompeu em uma profunda e sincera gargalhada com seu vivo tom de barítono.
— Sabia que me agradava por mais de uma razão.
Ela se negou a ser cativada. Mas de todos os modos foi.
— Liguei por seu braço. Ponto. A enfermeira de meu pai acaba de ir, e estávamos falando de uma…
Fechou a boca assim que se deu conta do que tinha revelado, sentindo como se tivesse tropeçado com o equivalente coloquial da ponta de um tapete solto.
— Continue. — lhe disse com gravidade — Por favor.
— Ehlena? Ehlena…
— Está aí, Ehlena?
Mais tarde, muito mais tarde, refletiria que essas três palavras tinham sido seu precipício: Está aí, Ehlena?
Verdadeiramente foi o começo de tudo o que se seguiu, a frase inicial de uma dilaceradora jornada disfarçada na forma de uma simples pergunta.
Alegrava-lhe não saber aonde a conduziria. Porque às vezes a única coisa que podia te ajudar a sair do inferno era o fato de que estava colocada muito profundamente para poder sair.
Enquanto Rehv esperava a resposta, seu punho se apertou tanto sobre o celular, que acionou uma das teclas contra a bochecha e esta emitiu um bip de: Errr, homem, te afrouxe um pouco.
O juramento eletrônico pareceu romper o feitiço em ambos.
— Sinto-o. — murmurou ele.
— Está bem. Eu, ah…
— Dizia…?
Não esperava que respondesse, mas então… Ela o fez.
— A enfermeira de meu pai e eu estávamos falando de um corte que está lhe dando problemas, e isso foi o que me fez pensar em seu braço.
— Seu pai está doente?
— Sim.
Rehv aguardou que dissesse algo mais, enquanto tentava decidir se exercer um pouco de pressão faria com que se calasse… Mas ela resolveu a questão.
— Alguns dos medicamentos que toma provoca instabilidade, razão pela que se choca contra as coisas e nem sempre se dá conta de que se machucou. É um problema.
— Sinto muito. Cuidá-lo deve ser difícil para você.
— Sou uma enfermeira.
— E uma filha.
— Assim, era por um assunto clínico. Minha ligação.
Rehv sorriu.
— Deixe-me perguntar algo.
— Eu primeiro. Por que não deixa que avaliem o braço? E não me diga que Havers viu essas veias. Se o tivesse feito, lhe teria receitado antibióticos, e se você tivesse recusado haveria uma nota em seu histórico informando que tinha apelado à AMA. Olhe tudo o que necessita para tratá-lo são algumas pílulas, e sei que não tem fobia à medicina. Toma uma quantidade infernal de dopamina.
— Se estava preocupada com meu braço, por que não me falou na clínica?
— Eu o fiz, recorda?
— Não desta forma. — Rehv sorriu na escuridão e acariciou com a mão o edredom de visom. Não podia senti-lo, mas se imaginava que a pele era tão suave como o cabelo dela — Ainda penso que queria me ter ao telefone.
A pausa que seguiu o preocupou com a possibilidade de que desligasse.
Sentou-se, como se a posição vertical evitaria que ela pressionasse o botão de fim.
— Só estou dizendo… Bom, merda, o que quero dizer é que me alegra que tenha ligado. Sem importar a razão.
— Não falei mais deste tema na clínica porque foi antes que acrescentasse as notas de Havers no computador. Esse foi o momento em que me dei conta.
Ele ainda não acreditava que a chamada fosse completamente por motivos profissionais. Poderia ter lhe mandado um email. Poderia ter dito ao doutor. Poderia passar a uma das enfermeiras do turno do dia para que fizesse o acompanhamento.
— Assim não há nenhuma possibilidade de que se sinta mal por me haver rechaçado tão duramente como o fez.
Ela clareou a garganta.
— Sinto por isso.
— Bom, a perdôo. Totalmente. Completamente. Tinha aspecto de não estar tendo uma boa noite.
Sua exalação foi uma manifestação de extenuação.
— Sim, não foi minha melhor noite.
— Por quê?
Outra longa pausa.
— É muito melhor por telefone, sabia?
Ele se pôs a rir.
— Muito melhor em que sentido?
— É mais fácil lhe falar. Na realidade… É bastante fácil falar com você.
— Faço-o bem no mano-a-mano.
De repente franziu o cenho, pensando no recebedor de apostas que tinha ajustado as contas em seu escritório. Merda, o pobre bastardo era somente um de um enorme número de traficantes de drogas, lacaios de Las Vegas, barmans e alcoviteiros que nos últimos anos tinha persuadido a golpes. Sua filosofia sempre tinha sido que a confissão era boa para a alma, especialmente quando se tratava de caras que pensavam que não notaria que o estavam fodendo. Seu estilo de administração também lançava uma importante mensagem em um negócio onde a debilidade fazia com que lhe matassem. O comércio clandestino requeria uma mão dura, e sempre tinha acreditado que essa era a realidade em que vivia, somente.
Entretanto, agora nesse sossegado momento, tendo Ehlena tão perto, sentia como se seu “mano-a-mano” era algo que requeria uma desculpa e ser encoberto.
— Então? Por que esta noite não foi boa? — perguntou desesperado por sossegar a si mesmo
— Meu pai. E logo… Bom, deixaram-me plantada.
Rehv franziu o cenho tão fortemente que de fato sentiu um leve ponto entre os olhos.
— Para um encontro?
— Sim.
Odiava a idéia dela saindo com outro macho. E não obstante invejava ao filho da puta, quem quer que fosse.
— Que imbecil. Sinto muito, mas que imbecil.
Ehlena riu, e ele amou o som, especialmente a forma em que seu corpo se esquentou um pouquinho mais em resposta. Homem, ao demônio com as duchas quentes. Essa risada suave e tranqüila era o que necessitava.
— Está sorrindo? — disse brandamente.
— Sim. Quero dizer, suponho que sim. Como soube?
— Simplesmente tinha a esperança de que fosse assim.
— Bom, realmente pode ser amável e encantador. — rapidamente para dissimular o elogio, disse — O encontro não era grande coisa nem nada. Não o conhecia muito bem. Era somente para tomarmos um café.
— Mas terminou a noite no telefone comigo. O que é muito melhor.
Ela voltou a rir.
— Bom, agora nunca saberei como seria sair com ele.
— Não?
— Eu somente… Bom, pensei nisso, e não acredito que ter encontros neste momento seja uma boa idéia, dada minha situação. — o surgimento de seu júbilo foi descartado quando adicionou — Com ninguém.
— Hmmm.
— Hmmm? O que significa hmmm?
— Significa que tenho seu número telefônico.
— Ah, sim, tem… — sua voz se deteve quando o sentiu mover-se — Espere, você está… Na cama?
— Sim. E antes que continue, não quer saber.
— Não quero saber, o que?
— Quanto, não estou usando.
— Errr... — enquanto duvidava, soube que estava sorrindo outra vez. E provavelmente ruborizando-se — Não tinha intenção de perguntar.
— Muito inteligente de sua parte. Sou somente eu e os lençóis… Ups. Acabo de dizer isso em voz alta?
— Sim. Sim, o fez. — sua voz baixou um tom como se o estivesse imaginando nu. E a imagem mental não lhe incomodasse minimamente.
— Ehlena… — deteve a si mesmo, seus impulsos symphath contribuíram para o autocontrole. Para ir mais devagar. Sim, Rehv a desejava tão nua como ele estava. Mas, mais que isso desejava que permanecesse no telefone.
— O que? — respondeu.
— Seu pai… Esteve doente durante muito tempo?
— Ah… Sim, sim, esteve. É esquizofrênico. Não obstante, agora o temos medicado, e está melhor.
— Maldito… Seja. Isso deve ser realmente difícil. Porque ele está aí, mas ao mesmo tempo não está correto?
— Sim… Essa é exatamente a forma em que se sente.
Era parecido à forma em que ele vivia, seu lado symphath era uma constante realidade alternativa, que o perseguia enquanto tratava de viver as noites como uma pessoa normal.
— Se não se incomodar que pergunte, — disse cuidadosamente — para que precisa da dopamina? Não há nenhum diagnóstico em seu histórico médico.
— Provavelmente porque Havers sempre esteve me tratando.
Ehlena riu incômoda.
— Suponho que esse deve ser o motivo.
Merda, o que lhe dizia.
O symphath que havia nele lhe dizia “Como é, simplesmente minta”. O problema era que de alguma parte tinha aparecido outra voz em seu cérebro, rivalizando com a primeira, uma que lhe era desconhecida e muito débil, mas categoricamente compulsiva. Entretanto, como não tinha nem idéia do que era, continuou com sua rotina.
— Tenho Parkinson. Ou, mais precisamente, o equivalente vampiro.
— Oh… O sinto. Então é por isso que usa bengala.
— Meu equilíbrio é ruim.
— Não obstante a dopamina está lhe fazendo bem. Quase não tem tremores.
Essa débil voz em sua cabeça se transformou em uma estranha dor no centro de seu peito, e por um momento deixou de lado o fingimento, e disse a verdade:
— Não tenho nem idéia do que faria sem essa droga.
— Os medicamentos de meu pai foram como um milagre.
— Você é a única que o cuida? — quando ela respondeu com um hmmm, perguntou — Onde está o resto de sua família?
— Somos somente ele e eu.
— Então você está enfrentando uma tremenda carga.
— Bom, o amo. E se os papéis estivessem invertidos, ele faria o mesmo. É o que pais e filhos fazem uns pelos outros.
— Nem sempre. É evidente que você procede de uma família de gente bondosa. — antes de poder deter-se, prosseguiu — Mas é por isso que se sente sozinha, não é verdade? Sente-se culpada se o deixar, embora seja por uma hora, e se fica em casa não pode ignorar o fato de que a vida está passando. Está presa e gritando, mas não mudaria nada.
— Devo ir.
Rehv fechou os olhos com força, essa dor em seu peito, expandia-se através de todo seu corpo como um incêndio sobre pasto seco. Com sua vontade acendeu uma luz, como se a escuridão se convertesse em um símbolo de sua própria existência.
— É apenas… Que sei o que sente, Ehlena. Não pelas mesmas razões… Mas entendo todo esse assunto da separação. Sabe esse conceito de que está vendo todo o resto do mundo viver suas vidas… Oh, porra, como é. Espero que durma bem…
— Assim é como me sinto a maior parte do tempo. — agora sua voz tinha um tom aprazível, e o alegrou que tivesse entendido o que tinha tratado de lhe dizer, apesar de que ele tinha sido tão eloqüente como um gato guia de ruas.
Agora era ele quem se sentia incômodo. Não estava acostumado a falar dessa forma… Nem a sentir dessa forma.
— Escute, deixarei que descanse um pouco. Alegra-me que tenha ligado.
— Sabe… A mim também.
— E Ehlena?
— Sim?
— Acredito que tem razão. Não é uma boa idéia que se envolva com alguém neste momento.
— Sério?
— Sim. Bom dia.
Houve uma pausa.
— Bom… Dia. Espere…
— O que?
— Seu braço. O que vai fazer com seu braço?
— Não se preocupe, estará bem. Mas obrigado por seu interesse. Significa muito para mim.
Rehv desligou primeiro e deixou o telefone sobre o edredom de visom. Fechou os olhos deixando a luz acesa. E não dormiu nada.
Capítulo 14
No complexo da Irmandade, Wrath abandonou a idéia de que logo se sentiria melhor em relação à situação com Beth. Inferno! Podia passar o próximo mês em sua cadeira, dando voltas na cabeça, e isso somente lhe gelaria o rabo.
E, enquanto isso, os cantos rodados[38] no corredor estavam ficando mofados e mal-humorados.
Abriu as portas duplas com sua vontade e como uma unidade seus irmãos ficaram firmes. Ao olhar através da extensão azul pálido do estúdio seus corpos grandes e duros na galeria, reconheceu-os não por seus rostos, nem sua roupa ou sua expressão, mas sim pelo eco de cada um em seu sangue.
As cerimônias da Tumba que uniu a todos ressonavam sem importar quanto tempo tivesse ocorrido.
— Não fiquem aí parados! — disse enquanto a Irmandade o olhava fixamente — Não abri essas fodidas portas para me converter em uma exibição de zoológico.
Os irmãos entraram com suas pesadas botas… Exceto Rhage, que usava suas sapatilhas, seu costumeiro calçado para casa sem importar a estação. Cada um dos guerreiros tomou sua posição habitual na sala, com Z indo parar junto à chaminé, V e Butch sentados no sofá de pernas estreitas recentemente reforçadas. Rhage se aproximou do escritório com uma série de “flip-flip-flip” para ligar o alto-falante do telefone, deixando que seus dedos abrissem o caminho para Phury que estava no aparelho.
Ninguém disse nada a respeito dos papéis que estavam no chão. Ninguém tentou recolhê-los. Era como se ali não houvesse nenhuma confusão, e assim era como Wrath preferia.
Enquanto Wrath fechava as portas com a mente, pensou em Tohr. O irmão estava na casa, mais precisamente no corredor das estátuas, a apenas umas poucas portas, mas estava em um continente diferente. Convidá-lo não era uma opção… Seria uma crueldade, dado onde estava sua mente.
— Olá? — saiu a voz de Phury do telefone.
— Estamos todos aqui. — disse Rhage antes de desembrulhar um Tootsie Pop e dirigir-se com seu “flip-flip-flip” para uma poltrona verde feia como o rabo.
A monstruosidade era de Tohr, e tinha sido levada ao escritório para que John Matthew dormisse nela depois que Wellsie fosse assassinada e Tohrment tivesse desaparecido. Rhage tendia a utilizar a coisa porque realmente com seu peso, era a opção mais segura para seu rabo, sofás reforçados de aço incluídos.
Com todos já acomodados, a sala ficou em silencio à exceção do rangido dos molares de Hollywood sobre essa coisa de cereja que tinha na boca.
— Oh, que diabos... — Rhage gemeu finalmente ao redor de seu pirulito — Só nos diga isso! Seja o que for. Estou a ponto de me pôr a gritar. Morreu alguém?
Não, mas certo como a merda que sentia como se tivesse matado algo.
Wrath olhou em direção ao irmão, logo olhou a cada um deles.
— Serei seu companheiro, Hollywood.
— Companheiro? — Rhage passeou a vista pela sala para comprovar e ver se todos tinham ouvido o mesmo que ele — Não está falando do gim rummy, verdade?
— Não. — disse Z em voz baixa— Não acredito que esteja.
— Sagrada Merda! — Rhage tirou outro pirulito do bolso da camiseta negra — Isto é legal?
— Agora é. — murmurou V.
Phury falou ao telefone.
— Espera, espera… É para me substituir?
Wrath sacudiu a cabeça embora o Irmão não pudesse vê-lo.
— É para substituir a muitas pessoas que perdemos.
A conversa borbulhou como uma lata da Coca Cola que acabasse de ser aberta de repente. Butch, V, Z e Rhage começaram a falar todos de uma vez até que uma voz metálica interrompeu o falatório:
— Então, também quero voltar.
Todos olharam o telefone, exceto Wrath que olhou fixamente a Z para medir a reação do tipo. Zsadist não tinha problemas em demonstrar ira. Jamais! Mas escondia a preocupação e a inquietação como se fosse dinheiro solto e estivesse rodeado de assaltantes: enquanto a declaração de seu gêmeo ressoava, ficou em modo de completa auto-proteção, esticando-se e sem emitir absolutamente nada em termos de emoção.
Ah, correto, pensou Wrath. O duro bastardo estava assustado como um eunuco.
— Está certo de que é uma boa idéia? — perguntou Wrath lentamente — Possivelmente lutar não é o que necessita neste momento, Irmão.
— Não fumei em quase quatro meses. — disse Phury pelo alto-falante — E não tenho planos de voltar para as drogas.
— O estresse não fará essa merda mais fácil.
— Oh! Mas, ficar sentado sobre meu rabo enquanto o seu está fora o fará?
Maravilhoso. O rei e o Primale no campo de batalha pela primeira vez na história. E por quê? Porque a Irmandade estava nas últimas.
Grande recorde para superar. Como ganhar os fodidos cinqüenta metros nas olimpíadas para perdedores.
Cristo!
Salvo que então Wrath pensou nesse civil morto. Era esse um desenlace melhor? Não!
Recostando em sua delicada cadeira, olhou a Z com dureza.
Como se sentisse os olhos sobre ele, Zsadist se afastou do suporte da chaminé e ficou caminhando pelo escritório. Todos sabiam o que estava imaginando: Phury com uma overdose no chão do banheiro, com uma seringa de heroína vazia, atirada a seu lado, sobre o mosaico.
— Z? — a voz de Phury saiu do telefone — Z? Levante o auricular…
Quando Zsadist conversou com seu gêmeo, seu rosto, com a cicatriz trincada, adquiriu um cenho tão desagradável que até Wrath podia ver seu olhar enfurecido. E a expressão não melhorou ao dizer:
— Enche o saco! Sim. Enche o saco! Sei. Correto. — houve uma longa, longa pausa — Não, ainda estou aqui. Ok. Bem.
Pausa.
— Jura-me isso! Pela vida de minha filha.
Após um momento, Z apertou o alto-falante outra vez, pôs o auricular em seu lugar e voltou para a chaminé.
— Estou dentro. — disse Phury.
Wrath se mexeu na efeminada cadeira, desejando que muitas coisas fossem diferentes.
— Sabe possivelmente em outro momento, diria que desistisse. Agora, somente direi… Quando pode começar?
— Ao anoitecer. Deixarei Cormia responsável com as Escolhidas enquanto estou fora no campo de batalha.
— A sua fêmea vai receber isso bem?
Houve uma pausa.
— Ela sabe com quem se emparelhou. E serei honesto com ela.
Ouch!
— Agora tenho uma pergunta. — disse Z brandamente — É a respeito do sangue seco que há em sua camiseta, Wrath.
Wrath pigarreou.
— De fato, já faz um tempo que retornei. À luta.
A temperatura da habitação caiu. Devido a que Z e Rhage ficaram de saco cheio por não terem sabido.
E então, repentinamente, Hollywood amaldiçoou.
— Espere… Espere. Vocês dois sabiam… Sabiam antes de nós, verdade? Porque nenhum parece surpreso.
Butch clareou a garganta, porque o olhavam com fúria.
— Precisava de mim para fazer a limpeza. E V tentou lhe fazer mudar de opinião.
— Quanto tempo faz que começou isto, Wrath? — ladrou Rhage.
— Desde que Phury deixou de lutar.
— Está brincando!
Z foi a passos longos até uma das janelas que iam do chão ao teto, e apesar das persianas estarem abaixadas, olhou fixamente a coisa como se pudesse ver os terrenos que havia do outro lado.
— Maldita boa coisa que não tenha conseguido que o matassem aí fora.
Wrath despiu suas presas.
— Acredita que luto como uma mariquinha simplesmente porque agora estou atrás deste escritório?
A voz de Phury se elevou do telefone.
— Bem, todo mundo, relaxem! Agora todos sabemos, e as coisas vão ser diferentes de agora em diante. Ninguém lutará sozinho, embora vamos de três em três. Mas, preciso saber, isto vai ser de conhecimento geral? Anunciará depois de amanhã na reunião do conselho?
Caralho, esse feliz e pequeno enfrentamento não era algo que estivesse desejando levar a cabo.
— Acredito que por hora manteremos em silêncio.
— Sim. — replicou Z — Porque realmente, para que ser honestos?
Wrath o ignorou.
— Embora direi a Rehvenge. Sei que há membros da glymera que se estão queixando pelos assaltos. Se converter isso em algo muito grande, poderá acalmar as coisas com este tipo de informação.
— Já terminamos? — perguntou Rhage com voz monótona.
— Sim. Isso é tudo.
— Então vou indo.
Hollywood abandonou a sala indignado, e Z se foi justo detrás dele, duas vítimas mais da bomba que Wrath tinha deixado cair.
— Como Beth reagiu? — perguntou V.
— Como acha? — Wrath ficou de pé e seguiu o exemplo do par que tinha saído.
Hora de ir procurar à Doutora Jane para que o costurasse, assumindo que os cortes já não se fecharam.
Precisava estar preparado para voltar a sair para lutar amanhã.
Na fria e brilhante luz da manhã, Xhex se desmaterializou para o outro lado de uma parede alta, aos ramos nus de uma robusta sebe. A mansão que estava mais à frente descansava na superfície da paisagem como uma pérola cinza engastada em uma filigrana, árvores finas e cortadas pelo vento se elevavam ao redor da velha casa paroquial de pedra, ancorando-a na ondulada grama, prendendo-a contra a terra.
O débil sol de dezembro se derramava sobre ela, fazendo com que o que teria sido austero de noite parecesse unicamente venerável e distinto.
Seus óculos de sol eram quase negros, a única concessão que precisava fazer a seu lado vampiro se saía durante o dia. Atrás das lentes, sua visão permanecia aguda e via cada detector de movimento, cada luz de segurança e cada janela de vidro chumbado coberta por venezianas.
Entrar ia ser um desafio. Os vidros desses caras estavam sem dúvida reforçados com aço, o que queria dizer que desmaterializar-se para dentro seria impossível embora as venezianas estivessem levantadas. E com seu lado symphath, pressentiu que havia muitas pessoas dentro: na cozinha estava o pessoal. Acima estavam os que dormiam. Outros estavam movendo-se pelo lugar. Não era uma casa feliz, os quadriculados emocionais deixados pelas pessoas que havia ali estavam cheios de sentimentos sombrios e violentos.
Xhex se desmaterializou ao teto da seção principal da mansão, lançando a versão symphath do mhis. Não a ocultava por completo, mas era como se a convertesse em mais uma sombra, entre as sombras projetadas pelas chaminés e a merda do sistema do CVAA, mas era suficiente para comprar um passe pelos detectores de movimento.
Aproximando-se de um conduto de ventilação, encontrou uma lâmina de malha de aço grosso como uma regra, atarraxada às paredes de metal. A chaminé estava igual. Coberta com aço robusto.
Não a surpreendia. Tinham uma segurança muito boa aqui.
A melhor oportunidade de penetração seria de noite, utilizando uma pequena furadeira à pilhas em uma das janelas. As acomodações dos criados estavam atrás, seria um bom lugar para entrar, dado que o pessoal estaria trabalhando e essa parte da casa estaria mais tranqüila.
Entrar. Encontrar o objetivo. Eliminá-lo.
As instruções de Rehv era deixar um cadáver chamativo, assim não se incomodaria em ocultá-lo nem tampouco em desfazer do corpo.
Enquanto andava através dos pequenos seixos que cobriam o teto, os cilícios que levava ao redor das coxas lhe mordiam os músculos a cada passo, a dor a drenava de certa quantidade de energia e lhe proporcionava a concentração necessária… Ambas as coisas ajudavam a manter seus impulsos symphath presos no espaço traseiro de seu cérebro.
Não levaria postas as tiras com cilícios quando realizasse o trabalho.
Xhex se deteve e elevou o olhar ao céu. O vento seco e cortante prometia neve, e logo. O profundo gelo do inverno estava chegando a Caldwell.
Mas esteve em seu coração durante anos.
Abaixo dela, sob seus pés, voltou a sentir as pessoas, lendo suas emoções, as sentindo. Mataria a todos se o pedissem. Os assassinaria sem pensar nem duvidar enquanto jaziam em suas camas ou se dirigiam a seus deveres ou roubavam um bocado de meio-dia ou se levantavam para uma mijada rápida antes de voltar a dormir.
Tampouco lhe incomodava o resíduo sujo e detalhes do falecimento nem todo esse sangue, não mais do que a uma H&K ou a uma Glock importariam uma merda as manchas no tapete ou os ladrilhos melados ou as artérias que gotejavam. A cor vermelha era unicamente o que via quando ia trabalhar, e, além disso, de todos os modos, depois de um momento, todos esses olhos horrorizados e sobressaltados e essas bocas afogadas com os últimos fôlegos, viam-se todas iguais.
Essa era a grande ironia. Na vida, cada um era um floco de neve de formosa e independente proporção, mas quando a morte chegava e se sujeitava, deixava-te com pele, músculos e ossos anônimos, os quais se esfriava e deterioravam a um ritmo previsível.
Ela era a arma conectada ao indicador de seu chefe. Ele apertava o gatilho, ela disparava, o corpo caía, e apesar do fato de que algumas vidas eram alteradas para sempre, no dia seguinte o sol ainda saía e se punha para todas as demais pessoas que havia no planeta, incluindo a ela.
Tal era o curso de seu trabalho-obrigação, como o definia: metade emprego, metade obrigação pelo que Rehv fazia para proteger aos dois.
Quando voltasse para este lugar ao anoitecer, faria o que tinha que fazer ali e sairia com a consciência tão intacta e segura como uma abóbada bancária.
Entrar e sair e nunca voltar a pensar nisso.
Assim era o caminho e a vida de um assassino.
Capítulo 15
Os aliados eram a terceira engrenagem na maquinaria da guerra.
Os recursos e os recrutas lhe davam o motor tático que permitiam a se enfrentar, cercar combate, e reduzir o tamanho e força dos exércitos de seus inimigos. Os aliados eram sua vantagem estratégica, gente cujos interesses estavam alinhados com os teus, embora suas filosofias e metas finais pudessem não coincidir. Era tão importante como o primeiro e o segundo se queria ganhar, mas eram um pouco menos controláveis.
A menos que soubesse como negociar.
— Estamos conduzindo faz um tempo. — disse o senhor D detrás do volante do Mercedes do falecido pai adotivo de Lash.
— E vamos seguir conduzindo um pouco mais. — Lash estudou seu relógio.
— Não vai dizer aonde vamos?
— Não. Não o fiz, verdade?
Lash olhou pela janela do sedã. As árvores aos lados da Northway pareciam desenhos feitos a lápis antes que se riscassem as primeiras folhas, nada mais que carvalhos ermos, sebes altas, finas e retorcidas. As únicas a ter um pouco de verde eram as robustas e rechonchudas coníferas, as quais iam aumentando em número à medida que se internavam no Parque Adirondack.
Céu cinza. Auto-estrada cinza. Árvores cinza. Era como se a paisagem do estado de Nova Iorque tivesse caído presa da gripe ou alguma merda assim, com um aspecto tão são como o de alguém que não tinha recebido sua vacina de pneumonia a tempo.
Havia duas razões pelas que Lash não tinha sido franco sobre aonde ele e seu segundo ao comando se dirigiam. A primeira era diretamente de mariquinha, e mal podia admitir para si mesmo. Não estava certo se iria ao encontro que tinha marcado.
A questão era que este aliado era complicado, e Lash sabia que só o fato de se aproximar era como cutucar um ninho de vespas com um pau. Sim, seria um grande aliado potencial, mas, se em um soldado a lealdade era um bom atributo, em um aliado era missão crítica, e para onde se dirigiam a lealdade era um conceito tão desconhecido como o medo. Assim, estava mais ou menos fodido nos dois extremos e por isso não falava. Se a reunião não corresse bem, ou se sua aproximação não funcionasse, não haveria negociação, e nesse caso, o senhor D não tinha que saber os pormenores de com quem ia negociar.
A outra razão que fazia com que Lash guardasse silêncio era que não estava seguro se a outra parte apareceria à festa. Em cujo caso, outra vez, não queria que soubessem o que tinha estado planejando.
Na lateral da estrada, em um pequeno sinal verde com letras refletivas brancas se lia: FRONTEIRA EUA 61.
Sim, sessenta e um quilômetros e estaria fora do país… E por isso a colônia symphath tinha sido colocada lá em cima. O objetivo tinha sido manter a todos esses filhos da puta sociopatas tão longe da população civil vampiro como fosse possível, e o objetivo foi alcançado. Um pouco mais perto do Canadá e teria que lhes dizer “foda-se” e “morre” em francês.
Lash fazia o contato graças ao velho Rolodex de seu pai adotivo, o que como o carro do macho, tinha provado ser muito útil. Como anterior leahdyre da câmara de vereadores, Ibix teve uma forma de contatar com os symphaths no caso de algum se encontrar escondendo-se entre a população geral e ter que ser deportado. É obvio, que a diplomacia entre as espécies nunca tinha sido oficial. Isso teria sido como oferecer a garganta exposta a um assassino em série, com o Henckels para cortá-la inclusive.
O e-mail de Lash ao rei dos symphaths tinha sido curto e direto ao ponto, e na breve missiva, identificou-se como quem era realmente, não como quem tinha crescido pensando que era: ele era Lash, chefe da Sociedade Lessening. Lash, filho de Omega. E estava procurando uma aliança contra os vampiros que tinham discriminado e rechaçado aos symphaths.
Certamente o rei queria vingança pela falta de respeito demonstrada a sua gente.
A resposta que recebeu foi tão gentil que quase vomitou. Mas então recordou de seus dias de treinamento que os symphaths tratavam tudo como se fosse uma partida de xadrez… Exatamente até o momento em que capturavam a seu rei, convertiam a sua rainha em uma puta, e queimavam seus castelos. A resposta do líder da colônia assinalava que um debate associado de interesse mútuo seria bem-vindo, e tinha perguntado se Lash seria tão amável de ir ao norte, já que as opções de viagem do rei exilado estavam, por definição, limitadas.
Lash fora de carro porque impôs uma condição própria, que era a assistência do senhor D. A verdade era que estabeleceu a condição simplesmente para igualar as demandas. Queriam que fosse a eles, bem, ele levaria um de seus homens. E como o lesser não podia desmaterializar-se, era necessário dirigir.
Cinco minutos depois, o senhor D pegou uma saída da auto-estrada e atravessou um centro urbano que era do tamanho de apenas um dos sete parques da cidade de Caldwell. Aqui não havia arranha-céu, só edifícios de tijolos de quatro e cinco andares, tanto assim parecia como se os duros meses de inverno tivessem impedido não só o crescimento das árvores, mas também da arquitetura.
Por ordem de Lash, conduziram para o oeste, passando hortas de pomares de maçãs desfolhados e granjas de vacas cercadas.
Como tinha feito na auto-estrada, aqui também desfrutou da paisagem com olhos ávidos. Ainda o surpreendia poder presenciar a leitosa luz solar de dezembro lançando sombras sobre calçadas, telhados de casas e sobre a terra marrom que havia sob as nuas extremidades das árvores. Em seu renascimento, seu verdadeiro pai lhe deu um propósito renovado, junto com este dom da luz diurna, e desfrutava imensamente de ambos.
O GPS do Mercedes apitou um par de minutos depois, e a leitura se tornou toda incerta. Imaginou que isso significava que se aproximavam da colônia, e para lhe dar razão apareceu a estrada que estavam procurando. Ilene Avenue estava indicada somente por um diminuto sinal. E avenida, uma merda, não era nada mais que um caminho de terra que cruzava os campos de milho.
O sedã fazia o que podia sobre o caminho acidentado, seus amortecedores absorviam as crateras criadas pelos atoleiros, mas a viagem teria sido mais fácil em um fodido quatro por quatro. Não obstante, ao final, na distância apareceu um grosso circulo de árvores, e a granja que conformava a cabeça ao redor da qual estavam apinhados, estava em condições imaculadas, toda pintada de um branco brilhante com venezianas e teto verde escuro. Como tirado de um cartão de natal humano, com fumaça saindo de suas quatro chaminés, e o alpendre equipado com cadeiras de balanço e arbustos de folha perene.
Ao aproximar-se, passaram um discreto sinal branco e verde que dizia: ORDEM MONÁSTICA TAOISTA, EST. 1982.
O senhor D estacionou o Mercedes, desligou o motor, e fez o sinal da cruz sobre seu peito. O que era fodidamente estúpido.
— Isto me dá mau agouro.
A questão era que o pequeno texano tinha razão. Apesar do fato de que a porta dianteira estava aberta e a luz do sol se derramava sobre um piso de madeira de uma quente cor cereja, algo mal espreitava depois da fachada familiar. Era simplesmente muito perfeito, muito calculado para fazer com que uma pessoa se relaxasse e assim debilitar seus instintos defensivos.
Lash pensou que era como uma garota bonita com uma ETS.
— Vamos. — disse.
Ambos saíram, e enquanto o senhor D empunhava sua Magnum, Lash não se incomodou em procurar sua arma. Seu pai lhe tinha proporcionado muitos truques, e a diferença daquelas ocasiões em que tratava com humanos, não tinha problemas em mostrar suas habilidades especiais diante de um symphath. Se acaso, montar um espetáculo ajudaria a que o vissem sob a luz apropriada.
O senhor D colocou seu chapéu de cowboy.
— Isto realmente me dá um mau pressentimento.
Lash entrecerrou os olhos. Frente a cada uma das janelas, penduravam cortinas de renda, mas apesar do branco do tecido, a merda era horripilante... Uau! Moviam-se?
Nesse momento, compreendeu que não era renda, a não ser tecidos de aranha. Povoadas por aracnídeos brancos.
— São... Aranhas?
— Sim. — certamente não seria a escolha decorativa de Lash, mas bom, ele não tinha que viver ali.
Os dois se detiveram no primeiro dos três degraus que levavam ao alpendre dianteiro. Caralho, algumas portas abertas não eram acolhedoras, e definitivamente aqui se dava o caso... Menos de “olá-como-está”, e mais de “entra-assim-poderemos-usar-tua-pele-para-fazer-uma-capa-de-superherói-para-um-dos-pacientes-de-hannibal-lecter”.
Lash sorriu. Quem quer que estivesse nessa casa era definitivamente um amigo.
— Quer que suba e toque a campainha? — disse o senhor D — Se é que há?
— Não. Esperaremos. Eles virão até nós.
E olhe só, alguém apareceu no extremo mais afastado do vestíbulo dianteiro.
O que desceu para eles tinha suficiente tecido pendurando de sua cabeça e ombros para competir com um cenário da Broadway. O tecido era estranho, de um branco reluzente, um branco que captava a luz e a refletia entre as grossas dobras, e o peso de toda ela era capturado por um forte cinturão branco de brocado.
Muito impressionante. Se te agradava o filme monarca-sacerdotal.
— Saudações, amigo. — disse uma voz baixa e sedutora — Sou o que procuram, o líder dos ingratos.
Os “s” se arrastavam até quase formar palavras independentes, o acento soava muito parecido ao tremor de advertência de uma serpente cascavel.
Um calafrio atravessou Lash e o formigamento desceu até seu pênis. O poder era, antes de tudo, melhor que o “Êxtase” como afrodisíaco, e esta coisa que se deteve entre os batentes da porta dianteira era toda autoridade.
Longas e elegantes mãos se estenderam para o capuz e jogaram as brancas dobras para trás. O rosto do líder ungido dos symphaths era tão suave como sua espetacular túnica, os planos das bochechas e queixo formados por elegantes e suaves ângulos. O lago genético que tinha engendrado a este formoso e decadente assassino era tão refinado que seu sexo era quase único, fundindo as características de macho e fêmea, com uma preponderância para o feminino.
Entretanto, o sorriso era completamente gelado. E os cintilantes olhos vermelhos eram sagazes até a malevolência.
— Não querem entrar?
A adorável voz serpentina fundiu essas palavras umas com outras, e Lash se encontrou desfrutando do som.
— Sim. — disse, voltando a concentrar-se no assunto — Faremos isso.
Quando se adiantou, o rei elevou a palma da mão.
— Um momento, se não se importar. Por favor, diga a seu associado que não tenha medo. Nada lhes fará mal aqui. — a declaração era bastante amável na superfície, mas o tom foi duro... Do qual Lash deduziu que não eram bem-vindos na casa se o senhor D levava uma arma na mão.
— Guarde a arma. — disse Lash brandamente — Nos tenho cobertos.
O senhor D embainhou a 357, com um “sim, senhor” tácito, e o symphath se afastou da porta.
Enquanto subiam os degraus, Lash franziu o cenho e baixou o olhar. Suas pesadas botas de combate não faziam nenhum som sobre a madeira, e o mesmo ocorreu sobre as tabuletas do alpendre quando se aproximaram da porta.
— Preferimos as coisas silenciosas. — o symphath sorriu, revelando que tinha os dentes parecidos, o que foi uma surpresa. Evidentemente, as presas destas criaturas, que uma vez tinha estado estreitamente aparentadas com os vampiros, tinham sido extirpadas. Se ainda se alimentavam, não podia ser muito freqüentemente, a menos que gostassem das facas.
O rei estendeu o braço à esquerda.
— Passamos ao salão?
O “salão” poderia ser descrito mais precisamente como “pista de boliche com cadeiras de balanço”. O espaço não era mais que um lustroso piso de madeira, e paredes cobertas só por pintura branca. No meio do caminho havia quatro cadeiras Shaker agrupadas formando um semicírculo ao redor da lareira acesa como se tivessem medo de tanto vazio e se apinhassem em busca de apoio.
— Sentem-se. — disse o rei enquanto levantava e afastava sua túnica para sentar-se em uma das altas e débeis cadeiras.
— Você fica de pé. — ordenou Lash ao senhor D, que obedientemente tomou posição atrás de onde Lash se sentou.
As chamas não estalavam alegremente ao consumir os lenhos que lhes tinham dado vida e as alimentavam. As cadeiras de balanço não rangeram quando o rei e Lash depositaram seu peso nelas. As aranhas não emitiram som quando cada uma caiu no centro de sua rede, como se preparassem-se para presenciar a reunião.
— Você e eu temos uma causa comum. — disse Lash.
— Parece acreditar nisto.
— Acreditava que sua raça acharia a vingança atrativa.
Quando o rei sorriu, esse estranho calafrio se disparou para o sexo de Lash.
— Está mal informado. A vingança não é mais que uma defesa crua e emocional contra um desprezo recebido.
— Está me dizendo que está abaixo de você? — Lash se recostou para trás e pôs sua cadeira em movimento, levando-a adiante e atrás — Hmmmm... Posso ter julgado a sua raça mal.
— Somos mais sofisticados que isso, sim.
— Ou talvez sejam só um bando de maricas.
O sorriso desapareceu.
— Somos muito superiores àqueles que acreditam nos haver aprisionado. Para falar a verdade, preferimos nossa própria companhia. Acredita que não projetamos este resultado? Tolo. Os vampiros são o caldo de cultivo a partir do qual evoluímos, são os chimpanzés para nosso raciocínio superior. Iria querer permanecer entre animais se pudesse viver em uma civilização com os de sua própria espécie? É obvio que não. Um busca a seus iguais. Requer a seus iguais. Aqueles de mentes semelhantes e superiores devem ser alimentados somente por aqueles de status similar. — os lábios do rei se elevaram — Sabe que é correto. Você tampouco ficou onde começou. Verdade?
— Não, não o fiz. — Lash deixou ver suas presas, pensando que sua marca de maldade não tinha encaixado entre os vampiros melhor do que ocorreu com os devoradores de pecados — Agora estou onde devo estar.
— Assim já vê. Se não tivéssemos desejado o exato resultado que obtivemos nesta colônia, poderíamos ter empreendido não precisamente uma vingança, mas sim uma ação corretiva que buscasse que nosso destino fosse favorável a nossos interesses.
Lash deixou de balançar-se.
— Se não estava interessado em uma aliança, poderia ter me dito isso sem delongas em um fodido email.
Uma estranha luz cintilou nos olhos do rei, uma que fez com que Lash se excitasse ainda mais, mas também o repugnou. Não ia a essa merda homossexual, e ainda assim... Bem, demônios, seu pai gostava dos machos, talvez algo disso se levava no sangue.
E acaso isso não daria ao senhor D algo pelo que rezar?
— Mas se tivesse enviado um email, não teria o prazer de te conhecer. — esses olhos cor vermelha rubi percorreram o corpo de Lash — E isso teria sido um roubo a meus sentidos.
O pequeno texano clareou a garganta, como se estivesse se engasgando com a língua.
Quando a tosse desaprovadora se desvaneceu, a cadeira do rei começou a mover-se acima e abaixo silenciosamente.
— Entretanto, há algo que poderia fazer por mim... Algo que por sua vez faria sentir obrigado a te proporcionar o que busca... Que é localizar vampiros, não é assim? Essa foi durante muito tempo a luta da Sociedade Lessening. Encontrar vampiros dentro de seus lares ocultos.
O bastardo tinha posto o dedo na ferida. No verão, Lash tinha sabido onde atacar porque tinha estado nos imóveis dos que tinha matado, participando de festas de aniversário de seus amigos, bodas de seus primos e bailes da glymera celebrados naquelas mansões. Agora, entretanto, o que ficava da elite dos vampiros se dispersou nos subúrbios da cidade ou tinha ido a seus refúgios fora do estado, e não conhecia esses endereços. E quanto aos civis? Aí não tinha nem idéia de por onde começar, porque nunca tinha confraternizado com o proletariado.
Os symphaths, entretanto, podiam sentir a outros, humanos e vampiros igualmente, vendo-os através de paredes sólidas e alicerces de porões subterrâneos. Se quisesse fazer algum progresso, precisava desse tipo de visão, era a única coisa que faltava entre todas as ferramentas que seu pai estava lhe proporcionando.
Lash empurrou o chão com suas botas de combate outra vez e adotou o mesmo ritmo que o rei.
— E exatamente o que é o que poderia necessitar de mim? — disse arrastando as palavras.
O rei sorriu.
— Os acoplamentos são nosso pilar fundamental, verdade? A união de um macho e uma fêmea. E não obstante dentro dessas relações íntimas é comum a discórdia. Promessas são feitas, mas não se mantêm. Pronunciam-se votos e ainda assim se descartam. Contra estas transgressões, medidas devem ser tomadas.
— Parece que esteve falando de vingança, tipo duro.
Esse rosto suave adquiriu uma expressão de auto-suficiência.
— Não, vingança não. Ação corretiva. Se isso implicar uma morte... É simplesmente o que a situação requer.
— Morte, não é? Assim que os symphaths não acreditam no divórcio?
Os olhos cor rubi cintilaram com desprezo.
— No caso de um consorte desleal cujas ações fora da cama atuam contra a alma da relação, a morte é o único divórcio.
Lash assentiu com a cabeça.
— Entendo a lógica. E quem é o objetivo?
— Está se comprometendo a atuar?
— Ainda não. — não tinha claro exatamente quão longe estava disposto a chegar. Sujar as mãos dentro da colônia não fora parte de seu plano original.
O rei deixou de balançar-se e ficou em pé.
— Pensa então, até que esteja seguro. Quando estiver preparado para receber de nós o que necessita para a guerra, volte para mim e mostrarei o modo de proceder.
Lash também se levantou.
— Por que simplesmente não mata você mesmo a sua companheira?
O lento sorriso do rei foi como o de um cadáver, rígido e frio.
— Meu queridíssimo amigo, o insulto que mais reprovo não é tanto a deslealdade, a qual poderia esperar, mas sim a arrogante hipótese de que nunca me inteiraria do engano. O primeiro é uma insignificância. O último é indesculpável. Agora... O acompanho até seu carro?
— Não. Sairemos por nós mesmos.
— Como desejar. — o rei estendeu sua mão de seis dedos — Foi um prazer...
Lash estendeu a sua e quando suas palmas se encontraram, sentiu a eletricidade lambendo seu braço.
— Sim. O que for. Terá notícias minhas.
Capítulo 16
Ela estava com ele... Oh, Deus, finalmente estava de volta com ele.
Tohrment, filho de Hharm, estava nu e pressionado contra a carne de sua amada, sentindo sua pele acetinada e ouvindo seu ofego quando levava a mão até seu peito. Cabelo vermelho... Havia cabelo vermelho esparramado por todo o travesseiro, a fez rodar de costas sobre os lençóis brancos que cheiravam como limões... Cabelo vermelho enredado ao redor de seu grosso antebraço.
O mamilo estava tenso contra seu polegar que se movia em círculos e sentiu a suavidade de seus lábios sob os seus ao beijá-la profunda e lentamente. Quando estivesse suplicando por ele, rodaria sobre ela e a tomaria por cima, penetrando-a com força, segurando-a em seu lugar.
Gostava de seu peso. Gostava da sensação de que a cobrisse. Em sua vida juntos, Wellsie era uma fêmea independente com uma mente forte e uma veia teimosa que rivalizava com a de um bulldog, mas na cama gostava que ele estivesse em cima.
Deixou cair a boca sobre seu seio, sugando o mamilo, fazendo-o rodar, beijando-o.
— Tohr...
— O que, leelan? Mais? Talvez tenha que te fazer esperar...
Mas não podia. Ocupou-se dela e lhe acariciou o estômago e os quadris. Quando se retorceu, lambeu seu pescoço e passou as presas pela jugular. Não podia esperar para alimentar-se. Por alguma razão, estava ávido de sangue. Talvez estivesse lutando muito.
Os dedos dela se afundaram em seu cabelo.
— Tome minha veia...
— Ainda não. — o aguilhão da espera só o faria ainda melhor... Quanto mais a desejasse, mais doce seria o sangue.
Deslocando-se para sua boca, beijou-a com mais força que antes, penetrando-a com a língua enquanto deliberadamente esfregava seu pênis contra a coxa, uma promessa de outra invasão, mais profunda em sua parte inferior. Estava completamente excitada, sua fragrância se elevava acima do aroma de limão dos lençóis, fazendo com que as presas brotassem em sua boca e a ponta de seu sexo se umedecesse.
Sua shellan tinha sido a única mulher que tinha conhecido. Ambos eram virgens na noite de seu emparelhamento... E ele nunca tinha desejado a ninguém mais.
— Tohr...
Deus! Amava o som baixo de sua voz. Amava tudo nela. Foram prometidos um ao outro antes de nascerem, e no momento em que se conheceram havia sido amor a primeira vista. O destino tinha sido amável com eles.
Deslizou a palma até sua cintura, e então...
Deteve-se, compreendendo que algo ia mal. Algo...
— Sua barriga... Sua barriga está plana.
— Tohr...
— Onde está o pequeno? — retirou-se, sentindo pânico — Estava grávida. Onde está o pequeno? Está bem? O que aconteceu com você... Está bem?
— Tohr...
Ela abriu os olhos, e o olhar que tinha conhecido durante centenas de anos se concentrou nele. Uma tristeza, do tipo que o fazia desejar não ter nascido jamais, eliminou o rubor sexual de seu formoso rosto.
Levantando o braço para ele, pôs a mão em sua bochecha.
— Tohr...
— O que aconteceu?
— Tohr...
O brilho em seus olhos e o tremor de sua adorável voz o partiu pela metade. Logo começou a distanciar-se, o corpo começou a desaparecer sob suas mãos, seu cabelo vermelho, seu rosto delicioso, seus olhos desesperados se desvaneceram até que ante ele somente ficaram os travesseiros. Logo, com um golpe final, o aroma de limão dos lençóis e a fragrância natural somente dela deixaram seu nariz, substituídos por nada...
Tohr se endireitou de um salto no colchão, com os olhos alagados de lágrimas e seu coração dolorido como se tivesse pregos atravessando seu peito. Respirando agitadamente se aferrou o esterno e abriu a boca para gritar.
Não saiu nenhum som. Não tinha forças.
Caindo para trás sobre os travesseiros limpou as bochechas úmidas com mãos trementes e tentou acalmar esse inferno. Quando finalmente recuperou o fôlego, franziu o cenho. Seu coração estava saltando dentro de sua caixa torácica, estava revoando mais que pulsando, e um enjôo, ocasionado, sem dúvida por seus erráticos espasmos fazia girar sua cabeça em um redemoinho.
Levantando a camiseta, baixou o olhar a seus peitorais desinflados e a seu torso encolhido e insistiu a seu corpo a seguir falhando. Os acessos lhe estavam chegando com crescente regularidade e força, e desejava como o demônio que se organizassem de uma vez e o ajudassem a despertar morto. Se quisesse ir ao Fade para estar com seus defuntos seres queridos, o suicídio não era uma opção, mas ele estava operando sob a presunção de que podia ser efetivamente negligente consigo mesmo até a morte. O que tecnicamente não era um suicídio, como seria se disparar um tiro ou jogar um nó corrediço ao redor do pescoço, ou cortar os punhos.
O aroma de comida que chegava do corredor o fez olhar ao relógio. Quatro da tarde. Ou era da manhã? As cortinas estavam corridas, assim não sabia se as persianas estavam levantadas ou baixadas.
Soou um golpe suave.
O qual, fodido obrigado, significava que não era Lassiter, que simplesmente entrava sempre que queria. Evidentemente os anjos caídos não sabiam muito de boas maneiras. Nem de espaço pessoal. Nem de limites de algum tipo. Estava claro que o grande e brilhante pesadelo foi arremessado a pontapés do céu porque Deus não tinha gostado de sua companhia muito mais do que Tohr gostava.
O golpe se repetiu. Assim devia ser John.
— Sim. — disse Tohr, permitindo que sua camiseta caísse enquanto se elevava para recostar-se sobre os travesseiros. Seus braços, uma vez fortes como gruas, lutaram sob o peso de seus ombros caídos.
O menino, que já não era um menino, entrou levando uma bandeja pesadamente carregada de comida, e uma expressão cheia de otimismo infundado.
Tohr examinou o conteúdo com o olhar enquanto a carga era depositada na mesinha. Frango com ervas, arroz com açafrão, feijões verdes e pão fresco.
A merda perfeitamente poderia ter sido carne de animal atropelado envolto em arame farpado, pelo que lhe importava, mas agarrou o prato, desenrolou o guardanapo, pegou o garfo e a faca e os utilizou.
Mastigar. Mastigar. Mastigar. Engolir. Mais mastigar. Engolir. Beber. Mastigar. Comer era tão mecânico e autônomo como respirar, algo do que era só levemente consciente, uma necessidade, não um prazer.
O prazer era coisa do passado... E uma tortura dentro de seus sonhos. Quando evocava sua shellan contra ele, nua, sobre lençóis com aroma de limão, a fugaz imagem acendia seu corpo de dentro para fora, o fazendo sentir-se vivo, e não só que vivia. Entretanto, o golpe do encontro se desvanecia rapidamente, era como uma chama sem nenhum abajur para sustentá-la.
Mastigar. Cortar. Mastigar. Engolir. Beber.
Enquanto comia, o menino se sentou em uma cadeira junto às cortinas fechadas, com os cotovelos nos joelhos, os punhos no queixo, um Pensador do Rodin vivinho e abanando o rabo. Ultimamente John sempre estava assim, sempre dando voltas em algo na cabeça.
Tohrment sabia condenadamente bem do que se tratava, mas a solução que terminaria com a triste preocupação de John primeiro ia doer-lhe como a merda.
E Tohr lamentava. Lamentava muito.
Cristo, por que Lassiter não podia tê-lo deixado deitado sem mais, naquele bosque? Esse anjo poderia ter ficado quietinho, mas não, Seu Senhorio Halogênico tinha que ser um herói.
Tohr desviou os olhos para John e seu olhar se fechou sobre o punho do menino. A coisa era enorme, e o queixo e mandíbula que descansavam sobre ele eram fortes, masculinos. O menino se converteu em um homem bonito, mas bem, como filho de Darius, provinha de um bom lago genético. Um dos melhores.
O que o levava a pensar... Verdadeiramente se parecia com D, uma cópia ao carvão, em realidade, exceto pelos jeans azuis. Darius nem morto se deixaria ver com jeans, nem sequer com esses de estilistas elegantes como os que John usava.
De fato... D com freqüência assumia exatamente a mesma posição quando estava ruminando sobre a vida, imitando o Rodin, todo cenho e agitação...
Um brilho de prata titilou na mão livre de John. Era um quarto de dólar, e o menino passava a moeda dentro, fora e ao redor de seus dedos, sua versão de um tic nervoso.
Esta noite havia algo mais no silêncio que John costumava assumir quando permanecia ali sentado. Algo tinha acontecido.
— O que aconteceu? — perguntou Tohr com voz áspera — Está bem?
Os olhos de John se elevaram de repente com surpresa.
Para evitar o olhar, Tohr baixou os seus, espetando um pouco de frango, e metendo-o na boca. Mastigar. Mastigar. Engolir.
A julgar pelos sons de movimento, John estava se desenroscando de sua rotina lentamente, como se temesse que qualquer movimento súbito espantasse a pergunta que ficava entre eles.
Tohr levantou o olhar de novo, e enquanto esperava, John meteu a moeda no bolso e gesticulou com economia e graça.
Wrath está lutando de novo. V acaba de contar isso a mim e aos meninos.
Tohr tinha perdido a prática com a Linguagem por Gestos Americano, mas nem tanto. A surpresa fez que baixasse seu garfo.
— Espere... Ainda é o rei, verdade?
Sim, mas esta noite disse aos Irmãos que vai voltar a ocupar seu lugar na rotação. Ou, suponho que esteve na rotação sem dizer a ninguém. Acredito que a Irmandade está de saco cheio com ele.
— Rotação? Não pode ser. Não se permite que o rei lute.
Agora sim. E Phury também voltará.
— Que porra? Supõe-se que o Primale não... — Tohr franziu o cenho — Há alguma mudança na guerra? Aconteceu algo?
Não sei. John encolheu de ombros e se recostou na cadeira, cruzando as pernas à altura dos joelhos. Outra coisa que sempre fazia Darius.
Nessa pose o filho parecia tão velho como o pai tinha sido, embora tivesse menos a ver com a forma em que estavam colocadas as extremidades do John e mais com o cansaço extremo que havia em seus olhos azuis.
— Não é legal. — disse Tohr.
Agora sim. Wrath se reuniu com a Virgem Escriba.
Na mente de Tohr começaram a zumbir perguntas, seu cérebro brigava com a carga desacostumada. No meio do deslocado redemoinho, era difícil pensar coerentemente, e sentia como se estivesse tentando segurar cem bolas de tênis entre seus braços, sem importar quão arduamente tentasse, algumas escorregavam e ricocheteavam a seu redor, criando uma confusão.
Deixou de tentar encontrar sentido em algo.
— Bem, isso é uma mudança... Desejo-lhes sorte.
A exalação baixa de John resumiu tudo bastante bem e Tohr voltou a se desconectar do mundo e retornou a sua comida. Quando terminou, dobrou o guardanapo pulcramente e tomou um último sorvo do copo de água.
Ligou a TV e pôs na CNN, porque não queria pensar e não podia agüentar o silêncio. John ficou aproximadamente meia hora, e quando foi evidente que já não suportava estar quieto durante mais tempo ficou em pé e se despediu.
O verei ao final da noite.
Ah, assim era de noite.
— Estarei aqui.
John recolheu a bandeja e saiu sem deter-se, nem duvidar. A princípio, houve bastante de ambas, como se a cada vez que chegasse à porta esperasse que Tohr o detivesse e dissesse: “Estou preparado para confrontar a vida. Vou seguir adiante. Estou melhor o bastante para me preocupar contigo”.
Mas a esperança não era eterna.
Quando a porta se fechou, Tohr afastou os lençóis de suas pernas fracas e passou os pés sobre a beirada do colchão.
Estava preparado para confrontar algo, sim, mas não sua existência. Com um gemido e uma inclinação brusca, foi cambaleando até o banheiro, foi ao vaso, e levantou o assento do trono de porcelana. Inclinando-se, deu a ordem e seu estômago evacuou a comida sem protestar.
No princípio tinha que colocar o dedo na garganta, mas não mais. Só esticava o diafragma e tudo saía como ratos fugindo de uma boca-de-lobo transbordante.
—Tem que acabar com essa merda.
A voz de Lassiter harmonizava com o som do vaso alagando-se. O que tinha muito sentido.
— Cristo, acaso bate alguma vez?
— Sou Lassiter. L-A-S-S-I-T-E-R. Como é possível que ainda siga me confundindo com outro? Necessita um adesivo com meu nome?
— Sim, e o ponha sobre sua boca. — Tohr se largou sobre o mármore e deixou a cabeça cair entre as mãos — Sabe, pode ir para casa. Pode ir quando quiser.
— Ponha seu rabo em movimento então. Porque isso é o que conseguiria que o fizesse.
— Vá, agora tenho uma razão para viver.
Houve um suave som de campainhas, o que queria dizer, tragédia das tragédias, que o anjo acabava de subir no balcão.
— Então, o que fazemos esta noite? Espera! Deixe-me adivinhar, nos sentar em áspero silêncio. Ou, não... Agora está alternando. Meditar com emotiva intensidade, verdade? Que enchimento de saco selvagem é. Whoo-Hooo. Quando quiser acordar, estará aplicando para provar o nó corrediço.
Com uma maldição, Tohr se levantou e foi abrir a ducha, esperando que se negasse a olhar ao boca dura, Lassiter se aborreceria rapidamente e iria arruinar a tarde de algum outro.
— Pergunta. — disse o anjo — Quando vamos cortar esse tapete que está crescendo em sua cabeça? Se essa merda ficar mais longa, vamos ter que ceifá-la como se fosse feno.
Enquanto Tohr tirava a camiseta e a cueca boxer, desfrutou do único consolo que tinha quando sofria a companhia de Lassiter: expor-se nu ante o idiota.
— Homem, o rabo plano é uma coisa. — resmungou Lassiter — Mas exibe um par de bolas de basquete desinfladas aí atrás. Faz com que me pergunte... Hey, certamente Fritz tem uma bomba de bicicleta. Só comentava.
— Você não gosta da vista? Já sabe onde está a porta. É essa em que nunca bate.
Tohr não deu tempo para a água esquentar, simplesmente se meteu sob o jorro e se limpou sem nenhuma boa razão que soubesse... Não tinha orgulho, assim que lhe importava uma merda o que outros pensassem de sua higiene.
Vomitar tinha um propósito. A ducha... Talvez... Simplesmente fosse um hábito.
Fechando os olhos, separou os lábios e ficou de pé frente ao jato. A água lambeu o interior de sua boca, varrendo a bílis e quando a ardência abandonou sua língua, um pensamento entrou em seu cérebro.
Wrath estava fora lutando. Sozinho.
— Hey, Tohr.
Tohr franziu o cenho. O anjo nunca utilizava seu nome próprio.
— O que?
— Esta noite é diferente.
— Sim, só se me deixe em paz. Ou se ponha a você mesmo neste banho. Há seis chuveiros para escolher aqui dentro.
Tohr pegou o sabonete e o passou sobre seu corpo, sentindo os duros e agudos impulsos de seus ossos e articulações através da pele fina.
Wrath estava fora sozinho.
Xampu. Enxágüe. Voltar para o jorro. Abrir a boca.
Fora. Sozinho.
Quando terminou a ducha, o anjo estava no centro do banheiro com uma toalha, todo amabilidade e essa merda.
— Esta noite é diferente. — disse Lassiter brandamente.
Tohr olhou ao anjo seriamente, vendo-o pela primeira vez, embora tenham passado quatro meses juntos. O anjo tinha o cabelo negro e loiro, tão longo como o de Wrath, mas, apesar de todo esse estilo Cher descendo por suas costas não era nenhum efeminado. Seu guarda-roupa parecia tirado diretamente do exército/marinha, camisetas negras, calças de camuflagem e botas de combate, mas não era absolutamente um soldado. O idiota estava perfurado como um agulheiro e tinha tantos acessórios como um joalheiro, com aros de ouro e correntes que penduravam dos buracos que tinha nas orelhas, pulsos e sobrancelhas. E podia apostar que tinha acessórios no peito e mais abaixo da cintura... O que era algo em que Tohr se negava a pensar. Não precisava de ajuda para vomitar, muito obrigado.
Quando a toalha trocou de mãos, o anjo disse com gravidade.
— Hora de despertar, Cinzeiro.
Tohr estava a ponto de apontar que essa era a Bella Adormecida quando lhe chegou uma lembrança como se fosse injetada no lóbulo frontal. Era da noite em que salvara a vida de Wrath lá pelo ano 1958, e as imagens lhe chegaram com a absoluta clareza da experiência atual.
O rei esteve fora. Sozinho. No centro.
Meio morto e sangrando sobre a sarjeta.
Um Edsel lhe tinha investido. Um pedaço de merda de um Edsel conversível de cor azul sombra de olhos de uma garçonete.
Pelo que Tohr pôde deduzir mais tarde, Wrath devia estar perseguindo um lesser a pé e ao girar a toda em uma esquina esse carro grande como uma lancha tinha lhe investido. Tohr estava a dois quarteirões de distância e ouviu o chiado dos freios e um impacto de algum tipo, e estava preparado para não fazer absolutamente nada.
Acidentes de trânsito humanos? Não era problema seu.
Mas então um par de lessers passou correndo frente à entrada do beco onde ele estava. Os assassinos fugiam como loucos sob a garoa de outono, como se algo os perseguisse, exceto não havia ninguém correndo atrás de seus calcanhares. Esperou caso aparecesse algum de seus irmãos. Nenhum deles tinha feito ato de presença.
Não fazia sentido nenhum. Se um assassino tivesse sido golpeado por um carro em companhia de seus cúmplices, estes não teriam abandonado o cenário. Os outros teriam matado o condutor humano e a qualquer possível passageiro, logo teriam metido o seu morto no porta-malas e teriam ido conduzindo da cena: a última coisa que a Sociedade Lessening queria era a um lesser incapacitado derramando sangue negro sobre a rua.
Talvez fosse só coincidência. Um pedestre humano. Ou alguém em uma moto. Ou dois carros.
Entretanto, tinha sido somente um par de freadas. E nada disso explicaria o par de pálidos corredores que tinha passado junto a ele como se fossem incendiários fugindo de um fogo que teriam acendido.
Tohr tinha trotado até o Trade, e ao dar a volta na esquina tinha captado a visão de um macho humano com um chapéu e um casaco agachado sobre um corpo encolhido que era duas vezes o seu tamanho. A esposa do homem, que estava vestida com um desses frívolos vestidos de saias avultadas dos anos cinqüenta, estava de pé justo na frente dos faróis, aconchegada em seu casaco de pele.
Sua brilhante saia vermelha era da cor das nervuras que havia no pavimento, mas o aroma do sangue derramado não era humano. Era vampiro. E o que tinha sido atropelado tinha um comprido cabelo negro...
A voz da mulher era estridente.
— Temos que levá-lo ao hospital...
Tohr interviu, interrompendo-a:
— É meu.
O homem tinha levantado o olhar.
— Seu amigo... Não o vi... Vestido de negro... Saiu de um nada...
— Ocuparei-me dele. — nesse ponto, Tohr deixou de explicar-se e simplesmente por meio de sua vontade, tinha enviado aos dois humanos a um estado de estupor. Uma rápida sugestão mental os enviou de volta a seu carro e os pôs em caminho com a impressão de que tinham golpeado uma lata de lixo. Supôs que a chuva se ocuparia do sangue da frente do carro, e eles mesmos poderiam arrumar o amassado.
Quando se inclinou sobre o corpo do herdeiro do trono da raça, o coração de Tohr pulsava tão rápido como um martelo hidráulico. Havia sangue por toda parte, emanando rápido de um corte na cabeça de Wrath, por isso Tohr tirou a jaqueta, mordeu a manga, e rasgou uma tira de couro. Depois de envolver as têmporas do herdeiro e atar a bandagem improvisada tão forte como pôde, deteve uma caminhonete que passava, apontou com a arma ao fanático de Grease que estava atrás do volante, e fez com que o humano conduzisse até o bairro de Havers.
Ele e Wrath viajaram na carroceria traseira, e todo o tempo, esteve mantendo pressão sobre a cabeça ferida de Wrath, sob a chuva fria. Uma chuva tardia de novembro, talvez dezembro. Entretanto, agradecia que não fosse verão. Sem dúvida o frio havia diminuído o batimento do coração de Wrath e aliviado sua pressão sangüínea.
A meio quilômetro da casa de Havers, na parte luxuosa de Caldwell, Tohr havia dito ao humano que estacionasse e enquanto ficava pelo caminho lavou seu cérebro.
Os minutos que Tohr levou para chegar até a clínica foram os mais compridos de sua vida, mas conseguiu levar Wrath ali, e Havers fechou o que tinha resultado ser o corte de uma das artérias temporais.
O dia seguinte foi crítico. Inclusive com Marissa ali para alimentar ao Wrath, o rei tinha perdido tanto sangue que não evoluía como se esperava, e Tohr ficou todo o tempo sentado em uma cadeira junto à cama. Enquanto Wrath jazia tão quieto, Tohr sentia como se a vida da raça inteira pendesse de um fio, o único que podia ocupar o trono estava preso em um sonho que se distanciava por apenas uns poucos neurônios de um estado vegetativo permanente.
A notícia se espalhou e as pessoas acudiam desesperadas. As enfermeiras e o médico. Outros pacientes que se deixaram cair para rezar pelo rei a quem não serviriam. Os Irmãos, que tinham utilizado o telefone por turnos para ligar a cada quinze minutos.
A sensação coletiva era que sem o Wrath não havia esperança. Nem futuro. Nem oportunidade.
Entretanto, Wrath viveu, despertando irascível, o que o fez suspirar de alívio... Porque se um paciente tinha a energia para estar de saco cheio, ia superar.
O anoitecer seguinte, depois de ter estado fora de serviço durante vinte e quatro horas seguidas e tendo assustado de morte a todo mundo que lhe rodeava, Wrath tinha desligado a IV[39], vestiu-se, e se foi.
Sem dizer nenhuma palavra a nenhum deles.
Tohr tinha esperado... Algo. Não um obrigado, mas algum reconhecimento Ou... Algo. Demônios, agora Wrath era um filho da puta mal-humorado, mas nesse então? Era diretamente tóxico. Mesmo assim... Nada? Depois de ter salvado a vida do cara?
Recordava bastante à forma em que ele esteve tratando ao John. E a seus irmãos.
Tohr envolveu a toalha ao redor da cintura e voltou para o ponto mais importante da lembrança. Wrath tinha saído ali fora a lutar sozinho. Lá em 58, tinha sido um golpe de sorte que Tohr estivesse onde estava e tivesse encontrado o rei antes que fosse muito tarde.
— Hora de despertar. — disse Lassiter.
Capítulo 17
Enquanto a noite chegava e se instalava, Ehlena rezava para não ter que chegar tarde ao trabalho outra vez. Com o relógio correndo, esperou no andar de acima, na cozinha com o CranRas e as drogas moídas. Tinha sido meticulosa com a limpeza: tinha guardado a colher. Checando todas as superfícies duas vezes. Inclusive comprovou que o salão estivesse apropriadamente organizado.
— Pai? — chamou em direção ao porão.
Enquanto prestava atenção, a espera de sons de pés arrastando-se e palavras sem sentido pronunciadas baixinho, pensou nos sonhos estranhos que teve durante o dia. Imaginou o Rehv na escura distância com os braços pendurado nos flancos. Seu magnífico corpo nu estava iluminado como se estivesse em exibição, seus músculos se sobressaindo em um poderoso desdobramento e a cor torrada de sua pele era quente e dourada. Sua cabeça estava inclinada para baixo e tinha os olhos fechados como se estivesse em repouso.
Cativada, convocada, tinha atravessado um chão de pedra fria até ele, pronunciando seu nome uma e outra vez.
Ele não tinha respondido. Não tinha elevado a cabeça. Não tinha aberto os olhos.
O medo tinha assobiado ao longo de suas veias e tinha estremecido seu coração, e tinha se apressado para chegar a ele, mas ele tinha permanecido sempre distante, um objetivo nunca realizado, um destino nunca alcançado.
Despertara com lágrimas nos olhos e o corpo tremendo. Quando a sufocante comoção tinha retrocedido, o significado ficou claro, mas na realidade, não necessitava que seu subconsciente lhe dissesse o que ela já sabia.
Sacudindo a si mesma, voltou a gritar para baixo.
— Pai?
Quando não houve resposta, Ehlena pegou a xícara de seu pai e desceu ao porão. Fez lentamente, embora não porque tivesse medo de derramar o CranRas vermelho sangue sobre seu uniforme branco. Às vezes seu pai não se levantava por si mesmo e ela tinha que fazer este descida, e cada vez que descia os degraus por esse motivo, perguntava-se se finalmente teria ocorrido, se seu pai teria sido chamado ao Fade.
Não estava pronta para perdê-lo. Ainda não, sem importar quão difíceis fossem as coisas.
Introduzindo a cabeça através da porta de seu dormitório, o viu sentado ante sua escrivaninha esculpida à mão, rodeado de pilhas irregulares de papéis e velas apagadas.
Obrigado, Virgem Escriba.
Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, preocupou-a que a falta de luz pudesse danificar a visão de seu pai, mas as velas ficariam como estavam, porque não havia nenhum fósforo nem acendedor na casa. A última vez que ele tinha posto suas mãos sobre um fósforo tinha sido em sua antiga casa... E tinha incendiado o apartamento porque suas vozes haviam dito.
Isso ocorreu fazia dois anos, e fora a razão de que lhe tivessem receitado remédios.
— Pai?
Ele levantou o olhar da desordem e pareceu surpreso.
— Minha filha, como vai esta noite?
Sempre fazia a mesma pergunta, e sempre lhe dava a mesma resposta na Antiga Língua.
— Bem, meu pai. E você?
— Como sempre encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável. — seu pai pegou a xícara — Aonde vai?
Isto conduziu às suas “pas de deux” verbal a respeito de que não aprovava que trabalhasse e ela explicava que o fazia porque gostava, ele se encolhia de ombros e afirmava não entender à geração jovem.
— Seriamente tenho que ir, — lhe disse — mas Lusie chegará em questão de minutos.
— Sim, bem, bem. Em realidade, estou ocupado com meu livro, mas a entreterei durante um momento, como é apropriado. Entretanto, tenho que me concentrar em meu trabalho. — ondulou a mão ao redor da representação física do caos de sua mente, seu gesto elegante em contradição com a irregular coleção de papéis cheios de sem sentidos — Isto tem que ser feito.
— É obvio que sim, pai.
Ele terminou o CranRas e, quando Ehlena foi pegá-lo de sua mão, franziu o cenho.
— Certamente a criada pode fazer isso.
— Gosto de ajudá-la. Tem muitas responsabilidades. — não podia ser mais certo. A doggen tinha que seguir todas as regras para objetos e onde pertenciam, assim como fazer as compras e ganhar o dinheiro e pagar as faturas e o vigiar. A doggen estava cansada. A doggen estava esgotada.
Mas era absolutamente necessário que a xícara fosse para a cozinha.
— Pai, por favor, solte a taça para que possa levá-la para cima. A donzela teme te incomodar, e gostaria de lhe economizar essa preocupação.
Por um momento, os olhos dele se pousaram nela como estavam acostumados a fazer.
— Tem um coração formoso e generoso. Estou muito orgulhoso de te chamar de filha.
Ehlena piscou ferozmente e com voz áspera disse:
— Ser seu orgulho significa tudo para mim.
Ele estendeu o braço e apertou sua mão.
— Vai, minha filha. Vá a esse “seu trabalho”, e volte para casa comigo com histórias de sua noite.
Oh... Deus.
Era exatamente o que havia lhe dito fazia muito tempo, quando ela estava indo a um colégio particular e sua mãe estava viva e viviam entre a família e a glymera como gente de importância.
Inclusive, embora soubesse ser provável que quando voltasse para casa ele não tivesse nenhuma lembrança de haver lhe feito a velha e adorável pergunta, ela sorriu e se alimentou das saborosas migalhas do passado.
— Como sempre, meu pai. Como sempre.
Partiu com o som do passar de páginas e o “tink-tink-tink” de uma pluma golpeando a borda de um tinteiro de cristal.
Escada acima enxaguou a xícara, secou e a guardou na despensa, logo se assegurou de que no frigorífico tudo estivesse onde devia estar. Quando recebeu a mensagem de texto de que Lusie estava a caminho, transpassou a porta, fechou-a, e se desmaterializou para a clínica.
Quando chegou ao trabalho, sentiu um grande alívio de ser como todos os outros, chegando na hora, pondo as coisas em seu armário, falando de nada em particular antes que começasse o turno.
Mas então quando estava na cafeteira, Catya se aproximou dela, toda sorrisos.
— Assim... Ontem à noite foi...? Vamos, conte.
Ehlena terminou de encher seu copo e ocultou uma careta depois de um primeiro gole profundo que lhe queimou a língua.
— Acredito que não apareceu resume tudo.
— Não apareceu?
— Sim. Como em “ele não apareceu”.
Catya sacudiu a cabeça.
— Maldito seja.
— Não, está bem. De verdade. Quero dizer, não é como se tivesse esperado muito. —sim, só uma fantasia completa sobre o futuro, que incluía coisas como um hellren, uma família própria, uma vida que valesse a pena viver. Nada de outro mundo — Está bem.
— Sabe? Ontem à noite estive pensando. Tenho um primo que é...
— Obrigado, mas não. Com meu pai como está não deveria sair com ninguém. —Ehlena franziu o cenho, ao recordar quão rapidamente Rehv lhe tinha dado razão a respeito disso. Embora pudesse dizer que isso o fazia uma espécie de cavalheiro, era difícil não sentir-se um pouco aborrecida.
— Preocupar-se por seu pai não significa...
— Hey, por que não me ocupo do balcão de recepção durante a mudança de volta?
Catya se deteve, mas os olhos da fêmea se iluminaram lançando um montão de mensagens, a maior parte das quais poderiam se resumir a: “Quando esta garota vai despertar?”
— Irei agora mesmo. — disse Ehlena, dando a volta e afastando-se.
— Não durará para sempre.
— É obvio que não. A maior parte de nosso turno já chegou.
Catya sacudiu a cabeça.
— Isso não é o que quis dizer, e sabe. A vida não dura para sempre. Seu pai tem uma séria enfermidade psicológica, e é muito boa com ele, mas poderia ficar assim durante um século.
— Em cujo caso ainda sobrará ao redor de setecentos anos mais para mim. Estarei na recepção. Desculpe.
Na recepção, Ehlena tomou posição depois do computador e introduziu a contra-senha. Não havia ninguém na sala de espera porque o sol acabava de se pôr, mas os pacientes começariam a chegar muito em breve, e ela não podia esperar a distração.
Revisando o horário de Havers, não viu nada incomum. Verificações. Tratamentos a pacientes. Seguimentos cirúrgicos...
A campainha exterior tocou e levantou o olhar para um monitor de segurança. Ali em uma vista do vestíbulo exterior, viu um macho que se agasalhava em seu casaco para se proteger do vento frio.
Apertou o botão do inter comunicador e disse:
— Boa noite. No que posso lhe ajudar?
O rosto que levantou o olhar para a câmera era um que já tinha visto antes. Três e três noites atrás. O primo de Stephan.
— Alix? — disse — É Ehlena. Como está...?
— Estou aqui para ver se o trouxeram.
— Trouxeram?
— Ao Stephan.
— Não acredito, mas me deixe comprovar enquanto entra.
Ehlena pressionou o botão para abrir a fechadura e foi ao computador ver a lista de pacientes ingressados. Enquanto abria a série de portas para Alix, revisava os nomes, um por um.
Não fazia referência ao ingresso de Stephan como paciente.
No instante em que Alix entrou na sala de espera, o sangue em suas veias congelou ao ver a cara do macho. Os cruéis círculos escuros sob seus olhos cinza falavam de algo mais que uma simples falta de sono.
— Stephan não voltou para casa ontem à noite. — disse.
Rehv lamentava dezembro, e não só porque o frio no norte de Nova Iorque fosse suficiente para fazê-lo desejar ficar em um plano especialista de pirotecnia só para esquentar-se.
Em dezembro a noite caía cedo. O sol, esse estúpido preguiçoso, flácido maricas, retrocedia em seus esforços tão cedo como as quatro e meia da tarde, e isso para Rehv significava que o “encontro-de-primeira-terça-do-mês-para-atuar-como-semental” começava cedo.
Acabavam de dar as dez em ponto quando entrou no Parque Estatal Black Snake depois de uma viagem de carro de duas horas para o norte desde Caldwell. Trez, que sempre se desmaterializava para ali, sem dúvida já teria tomado posição ao redor da cabana, camuflando-se e dispondo-se a atuar de guarda.
Assim como de testemunha.
O fato de que o cara, que era indiscutivelmente seu melhor amigo, tivesse que observar todo o assunto era um triturador de testículos que vinha a acrescentar-se a todo o carrossel de cagadas. O problema era, que depois que tudo terminava, Rehv precisava de ajuda para voltar para casa, e Trez era bom nesse tipo de merdas.
Xhex queria ocupar-se, é obvio, mas não se podia confiar nela. Não quando se tratava da princesa. Se Rehv lhe voltasse às costas durante um segundo a cabana poderia terminar com uma nova capa de pintura fresca nas paredes... Da variedade horripilante.
Como sempre, Rehv estacionou no estacionamento de terra que havia do lado escuro da montanha. Não havia outros carros, e esperava que os atalhos que se abriam na parte de atrás do estacionamento estivessem vazios também.
Olhando através do pára-brisa, ante sua vista tudo aparecia vermelho e plano e apesar de que desprezava a sua meio irmã, odiava olhá-la e desejava que todo este sujo e fodido assunto se acabasse de uma vez, seu corpo não estava intumescido de frio, a não ser vivo e ronronando. Dentro de suas calças, seu pênis duro estava preparado e pronto para o que estava a ponto de ocorrer.
Agora se somente pudesse obrigar-se a sair do carro.
Pousou a mão no trinco da porta, mas não pôde puxá-lo.
Havia tanta paz. Quão único perturbava o silêncio eram os leves e metálicos sons que o motor do Bentley fazia ao esfriar.
Sem razão aparente, pensou na adorável risada de Ehlena, e isso foi o que lhe fez abrir a porta. Com um movimento rápido, tirou a cabeça do carro justamente quando seu estômago se fechava como um punho e quase vomita. Quando o frio acalmou sua náusea, tentou tirar Ehlena da mente. Ela era tão limpa e honorável que não podia suportar tê-la em seus pensamentos quando estava a ponto de fazer isto.
O que era uma surpresa.
Proteger a alguém do mundo cruel, do mortal e perigoso, do poluído, o obsceno, e o asqueroso não era seu estilo. Mas se tinha ensinado a si mesmo a fazer justamente isso quando se tratava das únicas três fêmeas normais na vida. Pela que lhe tinha dado a vida, a que tinha criado como se fosse sua própria e a pequena que sua irmã tinha dado à luz recentemente, confrontaria todo tipo de perigos, mataria com suas próprias mãos algo que as ameaçasse, perseguiria e destruiria até a mais mínima ameaça.
E, de algum modo a cálida conversa que teve com a Ehlena mais cedo a punha nessa curta, curta lista.
O que significava que tinha que deixá-la fora. Junto com as outras três.
Tinha-lhe caído bem vivendo como uma puta, porque obtinha um preço caro da que o fodia, e, além disso, a prostituição não era nada mais que o que merecia, considerando o modo em que seu autêntico pai tinha forçado sua concepção sobre sua mãe. Mas ele assumia a responsabilidade. Ele ia à cabana sozinho e ele obrigava seu corpo a fazer o que ninguém o obrigava.
Essas poucas pessoas normais que havia em sua vida tinham que permanecer muito, muito longe de todo esse assunto, e isso significava que quando vinha aqui devia erradicá-las de seu pensamento e seu coração. Mais tarde, logo depois de ter se recuperado, tomado banho e dormido, poderia voltar a recordar os olhos cor toffe de Ehlena e a forma em que cheirava a canela e como riu apesar de si mesmo quando falaram. Por agora, afastou a ela, a sua mãe, a sua irmã e a sua amada sobrinha de seu lóbulo frontal, fechando cada lembrança que tinha em uma seção separada de seu cérebro e enclausurando-os.
A princesa sempre tentava entrar em sua mente, e não queria que soubesse nada daqueles que apreciava ou pelos quais se preocupava.
Quando uma intensa rajada de vento quase lhe fecha violentamente a porta na cabeça, Rehv puxou sua zibelina envolvendo-se frouxamente ao redor de seu corpo, saiu, e fechou o Bentley. Enquanto caminhava para o início do caminho, notou que o terreno estava congelado sob seus Penetre Haans, a terra que rangia sob seus pés era dura e resistente.
Tecnicamente agora o parque estava fechado pela estação, e uma corrente pendurava atravessando a entrada do atalho que levava mais à frente do mapa da montanha e às cabanas de aluguel. Entretanto, era mais provável que fosse o tempo o que mantinha as pessoas afastadas e não o Serviço do Parque Adirondack. Depois de passar sobre a corrente, passou a folha de registro que estava pendurava de uma prancheta apesar de que se supunha que ninguém devia utilizar os atalhos. Ele nunca assinava.
Sim, como se os guardas humanos realmente precisassem saber o que dois sympaths estavam fazendo em uma daquelas cabanas. Ceerrrrtttoooooo.
O bom de dezembro era que nos meses invernais o bosque ficava menos claustrofóbico, seus carvalhos e suas sebes não eram mais que troncos e ramos fracos que deixavam ver bastante da noite estrelada. Ao redor deles, as árvores de folha perene estavam de festa, seus ramos amaciados eram o “se foda” a seus irmãos agora nus, vingando-se por toda a vistosa folhagem outonal que as outras árvores acabavam de mostrar.
Penetrando a linha de árvores, seguiu o atalho principal enquanto este se estreitava gradualmente. Atalhos menores se separavam a direita e esquerda, marcados com rústicos pôsteres de madeira com nomes como Passeio do Sociável, Ataque Relâmpago, Cúpula Extensa e Cúpula Pequena. Ele seguiu em linha reta, seu fôlego formava nuvens ao abandonar seus lábios e o som de seus sapatos sobre a terra congelada parecia muito ruidoso. No alto, a lua se via brilhante, e tinha a forma de uma meia-lua afiada como uma faca, que para ele com seus impulsos symphath decididamente fora de controle, era da cor dos olhos rubi de sua chantagista.
Trez fez sua aparição em forma de uma brisa gelada que percorreu o atalho.
— Hey, amigo. — disse Rehv baixinho.
A voz do Trez flutuou no interior de sua cabeça enquanto a forma Sombra do cara se condensava em uma onda que brilhava tenuamente.
Acaba logo com ela. Quanto mais rápido obtenhamos o que necessitará depois melhor.
— As coisas são como são.
Quanto antes. Melhor.
— Veremos.
Trez lhe amaldiçoou e voltou a se dissolver em uma fria rajada de vento, lançando-se para frente fora de vista.
A verdade era que, por muito que Rehv odiasse vir, algumas vezes não queria partir. Gostava de fazer mal à princesa, e ela era uma boa oponente. Ardilosa, rápida e cruel. Era a única saída para seu lado mau, e, como um corredor faminto de treinamento, precisava do exercício.
Além disso, talvez fosse como seu braço: a podridão se sentia bem.
Rehv tomou o sexto à esquerda, entrando em um atalho que era só o bastante amplo para uma pessoa, e muito em breve, a cabana ficou à vista. A brilhante luz da lua, seus lenhos eram de uma cor parecida ao vinho rosado.
Quando chegou à porta, estendeu a mão esquerda para frente, e quando estava aferrando a alavanca de madeira pensou em Ehlena e em como se preocupou o suficiente por ele para telefonar e perguntar por seu braço.
Durante um breve momento se permitiu um deslize e evocou o som da voz dela em seu ouvido.
Não entendo por que não cuida de você mesmo.
A porta escapou de seu agarre, abrindo-se tão rápido que golpeou contra a parede.
A princesa estava de pé no centro da cabana, com sua brilhante túnica vermelha, rubis em sua garganta e os olhos cor vermelho sangue, toda a cor do ódio. Com seu escasso cabelo enrolado e recolhido por cima de seu pescoço, sua pele pálida, e os escorpiões albinos vivos que usava como brincos, era um horror delicioso, uma boneca Kabuki construída por uma mão malvada. E era malvada, sua escuridão lhe chegava em forma de ondas, emanando do centro de seu peito ainda quando nada nela se movia e seu rosto com forma de lua permanecia inalterado pelo aborrecimento.
Sua voz, por outro lado, era ardilosa como uma folha afiada.
— Nada de cenas de praia esta noite em sua mente. Não, nada de praia esta noite.
Rehv cobriu Ehlena rapidamente com uma imagem de um glorioso estereótipo das Bahamas, todo sol, mar e areia. Era algo que tinha visto na TV anos atrás, em um “especial escapadas”, como havia dito o anunciador, com gente em traje de banho passeando de mãos dadas. Dada sua vivacidade, a imagem era o suspensório perfeito para os argumentos de sua matéria cinza.
— Quem é ela?
— Quem é quem? — disse enquanto entrava.
A cabana estava cálida, graças a ela, um pequeno truque de agitação molecular do ar que se acrescentava quando estava de saco cheio. Não obstante, o calor que gerava não era alegre como o que provinha de um fogo... Era mais da classe de sufoco que conseguia com um caso de diarréia.
— Quem é a fêmea que havia em sua mente?
— Só uma modelo de um anúncio de TV, minha queridíssima cadela. — disse tão brandamente como ela. Sem lhe dar as costas, fechou a porta tranqüilamente — Ciumenta?
— Para estar ciumenta, teria que estar ameaçada. E isso seria absurdo. — a princesa sorriu — Mas penso que deve me dizer quem é ela.
— Isso é tudo o que quer fazer? Falar? — Rehv deliberadamente deixou que seu casaco se abrisse e embalou em sua mão o pênis e o pesado escroto — Normalmente quer de mim algo mais que conversa.
— Muito certo. O melhor e mais elevado uso para você é o que os humanos chamam... Um consolador, não? Um brinquedo para uma fêmea com o que dar prazer a si mesma.
— Fêmea não é necessariamente a palavra que utilizaria para te descrever.
— Certamente. Bem amada seria melhor.
Ela elevou uma mão horrenda até seu penteado, deslizando seus dedos ossudos de três articulações sobre a cuidadosa obra, seu pulso era mais fino que a asa de uma batedeira de arame. Seu corpo não era diferente: todos os symphaths estavam constituídos como jogadores de xadrez, não como zagueiros, o que estava de acordo com sua preferência de lutar com a mente e, não com o corpo. A vestimenta que usavam, não era nem de machos nem de fêmeas, a não ser uma versão destilada de ambos os sexos, e por isso a princesa o desejava como o fazia. Gostava de seu corpo, seus músculos, sua óbvia e brutal masculinidade, e habitualmente queria ser fisicamente refreada durante o sexo... Algo que seguro como a merda não conseguia em casa. Pelo que ele sabia a versão symphath do ato se limitava a algumas posturas mentais seguidas de duas esfregações e um ofego por parte do macho. Além disso, estava disposto a apostar que o tio de ambos tinha o pênis como o de um hamster, e os testículos do tamanho de borrachas de lápis.
Não é que alguma vez o tivesse comprovado… Mas vamos, o cara não era exatamente uma comparação de testosterona.
A princesa se movia pela cabana como se estivesse desdobrando sua graça, mas havia um propósito em deslocar-se de janela em janela e olhar para fora.
Demônios, sempre com as janelas.
— Onde está seu cão guardião esta noite? — disse ela.
— Sempre venho sozinho.
— Mente a seu amor.
— Por que ia querer que alguém visse isto?
— Porque sou formosa. — deteve-se diante dos vidros mais próximos à porta — Está aí à direita, junto ao pinheiro.
Rehv não precisava inclinar-se a um lado e olhar para saber que tinha razão. É obvio que ela podia sentir o Trez, só que não podia estar completamente segura de onde estava ou o que era.
Ainda assim, disse:
— Não há nada exceto árvores.
— Mentira.
— Tem medo das sombras, Princesa?
Quando ela olhou sobre o ombro, o escorpião albino que pendurava do lóbulo de sua orelha também fez contato ocular com ele.
— O problema não é o medo. É a deslealdade. Não suporto a deslealdade.
— A menos que seja você quem a está praticando, é obvio.
— Oh, sou bastante leal a você, meu amor. Exceto pelo irmão de nosso pai, como já sabe. — girou e quadrou os ombros em toda sua altura — Meu consorte é o único além de você. E vim aqui sozinha.
— Suas virtudes são abundantes, embora como disse, por favor, leva a mais em sua cama. Toma a cem machos mais.
— Ninguém poderia comparar-se contigo.
Dava vontade de vomitar em Rehv cada vez que lhe prodigalizava um falso elogio, e ela sabia. Pelo que, naturalmente insistia em dizer merdas como essa.
— Diga-me. — disse para mudar de assunto — Já que tirou o tema de nosso tio, como vai o muito idiota?
— Ainda te acredita morto. Assim sigo honrando minha parte de nossa relação.
Rehv colocou a mão no bolso de seu casaco de zibelina e tirou os duzentos e cinqüenta mil dólares em rubis cortados. Atirou o feliz pacotinho ao chão para a borda da túnica dela e tirou o casaco. A jaqueta de seu traje e seus sapatos foram o seguinte. Depois suas meias três quartos de seda, suas calças e sua camisa. Nenhum boxer que tirar. Para que incomodar-se?
Rehvenge permaneceu ante ela completamente ereto, com os pés bem plantados no chão, respirando tranqüilamente, inalando e exalando com seu forte peito.
— E estou preparado para completar nossa transação.
Os olhos rubi desceram por seu corpo e se detiveram em seu sexo, abriu a boca, e percorreu o lábio inferior com sua língua bífida. Em suas orelhas, os escorpiões retorceram suas extremidades com espera, como se respondessem a seu arrebatamento sexual.
A princesa apontou para a bolsa de veludo.
— Recolhe isso e me dê isso apropriadamente.
— Não.
— Recolhe-o.
— Você gosta de se inclinar diante de mim. Por que te roubar seu hobby favorito?
A princesa colocou as mãos nas longas mangas de sua túnica e foi para ele da forma suave com que se moviam os symphaths, virtualmente flutuando sobre o chão de madeira. Quando se aproximou, ele manteve sua posição, porque preferia morrer e apodrecer antes de dar um passo atrás para o prazer dela.
Olharam-se um ao outro, e no profundo e maligno silêncio, ele sentiu uma terrível comunhão com ela. Eram iguais, e embora fosse um pensamento que odiava, sentia alívio em ceder a sua autêntica natureza.
— Recolhe-o...
— Não.
Ela descruzou os braços e uma de suas mãos de seis dedos rasgou o ar em direção a seu rosto, a bofetada foi forte e aguda como seus olhos rubi. Rehv se negou a deixar que sua cabeça retrocedesse pelo impacto enquanto o som reverberava tão ruidosamente como um prato quebrando-se.
— Quero que me pague seu tributo adequadamente. E quero saber quem é ela. Percebi seu interesse por esta antes... Quando está longe de mim.
Rehv manteve o anúncio de praia aceso em seu lóbulo frontal e soube que ela ostentava.
— Não me inclino perante você nem ante ninguém, cadela. Assim, se quiser essa bolsa, vai ter que te tocar os dedos dos pés. E quanto ao que acredita saber, está enganada. Não há ninguém para mim.
Esbofeteou-o de novo, a ardência desceu por sua medula espinhal e pulsou na cabeça de seu pênis.
— Inclina-te ante mim cada vez que vem aqui com seu patético pagamento e seu sexo faminto. Necessita isto, necessita-me.
Ele levou sua cara mais perto da dela.
— Não adule a você mesma, princesa. É uma obrigação, não uma escolha.
— Engano. Vive para me odiar.
A princesa pegou seu pênis na mão, envolvendo-o firmemente com seus dedos mortos. Quando sentiu o contato e a carícia, seu estômago revolveu... E ainda assim sua ereção se umedeceu ante a atenção inclusive quando não podia suportá-la, embora não a encontrava absolutamente atrativa, seu lado symphath estava completamente preso nesta batalha de vontades, e isso era o erótico.
A princesa se inclinou para ele, esfregando com seu dedo indicador a pua que tinha na base de sua ereção.
— Seja quem for essa fêmea de sua cabeça, não pode competir com o que temos.
Rehv pôs as mãos dos lados do pescoço de sua chantagista e pressionou com os polegares até que ela ofegou.
— Posso te arrancar a cabeça da coluna.
— Não o fará. — lhe passou os lábios vermelhos e acetinados pela garganta e o batom de pimentas moídas que levava o queimou — Porque não poderíamos fazer isto se estivesse morta.
— Não subestime a atração da necrofilia. Especialmente quando se trata de você. — agarrou a parte de trás de seu coque e puxou com força — Vamos ao ponto?
— Depois que você recolha...
— Isso não vai acontecer. Não me inclino. — com sua mão livre, rasgou a frente da túnica, expondo a malha fina do body que sempre usava. Girando-a, forçou-a a ficar de cara à porta, procurando entre as dobras de vermelho cetim enquanto ela ofegava. A malha que vestia estava empapada de veneno de escorpião, e enquanto abria caminho para seu centro, o veneno empapava sua pele. Com sorte, poderia foder um momento enquanto ainda conservava a túnica posta...
A princesa se desmaterializou fora de suas garras e voltou a tomar forma justamente ante a janela através da qual Trez poderia ver. Com um rápido movimento, sua túnica a abandonou, eliminada por sua vontade e sua carne foi revelada. Estava constituída como a serpente que era, muitos nervos, e muito magra e quando a luz da lua se refletia sobre os fios entremeados de seu reluzente body dava a impressão de ter escamas.
Seus pés estavam plantados de cada lado da bolsa de rubis.
— Adorará-me. — disse isso, passando a mão entre as coxas e acariciando a fenda — Com a boca.
Rehv se aproximou e ficou de joelhos. Levantando o olhar para ela, disse com um sorriso:
— E será você quem recolherá essa bolsa.
Capítulo 18
Ehlena se deteve fora do necrotério da clínica, com ambos os braços rodeando seu peito, o coração na garganta e as preces saindo de seus lábios. Apesar de seu uniforme, não estava esperando em caráter profissional e o cartaz de SÓ PESSOAL que estava ao nível de seus olhos a freava tanto como se fosse alguém com roupas comuns. Enquanto os segundos passavam lentos como séculos, olhava as letras como se tivesse esquecido como ler. A palavra só estava em uma metade das portas, e pessoal na outra. Em letras vermelhas maiúsculas. Debaixo das letras em português, estava a tradução na Antiga Língua.
Alix tinha atravessado as portas fazia um momento com o Havers a seu lado.
Por favor… Que não seja Stephan. Por favor, não deixe que o John Doe seja Stephan.
O pranto que se filtrou através das portas de SÓ PESSOAL provocou que fechasse os olhos, tão forte que fez com que a cabeça desse voltas.
Depois de tudo, não a tinha deixado plantada.
Dez minutos depois Alix saiu, tinha o rosto pálido e a parte inferior dos olhos avermelhada devido à quantidade de vezes que enxugou as abundantes lágrimas. Havers estava logo atrás dele, o médico se mostrava igualmente desconsolado.
Ehlena se adiantou e pegou ao Alix entre seus braços.
— Sinto tanto.
— Como… Como digo a seus pais… Eles não queriam que viesse até aqui… Oh, Deus…
Ehlena sustentou o corpo estremecido do macho até que Alix se endireitou e arrastou ambas as mãos por seu rosto.
— Estava desejando sair contigo.
— E eu com ele.
Havers pôs sua mão sobre o ombro de Alix.
— Quer levar isso contigo?
O macho olhou para trás, às portas, e fechou a boca até que se converteu somente em uma fina linha.
— Vamos querer começar com os... Rituais mortuários... Mas...
— Você gostaria que o amortalhasse? — perguntou Havers brandamente.
Alix fechou os olhos e assentiu.
— Não podemos deixar que sua mãe veja seu rosto. Isso a mataria. Eu o faria, mas...
— Cuidaremos dele muito bem. — disse Ehlena — Pode confiar que nos ocuparemos com respeito e reverência.
— Não acredito que possa… — Alix olhou em sua direção — Está mal de minha parte?
— Não. — disse sustentando ambas as mãos — E lhe prometo, faremos com amor.
— Mas deveria ajudar…
— Pode confiar em nós. — enquanto o macho piscava rapidamente, Ehlena o guiou gentilmente, afastando-o das portas do necrotério — Quero que vá esperar em uma das salas de estar familiares.
Ehlena acompanhou o primo de Stephan pelo corredor até chegar ao vestíbulo onde estavam as salas de exame. Quando outra enfermeira passou por ali, Ehlena lhe pediu que o levasse a uma sala de espera privada e logo retornou ao necrotério.
Antes de entrar, respirou profundamente e endireitou os ombros. Quando entrou empurrando as portas, cheirou ervas e viu Havers de pé junto a um corpo coberto por um lençol branco. O andar de Ehlena fraquejou.
— Meu coração está oprimido. — disse o médico — Tão oprimido. Não queria que esse pobre moço visse assim a seu familiar de sangue, mas depois de identificar suas roupas, ele insistiu. Tinha que vê-lo.
— Porque tinha que assegurar-se.
Era o que ela teria necessitado ao estar nessa situação.
Havers levantou o lençol, dobrando-o sobre o peito e Ehlena tampou bruscamente a boca com a mão para conter um ofego.
O rosto de Stephan, golpeado e sujo, estava quase irreconhecível.
Ela tragou uma vez. E outra vez. E uma terceira vez.
Querida Virgem Escriba, vinte e quatro horas antes, ele estava vivo. Vivo e no centro, desejando vê-la. Logo uma má decisão de ir para um lado e não para o outro o tinha feito terminar aqui, jazendo sobre uma cama fria de aço inoxidável, a ponto de ser preparado para seu ritual mortuário.
— Trarei as mortalhas. — disse bruscamente Ehlena quando Havers tirou completamente o lençol do corpo.
O necrotério era pequeno, com apenas oito unidades de refrigeração e duas mesas de exame, mas estava bem provido quanto a equipamento e fornecimentos. As mortalhas cerimoniais eram guardadas em um armário próximo do escritório, e quando abriu a porta, saiu uma fresca baforada herbal. As bandas de linho tinham sete centímetros e meio de largura e vinham em cilindros do tamanho dos dois punhos de Ehlena. Empapados de uma combinação de romeiro, lavanda e sal marinho, irradiavam um aroma suficientemente prazenteiro que, não obstante, faziam-na retroceder cada vez que captava aquele odor.
Morte. Era o aroma da morte.
Tirou dez cilindros e os empilhou em seus braços, logo voltou onde estava o corpo de Stephan totalmente exposto, com apenas um tecido sobre seus quadris.
Depois de um momento, Havers saiu de um vestiário que havia no fundo, usando uma túnica negra atada com uma faixa negra. Ao redor do pescoço, suspensa de uma corrente de prata larga e pesada, tinha uma ferramenta ornamentada para cortar, muito afiada que era tão antiga, que o trabalho de filigrana da manga tinha curvas obscurecidas dentro de seu curvilíneo desenho.
Ehlena abaixou a cabeça enquanto Havers elevava à Virgem Escriba as preces requeridas para o pacífico descanso de Stephan dentro do tenro abraço do Fade. Quando o doutor esteve preparado, passou-lhe o primeiro dos cilindros aromáticos e começaram com a mão direita de Stephan, como era adequado. Com muitíssima gentileza e cuidado, sustentou o membro frio e cinza no ar, enquanto Havers envolvia a carne apertadamente, voltando a pôr a tira de linho sobre si mesmo. Quando chegaram até o ombro, moveram-se para a perna direita, depois foi a mão esquerda, o braço esquerdo e logo a perna esquerda.
Quando tiraram o tecido de seus quadris, Ehlena se deu volta, como era requerido por ser fêmea. Se tivesse sido um corpo feminino, não o teria que fazer, embora um assistente masculino o teria feito por respeito. Depois que os quadris foram envoltos, enfaixaram o tronco até o peito e cobriram os ombros.
Com cada passada do linho, o aroma a ervas golpeava de novo o nariz até que sentiu como se não pudesse respirar.
Ou talvez não fosse o aroma que havia no ar, mas sim os pensamentos que havia em sua mente. Ele teria sido seu futuro? Teria conhecido seu corpo? Poderia ter sido seu hellren e o pai de seus filhos?
Perguntas que nunca seriam respondidas.
Ehlena franziu o cenho. Não, em realidade, todas tinham sido.
Cada uma delas com um não.
Enquanto passava outro cilindro ao médico da raça, perguntou-se se Stephan tinha vivido uma vida plena e satisfatória.
Não, pensou. Tinha sido extorquido. Totalmente extorquido.
Enganado.
O rosto era o último em ser coberto e sustentou a cabeça de Stephan enquanto o doutor enrolava e enrolava o linho lentamente. Ehlena respirava com dificuldade e só quando Havers cobriu os olhos, uma lágrima deixou os próprios e aterrissou na mortalha branca.
Havers pôs a mão brevemente em seu ombro e logo terminou o trabalho.
O sal que havia nas fibras do linho funcionava como um selador para que nenhum fluído filtrasse através da malha, e o mineral também preservava o corpo para o sepulcro. As ervas serviam para a função óbvia no curto prazo de mascarar qualquer aroma, mas também eram emblemas dos frutos da terra, os ciclos de crescimento e morte.
Com uma maldição, voltou para o armário e retirou um sudário negro, com o qual Havers e ela envolveram Stephan. O exterior negro simbolizava a carne mortal corruptível, o interior branco, a pureza e incandescência da alma dentro de seu lar eterno no Fade.
Ehlena tinha escutado uma vez que os rituais serviam a importantes propósitos além de seu aspecto prático. Supunha-se que ajudavam a cura psicológica, mas estando junto ao corpo morto de Stephan sentia que isso era pura merda. Era uma aceitação falsa, uma patética tentativa para conter as exigências de um destino cruel com um tecido de aroma doce.
Não era nada mais que uma capa sobre um sofá manchado de sangue.
Detiveram-se junto à cabeça de Stephan para lhe oferecer um momento de silêncio e logo empurraram a maca deslocando-a do fundo do necrotério para o sistema de túneis que corriam subterraneamente até as garagens. Ali, puseram o Stephan em uma das quatro ambulâncias que estavam feitas para parecer exatamente com as que os humanos usavam.
— Levarei a ambos a casa dos pais. — disse ela.
— Necessita que a acompanhem?
— Parece-me que para o Alix será melhor não ter audiência.
— Embora tomará cuidado, verdade? Não só com eles, mas também com sua própria segurança?
— Sim.
Cada uma das ambulâncias tinha uma pistola debaixo do assento do condutor, e assim que Ehlena começou a trabalhar na clínica, Catya lhe ensinou a disparar: não cabia dúvida, de que podia dirigir algo que ficasse em seu caminho.
Quando Havers e ela fecharam as portas duplas da ambulância, Ehlena olhou para a entrada do túnel.
— Parece que vou voltar para a clínica pelo estacionamento. Preciso de ar.
Havers assentiu.
— E eu farei o mesmo. Dou-me conta que também necessito ar.
Juntos saíram à noite fria e clara.
Como a boa puta que Rehv era fez tudo o que lhe pediram. O fato de que fosse rude e cruel era uma concessão a seu livre-arbítrio... E novamente, parte da razão pela qual a princesa gostava do assunto que tinham.
Quando tudo terminou e ambos estiveram esgotados — ela por ter tantos orgasmos, ele porque o veneno de escorpião tinha penetrado profundamente em sua corrente sanguínea — esses malditos rubis seguiam onde os tinha jogado. No chão.
A princesa estava escancarada contra o batente da janela, ofegando dificultosamente, com seus dedos de três nódulos estendidos, provavelmente porque sabia que o enojavam como a merda. Ele estava do outro lado da cabana, tão longe dela como podia, de pé, cambaleando.
Enquanto tentava respirar, odiou que o ar da cabana cheirasse a sexo sujo. Do mesmo modo, tinha o aroma dela por todo seu corpo, cobrindo-o, sufocando-o tanto, que apesar de ter sangue symphath em suas veias, sentia vontade de vomitar. Ou possivelmente isso era devido ao veneno. Quem merda podia saber?
Ela levantou uma de suas mãos ossudas e apontou para a bolsa de veludo.
— Le-van-ta-os.
Os olhos de Rehv se travaram com os dela, e sacudiu a cabeça de um lado a outro lentamente.
— Será melhor que volte para nosso tio. — disse com tom áspero — Estou disposto a apostar que se te ausentar por muito tempo ele desconfiará.
Com isso, a tinha. O irmão do pai de ambos era um sociopata, calculista e desconfiado. Igual a eles.
Tudo ficava em família, como estavam acostumados a dizer.
A túnica da princesa se levantou do chão e flutuou para sua proprietária, e enquanto pendurava no ar a seu lado, retirou do bolso interior uma bandagem longa e vermelha. Deslizando-a entre suas pernas, envolveu o sexo, mantendo dentro o que ele tinha deixado. Depois se vestiu, e cobriu a metade da túnica que ele tinha esmigalhado, formando uma dobra sob a capa superior. O cinturão de ouro, ou ao menos ele assumia que era de ouro, dada a forma em que refletia a luz, foi o seguinte.
— Envie lembranças a meu tio. — disse Rehv arrastando as palavras — Ou... Não.
— Le... Van... Ta... Os.
— Ou se inclina para recolher essa bolsa, ou vai sem ela.
Os olhos da princesa cintilaram com o tipo de rancor que fazia tão divertido discutir com assassinos, e permaneceram olhando um ao outro durante compridos e hostis minutos.
A princesa se quebrou. Exatamente como ele havia dito que o faria.
Para sua eterna satisfação, foi ela quem os recolheu, sua capitulação quase o fez gozar de novo, sua lingüeta ameaçou enganchar-se apesar de que não havia nada contra o que travar-se.
— Poderia ser rei. — disse ela estendendo a mão, e fazendo com que a bolsa de veludo com os rubis se elevasse do chão — Mata-o e poderá ser rei.
— Se mato a você, poderia ser feliz.
— Nunca será feliz. É de uma raça separada, vivendo uma mentira entre inferiores. —sorriu e uma alegria verdadeira se refletiu em seu rosto — Exceto aqui comigo. Aqui, pode ser honesto. Até o próximo mês, meu amor.
Atirou-lhe um beijo com suas horríveis mãos e se desmaterializou, dissipando-se da forma em que tinha feito o fôlego dele fora da cabana, devorado pelo fino ar da noite.
Os joelhos de Rehv cederam e se derrubou no chão, aterrissando em uma pilha de ossos. Jazendo sobre as pranchas rústicas, era consciente de tudo: os músculos de suas coxas com cãibras, o comichão na ponta de seu pênis quando o prepúcio voltou para seu lugar, o tragar compulsivo causado pelo veneno de escorpião.
Enquanto a frieza da cabana se filtrava para fora, náuseas o percorreram como uma maré fétida e oleosa e seu estômago se fechou como um punho, formando um montão de “vamos daqui” que apertava sua garganta. As ânsias de vômito instintivas seguiram as ordens e abriu muito a boca, mas não saiu nada.
Sabia bem que não devia comer antes de ter um encontro.
Trez atravessou a porta tão silenciosamente que não foi até que as botas do cara estiveram frente a seu rosto que Rehv notou que seu melhor amigo estava com ele.
A voz do segurança foi amável:
— Vamos te tirar daqui.
Rehv esperou uma interrupção nas ânsias de vomito, para tratar de levantar do chão.
— Deixa... Que me vista.
O veneno de escorpião disparou a toda velocidade através de seu sistema nervoso central, interferindo com sua auto-estrada neuronal e conseqüentemente, fazendo com que arrastar seu corpo até onde estavam suas roupas envolvesse um desdobramento vergonhoso de debilidade. O problema era que o antídoto devia permanecer no carro, do contrário a princesa o teria encontrado, e mostrar uma debilidade tão substancial como essa era como entregar sua arma carregada a seu inimigo.
Evidentemente Trez perdeu a paciência com o show, porque se aproximou e recolheu o casaco.
— Só ponha isto assim poderemos te tratar.
— Vestirei-me. — era o orgulho da puta.
Trez amaldiçoou e se ajoelhou com o casaco.
— Porra, Rehv...
— Não… — um ofego selvagem o interrompeu e fez com que caísse sobre o chão, oferecendo uma rápida aproximação dos nós das pranchas de pinheiro.
Caralho, estava mau esta noite. Pior do que alguma vez tinha estado.
— Rehv, sinto muito, mas vou tomar o controle.
Trez ignorou os intentos patéticos de Rehv por rechaçar sua ajuda, e depois de envolvê-lo com a zibelina, seu amigo o levantou e o carregou para fora como uma peça quebrada de equipe.
— Não pode continuar fazendo isto. — disse Trez enquanto suas pernas longas os levavam rapidamente para o Bentley.
— Observe.
Para manter a ele e a Xhex vivos e no mundo livre, tinha que fazê-lo.
Capítulo 19
Rehv despertou no seu dormitório de seu grande rancho nas Adirondacks que utilizava como refúgio. Podia dizer onde estava pelas janelas que iam do chão ao teto, o alegre fogo que tinha em frente, e o fato de que o pé da cama tinha putti esculpidos em mogno. O que não estava claro era quantas horas tinham passado desde seu encontro com a princesa. Uma? Cem?
Do outro lado do tênue cômodo, Trez estava sentado em um sofá cor vermelho escuro, lendo à débil luz amarela de uma luminária de mesa.
Rehv pigarreou.
— Que livro é?
O segurança elevou o olhar, os olhos amendoados enfocando-se com uma acuidade da qual Rehv poderia ter prescindido.
— Está acordado.
— Que livro?
— É “O dicionário da morte das Sombras”.
— Leitura ligeira. E eu aqui pensando que fosse fã de Candace Bushnell.
— Como se sente?
— Bem. Genial. Animado como a merda. — Rehv grunhiu enquanto se impulsionava mais alto sobre os travesseiros. Apesar do casaco de zibelina, que tinha em volta do corpo nu, e das colchas, mantas e edredons de plumas que tinha em cima, seguia tão frio como o rabo de um pingüim, assim obviamente Trez lhe tinha injetado muita dopamina. Mas pelo menos a antitoxina tinha funcionado, os fôlegos e a falta de fôlego tinham desaparecido.
Trez fechou lentamente a capa do livro antigo.
— Estou me preparando, isso é tudo.
— Para entrar em sacerdócio? Pensava que toda a coisa do rei era sua especialidade.
O segurança pôs o livro na mesa baixa que tinha ao lado e se elevou em toda sua estatura. Depois de esticar todo o corpo, aproximou-se da cama.
— Quer alimento?
— Sim. Estaria bem.
— Dê-me quinze minutos.
Quando a porta se fechou atrás do macho, Rehv procurou ao seu redor e encontrou o bolso interior da zibelina. Quando tirou o telefone e o comprovou, não havia mensagens. Nenhuma mensagem de texto.
Ehlena não se aproximou, nem se pôs em contato com ele. Mas então, por que teria que fazê-lo?
Olhou fixamente o telefone e riscou o teclado com o polegar. Ansiava muitíssimo ouvir sua voz, como se escutá-la pudesse apagar tudo o que tinha acontecido nessa cabana.
Como se ela pudesse fazer desaparecer as duas décadas e meia passadas.
Rehv entrou em seus contatos e fez aparecer seu número na tela. Era provável que estivesse no trabalho, mas, se deixava uma mensagem, possivelmente o ligaria no descanso. Duvidou, mas logo pressionou enviar e pôs o telefone em sua orelha.
No instante em que ouviu o sinal de chamada, teve uma imagem vívida e vil dele tendo relações sexuais com a princesa, de seus quadris amassando, da luz da lua lançando sombras obscenas sobre o chão rústico.
Terminou a chamada com um murro rápido, sentindo como se seu corpo estivesse revestido de merda feita loção.
Deus, não havia suficientes banhos no mundo para limpá-lo o bastante para ser digno de falar com Ehlena. Nem bastante sabão, nem água sanitária, nem bucha. Enquanto a imaginava com seu antigo uniforme de enfermeira, o cabelo loiro avermelhado recolhido para trás em um pulcro coque, e seus silenciosos sapatos brancos, soube que se alguma vez a tocasse a mancharia pela vida toda.
Com o polegar intumescido, acariciou a tela plana do telefone, como se fosse sua bochecha, logo deixou que a mão caísse na cama. A vista das brilhantes veias vermelhas do braço recordou um par de coisas mais que tinha feito com a princesa.
Nunca tinha pensado que seu corpo fosse um dom especial. Era grande e musculoso, por isso era útil, e ao outro sexo gostava o que significava que era uma espécie de vantagem. E funcionava bem… Bom, exceto pelos efeitos secundários que lhe ocasionava a dopamina e a alergia ao veneno de escorpião.
Mas, realmente a quem importava?
Convexo na cama na quase escuridão, com o telefone na mão, viu mais cenas horrorosas de seu tempo com a princesa… Ela lhe mamando, ele agachando-se e fodendo-a por detrás, sua boca entre as coxas dela. Recordou o que sentia quando a lingüeta de seu pênis se travava e ambos ficavam enganchados.
Então pensou em Ehlena medindo sua pressão… E em como tinha dado um passo atrás, afastando-se dele.
Tinha razão ao ter feito isso.
Era um equívoco ligar para ela.
Com deliberado cuidado, moveu o polegar pelos botões e entrou em sua informação de contato. Não se deteve nem uma vez enquanto a apagava do telefone, e quando desapareceu, um calor inesperado lhe encheu o peito… Indicando que de acordo com lado de sua mãe, fazia o correto.
A próxima vez que fosse à clínica, pediria outra enfermeira. E, se voltasse a ver Ehlena, a deixaria em paz.
Trez entrou com uma bandeja de flocos de aveia, um pouco de chá e algumas torradas.
— Hmmm. — disse Rehv sem entusiasmo.
— Seja um menino bom e termine isso. Na próxima refeição trarei ovos com toucinho.
Quando a bandeja esteve assentada sobre suas pernas, Rehv atirou o telefone sobre a pele e levantou a colher. Bruscamente, e por nenhuma absoluta e positiva razão em especial, disse:
— Esteve apaixonado alguma vez, Trez?
— Não. — o segurança retornou a sua cadeira no rincão, o abajur curvo iluminou seu rosto bonito e escuro — Vi iAm tentar e decidi que não era para mim.
— iAm? Não me foda. Não sabia que seu irmão tinha tido uma garota.
— Não fala dela, e nunca a conheci. Mas durante um tempo se sentiu miserável do modo em que só uma fêmea pode pôr a um tipo.
Rehv fez girar o açúcar mascavo que estava polvilhado sobre a aveia.
— Acredita que alguma vez te emparelhará?
— Não. — Trez sorriu, e seus perfeitos dentes brancos cintilaram — Por que as perguntas?
Rehv levou a colher à boca e comeu.
— Por nenhuma razão.
— Sim. Certo.
— Estes flocos de aveia são fantásticos.
— Você odeia os flocos de aveia.
Rehv riu um pouco e seguiu comendo para sossegar-se, pensando que o tema do amor não era de sua incumbência. Mas o trabalho, seguro como o inferno que sim o era.
— Aconteceu algo nos clubes? — perguntou.
— Tudo vai como a seda.
— Bem.
Rehv despachou lentamente a Quaker Oats, perguntando-se por que, se tudo ia perfeito e de primeira em Caldwell, tinha uma sensação de desgosto no intestino.
Provavelmente, pensou, era a aveia.
— Disse a Xhex que estou bem, verdade?
— Sim. — disse Trez, levantando o livro que tinha estado lendo — Menti.
Xhex estava sentada atrás de seu escritório e olhava fixamente a seus dois melhores seguranças, Big Rob e Silent Tom. Eram humanos, mas eram preparados e com seus jeans baixos, emitiam a enganosa sensação de tranqüilidade que ela procurava.
— O que podemos fazer por você, chefe? —perguntou Big Rob.
Inclinando-se para frente em sua cadeira, tirou dois montões de notas do bolso traseiro de suas calças de couro. Mostrava-os deliberadamente, dividindo-os em duas pilhas e deslizando-os para os homens.
— Preciso que façam um trabalho extra-oficial.
Seus assentimentos foram tão rápidos como suas mãos sobre essas notas.
— O que você quiser. — disse Big Rob.
— Durante o verão, tivemos um barman que despedimos por roubar. O tipo se chamava Grady. Recordam…
— Vi essa merda a respeito de Chrissy no periódico.
— Fodido bastardo. — Silent Tom interveio pela primeira vez.
Xhex não se surpreendeu que soubessem toda a história.
— Quero que encontrem Grady. — quando Big Rob começou a fazer soar seus nódulos, ela sacudiu a cabeça — Não. O único que quero que façam é que me consigam um endereço. Se os vir, cumprimentem de longe e se afastem. Está claro? Não façam mais que lhe roçar a manga.
Ambos sorriram cruelmente.
— Nenhum problema, chefe. — murmurou Big Rob — O guardaremos para você.
— O DPC o busca também.
— Sem dúvida que sim.
— Não queremos que a polícia saiba o que estão fazendo.
— Nenhum problema.
— Ocuparei-me de cobrir seus turnos. Quanto mais rápido o encontrarem, mais feliz estarei.
Big Rob olhou ao Silent Tom. Após um momento, tiraram as notas que lhes tinha dado dos bolsos e as deslizaram pela mesa.
— Faremos o correto pela Chrissy, chefe. Não se preocupe.
— Com vocês nisto, não o farei.
A porta se fechou atrás deles, e Xhex passou as palmas acima e abaixo pelas coxas, forçando aos cilícios que tinha nas pernas a entrar mais profundamente em sua pele. Estava ardendo pela necessidade de sair ela mesma, mas com Rehv no norte e os entendimentos que fariam esta noite, não podia deixar o clube. E o que era igualmente importante, quanto ao Grady não ia poder fazer os preparativos ela mesma. Esse detetive da homicídios a estava vigiando.
Transladando os olhos ao telefone, quis amaldiçoar. Trez a tinha ligado mais cedo para dizer que Rehv tinha terminado o negócio com a princesa, e o som da voz do segurança tinha indicado o que suas palavras não diziam: o corpo de Rehv não ia agüentar muita tortura mais.
Outra situação mais que se via forçada a agüentar, sentada sobre seu rabo, esperando.
A impotência não era um estado com o qual se sentisse cômoda, mas quando se tratava da princesa, estava acostumada a sentir-se impotente. Fazia vinte anos, quando as escolhas de Xhex os tinham posto nesta situação, Rehv lhe havia dito que se ocuparia das coisas com uma condição: deixaria dirigi-lo a sua maneira sem intervir. Tinha feito jurar que permaneceria afastada, e embora a matasse, tinha cumprido a promessa e vivia com a realidade de que Rehv se viu forçado a cair nas mãos dessa puta por causa dela.
Maldita fora desejava que perdesse a paciência e arremetesse contra ela. Só uma vez. Em troca, seguia agüentando, pagando com seu corpo a dívida que ela tinha gerado.
Ela o tinha convertido em uma puta.
Xhex deixou o escritório porque não podia suportar passar mais tempo consigo mesma, e quando esteve no clube rezou para que houvesse uma escaramuça na parte do povo, como um triângulo amoroso explodindo, onde algum tipo esbofeteasse a outro por uma garota com lábios de peixe e tetas de plástico. Ou possivelmente um encontro no banheiro de homens da sobreloja se fosse ao traste. Merda! Estava tão desesperada que inclusive agarraria a um bêbado de saco cheio com seu patrão ou algum casal em um rincão escuro que tivessem levado o manuseio cruzando a linha até a penetração.
Precisava golpear algo e sua melhor oportunidade era com as massas. Se só houvesse…
Era sua sorte. Todos estavam se comportando.
Miseráveis estúpidos.
Finalmente, terminou indo à seção VIP porque estava deixando os seguranças da pista dementes ao ficar rodando por ali em busca de briga. E, além disso, tinha que usar os músculos em um trato de maior importância.
Ao atravessar a corda de veludo, seus olhos foram diretos à mesa da Irmandade. John Matthew e seus companheiros não estavam ali, mas bom, sendo tão cedo, estariam fora caçando lessers. Os engolidores de Corona viriam mais tarde, se é que o fariam.
Não lhe importava se John viria.
Nada absolutamente.
Aproximando-se de iAm, disse:
— Preparados?
O segurança assentiu.
— Rally tem o produto preparado. Os compradores devem estar aqui em vinte minutos.
— Bem.
Essa noite levariam a cabo dois entendimentos de seis cifras por coca, e com o Rehv fora de combate e Trez acompanhando-o no norte, ela e iAm estavam no comando das transações. Embora o dinheiro fosse trocar de mãos no escritório, o produto ia ser carregado nos carros, no beco traseiro, porque quatro quilogramas de pó sul-americano puro não era o tipo de coisas que ela quisesse que estivesse dando voltas pelo clube. Merda, o fato de que os compradores fossem chegar com maletas contendo dinheiro em efetivo era bastante problemático.
Xhex estava na porta do escritório quando vislumbrou a Marie-Terese insinuando-se a um homem com terno. O homem a olhava com admiração e maravilha, como se fosse o equivalente feminino de um carro esportivo que alguém acabava de lhe dar as chaves.
A luz cintilou na aliança de casamento que levava quando estendeu a mão para a carteira.
Marie-Terese sacudiu a cabeça e levantou sua elegante mão para detê-lo, logo pôs ao absorto homem de pé e precedeu o caminho por volta dos banheiros particulares da parte de trás, onde o dinheiro trocaria de mão.
Xhex girou e se encontrou frente à mesa da Irmandade.
Enquanto olhava o lugar onde John Matthew estava acostumado a sentar-se habitualmente, pensou no John[40] mais recente de Marie-Terese. Xhex estava disposta a apostar que o HDP que estava a ponto de soltar quinhentos dólares para ser mamado ou fodido ou possivelmente mil por ambos, não olhava a sua mulher com esse tipo de excitação e luxúria. Era a fantasia. Ele não sabia nada a respeito de Marie-Terese, não tinha nem idéia de que fazia dois anos seu filho tinha sido seqüestrado por seu ex-marido e que ela estava trabalhando para pagar o custo da volta do menino. Para ele, ela era um magnífico pedaço de carne, algo com o que brincar e ser deixado atrás. Prolixo. Limpo.
Todos os John eram assim.
E também o era o John de Xhex. Ela era uma fantasia para ele. Nada mais. Uma mentira erótica que evocava para fazer uma punheta… O que realmente não era algo do que o culpasse, porque ela estava fazendo o mesmo com ele. E a ironia era que ele era um dos melhores amantes que jamais tinha tido, embora isso fosse porque podia fazer algo que quisesse durante tanto tempo como necessitasse para se saciar, e nunca havia queixa, reservas nem pedidos.
Prolixo. Limpo. A voz de iAm saiu do auricular.
— Os compradores acabam de entrar.
— Perfeito. Vamos fazê-lo.
Terminaria com os dois entendimentos, e logo tinha seu próprio trabalho particular que fazer. Agora, isso era algo que valia a pena ansiar. Ao final da noite, ia conseguir exatamente a classe de liberação que necessitava.
Do outro lado da cidade, em um tranqüilo beco sem saída em uma vizinhança segura, Ehlena estava estacionada diante de uma modesta casa colonial, sem intenção de ir a nenhum lugar em um futuro próximo.
A chave não entrava no painel de acesso da ambulância.
Tendo terminado com o que deveria ter sido a parte mais difícil da viagem, tendo entregado Stephan a salvo aos braços de seus familiares de sangue, acabava surpreendente que colocar a maldita chave no condenado contato fosse mais difícil.
— Vamos… — Ehlena se concentrou em estabilizar sua mão. E acabou olhando realmente muito de perto a forma em que o pedaço de metal saltava ao redor do buraco ao que pertencia.
Recostou-se no assento com uma maldição, sabendo que estava aumentando a desdita da casa, que a ambulância estacionada ali fora era simplesmente outra declaração expressa a gritos da tragédia.
Como se o corpo do amado filho da família não fosse suficiente.
Girou a cabeça e olhou fixamente as janelas coloniais. Havia sombras deslocando-se do outro lado das cortinas de gaze.
Depois de entrar de ré pelo caminho de entrada, Alix tinha ingressado na casa e ela tinha esperado na noite fria. Um momento depois, a porta da garagem tinha rodado para cima e Alix tinha saído com um macho mais velho que se parecia muito a Stephan. Ela tinha feito uma reverência e tinha lhe estreitado a mão, e logo tinha aberto a porta traseira da ambulância. O macho teve que por uma mão sobre a boca enquanto ela e Alix tiravam a maca.
— Meu filho… — tinha gemido.
Nunca esqueceria o som dessa voz. Oco. Sem esperança. Com o coração quebrado.
O pai de Stephan e Alix o levaram para a casa, e assim como no necrotério, um momento depois se escutou um pranto. Esta vez, entretanto, tinha sido o lamento mais agudo de uma fêmea. A mãe de Stephan.
Alix tinha retornado no momento em que Ehlena estava empurrando a maca para o interior da ambulância, e estava piscando rapidamente, como se estivesse enfrentando um forte vento. Depois de apresentar seus respeitos e despedir-se, subiu atrás do volante e… Não tinha podido arrancar o maldito veículo.
Do outro lado das cortinas de gaze, viu duas silhuetas fundirem-se em um abraço. E logo foram três. E logo vieram mais.
Sem nenhuma razão aparente, pensou nas janelas da casa que alugava para ela e seu pai, todas cobertas com papel alumínio, seladas para deixar o mundo de fora.
Quem estaria junto a seu corpo envolto quando sua vida acabasse? Seu pai sabia quem era ela a maior parte do tempo, mas raramente estava conectado a ela. O pessoal da clínica era muito amável, mas isso era trabalho, não pessoal. Pagava a Lusie para vir.
Quem cuidaria de seu pai?
Sempre tinha assumido que ele se iria primeiro, mas então, sem dúvida a família de Stephan tinha pensado o mesmo.
Ehlena afastou o olhar dos enfermos e fixou no pára-brisa dianteiro da ambulância.
A vida era muito curta, por muito que vivesse. Não acreditava que alguém estivesse preparado, quando chegava seu turno, para deixar amigos, familiares e as coisas que os faziam felizes, ainda que tivessem quinhentos anos, como seu pai, ou cinqüenta, como Stephan.
O tempo era uma fonte interminável de dias e noites como a galáxia era grande.
Fez com que se perguntasse: Que demônios estava fazendo com o tempo que tinha? Seu trabalho lhe dava um propósito, certo, e cuidava de seu pai, o que era o que se fazia pela família. Mas aonde ia? A lugar nenhum. E não se referia a estar sentada nesta ambulância com as mãos tão trementes que não podia colocar uma chave na ignição.
O assunto era que, não é que queria mudar tudo. Só queria algo para si mesma, algo que a fizesse saber que estava viva.
Os profundos olhos cor ametista de Rehvenge lhe vieram à mente como saídos de nenhuma parte, e como uma câmera que vai se afastando, viu seu rosto esculpido, seu penteado moicano, sua roupa fina e sua bengala.
Esta vez, quando se esticou para frente com a chave, a coisa entrou firmemente e o motor diesel despertou com um grunhido. Quando a calefação soltou uma rajada de ar frio, desligou o ventilador, colocou a alavanca em “avanço” e saiu da casa, do beco sem saída e da vizinhança.
Que já não parecia tranqüilo.
Atrás do volante, ia conduzindo e ao mesmo tempo estava ausente, cativada pela imagem de um macho que não podia ter, mas que nesse momento precisava com loucura.
Seus sentimentos eram inconvenientes por muitos motivos. Pelo amor de Deus, eram uma traição a Stephan, apesar de que, na realidade, não o tinha conhecido. Simplesmente parecia uma falta de respeito estar desejando a outro macho enquanto seu corpo era chorado por seu sangue.
Salvo que teria desejado ao Rehvenge de todos os modos.
— Maldito seja.
A clínica estava do outro lado do rio, e a alegrava, porque nesse momento não poderia encarar o trabalho. Estava muito doída, triste e zangada consigo mesma.
O que precisava era…
Starbucks. Oh, sim, isso era exatamente o que necessitava.
A uns oito quilômetros dali, em um lugar ao redor do qual havia um supermercado Hannaford, uma floricultura, uma boutique do LensCrafters, e uma loja Blockbuster, encontrou um Starbucks que permanecia aberto até as duas da manhã. Levou a ambulância a um lado e saiu.
Quando deixou a clínica com o Alix e Stephan, não pensou em trazer o casaco, assim aconchegou sua bolsa, correu pela calçada e atravessou a porta a toda pressa. No interior, o lugar era como a maioria deles: nós de madeira vermelhos, chão de ladrilhos cinza, muitas janelas, cadeiras amaciadas e pequenas mesas. No mostrador havia muffins a venda e uma vitrine de vidro com quadradinhos de bolacha de limão, brownies e pão-doce e dois humanos próximos aos vinte dirigiam as máquinas de café. O ar cheirava a avelã, café e chocolate, e esse aroma apagou de seu nariz o persistente aroma herbal das mortalhas.
— Posso ajudá-la? — perguntou o menino mais alto.
— Um Latte comprido, com espuma, sem creme. Para levar.
O macho humano sorriu e se afastou. Tinha uma barba escura recortada e um brinco no nariz, sua camiseta estava salpicada de gráficos que soletravam as palavras COMEDOR DE TOMATE dentro de gotas do que poderia ter sido sangue, ou dado o nome da banda, ketchup.
— Gostaria de algo mais? Os pães-doces de canela são espetaculares.
— Não, obrigado.
Enquanto se encarregava de seu pedido não afastou a vista dela, e para evitar ter que tratar com sua atenção, procurou na bolsa e checou seu telefone no caso de que Lusie…
CHAMADA PERDIDA. Ver agora?
Pressionou o sim, rezando para que não se tratasse de seu pai…
Apareceu o número de Rehvenge, embora não seu nome, porque não o tinha posto no telefone. Olhou fixamente os dígitos.
Deus! Era como se lhe tivesse lido a mente.
— Seu latte! Olá?
— Sinto muito. — guardou o telefone, pegou o que o homem estendia e agradeceu.
— Dupla taça como o desejava. As asas também.
— Obrigado.
— Ouça, trabalha em um dos hospitais por aqui? — perguntou, observando seu uniforme.
— Clínica particular. Obrigada outra vez.
Saiu rapidamente e não perdeu tempo em entrar na ambulância. Quando esteve novamente atrás do volante, travou as fechaduras das portas, arrancou o motor e ligou a calefação imediatamente, porque o ar que saía ainda estava morno.
O latte estava realmente bom. Super quente. O sabor perfeito.
Tirou o telefone outra vez, foi à lista de chamadas recebidas e escolheu o número de Rehvenge.
Respirou fundo e tomou um comprido trago do latte.
E pressionou enviar.
O código de área do destino era o 518. Quem teria dito?
CONTINUA
Capítulo 10
Rehvenge fechou a porta de seu escritório e sorriu tensamente, para evitar que suas presas aparecessem. Entretanto, ainda sem a exibição dos caninos, para o recolhedor de apostas espremido entre Trez e iAm foi suficiente para saber que estava em sérios problemas.
— Reverendo o que é tudo isto? Por que me chama assim? — disse o tipo precipitadamente — Estava me ocupando de meu negócio, para o senhor e de repente estes dois...
— Ouvi algo interessante sobre você. — disse Rehv, rodeando seu escritório.
Quando estava se sentando, Xhex entrou no escritório, com uma expressão dura nos olhos cinza. Após fechar a porta, apoiou as costas contra ela, sendo melhor que qualquer Master Lock quando se tratava de manter aos recolhedores de apostas trapaceiros dentro e longe dos olhos curiosos de fora.
— É mentira, é uma absoluta mentira...
— Você não gosta de cantar? — Rehv se recostou em sua cadeira, seu corpo intumescido encontrando uma posição familiar atrás da mesa de escritório negra — Não foi você que deu um pequeno espetáculo a La Tony Bennett para a multidão do Sal's a outra noite?
O recolhedor de apostas franziu o cenho.
— Bom, sim... Tinha alguns ouvintes.
Rehv fez um gesto com a cabeça a iAm, quem como sempre, tinha o rosto inexpressivo. O cara nunca demonstrava suas emoções, exceto quando se tratava de um cappuccino perfeito. Então podia vê-lo radiante de alegria.
— Meu companheiro aqui... Diz que cantou realmente bem. Que verdadeiramente agradou à multidão. O que cantou, iAm?
A voz de iAm era como a de James Earl Jones, baixa e profunda.
— Três Moedas na Fonte.
O recolhedor de apostas subiu as calças de um puxão em um gesto orgulhoso.
— Tenho habilidade. Tenho ritmo.
— Assim é um tenor como o bom e prezado senhor Bennett, não é? — Rehv tirou o casaco com um encolhimento de ombros — Os tenores são os meus favoritos.
— Sim. — o recolhedor de apostas olhou aos seguranças — Olhe, se importaria em me dizer o que é tudo isto?
— Quero que cante para mim.
— Quer dizer, como em uma festa? Faria qualquer coisa por você, chefe, já sabe. Tudo o que tem que fazer é pedir... Quero dizer, isto não era necessário.
— Não em uma festa, embora nós quatro desfrutemos ouvindo sua atuação. É para me compensar pelo que me roubou o último mês.
O rosto do recolhedor de apostas empalideceu.
— Eu não roubei...
— Sim, fez. Olhe, iAm é um contador fantástico. A cada semana, dá seus informes. Quanto, em que equipes, e que extensão. Acredita que não confere as contas? Apoiado nos informes do último mês deveria ter pagado... Qual era a cifra, iAm?
— Cento e setenta e oito mil quatrocentos e oitenta e dois.
— Isso mesmo. — Rehv fez um rápido gesto com a cabeça em sinal de agradecimento a iAm — Mas em vez disso veio com... Quanto?
— Cento e trinta mil novecentos e oitenta e dois. — replicou rapidamente iAm.
O recolhedor começou a falar imediatamente.
— Está enganado...
Rehv sacudiu a cabeça.
— Adivinha de quanto é a diferença... Embora não é como se já não soubesse. iAm?
— Quarenta e sete mil e quinhentos.
— O que casualmente é igual à soma de vinte e cinco dos grandes mais um interesse de noventa por cento. Não é assim, iAm? — quando o segurança assentiu com a cabeça uma vez, Rehv golpeou o chão com sua bengala e ficou em pé — E resulta que esse é o interesse de cortesia aplicado pela máfia de Esquente. Então Trez se dedicou a escavar um pouco, e o que foi que averiguou?
— Meu amigo Mike diz que emprestou vinte e cinco dos grandes a este cara aqui justamente antes do Rose Bowl12.
Rehv deixou sua bengala sobre a cadeira e rodeou a mesa do escritório, mantendo uma mão sobre a superfície para estabilizar-se. Os seguranças voltaram a ficar em posição, ladeando ao recolhedor de apostas, voltando a segurá-lo pela parte superior dos braços.
Rehv se deteve justamente diante do homem.
— Assim perguntarei isso uma vez mais, acredita que ninguém comprovaria as contas?
— Reverendo! Chefe... Por favor, ia lhe devolver isso! Por favor... Machucariam-me...
— Sim, é claro que vai fazê-lo. E vai me pagar o que cobro dos bastardos que tentam brincar disso comigo. Um castigo cento e cinqüenta por cento de interesse ao final deste mês ou sua esposa vai receber por correio seus pedacinhos. Oh, e está despedido.
O homem estalou em lágrimas, e não eram do tipo das de crocodilo. Eram autênticas, da classe que fazia que o nariz de um homem avermelhasse e os olhos inchassem.
— Por favor... iAm me danificar...
Rehv estendeu a mão de repente e a fechou entre as pernas do tipo. O uivo, quase um guincho, lhe indicou que embora ele não pudesse sentir nada, o recolhedor de apostas podia, e que a pressão estava sendo exercida no ponto exato.
— Não gosto que me roubem. — disse Rehv no ouvido do homem — Eu fico de saco cheio. E, se acredita que o que a máfia te faria é mau, garanto que sou capaz de algo pior. Agora... Quero que cante para mim, filho da puta.
Rehv retorceu com força e o tipo gritou com tudo o que tinha, o som foi alto e agudo, e ecoou na sala do andar de baixo. Quando o chiado começou a desvanecer-se porque o recolhedor de apostas tinha esgotado seu fornecimento de ar, Rehv cedeu e lhe deu oportunidade de refrescar as cordas vocais com um e outro ofego. E depois disso...
O segundo grito foi mais alto e ruidoso que o primeiro, provando que os vocalistas o faziam melhor depois de um pequeno aquecimento.
O recolhedor se sacudiu e saltou entre os seguranças, e Rehv seguiu apertando, seu lado symphath observando absorto, como se fosse o melhor espetáculo da televisão.
O homem demorou ao redor de nove minutos para perder a consciência.
Depois de ter apagado, Rehv o soltou e voltou para sua cadeira. Fez um gesto com a cabeça em direção a Trez e iAm e estes tiraram o humano pela porta de trás, para o beco, onde o frio o reviveria finalmente.
Quando partiram, Rehv teve uma súbita imagem de Ehlena balançando todas aquelas caixas de dopamina em seus braços enquanto entrava na sala de exame. O que pensaria dele se soubesse o que fazia para manter seu negócio em movimento? O que diria se soubesse que, quando disse ao recolhedor de apostas que ou pagava ou sua esposa receberia pacotes de FedEx que gotejariam sangue sobre os degraus de sua entrada, não tinha sido apenas uma ameaça? O que faria se soubesse que estava completamente preparado para cortá-lo ele mesmo em pedacinhos ou ordenar a Xhex, Trez ou iAm que o fizessem por ele?
Bom, já tinha a resposta, não?
Sua voz, essa clara e encantadora voz, voltou a ressonar em sua mente: Será melhor que guarde isto. Para alguém que vá utilizar alguma vez.
Certamente, ela não conhecia os detalhes, mas era esperta o bastante para rechaçar seu cartão de visita.
Rehv se concentrou em Xhex, que não se moveu de sua posição contra a porta de entrada. Quando o silêncio se prolongou, ela baixou o olhar ao tapete negro de pelo curto, desenhando um círculo ao redor de si mesma com o salto de sua bota.
— O que foi? — perguntou. Quando ela não levantou o olhar, pressentiu sua luta para recompor-se — Que merda aconteceu?
Trez e iAm voltaram a entrar no escritório e se colocaram contra a parede negra que estava frente à mesa de escritório de Rehv. Cruzaram os braços diante de seus enormes peitos e mantiveram a boca fechada.
O silêncio era algo característico nas Sombras... Mas combinado com a expressão tensa de Xhex e a rotina semicircular que estava realizando com essa bota, queria dizer que a merda era profunda.
— Fale. Já!
Os olhos de Xhex voaram aos seus.
— Chrissy Andrews está morta.
— Como? — embora soubesse.
— Golpeada e estrangulada até morrer em seu apartamento. Tive que ir ao necrotério para identificar o corpo.
— Filho da puta!
— Ocuparei-me do assunto. — Xhex não estava pedindo permissão, e sem importar o que ele dissesse, ia atrás desse pedaço de merda do namorado — E o farei rápido.
Tecnicamente falando, Rehv estava no comando, mas, neste assunto não ia se interpor em seu caminho. Para ele, suas garotas não eram somente uma fonte de ganhos... Eram empregadas pelas quais se preocupava e com as quais se identificava intimamente. Assim, se alguém machucava a alguma, fosse um cliente, um namorado ou um marido, tomava um interesse pessoal na vingança.
As putas mereciam respeito, e as suas o conseguiam.
— Ensina-o uma lição primeiro. — grunhiu Rehv.
— Não se preocupe com isso.
— Merda... É minha culpa. — murmurou Rehv enquanto estendia o braço para frente e recolhia seu abridor de cartas. A coisa tinha forma de adaga e também estava tão afiada como uma arma — Deveríamos tê-lo matado antes.
— Ela parecia estar melhor.
— Talvez somente escondesse melhor.
Os quatro ficaram em silêncio um momento. Em sua profissão sofriam um montão de perdas — que as pessoas acabassem mortas não era nenhuma novidade — mas na maioria dessas mortes, ele e sua equipe eram os sinais negativos da equação: eles eram os que faziam com que os outros desaparecessem. Perder a um dos seus nas mãos de algum outro ficava mal.
— Quer ouvir as novidades desta noite? — perguntou Xhex.
— Ainda não. Também trago uma pequena notícia para compartilhar. — forçando sua cabeça a trabalhar, olhou Trez e iAm — O que estou a ponto de dizer revolverá bastante as coisas, e quero dar a ambos a oportunidade de partir. Xhex, você não tem essa opção. Sinto muito.
Trez e iAm permaneceram imóveis, o que não o surpreendeu absolutamente. Trez ainda lhe mostrou o dedo maior. Isso tampouco foi uma surpresa.
— Fui à Connecticut. — disse Rehv.
— Também foi à clínica. — acrescentou Xhex — Por quê?
O GPS era um saco algumas vezes. Era difícil ter um pouco de privacidade.
— Esquece a porra da clínica. Escutem, preciso que façam um trabalho para mim.
— Um trabalho como...?
— Pensa no namorado de Chrissy como em um aperitivo antes do jantar.
Isto arrancou um sorriso frio de Xhex.
— Conte.
Rehv olhou fixamente a ponta de seu abridor de cartas, pensando em que ele e Wrath riram porque ambos tinham um. Depois das incursões do verão, o rei tinha lhe feito uma visita, para discutir assuntos do conselho, e tinha visto a coisa sobre o escritório. Wrath tinha brincado a respeito de que em seu trabalho diário ambos administravam por meio da espada, ainda quando tinham uma pluma entre as mãos.
Não se afastava muito da verdade. Embora Wrath tivesse a moralidade de seu lado e Rehv só o interesse próprio.
De maneira que não tinha empregado um ponto de vista moral ao tomar a decisão e escolher o caminho a seguir. Tinha-o feito, como sempre, apoiado no que mais lhe convinha.
— Não vai ser fácil. — murmurou.
— O divertido nunca é.
Rehv se concentrou na ponta afiada do abridor de cartas.
— Este... Não é por diversão.
Ao se aproximar o fim da noite e com seu turno a ponto de terminar, Ehlena se sentia inquieta. Hora do encontro. Hora de decidir. Supunha-se que em vinte minutos o macho viria à clínica para recolhê-la.
Deus! Divagava novamente.
Seu nome era Stephan. Stephan, filho de Tehm, embora não conhecia nem a ele nem a sua família. Era um civil, não um aristocrata, e tinha ido ali com seu primo, que machucara a mão quando cortava lenha para o fogo. Enquanto preenchia a papelada de alta, falara com Stephan de todas essas coisas das que falam os solteiros: gostava de Radiohead, ela também. Gostava de comida da Indonésia, ele também. Ele trabalhava no mundo humano, programando computadores, graças à comunicação virtual. Ela era enfermeira, algo óbvio não? Ele vivia em casa com seus pais, era o único filho de uma sólida família civil... Ou ao menos tinha divulgado como sendo sólidos civis, seu pai trabalhava para empreiteiros vampiros, sua mãe ensinava a Antiga Língua por conta própria.
Agradável, normal. Confiável.
Levando em consideração o que os aristocratas tinham feito à saúde mental de seu pai, lhe ocorreu que tudo isso parecia uma boa aposta, e, quando Stephan a tinha convidado para tomar um café, havia dito que sim, tinham combinado para essa noite, e tinham trocado os números de celulares.
Mas, o que ia fazer? Chamá-lo e dizer que não podia por causa de sua situação familiar? Ir de todos os modos, e preocupar-se com seu pai?
Entretanto, um rápido telefonema para Lusie do vestuário, trouxe notícias favoráveis: seu pai Ehlena teve uma longa sesta e agora estava trabalhando tranqüilamente nos papéis de seu escritório.
Meia hora de jantar. Talvez dividir uma sobremesa. Que mal podia fazer?
Quando ao fim decidiu ir, não apreciou a imagem que relampejou em sua mente. Agora que acabava de decidir que iria a um encontro com um macho, não deveria estar pensando no peito nu de Rehv com essas estrelas vermelhas tatuadas.
O que precisava era se concentrar em tirar o uniforme e em melhorar sua aparência, ao menos nominalmente.
Entre o pessoal do dia que entrava e os que trabalharam durante a noite que saiam, trocou o uniforme pela saia e o suéter que trouxera...
Tinha esquecido os sapatos.
Genial. Os sapatos brancos com sola de borracha não eram muito sexy.
— O que acontece? — disse Catya.
Girou-se.
— Alguma possibilidade de que estes dois botes brancos em meus pés não arruínem totalmente esta roupa.
— Hã... Honestamente? Não estão tão mal.
— Não mente nada bem.
— Ao menos tentei.
Ehlena guardou o uniforme em sua mochila, refez o penteado, e comprovou a situação da maquiagem. É obvio, tinha esquecido o delineador de olhos e também o rímel, assim, como quem diz, a cavalaria ficou sem cavalos nesse flanco.
— Alegro-me de que saia. — disse Catya enquanto apagava a lista de nomes do horário noturno da lousa branca.
— Considerando que é minha chefe, isso me põe nervosa. Bem preferiria que se alegrasse por ver-me entrar na clínica.
— Não, não se trata do trabalho. Alegro-me que esta noite saia para se divertir.
Ehlena franziu o cenho e olhou ao seu redor. Por algum milagre, estavam sozinhas.
— Quem diz que vou a alguma parte que não seja para casa?
— Uma fêmea que vai para casa não troca o uniforme aqui. E não se preocupa de como estão os sapatos com a saia. Economizarei o “quem é ele”.
— É um alívio.
— A menos que queira compartilhá-lo voluntariamente?
Ehlena riu em voz alta.
— Não, prefiro mantê-lo em privado. Mas, se chegar a alguma parte... Desembucharei.
— Obrigarei que cumpra sua palavra. — Catya foi a seu armário e simplesmente ficou olhando.
— Está bem? — disse Ehlena.
— Odeio esta maldita guerra. Odeio receber os mortos e ver em seus rostos o quanto sofreram. — Catya abriu o armário e se ocupou em tirar sua parka — Sinto, não queria ser desmancha-prazeres.
Ehlena se aproximou e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Sei exatamente como se sente.
Houve um momento de entendimento entre elas durante o qual sustentaram seus olhares. E, logo Catya aclarou a garganta.
— Bem, vá. Seu macho te espera.
— Virá me recolher aqui.
— Ooooh, talvez fique por aqui e fume um cigarro lá fora.
— Você não fuma.
— Demônios, frustrada outra vez.
De caminho à saída, Ehlena se apresentou na tela de registro para assegurar-se de que não havia nada mais que tivesse que fazer antes da substituição do novo turno. Satisfeita de que tudo estivesse em ordem, atravessou as portas e subiu as escadas até que finalmente esteve fora da clínica.
A noite estava mais à frente do código postal CEP que indicava fresco e entrando em cidade fria, e em sua opinião o ar cheirava a azul, se é que a cor podia ter alguma fragrância: é que sentia algo que simplesmente era muito fresco, glacial e claro quando respirava profundamente e exalava formando suaves nuvens. Com cada inalação, sentia-se como se estivesse tomando as safiras pulverizadas pelos céus em seus pulmões, e, que as estrelas eram faíscas que saltavam através de seu corpo.
Foi despedindo-se das atrasadas, enquanto as últimas enfermeiras partiam, desmaterializando-se ou conduzindo, dependendo do que tivessem planejado. Depois também Catya chegou e se foi.
Ehlena tamborilou com o pé e comprovou seu relógio. Seu macho estava dez minutos atrasado. Não era para tanto.
Recostando-se contra o revestimento de alumínio, sentiu que seu sangue cantava em suas veias, uma estranha sensação de liberdade inchando seu peito enquanto pensava em sair a alguma parte com um macho por sua própria...
Sangue. Veias.
Rehvenge não tratou de seu braço!
O pensamento penetrou em sua mente e permaneceu ali como o eco de um grande ruído. Não tinha tratado o braço. Não houvera nada no relatório sobre a infecção, e Havers era tão escrupuloso em suas notas como era com os uniformes do pessoal, a limpeza dos quartos dos pacientes e a organização dos armários de fornecimentos.
Quando retornara da farmácia com as drogas, Rehvenge tinha a camisa posta e os punhos abotoados, mas tinha assumido que era porque o exame tinha terminado. Entretanto, estava disposta a apostar que os tinha abotoado assim que ela terminou de lhe tirar sangue.
Mas... Não era assunto dela, não? Rehvenge era um macho adulto que tinha todo o direito a tomar más decisões sobre sua saúde. Igual aquele com overdose de drogas que mal sobrevivera à noite, e igualmente ao grande número de pacientes que assentiam muito quando o médico estava diante deles, mas que quando iam para casa deixavam de lado o indicado em suas receitas e os cuidados pós-operatórios.
Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar a alguém que não queria ser salvo. Nada. E essa era uma das maiores tragédias de seu trabalho. Tudo o que podia fazer era indicar as opções e as conseqüências e esperar que o paciente escolhesse sabiamente.
Soprou uma brisa, penetrando dentro de sua saia e fazendo-a invejar o casaco de pele de Rehvenge. Afastando-se da lateral da clínica, tentou ver o caminho abaixo, procurando faróis de carro.
Dez minutos mais tarde, voltou a olhar seu relógio.
E dez minutos depois desses, elevou o punho uma vez mais.
Tinham-na deixado plantada!
Não era uma surpresa. O encontro tinha sido marcado de maneira muito apressada, e em realidade não conheciam um ao outro, verdade?
Quando outra brisa fria a golpeou, tirou seu celular e escreveu: Olá, Stephan sinto não tê-lo visto esta noite. Talvez em outro momento. E.
Retornou o telefone a seu bolso e se desmaterializou para sua casa. Em vez de entrar em seguida, agasalhou-se com seu casaco e passeou daqui para lá pela calçada gretada que corria com o passar da lateral da casa até a porta traseira. Quando o vento gelado voltou a soprar, uma rajada lhe deu totalmente no rosto.
Picavam-lhe os olhos.
Ao dar as costas ao vendaval, algumas mechas de cabelo voaram para frente como se estivessem tentando fugir do frio, e ela estremeceu.
Genial. Agora, quando sua visão se empanasse, não teria a desculpa da brisa fria.
Deus estava chorando? Isso podia ser simplesmente um mal-entendido? Por um homem que mal conhecia? Por que lhe importava tanto?
Ah, mas não era por ele absolutamente. O problema era ela. Odiava estar onde tinha estado ao abandonar a casa: sozinha.
Tentando conseguir um apoio, literalmente, estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira, mas não pôde obrigar-se a entrar. A imagem dessa cozinha miserável e muito organizada, o conhecido som dessas escadas rangentes que conduziam ao porão, e o aroma de pó e papel do dormitório de seu pai lhe eram tão familiares como seu próprio reflexo em qualquer espelho. Esta noite tudo resultava muito claro, um brilhante brilho que lhe cravava em ambos os olhos, um rugido soando em seus ouvidos, um enjoativo fedor bombardeando seu nariz.
Deixou cair o braço. O encontro tinha sido um passe de “saída da prisão”. Uma balsa para abandonar a ilha. Uma mão estendida sobre o precipício do qual ela estava pendurada.
O desespero a fez voltar bruscamente para a realidade como nenhuma outra coisa podia tê-lo feito. Não servia de nada sair com alguém se essa era sua atitude. Não era justo para o homem nem são para ela. Quando Stephan ligasse outra vez, se o fizesse, simplesmente diria que estava muito ocupada...
— Ehlena? Está bem?
Ehlena saltou afastando-se da porta que evidentemente acabava de se abrir amplamente.
— Lusie! Sinto muito, somente... Só estava pensando muito. Como está papai?
— Bem, honestamente bem. Está dormindo outra vez.
Lusie saiu da casa e fechou evitando que o calor escapasse da cozinha. Depois de dois anos, era uma figura dolorosamente familiar, sua roupa boêmia e seu comprido cabelo grisalho resultavam reconfortantes. Como de costume, tinha sua bolsa de remédios em uma mão e sua enorme bolsa pendurada do ombro oposto. Dentro da bolsa de remédios havia um medidor de pressão sangüínea padrão, um estetoscópio, e medicamentos de sob nível... Tudo o qual Ehlena a tinha visto usar. Dentro da bolsa levava as palavras cruzadas do New York Time, chicletes de hortelã Wrigley’s que gostava de mascar, a carteira e o batom cor pêssego que passava pelos lábios a intervalos regulares. Ehlena sabia das palavras cruzadas porque Lusie e seu pai as faziam juntos, do chiclete pelos pacotes que havia no cesto de papéis, e o batom era evidente, a carteira era uma hipótese.
— Como está? — Lusie esperou, seus olhos cinza claros enfocados — Você retornou um pouco cedo.
— Deixou-me plantada.
A forma que a mão de Lusie aterrissou sobre o ombro de Ehlena era o que fazia da fêmea uma grande enfermeira: com um toque te transmitia consolo, calidez e empatia, tudo o que ajudava a reduzir a pressão sangüínea, o ritmo cardíaco e a agitação.
Tudo o que ajudava a restabelecer uma mente emaranhada.
— Sinto-o. — disse Lusie.
— Oh, não, é melhor assim. Quero dizer, esperava muito.
— De verdade? Pareceu-me bastante sensata quando me falou disso. Somente iam tomar um café...
Por alguma razão disse a verdade:
— Não. Estava procurando uma saída. A que nunca chegará, porque nunca o deixaria. — Ehlena sacudiu a cabeça — De todos os modos, muito obrigado por vir...
— Não tem que ser uma situação disto ou aquilo. Seu pai e você...
— Realmente aprecio que tenha vindo cedo esta noite. Foi muito amável de sua parte.
Lusie sorriu da mesma forma que Catya tinha feito mais cedo, essa mesma noite, tensa e tristemente.
— De acordo, deixarei estar, mas tenho razão nisto. Pode ter uma relação e seguir sendo uma boa filha para seu pai. — Lusie olhou para a porta — Escute, terá que vigiar essa ferida da perna. A que se fez com a unha. Pus uma vendagem nova, mas estou preocupada com ela. Acredito que está infectando.
— Farei, e obrigada.
Depois que Lusie se desmaterializou, Ehlena entrou na cozinha, fechou a porta, passou a chave, e se dirigiu ao porão.
Seu pai estava em seu quarto, dormindo na enorme cama vitoriana, a enorme cabeceira esculpida parecia o arco lavrado de uma tumba. Sua cabeça descansava contra uma pilha de travesseiros brancos de seda, e o edredom de veludo vermelho sangue estava dobrado precisamente a meio caminho de seu peito.
Parecia um rei em repouso.
Quando a enfermidade mental se apropriou dele, seu cabelo e barba se tornaram brancos, fazendo que Ehlena se preocupasse que estivessem começando a aparecer nele as mudanças do final da vida. Mas depois de cinqüenta anos, ainda parecia o mesmo, seu rosto não apresentava rugas e suas mãos seguiam sendo fortes e firmes.
Era tão difícil. Não podia imaginar a vida sem ele. E não podia imaginar-se tendo uma vida com ele.
Ehlena fechou parcialmente a porta e foi para seu próprio quarto, onde tomou banho, trocou-se e se esticou sobre a cama. Tudo o que tinha era uma cama de um lugar sem cabeceira, um travesseiro e lençóis de algodão, mas o luxo não lhe importava. Só necessitava um lugar onde esticar seus ossos cansados cada dia e isso era tudo.
Normalmente lia um pouco antes de dormir, mas hoje não. Realmente não tinha energias. Estendendo a mão para um lado, apagou o abajur, cruzou os pés à altura dos tornozelos e estendeu os braços retos.
Com um sorriso, compreendeu que ela e seu pai dormiam exatamente na mesma posição, verdade?
Na escuridão, pensou em Lusie e a forma em que tinha insistido no corte de seu pai. Ser uma boa enfermeira era preocupar-se com o bem-estar dos pacientes, inclusive depois de deixá-los. Tratava-se de treinar aos familiares em como continuar com os cuidados necessários, e ser um apoio.
Não era o tipo de trabalho que simplesmente se ia porque tinha terminado seu turno.
Religou o abajur com um clique.
Levantando-se, foi ao computador que tinha conseguido grátis na clínica quando os sistemas de TI13 tinham sido melhorados. A conexão de internet era lenta, como sempre, mas finalmente pôde acessar a base de dados dos registros médicos da clínica.
Colocou sua contra-senha, efetuou uma busca, logo outra. A primeira foi por compulsão, a segunda por curiosidade.
Gravou ambas, desligou o portátil e pegou seu telefone.
Capítulo 11
Quando estava amanhecendo, justo antes que a luz começasse a se reunir no céu do leste, Wrath tomou forma nos densos bosques da parte norte da montanha da Irmandade. Não aparecera ninguém pelo Hunterbred, e a iminente luz do dia o tinha forçado a abandonar o lugar.
A grama rangia ruidosamente sob seus shitkickers, as finas agulhas dos pinheiros estavam quebradiças pelo frio. Ainda não havia neve para atenuar os sons, mas podia cheirá-la no ar, podia sentir essa gelada dentada na profundidade de seus seios nasais.
A entrada secreta do Sancto Santorum da Irmandade da Adaga Negra estava no extremo mais afastado de uma caverna, bem no fundo. Suas mãos localizaram por meio do tato o abridor na porta de pedra, e o pesado portal se deslizou detrás da parede de rocha. Entrando em um piso revestido de suave mármore negro, avançou por ele enquanto a porta se fechava as suas costas.
A sua vontade, as tochas se acenderam de cada lado, estendendo-se a uma longa distância e iluminando as enormes portas de ferro instaladas nos fins do século dezoito quando a Irmandade converteu essa caverna na Tumba.
Ao se aproximar, as grossas barras da porta adquiriram a aparência de uma fila de sentinelas armados ante sua visão imprecisa, as chamas trementes animavam algo que na realidade não tinha movimento. Com sua mente, abriu as duas metades e continuou seu caminho, entrando em um comprido passadiço cheio de prateleiras que iam do chão ao teto, a uns doze metros de altura.
Jarras de lessers de todo tipo e espécie estavam empilhadas uma junto à outra, em um desdobramento que marcava gerações de matanças feitas pela Irmandade. As jarras mais antigas eram somente toscos copos feitos à mão que tinham sido trazidos do Antigo País. A cada metro que avançava as jarras se tornavam mais modernas, até se chegar ao próximo jogo de portas e encontrar as porcarias chinesas produzidas em série vendidas na Target.
Não ficava muito espaço livre nas prateleiras e isso o deprimiu. Com suas próprias mãos ajudou a construir este monumento à morte de seus inimigos, junto com o Darius, Tohrment e Vishous, todos eles trabalharam em excesso durante um mês seguido, trabalhando durante o dia e dormindo sobre o chão de mármore. Tinha sido ele, que decidiu quanto aprofundar na terra, e estendeu o corredor das prateleiras vários metros a mais do que considerava necessário. Quando ele e seus irmãos terminaram de instalar tudo e logo depois de empilhar as jarras mais antigas, se convenceram de que não necessitariam tanto espaço para armazenamento. Tiveram a segurança de que no momento em que enchessem as três quartas partes disso, a guerra teria terminado.
E aí estava, séculos mais tarde, tratando de encontrar espaço suficiente.
Com uma pavorosa sensação de presságio, Wrath estimou com sua reduzida vista os últimos espaços que ficavam nas prateleiras originais. Era difícil não vê-lo como uma evidência de que a guerra estava chegando a seu fim, que o equivalente vampiro do finito calendário Maia estava nessas paredes de rocha grosseiramente esculpidas.
Não era com o brilho da obtenção da vitória que previa o depósito da última jarra junto às demais.
Uma das duas ou ficariam sem raça a qual proteger ou ficariam sem Irmãos para protegê-los.
Wrath tirou as três jarras de sua jaqueta e as pôs juntas formando um pequeno grupo, logo deu um passo atrás.
Tinha sido responsável por muitas dessas jarras... Antes de converter-se em Rei.
— Já sabia que tinha saído para lutar.
Ante o som da voz autoritária da Virgem Escriba, Wrath girou a cabeça bruscamente. Sua Santidade estava flutuando junto às portas de ferro, sua túnica negra estava a trinta centímetros acima do chão de pedra e sua luz resplandecia por debaixo da prega.
Houve um tempo em que seu resplendor foi cegamente brilhante. Agora apenas lançava sombra.
Wrath voltou a girar-se para as jarras.
— Assim, V se referia a isso quando disse que ia apertar o gatilho.
— Sim, meu filho foi até mim.
— Mas já estava inteirada. E, a propósito, isso não foi uma pergunta.
— Sim. — ela odiava perguntas.
Wrath levantou a vista e observou V atravessar as portas.
— Bom, olhem esta merda. — manifestou Wrath — A reconciliação entre mãe e filho… Ocorrerá em tão somente um instante. — deixou que a poesia lírica parafraseada ficasse flutuando no ar — Ou não.
A Virgem Escriba se adiantou, movendo-se lentamente entre as jarras. Na antiguidade — ou, demônios, tão somente no ano anterior — teria assumido o controle da conversa. Agora apenas flutuava.
Vishous fez um som de desgosto, como se tivesse esperado muito para que sua Queridíssima Mamãe[37] começasse a dar o sermão de “nem-mais-uma-palavra” para seu rei, e não se sentiu impressionado ao ver que não lhe fazia frente.
— Wrath, não me deixou terminar.
— E acredita que agora o farei? — esticou a mão para cima e com os dedos tocou a beira de uma das três jarras que acrescentou à coleção.
— Deixará que termine. — disse a Virgem Escriba em um tom desinteressado.
Vishous avançou a pernadas, seus shitkickers pisavam firmemente o chão que ele mesmo tinha ajudado a colocar.
— A questão é que se vai sair, vá com reforços. E diga à Beth. De outra forma se converte em um mentiroso… E tem uma melhor oportunidade de deixá-la viúva. Maldito seja, ignore minha visão, se quiser. Mas ao menos seja prático.
Wrath caminhou para cima e para baixo, pensando que o cenário para este cerco era fodidamente perfeito: estava rodeado por testemunhos da guerra.
Finalmente se deteve frente às três jarras que tinha obtido essa noite.
— Beth pensa que fui ao norte do Estado me encontrar com Phury. Sabem, para trabalhar com as Escolhidas. Mentir enche o saco! Mas e o conhecimento de que tenhamos só quatro Irmãos no campo de batalha? É pior.
Houve um longo silêncio, durante o qual o único som que se escutava era o vibrante chispar das chamas das tochas.
Vishous rompeu o silêncio.
— Acredito que deveria ter uma reunião com a Irmandade, e dizer a verdade para Beth. Como falei se for lutar, lute. Mas faça abertamente, entende? Dessa forma não estará saindo sozinho. E, tampouco o fará algum de nós. Neste momento, quando ocorre o rodízio para descanso, alguém sempre termina lutando sem companheiro. Se você o fizesse legitimamente resolveria esse problema.
Wrath teve que sorrir.
— Cristo, se tivesse pensado que estaria de acordo comigo, teria falado antes. — olhou à Virgem Escriba — Mas, e o que me diz das leis. Da tradição.
A mãe da raça se voltou para enfrentá-lo e com voz distante disse:
— Tantas coisas mudaram. Que diferença faz uma mais. Fiquem bem, Wrath filho de Wrath e Vishous meu filho.
A Virgem Escriba desapareceu como uma brisa na noite fria, dissipando-se no éter como se nunca tivesse estado ali.
Wrath se reclinou contra as prateleiras, e, quando a cabeça começou a lhe pulsar, subiu os óculos e esfregou seus olhos inúteis. Quando se deteve, fechou as pálpebras e ficou tão quieto como a rocha que o rodeava.
— Parece moído. — murmurou V.
Sim, estava, verdade? E que triste isso era.
O tráfico de drogas era um negócio muito lucrativo.
Em seu escritório privado do ZeroSum, Rehvenge estava em frente a sua mesa no escritório revisando as faturas dessa noite, comprovando meticulosamente as quantidades, até o último centavo. iAm estava fazendo o mesmo no restaurante de Sal, e o primeiro dever de cada noite era encontrar-se ali para comparar resultados.
Na maioria das vezes chegavam ao mesmo total. Quando não era assim, ele os remetia ao iAm.
Entre o álcool, as drogas, e o sexo as importâncias em bruto das faturas superava os duzentos e noventa mil só para o ZeroSum. No clube trabalhavam vinte e duas pessoas com salário fixo, isso incluía dez seguranças, três barmans, seis prostitutas, Trez, iAm e Xhex, o custo por todos eles girava em torno dos setenta e cinco mil dos grandes por noite. Os recolhedores de apostas e os traficantes autorizados a trabalhar no local, ou seja, aqueles vendedores de drogas que ele autorizava a vender sob suas premissas, eram comissionados, e o que restava após cobrarem sua parte, era dele. Também, uma vez por semana, ele ou Xhex e os seguranças realizavam entendimentos por quantidades mais importantes com um seleto número de distribuidores que tinham suas próprias redes de tráfico de drogas fora de Caldwell ou em Manhattan.
Calculando tudo, e depois de subtrair os custos do pessoal, ficavam aproximadamente duzentos mil por noite para pagar as drogas e o álcool vendidos, cobrir a calefação e a eletricidade, para a melhoria de bens de uso e o pagamento da equipe de limpeza de sete pessoas que entrava às cinco da manhã.
Cada ano tirava perto de cinqüenta milhões de seus negócios… O que parecia obsceno, e era, especialmente considerando que pagava impostos somente por uma fração disso. A questão era que as drogas e o sexo eram negócios arriscados, mas os lucros potenciais eram enormes. E necessitava dinheiro. Muito. Manter sua mãe no estilo de vida a que estava acostumada, e que bem merecia, era um assunto multimilionário. Além disso, ele tinha suas próprias casas e a cada ano trocava o Bentley assim que os novos modelos estavam disponíveis.
Entretanto, o gasto pessoal mais custoso de todos, disparado, eram as pequenas bolsas negras de veludo.
Rehv estendeu a mão sobre suas folhas de cálculo e recolheu a que enviaram do distrito de diamantes da Grande Maçã. Agora as entregas chegavam às segundas-feiras… antes costumava ser às últimas sextas-feiras do mês, mas agora ao abrir o Iron Mask, o dia livre do ZeroSum tinha mudado para domingo.
Desatou o cordão de cetim e abriu o pescoço da bolsa, vertendo um punhado de brilhantes rubis. Um quarto de milhão de dólares em pedras cor vermelho sangue. Voltou a colocá-las na bolsa, atou o cordão com um nó apertado, e olhou seu relógio. Faltavam dezesseis horas para que tivesse que empreender sua viagem para o norte.
A primeira terça-feira do mês era quando pagava seu resgate, e pagava à princesa de duas maneiras. Uma era com pedras preciosas. A outra com seu corpo.
Entretanto fazia que custasse a ela também.
Pensar aonde iria e o que se veria obrigado a fazer lhe provocou cócegas na nuca, e não o surpreendeu que sua vista começasse a mudar, e que o rosa escuro e o vermelho sangue substituíssem o negro e o branco de seu escritório, e que seu campo visual se nivelasse como por obra de uma escavadora convertendo-se em um nível plano.
Abrindo uma gaveta, tirou uma de suas bonitas caixas novas de dopamina e agarrou a seringa que tinha usado as últimas duas vezes que se injetou em seu escritório. Arregaçando o braço esquerdo, fez um torniquete no meio do bíceps mais por hábito que por verdadeira necessidade. Suas veias estavam tão inchadas que parecia que várias toupeiras haviam feito suas tocas debaixo de sua pele, e sentiu uma pontada de satisfação ante o horrível estado em que estavam.
A agulha não tinha tampa que tirar, assim encheu o êmbolo da seringa com a prática de um usuário habitual. Levou-lhe um momento encontrar uma veia que fosse viável, e colocou a diminuta agulha de aço em seu corpo sem sentir nada de nada. Soube que finalmente tinha dado no lugar adequado quando puxou o êmbolo e viu que o sangue se mesclava com a solução clara da droga.
Enquanto liberava o torniquete e pressionava com o dedo polegar para fazer entrar o líquido, olhou fixamente a ulceração de seu braço e pensou em Ehlena. Ainda quando não confiava nele e não desejava sentir-se atraída por ele e embora evidentemente seria capaz de mover céu e terra para não sair com ele, seguia querendo ser uma salvadora. Seguia querendo o melhor para ele e sua saúde.
Isso era o que significava ser uma fêmea de valor.
Já tinha injetado a metade quando seu celular tocou. Um rápido olhar à tela indicou que o número não era conhecido, por isso deixou que a chamada se perdesse. As únicas pessoas que tinham seu número eram aquelas com as quais queria falar, e essa era uma lista endemoniadamente curta: sua irmã, sua mãe, Xhex, Trez e iAm. E o Irmão Zsadist, o hellren de sua irmã.
Isso era tudo.
Enquanto tirava a agulha de seu ralo vascular, amaldiçoou ante o assobio que indicava que tinham deixado um correio de voz. De tanto em tanto recebia um desses, gente deixando partes e retalhos de suas vidas em seu pequeno rincão de espaço tecnológico, pensando que era o de outra pessoa. Ele nunca devolvia a chamada, jamais mandava uma mensagem de texto com um: Este não é quem pensa que é. Já se dariam conta quando quem quer que pensassem estar chamando não devolvesse o favor.
Fechando os olhos se recostou contra o respaldo da cadeira e atirou a seringa sobre as folhas de cálculo, não podia importar menos se a droga funcionava.
Sentado a sós em sua guarida de iniqüidade, na hora silenciosa em que todos se foram e o pessoal da limpeza não tinha entrado ainda, não lhe importava uma merda se os planos de sua visão retornavam a um modo tridimensional. Não lhe importava se reaparecia o espectro a toda cor. Não se perguntava a cada segundo que passava se retornaria à “normalidade” ou não.
Deu-se conta que isto tinha mudado. Até agora sempre se desesperou esperando que a droga funcionasse.
O que tinha feito a situação mudar?
Deixou a pergunta no ar enquanto recolhia o celular e agarrava a bengala. Com um gemido, ficou cuidadosamente de pé e caminhou para seu dormitório privado. O intumescimento estava retornando rapidamente a seus pés e pernas, mais rapidamente de quando conduzia vindo de Connecticut, mas bom, isso era típico. Quanto menos impulsos symphath se desencadeassem, melhor funcionava a droga. E caramba! Tornava-se gracioso, mas ser selecionado para matar o rei o tinha exasperado.
Enquanto que estar sentado a sós no que podia chamar lar, não o fazia.
O sistema de segurança já estava ativo em seu escritório, e ativou outro para suas habitações privadas, logo se fechou no dormitório sem janelas no qual pernoitava de quando em quando. O banheiro estava do outro lado do quarto e atirou seu casaco de zibelina sobre a cama antes de entrar e abrir a ducha. Enquanto se movia pelo lugar, um frio que impregnava até os ossos se apoderou de seu corpo, fluindo de dentro para fora, como se tivesse se injetado Freon.
Isto sim ele temia. Odiava ter frio todo o tempo. Merda, talvez devesse ter se deixado ir. De toda forma não ia interatuar com ninguém.
Sim, mas se saltava muitas doses, voltar a nivelar-se era uma merda.
O vapor ondeou atrás da porta de vidro da ducha, se despiu deixando seu traje, a gravata e a camisa sobre o balcão de mármore que havia entre as duas pias. Ficando sob a ducha, tremeu violentamente e os dentes tilintaram.
Por um momento, derrubou-se contra as suaves paredes de mármore, mantendo a si mesmo no centro das quatro rosetas da ducha. Enquanto a água quente, que não podia sentir, caía em forma de cascata descendo por seu peito e seu abdômen, tratou de não pensar no que viria na noite seguinte, e falhou.
Oh, Deus… Seria capaz de voltar a fazê-lo? Ir ali acima e prostituir a si mesmo com essa cadela?
Sim, e a alternativa era… Que o denunciasse ante o conselho por ser um symphath e que deportassem seu rabo à colônia.
A escolha era clara.
À merda com isso, não havia escolha. Bella não sabia o que era, e descobrir a mentira familiar a mataria. E ela não seria a única vítima. Sua mãe se desmoronaria. Xhex ficaria furiosa e se mataria tratando de salvá-lo. Trez e iAm fariam o mesmo.
Todo o castelo de cartas cairia.
Compulsivamente, agarrou uma brilhante barra de sabão dourado do suporte de cerâmica que estava montado na parede e o esfregou entre suas mãos até fazer espuma. A merda que usava não era do tipo elegante e fino. Era o comum Dial, um desinfetante que sobre a pele parecia como um nivelador de pavimento.
Suas putas usavam o mesmo. Era com o que abastecia suas duchas, a pedido delas.
Sua regra era três vezes. Três vezes para cima e para baixo por seus braços e suas pernas, seus peitorais e seu abdômen, seu pescoço e seus ombros. Três vezes o afundava entre suas coxas, ensaboando o membro e os testículos. O ritual era estúpido, mas era algo compulsivo. Poderia ter usado três dúzias de barras de Dial e ainda assim seguir sentindo-se sujo.
Era gracioso, suas putas sempre se surpreendiam pelo trato que recebiam. Cada vez que chegava uma nova, esperava ter que excitá-lo como parte de seu trabalho, e sempre estavam preparadas para serem agredidas. Em vez disso, obtinham seu vestiário privado com ducha, um horário seguro, e a segurança de que nunca, jamais seriam agredidas, e essa coisa chamada respeito… Que significava que podiam escolher os seus clientes, e, se os filhos da puta que pagavam pelo privilégio de estar com elas lhe tocavam embora fosse somente um de seus cabelos, tudo o que tinham de fazer era dizer e uma montanha de merda caía sobre o ofensor.
Mais de uma vez, aparecia alguma das mulheres na porta de seu escritório e pedia para falar com ele em particular. Geralmente isso acontecia aproximadamente um mês depois que começasse a exercer, e o que diziam era sempre o mesmo e sempre era expresso com uma espécie de confusão, que se ele fosse normal, teria lhe quebrado o coração:
— Obrigado.
Não era muito viciado nos abraços, mas era sabido que as atraía a seus braços e as abraçava durante um instante. Nenhuma delas compreendia que não era devido a ele ser um bom homem, mas sim porque era igual a elas. A dura realidade era que a vida tinha posto a todos onde não desejavam estar, quer dizer sobre suas costas frente a pessoas com as quais não queriam estar fodendo. Sim, havia algumas que não lhes importava o trabalho, mas como todo mundo, não queriam trabalhar todo o tempo. E Deus sabia que os clientes sempre apareciam.
Assim como sua chantagista.
Sair da ducha era um absoluto e puro inferno, e adiou o profundo congelamento o máximo que pôde, encolhendo-se sob a ducha enquanto discutia consigo mesmo sobre a saída. Enquanto o debate continuava, ouvia a água tilintar contra o mármore e tagarelar no deságüe de bronze, mas seu corpo totalmente intumescido não sentia nada salvo um leve alívio de seu Alaska interior. Quando acabou a água quente, soube somente devido a seus tremores piorarem e as unhas de suas mãos passaram de uma cor cinza pálida a um azul profundo.
De caminho à cama, secou-se com uma toalha e logo se lançou sob o edredom de visom o mais rápido que pôde.
Justo quando estava puxando as mantas para subir até sua garganta, seu celular emitiu um assobio. Outra mensagem de voz.
Fodida Central Geral com seu celular.
Ao verificar suas chamadas perdidas, descobriu que a última era de sua mãe, e se endireitou rapidamente, embora mudar para a posição vertical significasse que seu peito ficasse descoberto. Como a dama que era não ligava nunca, porque não queria “interromper seu trabalho”.
Pressionou alguns botões, pôs sua contra-senha, e se preparou para apagar a mensagem de número equivocado que sairia primeiro.
“Mensagem do 518—blah—blah—blah…” Pressionou a tecla de numeral para mandá-la a merda e se preparou para golpear o sete e desfazer-se da coisa.
Seu dedo estava encaminhando-se para baixo quando a voz de uma fêmea disse:
— Olá, eu…
Essa voz… Essa voz era… Ehlena?
— Porra!
De toda forma, o correio de voz era inexorável, sem importar-se uma merda que uma mensagem dela fosse o último que ele escolheria apagar. Enquanto amaldiçoava, o sistema continuou agitando-se até que escutou a suave voz de sua mãe falando na Antiga Língua.
— Saudações, queridíssimo filho, espero que esteja bem. Por favor, desculpe a intromissão, mas me perguntava se poderia passar pela casa nos próximos dias? Há um assunto sobre o qual devo falar contigo. Amo-te. Adeus, meu primogênito de sangue.
Rehv franziu o cenho. Tão formal, o equivalente verbal a uma atenta nota escrita por sua formosa mão, mas a solicitude era atípica nela, e isso dava o caráter de urgente. Mas estava fodido… Má escolha de palavras. Amanhã de noite era impossível devido a seu “encontro”, assim teria que ser a noite seguinte, assumindo que se encontrasse o suficientemente bem.
Ligou a casa, e quando uma das doggen atendeu disse à criada que estaria ali na quarta-feira de noite assim que o sol se pusesse.
— Senhor, se me permite. — disse a criada — Verdadeiramente me alegra que venha.
— O que está acontecendo? — quando houve uma longa pausa, sua frieza interior, piorou — Diga!
— Ela está… — a voz do outro lado se agitou — Está tão encantadora como de costume, mas nos alegra que venha. Se me desculpar, irei transmitir sua mensagem.
A linha ficou muda. No fundo de sua mente, tinha percebido o que ocorria, mas sistematicamente ignorou tal convicção. Verdadeiramente não podia pensar nisso. Definitivamente não podia.
Além disso, era provável que não fosse nada. Depois, toda paranóia era um efeito secundário quando se consumia muita dopamina, e Deus sabia que estava tomando mais que sua cota. Iria ao refúgio assim que pudesse, e ela estaria bem… Espere! O solstício de verão. Devia tratar-se disso. Sem dúvida desejava planejar as festividades que incluía Bella e Z e à menina, já que seria o primeiro ritual de solstício de Nalla, e sua mãe levava esse tipo de coisas muito a sério. Podia viver neste lado, mas as tradições das Escolhidas sob as quais tinha sido criada ainda formavam parte dela.
Era certo que se tratava disso.
Aliviado, pôs o número de Ehlena em sua caderneta de memória e ligou para ela.
Em tudo o que podia pensar enquanto o telefone chamava, além de em, “responde, responde, responde”, era em que confiava que estivesse bem. O que era uma loucura. Como se fosse chamar a ele se tivesse algum problema?
Então por que haveria…
— Olá?
O som de sua voz no ouvido obteve algo que a ducha quente, o visom e a temperatura ambiente de oitenta graus não tinham obtido. O calor se estendeu desde seu peito, fazendo retroceder o intumescimento e o frio, cobrindo-o com… Vida.
Apagou as luzes para poder concentrar-se nela com tudo o que tinha.
— Rehvenge? — disse ela depois de um momento.
Reclinou-se contra os travesseiros e sorriu na escuridão.
— Olá.
Capítulo 12
— Sua camisa está ensangüentada… E… Oh, Deus… A perna de sua calça. Wrath, o que aconteceu?
De pé em seu escritório na mansão da Irmandade, enfrentando a sua amada shellan, Wrath puxou as duas metades de sua jaqueta de motoqueiro para fechá-las mais sobre seu peito, e pensou que era bom que ao menos lavou o sangue de lesser das mãos.
A voz de Beth ficou mais baixa.
— Quanto do que estou vendo é teu?
A seus olhos estava tão formosa como sempre, era a única fêmea a quem desejava, a única companheira possível para ele. Com jeans e seu suéter negro de pescoço alto, e o cabelo escuro caindo sobre seus ombros, era a coisa mais atrativa que tinha visto. Seguia sendo.
— Wrath!
— Não todo. — o corte de seu ombro sem dúvida tinha gotejado sobre sua camiseta sem mangas, mas também tinha segurado o macho civil contra seu peito, por isso o sangue do macho sem dúvida se mesclou com o seu próprio.
Incapaz de permanecer quieto caminhou pelo escritório, indo da mesa à janela ida e volta. O tapete que seus shitkickers cruzavam era azul, cinza e creme, um Aubusson cujas cores faziam par com o azul pálido das paredes e cujas espirais curvilíneas se inspiravam nos delicados móveis Louis XIV, os acessórios e os redemoinhos das molduras.
Realmente, nunca tinha apreciado a decoração. E tampouco o fez agora.
— Wrath… Como chegou aí? — o tom duro de Beth lhe indicou que já sabia a resposta, mas que ainda conservava a esperança de que houvesse outra explicação.
Juntando forças, voltou-se para enfrentar o amor de sua vida através da extensão carregada do escritório.
— Estou lutando outra vez.
— Está o que?
— Estou lutando.
Quando Beth ficou em silêncio. Alegrou-se de que a porta do escritório estivesse fechada. Viu os cálculos mentais que estava fazendo e sabia que o resultado do que estava somando ia adicionar-se a uma e só uma coisa: estava pensando em todas essas “noites no norte” com Phury e as Escolhidas. Todas as vezes que foi para a cama com camisetas de manga longa, úteis para ocultar hematomas, porque “estava resfriado”. Todas essas desculpas de “estou coxeando porque me exercitei muito”.
— Está lutando! — afundou as mãos nos bolsos de seu jeans, e, embora não pudesse ver muito, sabia endemoniadamente bem que o suéter negro de pescoço alto era o perfeito complemento para seu olhar — Somente para que fique claro. Está me dizendo que, vai começar a lutar. Ou que esteve lutando.
Isso era uma pergunta retórica, mas evidentemente queria que ele reconhecesse a mentira completa.
— Estive. Durante o último par de meses.
A fúria e a dor fluíram dela, derramando-se sobre ele, cheirando a madeira chamuscada e a plástico queimado.
— Olhe Beth, tinha que…
— Tinha que ser honesto comigo! — disse asperamente — Isso é o que tinha que fazer.
— Não esperava ter que sair por mais de um mês ou dois…
— Um mês ou dois! Quantos demônios fazem… — clareou a garganta e baixou a voz — Quanto faz que o está fazendo?
Quando disse, voltou a ficar calada. Logo disse:
— Desde agosto? Agosto.
Desejava que desse rédea solta a seu temperamento. Que lhe gritasse. Que lhe insultasse.
— Sinto muito. Eu… Merda, realmente sinto.
Ela não disse nada mais, e o aroma de suas emoções se afastou à deriva, dispersado pelo ar quente que soprava pelos ralos da calefação que havia no chão. No corredor, um doggen estava passando o aspirador, o som do acessório para tapetes zumbia acima e abaixo, acima e abaixo. No silêncio que reinava entre eles, esses sons habituais, cotidianos eram algo ao que apegar-se… Pois era o tipo de coisa que ouvia todo o tempo e raramente notava porque estava ocupado lutando com a papelada, ou distraído pelo fato de que tinha fome, ou tratando de decidir se preferia relaxar vendo a TV ou no ginásio… Era um som seguro.
E, neste momento, devastador para sua união, apegava-se à canção de berço de Dyson com todas as suas forças, perguntando-se se alguma vez teria a sorte de poder ignorá-la outra vez.
— Nunca me passou pela cabeça… — clareou a garganta uma vez mais — Nunca me passou pela cabeça que haveria algo do qual não pudesse falar comigo. Sempre assumi que me dizia… Tudo o que podia.
Quando deixou de falar, ele estava gelado até os ossos. Sua voz tinha adquirido o tom que usava quando respondia chamadas equivocadas no telefone: dirigia-se a ele como se fosse um estranho, sem nenhuma calidez nem interesse particular.
— Olhe Beth, devo estar lá fora. Devo…
Ela sacudiu a cabeça e levantou a mão para detê-lo.
— Não se trata de que esteja lutando.
Beth o olhou fixamente durante um segundo. Logo se voltou e se dirigiu para as portas duplas.
— Beth. — esse grasnido estrangulado era sua voz?
— Não, me deixe. Preciso de um pouco de espaço.
— Beth, escute, não temos guerreiros suficientes no campo de batalha…
— Não é pela luta! — girou e o enfrentou — Mentiu para mim! Mentiu. E não só uma vez, mas sim durante quatro meses.
Wrath queria discutir, defender-se, assinalar que tinha perdido a noção do tempo, que essas cento e vinte noites e dias tinham passado à velocidade da luz, que tudo o que esteve fazendo era pôr um pé na frente do outro, frente ao primeiro, andando minuto a minuto, hora a hora, tratando de manter a raça sem submergir, tratando de conter os lessers. Não teve intenção de continuar fazendo-o durante tanto tempo. Não tinha planejado enganá-la durante todo esse tempo.
— Só me responda uma coisa. — disse — Uma única coisa. É melhor que me diga a verdade, ou que Deus me ajude, mas vou… — levou a mão à boca, apanhando um débil soluço com mão débil — Honestamente, Wrath… Sinceramente pensou que fosse te deter? No fundo de seu coração, verdadeiramente acreditou que fosse fazê-lo..?
Ele tragou com força enquanto ela pronunciava as palavras com voz estrangulada.
Wrath respirou fundo. No transcurso de sua vida, tinha sido ferido muitas, muitas vezes. Mas nada, nenhuma ferida que pudessem ter lhe infligido alguma vez a sua pessoa, tinha-lhe doído uma fração da dor que sentiu ao lhe responder.
— Não. — voltou a respirar fundo — Não, não acredito… Que fosse me deter.
— Quem falou com você esta noite? Quem foi que te convenceu para que me dissesse isso?
— Vishous.
— Deviria ter sabido. Ele é provavelmente a única pessoa, tirando o Tohr que poderia tê-lo… — Beth cruzou os braços, abraçando a si mesma, e ele teria dado a mão com que empunhava a adaga para ter sido ele, que a estivesse abraçando — Que esteja aí fora lutando me assusta como a merda, mas esquece algo… Emparelhei-me contigo sem saber que não se esperava que o rei estivesse no campo de batalha. Estava preparada para te apoiar ainda quando me aterrorizasse… Porque lutar nesta guerra está em sua natureza e em seu sangue. Idiota… — sua voz se quebrou — Tolo, teria te deixado fazê-lo. Mas em troca…
— Beth…
Interrompeu-o.
— Lembra-se da noite em que saiu no princípio do verão? Quando interveio para salvar o Z e logo permaneceu no centro da cidade lutando com os outros?
Seguro como o demônio que a recordava. Quando tinha retornado para casa, a tinha perseguido pelas escadas e fizeram sexo sobre o tapete da salinha do segundo andar. Várias vezes. Conservava como lembrança os shorts jeans que arrancou de seus quadris.
Jesus… Agora que pensava… Essa tinha sido a última vez que estiveram juntos.
— Disse-me que era somente por uma noite. — disse — Uma noite. Somente. Jurou, e confiei em você.
— Merda… O sinto.
— Quatro meses. — sacudiu a cabeça, e seu magnífico cabelo negro balançou sobre seus ombros, capturando a luz de uma maneira tão formosa que até seus inúteis olhos registraram seu esplendor — Sabe o que mais me dói? Que os Irmãos sabiam e eu não. Sempre aceitei esse assunto da sociedade secreta, entendi que há coisas que não posso saber…
— Eles tampouco sabiam. — bom Butch sabia, mas não havia razão para jogá-lo sob o ônibus — V se inteirou esta noite.
Ela cambaleou, e se encostou contra uma das paredes cor azul pálida.
— Esteve saindo sozinho?
— Sim. — estendeu a mão para lhe tocar o braço, mas ela o afastou — Beth…
Abriu a porta de um puxão.
— Não me toque…
A coisa se fechou de um golpe atrás dela.
A raiva contra si mesmo fez com que Wrath girasse sobre si e ficasse frente a seu escritório, e no instante em que viu todos os documentos, todas as solicitações, todas as queixas, todos os problemas, foi como se alguém tivesse conectado dois cabos cortados à suas omoplatas e lhe tivesse dado uma descarga. Lançou-se para frente, varreu com seus braços a superfície do escritório e fez voar a merda por toda parte.
Enquanto os papéis revoavam, caindo como neve, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos, a dor de cabeça lhe estava atravessando o lóbulo frontal. Ficou sem fôlego, cambaleou, encontrou sua cadeira pelo tato e se derrubou sobre a maldita coisa. Com um áspero grunhido, deixou que sua cabeça caísse para trás. Ultimamente estas enxaquecas por estresse se estavam convertendo em um sucesso diário, aniquilando-o e prolongando-se como uma gripe que se recusava a ser erradicada.
Beth. Sua Beth…
Quando ouviu um golpe na porta, deu um bom treinamento a sua boca com a palavra F.
O golpe voltou a soar.
— O que? — ladrou.
A cabeça de Rhage apareceu uma fresta, logo ficou imóvel.
— Ah…
— O que?
— Sim, bom… Ah, dados enviados… E, uau, o forte vento que evidentemente acaba de soprar sobre seu escritório… Segue querendo manter uma reunião conosco?
Oh, Deus… Como faria para manter outra dessas conversas.
Mas bom, talvez devesse ter pensado nisso antes de decidir mentir a seus seres mais próximos e queridos.
— Meu Senhor? — a voz de Rhage adquiriu um tom gentil — Deseja ver a Irmandade?
Não.
— Sim.
— Quer o Phury no viva-voz do telefone?
— Sim. Escuta, não quero os meninos nesta reunião. Blay, John e Qhuinn… Não estão convidados.
— Imaginava. Hey, o que te parece se te ajudo a limpar?
Wrath olhou o tapete coberto de papéis.
— Eu me encarrego.
Hollywood provou sua inteligência ao não voltar a oferecer-se nem tampouco sair com um “então?”. Simplesmente saiu e fechou a porta.
Do outro lado, o relógio de pé que estava em um rincão, badalou. Era outro som familiar que geralmente Wrath não ouvia, mas agora enquanto permanecia sentado a sós no escritório, as badaladas soavam como se fossem emitidas através de alto-falantes de concerto.
Deixou as mãos caírem sobre os braços da frágil cadeira giratória e estes se viram diminuídos. A peça de mobiliário era mais do estilo de algo que uma fêmea usaria ao final da noite para apoiar o pé e tirar as meias.
Não era um trono. E essa era a razão pela qual a usava.
Não quis aceitar a coroa por muitos motivos, tinha chegado a ser rei por direito de nascimento, não por inclinação e em trezentos anos não tinha assumido. Mas, tão logo Beth chegou as coisas mudaram e finalmente tinha ido ver a Virgem Escriba.
Isso tinha acontecido dois anos atrás. Duas primaveras, dois verões, dois outonos e dois invernos.
Naquele tempo tinha grandes planos, no início. Geniais e maravilhosos planos para unir à Irmandade, para que todos estivessem sob o mesmo teto, consolidando forças, escorando-se contra a Sociedade Lessening. Triunfando.
Salvando.
Reclamando.
Em troca, a glymera tinha sido sacrificada. Havia mais civis mortos. E havia ainda menos Irmãos.
Não tinham progredido. Tinham perdido terreno.
A cabeça de Rhage apareceu outra vez.
— Ainda estamos aqui fora.
— Maldito seja, disse que precisa de algum…
O relógio de pé voltou a soar, e enquanto Wrath escutava a quantidade de badaladas, deu-se conta que fazia uma hora que estava sentado a sós.
Esfregou os olhos doloridos.
— Dê-me outro minuto.
— Tudo o que necessite meu Senhor. Tome seu tempo.
Capítulo 13
Quando o olá de Rehvenge saiu pelo auricular de seu celular, Ehlena se ergueu na cama abandonando o travesseiro sobre o qual esteve deitada até esse momento, tragando um “Santa merda”… Logo se perguntou por que estava tão surpresa. Ela tinha ligado para ele, e segundo o manual, a forma em que a as pessoas encaravam esse tipo de situações era… Bom, pois, te devolvendo a ligação. Uau.
— Olá. — respondeu.
— Não atendi sua ligação apenas porque não reconheci o número.
Homem, sua voz era sexy. Profunda. De baixo. Como se supunha que devesse ser a de um macho.
No silêncio que seguiu, pensou, “tinha ligado para ele por que…?” Oh, sim.
— Quis fazer o acompanhamento depois de sua consulta. Quando preparei os papéis para a alta, notei que não tinha recebido nada para seu braço.
— Ah.
A pausa que seguiu foi uma que não pôde interpretar. Talvez estivesse zangado por sua interferência?
— Só queria me assegurar que estivesse bem.
— Está acostumada a fazer isto com todos os pacientes?
— Sim. — mentiu.
— Havers sabe que está comprovando seu trabalho?
— Ao menos olhou suas veias?
A risada de Rehvenge foi baixa.
— Preferia que tivesse ligado por uma razão diferente.
— Não entendo. — disse com tom tenso.
— O que? Que alguém possa querer fazer algo com você fora do trabalho? Não é cega. Olhou-se no espelho. E certamente sabe que é inteligente, assim não se trata de um agradável adorno de vidraça.
No que a ela concernia, estava falando em um idioma estrangeiro.
— Não entendo por que não se cuida.
— Hmmmm. —riu brandamente, ela além de escutar o ronrono em seu ouvido pôde percebê-lo fisicamente — Oh… Também pode ser que esteja fingindo para poder vê-la outra vez.
— Olhe, a única razão pela que liguei foi…
— Porque precisava de uma desculpa. Rechaçou-me na sala de exame, mas na realidade queria falar comigo. Assim, me liga com a desculpa de meu braço para obter que a atenda por telefone. E agora me tem. — sua voz baixou outro tom — Deixará-me escolher o que quero que faça comigo?
Ela permaneceu em silêncio. Até que ele disse:
— Olá?
— Terminou? Ou quer seguir dando voltas ao assunto um momento mais, procurando todo tipo de significados a respeito do que estou fazendo?
Houve um instante de silêncio, e logo ele irrompeu em uma profunda e sincera gargalhada com seu vivo tom de barítono.
— Sabia que me agradava por mais de uma razão.
Ela se negou a ser cativada. Mas de todos os modos foi.
— Liguei por seu braço. Ponto. A enfermeira de meu pai acaba de ir, e estávamos falando de uma…
Fechou a boca assim que se deu conta do que tinha revelado, sentindo como se tivesse tropeçado com o equivalente coloquial da ponta de um tapete solto.
— Continue. — lhe disse com gravidade — Por favor.
— Ehlena? Ehlena…
— Está aí, Ehlena?
Mais tarde, muito mais tarde, refletiria que essas três palavras tinham sido seu precipício: Está aí, Ehlena?
Verdadeiramente foi o começo de tudo o que se seguiu, a frase inicial de uma dilaceradora jornada disfarçada na forma de uma simples pergunta.
Alegrava-lhe não saber aonde a conduziria. Porque às vezes a única coisa que podia te ajudar a sair do inferno era o fato de que estava colocada muito profundamente para poder sair.
Enquanto Rehv esperava a resposta, seu punho se apertou tanto sobre o celular, que acionou uma das teclas contra a bochecha e esta emitiu um bip de: Errr, homem, te afrouxe um pouco.
O juramento eletrônico pareceu romper o feitiço em ambos.
— Sinto-o. — murmurou ele.
— Está bem. Eu, ah…
— Dizia…?
Não esperava que respondesse, mas então… Ela o fez.
— A enfermeira de meu pai e eu estávamos falando de um corte que está lhe dando problemas, e isso foi o que me fez pensar em seu braço.
— Seu pai está doente?
— Sim.
Rehv aguardou que dissesse algo mais, enquanto tentava decidir se exercer um pouco de pressão faria com que se calasse… Mas ela resolveu a questão.
— Alguns dos medicamentos que toma provoca instabilidade, razão pela que se choca contra as coisas e nem sempre se dá conta de que se machucou. É um problema.
— Sinto muito. Cuidá-lo deve ser difícil para você.
— Sou uma enfermeira.
— E uma filha.
— Assim, era por um assunto clínico. Minha ligação.
Rehv sorriu.
— Deixe-me perguntar algo.
— Eu primeiro. Por que não deixa que avaliem o braço? E não me diga que Havers viu essas veias. Se o tivesse feito, lhe teria receitado antibióticos, e se você tivesse recusado haveria uma nota em seu histórico informando que tinha apelado à AMA. Olhe tudo o que necessita para tratá-lo são algumas pílulas, e sei que não tem fobia à medicina. Toma uma quantidade infernal de dopamina.
— Se estava preocupada com meu braço, por que não me falou na clínica?
— Eu o fiz, recorda?
— Não desta forma. — Rehv sorriu na escuridão e acariciou com a mão o edredom de visom. Não podia senti-lo, mas se imaginava que a pele era tão suave como o cabelo dela — Ainda penso que queria me ter ao telefone.
A pausa que seguiu o preocupou com a possibilidade de que desligasse.
Sentou-se, como se a posição vertical evitaria que ela pressionasse o botão de fim.
— Só estou dizendo… Bom, merda, o que quero dizer é que me alegra que tenha ligado. Sem importar a razão.
— Não falei mais deste tema na clínica porque foi antes que acrescentasse as notas de Havers no computador. Esse foi o momento em que me dei conta.
Ele ainda não acreditava que a chamada fosse completamente por motivos profissionais. Poderia ter lhe mandado um email. Poderia ter dito ao doutor. Poderia passar a uma das enfermeiras do turno do dia para que fizesse o acompanhamento.
— Assim não há nenhuma possibilidade de que se sinta mal por me haver rechaçado tão duramente como o fez.
Ela clareou a garganta.
— Sinto por isso.
— Bom, a perdôo. Totalmente. Completamente. Tinha aspecto de não estar tendo uma boa noite.
Sua exalação foi uma manifestação de extenuação.
— Sim, não foi minha melhor noite.
— Por quê?
Outra longa pausa.
— É muito melhor por telefone, sabia?
Ele se pôs a rir.
— Muito melhor em que sentido?
— É mais fácil lhe falar. Na realidade… É bastante fácil falar com você.
— Faço-o bem no mano-a-mano.
De repente franziu o cenho, pensando no recebedor de apostas que tinha ajustado as contas em seu escritório. Merda, o pobre bastardo era somente um de um enorme número de traficantes de drogas, lacaios de Las Vegas, barmans e alcoviteiros que nos últimos anos tinha persuadido a golpes. Sua filosofia sempre tinha sido que a confissão era boa para a alma, especialmente quando se tratava de caras que pensavam que não notaria que o estavam fodendo. Seu estilo de administração também lançava uma importante mensagem em um negócio onde a debilidade fazia com que lhe matassem. O comércio clandestino requeria uma mão dura, e sempre tinha acreditado que essa era a realidade em que vivia, somente.
Entretanto, agora nesse sossegado momento, tendo Ehlena tão perto, sentia como se seu “mano-a-mano” era algo que requeria uma desculpa e ser encoberto.
— Então? Por que esta noite não foi boa? — perguntou desesperado por sossegar a si mesmo
— Meu pai. E logo… Bom, deixaram-me plantada.
Rehv franziu o cenho tão fortemente que de fato sentiu um leve ponto entre os olhos.
— Para um encontro?
— Sim.
Odiava a idéia dela saindo com outro macho. E não obstante invejava ao filho da puta, quem quer que fosse.
— Que imbecil. Sinto muito, mas que imbecil.
Ehlena riu, e ele amou o som, especialmente a forma em que seu corpo se esquentou um pouquinho mais em resposta. Homem, ao demônio com as duchas quentes. Essa risada suave e tranqüila era o que necessitava.
— Está sorrindo? — disse brandamente.
— Sim. Quero dizer, suponho que sim. Como soube?
— Simplesmente tinha a esperança de que fosse assim.
— Bom, realmente pode ser amável e encantador. — rapidamente para dissimular o elogio, disse — O encontro não era grande coisa nem nada. Não o conhecia muito bem. Era somente para tomarmos um café.
— Mas terminou a noite no telefone comigo. O que é muito melhor.
Ela voltou a rir.
— Bom, agora nunca saberei como seria sair com ele.
— Não?
— Eu somente… Bom, pensei nisso, e não acredito que ter encontros neste momento seja uma boa idéia, dada minha situação. — o surgimento de seu júbilo foi descartado quando adicionou — Com ninguém.
— Hmmm.
— Hmmm? O que significa hmmm?
— Significa que tenho seu número telefônico.
— Ah, sim, tem… — sua voz se deteve quando o sentiu mover-se — Espere, você está… Na cama?
— Sim. E antes que continue, não quer saber.
— Não quero saber, o que?
— Quanto, não estou usando.
— Errr... — enquanto duvidava, soube que estava sorrindo outra vez. E provavelmente ruborizando-se — Não tinha intenção de perguntar.
— Muito inteligente de sua parte. Sou somente eu e os lençóis… Ups. Acabo de dizer isso em voz alta?
— Sim. Sim, o fez. — sua voz baixou um tom como se o estivesse imaginando nu. E a imagem mental não lhe incomodasse minimamente.
— Ehlena… — deteve a si mesmo, seus impulsos symphath contribuíram para o autocontrole. Para ir mais devagar. Sim, Rehv a desejava tão nua como ele estava. Mas, mais que isso desejava que permanecesse no telefone.
— O que? — respondeu.
— Seu pai… Esteve doente durante muito tempo?
— Ah… Sim, sim, esteve. É esquizofrênico. Não obstante, agora o temos medicado, e está melhor.
— Maldito… Seja. Isso deve ser realmente difícil. Porque ele está aí, mas ao mesmo tempo não está correto?
— Sim… Essa é exatamente a forma em que se sente.
Era parecido à forma em que ele vivia, seu lado symphath era uma constante realidade alternativa, que o perseguia enquanto tratava de viver as noites como uma pessoa normal.
— Se não se incomodar que pergunte, — disse cuidadosamente — para que precisa da dopamina? Não há nenhum diagnóstico em seu histórico médico.
— Provavelmente porque Havers sempre esteve me tratando.
Ehlena riu incômoda.
— Suponho que esse deve ser o motivo.
Merda, o que lhe dizia.
O symphath que havia nele lhe dizia “Como é, simplesmente minta”. O problema era que de alguma parte tinha aparecido outra voz em seu cérebro, rivalizando com a primeira, uma que lhe era desconhecida e muito débil, mas categoricamente compulsiva. Entretanto, como não tinha nem idéia do que era, continuou com sua rotina.
— Tenho Parkinson. Ou, mais precisamente, o equivalente vampiro.
— Oh… O sinto. Então é por isso que usa bengala.
— Meu equilíbrio é ruim.
— Não obstante a dopamina está lhe fazendo bem. Quase não tem tremores.
Essa débil voz em sua cabeça se transformou em uma estranha dor no centro de seu peito, e por um momento deixou de lado o fingimento, e disse a verdade:
— Não tenho nem idéia do que faria sem essa droga.
— Os medicamentos de meu pai foram como um milagre.
— Você é a única que o cuida? — quando ela respondeu com um hmmm, perguntou — Onde está o resto de sua família?
— Somos somente ele e eu.
— Então você está enfrentando uma tremenda carga.
— Bom, o amo. E se os papéis estivessem invertidos, ele faria o mesmo. É o que pais e filhos fazem uns pelos outros.
— Nem sempre. É evidente que você procede de uma família de gente bondosa. — antes de poder deter-se, prosseguiu — Mas é por isso que se sente sozinha, não é verdade? Sente-se culpada se o deixar, embora seja por uma hora, e se fica em casa não pode ignorar o fato de que a vida está passando. Está presa e gritando, mas não mudaria nada.
— Devo ir.
Rehv fechou os olhos com força, essa dor em seu peito, expandia-se através de todo seu corpo como um incêndio sobre pasto seco. Com sua vontade acendeu uma luz, como se a escuridão se convertesse em um símbolo de sua própria existência.
— É apenas… Que sei o que sente, Ehlena. Não pelas mesmas razões… Mas entendo todo esse assunto da separação. Sabe esse conceito de que está vendo todo o resto do mundo viver suas vidas… Oh, porra, como é. Espero que durma bem…
— Assim é como me sinto a maior parte do tempo. — agora sua voz tinha um tom aprazível, e o alegrou que tivesse entendido o que tinha tratado de lhe dizer, apesar de que ele tinha sido tão eloqüente como um gato guia de ruas.
Agora era ele quem se sentia incômodo. Não estava acostumado a falar dessa forma… Nem a sentir dessa forma.
— Escute, deixarei que descanse um pouco. Alegra-me que tenha ligado.
— Sabe… A mim também.
— E Ehlena?
— Sim?
— Acredito que tem razão. Não é uma boa idéia que se envolva com alguém neste momento.
— Sério?
— Sim. Bom dia.
Houve uma pausa.
— Bom… Dia. Espere…
— O que?
— Seu braço. O que vai fazer com seu braço?
— Não se preocupe, estará bem. Mas obrigado por seu interesse. Significa muito para mim.
Rehv desligou primeiro e deixou o telefone sobre o edredom de visom. Fechou os olhos deixando a luz acesa. E não dormiu nada.
Capítulo 14
No complexo da Irmandade, Wrath abandonou a idéia de que logo se sentiria melhor em relação à situação com Beth. Inferno! Podia passar o próximo mês em sua cadeira, dando voltas na cabeça, e isso somente lhe gelaria o rabo.
E, enquanto isso, os cantos rodados[38] no corredor estavam ficando mofados e mal-humorados.
Abriu as portas duplas com sua vontade e como uma unidade seus irmãos ficaram firmes. Ao olhar através da extensão azul pálido do estúdio seus corpos grandes e duros na galeria, reconheceu-os não por seus rostos, nem sua roupa ou sua expressão, mas sim pelo eco de cada um em seu sangue.
As cerimônias da Tumba que uniu a todos ressonavam sem importar quanto tempo tivesse ocorrido.
— Não fiquem aí parados! — disse enquanto a Irmandade o olhava fixamente — Não abri essas fodidas portas para me converter em uma exibição de zoológico.
Os irmãos entraram com suas pesadas botas… Exceto Rhage, que usava suas sapatilhas, seu costumeiro calçado para casa sem importar a estação. Cada um dos guerreiros tomou sua posição habitual na sala, com Z indo parar junto à chaminé, V e Butch sentados no sofá de pernas estreitas recentemente reforçadas. Rhage se aproximou do escritório com uma série de “flip-flip-flip” para ligar o alto-falante do telefone, deixando que seus dedos abrissem o caminho para Phury que estava no aparelho.
Ninguém disse nada a respeito dos papéis que estavam no chão. Ninguém tentou recolhê-los. Era como se ali não houvesse nenhuma confusão, e assim era como Wrath preferia.
Enquanto Wrath fechava as portas com a mente, pensou em Tohr. O irmão estava na casa, mais precisamente no corredor das estátuas, a apenas umas poucas portas, mas estava em um continente diferente. Convidá-lo não era uma opção… Seria uma crueldade, dado onde estava sua mente.
— Olá? — saiu a voz de Phury do telefone.
— Estamos todos aqui. — disse Rhage antes de desembrulhar um Tootsie Pop e dirigir-se com seu “flip-flip-flip” para uma poltrona verde feia como o rabo.
A monstruosidade era de Tohr, e tinha sido levada ao escritório para que John Matthew dormisse nela depois que Wellsie fosse assassinada e Tohrment tivesse desaparecido. Rhage tendia a utilizar a coisa porque realmente com seu peso, era a opção mais segura para seu rabo, sofás reforçados de aço incluídos.
Com todos já acomodados, a sala ficou em silencio à exceção do rangido dos molares de Hollywood sobre essa coisa de cereja que tinha na boca.
— Oh, que diabos... — Rhage gemeu finalmente ao redor de seu pirulito — Só nos diga isso! Seja o que for. Estou a ponto de me pôr a gritar. Morreu alguém?
Não, mas certo como a merda que sentia como se tivesse matado algo.
Wrath olhou em direção ao irmão, logo olhou a cada um deles.
— Serei seu companheiro, Hollywood.
— Companheiro? — Rhage passeou a vista pela sala para comprovar e ver se todos tinham ouvido o mesmo que ele — Não está falando do gim rummy, verdade?
— Não. — disse Z em voz baixa— Não acredito que esteja.
— Sagrada Merda! — Rhage tirou outro pirulito do bolso da camiseta negra — Isto é legal?
— Agora é. — murmurou V.
Phury falou ao telefone.
— Espera, espera… É para me substituir?
Wrath sacudiu a cabeça embora o Irmão não pudesse vê-lo.
— É para substituir a muitas pessoas que perdemos.
A conversa borbulhou como uma lata da Coca Cola que acabasse de ser aberta de repente. Butch, V, Z e Rhage começaram a falar todos de uma vez até que uma voz metálica interrompeu o falatório:
— Então, também quero voltar.
Todos olharam o telefone, exceto Wrath que olhou fixamente a Z para medir a reação do tipo. Zsadist não tinha problemas em demonstrar ira. Jamais! Mas escondia a preocupação e a inquietação como se fosse dinheiro solto e estivesse rodeado de assaltantes: enquanto a declaração de seu gêmeo ressoava, ficou em modo de completa auto-proteção, esticando-se e sem emitir absolutamente nada em termos de emoção.
Ah, correto, pensou Wrath. O duro bastardo estava assustado como um eunuco.
— Está certo de que é uma boa idéia? — perguntou Wrath lentamente — Possivelmente lutar não é o que necessita neste momento, Irmão.
— Não fumei em quase quatro meses. — disse Phury pelo alto-falante — E não tenho planos de voltar para as drogas.
— O estresse não fará essa merda mais fácil.
— Oh! Mas, ficar sentado sobre meu rabo enquanto o seu está fora o fará?
Maravilhoso. O rei e o Primale no campo de batalha pela primeira vez na história. E por quê? Porque a Irmandade estava nas últimas.
Grande recorde para superar. Como ganhar os fodidos cinqüenta metros nas olimpíadas para perdedores.
Cristo!
Salvo que então Wrath pensou nesse civil morto. Era esse um desenlace melhor? Não!
Recostando em sua delicada cadeira, olhou a Z com dureza.
Como se sentisse os olhos sobre ele, Zsadist se afastou do suporte da chaminé e ficou caminhando pelo escritório. Todos sabiam o que estava imaginando: Phury com uma overdose no chão do banheiro, com uma seringa de heroína vazia, atirada a seu lado, sobre o mosaico.
— Z? — a voz de Phury saiu do telefone — Z? Levante o auricular…
Quando Zsadist conversou com seu gêmeo, seu rosto, com a cicatriz trincada, adquiriu um cenho tão desagradável que até Wrath podia ver seu olhar enfurecido. E a expressão não melhorou ao dizer:
— Enche o saco! Sim. Enche o saco! Sei. Correto. — houve uma longa, longa pausa — Não, ainda estou aqui. Ok. Bem.
Pausa.
— Jura-me isso! Pela vida de minha filha.
Após um momento, Z apertou o alto-falante outra vez, pôs o auricular em seu lugar e voltou para a chaminé.
— Estou dentro. — disse Phury.
Wrath se mexeu na efeminada cadeira, desejando que muitas coisas fossem diferentes.
— Sabe possivelmente em outro momento, diria que desistisse. Agora, somente direi… Quando pode começar?
— Ao anoitecer. Deixarei Cormia responsável com as Escolhidas enquanto estou fora no campo de batalha.
— A sua fêmea vai receber isso bem?
Houve uma pausa.
— Ela sabe com quem se emparelhou. E serei honesto com ela.
Ouch!
— Agora tenho uma pergunta. — disse Z brandamente — É a respeito do sangue seco que há em sua camiseta, Wrath.
Wrath pigarreou.
— De fato, já faz um tempo que retornei. À luta.
A temperatura da habitação caiu. Devido a que Z e Rhage ficaram de saco cheio por não terem sabido.
E então, repentinamente, Hollywood amaldiçoou.
— Espere… Espere. Vocês dois sabiam… Sabiam antes de nós, verdade? Porque nenhum parece surpreso.
Butch clareou a garganta, porque o olhavam com fúria.
— Precisava de mim para fazer a limpeza. E V tentou lhe fazer mudar de opinião.
— Quanto tempo faz que começou isto, Wrath? — ladrou Rhage.
— Desde que Phury deixou de lutar.
— Está brincando!
Z foi a passos longos até uma das janelas que iam do chão ao teto, e apesar das persianas estarem abaixadas, olhou fixamente a coisa como se pudesse ver os terrenos que havia do outro lado.
— Maldita boa coisa que não tenha conseguido que o matassem aí fora.
Wrath despiu suas presas.
— Acredita que luto como uma mariquinha simplesmente porque agora estou atrás deste escritório?
A voz de Phury se elevou do telefone.
— Bem, todo mundo, relaxem! Agora todos sabemos, e as coisas vão ser diferentes de agora em diante. Ninguém lutará sozinho, embora vamos de três em três. Mas, preciso saber, isto vai ser de conhecimento geral? Anunciará depois de amanhã na reunião do conselho?
Caralho, esse feliz e pequeno enfrentamento não era algo que estivesse desejando levar a cabo.
— Acredito que por hora manteremos em silêncio.
— Sim. — replicou Z — Porque realmente, para que ser honestos?
Wrath o ignorou.
— Embora direi a Rehvenge. Sei que há membros da glymera que se estão queixando pelos assaltos. Se converter isso em algo muito grande, poderá acalmar as coisas com este tipo de informação.
— Já terminamos? — perguntou Rhage com voz monótona.
— Sim. Isso é tudo.
— Então vou indo.
Hollywood abandonou a sala indignado, e Z se foi justo detrás dele, duas vítimas mais da bomba que Wrath tinha deixado cair.
— Como Beth reagiu? — perguntou V.
— Como acha? — Wrath ficou de pé e seguiu o exemplo do par que tinha saído.
Hora de ir procurar à Doutora Jane para que o costurasse, assumindo que os cortes já não se fecharam.
Precisava estar preparado para voltar a sair para lutar amanhã.
Na fria e brilhante luz da manhã, Xhex se desmaterializou para o outro lado de uma parede alta, aos ramos nus de uma robusta sebe. A mansão que estava mais à frente descansava na superfície da paisagem como uma pérola cinza engastada em uma filigrana, árvores finas e cortadas pelo vento se elevavam ao redor da velha casa paroquial de pedra, ancorando-a na ondulada grama, prendendo-a contra a terra.
O débil sol de dezembro se derramava sobre ela, fazendo com que o que teria sido austero de noite parecesse unicamente venerável e distinto.
Seus óculos de sol eram quase negros, a única concessão que precisava fazer a seu lado vampiro se saía durante o dia. Atrás das lentes, sua visão permanecia aguda e via cada detector de movimento, cada luz de segurança e cada janela de vidro chumbado coberta por venezianas.
Entrar ia ser um desafio. Os vidros desses caras estavam sem dúvida reforçados com aço, o que queria dizer que desmaterializar-se para dentro seria impossível embora as venezianas estivessem levantadas. E com seu lado symphath, pressentiu que havia muitas pessoas dentro: na cozinha estava o pessoal. Acima estavam os que dormiam. Outros estavam movendo-se pelo lugar. Não era uma casa feliz, os quadriculados emocionais deixados pelas pessoas que havia ali estavam cheios de sentimentos sombrios e violentos.
Xhex se desmaterializou ao teto da seção principal da mansão, lançando a versão symphath do mhis. Não a ocultava por completo, mas era como se a convertesse em mais uma sombra, entre as sombras projetadas pelas chaminés e a merda do sistema do CVAA, mas era suficiente para comprar um passe pelos detectores de movimento.
Aproximando-se de um conduto de ventilação, encontrou uma lâmina de malha de aço grosso como uma regra, atarraxada às paredes de metal. A chaminé estava igual. Coberta com aço robusto.
Não a surpreendia. Tinham uma segurança muito boa aqui.
A melhor oportunidade de penetração seria de noite, utilizando uma pequena furadeira à pilhas em uma das janelas. As acomodações dos criados estavam atrás, seria um bom lugar para entrar, dado que o pessoal estaria trabalhando e essa parte da casa estaria mais tranqüila.
Entrar. Encontrar o objetivo. Eliminá-lo.
As instruções de Rehv era deixar um cadáver chamativo, assim não se incomodaria em ocultá-lo nem tampouco em desfazer do corpo.
Enquanto andava através dos pequenos seixos que cobriam o teto, os cilícios que levava ao redor das coxas lhe mordiam os músculos a cada passo, a dor a drenava de certa quantidade de energia e lhe proporcionava a concentração necessária… Ambas as coisas ajudavam a manter seus impulsos symphath presos no espaço traseiro de seu cérebro.
Não levaria postas as tiras com cilícios quando realizasse o trabalho.
Xhex se deteve e elevou o olhar ao céu. O vento seco e cortante prometia neve, e logo. O profundo gelo do inverno estava chegando a Caldwell.
Mas esteve em seu coração durante anos.
Abaixo dela, sob seus pés, voltou a sentir as pessoas, lendo suas emoções, as sentindo. Mataria a todos se o pedissem. Os assassinaria sem pensar nem duvidar enquanto jaziam em suas camas ou se dirigiam a seus deveres ou roubavam um bocado de meio-dia ou se levantavam para uma mijada rápida antes de voltar a dormir.
Tampouco lhe incomodava o resíduo sujo e detalhes do falecimento nem todo esse sangue, não mais do que a uma H&K ou a uma Glock importariam uma merda as manchas no tapete ou os ladrilhos melados ou as artérias que gotejavam. A cor vermelha era unicamente o que via quando ia trabalhar, e, além disso, de todos os modos, depois de um momento, todos esses olhos horrorizados e sobressaltados e essas bocas afogadas com os últimos fôlegos, viam-se todas iguais.
Essa era a grande ironia. Na vida, cada um era um floco de neve de formosa e independente proporção, mas quando a morte chegava e se sujeitava, deixava-te com pele, músculos e ossos anônimos, os quais se esfriava e deterioravam a um ritmo previsível.
Ela era a arma conectada ao indicador de seu chefe. Ele apertava o gatilho, ela disparava, o corpo caía, e apesar do fato de que algumas vidas eram alteradas para sempre, no dia seguinte o sol ainda saía e se punha para todas as demais pessoas que havia no planeta, incluindo a ela.
Tal era o curso de seu trabalho-obrigação, como o definia: metade emprego, metade obrigação pelo que Rehv fazia para proteger aos dois.
Quando voltasse para este lugar ao anoitecer, faria o que tinha que fazer ali e sairia com a consciência tão intacta e segura como uma abóbada bancária.
Entrar e sair e nunca voltar a pensar nisso.
Assim era o caminho e a vida de um assassino.
Capítulo 15
Os aliados eram a terceira engrenagem na maquinaria da guerra.
Os recursos e os recrutas lhe davam o motor tático que permitiam a se enfrentar, cercar combate, e reduzir o tamanho e força dos exércitos de seus inimigos. Os aliados eram sua vantagem estratégica, gente cujos interesses estavam alinhados com os teus, embora suas filosofias e metas finais pudessem não coincidir. Era tão importante como o primeiro e o segundo se queria ganhar, mas eram um pouco menos controláveis.
A menos que soubesse como negociar.
— Estamos conduzindo faz um tempo. — disse o senhor D detrás do volante do Mercedes do falecido pai adotivo de Lash.
— E vamos seguir conduzindo um pouco mais. — Lash estudou seu relógio.
— Não vai dizer aonde vamos?
— Não. Não o fiz, verdade?
Lash olhou pela janela do sedã. As árvores aos lados da Northway pareciam desenhos feitos a lápis antes que se riscassem as primeiras folhas, nada mais que carvalhos ermos, sebes altas, finas e retorcidas. As únicas a ter um pouco de verde eram as robustas e rechonchudas coníferas, as quais iam aumentando em número à medida que se internavam no Parque Adirondack.
Céu cinza. Auto-estrada cinza. Árvores cinza. Era como se a paisagem do estado de Nova Iorque tivesse caído presa da gripe ou alguma merda assim, com um aspecto tão são como o de alguém que não tinha recebido sua vacina de pneumonia a tempo.
Havia duas razões pelas que Lash não tinha sido franco sobre aonde ele e seu segundo ao comando se dirigiam. A primeira era diretamente de mariquinha, e mal podia admitir para si mesmo. Não estava certo se iria ao encontro que tinha marcado.
A questão era que este aliado era complicado, e Lash sabia que só o fato de se aproximar era como cutucar um ninho de vespas com um pau. Sim, seria um grande aliado potencial, mas, se em um soldado a lealdade era um bom atributo, em um aliado era missão crítica, e para onde se dirigiam a lealdade era um conceito tão desconhecido como o medo. Assim, estava mais ou menos fodido nos dois extremos e por isso não falava. Se a reunião não corresse bem, ou se sua aproximação não funcionasse, não haveria negociação, e nesse caso, o senhor D não tinha que saber os pormenores de com quem ia negociar.
A outra razão que fazia com que Lash guardasse silêncio era que não estava seguro se a outra parte apareceria à festa. Em cujo caso, outra vez, não queria que soubessem o que tinha estado planejando.
Na lateral da estrada, em um pequeno sinal verde com letras refletivas brancas se lia: FRONTEIRA EUA 61.
Sim, sessenta e um quilômetros e estaria fora do país… E por isso a colônia symphath tinha sido colocada lá em cima. O objetivo tinha sido manter a todos esses filhos da puta sociopatas tão longe da população civil vampiro como fosse possível, e o objetivo foi alcançado. Um pouco mais perto do Canadá e teria que lhes dizer “foda-se” e “morre” em francês.
Lash fazia o contato graças ao velho Rolodex de seu pai adotivo, o que como o carro do macho, tinha provado ser muito útil. Como anterior leahdyre da câmara de vereadores, Ibix teve uma forma de contatar com os symphaths no caso de algum se encontrar escondendo-se entre a população geral e ter que ser deportado. É obvio, que a diplomacia entre as espécies nunca tinha sido oficial. Isso teria sido como oferecer a garganta exposta a um assassino em série, com o Henckels para cortá-la inclusive.
O e-mail de Lash ao rei dos symphaths tinha sido curto e direto ao ponto, e na breve missiva, identificou-se como quem era realmente, não como quem tinha crescido pensando que era: ele era Lash, chefe da Sociedade Lessening. Lash, filho de Omega. E estava procurando uma aliança contra os vampiros que tinham discriminado e rechaçado aos symphaths.
Certamente o rei queria vingança pela falta de respeito demonstrada a sua gente.
A resposta que recebeu foi tão gentil que quase vomitou. Mas então recordou de seus dias de treinamento que os symphaths tratavam tudo como se fosse uma partida de xadrez… Exatamente até o momento em que capturavam a seu rei, convertiam a sua rainha em uma puta, e queimavam seus castelos. A resposta do líder da colônia assinalava que um debate associado de interesse mútuo seria bem-vindo, e tinha perguntado se Lash seria tão amável de ir ao norte, já que as opções de viagem do rei exilado estavam, por definição, limitadas.
Lash fora de carro porque impôs uma condição própria, que era a assistência do senhor D. A verdade era que estabeleceu a condição simplesmente para igualar as demandas. Queriam que fosse a eles, bem, ele levaria um de seus homens. E como o lesser não podia desmaterializar-se, era necessário dirigir.
Cinco minutos depois, o senhor D pegou uma saída da auto-estrada e atravessou um centro urbano que era do tamanho de apenas um dos sete parques da cidade de Caldwell. Aqui não havia arranha-céu, só edifícios de tijolos de quatro e cinco andares, tanto assim parecia como se os duros meses de inverno tivessem impedido não só o crescimento das árvores, mas também da arquitetura.
Por ordem de Lash, conduziram para o oeste, passando hortas de pomares de maçãs desfolhados e granjas de vacas cercadas.
Como tinha feito na auto-estrada, aqui também desfrutou da paisagem com olhos ávidos. Ainda o surpreendia poder presenciar a leitosa luz solar de dezembro lançando sombras sobre calçadas, telhados de casas e sobre a terra marrom que havia sob as nuas extremidades das árvores. Em seu renascimento, seu verdadeiro pai lhe deu um propósito renovado, junto com este dom da luz diurna, e desfrutava imensamente de ambos.
O GPS do Mercedes apitou um par de minutos depois, e a leitura se tornou toda incerta. Imaginou que isso significava que se aproximavam da colônia, e para lhe dar razão apareceu a estrada que estavam procurando. Ilene Avenue estava indicada somente por um diminuto sinal. E avenida, uma merda, não era nada mais que um caminho de terra que cruzava os campos de milho.
O sedã fazia o que podia sobre o caminho acidentado, seus amortecedores absorviam as crateras criadas pelos atoleiros, mas a viagem teria sido mais fácil em um fodido quatro por quatro. Não obstante, ao final, na distância apareceu um grosso circulo de árvores, e a granja que conformava a cabeça ao redor da qual estavam apinhados, estava em condições imaculadas, toda pintada de um branco brilhante com venezianas e teto verde escuro. Como tirado de um cartão de natal humano, com fumaça saindo de suas quatro chaminés, e o alpendre equipado com cadeiras de balanço e arbustos de folha perene.
Ao aproximar-se, passaram um discreto sinal branco e verde que dizia: ORDEM MONÁSTICA TAOISTA, EST. 1982.
O senhor D estacionou o Mercedes, desligou o motor, e fez o sinal da cruz sobre seu peito. O que era fodidamente estúpido.
— Isto me dá mau agouro.
A questão era que o pequeno texano tinha razão. Apesar do fato de que a porta dianteira estava aberta e a luz do sol se derramava sobre um piso de madeira de uma quente cor cereja, algo mal espreitava depois da fachada familiar. Era simplesmente muito perfeito, muito calculado para fazer com que uma pessoa se relaxasse e assim debilitar seus instintos defensivos.
Lash pensou que era como uma garota bonita com uma ETS.
— Vamos. — disse.
Ambos saíram, e enquanto o senhor D empunhava sua Magnum, Lash não se incomodou em procurar sua arma. Seu pai lhe tinha proporcionado muitos truques, e a diferença daquelas ocasiões em que tratava com humanos, não tinha problemas em mostrar suas habilidades especiais diante de um symphath. Se acaso, montar um espetáculo ajudaria a que o vissem sob a luz apropriada.
O senhor D colocou seu chapéu de cowboy.
— Isto realmente me dá um mau pressentimento.
Lash entrecerrou os olhos. Frente a cada uma das janelas, penduravam cortinas de renda, mas apesar do branco do tecido, a merda era horripilante... Uau! Moviam-se?
Nesse momento, compreendeu que não era renda, a não ser tecidos de aranha. Povoadas por aracnídeos brancos.
— São... Aranhas?
— Sim. — certamente não seria a escolha decorativa de Lash, mas bom, ele não tinha que viver ali.
Os dois se detiveram no primeiro dos três degraus que levavam ao alpendre dianteiro. Caralho, algumas portas abertas não eram acolhedoras, e definitivamente aqui se dava o caso... Menos de “olá-como-está”, e mais de “entra-assim-poderemos-usar-tua-pele-para-fazer-uma-capa-de-superherói-para-um-dos-pacientes-de-hannibal-lecter”.
Lash sorriu. Quem quer que estivesse nessa casa era definitivamente um amigo.
— Quer que suba e toque a campainha? — disse o senhor D — Se é que há?
— Não. Esperaremos. Eles virão até nós.
E olhe só, alguém apareceu no extremo mais afastado do vestíbulo dianteiro.
O que desceu para eles tinha suficiente tecido pendurando de sua cabeça e ombros para competir com um cenário da Broadway. O tecido era estranho, de um branco reluzente, um branco que captava a luz e a refletia entre as grossas dobras, e o peso de toda ela era capturado por um forte cinturão branco de brocado.
Muito impressionante. Se te agradava o filme monarca-sacerdotal.
— Saudações, amigo. — disse uma voz baixa e sedutora — Sou o que procuram, o líder dos ingratos.
Os “s” se arrastavam até quase formar palavras independentes, o acento soava muito parecido ao tremor de advertência de uma serpente cascavel.
Um calafrio atravessou Lash e o formigamento desceu até seu pênis. O poder era, antes de tudo, melhor que o “Êxtase” como afrodisíaco, e esta coisa que se deteve entre os batentes da porta dianteira era toda autoridade.
Longas e elegantes mãos se estenderam para o capuz e jogaram as brancas dobras para trás. O rosto do líder ungido dos symphaths era tão suave como sua espetacular túnica, os planos das bochechas e queixo formados por elegantes e suaves ângulos. O lago genético que tinha engendrado a este formoso e decadente assassino era tão refinado que seu sexo era quase único, fundindo as características de macho e fêmea, com uma preponderância para o feminino.
Entretanto, o sorriso era completamente gelado. E os cintilantes olhos vermelhos eram sagazes até a malevolência.
— Não querem entrar?
A adorável voz serpentina fundiu essas palavras umas com outras, e Lash se encontrou desfrutando do som.
— Sim. — disse, voltando a concentrar-se no assunto — Faremos isso.
Quando se adiantou, o rei elevou a palma da mão.
— Um momento, se não se importar. Por favor, diga a seu associado que não tenha medo. Nada lhes fará mal aqui. — a declaração era bastante amável na superfície, mas o tom foi duro... Do qual Lash deduziu que não eram bem-vindos na casa se o senhor D levava uma arma na mão.
— Guarde a arma. — disse Lash brandamente — Nos tenho cobertos.
O senhor D embainhou a 357, com um “sim, senhor” tácito, e o symphath se afastou da porta.
Enquanto subiam os degraus, Lash franziu o cenho e baixou o olhar. Suas pesadas botas de combate não faziam nenhum som sobre a madeira, e o mesmo ocorreu sobre as tabuletas do alpendre quando se aproximaram da porta.
— Preferimos as coisas silenciosas. — o symphath sorriu, revelando que tinha os dentes parecidos, o que foi uma surpresa. Evidentemente, as presas destas criaturas, que uma vez tinha estado estreitamente aparentadas com os vampiros, tinham sido extirpadas. Se ainda se alimentavam, não podia ser muito freqüentemente, a menos que gostassem das facas.
O rei estendeu o braço à esquerda.
— Passamos ao salão?
O “salão” poderia ser descrito mais precisamente como “pista de boliche com cadeiras de balanço”. O espaço não era mais que um lustroso piso de madeira, e paredes cobertas só por pintura branca. No meio do caminho havia quatro cadeiras Shaker agrupadas formando um semicírculo ao redor da lareira acesa como se tivessem medo de tanto vazio e se apinhassem em busca de apoio.
— Sentem-se. — disse o rei enquanto levantava e afastava sua túnica para sentar-se em uma das altas e débeis cadeiras.
— Você fica de pé. — ordenou Lash ao senhor D, que obedientemente tomou posição atrás de onde Lash se sentou.
As chamas não estalavam alegremente ao consumir os lenhos que lhes tinham dado vida e as alimentavam. As cadeiras de balanço não rangeram quando o rei e Lash depositaram seu peso nelas. As aranhas não emitiram som quando cada uma caiu no centro de sua rede, como se preparassem-se para presenciar a reunião.
— Você e eu temos uma causa comum. — disse Lash.
— Parece acreditar nisto.
— Acreditava que sua raça acharia a vingança atrativa.
Quando o rei sorriu, esse estranho calafrio se disparou para o sexo de Lash.
— Está mal informado. A vingança não é mais que uma defesa crua e emocional contra um desprezo recebido.
— Está me dizendo que está abaixo de você? — Lash se recostou para trás e pôs sua cadeira em movimento, levando-a adiante e atrás — Hmmmm... Posso ter julgado a sua raça mal.
— Somos mais sofisticados que isso, sim.
— Ou talvez sejam só um bando de maricas.
O sorriso desapareceu.
— Somos muito superiores àqueles que acreditam nos haver aprisionado. Para falar a verdade, preferimos nossa própria companhia. Acredita que não projetamos este resultado? Tolo. Os vampiros são o caldo de cultivo a partir do qual evoluímos, são os chimpanzés para nosso raciocínio superior. Iria querer permanecer entre animais se pudesse viver em uma civilização com os de sua própria espécie? É obvio que não. Um busca a seus iguais. Requer a seus iguais. Aqueles de mentes semelhantes e superiores devem ser alimentados somente por aqueles de status similar. — os lábios do rei se elevaram — Sabe que é correto. Você tampouco ficou onde começou. Verdade?
— Não, não o fiz. — Lash deixou ver suas presas, pensando que sua marca de maldade não tinha encaixado entre os vampiros melhor do que ocorreu com os devoradores de pecados — Agora estou onde devo estar.
— Assim já vê. Se não tivéssemos desejado o exato resultado que obtivemos nesta colônia, poderíamos ter empreendido não precisamente uma vingança, mas sim uma ação corretiva que buscasse que nosso destino fosse favorável a nossos interesses.
Lash deixou de balançar-se.
— Se não estava interessado em uma aliança, poderia ter me dito isso sem delongas em um fodido email.
Uma estranha luz cintilou nos olhos do rei, uma que fez com que Lash se excitasse ainda mais, mas também o repugnou. Não ia a essa merda homossexual, e ainda assim... Bem, demônios, seu pai gostava dos machos, talvez algo disso se levava no sangue.
E acaso isso não daria ao senhor D algo pelo que rezar?
— Mas se tivesse enviado um email, não teria o prazer de te conhecer. — esses olhos cor vermelha rubi percorreram o corpo de Lash — E isso teria sido um roubo a meus sentidos.
O pequeno texano clareou a garganta, como se estivesse se engasgando com a língua.
Quando a tosse desaprovadora se desvaneceu, a cadeira do rei começou a mover-se acima e abaixo silenciosamente.
— Entretanto, há algo que poderia fazer por mim... Algo que por sua vez faria sentir obrigado a te proporcionar o que busca... Que é localizar vampiros, não é assim? Essa foi durante muito tempo a luta da Sociedade Lessening. Encontrar vampiros dentro de seus lares ocultos.
O bastardo tinha posto o dedo na ferida. No verão, Lash tinha sabido onde atacar porque tinha estado nos imóveis dos que tinha matado, participando de festas de aniversário de seus amigos, bodas de seus primos e bailes da glymera celebrados naquelas mansões. Agora, entretanto, o que ficava da elite dos vampiros se dispersou nos subúrbios da cidade ou tinha ido a seus refúgios fora do estado, e não conhecia esses endereços. E quanto aos civis? Aí não tinha nem idéia de por onde começar, porque nunca tinha confraternizado com o proletariado.
Os symphaths, entretanto, podiam sentir a outros, humanos e vampiros igualmente, vendo-os através de paredes sólidas e alicerces de porões subterrâneos. Se quisesse fazer algum progresso, precisava desse tipo de visão, era a única coisa que faltava entre todas as ferramentas que seu pai estava lhe proporcionando.
Lash empurrou o chão com suas botas de combate outra vez e adotou o mesmo ritmo que o rei.
— E exatamente o que é o que poderia necessitar de mim? — disse arrastando as palavras.
O rei sorriu.
— Os acoplamentos são nosso pilar fundamental, verdade? A união de um macho e uma fêmea. E não obstante dentro dessas relações íntimas é comum a discórdia. Promessas são feitas, mas não se mantêm. Pronunciam-se votos e ainda assim se descartam. Contra estas transgressões, medidas devem ser tomadas.
— Parece que esteve falando de vingança, tipo duro.
Esse rosto suave adquiriu uma expressão de auto-suficiência.
— Não, vingança não. Ação corretiva. Se isso implicar uma morte... É simplesmente o que a situação requer.
— Morte, não é? Assim que os symphaths não acreditam no divórcio?
Os olhos cor rubi cintilaram com desprezo.
— No caso de um consorte desleal cujas ações fora da cama atuam contra a alma da relação, a morte é o único divórcio.
Lash assentiu com a cabeça.
— Entendo a lógica. E quem é o objetivo?
— Está se comprometendo a atuar?
— Ainda não. — não tinha claro exatamente quão longe estava disposto a chegar. Sujar as mãos dentro da colônia não fora parte de seu plano original.
O rei deixou de balançar-se e ficou em pé.
— Pensa então, até que esteja seguro. Quando estiver preparado para receber de nós o que necessita para a guerra, volte para mim e mostrarei o modo de proceder.
Lash também se levantou.
— Por que simplesmente não mata você mesmo a sua companheira?
O lento sorriso do rei foi como o de um cadáver, rígido e frio.
— Meu queridíssimo amigo, o insulto que mais reprovo não é tanto a deslealdade, a qual poderia esperar, mas sim a arrogante hipótese de que nunca me inteiraria do engano. O primeiro é uma insignificância. O último é indesculpável. Agora... O acompanho até seu carro?
— Não. Sairemos por nós mesmos.
— Como desejar. — o rei estendeu sua mão de seis dedos — Foi um prazer...
Lash estendeu a sua e quando suas palmas se encontraram, sentiu a eletricidade lambendo seu braço.
— Sim. O que for. Terá notícias minhas.
Capítulo 16
Ela estava com ele... Oh, Deus, finalmente estava de volta com ele.
Tohrment, filho de Hharm, estava nu e pressionado contra a carne de sua amada, sentindo sua pele acetinada e ouvindo seu ofego quando levava a mão até seu peito. Cabelo vermelho... Havia cabelo vermelho esparramado por todo o travesseiro, a fez rodar de costas sobre os lençóis brancos que cheiravam como limões... Cabelo vermelho enredado ao redor de seu grosso antebraço.
O mamilo estava tenso contra seu polegar que se movia em círculos e sentiu a suavidade de seus lábios sob os seus ao beijá-la profunda e lentamente. Quando estivesse suplicando por ele, rodaria sobre ela e a tomaria por cima, penetrando-a com força, segurando-a em seu lugar.
Gostava de seu peso. Gostava da sensação de que a cobrisse. Em sua vida juntos, Wellsie era uma fêmea independente com uma mente forte e uma veia teimosa que rivalizava com a de um bulldog, mas na cama gostava que ele estivesse em cima.
Deixou cair a boca sobre seu seio, sugando o mamilo, fazendo-o rodar, beijando-o.
— Tohr...
— O que, leelan? Mais? Talvez tenha que te fazer esperar...
Mas não podia. Ocupou-se dela e lhe acariciou o estômago e os quadris. Quando se retorceu, lambeu seu pescoço e passou as presas pela jugular. Não podia esperar para alimentar-se. Por alguma razão, estava ávido de sangue. Talvez estivesse lutando muito.
Os dedos dela se afundaram em seu cabelo.
— Tome minha veia...
— Ainda não. — o aguilhão da espera só o faria ainda melhor... Quanto mais a desejasse, mais doce seria o sangue.
Deslocando-se para sua boca, beijou-a com mais força que antes, penetrando-a com a língua enquanto deliberadamente esfregava seu pênis contra a coxa, uma promessa de outra invasão, mais profunda em sua parte inferior. Estava completamente excitada, sua fragrância se elevava acima do aroma de limão dos lençóis, fazendo com que as presas brotassem em sua boca e a ponta de seu sexo se umedecesse.
Sua shellan tinha sido a única mulher que tinha conhecido. Ambos eram virgens na noite de seu emparelhamento... E ele nunca tinha desejado a ninguém mais.
— Tohr...
Deus! Amava o som baixo de sua voz. Amava tudo nela. Foram prometidos um ao outro antes de nascerem, e no momento em que se conheceram havia sido amor a primeira vista. O destino tinha sido amável com eles.
Deslizou a palma até sua cintura, e então...
Deteve-se, compreendendo que algo ia mal. Algo...
— Sua barriga... Sua barriga está plana.
— Tohr...
— Onde está o pequeno? — retirou-se, sentindo pânico — Estava grávida. Onde está o pequeno? Está bem? O que aconteceu com você... Está bem?
— Tohr...
Ela abriu os olhos, e o olhar que tinha conhecido durante centenas de anos se concentrou nele. Uma tristeza, do tipo que o fazia desejar não ter nascido jamais, eliminou o rubor sexual de seu formoso rosto.
Levantando o braço para ele, pôs a mão em sua bochecha.
— Tohr...
— O que aconteceu?
— Tohr...
O brilho em seus olhos e o tremor de sua adorável voz o partiu pela metade. Logo começou a distanciar-se, o corpo começou a desaparecer sob suas mãos, seu cabelo vermelho, seu rosto delicioso, seus olhos desesperados se desvaneceram até que ante ele somente ficaram os travesseiros. Logo, com um golpe final, o aroma de limão dos lençóis e a fragrância natural somente dela deixaram seu nariz, substituídos por nada...
Tohr se endireitou de um salto no colchão, com os olhos alagados de lágrimas e seu coração dolorido como se tivesse pregos atravessando seu peito. Respirando agitadamente se aferrou o esterno e abriu a boca para gritar.
Não saiu nenhum som. Não tinha forças.
Caindo para trás sobre os travesseiros limpou as bochechas úmidas com mãos trementes e tentou acalmar esse inferno. Quando finalmente recuperou o fôlego, franziu o cenho. Seu coração estava saltando dentro de sua caixa torácica, estava revoando mais que pulsando, e um enjôo, ocasionado, sem dúvida por seus erráticos espasmos fazia girar sua cabeça em um redemoinho.
Levantando a camiseta, baixou o olhar a seus peitorais desinflados e a seu torso encolhido e insistiu a seu corpo a seguir falhando. Os acessos lhe estavam chegando com crescente regularidade e força, e desejava como o demônio que se organizassem de uma vez e o ajudassem a despertar morto. Se quisesse ir ao Fade para estar com seus defuntos seres queridos, o suicídio não era uma opção, mas ele estava operando sob a presunção de que podia ser efetivamente negligente consigo mesmo até a morte. O que tecnicamente não era um suicídio, como seria se disparar um tiro ou jogar um nó corrediço ao redor do pescoço, ou cortar os punhos.
O aroma de comida que chegava do corredor o fez olhar ao relógio. Quatro da tarde. Ou era da manhã? As cortinas estavam corridas, assim não sabia se as persianas estavam levantadas ou baixadas.
Soou um golpe suave.
O qual, fodido obrigado, significava que não era Lassiter, que simplesmente entrava sempre que queria. Evidentemente os anjos caídos não sabiam muito de boas maneiras. Nem de espaço pessoal. Nem de limites de algum tipo. Estava claro que o grande e brilhante pesadelo foi arremessado a pontapés do céu porque Deus não tinha gostado de sua companhia muito mais do que Tohr gostava.
O golpe se repetiu. Assim devia ser John.
— Sim. — disse Tohr, permitindo que sua camiseta caísse enquanto se elevava para recostar-se sobre os travesseiros. Seus braços, uma vez fortes como gruas, lutaram sob o peso de seus ombros caídos.
O menino, que já não era um menino, entrou levando uma bandeja pesadamente carregada de comida, e uma expressão cheia de otimismo infundado.
Tohr examinou o conteúdo com o olhar enquanto a carga era depositada na mesinha. Frango com ervas, arroz com açafrão, feijões verdes e pão fresco.
A merda perfeitamente poderia ter sido carne de animal atropelado envolto em arame farpado, pelo que lhe importava, mas agarrou o prato, desenrolou o guardanapo, pegou o garfo e a faca e os utilizou.
Mastigar. Mastigar. Mastigar. Engolir. Mais mastigar. Engolir. Beber. Mastigar. Comer era tão mecânico e autônomo como respirar, algo do que era só levemente consciente, uma necessidade, não um prazer.
O prazer era coisa do passado... E uma tortura dentro de seus sonhos. Quando evocava sua shellan contra ele, nua, sobre lençóis com aroma de limão, a fugaz imagem acendia seu corpo de dentro para fora, o fazendo sentir-se vivo, e não só que vivia. Entretanto, o golpe do encontro se desvanecia rapidamente, era como uma chama sem nenhum abajur para sustentá-la.
Mastigar. Cortar. Mastigar. Engolir. Beber.
Enquanto comia, o menino se sentou em uma cadeira junto às cortinas fechadas, com os cotovelos nos joelhos, os punhos no queixo, um Pensador do Rodin vivinho e abanando o rabo. Ultimamente John sempre estava assim, sempre dando voltas em algo na cabeça.
Tohrment sabia condenadamente bem do que se tratava, mas a solução que terminaria com a triste preocupação de John primeiro ia doer-lhe como a merda.
E Tohr lamentava. Lamentava muito.
Cristo, por que Lassiter não podia tê-lo deixado deitado sem mais, naquele bosque? Esse anjo poderia ter ficado quietinho, mas não, Seu Senhorio Halogênico tinha que ser um herói.
Tohr desviou os olhos para John e seu olhar se fechou sobre o punho do menino. A coisa era enorme, e o queixo e mandíbula que descansavam sobre ele eram fortes, masculinos. O menino se converteu em um homem bonito, mas bem, como filho de Darius, provinha de um bom lago genético. Um dos melhores.
O que o levava a pensar... Verdadeiramente se parecia com D, uma cópia ao carvão, em realidade, exceto pelos jeans azuis. Darius nem morto se deixaria ver com jeans, nem sequer com esses de estilistas elegantes como os que John usava.
De fato... D com freqüência assumia exatamente a mesma posição quando estava ruminando sobre a vida, imitando o Rodin, todo cenho e agitação...
Um brilho de prata titilou na mão livre de John. Era um quarto de dólar, e o menino passava a moeda dentro, fora e ao redor de seus dedos, sua versão de um tic nervoso.
Esta noite havia algo mais no silêncio que John costumava assumir quando permanecia ali sentado. Algo tinha acontecido.
— O que aconteceu? — perguntou Tohr com voz áspera — Está bem?
Os olhos de John se elevaram de repente com surpresa.
Para evitar o olhar, Tohr baixou os seus, espetando um pouco de frango, e metendo-o na boca. Mastigar. Mastigar. Engolir.
A julgar pelos sons de movimento, John estava se desenroscando de sua rotina lentamente, como se temesse que qualquer movimento súbito espantasse a pergunta que ficava entre eles.
Tohr levantou o olhar de novo, e enquanto esperava, John meteu a moeda no bolso e gesticulou com economia e graça.
Wrath está lutando de novo. V acaba de contar isso a mim e aos meninos.
Tohr tinha perdido a prática com a Linguagem por Gestos Americano, mas nem tanto. A surpresa fez que baixasse seu garfo.
— Espere... Ainda é o rei, verdade?
Sim, mas esta noite disse aos Irmãos que vai voltar a ocupar seu lugar na rotação. Ou, suponho que esteve na rotação sem dizer a ninguém. Acredito que a Irmandade está de saco cheio com ele.
— Rotação? Não pode ser. Não se permite que o rei lute.
Agora sim. E Phury também voltará.
— Que porra? Supõe-se que o Primale não... — Tohr franziu o cenho — Há alguma mudança na guerra? Aconteceu algo?
Não sei. John encolheu de ombros e se recostou na cadeira, cruzando as pernas à altura dos joelhos. Outra coisa que sempre fazia Darius.
Nessa pose o filho parecia tão velho como o pai tinha sido, embora tivesse menos a ver com a forma em que estavam colocadas as extremidades do John e mais com o cansaço extremo que havia em seus olhos azuis.
— Não é legal. — disse Tohr.
Agora sim. Wrath se reuniu com a Virgem Escriba.
Na mente de Tohr começaram a zumbir perguntas, seu cérebro brigava com a carga desacostumada. No meio do deslocado redemoinho, era difícil pensar coerentemente, e sentia como se estivesse tentando segurar cem bolas de tênis entre seus braços, sem importar quão arduamente tentasse, algumas escorregavam e ricocheteavam a seu redor, criando uma confusão.
Deixou de tentar encontrar sentido em algo.
— Bem, isso é uma mudança... Desejo-lhes sorte.
A exalação baixa de John resumiu tudo bastante bem e Tohr voltou a se desconectar do mundo e retornou a sua comida. Quando terminou, dobrou o guardanapo pulcramente e tomou um último sorvo do copo de água.
Ligou a TV e pôs na CNN, porque não queria pensar e não podia agüentar o silêncio. John ficou aproximadamente meia hora, e quando foi evidente que já não suportava estar quieto durante mais tempo ficou em pé e se despediu.
O verei ao final da noite.
Ah, assim era de noite.
— Estarei aqui.
John recolheu a bandeja e saiu sem deter-se, nem duvidar. A princípio, houve bastante de ambas, como se a cada vez que chegasse à porta esperasse que Tohr o detivesse e dissesse: “Estou preparado para confrontar a vida. Vou seguir adiante. Estou melhor o bastante para me preocupar contigo”.
Mas a esperança não era eterna.
Quando a porta se fechou, Tohr afastou os lençóis de suas pernas fracas e passou os pés sobre a beirada do colchão.
Estava preparado para confrontar algo, sim, mas não sua existência. Com um gemido e uma inclinação brusca, foi cambaleando até o banheiro, foi ao vaso, e levantou o assento do trono de porcelana. Inclinando-se, deu a ordem e seu estômago evacuou a comida sem protestar.
No princípio tinha que colocar o dedo na garganta, mas não mais. Só esticava o diafragma e tudo saía como ratos fugindo de uma boca-de-lobo transbordante.
—Tem que acabar com essa merda.
A voz de Lassiter harmonizava com o som do vaso alagando-se. O que tinha muito sentido.
— Cristo, acaso bate alguma vez?
— Sou Lassiter. L-A-S-S-I-T-E-R. Como é possível que ainda siga me confundindo com outro? Necessita um adesivo com meu nome?
— Sim, e o ponha sobre sua boca. — Tohr se largou sobre o mármore e deixou a cabeça cair entre as mãos — Sabe, pode ir para casa. Pode ir quando quiser.
— Ponha seu rabo em movimento então. Porque isso é o que conseguiria que o fizesse.
— Vá, agora tenho uma razão para viver.
Houve um suave som de campainhas, o que queria dizer, tragédia das tragédias, que o anjo acabava de subir no balcão.
— Então, o que fazemos esta noite? Espera! Deixe-me adivinhar, nos sentar em áspero silêncio. Ou, não... Agora está alternando. Meditar com emotiva intensidade, verdade? Que enchimento de saco selvagem é. Whoo-Hooo. Quando quiser acordar, estará aplicando para provar o nó corrediço.
Com uma maldição, Tohr se levantou e foi abrir a ducha, esperando que se negasse a olhar ao boca dura, Lassiter se aborreceria rapidamente e iria arruinar a tarde de algum outro.
— Pergunta. — disse o anjo — Quando vamos cortar esse tapete que está crescendo em sua cabeça? Se essa merda ficar mais longa, vamos ter que ceifá-la como se fosse feno.
Enquanto Tohr tirava a camiseta e a cueca boxer, desfrutou do único consolo que tinha quando sofria a companhia de Lassiter: expor-se nu ante o idiota.
— Homem, o rabo plano é uma coisa. — resmungou Lassiter — Mas exibe um par de bolas de basquete desinfladas aí atrás. Faz com que me pergunte... Hey, certamente Fritz tem uma bomba de bicicleta. Só comentava.
— Você não gosta da vista? Já sabe onde está a porta. É essa em que nunca bate.
Tohr não deu tempo para a água esquentar, simplesmente se meteu sob o jorro e se limpou sem nenhuma boa razão que soubesse... Não tinha orgulho, assim que lhe importava uma merda o que outros pensassem de sua higiene.
Vomitar tinha um propósito. A ducha... Talvez... Simplesmente fosse um hábito.
Fechando os olhos, separou os lábios e ficou de pé frente ao jato. A água lambeu o interior de sua boca, varrendo a bílis e quando a ardência abandonou sua língua, um pensamento entrou em seu cérebro.
Wrath estava fora lutando. Sozinho.
— Hey, Tohr.
Tohr franziu o cenho. O anjo nunca utilizava seu nome próprio.
— O que?
— Esta noite é diferente.
— Sim, só se me deixe em paz. Ou se ponha a você mesmo neste banho. Há seis chuveiros para escolher aqui dentro.
Tohr pegou o sabonete e o passou sobre seu corpo, sentindo os duros e agudos impulsos de seus ossos e articulações através da pele fina.
Wrath estava fora sozinho.
Xampu. Enxágüe. Voltar para o jorro. Abrir a boca.
Fora. Sozinho.
Quando terminou a ducha, o anjo estava no centro do banheiro com uma toalha, todo amabilidade e essa merda.
— Esta noite é diferente. — disse Lassiter brandamente.
Tohr olhou ao anjo seriamente, vendo-o pela primeira vez, embora tenham passado quatro meses juntos. O anjo tinha o cabelo negro e loiro, tão longo como o de Wrath, mas, apesar de todo esse estilo Cher descendo por suas costas não era nenhum efeminado. Seu guarda-roupa parecia tirado diretamente do exército/marinha, camisetas negras, calças de camuflagem e botas de combate, mas não era absolutamente um soldado. O idiota estava perfurado como um agulheiro e tinha tantos acessórios como um joalheiro, com aros de ouro e correntes que penduravam dos buracos que tinha nas orelhas, pulsos e sobrancelhas. E podia apostar que tinha acessórios no peito e mais abaixo da cintura... O que era algo em que Tohr se negava a pensar. Não precisava de ajuda para vomitar, muito obrigado.
Quando a toalha trocou de mãos, o anjo disse com gravidade.
— Hora de despertar, Cinzeiro.
Tohr estava a ponto de apontar que essa era a Bella Adormecida quando lhe chegou uma lembrança como se fosse injetada no lóbulo frontal. Era da noite em que salvara a vida de Wrath lá pelo ano 1958, e as imagens lhe chegaram com a absoluta clareza da experiência atual.
O rei esteve fora. Sozinho. No centro.
Meio morto e sangrando sobre a sarjeta.
Um Edsel lhe tinha investido. Um pedaço de merda de um Edsel conversível de cor azul sombra de olhos de uma garçonete.
Pelo que Tohr pôde deduzir mais tarde, Wrath devia estar perseguindo um lesser a pé e ao girar a toda em uma esquina esse carro grande como uma lancha tinha lhe investido. Tohr estava a dois quarteirões de distância e ouviu o chiado dos freios e um impacto de algum tipo, e estava preparado para não fazer absolutamente nada.
Acidentes de trânsito humanos? Não era problema seu.
Mas então um par de lessers passou correndo frente à entrada do beco onde ele estava. Os assassinos fugiam como loucos sob a garoa de outono, como se algo os perseguisse, exceto não havia ninguém correndo atrás de seus calcanhares. Esperou caso aparecesse algum de seus irmãos. Nenhum deles tinha feito ato de presença.
Não fazia sentido nenhum. Se um assassino tivesse sido golpeado por um carro em companhia de seus cúmplices, estes não teriam abandonado o cenário. Os outros teriam matado o condutor humano e a qualquer possível passageiro, logo teriam metido o seu morto no porta-malas e teriam ido conduzindo da cena: a última coisa que a Sociedade Lessening queria era a um lesser incapacitado derramando sangue negro sobre a rua.
Talvez fosse só coincidência. Um pedestre humano. Ou alguém em uma moto. Ou dois carros.
Entretanto, tinha sido somente um par de freadas. E nada disso explicaria o par de pálidos corredores que tinha passado junto a ele como se fossem incendiários fugindo de um fogo que teriam acendido.
Tohr tinha trotado até o Trade, e ao dar a volta na esquina tinha captado a visão de um macho humano com um chapéu e um casaco agachado sobre um corpo encolhido que era duas vezes o seu tamanho. A esposa do homem, que estava vestida com um desses frívolos vestidos de saias avultadas dos anos cinqüenta, estava de pé justo na frente dos faróis, aconchegada em seu casaco de pele.
Sua brilhante saia vermelha era da cor das nervuras que havia no pavimento, mas o aroma do sangue derramado não era humano. Era vampiro. E o que tinha sido atropelado tinha um comprido cabelo negro...
A voz da mulher era estridente.
— Temos que levá-lo ao hospital...
Tohr interviu, interrompendo-a:
— É meu.
O homem tinha levantado o olhar.
— Seu amigo... Não o vi... Vestido de negro... Saiu de um nada...
— Ocuparei-me dele. — nesse ponto, Tohr deixou de explicar-se e simplesmente por meio de sua vontade, tinha enviado aos dois humanos a um estado de estupor. Uma rápida sugestão mental os enviou de volta a seu carro e os pôs em caminho com a impressão de que tinham golpeado uma lata de lixo. Supôs que a chuva se ocuparia do sangue da frente do carro, e eles mesmos poderiam arrumar o amassado.
Quando se inclinou sobre o corpo do herdeiro do trono da raça, o coração de Tohr pulsava tão rápido como um martelo hidráulico. Havia sangue por toda parte, emanando rápido de um corte na cabeça de Wrath, por isso Tohr tirou a jaqueta, mordeu a manga, e rasgou uma tira de couro. Depois de envolver as têmporas do herdeiro e atar a bandagem improvisada tão forte como pôde, deteve uma caminhonete que passava, apontou com a arma ao fanático de Grease que estava atrás do volante, e fez com que o humano conduzisse até o bairro de Havers.
Ele e Wrath viajaram na carroceria traseira, e todo o tempo, esteve mantendo pressão sobre a cabeça ferida de Wrath, sob a chuva fria. Uma chuva tardia de novembro, talvez dezembro. Entretanto, agradecia que não fosse verão. Sem dúvida o frio havia diminuído o batimento do coração de Wrath e aliviado sua pressão sangüínea.
A meio quilômetro da casa de Havers, na parte luxuosa de Caldwell, Tohr havia dito ao humano que estacionasse e enquanto ficava pelo caminho lavou seu cérebro.
Os minutos que Tohr levou para chegar até a clínica foram os mais compridos de sua vida, mas conseguiu levar Wrath ali, e Havers fechou o que tinha resultado ser o corte de uma das artérias temporais.
O dia seguinte foi crítico. Inclusive com Marissa ali para alimentar ao Wrath, o rei tinha perdido tanto sangue que não evoluía como se esperava, e Tohr ficou todo o tempo sentado em uma cadeira junto à cama. Enquanto Wrath jazia tão quieto, Tohr sentia como se a vida da raça inteira pendesse de um fio, o único que podia ocupar o trono estava preso em um sonho que se distanciava por apenas uns poucos neurônios de um estado vegetativo permanente.
A notícia se espalhou e as pessoas acudiam desesperadas. As enfermeiras e o médico. Outros pacientes que se deixaram cair para rezar pelo rei a quem não serviriam. Os Irmãos, que tinham utilizado o telefone por turnos para ligar a cada quinze minutos.
A sensação coletiva era que sem o Wrath não havia esperança. Nem futuro. Nem oportunidade.
Entretanto, Wrath viveu, despertando irascível, o que o fez suspirar de alívio... Porque se um paciente tinha a energia para estar de saco cheio, ia superar.
O anoitecer seguinte, depois de ter estado fora de serviço durante vinte e quatro horas seguidas e tendo assustado de morte a todo mundo que lhe rodeava, Wrath tinha desligado a IV[39], vestiu-se, e se foi.
Sem dizer nenhuma palavra a nenhum deles.
Tohr tinha esperado... Algo. Não um obrigado, mas algum reconhecimento Ou... Algo. Demônios, agora Wrath era um filho da puta mal-humorado, mas nesse então? Era diretamente tóxico. Mesmo assim... Nada? Depois de ter salvado a vida do cara?
Recordava bastante à forma em que ele esteve tratando ao John. E a seus irmãos.
Tohr envolveu a toalha ao redor da cintura e voltou para o ponto mais importante da lembrança. Wrath tinha saído ali fora a lutar sozinho. Lá em 58, tinha sido um golpe de sorte que Tohr estivesse onde estava e tivesse encontrado o rei antes que fosse muito tarde.
— Hora de despertar. — disse Lassiter.
Capítulo 17
Enquanto a noite chegava e se instalava, Ehlena rezava para não ter que chegar tarde ao trabalho outra vez. Com o relógio correndo, esperou no andar de acima, na cozinha com o CranRas e as drogas moídas. Tinha sido meticulosa com a limpeza: tinha guardado a colher. Checando todas as superfícies duas vezes. Inclusive comprovou que o salão estivesse apropriadamente organizado.
— Pai? — chamou em direção ao porão.
Enquanto prestava atenção, a espera de sons de pés arrastando-se e palavras sem sentido pronunciadas baixinho, pensou nos sonhos estranhos que teve durante o dia. Imaginou o Rehv na escura distância com os braços pendurado nos flancos. Seu magnífico corpo nu estava iluminado como se estivesse em exibição, seus músculos se sobressaindo em um poderoso desdobramento e a cor torrada de sua pele era quente e dourada. Sua cabeça estava inclinada para baixo e tinha os olhos fechados como se estivesse em repouso.
Cativada, convocada, tinha atravessado um chão de pedra fria até ele, pronunciando seu nome uma e outra vez.
Ele não tinha respondido. Não tinha elevado a cabeça. Não tinha aberto os olhos.
O medo tinha assobiado ao longo de suas veias e tinha estremecido seu coração, e tinha se apressado para chegar a ele, mas ele tinha permanecido sempre distante, um objetivo nunca realizado, um destino nunca alcançado.
Despertara com lágrimas nos olhos e o corpo tremendo. Quando a sufocante comoção tinha retrocedido, o significado ficou claro, mas na realidade, não necessitava que seu subconsciente lhe dissesse o que ela já sabia.
Sacudindo a si mesma, voltou a gritar para baixo.
— Pai?
Quando não houve resposta, Ehlena pegou a xícara de seu pai e desceu ao porão. Fez lentamente, embora não porque tivesse medo de derramar o CranRas vermelho sangue sobre seu uniforme branco. Às vezes seu pai não se levantava por si mesmo e ela tinha que fazer este descida, e cada vez que descia os degraus por esse motivo, perguntava-se se finalmente teria ocorrido, se seu pai teria sido chamado ao Fade.
Não estava pronta para perdê-lo. Ainda não, sem importar quão difíceis fossem as coisas.
Introduzindo a cabeça através da porta de seu dormitório, o viu sentado ante sua escrivaninha esculpida à mão, rodeado de pilhas irregulares de papéis e velas apagadas.
Obrigado, Virgem Escriba.
Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, preocupou-a que a falta de luz pudesse danificar a visão de seu pai, mas as velas ficariam como estavam, porque não havia nenhum fósforo nem acendedor na casa. A última vez que ele tinha posto suas mãos sobre um fósforo tinha sido em sua antiga casa... E tinha incendiado o apartamento porque suas vozes haviam dito.
Isso ocorreu fazia dois anos, e fora a razão de que lhe tivessem receitado remédios.
— Pai?
Ele levantou o olhar da desordem e pareceu surpreso.
— Minha filha, como vai esta noite?
Sempre fazia a mesma pergunta, e sempre lhe dava a mesma resposta na Antiga Língua.
— Bem, meu pai. E você?
— Como sempre encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável. — seu pai pegou a xícara — Aonde vai?
Isto conduziu às suas “pas de deux” verbal a respeito de que não aprovava que trabalhasse e ela explicava que o fazia porque gostava, ele se encolhia de ombros e afirmava não entender à geração jovem.
— Seriamente tenho que ir, — lhe disse — mas Lusie chegará em questão de minutos.
— Sim, bem, bem. Em realidade, estou ocupado com meu livro, mas a entreterei durante um momento, como é apropriado. Entretanto, tenho que me concentrar em meu trabalho. — ondulou a mão ao redor da representação física do caos de sua mente, seu gesto elegante em contradição com a irregular coleção de papéis cheios de sem sentidos — Isto tem que ser feito.
— É obvio que sim, pai.
Ele terminou o CranRas e, quando Ehlena foi pegá-lo de sua mão, franziu o cenho.
— Certamente a criada pode fazer isso.
— Gosto de ajudá-la. Tem muitas responsabilidades. — não podia ser mais certo. A doggen tinha que seguir todas as regras para objetos e onde pertenciam, assim como fazer as compras e ganhar o dinheiro e pagar as faturas e o vigiar. A doggen estava cansada. A doggen estava esgotada.
Mas era absolutamente necessário que a xícara fosse para a cozinha.
— Pai, por favor, solte a taça para que possa levá-la para cima. A donzela teme te incomodar, e gostaria de lhe economizar essa preocupação.
Por um momento, os olhos dele se pousaram nela como estavam acostumados a fazer.
— Tem um coração formoso e generoso. Estou muito orgulhoso de te chamar de filha.
Ehlena piscou ferozmente e com voz áspera disse:
— Ser seu orgulho significa tudo para mim.
Ele estendeu o braço e apertou sua mão.
— Vai, minha filha. Vá a esse “seu trabalho”, e volte para casa comigo com histórias de sua noite.
Oh... Deus.
Era exatamente o que havia lhe dito fazia muito tempo, quando ela estava indo a um colégio particular e sua mãe estava viva e viviam entre a família e a glymera como gente de importância.
Inclusive, embora soubesse ser provável que quando voltasse para casa ele não tivesse nenhuma lembrança de haver lhe feito a velha e adorável pergunta, ela sorriu e se alimentou das saborosas migalhas do passado.
— Como sempre, meu pai. Como sempre.
Partiu com o som do passar de páginas e o “tink-tink-tink” de uma pluma golpeando a borda de um tinteiro de cristal.
Escada acima enxaguou a xícara, secou e a guardou na despensa, logo se assegurou de que no frigorífico tudo estivesse onde devia estar. Quando recebeu a mensagem de texto de que Lusie estava a caminho, transpassou a porta, fechou-a, e se desmaterializou para a clínica.
Quando chegou ao trabalho, sentiu um grande alívio de ser como todos os outros, chegando na hora, pondo as coisas em seu armário, falando de nada em particular antes que começasse o turno.
Mas então quando estava na cafeteira, Catya se aproximou dela, toda sorrisos.
— Assim... Ontem à noite foi...? Vamos, conte.
Ehlena terminou de encher seu copo e ocultou uma careta depois de um primeiro gole profundo que lhe queimou a língua.
— Acredito que não apareceu resume tudo.
— Não apareceu?
— Sim. Como em “ele não apareceu”.
Catya sacudiu a cabeça.
— Maldito seja.
— Não, está bem. De verdade. Quero dizer, não é como se tivesse esperado muito. —sim, só uma fantasia completa sobre o futuro, que incluía coisas como um hellren, uma família própria, uma vida que valesse a pena viver. Nada de outro mundo — Está bem.
— Sabe? Ontem à noite estive pensando. Tenho um primo que é...
— Obrigado, mas não. Com meu pai como está não deveria sair com ninguém. —Ehlena franziu o cenho, ao recordar quão rapidamente Rehv lhe tinha dado razão a respeito disso. Embora pudesse dizer que isso o fazia uma espécie de cavalheiro, era difícil não sentir-se um pouco aborrecida.
— Preocupar-se por seu pai não significa...
— Hey, por que não me ocupo do balcão de recepção durante a mudança de volta?
Catya se deteve, mas os olhos da fêmea se iluminaram lançando um montão de mensagens, a maior parte das quais poderiam se resumir a: “Quando esta garota vai despertar?”
— Irei agora mesmo. — disse Ehlena, dando a volta e afastando-se.
— Não durará para sempre.
— É obvio que não. A maior parte de nosso turno já chegou.
Catya sacudiu a cabeça.
— Isso não é o que quis dizer, e sabe. A vida não dura para sempre. Seu pai tem uma séria enfermidade psicológica, e é muito boa com ele, mas poderia ficar assim durante um século.
— Em cujo caso ainda sobrará ao redor de setecentos anos mais para mim. Estarei na recepção. Desculpe.
Na recepção, Ehlena tomou posição depois do computador e introduziu a contra-senha. Não havia ninguém na sala de espera porque o sol acabava de se pôr, mas os pacientes começariam a chegar muito em breve, e ela não podia esperar a distração.
Revisando o horário de Havers, não viu nada incomum. Verificações. Tratamentos a pacientes. Seguimentos cirúrgicos...
A campainha exterior tocou e levantou o olhar para um monitor de segurança. Ali em uma vista do vestíbulo exterior, viu um macho que se agasalhava em seu casaco para se proteger do vento frio.
Apertou o botão do inter comunicador e disse:
— Boa noite. No que posso lhe ajudar?
O rosto que levantou o olhar para a câmera era um que já tinha visto antes. Três e três noites atrás. O primo de Stephan.
— Alix? — disse — É Ehlena. Como está...?
— Estou aqui para ver se o trouxeram.
— Trouxeram?
— Ao Stephan.
— Não acredito, mas me deixe comprovar enquanto entra.
Ehlena pressionou o botão para abrir a fechadura e foi ao computador ver a lista de pacientes ingressados. Enquanto abria a série de portas para Alix, revisava os nomes, um por um.
Não fazia referência ao ingresso de Stephan como paciente.
No instante em que Alix entrou na sala de espera, o sangue em suas veias congelou ao ver a cara do macho. Os cruéis círculos escuros sob seus olhos cinza falavam de algo mais que uma simples falta de sono.
— Stephan não voltou para casa ontem à noite. — disse.
Rehv lamentava dezembro, e não só porque o frio no norte de Nova Iorque fosse suficiente para fazê-lo desejar ficar em um plano especialista de pirotecnia só para esquentar-se.
Em dezembro a noite caía cedo. O sol, esse estúpido preguiçoso, flácido maricas, retrocedia em seus esforços tão cedo como as quatro e meia da tarde, e isso para Rehv significava que o “encontro-de-primeira-terça-do-mês-para-atuar-como-semental” começava cedo.
Acabavam de dar as dez em ponto quando entrou no Parque Estatal Black Snake depois de uma viagem de carro de duas horas para o norte desde Caldwell. Trez, que sempre se desmaterializava para ali, sem dúvida já teria tomado posição ao redor da cabana, camuflando-se e dispondo-se a atuar de guarda.
Assim como de testemunha.
O fato de que o cara, que era indiscutivelmente seu melhor amigo, tivesse que observar todo o assunto era um triturador de testículos que vinha a acrescentar-se a todo o carrossel de cagadas. O problema era, que depois que tudo terminava, Rehv precisava de ajuda para voltar para casa, e Trez era bom nesse tipo de merdas.
Xhex queria ocupar-se, é obvio, mas não se podia confiar nela. Não quando se tratava da princesa. Se Rehv lhe voltasse às costas durante um segundo a cabana poderia terminar com uma nova capa de pintura fresca nas paredes... Da variedade horripilante.
Como sempre, Rehv estacionou no estacionamento de terra que havia do lado escuro da montanha. Não havia outros carros, e esperava que os atalhos que se abriam na parte de atrás do estacionamento estivessem vazios também.
Olhando através do pára-brisa, ante sua vista tudo aparecia vermelho e plano e apesar de que desprezava a sua meio irmã, odiava olhá-la e desejava que todo este sujo e fodido assunto se acabasse de uma vez, seu corpo não estava intumescido de frio, a não ser vivo e ronronando. Dentro de suas calças, seu pênis duro estava preparado e pronto para o que estava a ponto de ocorrer.
Agora se somente pudesse obrigar-se a sair do carro.
Pousou a mão no trinco da porta, mas não pôde puxá-lo.
Havia tanta paz. Quão único perturbava o silêncio eram os leves e metálicos sons que o motor do Bentley fazia ao esfriar.
Sem razão aparente, pensou na adorável risada de Ehlena, e isso foi o que lhe fez abrir a porta. Com um movimento rápido, tirou a cabeça do carro justamente quando seu estômago se fechava como um punho e quase vomita. Quando o frio acalmou sua náusea, tentou tirar Ehlena da mente. Ela era tão limpa e honorável que não podia suportar tê-la em seus pensamentos quando estava a ponto de fazer isto.
O que era uma surpresa.
Proteger a alguém do mundo cruel, do mortal e perigoso, do poluído, o obsceno, e o asqueroso não era seu estilo. Mas se tinha ensinado a si mesmo a fazer justamente isso quando se tratava das únicas três fêmeas normais na vida. Pela que lhe tinha dado a vida, a que tinha criado como se fosse sua própria e a pequena que sua irmã tinha dado à luz recentemente, confrontaria todo tipo de perigos, mataria com suas próprias mãos algo que as ameaçasse, perseguiria e destruiria até a mais mínima ameaça.
E, de algum modo a cálida conversa que teve com a Ehlena mais cedo a punha nessa curta, curta lista.
O que significava que tinha que deixá-la fora. Junto com as outras três.
Tinha-lhe caído bem vivendo como uma puta, porque obtinha um preço caro da que o fodia, e, além disso, a prostituição não era nada mais que o que merecia, considerando o modo em que seu autêntico pai tinha forçado sua concepção sobre sua mãe. Mas ele assumia a responsabilidade. Ele ia à cabana sozinho e ele obrigava seu corpo a fazer o que ninguém o obrigava.
Essas poucas pessoas normais que havia em sua vida tinham que permanecer muito, muito longe de todo esse assunto, e isso significava que quando vinha aqui devia erradicá-las de seu pensamento e seu coração. Mais tarde, logo depois de ter se recuperado, tomado banho e dormido, poderia voltar a recordar os olhos cor toffe de Ehlena e a forma em que cheirava a canela e como riu apesar de si mesmo quando falaram. Por agora, afastou a ela, a sua mãe, a sua irmã e a sua amada sobrinha de seu lóbulo frontal, fechando cada lembrança que tinha em uma seção separada de seu cérebro e enclausurando-os.
A princesa sempre tentava entrar em sua mente, e não queria que soubesse nada daqueles que apreciava ou pelos quais se preocupava.
Quando uma intensa rajada de vento quase lhe fecha violentamente a porta na cabeça, Rehv puxou sua zibelina envolvendo-se frouxamente ao redor de seu corpo, saiu, e fechou o Bentley. Enquanto caminhava para o início do caminho, notou que o terreno estava congelado sob seus Penetre Haans, a terra que rangia sob seus pés era dura e resistente.
Tecnicamente agora o parque estava fechado pela estação, e uma corrente pendurava atravessando a entrada do atalho que levava mais à frente do mapa da montanha e às cabanas de aluguel. Entretanto, era mais provável que fosse o tempo o que mantinha as pessoas afastadas e não o Serviço do Parque Adirondack. Depois de passar sobre a corrente, passou a folha de registro que estava pendurava de uma prancheta apesar de que se supunha que ninguém devia utilizar os atalhos. Ele nunca assinava.
Sim, como se os guardas humanos realmente precisassem saber o que dois sympaths estavam fazendo em uma daquelas cabanas. Ceerrrrtttoooooo.
O bom de dezembro era que nos meses invernais o bosque ficava menos claustrofóbico, seus carvalhos e suas sebes não eram mais que troncos e ramos fracos que deixavam ver bastante da noite estrelada. Ao redor deles, as árvores de folha perene estavam de festa, seus ramos amaciados eram o “se foda” a seus irmãos agora nus, vingando-se por toda a vistosa folhagem outonal que as outras árvores acabavam de mostrar.
Penetrando a linha de árvores, seguiu o atalho principal enquanto este se estreitava gradualmente. Atalhos menores se separavam a direita e esquerda, marcados com rústicos pôsteres de madeira com nomes como Passeio do Sociável, Ataque Relâmpago, Cúpula Extensa e Cúpula Pequena. Ele seguiu em linha reta, seu fôlego formava nuvens ao abandonar seus lábios e o som de seus sapatos sobre a terra congelada parecia muito ruidoso. No alto, a lua se via brilhante, e tinha a forma de uma meia-lua afiada como uma faca, que para ele com seus impulsos symphath decididamente fora de controle, era da cor dos olhos rubi de sua chantagista.
Trez fez sua aparição em forma de uma brisa gelada que percorreu o atalho.
— Hey, amigo. — disse Rehv baixinho.
A voz do Trez flutuou no interior de sua cabeça enquanto a forma Sombra do cara se condensava em uma onda que brilhava tenuamente.
Acaba logo com ela. Quanto mais rápido obtenhamos o que necessitará depois melhor.
— As coisas são como são.
Quanto antes. Melhor.
— Veremos.
Trez lhe amaldiçoou e voltou a se dissolver em uma fria rajada de vento, lançando-se para frente fora de vista.
A verdade era que, por muito que Rehv odiasse vir, algumas vezes não queria partir. Gostava de fazer mal à princesa, e ela era uma boa oponente. Ardilosa, rápida e cruel. Era a única saída para seu lado mau, e, como um corredor faminto de treinamento, precisava do exercício.
Além disso, talvez fosse como seu braço: a podridão se sentia bem.
Rehv tomou o sexto à esquerda, entrando em um atalho que era só o bastante amplo para uma pessoa, e muito em breve, a cabana ficou à vista. A brilhante luz da lua, seus lenhos eram de uma cor parecida ao vinho rosado.
Quando chegou à porta, estendeu a mão esquerda para frente, e quando estava aferrando a alavanca de madeira pensou em Ehlena e em como se preocupou o suficiente por ele para telefonar e perguntar por seu braço.
Durante um breve momento se permitiu um deslize e evocou o som da voz dela em seu ouvido.
Não entendo por que não cuida de você mesmo.
A porta escapou de seu agarre, abrindo-se tão rápido que golpeou contra a parede.
A princesa estava de pé no centro da cabana, com sua brilhante túnica vermelha, rubis em sua garganta e os olhos cor vermelho sangue, toda a cor do ódio. Com seu escasso cabelo enrolado e recolhido por cima de seu pescoço, sua pele pálida, e os escorpiões albinos vivos que usava como brincos, era um horror delicioso, uma boneca Kabuki construída por uma mão malvada. E era malvada, sua escuridão lhe chegava em forma de ondas, emanando do centro de seu peito ainda quando nada nela se movia e seu rosto com forma de lua permanecia inalterado pelo aborrecimento.
Sua voz, por outro lado, era ardilosa como uma folha afiada.
— Nada de cenas de praia esta noite em sua mente. Não, nada de praia esta noite.
Rehv cobriu Ehlena rapidamente com uma imagem de um glorioso estereótipo das Bahamas, todo sol, mar e areia. Era algo que tinha visto na TV anos atrás, em um “especial escapadas”, como havia dito o anunciador, com gente em traje de banho passeando de mãos dadas. Dada sua vivacidade, a imagem era o suspensório perfeito para os argumentos de sua matéria cinza.
— Quem é ela?
— Quem é quem? — disse enquanto entrava.
A cabana estava cálida, graças a ela, um pequeno truque de agitação molecular do ar que se acrescentava quando estava de saco cheio. Não obstante, o calor que gerava não era alegre como o que provinha de um fogo... Era mais da classe de sufoco que conseguia com um caso de diarréia.
— Quem é a fêmea que havia em sua mente?
— Só uma modelo de um anúncio de TV, minha queridíssima cadela. — disse tão brandamente como ela. Sem lhe dar as costas, fechou a porta tranqüilamente — Ciumenta?
— Para estar ciumenta, teria que estar ameaçada. E isso seria absurdo. — a princesa sorriu — Mas penso que deve me dizer quem é ela.
— Isso é tudo o que quer fazer? Falar? — Rehv deliberadamente deixou que seu casaco se abrisse e embalou em sua mão o pênis e o pesado escroto — Normalmente quer de mim algo mais que conversa.
— Muito certo. O melhor e mais elevado uso para você é o que os humanos chamam... Um consolador, não? Um brinquedo para uma fêmea com o que dar prazer a si mesma.
— Fêmea não é necessariamente a palavra que utilizaria para te descrever.
— Certamente. Bem amada seria melhor.
Ela elevou uma mão horrenda até seu penteado, deslizando seus dedos ossudos de três articulações sobre a cuidadosa obra, seu pulso era mais fino que a asa de uma batedeira de arame. Seu corpo não era diferente: todos os symphaths estavam constituídos como jogadores de xadrez, não como zagueiros, o que estava de acordo com sua preferência de lutar com a mente e, não com o corpo. A vestimenta que usavam, não era nem de machos nem de fêmeas, a não ser uma versão destilada de ambos os sexos, e por isso a princesa o desejava como o fazia. Gostava de seu corpo, seus músculos, sua óbvia e brutal masculinidade, e habitualmente queria ser fisicamente refreada durante o sexo... Algo que seguro como a merda não conseguia em casa. Pelo que ele sabia a versão symphath do ato se limitava a algumas posturas mentais seguidas de duas esfregações e um ofego por parte do macho. Além disso, estava disposto a apostar que o tio de ambos tinha o pênis como o de um hamster, e os testículos do tamanho de borrachas de lápis.
Não é que alguma vez o tivesse comprovado… Mas vamos, o cara não era exatamente uma comparação de testosterona.
A princesa se movia pela cabana como se estivesse desdobrando sua graça, mas havia um propósito em deslocar-se de janela em janela e olhar para fora.
Demônios, sempre com as janelas.
— Onde está seu cão guardião esta noite? — disse ela.
— Sempre venho sozinho.
— Mente a seu amor.
— Por que ia querer que alguém visse isto?
— Porque sou formosa. — deteve-se diante dos vidros mais próximos à porta — Está aí à direita, junto ao pinheiro.
Rehv não precisava inclinar-se a um lado e olhar para saber que tinha razão. É obvio que ela podia sentir o Trez, só que não podia estar completamente segura de onde estava ou o que era.
Ainda assim, disse:
— Não há nada exceto árvores.
— Mentira.
— Tem medo das sombras, Princesa?
Quando ela olhou sobre o ombro, o escorpião albino que pendurava do lóbulo de sua orelha também fez contato ocular com ele.
— O problema não é o medo. É a deslealdade. Não suporto a deslealdade.
— A menos que seja você quem a está praticando, é obvio.
— Oh, sou bastante leal a você, meu amor. Exceto pelo irmão de nosso pai, como já sabe. — girou e quadrou os ombros em toda sua altura — Meu consorte é o único além de você. E vim aqui sozinha.
— Suas virtudes são abundantes, embora como disse, por favor, leva a mais em sua cama. Toma a cem machos mais.
— Ninguém poderia comparar-se contigo.
Dava vontade de vomitar em Rehv cada vez que lhe prodigalizava um falso elogio, e ela sabia. Pelo que, naturalmente insistia em dizer merdas como essa.
— Diga-me. — disse para mudar de assunto — Já que tirou o tema de nosso tio, como vai o muito idiota?
— Ainda te acredita morto. Assim sigo honrando minha parte de nossa relação.
Rehv colocou a mão no bolso de seu casaco de zibelina e tirou os duzentos e cinqüenta mil dólares em rubis cortados. Atirou o feliz pacotinho ao chão para a borda da túnica dela e tirou o casaco. A jaqueta de seu traje e seus sapatos foram o seguinte. Depois suas meias três quartos de seda, suas calças e sua camisa. Nenhum boxer que tirar. Para que incomodar-se?
Rehvenge permaneceu ante ela completamente ereto, com os pés bem plantados no chão, respirando tranqüilamente, inalando e exalando com seu forte peito.
— E estou preparado para completar nossa transação.
Os olhos rubi desceram por seu corpo e se detiveram em seu sexo, abriu a boca, e percorreu o lábio inferior com sua língua bífida. Em suas orelhas, os escorpiões retorceram suas extremidades com espera, como se respondessem a seu arrebatamento sexual.
A princesa apontou para a bolsa de veludo.
— Recolhe isso e me dê isso apropriadamente.
— Não.
— Recolhe-o.
— Você gosta de se inclinar diante de mim. Por que te roubar seu hobby favorito?
A princesa colocou as mãos nas longas mangas de sua túnica e foi para ele da forma suave com que se moviam os symphaths, virtualmente flutuando sobre o chão de madeira. Quando se aproximou, ele manteve sua posição, porque preferia morrer e apodrecer antes de dar um passo atrás para o prazer dela.
Olharam-se um ao outro, e no profundo e maligno silêncio, ele sentiu uma terrível comunhão com ela. Eram iguais, e embora fosse um pensamento que odiava, sentia alívio em ceder a sua autêntica natureza.
— Recolhe-o...
— Não.
Ela descruzou os braços e uma de suas mãos de seis dedos rasgou o ar em direção a seu rosto, a bofetada foi forte e aguda como seus olhos rubi. Rehv se negou a deixar que sua cabeça retrocedesse pelo impacto enquanto o som reverberava tão ruidosamente como um prato quebrando-se.
— Quero que me pague seu tributo adequadamente. E quero saber quem é ela. Percebi seu interesse por esta antes... Quando está longe de mim.
Rehv manteve o anúncio de praia aceso em seu lóbulo frontal e soube que ela ostentava.
— Não me inclino perante você nem ante ninguém, cadela. Assim, se quiser essa bolsa, vai ter que te tocar os dedos dos pés. E quanto ao que acredita saber, está enganada. Não há ninguém para mim.
Esbofeteou-o de novo, a ardência desceu por sua medula espinhal e pulsou na cabeça de seu pênis.
— Inclina-te ante mim cada vez que vem aqui com seu patético pagamento e seu sexo faminto. Necessita isto, necessita-me.
Ele levou sua cara mais perto da dela.
— Não adule a você mesma, princesa. É uma obrigação, não uma escolha.
— Engano. Vive para me odiar.
A princesa pegou seu pênis na mão, envolvendo-o firmemente com seus dedos mortos. Quando sentiu o contato e a carícia, seu estômago revolveu... E ainda assim sua ereção se umedeceu ante a atenção inclusive quando não podia suportá-la, embora não a encontrava absolutamente atrativa, seu lado symphath estava completamente preso nesta batalha de vontades, e isso era o erótico.
A princesa se inclinou para ele, esfregando com seu dedo indicador a pua que tinha na base de sua ereção.
— Seja quem for essa fêmea de sua cabeça, não pode competir com o que temos.
Rehv pôs as mãos dos lados do pescoço de sua chantagista e pressionou com os polegares até que ela ofegou.
— Posso te arrancar a cabeça da coluna.
— Não o fará. — lhe passou os lábios vermelhos e acetinados pela garganta e o batom de pimentas moídas que levava o queimou — Porque não poderíamos fazer isto se estivesse morta.
— Não subestime a atração da necrofilia. Especialmente quando se trata de você. — agarrou a parte de trás de seu coque e puxou com força — Vamos ao ponto?
— Depois que você recolha...
— Isso não vai acontecer. Não me inclino. — com sua mão livre, rasgou a frente da túnica, expondo a malha fina do body que sempre usava. Girando-a, forçou-a a ficar de cara à porta, procurando entre as dobras de vermelho cetim enquanto ela ofegava. A malha que vestia estava empapada de veneno de escorpião, e enquanto abria caminho para seu centro, o veneno empapava sua pele. Com sorte, poderia foder um momento enquanto ainda conservava a túnica posta...
A princesa se desmaterializou fora de suas garras e voltou a tomar forma justamente ante a janela através da qual Trez poderia ver. Com um rápido movimento, sua túnica a abandonou, eliminada por sua vontade e sua carne foi revelada. Estava constituída como a serpente que era, muitos nervos, e muito magra e quando a luz da lua se refletia sobre os fios entremeados de seu reluzente body dava a impressão de ter escamas.
Seus pés estavam plantados de cada lado da bolsa de rubis.
— Adorará-me. — disse isso, passando a mão entre as coxas e acariciando a fenda — Com a boca.
Rehv se aproximou e ficou de joelhos. Levantando o olhar para ela, disse com um sorriso:
— E será você quem recolherá essa bolsa.
Capítulo 18
Ehlena se deteve fora do necrotério da clínica, com ambos os braços rodeando seu peito, o coração na garganta e as preces saindo de seus lábios. Apesar de seu uniforme, não estava esperando em caráter profissional e o cartaz de SÓ PESSOAL que estava ao nível de seus olhos a freava tanto como se fosse alguém com roupas comuns. Enquanto os segundos passavam lentos como séculos, olhava as letras como se tivesse esquecido como ler. A palavra só estava em uma metade das portas, e pessoal na outra. Em letras vermelhas maiúsculas. Debaixo das letras em português, estava a tradução na Antiga Língua.
Alix tinha atravessado as portas fazia um momento com o Havers a seu lado.
Por favor… Que não seja Stephan. Por favor, não deixe que o John Doe seja Stephan.
O pranto que se filtrou através das portas de SÓ PESSOAL provocou que fechasse os olhos, tão forte que fez com que a cabeça desse voltas.
Depois de tudo, não a tinha deixado plantada.
Dez minutos depois Alix saiu, tinha o rosto pálido e a parte inferior dos olhos avermelhada devido à quantidade de vezes que enxugou as abundantes lágrimas. Havers estava logo atrás dele, o médico se mostrava igualmente desconsolado.
Ehlena se adiantou e pegou ao Alix entre seus braços.
— Sinto tanto.
— Como… Como digo a seus pais… Eles não queriam que viesse até aqui… Oh, Deus…
Ehlena sustentou o corpo estremecido do macho até que Alix se endireitou e arrastou ambas as mãos por seu rosto.
— Estava desejando sair contigo.
— E eu com ele.
Havers pôs sua mão sobre o ombro de Alix.
— Quer levar isso contigo?
O macho olhou para trás, às portas, e fechou a boca até que se converteu somente em uma fina linha.
— Vamos querer começar com os... Rituais mortuários... Mas...
— Você gostaria que o amortalhasse? — perguntou Havers brandamente.
Alix fechou os olhos e assentiu.
— Não podemos deixar que sua mãe veja seu rosto. Isso a mataria. Eu o faria, mas...
— Cuidaremos dele muito bem. — disse Ehlena — Pode confiar que nos ocuparemos com respeito e reverência.
— Não acredito que possa… — Alix olhou em sua direção — Está mal de minha parte?
— Não. — disse sustentando ambas as mãos — E lhe prometo, faremos com amor.
— Mas deveria ajudar…
— Pode confiar em nós. — enquanto o macho piscava rapidamente, Ehlena o guiou gentilmente, afastando-o das portas do necrotério — Quero que vá esperar em uma das salas de estar familiares.
Ehlena acompanhou o primo de Stephan pelo corredor até chegar ao vestíbulo onde estavam as salas de exame. Quando outra enfermeira passou por ali, Ehlena lhe pediu que o levasse a uma sala de espera privada e logo retornou ao necrotério.
Antes de entrar, respirou profundamente e endireitou os ombros. Quando entrou empurrando as portas, cheirou ervas e viu Havers de pé junto a um corpo coberto por um lençol branco. O andar de Ehlena fraquejou.
— Meu coração está oprimido. — disse o médico — Tão oprimido. Não queria que esse pobre moço visse assim a seu familiar de sangue, mas depois de identificar suas roupas, ele insistiu. Tinha que vê-lo.
— Porque tinha que assegurar-se.
Era o que ela teria necessitado ao estar nessa situação.
Havers levantou o lençol, dobrando-o sobre o peito e Ehlena tampou bruscamente a boca com a mão para conter um ofego.
O rosto de Stephan, golpeado e sujo, estava quase irreconhecível.
Ela tragou uma vez. E outra vez. E uma terceira vez.
Querida Virgem Escriba, vinte e quatro horas antes, ele estava vivo. Vivo e no centro, desejando vê-la. Logo uma má decisão de ir para um lado e não para o outro o tinha feito terminar aqui, jazendo sobre uma cama fria de aço inoxidável, a ponto de ser preparado para seu ritual mortuário.
— Trarei as mortalhas. — disse bruscamente Ehlena quando Havers tirou completamente o lençol do corpo.
O necrotério era pequeno, com apenas oito unidades de refrigeração e duas mesas de exame, mas estava bem provido quanto a equipamento e fornecimentos. As mortalhas cerimoniais eram guardadas em um armário próximo do escritório, e quando abriu a porta, saiu uma fresca baforada herbal. As bandas de linho tinham sete centímetros e meio de largura e vinham em cilindros do tamanho dos dois punhos de Ehlena. Empapados de uma combinação de romeiro, lavanda e sal marinho, irradiavam um aroma suficientemente prazenteiro que, não obstante, faziam-na retroceder cada vez que captava aquele odor.
Morte. Era o aroma da morte.
Tirou dez cilindros e os empilhou em seus braços, logo voltou onde estava o corpo de Stephan totalmente exposto, com apenas um tecido sobre seus quadris.
Depois de um momento, Havers saiu de um vestiário que havia no fundo, usando uma túnica negra atada com uma faixa negra. Ao redor do pescoço, suspensa de uma corrente de prata larga e pesada, tinha uma ferramenta ornamentada para cortar, muito afiada que era tão antiga, que o trabalho de filigrana da manga tinha curvas obscurecidas dentro de seu curvilíneo desenho.
Ehlena abaixou a cabeça enquanto Havers elevava à Virgem Escriba as preces requeridas para o pacífico descanso de Stephan dentro do tenro abraço do Fade. Quando o doutor esteve preparado, passou-lhe o primeiro dos cilindros aromáticos e começaram com a mão direita de Stephan, como era adequado. Com muitíssima gentileza e cuidado, sustentou o membro frio e cinza no ar, enquanto Havers envolvia a carne apertadamente, voltando a pôr a tira de linho sobre si mesmo. Quando chegaram até o ombro, moveram-se para a perna direita, depois foi a mão esquerda, o braço esquerdo e logo a perna esquerda.
Quando tiraram o tecido de seus quadris, Ehlena se deu volta, como era requerido por ser fêmea. Se tivesse sido um corpo feminino, não o teria que fazer, embora um assistente masculino o teria feito por respeito. Depois que os quadris foram envoltos, enfaixaram o tronco até o peito e cobriram os ombros.
Com cada passada do linho, o aroma a ervas golpeava de novo o nariz até que sentiu como se não pudesse respirar.
Ou talvez não fosse o aroma que havia no ar, mas sim os pensamentos que havia em sua mente. Ele teria sido seu futuro? Teria conhecido seu corpo? Poderia ter sido seu hellren e o pai de seus filhos?
Perguntas que nunca seriam respondidas.
Ehlena franziu o cenho. Não, em realidade, todas tinham sido.
Cada uma delas com um não.
Enquanto passava outro cilindro ao médico da raça, perguntou-se se Stephan tinha vivido uma vida plena e satisfatória.
Não, pensou. Tinha sido extorquido. Totalmente extorquido.
Enganado.
O rosto era o último em ser coberto e sustentou a cabeça de Stephan enquanto o doutor enrolava e enrolava o linho lentamente. Ehlena respirava com dificuldade e só quando Havers cobriu os olhos, uma lágrima deixou os próprios e aterrissou na mortalha branca.
Havers pôs a mão brevemente em seu ombro e logo terminou o trabalho.
O sal que havia nas fibras do linho funcionava como um selador para que nenhum fluído filtrasse através da malha, e o mineral também preservava o corpo para o sepulcro. As ervas serviam para a função óbvia no curto prazo de mascarar qualquer aroma, mas também eram emblemas dos frutos da terra, os ciclos de crescimento e morte.
Com uma maldição, voltou para o armário e retirou um sudário negro, com o qual Havers e ela envolveram Stephan. O exterior negro simbolizava a carne mortal corruptível, o interior branco, a pureza e incandescência da alma dentro de seu lar eterno no Fade.
Ehlena tinha escutado uma vez que os rituais serviam a importantes propósitos além de seu aspecto prático. Supunha-se que ajudavam a cura psicológica, mas estando junto ao corpo morto de Stephan sentia que isso era pura merda. Era uma aceitação falsa, uma patética tentativa para conter as exigências de um destino cruel com um tecido de aroma doce.
Não era nada mais que uma capa sobre um sofá manchado de sangue.
Detiveram-se junto à cabeça de Stephan para lhe oferecer um momento de silêncio e logo empurraram a maca deslocando-a do fundo do necrotério para o sistema de túneis que corriam subterraneamente até as garagens. Ali, puseram o Stephan em uma das quatro ambulâncias que estavam feitas para parecer exatamente com as que os humanos usavam.
— Levarei a ambos a casa dos pais. — disse ela.
— Necessita que a acompanhem?
— Parece-me que para o Alix será melhor não ter audiência.
— Embora tomará cuidado, verdade? Não só com eles, mas também com sua própria segurança?
— Sim.
Cada uma das ambulâncias tinha uma pistola debaixo do assento do condutor, e assim que Ehlena começou a trabalhar na clínica, Catya lhe ensinou a disparar: não cabia dúvida, de que podia dirigir algo que ficasse em seu caminho.
Quando Havers e ela fecharam as portas duplas da ambulância, Ehlena olhou para a entrada do túnel.
— Parece que vou voltar para a clínica pelo estacionamento. Preciso de ar.
Havers assentiu.
— E eu farei o mesmo. Dou-me conta que também necessito ar.
Juntos saíram à noite fria e clara.
Como a boa puta que Rehv era fez tudo o que lhe pediram. O fato de que fosse rude e cruel era uma concessão a seu livre-arbítrio... E novamente, parte da razão pela qual a princesa gostava do assunto que tinham.
Quando tudo terminou e ambos estiveram esgotados — ela por ter tantos orgasmos, ele porque o veneno de escorpião tinha penetrado profundamente em sua corrente sanguínea — esses malditos rubis seguiam onde os tinha jogado. No chão.
A princesa estava escancarada contra o batente da janela, ofegando dificultosamente, com seus dedos de três nódulos estendidos, provavelmente porque sabia que o enojavam como a merda. Ele estava do outro lado da cabana, tão longe dela como podia, de pé, cambaleando.
Enquanto tentava respirar, odiou que o ar da cabana cheirasse a sexo sujo. Do mesmo modo, tinha o aroma dela por todo seu corpo, cobrindo-o, sufocando-o tanto, que apesar de ter sangue symphath em suas veias, sentia vontade de vomitar. Ou possivelmente isso era devido ao veneno. Quem merda podia saber?
Ela levantou uma de suas mãos ossudas e apontou para a bolsa de veludo.
— Le-van-ta-os.
Os olhos de Rehv se travaram com os dela, e sacudiu a cabeça de um lado a outro lentamente.
— Será melhor que volte para nosso tio. — disse com tom áspero — Estou disposto a apostar que se te ausentar por muito tempo ele desconfiará.
Com isso, a tinha. O irmão do pai de ambos era um sociopata, calculista e desconfiado. Igual a eles.
Tudo ficava em família, como estavam acostumados a dizer.
A túnica da princesa se levantou do chão e flutuou para sua proprietária, e enquanto pendurava no ar a seu lado, retirou do bolso interior uma bandagem longa e vermelha. Deslizando-a entre suas pernas, envolveu o sexo, mantendo dentro o que ele tinha deixado. Depois se vestiu, e cobriu a metade da túnica que ele tinha esmigalhado, formando uma dobra sob a capa superior. O cinturão de ouro, ou ao menos ele assumia que era de ouro, dada a forma em que refletia a luz, foi o seguinte.
— Envie lembranças a meu tio. — disse Rehv arrastando as palavras — Ou... Não.
— Le... Van... Ta... Os.
— Ou se inclina para recolher essa bolsa, ou vai sem ela.
Os olhos da princesa cintilaram com o tipo de rancor que fazia tão divertido discutir com assassinos, e permaneceram olhando um ao outro durante compridos e hostis minutos.
A princesa se quebrou. Exatamente como ele havia dito que o faria.
Para sua eterna satisfação, foi ela quem os recolheu, sua capitulação quase o fez gozar de novo, sua lingüeta ameaçou enganchar-se apesar de que não havia nada contra o que travar-se.
— Poderia ser rei. — disse ela estendendo a mão, e fazendo com que a bolsa de veludo com os rubis se elevasse do chão — Mata-o e poderá ser rei.
— Se mato a você, poderia ser feliz.
— Nunca será feliz. É de uma raça separada, vivendo uma mentira entre inferiores. —sorriu e uma alegria verdadeira se refletiu em seu rosto — Exceto aqui comigo. Aqui, pode ser honesto. Até o próximo mês, meu amor.
Atirou-lhe um beijo com suas horríveis mãos e se desmaterializou, dissipando-se da forma em que tinha feito o fôlego dele fora da cabana, devorado pelo fino ar da noite.
Os joelhos de Rehv cederam e se derrubou no chão, aterrissando em uma pilha de ossos. Jazendo sobre as pranchas rústicas, era consciente de tudo: os músculos de suas coxas com cãibras, o comichão na ponta de seu pênis quando o prepúcio voltou para seu lugar, o tragar compulsivo causado pelo veneno de escorpião.
Enquanto a frieza da cabana se filtrava para fora, náuseas o percorreram como uma maré fétida e oleosa e seu estômago se fechou como um punho, formando um montão de “vamos daqui” que apertava sua garganta. As ânsias de vômito instintivas seguiram as ordens e abriu muito a boca, mas não saiu nada.
Sabia bem que não devia comer antes de ter um encontro.
Trez atravessou a porta tão silenciosamente que não foi até que as botas do cara estiveram frente a seu rosto que Rehv notou que seu melhor amigo estava com ele.
A voz do segurança foi amável:
— Vamos te tirar daqui.
Rehv esperou uma interrupção nas ânsias de vomito, para tratar de levantar do chão.
— Deixa... Que me vista.
O veneno de escorpião disparou a toda velocidade através de seu sistema nervoso central, interferindo com sua auto-estrada neuronal e conseqüentemente, fazendo com que arrastar seu corpo até onde estavam suas roupas envolvesse um desdobramento vergonhoso de debilidade. O problema era que o antídoto devia permanecer no carro, do contrário a princesa o teria encontrado, e mostrar uma debilidade tão substancial como essa era como entregar sua arma carregada a seu inimigo.
Evidentemente Trez perdeu a paciência com o show, porque se aproximou e recolheu o casaco.
— Só ponha isto assim poderemos te tratar.
— Vestirei-me. — era o orgulho da puta.
Trez amaldiçoou e se ajoelhou com o casaco.
— Porra, Rehv...
— Não… — um ofego selvagem o interrompeu e fez com que caísse sobre o chão, oferecendo uma rápida aproximação dos nós das pranchas de pinheiro.
Caralho, estava mau esta noite. Pior do que alguma vez tinha estado.
— Rehv, sinto muito, mas vou tomar o controle.
Trez ignorou os intentos patéticos de Rehv por rechaçar sua ajuda, e depois de envolvê-lo com a zibelina, seu amigo o levantou e o carregou para fora como uma peça quebrada de equipe.
— Não pode continuar fazendo isto. — disse Trez enquanto suas pernas longas os levavam rapidamente para o Bentley.
— Observe.
Para manter a ele e a Xhex vivos e no mundo livre, tinha que fazê-lo.
Capítulo 19
Rehv despertou no seu dormitório de seu grande rancho nas Adirondacks que utilizava como refúgio. Podia dizer onde estava pelas janelas que iam do chão ao teto, o alegre fogo que tinha em frente, e o fato de que o pé da cama tinha putti esculpidos em mogno. O que não estava claro era quantas horas tinham passado desde seu encontro com a princesa. Uma? Cem?
Do outro lado do tênue cômodo, Trez estava sentado em um sofá cor vermelho escuro, lendo à débil luz amarela de uma luminária de mesa.
Rehv pigarreou.
— Que livro é?
O segurança elevou o olhar, os olhos amendoados enfocando-se com uma acuidade da qual Rehv poderia ter prescindido.
— Está acordado.
— Que livro?
— É “O dicionário da morte das Sombras”.
— Leitura ligeira. E eu aqui pensando que fosse fã de Candace Bushnell.
— Como se sente?
— Bem. Genial. Animado como a merda. — Rehv grunhiu enquanto se impulsionava mais alto sobre os travesseiros. Apesar do casaco de zibelina, que tinha em volta do corpo nu, e das colchas, mantas e edredons de plumas que tinha em cima, seguia tão frio como o rabo de um pingüim, assim obviamente Trez lhe tinha injetado muita dopamina. Mas pelo menos a antitoxina tinha funcionado, os fôlegos e a falta de fôlego tinham desaparecido.
Trez fechou lentamente a capa do livro antigo.
— Estou me preparando, isso é tudo.
— Para entrar em sacerdócio? Pensava que toda a coisa do rei era sua especialidade.
O segurança pôs o livro na mesa baixa que tinha ao lado e se elevou em toda sua estatura. Depois de esticar todo o corpo, aproximou-se da cama.
— Quer alimento?
— Sim. Estaria bem.
— Dê-me quinze minutos.
Quando a porta se fechou atrás do macho, Rehv procurou ao seu redor e encontrou o bolso interior da zibelina. Quando tirou o telefone e o comprovou, não havia mensagens. Nenhuma mensagem de texto.
Ehlena não se aproximou, nem se pôs em contato com ele. Mas então, por que teria que fazê-lo?
Olhou fixamente o telefone e riscou o teclado com o polegar. Ansiava muitíssimo ouvir sua voz, como se escutá-la pudesse apagar tudo o que tinha acontecido nessa cabana.
Como se ela pudesse fazer desaparecer as duas décadas e meia passadas.
Rehv entrou em seus contatos e fez aparecer seu número na tela. Era provável que estivesse no trabalho, mas, se deixava uma mensagem, possivelmente o ligaria no descanso. Duvidou, mas logo pressionou enviar e pôs o telefone em sua orelha.
No instante em que ouviu o sinal de chamada, teve uma imagem vívida e vil dele tendo relações sexuais com a princesa, de seus quadris amassando, da luz da lua lançando sombras obscenas sobre o chão rústico.
Terminou a chamada com um murro rápido, sentindo como se seu corpo estivesse revestido de merda feita loção.
Deus, não havia suficientes banhos no mundo para limpá-lo o bastante para ser digno de falar com Ehlena. Nem bastante sabão, nem água sanitária, nem bucha. Enquanto a imaginava com seu antigo uniforme de enfermeira, o cabelo loiro avermelhado recolhido para trás em um pulcro coque, e seus silenciosos sapatos brancos, soube que se alguma vez a tocasse a mancharia pela vida toda.
Com o polegar intumescido, acariciou a tela plana do telefone, como se fosse sua bochecha, logo deixou que a mão caísse na cama. A vista das brilhantes veias vermelhas do braço recordou um par de coisas mais que tinha feito com a princesa.
Nunca tinha pensado que seu corpo fosse um dom especial. Era grande e musculoso, por isso era útil, e ao outro sexo gostava o que significava que era uma espécie de vantagem. E funcionava bem… Bom, exceto pelos efeitos secundários que lhe ocasionava a dopamina e a alergia ao veneno de escorpião.
Mas, realmente a quem importava?
Convexo na cama na quase escuridão, com o telefone na mão, viu mais cenas horrorosas de seu tempo com a princesa… Ela lhe mamando, ele agachando-se e fodendo-a por detrás, sua boca entre as coxas dela. Recordou o que sentia quando a lingüeta de seu pênis se travava e ambos ficavam enganchados.
Então pensou em Ehlena medindo sua pressão… E em como tinha dado um passo atrás, afastando-se dele.
Tinha razão ao ter feito isso.
Era um equívoco ligar para ela.
Com deliberado cuidado, moveu o polegar pelos botões e entrou em sua informação de contato. Não se deteve nem uma vez enquanto a apagava do telefone, e quando desapareceu, um calor inesperado lhe encheu o peito… Indicando que de acordo com lado de sua mãe, fazia o correto.
A próxima vez que fosse à clínica, pediria outra enfermeira. E, se voltasse a ver Ehlena, a deixaria em paz.
Trez entrou com uma bandeja de flocos de aveia, um pouco de chá e algumas torradas.
— Hmmm. — disse Rehv sem entusiasmo.
— Seja um menino bom e termine isso. Na próxima refeição trarei ovos com toucinho.
Quando a bandeja esteve assentada sobre suas pernas, Rehv atirou o telefone sobre a pele e levantou a colher. Bruscamente, e por nenhuma absoluta e positiva razão em especial, disse:
— Esteve apaixonado alguma vez, Trez?
— Não. — o segurança retornou a sua cadeira no rincão, o abajur curvo iluminou seu rosto bonito e escuro — Vi iAm tentar e decidi que não era para mim.
— iAm? Não me foda. Não sabia que seu irmão tinha tido uma garota.
— Não fala dela, e nunca a conheci. Mas durante um tempo se sentiu miserável do modo em que só uma fêmea pode pôr a um tipo.
Rehv fez girar o açúcar mascavo que estava polvilhado sobre a aveia.
— Acredita que alguma vez te emparelhará?
— Não. — Trez sorriu, e seus perfeitos dentes brancos cintilaram — Por que as perguntas?
Rehv levou a colher à boca e comeu.
— Por nenhuma razão.
— Sim. Certo.
— Estes flocos de aveia são fantásticos.
— Você odeia os flocos de aveia.
Rehv riu um pouco e seguiu comendo para sossegar-se, pensando que o tema do amor não era de sua incumbência. Mas o trabalho, seguro como o inferno que sim o era.
— Aconteceu algo nos clubes? — perguntou.
— Tudo vai como a seda.
— Bem.
Rehv despachou lentamente a Quaker Oats, perguntando-se por que, se tudo ia perfeito e de primeira em Caldwell, tinha uma sensação de desgosto no intestino.
Provavelmente, pensou, era a aveia.
— Disse a Xhex que estou bem, verdade?
— Sim. — disse Trez, levantando o livro que tinha estado lendo — Menti.
Xhex estava sentada atrás de seu escritório e olhava fixamente a seus dois melhores seguranças, Big Rob e Silent Tom. Eram humanos, mas eram preparados e com seus jeans baixos, emitiam a enganosa sensação de tranqüilidade que ela procurava.
— O que podemos fazer por você, chefe? —perguntou Big Rob.
Inclinando-se para frente em sua cadeira, tirou dois montões de notas do bolso traseiro de suas calças de couro. Mostrava-os deliberadamente, dividindo-os em duas pilhas e deslizando-os para os homens.
— Preciso que façam um trabalho extra-oficial.
Seus assentimentos foram tão rápidos como suas mãos sobre essas notas.
— O que você quiser. — disse Big Rob.
— Durante o verão, tivemos um barman que despedimos por roubar. O tipo se chamava Grady. Recordam…
— Vi essa merda a respeito de Chrissy no periódico.
— Fodido bastardo. — Silent Tom interveio pela primeira vez.
Xhex não se surpreendeu que soubessem toda a história.
— Quero que encontrem Grady. — quando Big Rob começou a fazer soar seus nódulos, ela sacudiu a cabeça — Não. O único que quero que façam é que me consigam um endereço. Se os vir, cumprimentem de longe e se afastem. Está claro? Não façam mais que lhe roçar a manga.
Ambos sorriram cruelmente.
— Nenhum problema, chefe. — murmurou Big Rob — O guardaremos para você.
— O DPC o busca também.
— Sem dúvida que sim.
— Não queremos que a polícia saiba o que estão fazendo.
— Nenhum problema.
— Ocuparei-me de cobrir seus turnos. Quanto mais rápido o encontrarem, mais feliz estarei.
Big Rob olhou ao Silent Tom. Após um momento, tiraram as notas que lhes tinha dado dos bolsos e as deslizaram pela mesa.
— Faremos o correto pela Chrissy, chefe. Não se preocupe.
— Com vocês nisto, não o farei.
A porta se fechou atrás deles, e Xhex passou as palmas acima e abaixo pelas coxas, forçando aos cilícios que tinha nas pernas a entrar mais profundamente em sua pele. Estava ardendo pela necessidade de sair ela mesma, mas com Rehv no norte e os entendimentos que fariam esta noite, não podia deixar o clube. E o que era igualmente importante, quanto ao Grady não ia poder fazer os preparativos ela mesma. Esse detetive da homicídios a estava vigiando.
Transladando os olhos ao telefone, quis amaldiçoar. Trez a tinha ligado mais cedo para dizer que Rehv tinha terminado o negócio com a princesa, e o som da voz do segurança tinha indicado o que suas palavras não diziam: o corpo de Rehv não ia agüentar muita tortura mais.
Outra situação mais que se via forçada a agüentar, sentada sobre seu rabo, esperando.
A impotência não era um estado com o qual se sentisse cômoda, mas quando se tratava da princesa, estava acostumada a sentir-se impotente. Fazia vinte anos, quando as escolhas de Xhex os tinham posto nesta situação, Rehv lhe havia dito que se ocuparia das coisas com uma condição: deixaria dirigi-lo a sua maneira sem intervir. Tinha feito jurar que permaneceria afastada, e embora a matasse, tinha cumprido a promessa e vivia com a realidade de que Rehv se viu forçado a cair nas mãos dessa puta por causa dela.
Maldita fora desejava que perdesse a paciência e arremetesse contra ela. Só uma vez. Em troca, seguia agüentando, pagando com seu corpo a dívida que ela tinha gerado.
Ela o tinha convertido em uma puta.
Xhex deixou o escritório porque não podia suportar passar mais tempo consigo mesma, e quando esteve no clube rezou para que houvesse uma escaramuça na parte do povo, como um triângulo amoroso explodindo, onde algum tipo esbofeteasse a outro por uma garota com lábios de peixe e tetas de plástico. Ou possivelmente um encontro no banheiro de homens da sobreloja se fosse ao traste. Merda! Estava tão desesperada que inclusive agarraria a um bêbado de saco cheio com seu patrão ou algum casal em um rincão escuro que tivessem levado o manuseio cruzando a linha até a penetração.
Precisava golpear algo e sua melhor oportunidade era com as massas. Se só houvesse…
Era sua sorte. Todos estavam se comportando.
Miseráveis estúpidos.
Finalmente, terminou indo à seção VIP porque estava deixando os seguranças da pista dementes ao ficar rodando por ali em busca de briga. E, além disso, tinha que usar os músculos em um trato de maior importância.
Ao atravessar a corda de veludo, seus olhos foram diretos à mesa da Irmandade. John Matthew e seus companheiros não estavam ali, mas bom, sendo tão cedo, estariam fora caçando lessers. Os engolidores de Corona viriam mais tarde, se é que o fariam.
Não lhe importava se John viria.
Nada absolutamente.
Aproximando-se de iAm, disse:
— Preparados?
O segurança assentiu.
— Rally tem o produto preparado. Os compradores devem estar aqui em vinte minutos.
— Bem.
Essa noite levariam a cabo dois entendimentos de seis cifras por coca, e com o Rehv fora de combate e Trez acompanhando-o no norte, ela e iAm estavam no comando das transações. Embora o dinheiro fosse trocar de mãos no escritório, o produto ia ser carregado nos carros, no beco traseiro, porque quatro quilogramas de pó sul-americano puro não era o tipo de coisas que ela quisesse que estivesse dando voltas pelo clube. Merda, o fato de que os compradores fossem chegar com maletas contendo dinheiro em efetivo era bastante problemático.
Xhex estava na porta do escritório quando vislumbrou a Marie-Terese insinuando-se a um homem com terno. O homem a olhava com admiração e maravilha, como se fosse o equivalente feminino de um carro esportivo que alguém acabava de lhe dar as chaves.
A luz cintilou na aliança de casamento que levava quando estendeu a mão para a carteira.
Marie-Terese sacudiu a cabeça e levantou sua elegante mão para detê-lo, logo pôs ao absorto homem de pé e precedeu o caminho por volta dos banheiros particulares da parte de trás, onde o dinheiro trocaria de mão.
Xhex girou e se encontrou frente à mesa da Irmandade.
Enquanto olhava o lugar onde John Matthew estava acostumado a sentar-se habitualmente, pensou no John[40] mais recente de Marie-Terese. Xhex estava disposta a apostar que o HDP que estava a ponto de soltar quinhentos dólares para ser mamado ou fodido ou possivelmente mil por ambos, não olhava a sua mulher com esse tipo de excitação e luxúria. Era a fantasia. Ele não sabia nada a respeito de Marie-Terese, não tinha nem idéia de que fazia dois anos seu filho tinha sido seqüestrado por seu ex-marido e que ela estava trabalhando para pagar o custo da volta do menino. Para ele, ela era um magnífico pedaço de carne, algo com o que brincar e ser deixado atrás. Prolixo. Limpo.
Todos os John eram assim.
E também o era o John de Xhex. Ela era uma fantasia para ele. Nada mais. Uma mentira erótica que evocava para fazer uma punheta… O que realmente não era algo do que o culpasse, porque ela estava fazendo o mesmo com ele. E a ironia era que ele era um dos melhores amantes que jamais tinha tido, embora isso fosse porque podia fazer algo que quisesse durante tanto tempo como necessitasse para se saciar, e nunca havia queixa, reservas nem pedidos.
Prolixo. Limpo. A voz de iAm saiu do auricular.
— Os compradores acabam de entrar.
— Perfeito. Vamos fazê-lo.
Terminaria com os dois entendimentos, e logo tinha seu próprio trabalho particular que fazer. Agora, isso era algo que valia a pena ansiar. Ao final da noite, ia conseguir exatamente a classe de liberação que necessitava.
Do outro lado da cidade, em um tranqüilo beco sem saída em uma vizinhança segura, Ehlena estava estacionada diante de uma modesta casa colonial, sem intenção de ir a nenhum lugar em um futuro próximo.
A chave não entrava no painel de acesso da ambulância.
Tendo terminado com o que deveria ter sido a parte mais difícil da viagem, tendo entregado Stephan a salvo aos braços de seus familiares de sangue, acabava surpreendente que colocar a maldita chave no condenado contato fosse mais difícil.
— Vamos… — Ehlena se concentrou em estabilizar sua mão. E acabou olhando realmente muito de perto a forma em que o pedaço de metal saltava ao redor do buraco ao que pertencia.
Recostou-se no assento com uma maldição, sabendo que estava aumentando a desdita da casa, que a ambulância estacionada ali fora era simplesmente outra declaração expressa a gritos da tragédia.
Como se o corpo do amado filho da família não fosse suficiente.
Girou a cabeça e olhou fixamente as janelas coloniais. Havia sombras deslocando-se do outro lado das cortinas de gaze.
Depois de entrar de ré pelo caminho de entrada, Alix tinha ingressado na casa e ela tinha esperado na noite fria. Um momento depois, a porta da garagem tinha rodado para cima e Alix tinha saído com um macho mais velho que se parecia muito a Stephan. Ela tinha feito uma reverência e tinha lhe estreitado a mão, e logo tinha aberto a porta traseira da ambulância. O macho teve que por uma mão sobre a boca enquanto ela e Alix tiravam a maca.
— Meu filho… — tinha gemido.
Nunca esqueceria o som dessa voz. Oco. Sem esperança. Com o coração quebrado.
O pai de Stephan e Alix o levaram para a casa, e assim como no necrotério, um momento depois se escutou um pranto. Esta vez, entretanto, tinha sido o lamento mais agudo de uma fêmea. A mãe de Stephan.
Alix tinha retornado no momento em que Ehlena estava empurrando a maca para o interior da ambulância, e estava piscando rapidamente, como se estivesse enfrentando um forte vento. Depois de apresentar seus respeitos e despedir-se, subiu atrás do volante e… Não tinha podido arrancar o maldito veículo.
Do outro lado das cortinas de gaze, viu duas silhuetas fundirem-se em um abraço. E logo foram três. E logo vieram mais.
Sem nenhuma razão aparente, pensou nas janelas da casa que alugava para ela e seu pai, todas cobertas com papel alumínio, seladas para deixar o mundo de fora.
Quem estaria junto a seu corpo envolto quando sua vida acabasse? Seu pai sabia quem era ela a maior parte do tempo, mas raramente estava conectado a ela. O pessoal da clínica era muito amável, mas isso era trabalho, não pessoal. Pagava a Lusie para vir.
Quem cuidaria de seu pai?
Sempre tinha assumido que ele se iria primeiro, mas então, sem dúvida a família de Stephan tinha pensado o mesmo.
Ehlena afastou o olhar dos enfermos e fixou no pára-brisa dianteiro da ambulância.
A vida era muito curta, por muito que vivesse. Não acreditava que alguém estivesse preparado, quando chegava seu turno, para deixar amigos, familiares e as coisas que os faziam felizes, ainda que tivessem quinhentos anos, como seu pai, ou cinqüenta, como Stephan.
O tempo era uma fonte interminável de dias e noites como a galáxia era grande.
Fez com que se perguntasse: Que demônios estava fazendo com o tempo que tinha? Seu trabalho lhe dava um propósito, certo, e cuidava de seu pai, o que era o que se fazia pela família. Mas aonde ia? A lugar nenhum. E não se referia a estar sentada nesta ambulância com as mãos tão trementes que não podia colocar uma chave na ignição.
O assunto era que, não é que queria mudar tudo. Só queria algo para si mesma, algo que a fizesse saber que estava viva.
Os profundos olhos cor ametista de Rehvenge lhe vieram à mente como saídos de nenhuma parte, e como uma câmera que vai se afastando, viu seu rosto esculpido, seu penteado moicano, sua roupa fina e sua bengala.
Esta vez, quando se esticou para frente com a chave, a coisa entrou firmemente e o motor diesel despertou com um grunhido. Quando a calefação soltou uma rajada de ar frio, desligou o ventilador, colocou a alavanca em “avanço” e saiu da casa, do beco sem saída e da vizinhança.
Que já não parecia tranqüilo.
Atrás do volante, ia conduzindo e ao mesmo tempo estava ausente, cativada pela imagem de um macho que não podia ter, mas que nesse momento precisava com loucura.
Seus sentimentos eram inconvenientes por muitos motivos. Pelo amor de Deus, eram uma traição a Stephan, apesar de que, na realidade, não o tinha conhecido. Simplesmente parecia uma falta de respeito estar desejando a outro macho enquanto seu corpo era chorado por seu sangue.
Salvo que teria desejado ao Rehvenge de todos os modos.
— Maldito seja.
A clínica estava do outro lado do rio, e a alegrava, porque nesse momento não poderia encarar o trabalho. Estava muito doída, triste e zangada consigo mesma.
O que precisava era…
Starbucks. Oh, sim, isso era exatamente o que necessitava.
A uns oito quilômetros dali, em um lugar ao redor do qual havia um supermercado Hannaford, uma floricultura, uma boutique do LensCrafters, e uma loja Blockbuster, encontrou um Starbucks que permanecia aberto até as duas da manhã. Levou a ambulância a um lado e saiu.
Quando deixou a clínica com o Alix e Stephan, não pensou em trazer o casaco, assim aconchegou sua bolsa, correu pela calçada e atravessou a porta a toda pressa. No interior, o lugar era como a maioria deles: nós de madeira vermelhos, chão de ladrilhos cinza, muitas janelas, cadeiras amaciadas e pequenas mesas. No mostrador havia muffins a venda e uma vitrine de vidro com quadradinhos de bolacha de limão, brownies e pão-doce e dois humanos próximos aos vinte dirigiam as máquinas de café. O ar cheirava a avelã, café e chocolate, e esse aroma apagou de seu nariz o persistente aroma herbal das mortalhas.
— Posso ajudá-la? — perguntou o menino mais alto.
— Um Latte comprido, com espuma, sem creme. Para levar.
O macho humano sorriu e se afastou. Tinha uma barba escura recortada e um brinco no nariz, sua camiseta estava salpicada de gráficos que soletravam as palavras COMEDOR DE TOMATE dentro de gotas do que poderia ter sido sangue, ou dado o nome da banda, ketchup.
— Gostaria de algo mais? Os pães-doces de canela são espetaculares.
— Não, obrigado.
Enquanto se encarregava de seu pedido não afastou a vista dela, e para evitar ter que tratar com sua atenção, procurou na bolsa e checou seu telefone no caso de que Lusie…
CHAMADA PERDIDA. Ver agora?
Pressionou o sim, rezando para que não se tratasse de seu pai…
Apareceu o número de Rehvenge, embora não seu nome, porque não o tinha posto no telefone. Olhou fixamente os dígitos.
Deus! Era como se lhe tivesse lido a mente.
— Seu latte! Olá?
— Sinto muito. — guardou o telefone, pegou o que o homem estendia e agradeceu.
— Dupla taça como o desejava. As asas também.
— Obrigado.
— Ouça, trabalha em um dos hospitais por aqui? — perguntou, observando seu uniforme.
— Clínica particular. Obrigada outra vez.
Saiu rapidamente e não perdeu tempo em entrar na ambulância. Quando esteve novamente atrás do volante, travou as fechaduras das portas, arrancou o motor e ligou a calefação imediatamente, porque o ar que saía ainda estava morno.
O latte estava realmente bom. Super quente. O sabor perfeito.
Tirou o telefone outra vez, foi à lista de chamadas recebidas e escolheu o número de Rehvenge.
Respirou fundo e tomou um comprido trago do latte.
E pressionou enviar.
O código de área do destino era o 518. Quem teria dito?
CONTINUA
Capítulo 10
Rehvenge fechou a porta de seu escritório e sorriu tensamente, para evitar que suas presas aparecessem. Entretanto, ainda sem a exibição dos caninos, para o recolhedor de apostas espremido entre Trez e iAm foi suficiente para saber que estava em sérios problemas.
— Reverendo o que é tudo isto? Por que me chama assim? — disse o tipo precipitadamente — Estava me ocupando de meu negócio, para o senhor e de repente estes dois...
— Ouvi algo interessante sobre você. — disse Rehv, rodeando seu escritório.
Quando estava se sentando, Xhex entrou no escritório, com uma expressão dura nos olhos cinza. Após fechar a porta, apoiou as costas contra ela, sendo melhor que qualquer Master Lock quando se tratava de manter aos recolhedores de apostas trapaceiros dentro e longe dos olhos curiosos de fora.
— É mentira, é uma absoluta mentira...
— Você não gosta de cantar? — Rehv se recostou em sua cadeira, seu corpo intumescido encontrando uma posição familiar atrás da mesa de escritório negra — Não foi você que deu um pequeno espetáculo a La Tony Bennett para a multidão do Sal's a outra noite?
O recolhedor de apostas franziu o cenho.
— Bom, sim... Tinha alguns ouvintes.
Rehv fez um gesto com a cabeça a iAm, quem como sempre, tinha o rosto inexpressivo. O cara nunca demonstrava suas emoções, exceto quando se tratava de um cappuccino perfeito. Então podia vê-lo radiante de alegria.
— Meu companheiro aqui... Diz que cantou realmente bem. Que verdadeiramente agradou à multidão. O que cantou, iAm?
A voz de iAm era como a de James Earl Jones, baixa e profunda.
— Três Moedas na Fonte.
O recolhedor de apostas subiu as calças de um puxão em um gesto orgulhoso.
— Tenho habilidade. Tenho ritmo.
— Assim é um tenor como o bom e prezado senhor Bennett, não é? — Rehv tirou o casaco com um encolhimento de ombros — Os tenores são os meus favoritos.
— Sim. — o recolhedor de apostas olhou aos seguranças — Olhe, se importaria em me dizer o que é tudo isto?
— Quero que cante para mim.
— Quer dizer, como em uma festa? Faria qualquer coisa por você, chefe, já sabe. Tudo o que tem que fazer é pedir... Quero dizer, isto não era necessário.
— Não em uma festa, embora nós quatro desfrutemos ouvindo sua atuação. É para me compensar pelo que me roubou o último mês.
O rosto do recolhedor de apostas empalideceu.
— Eu não roubei...
— Sim, fez. Olhe, iAm é um contador fantástico. A cada semana, dá seus informes. Quanto, em que equipes, e que extensão. Acredita que não confere as contas? Apoiado nos informes do último mês deveria ter pagado... Qual era a cifra, iAm?
— Cento e setenta e oito mil quatrocentos e oitenta e dois.
— Isso mesmo. — Rehv fez um rápido gesto com a cabeça em sinal de agradecimento a iAm — Mas em vez disso veio com... Quanto?
— Cento e trinta mil novecentos e oitenta e dois. — replicou rapidamente iAm.
O recolhedor começou a falar imediatamente.
— Está enganado...
Rehv sacudiu a cabeça.
— Adivinha de quanto é a diferença... Embora não é como se já não soubesse. iAm?
— Quarenta e sete mil e quinhentos.
— O que casualmente é igual à soma de vinte e cinco dos grandes mais um interesse de noventa por cento. Não é assim, iAm? — quando o segurança assentiu com a cabeça uma vez, Rehv golpeou o chão com sua bengala e ficou em pé — E resulta que esse é o interesse de cortesia aplicado pela máfia de Esquente. Então Trez se dedicou a escavar um pouco, e o que foi que averiguou?
— Meu amigo Mike diz que emprestou vinte e cinco dos grandes a este cara aqui justamente antes do Rose Bowl12.
Rehv deixou sua bengala sobre a cadeira e rodeou a mesa do escritório, mantendo uma mão sobre a superfície para estabilizar-se. Os seguranças voltaram a ficar em posição, ladeando ao recolhedor de apostas, voltando a segurá-lo pela parte superior dos braços.
Rehv se deteve justamente diante do homem.
— Assim perguntarei isso uma vez mais, acredita que ninguém comprovaria as contas?
— Reverendo! Chefe... Por favor, ia lhe devolver isso! Por favor... Machucariam-me...
— Sim, é claro que vai fazê-lo. E vai me pagar o que cobro dos bastardos que tentam brincar disso comigo. Um castigo cento e cinqüenta por cento de interesse ao final deste mês ou sua esposa vai receber por correio seus pedacinhos. Oh, e está despedido.
O homem estalou em lágrimas, e não eram do tipo das de crocodilo. Eram autênticas, da classe que fazia que o nariz de um homem avermelhasse e os olhos inchassem.
— Por favor... iAm me danificar...
Rehv estendeu a mão de repente e a fechou entre as pernas do tipo. O uivo, quase um guincho, lhe indicou que embora ele não pudesse sentir nada, o recolhedor de apostas podia, e que a pressão estava sendo exercida no ponto exato.
— Não gosto que me roubem. — disse Rehv no ouvido do homem — Eu fico de saco cheio. E, se acredita que o que a máfia te faria é mau, garanto que sou capaz de algo pior. Agora... Quero que cante para mim, filho da puta.
Rehv retorceu com força e o tipo gritou com tudo o que tinha, o som foi alto e agudo, e ecoou na sala do andar de baixo. Quando o chiado começou a desvanecer-se porque o recolhedor de apostas tinha esgotado seu fornecimento de ar, Rehv cedeu e lhe deu oportunidade de refrescar as cordas vocais com um e outro ofego. E depois disso...
O segundo grito foi mais alto e ruidoso que o primeiro, provando que os vocalistas o faziam melhor depois de um pequeno aquecimento.
O recolhedor se sacudiu e saltou entre os seguranças, e Rehv seguiu apertando, seu lado symphath observando absorto, como se fosse o melhor espetáculo da televisão.
O homem demorou ao redor de nove minutos para perder a consciência.
Depois de ter apagado, Rehv o soltou e voltou para sua cadeira. Fez um gesto com a cabeça em direção a Trez e iAm e estes tiraram o humano pela porta de trás, para o beco, onde o frio o reviveria finalmente.
Quando partiram, Rehv teve uma súbita imagem de Ehlena balançando todas aquelas caixas de dopamina em seus braços enquanto entrava na sala de exame. O que pensaria dele se soubesse o que fazia para manter seu negócio em movimento? O que diria se soubesse que, quando disse ao recolhedor de apostas que ou pagava ou sua esposa receberia pacotes de FedEx que gotejariam sangue sobre os degraus de sua entrada, não tinha sido apenas uma ameaça? O que faria se soubesse que estava completamente preparado para cortá-lo ele mesmo em pedacinhos ou ordenar a Xhex, Trez ou iAm que o fizessem por ele?
Bom, já tinha a resposta, não?
Sua voz, essa clara e encantadora voz, voltou a ressonar em sua mente: Será melhor que guarde isto. Para alguém que vá utilizar alguma vez.
Certamente, ela não conhecia os detalhes, mas era esperta o bastante para rechaçar seu cartão de visita.
Rehv se concentrou em Xhex, que não se moveu de sua posição contra a porta de entrada. Quando o silêncio se prolongou, ela baixou o olhar ao tapete negro de pelo curto, desenhando um círculo ao redor de si mesma com o salto de sua bota.
— O que foi? — perguntou. Quando ela não levantou o olhar, pressentiu sua luta para recompor-se — Que merda aconteceu?
Trez e iAm voltaram a entrar no escritório e se colocaram contra a parede negra que estava frente à mesa de escritório de Rehv. Cruzaram os braços diante de seus enormes peitos e mantiveram a boca fechada.
O silêncio era algo característico nas Sombras... Mas combinado com a expressão tensa de Xhex e a rotina semicircular que estava realizando com essa bota, queria dizer que a merda era profunda.
— Fale. Já!
Os olhos de Xhex voaram aos seus.
— Chrissy Andrews está morta.
— Como? — embora soubesse.
— Golpeada e estrangulada até morrer em seu apartamento. Tive que ir ao necrotério para identificar o corpo.
— Filho da puta!
— Ocuparei-me do assunto. — Xhex não estava pedindo permissão, e sem importar o que ele dissesse, ia atrás desse pedaço de merda do namorado — E o farei rápido.
Tecnicamente falando, Rehv estava no comando, mas, neste assunto não ia se interpor em seu caminho. Para ele, suas garotas não eram somente uma fonte de ganhos... Eram empregadas pelas quais se preocupava e com as quais se identificava intimamente. Assim, se alguém machucava a alguma, fosse um cliente, um namorado ou um marido, tomava um interesse pessoal na vingança.
As putas mereciam respeito, e as suas o conseguiam.
— Ensina-o uma lição primeiro. — grunhiu Rehv.
— Não se preocupe com isso.
— Merda... É minha culpa. — murmurou Rehv enquanto estendia o braço para frente e recolhia seu abridor de cartas. A coisa tinha forma de adaga e também estava tão afiada como uma arma — Deveríamos tê-lo matado antes.
— Ela parecia estar melhor.
— Talvez somente escondesse melhor.
Os quatro ficaram em silêncio um momento. Em sua profissão sofriam um montão de perdas — que as pessoas acabassem mortas não era nenhuma novidade — mas na maioria dessas mortes, ele e sua equipe eram os sinais negativos da equação: eles eram os que faziam com que os outros desaparecessem. Perder a um dos seus nas mãos de algum outro ficava mal.
— Quer ouvir as novidades desta noite? — perguntou Xhex.
— Ainda não. Também trago uma pequena notícia para compartilhar. — forçando sua cabeça a trabalhar, olhou Trez e iAm — O que estou a ponto de dizer revolverá bastante as coisas, e quero dar a ambos a oportunidade de partir. Xhex, você não tem essa opção. Sinto muito.
Trez e iAm permaneceram imóveis, o que não o surpreendeu absolutamente. Trez ainda lhe mostrou o dedo maior. Isso tampouco foi uma surpresa.
— Fui à Connecticut. — disse Rehv.
— Também foi à clínica. — acrescentou Xhex — Por quê?
O GPS era um saco algumas vezes. Era difícil ter um pouco de privacidade.
— Esquece a porra da clínica. Escutem, preciso que façam um trabalho para mim.
— Um trabalho como...?
— Pensa no namorado de Chrissy como em um aperitivo antes do jantar.
Isto arrancou um sorriso frio de Xhex.
— Conte.
Rehv olhou fixamente a ponta de seu abridor de cartas, pensando em que ele e Wrath riram porque ambos tinham um. Depois das incursões do verão, o rei tinha lhe feito uma visita, para discutir assuntos do conselho, e tinha visto a coisa sobre o escritório. Wrath tinha brincado a respeito de que em seu trabalho diário ambos administravam por meio da espada, ainda quando tinham uma pluma entre as mãos.
Não se afastava muito da verdade. Embora Wrath tivesse a moralidade de seu lado e Rehv só o interesse próprio.
De maneira que não tinha empregado um ponto de vista moral ao tomar a decisão e escolher o caminho a seguir. Tinha-o feito, como sempre, apoiado no que mais lhe convinha.
— Não vai ser fácil. — murmurou.
— O divertido nunca é.
Rehv se concentrou na ponta afiada do abridor de cartas.
— Este... Não é por diversão.
Ao se aproximar o fim da noite e com seu turno a ponto de terminar, Ehlena se sentia inquieta. Hora do encontro. Hora de decidir. Supunha-se que em vinte minutos o macho viria à clínica para recolhê-la.
Deus! Divagava novamente.
Seu nome era Stephan. Stephan, filho de Tehm, embora não conhecia nem a ele nem a sua família. Era um civil, não um aristocrata, e tinha ido ali com seu primo, que machucara a mão quando cortava lenha para o fogo. Enquanto preenchia a papelada de alta, falara com Stephan de todas essas coisas das que falam os solteiros: gostava de Radiohead, ela também. Gostava de comida da Indonésia, ele também. Ele trabalhava no mundo humano, programando computadores, graças à comunicação virtual. Ela era enfermeira, algo óbvio não? Ele vivia em casa com seus pais, era o único filho de uma sólida família civil... Ou ao menos tinha divulgado como sendo sólidos civis, seu pai trabalhava para empreiteiros vampiros, sua mãe ensinava a Antiga Língua por conta própria.
Agradável, normal. Confiável.
Levando em consideração o que os aristocratas tinham feito à saúde mental de seu pai, lhe ocorreu que tudo isso parecia uma boa aposta, e, quando Stephan a tinha convidado para tomar um café, havia dito que sim, tinham combinado para essa noite, e tinham trocado os números de celulares.
Mas, o que ia fazer? Chamá-lo e dizer que não podia por causa de sua situação familiar? Ir de todos os modos, e preocupar-se com seu pai?
Entretanto, um rápido telefonema para Lusie do vestuário, trouxe notícias favoráveis: seu pai Ehlena teve uma longa sesta e agora estava trabalhando tranqüilamente nos papéis de seu escritório.
Meia hora de jantar. Talvez dividir uma sobremesa. Que mal podia fazer?
Quando ao fim decidiu ir, não apreciou a imagem que relampejou em sua mente. Agora que acabava de decidir que iria a um encontro com um macho, não deveria estar pensando no peito nu de Rehv com essas estrelas vermelhas tatuadas.
O que precisava era se concentrar em tirar o uniforme e em melhorar sua aparência, ao menos nominalmente.
Entre o pessoal do dia que entrava e os que trabalharam durante a noite que saiam, trocou o uniforme pela saia e o suéter que trouxera...
Tinha esquecido os sapatos.
Genial. Os sapatos brancos com sola de borracha não eram muito sexy.
— O que acontece? — disse Catya.
Girou-se.
— Alguma possibilidade de que estes dois botes brancos em meus pés não arruínem totalmente esta roupa.
— Hã... Honestamente? Não estão tão mal.
— Não mente nada bem.
— Ao menos tentei.
Ehlena guardou o uniforme em sua mochila, refez o penteado, e comprovou a situação da maquiagem. É obvio, tinha esquecido o delineador de olhos e também o rímel, assim, como quem diz, a cavalaria ficou sem cavalos nesse flanco.
— Alegro-me de que saia. — disse Catya enquanto apagava a lista de nomes do horário noturno da lousa branca.
— Considerando que é minha chefe, isso me põe nervosa. Bem preferiria que se alegrasse por ver-me entrar na clínica.
— Não, não se trata do trabalho. Alegro-me que esta noite saia para se divertir.
Ehlena franziu o cenho e olhou ao seu redor. Por algum milagre, estavam sozinhas.
— Quem diz que vou a alguma parte que não seja para casa?
— Uma fêmea que vai para casa não troca o uniforme aqui. E não se preocupa de como estão os sapatos com a saia. Economizarei o “quem é ele”.
— É um alívio.
— A menos que queira compartilhá-lo voluntariamente?
Ehlena riu em voz alta.
— Não, prefiro mantê-lo em privado. Mas, se chegar a alguma parte... Desembucharei.
— Obrigarei que cumpra sua palavra. — Catya foi a seu armário e simplesmente ficou olhando.
— Está bem? — disse Ehlena.
— Odeio esta maldita guerra. Odeio receber os mortos e ver em seus rostos o quanto sofreram. — Catya abriu o armário e se ocupou em tirar sua parka — Sinto, não queria ser desmancha-prazeres.
Ehlena se aproximou e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Sei exatamente como se sente.
Houve um momento de entendimento entre elas durante o qual sustentaram seus olhares. E, logo Catya aclarou a garganta.
— Bem, vá. Seu macho te espera.
— Virá me recolher aqui.
— Ooooh, talvez fique por aqui e fume um cigarro lá fora.
— Você não fuma.
— Demônios, frustrada outra vez.
De caminho à saída, Ehlena se apresentou na tela de registro para assegurar-se de que não havia nada mais que tivesse que fazer antes da substituição do novo turno. Satisfeita de que tudo estivesse em ordem, atravessou as portas e subiu as escadas até que finalmente esteve fora da clínica.
A noite estava mais à frente do código postal CEP que indicava fresco e entrando em cidade fria, e em sua opinião o ar cheirava a azul, se é que a cor podia ter alguma fragrância: é que sentia algo que simplesmente era muito fresco, glacial e claro quando respirava profundamente e exalava formando suaves nuvens. Com cada inalação, sentia-se como se estivesse tomando as safiras pulverizadas pelos céus em seus pulmões, e, que as estrelas eram faíscas que saltavam através de seu corpo.
Foi despedindo-se das atrasadas, enquanto as últimas enfermeiras partiam, desmaterializando-se ou conduzindo, dependendo do que tivessem planejado. Depois também Catya chegou e se foi.
Ehlena tamborilou com o pé e comprovou seu relógio. Seu macho estava dez minutos atrasado. Não era para tanto.
Recostando-se contra o revestimento de alumínio, sentiu que seu sangue cantava em suas veias, uma estranha sensação de liberdade inchando seu peito enquanto pensava em sair a alguma parte com um macho por sua própria...
Sangue. Veias.
Rehvenge não tratou de seu braço!
O pensamento penetrou em sua mente e permaneceu ali como o eco de um grande ruído. Não tinha tratado o braço. Não houvera nada no relatório sobre a infecção, e Havers era tão escrupuloso em suas notas como era com os uniformes do pessoal, a limpeza dos quartos dos pacientes e a organização dos armários de fornecimentos.
Quando retornara da farmácia com as drogas, Rehvenge tinha a camisa posta e os punhos abotoados, mas tinha assumido que era porque o exame tinha terminado. Entretanto, estava disposta a apostar que os tinha abotoado assim que ela terminou de lhe tirar sangue.
Mas... Não era assunto dela, não? Rehvenge era um macho adulto que tinha todo o direito a tomar más decisões sobre sua saúde. Igual aquele com overdose de drogas que mal sobrevivera à noite, e igualmente ao grande número de pacientes que assentiam muito quando o médico estava diante deles, mas que quando iam para casa deixavam de lado o indicado em suas receitas e os cuidados pós-operatórios.
Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar a alguém que não queria ser salvo. Nada. E essa era uma das maiores tragédias de seu trabalho. Tudo o que podia fazer era indicar as opções e as conseqüências e esperar que o paciente escolhesse sabiamente.
Soprou uma brisa, penetrando dentro de sua saia e fazendo-a invejar o casaco de pele de Rehvenge. Afastando-se da lateral da clínica, tentou ver o caminho abaixo, procurando faróis de carro.
Dez minutos mais tarde, voltou a olhar seu relógio.
E dez minutos depois desses, elevou o punho uma vez mais.
Tinham-na deixado plantada!
Não era uma surpresa. O encontro tinha sido marcado de maneira muito apressada, e em realidade não conheciam um ao outro, verdade?
Quando outra brisa fria a golpeou, tirou seu celular e escreveu: Olá, Stephan sinto não tê-lo visto esta noite. Talvez em outro momento. E.
Retornou o telefone a seu bolso e se desmaterializou para sua casa. Em vez de entrar em seguida, agasalhou-se com seu casaco e passeou daqui para lá pela calçada gretada que corria com o passar da lateral da casa até a porta traseira. Quando o vento gelado voltou a soprar, uma rajada lhe deu totalmente no rosto.
Picavam-lhe os olhos.
Ao dar as costas ao vendaval, algumas mechas de cabelo voaram para frente como se estivessem tentando fugir do frio, e ela estremeceu.
Genial. Agora, quando sua visão se empanasse, não teria a desculpa da brisa fria.
Deus estava chorando? Isso podia ser simplesmente um mal-entendido? Por um homem que mal conhecia? Por que lhe importava tanto?
Ah, mas não era por ele absolutamente. O problema era ela. Odiava estar onde tinha estado ao abandonar a casa: sozinha.
Tentando conseguir um apoio, literalmente, estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira, mas não pôde obrigar-se a entrar. A imagem dessa cozinha miserável e muito organizada, o conhecido som dessas escadas rangentes que conduziam ao porão, e o aroma de pó e papel do dormitório de seu pai lhe eram tão familiares como seu próprio reflexo em qualquer espelho. Esta noite tudo resultava muito claro, um brilhante brilho que lhe cravava em ambos os olhos, um rugido soando em seus ouvidos, um enjoativo fedor bombardeando seu nariz.
Deixou cair o braço. O encontro tinha sido um passe de “saída da prisão”. Uma balsa para abandonar a ilha. Uma mão estendida sobre o precipício do qual ela estava pendurada.
O desespero a fez voltar bruscamente para a realidade como nenhuma outra coisa podia tê-lo feito. Não servia de nada sair com alguém se essa era sua atitude. Não era justo para o homem nem são para ela. Quando Stephan ligasse outra vez, se o fizesse, simplesmente diria que estava muito ocupada...
— Ehlena? Está bem?
Ehlena saltou afastando-se da porta que evidentemente acabava de se abrir amplamente.
— Lusie! Sinto muito, somente... Só estava pensando muito. Como está papai?
— Bem, honestamente bem. Está dormindo outra vez.
Lusie saiu da casa e fechou evitando que o calor escapasse da cozinha. Depois de dois anos, era uma figura dolorosamente familiar, sua roupa boêmia e seu comprido cabelo grisalho resultavam reconfortantes. Como de costume, tinha sua bolsa de remédios em uma mão e sua enorme bolsa pendurada do ombro oposto. Dentro da bolsa de remédios havia um medidor de pressão sangüínea padrão, um estetoscópio, e medicamentos de sob nível... Tudo o qual Ehlena a tinha visto usar. Dentro da bolsa levava as palavras cruzadas do New York Time, chicletes de hortelã Wrigley’s que gostava de mascar, a carteira e o batom cor pêssego que passava pelos lábios a intervalos regulares. Ehlena sabia das palavras cruzadas porque Lusie e seu pai as faziam juntos, do chiclete pelos pacotes que havia no cesto de papéis, e o batom era evidente, a carteira era uma hipótese.
— Como está? — Lusie esperou, seus olhos cinza claros enfocados — Você retornou um pouco cedo.
— Deixou-me plantada.
A forma que a mão de Lusie aterrissou sobre o ombro de Ehlena era o que fazia da fêmea uma grande enfermeira: com um toque te transmitia consolo, calidez e empatia, tudo o que ajudava a reduzir a pressão sangüínea, o ritmo cardíaco e a agitação.
Tudo o que ajudava a restabelecer uma mente emaranhada.
— Sinto-o. — disse Lusie.
— Oh, não, é melhor assim. Quero dizer, esperava muito.
— De verdade? Pareceu-me bastante sensata quando me falou disso. Somente iam tomar um café...
Por alguma razão disse a verdade:
— Não. Estava procurando uma saída. A que nunca chegará, porque nunca o deixaria. — Ehlena sacudiu a cabeça — De todos os modos, muito obrigado por vir...
— Não tem que ser uma situação disto ou aquilo. Seu pai e você...
— Realmente aprecio que tenha vindo cedo esta noite. Foi muito amável de sua parte.
Lusie sorriu da mesma forma que Catya tinha feito mais cedo, essa mesma noite, tensa e tristemente.
— De acordo, deixarei estar, mas tenho razão nisto. Pode ter uma relação e seguir sendo uma boa filha para seu pai. — Lusie olhou para a porta — Escute, terá que vigiar essa ferida da perna. A que se fez com a unha. Pus uma vendagem nova, mas estou preocupada com ela. Acredito que está infectando.
— Farei, e obrigada.
Depois que Lusie se desmaterializou, Ehlena entrou na cozinha, fechou a porta, passou a chave, e se dirigiu ao porão.
Seu pai estava em seu quarto, dormindo na enorme cama vitoriana, a enorme cabeceira esculpida parecia o arco lavrado de uma tumba. Sua cabeça descansava contra uma pilha de travesseiros brancos de seda, e o edredom de veludo vermelho sangue estava dobrado precisamente a meio caminho de seu peito.
Parecia um rei em repouso.
Quando a enfermidade mental se apropriou dele, seu cabelo e barba se tornaram brancos, fazendo que Ehlena se preocupasse que estivessem começando a aparecer nele as mudanças do final da vida. Mas depois de cinqüenta anos, ainda parecia o mesmo, seu rosto não apresentava rugas e suas mãos seguiam sendo fortes e firmes.
Era tão difícil. Não podia imaginar a vida sem ele. E não podia imaginar-se tendo uma vida com ele.
Ehlena fechou parcialmente a porta e foi para seu próprio quarto, onde tomou banho, trocou-se e se esticou sobre a cama. Tudo o que tinha era uma cama de um lugar sem cabeceira, um travesseiro e lençóis de algodão, mas o luxo não lhe importava. Só necessitava um lugar onde esticar seus ossos cansados cada dia e isso era tudo.
Normalmente lia um pouco antes de dormir, mas hoje não. Realmente não tinha energias. Estendendo a mão para um lado, apagou o abajur, cruzou os pés à altura dos tornozelos e estendeu os braços retos.
Com um sorriso, compreendeu que ela e seu pai dormiam exatamente na mesma posição, verdade?
Na escuridão, pensou em Lusie e a forma em que tinha insistido no corte de seu pai. Ser uma boa enfermeira era preocupar-se com o bem-estar dos pacientes, inclusive depois de deixá-los. Tratava-se de treinar aos familiares em como continuar com os cuidados necessários, e ser um apoio.
Não era o tipo de trabalho que simplesmente se ia porque tinha terminado seu turno.
Religou o abajur com um clique.
Levantando-se, foi ao computador que tinha conseguido grátis na clínica quando os sistemas de TI13 tinham sido melhorados. A conexão de internet era lenta, como sempre, mas finalmente pôde acessar a base de dados dos registros médicos da clínica.
Colocou sua contra-senha, efetuou uma busca, logo outra. A primeira foi por compulsão, a segunda por curiosidade.
Gravou ambas, desligou o portátil e pegou seu telefone.
Capítulo 11
Quando estava amanhecendo, justo antes que a luz começasse a se reunir no céu do leste, Wrath tomou forma nos densos bosques da parte norte da montanha da Irmandade. Não aparecera ninguém pelo Hunterbred, e a iminente luz do dia o tinha forçado a abandonar o lugar.
A grama rangia ruidosamente sob seus shitkickers, as finas agulhas dos pinheiros estavam quebradiças pelo frio. Ainda não havia neve para atenuar os sons, mas podia cheirá-la no ar, podia sentir essa gelada dentada na profundidade de seus seios nasais.
A entrada secreta do Sancto Santorum da Irmandade da Adaga Negra estava no extremo mais afastado de uma caverna, bem no fundo. Suas mãos localizaram por meio do tato o abridor na porta de pedra, e o pesado portal se deslizou detrás da parede de rocha. Entrando em um piso revestido de suave mármore negro, avançou por ele enquanto a porta se fechava as suas costas.
A sua vontade, as tochas se acenderam de cada lado, estendendo-se a uma longa distância e iluminando as enormes portas de ferro instaladas nos fins do século dezoito quando a Irmandade converteu essa caverna na Tumba.
Ao se aproximar, as grossas barras da porta adquiriram a aparência de uma fila de sentinelas armados ante sua visão imprecisa, as chamas trementes animavam algo que na realidade não tinha movimento. Com sua mente, abriu as duas metades e continuou seu caminho, entrando em um comprido passadiço cheio de prateleiras que iam do chão ao teto, a uns doze metros de altura.
Jarras de lessers de todo tipo e espécie estavam empilhadas uma junto à outra, em um desdobramento que marcava gerações de matanças feitas pela Irmandade. As jarras mais antigas eram somente toscos copos feitos à mão que tinham sido trazidos do Antigo País. A cada metro que avançava as jarras se tornavam mais modernas, até se chegar ao próximo jogo de portas e encontrar as porcarias chinesas produzidas em série vendidas na Target.
Não ficava muito espaço livre nas prateleiras e isso o deprimiu. Com suas próprias mãos ajudou a construir este monumento à morte de seus inimigos, junto com o Darius, Tohrment e Vishous, todos eles trabalharam em excesso durante um mês seguido, trabalhando durante o dia e dormindo sobre o chão de mármore. Tinha sido ele, que decidiu quanto aprofundar na terra, e estendeu o corredor das prateleiras vários metros a mais do que considerava necessário. Quando ele e seus irmãos terminaram de instalar tudo e logo depois de empilhar as jarras mais antigas, se convenceram de que não necessitariam tanto espaço para armazenamento. Tiveram a segurança de que no momento em que enchessem as três quartas partes disso, a guerra teria terminado.
E aí estava, séculos mais tarde, tratando de encontrar espaço suficiente.
Com uma pavorosa sensação de presságio, Wrath estimou com sua reduzida vista os últimos espaços que ficavam nas prateleiras originais. Era difícil não vê-lo como uma evidência de que a guerra estava chegando a seu fim, que o equivalente vampiro do finito calendário Maia estava nessas paredes de rocha grosseiramente esculpidas.
Não era com o brilho da obtenção da vitória que previa o depósito da última jarra junto às demais.
Uma das duas ou ficariam sem raça a qual proteger ou ficariam sem Irmãos para protegê-los.
Wrath tirou as três jarras de sua jaqueta e as pôs juntas formando um pequeno grupo, logo deu um passo atrás.
Tinha sido responsável por muitas dessas jarras... Antes de converter-se em Rei.
— Já sabia que tinha saído para lutar.
Ante o som da voz autoritária da Virgem Escriba, Wrath girou a cabeça bruscamente. Sua Santidade estava flutuando junto às portas de ferro, sua túnica negra estava a trinta centímetros acima do chão de pedra e sua luz resplandecia por debaixo da prega.
Houve um tempo em que seu resplendor foi cegamente brilhante. Agora apenas lançava sombra.
Wrath voltou a girar-se para as jarras.
— Assim, V se referia a isso quando disse que ia apertar o gatilho.
— Sim, meu filho foi até mim.
— Mas já estava inteirada. E, a propósito, isso não foi uma pergunta.
— Sim. — ela odiava perguntas.
Wrath levantou a vista e observou V atravessar as portas.
— Bom, olhem esta merda. — manifestou Wrath — A reconciliação entre mãe e filho… Ocorrerá em tão somente um instante. — deixou que a poesia lírica parafraseada ficasse flutuando no ar — Ou não.
A Virgem Escriba se adiantou, movendo-se lentamente entre as jarras. Na antiguidade — ou, demônios, tão somente no ano anterior — teria assumido o controle da conversa. Agora apenas flutuava.
Vishous fez um som de desgosto, como se tivesse esperado muito para que sua Queridíssima Mamãe[37] começasse a dar o sermão de “nem-mais-uma-palavra” para seu rei, e não se sentiu impressionado ao ver que não lhe fazia frente.
— Wrath, não me deixou terminar.
— E acredita que agora o farei? — esticou a mão para cima e com os dedos tocou a beira de uma das três jarras que acrescentou à coleção.
— Deixará que termine. — disse a Virgem Escriba em um tom desinteressado.
Vishous avançou a pernadas, seus shitkickers pisavam firmemente o chão que ele mesmo tinha ajudado a colocar.
— A questão é que se vai sair, vá com reforços. E diga à Beth. De outra forma se converte em um mentiroso… E tem uma melhor oportunidade de deixá-la viúva. Maldito seja, ignore minha visão, se quiser. Mas ao menos seja prático.
Wrath caminhou para cima e para baixo, pensando que o cenário para este cerco era fodidamente perfeito: estava rodeado por testemunhos da guerra.
Finalmente se deteve frente às três jarras que tinha obtido essa noite.
— Beth pensa que fui ao norte do Estado me encontrar com Phury. Sabem, para trabalhar com as Escolhidas. Mentir enche o saco! Mas e o conhecimento de que tenhamos só quatro Irmãos no campo de batalha? É pior.
Houve um longo silêncio, durante o qual o único som que se escutava era o vibrante chispar das chamas das tochas.
Vishous rompeu o silêncio.
— Acredito que deveria ter uma reunião com a Irmandade, e dizer a verdade para Beth. Como falei se for lutar, lute. Mas faça abertamente, entende? Dessa forma não estará saindo sozinho. E, tampouco o fará algum de nós. Neste momento, quando ocorre o rodízio para descanso, alguém sempre termina lutando sem companheiro. Se você o fizesse legitimamente resolveria esse problema.
Wrath teve que sorrir.
— Cristo, se tivesse pensado que estaria de acordo comigo, teria falado antes. — olhou à Virgem Escriba — Mas, e o que me diz das leis. Da tradição.
A mãe da raça se voltou para enfrentá-lo e com voz distante disse:
— Tantas coisas mudaram. Que diferença faz uma mais. Fiquem bem, Wrath filho de Wrath e Vishous meu filho.
A Virgem Escriba desapareceu como uma brisa na noite fria, dissipando-se no éter como se nunca tivesse estado ali.
Wrath se reclinou contra as prateleiras, e, quando a cabeça começou a lhe pulsar, subiu os óculos e esfregou seus olhos inúteis. Quando se deteve, fechou as pálpebras e ficou tão quieto como a rocha que o rodeava.
— Parece moído. — murmurou V.
Sim, estava, verdade? E que triste isso era.
O tráfico de drogas era um negócio muito lucrativo.
Em seu escritório privado do ZeroSum, Rehvenge estava em frente a sua mesa no escritório revisando as faturas dessa noite, comprovando meticulosamente as quantidades, até o último centavo. iAm estava fazendo o mesmo no restaurante de Sal, e o primeiro dever de cada noite era encontrar-se ali para comparar resultados.
Na maioria das vezes chegavam ao mesmo total. Quando não era assim, ele os remetia ao iAm.
Entre o álcool, as drogas, e o sexo as importâncias em bruto das faturas superava os duzentos e noventa mil só para o ZeroSum. No clube trabalhavam vinte e duas pessoas com salário fixo, isso incluía dez seguranças, três barmans, seis prostitutas, Trez, iAm e Xhex, o custo por todos eles girava em torno dos setenta e cinco mil dos grandes por noite. Os recolhedores de apostas e os traficantes autorizados a trabalhar no local, ou seja, aqueles vendedores de drogas que ele autorizava a vender sob suas premissas, eram comissionados, e o que restava após cobrarem sua parte, era dele. Também, uma vez por semana, ele ou Xhex e os seguranças realizavam entendimentos por quantidades mais importantes com um seleto número de distribuidores que tinham suas próprias redes de tráfico de drogas fora de Caldwell ou em Manhattan.
Calculando tudo, e depois de subtrair os custos do pessoal, ficavam aproximadamente duzentos mil por noite para pagar as drogas e o álcool vendidos, cobrir a calefação e a eletricidade, para a melhoria de bens de uso e o pagamento da equipe de limpeza de sete pessoas que entrava às cinco da manhã.
Cada ano tirava perto de cinqüenta milhões de seus negócios… O que parecia obsceno, e era, especialmente considerando que pagava impostos somente por uma fração disso. A questão era que as drogas e o sexo eram negócios arriscados, mas os lucros potenciais eram enormes. E necessitava dinheiro. Muito. Manter sua mãe no estilo de vida a que estava acostumada, e que bem merecia, era um assunto multimilionário. Além disso, ele tinha suas próprias casas e a cada ano trocava o Bentley assim que os novos modelos estavam disponíveis.
Entretanto, o gasto pessoal mais custoso de todos, disparado, eram as pequenas bolsas negras de veludo.
Rehv estendeu a mão sobre suas folhas de cálculo e recolheu a que enviaram do distrito de diamantes da Grande Maçã. Agora as entregas chegavam às segundas-feiras… antes costumava ser às últimas sextas-feiras do mês, mas agora ao abrir o Iron Mask, o dia livre do ZeroSum tinha mudado para domingo.
Desatou o cordão de cetim e abriu o pescoço da bolsa, vertendo um punhado de brilhantes rubis. Um quarto de milhão de dólares em pedras cor vermelho sangue. Voltou a colocá-las na bolsa, atou o cordão com um nó apertado, e olhou seu relógio. Faltavam dezesseis horas para que tivesse que empreender sua viagem para o norte.
A primeira terça-feira do mês era quando pagava seu resgate, e pagava à princesa de duas maneiras. Uma era com pedras preciosas. A outra com seu corpo.
Entretanto fazia que custasse a ela também.
Pensar aonde iria e o que se veria obrigado a fazer lhe provocou cócegas na nuca, e não o surpreendeu que sua vista começasse a mudar, e que o rosa escuro e o vermelho sangue substituíssem o negro e o branco de seu escritório, e que seu campo visual se nivelasse como por obra de uma escavadora convertendo-se em um nível plano.
Abrindo uma gaveta, tirou uma de suas bonitas caixas novas de dopamina e agarrou a seringa que tinha usado as últimas duas vezes que se injetou em seu escritório. Arregaçando o braço esquerdo, fez um torniquete no meio do bíceps mais por hábito que por verdadeira necessidade. Suas veias estavam tão inchadas que parecia que várias toupeiras haviam feito suas tocas debaixo de sua pele, e sentiu uma pontada de satisfação ante o horrível estado em que estavam.
A agulha não tinha tampa que tirar, assim encheu o êmbolo da seringa com a prática de um usuário habitual. Levou-lhe um momento encontrar uma veia que fosse viável, e colocou a diminuta agulha de aço em seu corpo sem sentir nada de nada. Soube que finalmente tinha dado no lugar adequado quando puxou o êmbolo e viu que o sangue se mesclava com a solução clara da droga.
Enquanto liberava o torniquete e pressionava com o dedo polegar para fazer entrar o líquido, olhou fixamente a ulceração de seu braço e pensou em Ehlena. Ainda quando não confiava nele e não desejava sentir-se atraída por ele e embora evidentemente seria capaz de mover céu e terra para não sair com ele, seguia querendo ser uma salvadora. Seguia querendo o melhor para ele e sua saúde.
Isso era o que significava ser uma fêmea de valor.
Já tinha injetado a metade quando seu celular tocou. Um rápido olhar à tela indicou que o número não era conhecido, por isso deixou que a chamada se perdesse. As únicas pessoas que tinham seu número eram aquelas com as quais queria falar, e essa era uma lista endemoniadamente curta: sua irmã, sua mãe, Xhex, Trez e iAm. E o Irmão Zsadist, o hellren de sua irmã.
Isso era tudo.
Enquanto tirava a agulha de seu ralo vascular, amaldiçoou ante o assobio que indicava que tinham deixado um correio de voz. De tanto em tanto recebia um desses, gente deixando partes e retalhos de suas vidas em seu pequeno rincão de espaço tecnológico, pensando que era o de outra pessoa. Ele nunca devolvia a chamada, jamais mandava uma mensagem de texto com um: Este não é quem pensa que é. Já se dariam conta quando quem quer que pensassem estar chamando não devolvesse o favor.
Fechando os olhos se recostou contra o respaldo da cadeira e atirou a seringa sobre as folhas de cálculo, não podia importar menos se a droga funcionava.
Sentado a sós em sua guarida de iniqüidade, na hora silenciosa em que todos se foram e o pessoal da limpeza não tinha entrado ainda, não lhe importava uma merda se os planos de sua visão retornavam a um modo tridimensional. Não lhe importava se reaparecia o espectro a toda cor. Não se perguntava a cada segundo que passava se retornaria à “normalidade” ou não.
Deu-se conta que isto tinha mudado. Até agora sempre se desesperou esperando que a droga funcionasse.
O que tinha feito a situação mudar?
Deixou a pergunta no ar enquanto recolhia o celular e agarrava a bengala. Com um gemido, ficou cuidadosamente de pé e caminhou para seu dormitório privado. O intumescimento estava retornando rapidamente a seus pés e pernas, mais rapidamente de quando conduzia vindo de Connecticut, mas bom, isso era típico. Quanto menos impulsos symphath se desencadeassem, melhor funcionava a droga. E caramba! Tornava-se gracioso, mas ser selecionado para matar o rei o tinha exasperado.
Enquanto que estar sentado a sós no que podia chamar lar, não o fazia.
O sistema de segurança já estava ativo em seu escritório, e ativou outro para suas habitações privadas, logo se fechou no dormitório sem janelas no qual pernoitava de quando em quando. O banheiro estava do outro lado do quarto e atirou seu casaco de zibelina sobre a cama antes de entrar e abrir a ducha. Enquanto se movia pelo lugar, um frio que impregnava até os ossos se apoderou de seu corpo, fluindo de dentro para fora, como se tivesse se injetado Freon.
Isto sim ele temia. Odiava ter frio todo o tempo. Merda, talvez devesse ter se deixado ir. De toda forma não ia interatuar com ninguém.
Sim, mas se saltava muitas doses, voltar a nivelar-se era uma merda.
O vapor ondeou atrás da porta de vidro da ducha, se despiu deixando seu traje, a gravata e a camisa sobre o balcão de mármore que havia entre as duas pias. Ficando sob a ducha, tremeu violentamente e os dentes tilintaram.
Por um momento, derrubou-se contra as suaves paredes de mármore, mantendo a si mesmo no centro das quatro rosetas da ducha. Enquanto a água quente, que não podia sentir, caía em forma de cascata descendo por seu peito e seu abdômen, tratou de não pensar no que viria na noite seguinte, e falhou.
Oh, Deus… Seria capaz de voltar a fazê-lo? Ir ali acima e prostituir a si mesmo com essa cadela?
Sim, e a alternativa era… Que o denunciasse ante o conselho por ser um symphath e que deportassem seu rabo à colônia.
A escolha era clara.
À merda com isso, não havia escolha. Bella não sabia o que era, e descobrir a mentira familiar a mataria. E ela não seria a única vítima. Sua mãe se desmoronaria. Xhex ficaria furiosa e se mataria tratando de salvá-lo. Trez e iAm fariam o mesmo.
Todo o castelo de cartas cairia.
Compulsivamente, agarrou uma brilhante barra de sabão dourado do suporte de cerâmica que estava montado na parede e o esfregou entre suas mãos até fazer espuma. A merda que usava não era do tipo elegante e fino. Era o comum Dial, um desinfetante que sobre a pele parecia como um nivelador de pavimento.
Suas putas usavam o mesmo. Era com o que abastecia suas duchas, a pedido delas.
Sua regra era três vezes. Três vezes para cima e para baixo por seus braços e suas pernas, seus peitorais e seu abdômen, seu pescoço e seus ombros. Três vezes o afundava entre suas coxas, ensaboando o membro e os testículos. O ritual era estúpido, mas era algo compulsivo. Poderia ter usado três dúzias de barras de Dial e ainda assim seguir sentindo-se sujo.
Era gracioso, suas putas sempre se surpreendiam pelo trato que recebiam. Cada vez que chegava uma nova, esperava ter que excitá-lo como parte de seu trabalho, e sempre estavam preparadas para serem agredidas. Em vez disso, obtinham seu vestiário privado com ducha, um horário seguro, e a segurança de que nunca, jamais seriam agredidas, e essa coisa chamada respeito… Que significava que podiam escolher os seus clientes, e, se os filhos da puta que pagavam pelo privilégio de estar com elas lhe tocavam embora fosse somente um de seus cabelos, tudo o que tinham de fazer era dizer e uma montanha de merda caía sobre o ofensor.
Mais de uma vez, aparecia alguma das mulheres na porta de seu escritório e pedia para falar com ele em particular. Geralmente isso acontecia aproximadamente um mês depois que começasse a exercer, e o que diziam era sempre o mesmo e sempre era expresso com uma espécie de confusão, que se ele fosse normal, teria lhe quebrado o coração:
— Obrigado.
Não era muito viciado nos abraços, mas era sabido que as atraía a seus braços e as abraçava durante um instante. Nenhuma delas compreendia que não era devido a ele ser um bom homem, mas sim porque era igual a elas. A dura realidade era que a vida tinha posto a todos onde não desejavam estar, quer dizer sobre suas costas frente a pessoas com as quais não queriam estar fodendo. Sim, havia algumas que não lhes importava o trabalho, mas como todo mundo, não queriam trabalhar todo o tempo. E Deus sabia que os clientes sempre apareciam.
Assim como sua chantagista.
Sair da ducha era um absoluto e puro inferno, e adiou o profundo congelamento o máximo que pôde, encolhendo-se sob a ducha enquanto discutia consigo mesmo sobre a saída. Enquanto o debate continuava, ouvia a água tilintar contra o mármore e tagarelar no deságüe de bronze, mas seu corpo totalmente intumescido não sentia nada salvo um leve alívio de seu Alaska interior. Quando acabou a água quente, soube somente devido a seus tremores piorarem e as unhas de suas mãos passaram de uma cor cinza pálida a um azul profundo.
De caminho à cama, secou-se com uma toalha e logo se lançou sob o edredom de visom o mais rápido que pôde.
Justo quando estava puxando as mantas para subir até sua garganta, seu celular emitiu um assobio. Outra mensagem de voz.
Fodida Central Geral com seu celular.
Ao verificar suas chamadas perdidas, descobriu que a última era de sua mãe, e se endireitou rapidamente, embora mudar para a posição vertical significasse que seu peito ficasse descoberto. Como a dama que era não ligava nunca, porque não queria “interromper seu trabalho”.
Pressionou alguns botões, pôs sua contra-senha, e se preparou para apagar a mensagem de número equivocado que sairia primeiro.
“Mensagem do 518—blah—blah—blah…” Pressionou a tecla de numeral para mandá-la a merda e se preparou para golpear o sete e desfazer-se da coisa.
Seu dedo estava encaminhando-se para baixo quando a voz de uma fêmea disse:
— Olá, eu…
Essa voz… Essa voz era… Ehlena?
— Porra!
De toda forma, o correio de voz era inexorável, sem importar-se uma merda que uma mensagem dela fosse o último que ele escolheria apagar. Enquanto amaldiçoava, o sistema continuou agitando-se até que escutou a suave voz de sua mãe falando na Antiga Língua.
— Saudações, queridíssimo filho, espero que esteja bem. Por favor, desculpe a intromissão, mas me perguntava se poderia passar pela casa nos próximos dias? Há um assunto sobre o qual devo falar contigo. Amo-te. Adeus, meu primogênito de sangue.
Rehv franziu o cenho. Tão formal, o equivalente verbal a uma atenta nota escrita por sua formosa mão, mas a solicitude era atípica nela, e isso dava o caráter de urgente. Mas estava fodido… Má escolha de palavras. Amanhã de noite era impossível devido a seu “encontro”, assim teria que ser a noite seguinte, assumindo que se encontrasse o suficientemente bem.
Ligou a casa, e quando uma das doggen atendeu disse à criada que estaria ali na quarta-feira de noite assim que o sol se pusesse.
— Senhor, se me permite. — disse a criada — Verdadeiramente me alegra que venha.
— O que está acontecendo? — quando houve uma longa pausa, sua frieza interior, piorou — Diga!
— Ela está… — a voz do outro lado se agitou — Está tão encantadora como de costume, mas nos alegra que venha. Se me desculpar, irei transmitir sua mensagem.
A linha ficou muda. No fundo de sua mente, tinha percebido o que ocorria, mas sistematicamente ignorou tal convicção. Verdadeiramente não podia pensar nisso. Definitivamente não podia.
Além disso, era provável que não fosse nada. Depois, toda paranóia era um efeito secundário quando se consumia muita dopamina, e Deus sabia que estava tomando mais que sua cota. Iria ao refúgio assim que pudesse, e ela estaria bem… Espere! O solstício de verão. Devia tratar-se disso. Sem dúvida desejava planejar as festividades que incluía Bella e Z e à menina, já que seria o primeiro ritual de solstício de Nalla, e sua mãe levava esse tipo de coisas muito a sério. Podia viver neste lado, mas as tradições das Escolhidas sob as quais tinha sido criada ainda formavam parte dela.
Era certo que se tratava disso.
Aliviado, pôs o número de Ehlena em sua caderneta de memória e ligou para ela.
Em tudo o que podia pensar enquanto o telefone chamava, além de em, “responde, responde, responde”, era em que confiava que estivesse bem. O que era uma loucura. Como se fosse chamar a ele se tivesse algum problema?
Então por que haveria…
— Olá?
O som de sua voz no ouvido obteve algo que a ducha quente, o visom e a temperatura ambiente de oitenta graus não tinham obtido. O calor se estendeu desde seu peito, fazendo retroceder o intumescimento e o frio, cobrindo-o com… Vida.
Apagou as luzes para poder concentrar-se nela com tudo o que tinha.
— Rehvenge? — disse ela depois de um momento.
Reclinou-se contra os travesseiros e sorriu na escuridão.
— Olá.
Capítulo 12
— Sua camisa está ensangüentada… E… Oh, Deus… A perna de sua calça. Wrath, o que aconteceu?
De pé em seu escritório na mansão da Irmandade, enfrentando a sua amada shellan, Wrath puxou as duas metades de sua jaqueta de motoqueiro para fechá-las mais sobre seu peito, e pensou que era bom que ao menos lavou o sangue de lesser das mãos.
A voz de Beth ficou mais baixa.
— Quanto do que estou vendo é teu?
A seus olhos estava tão formosa como sempre, era a única fêmea a quem desejava, a única companheira possível para ele. Com jeans e seu suéter negro de pescoço alto, e o cabelo escuro caindo sobre seus ombros, era a coisa mais atrativa que tinha visto. Seguia sendo.
— Wrath!
— Não todo. — o corte de seu ombro sem dúvida tinha gotejado sobre sua camiseta sem mangas, mas também tinha segurado o macho civil contra seu peito, por isso o sangue do macho sem dúvida se mesclou com o seu próprio.
Incapaz de permanecer quieto caminhou pelo escritório, indo da mesa à janela ida e volta. O tapete que seus shitkickers cruzavam era azul, cinza e creme, um Aubusson cujas cores faziam par com o azul pálido das paredes e cujas espirais curvilíneas se inspiravam nos delicados móveis Louis XIV, os acessórios e os redemoinhos das molduras.
Realmente, nunca tinha apreciado a decoração. E tampouco o fez agora.
— Wrath… Como chegou aí? — o tom duro de Beth lhe indicou que já sabia a resposta, mas que ainda conservava a esperança de que houvesse outra explicação.
Juntando forças, voltou-se para enfrentar o amor de sua vida através da extensão carregada do escritório.
— Estou lutando outra vez.
— Está o que?
— Estou lutando.
Quando Beth ficou em silêncio. Alegrou-se de que a porta do escritório estivesse fechada. Viu os cálculos mentais que estava fazendo e sabia que o resultado do que estava somando ia adicionar-se a uma e só uma coisa: estava pensando em todas essas “noites no norte” com Phury e as Escolhidas. Todas as vezes que foi para a cama com camisetas de manga longa, úteis para ocultar hematomas, porque “estava resfriado”. Todas essas desculpas de “estou coxeando porque me exercitei muito”.
— Está lutando! — afundou as mãos nos bolsos de seu jeans, e, embora não pudesse ver muito, sabia endemoniadamente bem que o suéter negro de pescoço alto era o perfeito complemento para seu olhar — Somente para que fique claro. Está me dizendo que, vai começar a lutar. Ou que esteve lutando.
Isso era uma pergunta retórica, mas evidentemente queria que ele reconhecesse a mentira completa.
— Estive. Durante o último par de meses.
A fúria e a dor fluíram dela, derramando-se sobre ele, cheirando a madeira chamuscada e a plástico queimado.
— Olhe Beth, tinha que…
— Tinha que ser honesto comigo! — disse asperamente — Isso é o que tinha que fazer.
— Não esperava ter que sair por mais de um mês ou dois…
— Um mês ou dois! Quantos demônios fazem… — clareou a garganta e baixou a voz — Quanto faz que o está fazendo?
Quando disse, voltou a ficar calada. Logo disse:
— Desde agosto? Agosto.
Desejava que desse rédea solta a seu temperamento. Que lhe gritasse. Que lhe insultasse.
— Sinto muito. Eu… Merda, realmente sinto.
Ela não disse nada mais, e o aroma de suas emoções se afastou à deriva, dispersado pelo ar quente que soprava pelos ralos da calefação que havia no chão. No corredor, um doggen estava passando o aspirador, o som do acessório para tapetes zumbia acima e abaixo, acima e abaixo. No silêncio que reinava entre eles, esses sons habituais, cotidianos eram algo ao que apegar-se… Pois era o tipo de coisa que ouvia todo o tempo e raramente notava porque estava ocupado lutando com a papelada, ou distraído pelo fato de que tinha fome, ou tratando de decidir se preferia relaxar vendo a TV ou no ginásio… Era um som seguro.
E, neste momento, devastador para sua união, apegava-se à canção de berço de Dyson com todas as suas forças, perguntando-se se alguma vez teria a sorte de poder ignorá-la outra vez.
— Nunca me passou pela cabeça… — clareou a garganta uma vez mais — Nunca me passou pela cabeça que haveria algo do qual não pudesse falar comigo. Sempre assumi que me dizia… Tudo o que podia.
Quando deixou de falar, ele estava gelado até os ossos. Sua voz tinha adquirido o tom que usava quando respondia chamadas equivocadas no telefone: dirigia-se a ele como se fosse um estranho, sem nenhuma calidez nem interesse particular.
— Olhe Beth, devo estar lá fora. Devo…
Ela sacudiu a cabeça e levantou a mão para detê-lo.
— Não se trata de que esteja lutando.
Beth o olhou fixamente durante um segundo. Logo se voltou e se dirigiu para as portas duplas.
— Beth. — esse grasnido estrangulado era sua voz?
— Não, me deixe. Preciso de um pouco de espaço.
— Beth, escute, não temos guerreiros suficientes no campo de batalha…
— Não é pela luta! — girou e o enfrentou — Mentiu para mim! Mentiu. E não só uma vez, mas sim durante quatro meses.
Wrath queria discutir, defender-se, assinalar que tinha perdido a noção do tempo, que essas cento e vinte noites e dias tinham passado à velocidade da luz, que tudo o que esteve fazendo era pôr um pé na frente do outro, frente ao primeiro, andando minuto a minuto, hora a hora, tratando de manter a raça sem submergir, tratando de conter os lessers. Não teve intenção de continuar fazendo-o durante tanto tempo. Não tinha planejado enganá-la durante todo esse tempo.
— Só me responda uma coisa. — disse — Uma única coisa. É melhor que me diga a verdade, ou que Deus me ajude, mas vou… — levou a mão à boca, apanhando um débil soluço com mão débil — Honestamente, Wrath… Sinceramente pensou que fosse te deter? No fundo de seu coração, verdadeiramente acreditou que fosse fazê-lo..?
Ele tragou com força enquanto ela pronunciava as palavras com voz estrangulada.
Wrath respirou fundo. No transcurso de sua vida, tinha sido ferido muitas, muitas vezes. Mas nada, nenhuma ferida que pudessem ter lhe infligido alguma vez a sua pessoa, tinha-lhe doído uma fração da dor que sentiu ao lhe responder.
— Não. — voltou a respirar fundo — Não, não acredito… Que fosse me deter.
— Quem falou com você esta noite? Quem foi que te convenceu para que me dissesse isso?
— Vishous.
— Deviria ter sabido. Ele é provavelmente a única pessoa, tirando o Tohr que poderia tê-lo… — Beth cruzou os braços, abraçando a si mesma, e ele teria dado a mão com que empunhava a adaga para ter sido ele, que a estivesse abraçando — Que esteja aí fora lutando me assusta como a merda, mas esquece algo… Emparelhei-me contigo sem saber que não se esperava que o rei estivesse no campo de batalha. Estava preparada para te apoiar ainda quando me aterrorizasse… Porque lutar nesta guerra está em sua natureza e em seu sangue. Idiota… — sua voz se quebrou — Tolo, teria te deixado fazê-lo. Mas em troca…
— Beth…
Interrompeu-o.
— Lembra-se da noite em que saiu no princípio do verão? Quando interveio para salvar o Z e logo permaneceu no centro da cidade lutando com os outros?
Seguro como o demônio que a recordava. Quando tinha retornado para casa, a tinha perseguido pelas escadas e fizeram sexo sobre o tapete da salinha do segundo andar. Várias vezes. Conservava como lembrança os shorts jeans que arrancou de seus quadris.
Jesus… Agora que pensava… Essa tinha sido a última vez que estiveram juntos.
— Disse-me que era somente por uma noite. — disse — Uma noite. Somente. Jurou, e confiei em você.
— Merda… O sinto.
— Quatro meses. — sacudiu a cabeça, e seu magnífico cabelo negro balançou sobre seus ombros, capturando a luz de uma maneira tão formosa que até seus inúteis olhos registraram seu esplendor — Sabe o que mais me dói? Que os Irmãos sabiam e eu não. Sempre aceitei esse assunto da sociedade secreta, entendi que há coisas que não posso saber…
— Eles tampouco sabiam. — bom Butch sabia, mas não havia razão para jogá-lo sob o ônibus — V se inteirou esta noite.
Ela cambaleou, e se encostou contra uma das paredes cor azul pálida.
— Esteve saindo sozinho?
— Sim. — estendeu a mão para lhe tocar o braço, mas ela o afastou — Beth…
Abriu a porta de um puxão.
— Não me toque…
A coisa se fechou de um golpe atrás dela.
A raiva contra si mesmo fez com que Wrath girasse sobre si e ficasse frente a seu escritório, e no instante em que viu todos os documentos, todas as solicitações, todas as queixas, todos os problemas, foi como se alguém tivesse conectado dois cabos cortados à suas omoplatas e lhe tivesse dado uma descarga. Lançou-se para frente, varreu com seus braços a superfície do escritório e fez voar a merda por toda parte.
Enquanto os papéis revoavam, caindo como neve, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos, a dor de cabeça lhe estava atravessando o lóbulo frontal. Ficou sem fôlego, cambaleou, encontrou sua cadeira pelo tato e se derrubou sobre a maldita coisa. Com um áspero grunhido, deixou que sua cabeça caísse para trás. Ultimamente estas enxaquecas por estresse se estavam convertendo em um sucesso diário, aniquilando-o e prolongando-se como uma gripe que se recusava a ser erradicada.
Beth. Sua Beth…
Quando ouviu um golpe na porta, deu um bom treinamento a sua boca com a palavra F.
O golpe voltou a soar.
— O que? — ladrou.
A cabeça de Rhage apareceu uma fresta, logo ficou imóvel.
— Ah…
— O que?
— Sim, bom… Ah, dados enviados… E, uau, o forte vento que evidentemente acaba de soprar sobre seu escritório… Segue querendo manter uma reunião conosco?
Oh, Deus… Como faria para manter outra dessas conversas.
Mas bom, talvez devesse ter pensado nisso antes de decidir mentir a seus seres mais próximos e queridos.
— Meu Senhor? — a voz de Rhage adquiriu um tom gentil — Deseja ver a Irmandade?
Não.
— Sim.
— Quer o Phury no viva-voz do telefone?
— Sim. Escuta, não quero os meninos nesta reunião. Blay, John e Qhuinn… Não estão convidados.
— Imaginava. Hey, o que te parece se te ajudo a limpar?
Wrath olhou o tapete coberto de papéis.
— Eu me encarrego.
Hollywood provou sua inteligência ao não voltar a oferecer-se nem tampouco sair com um “então?”. Simplesmente saiu e fechou a porta.
Do outro lado, o relógio de pé que estava em um rincão, badalou. Era outro som familiar que geralmente Wrath não ouvia, mas agora enquanto permanecia sentado a sós no escritório, as badaladas soavam como se fossem emitidas através de alto-falantes de concerto.
Deixou as mãos caírem sobre os braços da frágil cadeira giratória e estes se viram diminuídos. A peça de mobiliário era mais do estilo de algo que uma fêmea usaria ao final da noite para apoiar o pé e tirar as meias.
Não era um trono. E essa era a razão pela qual a usava.
Não quis aceitar a coroa por muitos motivos, tinha chegado a ser rei por direito de nascimento, não por inclinação e em trezentos anos não tinha assumido. Mas, tão logo Beth chegou as coisas mudaram e finalmente tinha ido ver a Virgem Escriba.
Isso tinha acontecido dois anos atrás. Duas primaveras, dois verões, dois outonos e dois invernos.
Naquele tempo tinha grandes planos, no início. Geniais e maravilhosos planos para unir à Irmandade, para que todos estivessem sob o mesmo teto, consolidando forças, escorando-se contra a Sociedade Lessening. Triunfando.
Salvando.
Reclamando.
Em troca, a glymera tinha sido sacrificada. Havia mais civis mortos. E havia ainda menos Irmãos.
Não tinham progredido. Tinham perdido terreno.
A cabeça de Rhage apareceu outra vez.
— Ainda estamos aqui fora.
— Maldito seja, disse que precisa de algum…
O relógio de pé voltou a soar, e enquanto Wrath escutava a quantidade de badaladas, deu-se conta que fazia uma hora que estava sentado a sós.
Esfregou os olhos doloridos.
— Dê-me outro minuto.
— Tudo o que necessite meu Senhor. Tome seu tempo.
Capítulo 13
Quando o olá de Rehvenge saiu pelo auricular de seu celular, Ehlena se ergueu na cama abandonando o travesseiro sobre o qual esteve deitada até esse momento, tragando um “Santa merda”… Logo se perguntou por que estava tão surpresa. Ela tinha ligado para ele, e segundo o manual, a forma em que a as pessoas encaravam esse tipo de situações era… Bom, pois, te devolvendo a ligação. Uau.
— Olá. — respondeu.
— Não atendi sua ligação apenas porque não reconheci o número.
Homem, sua voz era sexy. Profunda. De baixo. Como se supunha que devesse ser a de um macho.
No silêncio que seguiu, pensou, “tinha ligado para ele por que…?” Oh, sim.
— Quis fazer o acompanhamento depois de sua consulta. Quando preparei os papéis para a alta, notei que não tinha recebido nada para seu braço.
— Ah.
A pausa que seguiu foi uma que não pôde interpretar. Talvez estivesse zangado por sua interferência?
— Só queria me assegurar que estivesse bem.
— Está acostumada a fazer isto com todos os pacientes?
— Sim. — mentiu.
— Havers sabe que está comprovando seu trabalho?
— Ao menos olhou suas veias?
A risada de Rehvenge foi baixa.
— Preferia que tivesse ligado por uma razão diferente.
— Não entendo. — disse com tom tenso.
— O que? Que alguém possa querer fazer algo com você fora do trabalho? Não é cega. Olhou-se no espelho. E certamente sabe que é inteligente, assim não se trata de um agradável adorno de vidraça.
No que a ela concernia, estava falando em um idioma estrangeiro.
— Não entendo por que não se cuida.
— Hmmmm. —riu brandamente, ela além de escutar o ronrono em seu ouvido pôde percebê-lo fisicamente — Oh… Também pode ser que esteja fingindo para poder vê-la outra vez.
— Olhe, a única razão pela que liguei foi…
— Porque precisava de uma desculpa. Rechaçou-me na sala de exame, mas na realidade queria falar comigo. Assim, me liga com a desculpa de meu braço para obter que a atenda por telefone. E agora me tem. — sua voz baixou outro tom — Deixará-me escolher o que quero que faça comigo?
Ela permaneceu em silêncio. Até que ele disse:
— Olá?
— Terminou? Ou quer seguir dando voltas ao assunto um momento mais, procurando todo tipo de significados a respeito do que estou fazendo?
Houve um instante de silêncio, e logo ele irrompeu em uma profunda e sincera gargalhada com seu vivo tom de barítono.
— Sabia que me agradava por mais de uma razão.
Ela se negou a ser cativada. Mas de todos os modos foi.
— Liguei por seu braço. Ponto. A enfermeira de meu pai acaba de ir, e estávamos falando de uma…
Fechou a boca assim que se deu conta do que tinha revelado, sentindo como se tivesse tropeçado com o equivalente coloquial da ponta de um tapete solto.
— Continue. — lhe disse com gravidade — Por favor.
— Ehlena? Ehlena…
— Está aí, Ehlena?
Mais tarde, muito mais tarde, refletiria que essas três palavras tinham sido seu precipício: Está aí, Ehlena?
Verdadeiramente foi o começo de tudo o que se seguiu, a frase inicial de uma dilaceradora jornada disfarçada na forma de uma simples pergunta.
Alegrava-lhe não saber aonde a conduziria. Porque às vezes a única coisa que podia te ajudar a sair do inferno era o fato de que estava colocada muito profundamente para poder sair.
Enquanto Rehv esperava a resposta, seu punho se apertou tanto sobre o celular, que acionou uma das teclas contra a bochecha e esta emitiu um bip de: Errr, homem, te afrouxe um pouco.
O juramento eletrônico pareceu romper o feitiço em ambos.
— Sinto-o. — murmurou ele.
— Está bem. Eu, ah…
— Dizia…?
Não esperava que respondesse, mas então… Ela o fez.
— A enfermeira de meu pai e eu estávamos falando de um corte que está lhe dando problemas, e isso foi o que me fez pensar em seu braço.
— Seu pai está doente?
— Sim.
Rehv aguardou que dissesse algo mais, enquanto tentava decidir se exercer um pouco de pressão faria com que se calasse… Mas ela resolveu a questão.
— Alguns dos medicamentos que toma provoca instabilidade, razão pela que se choca contra as coisas e nem sempre se dá conta de que se machucou. É um problema.
— Sinto muito. Cuidá-lo deve ser difícil para você.
— Sou uma enfermeira.
— E uma filha.
— Assim, era por um assunto clínico. Minha ligação.
Rehv sorriu.
— Deixe-me perguntar algo.
— Eu primeiro. Por que não deixa que avaliem o braço? E não me diga que Havers viu essas veias. Se o tivesse feito, lhe teria receitado antibióticos, e se você tivesse recusado haveria uma nota em seu histórico informando que tinha apelado à AMA. Olhe tudo o que necessita para tratá-lo são algumas pílulas, e sei que não tem fobia à medicina. Toma uma quantidade infernal de dopamina.
— Se estava preocupada com meu braço, por que não me falou na clínica?
— Eu o fiz, recorda?
— Não desta forma. — Rehv sorriu na escuridão e acariciou com a mão o edredom de visom. Não podia senti-lo, mas se imaginava que a pele era tão suave como o cabelo dela — Ainda penso que queria me ter ao telefone.
A pausa que seguiu o preocupou com a possibilidade de que desligasse.
Sentou-se, como se a posição vertical evitaria que ela pressionasse o botão de fim.
— Só estou dizendo… Bom, merda, o que quero dizer é que me alegra que tenha ligado. Sem importar a razão.
— Não falei mais deste tema na clínica porque foi antes que acrescentasse as notas de Havers no computador. Esse foi o momento em que me dei conta.
Ele ainda não acreditava que a chamada fosse completamente por motivos profissionais. Poderia ter lhe mandado um email. Poderia ter dito ao doutor. Poderia passar a uma das enfermeiras do turno do dia para que fizesse o acompanhamento.
— Assim não há nenhuma possibilidade de que se sinta mal por me haver rechaçado tão duramente como o fez.
Ela clareou a garganta.
— Sinto por isso.
— Bom, a perdôo. Totalmente. Completamente. Tinha aspecto de não estar tendo uma boa noite.
Sua exalação foi uma manifestação de extenuação.
— Sim, não foi minha melhor noite.
— Por quê?
Outra longa pausa.
— É muito melhor por telefone, sabia?
Ele se pôs a rir.
— Muito melhor em que sentido?
— É mais fácil lhe falar. Na realidade… É bastante fácil falar com você.
— Faço-o bem no mano-a-mano.
De repente franziu o cenho, pensando no recebedor de apostas que tinha ajustado as contas em seu escritório. Merda, o pobre bastardo era somente um de um enorme número de traficantes de drogas, lacaios de Las Vegas, barmans e alcoviteiros que nos últimos anos tinha persuadido a golpes. Sua filosofia sempre tinha sido que a confissão era boa para a alma, especialmente quando se tratava de caras que pensavam que não notaria que o estavam fodendo. Seu estilo de administração também lançava uma importante mensagem em um negócio onde a debilidade fazia com que lhe matassem. O comércio clandestino requeria uma mão dura, e sempre tinha acreditado que essa era a realidade em que vivia, somente.
Entretanto, agora nesse sossegado momento, tendo Ehlena tão perto, sentia como se seu “mano-a-mano” era algo que requeria uma desculpa e ser encoberto.
— Então? Por que esta noite não foi boa? — perguntou desesperado por sossegar a si mesmo
— Meu pai. E logo… Bom, deixaram-me plantada.
Rehv franziu o cenho tão fortemente que de fato sentiu um leve ponto entre os olhos.
— Para um encontro?
— Sim.
Odiava a idéia dela saindo com outro macho. E não obstante invejava ao filho da puta, quem quer que fosse.
— Que imbecil. Sinto muito, mas que imbecil.
Ehlena riu, e ele amou o som, especialmente a forma em que seu corpo se esquentou um pouquinho mais em resposta. Homem, ao demônio com as duchas quentes. Essa risada suave e tranqüila era o que necessitava.
— Está sorrindo? — disse brandamente.
— Sim. Quero dizer, suponho que sim. Como soube?
— Simplesmente tinha a esperança de que fosse assim.
— Bom, realmente pode ser amável e encantador. — rapidamente para dissimular o elogio, disse — O encontro não era grande coisa nem nada. Não o conhecia muito bem. Era somente para tomarmos um café.
— Mas terminou a noite no telefone comigo. O que é muito melhor.
Ela voltou a rir.
— Bom, agora nunca saberei como seria sair com ele.
— Não?
— Eu somente… Bom, pensei nisso, e não acredito que ter encontros neste momento seja uma boa idéia, dada minha situação. — o surgimento de seu júbilo foi descartado quando adicionou — Com ninguém.
— Hmmm.
— Hmmm? O que significa hmmm?
— Significa que tenho seu número telefônico.
— Ah, sim, tem… — sua voz se deteve quando o sentiu mover-se — Espere, você está… Na cama?
— Sim. E antes que continue, não quer saber.
— Não quero saber, o que?
— Quanto, não estou usando.
— Errr... — enquanto duvidava, soube que estava sorrindo outra vez. E provavelmente ruborizando-se — Não tinha intenção de perguntar.
— Muito inteligente de sua parte. Sou somente eu e os lençóis… Ups. Acabo de dizer isso em voz alta?
— Sim. Sim, o fez. — sua voz baixou um tom como se o estivesse imaginando nu. E a imagem mental não lhe incomodasse minimamente.
— Ehlena… — deteve a si mesmo, seus impulsos symphath contribuíram para o autocontrole. Para ir mais devagar. Sim, Rehv a desejava tão nua como ele estava. Mas, mais que isso desejava que permanecesse no telefone.
— O que? — respondeu.
— Seu pai… Esteve doente durante muito tempo?
— Ah… Sim, sim, esteve. É esquizofrênico. Não obstante, agora o temos medicado, e está melhor.
— Maldito… Seja. Isso deve ser realmente difícil. Porque ele está aí, mas ao mesmo tempo não está correto?
— Sim… Essa é exatamente a forma em que se sente.
Era parecido à forma em que ele vivia, seu lado symphath era uma constante realidade alternativa, que o perseguia enquanto tratava de viver as noites como uma pessoa normal.
— Se não se incomodar que pergunte, — disse cuidadosamente — para que precisa da dopamina? Não há nenhum diagnóstico em seu histórico médico.
— Provavelmente porque Havers sempre esteve me tratando.
Ehlena riu incômoda.
— Suponho que esse deve ser o motivo.
Merda, o que lhe dizia.
O symphath que havia nele lhe dizia “Como é, simplesmente minta”. O problema era que de alguma parte tinha aparecido outra voz em seu cérebro, rivalizando com a primeira, uma que lhe era desconhecida e muito débil, mas categoricamente compulsiva. Entretanto, como não tinha nem idéia do que era, continuou com sua rotina.
— Tenho Parkinson. Ou, mais precisamente, o equivalente vampiro.
— Oh… O sinto. Então é por isso que usa bengala.
— Meu equilíbrio é ruim.
— Não obstante a dopamina está lhe fazendo bem. Quase não tem tremores.
Essa débil voz em sua cabeça se transformou em uma estranha dor no centro de seu peito, e por um momento deixou de lado o fingimento, e disse a verdade:
— Não tenho nem idéia do que faria sem essa droga.
— Os medicamentos de meu pai foram como um milagre.
— Você é a única que o cuida? — quando ela respondeu com um hmmm, perguntou — Onde está o resto de sua família?
— Somos somente ele e eu.
— Então você está enfrentando uma tremenda carga.
— Bom, o amo. E se os papéis estivessem invertidos, ele faria o mesmo. É o que pais e filhos fazem uns pelos outros.
— Nem sempre. É evidente que você procede de uma família de gente bondosa. — antes de poder deter-se, prosseguiu — Mas é por isso que se sente sozinha, não é verdade? Sente-se culpada se o deixar, embora seja por uma hora, e se fica em casa não pode ignorar o fato de que a vida está passando. Está presa e gritando, mas não mudaria nada.
— Devo ir.
Rehv fechou os olhos com força, essa dor em seu peito, expandia-se através de todo seu corpo como um incêndio sobre pasto seco. Com sua vontade acendeu uma luz, como se a escuridão se convertesse em um símbolo de sua própria existência.
— É apenas… Que sei o que sente, Ehlena. Não pelas mesmas razões… Mas entendo todo esse assunto da separação. Sabe esse conceito de que está vendo todo o resto do mundo viver suas vidas… Oh, porra, como é. Espero que durma bem…
— Assim é como me sinto a maior parte do tempo. — agora sua voz tinha um tom aprazível, e o alegrou que tivesse entendido o que tinha tratado de lhe dizer, apesar de que ele tinha sido tão eloqüente como um gato guia de ruas.
Agora era ele quem se sentia incômodo. Não estava acostumado a falar dessa forma… Nem a sentir dessa forma.
— Escute, deixarei que descanse um pouco. Alegra-me que tenha ligado.
— Sabe… A mim também.
— E Ehlena?
— Sim?
— Acredito que tem razão. Não é uma boa idéia que se envolva com alguém neste momento.
— Sério?
— Sim. Bom dia.
Houve uma pausa.
— Bom… Dia. Espere…
— O que?
— Seu braço. O que vai fazer com seu braço?
— Não se preocupe, estará bem. Mas obrigado por seu interesse. Significa muito para mim.
Rehv desligou primeiro e deixou o telefone sobre o edredom de visom. Fechou os olhos deixando a luz acesa. E não dormiu nada.
Capítulo 14
No complexo da Irmandade, Wrath abandonou a idéia de que logo se sentiria melhor em relação à situação com Beth. Inferno! Podia passar o próximo mês em sua cadeira, dando voltas na cabeça, e isso somente lhe gelaria o rabo.
E, enquanto isso, os cantos rodados[38] no corredor estavam ficando mofados e mal-humorados.
Abriu as portas duplas com sua vontade e como uma unidade seus irmãos ficaram firmes. Ao olhar através da extensão azul pálido do estúdio seus corpos grandes e duros na galeria, reconheceu-os não por seus rostos, nem sua roupa ou sua expressão, mas sim pelo eco de cada um em seu sangue.
As cerimônias da Tumba que uniu a todos ressonavam sem importar quanto tempo tivesse ocorrido.
— Não fiquem aí parados! — disse enquanto a Irmandade o olhava fixamente — Não abri essas fodidas portas para me converter em uma exibição de zoológico.
Os irmãos entraram com suas pesadas botas… Exceto Rhage, que usava suas sapatilhas, seu costumeiro calçado para casa sem importar a estação. Cada um dos guerreiros tomou sua posição habitual na sala, com Z indo parar junto à chaminé, V e Butch sentados no sofá de pernas estreitas recentemente reforçadas. Rhage se aproximou do escritório com uma série de “flip-flip-flip” para ligar o alto-falante do telefone, deixando que seus dedos abrissem o caminho para Phury que estava no aparelho.
Ninguém disse nada a respeito dos papéis que estavam no chão. Ninguém tentou recolhê-los. Era como se ali não houvesse nenhuma confusão, e assim era como Wrath preferia.
Enquanto Wrath fechava as portas com a mente, pensou em Tohr. O irmão estava na casa, mais precisamente no corredor das estátuas, a apenas umas poucas portas, mas estava em um continente diferente. Convidá-lo não era uma opção… Seria uma crueldade, dado onde estava sua mente.
— Olá? — saiu a voz de Phury do telefone.
— Estamos todos aqui. — disse Rhage antes de desembrulhar um Tootsie Pop e dirigir-se com seu “flip-flip-flip” para uma poltrona verde feia como o rabo.
A monstruosidade era de Tohr, e tinha sido levada ao escritório para que John Matthew dormisse nela depois que Wellsie fosse assassinada e Tohrment tivesse desaparecido. Rhage tendia a utilizar a coisa porque realmente com seu peso, era a opção mais segura para seu rabo, sofás reforçados de aço incluídos.
Com todos já acomodados, a sala ficou em silencio à exceção do rangido dos molares de Hollywood sobre essa coisa de cereja que tinha na boca.
— Oh, que diabos... — Rhage gemeu finalmente ao redor de seu pirulito — Só nos diga isso! Seja o que for. Estou a ponto de me pôr a gritar. Morreu alguém?
Não, mas certo como a merda que sentia como se tivesse matado algo.
Wrath olhou em direção ao irmão, logo olhou a cada um deles.
— Serei seu companheiro, Hollywood.
— Companheiro? — Rhage passeou a vista pela sala para comprovar e ver se todos tinham ouvido o mesmo que ele — Não está falando do gim rummy, verdade?
— Não. — disse Z em voz baixa— Não acredito que esteja.
— Sagrada Merda! — Rhage tirou outro pirulito do bolso da camiseta negra — Isto é legal?
— Agora é. — murmurou V.
Phury falou ao telefone.
— Espera, espera… É para me substituir?
Wrath sacudiu a cabeça embora o Irmão não pudesse vê-lo.
— É para substituir a muitas pessoas que perdemos.
A conversa borbulhou como uma lata da Coca Cola que acabasse de ser aberta de repente. Butch, V, Z e Rhage começaram a falar todos de uma vez até que uma voz metálica interrompeu o falatório:
— Então, também quero voltar.
Todos olharam o telefone, exceto Wrath que olhou fixamente a Z para medir a reação do tipo. Zsadist não tinha problemas em demonstrar ira. Jamais! Mas escondia a preocupação e a inquietação como se fosse dinheiro solto e estivesse rodeado de assaltantes: enquanto a declaração de seu gêmeo ressoava, ficou em modo de completa auto-proteção, esticando-se e sem emitir absolutamente nada em termos de emoção.
Ah, correto, pensou Wrath. O duro bastardo estava assustado como um eunuco.
— Está certo de que é uma boa idéia? — perguntou Wrath lentamente — Possivelmente lutar não é o que necessita neste momento, Irmão.
— Não fumei em quase quatro meses. — disse Phury pelo alto-falante — E não tenho planos de voltar para as drogas.
— O estresse não fará essa merda mais fácil.
— Oh! Mas, ficar sentado sobre meu rabo enquanto o seu está fora o fará?
Maravilhoso. O rei e o Primale no campo de batalha pela primeira vez na história. E por quê? Porque a Irmandade estava nas últimas.
Grande recorde para superar. Como ganhar os fodidos cinqüenta metros nas olimpíadas para perdedores.
Cristo!
Salvo que então Wrath pensou nesse civil morto. Era esse um desenlace melhor? Não!
Recostando em sua delicada cadeira, olhou a Z com dureza.
Como se sentisse os olhos sobre ele, Zsadist se afastou do suporte da chaminé e ficou caminhando pelo escritório. Todos sabiam o que estava imaginando: Phury com uma overdose no chão do banheiro, com uma seringa de heroína vazia, atirada a seu lado, sobre o mosaico.
— Z? — a voz de Phury saiu do telefone — Z? Levante o auricular…
Quando Zsadist conversou com seu gêmeo, seu rosto, com a cicatriz trincada, adquiriu um cenho tão desagradável que até Wrath podia ver seu olhar enfurecido. E a expressão não melhorou ao dizer:
— Enche o saco! Sim. Enche o saco! Sei. Correto. — houve uma longa, longa pausa — Não, ainda estou aqui. Ok. Bem.
Pausa.
— Jura-me isso! Pela vida de minha filha.
Após um momento, Z apertou o alto-falante outra vez, pôs o auricular em seu lugar e voltou para a chaminé.
— Estou dentro. — disse Phury.
Wrath se mexeu na efeminada cadeira, desejando que muitas coisas fossem diferentes.
— Sabe possivelmente em outro momento, diria que desistisse. Agora, somente direi… Quando pode começar?
— Ao anoitecer. Deixarei Cormia responsável com as Escolhidas enquanto estou fora no campo de batalha.
— A sua fêmea vai receber isso bem?
Houve uma pausa.
— Ela sabe com quem se emparelhou. E serei honesto com ela.
Ouch!
— Agora tenho uma pergunta. — disse Z brandamente — É a respeito do sangue seco que há em sua camiseta, Wrath.
Wrath pigarreou.
— De fato, já faz um tempo que retornei. À luta.
A temperatura da habitação caiu. Devido a que Z e Rhage ficaram de saco cheio por não terem sabido.
E então, repentinamente, Hollywood amaldiçoou.
— Espere… Espere. Vocês dois sabiam… Sabiam antes de nós, verdade? Porque nenhum parece surpreso.
Butch clareou a garganta, porque o olhavam com fúria.
— Precisava de mim para fazer a limpeza. E V tentou lhe fazer mudar de opinião.
— Quanto tempo faz que começou isto, Wrath? — ladrou Rhage.
— Desde que Phury deixou de lutar.
— Está brincando!
Z foi a passos longos até uma das janelas que iam do chão ao teto, e apesar das persianas estarem abaixadas, olhou fixamente a coisa como se pudesse ver os terrenos que havia do outro lado.
— Maldita boa coisa que não tenha conseguido que o matassem aí fora.
Wrath despiu suas presas.
— Acredita que luto como uma mariquinha simplesmente porque agora estou atrás deste escritório?
A voz de Phury se elevou do telefone.
— Bem, todo mundo, relaxem! Agora todos sabemos, e as coisas vão ser diferentes de agora em diante. Ninguém lutará sozinho, embora vamos de três em três. Mas, preciso saber, isto vai ser de conhecimento geral? Anunciará depois de amanhã na reunião do conselho?
Caralho, esse feliz e pequeno enfrentamento não era algo que estivesse desejando levar a cabo.
— Acredito que por hora manteremos em silêncio.
— Sim. — replicou Z — Porque realmente, para que ser honestos?
Wrath o ignorou.
— Embora direi a Rehvenge. Sei que há membros da glymera que se estão queixando pelos assaltos. Se converter isso em algo muito grande, poderá acalmar as coisas com este tipo de informação.
— Já terminamos? — perguntou Rhage com voz monótona.
— Sim. Isso é tudo.
— Então vou indo.
Hollywood abandonou a sala indignado, e Z se foi justo detrás dele, duas vítimas mais da bomba que Wrath tinha deixado cair.
— Como Beth reagiu? — perguntou V.
— Como acha? — Wrath ficou de pé e seguiu o exemplo do par que tinha saído.
Hora de ir procurar à Doutora Jane para que o costurasse, assumindo que os cortes já não se fecharam.
Precisava estar preparado para voltar a sair para lutar amanhã.
Na fria e brilhante luz da manhã, Xhex se desmaterializou para o outro lado de uma parede alta, aos ramos nus de uma robusta sebe. A mansão que estava mais à frente descansava na superfície da paisagem como uma pérola cinza engastada em uma filigrana, árvores finas e cortadas pelo vento se elevavam ao redor da velha casa paroquial de pedra, ancorando-a na ondulada grama, prendendo-a contra a terra.
O débil sol de dezembro se derramava sobre ela, fazendo com que o que teria sido austero de noite parecesse unicamente venerável e distinto.
Seus óculos de sol eram quase negros, a única concessão que precisava fazer a seu lado vampiro se saía durante o dia. Atrás das lentes, sua visão permanecia aguda e via cada detector de movimento, cada luz de segurança e cada janela de vidro chumbado coberta por venezianas.
Entrar ia ser um desafio. Os vidros desses caras estavam sem dúvida reforçados com aço, o que queria dizer que desmaterializar-se para dentro seria impossível embora as venezianas estivessem levantadas. E com seu lado symphath, pressentiu que havia muitas pessoas dentro: na cozinha estava o pessoal. Acima estavam os que dormiam. Outros estavam movendo-se pelo lugar. Não era uma casa feliz, os quadriculados emocionais deixados pelas pessoas que havia ali estavam cheios de sentimentos sombrios e violentos.
Xhex se desmaterializou ao teto da seção principal da mansão, lançando a versão symphath do mhis. Não a ocultava por completo, mas era como se a convertesse em mais uma sombra, entre as sombras projetadas pelas chaminés e a merda do sistema do CVAA, mas era suficiente para comprar um passe pelos detectores de movimento.
Aproximando-se de um conduto de ventilação, encontrou uma lâmina de malha de aço grosso como uma regra, atarraxada às paredes de metal. A chaminé estava igual. Coberta com aço robusto.
Não a surpreendia. Tinham uma segurança muito boa aqui.
A melhor oportunidade de penetração seria de noite, utilizando uma pequena furadeira à pilhas em uma das janelas. As acomodações dos criados estavam atrás, seria um bom lugar para entrar, dado que o pessoal estaria trabalhando e essa parte da casa estaria mais tranqüila.
Entrar. Encontrar o objetivo. Eliminá-lo.
As instruções de Rehv era deixar um cadáver chamativo, assim não se incomodaria em ocultá-lo nem tampouco em desfazer do corpo.
Enquanto andava através dos pequenos seixos que cobriam o teto, os cilícios que levava ao redor das coxas lhe mordiam os músculos a cada passo, a dor a drenava de certa quantidade de energia e lhe proporcionava a concentração necessária… Ambas as coisas ajudavam a manter seus impulsos symphath presos no espaço traseiro de seu cérebro.
Não levaria postas as tiras com cilícios quando realizasse o trabalho.
Xhex se deteve e elevou o olhar ao céu. O vento seco e cortante prometia neve, e logo. O profundo gelo do inverno estava chegando a Caldwell.
Mas esteve em seu coração durante anos.
Abaixo dela, sob seus pés, voltou a sentir as pessoas, lendo suas emoções, as sentindo. Mataria a todos se o pedissem. Os assassinaria sem pensar nem duvidar enquanto jaziam em suas camas ou se dirigiam a seus deveres ou roubavam um bocado de meio-dia ou se levantavam para uma mijada rápida antes de voltar a dormir.
Tampouco lhe incomodava o resíduo sujo e detalhes do falecimento nem todo esse sangue, não mais do que a uma H&K ou a uma Glock importariam uma merda as manchas no tapete ou os ladrilhos melados ou as artérias que gotejavam. A cor vermelha era unicamente o que via quando ia trabalhar, e, além disso, de todos os modos, depois de um momento, todos esses olhos horrorizados e sobressaltados e essas bocas afogadas com os últimos fôlegos, viam-se todas iguais.
Essa era a grande ironia. Na vida, cada um era um floco de neve de formosa e independente proporção, mas quando a morte chegava e se sujeitava, deixava-te com pele, músculos e ossos anônimos, os quais se esfriava e deterioravam a um ritmo previsível.
Ela era a arma conectada ao indicador de seu chefe. Ele apertava o gatilho, ela disparava, o corpo caía, e apesar do fato de que algumas vidas eram alteradas para sempre, no dia seguinte o sol ainda saía e se punha para todas as demais pessoas que havia no planeta, incluindo a ela.
Tal era o curso de seu trabalho-obrigação, como o definia: metade emprego, metade obrigação pelo que Rehv fazia para proteger aos dois.
Quando voltasse para este lugar ao anoitecer, faria o que tinha que fazer ali e sairia com a consciência tão intacta e segura como uma abóbada bancária.
Entrar e sair e nunca voltar a pensar nisso.
Assim era o caminho e a vida de um assassino.
Capítulo 15
Os aliados eram a terceira engrenagem na maquinaria da guerra.
Os recursos e os recrutas lhe davam o motor tático que permitiam a se enfrentar, cercar combate, e reduzir o tamanho e força dos exércitos de seus inimigos. Os aliados eram sua vantagem estratégica, gente cujos interesses estavam alinhados com os teus, embora suas filosofias e metas finais pudessem não coincidir. Era tão importante como o primeiro e o segundo se queria ganhar, mas eram um pouco menos controláveis.
A menos que soubesse como negociar.
— Estamos conduzindo faz um tempo. — disse o senhor D detrás do volante do Mercedes do falecido pai adotivo de Lash.
— E vamos seguir conduzindo um pouco mais. — Lash estudou seu relógio.
— Não vai dizer aonde vamos?
— Não. Não o fiz, verdade?
Lash olhou pela janela do sedã. As árvores aos lados da Northway pareciam desenhos feitos a lápis antes que se riscassem as primeiras folhas, nada mais que carvalhos ermos, sebes altas, finas e retorcidas. As únicas a ter um pouco de verde eram as robustas e rechonchudas coníferas, as quais iam aumentando em número à medida que se internavam no Parque Adirondack.
Céu cinza. Auto-estrada cinza. Árvores cinza. Era como se a paisagem do estado de Nova Iorque tivesse caído presa da gripe ou alguma merda assim, com um aspecto tão são como o de alguém que não tinha recebido sua vacina de pneumonia a tempo.
Havia duas razões pelas que Lash não tinha sido franco sobre aonde ele e seu segundo ao comando se dirigiam. A primeira era diretamente de mariquinha, e mal podia admitir para si mesmo. Não estava certo se iria ao encontro que tinha marcado.
A questão era que este aliado era complicado, e Lash sabia que só o fato de se aproximar era como cutucar um ninho de vespas com um pau. Sim, seria um grande aliado potencial, mas, se em um soldado a lealdade era um bom atributo, em um aliado era missão crítica, e para onde se dirigiam a lealdade era um conceito tão desconhecido como o medo. Assim, estava mais ou menos fodido nos dois extremos e por isso não falava. Se a reunião não corresse bem, ou se sua aproximação não funcionasse, não haveria negociação, e nesse caso, o senhor D não tinha que saber os pormenores de com quem ia negociar.
A outra razão que fazia com que Lash guardasse silêncio era que não estava seguro se a outra parte apareceria à festa. Em cujo caso, outra vez, não queria que soubessem o que tinha estado planejando.
Na lateral da estrada, em um pequeno sinal verde com letras refletivas brancas se lia: FRONTEIRA EUA 61.
Sim, sessenta e um quilômetros e estaria fora do país… E por isso a colônia symphath tinha sido colocada lá em cima. O objetivo tinha sido manter a todos esses filhos da puta sociopatas tão longe da população civil vampiro como fosse possível, e o objetivo foi alcançado. Um pouco mais perto do Canadá e teria que lhes dizer “foda-se” e “morre” em francês.
Lash fazia o contato graças ao velho Rolodex de seu pai adotivo, o que como o carro do macho, tinha provado ser muito útil. Como anterior leahdyre da câmara de vereadores, Ibix teve uma forma de contatar com os symphaths no caso de algum se encontrar escondendo-se entre a população geral e ter que ser deportado. É obvio, que a diplomacia entre as espécies nunca tinha sido oficial. Isso teria sido como oferecer a garganta exposta a um assassino em série, com o Henckels para cortá-la inclusive.
O e-mail de Lash ao rei dos symphaths tinha sido curto e direto ao ponto, e na breve missiva, identificou-se como quem era realmente, não como quem tinha crescido pensando que era: ele era Lash, chefe da Sociedade Lessening. Lash, filho de Omega. E estava procurando uma aliança contra os vampiros que tinham discriminado e rechaçado aos symphaths.
Certamente o rei queria vingança pela falta de respeito demonstrada a sua gente.
A resposta que recebeu foi tão gentil que quase vomitou. Mas então recordou de seus dias de treinamento que os symphaths tratavam tudo como se fosse uma partida de xadrez… Exatamente até o momento em que capturavam a seu rei, convertiam a sua rainha em uma puta, e queimavam seus castelos. A resposta do líder da colônia assinalava que um debate associado de interesse mútuo seria bem-vindo, e tinha perguntado se Lash seria tão amável de ir ao norte, já que as opções de viagem do rei exilado estavam, por definição, limitadas.
Lash fora de carro porque impôs uma condição própria, que era a assistência do senhor D. A verdade era que estabeleceu a condição simplesmente para igualar as demandas. Queriam que fosse a eles, bem, ele levaria um de seus homens. E como o lesser não podia desmaterializar-se, era necessário dirigir.
Cinco minutos depois, o senhor D pegou uma saída da auto-estrada e atravessou um centro urbano que era do tamanho de apenas um dos sete parques da cidade de Caldwell. Aqui não havia arranha-céu, só edifícios de tijolos de quatro e cinco andares, tanto assim parecia como se os duros meses de inverno tivessem impedido não só o crescimento das árvores, mas também da arquitetura.
Por ordem de Lash, conduziram para o oeste, passando hortas de pomares de maçãs desfolhados e granjas de vacas cercadas.
Como tinha feito na auto-estrada, aqui também desfrutou da paisagem com olhos ávidos. Ainda o surpreendia poder presenciar a leitosa luz solar de dezembro lançando sombras sobre calçadas, telhados de casas e sobre a terra marrom que havia sob as nuas extremidades das árvores. Em seu renascimento, seu verdadeiro pai lhe deu um propósito renovado, junto com este dom da luz diurna, e desfrutava imensamente de ambos.
O GPS do Mercedes apitou um par de minutos depois, e a leitura se tornou toda incerta. Imaginou que isso significava que se aproximavam da colônia, e para lhe dar razão apareceu a estrada que estavam procurando. Ilene Avenue estava indicada somente por um diminuto sinal. E avenida, uma merda, não era nada mais que um caminho de terra que cruzava os campos de milho.
O sedã fazia o que podia sobre o caminho acidentado, seus amortecedores absorviam as crateras criadas pelos atoleiros, mas a viagem teria sido mais fácil em um fodido quatro por quatro. Não obstante, ao final, na distância apareceu um grosso circulo de árvores, e a granja que conformava a cabeça ao redor da qual estavam apinhados, estava em condições imaculadas, toda pintada de um branco brilhante com venezianas e teto verde escuro. Como tirado de um cartão de natal humano, com fumaça saindo de suas quatro chaminés, e o alpendre equipado com cadeiras de balanço e arbustos de folha perene.
Ao aproximar-se, passaram um discreto sinal branco e verde que dizia: ORDEM MONÁSTICA TAOISTA, EST. 1982.
O senhor D estacionou o Mercedes, desligou o motor, e fez o sinal da cruz sobre seu peito. O que era fodidamente estúpido.
— Isto me dá mau agouro.
A questão era que o pequeno texano tinha razão. Apesar do fato de que a porta dianteira estava aberta e a luz do sol se derramava sobre um piso de madeira de uma quente cor cereja, algo mal espreitava depois da fachada familiar. Era simplesmente muito perfeito, muito calculado para fazer com que uma pessoa se relaxasse e assim debilitar seus instintos defensivos.
Lash pensou que era como uma garota bonita com uma ETS.
— Vamos. — disse.
Ambos saíram, e enquanto o senhor D empunhava sua Magnum, Lash não se incomodou em procurar sua arma. Seu pai lhe tinha proporcionado muitos truques, e a diferença daquelas ocasiões em que tratava com humanos, não tinha problemas em mostrar suas habilidades especiais diante de um symphath. Se acaso, montar um espetáculo ajudaria a que o vissem sob a luz apropriada.
O senhor D colocou seu chapéu de cowboy.
— Isto realmente me dá um mau pressentimento.
Lash entrecerrou os olhos. Frente a cada uma das janelas, penduravam cortinas de renda, mas apesar do branco do tecido, a merda era horripilante... Uau! Moviam-se?
Nesse momento, compreendeu que não era renda, a não ser tecidos de aranha. Povoadas por aracnídeos brancos.
— São... Aranhas?
— Sim. — certamente não seria a escolha decorativa de Lash, mas bom, ele não tinha que viver ali.
Os dois se detiveram no primeiro dos três degraus que levavam ao alpendre dianteiro. Caralho, algumas portas abertas não eram acolhedoras, e definitivamente aqui se dava o caso... Menos de “olá-como-está”, e mais de “entra-assim-poderemos-usar-tua-pele-para-fazer-uma-capa-de-superherói-para-um-dos-pacientes-de-hannibal-lecter”.
Lash sorriu. Quem quer que estivesse nessa casa era definitivamente um amigo.
— Quer que suba e toque a campainha? — disse o senhor D — Se é que há?
— Não. Esperaremos. Eles virão até nós.
E olhe só, alguém apareceu no extremo mais afastado do vestíbulo dianteiro.
O que desceu para eles tinha suficiente tecido pendurando de sua cabeça e ombros para competir com um cenário da Broadway. O tecido era estranho, de um branco reluzente, um branco que captava a luz e a refletia entre as grossas dobras, e o peso de toda ela era capturado por um forte cinturão branco de brocado.
Muito impressionante. Se te agradava o filme monarca-sacerdotal.
— Saudações, amigo. — disse uma voz baixa e sedutora — Sou o que procuram, o líder dos ingratos.
Os “s” se arrastavam até quase formar palavras independentes, o acento soava muito parecido ao tremor de advertência de uma serpente cascavel.
Um calafrio atravessou Lash e o formigamento desceu até seu pênis. O poder era, antes de tudo, melhor que o “Êxtase” como afrodisíaco, e esta coisa que se deteve entre os batentes da porta dianteira era toda autoridade.
Longas e elegantes mãos se estenderam para o capuz e jogaram as brancas dobras para trás. O rosto do líder ungido dos symphaths era tão suave como sua espetacular túnica, os planos das bochechas e queixo formados por elegantes e suaves ângulos. O lago genético que tinha engendrado a este formoso e decadente assassino era tão refinado que seu sexo era quase único, fundindo as características de macho e fêmea, com uma preponderância para o feminino.
Entretanto, o sorriso era completamente gelado. E os cintilantes olhos vermelhos eram sagazes até a malevolência.
— Não querem entrar?
A adorável voz serpentina fundiu essas palavras umas com outras, e Lash se encontrou desfrutando do som.
— Sim. — disse, voltando a concentrar-se no assunto — Faremos isso.
Quando se adiantou, o rei elevou a palma da mão.
— Um momento, se não se importar. Por favor, diga a seu associado que não tenha medo. Nada lhes fará mal aqui. — a declaração era bastante amável na superfície, mas o tom foi duro... Do qual Lash deduziu que não eram bem-vindos na casa se o senhor D levava uma arma na mão.
— Guarde a arma. — disse Lash brandamente — Nos tenho cobertos.
O senhor D embainhou a 357, com um “sim, senhor” tácito, e o symphath se afastou da porta.
Enquanto subiam os degraus, Lash franziu o cenho e baixou o olhar. Suas pesadas botas de combate não faziam nenhum som sobre a madeira, e o mesmo ocorreu sobre as tabuletas do alpendre quando se aproximaram da porta.
— Preferimos as coisas silenciosas. — o symphath sorriu, revelando que tinha os dentes parecidos, o que foi uma surpresa. Evidentemente, as presas destas criaturas, que uma vez tinha estado estreitamente aparentadas com os vampiros, tinham sido extirpadas. Se ainda se alimentavam, não podia ser muito freqüentemente, a menos que gostassem das facas.
O rei estendeu o braço à esquerda.
— Passamos ao salão?
O “salão” poderia ser descrito mais precisamente como “pista de boliche com cadeiras de balanço”. O espaço não era mais que um lustroso piso de madeira, e paredes cobertas só por pintura branca. No meio do caminho havia quatro cadeiras Shaker agrupadas formando um semicírculo ao redor da lareira acesa como se tivessem medo de tanto vazio e se apinhassem em busca de apoio.
— Sentem-se. — disse o rei enquanto levantava e afastava sua túnica para sentar-se em uma das altas e débeis cadeiras.
— Você fica de pé. — ordenou Lash ao senhor D, que obedientemente tomou posição atrás de onde Lash se sentou.
As chamas não estalavam alegremente ao consumir os lenhos que lhes tinham dado vida e as alimentavam. As cadeiras de balanço não rangeram quando o rei e Lash depositaram seu peso nelas. As aranhas não emitiram som quando cada uma caiu no centro de sua rede, como se preparassem-se para presenciar a reunião.
— Você e eu temos uma causa comum. — disse Lash.
— Parece acreditar nisto.
— Acreditava que sua raça acharia a vingança atrativa.
Quando o rei sorriu, esse estranho calafrio se disparou para o sexo de Lash.
— Está mal informado. A vingança não é mais que uma defesa crua e emocional contra um desprezo recebido.
— Está me dizendo que está abaixo de você? — Lash se recostou para trás e pôs sua cadeira em movimento, levando-a adiante e atrás — Hmmmm... Posso ter julgado a sua raça mal.
— Somos mais sofisticados que isso, sim.
— Ou talvez sejam só um bando de maricas.
O sorriso desapareceu.
— Somos muito superiores àqueles que acreditam nos haver aprisionado. Para falar a verdade, preferimos nossa própria companhia. Acredita que não projetamos este resultado? Tolo. Os vampiros são o caldo de cultivo a partir do qual evoluímos, são os chimpanzés para nosso raciocínio superior. Iria querer permanecer entre animais se pudesse viver em uma civilização com os de sua própria espécie? É obvio que não. Um busca a seus iguais. Requer a seus iguais. Aqueles de mentes semelhantes e superiores devem ser alimentados somente por aqueles de status similar. — os lábios do rei se elevaram — Sabe que é correto. Você tampouco ficou onde começou. Verdade?
— Não, não o fiz. — Lash deixou ver suas presas, pensando que sua marca de maldade não tinha encaixado entre os vampiros melhor do que ocorreu com os devoradores de pecados — Agora estou onde devo estar.
— Assim já vê. Se não tivéssemos desejado o exato resultado que obtivemos nesta colônia, poderíamos ter empreendido não precisamente uma vingança, mas sim uma ação corretiva que buscasse que nosso destino fosse favorável a nossos interesses.
Lash deixou de balançar-se.
— Se não estava interessado em uma aliança, poderia ter me dito isso sem delongas em um fodido email.
Uma estranha luz cintilou nos olhos do rei, uma que fez com que Lash se excitasse ainda mais, mas também o repugnou. Não ia a essa merda homossexual, e ainda assim... Bem, demônios, seu pai gostava dos machos, talvez algo disso se levava no sangue.
E acaso isso não daria ao senhor D algo pelo que rezar?
— Mas se tivesse enviado um email, não teria o prazer de te conhecer. — esses olhos cor vermelha rubi percorreram o corpo de Lash — E isso teria sido um roubo a meus sentidos.
O pequeno texano clareou a garganta, como se estivesse se engasgando com a língua.
Quando a tosse desaprovadora se desvaneceu, a cadeira do rei começou a mover-se acima e abaixo silenciosamente.
— Entretanto, há algo que poderia fazer por mim... Algo que por sua vez faria sentir obrigado a te proporcionar o que busca... Que é localizar vampiros, não é assim? Essa foi durante muito tempo a luta da Sociedade Lessening. Encontrar vampiros dentro de seus lares ocultos.
O bastardo tinha posto o dedo na ferida. No verão, Lash tinha sabido onde atacar porque tinha estado nos imóveis dos que tinha matado, participando de festas de aniversário de seus amigos, bodas de seus primos e bailes da glymera celebrados naquelas mansões. Agora, entretanto, o que ficava da elite dos vampiros se dispersou nos subúrbios da cidade ou tinha ido a seus refúgios fora do estado, e não conhecia esses endereços. E quanto aos civis? Aí não tinha nem idéia de por onde começar, porque nunca tinha confraternizado com o proletariado.
Os symphaths, entretanto, podiam sentir a outros, humanos e vampiros igualmente, vendo-os através de paredes sólidas e alicerces de porões subterrâneos. Se quisesse fazer algum progresso, precisava desse tipo de visão, era a única coisa que faltava entre todas as ferramentas que seu pai estava lhe proporcionando.
Lash empurrou o chão com suas botas de combate outra vez e adotou o mesmo ritmo que o rei.
— E exatamente o que é o que poderia necessitar de mim? — disse arrastando as palavras.
O rei sorriu.
— Os acoplamentos são nosso pilar fundamental, verdade? A união de um macho e uma fêmea. E não obstante dentro dessas relações íntimas é comum a discórdia. Promessas são feitas, mas não se mantêm. Pronunciam-se votos e ainda assim se descartam. Contra estas transgressões, medidas devem ser tomadas.
— Parece que esteve falando de vingança, tipo duro.
Esse rosto suave adquiriu uma expressão de auto-suficiência.
— Não, vingança não. Ação corretiva. Se isso implicar uma morte... É simplesmente o que a situação requer.
— Morte, não é? Assim que os symphaths não acreditam no divórcio?
Os olhos cor rubi cintilaram com desprezo.
— No caso de um consorte desleal cujas ações fora da cama atuam contra a alma da relação, a morte é o único divórcio.
Lash assentiu com a cabeça.
— Entendo a lógica. E quem é o objetivo?
— Está se comprometendo a atuar?
— Ainda não. — não tinha claro exatamente quão longe estava disposto a chegar. Sujar as mãos dentro da colônia não fora parte de seu plano original.
O rei deixou de balançar-se e ficou em pé.
— Pensa então, até que esteja seguro. Quando estiver preparado para receber de nós o que necessita para a guerra, volte para mim e mostrarei o modo de proceder.
Lash também se levantou.
— Por que simplesmente não mata você mesmo a sua companheira?
O lento sorriso do rei foi como o de um cadáver, rígido e frio.
— Meu queridíssimo amigo, o insulto que mais reprovo não é tanto a deslealdade, a qual poderia esperar, mas sim a arrogante hipótese de que nunca me inteiraria do engano. O primeiro é uma insignificância. O último é indesculpável. Agora... O acompanho até seu carro?
— Não. Sairemos por nós mesmos.
— Como desejar. — o rei estendeu sua mão de seis dedos — Foi um prazer...
Lash estendeu a sua e quando suas palmas se encontraram, sentiu a eletricidade lambendo seu braço.
— Sim. O que for. Terá notícias minhas.
Capítulo 16
Ela estava com ele... Oh, Deus, finalmente estava de volta com ele.
Tohrment, filho de Hharm, estava nu e pressionado contra a carne de sua amada, sentindo sua pele acetinada e ouvindo seu ofego quando levava a mão até seu peito. Cabelo vermelho... Havia cabelo vermelho esparramado por todo o travesseiro, a fez rodar de costas sobre os lençóis brancos que cheiravam como limões... Cabelo vermelho enredado ao redor de seu grosso antebraço.
O mamilo estava tenso contra seu polegar que se movia em círculos e sentiu a suavidade de seus lábios sob os seus ao beijá-la profunda e lentamente. Quando estivesse suplicando por ele, rodaria sobre ela e a tomaria por cima, penetrando-a com força, segurando-a em seu lugar.
Gostava de seu peso. Gostava da sensação de que a cobrisse. Em sua vida juntos, Wellsie era uma fêmea independente com uma mente forte e uma veia teimosa que rivalizava com a de um bulldog, mas na cama gostava que ele estivesse em cima.
Deixou cair a boca sobre seu seio, sugando o mamilo, fazendo-o rodar, beijando-o.
— Tohr...
— O que, leelan? Mais? Talvez tenha que te fazer esperar...
Mas não podia. Ocupou-se dela e lhe acariciou o estômago e os quadris. Quando se retorceu, lambeu seu pescoço e passou as presas pela jugular. Não podia esperar para alimentar-se. Por alguma razão, estava ávido de sangue. Talvez estivesse lutando muito.
Os dedos dela se afundaram em seu cabelo.
— Tome minha veia...
— Ainda não. — o aguilhão da espera só o faria ainda melhor... Quanto mais a desejasse, mais doce seria o sangue.
Deslocando-se para sua boca, beijou-a com mais força que antes, penetrando-a com a língua enquanto deliberadamente esfregava seu pênis contra a coxa, uma promessa de outra invasão, mais profunda em sua parte inferior. Estava completamente excitada, sua fragrância se elevava acima do aroma de limão dos lençóis, fazendo com que as presas brotassem em sua boca e a ponta de seu sexo se umedecesse.
Sua shellan tinha sido a única mulher que tinha conhecido. Ambos eram virgens na noite de seu emparelhamento... E ele nunca tinha desejado a ninguém mais.
— Tohr...
Deus! Amava o som baixo de sua voz. Amava tudo nela. Foram prometidos um ao outro antes de nascerem, e no momento em que se conheceram havia sido amor a primeira vista. O destino tinha sido amável com eles.
Deslizou a palma até sua cintura, e então...
Deteve-se, compreendendo que algo ia mal. Algo...
— Sua barriga... Sua barriga está plana.
— Tohr...
— Onde está o pequeno? — retirou-se, sentindo pânico — Estava grávida. Onde está o pequeno? Está bem? O que aconteceu com você... Está bem?
— Tohr...
Ela abriu os olhos, e o olhar que tinha conhecido durante centenas de anos se concentrou nele. Uma tristeza, do tipo que o fazia desejar não ter nascido jamais, eliminou o rubor sexual de seu formoso rosto.
Levantando o braço para ele, pôs a mão em sua bochecha.
— Tohr...
— O que aconteceu?
— Tohr...
O brilho em seus olhos e o tremor de sua adorável voz o partiu pela metade. Logo começou a distanciar-se, o corpo começou a desaparecer sob suas mãos, seu cabelo vermelho, seu rosto delicioso, seus olhos desesperados se desvaneceram até que ante ele somente ficaram os travesseiros. Logo, com um golpe final, o aroma de limão dos lençóis e a fragrância natural somente dela deixaram seu nariz, substituídos por nada...
Tohr se endireitou de um salto no colchão, com os olhos alagados de lágrimas e seu coração dolorido como se tivesse pregos atravessando seu peito. Respirando agitadamente se aferrou o esterno e abriu a boca para gritar.
Não saiu nenhum som. Não tinha forças.
Caindo para trás sobre os travesseiros limpou as bochechas úmidas com mãos trementes e tentou acalmar esse inferno. Quando finalmente recuperou o fôlego, franziu o cenho. Seu coração estava saltando dentro de sua caixa torácica, estava revoando mais que pulsando, e um enjôo, ocasionado, sem dúvida por seus erráticos espasmos fazia girar sua cabeça em um redemoinho.
Levantando a camiseta, baixou o olhar a seus peitorais desinflados e a seu torso encolhido e insistiu a seu corpo a seguir falhando. Os acessos lhe estavam chegando com crescente regularidade e força, e desejava como o demônio que se organizassem de uma vez e o ajudassem a despertar morto. Se quisesse ir ao Fade para estar com seus defuntos seres queridos, o suicídio não era uma opção, mas ele estava operando sob a presunção de que podia ser efetivamente negligente consigo mesmo até a morte. O que tecnicamente não era um suicídio, como seria se disparar um tiro ou jogar um nó corrediço ao redor do pescoço, ou cortar os punhos.
O aroma de comida que chegava do corredor o fez olhar ao relógio. Quatro da tarde. Ou era da manhã? As cortinas estavam corridas, assim não sabia se as persianas estavam levantadas ou baixadas.
Soou um golpe suave.
O qual, fodido obrigado, significava que não era Lassiter, que simplesmente entrava sempre que queria. Evidentemente os anjos caídos não sabiam muito de boas maneiras. Nem de espaço pessoal. Nem de limites de algum tipo. Estava claro que o grande e brilhante pesadelo foi arremessado a pontapés do céu porque Deus não tinha gostado de sua companhia muito mais do que Tohr gostava.
O golpe se repetiu. Assim devia ser John.
— Sim. — disse Tohr, permitindo que sua camiseta caísse enquanto se elevava para recostar-se sobre os travesseiros. Seus braços, uma vez fortes como gruas, lutaram sob o peso de seus ombros caídos.
O menino, que já não era um menino, entrou levando uma bandeja pesadamente carregada de comida, e uma expressão cheia de otimismo infundado.
Tohr examinou o conteúdo com o olhar enquanto a carga era depositada na mesinha. Frango com ervas, arroz com açafrão, feijões verdes e pão fresco.
A merda perfeitamente poderia ter sido carne de animal atropelado envolto em arame farpado, pelo que lhe importava, mas agarrou o prato, desenrolou o guardanapo, pegou o garfo e a faca e os utilizou.
Mastigar. Mastigar. Mastigar. Engolir. Mais mastigar. Engolir. Beber. Mastigar. Comer era tão mecânico e autônomo como respirar, algo do que era só levemente consciente, uma necessidade, não um prazer.
O prazer era coisa do passado... E uma tortura dentro de seus sonhos. Quando evocava sua shellan contra ele, nua, sobre lençóis com aroma de limão, a fugaz imagem acendia seu corpo de dentro para fora, o fazendo sentir-se vivo, e não só que vivia. Entretanto, o golpe do encontro se desvanecia rapidamente, era como uma chama sem nenhum abajur para sustentá-la.
Mastigar. Cortar. Mastigar. Engolir. Beber.
Enquanto comia, o menino se sentou em uma cadeira junto às cortinas fechadas, com os cotovelos nos joelhos, os punhos no queixo, um Pensador do Rodin vivinho e abanando o rabo. Ultimamente John sempre estava assim, sempre dando voltas em algo na cabeça.
Tohrment sabia condenadamente bem do que se tratava, mas a solução que terminaria com a triste preocupação de John primeiro ia doer-lhe como a merda.
E Tohr lamentava. Lamentava muito.
Cristo, por que Lassiter não podia tê-lo deixado deitado sem mais, naquele bosque? Esse anjo poderia ter ficado quietinho, mas não, Seu Senhorio Halogênico tinha que ser um herói.
Tohr desviou os olhos para John e seu olhar se fechou sobre o punho do menino. A coisa era enorme, e o queixo e mandíbula que descansavam sobre ele eram fortes, masculinos. O menino se converteu em um homem bonito, mas bem, como filho de Darius, provinha de um bom lago genético. Um dos melhores.
O que o levava a pensar... Verdadeiramente se parecia com D, uma cópia ao carvão, em realidade, exceto pelos jeans azuis. Darius nem morto se deixaria ver com jeans, nem sequer com esses de estilistas elegantes como os que John usava.
De fato... D com freqüência assumia exatamente a mesma posição quando estava ruminando sobre a vida, imitando o Rodin, todo cenho e agitação...
Um brilho de prata titilou na mão livre de John. Era um quarto de dólar, e o menino passava a moeda dentro, fora e ao redor de seus dedos, sua versão de um tic nervoso.
Esta noite havia algo mais no silêncio que John costumava assumir quando permanecia ali sentado. Algo tinha acontecido.
— O que aconteceu? — perguntou Tohr com voz áspera — Está bem?
Os olhos de John se elevaram de repente com surpresa.
Para evitar o olhar, Tohr baixou os seus, espetando um pouco de frango, e metendo-o na boca. Mastigar. Mastigar. Engolir.
A julgar pelos sons de movimento, John estava se desenroscando de sua rotina lentamente, como se temesse que qualquer movimento súbito espantasse a pergunta que ficava entre eles.
Tohr levantou o olhar de novo, e enquanto esperava, John meteu a moeda no bolso e gesticulou com economia e graça.
Wrath está lutando de novo. V acaba de contar isso a mim e aos meninos.
Tohr tinha perdido a prática com a Linguagem por Gestos Americano, mas nem tanto. A surpresa fez que baixasse seu garfo.
— Espere... Ainda é o rei, verdade?
Sim, mas esta noite disse aos Irmãos que vai voltar a ocupar seu lugar na rotação. Ou, suponho que esteve na rotação sem dizer a ninguém. Acredito que a Irmandade está de saco cheio com ele.
— Rotação? Não pode ser. Não se permite que o rei lute.
Agora sim. E Phury também voltará.
— Que porra? Supõe-se que o Primale não... — Tohr franziu o cenho — Há alguma mudança na guerra? Aconteceu algo?
Não sei. John encolheu de ombros e se recostou na cadeira, cruzando as pernas à altura dos joelhos. Outra coisa que sempre fazia Darius.
Nessa pose o filho parecia tão velho como o pai tinha sido, embora tivesse menos a ver com a forma em que estavam colocadas as extremidades do John e mais com o cansaço extremo que havia em seus olhos azuis.
— Não é legal. — disse Tohr.
Agora sim. Wrath se reuniu com a Virgem Escriba.
Na mente de Tohr começaram a zumbir perguntas, seu cérebro brigava com a carga desacostumada. No meio do deslocado redemoinho, era difícil pensar coerentemente, e sentia como se estivesse tentando segurar cem bolas de tênis entre seus braços, sem importar quão arduamente tentasse, algumas escorregavam e ricocheteavam a seu redor, criando uma confusão.
Deixou de tentar encontrar sentido em algo.
— Bem, isso é uma mudança... Desejo-lhes sorte.
A exalação baixa de John resumiu tudo bastante bem e Tohr voltou a se desconectar do mundo e retornou a sua comida. Quando terminou, dobrou o guardanapo pulcramente e tomou um último sorvo do copo de água.
Ligou a TV e pôs na CNN, porque não queria pensar e não podia agüentar o silêncio. John ficou aproximadamente meia hora, e quando foi evidente que já não suportava estar quieto durante mais tempo ficou em pé e se despediu.
O verei ao final da noite.
Ah, assim era de noite.
— Estarei aqui.
John recolheu a bandeja e saiu sem deter-se, nem duvidar. A princípio, houve bastante de ambas, como se a cada vez que chegasse à porta esperasse que Tohr o detivesse e dissesse: “Estou preparado para confrontar a vida. Vou seguir adiante. Estou melhor o bastante para me preocupar contigo”.
Mas a esperança não era eterna.
Quando a porta se fechou, Tohr afastou os lençóis de suas pernas fracas e passou os pés sobre a beirada do colchão.
Estava preparado para confrontar algo, sim, mas não sua existência. Com um gemido e uma inclinação brusca, foi cambaleando até o banheiro, foi ao vaso, e levantou o assento do trono de porcelana. Inclinando-se, deu a ordem e seu estômago evacuou a comida sem protestar.
No princípio tinha que colocar o dedo na garganta, mas não mais. Só esticava o diafragma e tudo saía como ratos fugindo de uma boca-de-lobo transbordante.
—Tem que acabar com essa merda.
A voz de Lassiter harmonizava com o som do vaso alagando-se. O que tinha muito sentido.
— Cristo, acaso bate alguma vez?
— Sou Lassiter. L-A-S-S-I-T-E-R. Como é possível que ainda siga me confundindo com outro? Necessita um adesivo com meu nome?
— Sim, e o ponha sobre sua boca. — Tohr se largou sobre o mármore e deixou a cabeça cair entre as mãos — Sabe, pode ir para casa. Pode ir quando quiser.
— Ponha seu rabo em movimento então. Porque isso é o que conseguiria que o fizesse.
— Vá, agora tenho uma razão para viver.
Houve um suave som de campainhas, o que queria dizer, tragédia das tragédias, que o anjo acabava de subir no balcão.
— Então, o que fazemos esta noite? Espera! Deixe-me adivinhar, nos sentar em áspero silêncio. Ou, não... Agora está alternando. Meditar com emotiva intensidade, verdade? Que enchimento de saco selvagem é. Whoo-Hooo. Quando quiser acordar, estará aplicando para provar o nó corrediço.
Com uma maldição, Tohr se levantou e foi abrir a ducha, esperando que se negasse a olhar ao boca dura, Lassiter se aborreceria rapidamente e iria arruinar a tarde de algum outro.
— Pergunta. — disse o anjo — Quando vamos cortar esse tapete que está crescendo em sua cabeça? Se essa merda ficar mais longa, vamos ter que ceifá-la como se fosse feno.
Enquanto Tohr tirava a camiseta e a cueca boxer, desfrutou do único consolo que tinha quando sofria a companhia de Lassiter: expor-se nu ante o idiota.
— Homem, o rabo plano é uma coisa. — resmungou Lassiter — Mas exibe um par de bolas de basquete desinfladas aí atrás. Faz com que me pergunte... Hey, certamente Fritz tem uma bomba de bicicleta. Só comentava.
— Você não gosta da vista? Já sabe onde está a porta. É essa em que nunca bate.
Tohr não deu tempo para a água esquentar, simplesmente se meteu sob o jorro e se limpou sem nenhuma boa razão que soubesse... Não tinha orgulho, assim que lhe importava uma merda o que outros pensassem de sua higiene.
Vomitar tinha um propósito. A ducha... Talvez... Simplesmente fosse um hábito.
Fechando os olhos, separou os lábios e ficou de pé frente ao jato. A água lambeu o interior de sua boca, varrendo a bílis e quando a ardência abandonou sua língua, um pensamento entrou em seu cérebro.
Wrath estava fora lutando. Sozinho.
— Hey, Tohr.
Tohr franziu o cenho. O anjo nunca utilizava seu nome próprio.
— O que?
— Esta noite é diferente.
— Sim, só se me deixe em paz. Ou se ponha a você mesmo neste banho. Há seis chuveiros para escolher aqui dentro.
Tohr pegou o sabonete e o passou sobre seu corpo, sentindo os duros e agudos impulsos de seus ossos e articulações através da pele fina.
Wrath estava fora sozinho.
Xampu. Enxágüe. Voltar para o jorro. Abrir a boca.
Fora. Sozinho.
Quando terminou a ducha, o anjo estava no centro do banheiro com uma toalha, todo amabilidade e essa merda.
— Esta noite é diferente. — disse Lassiter brandamente.
Tohr olhou ao anjo seriamente, vendo-o pela primeira vez, embora tenham passado quatro meses juntos. O anjo tinha o cabelo negro e loiro, tão longo como o de Wrath, mas, apesar de todo esse estilo Cher descendo por suas costas não era nenhum efeminado. Seu guarda-roupa parecia tirado diretamente do exército/marinha, camisetas negras, calças de camuflagem e botas de combate, mas não era absolutamente um soldado. O idiota estava perfurado como um agulheiro e tinha tantos acessórios como um joalheiro, com aros de ouro e correntes que penduravam dos buracos que tinha nas orelhas, pulsos e sobrancelhas. E podia apostar que tinha acessórios no peito e mais abaixo da cintura... O que era algo em que Tohr se negava a pensar. Não precisava de ajuda para vomitar, muito obrigado.
Quando a toalha trocou de mãos, o anjo disse com gravidade.
— Hora de despertar, Cinzeiro.
Tohr estava a ponto de apontar que essa era a Bella Adormecida quando lhe chegou uma lembrança como se fosse injetada no lóbulo frontal. Era da noite em que salvara a vida de Wrath lá pelo ano 1958, e as imagens lhe chegaram com a absoluta clareza da experiência atual.
O rei esteve fora. Sozinho. No centro.
Meio morto e sangrando sobre a sarjeta.
Um Edsel lhe tinha investido. Um pedaço de merda de um Edsel conversível de cor azul sombra de olhos de uma garçonete.
Pelo que Tohr pôde deduzir mais tarde, Wrath devia estar perseguindo um lesser a pé e ao girar a toda em uma esquina esse carro grande como uma lancha tinha lhe investido. Tohr estava a dois quarteirões de distância e ouviu o chiado dos freios e um impacto de algum tipo, e estava preparado para não fazer absolutamente nada.
Acidentes de trânsito humanos? Não era problema seu.
Mas então um par de lessers passou correndo frente à entrada do beco onde ele estava. Os assassinos fugiam como loucos sob a garoa de outono, como se algo os perseguisse, exceto não havia ninguém correndo atrás de seus calcanhares. Esperou caso aparecesse algum de seus irmãos. Nenhum deles tinha feito ato de presença.
Não fazia sentido nenhum. Se um assassino tivesse sido golpeado por um carro em companhia de seus cúmplices, estes não teriam abandonado o cenário. Os outros teriam matado o condutor humano e a qualquer possível passageiro, logo teriam metido o seu morto no porta-malas e teriam ido conduzindo da cena: a última coisa que a Sociedade Lessening queria era a um lesser incapacitado derramando sangue negro sobre a rua.
Talvez fosse só coincidência. Um pedestre humano. Ou alguém em uma moto. Ou dois carros.
Entretanto, tinha sido somente um par de freadas. E nada disso explicaria o par de pálidos corredores que tinha passado junto a ele como se fossem incendiários fugindo de um fogo que teriam acendido.
Tohr tinha trotado até o Trade, e ao dar a volta na esquina tinha captado a visão de um macho humano com um chapéu e um casaco agachado sobre um corpo encolhido que era duas vezes o seu tamanho. A esposa do homem, que estava vestida com um desses frívolos vestidos de saias avultadas dos anos cinqüenta, estava de pé justo na frente dos faróis, aconchegada em seu casaco de pele.
Sua brilhante saia vermelha era da cor das nervuras que havia no pavimento, mas o aroma do sangue derramado não era humano. Era vampiro. E o que tinha sido atropelado tinha um comprido cabelo negro...
A voz da mulher era estridente.
— Temos que levá-lo ao hospital...
Tohr interviu, interrompendo-a:
— É meu.
O homem tinha levantado o olhar.
— Seu amigo... Não o vi... Vestido de negro... Saiu de um nada...
— Ocuparei-me dele. — nesse ponto, Tohr deixou de explicar-se e simplesmente por meio de sua vontade, tinha enviado aos dois humanos a um estado de estupor. Uma rápida sugestão mental os enviou de volta a seu carro e os pôs em caminho com a impressão de que tinham golpeado uma lata de lixo. Supôs que a chuva se ocuparia do sangue da frente do carro, e eles mesmos poderiam arrumar o amassado.
Quando se inclinou sobre o corpo do herdeiro do trono da raça, o coração de Tohr pulsava tão rápido como um martelo hidráulico. Havia sangue por toda parte, emanando rápido de um corte na cabeça de Wrath, por isso Tohr tirou a jaqueta, mordeu a manga, e rasgou uma tira de couro. Depois de envolver as têmporas do herdeiro e atar a bandagem improvisada tão forte como pôde, deteve uma caminhonete que passava, apontou com a arma ao fanático de Grease que estava atrás do volante, e fez com que o humano conduzisse até o bairro de Havers.
Ele e Wrath viajaram na carroceria traseira, e todo o tempo, esteve mantendo pressão sobre a cabeça ferida de Wrath, sob a chuva fria. Uma chuva tardia de novembro, talvez dezembro. Entretanto, agradecia que não fosse verão. Sem dúvida o frio havia diminuído o batimento do coração de Wrath e aliviado sua pressão sangüínea.
A meio quilômetro da casa de Havers, na parte luxuosa de Caldwell, Tohr havia dito ao humano que estacionasse e enquanto ficava pelo caminho lavou seu cérebro.
Os minutos que Tohr levou para chegar até a clínica foram os mais compridos de sua vida, mas conseguiu levar Wrath ali, e Havers fechou o que tinha resultado ser o corte de uma das artérias temporais.
O dia seguinte foi crítico. Inclusive com Marissa ali para alimentar ao Wrath, o rei tinha perdido tanto sangue que não evoluía como se esperava, e Tohr ficou todo o tempo sentado em uma cadeira junto à cama. Enquanto Wrath jazia tão quieto, Tohr sentia como se a vida da raça inteira pendesse de um fio, o único que podia ocupar o trono estava preso em um sonho que se distanciava por apenas uns poucos neurônios de um estado vegetativo permanente.
A notícia se espalhou e as pessoas acudiam desesperadas. As enfermeiras e o médico. Outros pacientes que se deixaram cair para rezar pelo rei a quem não serviriam. Os Irmãos, que tinham utilizado o telefone por turnos para ligar a cada quinze minutos.
A sensação coletiva era que sem o Wrath não havia esperança. Nem futuro. Nem oportunidade.
Entretanto, Wrath viveu, despertando irascível, o que o fez suspirar de alívio... Porque se um paciente tinha a energia para estar de saco cheio, ia superar.
O anoitecer seguinte, depois de ter estado fora de serviço durante vinte e quatro horas seguidas e tendo assustado de morte a todo mundo que lhe rodeava, Wrath tinha desligado a IV[39], vestiu-se, e se foi.
Sem dizer nenhuma palavra a nenhum deles.
Tohr tinha esperado... Algo. Não um obrigado, mas algum reconhecimento Ou... Algo. Demônios, agora Wrath era um filho da puta mal-humorado, mas nesse então? Era diretamente tóxico. Mesmo assim... Nada? Depois de ter salvado a vida do cara?
Recordava bastante à forma em que ele esteve tratando ao John. E a seus irmãos.
Tohr envolveu a toalha ao redor da cintura e voltou para o ponto mais importante da lembrança. Wrath tinha saído ali fora a lutar sozinho. Lá em 58, tinha sido um golpe de sorte que Tohr estivesse onde estava e tivesse encontrado o rei antes que fosse muito tarde.
— Hora de despertar. — disse Lassiter.
Capítulo 17
Enquanto a noite chegava e se instalava, Ehlena rezava para não ter que chegar tarde ao trabalho outra vez. Com o relógio correndo, esperou no andar de acima, na cozinha com o CranRas e as drogas moídas. Tinha sido meticulosa com a limpeza: tinha guardado a colher. Checando todas as superfícies duas vezes. Inclusive comprovou que o salão estivesse apropriadamente organizado.
— Pai? — chamou em direção ao porão.
Enquanto prestava atenção, a espera de sons de pés arrastando-se e palavras sem sentido pronunciadas baixinho, pensou nos sonhos estranhos que teve durante o dia. Imaginou o Rehv na escura distância com os braços pendurado nos flancos. Seu magnífico corpo nu estava iluminado como se estivesse em exibição, seus músculos se sobressaindo em um poderoso desdobramento e a cor torrada de sua pele era quente e dourada. Sua cabeça estava inclinada para baixo e tinha os olhos fechados como se estivesse em repouso.
Cativada, convocada, tinha atravessado um chão de pedra fria até ele, pronunciando seu nome uma e outra vez.
Ele não tinha respondido. Não tinha elevado a cabeça. Não tinha aberto os olhos.
O medo tinha assobiado ao longo de suas veias e tinha estremecido seu coração, e tinha se apressado para chegar a ele, mas ele tinha permanecido sempre distante, um objetivo nunca realizado, um destino nunca alcançado.
Despertara com lágrimas nos olhos e o corpo tremendo. Quando a sufocante comoção tinha retrocedido, o significado ficou claro, mas na realidade, não necessitava que seu subconsciente lhe dissesse o que ela já sabia.
Sacudindo a si mesma, voltou a gritar para baixo.
— Pai?
Quando não houve resposta, Ehlena pegou a xícara de seu pai e desceu ao porão. Fez lentamente, embora não porque tivesse medo de derramar o CranRas vermelho sangue sobre seu uniforme branco. Às vezes seu pai não se levantava por si mesmo e ela tinha que fazer este descida, e cada vez que descia os degraus por esse motivo, perguntava-se se finalmente teria ocorrido, se seu pai teria sido chamado ao Fade.
Não estava pronta para perdê-lo. Ainda não, sem importar quão difíceis fossem as coisas.
Introduzindo a cabeça através da porta de seu dormitório, o viu sentado ante sua escrivaninha esculpida à mão, rodeado de pilhas irregulares de papéis e velas apagadas.
Obrigado, Virgem Escriba.
Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, preocupou-a que a falta de luz pudesse danificar a visão de seu pai, mas as velas ficariam como estavam, porque não havia nenhum fósforo nem acendedor na casa. A última vez que ele tinha posto suas mãos sobre um fósforo tinha sido em sua antiga casa... E tinha incendiado o apartamento porque suas vozes haviam dito.
Isso ocorreu fazia dois anos, e fora a razão de que lhe tivessem receitado remédios.
— Pai?
Ele levantou o olhar da desordem e pareceu surpreso.
— Minha filha, como vai esta noite?
Sempre fazia a mesma pergunta, e sempre lhe dava a mesma resposta na Antiga Língua.
— Bem, meu pai. E você?
— Como sempre encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável. — seu pai pegou a xícara — Aonde vai?
Isto conduziu às suas “pas de deux” verbal a respeito de que não aprovava que trabalhasse e ela explicava que o fazia porque gostava, ele se encolhia de ombros e afirmava não entender à geração jovem.
— Seriamente tenho que ir, — lhe disse — mas Lusie chegará em questão de minutos.
— Sim, bem, bem. Em realidade, estou ocupado com meu livro, mas a entreterei durante um momento, como é apropriado. Entretanto, tenho que me concentrar em meu trabalho. — ondulou a mão ao redor da representação física do caos de sua mente, seu gesto elegante em contradição com a irregular coleção de papéis cheios de sem sentidos — Isto tem que ser feito.
— É obvio que sim, pai.
Ele terminou o CranRas e, quando Ehlena foi pegá-lo de sua mão, franziu o cenho.
— Certamente a criada pode fazer isso.
— Gosto de ajudá-la. Tem muitas responsabilidades. — não podia ser mais certo. A doggen tinha que seguir todas as regras para objetos e onde pertenciam, assim como fazer as compras e ganhar o dinheiro e pagar as faturas e o vigiar. A doggen estava cansada. A doggen estava esgotada.
Mas era absolutamente necessário que a xícara fosse para a cozinha.
— Pai, por favor, solte a taça para que possa levá-la para cima. A donzela teme te incomodar, e gostaria de lhe economizar essa preocupação.
Por um momento, os olhos dele se pousaram nela como estavam acostumados a fazer.
— Tem um coração formoso e generoso. Estou muito orgulhoso de te chamar de filha.
Ehlena piscou ferozmente e com voz áspera disse:
— Ser seu orgulho significa tudo para mim.
Ele estendeu o braço e apertou sua mão.
— Vai, minha filha. Vá a esse “seu trabalho”, e volte para casa comigo com histórias de sua noite.
Oh... Deus.
Era exatamente o que havia lhe dito fazia muito tempo, quando ela estava indo a um colégio particular e sua mãe estava viva e viviam entre a família e a glymera como gente de importância.
Inclusive, embora soubesse ser provável que quando voltasse para casa ele não tivesse nenhuma lembrança de haver lhe feito a velha e adorável pergunta, ela sorriu e se alimentou das saborosas migalhas do passado.
— Como sempre, meu pai. Como sempre.
Partiu com o som do passar de páginas e o “tink-tink-tink” de uma pluma golpeando a borda de um tinteiro de cristal.
Escada acima enxaguou a xícara, secou e a guardou na despensa, logo se assegurou de que no frigorífico tudo estivesse onde devia estar. Quando recebeu a mensagem de texto de que Lusie estava a caminho, transpassou a porta, fechou-a, e se desmaterializou para a clínica.
Quando chegou ao trabalho, sentiu um grande alívio de ser como todos os outros, chegando na hora, pondo as coisas em seu armário, falando de nada em particular antes que começasse o turno.
Mas então quando estava na cafeteira, Catya se aproximou dela, toda sorrisos.
— Assim... Ontem à noite foi...? Vamos, conte.
Ehlena terminou de encher seu copo e ocultou uma careta depois de um primeiro gole profundo que lhe queimou a língua.
— Acredito que não apareceu resume tudo.
— Não apareceu?
— Sim. Como em “ele não apareceu”.
Catya sacudiu a cabeça.
— Maldito seja.
— Não, está bem. De verdade. Quero dizer, não é como se tivesse esperado muito. —sim, só uma fantasia completa sobre o futuro, que incluía coisas como um hellren, uma família própria, uma vida que valesse a pena viver. Nada de outro mundo — Está bem.
— Sabe? Ontem à noite estive pensando. Tenho um primo que é...
— Obrigado, mas não. Com meu pai como está não deveria sair com ninguém. —Ehlena franziu o cenho, ao recordar quão rapidamente Rehv lhe tinha dado razão a respeito disso. Embora pudesse dizer que isso o fazia uma espécie de cavalheiro, era difícil não sentir-se um pouco aborrecida.
— Preocupar-se por seu pai não significa...
— Hey, por que não me ocupo do balcão de recepção durante a mudança de volta?
Catya se deteve, mas os olhos da fêmea se iluminaram lançando um montão de mensagens, a maior parte das quais poderiam se resumir a: “Quando esta garota vai despertar?”
— Irei agora mesmo. — disse Ehlena, dando a volta e afastando-se.
— Não durará para sempre.
— É obvio que não. A maior parte de nosso turno já chegou.
Catya sacudiu a cabeça.
— Isso não é o que quis dizer, e sabe. A vida não dura para sempre. Seu pai tem uma séria enfermidade psicológica, e é muito boa com ele, mas poderia ficar assim durante um século.
— Em cujo caso ainda sobrará ao redor de setecentos anos mais para mim. Estarei na recepção. Desculpe.
Na recepção, Ehlena tomou posição depois do computador e introduziu a contra-senha. Não havia ninguém na sala de espera porque o sol acabava de se pôr, mas os pacientes começariam a chegar muito em breve, e ela não podia esperar a distração.
Revisando o horário de Havers, não viu nada incomum. Verificações. Tratamentos a pacientes. Seguimentos cirúrgicos...
A campainha exterior tocou e levantou o olhar para um monitor de segurança. Ali em uma vista do vestíbulo exterior, viu um macho que se agasalhava em seu casaco para se proteger do vento frio.
Apertou o botão do inter comunicador e disse:
— Boa noite. No que posso lhe ajudar?
O rosto que levantou o olhar para a câmera era um que já tinha visto antes. Três e três noites atrás. O primo de Stephan.
— Alix? — disse — É Ehlena. Como está...?
— Estou aqui para ver se o trouxeram.
— Trouxeram?
— Ao Stephan.
— Não acredito, mas me deixe comprovar enquanto entra.
Ehlena pressionou o botão para abrir a fechadura e foi ao computador ver a lista de pacientes ingressados. Enquanto abria a série de portas para Alix, revisava os nomes, um por um.
Não fazia referência ao ingresso de Stephan como paciente.
No instante em que Alix entrou na sala de espera, o sangue em suas veias congelou ao ver a cara do macho. Os cruéis círculos escuros sob seus olhos cinza falavam de algo mais que uma simples falta de sono.
— Stephan não voltou para casa ontem à noite. — disse.
Rehv lamentava dezembro, e não só porque o frio no norte de Nova Iorque fosse suficiente para fazê-lo desejar ficar em um plano especialista de pirotecnia só para esquentar-se.
Em dezembro a noite caía cedo. O sol, esse estúpido preguiçoso, flácido maricas, retrocedia em seus esforços tão cedo como as quatro e meia da tarde, e isso para Rehv significava que o “encontro-de-primeira-terça-do-mês-para-atuar-como-semental” começava cedo.
Acabavam de dar as dez em ponto quando entrou no Parque Estatal Black Snake depois de uma viagem de carro de duas horas para o norte desde Caldwell. Trez, que sempre se desmaterializava para ali, sem dúvida já teria tomado posição ao redor da cabana, camuflando-se e dispondo-se a atuar de guarda.
Assim como de testemunha.
O fato de que o cara, que era indiscutivelmente seu melhor amigo, tivesse que observar todo o assunto era um triturador de testículos que vinha a acrescentar-se a todo o carrossel de cagadas. O problema era, que depois que tudo terminava, Rehv precisava de ajuda para voltar para casa, e Trez era bom nesse tipo de merdas.
Xhex queria ocupar-se, é obvio, mas não se podia confiar nela. Não quando se tratava da princesa. Se Rehv lhe voltasse às costas durante um segundo a cabana poderia terminar com uma nova capa de pintura fresca nas paredes... Da variedade horripilante.
Como sempre, Rehv estacionou no estacionamento de terra que havia do lado escuro da montanha. Não havia outros carros, e esperava que os atalhos que se abriam na parte de atrás do estacionamento estivessem vazios também.
Olhando através do pára-brisa, ante sua vista tudo aparecia vermelho e plano e apesar de que desprezava a sua meio irmã, odiava olhá-la e desejava que todo este sujo e fodido assunto se acabasse de uma vez, seu corpo não estava intumescido de frio, a não ser vivo e ronronando. Dentro de suas calças, seu pênis duro estava preparado e pronto para o que estava a ponto de ocorrer.
Agora se somente pudesse obrigar-se a sair do carro.
Pousou a mão no trinco da porta, mas não pôde puxá-lo.
Havia tanta paz. Quão único perturbava o silêncio eram os leves e metálicos sons que o motor do Bentley fazia ao esfriar.
Sem razão aparente, pensou na adorável risada de Ehlena, e isso foi o que lhe fez abrir a porta. Com um movimento rápido, tirou a cabeça do carro justamente quando seu estômago se fechava como um punho e quase vomita. Quando o frio acalmou sua náusea, tentou tirar Ehlena da mente. Ela era tão limpa e honorável que não podia suportar tê-la em seus pensamentos quando estava a ponto de fazer isto.
O que era uma surpresa.
Proteger a alguém do mundo cruel, do mortal e perigoso, do poluído, o obsceno, e o asqueroso não era seu estilo. Mas se tinha ensinado a si mesmo a fazer justamente isso quando se tratava das únicas três fêmeas normais na vida. Pela que lhe tinha dado a vida, a que tinha criado como se fosse sua própria e a pequena que sua irmã tinha dado à luz recentemente, confrontaria todo tipo de perigos, mataria com suas próprias mãos algo que as ameaçasse, perseguiria e destruiria até a mais mínima ameaça.
E, de algum modo a cálida conversa que teve com a Ehlena mais cedo a punha nessa curta, curta lista.
O que significava que tinha que deixá-la fora. Junto com as outras três.
Tinha-lhe caído bem vivendo como uma puta, porque obtinha um preço caro da que o fodia, e, além disso, a prostituição não era nada mais que o que merecia, considerando o modo em que seu autêntico pai tinha forçado sua concepção sobre sua mãe. Mas ele assumia a responsabilidade. Ele ia à cabana sozinho e ele obrigava seu corpo a fazer o que ninguém o obrigava.
Essas poucas pessoas normais que havia em sua vida tinham que permanecer muito, muito longe de todo esse assunto, e isso significava que quando vinha aqui devia erradicá-las de seu pensamento e seu coração. Mais tarde, logo depois de ter se recuperado, tomado banho e dormido, poderia voltar a recordar os olhos cor toffe de Ehlena e a forma em que cheirava a canela e como riu apesar de si mesmo quando falaram. Por agora, afastou a ela, a sua mãe, a sua irmã e a sua amada sobrinha de seu lóbulo frontal, fechando cada lembrança que tinha em uma seção separada de seu cérebro e enclausurando-os.
A princesa sempre tentava entrar em sua mente, e não queria que soubesse nada daqueles que apreciava ou pelos quais se preocupava.
Quando uma intensa rajada de vento quase lhe fecha violentamente a porta na cabeça, Rehv puxou sua zibelina envolvendo-se frouxamente ao redor de seu corpo, saiu, e fechou o Bentley. Enquanto caminhava para o início do caminho, notou que o terreno estava congelado sob seus Penetre Haans, a terra que rangia sob seus pés era dura e resistente.
Tecnicamente agora o parque estava fechado pela estação, e uma corrente pendurava atravessando a entrada do atalho que levava mais à frente do mapa da montanha e às cabanas de aluguel. Entretanto, era mais provável que fosse o tempo o que mantinha as pessoas afastadas e não o Serviço do Parque Adirondack. Depois de passar sobre a corrente, passou a folha de registro que estava pendurava de uma prancheta apesar de que se supunha que ninguém devia utilizar os atalhos. Ele nunca assinava.
Sim, como se os guardas humanos realmente precisassem saber o que dois sympaths estavam fazendo em uma daquelas cabanas. Ceerrrrtttoooooo.
O bom de dezembro era que nos meses invernais o bosque ficava menos claustrofóbico, seus carvalhos e suas sebes não eram mais que troncos e ramos fracos que deixavam ver bastante da noite estrelada. Ao redor deles, as árvores de folha perene estavam de festa, seus ramos amaciados eram o “se foda” a seus irmãos agora nus, vingando-se por toda a vistosa folhagem outonal que as outras árvores acabavam de mostrar.
Penetrando a linha de árvores, seguiu o atalho principal enquanto este se estreitava gradualmente. Atalhos menores se separavam a direita e esquerda, marcados com rústicos pôsteres de madeira com nomes como Passeio do Sociável, Ataque Relâmpago, Cúpula Extensa e Cúpula Pequena. Ele seguiu em linha reta, seu fôlego formava nuvens ao abandonar seus lábios e o som de seus sapatos sobre a terra congelada parecia muito ruidoso. No alto, a lua se via brilhante, e tinha a forma de uma meia-lua afiada como uma faca, que para ele com seus impulsos symphath decididamente fora de controle, era da cor dos olhos rubi de sua chantagista.
Trez fez sua aparição em forma de uma brisa gelada que percorreu o atalho.
— Hey, amigo. — disse Rehv baixinho.
A voz do Trez flutuou no interior de sua cabeça enquanto a forma Sombra do cara se condensava em uma onda que brilhava tenuamente.
Acaba logo com ela. Quanto mais rápido obtenhamos o que necessitará depois melhor.
— As coisas são como são.
Quanto antes. Melhor.
— Veremos.
Trez lhe amaldiçoou e voltou a se dissolver em uma fria rajada de vento, lançando-se para frente fora de vista.
A verdade era que, por muito que Rehv odiasse vir, algumas vezes não queria partir. Gostava de fazer mal à princesa, e ela era uma boa oponente. Ardilosa, rápida e cruel. Era a única saída para seu lado mau, e, como um corredor faminto de treinamento, precisava do exercício.
Além disso, talvez fosse como seu braço: a podridão se sentia bem.
Rehv tomou o sexto à esquerda, entrando em um atalho que era só o bastante amplo para uma pessoa, e muito em breve, a cabana ficou à vista. A brilhante luz da lua, seus lenhos eram de uma cor parecida ao vinho rosado.
Quando chegou à porta, estendeu a mão esquerda para frente, e quando estava aferrando a alavanca de madeira pensou em Ehlena e em como se preocupou o suficiente por ele para telefonar e perguntar por seu braço.
Durante um breve momento se permitiu um deslize e evocou o som da voz dela em seu ouvido.
Não entendo por que não cuida de você mesmo.
A porta escapou de seu agarre, abrindo-se tão rápido que golpeou contra a parede.
A princesa estava de pé no centro da cabana, com sua brilhante túnica vermelha, rubis em sua garganta e os olhos cor vermelho sangue, toda a cor do ódio. Com seu escasso cabelo enrolado e recolhido por cima de seu pescoço, sua pele pálida, e os escorpiões albinos vivos que usava como brincos, era um horror delicioso, uma boneca Kabuki construída por uma mão malvada. E era malvada, sua escuridão lhe chegava em forma de ondas, emanando do centro de seu peito ainda quando nada nela se movia e seu rosto com forma de lua permanecia inalterado pelo aborrecimento.
Sua voz, por outro lado, era ardilosa como uma folha afiada.
— Nada de cenas de praia esta noite em sua mente. Não, nada de praia esta noite.
Rehv cobriu Ehlena rapidamente com uma imagem de um glorioso estereótipo das Bahamas, todo sol, mar e areia. Era algo que tinha visto na TV anos atrás, em um “especial escapadas”, como havia dito o anunciador, com gente em traje de banho passeando de mãos dadas. Dada sua vivacidade, a imagem era o suspensório perfeito para os argumentos de sua matéria cinza.
— Quem é ela?
— Quem é quem? — disse enquanto entrava.
A cabana estava cálida, graças a ela, um pequeno truque de agitação molecular do ar que se acrescentava quando estava de saco cheio. Não obstante, o calor que gerava não era alegre como o que provinha de um fogo... Era mais da classe de sufoco que conseguia com um caso de diarréia.
— Quem é a fêmea que havia em sua mente?
— Só uma modelo de um anúncio de TV, minha queridíssima cadela. — disse tão brandamente como ela. Sem lhe dar as costas, fechou a porta tranqüilamente — Ciumenta?
— Para estar ciumenta, teria que estar ameaçada. E isso seria absurdo. — a princesa sorriu — Mas penso que deve me dizer quem é ela.
— Isso é tudo o que quer fazer? Falar? — Rehv deliberadamente deixou que seu casaco se abrisse e embalou em sua mão o pênis e o pesado escroto — Normalmente quer de mim algo mais que conversa.
— Muito certo. O melhor e mais elevado uso para você é o que os humanos chamam... Um consolador, não? Um brinquedo para uma fêmea com o que dar prazer a si mesma.
— Fêmea não é necessariamente a palavra que utilizaria para te descrever.
— Certamente. Bem amada seria melhor.
Ela elevou uma mão horrenda até seu penteado, deslizando seus dedos ossudos de três articulações sobre a cuidadosa obra, seu pulso era mais fino que a asa de uma batedeira de arame. Seu corpo não era diferente: todos os symphaths estavam constituídos como jogadores de xadrez, não como zagueiros, o que estava de acordo com sua preferência de lutar com a mente e, não com o corpo. A vestimenta que usavam, não era nem de machos nem de fêmeas, a não ser uma versão destilada de ambos os sexos, e por isso a princesa o desejava como o fazia. Gostava de seu corpo, seus músculos, sua óbvia e brutal masculinidade, e habitualmente queria ser fisicamente refreada durante o sexo... Algo que seguro como a merda não conseguia em casa. Pelo que ele sabia a versão symphath do ato se limitava a algumas posturas mentais seguidas de duas esfregações e um ofego por parte do macho. Além disso, estava disposto a apostar que o tio de ambos tinha o pênis como o de um hamster, e os testículos do tamanho de borrachas de lápis.
Não é que alguma vez o tivesse comprovado… Mas vamos, o cara não era exatamente uma comparação de testosterona.
A princesa se movia pela cabana como se estivesse desdobrando sua graça, mas havia um propósito em deslocar-se de janela em janela e olhar para fora.
Demônios, sempre com as janelas.
— Onde está seu cão guardião esta noite? — disse ela.
— Sempre venho sozinho.
— Mente a seu amor.
— Por que ia querer que alguém visse isto?
— Porque sou formosa. — deteve-se diante dos vidros mais próximos à porta — Está aí à direita, junto ao pinheiro.
Rehv não precisava inclinar-se a um lado e olhar para saber que tinha razão. É obvio que ela podia sentir o Trez, só que não podia estar completamente segura de onde estava ou o que era.
Ainda assim, disse:
— Não há nada exceto árvores.
— Mentira.
— Tem medo das sombras, Princesa?
Quando ela olhou sobre o ombro, o escorpião albino que pendurava do lóbulo de sua orelha também fez contato ocular com ele.
— O problema não é o medo. É a deslealdade. Não suporto a deslealdade.
— A menos que seja você quem a está praticando, é obvio.
— Oh, sou bastante leal a você, meu amor. Exceto pelo irmão de nosso pai, como já sabe. — girou e quadrou os ombros em toda sua altura — Meu consorte é o único além de você. E vim aqui sozinha.
— Suas virtudes são abundantes, embora como disse, por favor, leva a mais em sua cama. Toma a cem machos mais.
— Ninguém poderia comparar-se contigo.
Dava vontade de vomitar em Rehv cada vez que lhe prodigalizava um falso elogio, e ela sabia. Pelo que, naturalmente insistia em dizer merdas como essa.
— Diga-me. — disse para mudar de assunto — Já que tirou o tema de nosso tio, como vai o muito idiota?
— Ainda te acredita morto. Assim sigo honrando minha parte de nossa relação.
Rehv colocou a mão no bolso de seu casaco de zibelina e tirou os duzentos e cinqüenta mil dólares em rubis cortados. Atirou o feliz pacotinho ao chão para a borda da túnica dela e tirou o casaco. A jaqueta de seu traje e seus sapatos foram o seguinte. Depois suas meias três quartos de seda, suas calças e sua camisa. Nenhum boxer que tirar. Para que incomodar-se?
Rehvenge permaneceu ante ela completamente ereto, com os pés bem plantados no chão, respirando tranqüilamente, inalando e exalando com seu forte peito.
— E estou preparado para completar nossa transação.
Os olhos rubi desceram por seu corpo e se detiveram em seu sexo, abriu a boca, e percorreu o lábio inferior com sua língua bífida. Em suas orelhas, os escorpiões retorceram suas extremidades com espera, como se respondessem a seu arrebatamento sexual.
A princesa apontou para a bolsa de veludo.
— Recolhe isso e me dê isso apropriadamente.
— Não.
— Recolhe-o.
— Você gosta de se inclinar diante de mim. Por que te roubar seu hobby favorito?
A princesa colocou as mãos nas longas mangas de sua túnica e foi para ele da forma suave com que se moviam os symphaths, virtualmente flutuando sobre o chão de madeira. Quando se aproximou, ele manteve sua posição, porque preferia morrer e apodrecer antes de dar um passo atrás para o prazer dela.
Olharam-se um ao outro, e no profundo e maligno silêncio, ele sentiu uma terrível comunhão com ela. Eram iguais, e embora fosse um pensamento que odiava, sentia alívio em ceder a sua autêntica natureza.
— Recolhe-o...
— Não.
Ela descruzou os braços e uma de suas mãos de seis dedos rasgou o ar em direção a seu rosto, a bofetada foi forte e aguda como seus olhos rubi. Rehv se negou a deixar que sua cabeça retrocedesse pelo impacto enquanto o som reverberava tão ruidosamente como um prato quebrando-se.
— Quero que me pague seu tributo adequadamente. E quero saber quem é ela. Percebi seu interesse por esta antes... Quando está longe de mim.
Rehv manteve o anúncio de praia aceso em seu lóbulo frontal e soube que ela ostentava.
— Não me inclino perante você nem ante ninguém, cadela. Assim, se quiser essa bolsa, vai ter que te tocar os dedos dos pés. E quanto ao que acredita saber, está enganada. Não há ninguém para mim.
Esbofeteou-o de novo, a ardência desceu por sua medula espinhal e pulsou na cabeça de seu pênis.
— Inclina-te ante mim cada vez que vem aqui com seu patético pagamento e seu sexo faminto. Necessita isto, necessita-me.
Ele levou sua cara mais perto da dela.
— Não adule a você mesma, princesa. É uma obrigação, não uma escolha.
— Engano. Vive para me odiar.
A princesa pegou seu pênis na mão, envolvendo-o firmemente com seus dedos mortos. Quando sentiu o contato e a carícia, seu estômago revolveu... E ainda assim sua ereção se umedeceu ante a atenção inclusive quando não podia suportá-la, embora não a encontrava absolutamente atrativa, seu lado symphath estava completamente preso nesta batalha de vontades, e isso era o erótico.
A princesa se inclinou para ele, esfregando com seu dedo indicador a pua que tinha na base de sua ereção.
— Seja quem for essa fêmea de sua cabeça, não pode competir com o que temos.
Rehv pôs as mãos dos lados do pescoço de sua chantagista e pressionou com os polegares até que ela ofegou.
— Posso te arrancar a cabeça da coluna.
— Não o fará. — lhe passou os lábios vermelhos e acetinados pela garganta e o batom de pimentas moídas que levava o queimou — Porque não poderíamos fazer isto se estivesse morta.
— Não subestime a atração da necrofilia. Especialmente quando se trata de você. — agarrou a parte de trás de seu coque e puxou com força — Vamos ao ponto?
— Depois que você recolha...
— Isso não vai acontecer. Não me inclino. — com sua mão livre, rasgou a frente da túnica, expondo a malha fina do body que sempre usava. Girando-a, forçou-a a ficar de cara à porta, procurando entre as dobras de vermelho cetim enquanto ela ofegava. A malha que vestia estava empapada de veneno de escorpião, e enquanto abria caminho para seu centro, o veneno empapava sua pele. Com sorte, poderia foder um momento enquanto ainda conservava a túnica posta...
A princesa se desmaterializou fora de suas garras e voltou a tomar forma justamente ante a janela através da qual Trez poderia ver. Com um rápido movimento, sua túnica a abandonou, eliminada por sua vontade e sua carne foi revelada. Estava constituída como a serpente que era, muitos nervos, e muito magra e quando a luz da lua se refletia sobre os fios entremeados de seu reluzente body dava a impressão de ter escamas.
Seus pés estavam plantados de cada lado da bolsa de rubis.
— Adorará-me. — disse isso, passando a mão entre as coxas e acariciando a fenda — Com a boca.
Rehv se aproximou e ficou de joelhos. Levantando o olhar para ela, disse com um sorriso:
— E será você quem recolherá essa bolsa.
Capítulo 18
Ehlena se deteve fora do necrotério da clínica, com ambos os braços rodeando seu peito, o coração na garganta e as preces saindo de seus lábios. Apesar de seu uniforme, não estava esperando em caráter profissional e o cartaz de SÓ PESSOAL que estava ao nível de seus olhos a freava tanto como se fosse alguém com roupas comuns. Enquanto os segundos passavam lentos como séculos, olhava as letras como se tivesse esquecido como ler. A palavra só estava em uma metade das portas, e pessoal na outra. Em letras vermelhas maiúsculas. Debaixo das letras em português, estava a tradução na Antiga Língua.
Alix tinha atravessado as portas fazia um momento com o Havers a seu lado.
Por favor… Que não seja Stephan. Por favor, não deixe que o John Doe seja Stephan.
O pranto que se filtrou através das portas de SÓ PESSOAL provocou que fechasse os olhos, tão forte que fez com que a cabeça desse voltas.
Depois de tudo, não a tinha deixado plantada.
Dez minutos depois Alix saiu, tinha o rosto pálido e a parte inferior dos olhos avermelhada devido à quantidade de vezes que enxugou as abundantes lágrimas. Havers estava logo atrás dele, o médico se mostrava igualmente desconsolado.
Ehlena se adiantou e pegou ao Alix entre seus braços.
— Sinto tanto.
— Como… Como digo a seus pais… Eles não queriam que viesse até aqui… Oh, Deus…
Ehlena sustentou o corpo estremecido do macho até que Alix se endireitou e arrastou ambas as mãos por seu rosto.
— Estava desejando sair contigo.
— E eu com ele.
Havers pôs sua mão sobre o ombro de Alix.
— Quer levar isso contigo?
O macho olhou para trás, às portas, e fechou a boca até que se converteu somente em uma fina linha.
— Vamos querer começar com os... Rituais mortuários... Mas...
— Você gostaria que o amortalhasse? — perguntou Havers brandamente.
Alix fechou os olhos e assentiu.
— Não podemos deixar que sua mãe veja seu rosto. Isso a mataria. Eu o faria, mas...
— Cuidaremos dele muito bem. — disse Ehlena — Pode confiar que nos ocuparemos com respeito e reverência.
— Não acredito que possa… — Alix olhou em sua direção — Está mal de minha parte?
— Não. — disse sustentando ambas as mãos — E lhe prometo, faremos com amor.
— Mas deveria ajudar…
— Pode confiar em nós. — enquanto o macho piscava rapidamente, Ehlena o guiou gentilmente, afastando-o das portas do necrotério — Quero que vá esperar em uma das salas de estar familiares.
Ehlena acompanhou o primo de Stephan pelo corredor até chegar ao vestíbulo onde estavam as salas de exame. Quando outra enfermeira passou por ali, Ehlena lhe pediu que o levasse a uma sala de espera privada e logo retornou ao necrotério.
Antes de entrar, respirou profundamente e endireitou os ombros. Quando entrou empurrando as portas, cheirou ervas e viu Havers de pé junto a um corpo coberto por um lençol branco. O andar de Ehlena fraquejou.
— Meu coração está oprimido. — disse o médico — Tão oprimido. Não queria que esse pobre moço visse assim a seu familiar de sangue, mas depois de identificar suas roupas, ele insistiu. Tinha que vê-lo.
— Porque tinha que assegurar-se.
Era o que ela teria necessitado ao estar nessa situação.
Havers levantou o lençol, dobrando-o sobre o peito e Ehlena tampou bruscamente a boca com a mão para conter um ofego.
O rosto de Stephan, golpeado e sujo, estava quase irreconhecível.
Ela tragou uma vez. E outra vez. E uma terceira vez.
Querida Virgem Escriba, vinte e quatro horas antes, ele estava vivo. Vivo e no centro, desejando vê-la. Logo uma má decisão de ir para um lado e não para o outro o tinha feito terminar aqui, jazendo sobre uma cama fria de aço inoxidável, a ponto de ser preparado para seu ritual mortuário.
— Trarei as mortalhas. — disse bruscamente Ehlena quando Havers tirou completamente o lençol do corpo.
O necrotério era pequeno, com apenas oito unidades de refrigeração e duas mesas de exame, mas estava bem provido quanto a equipamento e fornecimentos. As mortalhas cerimoniais eram guardadas em um armário próximo do escritório, e quando abriu a porta, saiu uma fresca baforada herbal. As bandas de linho tinham sete centímetros e meio de largura e vinham em cilindros do tamanho dos dois punhos de Ehlena. Empapados de uma combinação de romeiro, lavanda e sal marinho, irradiavam um aroma suficientemente prazenteiro que, não obstante, faziam-na retroceder cada vez que captava aquele odor.
Morte. Era o aroma da morte.
Tirou dez cilindros e os empilhou em seus braços, logo voltou onde estava o corpo de Stephan totalmente exposto, com apenas um tecido sobre seus quadris.
Depois de um momento, Havers saiu de um vestiário que havia no fundo, usando uma túnica negra atada com uma faixa negra. Ao redor do pescoço, suspensa de uma corrente de prata larga e pesada, tinha uma ferramenta ornamentada para cortar, muito afiada que era tão antiga, que o trabalho de filigrana da manga tinha curvas obscurecidas dentro de seu curvilíneo desenho.
Ehlena abaixou a cabeça enquanto Havers elevava à Virgem Escriba as preces requeridas para o pacífico descanso de Stephan dentro do tenro abraço do Fade. Quando o doutor esteve preparado, passou-lhe o primeiro dos cilindros aromáticos e começaram com a mão direita de Stephan, como era adequado. Com muitíssima gentileza e cuidado, sustentou o membro frio e cinza no ar, enquanto Havers envolvia a carne apertadamente, voltando a pôr a tira de linho sobre si mesmo. Quando chegaram até o ombro, moveram-se para a perna direita, depois foi a mão esquerda, o braço esquerdo e logo a perna esquerda.
Quando tiraram o tecido de seus quadris, Ehlena se deu volta, como era requerido por ser fêmea. Se tivesse sido um corpo feminino, não o teria que fazer, embora um assistente masculino o teria feito por respeito. Depois que os quadris foram envoltos, enfaixaram o tronco até o peito e cobriram os ombros.
Com cada passada do linho, o aroma a ervas golpeava de novo o nariz até que sentiu como se não pudesse respirar.
Ou talvez não fosse o aroma que havia no ar, mas sim os pensamentos que havia em sua mente. Ele teria sido seu futuro? Teria conhecido seu corpo? Poderia ter sido seu hellren e o pai de seus filhos?
Perguntas que nunca seriam respondidas.
Ehlena franziu o cenho. Não, em realidade, todas tinham sido.
Cada uma delas com um não.
Enquanto passava outro cilindro ao médico da raça, perguntou-se se Stephan tinha vivido uma vida plena e satisfatória.
Não, pensou. Tinha sido extorquido. Totalmente extorquido.
Enganado.
O rosto era o último em ser coberto e sustentou a cabeça de Stephan enquanto o doutor enrolava e enrolava o linho lentamente. Ehlena respirava com dificuldade e só quando Havers cobriu os olhos, uma lágrima deixou os próprios e aterrissou na mortalha branca.
Havers pôs a mão brevemente em seu ombro e logo terminou o trabalho.
O sal que havia nas fibras do linho funcionava como um selador para que nenhum fluído filtrasse através da malha, e o mineral também preservava o corpo para o sepulcro. As ervas serviam para a função óbvia no curto prazo de mascarar qualquer aroma, mas também eram emblemas dos frutos da terra, os ciclos de crescimento e morte.
Com uma maldição, voltou para o armário e retirou um sudário negro, com o qual Havers e ela envolveram Stephan. O exterior negro simbolizava a carne mortal corruptível, o interior branco, a pureza e incandescência da alma dentro de seu lar eterno no Fade.
Ehlena tinha escutado uma vez que os rituais serviam a importantes propósitos além de seu aspecto prático. Supunha-se que ajudavam a cura psicológica, mas estando junto ao corpo morto de Stephan sentia que isso era pura merda. Era uma aceitação falsa, uma patética tentativa para conter as exigências de um destino cruel com um tecido de aroma doce.
Não era nada mais que uma capa sobre um sofá manchado de sangue.
Detiveram-se junto à cabeça de Stephan para lhe oferecer um momento de silêncio e logo empurraram a maca deslocando-a do fundo do necrotério para o sistema de túneis que corriam subterraneamente até as garagens. Ali, puseram o Stephan em uma das quatro ambulâncias que estavam feitas para parecer exatamente com as que os humanos usavam.
— Levarei a ambos a casa dos pais. — disse ela.
— Necessita que a acompanhem?
— Parece-me que para o Alix será melhor não ter audiência.
— Embora tomará cuidado, verdade? Não só com eles, mas também com sua própria segurança?
— Sim.
Cada uma das ambulâncias tinha uma pistola debaixo do assento do condutor, e assim que Ehlena começou a trabalhar na clínica, Catya lhe ensinou a disparar: não cabia dúvida, de que podia dirigir algo que ficasse em seu caminho.
Quando Havers e ela fecharam as portas duplas da ambulância, Ehlena olhou para a entrada do túnel.
— Parece que vou voltar para a clínica pelo estacionamento. Preciso de ar.
Havers assentiu.
— E eu farei o mesmo. Dou-me conta que também necessito ar.
Juntos saíram à noite fria e clara.
Como a boa puta que Rehv era fez tudo o que lhe pediram. O fato de que fosse rude e cruel era uma concessão a seu livre-arbítrio... E novamente, parte da razão pela qual a princesa gostava do assunto que tinham.
Quando tudo terminou e ambos estiveram esgotados — ela por ter tantos orgasmos, ele porque o veneno de escorpião tinha penetrado profundamente em sua corrente sanguínea — esses malditos rubis seguiam onde os tinha jogado. No chão.
A princesa estava escancarada contra o batente da janela, ofegando dificultosamente, com seus dedos de três nódulos estendidos, provavelmente porque sabia que o enojavam como a merda. Ele estava do outro lado da cabana, tão longe dela como podia, de pé, cambaleando.
Enquanto tentava respirar, odiou que o ar da cabana cheirasse a sexo sujo. Do mesmo modo, tinha o aroma dela por todo seu corpo, cobrindo-o, sufocando-o tanto, que apesar de ter sangue symphath em suas veias, sentia vontade de vomitar. Ou possivelmente isso era devido ao veneno. Quem merda podia saber?
Ela levantou uma de suas mãos ossudas e apontou para a bolsa de veludo.
— Le-van-ta-os.
Os olhos de Rehv se travaram com os dela, e sacudiu a cabeça de um lado a outro lentamente.
— Será melhor que volte para nosso tio. — disse com tom áspero — Estou disposto a apostar que se te ausentar por muito tempo ele desconfiará.
Com isso, a tinha. O irmão do pai de ambos era um sociopata, calculista e desconfiado. Igual a eles.
Tudo ficava em família, como estavam acostumados a dizer.
A túnica da princesa se levantou do chão e flutuou para sua proprietária, e enquanto pendurava no ar a seu lado, retirou do bolso interior uma bandagem longa e vermelha. Deslizando-a entre suas pernas, envolveu o sexo, mantendo dentro o que ele tinha deixado. Depois se vestiu, e cobriu a metade da túnica que ele tinha esmigalhado, formando uma dobra sob a capa superior. O cinturão de ouro, ou ao menos ele assumia que era de ouro, dada a forma em que refletia a luz, foi o seguinte.
— Envie lembranças a meu tio. — disse Rehv arrastando as palavras — Ou... Não.
— Le... Van... Ta... Os.
— Ou se inclina para recolher essa bolsa, ou vai sem ela.
Os olhos da princesa cintilaram com o tipo de rancor que fazia tão divertido discutir com assassinos, e permaneceram olhando um ao outro durante compridos e hostis minutos.
A princesa se quebrou. Exatamente como ele havia dito que o faria.
Para sua eterna satisfação, foi ela quem os recolheu, sua capitulação quase o fez gozar de novo, sua lingüeta ameaçou enganchar-se apesar de que não havia nada contra o que travar-se.
— Poderia ser rei. — disse ela estendendo a mão, e fazendo com que a bolsa de veludo com os rubis se elevasse do chão — Mata-o e poderá ser rei.
— Se mato a você, poderia ser feliz.
— Nunca será feliz. É de uma raça separada, vivendo uma mentira entre inferiores. —sorriu e uma alegria verdadeira se refletiu em seu rosto — Exceto aqui comigo. Aqui, pode ser honesto. Até o próximo mês, meu amor.
Atirou-lhe um beijo com suas horríveis mãos e se desmaterializou, dissipando-se da forma em que tinha feito o fôlego dele fora da cabana, devorado pelo fino ar da noite.
Os joelhos de Rehv cederam e se derrubou no chão, aterrissando em uma pilha de ossos. Jazendo sobre as pranchas rústicas, era consciente de tudo: os músculos de suas coxas com cãibras, o comichão na ponta de seu pênis quando o prepúcio voltou para seu lugar, o tragar compulsivo causado pelo veneno de escorpião.
Enquanto a frieza da cabana se filtrava para fora, náuseas o percorreram como uma maré fétida e oleosa e seu estômago se fechou como um punho, formando um montão de “vamos daqui” que apertava sua garganta. As ânsias de vômito instintivas seguiram as ordens e abriu muito a boca, mas não saiu nada.
Sabia bem que não devia comer antes de ter um encontro.
Trez atravessou a porta tão silenciosamente que não foi até que as botas do cara estiveram frente a seu rosto que Rehv notou que seu melhor amigo estava com ele.
A voz do segurança foi amável:
— Vamos te tirar daqui.
Rehv esperou uma interrupção nas ânsias de vomito, para tratar de levantar do chão.
— Deixa... Que me vista.
O veneno de escorpião disparou a toda velocidade através de seu sistema nervoso central, interferindo com sua auto-estrada neuronal e conseqüentemente, fazendo com que arrastar seu corpo até onde estavam suas roupas envolvesse um desdobramento vergonhoso de debilidade. O problema era que o antídoto devia permanecer no carro, do contrário a princesa o teria encontrado, e mostrar uma debilidade tão substancial como essa era como entregar sua arma carregada a seu inimigo.
Evidentemente Trez perdeu a paciência com o show, porque se aproximou e recolheu o casaco.
— Só ponha isto assim poderemos te tratar.
— Vestirei-me. — era o orgulho da puta.
Trez amaldiçoou e se ajoelhou com o casaco.
— Porra, Rehv...
— Não… — um ofego selvagem o interrompeu e fez com que caísse sobre o chão, oferecendo uma rápida aproximação dos nós das pranchas de pinheiro.
Caralho, estava mau esta noite. Pior do que alguma vez tinha estado.
— Rehv, sinto muito, mas vou tomar o controle.
Trez ignorou os intentos patéticos de Rehv por rechaçar sua ajuda, e depois de envolvê-lo com a zibelina, seu amigo o levantou e o carregou para fora como uma peça quebrada de equipe.
— Não pode continuar fazendo isto. — disse Trez enquanto suas pernas longas os levavam rapidamente para o Bentley.
— Observe.
Para manter a ele e a Xhex vivos e no mundo livre, tinha que fazê-lo.
Capítulo 19
Rehv despertou no seu dormitório de seu grande rancho nas Adirondacks que utilizava como refúgio. Podia dizer onde estava pelas janelas que iam do chão ao teto, o alegre fogo que tinha em frente, e o fato de que o pé da cama tinha putti esculpidos em mogno. O que não estava claro era quantas horas tinham passado desde seu encontro com a princesa. Uma? Cem?
Do outro lado do tênue cômodo, Trez estava sentado em um sofá cor vermelho escuro, lendo à débil luz amarela de uma luminária de mesa.
Rehv pigarreou.
— Que livro é?
O segurança elevou o olhar, os olhos amendoados enfocando-se com uma acuidade da qual Rehv poderia ter prescindido.
— Está acordado.
— Que livro?
— É “O dicionário da morte das Sombras”.
— Leitura ligeira. E eu aqui pensando que fosse fã de Candace Bushnell.
— Como se sente?
— Bem. Genial. Animado como a merda. — Rehv grunhiu enquanto se impulsionava mais alto sobre os travesseiros. Apesar do casaco de zibelina, que tinha em volta do corpo nu, e das colchas, mantas e edredons de plumas que tinha em cima, seguia tão frio como o rabo de um pingüim, assim obviamente Trez lhe tinha injetado muita dopamina. Mas pelo menos a antitoxina tinha funcionado, os fôlegos e a falta de fôlego tinham desaparecido.
Trez fechou lentamente a capa do livro antigo.
— Estou me preparando, isso é tudo.
— Para entrar em sacerdócio? Pensava que toda a coisa do rei era sua especialidade.
O segurança pôs o livro na mesa baixa que tinha ao lado e se elevou em toda sua estatura. Depois de esticar todo o corpo, aproximou-se da cama.
— Quer alimento?
— Sim. Estaria bem.
— Dê-me quinze minutos.
Quando a porta se fechou atrás do macho, Rehv procurou ao seu redor e encontrou o bolso interior da zibelina. Quando tirou o telefone e o comprovou, não havia mensagens. Nenhuma mensagem de texto.
Ehlena não se aproximou, nem se pôs em contato com ele. Mas então, por que teria que fazê-lo?
Olhou fixamente o telefone e riscou o teclado com o polegar. Ansiava muitíssimo ouvir sua voz, como se escutá-la pudesse apagar tudo o que tinha acontecido nessa cabana.
Como se ela pudesse fazer desaparecer as duas décadas e meia passadas.
Rehv entrou em seus contatos e fez aparecer seu número na tela. Era provável que estivesse no trabalho, mas, se deixava uma mensagem, possivelmente o ligaria no descanso. Duvidou, mas logo pressionou enviar e pôs o telefone em sua orelha.
No instante em que ouviu o sinal de chamada, teve uma imagem vívida e vil dele tendo relações sexuais com a princesa, de seus quadris amassando, da luz da lua lançando sombras obscenas sobre o chão rústico.
Terminou a chamada com um murro rápido, sentindo como se seu corpo estivesse revestido de merda feita loção.
Deus, não havia suficientes banhos no mundo para limpá-lo o bastante para ser digno de falar com Ehlena. Nem bastante sabão, nem água sanitária, nem bucha. Enquanto a imaginava com seu antigo uniforme de enfermeira, o cabelo loiro avermelhado recolhido para trás em um pulcro coque, e seus silenciosos sapatos brancos, soube que se alguma vez a tocasse a mancharia pela vida toda.
Com o polegar intumescido, acariciou a tela plana do telefone, como se fosse sua bochecha, logo deixou que a mão caísse na cama. A vista das brilhantes veias vermelhas do braço recordou um par de coisas mais que tinha feito com a princesa.
Nunca tinha pensado que seu corpo fosse um dom especial. Era grande e musculoso, por isso era útil, e ao outro sexo gostava o que significava que era uma espécie de vantagem. E funcionava bem… Bom, exceto pelos efeitos secundários que lhe ocasionava a dopamina e a alergia ao veneno de escorpião.
Mas, realmente a quem importava?
Convexo na cama na quase escuridão, com o telefone na mão, viu mais cenas horrorosas de seu tempo com a princesa… Ela lhe mamando, ele agachando-se e fodendo-a por detrás, sua boca entre as coxas dela. Recordou o que sentia quando a lingüeta de seu pênis se travava e ambos ficavam enganchados.
Então pensou em Ehlena medindo sua pressão… E em como tinha dado um passo atrás, afastando-se dele.
Tinha razão ao ter feito isso.
Era um equívoco ligar para ela.
Com deliberado cuidado, moveu o polegar pelos botões e entrou em sua informação de contato. Não se deteve nem uma vez enquanto a apagava do telefone, e quando desapareceu, um calor inesperado lhe encheu o peito… Indicando que de acordo com lado de sua mãe, fazia o correto.
A próxima vez que fosse à clínica, pediria outra enfermeira. E, se voltasse a ver Ehlena, a deixaria em paz.
Trez entrou com uma bandeja de flocos de aveia, um pouco de chá e algumas torradas.
— Hmmm. — disse Rehv sem entusiasmo.
— Seja um menino bom e termine isso. Na próxima refeição trarei ovos com toucinho.
Quando a bandeja esteve assentada sobre suas pernas, Rehv atirou o telefone sobre a pele e levantou a colher. Bruscamente, e por nenhuma absoluta e positiva razão em especial, disse:
— Esteve apaixonado alguma vez, Trez?
— Não. — o segurança retornou a sua cadeira no rincão, o abajur curvo iluminou seu rosto bonito e escuro — Vi iAm tentar e decidi que não era para mim.
— iAm? Não me foda. Não sabia que seu irmão tinha tido uma garota.
— Não fala dela, e nunca a conheci. Mas durante um tempo se sentiu miserável do modo em que só uma fêmea pode pôr a um tipo.
Rehv fez girar o açúcar mascavo que estava polvilhado sobre a aveia.
— Acredita que alguma vez te emparelhará?
— Não. — Trez sorriu, e seus perfeitos dentes brancos cintilaram — Por que as perguntas?
Rehv levou a colher à boca e comeu.
— Por nenhuma razão.
— Sim. Certo.
— Estes flocos de aveia são fantásticos.
— Você odeia os flocos de aveia.
Rehv riu um pouco e seguiu comendo para sossegar-se, pensando que o tema do amor não era de sua incumbência. Mas o trabalho, seguro como o inferno que sim o era.
— Aconteceu algo nos clubes? — perguntou.
— Tudo vai como a seda.
— Bem.
Rehv despachou lentamente a Quaker Oats, perguntando-se por que, se tudo ia perfeito e de primeira em Caldwell, tinha uma sensação de desgosto no intestino.
Provavelmente, pensou, era a aveia.
— Disse a Xhex que estou bem, verdade?
— Sim. — disse Trez, levantando o livro que tinha estado lendo — Menti.
Xhex estava sentada atrás de seu escritório e olhava fixamente a seus dois melhores seguranças, Big Rob e Silent Tom. Eram humanos, mas eram preparados e com seus jeans baixos, emitiam a enganosa sensação de tranqüilidade que ela procurava.
— O que podemos fazer por você, chefe? —perguntou Big Rob.
Inclinando-se para frente em sua cadeira, tirou dois montões de notas do bolso traseiro de suas calças de couro. Mostrava-os deliberadamente, dividindo-os em duas pilhas e deslizando-os para os homens.
— Preciso que façam um trabalho extra-oficial.
Seus assentimentos foram tão rápidos como suas mãos sobre essas notas.
— O que você quiser. — disse Big Rob.
— Durante o verão, tivemos um barman que despedimos por roubar. O tipo se chamava Grady. Recordam…
— Vi essa merda a respeito de Chrissy no periódico.
— Fodido bastardo. — Silent Tom interveio pela primeira vez.
Xhex não se surpreendeu que soubessem toda a história.
— Quero que encontrem Grady. — quando Big Rob começou a fazer soar seus nódulos, ela sacudiu a cabeça — Não. O único que quero que façam é que me consigam um endereço. Se os vir, cumprimentem de longe e se afastem. Está claro? Não façam mais que lhe roçar a manga.
Ambos sorriram cruelmente.
— Nenhum problema, chefe. — murmurou Big Rob — O guardaremos para você.
— O DPC o busca também.
— Sem dúvida que sim.
— Não queremos que a polícia saiba o que estão fazendo.
— Nenhum problema.
— Ocuparei-me de cobrir seus turnos. Quanto mais rápido o encontrarem, mais feliz estarei.
Big Rob olhou ao Silent Tom. Após um momento, tiraram as notas que lhes tinha dado dos bolsos e as deslizaram pela mesa.
— Faremos o correto pela Chrissy, chefe. Não se preocupe.
— Com vocês nisto, não o farei.
A porta se fechou atrás deles, e Xhex passou as palmas acima e abaixo pelas coxas, forçando aos cilícios que tinha nas pernas a entrar mais profundamente em sua pele. Estava ardendo pela necessidade de sair ela mesma, mas com Rehv no norte e os entendimentos que fariam esta noite, não podia deixar o clube. E o que era igualmente importante, quanto ao Grady não ia poder fazer os preparativos ela mesma. Esse detetive da homicídios a estava vigiando.
Transladando os olhos ao telefone, quis amaldiçoar. Trez a tinha ligado mais cedo para dizer que Rehv tinha terminado o negócio com a princesa, e o som da voz do segurança tinha indicado o que suas palavras não diziam: o corpo de Rehv não ia agüentar muita tortura mais.
Outra situação mais que se via forçada a agüentar, sentada sobre seu rabo, esperando.
A impotência não era um estado com o qual se sentisse cômoda, mas quando se tratava da princesa, estava acostumada a sentir-se impotente. Fazia vinte anos, quando as escolhas de Xhex os tinham posto nesta situação, Rehv lhe havia dito que se ocuparia das coisas com uma condição: deixaria dirigi-lo a sua maneira sem intervir. Tinha feito jurar que permaneceria afastada, e embora a matasse, tinha cumprido a promessa e vivia com a realidade de que Rehv se viu forçado a cair nas mãos dessa puta por causa dela.
Maldita fora desejava que perdesse a paciência e arremetesse contra ela. Só uma vez. Em troca, seguia agüentando, pagando com seu corpo a dívida que ela tinha gerado.
Ela o tinha convertido em uma puta.
Xhex deixou o escritório porque não podia suportar passar mais tempo consigo mesma, e quando esteve no clube rezou para que houvesse uma escaramuça na parte do povo, como um triângulo amoroso explodindo, onde algum tipo esbofeteasse a outro por uma garota com lábios de peixe e tetas de plástico. Ou possivelmente um encontro no banheiro de homens da sobreloja se fosse ao traste. Merda! Estava tão desesperada que inclusive agarraria a um bêbado de saco cheio com seu patrão ou algum casal em um rincão escuro que tivessem levado o manuseio cruzando a linha até a penetração.
Precisava golpear algo e sua melhor oportunidade era com as massas. Se só houvesse…
Era sua sorte. Todos estavam se comportando.
Miseráveis estúpidos.
Finalmente, terminou indo à seção VIP porque estava deixando os seguranças da pista dementes ao ficar rodando por ali em busca de briga. E, além disso, tinha que usar os músculos em um trato de maior importância.
Ao atravessar a corda de veludo, seus olhos foram diretos à mesa da Irmandade. John Matthew e seus companheiros não estavam ali, mas bom, sendo tão cedo, estariam fora caçando lessers. Os engolidores de Corona viriam mais tarde, se é que o fariam.
Não lhe importava se John viria.
Nada absolutamente.
Aproximando-se de iAm, disse:
— Preparados?
O segurança assentiu.
— Rally tem o produto preparado. Os compradores devem estar aqui em vinte minutos.
— Bem.
Essa noite levariam a cabo dois entendimentos de seis cifras por coca, e com o Rehv fora de combate e Trez acompanhando-o no norte, ela e iAm estavam no comando das transações. Embora o dinheiro fosse trocar de mãos no escritório, o produto ia ser carregado nos carros, no beco traseiro, porque quatro quilogramas de pó sul-americano puro não era o tipo de coisas que ela quisesse que estivesse dando voltas pelo clube. Merda, o fato de que os compradores fossem chegar com maletas contendo dinheiro em efetivo era bastante problemático.
Xhex estava na porta do escritório quando vislumbrou a Marie-Terese insinuando-se a um homem com terno. O homem a olhava com admiração e maravilha, como se fosse o equivalente feminino de um carro esportivo que alguém acabava de lhe dar as chaves.
A luz cintilou na aliança de casamento que levava quando estendeu a mão para a carteira.
Marie-Terese sacudiu a cabeça e levantou sua elegante mão para detê-lo, logo pôs ao absorto homem de pé e precedeu o caminho por volta dos banheiros particulares da parte de trás, onde o dinheiro trocaria de mão.
Xhex girou e se encontrou frente à mesa da Irmandade.
Enquanto olhava o lugar onde John Matthew estava acostumado a sentar-se habitualmente, pensou no John[40] mais recente de Marie-Terese. Xhex estava disposta a apostar que o HDP que estava a ponto de soltar quinhentos dólares para ser mamado ou fodido ou possivelmente mil por ambos, não olhava a sua mulher com esse tipo de excitação e luxúria. Era a fantasia. Ele não sabia nada a respeito de Marie-Terese, não tinha nem idéia de que fazia dois anos seu filho tinha sido seqüestrado por seu ex-marido e que ela estava trabalhando para pagar o custo da volta do menino. Para ele, ela era um magnífico pedaço de carne, algo com o que brincar e ser deixado atrás. Prolixo. Limpo.
Todos os John eram assim.
E também o era o John de Xhex. Ela era uma fantasia para ele. Nada mais. Uma mentira erótica que evocava para fazer uma punheta… O que realmente não era algo do que o culpasse, porque ela estava fazendo o mesmo com ele. E a ironia era que ele era um dos melhores amantes que jamais tinha tido, embora isso fosse porque podia fazer algo que quisesse durante tanto tempo como necessitasse para se saciar, e nunca havia queixa, reservas nem pedidos.
Prolixo. Limpo. A voz de iAm saiu do auricular.
— Os compradores acabam de entrar.
— Perfeito. Vamos fazê-lo.
Terminaria com os dois entendimentos, e logo tinha seu próprio trabalho particular que fazer. Agora, isso era algo que valia a pena ansiar. Ao final da noite, ia conseguir exatamente a classe de liberação que necessitava.
Do outro lado da cidade, em um tranqüilo beco sem saída em uma vizinhança segura, Ehlena estava estacionada diante de uma modesta casa colonial, sem intenção de ir a nenhum lugar em um futuro próximo.
A chave não entrava no painel de acesso da ambulância.
Tendo terminado com o que deveria ter sido a parte mais difícil da viagem, tendo entregado Stephan a salvo aos braços de seus familiares de sangue, acabava surpreendente que colocar a maldita chave no condenado contato fosse mais difícil.
— Vamos… — Ehlena se concentrou em estabilizar sua mão. E acabou olhando realmente muito de perto a forma em que o pedaço de metal saltava ao redor do buraco ao que pertencia.
Recostou-se no assento com uma maldição, sabendo que estava aumentando a desdita da casa, que a ambulância estacionada ali fora era simplesmente outra declaração expressa a gritos da tragédia.
Como se o corpo do amado filho da família não fosse suficiente.
Girou a cabeça e olhou fixamente as janelas coloniais. Havia sombras deslocando-se do outro lado das cortinas de gaze.
Depois de entrar de ré pelo caminho de entrada, Alix tinha ingressado na casa e ela tinha esperado na noite fria. Um momento depois, a porta da garagem tinha rodado para cima e Alix tinha saído com um macho mais velho que se parecia muito a Stephan. Ela tinha feito uma reverência e tinha lhe estreitado a mão, e logo tinha aberto a porta traseira da ambulância. O macho teve que por uma mão sobre a boca enquanto ela e Alix tiravam a maca.
— Meu filho… — tinha gemido.
Nunca esqueceria o som dessa voz. Oco. Sem esperança. Com o coração quebrado.
O pai de Stephan e Alix o levaram para a casa, e assim como no necrotério, um momento depois se escutou um pranto. Esta vez, entretanto, tinha sido o lamento mais agudo de uma fêmea. A mãe de Stephan.
Alix tinha retornado no momento em que Ehlena estava empurrando a maca para o interior da ambulância, e estava piscando rapidamente, como se estivesse enfrentando um forte vento. Depois de apresentar seus respeitos e despedir-se, subiu atrás do volante e… Não tinha podido arrancar o maldito veículo.
Do outro lado das cortinas de gaze, viu duas silhuetas fundirem-se em um abraço. E logo foram três. E logo vieram mais.
Sem nenhuma razão aparente, pensou nas janelas da casa que alugava para ela e seu pai, todas cobertas com papel alumínio, seladas para deixar o mundo de fora.
Quem estaria junto a seu corpo envolto quando sua vida acabasse? Seu pai sabia quem era ela a maior parte do tempo, mas raramente estava conectado a ela. O pessoal da clínica era muito amável, mas isso era trabalho, não pessoal. Pagava a Lusie para vir.
Quem cuidaria de seu pai?
Sempre tinha assumido que ele se iria primeiro, mas então, sem dúvida a família de Stephan tinha pensado o mesmo.
Ehlena afastou o olhar dos enfermos e fixou no pára-brisa dianteiro da ambulância.
A vida era muito curta, por muito que vivesse. Não acreditava que alguém estivesse preparado, quando chegava seu turno, para deixar amigos, familiares e as coisas que os faziam felizes, ainda que tivessem quinhentos anos, como seu pai, ou cinqüenta, como Stephan.
O tempo era uma fonte interminável de dias e noites como a galáxia era grande.
Fez com que se perguntasse: Que demônios estava fazendo com o tempo que tinha? Seu trabalho lhe dava um propósito, certo, e cuidava de seu pai, o que era o que se fazia pela família. Mas aonde ia? A lugar nenhum. E não se referia a estar sentada nesta ambulância com as mãos tão trementes que não podia colocar uma chave na ignição.
O assunto era que, não é que queria mudar tudo. Só queria algo para si mesma, algo que a fizesse saber que estava viva.
Os profundos olhos cor ametista de Rehvenge lhe vieram à mente como saídos de nenhuma parte, e como uma câmera que vai se afastando, viu seu rosto esculpido, seu penteado moicano, sua roupa fina e sua bengala.
Esta vez, quando se esticou para frente com a chave, a coisa entrou firmemente e o motor diesel despertou com um grunhido. Quando a calefação soltou uma rajada de ar frio, desligou o ventilador, colocou a alavanca em “avanço” e saiu da casa, do beco sem saída e da vizinhança.
Que já não parecia tranqüilo.
Atrás do volante, ia conduzindo e ao mesmo tempo estava ausente, cativada pela imagem de um macho que não podia ter, mas que nesse momento precisava com loucura.
Seus sentimentos eram inconvenientes por muitos motivos. Pelo amor de Deus, eram uma traição a Stephan, apesar de que, na realidade, não o tinha conhecido. Simplesmente parecia uma falta de respeito estar desejando a outro macho enquanto seu corpo era chorado por seu sangue.
Salvo que teria desejado ao Rehvenge de todos os modos.
— Maldito seja.
A clínica estava do outro lado do rio, e a alegrava, porque nesse momento não poderia encarar o trabalho. Estava muito doída, triste e zangada consigo mesma.
O que precisava era…
Starbucks. Oh, sim, isso era exatamente o que necessitava.
A uns oito quilômetros dali, em um lugar ao redor do qual havia um supermercado Hannaford, uma floricultura, uma boutique do LensCrafters, e uma loja Blockbuster, encontrou um Starbucks que permanecia aberto até as duas da manhã. Levou a ambulância a um lado e saiu.
Quando deixou a clínica com o Alix e Stephan, não pensou em trazer o casaco, assim aconchegou sua bolsa, correu pela calçada e atravessou a porta a toda pressa. No interior, o lugar era como a maioria deles: nós de madeira vermelhos, chão de ladrilhos cinza, muitas janelas, cadeiras amaciadas e pequenas mesas. No mostrador havia muffins a venda e uma vitrine de vidro com quadradinhos de bolacha de limão, brownies e pão-doce e dois humanos próximos aos vinte dirigiam as máquinas de café. O ar cheirava a avelã, café e chocolate, e esse aroma apagou de seu nariz o persistente aroma herbal das mortalhas.
— Posso ajudá-la? — perguntou o menino mais alto.
— Um Latte comprido, com espuma, sem creme. Para levar.
O macho humano sorriu e se afastou. Tinha uma barba escura recortada e um brinco no nariz, sua camiseta estava salpicada de gráficos que soletravam as palavras COMEDOR DE TOMATE dentro de gotas do que poderia ter sido sangue, ou dado o nome da banda, ketchup.
— Gostaria de algo mais? Os pães-doces de canela são espetaculares.
— Não, obrigado.
Enquanto se encarregava de seu pedido não afastou a vista dela, e para evitar ter que tratar com sua atenção, procurou na bolsa e checou seu telefone no caso de que Lusie…
CHAMADA PERDIDA. Ver agora?
Pressionou o sim, rezando para que não se tratasse de seu pai…
Apareceu o número de Rehvenge, embora não seu nome, porque não o tinha posto no telefone. Olhou fixamente os dígitos.
Deus! Era como se lhe tivesse lido a mente.
— Seu latte! Olá?
— Sinto muito. — guardou o telefone, pegou o que o homem estendia e agradeceu.
— Dupla taça como o desejava. As asas também.
— Obrigado.
— Ouça, trabalha em um dos hospitais por aqui? — perguntou, observando seu uniforme.
— Clínica particular. Obrigada outra vez.
Saiu rapidamente e não perdeu tempo em entrar na ambulância. Quando esteve novamente atrás do volante, travou as fechaduras das portas, arrancou o motor e ligou a calefação imediatamente, porque o ar que saía ainda estava morno.
O latte estava realmente bom. Super quente. O sabor perfeito.
Tirou o telefone outra vez, foi à lista de chamadas recebidas e escolheu o número de Rehvenge.
Respirou fundo e tomou um comprido trago do latte.
E pressionou enviar.
O código de área do destino era o 518. Quem teria dito?
CONTINUA
Capítulo 10
Rehvenge fechou a porta de seu escritório e sorriu tensamente, para evitar que suas presas aparecessem. Entretanto, ainda sem a exibição dos caninos, para o recolhedor de apostas espremido entre Trez e iAm foi suficiente para saber que estava em sérios problemas.
— Reverendo o que é tudo isto? Por que me chama assim? — disse o tipo precipitadamente — Estava me ocupando de meu negócio, para o senhor e de repente estes dois...
— Ouvi algo interessante sobre você. — disse Rehv, rodeando seu escritório.
Quando estava se sentando, Xhex entrou no escritório, com uma expressão dura nos olhos cinza. Após fechar a porta, apoiou as costas contra ela, sendo melhor que qualquer Master Lock quando se tratava de manter aos recolhedores de apostas trapaceiros dentro e longe dos olhos curiosos de fora.
— É mentira, é uma absoluta mentira...
— Você não gosta de cantar? — Rehv se recostou em sua cadeira, seu corpo intumescido encontrando uma posição familiar atrás da mesa de escritório negra — Não foi você que deu um pequeno espetáculo a La Tony Bennett para a multidão do Sal's a outra noite?
O recolhedor de apostas franziu o cenho.
— Bom, sim... Tinha alguns ouvintes.
Rehv fez um gesto com a cabeça a iAm, quem como sempre, tinha o rosto inexpressivo. O cara nunca demonstrava suas emoções, exceto quando se tratava de um cappuccino perfeito. Então podia vê-lo radiante de alegria.
— Meu companheiro aqui... Diz que cantou realmente bem. Que verdadeiramente agradou à multidão. O que cantou, iAm?
A voz de iAm era como a de James Earl Jones, baixa e profunda.
— Três Moedas na Fonte.
O recolhedor de apostas subiu as calças de um puxão em um gesto orgulhoso.
— Tenho habilidade. Tenho ritmo.
— Assim é um tenor como o bom e prezado senhor Bennett, não é? — Rehv tirou o casaco com um encolhimento de ombros — Os tenores são os meus favoritos.
— Sim. — o recolhedor de apostas olhou aos seguranças — Olhe, se importaria em me dizer o que é tudo isto?
— Quero que cante para mim.
— Quer dizer, como em uma festa? Faria qualquer coisa por você, chefe, já sabe. Tudo o que tem que fazer é pedir... Quero dizer, isto não era necessário.
— Não em uma festa, embora nós quatro desfrutemos ouvindo sua atuação. É para me compensar pelo que me roubou o último mês.
O rosto do recolhedor de apostas empalideceu.
— Eu não roubei...
— Sim, fez. Olhe, iAm é um contador fantástico. A cada semana, dá seus informes. Quanto, em que equipes, e que extensão. Acredita que não confere as contas? Apoiado nos informes do último mês deveria ter pagado... Qual era a cifra, iAm?
— Cento e setenta e oito mil quatrocentos e oitenta e dois.
— Isso mesmo. — Rehv fez um rápido gesto com a cabeça em sinal de agradecimento a iAm — Mas em vez disso veio com... Quanto?
— Cento e trinta mil novecentos e oitenta e dois. — replicou rapidamente iAm.
O recolhedor começou a falar imediatamente.
— Está enganado...
Rehv sacudiu a cabeça.
— Adivinha de quanto é a diferença... Embora não é como se já não soubesse. iAm?
— Quarenta e sete mil e quinhentos.
— O que casualmente é igual à soma de vinte e cinco dos grandes mais um interesse de noventa por cento. Não é assim, iAm? — quando o segurança assentiu com a cabeça uma vez, Rehv golpeou o chão com sua bengala e ficou em pé — E resulta que esse é o interesse de cortesia aplicado pela máfia de Esquente. Então Trez se dedicou a escavar um pouco, e o que foi que averiguou?
— Meu amigo Mike diz que emprestou vinte e cinco dos grandes a este cara aqui justamente antes do Rose Bowl12.
Rehv deixou sua bengala sobre a cadeira e rodeou a mesa do escritório, mantendo uma mão sobre a superfície para estabilizar-se. Os seguranças voltaram a ficar em posição, ladeando ao recolhedor de apostas, voltando a segurá-lo pela parte superior dos braços.
Rehv se deteve justamente diante do homem.
— Assim perguntarei isso uma vez mais, acredita que ninguém comprovaria as contas?
— Reverendo! Chefe... Por favor, ia lhe devolver isso! Por favor... Machucariam-me...
— Sim, é claro que vai fazê-lo. E vai me pagar o que cobro dos bastardos que tentam brincar disso comigo. Um castigo cento e cinqüenta por cento de interesse ao final deste mês ou sua esposa vai receber por correio seus pedacinhos. Oh, e está despedido.
O homem estalou em lágrimas, e não eram do tipo das de crocodilo. Eram autênticas, da classe que fazia que o nariz de um homem avermelhasse e os olhos inchassem.
— Por favor... iAm me danificar...
Rehv estendeu a mão de repente e a fechou entre as pernas do tipo. O uivo, quase um guincho, lhe indicou que embora ele não pudesse sentir nada, o recolhedor de apostas podia, e que a pressão estava sendo exercida no ponto exato.
— Não gosto que me roubem. — disse Rehv no ouvido do homem — Eu fico de saco cheio. E, se acredita que o que a máfia te faria é mau, garanto que sou capaz de algo pior. Agora... Quero que cante para mim, filho da puta.
Rehv retorceu com força e o tipo gritou com tudo o que tinha, o som foi alto e agudo, e ecoou na sala do andar de baixo. Quando o chiado começou a desvanecer-se porque o recolhedor de apostas tinha esgotado seu fornecimento de ar, Rehv cedeu e lhe deu oportunidade de refrescar as cordas vocais com um e outro ofego. E depois disso...
O segundo grito foi mais alto e ruidoso que o primeiro, provando que os vocalistas o faziam melhor depois de um pequeno aquecimento.
O recolhedor se sacudiu e saltou entre os seguranças, e Rehv seguiu apertando, seu lado symphath observando absorto, como se fosse o melhor espetáculo da televisão.
O homem demorou ao redor de nove minutos para perder a consciência.
Depois de ter apagado, Rehv o soltou e voltou para sua cadeira. Fez um gesto com a cabeça em direção a Trez e iAm e estes tiraram o humano pela porta de trás, para o beco, onde o frio o reviveria finalmente.
Quando partiram, Rehv teve uma súbita imagem de Ehlena balançando todas aquelas caixas de dopamina em seus braços enquanto entrava na sala de exame. O que pensaria dele se soubesse o que fazia para manter seu negócio em movimento? O que diria se soubesse que, quando disse ao recolhedor de apostas que ou pagava ou sua esposa receberia pacotes de FedEx que gotejariam sangue sobre os degraus de sua entrada, não tinha sido apenas uma ameaça? O que faria se soubesse que estava completamente preparado para cortá-lo ele mesmo em pedacinhos ou ordenar a Xhex, Trez ou iAm que o fizessem por ele?
Bom, já tinha a resposta, não?
Sua voz, essa clara e encantadora voz, voltou a ressonar em sua mente: Será melhor que guarde isto. Para alguém que vá utilizar alguma vez.
Certamente, ela não conhecia os detalhes, mas era esperta o bastante para rechaçar seu cartão de visita.
Rehv se concentrou em Xhex, que não se moveu de sua posição contra a porta de entrada. Quando o silêncio se prolongou, ela baixou o olhar ao tapete negro de pelo curto, desenhando um círculo ao redor de si mesma com o salto de sua bota.
— O que foi? — perguntou. Quando ela não levantou o olhar, pressentiu sua luta para recompor-se — Que merda aconteceu?
Trez e iAm voltaram a entrar no escritório e se colocaram contra a parede negra que estava frente à mesa de escritório de Rehv. Cruzaram os braços diante de seus enormes peitos e mantiveram a boca fechada.
O silêncio era algo característico nas Sombras... Mas combinado com a expressão tensa de Xhex e a rotina semicircular que estava realizando com essa bota, queria dizer que a merda era profunda.
— Fale. Já!
Os olhos de Xhex voaram aos seus.
— Chrissy Andrews está morta.
— Como? — embora soubesse.
— Golpeada e estrangulada até morrer em seu apartamento. Tive que ir ao necrotério para identificar o corpo.
— Filho da puta!
— Ocuparei-me do assunto. — Xhex não estava pedindo permissão, e sem importar o que ele dissesse, ia atrás desse pedaço de merda do namorado — E o farei rápido.
Tecnicamente falando, Rehv estava no comando, mas, neste assunto não ia se interpor em seu caminho. Para ele, suas garotas não eram somente uma fonte de ganhos... Eram empregadas pelas quais se preocupava e com as quais se identificava intimamente. Assim, se alguém machucava a alguma, fosse um cliente, um namorado ou um marido, tomava um interesse pessoal na vingança.
As putas mereciam respeito, e as suas o conseguiam.
— Ensina-o uma lição primeiro. — grunhiu Rehv.
— Não se preocupe com isso.
— Merda... É minha culpa. — murmurou Rehv enquanto estendia o braço para frente e recolhia seu abridor de cartas. A coisa tinha forma de adaga e também estava tão afiada como uma arma — Deveríamos tê-lo matado antes.
— Ela parecia estar melhor.
— Talvez somente escondesse melhor.
Os quatro ficaram em silêncio um momento. Em sua profissão sofriam um montão de perdas — que as pessoas acabassem mortas não era nenhuma novidade — mas na maioria dessas mortes, ele e sua equipe eram os sinais negativos da equação: eles eram os que faziam com que os outros desaparecessem. Perder a um dos seus nas mãos de algum outro ficava mal.
— Quer ouvir as novidades desta noite? — perguntou Xhex.
— Ainda não. Também trago uma pequena notícia para compartilhar. — forçando sua cabeça a trabalhar, olhou Trez e iAm — O que estou a ponto de dizer revolverá bastante as coisas, e quero dar a ambos a oportunidade de partir. Xhex, você não tem essa opção. Sinto muito.
Trez e iAm permaneceram imóveis, o que não o surpreendeu absolutamente. Trez ainda lhe mostrou o dedo maior. Isso tampouco foi uma surpresa.
— Fui à Connecticut. — disse Rehv.
— Também foi à clínica. — acrescentou Xhex — Por quê?
O GPS era um saco algumas vezes. Era difícil ter um pouco de privacidade.
— Esquece a porra da clínica. Escutem, preciso que façam um trabalho para mim.
— Um trabalho como...?
— Pensa no namorado de Chrissy como em um aperitivo antes do jantar.
Isto arrancou um sorriso frio de Xhex.
— Conte.
Rehv olhou fixamente a ponta de seu abridor de cartas, pensando em que ele e Wrath riram porque ambos tinham um. Depois das incursões do verão, o rei tinha lhe feito uma visita, para discutir assuntos do conselho, e tinha visto a coisa sobre o escritório. Wrath tinha brincado a respeito de que em seu trabalho diário ambos administravam por meio da espada, ainda quando tinham uma pluma entre as mãos.
Não se afastava muito da verdade. Embora Wrath tivesse a moralidade de seu lado e Rehv só o interesse próprio.
De maneira que não tinha empregado um ponto de vista moral ao tomar a decisão e escolher o caminho a seguir. Tinha-o feito, como sempre, apoiado no que mais lhe convinha.
— Não vai ser fácil. — murmurou.
— O divertido nunca é.
Rehv se concentrou na ponta afiada do abridor de cartas.
— Este... Não é por diversão.
Ao se aproximar o fim da noite e com seu turno a ponto de terminar, Ehlena se sentia inquieta. Hora do encontro. Hora de decidir. Supunha-se que em vinte minutos o macho viria à clínica para recolhê-la.
Deus! Divagava novamente.
Seu nome era Stephan. Stephan, filho de Tehm, embora não conhecia nem a ele nem a sua família. Era um civil, não um aristocrata, e tinha ido ali com seu primo, que machucara a mão quando cortava lenha para o fogo. Enquanto preenchia a papelada de alta, falara com Stephan de todas essas coisas das que falam os solteiros: gostava de Radiohead, ela também. Gostava de comida da Indonésia, ele também. Ele trabalhava no mundo humano, programando computadores, graças à comunicação virtual. Ela era enfermeira, algo óbvio não? Ele vivia em casa com seus pais, era o único filho de uma sólida família civil... Ou ao menos tinha divulgado como sendo sólidos civis, seu pai trabalhava para empreiteiros vampiros, sua mãe ensinava a Antiga Língua por conta própria.
Agradável, normal. Confiável.
Levando em consideração o que os aristocratas tinham feito à saúde mental de seu pai, lhe ocorreu que tudo isso parecia uma boa aposta, e, quando Stephan a tinha convidado para tomar um café, havia dito que sim, tinham combinado para essa noite, e tinham trocado os números de celulares.
Mas, o que ia fazer? Chamá-lo e dizer que não podia por causa de sua situação familiar? Ir de todos os modos, e preocupar-se com seu pai?
Entretanto, um rápido telefonema para Lusie do vestuário, trouxe notícias favoráveis: seu pai Ehlena teve uma longa sesta e agora estava trabalhando tranqüilamente nos papéis de seu escritório.
Meia hora de jantar. Talvez dividir uma sobremesa. Que mal podia fazer?
Quando ao fim decidiu ir, não apreciou a imagem que relampejou em sua mente. Agora que acabava de decidir que iria a um encontro com um macho, não deveria estar pensando no peito nu de Rehv com essas estrelas vermelhas tatuadas.
O que precisava era se concentrar em tirar o uniforme e em melhorar sua aparência, ao menos nominalmente.
Entre o pessoal do dia que entrava e os que trabalharam durante a noite que saiam, trocou o uniforme pela saia e o suéter que trouxera...
Tinha esquecido os sapatos.
Genial. Os sapatos brancos com sola de borracha não eram muito sexy.
— O que acontece? — disse Catya.
Girou-se.
— Alguma possibilidade de que estes dois botes brancos em meus pés não arruínem totalmente esta roupa.
— Hã... Honestamente? Não estão tão mal.
— Não mente nada bem.
— Ao menos tentei.
Ehlena guardou o uniforme em sua mochila, refez o penteado, e comprovou a situação da maquiagem. É obvio, tinha esquecido o delineador de olhos e também o rímel, assim, como quem diz, a cavalaria ficou sem cavalos nesse flanco.
— Alegro-me de que saia. — disse Catya enquanto apagava a lista de nomes do horário noturno da lousa branca.
— Considerando que é minha chefe, isso me põe nervosa. Bem preferiria que se alegrasse por ver-me entrar na clínica.
— Não, não se trata do trabalho. Alegro-me que esta noite saia para se divertir.
Ehlena franziu o cenho e olhou ao seu redor. Por algum milagre, estavam sozinhas.
— Quem diz que vou a alguma parte que não seja para casa?
— Uma fêmea que vai para casa não troca o uniforme aqui. E não se preocupa de como estão os sapatos com a saia. Economizarei o “quem é ele”.
— É um alívio.
— A menos que queira compartilhá-lo voluntariamente?
Ehlena riu em voz alta.
— Não, prefiro mantê-lo em privado. Mas, se chegar a alguma parte... Desembucharei.
— Obrigarei que cumpra sua palavra. — Catya foi a seu armário e simplesmente ficou olhando.
— Está bem? — disse Ehlena.
— Odeio esta maldita guerra. Odeio receber os mortos e ver em seus rostos o quanto sofreram. — Catya abriu o armário e se ocupou em tirar sua parka — Sinto, não queria ser desmancha-prazeres.
Ehlena se aproximou e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Sei exatamente como se sente.
Houve um momento de entendimento entre elas durante o qual sustentaram seus olhares. E, logo Catya aclarou a garganta.
— Bem, vá. Seu macho te espera.
— Virá me recolher aqui.
— Ooooh, talvez fique por aqui e fume um cigarro lá fora.
— Você não fuma.
— Demônios, frustrada outra vez.
De caminho à saída, Ehlena se apresentou na tela de registro para assegurar-se de que não havia nada mais que tivesse que fazer antes da substituição do novo turno. Satisfeita de que tudo estivesse em ordem, atravessou as portas e subiu as escadas até que finalmente esteve fora da clínica.
A noite estava mais à frente do código postal CEP que indicava fresco e entrando em cidade fria, e em sua opinião o ar cheirava a azul, se é que a cor podia ter alguma fragrância: é que sentia algo que simplesmente era muito fresco, glacial e claro quando respirava profundamente e exalava formando suaves nuvens. Com cada inalação, sentia-se como se estivesse tomando as safiras pulverizadas pelos céus em seus pulmões, e, que as estrelas eram faíscas que saltavam através de seu corpo.
Foi despedindo-se das atrasadas, enquanto as últimas enfermeiras partiam, desmaterializando-se ou conduzindo, dependendo do que tivessem planejado. Depois também Catya chegou e se foi.
Ehlena tamborilou com o pé e comprovou seu relógio. Seu macho estava dez minutos atrasado. Não era para tanto.
Recostando-se contra o revestimento de alumínio, sentiu que seu sangue cantava em suas veias, uma estranha sensação de liberdade inchando seu peito enquanto pensava em sair a alguma parte com um macho por sua própria...
Sangue. Veias.
Rehvenge não tratou de seu braço!
O pensamento penetrou em sua mente e permaneceu ali como o eco de um grande ruído. Não tinha tratado o braço. Não houvera nada no relatório sobre a infecção, e Havers era tão escrupuloso em suas notas como era com os uniformes do pessoal, a limpeza dos quartos dos pacientes e a organização dos armários de fornecimentos.
Quando retornara da farmácia com as drogas, Rehvenge tinha a camisa posta e os punhos abotoados, mas tinha assumido que era porque o exame tinha terminado. Entretanto, estava disposta a apostar que os tinha abotoado assim que ela terminou de lhe tirar sangue.
Mas... Não era assunto dela, não? Rehvenge era um macho adulto que tinha todo o direito a tomar más decisões sobre sua saúde. Igual aquele com overdose de drogas que mal sobrevivera à noite, e igualmente ao grande número de pacientes que assentiam muito quando o médico estava diante deles, mas que quando iam para casa deixavam de lado o indicado em suas receitas e os cuidados pós-operatórios.
Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar a alguém que não queria ser salvo. Nada. E essa era uma das maiores tragédias de seu trabalho. Tudo o que podia fazer era indicar as opções e as conseqüências e esperar que o paciente escolhesse sabiamente.
Soprou uma brisa, penetrando dentro de sua saia e fazendo-a invejar o casaco de pele de Rehvenge. Afastando-se da lateral da clínica, tentou ver o caminho abaixo, procurando faróis de carro.
Dez minutos mais tarde, voltou a olhar seu relógio.
E dez minutos depois desses, elevou o punho uma vez mais.
Tinham-na deixado plantada!
Não era uma surpresa. O encontro tinha sido marcado de maneira muito apressada, e em realidade não conheciam um ao outro, verdade?
Quando outra brisa fria a golpeou, tirou seu celular e escreveu: Olá, Stephan sinto não tê-lo visto esta noite. Talvez em outro momento. E.
Retornou o telefone a seu bolso e se desmaterializou para sua casa. Em vez de entrar em seguida, agasalhou-se com seu casaco e passeou daqui para lá pela calçada gretada que corria com o passar da lateral da casa até a porta traseira. Quando o vento gelado voltou a soprar, uma rajada lhe deu totalmente no rosto.
Picavam-lhe os olhos.
Ao dar as costas ao vendaval, algumas mechas de cabelo voaram para frente como se estivessem tentando fugir do frio, e ela estremeceu.
Genial. Agora, quando sua visão se empanasse, não teria a desculpa da brisa fria.
Deus estava chorando? Isso podia ser simplesmente um mal-entendido? Por um homem que mal conhecia? Por que lhe importava tanto?
Ah, mas não era por ele absolutamente. O problema era ela. Odiava estar onde tinha estado ao abandonar a casa: sozinha.
Tentando conseguir um apoio, literalmente, estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira, mas não pôde obrigar-se a entrar. A imagem dessa cozinha miserável e muito organizada, o conhecido som dessas escadas rangentes que conduziam ao porão, e o aroma de pó e papel do dormitório de seu pai lhe eram tão familiares como seu próprio reflexo em qualquer espelho. Esta noite tudo resultava muito claro, um brilhante brilho que lhe cravava em ambos os olhos, um rugido soando em seus ouvidos, um enjoativo fedor bombardeando seu nariz.
Deixou cair o braço. O encontro tinha sido um passe de “saída da prisão”. Uma balsa para abandonar a ilha. Uma mão estendida sobre o precipício do qual ela estava pendurada.
O desespero a fez voltar bruscamente para a realidade como nenhuma outra coisa podia tê-lo feito. Não servia de nada sair com alguém se essa era sua atitude. Não era justo para o homem nem são para ela. Quando Stephan ligasse outra vez, se o fizesse, simplesmente diria que estava muito ocupada...
— Ehlena? Está bem?
Ehlena saltou afastando-se da porta que evidentemente acabava de se abrir amplamente.
— Lusie! Sinto muito, somente... Só estava pensando muito. Como está papai?
— Bem, honestamente bem. Está dormindo outra vez.
Lusie saiu da casa e fechou evitando que o calor escapasse da cozinha. Depois de dois anos, era uma figura dolorosamente familiar, sua roupa boêmia e seu comprido cabelo grisalho resultavam reconfortantes. Como de costume, tinha sua bolsa de remédios em uma mão e sua enorme bolsa pendurada do ombro oposto. Dentro da bolsa de remédios havia um medidor de pressão sangüínea padrão, um estetoscópio, e medicamentos de sob nível... Tudo o qual Ehlena a tinha visto usar. Dentro da bolsa levava as palavras cruzadas do New York Time, chicletes de hortelã Wrigley’s que gostava de mascar, a carteira e o batom cor pêssego que passava pelos lábios a intervalos regulares. Ehlena sabia das palavras cruzadas porque Lusie e seu pai as faziam juntos, do chiclete pelos pacotes que havia no cesto de papéis, e o batom era evidente, a carteira era uma hipótese.
— Como está? — Lusie esperou, seus olhos cinza claros enfocados — Você retornou um pouco cedo.
— Deixou-me plantada.
A forma que a mão de Lusie aterrissou sobre o ombro de Ehlena era o que fazia da fêmea uma grande enfermeira: com um toque te transmitia consolo, calidez e empatia, tudo o que ajudava a reduzir a pressão sangüínea, o ritmo cardíaco e a agitação.
Tudo o que ajudava a restabelecer uma mente emaranhada.
— Sinto-o. — disse Lusie.
— Oh, não, é melhor assim. Quero dizer, esperava muito.
— De verdade? Pareceu-me bastante sensata quando me falou disso. Somente iam tomar um café...
Por alguma razão disse a verdade:
— Não. Estava procurando uma saída. A que nunca chegará, porque nunca o deixaria. — Ehlena sacudiu a cabeça — De todos os modos, muito obrigado por vir...
— Não tem que ser uma situação disto ou aquilo. Seu pai e você...
— Realmente aprecio que tenha vindo cedo esta noite. Foi muito amável de sua parte.
Lusie sorriu da mesma forma que Catya tinha feito mais cedo, essa mesma noite, tensa e tristemente.
— De acordo, deixarei estar, mas tenho razão nisto. Pode ter uma relação e seguir sendo uma boa filha para seu pai. — Lusie olhou para a porta — Escute, terá que vigiar essa ferida da perna. A que se fez com a unha. Pus uma vendagem nova, mas estou preocupada com ela. Acredito que está infectando.
— Farei, e obrigada.
Depois que Lusie se desmaterializou, Ehlena entrou na cozinha, fechou a porta, passou a chave, e se dirigiu ao porão.
Seu pai estava em seu quarto, dormindo na enorme cama vitoriana, a enorme cabeceira esculpida parecia o arco lavrado de uma tumba. Sua cabeça descansava contra uma pilha de travesseiros brancos de seda, e o edredom de veludo vermelho sangue estava dobrado precisamente a meio caminho de seu peito.
Parecia um rei em repouso.
Quando a enfermidade mental se apropriou dele, seu cabelo e barba se tornaram brancos, fazendo que Ehlena se preocupasse que estivessem começando a aparecer nele as mudanças do final da vida. Mas depois de cinqüenta anos, ainda parecia o mesmo, seu rosto não apresentava rugas e suas mãos seguiam sendo fortes e firmes.
Era tão difícil. Não podia imaginar a vida sem ele. E não podia imaginar-se tendo uma vida com ele.
Ehlena fechou parcialmente a porta e foi para seu próprio quarto, onde tomou banho, trocou-se e se esticou sobre a cama. Tudo o que tinha era uma cama de um lugar sem cabeceira, um travesseiro e lençóis de algodão, mas o luxo não lhe importava. Só necessitava um lugar onde esticar seus ossos cansados cada dia e isso era tudo.
Normalmente lia um pouco antes de dormir, mas hoje não. Realmente não tinha energias. Estendendo a mão para um lado, apagou o abajur, cruzou os pés à altura dos tornozelos e estendeu os braços retos.
Com um sorriso, compreendeu que ela e seu pai dormiam exatamente na mesma posição, verdade?
Na escuridão, pensou em Lusie e a forma em que tinha insistido no corte de seu pai. Ser uma boa enfermeira era preocupar-se com o bem-estar dos pacientes, inclusive depois de deixá-los. Tratava-se de treinar aos familiares em como continuar com os cuidados necessários, e ser um apoio.
Não era o tipo de trabalho que simplesmente se ia porque tinha terminado seu turno.
Religou o abajur com um clique.
Levantando-se, foi ao computador que tinha conseguido grátis na clínica quando os sistemas de TI13 tinham sido melhorados. A conexão de internet era lenta, como sempre, mas finalmente pôde acessar a base de dados dos registros médicos da clínica.
Colocou sua contra-senha, efetuou uma busca, logo outra. A primeira foi por compulsão, a segunda por curiosidade.
Gravou ambas, desligou o portátil e pegou seu telefone.
Capítulo 11
Quando estava amanhecendo, justo antes que a luz começasse a se reunir no céu do leste, Wrath tomou forma nos densos bosques da parte norte da montanha da Irmandade. Não aparecera ninguém pelo Hunterbred, e a iminente luz do dia o tinha forçado a abandonar o lugar.
A grama rangia ruidosamente sob seus shitkickers, as finas agulhas dos pinheiros estavam quebradiças pelo frio. Ainda não havia neve para atenuar os sons, mas podia cheirá-la no ar, podia sentir essa gelada dentada na profundidade de seus seios nasais.
A entrada secreta do Sancto Santorum da Irmandade da Adaga Negra estava no extremo mais afastado de uma caverna, bem no fundo. Suas mãos localizaram por meio do tato o abridor na porta de pedra, e o pesado portal se deslizou detrás da parede de rocha. Entrando em um piso revestido de suave mármore negro, avançou por ele enquanto a porta se fechava as suas costas.
A sua vontade, as tochas se acenderam de cada lado, estendendo-se a uma longa distância e iluminando as enormes portas de ferro instaladas nos fins do século dezoito quando a Irmandade converteu essa caverna na Tumba.
Ao se aproximar, as grossas barras da porta adquiriram a aparência de uma fila de sentinelas armados ante sua visão imprecisa, as chamas trementes animavam algo que na realidade não tinha movimento. Com sua mente, abriu as duas metades e continuou seu caminho, entrando em um comprido passadiço cheio de prateleiras que iam do chão ao teto, a uns doze metros de altura.
Jarras de lessers de todo tipo e espécie estavam empilhadas uma junto à outra, em um desdobramento que marcava gerações de matanças feitas pela Irmandade. As jarras mais antigas eram somente toscos copos feitos à mão que tinham sido trazidos do Antigo País. A cada metro que avançava as jarras se tornavam mais modernas, até se chegar ao próximo jogo de portas e encontrar as porcarias chinesas produzidas em série vendidas na Target.
Não ficava muito espaço livre nas prateleiras e isso o deprimiu. Com suas próprias mãos ajudou a construir este monumento à morte de seus inimigos, junto com o Darius, Tohrment e Vishous, todos eles trabalharam em excesso durante um mês seguido, trabalhando durante o dia e dormindo sobre o chão de mármore. Tinha sido ele, que decidiu quanto aprofundar na terra, e estendeu o corredor das prateleiras vários metros a mais do que considerava necessário. Quando ele e seus irmãos terminaram de instalar tudo e logo depois de empilhar as jarras mais antigas, se convenceram de que não necessitariam tanto espaço para armazenamento. Tiveram a segurança de que no momento em que enchessem as três quartas partes disso, a guerra teria terminado.
E aí estava, séculos mais tarde, tratando de encontrar espaço suficiente.
Com uma pavorosa sensação de presságio, Wrath estimou com sua reduzida vista os últimos espaços que ficavam nas prateleiras originais. Era difícil não vê-lo como uma evidência de que a guerra estava chegando a seu fim, que o equivalente vampiro do finito calendário Maia estava nessas paredes de rocha grosseiramente esculpidas.
Não era com o brilho da obtenção da vitória que previa o depósito da última jarra junto às demais.
Uma das duas ou ficariam sem raça a qual proteger ou ficariam sem Irmãos para protegê-los.
Wrath tirou as três jarras de sua jaqueta e as pôs juntas formando um pequeno grupo, logo deu um passo atrás.
Tinha sido responsável por muitas dessas jarras... Antes de converter-se em Rei.
— Já sabia que tinha saído para lutar.
Ante o som da voz autoritária da Virgem Escriba, Wrath girou a cabeça bruscamente. Sua Santidade estava flutuando junto às portas de ferro, sua túnica negra estava a trinta centímetros acima do chão de pedra e sua luz resplandecia por debaixo da prega.
Houve um tempo em que seu resplendor foi cegamente brilhante. Agora apenas lançava sombra.
Wrath voltou a girar-se para as jarras.
— Assim, V se referia a isso quando disse que ia apertar o gatilho.
— Sim, meu filho foi até mim.
— Mas já estava inteirada. E, a propósito, isso não foi uma pergunta.
— Sim. — ela odiava perguntas.
Wrath levantou a vista e observou V atravessar as portas.
— Bom, olhem esta merda. — manifestou Wrath — A reconciliação entre mãe e filho… Ocorrerá em tão somente um instante. — deixou que a poesia lírica parafraseada ficasse flutuando no ar — Ou não.
A Virgem Escriba se adiantou, movendo-se lentamente entre as jarras. Na antiguidade — ou, demônios, tão somente no ano anterior — teria assumido o controle da conversa. Agora apenas flutuava.
Vishous fez um som de desgosto, como se tivesse esperado muito para que sua Queridíssima Mamãe[37] começasse a dar o sermão de “nem-mais-uma-palavra” para seu rei, e não se sentiu impressionado ao ver que não lhe fazia frente.
— Wrath, não me deixou terminar.
— E acredita que agora o farei? — esticou a mão para cima e com os dedos tocou a beira de uma das três jarras que acrescentou à coleção.
— Deixará que termine. — disse a Virgem Escriba em um tom desinteressado.
Vishous avançou a pernadas, seus shitkickers pisavam firmemente o chão que ele mesmo tinha ajudado a colocar.
— A questão é que se vai sair, vá com reforços. E diga à Beth. De outra forma se converte em um mentiroso… E tem uma melhor oportunidade de deixá-la viúva. Maldito seja, ignore minha visão, se quiser. Mas ao menos seja prático.
Wrath caminhou para cima e para baixo, pensando que o cenário para este cerco era fodidamente perfeito: estava rodeado por testemunhos da guerra.
Finalmente se deteve frente às três jarras que tinha obtido essa noite.
— Beth pensa que fui ao norte do Estado me encontrar com Phury. Sabem, para trabalhar com as Escolhidas. Mentir enche o saco! Mas e o conhecimento de que tenhamos só quatro Irmãos no campo de batalha? É pior.
Houve um longo silêncio, durante o qual o único som que se escutava era o vibrante chispar das chamas das tochas.
Vishous rompeu o silêncio.
— Acredito que deveria ter uma reunião com a Irmandade, e dizer a verdade para Beth. Como falei se for lutar, lute. Mas faça abertamente, entende? Dessa forma não estará saindo sozinho. E, tampouco o fará algum de nós. Neste momento, quando ocorre o rodízio para descanso, alguém sempre termina lutando sem companheiro. Se você o fizesse legitimamente resolveria esse problema.
Wrath teve que sorrir.
— Cristo, se tivesse pensado que estaria de acordo comigo, teria falado antes. — olhou à Virgem Escriba — Mas, e o que me diz das leis. Da tradição.
A mãe da raça se voltou para enfrentá-lo e com voz distante disse:
— Tantas coisas mudaram. Que diferença faz uma mais. Fiquem bem, Wrath filho de Wrath e Vishous meu filho.
A Virgem Escriba desapareceu como uma brisa na noite fria, dissipando-se no éter como se nunca tivesse estado ali.
Wrath se reclinou contra as prateleiras, e, quando a cabeça começou a lhe pulsar, subiu os óculos e esfregou seus olhos inúteis. Quando se deteve, fechou as pálpebras e ficou tão quieto como a rocha que o rodeava.
— Parece moído. — murmurou V.
Sim, estava, verdade? E que triste isso era.
O tráfico de drogas era um negócio muito lucrativo.
Em seu escritório privado do ZeroSum, Rehvenge estava em frente a sua mesa no escritório revisando as faturas dessa noite, comprovando meticulosamente as quantidades, até o último centavo. iAm estava fazendo o mesmo no restaurante de Sal, e o primeiro dever de cada noite era encontrar-se ali para comparar resultados.
Na maioria das vezes chegavam ao mesmo total. Quando não era assim, ele os remetia ao iAm.
Entre o álcool, as drogas, e o sexo as importâncias em bruto das faturas superava os duzentos e noventa mil só para o ZeroSum. No clube trabalhavam vinte e duas pessoas com salário fixo, isso incluía dez seguranças, três barmans, seis prostitutas, Trez, iAm e Xhex, o custo por todos eles girava em torno dos setenta e cinco mil dos grandes por noite. Os recolhedores de apostas e os traficantes autorizados a trabalhar no local, ou seja, aqueles vendedores de drogas que ele autorizava a vender sob suas premissas, eram comissionados, e o que restava após cobrarem sua parte, era dele. Também, uma vez por semana, ele ou Xhex e os seguranças realizavam entendimentos por quantidades mais importantes com um seleto número de distribuidores que tinham suas próprias redes de tráfico de drogas fora de Caldwell ou em Manhattan.
Calculando tudo, e depois de subtrair os custos do pessoal, ficavam aproximadamente duzentos mil por noite para pagar as drogas e o álcool vendidos, cobrir a calefação e a eletricidade, para a melhoria de bens de uso e o pagamento da equipe de limpeza de sete pessoas que entrava às cinco da manhã.
Cada ano tirava perto de cinqüenta milhões de seus negócios… O que parecia obsceno, e era, especialmente considerando que pagava impostos somente por uma fração disso. A questão era que as drogas e o sexo eram negócios arriscados, mas os lucros potenciais eram enormes. E necessitava dinheiro. Muito. Manter sua mãe no estilo de vida a que estava acostumada, e que bem merecia, era um assunto multimilionário. Além disso, ele tinha suas próprias casas e a cada ano trocava o Bentley assim que os novos modelos estavam disponíveis.
Entretanto, o gasto pessoal mais custoso de todos, disparado, eram as pequenas bolsas negras de veludo.
Rehv estendeu a mão sobre suas folhas de cálculo e recolheu a que enviaram do distrito de diamantes da Grande Maçã. Agora as entregas chegavam às segundas-feiras… antes costumava ser às últimas sextas-feiras do mês, mas agora ao abrir o Iron Mask, o dia livre do ZeroSum tinha mudado para domingo.
Desatou o cordão de cetim e abriu o pescoço da bolsa, vertendo um punhado de brilhantes rubis. Um quarto de milhão de dólares em pedras cor vermelho sangue. Voltou a colocá-las na bolsa, atou o cordão com um nó apertado, e olhou seu relógio. Faltavam dezesseis horas para que tivesse que empreender sua viagem para o norte.
A primeira terça-feira do mês era quando pagava seu resgate, e pagava à princesa de duas maneiras. Uma era com pedras preciosas. A outra com seu corpo.
Entretanto fazia que custasse a ela também.
Pensar aonde iria e o que se veria obrigado a fazer lhe provocou cócegas na nuca, e não o surpreendeu que sua vista começasse a mudar, e que o rosa escuro e o vermelho sangue substituíssem o negro e o branco de seu escritório, e que seu campo visual se nivelasse como por obra de uma escavadora convertendo-se em um nível plano.
Abrindo uma gaveta, tirou uma de suas bonitas caixas novas de dopamina e agarrou a seringa que tinha usado as últimas duas vezes que se injetou em seu escritório. Arregaçando o braço esquerdo, fez um torniquete no meio do bíceps mais por hábito que por verdadeira necessidade. Suas veias estavam tão inchadas que parecia que várias toupeiras haviam feito suas tocas debaixo de sua pele, e sentiu uma pontada de satisfação ante o horrível estado em que estavam.
A agulha não tinha tampa que tirar, assim encheu o êmbolo da seringa com a prática de um usuário habitual. Levou-lhe um momento encontrar uma veia que fosse viável, e colocou a diminuta agulha de aço em seu corpo sem sentir nada de nada. Soube que finalmente tinha dado no lugar adequado quando puxou o êmbolo e viu que o sangue se mesclava com a solução clara da droga.
Enquanto liberava o torniquete e pressionava com o dedo polegar para fazer entrar o líquido, olhou fixamente a ulceração de seu braço e pensou em Ehlena. Ainda quando não confiava nele e não desejava sentir-se atraída por ele e embora evidentemente seria capaz de mover céu e terra para não sair com ele, seguia querendo ser uma salvadora. Seguia querendo o melhor para ele e sua saúde.
Isso era o que significava ser uma fêmea de valor.
Já tinha injetado a metade quando seu celular tocou. Um rápido olhar à tela indicou que o número não era conhecido, por isso deixou que a chamada se perdesse. As únicas pessoas que tinham seu número eram aquelas com as quais queria falar, e essa era uma lista endemoniadamente curta: sua irmã, sua mãe, Xhex, Trez e iAm. E o Irmão Zsadist, o hellren de sua irmã.
Isso era tudo.
Enquanto tirava a agulha de seu ralo vascular, amaldiçoou ante o assobio que indicava que tinham deixado um correio de voz. De tanto em tanto recebia um desses, gente deixando partes e retalhos de suas vidas em seu pequeno rincão de espaço tecnológico, pensando que era o de outra pessoa. Ele nunca devolvia a chamada, jamais mandava uma mensagem de texto com um: Este não é quem pensa que é. Já se dariam conta quando quem quer que pensassem estar chamando não devolvesse o favor.
Fechando os olhos se recostou contra o respaldo da cadeira e atirou a seringa sobre as folhas de cálculo, não podia importar menos se a droga funcionava.
Sentado a sós em sua guarida de iniqüidade, na hora silenciosa em que todos se foram e o pessoal da limpeza não tinha entrado ainda, não lhe importava uma merda se os planos de sua visão retornavam a um modo tridimensional. Não lhe importava se reaparecia o espectro a toda cor. Não se perguntava a cada segundo que passava se retornaria à “normalidade” ou não.
Deu-se conta que isto tinha mudado. Até agora sempre se desesperou esperando que a droga funcionasse.
O que tinha feito a situação mudar?
Deixou a pergunta no ar enquanto recolhia o celular e agarrava a bengala. Com um gemido, ficou cuidadosamente de pé e caminhou para seu dormitório privado. O intumescimento estava retornando rapidamente a seus pés e pernas, mais rapidamente de quando conduzia vindo de Connecticut, mas bom, isso era típico. Quanto menos impulsos symphath se desencadeassem, melhor funcionava a droga. E caramba! Tornava-se gracioso, mas ser selecionado para matar o rei o tinha exasperado.
Enquanto que estar sentado a sós no que podia chamar lar, não o fazia.
O sistema de segurança já estava ativo em seu escritório, e ativou outro para suas habitações privadas, logo se fechou no dormitório sem janelas no qual pernoitava de quando em quando. O banheiro estava do outro lado do quarto e atirou seu casaco de zibelina sobre a cama antes de entrar e abrir a ducha. Enquanto se movia pelo lugar, um frio que impregnava até os ossos se apoderou de seu corpo, fluindo de dentro para fora, como se tivesse se injetado Freon.
Isto sim ele temia. Odiava ter frio todo o tempo. Merda, talvez devesse ter se deixado ir. De toda forma não ia interatuar com ninguém.
Sim, mas se saltava muitas doses, voltar a nivelar-se era uma merda.
O vapor ondeou atrás da porta de vidro da ducha, se despiu deixando seu traje, a gravata e a camisa sobre o balcão de mármore que havia entre as duas pias. Ficando sob a ducha, tremeu violentamente e os dentes tilintaram.
Por um momento, derrubou-se contra as suaves paredes de mármore, mantendo a si mesmo no centro das quatro rosetas da ducha. Enquanto a água quente, que não podia sentir, caía em forma de cascata descendo por seu peito e seu abdômen, tratou de não pensar no que viria na noite seguinte, e falhou.
Oh, Deus… Seria capaz de voltar a fazê-lo? Ir ali acima e prostituir a si mesmo com essa cadela?
Sim, e a alternativa era… Que o denunciasse ante o conselho por ser um symphath e que deportassem seu rabo à colônia.
A escolha era clara.
À merda com isso, não havia escolha. Bella não sabia o que era, e descobrir a mentira familiar a mataria. E ela não seria a única vítima. Sua mãe se desmoronaria. Xhex ficaria furiosa e se mataria tratando de salvá-lo. Trez e iAm fariam o mesmo.
Todo o castelo de cartas cairia.
Compulsivamente, agarrou uma brilhante barra de sabão dourado do suporte de cerâmica que estava montado na parede e o esfregou entre suas mãos até fazer espuma. A merda que usava não era do tipo elegante e fino. Era o comum Dial, um desinfetante que sobre a pele parecia como um nivelador de pavimento.
Suas putas usavam o mesmo. Era com o que abastecia suas duchas, a pedido delas.
Sua regra era três vezes. Três vezes para cima e para baixo por seus braços e suas pernas, seus peitorais e seu abdômen, seu pescoço e seus ombros. Três vezes o afundava entre suas coxas, ensaboando o membro e os testículos. O ritual era estúpido, mas era algo compulsivo. Poderia ter usado três dúzias de barras de Dial e ainda assim seguir sentindo-se sujo.
Era gracioso, suas putas sempre se surpreendiam pelo trato que recebiam. Cada vez que chegava uma nova, esperava ter que excitá-lo como parte de seu trabalho, e sempre estavam preparadas para serem agredidas. Em vez disso, obtinham seu vestiário privado com ducha, um horário seguro, e a segurança de que nunca, jamais seriam agredidas, e essa coisa chamada respeito… Que significava que podiam escolher os seus clientes, e, se os filhos da puta que pagavam pelo privilégio de estar com elas lhe tocavam embora fosse somente um de seus cabelos, tudo o que tinham de fazer era dizer e uma montanha de merda caía sobre o ofensor.
Mais de uma vez, aparecia alguma das mulheres na porta de seu escritório e pedia para falar com ele em particular. Geralmente isso acontecia aproximadamente um mês depois que começasse a exercer, e o que diziam era sempre o mesmo e sempre era expresso com uma espécie de confusão, que se ele fosse normal, teria lhe quebrado o coração:
— Obrigado.
Não era muito viciado nos abraços, mas era sabido que as atraía a seus braços e as abraçava durante um instante. Nenhuma delas compreendia que não era devido a ele ser um bom homem, mas sim porque era igual a elas. A dura realidade era que a vida tinha posto a todos onde não desejavam estar, quer dizer sobre suas costas frente a pessoas com as quais não queriam estar fodendo. Sim, havia algumas que não lhes importava o trabalho, mas como todo mundo, não queriam trabalhar todo o tempo. E Deus sabia que os clientes sempre apareciam.
Assim como sua chantagista.
Sair da ducha era um absoluto e puro inferno, e adiou o profundo congelamento o máximo que pôde, encolhendo-se sob a ducha enquanto discutia consigo mesmo sobre a saída. Enquanto o debate continuava, ouvia a água tilintar contra o mármore e tagarelar no deságüe de bronze, mas seu corpo totalmente intumescido não sentia nada salvo um leve alívio de seu Alaska interior. Quando acabou a água quente, soube somente devido a seus tremores piorarem e as unhas de suas mãos passaram de uma cor cinza pálida a um azul profundo.
De caminho à cama, secou-se com uma toalha e logo se lançou sob o edredom de visom o mais rápido que pôde.
Justo quando estava puxando as mantas para subir até sua garganta, seu celular emitiu um assobio. Outra mensagem de voz.
Fodida Central Geral com seu celular.
Ao verificar suas chamadas perdidas, descobriu que a última era de sua mãe, e se endireitou rapidamente, embora mudar para a posição vertical significasse que seu peito ficasse descoberto. Como a dama que era não ligava nunca, porque não queria “interromper seu trabalho”.
Pressionou alguns botões, pôs sua contra-senha, e se preparou para apagar a mensagem de número equivocado que sairia primeiro.
“Mensagem do 518—blah—blah—blah…” Pressionou a tecla de numeral para mandá-la a merda e se preparou para golpear o sete e desfazer-se da coisa.
Seu dedo estava encaminhando-se para baixo quando a voz de uma fêmea disse:
— Olá, eu…
Essa voz… Essa voz era… Ehlena?
— Porra!
De toda forma, o correio de voz era inexorável, sem importar-se uma merda que uma mensagem dela fosse o último que ele escolheria apagar. Enquanto amaldiçoava, o sistema continuou agitando-se até que escutou a suave voz de sua mãe falando na Antiga Língua.
— Saudações, queridíssimo filho, espero que esteja bem. Por favor, desculpe a intromissão, mas me perguntava se poderia passar pela casa nos próximos dias? Há um assunto sobre o qual devo falar contigo. Amo-te. Adeus, meu primogênito de sangue.
Rehv franziu o cenho. Tão formal, o equivalente verbal a uma atenta nota escrita por sua formosa mão, mas a solicitude era atípica nela, e isso dava o caráter de urgente. Mas estava fodido… Má escolha de palavras. Amanhã de noite era impossível devido a seu “encontro”, assim teria que ser a noite seguinte, assumindo que se encontrasse o suficientemente bem.
Ligou a casa, e quando uma das doggen atendeu disse à criada que estaria ali na quarta-feira de noite assim que o sol se pusesse.
— Senhor, se me permite. — disse a criada — Verdadeiramente me alegra que venha.
— O que está acontecendo? — quando houve uma longa pausa, sua frieza interior, piorou — Diga!
— Ela está… — a voz do outro lado se agitou — Está tão encantadora como de costume, mas nos alegra que venha. Se me desculpar, irei transmitir sua mensagem.
A linha ficou muda. No fundo de sua mente, tinha percebido o que ocorria, mas sistematicamente ignorou tal convicção. Verdadeiramente não podia pensar nisso. Definitivamente não podia.
Além disso, era provável que não fosse nada. Depois, toda paranóia era um efeito secundário quando se consumia muita dopamina, e Deus sabia que estava tomando mais que sua cota. Iria ao refúgio assim que pudesse, e ela estaria bem… Espere! O solstício de verão. Devia tratar-se disso. Sem dúvida desejava planejar as festividades que incluía Bella e Z e à menina, já que seria o primeiro ritual de solstício de Nalla, e sua mãe levava esse tipo de coisas muito a sério. Podia viver neste lado, mas as tradições das Escolhidas sob as quais tinha sido criada ainda formavam parte dela.
Era certo que se tratava disso.
Aliviado, pôs o número de Ehlena em sua caderneta de memória e ligou para ela.
Em tudo o que podia pensar enquanto o telefone chamava, além de em, “responde, responde, responde”, era em que confiava que estivesse bem. O que era uma loucura. Como se fosse chamar a ele se tivesse algum problema?
Então por que haveria…
— Olá?
O som de sua voz no ouvido obteve algo que a ducha quente, o visom e a temperatura ambiente de oitenta graus não tinham obtido. O calor se estendeu desde seu peito, fazendo retroceder o intumescimento e o frio, cobrindo-o com… Vida.
Apagou as luzes para poder concentrar-se nela com tudo o que tinha.
— Rehvenge? — disse ela depois de um momento.
Reclinou-se contra os travesseiros e sorriu na escuridão.
— Olá.
Capítulo 12
— Sua camisa está ensangüentada… E… Oh, Deus… A perna de sua calça. Wrath, o que aconteceu?
De pé em seu escritório na mansão da Irmandade, enfrentando a sua amada shellan, Wrath puxou as duas metades de sua jaqueta de motoqueiro para fechá-las mais sobre seu peito, e pensou que era bom que ao menos lavou o sangue de lesser das mãos.
A voz de Beth ficou mais baixa.
— Quanto do que estou vendo é teu?
A seus olhos estava tão formosa como sempre, era a única fêmea a quem desejava, a única companheira possível para ele. Com jeans e seu suéter negro de pescoço alto, e o cabelo escuro caindo sobre seus ombros, era a coisa mais atrativa que tinha visto. Seguia sendo.
— Wrath!
— Não todo. — o corte de seu ombro sem dúvida tinha gotejado sobre sua camiseta sem mangas, mas também tinha segurado o macho civil contra seu peito, por isso o sangue do macho sem dúvida se mesclou com o seu próprio.
Incapaz de permanecer quieto caminhou pelo escritório, indo da mesa à janela ida e volta. O tapete que seus shitkickers cruzavam era azul, cinza e creme, um Aubusson cujas cores faziam par com o azul pálido das paredes e cujas espirais curvilíneas se inspiravam nos delicados móveis Louis XIV, os acessórios e os redemoinhos das molduras.
Realmente, nunca tinha apreciado a decoração. E tampouco o fez agora.
— Wrath… Como chegou aí? — o tom duro de Beth lhe indicou que já sabia a resposta, mas que ainda conservava a esperança de que houvesse outra explicação.
Juntando forças, voltou-se para enfrentar o amor de sua vida através da extensão carregada do escritório.
— Estou lutando outra vez.
— Está o que?
— Estou lutando.
Quando Beth ficou em silêncio. Alegrou-se de que a porta do escritório estivesse fechada. Viu os cálculos mentais que estava fazendo e sabia que o resultado do que estava somando ia adicionar-se a uma e só uma coisa: estava pensando em todas essas “noites no norte” com Phury e as Escolhidas. Todas as vezes que foi para a cama com camisetas de manga longa, úteis para ocultar hematomas, porque “estava resfriado”. Todas essas desculpas de “estou coxeando porque me exercitei muito”.
— Está lutando! — afundou as mãos nos bolsos de seu jeans, e, embora não pudesse ver muito, sabia endemoniadamente bem que o suéter negro de pescoço alto era o perfeito complemento para seu olhar — Somente para que fique claro. Está me dizendo que, vai começar a lutar. Ou que esteve lutando.
Isso era uma pergunta retórica, mas evidentemente queria que ele reconhecesse a mentira completa.
— Estive. Durante o último par de meses.
A fúria e a dor fluíram dela, derramando-se sobre ele, cheirando a madeira chamuscada e a plástico queimado.
— Olhe Beth, tinha que…
— Tinha que ser honesto comigo! — disse asperamente — Isso é o que tinha que fazer.
— Não esperava ter que sair por mais de um mês ou dois…
— Um mês ou dois! Quantos demônios fazem… — clareou a garganta e baixou a voz — Quanto faz que o está fazendo?
Quando disse, voltou a ficar calada. Logo disse:
— Desde agosto? Agosto.
Desejava que desse rédea solta a seu temperamento. Que lhe gritasse. Que lhe insultasse.
— Sinto muito. Eu… Merda, realmente sinto.
Ela não disse nada mais, e o aroma de suas emoções se afastou à deriva, dispersado pelo ar quente que soprava pelos ralos da calefação que havia no chão. No corredor, um doggen estava passando o aspirador, o som do acessório para tapetes zumbia acima e abaixo, acima e abaixo. No silêncio que reinava entre eles, esses sons habituais, cotidianos eram algo ao que apegar-se… Pois era o tipo de coisa que ouvia todo o tempo e raramente notava porque estava ocupado lutando com a papelada, ou distraído pelo fato de que tinha fome, ou tratando de decidir se preferia relaxar vendo a TV ou no ginásio… Era um som seguro.
E, neste momento, devastador para sua união, apegava-se à canção de berço de Dyson com todas as suas forças, perguntando-se se alguma vez teria a sorte de poder ignorá-la outra vez.
— Nunca me passou pela cabeça… — clareou a garganta uma vez mais — Nunca me passou pela cabeça que haveria algo do qual não pudesse falar comigo. Sempre assumi que me dizia… Tudo o que podia.
Quando deixou de falar, ele estava gelado até os ossos. Sua voz tinha adquirido o tom que usava quando respondia chamadas equivocadas no telefone: dirigia-se a ele como se fosse um estranho, sem nenhuma calidez nem interesse particular.
— Olhe Beth, devo estar lá fora. Devo…
Ela sacudiu a cabeça e levantou a mão para detê-lo.
— Não se trata de que esteja lutando.
Beth o olhou fixamente durante um segundo. Logo se voltou e se dirigiu para as portas duplas.
— Beth. — esse grasnido estrangulado era sua voz?
— Não, me deixe. Preciso de um pouco de espaço.
— Beth, escute, não temos guerreiros suficientes no campo de batalha…
— Não é pela luta! — girou e o enfrentou — Mentiu para mim! Mentiu. E não só uma vez, mas sim durante quatro meses.
Wrath queria discutir, defender-se, assinalar que tinha perdido a noção do tempo, que essas cento e vinte noites e dias tinham passado à velocidade da luz, que tudo o que esteve fazendo era pôr um pé na frente do outro, frente ao primeiro, andando minuto a minuto, hora a hora, tratando de manter a raça sem submergir, tratando de conter os lessers. Não teve intenção de continuar fazendo-o durante tanto tempo. Não tinha planejado enganá-la durante todo esse tempo.
— Só me responda uma coisa. — disse — Uma única coisa. É melhor que me diga a verdade, ou que Deus me ajude, mas vou… — levou a mão à boca, apanhando um débil soluço com mão débil — Honestamente, Wrath… Sinceramente pensou que fosse te deter? No fundo de seu coração, verdadeiramente acreditou que fosse fazê-lo..?
Ele tragou com força enquanto ela pronunciava as palavras com voz estrangulada.
Wrath respirou fundo. No transcurso de sua vida, tinha sido ferido muitas, muitas vezes. Mas nada, nenhuma ferida que pudessem ter lhe infligido alguma vez a sua pessoa, tinha-lhe doído uma fração da dor que sentiu ao lhe responder.
— Não. — voltou a respirar fundo — Não, não acredito… Que fosse me deter.
— Quem falou com você esta noite? Quem foi que te convenceu para que me dissesse isso?
— Vishous.
— Deviria ter sabido. Ele é provavelmente a única pessoa, tirando o Tohr que poderia tê-lo… — Beth cruzou os braços, abraçando a si mesma, e ele teria dado a mão com que empunhava a adaga para ter sido ele, que a estivesse abraçando — Que esteja aí fora lutando me assusta como a merda, mas esquece algo… Emparelhei-me contigo sem saber que não se esperava que o rei estivesse no campo de batalha. Estava preparada para te apoiar ainda quando me aterrorizasse… Porque lutar nesta guerra está em sua natureza e em seu sangue. Idiota… — sua voz se quebrou — Tolo, teria te deixado fazê-lo. Mas em troca…
— Beth…
Interrompeu-o.
— Lembra-se da noite em que saiu no princípio do verão? Quando interveio para salvar o Z e logo permaneceu no centro da cidade lutando com os outros?
Seguro como o demônio que a recordava. Quando tinha retornado para casa, a tinha perseguido pelas escadas e fizeram sexo sobre o tapete da salinha do segundo andar. Várias vezes. Conservava como lembrança os shorts jeans que arrancou de seus quadris.
Jesus… Agora que pensava… Essa tinha sido a última vez que estiveram juntos.
— Disse-me que era somente por uma noite. — disse — Uma noite. Somente. Jurou, e confiei em você.
— Merda… O sinto.
— Quatro meses. — sacudiu a cabeça, e seu magnífico cabelo negro balançou sobre seus ombros, capturando a luz de uma maneira tão formosa que até seus inúteis olhos registraram seu esplendor — Sabe o que mais me dói? Que os Irmãos sabiam e eu não. Sempre aceitei esse assunto da sociedade secreta, entendi que há coisas que não posso saber…
— Eles tampouco sabiam. — bom Butch sabia, mas não havia razão para jogá-lo sob o ônibus — V se inteirou esta noite.
Ela cambaleou, e se encostou contra uma das paredes cor azul pálida.
— Esteve saindo sozinho?
— Sim. — estendeu a mão para lhe tocar o braço, mas ela o afastou — Beth…
Abriu a porta de um puxão.
— Não me toque…
A coisa se fechou de um golpe atrás dela.
A raiva contra si mesmo fez com que Wrath girasse sobre si e ficasse frente a seu escritório, e no instante em que viu todos os documentos, todas as solicitações, todas as queixas, todos os problemas, foi como se alguém tivesse conectado dois cabos cortados à suas omoplatas e lhe tivesse dado uma descarga. Lançou-se para frente, varreu com seus braços a superfície do escritório e fez voar a merda por toda parte.
Enquanto os papéis revoavam, caindo como neve, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos, a dor de cabeça lhe estava atravessando o lóbulo frontal. Ficou sem fôlego, cambaleou, encontrou sua cadeira pelo tato e se derrubou sobre a maldita coisa. Com um áspero grunhido, deixou que sua cabeça caísse para trás. Ultimamente estas enxaquecas por estresse se estavam convertendo em um sucesso diário, aniquilando-o e prolongando-se como uma gripe que se recusava a ser erradicada.
Beth. Sua Beth…
Quando ouviu um golpe na porta, deu um bom treinamento a sua boca com a palavra F.
O golpe voltou a soar.
— O que? — ladrou.
A cabeça de Rhage apareceu uma fresta, logo ficou imóvel.
— Ah…
— O que?
— Sim, bom… Ah, dados enviados… E, uau, o forte vento que evidentemente acaba de soprar sobre seu escritório… Segue querendo manter uma reunião conosco?
Oh, Deus… Como faria para manter outra dessas conversas.
Mas bom, talvez devesse ter pensado nisso antes de decidir mentir a seus seres mais próximos e queridos.
— Meu Senhor? — a voz de Rhage adquiriu um tom gentil — Deseja ver a Irmandade?
Não.
— Sim.
— Quer o Phury no viva-voz do telefone?
— Sim. Escuta, não quero os meninos nesta reunião. Blay, John e Qhuinn… Não estão convidados.
— Imaginava. Hey, o que te parece se te ajudo a limpar?
Wrath olhou o tapete coberto de papéis.
— Eu me encarrego.
Hollywood provou sua inteligência ao não voltar a oferecer-se nem tampouco sair com um “então?”. Simplesmente saiu e fechou a porta.
Do outro lado, o relógio de pé que estava em um rincão, badalou. Era outro som familiar que geralmente Wrath não ouvia, mas agora enquanto permanecia sentado a sós no escritório, as badaladas soavam como se fossem emitidas através de alto-falantes de concerto.
Deixou as mãos caírem sobre os braços da frágil cadeira giratória e estes se viram diminuídos. A peça de mobiliário era mais do estilo de algo que uma fêmea usaria ao final da noite para apoiar o pé e tirar as meias.
Não era um trono. E essa era a razão pela qual a usava.
Não quis aceitar a coroa por muitos motivos, tinha chegado a ser rei por direito de nascimento, não por inclinação e em trezentos anos não tinha assumido. Mas, tão logo Beth chegou as coisas mudaram e finalmente tinha ido ver a Virgem Escriba.
Isso tinha acontecido dois anos atrás. Duas primaveras, dois verões, dois outonos e dois invernos.
Naquele tempo tinha grandes planos, no início. Geniais e maravilhosos planos para unir à Irmandade, para que todos estivessem sob o mesmo teto, consolidando forças, escorando-se contra a Sociedade Lessening. Triunfando.
Salvando.
Reclamando.
Em troca, a glymera tinha sido sacrificada. Havia mais civis mortos. E havia ainda menos Irmãos.
Não tinham progredido. Tinham perdido terreno.
A cabeça de Rhage apareceu outra vez.
— Ainda estamos aqui fora.
— Maldito seja, disse que precisa de algum…
O relógio de pé voltou a soar, e enquanto Wrath escutava a quantidade de badaladas, deu-se conta que fazia uma hora que estava sentado a sós.
Esfregou os olhos doloridos.
— Dê-me outro minuto.
— Tudo o que necessite meu Senhor. Tome seu tempo.
Capítulo 13
Quando o olá de Rehvenge saiu pelo auricular de seu celular, Ehlena se ergueu na cama abandonando o travesseiro sobre o qual esteve deitada até esse momento, tragando um “Santa merda”… Logo se perguntou por que estava tão surpresa. Ela tinha ligado para ele, e segundo o manual, a forma em que a as pessoas encaravam esse tipo de situações era… Bom, pois, te devolvendo a ligação. Uau.
— Olá. — respondeu.
— Não atendi sua ligação apenas porque não reconheci o número.
Homem, sua voz era sexy. Profunda. De baixo. Como se supunha que devesse ser a de um macho.
No silêncio que seguiu, pensou, “tinha ligado para ele por que…?” Oh, sim.
— Quis fazer o acompanhamento depois de sua consulta. Quando preparei os papéis para a alta, notei que não tinha recebido nada para seu braço.
— Ah.
A pausa que seguiu foi uma que não pôde interpretar. Talvez estivesse zangado por sua interferência?
— Só queria me assegurar que estivesse bem.
— Está acostumada a fazer isto com todos os pacientes?
— Sim. — mentiu.
— Havers sabe que está comprovando seu trabalho?
— Ao menos olhou suas veias?
A risada de Rehvenge foi baixa.
— Preferia que tivesse ligado por uma razão diferente.
— Não entendo. — disse com tom tenso.
— O que? Que alguém possa querer fazer algo com você fora do trabalho? Não é cega. Olhou-se no espelho. E certamente sabe que é inteligente, assim não se trata de um agradável adorno de vidraça.
No que a ela concernia, estava falando em um idioma estrangeiro.
— Não entendo por que não se cuida.
— Hmmmm. —riu brandamente, ela além de escutar o ronrono em seu ouvido pôde percebê-lo fisicamente — Oh… Também pode ser que esteja fingindo para poder vê-la outra vez.
— Olhe, a única razão pela que liguei foi…
— Porque precisava de uma desculpa. Rechaçou-me na sala de exame, mas na realidade queria falar comigo. Assim, me liga com a desculpa de meu braço para obter que a atenda por telefone. E agora me tem. — sua voz baixou outro tom — Deixará-me escolher o que quero que faça comigo?
Ela permaneceu em silêncio. Até que ele disse:
— Olá?
— Terminou? Ou quer seguir dando voltas ao assunto um momento mais, procurando todo tipo de significados a respeito do que estou fazendo?
Houve um instante de silêncio, e logo ele irrompeu em uma profunda e sincera gargalhada com seu vivo tom de barítono.
— Sabia que me agradava por mais de uma razão.
Ela se negou a ser cativada. Mas de todos os modos foi.
— Liguei por seu braço. Ponto. A enfermeira de meu pai acaba de ir, e estávamos falando de uma…
Fechou a boca assim que se deu conta do que tinha revelado, sentindo como se tivesse tropeçado com o equivalente coloquial da ponta de um tapete solto.
— Continue. — lhe disse com gravidade — Por favor.
— Ehlena? Ehlena…
— Está aí, Ehlena?
Mais tarde, muito mais tarde, refletiria que essas três palavras tinham sido seu precipício: Está aí, Ehlena?
Verdadeiramente foi o começo de tudo o que se seguiu, a frase inicial de uma dilaceradora jornada disfarçada na forma de uma simples pergunta.
Alegrava-lhe não saber aonde a conduziria. Porque às vezes a única coisa que podia te ajudar a sair do inferno era o fato de que estava colocada muito profundamente para poder sair.
Enquanto Rehv esperava a resposta, seu punho se apertou tanto sobre o celular, que acionou uma das teclas contra a bochecha e esta emitiu um bip de: Errr, homem, te afrouxe um pouco.
O juramento eletrônico pareceu romper o feitiço em ambos.
— Sinto-o. — murmurou ele.
— Está bem. Eu, ah…
— Dizia…?
Não esperava que respondesse, mas então… Ela o fez.
— A enfermeira de meu pai e eu estávamos falando de um corte que está lhe dando problemas, e isso foi o que me fez pensar em seu braço.
— Seu pai está doente?
— Sim.
Rehv aguardou que dissesse algo mais, enquanto tentava decidir se exercer um pouco de pressão faria com que se calasse… Mas ela resolveu a questão.
— Alguns dos medicamentos que toma provoca instabilidade, razão pela que se choca contra as coisas e nem sempre se dá conta de que se machucou. É um problema.
— Sinto muito. Cuidá-lo deve ser difícil para você.
— Sou uma enfermeira.
— E uma filha.
— Assim, era por um assunto clínico. Minha ligação.
Rehv sorriu.
— Deixe-me perguntar algo.
— Eu primeiro. Por que não deixa que avaliem o braço? E não me diga que Havers viu essas veias. Se o tivesse feito, lhe teria receitado antibióticos, e se você tivesse recusado haveria uma nota em seu histórico informando que tinha apelado à AMA. Olhe tudo o que necessita para tratá-lo são algumas pílulas, e sei que não tem fobia à medicina. Toma uma quantidade infernal de dopamina.
— Se estava preocupada com meu braço, por que não me falou na clínica?
— Eu o fiz, recorda?
— Não desta forma. — Rehv sorriu na escuridão e acariciou com a mão o edredom de visom. Não podia senti-lo, mas se imaginava que a pele era tão suave como o cabelo dela — Ainda penso que queria me ter ao telefone.
A pausa que seguiu o preocupou com a possibilidade de que desligasse.
Sentou-se, como se a posição vertical evitaria que ela pressionasse o botão de fim.
— Só estou dizendo… Bom, merda, o que quero dizer é que me alegra que tenha ligado. Sem importar a razão.
— Não falei mais deste tema na clínica porque foi antes que acrescentasse as notas de Havers no computador. Esse foi o momento em que me dei conta.
Ele ainda não acreditava que a chamada fosse completamente por motivos profissionais. Poderia ter lhe mandado um email. Poderia ter dito ao doutor. Poderia passar a uma das enfermeiras do turno do dia para que fizesse o acompanhamento.
— Assim não há nenhuma possibilidade de que se sinta mal por me haver rechaçado tão duramente como o fez.
Ela clareou a garganta.
— Sinto por isso.
— Bom, a perdôo. Totalmente. Completamente. Tinha aspecto de não estar tendo uma boa noite.
Sua exalação foi uma manifestação de extenuação.
— Sim, não foi minha melhor noite.
— Por quê?
Outra longa pausa.
— É muito melhor por telefone, sabia?
Ele se pôs a rir.
— Muito melhor em que sentido?
— É mais fácil lhe falar. Na realidade… É bastante fácil falar com você.
— Faço-o bem no mano-a-mano.
De repente franziu o cenho, pensando no recebedor de apostas que tinha ajustado as contas em seu escritório. Merda, o pobre bastardo era somente um de um enorme número de traficantes de drogas, lacaios de Las Vegas, barmans e alcoviteiros que nos últimos anos tinha persuadido a golpes. Sua filosofia sempre tinha sido que a confissão era boa para a alma, especialmente quando se tratava de caras que pensavam que não notaria que o estavam fodendo. Seu estilo de administração também lançava uma importante mensagem em um negócio onde a debilidade fazia com que lhe matassem. O comércio clandestino requeria uma mão dura, e sempre tinha acreditado que essa era a realidade em que vivia, somente.
Entretanto, agora nesse sossegado momento, tendo Ehlena tão perto, sentia como se seu “mano-a-mano” era algo que requeria uma desculpa e ser encoberto.
— Então? Por que esta noite não foi boa? — perguntou desesperado por sossegar a si mesmo
— Meu pai. E logo… Bom, deixaram-me plantada.
Rehv franziu o cenho tão fortemente que de fato sentiu um leve ponto entre os olhos.
— Para um encontro?
— Sim.
Odiava a idéia dela saindo com outro macho. E não obstante invejava ao filho da puta, quem quer que fosse.
— Que imbecil. Sinto muito, mas que imbecil.
Ehlena riu, e ele amou o som, especialmente a forma em que seu corpo se esquentou um pouquinho mais em resposta. Homem, ao demônio com as duchas quentes. Essa risada suave e tranqüila era o que necessitava.
— Está sorrindo? — disse brandamente.
— Sim. Quero dizer, suponho que sim. Como soube?
— Simplesmente tinha a esperança de que fosse assim.
— Bom, realmente pode ser amável e encantador. — rapidamente para dissimular o elogio, disse — O encontro não era grande coisa nem nada. Não o conhecia muito bem. Era somente para tomarmos um café.
— Mas terminou a noite no telefone comigo. O que é muito melhor.
Ela voltou a rir.
— Bom, agora nunca saberei como seria sair com ele.
— Não?
— Eu somente… Bom, pensei nisso, e não acredito que ter encontros neste momento seja uma boa idéia, dada minha situação. — o surgimento de seu júbilo foi descartado quando adicionou — Com ninguém.
— Hmmm.
— Hmmm? O que significa hmmm?
— Significa que tenho seu número telefônico.
— Ah, sim, tem… — sua voz se deteve quando o sentiu mover-se — Espere, você está… Na cama?
— Sim. E antes que continue, não quer saber.
— Não quero saber, o que?
— Quanto, não estou usando.
— Errr... — enquanto duvidava, soube que estava sorrindo outra vez. E provavelmente ruborizando-se — Não tinha intenção de perguntar.
— Muito inteligente de sua parte. Sou somente eu e os lençóis… Ups. Acabo de dizer isso em voz alta?
— Sim. Sim, o fez. — sua voz baixou um tom como se o estivesse imaginando nu. E a imagem mental não lhe incomodasse minimamente.
— Ehlena… — deteve a si mesmo, seus impulsos symphath contribuíram para o autocontrole. Para ir mais devagar. Sim, Rehv a desejava tão nua como ele estava. Mas, mais que isso desejava que permanecesse no telefone.
— O que? — respondeu.
— Seu pai… Esteve doente durante muito tempo?
— Ah… Sim, sim, esteve. É esquizofrênico. Não obstante, agora o temos medicado, e está melhor.
— Maldito… Seja. Isso deve ser realmente difícil. Porque ele está aí, mas ao mesmo tempo não está correto?
— Sim… Essa é exatamente a forma em que se sente.
Era parecido à forma em que ele vivia, seu lado symphath era uma constante realidade alternativa, que o perseguia enquanto tratava de viver as noites como uma pessoa normal.
— Se não se incomodar que pergunte, — disse cuidadosamente — para que precisa da dopamina? Não há nenhum diagnóstico em seu histórico médico.
— Provavelmente porque Havers sempre esteve me tratando.
Ehlena riu incômoda.
— Suponho que esse deve ser o motivo.
Merda, o que lhe dizia.
O symphath que havia nele lhe dizia “Como é, simplesmente minta”. O problema era que de alguma parte tinha aparecido outra voz em seu cérebro, rivalizando com a primeira, uma que lhe era desconhecida e muito débil, mas categoricamente compulsiva. Entretanto, como não tinha nem idéia do que era, continuou com sua rotina.
— Tenho Parkinson. Ou, mais precisamente, o equivalente vampiro.
— Oh… O sinto. Então é por isso que usa bengala.
— Meu equilíbrio é ruim.
— Não obstante a dopamina está lhe fazendo bem. Quase não tem tremores.
Essa débil voz em sua cabeça se transformou em uma estranha dor no centro de seu peito, e por um momento deixou de lado o fingimento, e disse a verdade:
— Não tenho nem idéia do que faria sem essa droga.
— Os medicamentos de meu pai foram como um milagre.
— Você é a única que o cuida? — quando ela respondeu com um hmmm, perguntou — Onde está o resto de sua família?
— Somos somente ele e eu.
— Então você está enfrentando uma tremenda carga.
— Bom, o amo. E se os papéis estivessem invertidos, ele faria o mesmo. É o que pais e filhos fazem uns pelos outros.
— Nem sempre. É evidente que você procede de uma família de gente bondosa. — antes de poder deter-se, prosseguiu — Mas é por isso que se sente sozinha, não é verdade? Sente-se culpada se o deixar, embora seja por uma hora, e se fica em casa não pode ignorar o fato de que a vida está passando. Está presa e gritando, mas não mudaria nada.
— Devo ir.
Rehv fechou os olhos com força, essa dor em seu peito, expandia-se através de todo seu corpo como um incêndio sobre pasto seco. Com sua vontade acendeu uma luz, como se a escuridão se convertesse em um símbolo de sua própria existência.
— É apenas… Que sei o que sente, Ehlena. Não pelas mesmas razões… Mas entendo todo esse assunto da separação. Sabe esse conceito de que está vendo todo o resto do mundo viver suas vidas… Oh, porra, como é. Espero que durma bem…
— Assim é como me sinto a maior parte do tempo. — agora sua voz tinha um tom aprazível, e o alegrou que tivesse entendido o que tinha tratado de lhe dizer, apesar de que ele tinha sido tão eloqüente como um gato guia de ruas.
Agora era ele quem se sentia incômodo. Não estava acostumado a falar dessa forma… Nem a sentir dessa forma.
— Escute, deixarei que descanse um pouco. Alegra-me que tenha ligado.
— Sabe… A mim também.
— E Ehlena?
— Sim?
— Acredito que tem razão. Não é uma boa idéia que se envolva com alguém neste momento.
— Sério?
— Sim. Bom dia.
Houve uma pausa.
— Bom… Dia. Espere…
— O que?
— Seu braço. O que vai fazer com seu braço?
— Não se preocupe, estará bem. Mas obrigado por seu interesse. Significa muito para mim.
Rehv desligou primeiro e deixou o telefone sobre o edredom de visom. Fechou os olhos deixando a luz acesa. E não dormiu nada.
Capítulo 14
No complexo da Irmandade, Wrath abandonou a idéia de que logo se sentiria melhor em relação à situação com Beth. Inferno! Podia passar o próximo mês em sua cadeira, dando voltas na cabeça, e isso somente lhe gelaria o rabo.
E, enquanto isso, os cantos rodados[38] no corredor estavam ficando mofados e mal-humorados.
Abriu as portas duplas com sua vontade e como uma unidade seus irmãos ficaram firmes. Ao olhar através da extensão azul pálido do estúdio seus corpos grandes e duros na galeria, reconheceu-os não por seus rostos, nem sua roupa ou sua expressão, mas sim pelo eco de cada um em seu sangue.
As cerimônias da Tumba que uniu a todos ressonavam sem importar quanto tempo tivesse ocorrido.
— Não fiquem aí parados! — disse enquanto a Irmandade o olhava fixamente — Não abri essas fodidas portas para me converter em uma exibição de zoológico.
Os irmãos entraram com suas pesadas botas… Exceto Rhage, que usava suas sapatilhas, seu costumeiro calçado para casa sem importar a estação. Cada um dos guerreiros tomou sua posição habitual na sala, com Z indo parar junto à chaminé, V e Butch sentados no sofá de pernas estreitas recentemente reforçadas. Rhage se aproximou do escritório com uma série de “flip-flip-flip” para ligar o alto-falante do telefone, deixando que seus dedos abrissem o caminho para Phury que estava no aparelho.
Ninguém disse nada a respeito dos papéis que estavam no chão. Ninguém tentou recolhê-los. Era como se ali não houvesse nenhuma confusão, e assim era como Wrath preferia.
Enquanto Wrath fechava as portas com a mente, pensou em Tohr. O irmão estava na casa, mais precisamente no corredor das estátuas, a apenas umas poucas portas, mas estava em um continente diferente. Convidá-lo não era uma opção… Seria uma crueldade, dado onde estava sua mente.
— Olá? — saiu a voz de Phury do telefone.
— Estamos todos aqui. — disse Rhage antes de desembrulhar um Tootsie Pop e dirigir-se com seu “flip-flip-flip” para uma poltrona verde feia como o rabo.
A monstruosidade era de Tohr, e tinha sido levada ao escritório para que John Matthew dormisse nela depois que Wellsie fosse assassinada e Tohrment tivesse desaparecido. Rhage tendia a utilizar a coisa porque realmente com seu peso, era a opção mais segura para seu rabo, sofás reforçados de aço incluídos.
Com todos já acomodados, a sala ficou em silencio à exceção do rangido dos molares de Hollywood sobre essa coisa de cereja que tinha na boca.
— Oh, que diabos... — Rhage gemeu finalmente ao redor de seu pirulito — Só nos diga isso! Seja o que for. Estou a ponto de me pôr a gritar. Morreu alguém?
Não, mas certo como a merda que sentia como se tivesse matado algo.
Wrath olhou em direção ao irmão, logo olhou a cada um deles.
— Serei seu companheiro, Hollywood.
— Companheiro? — Rhage passeou a vista pela sala para comprovar e ver se todos tinham ouvido o mesmo que ele — Não está falando do gim rummy, verdade?
— Não. — disse Z em voz baixa— Não acredito que esteja.
— Sagrada Merda! — Rhage tirou outro pirulito do bolso da camiseta negra — Isto é legal?
— Agora é. — murmurou V.
Phury falou ao telefone.
— Espera, espera… É para me substituir?
Wrath sacudiu a cabeça embora o Irmão não pudesse vê-lo.
— É para substituir a muitas pessoas que perdemos.
A conversa borbulhou como uma lata da Coca Cola que acabasse de ser aberta de repente. Butch, V, Z e Rhage começaram a falar todos de uma vez até que uma voz metálica interrompeu o falatório:
— Então, também quero voltar.
Todos olharam o telefone, exceto Wrath que olhou fixamente a Z para medir a reação do tipo. Zsadist não tinha problemas em demonstrar ira. Jamais! Mas escondia a preocupação e a inquietação como se fosse dinheiro solto e estivesse rodeado de assaltantes: enquanto a declaração de seu gêmeo ressoava, ficou em modo de completa auto-proteção, esticando-se e sem emitir absolutamente nada em termos de emoção.
Ah, correto, pensou Wrath. O duro bastardo estava assustado como um eunuco.
— Está certo de que é uma boa idéia? — perguntou Wrath lentamente — Possivelmente lutar não é o que necessita neste momento, Irmão.
— Não fumei em quase quatro meses. — disse Phury pelo alto-falante — E não tenho planos de voltar para as drogas.
— O estresse não fará essa merda mais fácil.
— Oh! Mas, ficar sentado sobre meu rabo enquanto o seu está fora o fará?
Maravilhoso. O rei e o Primale no campo de batalha pela primeira vez na história. E por quê? Porque a Irmandade estava nas últimas.
Grande recorde para superar. Como ganhar os fodidos cinqüenta metros nas olimpíadas para perdedores.
Cristo!
Salvo que então Wrath pensou nesse civil morto. Era esse um desenlace melhor? Não!
Recostando em sua delicada cadeira, olhou a Z com dureza.
Como se sentisse os olhos sobre ele, Zsadist se afastou do suporte da chaminé e ficou caminhando pelo escritório. Todos sabiam o que estava imaginando: Phury com uma overdose no chão do banheiro, com uma seringa de heroína vazia, atirada a seu lado, sobre o mosaico.
— Z? — a voz de Phury saiu do telefone — Z? Levante o auricular…
Quando Zsadist conversou com seu gêmeo, seu rosto, com a cicatriz trincada, adquiriu um cenho tão desagradável que até Wrath podia ver seu olhar enfurecido. E a expressão não melhorou ao dizer:
— Enche o saco! Sim. Enche o saco! Sei. Correto. — houve uma longa, longa pausa — Não, ainda estou aqui. Ok. Bem.
Pausa.
— Jura-me isso! Pela vida de minha filha.
Após um momento, Z apertou o alto-falante outra vez, pôs o auricular em seu lugar e voltou para a chaminé.
— Estou dentro. — disse Phury.
Wrath se mexeu na efeminada cadeira, desejando que muitas coisas fossem diferentes.
— Sabe possivelmente em outro momento, diria que desistisse. Agora, somente direi… Quando pode começar?
— Ao anoitecer. Deixarei Cormia responsável com as Escolhidas enquanto estou fora no campo de batalha.
— A sua fêmea vai receber isso bem?
Houve uma pausa.
— Ela sabe com quem se emparelhou. E serei honesto com ela.
Ouch!
— Agora tenho uma pergunta. — disse Z brandamente — É a respeito do sangue seco que há em sua camiseta, Wrath.
Wrath pigarreou.
— De fato, já faz um tempo que retornei. À luta.
A temperatura da habitação caiu. Devido a que Z e Rhage ficaram de saco cheio por não terem sabido.
E então, repentinamente, Hollywood amaldiçoou.
— Espere… Espere. Vocês dois sabiam… Sabiam antes de nós, verdade? Porque nenhum parece surpreso.
Butch clareou a garganta, porque o olhavam com fúria.
— Precisava de mim para fazer a limpeza. E V tentou lhe fazer mudar de opinião.
— Quanto tempo faz que começou isto, Wrath? — ladrou Rhage.
— Desde que Phury deixou de lutar.
— Está brincando!
Z foi a passos longos até uma das janelas que iam do chão ao teto, e apesar das persianas estarem abaixadas, olhou fixamente a coisa como se pudesse ver os terrenos que havia do outro lado.
— Maldita boa coisa que não tenha conseguido que o matassem aí fora.
Wrath despiu suas presas.
— Acredita que luto como uma mariquinha simplesmente porque agora estou atrás deste escritório?
A voz de Phury se elevou do telefone.
— Bem, todo mundo, relaxem! Agora todos sabemos, e as coisas vão ser diferentes de agora em diante. Ninguém lutará sozinho, embora vamos de três em três. Mas, preciso saber, isto vai ser de conhecimento geral? Anunciará depois de amanhã na reunião do conselho?
Caralho, esse feliz e pequeno enfrentamento não era algo que estivesse desejando levar a cabo.
— Acredito que por hora manteremos em silêncio.
— Sim. — replicou Z — Porque realmente, para que ser honestos?
Wrath o ignorou.
— Embora direi a Rehvenge. Sei que há membros da glymera que se estão queixando pelos assaltos. Se converter isso em algo muito grande, poderá acalmar as coisas com este tipo de informação.
— Já terminamos? — perguntou Rhage com voz monótona.
— Sim. Isso é tudo.
— Então vou indo.
Hollywood abandonou a sala indignado, e Z se foi justo detrás dele, duas vítimas mais da bomba que Wrath tinha deixado cair.
— Como Beth reagiu? — perguntou V.
— Como acha? — Wrath ficou de pé e seguiu o exemplo do par que tinha saído.
Hora de ir procurar à Doutora Jane para que o costurasse, assumindo que os cortes já não se fecharam.
Precisava estar preparado para voltar a sair para lutar amanhã.
Na fria e brilhante luz da manhã, Xhex se desmaterializou para o outro lado de uma parede alta, aos ramos nus de uma robusta sebe. A mansão que estava mais à frente descansava na superfície da paisagem como uma pérola cinza engastada em uma filigrana, árvores finas e cortadas pelo vento se elevavam ao redor da velha casa paroquial de pedra, ancorando-a na ondulada grama, prendendo-a contra a terra.
O débil sol de dezembro se derramava sobre ela, fazendo com que o que teria sido austero de noite parecesse unicamente venerável e distinto.
Seus óculos de sol eram quase negros, a única concessão que precisava fazer a seu lado vampiro se saía durante o dia. Atrás das lentes, sua visão permanecia aguda e via cada detector de movimento, cada luz de segurança e cada janela de vidro chumbado coberta por venezianas.
Entrar ia ser um desafio. Os vidros desses caras estavam sem dúvida reforçados com aço, o que queria dizer que desmaterializar-se para dentro seria impossível embora as venezianas estivessem levantadas. E com seu lado symphath, pressentiu que havia muitas pessoas dentro: na cozinha estava o pessoal. Acima estavam os que dormiam. Outros estavam movendo-se pelo lugar. Não era uma casa feliz, os quadriculados emocionais deixados pelas pessoas que havia ali estavam cheios de sentimentos sombrios e violentos.
Xhex se desmaterializou ao teto da seção principal da mansão, lançando a versão symphath do mhis. Não a ocultava por completo, mas era como se a convertesse em mais uma sombra, entre as sombras projetadas pelas chaminés e a merda do sistema do CVAA, mas era suficiente para comprar um passe pelos detectores de movimento.
Aproximando-se de um conduto de ventilação, encontrou uma lâmina de malha de aço grosso como uma regra, atarraxada às paredes de metal. A chaminé estava igual. Coberta com aço robusto.
Não a surpreendia. Tinham uma segurança muito boa aqui.
A melhor oportunidade de penetração seria de noite, utilizando uma pequena furadeira à pilhas em uma das janelas. As acomodações dos criados estavam atrás, seria um bom lugar para entrar, dado que o pessoal estaria trabalhando e essa parte da casa estaria mais tranqüila.
Entrar. Encontrar o objetivo. Eliminá-lo.
As instruções de Rehv era deixar um cadáver chamativo, assim não se incomodaria em ocultá-lo nem tampouco em desfazer do corpo.
Enquanto andava através dos pequenos seixos que cobriam o teto, os cilícios que levava ao redor das coxas lhe mordiam os músculos a cada passo, a dor a drenava de certa quantidade de energia e lhe proporcionava a concentração necessária… Ambas as coisas ajudavam a manter seus impulsos symphath presos no espaço traseiro de seu cérebro.
Não levaria postas as tiras com cilícios quando realizasse o trabalho.
Xhex se deteve e elevou o olhar ao céu. O vento seco e cortante prometia neve, e logo. O profundo gelo do inverno estava chegando a Caldwell.
Mas esteve em seu coração durante anos.
Abaixo dela, sob seus pés, voltou a sentir as pessoas, lendo suas emoções, as sentindo. Mataria a todos se o pedissem. Os assassinaria sem pensar nem duvidar enquanto jaziam em suas camas ou se dirigiam a seus deveres ou roubavam um bocado de meio-dia ou se levantavam para uma mijada rápida antes de voltar a dormir.
Tampouco lhe incomodava o resíduo sujo e detalhes do falecimento nem todo esse sangue, não mais do que a uma H&K ou a uma Glock importariam uma merda as manchas no tapete ou os ladrilhos melados ou as artérias que gotejavam. A cor vermelha era unicamente o que via quando ia trabalhar, e, além disso, de todos os modos, depois de um momento, todos esses olhos horrorizados e sobressaltados e essas bocas afogadas com os últimos fôlegos, viam-se todas iguais.
Essa era a grande ironia. Na vida, cada um era um floco de neve de formosa e independente proporção, mas quando a morte chegava e se sujeitava, deixava-te com pele, músculos e ossos anônimos, os quais se esfriava e deterioravam a um ritmo previsível.
Ela era a arma conectada ao indicador de seu chefe. Ele apertava o gatilho, ela disparava, o corpo caía, e apesar do fato de que algumas vidas eram alteradas para sempre, no dia seguinte o sol ainda saía e se punha para todas as demais pessoas que havia no planeta, incluindo a ela.
Tal era o curso de seu trabalho-obrigação, como o definia: metade emprego, metade obrigação pelo que Rehv fazia para proteger aos dois.
Quando voltasse para este lugar ao anoitecer, faria o que tinha que fazer ali e sairia com a consciência tão intacta e segura como uma abóbada bancária.
Entrar e sair e nunca voltar a pensar nisso.
Assim era o caminho e a vida de um assassino.
Capítulo 15
Os aliados eram a terceira engrenagem na maquinaria da guerra.
Os recursos e os recrutas lhe davam o motor tático que permitiam a se enfrentar, cercar combate, e reduzir o tamanho e força dos exércitos de seus inimigos. Os aliados eram sua vantagem estratégica, gente cujos interesses estavam alinhados com os teus, embora suas filosofias e metas finais pudessem não coincidir. Era tão importante como o primeiro e o segundo se queria ganhar, mas eram um pouco menos controláveis.
A menos que soubesse como negociar.
— Estamos conduzindo faz um tempo. — disse o senhor D detrás do volante do Mercedes do falecido pai adotivo de Lash.
— E vamos seguir conduzindo um pouco mais. — Lash estudou seu relógio.
— Não vai dizer aonde vamos?
— Não. Não o fiz, verdade?
Lash olhou pela janela do sedã. As árvores aos lados da Northway pareciam desenhos feitos a lápis antes que se riscassem as primeiras folhas, nada mais que carvalhos ermos, sebes altas, finas e retorcidas. As únicas a ter um pouco de verde eram as robustas e rechonchudas coníferas, as quais iam aumentando em número à medida que se internavam no Parque Adirondack.
Céu cinza. Auto-estrada cinza. Árvores cinza. Era como se a paisagem do estado de Nova Iorque tivesse caído presa da gripe ou alguma merda assim, com um aspecto tão são como o de alguém que não tinha recebido sua vacina de pneumonia a tempo.
Havia duas razões pelas que Lash não tinha sido franco sobre aonde ele e seu segundo ao comando se dirigiam. A primeira era diretamente de mariquinha, e mal podia admitir para si mesmo. Não estava certo se iria ao encontro que tinha marcado.
A questão era que este aliado era complicado, e Lash sabia que só o fato de se aproximar era como cutucar um ninho de vespas com um pau. Sim, seria um grande aliado potencial, mas, se em um soldado a lealdade era um bom atributo, em um aliado era missão crítica, e para onde se dirigiam a lealdade era um conceito tão desconhecido como o medo. Assim, estava mais ou menos fodido nos dois extremos e por isso não falava. Se a reunião não corresse bem, ou se sua aproximação não funcionasse, não haveria negociação, e nesse caso, o senhor D não tinha que saber os pormenores de com quem ia negociar.
A outra razão que fazia com que Lash guardasse silêncio era que não estava seguro se a outra parte apareceria à festa. Em cujo caso, outra vez, não queria que soubessem o que tinha estado planejando.
Na lateral da estrada, em um pequeno sinal verde com letras refletivas brancas se lia: FRONTEIRA EUA 61.
Sim, sessenta e um quilômetros e estaria fora do país… E por isso a colônia symphath tinha sido colocada lá em cima. O objetivo tinha sido manter a todos esses filhos da puta sociopatas tão longe da população civil vampiro como fosse possível, e o objetivo foi alcançado. Um pouco mais perto do Canadá e teria que lhes dizer “foda-se” e “morre” em francês.
Lash fazia o contato graças ao velho Rolodex de seu pai adotivo, o que como o carro do macho, tinha provado ser muito útil. Como anterior leahdyre da câmara de vereadores, Ibix teve uma forma de contatar com os symphaths no caso de algum se encontrar escondendo-se entre a população geral e ter que ser deportado. É obvio, que a diplomacia entre as espécies nunca tinha sido oficial. Isso teria sido como oferecer a garganta exposta a um assassino em série, com o Henckels para cortá-la inclusive.
O e-mail de Lash ao rei dos symphaths tinha sido curto e direto ao ponto, e na breve missiva, identificou-se como quem era realmente, não como quem tinha crescido pensando que era: ele era Lash, chefe da Sociedade Lessening. Lash, filho de Omega. E estava procurando uma aliança contra os vampiros que tinham discriminado e rechaçado aos symphaths.
Certamente o rei queria vingança pela falta de respeito demonstrada a sua gente.
A resposta que recebeu foi tão gentil que quase vomitou. Mas então recordou de seus dias de treinamento que os symphaths tratavam tudo como se fosse uma partida de xadrez… Exatamente até o momento em que capturavam a seu rei, convertiam a sua rainha em uma puta, e queimavam seus castelos. A resposta do líder da colônia assinalava que um debate associado de interesse mútuo seria bem-vindo, e tinha perguntado se Lash seria tão amável de ir ao norte, já que as opções de viagem do rei exilado estavam, por definição, limitadas.
Lash fora de carro porque impôs uma condição própria, que era a assistência do senhor D. A verdade era que estabeleceu a condição simplesmente para igualar as demandas. Queriam que fosse a eles, bem, ele levaria um de seus homens. E como o lesser não podia desmaterializar-se, era necessário dirigir.
Cinco minutos depois, o senhor D pegou uma saída da auto-estrada e atravessou um centro urbano que era do tamanho de apenas um dos sete parques da cidade de Caldwell. Aqui não havia arranha-céu, só edifícios de tijolos de quatro e cinco andares, tanto assim parecia como se os duros meses de inverno tivessem impedido não só o crescimento das árvores, mas também da arquitetura.
Por ordem de Lash, conduziram para o oeste, passando hortas de pomares de maçãs desfolhados e granjas de vacas cercadas.
Como tinha feito na auto-estrada, aqui também desfrutou da paisagem com olhos ávidos. Ainda o surpreendia poder presenciar a leitosa luz solar de dezembro lançando sombras sobre calçadas, telhados de casas e sobre a terra marrom que havia sob as nuas extremidades das árvores. Em seu renascimento, seu verdadeiro pai lhe deu um propósito renovado, junto com este dom da luz diurna, e desfrutava imensamente de ambos.
O GPS do Mercedes apitou um par de minutos depois, e a leitura se tornou toda incerta. Imaginou que isso significava que se aproximavam da colônia, e para lhe dar razão apareceu a estrada que estavam procurando. Ilene Avenue estava indicada somente por um diminuto sinal. E avenida, uma merda, não era nada mais que um caminho de terra que cruzava os campos de milho.
O sedã fazia o que podia sobre o caminho acidentado, seus amortecedores absorviam as crateras criadas pelos atoleiros, mas a viagem teria sido mais fácil em um fodido quatro por quatro. Não obstante, ao final, na distância apareceu um grosso circulo de árvores, e a granja que conformava a cabeça ao redor da qual estavam apinhados, estava em condições imaculadas, toda pintada de um branco brilhante com venezianas e teto verde escuro. Como tirado de um cartão de natal humano, com fumaça saindo de suas quatro chaminés, e o alpendre equipado com cadeiras de balanço e arbustos de folha perene.
Ao aproximar-se, passaram um discreto sinal branco e verde que dizia: ORDEM MONÁSTICA TAOISTA, EST. 1982.
O senhor D estacionou o Mercedes, desligou o motor, e fez o sinal da cruz sobre seu peito. O que era fodidamente estúpido.
— Isto me dá mau agouro.
A questão era que o pequeno texano tinha razão. Apesar do fato de que a porta dianteira estava aberta e a luz do sol se derramava sobre um piso de madeira de uma quente cor cereja, algo mal espreitava depois da fachada familiar. Era simplesmente muito perfeito, muito calculado para fazer com que uma pessoa se relaxasse e assim debilitar seus instintos defensivos.
Lash pensou que era como uma garota bonita com uma ETS.
— Vamos. — disse.
Ambos saíram, e enquanto o senhor D empunhava sua Magnum, Lash não se incomodou em procurar sua arma. Seu pai lhe tinha proporcionado muitos truques, e a diferença daquelas ocasiões em que tratava com humanos, não tinha problemas em mostrar suas habilidades especiais diante de um symphath. Se acaso, montar um espetáculo ajudaria a que o vissem sob a luz apropriada.
O senhor D colocou seu chapéu de cowboy.
— Isto realmente me dá um mau pressentimento.
Lash entrecerrou os olhos. Frente a cada uma das janelas, penduravam cortinas de renda, mas apesar do branco do tecido, a merda era horripilante... Uau! Moviam-se?
Nesse momento, compreendeu que não era renda, a não ser tecidos de aranha. Povoadas por aracnídeos brancos.
— São... Aranhas?
— Sim. — certamente não seria a escolha decorativa de Lash, mas bom, ele não tinha que viver ali.
Os dois se detiveram no primeiro dos três degraus que levavam ao alpendre dianteiro. Caralho, algumas portas abertas não eram acolhedoras, e definitivamente aqui se dava o caso... Menos de “olá-como-está”, e mais de “entra-assim-poderemos-usar-tua-pele-para-fazer-uma-capa-de-superherói-para-um-dos-pacientes-de-hannibal-lecter”.
Lash sorriu. Quem quer que estivesse nessa casa era definitivamente um amigo.
— Quer que suba e toque a campainha? — disse o senhor D — Se é que há?
— Não. Esperaremos. Eles virão até nós.
E olhe só, alguém apareceu no extremo mais afastado do vestíbulo dianteiro.
O que desceu para eles tinha suficiente tecido pendurando de sua cabeça e ombros para competir com um cenário da Broadway. O tecido era estranho, de um branco reluzente, um branco que captava a luz e a refletia entre as grossas dobras, e o peso de toda ela era capturado por um forte cinturão branco de brocado.
Muito impressionante. Se te agradava o filme monarca-sacerdotal.
— Saudações, amigo. — disse uma voz baixa e sedutora — Sou o que procuram, o líder dos ingratos.
Os “s” se arrastavam até quase formar palavras independentes, o acento soava muito parecido ao tremor de advertência de uma serpente cascavel.
Um calafrio atravessou Lash e o formigamento desceu até seu pênis. O poder era, antes de tudo, melhor que o “Êxtase” como afrodisíaco, e esta coisa que se deteve entre os batentes da porta dianteira era toda autoridade.
Longas e elegantes mãos se estenderam para o capuz e jogaram as brancas dobras para trás. O rosto do líder ungido dos symphaths era tão suave como sua espetacular túnica, os planos das bochechas e queixo formados por elegantes e suaves ângulos. O lago genético que tinha engendrado a este formoso e decadente assassino era tão refinado que seu sexo era quase único, fundindo as características de macho e fêmea, com uma preponderância para o feminino.
Entretanto, o sorriso era completamente gelado. E os cintilantes olhos vermelhos eram sagazes até a malevolência.
— Não querem entrar?
A adorável voz serpentina fundiu essas palavras umas com outras, e Lash se encontrou desfrutando do som.
— Sim. — disse, voltando a concentrar-se no assunto — Faremos isso.
Quando se adiantou, o rei elevou a palma da mão.
— Um momento, se não se importar. Por favor, diga a seu associado que não tenha medo. Nada lhes fará mal aqui. — a declaração era bastante amável na superfície, mas o tom foi duro... Do qual Lash deduziu que não eram bem-vindos na casa se o senhor D levava uma arma na mão.
— Guarde a arma. — disse Lash brandamente — Nos tenho cobertos.
O senhor D embainhou a 357, com um “sim, senhor” tácito, e o symphath se afastou da porta.
Enquanto subiam os degraus, Lash franziu o cenho e baixou o olhar. Suas pesadas botas de combate não faziam nenhum som sobre a madeira, e o mesmo ocorreu sobre as tabuletas do alpendre quando se aproximaram da porta.
— Preferimos as coisas silenciosas. — o symphath sorriu, revelando que tinha os dentes parecidos, o que foi uma surpresa. Evidentemente, as presas destas criaturas, que uma vez tinha estado estreitamente aparentadas com os vampiros, tinham sido extirpadas. Se ainda se alimentavam, não podia ser muito freqüentemente, a menos que gostassem das facas.
O rei estendeu o braço à esquerda.
— Passamos ao salão?
O “salão” poderia ser descrito mais precisamente como “pista de boliche com cadeiras de balanço”. O espaço não era mais que um lustroso piso de madeira, e paredes cobertas só por pintura branca. No meio do caminho havia quatro cadeiras Shaker agrupadas formando um semicírculo ao redor da lareira acesa como se tivessem medo de tanto vazio e se apinhassem em busca de apoio.
— Sentem-se. — disse o rei enquanto levantava e afastava sua túnica para sentar-se em uma das altas e débeis cadeiras.
— Você fica de pé. — ordenou Lash ao senhor D, que obedientemente tomou posição atrás de onde Lash se sentou.
As chamas não estalavam alegremente ao consumir os lenhos que lhes tinham dado vida e as alimentavam. As cadeiras de balanço não rangeram quando o rei e Lash depositaram seu peso nelas. As aranhas não emitiram som quando cada uma caiu no centro de sua rede, como se preparassem-se para presenciar a reunião.
— Você e eu temos uma causa comum. — disse Lash.
— Parece acreditar nisto.
— Acreditava que sua raça acharia a vingança atrativa.
Quando o rei sorriu, esse estranho calafrio se disparou para o sexo de Lash.
— Está mal informado. A vingança não é mais que uma defesa crua e emocional contra um desprezo recebido.
— Está me dizendo que está abaixo de você? — Lash se recostou para trás e pôs sua cadeira em movimento, levando-a adiante e atrás — Hmmmm... Posso ter julgado a sua raça mal.
— Somos mais sofisticados que isso, sim.
— Ou talvez sejam só um bando de maricas.
O sorriso desapareceu.
— Somos muito superiores àqueles que acreditam nos haver aprisionado. Para falar a verdade, preferimos nossa própria companhia. Acredita que não projetamos este resultado? Tolo. Os vampiros são o caldo de cultivo a partir do qual evoluímos, são os chimpanzés para nosso raciocínio superior. Iria querer permanecer entre animais se pudesse viver em uma civilização com os de sua própria espécie? É obvio que não. Um busca a seus iguais. Requer a seus iguais. Aqueles de mentes semelhantes e superiores devem ser alimentados somente por aqueles de status similar. — os lábios do rei se elevaram — Sabe que é correto. Você tampouco ficou onde começou. Verdade?
— Não, não o fiz. — Lash deixou ver suas presas, pensando que sua marca de maldade não tinha encaixado entre os vampiros melhor do que ocorreu com os devoradores de pecados — Agora estou onde devo estar.
— Assim já vê. Se não tivéssemos desejado o exato resultado que obtivemos nesta colônia, poderíamos ter empreendido não precisamente uma vingança, mas sim uma ação corretiva que buscasse que nosso destino fosse favorável a nossos interesses.
Lash deixou de balançar-se.
— Se não estava interessado em uma aliança, poderia ter me dito isso sem delongas em um fodido email.
Uma estranha luz cintilou nos olhos do rei, uma que fez com que Lash se excitasse ainda mais, mas também o repugnou. Não ia a essa merda homossexual, e ainda assim... Bem, demônios, seu pai gostava dos machos, talvez algo disso se levava no sangue.
E acaso isso não daria ao senhor D algo pelo que rezar?
— Mas se tivesse enviado um email, não teria o prazer de te conhecer. — esses olhos cor vermelha rubi percorreram o corpo de Lash — E isso teria sido um roubo a meus sentidos.
O pequeno texano clareou a garganta, como se estivesse se engasgando com a língua.
Quando a tosse desaprovadora se desvaneceu, a cadeira do rei começou a mover-se acima e abaixo silenciosamente.
— Entretanto, há algo que poderia fazer por mim... Algo que por sua vez faria sentir obrigado a te proporcionar o que busca... Que é localizar vampiros, não é assim? Essa foi durante muito tempo a luta da Sociedade Lessening. Encontrar vampiros dentro de seus lares ocultos.
O bastardo tinha posto o dedo na ferida. No verão, Lash tinha sabido onde atacar porque tinha estado nos imóveis dos que tinha matado, participando de festas de aniversário de seus amigos, bodas de seus primos e bailes da glymera celebrados naquelas mansões. Agora, entretanto, o que ficava da elite dos vampiros se dispersou nos subúrbios da cidade ou tinha ido a seus refúgios fora do estado, e não conhecia esses endereços. E quanto aos civis? Aí não tinha nem idéia de por onde começar, porque nunca tinha confraternizado com o proletariado.
Os symphaths, entretanto, podiam sentir a outros, humanos e vampiros igualmente, vendo-os através de paredes sólidas e alicerces de porões subterrâneos. Se quisesse fazer algum progresso, precisava desse tipo de visão, era a única coisa que faltava entre todas as ferramentas que seu pai estava lhe proporcionando.
Lash empurrou o chão com suas botas de combate outra vez e adotou o mesmo ritmo que o rei.
— E exatamente o que é o que poderia necessitar de mim? — disse arrastando as palavras.
O rei sorriu.
— Os acoplamentos são nosso pilar fundamental, verdade? A união de um macho e uma fêmea. E não obstante dentro dessas relações íntimas é comum a discórdia. Promessas são feitas, mas não se mantêm. Pronunciam-se votos e ainda assim se descartam. Contra estas transgressões, medidas devem ser tomadas.
— Parece que esteve falando de vingança, tipo duro.
Esse rosto suave adquiriu uma expressão de auto-suficiência.
— Não, vingança não. Ação corretiva. Se isso implicar uma morte... É simplesmente o que a situação requer.
— Morte, não é? Assim que os symphaths não acreditam no divórcio?
Os olhos cor rubi cintilaram com desprezo.
— No caso de um consorte desleal cujas ações fora da cama atuam contra a alma da relação, a morte é o único divórcio.
Lash assentiu com a cabeça.
— Entendo a lógica. E quem é o objetivo?
— Está se comprometendo a atuar?
— Ainda não. — não tinha claro exatamente quão longe estava disposto a chegar. Sujar as mãos dentro da colônia não fora parte de seu plano original.
O rei deixou de balançar-se e ficou em pé.
— Pensa então, até que esteja seguro. Quando estiver preparado para receber de nós o que necessita para a guerra, volte para mim e mostrarei o modo de proceder.
Lash também se levantou.
— Por que simplesmente não mata você mesmo a sua companheira?
O lento sorriso do rei foi como o de um cadáver, rígido e frio.
— Meu queridíssimo amigo, o insulto que mais reprovo não é tanto a deslealdade, a qual poderia esperar, mas sim a arrogante hipótese de que nunca me inteiraria do engano. O primeiro é uma insignificância. O último é indesculpável. Agora... O acompanho até seu carro?
— Não. Sairemos por nós mesmos.
— Como desejar. — o rei estendeu sua mão de seis dedos — Foi um prazer...
Lash estendeu a sua e quando suas palmas se encontraram, sentiu a eletricidade lambendo seu braço.
— Sim. O que for. Terá notícias minhas.
Capítulo 16
Ela estava com ele... Oh, Deus, finalmente estava de volta com ele.
Tohrment, filho de Hharm, estava nu e pressionado contra a carne de sua amada, sentindo sua pele acetinada e ouvindo seu ofego quando levava a mão até seu peito. Cabelo vermelho... Havia cabelo vermelho esparramado por todo o travesseiro, a fez rodar de costas sobre os lençóis brancos que cheiravam como limões... Cabelo vermelho enredado ao redor de seu grosso antebraço.
O mamilo estava tenso contra seu polegar que se movia em círculos e sentiu a suavidade de seus lábios sob os seus ao beijá-la profunda e lentamente. Quando estivesse suplicando por ele, rodaria sobre ela e a tomaria por cima, penetrando-a com força, segurando-a em seu lugar.
Gostava de seu peso. Gostava da sensação de que a cobrisse. Em sua vida juntos, Wellsie era uma fêmea independente com uma mente forte e uma veia teimosa que rivalizava com a de um bulldog, mas na cama gostava que ele estivesse em cima.
Deixou cair a boca sobre seu seio, sugando o mamilo, fazendo-o rodar, beijando-o.
— Tohr...
— O que, leelan? Mais? Talvez tenha que te fazer esperar...
Mas não podia. Ocupou-se dela e lhe acariciou o estômago e os quadris. Quando se retorceu, lambeu seu pescoço e passou as presas pela jugular. Não podia esperar para alimentar-se. Por alguma razão, estava ávido de sangue. Talvez estivesse lutando muito.
Os dedos dela se afundaram em seu cabelo.
— Tome minha veia...
— Ainda não. — o aguilhão da espera só o faria ainda melhor... Quanto mais a desejasse, mais doce seria o sangue.
Deslocando-se para sua boca, beijou-a com mais força que antes, penetrando-a com a língua enquanto deliberadamente esfregava seu pênis contra a coxa, uma promessa de outra invasão, mais profunda em sua parte inferior. Estava completamente excitada, sua fragrância se elevava acima do aroma de limão dos lençóis, fazendo com que as presas brotassem em sua boca e a ponta de seu sexo se umedecesse.
Sua shellan tinha sido a única mulher que tinha conhecido. Ambos eram virgens na noite de seu emparelhamento... E ele nunca tinha desejado a ninguém mais.
— Tohr...
Deus! Amava o som baixo de sua voz. Amava tudo nela. Foram prometidos um ao outro antes de nascerem, e no momento em que se conheceram havia sido amor a primeira vista. O destino tinha sido amável com eles.
Deslizou a palma até sua cintura, e então...
Deteve-se, compreendendo que algo ia mal. Algo...
— Sua barriga... Sua barriga está plana.
— Tohr...
— Onde está o pequeno? — retirou-se, sentindo pânico — Estava grávida. Onde está o pequeno? Está bem? O que aconteceu com você... Está bem?
— Tohr...
Ela abriu os olhos, e o olhar que tinha conhecido durante centenas de anos se concentrou nele. Uma tristeza, do tipo que o fazia desejar não ter nascido jamais, eliminou o rubor sexual de seu formoso rosto.
Levantando o braço para ele, pôs a mão em sua bochecha.
— Tohr...
— O que aconteceu?
— Tohr...
O brilho em seus olhos e o tremor de sua adorável voz o partiu pela metade. Logo começou a distanciar-se, o corpo começou a desaparecer sob suas mãos, seu cabelo vermelho, seu rosto delicioso, seus olhos desesperados se desvaneceram até que ante ele somente ficaram os travesseiros. Logo, com um golpe final, o aroma de limão dos lençóis e a fragrância natural somente dela deixaram seu nariz, substituídos por nada...
Tohr se endireitou de um salto no colchão, com os olhos alagados de lágrimas e seu coração dolorido como se tivesse pregos atravessando seu peito. Respirando agitadamente se aferrou o esterno e abriu a boca para gritar.
Não saiu nenhum som. Não tinha forças.
Caindo para trás sobre os travesseiros limpou as bochechas úmidas com mãos trementes e tentou acalmar esse inferno. Quando finalmente recuperou o fôlego, franziu o cenho. Seu coração estava saltando dentro de sua caixa torácica, estava revoando mais que pulsando, e um enjôo, ocasionado, sem dúvida por seus erráticos espasmos fazia girar sua cabeça em um redemoinho.
Levantando a camiseta, baixou o olhar a seus peitorais desinflados e a seu torso encolhido e insistiu a seu corpo a seguir falhando. Os acessos lhe estavam chegando com crescente regularidade e força, e desejava como o demônio que se organizassem de uma vez e o ajudassem a despertar morto. Se quisesse ir ao Fade para estar com seus defuntos seres queridos, o suicídio não era uma opção, mas ele estava operando sob a presunção de que podia ser efetivamente negligente consigo mesmo até a morte. O que tecnicamente não era um suicídio, como seria se disparar um tiro ou jogar um nó corrediço ao redor do pescoço, ou cortar os punhos.
O aroma de comida que chegava do corredor o fez olhar ao relógio. Quatro da tarde. Ou era da manhã? As cortinas estavam corridas, assim não sabia se as persianas estavam levantadas ou baixadas.
Soou um golpe suave.
O qual, fodido obrigado, significava que não era Lassiter, que simplesmente entrava sempre que queria. Evidentemente os anjos caídos não sabiam muito de boas maneiras. Nem de espaço pessoal. Nem de limites de algum tipo. Estava claro que o grande e brilhante pesadelo foi arremessado a pontapés do céu porque Deus não tinha gostado de sua companhia muito mais do que Tohr gostava.
O golpe se repetiu. Assim devia ser John.
— Sim. — disse Tohr, permitindo que sua camiseta caísse enquanto se elevava para recostar-se sobre os travesseiros. Seus braços, uma vez fortes como gruas, lutaram sob o peso de seus ombros caídos.
O menino, que já não era um menino, entrou levando uma bandeja pesadamente carregada de comida, e uma expressão cheia de otimismo infundado.
Tohr examinou o conteúdo com o olhar enquanto a carga era depositada na mesinha. Frango com ervas, arroz com açafrão, feijões verdes e pão fresco.
A merda perfeitamente poderia ter sido carne de animal atropelado envolto em arame farpado, pelo que lhe importava, mas agarrou o prato, desenrolou o guardanapo, pegou o garfo e a faca e os utilizou.
Mastigar. Mastigar. Mastigar. Engolir. Mais mastigar. Engolir. Beber. Mastigar. Comer era tão mecânico e autônomo como respirar, algo do que era só levemente consciente, uma necessidade, não um prazer.
O prazer era coisa do passado... E uma tortura dentro de seus sonhos. Quando evocava sua shellan contra ele, nua, sobre lençóis com aroma de limão, a fugaz imagem acendia seu corpo de dentro para fora, o fazendo sentir-se vivo, e não só que vivia. Entretanto, o golpe do encontro se desvanecia rapidamente, era como uma chama sem nenhum abajur para sustentá-la.
Mastigar. Cortar. Mastigar. Engolir. Beber.
Enquanto comia, o menino se sentou em uma cadeira junto às cortinas fechadas, com os cotovelos nos joelhos, os punhos no queixo, um Pensador do Rodin vivinho e abanando o rabo. Ultimamente John sempre estava assim, sempre dando voltas em algo na cabeça.
Tohrment sabia condenadamente bem do que se tratava, mas a solução que terminaria com a triste preocupação de John primeiro ia doer-lhe como a merda.
E Tohr lamentava. Lamentava muito.
Cristo, por que Lassiter não podia tê-lo deixado deitado sem mais, naquele bosque? Esse anjo poderia ter ficado quietinho, mas não, Seu Senhorio Halogênico tinha que ser um herói.
Tohr desviou os olhos para John e seu olhar se fechou sobre o punho do menino. A coisa era enorme, e o queixo e mandíbula que descansavam sobre ele eram fortes, masculinos. O menino se converteu em um homem bonito, mas bem, como filho de Darius, provinha de um bom lago genético. Um dos melhores.
O que o levava a pensar... Verdadeiramente se parecia com D, uma cópia ao carvão, em realidade, exceto pelos jeans azuis. Darius nem morto se deixaria ver com jeans, nem sequer com esses de estilistas elegantes como os que John usava.
De fato... D com freqüência assumia exatamente a mesma posição quando estava ruminando sobre a vida, imitando o Rodin, todo cenho e agitação...
Um brilho de prata titilou na mão livre de John. Era um quarto de dólar, e o menino passava a moeda dentro, fora e ao redor de seus dedos, sua versão de um tic nervoso.
Esta noite havia algo mais no silêncio que John costumava assumir quando permanecia ali sentado. Algo tinha acontecido.
— O que aconteceu? — perguntou Tohr com voz áspera — Está bem?
Os olhos de John se elevaram de repente com surpresa.
Para evitar o olhar, Tohr baixou os seus, espetando um pouco de frango, e metendo-o na boca. Mastigar. Mastigar. Engolir.
A julgar pelos sons de movimento, John estava se desenroscando de sua rotina lentamente, como se temesse que qualquer movimento súbito espantasse a pergunta que ficava entre eles.
Tohr levantou o olhar de novo, e enquanto esperava, John meteu a moeda no bolso e gesticulou com economia e graça.
Wrath está lutando de novo. V acaba de contar isso a mim e aos meninos.
Tohr tinha perdido a prática com a Linguagem por Gestos Americano, mas nem tanto. A surpresa fez que baixasse seu garfo.
— Espere... Ainda é o rei, verdade?
Sim, mas esta noite disse aos Irmãos que vai voltar a ocupar seu lugar na rotação. Ou, suponho que esteve na rotação sem dizer a ninguém. Acredito que a Irmandade está de saco cheio com ele.
— Rotação? Não pode ser. Não se permite que o rei lute.
Agora sim. E Phury também voltará.
— Que porra? Supõe-se que o Primale não... — Tohr franziu o cenho — Há alguma mudança na guerra? Aconteceu algo?
Não sei. John encolheu de ombros e se recostou na cadeira, cruzando as pernas à altura dos joelhos. Outra coisa que sempre fazia Darius.
Nessa pose o filho parecia tão velho como o pai tinha sido, embora tivesse menos a ver com a forma em que estavam colocadas as extremidades do John e mais com o cansaço extremo que havia em seus olhos azuis.
— Não é legal. — disse Tohr.
Agora sim. Wrath se reuniu com a Virgem Escriba.
Na mente de Tohr começaram a zumbir perguntas, seu cérebro brigava com a carga desacostumada. No meio do deslocado redemoinho, era difícil pensar coerentemente, e sentia como se estivesse tentando segurar cem bolas de tênis entre seus braços, sem importar quão arduamente tentasse, algumas escorregavam e ricocheteavam a seu redor, criando uma confusão.
Deixou de tentar encontrar sentido em algo.
— Bem, isso é uma mudança... Desejo-lhes sorte.
A exalação baixa de John resumiu tudo bastante bem e Tohr voltou a se desconectar do mundo e retornou a sua comida. Quando terminou, dobrou o guardanapo pulcramente e tomou um último sorvo do copo de água.
Ligou a TV e pôs na CNN, porque não queria pensar e não podia agüentar o silêncio. John ficou aproximadamente meia hora, e quando foi evidente que já não suportava estar quieto durante mais tempo ficou em pé e se despediu.
O verei ao final da noite.
Ah, assim era de noite.
— Estarei aqui.
John recolheu a bandeja e saiu sem deter-se, nem duvidar. A princípio, houve bastante de ambas, como se a cada vez que chegasse à porta esperasse que Tohr o detivesse e dissesse: “Estou preparado para confrontar a vida. Vou seguir adiante. Estou melhor o bastante para me preocupar contigo”.
Mas a esperança não era eterna.
Quando a porta se fechou, Tohr afastou os lençóis de suas pernas fracas e passou os pés sobre a beirada do colchão.
Estava preparado para confrontar algo, sim, mas não sua existência. Com um gemido e uma inclinação brusca, foi cambaleando até o banheiro, foi ao vaso, e levantou o assento do trono de porcelana. Inclinando-se, deu a ordem e seu estômago evacuou a comida sem protestar.
No princípio tinha que colocar o dedo na garganta, mas não mais. Só esticava o diafragma e tudo saía como ratos fugindo de uma boca-de-lobo transbordante.
—Tem que acabar com essa merda.
A voz de Lassiter harmonizava com o som do vaso alagando-se. O que tinha muito sentido.
— Cristo, acaso bate alguma vez?
— Sou Lassiter. L-A-S-S-I-T-E-R. Como é possível que ainda siga me confundindo com outro? Necessita um adesivo com meu nome?
— Sim, e o ponha sobre sua boca. — Tohr se largou sobre o mármore e deixou a cabeça cair entre as mãos — Sabe, pode ir para casa. Pode ir quando quiser.
— Ponha seu rabo em movimento então. Porque isso é o que conseguiria que o fizesse.
— Vá, agora tenho uma razão para viver.
Houve um suave som de campainhas, o que queria dizer, tragédia das tragédias, que o anjo acabava de subir no balcão.
— Então, o que fazemos esta noite? Espera! Deixe-me adivinhar, nos sentar em áspero silêncio. Ou, não... Agora está alternando. Meditar com emotiva intensidade, verdade? Que enchimento de saco selvagem é. Whoo-Hooo. Quando quiser acordar, estará aplicando para provar o nó corrediço.
Com uma maldição, Tohr se levantou e foi abrir a ducha, esperando que se negasse a olhar ao boca dura, Lassiter se aborreceria rapidamente e iria arruinar a tarde de algum outro.
— Pergunta. — disse o anjo — Quando vamos cortar esse tapete que está crescendo em sua cabeça? Se essa merda ficar mais longa, vamos ter que ceifá-la como se fosse feno.
Enquanto Tohr tirava a camiseta e a cueca boxer, desfrutou do único consolo que tinha quando sofria a companhia de Lassiter: expor-se nu ante o idiota.
— Homem, o rabo plano é uma coisa. — resmungou Lassiter — Mas exibe um par de bolas de basquete desinfladas aí atrás. Faz com que me pergunte... Hey, certamente Fritz tem uma bomba de bicicleta. Só comentava.
— Você não gosta da vista? Já sabe onde está a porta. É essa em que nunca bate.
Tohr não deu tempo para a água esquentar, simplesmente se meteu sob o jorro e se limpou sem nenhuma boa razão que soubesse... Não tinha orgulho, assim que lhe importava uma merda o que outros pensassem de sua higiene.
Vomitar tinha um propósito. A ducha... Talvez... Simplesmente fosse um hábito.
Fechando os olhos, separou os lábios e ficou de pé frente ao jato. A água lambeu o interior de sua boca, varrendo a bílis e quando a ardência abandonou sua língua, um pensamento entrou em seu cérebro.
Wrath estava fora lutando. Sozinho.
— Hey, Tohr.
Tohr franziu o cenho. O anjo nunca utilizava seu nome próprio.
— O que?
— Esta noite é diferente.
— Sim, só se me deixe em paz. Ou se ponha a você mesmo neste banho. Há seis chuveiros para escolher aqui dentro.
Tohr pegou o sabonete e o passou sobre seu corpo, sentindo os duros e agudos impulsos de seus ossos e articulações através da pele fina.
Wrath estava fora sozinho.
Xampu. Enxágüe. Voltar para o jorro. Abrir a boca.
Fora. Sozinho.
Quando terminou a ducha, o anjo estava no centro do banheiro com uma toalha, todo amabilidade e essa merda.
— Esta noite é diferente. — disse Lassiter brandamente.
Tohr olhou ao anjo seriamente, vendo-o pela primeira vez, embora tenham passado quatro meses juntos. O anjo tinha o cabelo negro e loiro, tão longo como o de Wrath, mas, apesar de todo esse estilo Cher descendo por suas costas não era nenhum efeminado. Seu guarda-roupa parecia tirado diretamente do exército/marinha, camisetas negras, calças de camuflagem e botas de combate, mas não era absolutamente um soldado. O idiota estava perfurado como um agulheiro e tinha tantos acessórios como um joalheiro, com aros de ouro e correntes que penduravam dos buracos que tinha nas orelhas, pulsos e sobrancelhas. E podia apostar que tinha acessórios no peito e mais abaixo da cintura... O que era algo em que Tohr se negava a pensar. Não precisava de ajuda para vomitar, muito obrigado.
Quando a toalha trocou de mãos, o anjo disse com gravidade.
— Hora de despertar, Cinzeiro.
Tohr estava a ponto de apontar que essa era a Bella Adormecida quando lhe chegou uma lembrança como se fosse injetada no lóbulo frontal. Era da noite em que salvara a vida de Wrath lá pelo ano 1958, e as imagens lhe chegaram com a absoluta clareza da experiência atual.
O rei esteve fora. Sozinho. No centro.
Meio morto e sangrando sobre a sarjeta.
Um Edsel lhe tinha investido. Um pedaço de merda de um Edsel conversível de cor azul sombra de olhos de uma garçonete.
Pelo que Tohr pôde deduzir mais tarde, Wrath devia estar perseguindo um lesser a pé e ao girar a toda em uma esquina esse carro grande como uma lancha tinha lhe investido. Tohr estava a dois quarteirões de distância e ouviu o chiado dos freios e um impacto de algum tipo, e estava preparado para não fazer absolutamente nada.
Acidentes de trânsito humanos? Não era problema seu.
Mas então um par de lessers passou correndo frente à entrada do beco onde ele estava. Os assassinos fugiam como loucos sob a garoa de outono, como se algo os perseguisse, exceto não havia ninguém correndo atrás de seus calcanhares. Esperou caso aparecesse algum de seus irmãos. Nenhum deles tinha feito ato de presença.
Não fazia sentido nenhum. Se um assassino tivesse sido golpeado por um carro em companhia de seus cúmplices, estes não teriam abandonado o cenário. Os outros teriam matado o condutor humano e a qualquer possível passageiro, logo teriam metido o seu morto no porta-malas e teriam ido conduzindo da cena: a última coisa que a Sociedade Lessening queria era a um lesser incapacitado derramando sangue negro sobre a rua.
Talvez fosse só coincidência. Um pedestre humano. Ou alguém em uma moto. Ou dois carros.
Entretanto, tinha sido somente um par de freadas. E nada disso explicaria o par de pálidos corredores que tinha passado junto a ele como se fossem incendiários fugindo de um fogo que teriam acendido.
Tohr tinha trotado até o Trade, e ao dar a volta na esquina tinha captado a visão de um macho humano com um chapéu e um casaco agachado sobre um corpo encolhido que era duas vezes o seu tamanho. A esposa do homem, que estava vestida com um desses frívolos vestidos de saias avultadas dos anos cinqüenta, estava de pé justo na frente dos faróis, aconchegada em seu casaco de pele.
Sua brilhante saia vermelha era da cor das nervuras que havia no pavimento, mas o aroma do sangue derramado não era humano. Era vampiro. E o que tinha sido atropelado tinha um comprido cabelo negro...
A voz da mulher era estridente.
— Temos que levá-lo ao hospital...
Tohr interviu, interrompendo-a:
— É meu.
O homem tinha levantado o olhar.
— Seu amigo... Não o vi... Vestido de negro... Saiu de um nada...
— Ocuparei-me dele. — nesse ponto, Tohr deixou de explicar-se e simplesmente por meio de sua vontade, tinha enviado aos dois humanos a um estado de estupor. Uma rápida sugestão mental os enviou de volta a seu carro e os pôs em caminho com a impressão de que tinham golpeado uma lata de lixo. Supôs que a chuva se ocuparia do sangue da frente do carro, e eles mesmos poderiam arrumar o amassado.
Quando se inclinou sobre o corpo do herdeiro do trono da raça, o coração de Tohr pulsava tão rápido como um martelo hidráulico. Havia sangue por toda parte, emanando rápido de um corte na cabeça de Wrath, por isso Tohr tirou a jaqueta, mordeu a manga, e rasgou uma tira de couro. Depois de envolver as têmporas do herdeiro e atar a bandagem improvisada tão forte como pôde, deteve uma caminhonete que passava, apontou com a arma ao fanático de Grease que estava atrás do volante, e fez com que o humano conduzisse até o bairro de Havers.
Ele e Wrath viajaram na carroceria traseira, e todo o tempo, esteve mantendo pressão sobre a cabeça ferida de Wrath, sob a chuva fria. Uma chuva tardia de novembro, talvez dezembro. Entretanto, agradecia que não fosse verão. Sem dúvida o frio havia diminuído o batimento do coração de Wrath e aliviado sua pressão sangüínea.
A meio quilômetro da casa de Havers, na parte luxuosa de Caldwell, Tohr havia dito ao humano que estacionasse e enquanto ficava pelo caminho lavou seu cérebro.
Os minutos que Tohr levou para chegar até a clínica foram os mais compridos de sua vida, mas conseguiu levar Wrath ali, e Havers fechou o que tinha resultado ser o corte de uma das artérias temporais.
O dia seguinte foi crítico. Inclusive com Marissa ali para alimentar ao Wrath, o rei tinha perdido tanto sangue que não evoluía como se esperava, e Tohr ficou todo o tempo sentado em uma cadeira junto à cama. Enquanto Wrath jazia tão quieto, Tohr sentia como se a vida da raça inteira pendesse de um fio, o único que podia ocupar o trono estava preso em um sonho que se distanciava por apenas uns poucos neurônios de um estado vegetativo permanente.
A notícia se espalhou e as pessoas acudiam desesperadas. As enfermeiras e o médico. Outros pacientes que se deixaram cair para rezar pelo rei a quem não serviriam. Os Irmãos, que tinham utilizado o telefone por turnos para ligar a cada quinze minutos.
A sensação coletiva era que sem o Wrath não havia esperança. Nem futuro. Nem oportunidade.
Entretanto, Wrath viveu, despertando irascível, o que o fez suspirar de alívio... Porque se um paciente tinha a energia para estar de saco cheio, ia superar.
O anoitecer seguinte, depois de ter estado fora de serviço durante vinte e quatro horas seguidas e tendo assustado de morte a todo mundo que lhe rodeava, Wrath tinha desligado a IV[39], vestiu-se, e se foi.
Sem dizer nenhuma palavra a nenhum deles.
Tohr tinha esperado... Algo. Não um obrigado, mas algum reconhecimento Ou... Algo. Demônios, agora Wrath era um filho da puta mal-humorado, mas nesse então? Era diretamente tóxico. Mesmo assim... Nada? Depois de ter salvado a vida do cara?
Recordava bastante à forma em que ele esteve tratando ao John. E a seus irmãos.
Tohr envolveu a toalha ao redor da cintura e voltou para o ponto mais importante da lembrança. Wrath tinha saído ali fora a lutar sozinho. Lá em 58, tinha sido um golpe de sorte que Tohr estivesse onde estava e tivesse encontrado o rei antes que fosse muito tarde.
— Hora de despertar. — disse Lassiter.
Capítulo 17
Enquanto a noite chegava e se instalava, Ehlena rezava para não ter que chegar tarde ao trabalho outra vez. Com o relógio correndo, esperou no andar de acima, na cozinha com o CranRas e as drogas moídas. Tinha sido meticulosa com a limpeza: tinha guardado a colher. Checando todas as superfícies duas vezes. Inclusive comprovou que o salão estivesse apropriadamente organizado.
— Pai? — chamou em direção ao porão.
Enquanto prestava atenção, a espera de sons de pés arrastando-se e palavras sem sentido pronunciadas baixinho, pensou nos sonhos estranhos que teve durante o dia. Imaginou o Rehv na escura distância com os braços pendurado nos flancos. Seu magnífico corpo nu estava iluminado como se estivesse em exibição, seus músculos se sobressaindo em um poderoso desdobramento e a cor torrada de sua pele era quente e dourada. Sua cabeça estava inclinada para baixo e tinha os olhos fechados como se estivesse em repouso.
Cativada, convocada, tinha atravessado um chão de pedra fria até ele, pronunciando seu nome uma e outra vez.
Ele não tinha respondido. Não tinha elevado a cabeça. Não tinha aberto os olhos.
O medo tinha assobiado ao longo de suas veias e tinha estremecido seu coração, e tinha se apressado para chegar a ele, mas ele tinha permanecido sempre distante, um objetivo nunca realizado, um destino nunca alcançado.
Despertara com lágrimas nos olhos e o corpo tremendo. Quando a sufocante comoção tinha retrocedido, o significado ficou claro, mas na realidade, não necessitava que seu subconsciente lhe dissesse o que ela já sabia.
Sacudindo a si mesma, voltou a gritar para baixo.
— Pai?
Quando não houve resposta, Ehlena pegou a xícara de seu pai e desceu ao porão. Fez lentamente, embora não porque tivesse medo de derramar o CranRas vermelho sangue sobre seu uniforme branco. Às vezes seu pai não se levantava por si mesmo e ela tinha que fazer este descida, e cada vez que descia os degraus por esse motivo, perguntava-se se finalmente teria ocorrido, se seu pai teria sido chamado ao Fade.
Não estava pronta para perdê-lo. Ainda não, sem importar quão difíceis fossem as coisas.
Introduzindo a cabeça através da porta de seu dormitório, o viu sentado ante sua escrivaninha esculpida à mão, rodeado de pilhas irregulares de papéis e velas apagadas.
Obrigado, Virgem Escriba.
Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, preocupou-a que a falta de luz pudesse danificar a visão de seu pai, mas as velas ficariam como estavam, porque não havia nenhum fósforo nem acendedor na casa. A última vez que ele tinha posto suas mãos sobre um fósforo tinha sido em sua antiga casa... E tinha incendiado o apartamento porque suas vozes haviam dito.
Isso ocorreu fazia dois anos, e fora a razão de que lhe tivessem receitado remédios.
— Pai?
Ele levantou o olhar da desordem e pareceu surpreso.
— Minha filha, como vai esta noite?
Sempre fazia a mesma pergunta, e sempre lhe dava a mesma resposta na Antiga Língua.
— Bem, meu pai. E você?
— Como sempre encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável. — seu pai pegou a xícara — Aonde vai?
Isto conduziu às suas “pas de deux” verbal a respeito de que não aprovava que trabalhasse e ela explicava que o fazia porque gostava, ele se encolhia de ombros e afirmava não entender à geração jovem.
— Seriamente tenho que ir, — lhe disse — mas Lusie chegará em questão de minutos.
— Sim, bem, bem. Em realidade, estou ocupado com meu livro, mas a entreterei durante um momento, como é apropriado. Entretanto, tenho que me concentrar em meu trabalho. — ondulou a mão ao redor da representação física do caos de sua mente, seu gesto elegante em contradição com a irregular coleção de papéis cheios de sem sentidos — Isto tem que ser feito.
— É obvio que sim, pai.
Ele terminou o CranRas e, quando Ehlena foi pegá-lo de sua mão, franziu o cenho.
— Certamente a criada pode fazer isso.
— Gosto de ajudá-la. Tem muitas responsabilidades. — não podia ser mais certo. A doggen tinha que seguir todas as regras para objetos e onde pertenciam, assim como fazer as compras e ganhar o dinheiro e pagar as faturas e o vigiar. A doggen estava cansada. A doggen estava esgotada.
Mas era absolutamente necessário que a xícara fosse para a cozinha.
— Pai, por favor, solte a taça para que possa levá-la para cima. A donzela teme te incomodar, e gostaria de lhe economizar essa preocupação.
Por um momento, os olhos dele se pousaram nela como estavam acostumados a fazer.
— Tem um coração formoso e generoso. Estou muito orgulhoso de te chamar de filha.
Ehlena piscou ferozmente e com voz áspera disse:
— Ser seu orgulho significa tudo para mim.
Ele estendeu o braço e apertou sua mão.
— Vai, minha filha. Vá a esse “seu trabalho”, e volte para casa comigo com histórias de sua noite.
Oh... Deus.
Era exatamente o que havia lhe dito fazia muito tempo, quando ela estava indo a um colégio particular e sua mãe estava viva e viviam entre a família e a glymera como gente de importância.
Inclusive, embora soubesse ser provável que quando voltasse para casa ele não tivesse nenhuma lembrança de haver lhe feito a velha e adorável pergunta, ela sorriu e se alimentou das saborosas migalhas do passado.
— Como sempre, meu pai. Como sempre.
Partiu com o som do passar de páginas e o “tink-tink-tink” de uma pluma golpeando a borda de um tinteiro de cristal.
Escada acima enxaguou a xícara, secou e a guardou na despensa, logo se assegurou de que no frigorífico tudo estivesse onde devia estar. Quando recebeu a mensagem de texto de que Lusie estava a caminho, transpassou a porta, fechou-a, e se desmaterializou para a clínica.
Quando chegou ao trabalho, sentiu um grande alívio de ser como todos os outros, chegando na hora, pondo as coisas em seu armário, falando de nada em particular antes que começasse o turno.
Mas então quando estava na cafeteira, Catya se aproximou dela, toda sorrisos.
— Assim... Ontem à noite foi...? Vamos, conte.
Ehlena terminou de encher seu copo e ocultou uma careta depois de um primeiro gole profundo que lhe queimou a língua.
— Acredito que não apareceu resume tudo.
— Não apareceu?
— Sim. Como em “ele não apareceu”.
Catya sacudiu a cabeça.
— Maldito seja.
— Não, está bem. De verdade. Quero dizer, não é como se tivesse esperado muito. —sim, só uma fantasia completa sobre o futuro, que incluía coisas como um hellren, uma família própria, uma vida que valesse a pena viver. Nada de outro mundo — Está bem.
— Sabe? Ontem à noite estive pensando. Tenho um primo que é...
— Obrigado, mas não. Com meu pai como está não deveria sair com ninguém. —Ehlena franziu o cenho, ao recordar quão rapidamente Rehv lhe tinha dado razão a respeito disso. Embora pudesse dizer que isso o fazia uma espécie de cavalheiro, era difícil não sentir-se um pouco aborrecida.
— Preocupar-se por seu pai não significa...
— Hey, por que não me ocupo do balcão de recepção durante a mudança de volta?
Catya se deteve, mas os olhos da fêmea se iluminaram lançando um montão de mensagens, a maior parte das quais poderiam se resumir a: “Quando esta garota vai despertar?”
— Irei agora mesmo. — disse Ehlena, dando a volta e afastando-se.
— Não durará para sempre.
— É obvio que não. A maior parte de nosso turno já chegou.
Catya sacudiu a cabeça.
— Isso não é o que quis dizer, e sabe. A vida não dura para sempre. Seu pai tem uma séria enfermidade psicológica, e é muito boa com ele, mas poderia ficar assim durante um século.
— Em cujo caso ainda sobrará ao redor de setecentos anos mais para mim. Estarei na recepção. Desculpe.
Na recepção, Ehlena tomou posição depois do computador e introduziu a contra-senha. Não havia ninguém na sala de espera porque o sol acabava de se pôr, mas os pacientes começariam a chegar muito em breve, e ela não podia esperar a distração.
Revisando o horário de Havers, não viu nada incomum. Verificações. Tratamentos a pacientes. Seguimentos cirúrgicos...
A campainha exterior tocou e levantou o olhar para um monitor de segurança. Ali em uma vista do vestíbulo exterior, viu um macho que se agasalhava em seu casaco para se proteger do vento frio.
Apertou o botão do inter comunicador e disse:
— Boa noite. No que posso lhe ajudar?
O rosto que levantou o olhar para a câmera era um que já tinha visto antes. Três e três noites atrás. O primo de Stephan.
— Alix? — disse — É Ehlena. Como está...?
— Estou aqui para ver se o trouxeram.
— Trouxeram?
— Ao Stephan.
— Não acredito, mas me deixe comprovar enquanto entra.
Ehlena pressionou o botão para abrir a fechadura e foi ao computador ver a lista de pacientes ingressados. Enquanto abria a série de portas para Alix, revisava os nomes, um por um.
Não fazia referência ao ingresso de Stephan como paciente.
No instante em que Alix entrou na sala de espera, o sangue em suas veias congelou ao ver a cara do macho. Os cruéis círculos escuros sob seus olhos cinza falavam de algo mais que uma simples falta de sono.
— Stephan não voltou para casa ontem à noite. — disse.
Rehv lamentava dezembro, e não só porque o frio no norte de Nova Iorque fosse suficiente para fazê-lo desejar ficar em um plano especialista de pirotecnia só para esquentar-se.
Em dezembro a noite caía cedo. O sol, esse estúpido preguiçoso, flácido maricas, retrocedia em seus esforços tão cedo como as quatro e meia da tarde, e isso para Rehv significava que o “encontro-de-primeira-terça-do-mês-para-atuar-como-semental” começava cedo.
Acabavam de dar as dez em ponto quando entrou no Parque Estatal Black Snake depois de uma viagem de carro de duas horas para o norte desde Caldwell. Trez, que sempre se desmaterializava para ali, sem dúvida já teria tomado posição ao redor da cabana, camuflando-se e dispondo-se a atuar de guarda.
Assim como de testemunha.
O fato de que o cara, que era indiscutivelmente seu melhor amigo, tivesse que observar todo o assunto era um triturador de testículos que vinha a acrescentar-se a todo o carrossel de cagadas. O problema era, que depois que tudo terminava, Rehv precisava de ajuda para voltar para casa, e Trez era bom nesse tipo de merdas.
Xhex queria ocupar-se, é obvio, mas não se podia confiar nela. Não quando se tratava da princesa. Se Rehv lhe voltasse às costas durante um segundo a cabana poderia terminar com uma nova capa de pintura fresca nas paredes... Da variedade horripilante.
Como sempre, Rehv estacionou no estacionamento de terra que havia do lado escuro da montanha. Não havia outros carros, e esperava que os atalhos que se abriam na parte de atrás do estacionamento estivessem vazios também.
Olhando através do pára-brisa, ante sua vista tudo aparecia vermelho e plano e apesar de que desprezava a sua meio irmã, odiava olhá-la e desejava que todo este sujo e fodido assunto se acabasse de uma vez, seu corpo não estava intumescido de frio, a não ser vivo e ronronando. Dentro de suas calças, seu pênis duro estava preparado e pronto para o que estava a ponto de ocorrer.
Agora se somente pudesse obrigar-se a sair do carro.
Pousou a mão no trinco da porta, mas não pôde puxá-lo.
Havia tanta paz. Quão único perturbava o silêncio eram os leves e metálicos sons que o motor do Bentley fazia ao esfriar.
Sem razão aparente, pensou na adorável risada de Ehlena, e isso foi o que lhe fez abrir a porta. Com um movimento rápido, tirou a cabeça do carro justamente quando seu estômago se fechava como um punho e quase vomita. Quando o frio acalmou sua náusea, tentou tirar Ehlena da mente. Ela era tão limpa e honorável que não podia suportar tê-la em seus pensamentos quando estava a ponto de fazer isto.
O que era uma surpresa.
Proteger a alguém do mundo cruel, do mortal e perigoso, do poluído, o obsceno, e o asqueroso não era seu estilo. Mas se tinha ensinado a si mesmo a fazer justamente isso quando se tratava das únicas três fêmeas normais na vida. Pela que lhe tinha dado a vida, a que tinha criado como se fosse sua própria e a pequena que sua irmã tinha dado à luz recentemente, confrontaria todo tipo de perigos, mataria com suas próprias mãos algo que as ameaçasse, perseguiria e destruiria até a mais mínima ameaça.
E, de algum modo a cálida conversa que teve com a Ehlena mais cedo a punha nessa curta, curta lista.
O que significava que tinha que deixá-la fora. Junto com as outras três.
Tinha-lhe caído bem vivendo como uma puta, porque obtinha um preço caro da que o fodia, e, além disso, a prostituição não era nada mais que o que merecia, considerando o modo em que seu autêntico pai tinha forçado sua concepção sobre sua mãe. Mas ele assumia a responsabilidade. Ele ia à cabana sozinho e ele obrigava seu corpo a fazer o que ninguém o obrigava.
Essas poucas pessoas normais que havia em sua vida tinham que permanecer muito, muito longe de todo esse assunto, e isso significava que quando vinha aqui devia erradicá-las de seu pensamento e seu coração. Mais tarde, logo depois de ter se recuperado, tomado banho e dormido, poderia voltar a recordar os olhos cor toffe de Ehlena e a forma em que cheirava a canela e como riu apesar de si mesmo quando falaram. Por agora, afastou a ela, a sua mãe, a sua irmã e a sua amada sobrinha de seu lóbulo frontal, fechando cada lembrança que tinha em uma seção separada de seu cérebro e enclausurando-os.
A princesa sempre tentava entrar em sua mente, e não queria que soubesse nada daqueles que apreciava ou pelos quais se preocupava.
Quando uma intensa rajada de vento quase lhe fecha violentamente a porta na cabeça, Rehv puxou sua zibelina envolvendo-se frouxamente ao redor de seu corpo, saiu, e fechou o Bentley. Enquanto caminhava para o início do caminho, notou que o terreno estava congelado sob seus Penetre Haans, a terra que rangia sob seus pés era dura e resistente.
Tecnicamente agora o parque estava fechado pela estação, e uma corrente pendurava atravessando a entrada do atalho que levava mais à frente do mapa da montanha e às cabanas de aluguel. Entretanto, era mais provável que fosse o tempo o que mantinha as pessoas afastadas e não o Serviço do Parque Adirondack. Depois de passar sobre a corrente, passou a folha de registro que estava pendurava de uma prancheta apesar de que se supunha que ninguém devia utilizar os atalhos. Ele nunca assinava.
Sim, como se os guardas humanos realmente precisassem saber o que dois sympaths estavam fazendo em uma daquelas cabanas. Ceerrrrtttoooooo.
O bom de dezembro era que nos meses invernais o bosque ficava menos claustrofóbico, seus carvalhos e suas sebes não eram mais que troncos e ramos fracos que deixavam ver bastante da noite estrelada. Ao redor deles, as árvores de folha perene estavam de festa, seus ramos amaciados eram o “se foda” a seus irmãos agora nus, vingando-se por toda a vistosa folhagem outonal que as outras árvores acabavam de mostrar.
Penetrando a linha de árvores, seguiu o atalho principal enquanto este se estreitava gradualmente. Atalhos menores se separavam a direita e esquerda, marcados com rústicos pôsteres de madeira com nomes como Passeio do Sociável, Ataque Relâmpago, Cúpula Extensa e Cúpula Pequena. Ele seguiu em linha reta, seu fôlego formava nuvens ao abandonar seus lábios e o som de seus sapatos sobre a terra congelada parecia muito ruidoso. No alto, a lua se via brilhante, e tinha a forma de uma meia-lua afiada como uma faca, que para ele com seus impulsos symphath decididamente fora de controle, era da cor dos olhos rubi de sua chantagista.
Trez fez sua aparição em forma de uma brisa gelada que percorreu o atalho.
— Hey, amigo. — disse Rehv baixinho.
A voz do Trez flutuou no interior de sua cabeça enquanto a forma Sombra do cara se condensava em uma onda que brilhava tenuamente.
Acaba logo com ela. Quanto mais rápido obtenhamos o que necessitará depois melhor.
— As coisas são como são.
Quanto antes. Melhor.
— Veremos.
Trez lhe amaldiçoou e voltou a se dissolver em uma fria rajada de vento, lançando-se para frente fora de vista.
A verdade era que, por muito que Rehv odiasse vir, algumas vezes não queria partir. Gostava de fazer mal à princesa, e ela era uma boa oponente. Ardilosa, rápida e cruel. Era a única saída para seu lado mau, e, como um corredor faminto de treinamento, precisava do exercício.
Além disso, talvez fosse como seu braço: a podridão se sentia bem.
Rehv tomou o sexto à esquerda, entrando em um atalho que era só o bastante amplo para uma pessoa, e muito em breve, a cabana ficou à vista. A brilhante luz da lua, seus lenhos eram de uma cor parecida ao vinho rosado.
Quando chegou à porta, estendeu a mão esquerda para frente, e quando estava aferrando a alavanca de madeira pensou em Ehlena e em como se preocupou o suficiente por ele para telefonar e perguntar por seu braço.
Durante um breve momento se permitiu um deslize e evocou o som da voz dela em seu ouvido.
Não entendo por que não cuida de você mesmo.
A porta escapou de seu agarre, abrindo-se tão rápido que golpeou contra a parede.
A princesa estava de pé no centro da cabana, com sua brilhante túnica vermelha, rubis em sua garganta e os olhos cor vermelho sangue, toda a cor do ódio. Com seu escasso cabelo enrolado e recolhido por cima de seu pescoço, sua pele pálida, e os escorpiões albinos vivos que usava como brincos, era um horror delicioso, uma boneca Kabuki construída por uma mão malvada. E era malvada, sua escuridão lhe chegava em forma de ondas, emanando do centro de seu peito ainda quando nada nela se movia e seu rosto com forma de lua permanecia inalterado pelo aborrecimento.
Sua voz, por outro lado, era ardilosa como uma folha afiada.
— Nada de cenas de praia esta noite em sua mente. Não, nada de praia esta noite.
Rehv cobriu Ehlena rapidamente com uma imagem de um glorioso estereótipo das Bahamas, todo sol, mar e areia. Era algo que tinha visto na TV anos atrás, em um “especial escapadas”, como havia dito o anunciador, com gente em traje de banho passeando de mãos dadas. Dada sua vivacidade, a imagem era o suspensório perfeito para os argumentos de sua matéria cinza.
— Quem é ela?
— Quem é quem? — disse enquanto entrava.
A cabana estava cálida, graças a ela, um pequeno truque de agitação molecular do ar que se acrescentava quando estava de saco cheio. Não obstante, o calor que gerava não era alegre como o que provinha de um fogo... Era mais da classe de sufoco que conseguia com um caso de diarréia.
— Quem é a fêmea que havia em sua mente?
— Só uma modelo de um anúncio de TV, minha queridíssima cadela. — disse tão brandamente como ela. Sem lhe dar as costas, fechou a porta tranqüilamente — Ciumenta?
— Para estar ciumenta, teria que estar ameaçada. E isso seria absurdo. — a princesa sorriu — Mas penso que deve me dizer quem é ela.
— Isso é tudo o que quer fazer? Falar? — Rehv deliberadamente deixou que seu casaco se abrisse e embalou em sua mão o pênis e o pesado escroto — Normalmente quer de mim algo mais que conversa.
— Muito certo. O melhor e mais elevado uso para você é o que os humanos chamam... Um consolador, não? Um brinquedo para uma fêmea com o que dar prazer a si mesma.
— Fêmea não é necessariamente a palavra que utilizaria para te descrever.
— Certamente. Bem amada seria melhor.
Ela elevou uma mão horrenda até seu penteado, deslizando seus dedos ossudos de três articulações sobre a cuidadosa obra, seu pulso era mais fino que a asa de uma batedeira de arame. Seu corpo não era diferente: todos os symphaths estavam constituídos como jogadores de xadrez, não como zagueiros, o que estava de acordo com sua preferência de lutar com a mente e, não com o corpo. A vestimenta que usavam, não era nem de machos nem de fêmeas, a não ser uma versão destilada de ambos os sexos, e por isso a princesa o desejava como o fazia. Gostava de seu corpo, seus músculos, sua óbvia e brutal masculinidade, e habitualmente queria ser fisicamente refreada durante o sexo... Algo que seguro como a merda não conseguia em casa. Pelo que ele sabia a versão symphath do ato se limitava a algumas posturas mentais seguidas de duas esfregações e um ofego por parte do macho. Além disso, estava disposto a apostar que o tio de ambos tinha o pênis como o de um hamster, e os testículos do tamanho de borrachas de lápis.
Não é que alguma vez o tivesse comprovado… Mas vamos, o cara não era exatamente uma comparação de testosterona.
A princesa se movia pela cabana como se estivesse desdobrando sua graça, mas havia um propósito em deslocar-se de janela em janela e olhar para fora.
Demônios, sempre com as janelas.
— Onde está seu cão guardião esta noite? — disse ela.
— Sempre venho sozinho.
— Mente a seu amor.
— Por que ia querer que alguém visse isto?
— Porque sou formosa. — deteve-se diante dos vidros mais próximos à porta — Está aí à direita, junto ao pinheiro.
Rehv não precisava inclinar-se a um lado e olhar para saber que tinha razão. É obvio que ela podia sentir o Trez, só que não podia estar completamente segura de onde estava ou o que era.
Ainda assim, disse:
— Não há nada exceto árvores.
— Mentira.
— Tem medo das sombras, Princesa?
Quando ela olhou sobre o ombro, o escorpião albino que pendurava do lóbulo de sua orelha também fez contato ocular com ele.
— O problema não é o medo. É a deslealdade. Não suporto a deslealdade.
— A menos que seja você quem a está praticando, é obvio.
— Oh, sou bastante leal a você, meu amor. Exceto pelo irmão de nosso pai, como já sabe. — girou e quadrou os ombros em toda sua altura — Meu consorte é o único além de você. E vim aqui sozinha.
— Suas virtudes são abundantes, embora como disse, por favor, leva a mais em sua cama. Toma a cem machos mais.
— Ninguém poderia comparar-se contigo.
Dava vontade de vomitar em Rehv cada vez que lhe prodigalizava um falso elogio, e ela sabia. Pelo que, naturalmente insistia em dizer merdas como essa.
— Diga-me. — disse para mudar de assunto — Já que tirou o tema de nosso tio, como vai o muito idiota?
— Ainda te acredita morto. Assim sigo honrando minha parte de nossa relação.
Rehv colocou a mão no bolso de seu casaco de zibelina e tirou os duzentos e cinqüenta mil dólares em rubis cortados. Atirou o feliz pacotinho ao chão para a borda da túnica dela e tirou o casaco. A jaqueta de seu traje e seus sapatos foram o seguinte. Depois suas meias três quartos de seda, suas calças e sua camisa. Nenhum boxer que tirar. Para que incomodar-se?
Rehvenge permaneceu ante ela completamente ereto, com os pés bem plantados no chão, respirando tranqüilamente, inalando e exalando com seu forte peito.
— E estou preparado para completar nossa transação.
Os olhos rubi desceram por seu corpo e se detiveram em seu sexo, abriu a boca, e percorreu o lábio inferior com sua língua bífida. Em suas orelhas, os escorpiões retorceram suas extremidades com espera, como se respondessem a seu arrebatamento sexual.
A princesa apontou para a bolsa de veludo.
— Recolhe isso e me dê isso apropriadamente.
— Não.
— Recolhe-o.
— Você gosta de se inclinar diante de mim. Por que te roubar seu hobby favorito?
A princesa colocou as mãos nas longas mangas de sua túnica e foi para ele da forma suave com que se moviam os symphaths, virtualmente flutuando sobre o chão de madeira. Quando se aproximou, ele manteve sua posição, porque preferia morrer e apodrecer antes de dar um passo atrás para o prazer dela.
Olharam-se um ao outro, e no profundo e maligno silêncio, ele sentiu uma terrível comunhão com ela. Eram iguais, e embora fosse um pensamento que odiava, sentia alívio em ceder a sua autêntica natureza.
— Recolhe-o...
— Não.
Ela descruzou os braços e uma de suas mãos de seis dedos rasgou o ar em direção a seu rosto, a bofetada foi forte e aguda como seus olhos rubi. Rehv se negou a deixar que sua cabeça retrocedesse pelo impacto enquanto o som reverberava tão ruidosamente como um prato quebrando-se.
— Quero que me pague seu tributo adequadamente. E quero saber quem é ela. Percebi seu interesse por esta antes... Quando está longe de mim.
Rehv manteve o anúncio de praia aceso em seu lóbulo frontal e soube que ela ostentava.
— Não me inclino perante você nem ante ninguém, cadela. Assim, se quiser essa bolsa, vai ter que te tocar os dedos dos pés. E quanto ao que acredita saber, está enganada. Não há ninguém para mim.
Esbofeteou-o de novo, a ardência desceu por sua medula espinhal e pulsou na cabeça de seu pênis.
— Inclina-te ante mim cada vez que vem aqui com seu patético pagamento e seu sexo faminto. Necessita isto, necessita-me.
Ele levou sua cara mais perto da dela.
— Não adule a você mesma, princesa. É uma obrigação, não uma escolha.
— Engano. Vive para me odiar.
A princesa pegou seu pênis na mão, envolvendo-o firmemente com seus dedos mortos. Quando sentiu o contato e a carícia, seu estômago revolveu... E ainda assim sua ereção se umedeceu ante a atenção inclusive quando não podia suportá-la, embora não a encontrava absolutamente atrativa, seu lado symphath estava completamente preso nesta batalha de vontades, e isso era o erótico.
A princesa se inclinou para ele, esfregando com seu dedo indicador a pua que tinha na base de sua ereção.
— Seja quem for essa fêmea de sua cabeça, não pode competir com o que temos.
Rehv pôs as mãos dos lados do pescoço de sua chantagista e pressionou com os polegares até que ela ofegou.
— Posso te arrancar a cabeça da coluna.
— Não o fará. — lhe passou os lábios vermelhos e acetinados pela garganta e o batom de pimentas moídas que levava o queimou — Porque não poderíamos fazer isto se estivesse morta.
— Não subestime a atração da necrofilia. Especialmente quando se trata de você. — agarrou a parte de trás de seu coque e puxou com força — Vamos ao ponto?
— Depois que você recolha...
— Isso não vai acontecer. Não me inclino. — com sua mão livre, rasgou a frente da túnica, expondo a malha fina do body que sempre usava. Girando-a, forçou-a a ficar de cara à porta, procurando entre as dobras de vermelho cetim enquanto ela ofegava. A malha que vestia estava empapada de veneno de escorpião, e enquanto abria caminho para seu centro, o veneno empapava sua pele. Com sorte, poderia foder um momento enquanto ainda conservava a túnica posta...
A princesa se desmaterializou fora de suas garras e voltou a tomar forma justamente ante a janela através da qual Trez poderia ver. Com um rápido movimento, sua túnica a abandonou, eliminada por sua vontade e sua carne foi revelada. Estava constituída como a serpente que era, muitos nervos, e muito magra e quando a luz da lua se refletia sobre os fios entremeados de seu reluzente body dava a impressão de ter escamas.
Seus pés estavam plantados de cada lado da bolsa de rubis.
— Adorará-me. — disse isso, passando a mão entre as coxas e acariciando a fenda — Com a boca.
Rehv se aproximou e ficou de joelhos. Levantando o olhar para ela, disse com um sorriso:
— E será você quem recolherá essa bolsa.
Capítulo 18
Ehlena se deteve fora do necrotério da clínica, com ambos os braços rodeando seu peito, o coração na garganta e as preces saindo de seus lábios. Apesar de seu uniforme, não estava esperando em caráter profissional e o cartaz de SÓ PESSOAL que estava ao nível de seus olhos a freava tanto como se fosse alguém com roupas comuns. Enquanto os segundos passavam lentos como séculos, olhava as letras como se tivesse esquecido como ler. A palavra só estava em uma metade das portas, e pessoal na outra. Em letras vermelhas maiúsculas. Debaixo das letras em português, estava a tradução na Antiga Língua.
Alix tinha atravessado as portas fazia um momento com o Havers a seu lado.
Por favor… Que não seja Stephan. Por favor, não deixe que o John Doe seja Stephan.
O pranto que se filtrou através das portas de SÓ PESSOAL provocou que fechasse os olhos, tão forte que fez com que a cabeça desse voltas.
Depois de tudo, não a tinha deixado plantada.
Dez minutos depois Alix saiu, tinha o rosto pálido e a parte inferior dos olhos avermelhada devido à quantidade de vezes que enxugou as abundantes lágrimas. Havers estava logo atrás dele, o médico se mostrava igualmente desconsolado.
Ehlena se adiantou e pegou ao Alix entre seus braços.
— Sinto tanto.
— Como… Como digo a seus pais… Eles não queriam que viesse até aqui… Oh, Deus…
Ehlena sustentou o corpo estremecido do macho até que Alix se endireitou e arrastou ambas as mãos por seu rosto.
— Estava desejando sair contigo.
— E eu com ele.
Havers pôs sua mão sobre o ombro de Alix.
— Quer levar isso contigo?
O macho olhou para trás, às portas, e fechou a boca até que se converteu somente em uma fina linha.
— Vamos querer começar com os... Rituais mortuários... Mas...
— Você gostaria que o amortalhasse? — perguntou Havers brandamente.
Alix fechou os olhos e assentiu.
— Não podemos deixar que sua mãe veja seu rosto. Isso a mataria. Eu o faria, mas...
— Cuidaremos dele muito bem. — disse Ehlena — Pode confiar que nos ocuparemos com respeito e reverência.
— Não acredito que possa… — Alix olhou em sua direção — Está mal de minha parte?
— Não. — disse sustentando ambas as mãos — E lhe prometo, faremos com amor.
— Mas deveria ajudar…
— Pode confiar em nós. — enquanto o macho piscava rapidamente, Ehlena o guiou gentilmente, afastando-o das portas do necrotério — Quero que vá esperar em uma das salas de estar familiares.
Ehlena acompanhou o primo de Stephan pelo corredor até chegar ao vestíbulo onde estavam as salas de exame. Quando outra enfermeira passou por ali, Ehlena lhe pediu que o levasse a uma sala de espera privada e logo retornou ao necrotério.
Antes de entrar, respirou profundamente e endireitou os ombros. Quando entrou empurrando as portas, cheirou ervas e viu Havers de pé junto a um corpo coberto por um lençol branco. O andar de Ehlena fraquejou.
— Meu coração está oprimido. — disse o médico — Tão oprimido. Não queria que esse pobre moço visse assim a seu familiar de sangue, mas depois de identificar suas roupas, ele insistiu. Tinha que vê-lo.
— Porque tinha que assegurar-se.
Era o que ela teria necessitado ao estar nessa situação.
Havers levantou o lençol, dobrando-o sobre o peito e Ehlena tampou bruscamente a boca com a mão para conter um ofego.
O rosto de Stephan, golpeado e sujo, estava quase irreconhecível.
Ela tragou uma vez. E outra vez. E uma terceira vez.
Querida Virgem Escriba, vinte e quatro horas antes, ele estava vivo. Vivo e no centro, desejando vê-la. Logo uma má decisão de ir para um lado e não para o outro o tinha feito terminar aqui, jazendo sobre uma cama fria de aço inoxidável, a ponto de ser preparado para seu ritual mortuário.
— Trarei as mortalhas. — disse bruscamente Ehlena quando Havers tirou completamente o lençol do corpo.
O necrotério era pequeno, com apenas oito unidades de refrigeração e duas mesas de exame, mas estava bem provido quanto a equipamento e fornecimentos. As mortalhas cerimoniais eram guardadas em um armário próximo do escritório, e quando abriu a porta, saiu uma fresca baforada herbal. As bandas de linho tinham sete centímetros e meio de largura e vinham em cilindros do tamanho dos dois punhos de Ehlena. Empapados de uma combinação de romeiro, lavanda e sal marinho, irradiavam um aroma suficientemente prazenteiro que, não obstante, faziam-na retroceder cada vez que captava aquele odor.
Morte. Era o aroma da morte.
Tirou dez cilindros e os empilhou em seus braços, logo voltou onde estava o corpo de Stephan totalmente exposto, com apenas um tecido sobre seus quadris.
Depois de um momento, Havers saiu de um vestiário que havia no fundo, usando uma túnica negra atada com uma faixa negra. Ao redor do pescoço, suspensa de uma corrente de prata larga e pesada, tinha uma ferramenta ornamentada para cortar, muito afiada que era tão antiga, que o trabalho de filigrana da manga tinha curvas obscurecidas dentro de seu curvilíneo desenho.
Ehlena abaixou a cabeça enquanto Havers elevava à Virgem Escriba as preces requeridas para o pacífico descanso de Stephan dentro do tenro abraço do Fade. Quando o doutor esteve preparado, passou-lhe o primeiro dos cilindros aromáticos e começaram com a mão direita de Stephan, como era adequado. Com muitíssima gentileza e cuidado, sustentou o membro frio e cinza no ar, enquanto Havers envolvia a carne apertadamente, voltando a pôr a tira de linho sobre si mesmo. Quando chegaram até o ombro, moveram-se para a perna direita, depois foi a mão esquerda, o braço esquerdo e logo a perna esquerda.
Quando tiraram o tecido de seus quadris, Ehlena se deu volta, como era requerido por ser fêmea. Se tivesse sido um corpo feminino, não o teria que fazer, embora um assistente masculino o teria feito por respeito. Depois que os quadris foram envoltos, enfaixaram o tronco até o peito e cobriram os ombros.
Com cada passada do linho, o aroma a ervas golpeava de novo o nariz até que sentiu como se não pudesse respirar.
Ou talvez não fosse o aroma que havia no ar, mas sim os pensamentos que havia em sua mente. Ele teria sido seu futuro? Teria conhecido seu corpo? Poderia ter sido seu hellren e o pai de seus filhos?
Perguntas que nunca seriam respondidas.
Ehlena franziu o cenho. Não, em realidade, todas tinham sido.
Cada uma delas com um não.
Enquanto passava outro cilindro ao médico da raça, perguntou-se se Stephan tinha vivido uma vida plena e satisfatória.
Não, pensou. Tinha sido extorquido. Totalmente extorquido.
Enganado.
O rosto era o último em ser coberto e sustentou a cabeça de Stephan enquanto o doutor enrolava e enrolava o linho lentamente. Ehlena respirava com dificuldade e só quando Havers cobriu os olhos, uma lágrima deixou os próprios e aterrissou na mortalha branca.
Havers pôs a mão brevemente em seu ombro e logo terminou o trabalho.
O sal que havia nas fibras do linho funcionava como um selador para que nenhum fluído filtrasse através da malha, e o mineral também preservava o corpo para o sepulcro. As ervas serviam para a função óbvia no curto prazo de mascarar qualquer aroma, mas também eram emblemas dos frutos da terra, os ciclos de crescimento e morte.
Com uma maldição, voltou para o armário e retirou um sudário negro, com o qual Havers e ela envolveram Stephan. O exterior negro simbolizava a carne mortal corruptível, o interior branco, a pureza e incandescência da alma dentro de seu lar eterno no Fade.
Ehlena tinha escutado uma vez que os rituais serviam a importantes propósitos além de seu aspecto prático. Supunha-se que ajudavam a cura psicológica, mas estando junto ao corpo morto de Stephan sentia que isso era pura merda. Era uma aceitação falsa, uma patética tentativa para conter as exigências de um destino cruel com um tecido de aroma doce.
Não era nada mais que uma capa sobre um sofá manchado de sangue.
Detiveram-se junto à cabeça de Stephan para lhe oferecer um momento de silêncio e logo empurraram a maca deslocando-a do fundo do necrotério para o sistema de túneis que corriam subterraneamente até as garagens. Ali, puseram o Stephan em uma das quatro ambulâncias que estavam feitas para parecer exatamente com as que os humanos usavam.
— Levarei a ambos a casa dos pais. — disse ela.
— Necessita que a acompanhem?
— Parece-me que para o Alix será melhor não ter audiência.
— Embora tomará cuidado, verdade? Não só com eles, mas também com sua própria segurança?
— Sim.
Cada uma das ambulâncias tinha uma pistola debaixo do assento do condutor, e assim que Ehlena começou a trabalhar na clínica, Catya lhe ensinou a disparar: não cabia dúvida, de que podia dirigir algo que ficasse em seu caminho.
Quando Havers e ela fecharam as portas duplas da ambulância, Ehlena olhou para a entrada do túnel.
— Parece que vou voltar para a clínica pelo estacionamento. Preciso de ar.
Havers assentiu.
— E eu farei o mesmo. Dou-me conta que também necessito ar.
Juntos saíram à noite fria e clara.
Como a boa puta que Rehv era fez tudo o que lhe pediram. O fato de que fosse rude e cruel era uma concessão a seu livre-arbítrio... E novamente, parte da razão pela qual a princesa gostava do assunto que tinham.
Quando tudo terminou e ambos estiveram esgotados — ela por ter tantos orgasmos, ele porque o veneno de escorpião tinha penetrado profundamente em sua corrente sanguínea — esses malditos rubis seguiam onde os tinha jogado. No chão.
A princesa estava escancarada contra o batente da janela, ofegando dificultosamente, com seus dedos de três nódulos estendidos, provavelmente porque sabia que o enojavam como a merda. Ele estava do outro lado da cabana, tão longe dela como podia, de pé, cambaleando.
Enquanto tentava respirar, odiou que o ar da cabana cheirasse a sexo sujo. Do mesmo modo, tinha o aroma dela por todo seu corpo, cobrindo-o, sufocando-o tanto, que apesar de ter sangue symphath em suas veias, sentia vontade de vomitar. Ou possivelmente isso era devido ao veneno. Quem merda podia saber?
Ela levantou uma de suas mãos ossudas e apontou para a bolsa de veludo.
— Le-van-ta-os.
Os olhos de Rehv se travaram com os dela, e sacudiu a cabeça de um lado a outro lentamente.
— Será melhor que volte para nosso tio. — disse com tom áspero — Estou disposto a apostar que se te ausentar por muito tempo ele desconfiará.
Com isso, a tinha. O irmão do pai de ambos era um sociopata, calculista e desconfiado. Igual a eles.
Tudo ficava em família, como estavam acostumados a dizer.
A túnica da princesa se levantou do chão e flutuou para sua proprietária, e enquanto pendurava no ar a seu lado, retirou do bolso interior uma bandagem longa e vermelha. Deslizando-a entre suas pernas, envolveu o sexo, mantendo dentro o que ele tinha deixado. Depois se vestiu, e cobriu a metade da túnica que ele tinha esmigalhado, formando uma dobra sob a capa superior. O cinturão de ouro, ou ao menos ele assumia que era de ouro, dada a forma em que refletia a luz, foi o seguinte.
— Envie lembranças a meu tio. — disse Rehv arrastando as palavras — Ou... Não.
— Le... Van... Ta... Os.
— Ou se inclina para recolher essa bolsa, ou vai sem ela.
Os olhos da princesa cintilaram com o tipo de rancor que fazia tão divertido discutir com assassinos, e permaneceram olhando um ao outro durante compridos e hostis minutos.
A princesa se quebrou. Exatamente como ele havia dito que o faria.
Para sua eterna satisfação, foi ela quem os recolheu, sua capitulação quase o fez gozar de novo, sua lingüeta ameaçou enganchar-se apesar de que não havia nada contra o que travar-se.
— Poderia ser rei. — disse ela estendendo a mão, e fazendo com que a bolsa de veludo com os rubis se elevasse do chão — Mata-o e poderá ser rei.
— Se mato a você, poderia ser feliz.
— Nunca será feliz. É de uma raça separada, vivendo uma mentira entre inferiores. —sorriu e uma alegria verdadeira se refletiu em seu rosto — Exceto aqui comigo. Aqui, pode ser honesto. Até o próximo mês, meu amor.
Atirou-lhe um beijo com suas horríveis mãos e se desmaterializou, dissipando-se da forma em que tinha feito o fôlego dele fora da cabana, devorado pelo fino ar da noite.
Os joelhos de Rehv cederam e se derrubou no chão, aterrissando em uma pilha de ossos. Jazendo sobre as pranchas rústicas, era consciente de tudo: os músculos de suas coxas com cãibras, o comichão na ponta de seu pênis quando o prepúcio voltou para seu lugar, o tragar compulsivo causado pelo veneno de escorpião.
Enquanto a frieza da cabana se filtrava para fora, náuseas o percorreram como uma maré fétida e oleosa e seu estômago se fechou como um punho, formando um montão de “vamos daqui” que apertava sua garganta. As ânsias de vômito instintivas seguiram as ordens e abriu muito a boca, mas não saiu nada.
Sabia bem que não devia comer antes de ter um encontro.
Trez atravessou a porta tão silenciosamente que não foi até que as botas do cara estiveram frente a seu rosto que Rehv notou que seu melhor amigo estava com ele.
A voz do segurança foi amável:
— Vamos te tirar daqui.
Rehv esperou uma interrupção nas ânsias de vomito, para tratar de levantar do chão.
— Deixa... Que me vista.
O veneno de escorpião disparou a toda velocidade através de seu sistema nervoso central, interferindo com sua auto-estrada neuronal e conseqüentemente, fazendo com que arrastar seu corpo até onde estavam suas roupas envolvesse um desdobramento vergonhoso de debilidade. O problema era que o antídoto devia permanecer no carro, do contrário a princesa o teria encontrado, e mostrar uma debilidade tão substancial como essa era como entregar sua arma carregada a seu inimigo.
Evidentemente Trez perdeu a paciência com o show, porque se aproximou e recolheu o casaco.
— Só ponha isto assim poderemos te tratar.
— Vestirei-me. — era o orgulho da puta.
Trez amaldiçoou e se ajoelhou com o casaco.
— Porra, Rehv...
— Não… — um ofego selvagem o interrompeu e fez com que caísse sobre o chão, oferecendo uma rápida aproximação dos nós das pranchas de pinheiro.
Caralho, estava mau esta noite. Pior do que alguma vez tinha estado.
— Rehv, sinto muito, mas vou tomar o controle.
Trez ignorou os intentos patéticos de Rehv por rechaçar sua ajuda, e depois de envolvê-lo com a zibelina, seu amigo o levantou e o carregou para fora como uma peça quebrada de equipe.
— Não pode continuar fazendo isto. — disse Trez enquanto suas pernas longas os levavam rapidamente para o Bentley.
— Observe.
Para manter a ele e a Xhex vivos e no mundo livre, tinha que fazê-lo.
Capítulo 19
Rehv despertou no seu dormitório de seu grande rancho nas Adirondacks que utilizava como refúgio. Podia dizer onde estava pelas janelas que iam do chão ao teto, o alegre fogo que tinha em frente, e o fato de que o pé da cama tinha putti esculpidos em mogno. O que não estava claro era quantas horas tinham passado desde seu encontro com a princesa. Uma? Cem?
Do outro lado do tênue cômodo, Trez estava sentado em um sofá cor vermelho escuro, lendo à débil luz amarela de uma luminária de mesa.
Rehv pigarreou.
— Que livro é?
O segurança elevou o olhar, os olhos amendoados enfocando-se com uma acuidade da qual Rehv poderia ter prescindido.
— Está acordado.
— Que livro?
— É “O dicionário da morte das Sombras”.
— Leitura ligeira. E eu aqui pensando que fosse fã de Candace Bushnell.
— Como se sente?
— Bem. Genial. Animado como a merda. — Rehv grunhiu enquanto se impulsionava mais alto sobre os travesseiros. Apesar do casaco de zibelina, que tinha em volta do corpo nu, e das colchas, mantas e edredons de plumas que tinha em cima, seguia tão frio como o rabo de um pingüim, assim obviamente Trez lhe tinha injetado muita dopamina. Mas pelo menos a antitoxina tinha funcionado, os fôlegos e a falta de fôlego tinham desaparecido.
Trez fechou lentamente a capa do livro antigo.
— Estou me preparando, isso é tudo.
— Para entrar em sacerdócio? Pensava que toda a coisa do rei era sua especialidade.
O segurança pôs o livro na mesa baixa que tinha ao lado e se elevou em toda sua estatura. Depois de esticar todo o corpo, aproximou-se da cama.
— Quer alimento?
— Sim. Estaria bem.
— Dê-me quinze minutos.
Quando a porta se fechou atrás do macho, Rehv procurou ao seu redor e encontrou o bolso interior da zibelina. Quando tirou o telefone e o comprovou, não havia mensagens. Nenhuma mensagem de texto.
Ehlena não se aproximou, nem se pôs em contato com ele. Mas então, por que teria que fazê-lo?
Olhou fixamente o telefone e riscou o teclado com o polegar. Ansiava muitíssimo ouvir sua voz, como se escutá-la pudesse apagar tudo o que tinha acontecido nessa cabana.
Como se ela pudesse fazer desaparecer as duas décadas e meia passadas.
Rehv entrou em seus contatos e fez aparecer seu número na tela. Era provável que estivesse no trabalho, mas, se deixava uma mensagem, possivelmente o ligaria no descanso. Duvidou, mas logo pressionou enviar e pôs o telefone em sua orelha.
No instante em que ouviu o sinal de chamada, teve uma imagem vívida e vil dele tendo relações sexuais com a princesa, de seus quadris amassando, da luz da lua lançando sombras obscenas sobre o chão rústico.
Terminou a chamada com um murro rápido, sentindo como se seu corpo estivesse revestido de merda feita loção.
Deus, não havia suficientes banhos no mundo para limpá-lo o bastante para ser digno de falar com Ehlena. Nem bastante sabão, nem água sanitária, nem bucha. Enquanto a imaginava com seu antigo uniforme de enfermeira, o cabelo loiro avermelhado recolhido para trás em um pulcro coque, e seus silenciosos sapatos brancos, soube que se alguma vez a tocasse a mancharia pela vida toda.
Com o polegar intumescido, acariciou a tela plana do telefone, como se fosse sua bochecha, logo deixou que a mão caísse na cama. A vista das brilhantes veias vermelhas do braço recordou um par de coisas mais que tinha feito com a princesa.
Nunca tinha pensado que seu corpo fosse um dom especial. Era grande e musculoso, por isso era útil, e ao outro sexo gostava o que significava que era uma espécie de vantagem. E funcionava bem… Bom, exceto pelos efeitos secundários que lhe ocasionava a dopamina e a alergia ao veneno de escorpião.
Mas, realmente a quem importava?
Convexo na cama na quase escuridão, com o telefone na mão, viu mais cenas horrorosas de seu tempo com a princesa… Ela lhe mamando, ele agachando-se e fodendo-a por detrás, sua boca entre as coxas dela. Recordou o que sentia quando a lingüeta de seu pênis se travava e ambos ficavam enganchados.
Então pensou em Ehlena medindo sua pressão… E em como tinha dado um passo atrás, afastando-se dele.
Tinha razão ao ter feito isso.
Era um equívoco ligar para ela.
Com deliberado cuidado, moveu o polegar pelos botões e entrou em sua informação de contato. Não se deteve nem uma vez enquanto a apagava do telefone, e quando desapareceu, um calor inesperado lhe encheu o peito… Indicando que de acordo com lado de sua mãe, fazia o correto.
A próxima vez que fosse à clínica, pediria outra enfermeira. E, se voltasse a ver Ehlena, a deixaria em paz.
Trez entrou com uma bandeja de flocos de aveia, um pouco de chá e algumas torradas.
— Hmmm. — disse Rehv sem entusiasmo.
— Seja um menino bom e termine isso. Na próxima refeição trarei ovos com toucinho.
Quando a bandeja esteve assentada sobre suas pernas, Rehv atirou o telefone sobre a pele e levantou a colher. Bruscamente, e por nenhuma absoluta e positiva razão em especial, disse:
— Esteve apaixonado alguma vez, Trez?
— Não. — o segurança retornou a sua cadeira no rincão, o abajur curvo iluminou seu rosto bonito e escuro — Vi iAm tentar e decidi que não era para mim.
— iAm? Não me foda. Não sabia que seu irmão tinha tido uma garota.
— Não fala dela, e nunca a conheci. Mas durante um tempo se sentiu miserável do modo em que só uma fêmea pode pôr a um tipo.
Rehv fez girar o açúcar mascavo que estava polvilhado sobre a aveia.
— Acredita que alguma vez te emparelhará?
— Não. — Trez sorriu, e seus perfeitos dentes brancos cintilaram — Por que as perguntas?
Rehv levou a colher à boca e comeu.
— Por nenhuma razão.
— Sim. Certo.
— Estes flocos de aveia são fantásticos.
— Você odeia os flocos de aveia.
Rehv riu um pouco e seguiu comendo para sossegar-se, pensando que o tema do amor não era de sua incumbência. Mas o trabalho, seguro como o inferno que sim o era.
— Aconteceu algo nos clubes? — perguntou.
— Tudo vai como a seda.
— Bem.
Rehv despachou lentamente a Quaker Oats, perguntando-se por que, se tudo ia perfeito e de primeira em Caldwell, tinha uma sensação de desgosto no intestino.
Provavelmente, pensou, era a aveia.
— Disse a Xhex que estou bem, verdade?
— Sim. — disse Trez, levantando o livro que tinha estado lendo — Menti.
Xhex estava sentada atrás de seu escritório e olhava fixamente a seus dois melhores seguranças, Big Rob e Silent Tom. Eram humanos, mas eram preparados e com seus jeans baixos, emitiam a enganosa sensação de tranqüilidade que ela procurava.
— O que podemos fazer por você, chefe? —perguntou Big Rob.
Inclinando-se para frente em sua cadeira, tirou dois montões de notas do bolso traseiro de suas calças de couro. Mostrava-os deliberadamente, dividindo-os em duas pilhas e deslizando-os para os homens.
— Preciso que façam um trabalho extra-oficial.
Seus assentimentos foram tão rápidos como suas mãos sobre essas notas.
— O que você quiser. — disse Big Rob.
— Durante o verão, tivemos um barman que despedimos por roubar. O tipo se chamava Grady. Recordam…
— Vi essa merda a respeito de Chrissy no periódico.
— Fodido bastardo. — Silent Tom interveio pela primeira vez.
Xhex não se surpreendeu que soubessem toda a história.
— Quero que encontrem Grady. — quando Big Rob começou a fazer soar seus nódulos, ela sacudiu a cabeça — Não. O único que quero que façam é que me consigam um endereço. Se os vir, cumprimentem de longe e se afastem. Está claro? Não façam mais que lhe roçar a manga.
Ambos sorriram cruelmente.
— Nenhum problema, chefe. — murmurou Big Rob — O guardaremos para você.
— O DPC o busca também.
— Sem dúvida que sim.
— Não queremos que a polícia saiba o que estão fazendo.
— Nenhum problema.
— Ocuparei-me de cobrir seus turnos. Quanto mais rápido o encontrarem, mais feliz estarei.
Big Rob olhou ao Silent Tom. Após um momento, tiraram as notas que lhes tinha dado dos bolsos e as deslizaram pela mesa.
— Faremos o correto pela Chrissy, chefe. Não se preocupe.
— Com vocês nisto, não o farei.
A porta se fechou atrás deles, e Xhex passou as palmas acima e abaixo pelas coxas, forçando aos cilícios que tinha nas pernas a entrar mais profundamente em sua pele. Estava ardendo pela necessidade de sair ela mesma, mas com Rehv no norte e os entendimentos que fariam esta noite, não podia deixar o clube. E o que era igualmente importante, quanto ao Grady não ia poder fazer os preparativos ela mesma. Esse detetive da homicídios a estava vigiando.
Transladando os olhos ao telefone, quis amaldiçoar. Trez a tinha ligado mais cedo para dizer que Rehv tinha terminado o negócio com a princesa, e o som da voz do segurança tinha indicado o que suas palavras não diziam: o corpo de Rehv não ia agüentar muita tortura mais.
Outra situação mais que se via forçada a agüentar, sentada sobre seu rabo, esperando.
A impotência não era um estado com o qual se sentisse cômoda, mas quando se tratava da princesa, estava acostumada a sentir-se impotente. Fazia vinte anos, quando as escolhas de Xhex os tinham posto nesta situação, Rehv lhe havia dito que se ocuparia das coisas com uma condição: deixaria dirigi-lo a sua maneira sem intervir. Tinha feito jurar que permaneceria afastada, e embora a matasse, tinha cumprido a promessa e vivia com a realidade de que Rehv se viu forçado a cair nas mãos dessa puta por causa dela.
Maldita fora desejava que perdesse a paciência e arremetesse contra ela. Só uma vez. Em troca, seguia agüentando, pagando com seu corpo a dívida que ela tinha gerado.
Ela o tinha convertido em uma puta.
Xhex deixou o escritório porque não podia suportar passar mais tempo consigo mesma, e quando esteve no clube rezou para que houvesse uma escaramuça na parte do povo, como um triângulo amoroso explodindo, onde algum tipo esbofeteasse a outro por uma garota com lábios de peixe e tetas de plástico. Ou possivelmente um encontro no banheiro de homens da sobreloja se fosse ao traste. Merda! Estava tão desesperada que inclusive agarraria a um bêbado de saco cheio com seu patrão ou algum casal em um rincão escuro que tivessem levado o manuseio cruzando a linha até a penetração.
Precisava golpear algo e sua melhor oportunidade era com as massas. Se só houvesse…
Era sua sorte. Todos estavam se comportando.
Miseráveis estúpidos.
Finalmente, terminou indo à seção VIP porque estava deixando os seguranças da pista dementes ao ficar rodando por ali em busca de briga. E, além disso, tinha que usar os músculos em um trato de maior importância.
Ao atravessar a corda de veludo, seus olhos foram diretos à mesa da Irmandade. John Matthew e seus companheiros não estavam ali, mas bom, sendo tão cedo, estariam fora caçando lessers. Os engolidores de Corona viriam mais tarde, se é que o fariam.
Não lhe importava se John viria.
Nada absolutamente.
Aproximando-se de iAm, disse:
— Preparados?
O segurança assentiu.
— Rally tem o produto preparado. Os compradores devem estar aqui em vinte minutos.
— Bem.
Essa noite levariam a cabo dois entendimentos de seis cifras por coca, e com o Rehv fora de combate e Trez acompanhando-o no norte, ela e iAm estavam no comando das transações. Embora o dinheiro fosse trocar de mãos no escritório, o produto ia ser carregado nos carros, no beco traseiro, porque quatro quilogramas de pó sul-americano puro não era o tipo de coisas que ela quisesse que estivesse dando voltas pelo clube. Merda, o fato de que os compradores fossem chegar com maletas contendo dinheiro em efetivo era bastante problemático.
Xhex estava na porta do escritório quando vislumbrou a Marie-Terese insinuando-se a um homem com terno. O homem a olhava com admiração e maravilha, como se fosse o equivalente feminino de um carro esportivo que alguém acabava de lhe dar as chaves.
A luz cintilou na aliança de casamento que levava quando estendeu a mão para a carteira.
Marie-Terese sacudiu a cabeça e levantou sua elegante mão para detê-lo, logo pôs ao absorto homem de pé e precedeu o caminho por volta dos banheiros particulares da parte de trás, onde o dinheiro trocaria de mão.
Xhex girou e se encontrou frente à mesa da Irmandade.
Enquanto olhava o lugar onde John Matthew estava acostumado a sentar-se habitualmente, pensou no John[40] mais recente de Marie-Terese. Xhex estava disposta a apostar que o HDP que estava a ponto de soltar quinhentos dólares para ser mamado ou fodido ou possivelmente mil por ambos, não olhava a sua mulher com esse tipo de excitação e luxúria. Era a fantasia. Ele não sabia nada a respeito de Marie-Terese, não tinha nem idéia de que fazia dois anos seu filho tinha sido seqüestrado por seu ex-marido e que ela estava trabalhando para pagar o custo da volta do menino. Para ele, ela era um magnífico pedaço de carne, algo com o que brincar e ser deixado atrás. Prolixo. Limpo.
Todos os John eram assim.
E também o era o John de Xhex. Ela era uma fantasia para ele. Nada mais. Uma mentira erótica que evocava para fazer uma punheta… O que realmente não era algo do que o culpasse, porque ela estava fazendo o mesmo com ele. E a ironia era que ele era um dos melhores amantes que jamais tinha tido, embora isso fosse porque podia fazer algo que quisesse durante tanto tempo como necessitasse para se saciar, e nunca havia queixa, reservas nem pedidos.
Prolixo. Limpo. A voz de iAm saiu do auricular.
— Os compradores acabam de entrar.
— Perfeito. Vamos fazê-lo.
Terminaria com os dois entendimentos, e logo tinha seu próprio trabalho particular que fazer. Agora, isso era algo que valia a pena ansiar. Ao final da noite, ia conseguir exatamente a classe de liberação que necessitava.
Do outro lado da cidade, em um tranqüilo beco sem saída em uma vizinhança segura, Ehlena estava estacionada diante de uma modesta casa colonial, sem intenção de ir a nenhum lugar em um futuro próximo.
A chave não entrava no painel de acesso da ambulância.
Tendo terminado com o que deveria ter sido a parte mais difícil da viagem, tendo entregado Stephan a salvo aos braços de seus familiares de sangue, acabava surpreendente que colocar a maldita chave no condenado contato fosse mais difícil.
— Vamos… — Ehlena se concentrou em estabilizar sua mão. E acabou olhando realmente muito de perto a forma em que o pedaço de metal saltava ao redor do buraco ao que pertencia.
Recostou-se no assento com uma maldição, sabendo que estava aumentando a desdita da casa, que a ambulância estacionada ali fora era simplesmente outra declaração expressa a gritos da tragédia.
Como se o corpo do amado filho da família não fosse suficiente.
Girou a cabeça e olhou fixamente as janelas coloniais. Havia sombras deslocando-se do outro lado das cortinas de gaze.
Depois de entrar de ré pelo caminho de entrada, Alix tinha ingressado na casa e ela tinha esperado na noite fria. Um momento depois, a porta da garagem tinha rodado para cima e Alix tinha saído com um macho mais velho que se parecia muito a Stephan. Ela tinha feito uma reverência e tinha lhe estreitado a mão, e logo tinha aberto a porta traseira da ambulância. O macho teve que por uma mão sobre a boca enquanto ela e Alix tiravam a maca.
— Meu filho… — tinha gemido.
Nunca esqueceria o som dessa voz. Oco. Sem esperança. Com o coração quebrado.
O pai de Stephan e Alix o levaram para a casa, e assim como no necrotério, um momento depois se escutou um pranto. Esta vez, entretanto, tinha sido o lamento mais agudo de uma fêmea. A mãe de Stephan.
Alix tinha retornado no momento em que Ehlena estava empurrando a maca para o interior da ambulância, e estava piscando rapidamente, como se estivesse enfrentando um forte vento. Depois de apresentar seus respeitos e despedir-se, subiu atrás do volante e… Não tinha podido arrancar o maldito veículo.
Do outro lado das cortinas de gaze, viu duas silhuetas fundirem-se em um abraço. E logo foram três. E logo vieram mais.
Sem nenhuma razão aparente, pensou nas janelas da casa que alugava para ela e seu pai, todas cobertas com papel alumínio, seladas para deixar o mundo de fora.
Quem estaria junto a seu corpo envolto quando sua vida acabasse? Seu pai sabia quem era ela a maior parte do tempo, mas raramente estava conectado a ela. O pessoal da clínica era muito amável, mas isso era trabalho, não pessoal. Pagava a Lusie para vir.
Quem cuidaria de seu pai?
Sempre tinha assumido que ele se iria primeiro, mas então, sem dúvida a família de Stephan tinha pensado o mesmo.
Ehlena afastou o olhar dos enfermos e fixou no pára-brisa dianteiro da ambulância.
A vida era muito curta, por muito que vivesse. Não acreditava que alguém estivesse preparado, quando chegava seu turno, para deixar amigos, familiares e as coisas que os faziam felizes, ainda que tivessem quinhentos anos, como seu pai, ou cinqüenta, como Stephan.
O tempo era uma fonte interminável de dias e noites como a galáxia era grande.
Fez com que se perguntasse: Que demônios estava fazendo com o tempo que tinha? Seu trabalho lhe dava um propósito, certo, e cuidava de seu pai, o que era o que se fazia pela família. Mas aonde ia? A lugar nenhum. E não se referia a estar sentada nesta ambulância com as mãos tão trementes que não podia colocar uma chave na ignição.
O assunto era que, não é que queria mudar tudo. Só queria algo para si mesma, algo que a fizesse saber que estava viva.
Os profundos olhos cor ametista de Rehvenge lhe vieram à mente como saídos de nenhuma parte, e como uma câmera que vai se afastando, viu seu rosto esculpido, seu penteado moicano, sua roupa fina e sua bengala.
Esta vez, quando se esticou para frente com a chave, a coisa entrou firmemente e o motor diesel despertou com um grunhido. Quando a calefação soltou uma rajada de ar frio, desligou o ventilador, colocou a alavanca em “avanço” e saiu da casa, do beco sem saída e da vizinhança.
Que já não parecia tranqüilo.
Atrás do volante, ia conduzindo e ao mesmo tempo estava ausente, cativada pela imagem de um macho que não podia ter, mas que nesse momento precisava com loucura.
Seus sentimentos eram inconvenientes por muitos motivos. Pelo amor de Deus, eram uma traição a Stephan, apesar de que, na realidade, não o tinha conhecido. Simplesmente parecia uma falta de respeito estar desejando a outro macho enquanto seu corpo era chorado por seu sangue.
Salvo que teria desejado ao Rehvenge de todos os modos.
— Maldito seja.
A clínica estava do outro lado do rio, e a alegrava, porque nesse momento não poderia encarar o trabalho. Estava muito doída, triste e zangada consigo mesma.
O que precisava era…
Starbucks. Oh, sim, isso era exatamente o que necessitava.
A uns oito quilômetros dali, em um lugar ao redor do qual havia um supermercado Hannaford, uma floricultura, uma boutique do LensCrafters, e uma loja Blockbuster, encontrou um Starbucks que permanecia aberto até as duas da manhã. Levou a ambulância a um lado e saiu.
Quando deixou a clínica com o Alix e Stephan, não pensou em trazer o casaco, assim aconchegou sua bolsa, correu pela calçada e atravessou a porta a toda pressa. No interior, o lugar era como a maioria deles: nós de madeira vermelhos, chão de ladrilhos cinza, muitas janelas, cadeiras amaciadas e pequenas mesas. No mostrador havia muffins a venda e uma vitrine de vidro com quadradinhos de bolacha de limão, brownies e pão-doce e dois humanos próximos aos vinte dirigiam as máquinas de café. O ar cheirava a avelã, café e chocolate, e esse aroma apagou de seu nariz o persistente aroma herbal das mortalhas.
— Posso ajudá-la? — perguntou o menino mais alto.
— Um Latte comprido, com espuma, sem creme. Para levar.
O macho humano sorriu e se afastou. Tinha uma barba escura recortada e um brinco no nariz, sua camiseta estava salpicada de gráficos que soletravam as palavras COMEDOR DE TOMATE dentro de gotas do que poderia ter sido sangue, ou dado o nome da banda, ketchup.
— Gostaria de algo mais? Os pães-doces de canela são espetaculares.
— Não, obrigado.
Enquanto se encarregava de seu pedido não afastou a vista dela, e para evitar ter que tratar com sua atenção, procurou na bolsa e checou seu telefone no caso de que Lusie…
CHAMADA PERDIDA. Ver agora?
Pressionou o sim, rezando para que não se tratasse de seu pai…
Apareceu o número de Rehvenge, embora não seu nome, porque não o tinha posto no telefone. Olhou fixamente os dígitos.
Deus! Era como se lhe tivesse lido a mente.
— Seu latte! Olá?
— Sinto muito. — guardou o telefone, pegou o que o homem estendia e agradeceu.
— Dupla taça como o desejava. As asas também.
— Obrigado.
— Ouça, trabalha em um dos hospitais por aqui? — perguntou, observando seu uniforme.
— Clínica particular. Obrigada outra vez.
Saiu rapidamente e não perdeu tempo em entrar na ambulância. Quando esteve novamente atrás do volante, travou as fechaduras das portas, arrancou o motor e ligou a calefação imediatamente, porque o ar que saía ainda estava morno.
O latte estava realmente bom. Super quente. O sabor perfeito.
Tirou o telefone outra vez, foi à lista de chamadas recebidas e escolheu o número de Rehvenge.
Respirou fundo e tomou um comprido trago do latte.
E pressionou enviar.
O código de área do destino era o 518. Quem teria dito?
CONTINUA
Capítulo 10
Rehvenge fechou a porta de seu escritório e sorriu tensamente, para evitar que suas presas aparecessem. Entretanto, ainda sem a exibição dos caninos, para o recolhedor de apostas espremido entre Trez e iAm foi suficiente para saber que estava em sérios problemas.
— Reverendo o que é tudo isto? Por que me chama assim? — disse o tipo precipitadamente — Estava me ocupando de meu negócio, para o senhor e de repente estes dois...
— Ouvi algo interessante sobre você. — disse Rehv, rodeando seu escritório.
Quando estava se sentando, Xhex entrou no escritório, com uma expressão dura nos olhos cinza. Após fechar a porta, apoiou as costas contra ela, sendo melhor que qualquer Master Lock quando se tratava de manter aos recolhedores de apostas trapaceiros dentro e longe dos olhos curiosos de fora.
— É mentira, é uma absoluta mentira...
— Você não gosta de cantar? — Rehv se recostou em sua cadeira, seu corpo intumescido encontrando uma posição familiar atrás da mesa de escritório negra — Não foi você que deu um pequeno espetáculo a La Tony Bennett para a multidão do Sal's a outra noite?
O recolhedor de apostas franziu o cenho.
— Bom, sim... Tinha alguns ouvintes.
Rehv fez um gesto com a cabeça a iAm, quem como sempre, tinha o rosto inexpressivo. O cara nunca demonstrava suas emoções, exceto quando se tratava de um cappuccino perfeito. Então podia vê-lo radiante de alegria.
— Meu companheiro aqui... Diz que cantou realmente bem. Que verdadeiramente agradou à multidão. O que cantou, iAm?
A voz de iAm era como a de James Earl Jones, baixa e profunda.
— Três Moedas na Fonte.
O recolhedor de apostas subiu as calças de um puxão em um gesto orgulhoso.
— Tenho habilidade. Tenho ritmo.
— Assim é um tenor como o bom e prezado senhor Bennett, não é? — Rehv tirou o casaco com um encolhimento de ombros — Os tenores são os meus favoritos.
— Sim. — o recolhedor de apostas olhou aos seguranças — Olhe, se importaria em me dizer o que é tudo isto?
— Quero que cante para mim.
— Quer dizer, como em uma festa? Faria qualquer coisa por você, chefe, já sabe. Tudo o que tem que fazer é pedir... Quero dizer, isto não era necessário.
— Não em uma festa, embora nós quatro desfrutemos ouvindo sua atuação. É para me compensar pelo que me roubou o último mês.
O rosto do recolhedor de apostas empalideceu.
— Eu não roubei...
— Sim, fez. Olhe, iAm é um contador fantástico. A cada semana, dá seus informes. Quanto, em que equipes, e que extensão. Acredita que não confere as contas? Apoiado nos informes do último mês deveria ter pagado... Qual era a cifra, iAm?
— Cento e setenta e oito mil quatrocentos e oitenta e dois.
— Isso mesmo. — Rehv fez um rápido gesto com a cabeça em sinal de agradecimento a iAm — Mas em vez disso veio com... Quanto?
— Cento e trinta mil novecentos e oitenta e dois. — replicou rapidamente iAm.
O recolhedor começou a falar imediatamente.
— Está enganado...
Rehv sacudiu a cabeça.
— Adivinha de quanto é a diferença... Embora não é como se já não soubesse. iAm?
— Quarenta e sete mil e quinhentos.
— O que casualmente é igual à soma de vinte e cinco dos grandes mais um interesse de noventa por cento. Não é assim, iAm? — quando o segurança assentiu com a cabeça uma vez, Rehv golpeou o chão com sua bengala e ficou em pé — E resulta que esse é o interesse de cortesia aplicado pela máfia de Esquente. Então Trez se dedicou a escavar um pouco, e o que foi que averiguou?
— Meu amigo Mike diz que emprestou vinte e cinco dos grandes a este cara aqui justamente antes do Rose Bowl12.
Rehv deixou sua bengala sobre a cadeira e rodeou a mesa do escritório, mantendo uma mão sobre a superfície para estabilizar-se. Os seguranças voltaram a ficar em posição, ladeando ao recolhedor de apostas, voltando a segurá-lo pela parte superior dos braços.
Rehv se deteve justamente diante do homem.
— Assim perguntarei isso uma vez mais, acredita que ninguém comprovaria as contas?
— Reverendo! Chefe... Por favor, ia lhe devolver isso! Por favor... Machucariam-me...
— Sim, é claro que vai fazê-lo. E vai me pagar o que cobro dos bastardos que tentam brincar disso comigo. Um castigo cento e cinqüenta por cento de interesse ao final deste mês ou sua esposa vai receber por correio seus pedacinhos. Oh, e está despedido.
O homem estalou em lágrimas, e não eram do tipo das de crocodilo. Eram autênticas, da classe que fazia que o nariz de um homem avermelhasse e os olhos inchassem.
— Por favor... iAm me danificar...
Rehv estendeu a mão de repente e a fechou entre as pernas do tipo. O uivo, quase um guincho, lhe indicou que embora ele não pudesse sentir nada, o recolhedor de apostas podia, e que a pressão estava sendo exercida no ponto exato.
— Não gosto que me roubem. — disse Rehv no ouvido do homem — Eu fico de saco cheio. E, se acredita que o que a máfia te faria é mau, garanto que sou capaz de algo pior. Agora... Quero que cante para mim, filho da puta.
Rehv retorceu com força e o tipo gritou com tudo o que tinha, o som foi alto e agudo, e ecoou na sala do andar de baixo. Quando o chiado começou a desvanecer-se porque o recolhedor de apostas tinha esgotado seu fornecimento de ar, Rehv cedeu e lhe deu oportunidade de refrescar as cordas vocais com um e outro ofego. E depois disso...
O segundo grito foi mais alto e ruidoso que o primeiro, provando que os vocalistas o faziam melhor depois de um pequeno aquecimento.
O recolhedor se sacudiu e saltou entre os seguranças, e Rehv seguiu apertando, seu lado symphath observando absorto, como se fosse o melhor espetáculo da televisão.
O homem demorou ao redor de nove minutos para perder a consciência.
Depois de ter apagado, Rehv o soltou e voltou para sua cadeira. Fez um gesto com a cabeça em direção a Trez e iAm e estes tiraram o humano pela porta de trás, para o beco, onde o frio o reviveria finalmente.
Quando partiram, Rehv teve uma súbita imagem de Ehlena balançando todas aquelas caixas de dopamina em seus braços enquanto entrava na sala de exame. O que pensaria dele se soubesse o que fazia para manter seu negócio em movimento? O que diria se soubesse que, quando disse ao recolhedor de apostas que ou pagava ou sua esposa receberia pacotes de FedEx que gotejariam sangue sobre os degraus de sua entrada, não tinha sido apenas uma ameaça? O que faria se soubesse que estava completamente preparado para cortá-lo ele mesmo em pedacinhos ou ordenar a Xhex, Trez ou iAm que o fizessem por ele?
Bom, já tinha a resposta, não?
Sua voz, essa clara e encantadora voz, voltou a ressonar em sua mente: Será melhor que guarde isto. Para alguém que vá utilizar alguma vez.
Certamente, ela não conhecia os detalhes, mas era esperta o bastante para rechaçar seu cartão de visita.
Rehv se concentrou em Xhex, que não se moveu de sua posição contra a porta de entrada. Quando o silêncio se prolongou, ela baixou o olhar ao tapete negro de pelo curto, desenhando um círculo ao redor de si mesma com o salto de sua bota.
— O que foi? — perguntou. Quando ela não levantou o olhar, pressentiu sua luta para recompor-se — Que merda aconteceu?
Trez e iAm voltaram a entrar no escritório e se colocaram contra a parede negra que estava frente à mesa de escritório de Rehv. Cruzaram os braços diante de seus enormes peitos e mantiveram a boca fechada.
O silêncio era algo característico nas Sombras... Mas combinado com a expressão tensa de Xhex e a rotina semicircular que estava realizando com essa bota, queria dizer que a merda era profunda.
— Fale. Já!
Os olhos de Xhex voaram aos seus.
— Chrissy Andrews está morta.
— Como? — embora soubesse.
— Golpeada e estrangulada até morrer em seu apartamento. Tive que ir ao necrotério para identificar o corpo.
— Filho da puta!
— Ocuparei-me do assunto. — Xhex não estava pedindo permissão, e sem importar o que ele dissesse, ia atrás desse pedaço de merda do namorado — E o farei rápido.
Tecnicamente falando, Rehv estava no comando, mas, neste assunto não ia se interpor em seu caminho. Para ele, suas garotas não eram somente uma fonte de ganhos... Eram empregadas pelas quais se preocupava e com as quais se identificava intimamente. Assim, se alguém machucava a alguma, fosse um cliente, um namorado ou um marido, tomava um interesse pessoal na vingança.
As putas mereciam respeito, e as suas o conseguiam.
— Ensina-o uma lição primeiro. — grunhiu Rehv.
— Não se preocupe com isso.
— Merda... É minha culpa. — murmurou Rehv enquanto estendia o braço para frente e recolhia seu abridor de cartas. A coisa tinha forma de adaga e também estava tão afiada como uma arma — Deveríamos tê-lo matado antes.
— Ela parecia estar melhor.
— Talvez somente escondesse melhor.
Os quatro ficaram em silêncio um momento. Em sua profissão sofriam um montão de perdas — que as pessoas acabassem mortas não era nenhuma novidade — mas na maioria dessas mortes, ele e sua equipe eram os sinais negativos da equação: eles eram os que faziam com que os outros desaparecessem. Perder a um dos seus nas mãos de algum outro ficava mal.
— Quer ouvir as novidades desta noite? — perguntou Xhex.
— Ainda não. Também trago uma pequena notícia para compartilhar. — forçando sua cabeça a trabalhar, olhou Trez e iAm — O que estou a ponto de dizer revolverá bastante as coisas, e quero dar a ambos a oportunidade de partir. Xhex, você não tem essa opção. Sinto muito.
Trez e iAm permaneceram imóveis, o que não o surpreendeu absolutamente. Trez ainda lhe mostrou o dedo maior. Isso tampouco foi uma surpresa.
— Fui à Connecticut. — disse Rehv.
— Também foi à clínica. — acrescentou Xhex — Por quê?
O GPS era um saco algumas vezes. Era difícil ter um pouco de privacidade.
— Esquece a porra da clínica. Escutem, preciso que façam um trabalho para mim.
— Um trabalho como...?
— Pensa no namorado de Chrissy como em um aperitivo antes do jantar.
Isto arrancou um sorriso frio de Xhex.
— Conte.
Rehv olhou fixamente a ponta de seu abridor de cartas, pensando em que ele e Wrath riram porque ambos tinham um. Depois das incursões do verão, o rei tinha lhe feito uma visita, para discutir assuntos do conselho, e tinha visto a coisa sobre o escritório. Wrath tinha brincado a respeito de que em seu trabalho diário ambos administravam por meio da espada, ainda quando tinham uma pluma entre as mãos.
Não se afastava muito da verdade. Embora Wrath tivesse a moralidade de seu lado e Rehv só o interesse próprio.
De maneira que não tinha empregado um ponto de vista moral ao tomar a decisão e escolher o caminho a seguir. Tinha-o feito, como sempre, apoiado no que mais lhe convinha.
— Não vai ser fácil. — murmurou.
— O divertido nunca é.
Rehv se concentrou na ponta afiada do abridor de cartas.
— Este... Não é por diversão.
Ao se aproximar o fim da noite e com seu turno a ponto de terminar, Ehlena se sentia inquieta. Hora do encontro. Hora de decidir. Supunha-se que em vinte minutos o macho viria à clínica para recolhê-la.
Deus! Divagava novamente.
Seu nome era Stephan. Stephan, filho de Tehm, embora não conhecia nem a ele nem a sua família. Era um civil, não um aristocrata, e tinha ido ali com seu primo, que machucara a mão quando cortava lenha para o fogo. Enquanto preenchia a papelada de alta, falara com Stephan de todas essas coisas das que falam os solteiros: gostava de Radiohead, ela também. Gostava de comida da Indonésia, ele também. Ele trabalhava no mundo humano, programando computadores, graças à comunicação virtual. Ela era enfermeira, algo óbvio não? Ele vivia em casa com seus pais, era o único filho de uma sólida família civil... Ou ao menos tinha divulgado como sendo sólidos civis, seu pai trabalhava para empreiteiros vampiros, sua mãe ensinava a Antiga Língua por conta própria.
Agradável, normal. Confiável.
Levando em consideração o que os aristocratas tinham feito à saúde mental de seu pai, lhe ocorreu que tudo isso parecia uma boa aposta, e, quando Stephan a tinha convidado para tomar um café, havia dito que sim, tinham combinado para essa noite, e tinham trocado os números de celulares.
Mas, o que ia fazer? Chamá-lo e dizer que não podia por causa de sua situação familiar? Ir de todos os modos, e preocupar-se com seu pai?
Entretanto, um rápido telefonema para Lusie do vestuário, trouxe notícias favoráveis: seu pai Ehlena teve uma longa sesta e agora estava trabalhando tranqüilamente nos papéis de seu escritório.
Meia hora de jantar. Talvez dividir uma sobremesa. Que mal podia fazer?
Quando ao fim decidiu ir, não apreciou a imagem que relampejou em sua mente. Agora que acabava de decidir que iria a um encontro com um macho, não deveria estar pensando no peito nu de Rehv com essas estrelas vermelhas tatuadas.
O que precisava era se concentrar em tirar o uniforme e em melhorar sua aparência, ao menos nominalmente.
Entre o pessoal do dia que entrava e os que trabalharam durante a noite que saiam, trocou o uniforme pela saia e o suéter que trouxera...
Tinha esquecido os sapatos.
Genial. Os sapatos brancos com sola de borracha não eram muito sexy.
— O que acontece? — disse Catya.
Girou-se.
— Alguma possibilidade de que estes dois botes brancos em meus pés não arruínem totalmente esta roupa.
— Hã... Honestamente? Não estão tão mal.
— Não mente nada bem.
— Ao menos tentei.
Ehlena guardou o uniforme em sua mochila, refez o penteado, e comprovou a situação da maquiagem. É obvio, tinha esquecido o delineador de olhos e também o rímel, assim, como quem diz, a cavalaria ficou sem cavalos nesse flanco.
— Alegro-me de que saia. — disse Catya enquanto apagava a lista de nomes do horário noturno da lousa branca.
— Considerando que é minha chefe, isso me põe nervosa. Bem preferiria que se alegrasse por ver-me entrar na clínica.
— Não, não se trata do trabalho. Alegro-me que esta noite saia para se divertir.
Ehlena franziu o cenho e olhou ao seu redor. Por algum milagre, estavam sozinhas.
— Quem diz que vou a alguma parte que não seja para casa?
— Uma fêmea que vai para casa não troca o uniforme aqui. E não se preocupa de como estão os sapatos com a saia. Economizarei o “quem é ele”.
— É um alívio.
— A menos que queira compartilhá-lo voluntariamente?
Ehlena riu em voz alta.
— Não, prefiro mantê-lo em privado. Mas, se chegar a alguma parte... Desembucharei.
— Obrigarei que cumpra sua palavra. — Catya foi a seu armário e simplesmente ficou olhando.
— Está bem? — disse Ehlena.
— Odeio esta maldita guerra. Odeio receber os mortos e ver em seus rostos o quanto sofreram. — Catya abriu o armário e se ocupou em tirar sua parka — Sinto, não queria ser desmancha-prazeres.
Ehlena se aproximou e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Sei exatamente como se sente.
Houve um momento de entendimento entre elas durante o qual sustentaram seus olhares. E, logo Catya aclarou a garganta.
— Bem, vá. Seu macho te espera.
— Virá me recolher aqui.
— Ooooh, talvez fique por aqui e fume um cigarro lá fora.
— Você não fuma.
— Demônios, frustrada outra vez.
De caminho à saída, Ehlena se apresentou na tela de registro para assegurar-se de que não havia nada mais que tivesse que fazer antes da substituição do novo turno. Satisfeita de que tudo estivesse em ordem, atravessou as portas e subiu as escadas até que finalmente esteve fora da clínica.
A noite estava mais à frente do código postal CEP que indicava fresco e entrando em cidade fria, e em sua opinião o ar cheirava a azul, se é que a cor podia ter alguma fragrância: é que sentia algo que simplesmente era muito fresco, glacial e claro quando respirava profundamente e exalava formando suaves nuvens. Com cada inalação, sentia-se como se estivesse tomando as safiras pulverizadas pelos céus em seus pulmões, e, que as estrelas eram faíscas que saltavam através de seu corpo.
Foi despedindo-se das atrasadas, enquanto as últimas enfermeiras partiam, desmaterializando-se ou conduzindo, dependendo do que tivessem planejado. Depois também Catya chegou e se foi.
Ehlena tamborilou com o pé e comprovou seu relógio. Seu macho estava dez minutos atrasado. Não era para tanto.
Recostando-se contra o revestimento de alumínio, sentiu que seu sangue cantava em suas veias, uma estranha sensação de liberdade inchando seu peito enquanto pensava em sair a alguma parte com um macho por sua própria...
Sangue. Veias.
Rehvenge não tratou de seu braço!
O pensamento penetrou em sua mente e permaneceu ali como o eco de um grande ruído. Não tinha tratado o braço. Não houvera nada no relatório sobre a infecção, e Havers era tão escrupuloso em suas notas como era com os uniformes do pessoal, a limpeza dos quartos dos pacientes e a organização dos armários de fornecimentos.
Quando retornara da farmácia com as drogas, Rehvenge tinha a camisa posta e os punhos abotoados, mas tinha assumido que era porque o exame tinha terminado. Entretanto, estava disposta a apostar que os tinha abotoado assim que ela terminou de lhe tirar sangue.
Mas... Não era assunto dela, não? Rehvenge era um macho adulto que tinha todo o direito a tomar más decisões sobre sua saúde. Igual aquele com overdose de drogas que mal sobrevivera à noite, e igualmente ao grande número de pacientes que assentiam muito quando o médico estava diante deles, mas que quando iam para casa deixavam de lado o indicado em suas receitas e os cuidados pós-operatórios.
Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar a alguém que não queria ser salvo. Nada. E essa era uma das maiores tragédias de seu trabalho. Tudo o que podia fazer era indicar as opções e as conseqüências e esperar que o paciente escolhesse sabiamente.
Soprou uma brisa, penetrando dentro de sua saia e fazendo-a invejar o casaco de pele de Rehvenge. Afastando-se da lateral da clínica, tentou ver o caminho abaixo, procurando faróis de carro.
Dez minutos mais tarde, voltou a olhar seu relógio.
E dez minutos depois desses, elevou o punho uma vez mais.
Tinham-na deixado plantada!
Não era uma surpresa. O encontro tinha sido marcado de maneira muito apressada, e em realidade não conheciam um ao outro, verdade?
Quando outra brisa fria a golpeou, tirou seu celular e escreveu: Olá, Stephan sinto não tê-lo visto esta noite. Talvez em outro momento. E.
Retornou o telefone a seu bolso e se desmaterializou para sua casa. Em vez de entrar em seguida, agasalhou-se com seu casaco e passeou daqui para lá pela calçada gretada que corria com o passar da lateral da casa até a porta traseira. Quando o vento gelado voltou a soprar, uma rajada lhe deu totalmente no rosto.
Picavam-lhe os olhos.
Ao dar as costas ao vendaval, algumas mechas de cabelo voaram para frente como se estivessem tentando fugir do frio, e ela estremeceu.
Genial. Agora, quando sua visão se empanasse, não teria a desculpa da brisa fria.
Deus estava chorando? Isso podia ser simplesmente um mal-entendido? Por um homem que mal conhecia? Por que lhe importava tanto?
Ah, mas não era por ele absolutamente. O problema era ela. Odiava estar onde tinha estado ao abandonar a casa: sozinha.
Tentando conseguir um apoio, literalmente, estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira, mas não pôde obrigar-se a entrar. A imagem dessa cozinha miserável e muito organizada, o conhecido som dessas escadas rangentes que conduziam ao porão, e o aroma de pó e papel do dormitório de seu pai lhe eram tão familiares como seu próprio reflexo em qualquer espelho. Esta noite tudo resultava muito claro, um brilhante brilho que lhe cravava em ambos os olhos, um rugido soando em seus ouvidos, um enjoativo fedor bombardeando seu nariz.
Deixou cair o braço. O encontro tinha sido um passe de “saída da prisão”. Uma balsa para abandonar a ilha. Uma mão estendida sobre o precipício do qual ela estava pendurada.
O desespero a fez voltar bruscamente para a realidade como nenhuma outra coisa podia tê-lo feito. Não servia de nada sair com alguém se essa era sua atitude. Não era justo para o homem nem são para ela. Quando Stephan ligasse outra vez, se o fizesse, simplesmente diria que estava muito ocupada...
— Ehlena? Está bem?
Ehlena saltou afastando-se da porta que evidentemente acabava de se abrir amplamente.
— Lusie! Sinto muito, somente... Só estava pensando muito. Como está papai?
— Bem, honestamente bem. Está dormindo outra vez.
Lusie saiu da casa e fechou evitando que o calor escapasse da cozinha. Depois de dois anos, era uma figura dolorosamente familiar, sua roupa boêmia e seu comprido cabelo grisalho resultavam reconfortantes. Como de costume, tinha sua bolsa de remédios em uma mão e sua enorme bolsa pendurada do ombro oposto. Dentro da bolsa de remédios havia um medidor de pressão sangüínea padrão, um estetoscópio, e medicamentos de sob nível... Tudo o qual Ehlena a tinha visto usar. Dentro da bolsa levava as palavras cruzadas do New York Time, chicletes de hortelã Wrigley’s que gostava de mascar, a carteira e o batom cor pêssego que passava pelos lábios a intervalos regulares. Ehlena sabia das palavras cruzadas porque Lusie e seu pai as faziam juntos, do chiclete pelos pacotes que havia no cesto de papéis, e o batom era evidente, a carteira era uma hipótese.
— Como está? — Lusie esperou, seus olhos cinza claros enfocados — Você retornou um pouco cedo.
— Deixou-me plantada.
A forma que a mão de Lusie aterrissou sobre o ombro de Ehlena era o que fazia da fêmea uma grande enfermeira: com um toque te transmitia consolo, calidez e empatia, tudo o que ajudava a reduzir a pressão sangüínea, o ritmo cardíaco e a agitação.
Tudo o que ajudava a restabelecer uma mente emaranhada.
— Sinto-o. — disse Lusie.
— Oh, não, é melhor assim. Quero dizer, esperava muito.
— De verdade? Pareceu-me bastante sensata quando me falou disso. Somente iam tomar um café...
Por alguma razão disse a verdade:
— Não. Estava procurando uma saída. A que nunca chegará, porque nunca o deixaria. — Ehlena sacudiu a cabeça — De todos os modos, muito obrigado por vir...
— Não tem que ser uma situação disto ou aquilo. Seu pai e você...
— Realmente aprecio que tenha vindo cedo esta noite. Foi muito amável de sua parte.
Lusie sorriu da mesma forma que Catya tinha feito mais cedo, essa mesma noite, tensa e tristemente.
— De acordo, deixarei estar, mas tenho razão nisto. Pode ter uma relação e seguir sendo uma boa filha para seu pai. — Lusie olhou para a porta — Escute, terá que vigiar essa ferida da perna. A que se fez com a unha. Pus uma vendagem nova, mas estou preocupada com ela. Acredito que está infectando.
— Farei, e obrigada.
Depois que Lusie se desmaterializou, Ehlena entrou na cozinha, fechou a porta, passou a chave, e se dirigiu ao porão.
Seu pai estava em seu quarto, dormindo na enorme cama vitoriana, a enorme cabeceira esculpida parecia o arco lavrado de uma tumba. Sua cabeça descansava contra uma pilha de travesseiros brancos de seda, e o edredom de veludo vermelho sangue estava dobrado precisamente a meio caminho de seu peito.
Parecia um rei em repouso.
Quando a enfermidade mental se apropriou dele, seu cabelo e barba se tornaram brancos, fazendo que Ehlena se preocupasse que estivessem começando a aparecer nele as mudanças do final da vida. Mas depois de cinqüenta anos, ainda parecia o mesmo, seu rosto não apresentava rugas e suas mãos seguiam sendo fortes e firmes.
Era tão difícil. Não podia imaginar a vida sem ele. E não podia imaginar-se tendo uma vida com ele.
Ehlena fechou parcialmente a porta e foi para seu próprio quarto, onde tomou banho, trocou-se e se esticou sobre a cama. Tudo o que tinha era uma cama de um lugar sem cabeceira, um travesseiro e lençóis de algodão, mas o luxo não lhe importava. Só necessitava um lugar onde esticar seus ossos cansados cada dia e isso era tudo.
Normalmente lia um pouco antes de dormir, mas hoje não. Realmente não tinha energias. Estendendo a mão para um lado, apagou o abajur, cruzou os pés à altura dos tornozelos e estendeu os braços retos.
Com um sorriso, compreendeu que ela e seu pai dormiam exatamente na mesma posição, verdade?
Na escuridão, pensou em Lusie e a forma em que tinha insistido no corte de seu pai. Ser uma boa enfermeira era preocupar-se com o bem-estar dos pacientes, inclusive depois de deixá-los. Tratava-se de treinar aos familiares em como continuar com os cuidados necessários, e ser um apoio.
Não era o tipo de trabalho que simplesmente se ia porque tinha terminado seu turno.
Religou o abajur com um clique.
Levantando-se, foi ao computador que tinha conseguido grátis na clínica quando os sistemas de TI13 tinham sido melhorados. A conexão de internet era lenta, como sempre, mas finalmente pôde acessar a base de dados dos registros médicos da clínica.
Colocou sua contra-senha, efetuou uma busca, logo outra. A primeira foi por compulsão, a segunda por curiosidade.
Gravou ambas, desligou o portátil e pegou seu telefone.
Capítulo 11
Quando estava amanhecendo, justo antes que a luz começasse a se reunir no céu do leste, Wrath tomou forma nos densos bosques da parte norte da montanha da Irmandade. Não aparecera ninguém pelo Hunterbred, e a iminente luz do dia o tinha forçado a abandonar o lugar.
A grama rangia ruidosamente sob seus shitkickers, as finas agulhas dos pinheiros estavam quebradiças pelo frio. Ainda não havia neve para atenuar os sons, mas podia cheirá-la no ar, podia sentir essa gelada dentada na profundidade de seus seios nasais.
A entrada secreta do Sancto Santorum da Irmandade da Adaga Negra estava no extremo mais afastado de uma caverna, bem no fundo. Suas mãos localizaram por meio do tato o abridor na porta de pedra, e o pesado portal se deslizou detrás da parede de rocha. Entrando em um piso revestido de suave mármore negro, avançou por ele enquanto a porta se fechava as suas costas.
A sua vontade, as tochas se acenderam de cada lado, estendendo-se a uma longa distância e iluminando as enormes portas de ferro instaladas nos fins do século dezoito quando a Irmandade converteu essa caverna na Tumba.
Ao se aproximar, as grossas barras da porta adquiriram a aparência de uma fila de sentinelas armados ante sua visão imprecisa, as chamas trementes animavam algo que na realidade não tinha movimento. Com sua mente, abriu as duas metades e continuou seu caminho, entrando em um comprido passadiço cheio de prateleiras que iam do chão ao teto, a uns doze metros de altura.
Jarras de lessers de todo tipo e espécie estavam empilhadas uma junto à outra, em um desdobramento que marcava gerações de matanças feitas pela Irmandade. As jarras mais antigas eram somente toscos copos feitos à mão que tinham sido trazidos do Antigo País. A cada metro que avançava as jarras se tornavam mais modernas, até se chegar ao próximo jogo de portas e encontrar as porcarias chinesas produzidas em série vendidas na Target.
Não ficava muito espaço livre nas prateleiras e isso o deprimiu. Com suas próprias mãos ajudou a construir este monumento à morte de seus inimigos, junto com o Darius, Tohrment e Vishous, todos eles trabalharam em excesso durante um mês seguido, trabalhando durante o dia e dormindo sobre o chão de mármore. Tinha sido ele, que decidiu quanto aprofundar na terra, e estendeu o corredor das prateleiras vários metros a mais do que considerava necessário. Quando ele e seus irmãos terminaram de instalar tudo e logo depois de empilhar as jarras mais antigas, se convenceram de que não necessitariam tanto espaço para armazenamento. Tiveram a segurança de que no momento em que enchessem as três quartas partes disso, a guerra teria terminado.
E aí estava, séculos mais tarde, tratando de encontrar espaço suficiente.
Com uma pavorosa sensação de presságio, Wrath estimou com sua reduzida vista os últimos espaços que ficavam nas prateleiras originais. Era difícil não vê-lo como uma evidência de que a guerra estava chegando a seu fim, que o equivalente vampiro do finito calendário Maia estava nessas paredes de rocha grosseiramente esculpidas.
Não era com o brilho da obtenção da vitória que previa o depósito da última jarra junto às demais.
Uma das duas ou ficariam sem raça a qual proteger ou ficariam sem Irmãos para protegê-los.
Wrath tirou as três jarras de sua jaqueta e as pôs juntas formando um pequeno grupo, logo deu um passo atrás.
Tinha sido responsável por muitas dessas jarras... Antes de converter-se em Rei.
— Já sabia que tinha saído para lutar.
Ante o som da voz autoritária da Virgem Escriba, Wrath girou a cabeça bruscamente. Sua Santidade estava flutuando junto às portas de ferro, sua túnica negra estava a trinta centímetros acima do chão de pedra e sua luz resplandecia por debaixo da prega.
Houve um tempo em que seu resplendor foi cegamente brilhante. Agora apenas lançava sombra.
Wrath voltou a girar-se para as jarras.
— Assim, V se referia a isso quando disse que ia apertar o gatilho.
— Sim, meu filho foi até mim.
— Mas já estava inteirada. E, a propósito, isso não foi uma pergunta.
— Sim. — ela odiava perguntas.
Wrath levantou a vista e observou V atravessar as portas.
— Bom, olhem esta merda. — manifestou Wrath — A reconciliação entre mãe e filho… Ocorrerá em tão somente um instante. — deixou que a poesia lírica parafraseada ficasse flutuando no ar — Ou não.
A Virgem Escriba se adiantou, movendo-se lentamente entre as jarras. Na antiguidade — ou, demônios, tão somente no ano anterior — teria assumido o controle da conversa. Agora apenas flutuava.
Vishous fez um som de desgosto, como se tivesse esperado muito para que sua Queridíssima Mamãe[37] começasse a dar o sermão de “nem-mais-uma-palavra” para seu rei, e não se sentiu impressionado ao ver que não lhe fazia frente.
— Wrath, não me deixou terminar.
— E acredita que agora o farei? — esticou a mão para cima e com os dedos tocou a beira de uma das três jarras que acrescentou à coleção.
— Deixará que termine. — disse a Virgem Escriba em um tom desinteressado.
Vishous avançou a pernadas, seus shitkickers pisavam firmemente o chão que ele mesmo tinha ajudado a colocar.
— A questão é que se vai sair, vá com reforços. E diga à Beth. De outra forma se converte em um mentiroso… E tem uma melhor oportunidade de deixá-la viúva. Maldito seja, ignore minha visão, se quiser. Mas ao menos seja prático.
Wrath caminhou para cima e para baixo, pensando que o cenário para este cerco era fodidamente perfeito: estava rodeado por testemunhos da guerra.
Finalmente se deteve frente às três jarras que tinha obtido essa noite.
— Beth pensa que fui ao norte do Estado me encontrar com Phury. Sabem, para trabalhar com as Escolhidas. Mentir enche o saco! Mas e o conhecimento de que tenhamos só quatro Irmãos no campo de batalha? É pior.
Houve um longo silêncio, durante o qual o único som que se escutava era o vibrante chispar das chamas das tochas.
Vishous rompeu o silêncio.
— Acredito que deveria ter uma reunião com a Irmandade, e dizer a verdade para Beth. Como falei se for lutar, lute. Mas faça abertamente, entende? Dessa forma não estará saindo sozinho. E, tampouco o fará algum de nós. Neste momento, quando ocorre o rodízio para descanso, alguém sempre termina lutando sem companheiro. Se você o fizesse legitimamente resolveria esse problema.
Wrath teve que sorrir.
— Cristo, se tivesse pensado que estaria de acordo comigo, teria falado antes. — olhou à Virgem Escriba — Mas, e o que me diz das leis. Da tradição.
A mãe da raça se voltou para enfrentá-lo e com voz distante disse:
— Tantas coisas mudaram. Que diferença faz uma mais. Fiquem bem, Wrath filho de Wrath e Vishous meu filho.
A Virgem Escriba desapareceu como uma brisa na noite fria, dissipando-se no éter como se nunca tivesse estado ali.
Wrath se reclinou contra as prateleiras, e, quando a cabeça começou a lhe pulsar, subiu os óculos e esfregou seus olhos inúteis. Quando se deteve, fechou as pálpebras e ficou tão quieto como a rocha que o rodeava.
— Parece moído. — murmurou V.
Sim, estava, verdade? E que triste isso era.
O tráfico de drogas era um negócio muito lucrativo.
Em seu escritório privado do ZeroSum, Rehvenge estava em frente a sua mesa no escritório revisando as faturas dessa noite, comprovando meticulosamente as quantidades, até o último centavo. iAm estava fazendo o mesmo no restaurante de Sal, e o primeiro dever de cada noite era encontrar-se ali para comparar resultados.
Na maioria das vezes chegavam ao mesmo total. Quando não era assim, ele os remetia ao iAm.
Entre o álcool, as drogas, e o sexo as importâncias em bruto das faturas superava os duzentos e noventa mil só para o ZeroSum. No clube trabalhavam vinte e duas pessoas com salário fixo, isso incluía dez seguranças, três barmans, seis prostitutas, Trez, iAm e Xhex, o custo por todos eles girava em torno dos setenta e cinco mil dos grandes por noite. Os recolhedores de apostas e os traficantes autorizados a trabalhar no local, ou seja, aqueles vendedores de drogas que ele autorizava a vender sob suas premissas, eram comissionados, e o que restava após cobrarem sua parte, era dele. Também, uma vez por semana, ele ou Xhex e os seguranças realizavam entendimentos por quantidades mais importantes com um seleto número de distribuidores que tinham suas próprias redes de tráfico de drogas fora de Caldwell ou em Manhattan.
Calculando tudo, e depois de subtrair os custos do pessoal, ficavam aproximadamente duzentos mil por noite para pagar as drogas e o álcool vendidos, cobrir a calefação e a eletricidade, para a melhoria de bens de uso e o pagamento da equipe de limpeza de sete pessoas que entrava às cinco da manhã.
Cada ano tirava perto de cinqüenta milhões de seus negócios… O que parecia obsceno, e era, especialmente considerando que pagava impostos somente por uma fração disso. A questão era que as drogas e o sexo eram negócios arriscados, mas os lucros potenciais eram enormes. E necessitava dinheiro. Muito. Manter sua mãe no estilo de vida a que estava acostumada, e que bem merecia, era um assunto multimilionário. Além disso, ele tinha suas próprias casas e a cada ano trocava o Bentley assim que os novos modelos estavam disponíveis.
Entretanto, o gasto pessoal mais custoso de todos, disparado, eram as pequenas bolsas negras de veludo.
Rehv estendeu a mão sobre suas folhas de cálculo e recolheu a que enviaram do distrito de diamantes da Grande Maçã. Agora as entregas chegavam às segundas-feiras… antes costumava ser às últimas sextas-feiras do mês, mas agora ao abrir o Iron Mask, o dia livre do ZeroSum tinha mudado para domingo.
Desatou o cordão de cetim e abriu o pescoço da bolsa, vertendo um punhado de brilhantes rubis. Um quarto de milhão de dólares em pedras cor vermelho sangue. Voltou a colocá-las na bolsa, atou o cordão com um nó apertado, e olhou seu relógio. Faltavam dezesseis horas para que tivesse que empreender sua viagem para o norte.
A primeira terça-feira do mês era quando pagava seu resgate, e pagava à princesa de duas maneiras. Uma era com pedras preciosas. A outra com seu corpo.
Entretanto fazia que custasse a ela também.
Pensar aonde iria e o que se veria obrigado a fazer lhe provocou cócegas na nuca, e não o surpreendeu que sua vista começasse a mudar, e que o rosa escuro e o vermelho sangue substituíssem o negro e o branco de seu escritório, e que seu campo visual se nivelasse como por obra de uma escavadora convertendo-se em um nível plano.
Abrindo uma gaveta, tirou uma de suas bonitas caixas novas de dopamina e agarrou a seringa que tinha usado as últimas duas vezes que se injetou em seu escritório. Arregaçando o braço esquerdo, fez um torniquete no meio do bíceps mais por hábito que por verdadeira necessidade. Suas veias estavam tão inchadas que parecia que várias toupeiras haviam feito suas tocas debaixo de sua pele, e sentiu uma pontada de satisfação ante o horrível estado em que estavam.
A agulha não tinha tampa que tirar, assim encheu o êmbolo da seringa com a prática de um usuário habitual. Levou-lhe um momento encontrar uma veia que fosse viável, e colocou a diminuta agulha de aço em seu corpo sem sentir nada de nada. Soube que finalmente tinha dado no lugar adequado quando puxou o êmbolo e viu que o sangue se mesclava com a solução clara da droga.
Enquanto liberava o torniquete e pressionava com o dedo polegar para fazer entrar o líquido, olhou fixamente a ulceração de seu braço e pensou em Ehlena. Ainda quando não confiava nele e não desejava sentir-se atraída por ele e embora evidentemente seria capaz de mover céu e terra para não sair com ele, seguia querendo ser uma salvadora. Seguia querendo o melhor para ele e sua saúde.
Isso era o que significava ser uma fêmea de valor.
Já tinha injetado a metade quando seu celular tocou. Um rápido olhar à tela indicou que o número não era conhecido, por isso deixou que a chamada se perdesse. As únicas pessoas que tinham seu número eram aquelas com as quais queria falar, e essa era uma lista endemoniadamente curta: sua irmã, sua mãe, Xhex, Trez e iAm. E o Irmão Zsadist, o hellren de sua irmã.
Isso era tudo.
Enquanto tirava a agulha de seu ralo vascular, amaldiçoou ante o assobio que indicava que tinham deixado um correio de voz. De tanto em tanto recebia um desses, gente deixando partes e retalhos de suas vidas em seu pequeno rincão de espaço tecnológico, pensando que era o de outra pessoa. Ele nunca devolvia a chamada, jamais mandava uma mensagem de texto com um: Este não é quem pensa que é. Já se dariam conta quando quem quer que pensassem estar chamando não devolvesse o favor.
Fechando os olhos se recostou contra o respaldo da cadeira e atirou a seringa sobre as folhas de cálculo, não podia importar menos se a droga funcionava.
Sentado a sós em sua guarida de iniqüidade, na hora silenciosa em que todos se foram e o pessoal da limpeza não tinha entrado ainda, não lhe importava uma merda se os planos de sua visão retornavam a um modo tridimensional. Não lhe importava se reaparecia o espectro a toda cor. Não se perguntava a cada segundo que passava se retornaria à “normalidade” ou não.
Deu-se conta que isto tinha mudado. Até agora sempre se desesperou esperando que a droga funcionasse.
O que tinha feito a situação mudar?
Deixou a pergunta no ar enquanto recolhia o celular e agarrava a bengala. Com um gemido, ficou cuidadosamente de pé e caminhou para seu dormitório privado. O intumescimento estava retornando rapidamente a seus pés e pernas, mais rapidamente de quando conduzia vindo de Connecticut, mas bom, isso era típico. Quanto menos impulsos symphath se desencadeassem, melhor funcionava a droga. E caramba! Tornava-se gracioso, mas ser selecionado para matar o rei o tinha exasperado.
Enquanto que estar sentado a sós no que podia chamar lar, não o fazia.
O sistema de segurança já estava ativo em seu escritório, e ativou outro para suas habitações privadas, logo se fechou no dormitório sem janelas no qual pernoitava de quando em quando. O banheiro estava do outro lado do quarto e atirou seu casaco de zibelina sobre a cama antes de entrar e abrir a ducha. Enquanto se movia pelo lugar, um frio que impregnava até os ossos se apoderou de seu corpo, fluindo de dentro para fora, como se tivesse se injetado Freon.
Isto sim ele temia. Odiava ter frio todo o tempo. Merda, talvez devesse ter se deixado ir. De toda forma não ia interatuar com ninguém.
Sim, mas se saltava muitas doses, voltar a nivelar-se era uma merda.
O vapor ondeou atrás da porta de vidro da ducha, se despiu deixando seu traje, a gravata e a camisa sobre o balcão de mármore que havia entre as duas pias. Ficando sob a ducha, tremeu violentamente e os dentes tilintaram.
Por um momento, derrubou-se contra as suaves paredes de mármore, mantendo a si mesmo no centro das quatro rosetas da ducha. Enquanto a água quente, que não podia sentir, caía em forma de cascata descendo por seu peito e seu abdômen, tratou de não pensar no que viria na noite seguinte, e falhou.
Oh, Deus… Seria capaz de voltar a fazê-lo? Ir ali acima e prostituir a si mesmo com essa cadela?
Sim, e a alternativa era… Que o denunciasse ante o conselho por ser um symphath e que deportassem seu rabo à colônia.
A escolha era clara.
À merda com isso, não havia escolha. Bella não sabia o que era, e descobrir a mentira familiar a mataria. E ela não seria a única vítima. Sua mãe se desmoronaria. Xhex ficaria furiosa e se mataria tratando de salvá-lo. Trez e iAm fariam o mesmo.
Todo o castelo de cartas cairia.
Compulsivamente, agarrou uma brilhante barra de sabão dourado do suporte de cerâmica que estava montado na parede e o esfregou entre suas mãos até fazer espuma. A merda que usava não era do tipo elegante e fino. Era o comum Dial, um desinfetante que sobre a pele parecia como um nivelador de pavimento.
Suas putas usavam o mesmo. Era com o que abastecia suas duchas, a pedido delas.
Sua regra era três vezes. Três vezes para cima e para baixo por seus braços e suas pernas, seus peitorais e seu abdômen, seu pescoço e seus ombros. Três vezes o afundava entre suas coxas, ensaboando o membro e os testículos. O ritual era estúpido, mas era algo compulsivo. Poderia ter usado três dúzias de barras de Dial e ainda assim seguir sentindo-se sujo.
Era gracioso, suas putas sempre se surpreendiam pelo trato que recebiam. Cada vez que chegava uma nova, esperava ter que excitá-lo como parte de seu trabalho, e sempre estavam preparadas para serem agredidas. Em vez disso, obtinham seu vestiário privado com ducha, um horário seguro, e a segurança de que nunca, jamais seriam agredidas, e essa coisa chamada respeito… Que significava que podiam escolher os seus clientes, e, se os filhos da puta que pagavam pelo privilégio de estar com elas lhe tocavam embora fosse somente um de seus cabelos, tudo o que tinham de fazer era dizer e uma montanha de merda caía sobre o ofensor.
Mais de uma vez, aparecia alguma das mulheres na porta de seu escritório e pedia para falar com ele em particular. Geralmente isso acontecia aproximadamente um mês depois que começasse a exercer, e o que diziam era sempre o mesmo e sempre era expresso com uma espécie de confusão, que se ele fosse normal, teria lhe quebrado o coração:
— Obrigado.
Não era muito viciado nos abraços, mas era sabido que as atraía a seus braços e as abraçava durante um instante. Nenhuma delas compreendia que não era devido a ele ser um bom homem, mas sim porque era igual a elas. A dura realidade era que a vida tinha posto a todos onde não desejavam estar, quer dizer sobre suas costas frente a pessoas com as quais não queriam estar fodendo. Sim, havia algumas que não lhes importava o trabalho, mas como todo mundo, não queriam trabalhar todo o tempo. E Deus sabia que os clientes sempre apareciam.
Assim como sua chantagista.
Sair da ducha era um absoluto e puro inferno, e adiou o profundo congelamento o máximo que pôde, encolhendo-se sob a ducha enquanto discutia consigo mesmo sobre a saída. Enquanto o debate continuava, ouvia a água tilintar contra o mármore e tagarelar no deságüe de bronze, mas seu corpo totalmente intumescido não sentia nada salvo um leve alívio de seu Alaska interior. Quando acabou a água quente, soube somente devido a seus tremores piorarem e as unhas de suas mãos passaram de uma cor cinza pálida a um azul profundo.
De caminho à cama, secou-se com uma toalha e logo se lançou sob o edredom de visom o mais rápido que pôde.
Justo quando estava puxando as mantas para subir até sua garganta, seu celular emitiu um assobio. Outra mensagem de voz.
Fodida Central Geral com seu celular.
Ao verificar suas chamadas perdidas, descobriu que a última era de sua mãe, e se endireitou rapidamente, embora mudar para a posição vertical significasse que seu peito ficasse descoberto. Como a dama que era não ligava nunca, porque não queria “interromper seu trabalho”.
Pressionou alguns botões, pôs sua contra-senha, e se preparou para apagar a mensagem de número equivocado que sairia primeiro.
“Mensagem do 518—blah—blah—blah…” Pressionou a tecla de numeral para mandá-la a merda e se preparou para golpear o sete e desfazer-se da coisa.
Seu dedo estava encaminhando-se para baixo quando a voz de uma fêmea disse:
— Olá, eu…
Essa voz… Essa voz era… Ehlena?
— Porra!
De toda forma, o correio de voz era inexorável, sem importar-se uma merda que uma mensagem dela fosse o último que ele escolheria apagar. Enquanto amaldiçoava, o sistema continuou agitando-se até que escutou a suave voz de sua mãe falando na Antiga Língua.
— Saudações, queridíssimo filho, espero que esteja bem. Por favor, desculpe a intromissão, mas me perguntava se poderia passar pela casa nos próximos dias? Há um assunto sobre o qual devo falar contigo. Amo-te. Adeus, meu primogênito de sangue.
Rehv franziu o cenho. Tão formal, o equivalente verbal a uma atenta nota escrita por sua formosa mão, mas a solicitude era atípica nela, e isso dava o caráter de urgente. Mas estava fodido… Má escolha de palavras. Amanhã de noite era impossível devido a seu “encontro”, assim teria que ser a noite seguinte, assumindo que se encontrasse o suficientemente bem.
Ligou a casa, e quando uma das doggen atendeu disse à criada que estaria ali na quarta-feira de noite assim que o sol se pusesse.
— Senhor, se me permite. — disse a criada — Verdadeiramente me alegra que venha.
— O que está acontecendo? — quando houve uma longa pausa, sua frieza interior, piorou — Diga!
— Ela está… — a voz do outro lado se agitou — Está tão encantadora como de costume, mas nos alegra que venha. Se me desculpar, irei transmitir sua mensagem.
A linha ficou muda. No fundo de sua mente, tinha percebido o que ocorria, mas sistematicamente ignorou tal convicção. Verdadeiramente não podia pensar nisso. Definitivamente não podia.
Além disso, era provável que não fosse nada. Depois, toda paranóia era um efeito secundário quando se consumia muita dopamina, e Deus sabia que estava tomando mais que sua cota. Iria ao refúgio assim que pudesse, e ela estaria bem… Espere! O solstício de verão. Devia tratar-se disso. Sem dúvida desejava planejar as festividades que incluía Bella e Z e à menina, já que seria o primeiro ritual de solstício de Nalla, e sua mãe levava esse tipo de coisas muito a sério. Podia viver neste lado, mas as tradições das Escolhidas sob as quais tinha sido criada ainda formavam parte dela.
Era certo que se tratava disso.
Aliviado, pôs o número de Ehlena em sua caderneta de memória e ligou para ela.
Em tudo o que podia pensar enquanto o telefone chamava, além de em, “responde, responde, responde”, era em que confiava que estivesse bem. O que era uma loucura. Como se fosse chamar a ele se tivesse algum problema?
Então por que haveria…
— Olá?
O som de sua voz no ouvido obteve algo que a ducha quente, o visom e a temperatura ambiente de oitenta graus não tinham obtido. O calor se estendeu desde seu peito, fazendo retroceder o intumescimento e o frio, cobrindo-o com… Vida.
Apagou as luzes para poder concentrar-se nela com tudo o que tinha.
— Rehvenge? — disse ela depois de um momento.
Reclinou-se contra os travesseiros e sorriu na escuridão.
— Olá.
Capítulo 12
— Sua camisa está ensangüentada… E… Oh, Deus… A perna de sua calça. Wrath, o que aconteceu?
De pé em seu escritório na mansão da Irmandade, enfrentando a sua amada shellan, Wrath puxou as duas metades de sua jaqueta de motoqueiro para fechá-las mais sobre seu peito, e pensou que era bom que ao menos lavou o sangue de lesser das mãos.
A voz de Beth ficou mais baixa.
— Quanto do que estou vendo é teu?
A seus olhos estava tão formosa como sempre, era a única fêmea a quem desejava, a única companheira possível para ele. Com jeans e seu suéter negro de pescoço alto, e o cabelo escuro caindo sobre seus ombros, era a coisa mais atrativa que tinha visto. Seguia sendo.
— Wrath!
— Não todo. — o corte de seu ombro sem dúvida tinha gotejado sobre sua camiseta sem mangas, mas também tinha segurado o macho civil contra seu peito, por isso o sangue do macho sem dúvida se mesclou com o seu próprio.
Incapaz de permanecer quieto caminhou pelo escritório, indo da mesa à janela ida e volta. O tapete que seus shitkickers cruzavam era azul, cinza e creme, um Aubusson cujas cores faziam par com o azul pálido das paredes e cujas espirais curvilíneas se inspiravam nos delicados móveis Louis XIV, os acessórios e os redemoinhos das molduras.
Realmente, nunca tinha apreciado a decoração. E tampouco o fez agora.
— Wrath… Como chegou aí? — o tom duro de Beth lhe indicou que já sabia a resposta, mas que ainda conservava a esperança de que houvesse outra explicação.
Juntando forças, voltou-se para enfrentar o amor de sua vida através da extensão carregada do escritório.
— Estou lutando outra vez.
— Está o que?
— Estou lutando.
Quando Beth ficou em silêncio. Alegrou-se de que a porta do escritório estivesse fechada. Viu os cálculos mentais que estava fazendo e sabia que o resultado do que estava somando ia adicionar-se a uma e só uma coisa: estava pensando em todas essas “noites no norte” com Phury e as Escolhidas. Todas as vezes que foi para a cama com camisetas de manga longa, úteis para ocultar hematomas, porque “estava resfriado”. Todas essas desculpas de “estou coxeando porque me exercitei muito”.
— Está lutando! — afundou as mãos nos bolsos de seu jeans, e, embora não pudesse ver muito, sabia endemoniadamente bem que o suéter negro de pescoço alto era o perfeito complemento para seu olhar — Somente para que fique claro. Está me dizendo que, vai começar a lutar. Ou que esteve lutando.
Isso era uma pergunta retórica, mas evidentemente queria que ele reconhecesse a mentira completa.
— Estive. Durante o último par de meses.
A fúria e a dor fluíram dela, derramando-se sobre ele, cheirando a madeira chamuscada e a plástico queimado.
— Olhe Beth, tinha que…
— Tinha que ser honesto comigo! — disse asperamente — Isso é o que tinha que fazer.
— Não esperava ter que sair por mais de um mês ou dois…
— Um mês ou dois! Quantos demônios fazem… — clareou a garganta e baixou a voz — Quanto faz que o está fazendo?
Quando disse, voltou a ficar calada. Logo disse:
— Desde agosto? Agosto.
Desejava que desse rédea solta a seu temperamento. Que lhe gritasse. Que lhe insultasse.
— Sinto muito. Eu… Merda, realmente sinto.
Ela não disse nada mais, e o aroma de suas emoções se afastou à deriva, dispersado pelo ar quente que soprava pelos ralos da calefação que havia no chão. No corredor, um doggen estava passando o aspirador, o som do acessório para tapetes zumbia acima e abaixo, acima e abaixo. No silêncio que reinava entre eles, esses sons habituais, cotidianos eram algo ao que apegar-se… Pois era o tipo de coisa que ouvia todo o tempo e raramente notava porque estava ocupado lutando com a papelada, ou distraído pelo fato de que tinha fome, ou tratando de decidir se preferia relaxar vendo a TV ou no ginásio… Era um som seguro.
E, neste momento, devastador para sua união, apegava-se à canção de berço de Dyson com todas as suas forças, perguntando-se se alguma vez teria a sorte de poder ignorá-la outra vez.
— Nunca me passou pela cabeça… — clareou a garganta uma vez mais — Nunca me passou pela cabeça que haveria algo do qual não pudesse falar comigo. Sempre assumi que me dizia… Tudo o que podia.
Quando deixou de falar, ele estava gelado até os ossos. Sua voz tinha adquirido o tom que usava quando respondia chamadas equivocadas no telefone: dirigia-se a ele como se fosse um estranho, sem nenhuma calidez nem interesse particular.
— Olhe Beth, devo estar lá fora. Devo…
Ela sacudiu a cabeça e levantou a mão para detê-lo.
— Não se trata de que esteja lutando.
Beth o olhou fixamente durante um segundo. Logo se voltou e se dirigiu para as portas duplas.
— Beth. — esse grasnido estrangulado era sua voz?
— Não, me deixe. Preciso de um pouco de espaço.
— Beth, escute, não temos guerreiros suficientes no campo de batalha…
— Não é pela luta! — girou e o enfrentou — Mentiu para mim! Mentiu. E não só uma vez, mas sim durante quatro meses.
Wrath queria discutir, defender-se, assinalar que tinha perdido a noção do tempo, que essas cento e vinte noites e dias tinham passado à velocidade da luz, que tudo o que esteve fazendo era pôr um pé na frente do outro, frente ao primeiro, andando minuto a minuto, hora a hora, tratando de manter a raça sem submergir, tratando de conter os lessers. Não teve intenção de continuar fazendo-o durante tanto tempo. Não tinha planejado enganá-la durante todo esse tempo.
— Só me responda uma coisa. — disse — Uma única coisa. É melhor que me diga a verdade, ou que Deus me ajude, mas vou… — levou a mão à boca, apanhando um débil soluço com mão débil — Honestamente, Wrath… Sinceramente pensou que fosse te deter? No fundo de seu coração, verdadeiramente acreditou que fosse fazê-lo..?
Ele tragou com força enquanto ela pronunciava as palavras com voz estrangulada.
Wrath respirou fundo. No transcurso de sua vida, tinha sido ferido muitas, muitas vezes. Mas nada, nenhuma ferida que pudessem ter lhe infligido alguma vez a sua pessoa, tinha-lhe doído uma fração da dor que sentiu ao lhe responder.
— Não. — voltou a respirar fundo — Não, não acredito… Que fosse me deter.
— Quem falou com você esta noite? Quem foi que te convenceu para que me dissesse isso?
— Vishous.
— Deviria ter sabido. Ele é provavelmente a única pessoa, tirando o Tohr que poderia tê-lo… — Beth cruzou os braços, abraçando a si mesma, e ele teria dado a mão com que empunhava a adaga para ter sido ele, que a estivesse abraçando — Que esteja aí fora lutando me assusta como a merda, mas esquece algo… Emparelhei-me contigo sem saber que não se esperava que o rei estivesse no campo de batalha. Estava preparada para te apoiar ainda quando me aterrorizasse… Porque lutar nesta guerra está em sua natureza e em seu sangue. Idiota… — sua voz se quebrou — Tolo, teria te deixado fazê-lo. Mas em troca…
— Beth…
Interrompeu-o.
— Lembra-se da noite em que saiu no princípio do verão? Quando interveio para salvar o Z e logo permaneceu no centro da cidade lutando com os outros?
Seguro como o demônio que a recordava. Quando tinha retornado para casa, a tinha perseguido pelas escadas e fizeram sexo sobre o tapete da salinha do segundo andar. Várias vezes. Conservava como lembrança os shorts jeans que arrancou de seus quadris.
Jesus… Agora que pensava… Essa tinha sido a última vez que estiveram juntos.
— Disse-me que era somente por uma noite. — disse — Uma noite. Somente. Jurou, e confiei em você.
— Merda… O sinto.
— Quatro meses. — sacudiu a cabeça, e seu magnífico cabelo negro balançou sobre seus ombros, capturando a luz de uma maneira tão formosa que até seus inúteis olhos registraram seu esplendor — Sabe o que mais me dói? Que os Irmãos sabiam e eu não. Sempre aceitei esse assunto da sociedade secreta, entendi que há coisas que não posso saber…
— Eles tampouco sabiam. — bom Butch sabia, mas não havia razão para jogá-lo sob o ônibus — V se inteirou esta noite.
Ela cambaleou, e se encostou contra uma das paredes cor azul pálida.
— Esteve saindo sozinho?
— Sim. — estendeu a mão para lhe tocar o braço, mas ela o afastou — Beth…
Abriu a porta de um puxão.
— Não me toque…
A coisa se fechou de um golpe atrás dela.
A raiva contra si mesmo fez com que Wrath girasse sobre si e ficasse frente a seu escritório, e no instante em que viu todos os documentos, todas as solicitações, todas as queixas, todos os problemas, foi como se alguém tivesse conectado dois cabos cortados à suas omoplatas e lhe tivesse dado uma descarga. Lançou-se para frente, varreu com seus braços a superfície do escritório e fez voar a merda por toda parte.
Enquanto os papéis revoavam, caindo como neve, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos, a dor de cabeça lhe estava atravessando o lóbulo frontal. Ficou sem fôlego, cambaleou, encontrou sua cadeira pelo tato e se derrubou sobre a maldita coisa. Com um áspero grunhido, deixou que sua cabeça caísse para trás. Ultimamente estas enxaquecas por estresse se estavam convertendo em um sucesso diário, aniquilando-o e prolongando-se como uma gripe que se recusava a ser erradicada.
Beth. Sua Beth…
Quando ouviu um golpe na porta, deu um bom treinamento a sua boca com a palavra F.
O golpe voltou a soar.
— O que? — ladrou.
A cabeça de Rhage apareceu uma fresta, logo ficou imóvel.
— Ah…
— O que?
— Sim, bom… Ah, dados enviados… E, uau, o forte vento que evidentemente acaba de soprar sobre seu escritório… Segue querendo manter uma reunião conosco?
Oh, Deus… Como faria para manter outra dessas conversas.
Mas bom, talvez devesse ter pensado nisso antes de decidir mentir a seus seres mais próximos e queridos.
— Meu Senhor? — a voz de Rhage adquiriu um tom gentil — Deseja ver a Irmandade?
Não.
— Sim.
— Quer o Phury no viva-voz do telefone?
— Sim. Escuta, não quero os meninos nesta reunião. Blay, John e Qhuinn… Não estão convidados.
— Imaginava. Hey, o que te parece se te ajudo a limpar?
Wrath olhou o tapete coberto de papéis.
— Eu me encarrego.
Hollywood provou sua inteligência ao não voltar a oferecer-se nem tampouco sair com um “então?”. Simplesmente saiu e fechou a porta.
Do outro lado, o relógio de pé que estava em um rincão, badalou. Era outro som familiar que geralmente Wrath não ouvia, mas agora enquanto permanecia sentado a sós no escritório, as badaladas soavam como se fossem emitidas através de alto-falantes de concerto.
Deixou as mãos caírem sobre os braços da frágil cadeira giratória e estes se viram diminuídos. A peça de mobiliário era mais do estilo de algo que uma fêmea usaria ao final da noite para apoiar o pé e tirar as meias.
Não era um trono. E essa era a razão pela qual a usava.
Não quis aceitar a coroa por muitos motivos, tinha chegado a ser rei por direito de nascimento, não por inclinação e em trezentos anos não tinha assumido. Mas, tão logo Beth chegou as coisas mudaram e finalmente tinha ido ver a Virgem Escriba.
Isso tinha acontecido dois anos atrás. Duas primaveras, dois verões, dois outonos e dois invernos.
Naquele tempo tinha grandes planos, no início. Geniais e maravilhosos planos para unir à Irmandade, para que todos estivessem sob o mesmo teto, consolidando forças, escorando-se contra a Sociedade Lessening. Triunfando.
Salvando.
Reclamando.
Em troca, a glymera tinha sido sacrificada. Havia mais civis mortos. E havia ainda menos Irmãos.
Não tinham progredido. Tinham perdido terreno.
A cabeça de Rhage apareceu outra vez.
— Ainda estamos aqui fora.
— Maldito seja, disse que precisa de algum…
O relógio de pé voltou a soar, e enquanto Wrath escutava a quantidade de badaladas, deu-se conta que fazia uma hora que estava sentado a sós.
Esfregou os olhos doloridos.
— Dê-me outro minuto.
— Tudo o que necessite meu Senhor. Tome seu tempo.
Capítulo 13
Quando o olá de Rehvenge saiu pelo auricular de seu celular, Ehlena se ergueu na cama abandonando o travesseiro sobre o qual esteve deitada até esse momento, tragando um “Santa merda”… Logo se perguntou por que estava tão surpresa. Ela tinha ligado para ele, e segundo o manual, a forma em que a as pessoas encaravam esse tipo de situações era… Bom, pois, te devolvendo a ligação. Uau.
— Olá. — respondeu.
— Não atendi sua ligação apenas porque não reconheci o número.
Homem, sua voz era sexy. Profunda. De baixo. Como se supunha que devesse ser a de um macho.
No silêncio que seguiu, pensou, “tinha ligado para ele por que…?” Oh, sim.
— Quis fazer o acompanhamento depois de sua consulta. Quando preparei os papéis para a alta, notei que não tinha recebido nada para seu braço.
— Ah.
A pausa que seguiu foi uma que não pôde interpretar. Talvez estivesse zangado por sua interferência?
— Só queria me assegurar que estivesse bem.
— Está acostumada a fazer isto com todos os pacientes?
— Sim. — mentiu.
— Havers sabe que está comprovando seu trabalho?
— Ao menos olhou suas veias?
A risada de Rehvenge foi baixa.
— Preferia que tivesse ligado por uma razão diferente.
— Não entendo. — disse com tom tenso.
— O que? Que alguém possa querer fazer algo com você fora do trabalho? Não é cega. Olhou-se no espelho. E certamente sabe que é inteligente, assim não se trata de um agradável adorno de vidraça.
No que a ela concernia, estava falando em um idioma estrangeiro.
— Não entendo por que não se cuida.
— Hmmmm. —riu brandamente, ela além de escutar o ronrono em seu ouvido pôde percebê-lo fisicamente — Oh… Também pode ser que esteja fingindo para poder vê-la outra vez.
— Olhe, a única razão pela que liguei foi…
— Porque precisava de uma desculpa. Rechaçou-me na sala de exame, mas na realidade queria falar comigo. Assim, me liga com a desculpa de meu braço para obter que a atenda por telefone. E agora me tem. — sua voz baixou outro tom — Deixará-me escolher o que quero que faça comigo?
Ela permaneceu em silêncio. Até que ele disse:
— Olá?
— Terminou? Ou quer seguir dando voltas ao assunto um momento mais, procurando todo tipo de significados a respeito do que estou fazendo?
Houve um instante de silêncio, e logo ele irrompeu em uma profunda e sincera gargalhada com seu vivo tom de barítono.
— Sabia que me agradava por mais de uma razão.
Ela se negou a ser cativada. Mas de todos os modos foi.
— Liguei por seu braço. Ponto. A enfermeira de meu pai acaba de ir, e estávamos falando de uma…
Fechou a boca assim que se deu conta do que tinha revelado, sentindo como se tivesse tropeçado com o equivalente coloquial da ponta de um tapete solto.
— Continue. — lhe disse com gravidade — Por favor.
— Ehlena? Ehlena…
— Está aí, Ehlena?
Mais tarde, muito mais tarde, refletiria que essas três palavras tinham sido seu precipício: Está aí, Ehlena?
Verdadeiramente foi o começo de tudo o que se seguiu, a frase inicial de uma dilaceradora jornada disfarçada na forma de uma simples pergunta.
Alegrava-lhe não saber aonde a conduziria. Porque às vezes a única coisa que podia te ajudar a sair do inferno era o fato de que estava colocada muito profundamente para poder sair.
Enquanto Rehv esperava a resposta, seu punho se apertou tanto sobre o celular, que acionou uma das teclas contra a bochecha e esta emitiu um bip de: Errr, homem, te afrouxe um pouco.
O juramento eletrônico pareceu romper o feitiço em ambos.
— Sinto-o. — murmurou ele.
— Está bem. Eu, ah…
— Dizia…?
Não esperava que respondesse, mas então… Ela o fez.
— A enfermeira de meu pai e eu estávamos falando de um corte que está lhe dando problemas, e isso foi o que me fez pensar em seu braço.
— Seu pai está doente?
— Sim.
Rehv aguardou que dissesse algo mais, enquanto tentava decidir se exercer um pouco de pressão faria com que se calasse… Mas ela resolveu a questão.
— Alguns dos medicamentos que toma provoca instabilidade, razão pela que se choca contra as coisas e nem sempre se dá conta de que se machucou. É um problema.
— Sinto muito. Cuidá-lo deve ser difícil para você.
— Sou uma enfermeira.
— E uma filha.
— Assim, era por um assunto clínico. Minha ligação.
Rehv sorriu.
— Deixe-me perguntar algo.
— Eu primeiro. Por que não deixa que avaliem o braço? E não me diga que Havers viu essas veias. Se o tivesse feito, lhe teria receitado antibióticos, e se você tivesse recusado haveria uma nota em seu histórico informando que tinha apelado à AMA. Olhe tudo o que necessita para tratá-lo são algumas pílulas, e sei que não tem fobia à medicina. Toma uma quantidade infernal de dopamina.
— Se estava preocupada com meu braço, por que não me falou na clínica?
— Eu o fiz, recorda?
— Não desta forma. — Rehv sorriu na escuridão e acariciou com a mão o edredom de visom. Não podia senti-lo, mas se imaginava que a pele era tão suave como o cabelo dela — Ainda penso que queria me ter ao telefone.
A pausa que seguiu o preocupou com a possibilidade de que desligasse.
Sentou-se, como se a posição vertical evitaria que ela pressionasse o botão de fim.
— Só estou dizendo… Bom, merda, o que quero dizer é que me alegra que tenha ligado. Sem importar a razão.
— Não falei mais deste tema na clínica porque foi antes que acrescentasse as notas de Havers no computador. Esse foi o momento em que me dei conta.
Ele ainda não acreditava que a chamada fosse completamente por motivos profissionais. Poderia ter lhe mandado um email. Poderia ter dito ao doutor. Poderia passar a uma das enfermeiras do turno do dia para que fizesse o acompanhamento.
— Assim não há nenhuma possibilidade de que se sinta mal por me haver rechaçado tão duramente como o fez.
Ela clareou a garganta.
— Sinto por isso.
— Bom, a perdôo. Totalmente. Completamente. Tinha aspecto de não estar tendo uma boa noite.
Sua exalação foi uma manifestação de extenuação.
— Sim, não foi minha melhor noite.
— Por quê?
Outra longa pausa.
— É muito melhor por telefone, sabia?
Ele se pôs a rir.
— Muito melhor em que sentido?
— É mais fácil lhe falar. Na realidade… É bastante fácil falar com você.
— Faço-o bem no mano-a-mano.
De repente franziu o cenho, pensando no recebedor de apostas que tinha ajustado as contas em seu escritório. Merda, o pobre bastardo era somente um de um enorme número de traficantes de drogas, lacaios de Las Vegas, barmans e alcoviteiros que nos últimos anos tinha persuadido a golpes. Sua filosofia sempre tinha sido que a confissão era boa para a alma, especialmente quando se tratava de caras que pensavam que não notaria que o estavam fodendo. Seu estilo de administração também lançava uma importante mensagem em um negócio onde a debilidade fazia com que lhe matassem. O comércio clandestino requeria uma mão dura, e sempre tinha acreditado que essa era a realidade em que vivia, somente.
Entretanto, agora nesse sossegado momento, tendo Ehlena tão perto, sentia como se seu “mano-a-mano” era algo que requeria uma desculpa e ser encoberto.
— Então? Por que esta noite não foi boa? — perguntou desesperado por sossegar a si mesmo
— Meu pai. E logo… Bom, deixaram-me plantada.
Rehv franziu o cenho tão fortemente que de fato sentiu um leve ponto entre os olhos.
— Para um encontro?
— Sim.
Odiava a idéia dela saindo com outro macho. E não obstante invejava ao filho da puta, quem quer que fosse.
— Que imbecil. Sinto muito, mas que imbecil.
Ehlena riu, e ele amou o som, especialmente a forma em que seu corpo se esquentou um pouquinho mais em resposta. Homem, ao demônio com as duchas quentes. Essa risada suave e tranqüila era o que necessitava.
— Está sorrindo? — disse brandamente.
— Sim. Quero dizer, suponho que sim. Como soube?
— Simplesmente tinha a esperança de que fosse assim.
— Bom, realmente pode ser amável e encantador. — rapidamente para dissimular o elogio, disse — O encontro não era grande coisa nem nada. Não o conhecia muito bem. Era somente para tomarmos um café.
— Mas terminou a noite no telefone comigo. O que é muito melhor.
Ela voltou a rir.
— Bom, agora nunca saberei como seria sair com ele.
— Não?
— Eu somente… Bom, pensei nisso, e não acredito que ter encontros neste momento seja uma boa idéia, dada minha situação. — o surgimento de seu júbilo foi descartado quando adicionou — Com ninguém.
— Hmmm.
— Hmmm? O que significa hmmm?
— Significa que tenho seu número telefônico.
— Ah, sim, tem… — sua voz se deteve quando o sentiu mover-se — Espere, você está… Na cama?
— Sim. E antes que continue, não quer saber.
— Não quero saber, o que?
— Quanto, não estou usando.
— Errr... — enquanto duvidava, soube que estava sorrindo outra vez. E provavelmente ruborizando-se — Não tinha intenção de perguntar.
— Muito inteligente de sua parte. Sou somente eu e os lençóis… Ups. Acabo de dizer isso em voz alta?
— Sim. Sim, o fez. — sua voz baixou um tom como se o estivesse imaginando nu. E a imagem mental não lhe incomodasse minimamente.
— Ehlena… — deteve a si mesmo, seus impulsos symphath contribuíram para o autocontrole. Para ir mais devagar. Sim, Rehv a desejava tão nua como ele estava. Mas, mais que isso desejava que permanecesse no telefone.
— O que? — respondeu.
— Seu pai… Esteve doente durante muito tempo?
— Ah… Sim, sim, esteve. É esquizofrênico. Não obstante, agora o temos medicado, e está melhor.
— Maldito… Seja. Isso deve ser realmente difícil. Porque ele está aí, mas ao mesmo tempo não está correto?
— Sim… Essa é exatamente a forma em que se sente.
Era parecido à forma em que ele vivia, seu lado symphath era uma constante realidade alternativa, que o perseguia enquanto tratava de viver as noites como uma pessoa normal.
— Se não se incomodar que pergunte, — disse cuidadosamente — para que precisa da dopamina? Não há nenhum diagnóstico em seu histórico médico.
— Provavelmente porque Havers sempre esteve me tratando.
Ehlena riu incômoda.
— Suponho que esse deve ser o motivo.
Merda, o que lhe dizia.
O symphath que havia nele lhe dizia “Como é, simplesmente minta”. O problema era que de alguma parte tinha aparecido outra voz em seu cérebro, rivalizando com a primeira, uma que lhe era desconhecida e muito débil, mas categoricamente compulsiva. Entretanto, como não tinha nem idéia do que era, continuou com sua rotina.
— Tenho Parkinson. Ou, mais precisamente, o equivalente vampiro.
— Oh… O sinto. Então é por isso que usa bengala.
— Meu equilíbrio é ruim.
— Não obstante a dopamina está lhe fazendo bem. Quase não tem tremores.
Essa débil voz em sua cabeça se transformou em uma estranha dor no centro de seu peito, e por um momento deixou de lado o fingimento, e disse a verdade:
— Não tenho nem idéia do que faria sem essa droga.
— Os medicamentos de meu pai foram como um milagre.
— Você é a única que o cuida? — quando ela respondeu com um hmmm, perguntou — Onde está o resto de sua família?
— Somos somente ele e eu.
— Então você está enfrentando uma tremenda carga.
— Bom, o amo. E se os papéis estivessem invertidos, ele faria o mesmo. É o que pais e filhos fazem uns pelos outros.
— Nem sempre. É evidente que você procede de uma família de gente bondosa. — antes de poder deter-se, prosseguiu — Mas é por isso que se sente sozinha, não é verdade? Sente-se culpada se o deixar, embora seja por uma hora, e se fica em casa não pode ignorar o fato de que a vida está passando. Está presa e gritando, mas não mudaria nada.
— Devo ir.
Rehv fechou os olhos com força, essa dor em seu peito, expandia-se através de todo seu corpo como um incêndio sobre pasto seco. Com sua vontade acendeu uma luz, como se a escuridão se convertesse em um símbolo de sua própria existência.
— É apenas… Que sei o que sente, Ehlena. Não pelas mesmas razões… Mas entendo todo esse assunto da separação. Sabe esse conceito de que está vendo todo o resto do mundo viver suas vidas… Oh, porra, como é. Espero que durma bem…
— Assim é como me sinto a maior parte do tempo. — agora sua voz tinha um tom aprazível, e o alegrou que tivesse entendido o que tinha tratado de lhe dizer, apesar de que ele tinha sido tão eloqüente como um gato guia de ruas.
Agora era ele quem se sentia incômodo. Não estava acostumado a falar dessa forma… Nem a sentir dessa forma.
— Escute, deixarei que descanse um pouco. Alegra-me que tenha ligado.
— Sabe… A mim também.
— E Ehlena?
— Sim?
— Acredito que tem razão. Não é uma boa idéia que se envolva com alguém neste momento.
— Sério?
— Sim. Bom dia.
Houve uma pausa.
— Bom… Dia. Espere…
— O que?
— Seu braço. O que vai fazer com seu braço?
— Não se preocupe, estará bem. Mas obrigado por seu interesse. Significa muito para mim.
Rehv desligou primeiro e deixou o telefone sobre o edredom de visom. Fechou os olhos deixando a luz acesa. E não dormiu nada.
Capítulo 14
No complexo da Irmandade, Wrath abandonou a idéia de que logo se sentiria melhor em relação à situação com Beth. Inferno! Podia passar o próximo mês em sua cadeira, dando voltas na cabeça, e isso somente lhe gelaria o rabo.
E, enquanto isso, os cantos rodados[38] no corredor estavam ficando mofados e mal-humorados.
Abriu as portas duplas com sua vontade e como uma unidade seus irmãos ficaram firmes. Ao olhar através da extensão azul pálido do estúdio seus corpos grandes e duros na galeria, reconheceu-os não por seus rostos, nem sua roupa ou sua expressão, mas sim pelo eco de cada um em seu sangue.
As cerimônias da Tumba que uniu a todos ressonavam sem importar quanto tempo tivesse ocorrido.
— Não fiquem aí parados! — disse enquanto a Irmandade o olhava fixamente — Não abri essas fodidas portas para me converter em uma exibição de zoológico.
Os irmãos entraram com suas pesadas botas… Exceto Rhage, que usava suas sapatilhas, seu costumeiro calçado para casa sem importar a estação. Cada um dos guerreiros tomou sua posição habitual na sala, com Z indo parar junto à chaminé, V e Butch sentados no sofá de pernas estreitas recentemente reforçadas. Rhage se aproximou do escritório com uma série de “flip-flip-flip” para ligar o alto-falante do telefone, deixando que seus dedos abrissem o caminho para Phury que estava no aparelho.
Ninguém disse nada a respeito dos papéis que estavam no chão. Ninguém tentou recolhê-los. Era como se ali não houvesse nenhuma confusão, e assim era como Wrath preferia.
Enquanto Wrath fechava as portas com a mente, pensou em Tohr. O irmão estava na casa, mais precisamente no corredor das estátuas, a apenas umas poucas portas, mas estava em um continente diferente. Convidá-lo não era uma opção… Seria uma crueldade, dado onde estava sua mente.
— Olá? — saiu a voz de Phury do telefone.
— Estamos todos aqui. — disse Rhage antes de desembrulhar um Tootsie Pop e dirigir-se com seu “flip-flip-flip” para uma poltrona verde feia como o rabo.
A monstruosidade era de Tohr, e tinha sido levada ao escritório para que John Matthew dormisse nela depois que Wellsie fosse assassinada e Tohrment tivesse desaparecido. Rhage tendia a utilizar a coisa porque realmente com seu peso, era a opção mais segura para seu rabo, sofás reforçados de aço incluídos.
Com todos já acomodados, a sala ficou em silencio à exceção do rangido dos molares de Hollywood sobre essa coisa de cereja que tinha na boca.
— Oh, que diabos... — Rhage gemeu finalmente ao redor de seu pirulito — Só nos diga isso! Seja o que for. Estou a ponto de me pôr a gritar. Morreu alguém?
Não, mas certo como a merda que sentia como se tivesse matado algo.
Wrath olhou em direção ao irmão, logo olhou a cada um deles.
— Serei seu companheiro, Hollywood.
— Companheiro? — Rhage passeou a vista pela sala para comprovar e ver se todos tinham ouvido o mesmo que ele — Não está falando do gim rummy, verdade?
— Não. — disse Z em voz baixa— Não acredito que esteja.
— Sagrada Merda! — Rhage tirou outro pirulito do bolso da camiseta negra — Isto é legal?
— Agora é. — murmurou V.
Phury falou ao telefone.
— Espera, espera… É para me substituir?
Wrath sacudiu a cabeça embora o Irmão não pudesse vê-lo.
— É para substituir a muitas pessoas que perdemos.
A conversa borbulhou como uma lata da Coca Cola que acabasse de ser aberta de repente. Butch, V, Z e Rhage começaram a falar todos de uma vez até que uma voz metálica interrompeu o falatório:
— Então, também quero voltar.
Todos olharam o telefone, exceto Wrath que olhou fixamente a Z para medir a reação do tipo. Zsadist não tinha problemas em demonstrar ira. Jamais! Mas escondia a preocupação e a inquietação como se fosse dinheiro solto e estivesse rodeado de assaltantes: enquanto a declaração de seu gêmeo ressoava, ficou em modo de completa auto-proteção, esticando-se e sem emitir absolutamente nada em termos de emoção.
Ah, correto, pensou Wrath. O duro bastardo estava assustado como um eunuco.
— Está certo de que é uma boa idéia? — perguntou Wrath lentamente — Possivelmente lutar não é o que necessita neste momento, Irmão.
— Não fumei em quase quatro meses. — disse Phury pelo alto-falante — E não tenho planos de voltar para as drogas.
— O estresse não fará essa merda mais fácil.
— Oh! Mas, ficar sentado sobre meu rabo enquanto o seu está fora o fará?
Maravilhoso. O rei e o Primale no campo de batalha pela primeira vez na história. E por quê? Porque a Irmandade estava nas últimas.
Grande recorde para superar. Como ganhar os fodidos cinqüenta metros nas olimpíadas para perdedores.
Cristo!
Salvo que então Wrath pensou nesse civil morto. Era esse um desenlace melhor? Não!
Recostando em sua delicada cadeira, olhou a Z com dureza.
Como se sentisse os olhos sobre ele, Zsadist se afastou do suporte da chaminé e ficou caminhando pelo escritório. Todos sabiam o que estava imaginando: Phury com uma overdose no chão do banheiro, com uma seringa de heroína vazia, atirada a seu lado, sobre o mosaico.
— Z? — a voz de Phury saiu do telefone — Z? Levante o auricular…
Quando Zsadist conversou com seu gêmeo, seu rosto, com a cicatriz trincada, adquiriu um cenho tão desagradável que até Wrath podia ver seu olhar enfurecido. E a expressão não melhorou ao dizer:
— Enche o saco! Sim. Enche o saco! Sei. Correto. — houve uma longa, longa pausa — Não, ainda estou aqui. Ok. Bem.
Pausa.
— Jura-me isso! Pela vida de minha filha.
Após um momento, Z apertou o alto-falante outra vez, pôs o auricular em seu lugar e voltou para a chaminé.
— Estou dentro. — disse Phury.
Wrath se mexeu na efeminada cadeira, desejando que muitas coisas fossem diferentes.
— Sabe possivelmente em outro momento, diria que desistisse. Agora, somente direi… Quando pode começar?
— Ao anoitecer. Deixarei Cormia responsável com as Escolhidas enquanto estou fora no campo de batalha.
— A sua fêmea vai receber isso bem?
Houve uma pausa.
— Ela sabe com quem se emparelhou. E serei honesto com ela.
Ouch!
— Agora tenho uma pergunta. — disse Z brandamente — É a respeito do sangue seco que há em sua camiseta, Wrath.
Wrath pigarreou.
— De fato, já faz um tempo que retornei. À luta.
A temperatura da habitação caiu. Devido a que Z e Rhage ficaram de saco cheio por não terem sabido.
E então, repentinamente, Hollywood amaldiçoou.
— Espere… Espere. Vocês dois sabiam… Sabiam antes de nós, verdade? Porque nenhum parece surpreso.
Butch clareou a garganta, porque o olhavam com fúria.
— Precisava de mim para fazer a limpeza. E V tentou lhe fazer mudar de opinião.
— Quanto tempo faz que começou isto, Wrath? — ladrou Rhage.
— Desde que Phury deixou de lutar.
— Está brincando!
Z foi a passos longos até uma das janelas que iam do chão ao teto, e apesar das persianas estarem abaixadas, olhou fixamente a coisa como se pudesse ver os terrenos que havia do outro lado.
— Maldita boa coisa que não tenha conseguido que o matassem aí fora.
Wrath despiu suas presas.
— Acredita que luto como uma mariquinha simplesmente porque agora estou atrás deste escritório?
A voz de Phury se elevou do telefone.
— Bem, todo mundo, relaxem! Agora todos sabemos, e as coisas vão ser diferentes de agora em diante. Ninguém lutará sozinho, embora vamos de três em três. Mas, preciso saber, isto vai ser de conhecimento geral? Anunciará depois de amanhã na reunião do conselho?
Caralho, esse feliz e pequeno enfrentamento não era algo que estivesse desejando levar a cabo.
— Acredito que por hora manteremos em silêncio.
— Sim. — replicou Z — Porque realmente, para que ser honestos?
Wrath o ignorou.
— Embora direi a Rehvenge. Sei que há membros da glymera que se estão queixando pelos assaltos. Se converter isso em algo muito grande, poderá acalmar as coisas com este tipo de informação.
— Já terminamos? — perguntou Rhage com voz monótona.
— Sim. Isso é tudo.
— Então vou indo.
Hollywood abandonou a sala indignado, e Z se foi justo detrás dele, duas vítimas mais da bomba que Wrath tinha deixado cair.
— Como Beth reagiu? — perguntou V.
— Como acha? — Wrath ficou de pé e seguiu o exemplo do par que tinha saído.
Hora de ir procurar à Doutora Jane para que o costurasse, assumindo que os cortes já não se fecharam.
Precisava estar preparado para voltar a sair para lutar amanhã.
Na fria e brilhante luz da manhã, Xhex se desmaterializou para o outro lado de uma parede alta, aos ramos nus de uma robusta sebe. A mansão que estava mais à frente descansava na superfície da paisagem como uma pérola cinza engastada em uma filigrana, árvores finas e cortadas pelo vento se elevavam ao redor da velha casa paroquial de pedra, ancorando-a na ondulada grama, prendendo-a contra a terra.
O débil sol de dezembro se derramava sobre ela, fazendo com que o que teria sido austero de noite parecesse unicamente venerável e distinto.
Seus óculos de sol eram quase negros, a única concessão que precisava fazer a seu lado vampiro se saía durante o dia. Atrás das lentes, sua visão permanecia aguda e via cada detector de movimento, cada luz de segurança e cada janela de vidro chumbado coberta por venezianas.
Entrar ia ser um desafio. Os vidros desses caras estavam sem dúvida reforçados com aço, o que queria dizer que desmaterializar-se para dentro seria impossível embora as venezianas estivessem levantadas. E com seu lado symphath, pressentiu que havia muitas pessoas dentro: na cozinha estava o pessoal. Acima estavam os que dormiam. Outros estavam movendo-se pelo lugar. Não era uma casa feliz, os quadriculados emocionais deixados pelas pessoas que havia ali estavam cheios de sentimentos sombrios e violentos.
Xhex se desmaterializou ao teto da seção principal da mansão, lançando a versão symphath do mhis. Não a ocultava por completo, mas era como se a convertesse em mais uma sombra, entre as sombras projetadas pelas chaminés e a merda do sistema do CVAA, mas era suficiente para comprar um passe pelos detectores de movimento.
Aproximando-se de um conduto de ventilação, encontrou uma lâmina de malha de aço grosso como uma regra, atarraxada às paredes de metal. A chaminé estava igual. Coberta com aço robusto.
Não a surpreendia. Tinham uma segurança muito boa aqui.
A melhor oportunidade de penetração seria de noite, utilizando uma pequena furadeira à pilhas em uma das janelas. As acomodações dos criados estavam atrás, seria um bom lugar para entrar, dado que o pessoal estaria trabalhando e essa parte da casa estaria mais tranqüila.
Entrar. Encontrar o objetivo. Eliminá-lo.
As instruções de Rehv era deixar um cadáver chamativo, assim não se incomodaria em ocultá-lo nem tampouco em desfazer do corpo.
Enquanto andava através dos pequenos seixos que cobriam o teto, os cilícios que levava ao redor das coxas lhe mordiam os músculos a cada passo, a dor a drenava de certa quantidade de energia e lhe proporcionava a concentração necessária… Ambas as coisas ajudavam a manter seus impulsos symphath presos no espaço traseiro de seu cérebro.
Não levaria postas as tiras com cilícios quando realizasse o trabalho.
Xhex se deteve e elevou o olhar ao céu. O vento seco e cortante prometia neve, e logo. O profundo gelo do inverno estava chegando a Caldwell.
Mas esteve em seu coração durante anos.
Abaixo dela, sob seus pés, voltou a sentir as pessoas, lendo suas emoções, as sentindo. Mataria a todos se o pedissem. Os assassinaria sem pensar nem duvidar enquanto jaziam em suas camas ou se dirigiam a seus deveres ou roubavam um bocado de meio-dia ou se levantavam para uma mijada rápida antes de voltar a dormir.
Tampouco lhe incomodava o resíduo sujo e detalhes do falecimento nem todo esse sangue, não mais do que a uma H&K ou a uma Glock importariam uma merda as manchas no tapete ou os ladrilhos melados ou as artérias que gotejavam. A cor vermelha era unicamente o que via quando ia trabalhar, e, além disso, de todos os modos, depois de um momento, todos esses olhos horrorizados e sobressaltados e essas bocas afogadas com os últimos fôlegos, viam-se todas iguais.
Essa era a grande ironia. Na vida, cada um era um floco de neve de formosa e independente proporção, mas quando a morte chegava e se sujeitava, deixava-te com pele, músculos e ossos anônimos, os quais se esfriava e deterioravam a um ritmo previsível.
Ela era a arma conectada ao indicador de seu chefe. Ele apertava o gatilho, ela disparava, o corpo caía, e apesar do fato de que algumas vidas eram alteradas para sempre, no dia seguinte o sol ainda saía e se punha para todas as demais pessoas que havia no planeta, incluindo a ela.
Tal era o curso de seu trabalho-obrigação, como o definia: metade emprego, metade obrigação pelo que Rehv fazia para proteger aos dois.
Quando voltasse para este lugar ao anoitecer, faria o que tinha que fazer ali e sairia com a consciência tão intacta e segura como uma abóbada bancária.
Entrar e sair e nunca voltar a pensar nisso.
Assim era o caminho e a vida de um assassino.
Capítulo 15
Os aliados eram a terceira engrenagem na maquinaria da guerra.
Os recursos e os recrutas lhe davam o motor tático que permitiam a se enfrentar, cercar combate, e reduzir o tamanho e força dos exércitos de seus inimigos. Os aliados eram sua vantagem estratégica, gente cujos interesses estavam alinhados com os teus, embora suas filosofias e metas finais pudessem não coincidir. Era tão importante como o primeiro e o segundo se queria ganhar, mas eram um pouco menos controláveis.
A menos que soubesse como negociar.
— Estamos conduzindo faz um tempo. — disse o senhor D detrás do volante do Mercedes do falecido pai adotivo de Lash.
— E vamos seguir conduzindo um pouco mais. — Lash estudou seu relógio.
— Não vai dizer aonde vamos?
— Não. Não o fiz, verdade?
Lash olhou pela janela do sedã. As árvores aos lados da Northway pareciam desenhos feitos a lápis antes que se riscassem as primeiras folhas, nada mais que carvalhos ermos, sebes altas, finas e retorcidas. As únicas a ter um pouco de verde eram as robustas e rechonchudas coníferas, as quais iam aumentando em número à medida que se internavam no Parque Adirondack.
Céu cinza. Auto-estrada cinza. Árvores cinza. Era como se a paisagem do estado de Nova Iorque tivesse caído presa da gripe ou alguma merda assim, com um aspecto tão são como o de alguém que não tinha recebido sua vacina de pneumonia a tempo.
Havia duas razões pelas que Lash não tinha sido franco sobre aonde ele e seu segundo ao comando se dirigiam. A primeira era diretamente de mariquinha, e mal podia admitir para si mesmo. Não estava certo se iria ao encontro que tinha marcado.
A questão era que este aliado era complicado, e Lash sabia que só o fato de se aproximar era como cutucar um ninho de vespas com um pau. Sim, seria um grande aliado potencial, mas, se em um soldado a lealdade era um bom atributo, em um aliado era missão crítica, e para onde se dirigiam a lealdade era um conceito tão desconhecido como o medo. Assim, estava mais ou menos fodido nos dois extremos e por isso não falava. Se a reunião não corresse bem, ou se sua aproximação não funcionasse, não haveria negociação, e nesse caso, o senhor D não tinha que saber os pormenores de com quem ia negociar.
A outra razão que fazia com que Lash guardasse silêncio era que não estava seguro se a outra parte apareceria à festa. Em cujo caso, outra vez, não queria que soubessem o que tinha estado planejando.
Na lateral da estrada, em um pequeno sinal verde com letras refletivas brancas se lia: FRONTEIRA EUA 61.
Sim, sessenta e um quilômetros e estaria fora do país… E por isso a colônia symphath tinha sido colocada lá em cima. O objetivo tinha sido manter a todos esses filhos da puta sociopatas tão longe da população civil vampiro como fosse possível, e o objetivo foi alcançado. Um pouco mais perto do Canadá e teria que lhes dizer “foda-se” e “morre” em francês.
Lash fazia o contato graças ao velho Rolodex de seu pai adotivo, o que como o carro do macho, tinha provado ser muito útil. Como anterior leahdyre da câmara de vereadores, Ibix teve uma forma de contatar com os symphaths no caso de algum se encontrar escondendo-se entre a população geral e ter que ser deportado. É obvio, que a diplomacia entre as espécies nunca tinha sido oficial. Isso teria sido como oferecer a garganta exposta a um assassino em série, com o Henckels para cortá-la inclusive.
O e-mail de Lash ao rei dos symphaths tinha sido curto e direto ao ponto, e na breve missiva, identificou-se como quem era realmente, não como quem tinha crescido pensando que era: ele era Lash, chefe da Sociedade Lessening. Lash, filho de Omega. E estava procurando uma aliança contra os vampiros que tinham discriminado e rechaçado aos symphaths.
Certamente o rei queria vingança pela falta de respeito demonstrada a sua gente.
A resposta que recebeu foi tão gentil que quase vomitou. Mas então recordou de seus dias de treinamento que os symphaths tratavam tudo como se fosse uma partida de xadrez… Exatamente até o momento em que capturavam a seu rei, convertiam a sua rainha em uma puta, e queimavam seus castelos. A resposta do líder da colônia assinalava que um debate associado de interesse mútuo seria bem-vindo, e tinha perguntado se Lash seria tão amável de ir ao norte, já que as opções de viagem do rei exilado estavam, por definição, limitadas.
Lash fora de carro porque impôs uma condição própria, que era a assistência do senhor D. A verdade era que estabeleceu a condição simplesmente para igualar as demandas. Queriam que fosse a eles, bem, ele levaria um de seus homens. E como o lesser não podia desmaterializar-se, era necessário dirigir.
Cinco minutos depois, o senhor D pegou uma saída da auto-estrada e atravessou um centro urbano que era do tamanho de apenas um dos sete parques da cidade de Caldwell. Aqui não havia arranha-céu, só edifícios de tijolos de quatro e cinco andares, tanto assim parecia como se os duros meses de inverno tivessem impedido não só o crescimento das árvores, mas também da arquitetura.
Por ordem de Lash, conduziram para o oeste, passando hortas de pomares de maçãs desfolhados e granjas de vacas cercadas.
Como tinha feito na auto-estrada, aqui também desfrutou da paisagem com olhos ávidos. Ainda o surpreendia poder presenciar a leitosa luz solar de dezembro lançando sombras sobre calçadas, telhados de casas e sobre a terra marrom que havia sob as nuas extremidades das árvores. Em seu renascimento, seu verdadeiro pai lhe deu um propósito renovado, junto com este dom da luz diurna, e desfrutava imensamente de ambos.
O GPS do Mercedes apitou um par de minutos depois, e a leitura se tornou toda incerta. Imaginou que isso significava que se aproximavam da colônia, e para lhe dar razão apareceu a estrada que estavam procurando. Ilene Avenue estava indicada somente por um diminuto sinal. E avenida, uma merda, não era nada mais que um caminho de terra que cruzava os campos de milho.
O sedã fazia o que podia sobre o caminho acidentado, seus amortecedores absorviam as crateras criadas pelos atoleiros, mas a viagem teria sido mais fácil em um fodido quatro por quatro. Não obstante, ao final, na distância apareceu um grosso circulo de árvores, e a granja que conformava a cabeça ao redor da qual estavam apinhados, estava em condições imaculadas, toda pintada de um branco brilhante com venezianas e teto verde escuro. Como tirado de um cartão de natal humano, com fumaça saindo de suas quatro chaminés, e o alpendre equipado com cadeiras de balanço e arbustos de folha perene.
Ao aproximar-se, passaram um discreto sinal branco e verde que dizia: ORDEM MONÁSTICA TAOISTA, EST. 1982.
O senhor D estacionou o Mercedes, desligou o motor, e fez o sinal da cruz sobre seu peito. O que era fodidamente estúpido.
— Isto me dá mau agouro.
A questão era que o pequeno texano tinha razão. Apesar do fato de que a porta dianteira estava aberta e a luz do sol se derramava sobre um piso de madeira de uma quente cor cereja, algo mal espreitava depois da fachada familiar. Era simplesmente muito perfeito, muito calculado para fazer com que uma pessoa se relaxasse e assim debilitar seus instintos defensivos.
Lash pensou que era como uma garota bonita com uma ETS.
— Vamos. — disse.
Ambos saíram, e enquanto o senhor D empunhava sua Magnum, Lash não se incomodou em procurar sua arma. Seu pai lhe tinha proporcionado muitos truques, e a diferença daquelas ocasiões em que tratava com humanos, não tinha problemas em mostrar suas habilidades especiais diante de um symphath. Se acaso, montar um espetáculo ajudaria a que o vissem sob a luz apropriada.
O senhor D colocou seu chapéu de cowboy.
— Isto realmente me dá um mau pressentimento.
Lash entrecerrou os olhos. Frente a cada uma das janelas, penduravam cortinas de renda, mas apesar do branco do tecido, a merda era horripilante... Uau! Moviam-se?
Nesse momento, compreendeu que não era renda, a não ser tecidos de aranha. Povoadas por aracnídeos brancos.
— São... Aranhas?
— Sim. — certamente não seria a escolha decorativa de Lash, mas bom, ele não tinha que viver ali.
Os dois se detiveram no primeiro dos três degraus que levavam ao alpendre dianteiro. Caralho, algumas portas abertas não eram acolhedoras, e definitivamente aqui se dava o caso... Menos de “olá-como-está”, e mais de “entra-assim-poderemos-usar-tua-pele-para-fazer-uma-capa-de-superherói-para-um-dos-pacientes-de-hannibal-lecter”.
Lash sorriu. Quem quer que estivesse nessa casa era definitivamente um amigo.
— Quer que suba e toque a campainha? — disse o senhor D — Se é que há?
— Não. Esperaremos. Eles virão até nós.
E olhe só, alguém apareceu no extremo mais afastado do vestíbulo dianteiro.
O que desceu para eles tinha suficiente tecido pendurando de sua cabeça e ombros para competir com um cenário da Broadway. O tecido era estranho, de um branco reluzente, um branco que captava a luz e a refletia entre as grossas dobras, e o peso de toda ela era capturado por um forte cinturão branco de brocado.
Muito impressionante. Se te agradava o filme monarca-sacerdotal.
— Saudações, amigo. — disse uma voz baixa e sedutora — Sou o que procuram, o líder dos ingratos.
Os “s” se arrastavam até quase formar palavras independentes, o acento soava muito parecido ao tremor de advertência de uma serpente cascavel.
Um calafrio atravessou Lash e o formigamento desceu até seu pênis. O poder era, antes de tudo, melhor que o “Êxtase” como afrodisíaco, e esta coisa que se deteve entre os batentes da porta dianteira era toda autoridade.
Longas e elegantes mãos se estenderam para o capuz e jogaram as brancas dobras para trás. O rosto do líder ungido dos symphaths era tão suave como sua espetacular túnica, os planos das bochechas e queixo formados por elegantes e suaves ângulos. O lago genético que tinha engendrado a este formoso e decadente assassino era tão refinado que seu sexo era quase único, fundindo as características de macho e fêmea, com uma preponderância para o feminino.
Entretanto, o sorriso era completamente gelado. E os cintilantes olhos vermelhos eram sagazes até a malevolência.
— Não querem entrar?
A adorável voz serpentina fundiu essas palavras umas com outras, e Lash se encontrou desfrutando do som.
— Sim. — disse, voltando a concentrar-se no assunto — Faremos isso.
Quando se adiantou, o rei elevou a palma da mão.
— Um momento, se não se importar. Por favor, diga a seu associado que não tenha medo. Nada lhes fará mal aqui. — a declaração era bastante amável na superfície, mas o tom foi duro... Do qual Lash deduziu que não eram bem-vindos na casa se o senhor D levava uma arma na mão.
— Guarde a arma. — disse Lash brandamente — Nos tenho cobertos.
O senhor D embainhou a 357, com um “sim, senhor” tácito, e o symphath se afastou da porta.
Enquanto subiam os degraus, Lash franziu o cenho e baixou o olhar. Suas pesadas botas de combate não faziam nenhum som sobre a madeira, e o mesmo ocorreu sobre as tabuletas do alpendre quando se aproximaram da porta.
— Preferimos as coisas silenciosas. — o symphath sorriu, revelando que tinha os dentes parecidos, o que foi uma surpresa. Evidentemente, as presas destas criaturas, que uma vez tinha estado estreitamente aparentadas com os vampiros, tinham sido extirpadas. Se ainda se alimentavam, não podia ser muito freqüentemente, a menos que gostassem das facas.
O rei estendeu o braço à esquerda.
— Passamos ao salão?
O “salão” poderia ser descrito mais precisamente como “pista de boliche com cadeiras de balanço”. O espaço não era mais que um lustroso piso de madeira, e paredes cobertas só por pintura branca. No meio do caminho havia quatro cadeiras Shaker agrupadas formando um semicírculo ao redor da lareira acesa como se tivessem medo de tanto vazio e se apinhassem em busca de apoio.
— Sentem-se. — disse o rei enquanto levantava e afastava sua túnica para sentar-se em uma das altas e débeis cadeiras.
— Você fica de pé. — ordenou Lash ao senhor D, que obedientemente tomou posição atrás de onde Lash se sentou.
As chamas não estalavam alegremente ao consumir os lenhos que lhes tinham dado vida e as alimentavam. As cadeiras de balanço não rangeram quando o rei e Lash depositaram seu peso nelas. As aranhas não emitiram som quando cada uma caiu no centro de sua rede, como se preparassem-se para presenciar a reunião.
— Você e eu temos uma causa comum. — disse Lash.
— Parece acreditar nisto.
— Acreditava que sua raça acharia a vingança atrativa.
Quando o rei sorriu, esse estranho calafrio se disparou para o sexo de Lash.
— Está mal informado. A vingança não é mais que uma defesa crua e emocional contra um desprezo recebido.
— Está me dizendo que está abaixo de você? — Lash se recostou para trás e pôs sua cadeira em movimento, levando-a adiante e atrás — Hmmmm... Posso ter julgado a sua raça mal.
— Somos mais sofisticados que isso, sim.
— Ou talvez sejam só um bando de maricas.
O sorriso desapareceu.
— Somos muito superiores àqueles que acreditam nos haver aprisionado. Para falar a verdade, preferimos nossa própria companhia. Acredita que não projetamos este resultado? Tolo. Os vampiros são o caldo de cultivo a partir do qual evoluímos, são os chimpanzés para nosso raciocínio superior. Iria querer permanecer entre animais se pudesse viver em uma civilização com os de sua própria espécie? É obvio que não. Um busca a seus iguais. Requer a seus iguais. Aqueles de mentes semelhantes e superiores devem ser alimentados somente por aqueles de status similar. — os lábios do rei se elevaram — Sabe que é correto. Você tampouco ficou onde começou. Verdade?
— Não, não o fiz. — Lash deixou ver suas presas, pensando que sua marca de maldade não tinha encaixado entre os vampiros melhor do que ocorreu com os devoradores de pecados — Agora estou onde devo estar.
— Assim já vê. Se não tivéssemos desejado o exato resultado que obtivemos nesta colônia, poderíamos ter empreendido não precisamente uma vingança, mas sim uma ação corretiva que buscasse que nosso destino fosse favorável a nossos interesses.
Lash deixou de balançar-se.
— Se não estava interessado em uma aliança, poderia ter me dito isso sem delongas em um fodido email.
Uma estranha luz cintilou nos olhos do rei, uma que fez com que Lash se excitasse ainda mais, mas também o repugnou. Não ia a essa merda homossexual, e ainda assim... Bem, demônios, seu pai gostava dos machos, talvez algo disso se levava no sangue.
E acaso isso não daria ao senhor D algo pelo que rezar?
— Mas se tivesse enviado um email, não teria o prazer de te conhecer. — esses olhos cor vermelha rubi percorreram o corpo de Lash — E isso teria sido um roubo a meus sentidos.
O pequeno texano clareou a garganta, como se estivesse se engasgando com a língua.
Quando a tosse desaprovadora se desvaneceu, a cadeira do rei começou a mover-se acima e abaixo silenciosamente.
— Entretanto, há algo que poderia fazer por mim... Algo que por sua vez faria sentir obrigado a te proporcionar o que busca... Que é localizar vampiros, não é assim? Essa foi durante muito tempo a luta da Sociedade Lessening. Encontrar vampiros dentro de seus lares ocultos.
O bastardo tinha posto o dedo na ferida. No verão, Lash tinha sabido onde atacar porque tinha estado nos imóveis dos que tinha matado, participando de festas de aniversário de seus amigos, bodas de seus primos e bailes da glymera celebrados naquelas mansões. Agora, entretanto, o que ficava da elite dos vampiros se dispersou nos subúrbios da cidade ou tinha ido a seus refúgios fora do estado, e não conhecia esses endereços. E quanto aos civis? Aí não tinha nem idéia de por onde começar, porque nunca tinha confraternizado com o proletariado.
Os symphaths, entretanto, podiam sentir a outros, humanos e vampiros igualmente, vendo-os através de paredes sólidas e alicerces de porões subterrâneos. Se quisesse fazer algum progresso, precisava desse tipo de visão, era a única coisa que faltava entre todas as ferramentas que seu pai estava lhe proporcionando.
Lash empurrou o chão com suas botas de combate outra vez e adotou o mesmo ritmo que o rei.
— E exatamente o que é o que poderia necessitar de mim? — disse arrastando as palavras.
O rei sorriu.
— Os acoplamentos são nosso pilar fundamental, verdade? A união de um macho e uma fêmea. E não obstante dentro dessas relações íntimas é comum a discórdia. Promessas são feitas, mas não se mantêm. Pronunciam-se votos e ainda assim se descartam. Contra estas transgressões, medidas devem ser tomadas.
— Parece que esteve falando de vingança, tipo duro.
Esse rosto suave adquiriu uma expressão de auto-suficiência.
— Não, vingança não. Ação corretiva. Se isso implicar uma morte... É simplesmente o que a situação requer.
— Morte, não é? Assim que os symphaths não acreditam no divórcio?
Os olhos cor rubi cintilaram com desprezo.
— No caso de um consorte desleal cujas ações fora da cama atuam contra a alma da relação, a morte é o único divórcio.
Lash assentiu com a cabeça.
— Entendo a lógica. E quem é o objetivo?
— Está se comprometendo a atuar?
— Ainda não. — não tinha claro exatamente quão longe estava disposto a chegar. Sujar as mãos dentro da colônia não fora parte de seu plano original.
O rei deixou de balançar-se e ficou em pé.
— Pensa então, até que esteja seguro. Quando estiver preparado para receber de nós o que necessita para a guerra, volte para mim e mostrarei o modo de proceder.
Lash também se levantou.
— Por que simplesmente não mata você mesmo a sua companheira?
O lento sorriso do rei foi como o de um cadáver, rígido e frio.
— Meu queridíssimo amigo, o insulto que mais reprovo não é tanto a deslealdade, a qual poderia esperar, mas sim a arrogante hipótese de que nunca me inteiraria do engano. O primeiro é uma insignificância. O último é indesculpável. Agora... O acompanho até seu carro?
— Não. Sairemos por nós mesmos.
— Como desejar. — o rei estendeu sua mão de seis dedos — Foi um prazer...
Lash estendeu a sua e quando suas palmas se encontraram, sentiu a eletricidade lambendo seu braço.
— Sim. O que for. Terá notícias minhas.
Capítulo 16
Ela estava com ele... Oh, Deus, finalmente estava de volta com ele.
Tohrment, filho de Hharm, estava nu e pressionado contra a carne de sua amada, sentindo sua pele acetinada e ouvindo seu ofego quando levava a mão até seu peito. Cabelo vermelho... Havia cabelo vermelho esparramado por todo o travesseiro, a fez rodar de costas sobre os lençóis brancos que cheiravam como limões... Cabelo vermelho enredado ao redor de seu grosso antebraço.
O mamilo estava tenso contra seu polegar que se movia em círculos e sentiu a suavidade de seus lábios sob os seus ao beijá-la profunda e lentamente. Quando estivesse suplicando por ele, rodaria sobre ela e a tomaria por cima, penetrando-a com força, segurando-a em seu lugar.
Gostava de seu peso. Gostava da sensação de que a cobrisse. Em sua vida juntos, Wellsie era uma fêmea independente com uma mente forte e uma veia teimosa que rivalizava com a de um bulldog, mas na cama gostava que ele estivesse em cima.
Deixou cair a boca sobre seu seio, sugando o mamilo, fazendo-o rodar, beijando-o.
— Tohr...
— O que, leelan? Mais? Talvez tenha que te fazer esperar...
Mas não podia. Ocupou-se dela e lhe acariciou o estômago e os quadris. Quando se retorceu, lambeu seu pescoço e passou as presas pela jugular. Não podia esperar para alimentar-se. Por alguma razão, estava ávido de sangue. Talvez estivesse lutando muito.
Os dedos dela se afundaram em seu cabelo.
— Tome minha veia...
— Ainda não. — o aguilhão da espera só o faria ainda melhor... Quanto mais a desejasse, mais doce seria o sangue.
Deslocando-se para sua boca, beijou-a com mais força que antes, penetrando-a com a língua enquanto deliberadamente esfregava seu pênis contra a coxa, uma promessa de outra invasão, mais profunda em sua parte inferior. Estava completamente excitada, sua fragrância se elevava acima do aroma de limão dos lençóis, fazendo com que as presas brotassem em sua boca e a ponta de seu sexo se umedecesse.
Sua shellan tinha sido a única mulher que tinha conhecido. Ambos eram virgens na noite de seu emparelhamento... E ele nunca tinha desejado a ninguém mais.
— Tohr...
Deus! Amava o som baixo de sua voz. Amava tudo nela. Foram prometidos um ao outro antes de nascerem, e no momento em que se conheceram havia sido amor a primeira vista. O destino tinha sido amável com eles.
Deslizou a palma até sua cintura, e então...
Deteve-se, compreendendo que algo ia mal. Algo...
— Sua barriga... Sua barriga está plana.
— Tohr...
— Onde está o pequeno? — retirou-se, sentindo pânico — Estava grávida. Onde está o pequeno? Está bem? O que aconteceu com você... Está bem?
— Tohr...
Ela abriu os olhos, e o olhar que tinha conhecido durante centenas de anos se concentrou nele. Uma tristeza, do tipo que o fazia desejar não ter nascido jamais, eliminou o rubor sexual de seu formoso rosto.
Levantando o braço para ele, pôs a mão em sua bochecha.
— Tohr...
— O que aconteceu?
— Tohr...
O brilho em seus olhos e o tremor de sua adorável voz o partiu pela metade. Logo começou a distanciar-se, o corpo começou a desaparecer sob suas mãos, seu cabelo vermelho, seu rosto delicioso, seus olhos desesperados se desvaneceram até que ante ele somente ficaram os travesseiros. Logo, com um golpe final, o aroma de limão dos lençóis e a fragrância natural somente dela deixaram seu nariz, substituídos por nada...
Tohr se endireitou de um salto no colchão, com os olhos alagados de lágrimas e seu coração dolorido como se tivesse pregos atravessando seu peito. Respirando agitadamente se aferrou o esterno e abriu a boca para gritar.
Não saiu nenhum som. Não tinha forças.
Caindo para trás sobre os travesseiros limpou as bochechas úmidas com mãos trementes e tentou acalmar esse inferno. Quando finalmente recuperou o fôlego, franziu o cenho. Seu coração estava saltando dentro de sua caixa torácica, estava revoando mais que pulsando, e um enjôo, ocasionado, sem dúvida por seus erráticos espasmos fazia girar sua cabeça em um redemoinho.
Levantando a camiseta, baixou o olhar a seus peitorais desinflados e a seu torso encolhido e insistiu a seu corpo a seguir falhando. Os acessos lhe estavam chegando com crescente regularidade e força, e desejava como o demônio que se organizassem de uma vez e o ajudassem a despertar morto. Se quisesse ir ao Fade para estar com seus defuntos seres queridos, o suicídio não era uma opção, mas ele estava operando sob a presunção de que podia ser efetivamente negligente consigo mesmo até a morte. O que tecnicamente não era um suicídio, como seria se disparar um tiro ou jogar um nó corrediço ao redor do pescoço, ou cortar os punhos.
O aroma de comida que chegava do corredor o fez olhar ao relógio. Quatro da tarde. Ou era da manhã? As cortinas estavam corridas, assim não sabia se as persianas estavam levantadas ou baixadas.
Soou um golpe suave.
O qual, fodido obrigado, significava que não era Lassiter, que simplesmente entrava sempre que queria. Evidentemente os anjos caídos não sabiam muito de boas maneiras. Nem de espaço pessoal. Nem de limites de algum tipo. Estava claro que o grande e brilhante pesadelo foi arremessado a pontapés do céu porque Deus não tinha gostado de sua companhia muito mais do que Tohr gostava.
O golpe se repetiu. Assim devia ser John.
— Sim. — disse Tohr, permitindo que sua camiseta caísse enquanto se elevava para recostar-se sobre os travesseiros. Seus braços, uma vez fortes como gruas, lutaram sob o peso de seus ombros caídos.
O menino, que já não era um menino, entrou levando uma bandeja pesadamente carregada de comida, e uma expressão cheia de otimismo infundado.
Tohr examinou o conteúdo com o olhar enquanto a carga era depositada na mesinha. Frango com ervas, arroz com açafrão, feijões verdes e pão fresco.
A merda perfeitamente poderia ter sido carne de animal atropelado envolto em arame farpado, pelo que lhe importava, mas agarrou o prato, desenrolou o guardanapo, pegou o garfo e a faca e os utilizou.
Mastigar. Mastigar. Mastigar. Engolir. Mais mastigar. Engolir. Beber. Mastigar. Comer era tão mecânico e autônomo como respirar, algo do que era só levemente consciente, uma necessidade, não um prazer.
O prazer era coisa do passado... E uma tortura dentro de seus sonhos. Quando evocava sua shellan contra ele, nua, sobre lençóis com aroma de limão, a fugaz imagem acendia seu corpo de dentro para fora, o fazendo sentir-se vivo, e não só que vivia. Entretanto, o golpe do encontro se desvanecia rapidamente, era como uma chama sem nenhum abajur para sustentá-la.
Mastigar. Cortar. Mastigar. Engolir. Beber.
Enquanto comia, o menino se sentou em uma cadeira junto às cortinas fechadas, com os cotovelos nos joelhos, os punhos no queixo, um Pensador do Rodin vivinho e abanando o rabo. Ultimamente John sempre estava assim, sempre dando voltas em algo na cabeça.
Tohrment sabia condenadamente bem do que se tratava, mas a solução que terminaria com a triste preocupação de John primeiro ia doer-lhe como a merda.
E Tohr lamentava. Lamentava muito.
Cristo, por que Lassiter não podia tê-lo deixado deitado sem mais, naquele bosque? Esse anjo poderia ter ficado quietinho, mas não, Seu Senhorio Halogênico tinha que ser um herói.
Tohr desviou os olhos para John e seu olhar se fechou sobre o punho do menino. A coisa era enorme, e o queixo e mandíbula que descansavam sobre ele eram fortes, masculinos. O menino se converteu em um homem bonito, mas bem, como filho de Darius, provinha de um bom lago genético. Um dos melhores.
O que o levava a pensar... Verdadeiramente se parecia com D, uma cópia ao carvão, em realidade, exceto pelos jeans azuis. Darius nem morto se deixaria ver com jeans, nem sequer com esses de estilistas elegantes como os que John usava.
De fato... D com freqüência assumia exatamente a mesma posição quando estava ruminando sobre a vida, imitando o Rodin, todo cenho e agitação...
Um brilho de prata titilou na mão livre de John. Era um quarto de dólar, e o menino passava a moeda dentro, fora e ao redor de seus dedos, sua versão de um tic nervoso.
Esta noite havia algo mais no silêncio que John costumava assumir quando permanecia ali sentado. Algo tinha acontecido.
— O que aconteceu? — perguntou Tohr com voz áspera — Está bem?
Os olhos de John se elevaram de repente com surpresa.
Para evitar o olhar, Tohr baixou os seus, espetando um pouco de frango, e metendo-o na boca. Mastigar. Mastigar. Engolir.
A julgar pelos sons de movimento, John estava se desenroscando de sua rotina lentamente, como se temesse que qualquer movimento súbito espantasse a pergunta que ficava entre eles.
Tohr levantou o olhar de novo, e enquanto esperava, John meteu a moeda no bolso e gesticulou com economia e graça.
Wrath está lutando de novo. V acaba de contar isso a mim e aos meninos.
Tohr tinha perdido a prática com a Linguagem por Gestos Americano, mas nem tanto. A surpresa fez que baixasse seu garfo.
— Espere... Ainda é o rei, verdade?
Sim, mas esta noite disse aos Irmãos que vai voltar a ocupar seu lugar na rotação. Ou, suponho que esteve na rotação sem dizer a ninguém. Acredito que a Irmandade está de saco cheio com ele.
— Rotação? Não pode ser. Não se permite que o rei lute.
Agora sim. E Phury também voltará.
— Que porra? Supõe-se que o Primale não... — Tohr franziu o cenho — Há alguma mudança na guerra? Aconteceu algo?
Não sei. John encolheu de ombros e se recostou na cadeira, cruzando as pernas à altura dos joelhos. Outra coisa que sempre fazia Darius.
Nessa pose o filho parecia tão velho como o pai tinha sido, embora tivesse menos a ver com a forma em que estavam colocadas as extremidades do John e mais com o cansaço extremo que havia em seus olhos azuis.
— Não é legal. — disse Tohr.
Agora sim. Wrath se reuniu com a Virgem Escriba.
Na mente de Tohr começaram a zumbir perguntas, seu cérebro brigava com a carga desacostumada. No meio do deslocado redemoinho, era difícil pensar coerentemente, e sentia como se estivesse tentando segurar cem bolas de tênis entre seus braços, sem importar quão arduamente tentasse, algumas escorregavam e ricocheteavam a seu redor, criando uma confusão.
Deixou de tentar encontrar sentido em algo.
— Bem, isso é uma mudança... Desejo-lhes sorte.
A exalação baixa de John resumiu tudo bastante bem e Tohr voltou a se desconectar do mundo e retornou a sua comida. Quando terminou, dobrou o guardanapo pulcramente e tomou um último sorvo do copo de água.
Ligou a TV e pôs na CNN, porque não queria pensar e não podia agüentar o silêncio. John ficou aproximadamente meia hora, e quando foi evidente que já não suportava estar quieto durante mais tempo ficou em pé e se despediu.
O verei ao final da noite.
Ah, assim era de noite.
— Estarei aqui.
John recolheu a bandeja e saiu sem deter-se, nem duvidar. A princípio, houve bastante de ambas, como se a cada vez que chegasse à porta esperasse que Tohr o detivesse e dissesse: “Estou preparado para confrontar a vida. Vou seguir adiante. Estou melhor o bastante para me preocupar contigo”.
Mas a esperança não era eterna.
Quando a porta se fechou, Tohr afastou os lençóis de suas pernas fracas e passou os pés sobre a beirada do colchão.
Estava preparado para confrontar algo, sim, mas não sua existência. Com um gemido e uma inclinação brusca, foi cambaleando até o banheiro, foi ao vaso, e levantou o assento do trono de porcelana. Inclinando-se, deu a ordem e seu estômago evacuou a comida sem protestar.
No princípio tinha que colocar o dedo na garganta, mas não mais. Só esticava o diafragma e tudo saía como ratos fugindo de uma boca-de-lobo transbordante.
—Tem que acabar com essa merda.
A voz de Lassiter harmonizava com o som do vaso alagando-se. O que tinha muito sentido.
— Cristo, acaso bate alguma vez?
— Sou Lassiter. L-A-S-S-I-T-E-R. Como é possível que ainda siga me confundindo com outro? Necessita um adesivo com meu nome?
— Sim, e o ponha sobre sua boca. — Tohr se largou sobre o mármore e deixou a cabeça cair entre as mãos — Sabe, pode ir para casa. Pode ir quando quiser.
— Ponha seu rabo em movimento então. Porque isso é o que conseguiria que o fizesse.
— Vá, agora tenho uma razão para viver.
Houve um suave som de campainhas, o que queria dizer, tragédia das tragédias, que o anjo acabava de subir no balcão.
— Então, o que fazemos esta noite? Espera! Deixe-me adivinhar, nos sentar em áspero silêncio. Ou, não... Agora está alternando. Meditar com emotiva intensidade, verdade? Que enchimento de saco selvagem é. Whoo-Hooo. Quando quiser acordar, estará aplicando para provar o nó corrediço.
Com uma maldição, Tohr se levantou e foi abrir a ducha, esperando que se negasse a olhar ao boca dura, Lassiter se aborreceria rapidamente e iria arruinar a tarde de algum outro.
— Pergunta. — disse o anjo — Quando vamos cortar esse tapete que está crescendo em sua cabeça? Se essa merda ficar mais longa, vamos ter que ceifá-la como se fosse feno.
Enquanto Tohr tirava a camiseta e a cueca boxer, desfrutou do único consolo que tinha quando sofria a companhia de Lassiter: expor-se nu ante o idiota.
— Homem, o rabo plano é uma coisa. — resmungou Lassiter — Mas exibe um par de bolas de basquete desinfladas aí atrás. Faz com que me pergunte... Hey, certamente Fritz tem uma bomba de bicicleta. Só comentava.
— Você não gosta da vista? Já sabe onde está a porta. É essa em que nunca bate.
Tohr não deu tempo para a água esquentar, simplesmente se meteu sob o jorro e se limpou sem nenhuma boa razão que soubesse... Não tinha orgulho, assim que lhe importava uma merda o que outros pensassem de sua higiene.
Vomitar tinha um propósito. A ducha... Talvez... Simplesmente fosse um hábito.
Fechando os olhos, separou os lábios e ficou de pé frente ao jato. A água lambeu o interior de sua boca, varrendo a bílis e quando a ardência abandonou sua língua, um pensamento entrou em seu cérebro.
Wrath estava fora lutando. Sozinho.
— Hey, Tohr.
Tohr franziu o cenho. O anjo nunca utilizava seu nome próprio.
— O que?
— Esta noite é diferente.
— Sim, só se me deixe em paz. Ou se ponha a você mesmo neste banho. Há seis chuveiros para escolher aqui dentro.
Tohr pegou o sabonete e o passou sobre seu corpo, sentindo os duros e agudos impulsos de seus ossos e articulações através da pele fina.
Wrath estava fora sozinho.
Xampu. Enxágüe. Voltar para o jorro. Abrir a boca.
Fora. Sozinho.
Quando terminou a ducha, o anjo estava no centro do banheiro com uma toalha, todo amabilidade e essa merda.
— Esta noite é diferente. — disse Lassiter brandamente.
Tohr olhou ao anjo seriamente, vendo-o pela primeira vez, embora tenham passado quatro meses juntos. O anjo tinha o cabelo negro e loiro, tão longo como o de Wrath, mas, apesar de todo esse estilo Cher descendo por suas costas não era nenhum efeminado. Seu guarda-roupa parecia tirado diretamente do exército/marinha, camisetas negras, calças de camuflagem e botas de combate, mas não era absolutamente um soldado. O idiota estava perfurado como um agulheiro e tinha tantos acessórios como um joalheiro, com aros de ouro e correntes que penduravam dos buracos que tinha nas orelhas, pulsos e sobrancelhas. E podia apostar que tinha acessórios no peito e mais abaixo da cintura... O que era algo em que Tohr se negava a pensar. Não precisava de ajuda para vomitar, muito obrigado.
Quando a toalha trocou de mãos, o anjo disse com gravidade.
— Hora de despertar, Cinzeiro.
Tohr estava a ponto de apontar que essa era a Bella Adormecida quando lhe chegou uma lembrança como se fosse injetada no lóbulo frontal. Era da noite em que salvara a vida de Wrath lá pelo ano 1958, e as imagens lhe chegaram com a absoluta clareza da experiência atual.
O rei esteve fora. Sozinho. No centro.
Meio morto e sangrando sobre a sarjeta.
Um Edsel lhe tinha investido. Um pedaço de merda de um Edsel conversível de cor azul sombra de olhos de uma garçonete.
Pelo que Tohr pôde deduzir mais tarde, Wrath devia estar perseguindo um lesser a pé e ao girar a toda em uma esquina esse carro grande como uma lancha tinha lhe investido. Tohr estava a dois quarteirões de distância e ouviu o chiado dos freios e um impacto de algum tipo, e estava preparado para não fazer absolutamente nada.
Acidentes de trânsito humanos? Não era problema seu.
Mas então um par de lessers passou correndo frente à entrada do beco onde ele estava. Os assassinos fugiam como loucos sob a garoa de outono, como se algo os perseguisse, exceto não havia ninguém correndo atrás de seus calcanhares. Esperou caso aparecesse algum de seus irmãos. Nenhum deles tinha feito ato de presença.
Não fazia sentido nenhum. Se um assassino tivesse sido golpeado por um carro em companhia de seus cúmplices, estes não teriam abandonado o cenário. Os outros teriam matado o condutor humano e a qualquer possível passageiro, logo teriam metido o seu morto no porta-malas e teriam ido conduzindo da cena: a última coisa que a Sociedade Lessening queria era a um lesser incapacitado derramando sangue negro sobre a rua.
Talvez fosse só coincidência. Um pedestre humano. Ou alguém em uma moto. Ou dois carros.
Entretanto, tinha sido somente um par de freadas. E nada disso explicaria o par de pálidos corredores que tinha passado junto a ele como se fossem incendiários fugindo de um fogo que teriam acendido.
Tohr tinha trotado até o Trade, e ao dar a volta na esquina tinha captado a visão de um macho humano com um chapéu e um casaco agachado sobre um corpo encolhido que era duas vezes o seu tamanho. A esposa do homem, que estava vestida com um desses frívolos vestidos de saias avultadas dos anos cinqüenta, estava de pé justo na frente dos faróis, aconchegada em seu casaco de pele.
Sua brilhante saia vermelha era da cor das nervuras que havia no pavimento, mas o aroma do sangue derramado não era humano. Era vampiro. E o que tinha sido atropelado tinha um comprido cabelo negro...
A voz da mulher era estridente.
— Temos que levá-lo ao hospital...
Tohr interviu, interrompendo-a:
— É meu.
O homem tinha levantado o olhar.
— Seu amigo... Não o vi... Vestido de negro... Saiu de um nada...
— Ocuparei-me dele. — nesse ponto, Tohr deixou de explicar-se e simplesmente por meio de sua vontade, tinha enviado aos dois humanos a um estado de estupor. Uma rápida sugestão mental os enviou de volta a seu carro e os pôs em caminho com a impressão de que tinham golpeado uma lata de lixo. Supôs que a chuva se ocuparia do sangue da frente do carro, e eles mesmos poderiam arrumar o amassado.
Quando se inclinou sobre o corpo do herdeiro do trono da raça, o coração de Tohr pulsava tão rápido como um martelo hidráulico. Havia sangue por toda parte, emanando rápido de um corte na cabeça de Wrath, por isso Tohr tirou a jaqueta, mordeu a manga, e rasgou uma tira de couro. Depois de envolver as têmporas do herdeiro e atar a bandagem improvisada tão forte como pôde, deteve uma caminhonete que passava, apontou com a arma ao fanático de Grease que estava atrás do volante, e fez com que o humano conduzisse até o bairro de Havers.
Ele e Wrath viajaram na carroceria traseira, e todo o tempo, esteve mantendo pressão sobre a cabeça ferida de Wrath, sob a chuva fria. Uma chuva tardia de novembro, talvez dezembro. Entretanto, agradecia que não fosse verão. Sem dúvida o frio havia diminuído o batimento do coração de Wrath e aliviado sua pressão sangüínea.
A meio quilômetro da casa de Havers, na parte luxuosa de Caldwell, Tohr havia dito ao humano que estacionasse e enquanto ficava pelo caminho lavou seu cérebro.
Os minutos que Tohr levou para chegar até a clínica foram os mais compridos de sua vida, mas conseguiu levar Wrath ali, e Havers fechou o que tinha resultado ser o corte de uma das artérias temporais.
O dia seguinte foi crítico. Inclusive com Marissa ali para alimentar ao Wrath, o rei tinha perdido tanto sangue que não evoluía como se esperava, e Tohr ficou todo o tempo sentado em uma cadeira junto à cama. Enquanto Wrath jazia tão quieto, Tohr sentia como se a vida da raça inteira pendesse de um fio, o único que podia ocupar o trono estava preso em um sonho que se distanciava por apenas uns poucos neurônios de um estado vegetativo permanente.
A notícia se espalhou e as pessoas acudiam desesperadas. As enfermeiras e o médico. Outros pacientes que se deixaram cair para rezar pelo rei a quem não serviriam. Os Irmãos, que tinham utilizado o telefone por turnos para ligar a cada quinze minutos.
A sensação coletiva era que sem o Wrath não havia esperança. Nem futuro. Nem oportunidade.
Entretanto, Wrath viveu, despertando irascível, o que o fez suspirar de alívio... Porque se um paciente tinha a energia para estar de saco cheio, ia superar.
O anoitecer seguinte, depois de ter estado fora de serviço durante vinte e quatro horas seguidas e tendo assustado de morte a todo mundo que lhe rodeava, Wrath tinha desligado a IV[39], vestiu-se, e se foi.
Sem dizer nenhuma palavra a nenhum deles.
Tohr tinha esperado... Algo. Não um obrigado, mas algum reconhecimento Ou... Algo. Demônios, agora Wrath era um filho da puta mal-humorado, mas nesse então? Era diretamente tóxico. Mesmo assim... Nada? Depois de ter salvado a vida do cara?
Recordava bastante à forma em que ele esteve tratando ao John. E a seus irmãos.
Tohr envolveu a toalha ao redor da cintura e voltou para o ponto mais importante da lembrança. Wrath tinha saído ali fora a lutar sozinho. Lá em 58, tinha sido um golpe de sorte que Tohr estivesse onde estava e tivesse encontrado o rei antes que fosse muito tarde.
— Hora de despertar. — disse Lassiter.
Capítulo 17
Enquanto a noite chegava e se instalava, Ehlena rezava para não ter que chegar tarde ao trabalho outra vez. Com o relógio correndo, esperou no andar de acima, na cozinha com o CranRas e as drogas moídas. Tinha sido meticulosa com a limpeza: tinha guardado a colher. Checando todas as superfícies duas vezes. Inclusive comprovou que o salão estivesse apropriadamente organizado.
— Pai? — chamou em direção ao porão.
Enquanto prestava atenção, a espera de sons de pés arrastando-se e palavras sem sentido pronunciadas baixinho, pensou nos sonhos estranhos que teve durante o dia. Imaginou o Rehv na escura distância com os braços pendurado nos flancos. Seu magnífico corpo nu estava iluminado como se estivesse em exibição, seus músculos se sobressaindo em um poderoso desdobramento e a cor torrada de sua pele era quente e dourada. Sua cabeça estava inclinada para baixo e tinha os olhos fechados como se estivesse em repouso.
Cativada, convocada, tinha atravessado um chão de pedra fria até ele, pronunciando seu nome uma e outra vez.
Ele não tinha respondido. Não tinha elevado a cabeça. Não tinha aberto os olhos.
O medo tinha assobiado ao longo de suas veias e tinha estremecido seu coração, e tinha se apressado para chegar a ele, mas ele tinha permanecido sempre distante, um objetivo nunca realizado, um destino nunca alcançado.
Despertara com lágrimas nos olhos e o corpo tremendo. Quando a sufocante comoção tinha retrocedido, o significado ficou claro, mas na realidade, não necessitava que seu subconsciente lhe dissesse o que ela já sabia.
Sacudindo a si mesma, voltou a gritar para baixo.
— Pai?
Quando não houve resposta, Ehlena pegou a xícara de seu pai e desceu ao porão. Fez lentamente, embora não porque tivesse medo de derramar o CranRas vermelho sangue sobre seu uniforme branco. Às vezes seu pai não se levantava por si mesmo e ela tinha que fazer este descida, e cada vez que descia os degraus por esse motivo, perguntava-se se finalmente teria ocorrido, se seu pai teria sido chamado ao Fade.
Não estava pronta para perdê-lo. Ainda não, sem importar quão difíceis fossem as coisas.
Introduzindo a cabeça através da porta de seu dormitório, o viu sentado ante sua escrivaninha esculpida à mão, rodeado de pilhas irregulares de papéis e velas apagadas.
Obrigado, Virgem Escriba.
Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, preocupou-a que a falta de luz pudesse danificar a visão de seu pai, mas as velas ficariam como estavam, porque não havia nenhum fósforo nem acendedor na casa. A última vez que ele tinha posto suas mãos sobre um fósforo tinha sido em sua antiga casa... E tinha incendiado o apartamento porque suas vozes haviam dito.
Isso ocorreu fazia dois anos, e fora a razão de que lhe tivessem receitado remédios.
— Pai?
Ele levantou o olhar da desordem e pareceu surpreso.
— Minha filha, como vai esta noite?
Sempre fazia a mesma pergunta, e sempre lhe dava a mesma resposta na Antiga Língua.
— Bem, meu pai. E você?
— Como sempre encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável. — seu pai pegou a xícara — Aonde vai?
Isto conduziu às suas “pas de deux” verbal a respeito de que não aprovava que trabalhasse e ela explicava que o fazia porque gostava, ele se encolhia de ombros e afirmava não entender à geração jovem.
— Seriamente tenho que ir, — lhe disse — mas Lusie chegará em questão de minutos.
— Sim, bem, bem. Em realidade, estou ocupado com meu livro, mas a entreterei durante um momento, como é apropriado. Entretanto, tenho que me concentrar em meu trabalho. — ondulou a mão ao redor da representação física do caos de sua mente, seu gesto elegante em contradição com a irregular coleção de papéis cheios de sem sentidos — Isto tem que ser feito.
— É obvio que sim, pai.
Ele terminou o CranRas e, quando Ehlena foi pegá-lo de sua mão, franziu o cenho.
— Certamente a criada pode fazer isso.
— Gosto de ajudá-la. Tem muitas responsabilidades. — não podia ser mais certo. A doggen tinha que seguir todas as regras para objetos e onde pertenciam, assim como fazer as compras e ganhar o dinheiro e pagar as faturas e o vigiar. A doggen estava cansada. A doggen estava esgotada.
Mas era absolutamente necessário que a xícara fosse para a cozinha.
— Pai, por favor, solte a taça para que possa levá-la para cima. A donzela teme te incomodar, e gostaria de lhe economizar essa preocupação.
Por um momento, os olhos dele se pousaram nela como estavam acostumados a fazer.
— Tem um coração formoso e generoso. Estou muito orgulhoso de te chamar de filha.
Ehlena piscou ferozmente e com voz áspera disse:
— Ser seu orgulho significa tudo para mim.
Ele estendeu o braço e apertou sua mão.
— Vai, minha filha. Vá a esse “seu trabalho”, e volte para casa comigo com histórias de sua noite.
Oh... Deus.
Era exatamente o que havia lhe dito fazia muito tempo, quando ela estava indo a um colégio particular e sua mãe estava viva e viviam entre a família e a glymera como gente de importância.
Inclusive, embora soubesse ser provável que quando voltasse para casa ele não tivesse nenhuma lembrança de haver lhe feito a velha e adorável pergunta, ela sorriu e se alimentou das saborosas migalhas do passado.
— Como sempre, meu pai. Como sempre.
Partiu com o som do passar de páginas e o “tink-tink-tink” de uma pluma golpeando a borda de um tinteiro de cristal.
Escada acima enxaguou a xícara, secou e a guardou na despensa, logo se assegurou de que no frigorífico tudo estivesse onde devia estar. Quando recebeu a mensagem de texto de que Lusie estava a caminho, transpassou a porta, fechou-a, e se desmaterializou para a clínica.
Quando chegou ao trabalho, sentiu um grande alívio de ser como todos os outros, chegando na hora, pondo as coisas em seu armário, falando de nada em particular antes que começasse o turno.
Mas então quando estava na cafeteira, Catya se aproximou dela, toda sorrisos.
— Assim... Ontem à noite foi...? Vamos, conte.
Ehlena terminou de encher seu copo e ocultou uma careta depois de um primeiro gole profundo que lhe queimou a língua.
— Acredito que não apareceu resume tudo.
— Não apareceu?
— Sim. Como em “ele não apareceu”.
Catya sacudiu a cabeça.
— Maldito seja.
— Não, está bem. De verdade. Quero dizer, não é como se tivesse esperado muito. —sim, só uma fantasia completa sobre o futuro, que incluía coisas como um hellren, uma família própria, uma vida que valesse a pena viver. Nada de outro mundo — Está bem.
— Sabe? Ontem à noite estive pensando. Tenho um primo que é...
— Obrigado, mas não. Com meu pai como está não deveria sair com ninguém. —Ehlena franziu o cenho, ao recordar quão rapidamente Rehv lhe tinha dado razão a respeito disso. Embora pudesse dizer que isso o fazia uma espécie de cavalheiro, era difícil não sentir-se um pouco aborrecida.
— Preocupar-se por seu pai não significa...
— Hey, por que não me ocupo do balcão de recepção durante a mudança de volta?
Catya se deteve, mas os olhos da fêmea se iluminaram lançando um montão de mensagens, a maior parte das quais poderiam se resumir a: “Quando esta garota vai despertar?”
— Irei agora mesmo. — disse Ehlena, dando a volta e afastando-se.
— Não durará para sempre.
— É obvio que não. A maior parte de nosso turno já chegou.
Catya sacudiu a cabeça.
— Isso não é o que quis dizer, e sabe. A vida não dura para sempre. Seu pai tem uma séria enfermidade psicológica, e é muito boa com ele, mas poderia ficar assim durante um século.
— Em cujo caso ainda sobrará ao redor de setecentos anos mais para mim. Estarei na recepção. Desculpe.
Na recepção, Ehlena tomou posição depois do computador e introduziu a contra-senha. Não havia ninguém na sala de espera porque o sol acabava de se pôr, mas os pacientes começariam a chegar muito em breve, e ela não podia esperar a distração.
Revisando o horário de Havers, não viu nada incomum. Verificações. Tratamentos a pacientes. Seguimentos cirúrgicos...
A campainha exterior tocou e levantou o olhar para um monitor de segurança. Ali em uma vista do vestíbulo exterior, viu um macho que se agasalhava em seu casaco para se proteger do vento frio.
Apertou o botão do inter comunicador e disse:
— Boa noite. No que posso lhe ajudar?
O rosto que levantou o olhar para a câmera era um que já tinha visto antes. Três e três noites atrás. O primo de Stephan.
— Alix? — disse — É Ehlena. Como está...?
— Estou aqui para ver se o trouxeram.
— Trouxeram?
— Ao Stephan.
— Não acredito, mas me deixe comprovar enquanto entra.
Ehlena pressionou o botão para abrir a fechadura e foi ao computador ver a lista de pacientes ingressados. Enquanto abria a série de portas para Alix, revisava os nomes, um por um.
Não fazia referência ao ingresso de Stephan como paciente.
No instante em que Alix entrou na sala de espera, o sangue em suas veias congelou ao ver a cara do macho. Os cruéis círculos escuros sob seus olhos cinza falavam de algo mais que uma simples falta de sono.
— Stephan não voltou para casa ontem à noite. — disse.
Rehv lamentava dezembro, e não só porque o frio no norte de Nova Iorque fosse suficiente para fazê-lo desejar ficar em um plano especialista de pirotecnia só para esquentar-se.
Em dezembro a noite caía cedo. O sol, esse estúpido preguiçoso, flácido maricas, retrocedia em seus esforços tão cedo como as quatro e meia da tarde, e isso para Rehv significava que o “encontro-de-primeira-terça-do-mês-para-atuar-como-semental” começava cedo.
Acabavam de dar as dez em ponto quando entrou no Parque Estatal Black Snake depois de uma viagem de carro de duas horas para o norte desde Caldwell. Trez, que sempre se desmaterializava para ali, sem dúvida já teria tomado posição ao redor da cabana, camuflando-se e dispondo-se a atuar de guarda.
Assim como de testemunha.
O fato de que o cara, que era indiscutivelmente seu melhor amigo, tivesse que observar todo o assunto era um triturador de testículos que vinha a acrescentar-se a todo o carrossel de cagadas. O problema era, que depois que tudo terminava, Rehv precisava de ajuda para voltar para casa, e Trez era bom nesse tipo de merdas.
Xhex queria ocupar-se, é obvio, mas não se podia confiar nela. Não quando se tratava da princesa. Se Rehv lhe voltasse às costas durante um segundo a cabana poderia terminar com uma nova capa de pintura fresca nas paredes... Da variedade horripilante.
Como sempre, Rehv estacionou no estacionamento de terra que havia do lado escuro da montanha. Não havia outros carros, e esperava que os atalhos que se abriam na parte de atrás do estacionamento estivessem vazios também.
Olhando através do pára-brisa, ante sua vista tudo aparecia vermelho e plano e apesar de que desprezava a sua meio irmã, odiava olhá-la e desejava que todo este sujo e fodido assunto se acabasse de uma vez, seu corpo não estava intumescido de frio, a não ser vivo e ronronando. Dentro de suas calças, seu pênis duro estava preparado e pronto para o que estava a ponto de ocorrer.
Agora se somente pudesse obrigar-se a sair do carro.
Pousou a mão no trinco da porta, mas não pôde puxá-lo.
Havia tanta paz. Quão único perturbava o silêncio eram os leves e metálicos sons que o motor do Bentley fazia ao esfriar.
Sem razão aparente, pensou na adorável risada de Ehlena, e isso foi o que lhe fez abrir a porta. Com um movimento rápido, tirou a cabeça do carro justamente quando seu estômago se fechava como um punho e quase vomita. Quando o frio acalmou sua náusea, tentou tirar Ehlena da mente. Ela era tão limpa e honorável que não podia suportar tê-la em seus pensamentos quando estava a ponto de fazer isto.
O que era uma surpresa.
Proteger a alguém do mundo cruel, do mortal e perigoso, do poluído, o obsceno, e o asqueroso não era seu estilo. Mas se tinha ensinado a si mesmo a fazer justamente isso quando se tratava das únicas três fêmeas normais na vida. Pela que lhe tinha dado a vida, a que tinha criado como se fosse sua própria e a pequena que sua irmã tinha dado à luz recentemente, confrontaria todo tipo de perigos, mataria com suas próprias mãos algo que as ameaçasse, perseguiria e destruiria até a mais mínima ameaça.
E, de algum modo a cálida conversa que teve com a Ehlena mais cedo a punha nessa curta, curta lista.
O que significava que tinha que deixá-la fora. Junto com as outras três.
Tinha-lhe caído bem vivendo como uma puta, porque obtinha um preço caro da que o fodia, e, além disso, a prostituição não era nada mais que o que merecia, considerando o modo em que seu autêntico pai tinha forçado sua concepção sobre sua mãe. Mas ele assumia a responsabilidade. Ele ia à cabana sozinho e ele obrigava seu corpo a fazer o que ninguém o obrigava.
Essas poucas pessoas normais que havia em sua vida tinham que permanecer muito, muito longe de todo esse assunto, e isso significava que quando vinha aqui devia erradicá-las de seu pensamento e seu coração. Mais tarde, logo depois de ter se recuperado, tomado banho e dormido, poderia voltar a recordar os olhos cor toffe de Ehlena e a forma em que cheirava a canela e como riu apesar de si mesmo quando falaram. Por agora, afastou a ela, a sua mãe, a sua irmã e a sua amada sobrinha de seu lóbulo frontal, fechando cada lembrança que tinha em uma seção separada de seu cérebro e enclausurando-os.
A princesa sempre tentava entrar em sua mente, e não queria que soubesse nada daqueles que apreciava ou pelos quais se preocupava.
Quando uma intensa rajada de vento quase lhe fecha violentamente a porta na cabeça, Rehv puxou sua zibelina envolvendo-se frouxamente ao redor de seu corpo, saiu, e fechou o Bentley. Enquanto caminhava para o início do caminho, notou que o terreno estava congelado sob seus Penetre Haans, a terra que rangia sob seus pés era dura e resistente.
Tecnicamente agora o parque estava fechado pela estação, e uma corrente pendurava atravessando a entrada do atalho que levava mais à frente do mapa da montanha e às cabanas de aluguel. Entretanto, era mais provável que fosse o tempo o que mantinha as pessoas afastadas e não o Serviço do Parque Adirondack. Depois de passar sobre a corrente, passou a folha de registro que estava pendurava de uma prancheta apesar de que se supunha que ninguém devia utilizar os atalhos. Ele nunca assinava.
Sim, como se os guardas humanos realmente precisassem saber o que dois sympaths estavam fazendo em uma daquelas cabanas. Ceerrrrtttoooooo.
O bom de dezembro era que nos meses invernais o bosque ficava menos claustrofóbico, seus carvalhos e suas sebes não eram mais que troncos e ramos fracos que deixavam ver bastante da noite estrelada. Ao redor deles, as árvores de folha perene estavam de festa, seus ramos amaciados eram o “se foda” a seus irmãos agora nus, vingando-se por toda a vistosa folhagem outonal que as outras árvores acabavam de mostrar.
Penetrando a linha de árvores, seguiu o atalho principal enquanto este se estreitava gradualmente. Atalhos menores se separavam a direita e esquerda, marcados com rústicos pôsteres de madeira com nomes como Passeio do Sociável, Ataque Relâmpago, Cúpula Extensa e Cúpula Pequena. Ele seguiu em linha reta, seu fôlego formava nuvens ao abandonar seus lábios e o som de seus sapatos sobre a terra congelada parecia muito ruidoso. No alto, a lua se via brilhante, e tinha a forma de uma meia-lua afiada como uma faca, que para ele com seus impulsos symphath decididamente fora de controle, era da cor dos olhos rubi de sua chantagista.
Trez fez sua aparição em forma de uma brisa gelada que percorreu o atalho.
— Hey, amigo. — disse Rehv baixinho.
A voz do Trez flutuou no interior de sua cabeça enquanto a forma Sombra do cara se condensava em uma onda que brilhava tenuamente.
Acaba logo com ela. Quanto mais rápido obtenhamos o que necessitará depois melhor.
— As coisas são como são.
Quanto antes. Melhor.
— Veremos.
Trez lhe amaldiçoou e voltou a se dissolver em uma fria rajada de vento, lançando-se para frente fora de vista.
A verdade era que, por muito que Rehv odiasse vir, algumas vezes não queria partir. Gostava de fazer mal à princesa, e ela era uma boa oponente. Ardilosa, rápida e cruel. Era a única saída para seu lado mau, e, como um corredor faminto de treinamento, precisava do exercício.
Além disso, talvez fosse como seu braço: a podridão se sentia bem.
Rehv tomou o sexto à esquerda, entrando em um atalho que era só o bastante amplo para uma pessoa, e muito em breve, a cabana ficou à vista. A brilhante luz da lua, seus lenhos eram de uma cor parecida ao vinho rosado.
Quando chegou à porta, estendeu a mão esquerda para frente, e quando estava aferrando a alavanca de madeira pensou em Ehlena e em como se preocupou o suficiente por ele para telefonar e perguntar por seu braço.
Durante um breve momento se permitiu um deslize e evocou o som da voz dela em seu ouvido.
Não entendo por que não cuida de você mesmo.
A porta escapou de seu agarre, abrindo-se tão rápido que golpeou contra a parede.
A princesa estava de pé no centro da cabana, com sua brilhante túnica vermelha, rubis em sua garganta e os olhos cor vermelho sangue, toda a cor do ódio. Com seu escasso cabelo enrolado e recolhido por cima de seu pescoço, sua pele pálida, e os escorpiões albinos vivos que usava como brincos, era um horror delicioso, uma boneca Kabuki construída por uma mão malvada. E era malvada, sua escuridão lhe chegava em forma de ondas, emanando do centro de seu peito ainda quando nada nela se movia e seu rosto com forma de lua permanecia inalterado pelo aborrecimento.
Sua voz, por outro lado, era ardilosa como uma folha afiada.
— Nada de cenas de praia esta noite em sua mente. Não, nada de praia esta noite.
Rehv cobriu Ehlena rapidamente com uma imagem de um glorioso estereótipo das Bahamas, todo sol, mar e areia. Era algo que tinha visto na TV anos atrás, em um “especial escapadas”, como havia dito o anunciador, com gente em traje de banho passeando de mãos dadas. Dada sua vivacidade, a imagem era o suspensório perfeito para os argumentos de sua matéria cinza.
— Quem é ela?
— Quem é quem? — disse enquanto entrava.
A cabana estava cálida, graças a ela, um pequeno truque de agitação molecular do ar que se acrescentava quando estava de saco cheio. Não obstante, o calor que gerava não era alegre como o que provinha de um fogo... Era mais da classe de sufoco que conseguia com um caso de diarréia.
— Quem é a fêmea que havia em sua mente?
— Só uma modelo de um anúncio de TV, minha queridíssima cadela. — disse tão brandamente como ela. Sem lhe dar as costas, fechou a porta tranqüilamente — Ciumenta?
— Para estar ciumenta, teria que estar ameaçada. E isso seria absurdo. — a princesa sorriu — Mas penso que deve me dizer quem é ela.
— Isso é tudo o que quer fazer? Falar? — Rehv deliberadamente deixou que seu casaco se abrisse e embalou em sua mão o pênis e o pesado escroto — Normalmente quer de mim algo mais que conversa.
— Muito certo. O melhor e mais elevado uso para você é o que os humanos chamam... Um consolador, não? Um brinquedo para uma fêmea com o que dar prazer a si mesma.
— Fêmea não é necessariamente a palavra que utilizaria para te descrever.
— Certamente. Bem amada seria melhor.
Ela elevou uma mão horrenda até seu penteado, deslizando seus dedos ossudos de três articulações sobre a cuidadosa obra, seu pulso era mais fino que a asa de uma batedeira de arame. Seu corpo não era diferente: todos os symphaths estavam constituídos como jogadores de xadrez, não como zagueiros, o que estava de acordo com sua preferência de lutar com a mente e, não com o corpo. A vestimenta que usavam, não era nem de machos nem de fêmeas, a não ser uma versão destilada de ambos os sexos, e por isso a princesa o desejava como o fazia. Gostava de seu corpo, seus músculos, sua óbvia e brutal masculinidade, e habitualmente queria ser fisicamente refreada durante o sexo... Algo que seguro como a merda não conseguia em casa. Pelo que ele sabia a versão symphath do ato se limitava a algumas posturas mentais seguidas de duas esfregações e um ofego por parte do macho. Além disso, estava disposto a apostar que o tio de ambos tinha o pênis como o de um hamster, e os testículos do tamanho de borrachas de lápis.
Não é que alguma vez o tivesse comprovado… Mas vamos, o cara não era exatamente uma comparação de testosterona.
A princesa se movia pela cabana como se estivesse desdobrando sua graça, mas havia um propósito em deslocar-se de janela em janela e olhar para fora.
Demônios, sempre com as janelas.
— Onde está seu cão guardião esta noite? — disse ela.
— Sempre venho sozinho.
— Mente a seu amor.
— Por que ia querer que alguém visse isto?
— Porque sou formosa. — deteve-se diante dos vidros mais próximos à porta — Está aí à direita, junto ao pinheiro.
Rehv não precisava inclinar-se a um lado e olhar para saber que tinha razão. É obvio que ela podia sentir o Trez, só que não podia estar completamente segura de onde estava ou o que era.
Ainda assim, disse:
— Não há nada exceto árvores.
— Mentira.
— Tem medo das sombras, Princesa?
Quando ela olhou sobre o ombro, o escorpião albino que pendurava do lóbulo de sua orelha também fez contato ocular com ele.
— O problema não é o medo. É a deslealdade. Não suporto a deslealdade.
— A menos que seja você quem a está praticando, é obvio.
— Oh, sou bastante leal a você, meu amor. Exceto pelo irmão de nosso pai, como já sabe. — girou e quadrou os ombros em toda sua altura — Meu consorte é o único além de você. E vim aqui sozinha.
— Suas virtudes são abundantes, embora como disse, por favor, leva a mais em sua cama. Toma a cem machos mais.
— Ninguém poderia comparar-se contigo.
Dava vontade de vomitar em Rehv cada vez que lhe prodigalizava um falso elogio, e ela sabia. Pelo que, naturalmente insistia em dizer merdas como essa.
— Diga-me. — disse para mudar de assunto — Já que tirou o tema de nosso tio, como vai o muito idiota?
— Ainda te acredita morto. Assim sigo honrando minha parte de nossa relação.
Rehv colocou a mão no bolso de seu casaco de zibelina e tirou os duzentos e cinqüenta mil dólares em rubis cortados. Atirou o feliz pacotinho ao chão para a borda da túnica dela e tirou o casaco. A jaqueta de seu traje e seus sapatos foram o seguinte. Depois suas meias três quartos de seda, suas calças e sua camisa. Nenhum boxer que tirar. Para que incomodar-se?
Rehvenge permaneceu ante ela completamente ereto, com os pés bem plantados no chão, respirando tranqüilamente, inalando e exalando com seu forte peito.
— E estou preparado para completar nossa transação.
Os olhos rubi desceram por seu corpo e se detiveram em seu sexo, abriu a boca, e percorreu o lábio inferior com sua língua bífida. Em suas orelhas, os escorpiões retorceram suas extremidades com espera, como se respondessem a seu arrebatamento sexual.
A princesa apontou para a bolsa de veludo.
— Recolhe isso e me dê isso apropriadamente.
— Não.
— Recolhe-o.
— Você gosta de se inclinar diante de mim. Por que te roubar seu hobby favorito?
A princesa colocou as mãos nas longas mangas de sua túnica e foi para ele da forma suave com que se moviam os symphaths, virtualmente flutuando sobre o chão de madeira. Quando se aproximou, ele manteve sua posição, porque preferia morrer e apodrecer antes de dar um passo atrás para o prazer dela.
Olharam-se um ao outro, e no profundo e maligno silêncio, ele sentiu uma terrível comunhão com ela. Eram iguais, e embora fosse um pensamento que odiava, sentia alívio em ceder a sua autêntica natureza.
— Recolhe-o...
— Não.
Ela descruzou os braços e uma de suas mãos de seis dedos rasgou o ar em direção a seu rosto, a bofetada foi forte e aguda como seus olhos rubi. Rehv se negou a deixar que sua cabeça retrocedesse pelo impacto enquanto o som reverberava tão ruidosamente como um prato quebrando-se.
— Quero que me pague seu tributo adequadamente. E quero saber quem é ela. Percebi seu interesse por esta antes... Quando está longe de mim.
Rehv manteve o anúncio de praia aceso em seu lóbulo frontal e soube que ela ostentava.
— Não me inclino perante você nem ante ninguém, cadela. Assim, se quiser essa bolsa, vai ter que te tocar os dedos dos pés. E quanto ao que acredita saber, está enganada. Não há ninguém para mim.
Esbofeteou-o de novo, a ardência desceu por sua medula espinhal e pulsou na cabeça de seu pênis.
— Inclina-te ante mim cada vez que vem aqui com seu patético pagamento e seu sexo faminto. Necessita isto, necessita-me.
Ele levou sua cara mais perto da dela.
— Não adule a você mesma, princesa. É uma obrigação, não uma escolha.
— Engano. Vive para me odiar.
A princesa pegou seu pênis na mão, envolvendo-o firmemente com seus dedos mortos. Quando sentiu o contato e a carícia, seu estômago revolveu... E ainda assim sua ereção se umedeceu ante a atenção inclusive quando não podia suportá-la, embora não a encontrava absolutamente atrativa, seu lado symphath estava completamente preso nesta batalha de vontades, e isso era o erótico.
A princesa se inclinou para ele, esfregando com seu dedo indicador a pua que tinha na base de sua ereção.
— Seja quem for essa fêmea de sua cabeça, não pode competir com o que temos.
Rehv pôs as mãos dos lados do pescoço de sua chantagista e pressionou com os polegares até que ela ofegou.
— Posso te arrancar a cabeça da coluna.
— Não o fará. — lhe passou os lábios vermelhos e acetinados pela garganta e o batom de pimentas moídas que levava o queimou — Porque não poderíamos fazer isto se estivesse morta.
— Não subestime a atração da necrofilia. Especialmente quando se trata de você. — agarrou a parte de trás de seu coque e puxou com força — Vamos ao ponto?
— Depois que você recolha...
— Isso não vai acontecer. Não me inclino. — com sua mão livre, rasgou a frente da túnica, expondo a malha fina do body que sempre usava. Girando-a, forçou-a a ficar de cara à porta, procurando entre as dobras de vermelho cetim enquanto ela ofegava. A malha que vestia estava empapada de veneno de escorpião, e enquanto abria caminho para seu centro, o veneno empapava sua pele. Com sorte, poderia foder um momento enquanto ainda conservava a túnica posta...
A princesa se desmaterializou fora de suas garras e voltou a tomar forma justamente ante a janela através da qual Trez poderia ver. Com um rápido movimento, sua túnica a abandonou, eliminada por sua vontade e sua carne foi revelada. Estava constituída como a serpente que era, muitos nervos, e muito magra e quando a luz da lua se refletia sobre os fios entremeados de seu reluzente body dava a impressão de ter escamas.
Seus pés estavam plantados de cada lado da bolsa de rubis.
— Adorará-me. — disse isso, passando a mão entre as coxas e acariciando a fenda — Com a boca.
Rehv se aproximou e ficou de joelhos. Levantando o olhar para ela, disse com um sorriso:
— E será você quem recolherá essa bolsa.
Capítulo 18
Ehlena se deteve fora do necrotério da clínica, com ambos os braços rodeando seu peito, o coração na garganta e as preces saindo de seus lábios. Apesar de seu uniforme, não estava esperando em caráter profissional e o cartaz de SÓ PESSOAL que estava ao nível de seus olhos a freava tanto como se fosse alguém com roupas comuns. Enquanto os segundos passavam lentos como séculos, olhava as letras como se tivesse esquecido como ler. A palavra só estava em uma metade das portas, e pessoal na outra. Em letras vermelhas maiúsculas. Debaixo das letras em português, estava a tradução na Antiga Língua.
Alix tinha atravessado as portas fazia um momento com o Havers a seu lado.
Por favor… Que não seja Stephan. Por favor, não deixe que o John Doe seja Stephan.
O pranto que se filtrou através das portas de SÓ PESSOAL provocou que fechasse os olhos, tão forte que fez com que a cabeça desse voltas.
Depois de tudo, não a tinha deixado plantada.
Dez minutos depois Alix saiu, tinha o rosto pálido e a parte inferior dos olhos avermelhada devido à quantidade de vezes que enxugou as abundantes lágrimas. Havers estava logo atrás dele, o médico se mostrava igualmente desconsolado.
Ehlena se adiantou e pegou ao Alix entre seus braços.
— Sinto tanto.
— Como… Como digo a seus pais… Eles não queriam que viesse até aqui… Oh, Deus…
Ehlena sustentou o corpo estremecido do macho até que Alix se endireitou e arrastou ambas as mãos por seu rosto.
— Estava desejando sair contigo.
— E eu com ele.
Havers pôs sua mão sobre o ombro de Alix.
— Quer levar isso contigo?
O macho olhou para trás, às portas, e fechou a boca até que se converteu somente em uma fina linha.
— Vamos querer começar com os... Rituais mortuários... Mas...
— Você gostaria que o amortalhasse? — perguntou Havers brandamente.
Alix fechou os olhos e assentiu.
— Não podemos deixar que sua mãe veja seu rosto. Isso a mataria. Eu o faria, mas...
— Cuidaremos dele muito bem. — disse Ehlena — Pode confiar que nos ocuparemos com respeito e reverência.
— Não acredito que possa… — Alix olhou em sua direção — Está mal de minha parte?
— Não. — disse sustentando ambas as mãos — E lhe prometo, faremos com amor.
— Mas deveria ajudar…
— Pode confiar em nós. — enquanto o macho piscava rapidamente, Ehlena o guiou gentilmente, afastando-o das portas do necrotério — Quero que vá esperar em uma das salas de estar familiares.
Ehlena acompanhou o primo de Stephan pelo corredor até chegar ao vestíbulo onde estavam as salas de exame. Quando outra enfermeira passou por ali, Ehlena lhe pediu que o levasse a uma sala de espera privada e logo retornou ao necrotério.
Antes de entrar, respirou profundamente e endireitou os ombros. Quando entrou empurrando as portas, cheirou ervas e viu Havers de pé junto a um corpo coberto por um lençol branco. O andar de Ehlena fraquejou.
— Meu coração está oprimido. — disse o médico — Tão oprimido. Não queria que esse pobre moço visse assim a seu familiar de sangue, mas depois de identificar suas roupas, ele insistiu. Tinha que vê-lo.
— Porque tinha que assegurar-se.
Era o que ela teria necessitado ao estar nessa situação.
Havers levantou o lençol, dobrando-o sobre o peito e Ehlena tampou bruscamente a boca com a mão para conter um ofego.
O rosto de Stephan, golpeado e sujo, estava quase irreconhecível.
Ela tragou uma vez. E outra vez. E uma terceira vez.
Querida Virgem Escriba, vinte e quatro horas antes, ele estava vivo. Vivo e no centro, desejando vê-la. Logo uma má decisão de ir para um lado e não para o outro o tinha feito terminar aqui, jazendo sobre uma cama fria de aço inoxidável, a ponto de ser preparado para seu ritual mortuário.
— Trarei as mortalhas. — disse bruscamente Ehlena quando Havers tirou completamente o lençol do corpo.
O necrotério era pequeno, com apenas oito unidades de refrigeração e duas mesas de exame, mas estava bem provido quanto a equipamento e fornecimentos. As mortalhas cerimoniais eram guardadas em um armário próximo do escritório, e quando abriu a porta, saiu uma fresca baforada herbal. As bandas de linho tinham sete centímetros e meio de largura e vinham em cilindros do tamanho dos dois punhos de Ehlena. Empapados de uma combinação de romeiro, lavanda e sal marinho, irradiavam um aroma suficientemente prazenteiro que, não obstante, faziam-na retroceder cada vez que captava aquele odor.
Morte. Era o aroma da morte.
Tirou dez cilindros e os empilhou em seus braços, logo voltou onde estava o corpo de Stephan totalmente exposto, com apenas um tecido sobre seus quadris.
Depois de um momento, Havers saiu de um vestiário que havia no fundo, usando uma túnica negra atada com uma faixa negra. Ao redor do pescoço, suspensa de uma corrente de prata larga e pesada, tinha uma ferramenta ornamentada para cortar, muito afiada que era tão antiga, que o trabalho de filigrana da manga tinha curvas obscurecidas dentro de seu curvilíneo desenho.
Ehlena abaixou a cabeça enquanto Havers elevava à Virgem Escriba as preces requeridas para o pacífico descanso de Stephan dentro do tenro abraço do Fade. Quando o doutor esteve preparado, passou-lhe o primeiro dos cilindros aromáticos e começaram com a mão direita de Stephan, como era adequado. Com muitíssima gentileza e cuidado, sustentou o membro frio e cinza no ar, enquanto Havers envolvia a carne apertadamente, voltando a pôr a tira de linho sobre si mesmo. Quando chegaram até o ombro, moveram-se para a perna direita, depois foi a mão esquerda, o braço esquerdo e logo a perna esquerda.
Quando tiraram o tecido de seus quadris, Ehlena se deu volta, como era requerido por ser fêmea. Se tivesse sido um corpo feminino, não o teria que fazer, embora um assistente masculino o teria feito por respeito. Depois que os quadris foram envoltos, enfaixaram o tronco até o peito e cobriram os ombros.
Com cada passada do linho, o aroma a ervas golpeava de novo o nariz até que sentiu como se não pudesse respirar.
Ou talvez não fosse o aroma que havia no ar, mas sim os pensamentos que havia em sua mente. Ele teria sido seu futuro? Teria conhecido seu corpo? Poderia ter sido seu hellren e o pai de seus filhos?
Perguntas que nunca seriam respondidas.
Ehlena franziu o cenho. Não, em realidade, todas tinham sido.
Cada uma delas com um não.
Enquanto passava outro cilindro ao médico da raça, perguntou-se se Stephan tinha vivido uma vida plena e satisfatória.
Não, pensou. Tinha sido extorquido. Totalmente extorquido.
Enganado.
O rosto era o último em ser coberto e sustentou a cabeça de Stephan enquanto o doutor enrolava e enrolava o linho lentamente. Ehlena respirava com dificuldade e só quando Havers cobriu os olhos, uma lágrima deixou os próprios e aterrissou na mortalha branca.
Havers pôs a mão brevemente em seu ombro e logo terminou o trabalho.
O sal que havia nas fibras do linho funcionava como um selador para que nenhum fluído filtrasse através da malha, e o mineral também preservava o corpo para o sepulcro. As ervas serviam para a função óbvia no curto prazo de mascarar qualquer aroma, mas também eram emblemas dos frutos da terra, os ciclos de crescimento e morte.
Com uma maldição, voltou para o armário e retirou um sudário negro, com o qual Havers e ela envolveram Stephan. O exterior negro simbolizava a carne mortal corruptível, o interior branco, a pureza e incandescência da alma dentro de seu lar eterno no Fade.
Ehlena tinha escutado uma vez que os rituais serviam a importantes propósitos além de seu aspecto prático. Supunha-se que ajudavam a cura psicológica, mas estando junto ao corpo morto de Stephan sentia que isso era pura merda. Era uma aceitação falsa, uma patética tentativa para conter as exigências de um destino cruel com um tecido de aroma doce.
Não era nada mais que uma capa sobre um sofá manchado de sangue.
Detiveram-se junto à cabeça de Stephan para lhe oferecer um momento de silêncio e logo empurraram a maca deslocando-a do fundo do necrotério para o sistema de túneis que corriam subterraneamente até as garagens. Ali, puseram o Stephan em uma das quatro ambulâncias que estavam feitas para parecer exatamente com as que os humanos usavam.
— Levarei a ambos a casa dos pais. — disse ela.
— Necessita que a acompanhem?
— Parece-me que para o Alix será melhor não ter audiência.
— Embora tomará cuidado, verdade? Não só com eles, mas também com sua própria segurança?
— Sim.
Cada uma das ambulâncias tinha uma pistola debaixo do assento do condutor, e assim que Ehlena começou a trabalhar na clínica, Catya lhe ensinou a disparar: não cabia dúvida, de que podia dirigir algo que ficasse em seu caminho.
Quando Havers e ela fecharam as portas duplas da ambulância, Ehlena olhou para a entrada do túnel.
— Parece que vou voltar para a clínica pelo estacionamento. Preciso de ar.
Havers assentiu.
— E eu farei o mesmo. Dou-me conta que também necessito ar.
Juntos saíram à noite fria e clara.
Como a boa puta que Rehv era fez tudo o que lhe pediram. O fato de que fosse rude e cruel era uma concessão a seu livre-arbítrio... E novamente, parte da razão pela qual a princesa gostava do assunto que tinham.
Quando tudo terminou e ambos estiveram esgotados — ela por ter tantos orgasmos, ele porque o veneno de escorpião tinha penetrado profundamente em sua corrente sanguínea — esses malditos rubis seguiam onde os tinha jogado. No chão.
A princesa estava escancarada contra o batente da janela, ofegando dificultosamente, com seus dedos de três nódulos estendidos, provavelmente porque sabia que o enojavam como a merda. Ele estava do outro lado da cabana, tão longe dela como podia, de pé, cambaleando.
Enquanto tentava respirar, odiou que o ar da cabana cheirasse a sexo sujo. Do mesmo modo, tinha o aroma dela por todo seu corpo, cobrindo-o, sufocando-o tanto, que apesar de ter sangue symphath em suas veias, sentia vontade de vomitar. Ou possivelmente isso era devido ao veneno. Quem merda podia saber?
Ela levantou uma de suas mãos ossudas e apontou para a bolsa de veludo.
— Le-van-ta-os.
Os olhos de Rehv se travaram com os dela, e sacudiu a cabeça de um lado a outro lentamente.
— Será melhor que volte para nosso tio. — disse com tom áspero — Estou disposto a apostar que se te ausentar por muito tempo ele desconfiará.
Com isso, a tinha. O irmão do pai de ambos era um sociopata, calculista e desconfiado. Igual a eles.
Tudo ficava em família, como estavam acostumados a dizer.
A túnica da princesa se levantou do chão e flutuou para sua proprietária, e enquanto pendurava no ar a seu lado, retirou do bolso interior uma bandagem longa e vermelha. Deslizando-a entre suas pernas, envolveu o sexo, mantendo dentro o que ele tinha deixado. Depois se vestiu, e cobriu a metade da túnica que ele tinha esmigalhado, formando uma dobra sob a capa superior. O cinturão de ouro, ou ao menos ele assumia que era de ouro, dada a forma em que refletia a luz, foi o seguinte.
— Envie lembranças a meu tio. — disse Rehv arrastando as palavras — Ou... Não.
— Le... Van... Ta... Os.
— Ou se inclina para recolher essa bolsa, ou vai sem ela.
Os olhos da princesa cintilaram com o tipo de rancor que fazia tão divertido discutir com assassinos, e permaneceram olhando um ao outro durante compridos e hostis minutos.
A princesa se quebrou. Exatamente como ele havia dito que o faria.
Para sua eterna satisfação, foi ela quem os recolheu, sua capitulação quase o fez gozar de novo, sua lingüeta ameaçou enganchar-se apesar de que não havia nada contra o que travar-se.
— Poderia ser rei. — disse ela estendendo a mão, e fazendo com que a bolsa de veludo com os rubis se elevasse do chão — Mata-o e poderá ser rei.
— Se mato a você, poderia ser feliz.
— Nunca será feliz. É de uma raça separada, vivendo uma mentira entre inferiores. —sorriu e uma alegria verdadeira se refletiu em seu rosto — Exceto aqui comigo. Aqui, pode ser honesto. Até o próximo mês, meu amor.
Atirou-lhe um beijo com suas horríveis mãos e se desmaterializou, dissipando-se da forma em que tinha feito o fôlego dele fora da cabana, devorado pelo fino ar da noite.
Os joelhos de Rehv cederam e se derrubou no chão, aterrissando em uma pilha de ossos. Jazendo sobre as pranchas rústicas, era consciente de tudo: os músculos de suas coxas com cãibras, o comichão na ponta de seu pênis quando o prepúcio voltou para seu lugar, o tragar compulsivo causado pelo veneno de escorpião.
Enquanto a frieza da cabana se filtrava para fora, náuseas o percorreram como uma maré fétida e oleosa e seu estômago se fechou como um punho, formando um montão de “vamos daqui” que apertava sua garganta. As ânsias de vômito instintivas seguiram as ordens e abriu muito a boca, mas não saiu nada.
Sabia bem que não devia comer antes de ter um encontro.
Trez atravessou a porta tão silenciosamente que não foi até que as botas do cara estiveram frente a seu rosto que Rehv notou que seu melhor amigo estava com ele.
A voz do segurança foi amável:
— Vamos te tirar daqui.
Rehv esperou uma interrupção nas ânsias de vomito, para tratar de levantar do chão.
— Deixa... Que me vista.
O veneno de escorpião disparou a toda velocidade através de seu sistema nervoso central, interferindo com sua auto-estrada neuronal e conseqüentemente, fazendo com que arrastar seu corpo até onde estavam suas roupas envolvesse um desdobramento vergonhoso de debilidade. O problema era que o antídoto devia permanecer no carro, do contrário a princesa o teria encontrado, e mostrar uma debilidade tão substancial como essa era como entregar sua arma carregada a seu inimigo.
Evidentemente Trez perdeu a paciência com o show, porque se aproximou e recolheu o casaco.
— Só ponha isto assim poderemos te tratar.
— Vestirei-me. — era o orgulho da puta.
Trez amaldiçoou e se ajoelhou com o casaco.
— Porra, Rehv...
— Não… — um ofego selvagem o interrompeu e fez com que caísse sobre o chão, oferecendo uma rápida aproximação dos nós das pranchas de pinheiro.
Caralho, estava mau esta noite. Pior do que alguma vez tinha estado.
— Rehv, sinto muito, mas vou tomar o controle.
Trez ignorou os intentos patéticos de Rehv por rechaçar sua ajuda, e depois de envolvê-lo com a zibelina, seu amigo o levantou e o carregou para fora como uma peça quebrada de equipe.
— Não pode continuar fazendo isto. — disse Trez enquanto suas pernas longas os levavam rapidamente para o Bentley.
— Observe.
Para manter a ele e a Xhex vivos e no mundo livre, tinha que fazê-lo.
Capítulo 19
Rehv despertou no seu dormitório de seu grande rancho nas Adirondacks que utilizava como refúgio. Podia dizer onde estava pelas janelas que iam do chão ao teto, o alegre fogo que tinha em frente, e o fato de que o pé da cama tinha putti esculpidos em mogno. O que não estava claro era quantas horas tinham passado desde seu encontro com a princesa. Uma? Cem?
Do outro lado do tênue cômodo, Trez estava sentado em um sofá cor vermelho escuro, lendo à débil luz amarela de uma luminária de mesa.
Rehv pigarreou.
— Que livro é?
O segurança elevou o olhar, os olhos amendoados enfocando-se com uma acuidade da qual Rehv poderia ter prescindido.
— Está acordado.
— Que livro?
— É “O dicionário da morte das Sombras”.
— Leitura ligeira. E eu aqui pensando que fosse fã de Candace Bushnell.
— Como se sente?
— Bem. Genial. Animado como a merda. — Rehv grunhiu enquanto se impulsionava mais alto sobre os travesseiros. Apesar do casaco de zibelina, que tinha em volta do corpo nu, e das colchas, mantas e edredons de plumas que tinha em cima, seguia tão frio como o rabo de um pingüim, assim obviamente Trez lhe tinha injetado muita dopamina. Mas pelo menos a antitoxina tinha funcionado, os fôlegos e a falta de fôlego tinham desaparecido.
Trez fechou lentamente a capa do livro antigo.
— Estou me preparando, isso é tudo.
— Para entrar em sacerdócio? Pensava que toda a coisa do rei era sua especialidade.
O segurança pôs o livro na mesa baixa que tinha ao lado e se elevou em toda sua estatura. Depois de esticar todo o corpo, aproximou-se da cama.
— Quer alimento?
— Sim. Estaria bem.
— Dê-me quinze minutos.
Quando a porta se fechou atrás do macho, Rehv procurou ao seu redor e encontrou o bolso interior da zibelina. Quando tirou o telefone e o comprovou, não havia mensagens. Nenhuma mensagem de texto.
Ehlena não se aproximou, nem se pôs em contato com ele. Mas então, por que teria que fazê-lo?
Olhou fixamente o telefone e riscou o teclado com o polegar. Ansiava muitíssimo ouvir sua voz, como se escutá-la pudesse apagar tudo o que tinha acontecido nessa cabana.
Como se ela pudesse fazer desaparecer as duas décadas e meia passadas.
Rehv entrou em seus contatos e fez aparecer seu número na tela. Era provável que estivesse no trabalho, mas, se deixava uma mensagem, possivelmente o ligaria no descanso. Duvidou, mas logo pressionou enviar e pôs o telefone em sua orelha.
No instante em que ouviu o sinal de chamada, teve uma imagem vívida e vil dele tendo relações sexuais com a princesa, de seus quadris amassando, da luz da lua lançando sombras obscenas sobre o chão rústico.
Terminou a chamada com um murro rápido, sentindo como se seu corpo estivesse revestido de merda feita loção.
Deus, não havia suficientes banhos no mundo para limpá-lo o bastante para ser digno de falar com Ehlena. Nem bastante sabão, nem água sanitária, nem bucha. Enquanto a imaginava com seu antigo uniforme de enfermeira, o cabelo loiro avermelhado recolhido para trás em um pulcro coque, e seus silenciosos sapatos brancos, soube que se alguma vez a tocasse a mancharia pela vida toda.
Com o polegar intumescido, acariciou a tela plana do telefone, como se fosse sua bochecha, logo deixou que a mão caísse na cama. A vista das brilhantes veias vermelhas do braço recordou um par de coisas mais que tinha feito com a princesa.
Nunca tinha pensado que seu corpo fosse um dom especial. Era grande e musculoso, por isso era útil, e ao outro sexo gostava o que significava que era uma espécie de vantagem. E funcionava bem… Bom, exceto pelos efeitos secundários que lhe ocasionava a dopamina e a alergia ao veneno de escorpião.
Mas, realmente a quem importava?
Convexo na cama na quase escuridão, com o telefone na mão, viu mais cenas horrorosas de seu tempo com a princesa… Ela lhe mamando, ele agachando-se e fodendo-a por detrás, sua boca entre as coxas dela. Recordou o que sentia quando a lingüeta de seu pênis se travava e ambos ficavam enganchados.
Então pensou em Ehlena medindo sua pressão… E em como tinha dado um passo atrás, afastando-se dele.
Tinha razão ao ter feito isso.
Era um equívoco ligar para ela.
Com deliberado cuidado, moveu o polegar pelos botões e entrou em sua informação de contato. Não se deteve nem uma vez enquanto a apagava do telefone, e quando desapareceu, um calor inesperado lhe encheu o peito… Indicando que de acordo com lado de sua mãe, fazia o correto.
A próxima vez que fosse à clínica, pediria outra enfermeira. E, se voltasse a ver Ehlena, a deixaria em paz.
Trez entrou com uma bandeja de flocos de aveia, um pouco de chá e algumas torradas.
— Hmmm. — disse Rehv sem entusiasmo.
— Seja um menino bom e termine isso. Na próxima refeição trarei ovos com toucinho.
Quando a bandeja esteve assentada sobre suas pernas, Rehv atirou o telefone sobre a pele e levantou a colher. Bruscamente, e por nenhuma absoluta e positiva razão em especial, disse:
— Esteve apaixonado alguma vez, Trez?
— Não. — o segurança retornou a sua cadeira no rincão, o abajur curvo iluminou seu rosto bonito e escuro — Vi iAm tentar e decidi que não era para mim.
— iAm? Não me foda. Não sabia que seu irmão tinha tido uma garota.
— Não fala dela, e nunca a conheci. Mas durante um tempo se sentiu miserável do modo em que só uma fêmea pode pôr a um tipo.
Rehv fez girar o açúcar mascavo que estava polvilhado sobre a aveia.
— Acredita que alguma vez te emparelhará?
— Não. — Trez sorriu, e seus perfeitos dentes brancos cintilaram — Por que as perguntas?
Rehv levou a colher à boca e comeu.
— Por nenhuma razão.
— Sim. Certo.
— Estes flocos de aveia são fantásticos.
— Você odeia os flocos de aveia.
Rehv riu um pouco e seguiu comendo para sossegar-se, pensando que o tema do amor não era de sua incumbência. Mas o trabalho, seguro como o inferno que sim o era.
— Aconteceu algo nos clubes? — perguntou.
— Tudo vai como a seda.
— Bem.
Rehv despachou lentamente a Quaker Oats, perguntando-se por que, se tudo ia perfeito e de primeira em Caldwell, tinha uma sensação de desgosto no intestino.
Provavelmente, pensou, era a aveia.
— Disse a Xhex que estou bem, verdade?
— Sim. — disse Trez, levantando o livro que tinha estado lendo — Menti.
Xhex estava sentada atrás de seu escritório e olhava fixamente a seus dois melhores seguranças, Big Rob e Silent Tom. Eram humanos, mas eram preparados e com seus jeans baixos, emitiam a enganosa sensação de tranqüilidade que ela procurava.
— O que podemos fazer por você, chefe? —perguntou Big Rob.
Inclinando-se para frente em sua cadeira, tirou dois montões de notas do bolso traseiro de suas calças de couro. Mostrava-os deliberadamente, dividindo-os em duas pilhas e deslizando-os para os homens.
— Preciso que façam um trabalho extra-oficial.
Seus assentimentos foram tão rápidos como suas mãos sobre essas notas.
— O que você quiser. — disse Big Rob.
— Durante o verão, tivemos um barman que despedimos por roubar. O tipo se chamava Grady. Recordam…
— Vi essa merda a respeito de Chrissy no periódico.
— Fodido bastardo. — Silent Tom interveio pela primeira vez.
Xhex não se surpreendeu que soubessem toda a história.
— Quero que encontrem Grady. — quando Big Rob começou a fazer soar seus nódulos, ela sacudiu a cabeça — Não. O único que quero que façam é que me consigam um endereço. Se os vir, cumprimentem de longe e se afastem. Está claro? Não façam mais que lhe roçar a manga.
Ambos sorriram cruelmente.
— Nenhum problema, chefe. — murmurou Big Rob — O guardaremos para você.
— O DPC o busca também.
— Sem dúvida que sim.
— Não queremos que a polícia saiba o que estão fazendo.
— Nenhum problema.
— Ocuparei-me de cobrir seus turnos. Quanto mais rápido o encontrarem, mais feliz estarei.
Big Rob olhou ao Silent Tom. Após um momento, tiraram as notas que lhes tinha dado dos bolsos e as deslizaram pela mesa.
— Faremos o correto pela Chrissy, chefe. Não se preocupe.
— Com vocês nisto, não o farei.
A porta se fechou atrás deles, e Xhex passou as palmas acima e abaixo pelas coxas, forçando aos cilícios que tinha nas pernas a entrar mais profundamente em sua pele. Estava ardendo pela necessidade de sair ela mesma, mas com Rehv no norte e os entendimentos que fariam esta noite, não podia deixar o clube. E o que era igualmente importante, quanto ao Grady não ia poder fazer os preparativos ela mesma. Esse detetive da homicídios a estava vigiando.
Transladando os olhos ao telefone, quis amaldiçoar. Trez a tinha ligado mais cedo para dizer que Rehv tinha terminado o negócio com a princesa, e o som da voz do segurança tinha indicado o que suas palavras não diziam: o corpo de Rehv não ia agüentar muita tortura mais.
Outra situação mais que se via forçada a agüentar, sentada sobre seu rabo, esperando.
A impotência não era um estado com o qual se sentisse cômoda, mas quando se tratava da princesa, estava acostumada a sentir-se impotente. Fazia vinte anos, quando as escolhas de Xhex os tinham posto nesta situação, Rehv lhe havia dito que se ocuparia das coisas com uma condição: deixaria dirigi-lo a sua maneira sem intervir. Tinha feito jurar que permaneceria afastada, e embora a matasse, tinha cumprido a promessa e vivia com a realidade de que Rehv se viu forçado a cair nas mãos dessa puta por causa dela.
Maldita fora desejava que perdesse a paciência e arremetesse contra ela. Só uma vez. Em troca, seguia agüentando, pagando com seu corpo a dívida que ela tinha gerado.
Ela o tinha convertido em uma puta.
Xhex deixou o escritório porque não podia suportar passar mais tempo consigo mesma, e quando esteve no clube rezou para que houvesse uma escaramuça na parte do povo, como um triângulo amoroso explodindo, onde algum tipo esbofeteasse a outro por uma garota com lábios de peixe e tetas de plástico. Ou possivelmente um encontro no banheiro de homens da sobreloja se fosse ao traste. Merda! Estava tão desesperada que inclusive agarraria a um bêbado de saco cheio com seu patrão ou algum casal em um rincão escuro que tivessem levado o manuseio cruzando a linha até a penetração.
Precisava golpear algo e sua melhor oportunidade era com as massas. Se só houvesse…
Era sua sorte. Todos estavam se comportando.
Miseráveis estúpidos.
Finalmente, terminou indo à seção VIP porque estava deixando os seguranças da pista dementes ao ficar rodando por ali em busca de briga. E, além disso, tinha que usar os músculos em um trato de maior importância.
Ao atravessar a corda de veludo, seus olhos foram diretos à mesa da Irmandade. John Matthew e seus companheiros não estavam ali, mas bom, sendo tão cedo, estariam fora caçando lessers. Os engolidores de Corona viriam mais tarde, se é que o fariam.
Não lhe importava se John viria.
Nada absolutamente.
Aproximando-se de iAm, disse:
— Preparados?
O segurança assentiu.
— Rally tem o produto preparado. Os compradores devem estar aqui em vinte minutos.
— Bem.
Essa noite levariam a cabo dois entendimentos de seis cifras por coca, e com o Rehv fora de combate e Trez acompanhando-o no norte, ela e iAm estavam no comando das transações. Embora o dinheiro fosse trocar de mãos no escritório, o produto ia ser carregado nos carros, no beco traseiro, porque quatro quilogramas de pó sul-americano puro não era o tipo de coisas que ela quisesse que estivesse dando voltas pelo clube. Merda, o fato de que os compradores fossem chegar com maletas contendo dinheiro em efetivo era bastante problemático.
Xhex estava na porta do escritório quando vislumbrou a Marie-Terese insinuando-se a um homem com terno. O homem a olhava com admiração e maravilha, como se fosse o equivalente feminino de um carro esportivo que alguém acabava de lhe dar as chaves.
A luz cintilou na aliança de casamento que levava quando estendeu a mão para a carteira.
Marie-Terese sacudiu a cabeça e levantou sua elegante mão para detê-lo, logo pôs ao absorto homem de pé e precedeu o caminho por volta dos banheiros particulares da parte de trás, onde o dinheiro trocaria de mão.
Xhex girou e se encontrou frente à mesa da Irmandade.
Enquanto olhava o lugar onde John Matthew estava acostumado a sentar-se habitualmente, pensou no John[40] mais recente de Marie-Terese. Xhex estava disposta a apostar que o HDP que estava a ponto de soltar quinhentos dólares para ser mamado ou fodido ou possivelmente mil por ambos, não olhava a sua mulher com esse tipo de excitação e luxúria. Era a fantasia. Ele não sabia nada a respeito de Marie-Terese, não tinha nem idéia de que fazia dois anos seu filho tinha sido seqüestrado por seu ex-marido e que ela estava trabalhando para pagar o custo da volta do menino. Para ele, ela era um magnífico pedaço de carne, algo com o que brincar e ser deixado atrás. Prolixo. Limpo.
Todos os John eram assim.
E também o era o John de Xhex. Ela era uma fantasia para ele. Nada mais. Uma mentira erótica que evocava para fazer uma punheta… O que realmente não era algo do que o culpasse, porque ela estava fazendo o mesmo com ele. E a ironia era que ele era um dos melhores amantes que jamais tinha tido, embora isso fosse porque podia fazer algo que quisesse durante tanto tempo como necessitasse para se saciar, e nunca havia queixa, reservas nem pedidos.
Prolixo. Limpo. A voz de iAm saiu do auricular.
— Os compradores acabam de entrar.
— Perfeito. Vamos fazê-lo.
Terminaria com os dois entendimentos, e logo tinha seu próprio trabalho particular que fazer. Agora, isso era algo que valia a pena ansiar. Ao final da noite, ia conseguir exatamente a classe de liberação que necessitava.
Do outro lado da cidade, em um tranqüilo beco sem saída em uma vizinhança segura, Ehlena estava estacionada diante de uma modesta casa colonial, sem intenção de ir a nenhum lugar em um futuro próximo.
A chave não entrava no painel de acesso da ambulância.
Tendo terminado com o que deveria ter sido a parte mais difícil da viagem, tendo entregado Stephan a salvo aos braços de seus familiares de sangue, acabava surpreendente que colocar a maldita chave no condenado contato fosse mais difícil.
— Vamos… — Ehlena se concentrou em estabilizar sua mão. E acabou olhando realmente muito de perto a forma em que o pedaço de metal saltava ao redor do buraco ao que pertencia.
Recostou-se no assento com uma maldição, sabendo que estava aumentando a desdita da casa, que a ambulância estacionada ali fora era simplesmente outra declaração expressa a gritos da tragédia.
Como se o corpo do amado filho da família não fosse suficiente.
Girou a cabeça e olhou fixamente as janelas coloniais. Havia sombras deslocando-se do outro lado das cortinas de gaze.
Depois de entrar de ré pelo caminho de entrada, Alix tinha ingressado na casa e ela tinha esperado na noite fria. Um momento depois, a porta da garagem tinha rodado para cima e Alix tinha saído com um macho mais velho que se parecia muito a Stephan. Ela tinha feito uma reverência e tinha lhe estreitado a mão, e logo tinha aberto a porta traseira da ambulância. O macho teve que por uma mão sobre a boca enquanto ela e Alix tiravam a maca.
— Meu filho… — tinha gemido.
Nunca esqueceria o som dessa voz. Oco. Sem esperança. Com o coração quebrado.
O pai de Stephan e Alix o levaram para a casa, e assim como no necrotério, um momento depois se escutou um pranto. Esta vez, entretanto, tinha sido o lamento mais agudo de uma fêmea. A mãe de Stephan.
Alix tinha retornado no momento em que Ehlena estava empurrando a maca para o interior da ambulância, e estava piscando rapidamente, como se estivesse enfrentando um forte vento. Depois de apresentar seus respeitos e despedir-se, subiu atrás do volante e… Não tinha podido arrancar o maldito veículo.
Do outro lado das cortinas de gaze, viu duas silhuetas fundirem-se em um abraço. E logo foram três. E logo vieram mais.
Sem nenhuma razão aparente, pensou nas janelas da casa que alugava para ela e seu pai, todas cobertas com papel alumínio, seladas para deixar o mundo de fora.
Quem estaria junto a seu corpo envolto quando sua vida acabasse? Seu pai sabia quem era ela a maior parte do tempo, mas raramente estava conectado a ela. O pessoal da clínica era muito amável, mas isso era trabalho, não pessoal. Pagava a Lusie para vir.
Quem cuidaria de seu pai?
Sempre tinha assumido que ele se iria primeiro, mas então, sem dúvida a família de Stephan tinha pensado o mesmo.
Ehlena afastou o olhar dos enfermos e fixou no pára-brisa dianteiro da ambulância.
A vida era muito curta, por muito que vivesse. Não acreditava que alguém estivesse preparado, quando chegava seu turno, para deixar amigos, familiares e as coisas que os faziam felizes, ainda que tivessem quinhentos anos, como seu pai, ou cinqüenta, como Stephan.
O tempo era uma fonte interminável de dias e noites como a galáxia era grande.
Fez com que se perguntasse: Que demônios estava fazendo com o tempo que tinha? Seu trabalho lhe dava um propósito, certo, e cuidava de seu pai, o que era o que se fazia pela família. Mas aonde ia? A lugar nenhum. E não se referia a estar sentada nesta ambulância com as mãos tão trementes que não podia colocar uma chave na ignição.
O assunto era que, não é que queria mudar tudo. Só queria algo para si mesma, algo que a fizesse saber que estava viva.
Os profundos olhos cor ametista de Rehvenge lhe vieram à mente como saídos de nenhuma parte, e como uma câmera que vai se afastando, viu seu rosto esculpido, seu penteado moicano, sua roupa fina e sua bengala.
Esta vez, quando se esticou para frente com a chave, a coisa entrou firmemente e o motor diesel despertou com um grunhido. Quando a calefação soltou uma rajada de ar frio, desligou o ventilador, colocou a alavanca em “avanço” e saiu da casa, do beco sem saída e da vizinhança.
Que já não parecia tranqüilo.
Atrás do volante, ia conduzindo e ao mesmo tempo estava ausente, cativada pela imagem de um macho que não podia ter, mas que nesse momento precisava com loucura.
Seus sentimentos eram inconvenientes por muitos motivos. Pelo amor de Deus, eram uma traição a Stephan, apesar de que, na realidade, não o tinha conhecido. Simplesmente parecia uma falta de respeito estar desejando a outro macho enquanto seu corpo era chorado por seu sangue.
Salvo que teria desejado ao Rehvenge de todos os modos.
— Maldito seja.
A clínica estava do outro lado do rio, e a alegrava, porque nesse momento não poderia encarar o trabalho. Estava muito doída, triste e zangada consigo mesma.
O que precisava era…
Starbucks. Oh, sim, isso era exatamente o que necessitava.
A uns oito quilômetros dali, em um lugar ao redor do qual havia um supermercado Hannaford, uma floricultura, uma boutique do LensCrafters, e uma loja Blockbuster, encontrou um Starbucks que permanecia aberto até as duas da manhã. Levou a ambulância a um lado e saiu.
Quando deixou a clínica com o Alix e Stephan, não pensou em trazer o casaco, assim aconchegou sua bolsa, correu pela calçada e atravessou a porta a toda pressa. No interior, o lugar era como a maioria deles: nós de madeira vermelhos, chão de ladrilhos cinza, muitas janelas, cadeiras amaciadas e pequenas mesas. No mostrador havia muffins a venda e uma vitrine de vidro com quadradinhos de bolacha de limão, brownies e pão-doce e dois humanos próximos aos vinte dirigiam as máquinas de café. O ar cheirava a avelã, café e chocolate, e esse aroma apagou de seu nariz o persistente aroma herbal das mortalhas.
— Posso ajudá-la? — perguntou o menino mais alto.
— Um Latte comprido, com espuma, sem creme. Para levar.
O macho humano sorriu e se afastou. Tinha uma barba escura recortada e um brinco no nariz, sua camiseta estava salpicada de gráficos que soletravam as palavras COMEDOR DE TOMATE dentro de gotas do que poderia ter sido sangue, ou dado o nome da banda, ketchup.
— Gostaria de algo mais? Os pães-doces de canela são espetaculares.
— Não, obrigado.
Enquanto se encarregava de seu pedido não afastou a vista dela, e para evitar ter que tratar com sua atenção, procurou na bolsa e checou seu telefone no caso de que Lusie…
CHAMADA PERDIDA. Ver agora?
Pressionou o sim, rezando para que não se tratasse de seu pai…
Apareceu o número de Rehvenge, embora não seu nome, porque não o tinha posto no telefone. Olhou fixamente os dígitos.
Deus! Era como se lhe tivesse lido a mente.
— Seu latte! Olá?
— Sinto muito. — guardou o telefone, pegou o que o homem estendia e agradeceu.
— Dupla taça como o desejava. As asas também.
— Obrigado.
— Ouça, trabalha em um dos hospitais por aqui? — perguntou, observando seu uniforme.
— Clínica particular. Obrigada outra vez.
Saiu rapidamente e não perdeu tempo em entrar na ambulância. Quando esteve novamente atrás do volante, travou as fechaduras das portas, arrancou o motor e ligou a calefação imediatamente, porque o ar que saía ainda estava morno.
O latte estava realmente bom. Super quente. O sabor perfeito.
Tirou o telefone outra vez, foi à lista de chamadas recebidas e escolheu o número de Rehvenge.
Respirou fundo e tomou um comprido trago do latte.
E pressionou enviar.
O código de área do destino era o 518. Quem teria dito?
CONTINUA
Capítulo 10
Rehvenge fechou a porta de seu escritório e sorriu tensamente, para evitar que suas presas aparecessem. Entretanto, ainda sem a exibição dos caninos, para o recolhedor de apostas espremido entre Trez e iAm foi suficiente para saber que estava em sérios problemas.
— Reverendo o que é tudo isto? Por que me chama assim? — disse o tipo precipitadamente — Estava me ocupando de meu negócio, para o senhor e de repente estes dois...
— Ouvi algo interessante sobre você. — disse Rehv, rodeando seu escritório.
Quando estava se sentando, Xhex entrou no escritório, com uma expressão dura nos olhos cinza. Após fechar a porta, apoiou as costas contra ela, sendo melhor que qualquer Master Lock quando se tratava de manter aos recolhedores de apostas trapaceiros dentro e longe dos olhos curiosos de fora.
— É mentira, é uma absoluta mentira...
— Você não gosta de cantar? — Rehv se recostou em sua cadeira, seu corpo intumescido encontrando uma posição familiar atrás da mesa de escritório negra — Não foi você que deu um pequeno espetáculo a La Tony Bennett para a multidão do Sal's a outra noite?
O recolhedor de apostas franziu o cenho.
— Bom, sim... Tinha alguns ouvintes.
Rehv fez um gesto com a cabeça a iAm, quem como sempre, tinha o rosto inexpressivo. O cara nunca demonstrava suas emoções, exceto quando se tratava de um cappuccino perfeito. Então podia vê-lo radiante de alegria.
— Meu companheiro aqui... Diz que cantou realmente bem. Que verdadeiramente agradou à multidão. O que cantou, iAm?
A voz de iAm era como a de James Earl Jones, baixa e profunda.
— Três Moedas na Fonte.
O recolhedor de apostas subiu as calças de um puxão em um gesto orgulhoso.
— Tenho habilidade. Tenho ritmo.
— Assim é um tenor como o bom e prezado senhor Bennett, não é? — Rehv tirou o casaco com um encolhimento de ombros — Os tenores são os meus favoritos.
— Sim. — o recolhedor de apostas olhou aos seguranças — Olhe, se importaria em me dizer o que é tudo isto?
— Quero que cante para mim.
— Quer dizer, como em uma festa? Faria qualquer coisa por você, chefe, já sabe. Tudo o que tem que fazer é pedir... Quero dizer, isto não era necessário.
— Não em uma festa, embora nós quatro desfrutemos ouvindo sua atuação. É para me compensar pelo que me roubou o último mês.
O rosto do recolhedor de apostas empalideceu.
— Eu não roubei...
— Sim, fez. Olhe, iAm é um contador fantástico. A cada semana, dá seus informes. Quanto, em que equipes, e que extensão. Acredita que não confere as contas? Apoiado nos informes do último mês deveria ter pagado... Qual era a cifra, iAm?
— Cento e setenta e oito mil quatrocentos e oitenta e dois.
— Isso mesmo. — Rehv fez um rápido gesto com a cabeça em sinal de agradecimento a iAm — Mas em vez disso veio com... Quanto?
— Cento e trinta mil novecentos e oitenta e dois. — replicou rapidamente iAm.
O recolhedor começou a falar imediatamente.
— Está enganado...
Rehv sacudiu a cabeça.
— Adivinha de quanto é a diferença... Embora não é como se já não soubesse. iAm?
— Quarenta e sete mil e quinhentos.
— O que casualmente é igual à soma de vinte e cinco dos grandes mais um interesse de noventa por cento. Não é assim, iAm? — quando o segurança assentiu com a cabeça uma vez, Rehv golpeou o chão com sua bengala e ficou em pé — E resulta que esse é o interesse de cortesia aplicado pela máfia de Esquente. Então Trez se dedicou a escavar um pouco, e o que foi que averiguou?
— Meu amigo Mike diz que emprestou vinte e cinco dos grandes a este cara aqui justamente antes do Rose Bowl12.
Rehv deixou sua bengala sobre a cadeira e rodeou a mesa do escritório, mantendo uma mão sobre a superfície para estabilizar-se. Os seguranças voltaram a ficar em posição, ladeando ao recolhedor de apostas, voltando a segurá-lo pela parte superior dos braços.
Rehv se deteve justamente diante do homem.
— Assim perguntarei isso uma vez mais, acredita que ninguém comprovaria as contas?
— Reverendo! Chefe... Por favor, ia lhe devolver isso! Por favor... Machucariam-me...
— Sim, é claro que vai fazê-lo. E vai me pagar o que cobro dos bastardos que tentam brincar disso comigo. Um castigo cento e cinqüenta por cento de interesse ao final deste mês ou sua esposa vai receber por correio seus pedacinhos. Oh, e está despedido.
O homem estalou em lágrimas, e não eram do tipo das de crocodilo. Eram autênticas, da classe que fazia que o nariz de um homem avermelhasse e os olhos inchassem.
— Por favor... iAm me danificar...
Rehv estendeu a mão de repente e a fechou entre as pernas do tipo. O uivo, quase um guincho, lhe indicou que embora ele não pudesse sentir nada, o recolhedor de apostas podia, e que a pressão estava sendo exercida no ponto exato.
— Não gosto que me roubem. — disse Rehv no ouvido do homem — Eu fico de saco cheio. E, se acredita que o que a máfia te faria é mau, garanto que sou capaz de algo pior. Agora... Quero que cante para mim, filho da puta.
Rehv retorceu com força e o tipo gritou com tudo o que tinha, o som foi alto e agudo, e ecoou na sala do andar de baixo. Quando o chiado começou a desvanecer-se porque o recolhedor de apostas tinha esgotado seu fornecimento de ar, Rehv cedeu e lhe deu oportunidade de refrescar as cordas vocais com um e outro ofego. E depois disso...
O segundo grito foi mais alto e ruidoso que o primeiro, provando que os vocalistas o faziam melhor depois de um pequeno aquecimento.
O recolhedor se sacudiu e saltou entre os seguranças, e Rehv seguiu apertando, seu lado symphath observando absorto, como se fosse o melhor espetáculo da televisão.
O homem demorou ao redor de nove minutos para perder a consciência.
Depois de ter apagado, Rehv o soltou e voltou para sua cadeira. Fez um gesto com a cabeça em direção a Trez e iAm e estes tiraram o humano pela porta de trás, para o beco, onde o frio o reviveria finalmente.
Quando partiram, Rehv teve uma súbita imagem de Ehlena balançando todas aquelas caixas de dopamina em seus braços enquanto entrava na sala de exame. O que pensaria dele se soubesse o que fazia para manter seu negócio em movimento? O que diria se soubesse que, quando disse ao recolhedor de apostas que ou pagava ou sua esposa receberia pacotes de FedEx que gotejariam sangue sobre os degraus de sua entrada, não tinha sido apenas uma ameaça? O que faria se soubesse que estava completamente preparado para cortá-lo ele mesmo em pedacinhos ou ordenar a Xhex, Trez ou iAm que o fizessem por ele?
Bom, já tinha a resposta, não?
Sua voz, essa clara e encantadora voz, voltou a ressonar em sua mente: Será melhor que guarde isto. Para alguém que vá utilizar alguma vez.
Certamente, ela não conhecia os detalhes, mas era esperta o bastante para rechaçar seu cartão de visita.
Rehv se concentrou em Xhex, que não se moveu de sua posição contra a porta de entrada. Quando o silêncio se prolongou, ela baixou o olhar ao tapete negro de pelo curto, desenhando um círculo ao redor de si mesma com o salto de sua bota.
— O que foi? — perguntou. Quando ela não levantou o olhar, pressentiu sua luta para recompor-se — Que merda aconteceu?
Trez e iAm voltaram a entrar no escritório e se colocaram contra a parede negra que estava frente à mesa de escritório de Rehv. Cruzaram os braços diante de seus enormes peitos e mantiveram a boca fechada.
O silêncio era algo característico nas Sombras... Mas combinado com a expressão tensa de Xhex e a rotina semicircular que estava realizando com essa bota, queria dizer que a merda era profunda.
— Fale. Já!
Os olhos de Xhex voaram aos seus.
— Chrissy Andrews está morta.
— Como? — embora soubesse.
— Golpeada e estrangulada até morrer em seu apartamento. Tive que ir ao necrotério para identificar o corpo.
— Filho da puta!
— Ocuparei-me do assunto. — Xhex não estava pedindo permissão, e sem importar o que ele dissesse, ia atrás desse pedaço de merda do namorado — E o farei rápido.
Tecnicamente falando, Rehv estava no comando, mas, neste assunto não ia se interpor em seu caminho. Para ele, suas garotas não eram somente uma fonte de ganhos... Eram empregadas pelas quais se preocupava e com as quais se identificava intimamente. Assim, se alguém machucava a alguma, fosse um cliente, um namorado ou um marido, tomava um interesse pessoal na vingança.
As putas mereciam respeito, e as suas o conseguiam.
— Ensina-o uma lição primeiro. — grunhiu Rehv.
— Não se preocupe com isso.
— Merda... É minha culpa. — murmurou Rehv enquanto estendia o braço para frente e recolhia seu abridor de cartas. A coisa tinha forma de adaga e também estava tão afiada como uma arma — Deveríamos tê-lo matado antes.
— Ela parecia estar melhor.
— Talvez somente escondesse melhor.
Os quatro ficaram em silêncio um momento. Em sua profissão sofriam um montão de perdas — que as pessoas acabassem mortas não era nenhuma novidade — mas na maioria dessas mortes, ele e sua equipe eram os sinais negativos da equação: eles eram os que faziam com que os outros desaparecessem. Perder a um dos seus nas mãos de algum outro ficava mal.
— Quer ouvir as novidades desta noite? — perguntou Xhex.
— Ainda não. Também trago uma pequena notícia para compartilhar. — forçando sua cabeça a trabalhar, olhou Trez e iAm — O que estou a ponto de dizer revolverá bastante as coisas, e quero dar a ambos a oportunidade de partir. Xhex, você não tem essa opção. Sinto muito.
Trez e iAm permaneceram imóveis, o que não o surpreendeu absolutamente. Trez ainda lhe mostrou o dedo maior. Isso tampouco foi uma surpresa.
— Fui à Connecticut. — disse Rehv.
— Também foi à clínica. — acrescentou Xhex — Por quê?
O GPS era um saco algumas vezes. Era difícil ter um pouco de privacidade.
— Esquece a porra da clínica. Escutem, preciso que façam um trabalho para mim.
— Um trabalho como...?
— Pensa no namorado de Chrissy como em um aperitivo antes do jantar.
Isto arrancou um sorriso frio de Xhex.
— Conte.
Rehv olhou fixamente a ponta de seu abridor de cartas, pensando em que ele e Wrath riram porque ambos tinham um. Depois das incursões do verão, o rei tinha lhe feito uma visita, para discutir assuntos do conselho, e tinha visto a coisa sobre o escritório. Wrath tinha brincado a respeito de que em seu trabalho diário ambos administravam por meio da espada, ainda quando tinham uma pluma entre as mãos.
Não se afastava muito da verdade. Embora Wrath tivesse a moralidade de seu lado e Rehv só o interesse próprio.
De maneira que não tinha empregado um ponto de vista moral ao tomar a decisão e escolher o caminho a seguir. Tinha-o feito, como sempre, apoiado no que mais lhe convinha.
— Não vai ser fácil. — murmurou.
— O divertido nunca é.
Rehv se concentrou na ponta afiada do abridor de cartas.
— Este... Não é por diversão.
Ao se aproximar o fim da noite e com seu turno a ponto de terminar, Ehlena se sentia inquieta. Hora do encontro. Hora de decidir. Supunha-se que em vinte minutos o macho viria à clínica para recolhê-la.
Deus! Divagava novamente.
Seu nome era Stephan. Stephan, filho de Tehm, embora não conhecia nem a ele nem a sua família. Era um civil, não um aristocrata, e tinha ido ali com seu primo, que machucara a mão quando cortava lenha para o fogo. Enquanto preenchia a papelada de alta, falara com Stephan de todas essas coisas das que falam os solteiros: gostava de Radiohead, ela também. Gostava de comida da Indonésia, ele também. Ele trabalhava no mundo humano, programando computadores, graças à comunicação virtual. Ela era enfermeira, algo óbvio não? Ele vivia em casa com seus pais, era o único filho de uma sólida família civil... Ou ao menos tinha divulgado como sendo sólidos civis, seu pai trabalhava para empreiteiros vampiros, sua mãe ensinava a Antiga Língua por conta própria.
Agradável, normal. Confiável.
Levando em consideração o que os aristocratas tinham feito à saúde mental de seu pai, lhe ocorreu que tudo isso parecia uma boa aposta, e, quando Stephan a tinha convidado para tomar um café, havia dito que sim, tinham combinado para essa noite, e tinham trocado os números de celulares.
Mas, o que ia fazer? Chamá-lo e dizer que não podia por causa de sua situação familiar? Ir de todos os modos, e preocupar-se com seu pai?
Entretanto, um rápido telefonema para Lusie do vestuário, trouxe notícias favoráveis: seu pai Ehlena teve uma longa sesta e agora estava trabalhando tranqüilamente nos papéis de seu escritório.
Meia hora de jantar. Talvez dividir uma sobremesa. Que mal podia fazer?
Quando ao fim decidiu ir, não apreciou a imagem que relampejou em sua mente. Agora que acabava de decidir que iria a um encontro com um macho, não deveria estar pensando no peito nu de Rehv com essas estrelas vermelhas tatuadas.
O que precisava era se concentrar em tirar o uniforme e em melhorar sua aparência, ao menos nominalmente.
Entre o pessoal do dia que entrava e os que trabalharam durante a noite que saiam, trocou o uniforme pela saia e o suéter que trouxera...
Tinha esquecido os sapatos.
Genial. Os sapatos brancos com sola de borracha não eram muito sexy.
— O que acontece? — disse Catya.
Girou-se.
— Alguma possibilidade de que estes dois botes brancos em meus pés não arruínem totalmente esta roupa.
— Hã... Honestamente? Não estão tão mal.
— Não mente nada bem.
— Ao menos tentei.
Ehlena guardou o uniforme em sua mochila, refez o penteado, e comprovou a situação da maquiagem. É obvio, tinha esquecido o delineador de olhos e também o rímel, assim, como quem diz, a cavalaria ficou sem cavalos nesse flanco.
— Alegro-me de que saia. — disse Catya enquanto apagava a lista de nomes do horário noturno da lousa branca.
— Considerando que é minha chefe, isso me põe nervosa. Bem preferiria que se alegrasse por ver-me entrar na clínica.
— Não, não se trata do trabalho. Alegro-me que esta noite saia para se divertir.
Ehlena franziu o cenho e olhou ao seu redor. Por algum milagre, estavam sozinhas.
— Quem diz que vou a alguma parte que não seja para casa?
— Uma fêmea que vai para casa não troca o uniforme aqui. E não se preocupa de como estão os sapatos com a saia. Economizarei o “quem é ele”.
— É um alívio.
— A menos que queira compartilhá-lo voluntariamente?
Ehlena riu em voz alta.
— Não, prefiro mantê-lo em privado. Mas, se chegar a alguma parte... Desembucharei.
— Obrigarei que cumpra sua palavra. — Catya foi a seu armário e simplesmente ficou olhando.
— Está bem? — disse Ehlena.
— Odeio esta maldita guerra. Odeio receber os mortos e ver em seus rostos o quanto sofreram. — Catya abriu o armário e se ocupou em tirar sua parka — Sinto, não queria ser desmancha-prazeres.
Ehlena se aproximou e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Sei exatamente como se sente.
Houve um momento de entendimento entre elas durante o qual sustentaram seus olhares. E, logo Catya aclarou a garganta.
— Bem, vá. Seu macho te espera.
— Virá me recolher aqui.
— Ooooh, talvez fique por aqui e fume um cigarro lá fora.
— Você não fuma.
— Demônios, frustrada outra vez.
De caminho à saída, Ehlena se apresentou na tela de registro para assegurar-se de que não havia nada mais que tivesse que fazer antes da substituição do novo turno. Satisfeita de que tudo estivesse em ordem, atravessou as portas e subiu as escadas até que finalmente esteve fora da clínica.
A noite estava mais à frente do código postal CEP que indicava fresco e entrando em cidade fria, e em sua opinião o ar cheirava a azul, se é que a cor podia ter alguma fragrância: é que sentia algo que simplesmente era muito fresco, glacial e claro quando respirava profundamente e exalava formando suaves nuvens. Com cada inalação, sentia-se como se estivesse tomando as safiras pulverizadas pelos céus em seus pulmões, e, que as estrelas eram faíscas que saltavam através de seu corpo.
Foi despedindo-se das atrasadas, enquanto as últimas enfermeiras partiam, desmaterializando-se ou conduzindo, dependendo do que tivessem planejado. Depois também Catya chegou e se foi.
Ehlena tamborilou com o pé e comprovou seu relógio. Seu macho estava dez minutos atrasado. Não era para tanto.
Recostando-se contra o revestimento de alumínio, sentiu que seu sangue cantava em suas veias, uma estranha sensação de liberdade inchando seu peito enquanto pensava em sair a alguma parte com um macho por sua própria...
Sangue. Veias.
Rehvenge não tratou de seu braço!
O pensamento penetrou em sua mente e permaneceu ali como o eco de um grande ruído. Não tinha tratado o braço. Não houvera nada no relatório sobre a infecção, e Havers era tão escrupuloso em suas notas como era com os uniformes do pessoal, a limpeza dos quartos dos pacientes e a organização dos armários de fornecimentos.
Quando retornara da farmácia com as drogas, Rehvenge tinha a camisa posta e os punhos abotoados, mas tinha assumido que era porque o exame tinha terminado. Entretanto, estava disposta a apostar que os tinha abotoado assim que ela terminou de lhe tirar sangue.
Mas... Não era assunto dela, não? Rehvenge era um macho adulto que tinha todo o direito a tomar más decisões sobre sua saúde. Igual aquele com overdose de drogas que mal sobrevivera à noite, e igualmente ao grande número de pacientes que assentiam muito quando o médico estava diante deles, mas que quando iam para casa deixavam de lado o indicado em suas receitas e os cuidados pós-operatórios.
Não havia nada que ela pudesse fazer para salvar a alguém que não queria ser salvo. Nada. E essa era uma das maiores tragédias de seu trabalho. Tudo o que podia fazer era indicar as opções e as conseqüências e esperar que o paciente escolhesse sabiamente.
Soprou uma brisa, penetrando dentro de sua saia e fazendo-a invejar o casaco de pele de Rehvenge. Afastando-se da lateral da clínica, tentou ver o caminho abaixo, procurando faróis de carro.
Dez minutos mais tarde, voltou a olhar seu relógio.
E dez minutos depois desses, elevou o punho uma vez mais.
Tinham-na deixado plantada!
Não era uma surpresa. O encontro tinha sido marcado de maneira muito apressada, e em realidade não conheciam um ao outro, verdade?
Quando outra brisa fria a golpeou, tirou seu celular e escreveu: Olá, Stephan sinto não tê-lo visto esta noite. Talvez em outro momento. E.
Retornou o telefone a seu bolso e se desmaterializou para sua casa. Em vez de entrar em seguida, agasalhou-se com seu casaco e passeou daqui para lá pela calçada gretada que corria com o passar da lateral da casa até a porta traseira. Quando o vento gelado voltou a soprar, uma rajada lhe deu totalmente no rosto.
Picavam-lhe os olhos.
Ao dar as costas ao vendaval, algumas mechas de cabelo voaram para frente como se estivessem tentando fugir do frio, e ela estremeceu.
Genial. Agora, quando sua visão se empanasse, não teria a desculpa da brisa fria.
Deus estava chorando? Isso podia ser simplesmente um mal-entendido? Por um homem que mal conhecia? Por que lhe importava tanto?
Ah, mas não era por ele absolutamente. O problema era ela. Odiava estar onde tinha estado ao abandonar a casa: sozinha.
Tentando conseguir um apoio, literalmente, estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira, mas não pôde obrigar-se a entrar. A imagem dessa cozinha miserável e muito organizada, o conhecido som dessas escadas rangentes que conduziam ao porão, e o aroma de pó e papel do dormitório de seu pai lhe eram tão familiares como seu próprio reflexo em qualquer espelho. Esta noite tudo resultava muito claro, um brilhante brilho que lhe cravava em ambos os olhos, um rugido soando em seus ouvidos, um enjoativo fedor bombardeando seu nariz.
Deixou cair o braço. O encontro tinha sido um passe de “saída da prisão”. Uma balsa para abandonar a ilha. Uma mão estendida sobre o precipício do qual ela estava pendurada.
O desespero a fez voltar bruscamente para a realidade como nenhuma outra coisa podia tê-lo feito. Não servia de nada sair com alguém se essa era sua atitude. Não era justo para o homem nem são para ela. Quando Stephan ligasse outra vez, se o fizesse, simplesmente diria que estava muito ocupada...
— Ehlena? Está bem?
Ehlena saltou afastando-se da porta que evidentemente acabava de se abrir amplamente.
— Lusie! Sinto muito, somente... Só estava pensando muito. Como está papai?
— Bem, honestamente bem. Está dormindo outra vez.
Lusie saiu da casa e fechou evitando que o calor escapasse da cozinha. Depois de dois anos, era uma figura dolorosamente familiar, sua roupa boêmia e seu comprido cabelo grisalho resultavam reconfortantes. Como de costume, tinha sua bolsa de remédios em uma mão e sua enorme bolsa pendurada do ombro oposto. Dentro da bolsa de remédios havia um medidor de pressão sangüínea padrão, um estetoscópio, e medicamentos de sob nível... Tudo o qual Ehlena a tinha visto usar. Dentro da bolsa levava as palavras cruzadas do New York Time, chicletes de hortelã Wrigley’s que gostava de mascar, a carteira e o batom cor pêssego que passava pelos lábios a intervalos regulares. Ehlena sabia das palavras cruzadas porque Lusie e seu pai as faziam juntos, do chiclete pelos pacotes que havia no cesto de papéis, e o batom era evidente, a carteira era uma hipótese.
— Como está? — Lusie esperou, seus olhos cinza claros enfocados — Você retornou um pouco cedo.
— Deixou-me plantada.
A forma que a mão de Lusie aterrissou sobre o ombro de Ehlena era o que fazia da fêmea uma grande enfermeira: com um toque te transmitia consolo, calidez e empatia, tudo o que ajudava a reduzir a pressão sangüínea, o ritmo cardíaco e a agitação.
Tudo o que ajudava a restabelecer uma mente emaranhada.
— Sinto-o. — disse Lusie.
— Oh, não, é melhor assim. Quero dizer, esperava muito.
— De verdade? Pareceu-me bastante sensata quando me falou disso. Somente iam tomar um café...
Por alguma razão disse a verdade:
— Não. Estava procurando uma saída. A que nunca chegará, porque nunca o deixaria. — Ehlena sacudiu a cabeça — De todos os modos, muito obrigado por vir...
— Não tem que ser uma situação disto ou aquilo. Seu pai e você...
— Realmente aprecio que tenha vindo cedo esta noite. Foi muito amável de sua parte.
Lusie sorriu da mesma forma que Catya tinha feito mais cedo, essa mesma noite, tensa e tristemente.
— De acordo, deixarei estar, mas tenho razão nisto. Pode ter uma relação e seguir sendo uma boa filha para seu pai. — Lusie olhou para a porta — Escute, terá que vigiar essa ferida da perna. A que se fez com a unha. Pus uma vendagem nova, mas estou preocupada com ela. Acredito que está infectando.
— Farei, e obrigada.
Depois que Lusie se desmaterializou, Ehlena entrou na cozinha, fechou a porta, passou a chave, e se dirigiu ao porão.
Seu pai estava em seu quarto, dormindo na enorme cama vitoriana, a enorme cabeceira esculpida parecia o arco lavrado de uma tumba. Sua cabeça descansava contra uma pilha de travesseiros brancos de seda, e o edredom de veludo vermelho sangue estava dobrado precisamente a meio caminho de seu peito.
Parecia um rei em repouso.
Quando a enfermidade mental se apropriou dele, seu cabelo e barba se tornaram brancos, fazendo que Ehlena se preocupasse que estivessem começando a aparecer nele as mudanças do final da vida. Mas depois de cinqüenta anos, ainda parecia o mesmo, seu rosto não apresentava rugas e suas mãos seguiam sendo fortes e firmes.
Era tão difícil. Não podia imaginar a vida sem ele. E não podia imaginar-se tendo uma vida com ele.
Ehlena fechou parcialmente a porta e foi para seu próprio quarto, onde tomou banho, trocou-se e se esticou sobre a cama. Tudo o que tinha era uma cama de um lugar sem cabeceira, um travesseiro e lençóis de algodão, mas o luxo não lhe importava. Só necessitava um lugar onde esticar seus ossos cansados cada dia e isso era tudo.
Normalmente lia um pouco antes de dormir, mas hoje não. Realmente não tinha energias. Estendendo a mão para um lado, apagou o abajur, cruzou os pés à altura dos tornozelos e estendeu os braços retos.
Com um sorriso, compreendeu que ela e seu pai dormiam exatamente na mesma posição, verdade?
Na escuridão, pensou em Lusie e a forma em que tinha insistido no corte de seu pai. Ser uma boa enfermeira era preocupar-se com o bem-estar dos pacientes, inclusive depois de deixá-los. Tratava-se de treinar aos familiares em como continuar com os cuidados necessários, e ser um apoio.
Não era o tipo de trabalho que simplesmente se ia porque tinha terminado seu turno.
Religou o abajur com um clique.
Levantando-se, foi ao computador que tinha conseguido grátis na clínica quando os sistemas de TI13 tinham sido melhorados. A conexão de internet era lenta, como sempre, mas finalmente pôde acessar a base de dados dos registros médicos da clínica.
Colocou sua contra-senha, efetuou uma busca, logo outra. A primeira foi por compulsão, a segunda por curiosidade.
Gravou ambas, desligou o portátil e pegou seu telefone.
Capítulo 11
Quando estava amanhecendo, justo antes que a luz começasse a se reunir no céu do leste, Wrath tomou forma nos densos bosques da parte norte da montanha da Irmandade. Não aparecera ninguém pelo Hunterbred, e a iminente luz do dia o tinha forçado a abandonar o lugar.
A grama rangia ruidosamente sob seus shitkickers, as finas agulhas dos pinheiros estavam quebradiças pelo frio. Ainda não havia neve para atenuar os sons, mas podia cheirá-la no ar, podia sentir essa gelada dentada na profundidade de seus seios nasais.
A entrada secreta do Sancto Santorum da Irmandade da Adaga Negra estava no extremo mais afastado de uma caverna, bem no fundo. Suas mãos localizaram por meio do tato o abridor na porta de pedra, e o pesado portal se deslizou detrás da parede de rocha. Entrando em um piso revestido de suave mármore negro, avançou por ele enquanto a porta se fechava as suas costas.
A sua vontade, as tochas se acenderam de cada lado, estendendo-se a uma longa distância e iluminando as enormes portas de ferro instaladas nos fins do século dezoito quando a Irmandade converteu essa caverna na Tumba.
Ao se aproximar, as grossas barras da porta adquiriram a aparência de uma fila de sentinelas armados ante sua visão imprecisa, as chamas trementes animavam algo que na realidade não tinha movimento. Com sua mente, abriu as duas metades e continuou seu caminho, entrando em um comprido passadiço cheio de prateleiras que iam do chão ao teto, a uns doze metros de altura.
Jarras de lessers de todo tipo e espécie estavam empilhadas uma junto à outra, em um desdobramento que marcava gerações de matanças feitas pela Irmandade. As jarras mais antigas eram somente toscos copos feitos à mão que tinham sido trazidos do Antigo País. A cada metro que avançava as jarras se tornavam mais modernas, até se chegar ao próximo jogo de portas e encontrar as porcarias chinesas produzidas em série vendidas na Target.
Não ficava muito espaço livre nas prateleiras e isso o deprimiu. Com suas próprias mãos ajudou a construir este monumento à morte de seus inimigos, junto com o Darius, Tohrment e Vishous, todos eles trabalharam em excesso durante um mês seguido, trabalhando durante o dia e dormindo sobre o chão de mármore. Tinha sido ele, que decidiu quanto aprofundar na terra, e estendeu o corredor das prateleiras vários metros a mais do que considerava necessário. Quando ele e seus irmãos terminaram de instalar tudo e logo depois de empilhar as jarras mais antigas, se convenceram de que não necessitariam tanto espaço para armazenamento. Tiveram a segurança de que no momento em que enchessem as três quartas partes disso, a guerra teria terminado.
E aí estava, séculos mais tarde, tratando de encontrar espaço suficiente.
Com uma pavorosa sensação de presságio, Wrath estimou com sua reduzida vista os últimos espaços que ficavam nas prateleiras originais. Era difícil não vê-lo como uma evidência de que a guerra estava chegando a seu fim, que o equivalente vampiro do finito calendário Maia estava nessas paredes de rocha grosseiramente esculpidas.
Não era com o brilho da obtenção da vitória que previa o depósito da última jarra junto às demais.
Uma das duas ou ficariam sem raça a qual proteger ou ficariam sem Irmãos para protegê-los.
Wrath tirou as três jarras de sua jaqueta e as pôs juntas formando um pequeno grupo, logo deu um passo atrás.
Tinha sido responsável por muitas dessas jarras... Antes de converter-se em Rei.
— Já sabia que tinha saído para lutar.
Ante o som da voz autoritária da Virgem Escriba, Wrath girou a cabeça bruscamente. Sua Santidade estava flutuando junto às portas de ferro, sua túnica negra estava a trinta centímetros acima do chão de pedra e sua luz resplandecia por debaixo da prega.
Houve um tempo em que seu resplendor foi cegamente brilhante. Agora apenas lançava sombra.
Wrath voltou a girar-se para as jarras.
— Assim, V se referia a isso quando disse que ia apertar o gatilho.
— Sim, meu filho foi até mim.
— Mas já estava inteirada. E, a propósito, isso não foi uma pergunta.
— Sim. — ela odiava perguntas.
Wrath levantou a vista e observou V atravessar as portas.
— Bom, olhem esta merda. — manifestou Wrath — A reconciliação entre mãe e filho… Ocorrerá em tão somente um instante. — deixou que a poesia lírica parafraseada ficasse flutuando no ar — Ou não.
A Virgem Escriba se adiantou, movendo-se lentamente entre as jarras. Na antiguidade — ou, demônios, tão somente no ano anterior — teria assumido o controle da conversa. Agora apenas flutuava.
Vishous fez um som de desgosto, como se tivesse esperado muito para que sua Queridíssima Mamãe[37] começasse a dar o sermão de “nem-mais-uma-palavra” para seu rei, e não se sentiu impressionado ao ver que não lhe fazia frente.
— Wrath, não me deixou terminar.
— E acredita que agora o farei? — esticou a mão para cima e com os dedos tocou a beira de uma das três jarras que acrescentou à coleção.
— Deixará que termine. — disse a Virgem Escriba em um tom desinteressado.
Vishous avançou a pernadas, seus shitkickers pisavam firmemente o chão que ele mesmo tinha ajudado a colocar.
— A questão é que se vai sair, vá com reforços. E diga à Beth. De outra forma se converte em um mentiroso… E tem uma melhor oportunidade de deixá-la viúva. Maldito seja, ignore minha visão, se quiser. Mas ao menos seja prático.
Wrath caminhou para cima e para baixo, pensando que o cenário para este cerco era fodidamente perfeito: estava rodeado por testemunhos da guerra.
Finalmente se deteve frente às três jarras que tinha obtido essa noite.
— Beth pensa que fui ao norte do Estado me encontrar com Phury. Sabem, para trabalhar com as Escolhidas. Mentir enche o saco! Mas e o conhecimento de que tenhamos só quatro Irmãos no campo de batalha? É pior.
Houve um longo silêncio, durante o qual o único som que se escutava era o vibrante chispar das chamas das tochas.
Vishous rompeu o silêncio.
— Acredito que deveria ter uma reunião com a Irmandade, e dizer a verdade para Beth. Como falei se for lutar, lute. Mas faça abertamente, entende? Dessa forma não estará saindo sozinho. E, tampouco o fará algum de nós. Neste momento, quando ocorre o rodízio para descanso, alguém sempre termina lutando sem companheiro. Se você o fizesse legitimamente resolveria esse problema.
Wrath teve que sorrir.
— Cristo, se tivesse pensado que estaria de acordo comigo, teria falado antes. — olhou à Virgem Escriba — Mas, e o que me diz das leis. Da tradição.
A mãe da raça se voltou para enfrentá-lo e com voz distante disse:
— Tantas coisas mudaram. Que diferença faz uma mais. Fiquem bem, Wrath filho de Wrath e Vishous meu filho.
A Virgem Escriba desapareceu como uma brisa na noite fria, dissipando-se no éter como se nunca tivesse estado ali.
Wrath se reclinou contra as prateleiras, e, quando a cabeça começou a lhe pulsar, subiu os óculos e esfregou seus olhos inúteis. Quando se deteve, fechou as pálpebras e ficou tão quieto como a rocha que o rodeava.
— Parece moído. — murmurou V.
Sim, estava, verdade? E que triste isso era.
O tráfico de drogas era um negócio muito lucrativo.
Em seu escritório privado do ZeroSum, Rehvenge estava em frente a sua mesa no escritório revisando as faturas dessa noite, comprovando meticulosamente as quantidades, até o último centavo. iAm estava fazendo o mesmo no restaurante de Sal, e o primeiro dever de cada noite era encontrar-se ali para comparar resultados.
Na maioria das vezes chegavam ao mesmo total. Quando não era assim, ele os remetia ao iAm.
Entre o álcool, as drogas, e o sexo as importâncias em bruto das faturas superava os duzentos e noventa mil só para o ZeroSum. No clube trabalhavam vinte e duas pessoas com salário fixo, isso incluía dez seguranças, três barmans, seis prostitutas, Trez, iAm e Xhex, o custo por todos eles girava em torno dos setenta e cinco mil dos grandes por noite. Os recolhedores de apostas e os traficantes autorizados a trabalhar no local, ou seja, aqueles vendedores de drogas que ele autorizava a vender sob suas premissas, eram comissionados, e o que restava após cobrarem sua parte, era dele. Também, uma vez por semana, ele ou Xhex e os seguranças realizavam entendimentos por quantidades mais importantes com um seleto número de distribuidores que tinham suas próprias redes de tráfico de drogas fora de Caldwell ou em Manhattan.
Calculando tudo, e depois de subtrair os custos do pessoal, ficavam aproximadamente duzentos mil por noite para pagar as drogas e o álcool vendidos, cobrir a calefação e a eletricidade, para a melhoria de bens de uso e o pagamento da equipe de limpeza de sete pessoas que entrava às cinco da manhã.
Cada ano tirava perto de cinqüenta milhões de seus negócios… O que parecia obsceno, e era, especialmente considerando que pagava impostos somente por uma fração disso. A questão era que as drogas e o sexo eram negócios arriscados, mas os lucros potenciais eram enormes. E necessitava dinheiro. Muito. Manter sua mãe no estilo de vida a que estava acostumada, e que bem merecia, era um assunto multimilionário. Além disso, ele tinha suas próprias casas e a cada ano trocava o Bentley assim que os novos modelos estavam disponíveis.
Entretanto, o gasto pessoal mais custoso de todos, disparado, eram as pequenas bolsas negras de veludo.
Rehv estendeu a mão sobre suas folhas de cálculo e recolheu a que enviaram do distrito de diamantes da Grande Maçã. Agora as entregas chegavam às segundas-feiras… antes costumava ser às últimas sextas-feiras do mês, mas agora ao abrir o Iron Mask, o dia livre do ZeroSum tinha mudado para domingo.
Desatou o cordão de cetim e abriu o pescoço da bolsa, vertendo um punhado de brilhantes rubis. Um quarto de milhão de dólares em pedras cor vermelho sangue. Voltou a colocá-las na bolsa, atou o cordão com um nó apertado, e olhou seu relógio. Faltavam dezesseis horas para que tivesse que empreender sua viagem para o norte.
A primeira terça-feira do mês era quando pagava seu resgate, e pagava à princesa de duas maneiras. Uma era com pedras preciosas. A outra com seu corpo.
Entretanto fazia que custasse a ela também.
Pensar aonde iria e o que se veria obrigado a fazer lhe provocou cócegas na nuca, e não o surpreendeu que sua vista começasse a mudar, e que o rosa escuro e o vermelho sangue substituíssem o negro e o branco de seu escritório, e que seu campo visual se nivelasse como por obra de uma escavadora convertendo-se em um nível plano.
Abrindo uma gaveta, tirou uma de suas bonitas caixas novas de dopamina e agarrou a seringa que tinha usado as últimas duas vezes que se injetou em seu escritório. Arregaçando o braço esquerdo, fez um torniquete no meio do bíceps mais por hábito que por verdadeira necessidade. Suas veias estavam tão inchadas que parecia que várias toupeiras haviam feito suas tocas debaixo de sua pele, e sentiu uma pontada de satisfação ante o horrível estado em que estavam.
A agulha não tinha tampa que tirar, assim encheu o êmbolo da seringa com a prática de um usuário habitual. Levou-lhe um momento encontrar uma veia que fosse viável, e colocou a diminuta agulha de aço em seu corpo sem sentir nada de nada. Soube que finalmente tinha dado no lugar adequado quando puxou o êmbolo e viu que o sangue se mesclava com a solução clara da droga.
Enquanto liberava o torniquete e pressionava com o dedo polegar para fazer entrar o líquido, olhou fixamente a ulceração de seu braço e pensou em Ehlena. Ainda quando não confiava nele e não desejava sentir-se atraída por ele e embora evidentemente seria capaz de mover céu e terra para não sair com ele, seguia querendo ser uma salvadora. Seguia querendo o melhor para ele e sua saúde.
Isso era o que significava ser uma fêmea de valor.
Já tinha injetado a metade quando seu celular tocou. Um rápido olhar à tela indicou que o número não era conhecido, por isso deixou que a chamada se perdesse. As únicas pessoas que tinham seu número eram aquelas com as quais queria falar, e essa era uma lista endemoniadamente curta: sua irmã, sua mãe, Xhex, Trez e iAm. E o Irmão Zsadist, o hellren de sua irmã.
Isso era tudo.
Enquanto tirava a agulha de seu ralo vascular, amaldiçoou ante o assobio que indicava que tinham deixado um correio de voz. De tanto em tanto recebia um desses, gente deixando partes e retalhos de suas vidas em seu pequeno rincão de espaço tecnológico, pensando que era o de outra pessoa. Ele nunca devolvia a chamada, jamais mandava uma mensagem de texto com um: Este não é quem pensa que é. Já se dariam conta quando quem quer que pensassem estar chamando não devolvesse o favor.
Fechando os olhos se recostou contra o respaldo da cadeira e atirou a seringa sobre as folhas de cálculo, não podia importar menos se a droga funcionava.
Sentado a sós em sua guarida de iniqüidade, na hora silenciosa em que todos se foram e o pessoal da limpeza não tinha entrado ainda, não lhe importava uma merda se os planos de sua visão retornavam a um modo tridimensional. Não lhe importava se reaparecia o espectro a toda cor. Não se perguntava a cada segundo que passava se retornaria à “normalidade” ou não.
Deu-se conta que isto tinha mudado. Até agora sempre se desesperou esperando que a droga funcionasse.
O que tinha feito a situação mudar?
Deixou a pergunta no ar enquanto recolhia o celular e agarrava a bengala. Com um gemido, ficou cuidadosamente de pé e caminhou para seu dormitório privado. O intumescimento estava retornando rapidamente a seus pés e pernas, mais rapidamente de quando conduzia vindo de Connecticut, mas bom, isso era típico. Quanto menos impulsos symphath se desencadeassem, melhor funcionava a droga. E caramba! Tornava-se gracioso, mas ser selecionado para matar o rei o tinha exasperado.
Enquanto que estar sentado a sós no que podia chamar lar, não o fazia.
O sistema de segurança já estava ativo em seu escritório, e ativou outro para suas habitações privadas, logo se fechou no dormitório sem janelas no qual pernoitava de quando em quando. O banheiro estava do outro lado do quarto e atirou seu casaco de zibelina sobre a cama antes de entrar e abrir a ducha. Enquanto se movia pelo lugar, um frio que impregnava até os ossos se apoderou de seu corpo, fluindo de dentro para fora, como se tivesse se injetado Freon.
Isto sim ele temia. Odiava ter frio todo o tempo. Merda, talvez devesse ter se deixado ir. De toda forma não ia interatuar com ninguém.
Sim, mas se saltava muitas doses, voltar a nivelar-se era uma merda.
O vapor ondeou atrás da porta de vidro da ducha, se despiu deixando seu traje, a gravata e a camisa sobre o balcão de mármore que havia entre as duas pias. Ficando sob a ducha, tremeu violentamente e os dentes tilintaram.
Por um momento, derrubou-se contra as suaves paredes de mármore, mantendo a si mesmo no centro das quatro rosetas da ducha. Enquanto a água quente, que não podia sentir, caía em forma de cascata descendo por seu peito e seu abdômen, tratou de não pensar no que viria na noite seguinte, e falhou.
Oh, Deus… Seria capaz de voltar a fazê-lo? Ir ali acima e prostituir a si mesmo com essa cadela?
Sim, e a alternativa era… Que o denunciasse ante o conselho por ser um symphath e que deportassem seu rabo à colônia.
A escolha era clara.
À merda com isso, não havia escolha. Bella não sabia o que era, e descobrir a mentira familiar a mataria. E ela não seria a única vítima. Sua mãe se desmoronaria. Xhex ficaria furiosa e se mataria tratando de salvá-lo. Trez e iAm fariam o mesmo.
Todo o castelo de cartas cairia.
Compulsivamente, agarrou uma brilhante barra de sabão dourado do suporte de cerâmica que estava montado na parede e o esfregou entre suas mãos até fazer espuma. A merda que usava não era do tipo elegante e fino. Era o comum Dial, um desinfetante que sobre a pele parecia como um nivelador de pavimento.
Suas putas usavam o mesmo. Era com o que abastecia suas duchas, a pedido delas.
Sua regra era três vezes. Três vezes para cima e para baixo por seus braços e suas pernas, seus peitorais e seu abdômen, seu pescoço e seus ombros. Três vezes o afundava entre suas coxas, ensaboando o membro e os testículos. O ritual era estúpido, mas era algo compulsivo. Poderia ter usado três dúzias de barras de Dial e ainda assim seguir sentindo-se sujo.
Era gracioso, suas putas sempre se surpreendiam pelo trato que recebiam. Cada vez que chegava uma nova, esperava ter que excitá-lo como parte de seu trabalho, e sempre estavam preparadas para serem agredidas. Em vez disso, obtinham seu vestiário privado com ducha, um horário seguro, e a segurança de que nunca, jamais seriam agredidas, e essa coisa chamada respeito… Que significava que podiam escolher os seus clientes, e, se os filhos da puta que pagavam pelo privilégio de estar com elas lhe tocavam embora fosse somente um de seus cabelos, tudo o que tinham de fazer era dizer e uma montanha de merda caía sobre o ofensor.
Mais de uma vez, aparecia alguma das mulheres na porta de seu escritório e pedia para falar com ele em particular. Geralmente isso acontecia aproximadamente um mês depois que começasse a exercer, e o que diziam era sempre o mesmo e sempre era expresso com uma espécie de confusão, que se ele fosse normal, teria lhe quebrado o coração:
— Obrigado.
Não era muito viciado nos abraços, mas era sabido que as atraía a seus braços e as abraçava durante um instante. Nenhuma delas compreendia que não era devido a ele ser um bom homem, mas sim porque era igual a elas. A dura realidade era que a vida tinha posto a todos onde não desejavam estar, quer dizer sobre suas costas frente a pessoas com as quais não queriam estar fodendo. Sim, havia algumas que não lhes importava o trabalho, mas como todo mundo, não queriam trabalhar todo o tempo. E Deus sabia que os clientes sempre apareciam.
Assim como sua chantagista.
Sair da ducha era um absoluto e puro inferno, e adiou o profundo congelamento o máximo que pôde, encolhendo-se sob a ducha enquanto discutia consigo mesmo sobre a saída. Enquanto o debate continuava, ouvia a água tilintar contra o mármore e tagarelar no deságüe de bronze, mas seu corpo totalmente intumescido não sentia nada salvo um leve alívio de seu Alaska interior. Quando acabou a água quente, soube somente devido a seus tremores piorarem e as unhas de suas mãos passaram de uma cor cinza pálida a um azul profundo.
De caminho à cama, secou-se com uma toalha e logo se lançou sob o edredom de visom o mais rápido que pôde.
Justo quando estava puxando as mantas para subir até sua garganta, seu celular emitiu um assobio. Outra mensagem de voz.
Fodida Central Geral com seu celular.
Ao verificar suas chamadas perdidas, descobriu que a última era de sua mãe, e se endireitou rapidamente, embora mudar para a posição vertical significasse que seu peito ficasse descoberto. Como a dama que era não ligava nunca, porque não queria “interromper seu trabalho”.
Pressionou alguns botões, pôs sua contra-senha, e se preparou para apagar a mensagem de número equivocado que sairia primeiro.
“Mensagem do 518—blah—blah—blah…” Pressionou a tecla de numeral para mandá-la a merda e se preparou para golpear o sete e desfazer-se da coisa.
Seu dedo estava encaminhando-se para baixo quando a voz de uma fêmea disse:
— Olá, eu…
Essa voz… Essa voz era… Ehlena?
— Porra!
De toda forma, o correio de voz era inexorável, sem importar-se uma merda que uma mensagem dela fosse o último que ele escolheria apagar. Enquanto amaldiçoava, o sistema continuou agitando-se até que escutou a suave voz de sua mãe falando na Antiga Língua.
— Saudações, queridíssimo filho, espero que esteja bem. Por favor, desculpe a intromissão, mas me perguntava se poderia passar pela casa nos próximos dias? Há um assunto sobre o qual devo falar contigo. Amo-te. Adeus, meu primogênito de sangue.
Rehv franziu o cenho. Tão formal, o equivalente verbal a uma atenta nota escrita por sua formosa mão, mas a solicitude era atípica nela, e isso dava o caráter de urgente. Mas estava fodido… Má escolha de palavras. Amanhã de noite era impossível devido a seu “encontro”, assim teria que ser a noite seguinte, assumindo que se encontrasse o suficientemente bem.
Ligou a casa, e quando uma das doggen atendeu disse à criada que estaria ali na quarta-feira de noite assim que o sol se pusesse.
— Senhor, se me permite. — disse a criada — Verdadeiramente me alegra que venha.
— O que está acontecendo? — quando houve uma longa pausa, sua frieza interior, piorou — Diga!
— Ela está… — a voz do outro lado se agitou — Está tão encantadora como de costume, mas nos alegra que venha. Se me desculpar, irei transmitir sua mensagem.
A linha ficou muda. No fundo de sua mente, tinha percebido o que ocorria, mas sistematicamente ignorou tal convicção. Verdadeiramente não podia pensar nisso. Definitivamente não podia.
Além disso, era provável que não fosse nada. Depois, toda paranóia era um efeito secundário quando se consumia muita dopamina, e Deus sabia que estava tomando mais que sua cota. Iria ao refúgio assim que pudesse, e ela estaria bem… Espere! O solstício de verão. Devia tratar-se disso. Sem dúvida desejava planejar as festividades que incluía Bella e Z e à menina, já que seria o primeiro ritual de solstício de Nalla, e sua mãe levava esse tipo de coisas muito a sério. Podia viver neste lado, mas as tradições das Escolhidas sob as quais tinha sido criada ainda formavam parte dela.
Era certo que se tratava disso.
Aliviado, pôs o número de Ehlena em sua caderneta de memória e ligou para ela.
Em tudo o que podia pensar enquanto o telefone chamava, além de em, “responde, responde, responde”, era em que confiava que estivesse bem. O que era uma loucura. Como se fosse chamar a ele se tivesse algum problema?
Então por que haveria…
— Olá?
O som de sua voz no ouvido obteve algo que a ducha quente, o visom e a temperatura ambiente de oitenta graus não tinham obtido. O calor se estendeu desde seu peito, fazendo retroceder o intumescimento e o frio, cobrindo-o com… Vida.
Apagou as luzes para poder concentrar-se nela com tudo o que tinha.
— Rehvenge? — disse ela depois de um momento.
Reclinou-se contra os travesseiros e sorriu na escuridão.
— Olá.
Capítulo 12
— Sua camisa está ensangüentada… E… Oh, Deus… A perna de sua calça. Wrath, o que aconteceu?
De pé em seu escritório na mansão da Irmandade, enfrentando a sua amada shellan, Wrath puxou as duas metades de sua jaqueta de motoqueiro para fechá-las mais sobre seu peito, e pensou que era bom que ao menos lavou o sangue de lesser das mãos.
A voz de Beth ficou mais baixa.
— Quanto do que estou vendo é teu?
A seus olhos estava tão formosa como sempre, era a única fêmea a quem desejava, a única companheira possível para ele. Com jeans e seu suéter negro de pescoço alto, e o cabelo escuro caindo sobre seus ombros, era a coisa mais atrativa que tinha visto. Seguia sendo.
— Wrath!
— Não todo. — o corte de seu ombro sem dúvida tinha gotejado sobre sua camiseta sem mangas, mas também tinha segurado o macho civil contra seu peito, por isso o sangue do macho sem dúvida se mesclou com o seu próprio.
Incapaz de permanecer quieto caminhou pelo escritório, indo da mesa à janela ida e volta. O tapete que seus shitkickers cruzavam era azul, cinza e creme, um Aubusson cujas cores faziam par com o azul pálido das paredes e cujas espirais curvilíneas se inspiravam nos delicados móveis Louis XIV, os acessórios e os redemoinhos das molduras.
Realmente, nunca tinha apreciado a decoração. E tampouco o fez agora.
— Wrath… Como chegou aí? — o tom duro de Beth lhe indicou que já sabia a resposta, mas que ainda conservava a esperança de que houvesse outra explicação.
Juntando forças, voltou-se para enfrentar o amor de sua vida através da extensão carregada do escritório.
— Estou lutando outra vez.
— Está o que?
— Estou lutando.
Quando Beth ficou em silêncio. Alegrou-se de que a porta do escritório estivesse fechada. Viu os cálculos mentais que estava fazendo e sabia que o resultado do que estava somando ia adicionar-se a uma e só uma coisa: estava pensando em todas essas “noites no norte” com Phury e as Escolhidas. Todas as vezes que foi para a cama com camisetas de manga longa, úteis para ocultar hematomas, porque “estava resfriado”. Todas essas desculpas de “estou coxeando porque me exercitei muito”.
— Está lutando! — afundou as mãos nos bolsos de seu jeans, e, embora não pudesse ver muito, sabia endemoniadamente bem que o suéter negro de pescoço alto era o perfeito complemento para seu olhar — Somente para que fique claro. Está me dizendo que, vai começar a lutar. Ou que esteve lutando.
Isso era uma pergunta retórica, mas evidentemente queria que ele reconhecesse a mentira completa.
— Estive. Durante o último par de meses.
A fúria e a dor fluíram dela, derramando-se sobre ele, cheirando a madeira chamuscada e a plástico queimado.
— Olhe Beth, tinha que…
— Tinha que ser honesto comigo! — disse asperamente — Isso é o que tinha que fazer.
— Não esperava ter que sair por mais de um mês ou dois…
— Um mês ou dois! Quantos demônios fazem… — clareou a garganta e baixou a voz — Quanto faz que o está fazendo?
Quando disse, voltou a ficar calada. Logo disse:
— Desde agosto? Agosto.
Desejava que desse rédea solta a seu temperamento. Que lhe gritasse. Que lhe insultasse.
— Sinto muito. Eu… Merda, realmente sinto.
Ela não disse nada mais, e o aroma de suas emoções se afastou à deriva, dispersado pelo ar quente que soprava pelos ralos da calefação que havia no chão. No corredor, um doggen estava passando o aspirador, o som do acessório para tapetes zumbia acima e abaixo, acima e abaixo. No silêncio que reinava entre eles, esses sons habituais, cotidianos eram algo ao que apegar-se… Pois era o tipo de coisa que ouvia todo o tempo e raramente notava porque estava ocupado lutando com a papelada, ou distraído pelo fato de que tinha fome, ou tratando de decidir se preferia relaxar vendo a TV ou no ginásio… Era um som seguro.
E, neste momento, devastador para sua união, apegava-se à canção de berço de Dyson com todas as suas forças, perguntando-se se alguma vez teria a sorte de poder ignorá-la outra vez.
— Nunca me passou pela cabeça… — clareou a garganta uma vez mais — Nunca me passou pela cabeça que haveria algo do qual não pudesse falar comigo. Sempre assumi que me dizia… Tudo o que podia.
Quando deixou de falar, ele estava gelado até os ossos. Sua voz tinha adquirido o tom que usava quando respondia chamadas equivocadas no telefone: dirigia-se a ele como se fosse um estranho, sem nenhuma calidez nem interesse particular.
— Olhe Beth, devo estar lá fora. Devo…
Ela sacudiu a cabeça e levantou a mão para detê-lo.
— Não se trata de que esteja lutando.
Beth o olhou fixamente durante um segundo. Logo se voltou e se dirigiu para as portas duplas.
— Beth. — esse grasnido estrangulado era sua voz?
— Não, me deixe. Preciso de um pouco de espaço.
— Beth, escute, não temos guerreiros suficientes no campo de batalha…
— Não é pela luta! — girou e o enfrentou — Mentiu para mim! Mentiu. E não só uma vez, mas sim durante quatro meses.
Wrath queria discutir, defender-se, assinalar que tinha perdido a noção do tempo, que essas cento e vinte noites e dias tinham passado à velocidade da luz, que tudo o que esteve fazendo era pôr um pé na frente do outro, frente ao primeiro, andando minuto a minuto, hora a hora, tratando de manter a raça sem submergir, tratando de conter os lessers. Não teve intenção de continuar fazendo-o durante tanto tempo. Não tinha planejado enganá-la durante todo esse tempo.
— Só me responda uma coisa. — disse — Uma única coisa. É melhor que me diga a verdade, ou que Deus me ajude, mas vou… — levou a mão à boca, apanhando um débil soluço com mão débil — Honestamente, Wrath… Sinceramente pensou que fosse te deter? No fundo de seu coração, verdadeiramente acreditou que fosse fazê-lo..?
Ele tragou com força enquanto ela pronunciava as palavras com voz estrangulada.
Wrath respirou fundo. No transcurso de sua vida, tinha sido ferido muitas, muitas vezes. Mas nada, nenhuma ferida que pudessem ter lhe infligido alguma vez a sua pessoa, tinha-lhe doído uma fração da dor que sentiu ao lhe responder.
— Não. — voltou a respirar fundo — Não, não acredito… Que fosse me deter.
— Quem falou com você esta noite? Quem foi que te convenceu para que me dissesse isso?
— Vishous.
— Deviria ter sabido. Ele é provavelmente a única pessoa, tirando o Tohr que poderia tê-lo… — Beth cruzou os braços, abraçando a si mesma, e ele teria dado a mão com que empunhava a adaga para ter sido ele, que a estivesse abraçando — Que esteja aí fora lutando me assusta como a merda, mas esquece algo… Emparelhei-me contigo sem saber que não se esperava que o rei estivesse no campo de batalha. Estava preparada para te apoiar ainda quando me aterrorizasse… Porque lutar nesta guerra está em sua natureza e em seu sangue. Idiota… — sua voz se quebrou — Tolo, teria te deixado fazê-lo. Mas em troca…
— Beth…
Interrompeu-o.
— Lembra-se da noite em que saiu no princípio do verão? Quando interveio para salvar o Z e logo permaneceu no centro da cidade lutando com os outros?
Seguro como o demônio que a recordava. Quando tinha retornado para casa, a tinha perseguido pelas escadas e fizeram sexo sobre o tapete da salinha do segundo andar. Várias vezes. Conservava como lembrança os shorts jeans que arrancou de seus quadris.
Jesus… Agora que pensava… Essa tinha sido a última vez que estiveram juntos.
— Disse-me que era somente por uma noite. — disse — Uma noite. Somente. Jurou, e confiei em você.
— Merda… O sinto.
— Quatro meses. — sacudiu a cabeça, e seu magnífico cabelo negro balançou sobre seus ombros, capturando a luz de uma maneira tão formosa que até seus inúteis olhos registraram seu esplendor — Sabe o que mais me dói? Que os Irmãos sabiam e eu não. Sempre aceitei esse assunto da sociedade secreta, entendi que há coisas que não posso saber…
— Eles tampouco sabiam. — bom Butch sabia, mas não havia razão para jogá-lo sob o ônibus — V se inteirou esta noite.
Ela cambaleou, e se encostou contra uma das paredes cor azul pálida.
— Esteve saindo sozinho?
— Sim. — estendeu a mão para lhe tocar o braço, mas ela o afastou — Beth…
Abriu a porta de um puxão.
— Não me toque…
A coisa se fechou de um golpe atrás dela.
A raiva contra si mesmo fez com que Wrath girasse sobre si e ficasse frente a seu escritório, e no instante em que viu todos os documentos, todas as solicitações, todas as queixas, todos os problemas, foi como se alguém tivesse conectado dois cabos cortados à suas omoplatas e lhe tivesse dado uma descarga. Lançou-se para frente, varreu com seus braços a superfície do escritório e fez voar a merda por toda parte.
Enquanto os papéis revoavam, caindo como neve, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos, a dor de cabeça lhe estava atravessando o lóbulo frontal. Ficou sem fôlego, cambaleou, encontrou sua cadeira pelo tato e se derrubou sobre a maldita coisa. Com um áspero grunhido, deixou que sua cabeça caísse para trás. Ultimamente estas enxaquecas por estresse se estavam convertendo em um sucesso diário, aniquilando-o e prolongando-se como uma gripe que se recusava a ser erradicada.
Beth. Sua Beth…
Quando ouviu um golpe na porta, deu um bom treinamento a sua boca com a palavra F.
O golpe voltou a soar.
— O que? — ladrou.
A cabeça de Rhage apareceu uma fresta, logo ficou imóvel.
— Ah…
— O que?
— Sim, bom… Ah, dados enviados… E, uau, o forte vento que evidentemente acaba de soprar sobre seu escritório… Segue querendo manter uma reunião conosco?
Oh, Deus… Como faria para manter outra dessas conversas.
Mas bom, talvez devesse ter pensado nisso antes de decidir mentir a seus seres mais próximos e queridos.
— Meu Senhor? — a voz de Rhage adquiriu um tom gentil — Deseja ver a Irmandade?
Não.
— Sim.
— Quer o Phury no viva-voz do telefone?
— Sim. Escuta, não quero os meninos nesta reunião. Blay, John e Qhuinn… Não estão convidados.
— Imaginava. Hey, o que te parece se te ajudo a limpar?
Wrath olhou o tapete coberto de papéis.
— Eu me encarrego.
Hollywood provou sua inteligência ao não voltar a oferecer-se nem tampouco sair com um “então?”. Simplesmente saiu e fechou a porta.
Do outro lado, o relógio de pé que estava em um rincão, badalou. Era outro som familiar que geralmente Wrath não ouvia, mas agora enquanto permanecia sentado a sós no escritório, as badaladas soavam como se fossem emitidas através de alto-falantes de concerto.
Deixou as mãos caírem sobre os braços da frágil cadeira giratória e estes se viram diminuídos. A peça de mobiliário era mais do estilo de algo que uma fêmea usaria ao final da noite para apoiar o pé e tirar as meias.
Não era um trono. E essa era a razão pela qual a usava.
Não quis aceitar a coroa por muitos motivos, tinha chegado a ser rei por direito de nascimento, não por inclinação e em trezentos anos não tinha assumido. Mas, tão logo Beth chegou as coisas mudaram e finalmente tinha ido ver a Virgem Escriba.
Isso tinha acontecido dois anos atrás. Duas primaveras, dois verões, dois outonos e dois invernos.
Naquele tempo tinha grandes planos, no início. Geniais e maravilhosos planos para unir à Irmandade, para que todos estivessem sob o mesmo teto, consolidando forças, escorando-se contra a Sociedade Lessening. Triunfando.
Salvando.
Reclamando.
Em troca, a glymera tinha sido sacrificada. Havia mais civis mortos. E havia ainda menos Irmãos.
Não tinham progredido. Tinham perdido terreno.
A cabeça de Rhage apareceu outra vez.
— Ainda estamos aqui fora.
— Maldito seja, disse que precisa de algum…
O relógio de pé voltou a soar, e enquanto Wrath escutava a quantidade de badaladas, deu-se conta que fazia uma hora que estava sentado a sós.
Esfregou os olhos doloridos.
— Dê-me outro minuto.
— Tudo o que necessite meu Senhor. Tome seu tempo.
Capítulo 13
Quando o olá de Rehvenge saiu pelo auricular de seu celular, Ehlena se ergueu na cama abandonando o travesseiro sobre o qual esteve deitada até esse momento, tragando um “Santa merda”… Logo se perguntou por que estava tão surpresa. Ela tinha ligado para ele, e segundo o manual, a forma em que a as pessoas encaravam esse tipo de situações era… Bom, pois, te devolvendo a ligação. Uau.
— Olá. — respondeu.
— Não atendi sua ligação apenas porque não reconheci o número.
Homem, sua voz era sexy. Profunda. De baixo. Como se supunha que devesse ser a de um macho.
No silêncio que seguiu, pensou, “tinha ligado para ele por que…?” Oh, sim.
— Quis fazer o acompanhamento depois de sua consulta. Quando preparei os papéis para a alta, notei que não tinha recebido nada para seu braço.
— Ah.
A pausa que seguiu foi uma que não pôde interpretar. Talvez estivesse zangado por sua interferência?
— Só queria me assegurar que estivesse bem.
— Está acostumada a fazer isto com todos os pacientes?
— Sim. — mentiu.
— Havers sabe que está comprovando seu trabalho?
— Ao menos olhou suas veias?
A risada de Rehvenge foi baixa.
— Preferia que tivesse ligado por uma razão diferente.
— Não entendo. — disse com tom tenso.
— O que? Que alguém possa querer fazer algo com você fora do trabalho? Não é cega. Olhou-se no espelho. E certamente sabe que é inteligente, assim não se trata de um agradável adorno de vidraça.
No que a ela concernia, estava falando em um idioma estrangeiro.
— Não entendo por que não se cuida.
— Hmmmm. —riu brandamente, ela além de escutar o ronrono em seu ouvido pôde percebê-lo fisicamente — Oh… Também pode ser que esteja fingindo para poder vê-la outra vez.
— Olhe, a única razão pela que liguei foi…
— Porque precisava de uma desculpa. Rechaçou-me na sala de exame, mas na realidade queria falar comigo. Assim, me liga com a desculpa de meu braço para obter que a atenda por telefone. E agora me tem. — sua voz baixou outro tom — Deixará-me escolher o que quero que faça comigo?
Ela permaneceu em silêncio. Até que ele disse:
— Olá?
— Terminou? Ou quer seguir dando voltas ao assunto um momento mais, procurando todo tipo de significados a respeito do que estou fazendo?
Houve um instante de silêncio, e logo ele irrompeu em uma profunda e sincera gargalhada com seu vivo tom de barítono.
— Sabia que me agradava por mais de uma razão.
Ela se negou a ser cativada. Mas de todos os modos foi.
— Liguei por seu braço. Ponto. A enfermeira de meu pai acaba de ir, e estávamos falando de uma…
Fechou a boca assim que se deu conta do que tinha revelado, sentindo como se tivesse tropeçado com o equivalente coloquial da ponta de um tapete solto.
— Continue. — lhe disse com gravidade — Por favor.
— Ehlena? Ehlena…
— Está aí, Ehlena?
Mais tarde, muito mais tarde, refletiria que essas três palavras tinham sido seu precipício: Está aí, Ehlena?
Verdadeiramente foi o começo de tudo o que se seguiu, a frase inicial de uma dilaceradora jornada disfarçada na forma de uma simples pergunta.
Alegrava-lhe não saber aonde a conduziria. Porque às vezes a única coisa que podia te ajudar a sair do inferno era o fato de que estava colocada muito profundamente para poder sair.
Enquanto Rehv esperava a resposta, seu punho se apertou tanto sobre o celular, que acionou uma das teclas contra a bochecha e esta emitiu um bip de: Errr, homem, te afrouxe um pouco.
O juramento eletrônico pareceu romper o feitiço em ambos.
— Sinto-o. — murmurou ele.
— Está bem. Eu, ah…
— Dizia…?
Não esperava que respondesse, mas então… Ela o fez.
— A enfermeira de meu pai e eu estávamos falando de um corte que está lhe dando problemas, e isso foi o que me fez pensar em seu braço.
— Seu pai está doente?
— Sim.
Rehv aguardou que dissesse algo mais, enquanto tentava decidir se exercer um pouco de pressão faria com que se calasse… Mas ela resolveu a questão.
— Alguns dos medicamentos que toma provoca instabilidade, razão pela que se choca contra as coisas e nem sempre se dá conta de que se machucou. É um problema.
— Sinto muito. Cuidá-lo deve ser difícil para você.
— Sou uma enfermeira.
— E uma filha.
— Assim, era por um assunto clínico. Minha ligação.
Rehv sorriu.
— Deixe-me perguntar algo.
— Eu primeiro. Por que não deixa que avaliem o braço? E não me diga que Havers viu essas veias. Se o tivesse feito, lhe teria receitado antibióticos, e se você tivesse recusado haveria uma nota em seu histórico informando que tinha apelado à AMA. Olhe tudo o que necessita para tratá-lo são algumas pílulas, e sei que não tem fobia à medicina. Toma uma quantidade infernal de dopamina.
— Se estava preocupada com meu braço, por que não me falou na clínica?
— Eu o fiz, recorda?
— Não desta forma. — Rehv sorriu na escuridão e acariciou com a mão o edredom de visom. Não podia senti-lo, mas se imaginava que a pele era tão suave como o cabelo dela — Ainda penso que queria me ter ao telefone.
A pausa que seguiu o preocupou com a possibilidade de que desligasse.
Sentou-se, como se a posição vertical evitaria que ela pressionasse o botão de fim.
— Só estou dizendo… Bom, merda, o que quero dizer é que me alegra que tenha ligado. Sem importar a razão.
— Não falei mais deste tema na clínica porque foi antes que acrescentasse as notas de Havers no computador. Esse foi o momento em que me dei conta.
Ele ainda não acreditava que a chamada fosse completamente por motivos profissionais. Poderia ter lhe mandado um email. Poderia ter dito ao doutor. Poderia passar a uma das enfermeiras do turno do dia para que fizesse o acompanhamento.
— Assim não há nenhuma possibilidade de que se sinta mal por me haver rechaçado tão duramente como o fez.
Ela clareou a garganta.
— Sinto por isso.
— Bom, a perdôo. Totalmente. Completamente. Tinha aspecto de não estar tendo uma boa noite.
Sua exalação foi uma manifestação de extenuação.
— Sim, não foi minha melhor noite.
— Por quê?
Outra longa pausa.
— É muito melhor por telefone, sabia?
Ele se pôs a rir.
— Muito melhor em que sentido?
— É mais fácil lhe falar. Na realidade… É bastante fácil falar com você.
— Faço-o bem no mano-a-mano.
De repente franziu o cenho, pensando no recebedor de apostas que tinha ajustado as contas em seu escritório. Merda, o pobre bastardo era somente um de um enorme número de traficantes de drogas, lacaios de Las Vegas, barmans e alcoviteiros que nos últimos anos tinha persuadido a golpes. Sua filosofia sempre tinha sido que a confissão era boa para a alma, especialmente quando se tratava de caras que pensavam que não notaria que o estavam fodendo. Seu estilo de administração também lançava uma importante mensagem em um negócio onde a debilidade fazia com que lhe matassem. O comércio clandestino requeria uma mão dura, e sempre tinha acreditado que essa era a realidade em que vivia, somente.
Entretanto, agora nesse sossegado momento, tendo Ehlena tão perto, sentia como se seu “mano-a-mano” era algo que requeria uma desculpa e ser encoberto.
— Então? Por que esta noite não foi boa? — perguntou desesperado por sossegar a si mesmo
— Meu pai. E logo… Bom, deixaram-me plantada.
Rehv franziu o cenho tão fortemente que de fato sentiu um leve ponto entre os olhos.
— Para um encontro?
— Sim.
Odiava a idéia dela saindo com outro macho. E não obstante invejava ao filho da puta, quem quer que fosse.
— Que imbecil. Sinto muito, mas que imbecil.
Ehlena riu, e ele amou o som, especialmente a forma em que seu corpo se esquentou um pouquinho mais em resposta. Homem, ao demônio com as duchas quentes. Essa risada suave e tranqüila era o que necessitava.
— Está sorrindo? — disse brandamente.
— Sim. Quero dizer, suponho que sim. Como soube?
— Simplesmente tinha a esperança de que fosse assim.
— Bom, realmente pode ser amável e encantador. — rapidamente para dissimular o elogio, disse — O encontro não era grande coisa nem nada. Não o conhecia muito bem. Era somente para tomarmos um café.
— Mas terminou a noite no telefone comigo. O que é muito melhor.
Ela voltou a rir.
— Bom, agora nunca saberei como seria sair com ele.
— Não?
— Eu somente… Bom, pensei nisso, e não acredito que ter encontros neste momento seja uma boa idéia, dada minha situação. — o surgimento de seu júbilo foi descartado quando adicionou — Com ninguém.
— Hmmm.
— Hmmm? O que significa hmmm?
— Significa que tenho seu número telefônico.
— Ah, sim, tem… — sua voz se deteve quando o sentiu mover-se — Espere, você está… Na cama?
— Sim. E antes que continue, não quer saber.
— Não quero saber, o que?
— Quanto, não estou usando.
— Errr... — enquanto duvidava, soube que estava sorrindo outra vez. E provavelmente ruborizando-se — Não tinha intenção de perguntar.
— Muito inteligente de sua parte. Sou somente eu e os lençóis… Ups. Acabo de dizer isso em voz alta?
— Sim. Sim, o fez. — sua voz baixou um tom como se o estivesse imaginando nu. E a imagem mental não lhe incomodasse minimamente.
— Ehlena… — deteve a si mesmo, seus impulsos symphath contribuíram para o autocontrole. Para ir mais devagar. Sim, Rehv a desejava tão nua como ele estava. Mas, mais que isso desejava que permanecesse no telefone.
— O que? — respondeu.
— Seu pai… Esteve doente durante muito tempo?
— Ah… Sim, sim, esteve. É esquizofrênico. Não obstante, agora o temos medicado, e está melhor.
— Maldito… Seja. Isso deve ser realmente difícil. Porque ele está aí, mas ao mesmo tempo não está correto?
— Sim… Essa é exatamente a forma em que se sente.
Era parecido à forma em que ele vivia, seu lado symphath era uma constante realidade alternativa, que o perseguia enquanto tratava de viver as noites como uma pessoa normal.
— Se não se incomodar que pergunte, — disse cuidadosamente — para que precisa da dopamina? Não há nenhum diagnóstico em seu histórico médico.
— Provavelmente porque Havers sempre esteve me tratando.
Ehlena riu incômoda.
— Suponho que esse deve ser o motivo.
Merda, o que lhe dizia.
O symphath que havia nele lhe dizia “Como é, simplesmente minta”. O problema era que de alguma parte tinha aparecido outra voz em seu cérebro, rivalizando com a primeira, uma que lhe era desconhecida e muito débil, mas categoricamente compulsiva. Entretanto, como não tinha nem idéia do que era, continuou com sua rotina.
— Tenho Parkinson. Ou, mais precisamente, o equivalente vampiro.
— Oh… O sinto. Então é por isso que usa bengala.
— Meu equilíbrio é ruim.
— Não obstante a dopamina está lhe fazendo bem. Quase não tem tremores.
Essa débil voz em sua cabeça se transformou em uma estranha dor no centro de seu peito, e por um momento deixou de lado o fingimento, e disse a verdade:
— Não tenho nem idéia do que faria sem essa droga.
— Os medicamentos de meu pai foram como um milagre.
— Você é a única que o cuida? — quando ela respondeu com um hmmm, perguntou — Onde está o resto de sua família?
— Somos somente ele e eu.
— Então você está enfrentando uma tremenda carga.
— Bom, o amo. E se os papéis estivessem invertidos, ele faria o mesmo. É o que pais e filhos fazem uns pelos outros.
— Nem sempre. É evidente que você procede de uma família de gente bondosa. — antes de poder deter-se, prosseguiu — Mas é por isso que se sente sozinha, não é verdade? Sente-se culpada se o deixar, embora seja por uma hora, e se fica em casa não pode ignorar o fato de que a vida está passando. Está presa e gritando, mas não mudaria nada.
— Devo ir.
Rehv fechou os olhos com força, essa dor em seu peito, expandia-se através de todo seu corpo como um incêndio sobre pasto seco. Com sua vontade acendeu uma luz, como se a escuridão se convertesse em um símbolo de sua própria existência.
— É apenas… Que sei o que sente, Ehlena. Não pelas mesmas razões… Mas entendo todo esse assunto da separação. Sabe esse conceito de que está vendo todo o resto do mundo viver suas vidas… Oh, porra, como é. Espero que durma bem…
— Assim é como me sinto a maior parte do tempo. — agora sua voz tinha um tom aprazível, e o alegrou que tivesse entendido o que tinha tratado de lhe dizer, apesar de que ele tinha sido tão eloqüente como um gato guia de ruas.
Agora era ele quem se sentia incômodo. Não estava acostumado a falar dessa forma… Nem a sentir dessa forma.
— Escute, deixarei que descanse um pouco. Alegra-me que tenha ligado.
— Sabe… A mim também.
— E Ehlena?
— Sim?
— Acredito que tem razão. Não é uma boa idéia que se envolva com alguém neste momento.
— Sério?
— Sim. Bom dia.
Houve uma pausa.
— Bom… Dia. Espere…
— O que?
— Seu braço. O que vai fazer com seu braço?
— Não se preocupe, estará bem. Mas obrigado por seu interesse. Significa muito para mim.
Rehv desligou primeiro e deixou o telefone sobre o edredom de visom. Fechou os olhos deixando a luz acesa. E não dormiu nada.
Capítulo 14
No complexo da Irmandade, Wrath abandonou a idéia de que logo se sentiria melhor em relação à situação com Beth. Inferno! Podia passar o próximo mês em sua cadeira, dando voltas na cabeça, e isso somente lhe gelaria o rabo.
E, enquanto isso, os cantos rodados[38] no corredor estavam ficando mofados e mal-humorados.
Abriu as portas duplas com sua vontade e como uma unidade seus irmãos ficaram firmes. Ao olhar através da extensão azul pálido do estúdio seus corpos grandes e duros na galeria, reconheceu-os não por seus rostos, nem sua roupa ou sua expressão, mas sim pelo eco de cada um em seu sangue.
As cerimônias da Tumba que uniu a todos ressonavam sem importar quanto tempo tivesse ocorrido.
— Não fiquem aí parados! — disse enquanto a Irmandade o olhava fixamente — Não abri essas fodidas portas para me converter em uma exibição de zoológico.
Os irmãos entraram com suas pesadas botas… Exceto Rhage, que usava suas sapatilhas, seu costumeiro calçado para casa sem importar a estação. Cada um dos guerreiros tomou sua posição habitual na sala, com Z indo parar junto à chaminé, V e Butch sentados no sofá de pernas estreitas recentemente reforçadas. Rhage se aproximou do escritório com uma série de “flip-flip-flip” para ligar o alto-falante do telefone, deixando que seus dedos abrissem o caminho para Phury que estava no aparelho.
Ninguém disse nada a respeito dos papéis que estavam no chão. Ninguém tentou recolhê-los. Era como se ali não houvesse nenhuma confusão, e assim era como Wrath preferia.
Enquanto Wrath fechava as portas com a mente, pensou em Tohr. O irmão estava na casa, mais precisamente no corredor das estátuas, a apenas umas poucas portas, mas estava em um continente diferente. Convidá-lo não era uma opção… Seria uma crueldade, dado onde estava sua mente.
— Olá? — saiu a voz de Phury do telefone.
— Estamos todos aqui. — disse Rhage antes de desembrulhar um Tootsie Pop e dirigir-se com seu “flip-flip-flip” para uma poltrona verde feia como o rabo.
A monstruosidade era de Tohr, e tinha sido levada ao escritório para que John Matthew dormisse nela depois que Wellsie fosse assassinada e Tohrment tivesse desaparecido. Rhage tendia a utilizar a coisa porque realmente com seu peso, era a opção mais segura para seu rabo, sofás reforçados de aço incluídos.
Com todos já acomodados, a sala ficou em silencio à exceção do rangido dos molares de Hollywood sobre essa coisa de cereja que tinha na boca.
— Oh, que diabos... — Rhage gemeu finalmente ao redor de seu pirulito — Só nos diga isso! Seja o que for. Estou a ponto de me pôr a gritar. Morreu alguém?
Não, mas certo como a merda que sentia como se tivesse matado algo.
Wrath olhou em direção ao irmão, logo olhou a cada um deles.
— Serei seu companheiro, Hollywood.
— Companheiro? — Rhage passeou a vista pela sala para comprovar e ver se todos tinham ouvido o mesmo que ele — Não está falando do gim rummy, verdade?
— Não. — disse Z em voz baixa— Não acredito que esteja.
— Sagrada Merda! — Rhage tirou outro pirulito do bolso da camiseta negra — Isto é legal?
— Agora é. — murmurou V.
Phury falou ao telefone.
— Espera, espera… É para me substituir?
Wrath sacudiu a cabeça embora o Irmão não pudesse vê-lo.
— É para substituir a muitas pessoas que perdemos.
A conversa borbulhou como uma lata da Coca Cola que acabasse de ser aberta de repente. Butch, V, Z e Rhage começaram a falar todos de uma vez até que uma voz metálica interrompeu o falatório:
— Então, também quero voltar.
Todos olharam o telefone, exceto Wrath que olhou fixamente a Z para medir a reação do tipo. Zsadist não tinha problemas em demonstrar ira. Jamais! Mas escondia a preocupação e a inquietação como se fosse dinheiro solto e estivesse rodeado de assaltantes: enquanto a declaração de seu gêmeo ressoava, ficou em modo de completa auto-proteção, esticando-se e sem emitir absolutamente nada em termos de emoção.
Ah, correto, pensou Wrath. O duro bastardo estava assustado como um eunuco.
— Está certo de que é uma boa idéia? — perguntou Wrath lentamente — Possivelmente lutar não é o que necessita neste momento, Irmão.
— Não fumei em quase quatro meses. — disse Phury pelo alto-falante — E não tenho planos de voltar para as drogas.
— O estresse não fará essa merda mais fácil.
— Oh! Mas, ficar sentado sobre meu rabo enquanto o seu está fora o fará?
Maravilhoso. O rei e o Primale no campo de batalha pela primeira vez na história. E por quê? Porque a Irmandade estava nas últimas.
Grande recorde para superar. Como ganhar os fodidos cinqüenta metros nas olimpíadas para perdedores.
Cristo!
Salvo que então Wrath pensou nesse civil morto. Era esse um desenlace melhor? Não!
Recostando em sua delicada cadeira, olhou a Z com dureza.
Como se sentisse os olhos sobre ele, Zsadist se afastou do suporte da chaminé e ficou caminhando pelo escritório. Todos sabiam o que estava imaginando: Phury com uma overdose no chão do banheiro, com uma seringa de heroína vazia, atirada a seu lado, sobre o mosaico.
— Z? — a voz de Phury saiu do telefone — Z? Levante o auricular…
Quando Zsadist conversou com seu gêmeo, seu rosto, com a cicatriz trincada, adquiriu um cenho tão desagradável que até Wrath podia ver seu olhar enfurecido. E a expressão não melhorou ao dizer:
— Enche o saco! Sim. Enche o saco! Sei. Correto. — houve uma longa, longa pausa — Não, ainda estou aqui. Ok. Bem.
Pausa.
— Jura-me isso! Pela vida de minha filha.
Após um momento, Z apertou o alto-falante outra vez, pôs o auricular em seu lugar e voltou para a chaminé.
— Estou dentro. — disse Phury.
Wrath se mexeu na efeminada cadeira, desejando que muitas coisas fossem diferentes.
— Sabe possivelmente em outro momento, diria que desistisse. Agora, somente direi… Quando pode começar?
— Ao anoitecer. Deixarei Cormia responsável com as Escolhidas enquanto estou fora no campo de batalha.
— A sua fêmea vai receber isso bem?
Houve uma pausa.
— Ela sabe com quem se emparelhou. E serei honesto com ela.
Ouch!
— Agora tenho uma pergunta. — disse Z brandamente — É a respeito do sangue seco que há em sua camiseta, Wrath.
Wrath pigarreou.
— De fato, já faz um tempo que retornei. À luta.
A temperatura da habitação caiu. Devido a que Z e Rhage ficaram de saco cheio por não terem sabido.
E então, repentinamente, Hollywood amaldiçoou.
— Espere… Espere. Vocês dois sabiam… Sabiam antes de nós, verdade? Porque nenhum parece surpreso.
Butch clareou a garganta, porque o olhavam com fúria.
— Precisava de mim para fazer a limpeza. E V tentou lhe fazer mudar de opinião.
— Quanto tempo faz que começou isto, Wrath? — ladrou Rhage.
— Desde que Phury deixou de lutar.
— Está brincando!
Z foi a passos longos até uma das janelas que iam do chão ao teto, e apesar das persianas estarem abaixadas, olhou fixamente a coisa como se pudesse ver os terrenos que havia do outro lado.
— Maldita boa coisa que não tenha conseguido que o matassem aí fora.
Wrath despiu suas presas.
— Acredita que luto como uma mariquinha simplesmente porque agora estou atrás deste escritório?
A voz de Phury se elevou do telefone.
— Bem, todo mundo, relaxem! Agora todos sabemos, e as coisas vão ser diferentes de agora em diante. Ninguém lutará sozinho, embora vamos de três em três. Mas, preciso saber, isto vai ser de conhecimento geral? Anunciará depois de amanhã na reunião do conselho?
Caralho, esse feliz e pequeno enfrentamento não era algo que estivesse desejando levar a cabo.
— Acredito que por hora manteremos em silêncio.
— Sim. — replicou Z — Porque realmente, para que ser honestos?
Wrath o ignorou.
— Embora direi a Rehvenge. Sei que há membros da glymera que se estão queixando pelos assaltos. Se converter isso em algo muito grande, poderá acalmar as coisas com este tipo de informação.
— Já terminamos? — perguntou Rhage com voz monótona.
— Sim. Isso é tudo.
— Então vou indo.
Hollywood abandonou a sala indignado, e Z se foi justo detrás dele, duas vítimas mais da bomba que Wrath tinha deixado cair.
— Como Beth reagiu? — perguntou V.
— Como acha? — Wrath ficou de pé e seguiu o exemplo do par que tinha saído.
Hora de ir procurar à Doutora Jane para que o costurasse, assumindo que os cortes já não se fecharam.
Precisava estar preparado para voltar a sair para lutar amanhã.
Na fria e brilhante luz da manhã, Xhex se desmaterializou para o outro lado de uma parede alta, aos ramos nus de uma robusta sebe. A mansão que estava mais à frente descansava na superfície da paisagem como uma pérola cinza engastada em uma filigrana, árvores finas e cortadas pelo vento se elevavam ao redor da velha casa paroquial de pedra, ancorando-a na ondulada grama, prendendo-a contra a terra.
O débil sol de dezembro se derramava sobre ela, fazendo com que o que teria sido austero de noite parecesse unicamente venerável e distinto.
Seus óculos de sol eram quase negros, a única concessão que precisava fazer a seu lado vampiro se saía durante o dia. Atrás das lentes, sua visão permanecia aguda e via cada detector de movimento, cada luz de segurança e cada janela de vidro chumbado coberta por venezianas.
Entrar ia ser um desafio. Os vidros desses caras estavam sem dúvida reforçados com aço, o que queria dizer que desmaterializar-se para dentro seria impossível embora as venezianas estivessem levantadas. E com seu lado symphath, pressentiu que havia muitas pessoas dentro: na cozinha estava o pessoal. Acima estavam os que dormiam. Outros estavam movendo-se pelo lugar. Não era uma casa feliz, os quadriculados emocionais deixados pelas pessoas que havia ali estavam cheios de sentimentos sombrios e violentos.
Xhex se desmaterializou ao teto da seção principal da mansão, lançando a versão symphath do mhis. Não a ocultava por completo, mas era como se a convertesse em mais uma sombra, entre as sombras projetadas pelas chaminés e a merda do sistema do CVAA, mas era suficiente para comprar um passe pelos detectores de movimento.
Aproximando-se de um conduto de ventilação, encontrou uma lâmina de malha de aço grosso como uma regra, atarraxada às paredes de metal. A chaminé estava igual. Coberta com aço robusto.
Não a surpreendia. Tinham uma segurança muito boa aqui.
A melhor oportunidade de penetração seria de noite, utilizando uma pequena furadeira à pilhas em uma das janelas. As acomodações dos criados estavam atrás, seria um bom lugar para entrar, dado que o pessoal estaria trabalhando e essa parte da casa estaria mais tranqüila.
Entrar. Encontrar o objetivo. Eliminá-lo.
As instruções de Rehv era deixar um cadáver chamativo, assim não se incomodaria em ocultá-lo nem tampouco em desfazer do corpo.
Enquanto andava através dos pequenos seixos que cobriam o teto, os cilícios que levava ao redor das coxas lhe mordiam os músculos a cada passo, a dor a drenava de certa quantidade de energia e lhe proporcionava a concentração necessária… Ambas as coisas ajudavam a manter seus impulsos symphath presos no espaço traseiro de seu cérebro.
Não levaria postas as tiras com cilícios quando realizasse o trabalho.
Xhex se deteve e elevou o olhar ao céu. O vento seco e cortante prometia neve, e logo. O profundo gelo do inverno estava chegando a Caldwell.
Mas esteve em seu coração durante anos.
Abaixo dela, sob seus pés, voltou a sentir as pessoas, lendo suas emoções, as sentindo. Mataria a todos se o pedissem. Os assassinaria sem pensar nem duvidar enquanto jaziam em suas camas ou se dirigiam a seus deveres ou roubavam um bocado de meio-dia ou se levantavam para uma mijada rápida antes de voltar a dormir.
Tampouco lhe incomodava o resíduo sujo e detalhes do falecimento nem todo esse sangue, não mais do que a uma H&K ou a uma Glock importariam uma merda as manchas no tapete ou os ladrilhos melados ou as artérias que gotejavam. A cor vermelha era unicamente o que via quando ia trabalhar, e, além disso, de todos os modos, depois de um momento, todos esses olhos horrorizados e sobressaltados e essas bocas afogadas com os últimos fôlegos, viam-se todas iguais.
Essa era a grande ironia. Na vida, cada um era um floco de neve de formosa e independente proporção, mas quando a morte chegava e se sujeitava, deixava-te com pele, músculos e ossos anônimos, os quais se esfriava e deterioravam a um ritmo previsível.
Ela era a arma conectada ao indicador de seu chefe. Ele apertava o gatilho, ela disparava, o corpo caía, e apesar do fato de que algumas vidas eram alteradas para sempre, no dia seguinte o sol ainda saía e se punha para todas as demais pessoas que havia no planeta, incluindo a ela.
Tal era o curso de seu trabalho-obrigação, como o definia: metade emprego, metade obrigação pelo que Rehv fazia para proteger aos dois.
Quando voltasse para este lugar ao anoitecer, faria o que tinha que fazer ali e sairia com a consciência tão intacta e segura como uma abóbada bancária.
Entrar e sair e nunca voltar a pensar nisso.
Assim era o caminho e a vida de um assassino.
Capítulo 15
Os aliados eram a terceira engrenagem na maquinaria da guerra.
Os recursos e os recrutas lhe davam o motor tático que permitiam a se enfrentar, cercar combate, e reduzir o tamanho e força dos exércitos de seus inimigos. Os aliados eram sua vantagem estratégica, gente cujos interesses estavam alinhados com os teus, embora suas filosofias e metas finais pudessem não coincidir. Era tão importante como o primeiro e o segundo se queria ganhar, mas eram um pouco menos controláveis.
A menos que soubesse como negociar.
— Estamos conduzindo faz um tempo. — disse o senhor D detrás do volante do Mercedes do falecido pai adotivo de Lash.
— E vamos seguir conduzindo um pouco mais. — Lash estudou seu relógio.
— Não vai dizer aonde vamos?
— Não. Não o fiz, verdade?
Lash olhou pela janela do sedã. As árvores aos lados da Northway pareciam desenhos feitos a lápis antes que se riscassem as primeiras folhas, nada mais que carvalhos ermos, sebes altas, finas e retorcidas. As únicas a ter um pouco de verde eram as robustas e rechonchudas coníferas, as quais iam aumentando em número à medida que se internavam no Parque Adirondack.
Céu cinza. Auto-estrada cinza. Árvores cinza. Era como se a paisagem do estado de Nova Iorque tivesse caído presa da gripe ou alguma merda assim, com um aspecto tão são como o de alguém que não tinha recebido sua vacina de pneumonia a tempo.
Havia duas razões pelas que Lash não tinha sido franco sobre aonde ele e seu segundo ao comando se dirigiam. A primeira era diretamente de mariquinha, e mal podia admitir para si mesmo. Não estava certo se iria ao encontro que tinha marcado.
A questão era que este aliado era complicado, e Lash sabia que só o fato de se aproximar era como cutucar um ninho de vespas com um pau. Sim, seria um grande aliado potencial, mas, se em um soldado a lealdade era um bom atributo, em um aliado era missão crítica, e para onde se dirigiam a lealdade era um conceito tão desconhecido como o medo. Assim, estava mais ou menos fodido nos dois extremos e por isso não falava. Se a reunião não corresse bem, ou se sua aproximação não funcionasse, não haveria negociação, e nesse caso, o senhor D não tinha que saber os pormenores de com quem ia negociar.
A outra razão que fazia com que Lash guardasse silêncio era que não estava seguro se a outra parte apareceria à festa. Em cujo caso, outra vez, não queria que soubessem o que tinha estado planejando.
Na lateral da estrada, em um pequeno sinal verde com letras refletivas brancas se lia: FRONTEIRA EUA 61.
Sim, sessenta e um quilômetros e estaria fora do país… E por isso a colônia symphath tinha sido colocada lá em cima. O objetivo tinha sido manter a todos esses filhos da puta sociopatas tão longe da população civil vampiro como fosse possível, e o objetivo foi alcançado. Um pouco mais perto do Canadá e teria que lhes dizer “foda-se” e “morre” em francês.
Lash fazia o contato graças ao velho Rolodex de seu pai adotivo, o que como o carro do macho, tinha provado ser muito útil. Como anterior leahdyre da câmara de vereadores, Ibix teve uma forma de contatar com os symphaths no caso de algum se encontrar escondendo-se entre a população geral e ter que ser deportado. É obvio, que a diplomacia entre as espécies nunca tinha sido oficial. Isso teria sido como oferecer a garganta exposta a um assassino em série, com o Henckels para cortá-la inclusive.
O e-mail de Lash ao rei dos symphaths tinha sido curto e direto ao ponto, e na breve missiva, identificou-se como quem era realmente, não como quem tinha crescido pensando que era: ele era Lash, chefe da Sociedade Lessening. Lash, filho de Omega. E estava procurando uma aliança contra os vampiros que tinham discriminado e rechaçado aos symphaths.
Certamente o rei queria vingança pela falta de respeito demonstrada a sua gente.
A resposta que recebeu foi tão gentil que quase vomitou. Mas então recordou de seus dias de treinamento que os symphaths tratavam tudo como se fosse uma partida de xadrez… Exatamente até o momento em que capturavam a seu rei, convertiam a sua rainha em uma puta, e queimavam seus castelos. A resposta do líder da colônia assinalava que um debate associado de interesse mútuo seria bem-vindo, e tinha perguntado se Lash seria tão amável de ir ao norte, já que as opções de viagem do rei exilado estavam, por definição, limitadas.
Lash fora de carro porque impôs uma condição própria, que era a assistência do senhor D. A verdade era que estabeleceu a condição simplesmente para igualar as demandas. Queriam que fosse a eles, bem, ele levaria um de seus homens. E como o lesser não podia desmaterializar-se, era necessário dirigir.
Cinco minutos depois, o senhor D pegou uma saída da auto-estrada e atravessou um centro urbano que era do tamanho de apenas um dos sete parques da cidade de Caldwell. Aqui não havia arranha-céu, só edifícios de tijolos de quatro e cinco andares, tanto assim parecia como se os duros meses de inverno tivessem impedido não só o crescimento das árvores, mas também da arquitetura.
Por ordem de Lash, conduziram para o oeste, passando hortas de pomares de maçãs desfolhados e granjas de vacas cercadas.
Como tinha feito na auto-estrada, aqui também desfrutou da paisagem com olhos ávidos. Ainda o surpreendia poder presenciar a leitosa luz solar de dezembro lançando sombras sobre calçadas, telhados de casas e sobre a terra marrom que havia sob as nuas extremidades das árvores. Em seu renascimento, seu verdadeiro pai lhe deu um propósito renovado, junto com este dom da luz diurna, e desfrutava imensamente de ambos.
O GPS do Mercedes apitou um par de minutos depois, e a leitura se tornou toda incerta. Imaginou que isso significava que se aproximavam da colônia, e para lhe dar razão apareceu a estrada que estavam procurando. Ilene Avenue estava indicada somente por um diminuto sinal. E avenida, uma merda, não era nada mais que um caminho de terra que cruzava os campos de milho.
O sedã fazia o que podia sobre o caminho acidentado, seus amortecedores absorviam as crateras criadas pelos atoleiros, mas a viagem teria sido mais fácil em um fodido quatro por quatro. Não obstante, ao final, na distância apareceu um grosso circulo de árvores, e a granja que conformava a cabeça ao redor da qual estavam apinhados, estava em condições imaculadas, toda pintada de um branco brilhante com venezianas e teto verde escuro. Como tirado de um cartão de natal humano, com fumaça saindo de suas quatro chaminés, e o alpendre equipado com cadeiras de balanço e arbustos de folha perene.
Ao aproximar-se, passaram um discreto sinal branco e verde que dizia: ORDEM MONÁSTICA TAOISTA, EST. 1982.
O senhor D estacionou o Mercedes, desligou o motor, e fez o sinal da cruz sobre seu peito. O que era fodidamente estúpido.
— Isto me dá mau agouro.
A questão era que o pequeno texano tinha razão. Apesar do fato de que a porta dianteira estava aberta e a luz do sol se derramava sobre um piso de madeira de uma quente cor cereja, algo mal espreitava depois da fachada familiar. Era simplesmente muito perfeito, muito calculado para fazer com que uma pessoa se relaxasse e assim debilitar seus instintos defensivos.
Lash pensou que era como uma garota bonita com uma ETS.
— Vamos. — disse.
Ambos saíram, e enquanto o senhor D empunhava sua Magnum, Lash não se incomodou em procurar sua arma. Seu pai lhe tinha proporcionado muitos truques, e a diferença daquelas ocasiões em que tratava com humanos, não tinha problemas em mostrar suas habilidades especiais diante de um symphath. Se acaso, montar um espetáculo ajudaria a que o vissem sob a luz apropriada.
O senhor D colocou seu chapéu de cowboy.
— Isto realmente me dá um mau pressentimento.
Lash entrecerrou os olhos. Frente a cada uma das janelas, penduravam cortinas de renda, mas apesar do branco do tecido, a merda era horripilante... Uau! Moviam-se?
Nesse momento, compreendeu que não era renda, a não ser tecidos de aranha. Povoadas por aracnídeos brancos.
— São... Aranhas?
— Sim. — certamente não seria a escolha decorativa de Lash, mas bom, ele não tinha que viver ali.
Os dois se detiveram no primeiro dos três degraus que levavam ao alpendre dianteiro. Caralho, algumas portas abertas não eram acolhedoras, e definitivamente aqui se dava o caso... Menos de “olá-como-está”, e mais de “entra-assim-poderemos-usar-tua-pele-para-fazer-uma-capa-de-superherói-para-um-dos-pacientes-de-hannibal-lecter”.
Lash sorriu. Quem quer que estivesse nessa casa era definitivamente um amigo.
— Quer que suba e toque a campainha? — disse o senhor D — Se é que há?
— Não. Esperaremos. Eles virão até nós.
E olhe só, alguém apareceu no extremo mais afastado do vestíbulo dianteiro.
O que desceu para eles tinha suficiente tecido pendurando de sua cabeça e ombros para competir com um cenário da Broadway. O tecido era estranho, de um branco reluzente, um branco que captava a luz e a refletia entre as grossas dobras, e o peso de toda ela era capturado por um forte cinturão branco de brocado.
Muito impressionante. Se te agradava o filme monarca-sacerdotal.
— Saudações, amigo. — disse uma voz baixa e sedutora — Sou o que procuram, o líder dos ingratos.
Os “s” se arrastavam até quase formar palavras independentes, o acento soava muito parecido ao tremor de advertência de uma serpente cascavel.
Um calafrio atravessou Lash e o formigamento desceu até seu pênis. O poder era, antes de tudo, melhor que o “Êxtase” como afrodisíaco, e esta coisa que se deteve entre os batentes da porta dianteira era toda autoridade.
Longas e elegantes mãos se estenderam para o capuz e jogaram as brancas dobras para trás. O rosto do líder ungido dos symphaths era tão suave como sua espetacular túnica, os planos das bochechas e queixo formados por elegantes e suaves ângulos. O lago genético que tinha engendrado a este formoso e decadente assassino era tão refinado que seu sexo era quase único, fundindo as características de macho e fêmea, com uma preponderância para o feminino.
Entretanto, o sorriso era completamente gelado. E os cintilantes olhos vermelhos eram sagazes até a malevolência.
— Não querem entrar?
A adorável voz serpentina fundiu essas palavras umas com outras, e Lash se encontrou desfrutando do som.
— Sim. — disse, voltando a concentrar-se no assunto — Faremos isso.
Quando se adiantou, o rei elevou a palma da mão.
— Um momento, se não se importar. Por favor, diga a seu associado que não tenha medo. Nada lhes fará mal aqui. — a declaração era bastante amável na superfície, mas o tom foi duro... Do qual Lash deduziu que não eram bem-vindos na casa se o senhor D levava uma arma na mão.
— Guarde a arma. — disse Lash brandamente — Nos tenho cobertos.
O senhor D embainhou a 357, com um “sim, senhor” tácito, e o symphath se afastou da porta.
Enquanto subiam os degraus, Lash franziu o cenho e baixou o olhar. Suas pesadas botas de combate não faziam nenhum som sobre a madeira, e o mesmo ocorreu sobre as tabuletas do alpendre quando se aproximaram da porta.
— Preferimos as coisas silenciosas. — o symphath sorriu, revelando que tinha os dentes parecidos, o que foi uma surpresa. Evidentemente, as presas destas criaturas, que uma vez tinha estado estreitamente aparentadas com os vampiros, tinham sido extirpadas. Se ainda se alimentavam, não podia ser muito freqüentemente, a menos que gostassem das facas.
O rei estendeu o braço à esquerda.
— Passamos ao salão?
O “salão” poderia ser descrito mais precisamente como “pista de boliche com cadeiras de balanço”. O espaço não era mais que um lustroso piso de madeira, e paredes cobertas só por pintura branca. No meio do caminho havia quatro cadeiras Shaker agrupadas formando um semicírculo ao redor da lareira acesa como se tivessem medo de tanto vazio e se apinhassem em busca de apoio.
— Sentem-se. — disse o rei enquanto levantava e afastava sua túnica para sentar-se em uma das altas e débeis cadeiras.
— Você fica de pé. — ordenou Lash ao senhor D, que obedientemente tomou posição atrás de onde Lash se sentou.
As chamas não estalavam alegremente ao consumir os lenhos que lhes tinham dado vida e as alimentavam. As cadeiras de balanço não rangeram quando o rei e Lash depositaram seu peso nelas. As aranhas não emitiram som quando cada uma caiu no centro de sua rede, como se preparassem-se para presenciar a reunião.
— Você e eu temos uma causa comum. — disse Lash.
— Parece acreditar nisto.
— Acreditava que sua raça acharia a vingança atrativa.
Quando o rei sorriu, esse estranho calafrio se disparou para o sexo de Lash.
— Está mal informado. A vingança não é mais que uma defesa crua e emocional contra um desprezo recebido.
— Está me dizendo que está abaixo de você? — Lash se recostou para trás e pôs sua cadeira em movimento, levando-a adiante e atrás — Hmmmm... Posso ter julgado a sua raça mal.
— Somos mais sofisticados que isso, sim.
— Ou talvez sejam só um bando de maricas.
O sorriso desapareceu.
— Somos muito superiores àqueles que acreditam nos haver aprisionado. Para falar a verdade, preferimos nossa própria companhia. Acredita que não projetamos este resultado? Tolo. Os vampiros são o caldo de cultivo a partir do qual evoluímos, são os chimpanzés para nosso raciocínio superior. Iria querer permanecer entre animais se pudesse viver em uma civilização com os de sua própria espécie? É obvio que não. Um busca a seus iguais. Requer a seus iguais. Aqueles de mentes semelhantes e superiores devem ser alimentados somente por aqueles de status similar. — os lábios do rei se elevaram — Sabe que é correto. Você tampouco ficou onde começou. Verdade?
— Não, não o fiz. — Lash deixou ver suas presas, pensando que sua marca de maldade não tinha encaixado entre os vampiros melhor do que ocorreu com os devoradores de pecados — Agora estou onde devo estar.
— Assim já vê. Se não tivéssemos desejado o exato resultado que obtivemos nesta colônia, poderíamos ter empreendido não precisamente uma vingança, mas sim uma ação corretiva que buscasse que nosso destino fosse favorável a nossos interesses.
Lash deixou de balançar-se.
— Se não estava interessado em uma aliança, poderia ter me dito isso sem delongas em um fodido email.
Uma estranha luz cintilou nos olhos do rei, uma que fez com que Lash se excitasse ainda mais, mas também o repugnou. Não ia a essa merda homossexual, e ainda assim... Bem, demônios, seu pai gostava dos machos, talvez algo disso se levava no sangue.
E acaso isso não daria ao senhor D algo pelo que rezar?
— Mas se tivesse enviado um email, não teria o prazer de te conhecer. — esses olhos cor vermelha rubi percorreram o corpo de Lash — E isso teria sido um roubo a meus sentidos.
O pequeno texano clareou a garganta, como se estivesse se engasgando com a língua.
Quando a tosse desaprovadora se desvaneceu, a cadeira do rei começou a mover-se acima e abaixo silenciosamente.
— Entretanto, há algo que poderia fazer por mim... Algo que por sua vez faria sentir obrigado a te proporcionar o que busca... Que é localizar vampiros, não é assim? Essa foi durante muito tempo a luta da Sociedade Lessening. Encontrar vampiros dentro de seus lares ocultos.
O bastardo tinha posto o dedo na ferida. No verão, Lash tinha sabido onde atacar porque tinha estado nos imóveis dos que tinha matado, participando de festas de aniversário de seus amigos, bodas de seus primos e bailes da glymera celebrados naquelas mansões. Agora, entretanto, o que ficava da elite dos vampiros se dispersou nos subúrbios da cidade ou tinha ido a seus refúgios fora do estado, e não conhecia esses endereços. E quanto aos civis? Aí não tinha nem idéia de por onde começar, porque nunca tinha confraternizado com o proletariado.
Os symphaths, entretanto, podiam sentir a outros, humanos e vampiros igualmente, vendo-os através de paredes sólidas e alicerces de porões subterrâneos. Se quisesse fazer algum progresso, precisava desse tipo de visão, era a única coisa que faltava entre todas as ferramentas que seu pai estava lhe proporcionando.
Lash empurrou o chão com suas botas de combate outra vez e adotou o mesmo ritmo que o rei.
— E exatamente o que é o que poderia necessitar de mim? — disse arrastando as palavras.
O rei sorriu.
— Os acoplamentos são nosso pilar fundamental, verdade? A união de um macho e uma fêmea. E não obstante dentro dessas relações íntimas é comum a discórdia. Promessas são feitas, mas não se mantêm. Pronunciam-se votos e ainda assim se descartam. Contra estas transgressões, medidas devem ser tomadas.
— Parece que esteve falando de vingança, tipo duro.
Esse rosto suave adquiriu uma expressão de auto-suficiência.
— Não, vingança não. Ação corretiva. Se isso implicar uma morte... É simplesmente o que a situação requer.
— Morte, não é? Assim que os symphaths não acreditam no divórcio?
Os olhos cor rubi cintilaram com desprezo.
— No caso de um consorte desleal cujas ações fora da cama atuam contra a alma da relação, a morte é o único divórcio.
Lash assentiu com a cabeça.
— Entendo a lógica. E quem é o objetivo?
— Está se comprometendo a atuar?
— Ainda não. — não tinha claro exatamente quão longe estava disposto a chegar. Sujar as mãos dentro da colônia não fora parte de seu plano original.
O rei deixou de balançar-se e ficou em pé.
— Pensa então, até que esteja seguro. Quando estiver preparado para receber de nós o que necessita para a guerra, volte para mim e mostrarei o modo de proceder.
Lash também se levantou.
— Por que simplesmente não mata você mesmo a sua companheira?
O lento sorriso do rei foi como o de um cadáver, rígido e frio.
— Meu queridíssimo amigo, o insulto que mais reprovo não é tanto a deslealdade, a qual poderia esperar, mas sim a arrogante hipótese de que nunca me inteiraria do engano. O primeiro é uma insignificância. O último é indesculpável. Agora... O acompanho até seu carro?
— Não. Sairemos por nós mesmos.
— Como desejar. — o rei estendeu sua mão de seis dedos — Foi um prazer...
Lash estendeu a sua e quando suas palmas se encontraram, sentiu a eletricidade lambendo seu braço.
— Sim. O que for. Terá notícias minhas.
Capítulo 16
Ela estava com ele... Oh, Deus, finalmente estava de volta com ele.
Tohrment, filho de Hharm, estava nu e pressionado contra a carne de sua amada, sentindo sua pele acetinada e ouvindo seu ofego quando levava a mão até seu peito. Cabelo vermelho... Havia cabelo vermelho esparramado por todo o travesseiro, a fez rodar de costas sobre os lençóis brancos que cheiravam como limões... Cabelo vermelho enredado ao redor de seu grosso antebraço.
O mamilo estava tenso contra seu polegar que se movia em círculos e sentiu a suavidade de seus lábios sob os seus ao beijá-la profunda e lentamente. Quando estivesse suplicando por ele, rodaria sobre ela e a tomaria por cima, penetrando-a com força, segurando-a em seu lugar.
Gostava de seu peso. Gostava da sensação de que a cobrisse. Em sua vida juntos, Wellsie era uma fêmea independente com uma mente forte e uma veia teimosa que rivalizava com a de um bulldog, mas na cama gostava que ele estivesse em cima.
Deixou cair a boca sobre seu seio, sugando o mamilo, fazendo-o rodar, beijando-o.
— Tohr...
— O que, leelan? Mais? Talvez tenha que te fazer esperar...
Mas não podia. Ocupou-se dela e lhe acariciou o estômago e os quadris. Quando se retorceu, lambeu seu pescoço e passou as presas pela jugular. Não podia esperar para alimentar-se. Por alguma razão, estava ávido de sangue. Talvez estivesse lutando muito.
Os dedos dela se afundaram em seu cabelo.
— Tome minha veia...
— Ainda não. — o aguilhão da espera só o faria ainda melhor... Quanto mais a desejasse, mais doce seria o sangue.
Deslocando-se para sua boca, beijou-a com mais força que antes, penetrando-a com a língua enquanto deliberadamente esfregava seu pênis contra a coxa, uma promessa de outra invasão, mais profunda em sua parte inferior. Estava completamente excitada, sua fragrância se elevava acima do aroma de limão dos lençóis, fazendo com que as presas brotassem em sua boca e a ponta de seu sexo se umedecesse.
Sua shellan tinha sido a única mulher que tinha conhecido. Ambos eram virgens na noite de seu emparelhamento... E ele nunca tinha desejado a ninguém mais.
— Tohr...
Deus! Amava o som baixo de sua voz. Amava tudo nela. Foram prometidos um ao outro antes de nascerem, e no momento em que se conheceram havia sido amor a primeira vista. O destino tinha sido amável com eles.
Deslizou a palma até sua cintura, e então...
Deteve-se, compreendendo que algo ia mal. Algo...
— Sua barriga... Sua barriga está plana.
— Tohr...
— Onde está o pequeno? — retirou-se, sentindo pânico — Estava grávida. Onde está o pequeno? Está bem? O que aconteceu com você... Está bem?
— Tohr...
Ela abriu os olhos, e o olhar que tinha conhecido durante centenas de anos se concentrou nele. Uma tristeza, do tipo que o fazia desejar não ter nascido jamais, eliminou o rubor sexual de seu formoso rosto.
Levantando o braço para ele, pôs a mão em sua bochecha.
— Tohr...
— O que aconteceu?
— Tohr...
O brilho em seus olhos e o tremor de sua adorável voz o partiu pela metade. Logo começou a distanciar-se, o corpo começou a desaparecer sob suas mãos, seu cabelo vermelho, seu rosto delicioso, seus olhos desesperados se desvaneceram até que ante ele somente ficaram os travesseiros. Logo, com um golpe final, o aroma de limão dos lençóis e a fragrância natural somente dela deixaram seu nariz, substituídos por nada...
Tohr se endireitou de um salto no colchão, com os olhos alagados de lágrimas e seu coração dolorido como se tivesse pregos atravessando seu peito. Respirando agitadamente se aferrou o esterno e abriu a boca para gritar.
Não saiu nenhum som. Não tinha forças.
Caindo para trás sobre os travesseiros limpou as bochechas úmidas com mãos trementes e tentou acalmar esse inferno. Quando finalmente recuperou o fôlego, franziu o cenho. Seu coração estava saltando dentro de sua caixa torácica, estava revoando mais que pulsando, e um enjôo, ocasionado, sem dúvida por seus erráticos espasmos fazia girar sua cabeça em um redemoinho.
Levantando a camiseta, baixou o olhar a seus peitorais desinflados e a seu torso encolhido e insistiu a seu corpo a seguir falhando. Os acessos lhe estavam chegando com crescente regularidade e força, e desejava como o demônio que se organizassem de uma vez e o ajudassem a despertar morto. Se quisesse ir ao Fade para estar com seus defuntos seres queridos, o suicídio não era uma opção, mas ele estava operando sob a presunção de que podia ser efetivamente negligente consigo mesmo até a morte. O que tecnicamente não era um suicídio, como seria se disparar um tiro ou jogar um nó corrediço ao redor do pescoço, ou cortar os punhos.
O aroma de comida que chegava do corredor o fez olhar ao relógio. Quatro da tarde. Ou era da manhã? As cortinas estavam corridas, assim não sabia se as persianas estavam levantadas ou baixadas.
Soou um golpe suave.
O qual, fodido obrigado, significava que não era Lassiter, que simplesmente entrava sempre que queria. Evidentemente os anjos caídos não sabiam muito de boas maneiras. Nem de espaço pessoal. Nem de limites de algum tipo. Estava claro que o grande e brilhante pesadelo foi arremessado a pontapés do céu porque Deus não tinha gostado de sua companhia muito mais do que Tohr gostava.
O golpe se repetiu. Assim devia ser John.
— Sim. — disse Tohr, permitindo que sua camiseta caísse enquanto se elevava para recostar-se sobre os travesseiros. Seus braços, uma vez fortes como gruas, lutaram sob o peso de seus ombros caídos.
O menino, que já não era um menino, entrou levando uma bandeja pesadamente carregada de comida, e uma expressão cheia de otimismo infundado.
Tohr examinou o conteúdo com o olhar enquanto a carga era depositada na mesinha. Frango com ervas, arroz com açafrão, feijões verdes e pão fresco.
A merda perfeitamente poderia ter sido carne de animal atropelado envolto em arame farpado, pelo que lhe importava, mas agarrou o prato, desenrolou o guardanapo, pegou o garfo e a faca e os utilizou.
Mastigar. Mastigar. Mastigar. Engolir. Mais mastigar. Engolir. Beber. Mastigar. Comer era tão mecânico e autônomo como respirar, algo do que era só levemente consciente, uma necessidade, não um prazer.
O prazer era coisa do passado... E uma tortura dentro de seus sonhos. Quando evocava sua shellan contra ele, nua, sobre lençóis com aroma de limão, a fugaz imagem acendia seu corpo de dentro para fora, o fazendo sentir-se vivo, e não só que vivia. Entretanto, o golpe do encontro se desvanecia rapidamente, era como uma chama sem nenhum abajur para sustentá-la.
Mastigar. Cortar. Mastigar. Engolir. Beber.
Enquanto comia, o menino se sentou em uma cadeira junto às cortinas fechadas, com os cotovelos nos joelhos, os punhos no queixo, um Pensador do Rodin vivinho e abanando o rabo. Ultimamente John sempre estava assim, sempre dando voltas em algo na cabeça.
Tohrment sabia condenadamente bem do que se tratava, mas a solução que terminaria com a triste preocupação de John primeiro ia doer-lhe como a merda.
E Tohr lamentava. Lamentava muito.
Cristo, por que Lassiter não podia tê-lo deixado deitado sem mais, naquele bosque? Esse anjo poderia ter ficado quietinho, mas não, Seu Senhorio Halogênico tinha que ser um herói.
Tohr desviou os olhos para John e seu olhar se fechou sobre o punho do menino. A coisa era enorme, e o queixo e mandíbula que descansavam sobre ele eram fortes, masculinos. O menino se converteu em um homem bonito, mas bem, como filho de Darius, provinha de um bom lago genético. Um dos melhores.
O que o levava a pensar... Verdadeiramente se parecia com D, uma cópia ao carvão, em realidade, exceto pelos jeans azuis. Darius nem morto se deixaria ver com jeans, nem sequer com esses de estilistas elegantes como os que John usava.
De fato... D com freqüência assumia exatamente a mesma posição quando estava ruminando sobre a vida, imitando o Rodin, todo cenho e agitação...
Um brilho de prata titilou na mão livre de John. Era um quarto de dólar, e o menino passava a moeda dentro, fora e ao redor de seus dedos, sua versão de um tic nervoso.
Esta noite havia algo mais no silêncio que John costumava assumir quando permanecia ali sentado. Algo tinha acontecido.
— O que aconteceu? — perguntou Tohr com voz áspera — Está bem?
Os olhos de John se elevaram de repente com surpresa.
Para evitar o olhar, Tohr baixou os seus, espetando um pouco de frango, e metendo-o na boca. Mastigar. Mastigar. Engolir.
A julgar pelos sons de movimento, John estava se desenroscando de sua rotina lentamente, como se temesse que qualquer movimento súbito espantasse a pergunta que ficava entre eles.
Tohr levantou o olhar de novo, e enquanto esperava, John meteu a moeda no bolso e gesticulou com economia e graça.
Wrath está lutando de novo. V acaba de contar isso a mim e aos meninos.
Tohr tinha perdido a prática com a Linguagem por Gestos Americano, mas nem tanto. A surpresa fez que baixasse seu garfo.
— Espere... Ainda é o rei, verdade?
Sim, mas esta noite disse aos Irmãos que vai voltar a ocupar seu lugar na rotação. Ou, suponho que esteve na rotação sem dizer a ninguém. Acredito que a Irmandade está de saco cheio com ele.
— Rotação? Não pode ser. Não se permite que o rei lute.
Agora sim. E Phury também voltará.
— Que porra? Supõe-se que o Primale não... — Tohr franziu o cenho — Há alguma mudança na guerra? Aconteceu algo?
Não sei. John encolheu de ombros e se recostou na cadeira, cruzando as pernas à altura dos joelhos. Outra coisa que sempre fazia Darius.
Nessa pose o filho parecia tão velho como o pai tinha sido, embora tivesse menos a ver com a forma em que estavam colocadas as extremidades do John e mais com o cansaço extremo que havia em seus olhos azuis.
— Não é legal. — disse Tohr.
Agora sim. Wrath se reuniu com a Virgem Escriba.
Na mente de Tohr começaram a zumbir perguntas, seu cérebro brigava com a carga desacostumada. No meio do deslocado redemoinho, era difícil pensar coerentemente, e sentia como se estivesse tentando segurar cem bolas de tênis entre seus braços, sem importar quão arduamente tentasse, algumas escorregavam e ricocheteavam a seu redor, criando uma confusão.
Deixou de tentar encontrar sentido em algo.
— Bem, isso é uma mudança... Desejo-lhes sorte.
A exalação baixa de John resumiu tudo bastante bem e Tohr voltou a se desconectar do mundo e retornou a sua comida. Quando terminou, dobrou o guardanapo pulcramente e tomou um último sorvo do copo de água.
Ligou a TV e pôs na CNN, porque não queria pensar e não podia agüentar o silêncio. John ficou aproximadamente meia hora, e quando foi evidente que já não suportava estar quieto durante mais tempo ficou em pé e se despediu.
O verei ao final da noite.
Ah, assim era de noite.
— Estarei aqui.
John recolheu a bandeja e saiu sem deter-se, nem duvidar. A princípio, houve bastante de ambas, como se a cada vez que chegasse à porta esperasse que Tohr o detivesse e dissesse: “Estou preparado para confrontar a vida. Vou seguir adiante. Estou melhor o bastante para me preocupar contigo”.
Mas a esperança não era eterna.
Quando a porta se fechou, Tohr afastou os lençóis de suas pernas fracas e passou os pés sobre a beirada do colchão.
Estava preparado para confrontar algo, sim, mas não sua existência. Com um gemido e uma inclinação brusca, foi cambaleando até o banheiro, foi ao vaso, e levantou o assento do trono de porcelana. Inclinando-se, deu a ordem e seu estômago evacuou a comida sem protestar.
No princípio tinha que colocar o dedo na garganta, mas não mais. Só esticava o diafragma e tudo saía como ratos fugindo de uma boca-de-lobo transbordante.
—Tem que acabar com essa merda.
A voz de Lassiter harmonizava com o som do vaso alagando-se. O que tinha muito sentido.
— Cristo, acaso bate alguma vez?
— Sou Lassiter. L-A-S-S-I-T-E-R. Como é possível que ainda siga me confundindo com outro? Necessita um adesivo com meu nome?
— Sim, e o ponha sobre sua boca. — Tohr se largou sobre o mármore e deixou a cabeça cair entre as mãos — Sabe, pode ir para casa. Pode ir quando quiser.
— Ponha seu rabo em movimento então. Porque isso é o que conseguiria que o fizesse.
— Vá, agora tenho uma razão para viver.
Houve um suave som de campainhas, o que queria dizer, tragédia das tragédias, que o anjo acabava de subir no balcão.
— Então, o que fazemos esta noite? Espera! Deixe-me adivinhar, nos sentar em áspero silêncio. Ou, não... Agora está alternando. Meditar com emotiva intensidade, verdade? Que enchimento de saco selvagem é. Whoo-Hooo. Quando quiser acordar, estará aplicando para provar o nó corrediço.
Com uma maldição, Tohr se levantou e foi abrir a ducha, esperando que se negasse a olhar ao boca dura, Lassiter se aborreceria rapidamente e iria arruinar a tarde de algum outro.
— Pergunta. — disse o anjo — Quando vamos cortar esse tapete que está crescendo em sua cabeça? Se essa merda ficar mais longa, vamos ter que ceifá-la como se fosse feno.
Enquanto Tohr tirava a camiseta e a cueca boxer, desfrutou do único consolo que tinha quando sofria a companhia de Lassiter: expor-se nu ante o idiota.
— Homem, o rabo plano é uma coisa. — resmungou Lassiter — Mas exibe um par de bolas de basquete desinfladas aí atrás. Faz com que me pergunte... Hey, certamente Fritz tem uma bomba de bicicleta. Só comentava.
— Você não gosta da vista? Já sabe onde está a porta. É essa em que nunca bate.
Tohr não deu tempo para a água esquentar, simplesmente se meteu sob o jorro e se limpou sem nenhuma boa razão que soubesse... Não tinha orgulho, assim que lhe importava uma merda o que outros pensassem de sua higiene.
Vomitar tinha um propósito. A ducha... Talvez... Simplesmente fosse um hábito.
Fechando os olhos, separou os lábios e ficou de pé frente ao jato. A água lambeu o interior de sua boca, varrendo a bílis e quando a ardência abandonou sua língua, um pensamento entrou em seu cérebro.
Wrath estava fora lutando. Sozinho.
— Hey, Tohr.
Tohr franziu o cenho. O anjo nunca utilizava seu nome próprio.
— O que?
— Esta noite é diferente.
— Sim, só se me deixe em paz. Ou se ponha a você mesmo neste banho. Há seis chuveiros para escolher aqui dentro.
Tohr pegou o sabonete e o passou sobre seu corpo, sentindo os duros e agudos impulsos de seus ossos e articulações através da pele fina.
Wrath estava fora sozinho.
Xampu. Enxágüe. Voltar para o jorro. Abrir a boca.
Fora. Sozinho.
Quando terminou a ducha, o anjo estava no centro do banheiro com uma toalha, todo amabilidade e essa merda.
— Esta noite é diferente. — disse Lassiter brandamente.
Tohr olhou ao anjo seriamente, vendo-o pela primeira vez, embora tenham passado quatro meses juntos. O anjo tinha o cabelo negro e loiro, tão longo como o de Wrath, mas, apesar de todo esse estilo Cher descendo por suas costas não era nenhum efeminado. Seu guarda-roupa parecia tirado diretamente do exército/marinha, camisetas negras, calças de camuflagem e botas de combate, mas não era absolutamente um soldado. O idiota estava perfurado como um agulheiro e tinha tantos acessórios como um joalheiro, com aros de ouro e correntes que penduravam dos buracos que tinha nas orelhas, pulsos e sobrancelhas. E podia apostar que tinha acessórios no peito e mais abaixo da cintura... O que era algo em que Tohr se negava a pensar. Não precisava de ajuda para vomitar, muito obrigado.
Quando a toalha trocou de mãos, o anjo disse com gravidade.
— Hora de despertar, Cinzeiro.
Tohr estava a ponto de apontar que essa era a Bella Adormecida quando lhe chegou uma lembrança como se fosse injetada no lóbulo frontal. Era da noite em que salvara a vida de Wrath lá pelo ano 1958, e as imagens lhe chegaram com a absoluta clareza da experiência atual.
O rei esteve fora. Sozinho. No centro.
Meio morto e sangrando sobre a sarjeta.
Um Edsel lhe tinha investido. Um pedaço de merda de um Edsel conversível de cor azul sombra de olhos de uma garçonete.
Pelo que Tohr pôde deduzir mais tarde, Wrath devia estar perseguindo um lesser a pé e ao girar a toda em uma esquina esse carro grande como uma lancha tinha lhe investido. Tohr estava a dois quarteirões de distância e ouviu o chiado dos freios e um impacto de algum tipo, e estava preparado para não fazer absolutamente nada.
Acidentes de trânsito humanos? Não era problema seu.
Mas então um par de lessers passou correndo frente à entrada do beco onde ele estava. Os assassinos fugiam como loucos sob a garoa de outono, como se algo os perseguisse, exceto não havia ninguém correndo atrás de seus calcanhares. Esperou caso aparecesse algum de seus irmãos. Nenhum deles tinha feito ato de presença.
Não fazia sentido nenhum. Se um assassino tivesse sido golpeado por um carro em companhia de seus cúmplices, estes não teriam abandonado o cenário. Os outros teriam matado o condutor humano e a qualquer possível passageiro, logo teriam metido o seu morto no porta-malas e teriam ido conduzindo da cena: a última coisa que a Sociedade Lessening queria era a um lesser incapacitado derramando sangue negro sobre a rua.
Talvez fosse só coincidência. Um pedestre humano. Ou alguém em uma moto. Ou dois carros.
Entretanto, tinha sido somente um par de freadas. E nada disso explicaria o par de pálidos corredores que tinha passado junto a ele como se fossem incendiários fugindo de um fogo que teriam acendido.
Tohr tinha trotado até o Trade, e ao dar a volta na esquina tinha captado a visão de um macho humano com um chapéu e um casaco agachado sobre um corpo encolhido que era duas vezes o seu tamanho. A esposa do homem, que estava vestida com um desses frívolos vestidos de saias avultadas dos anos cinqüenta, estava de pé justo na frente dos faróis, aconchegada em seu casaco de pele.
Sua brilhante saia vermelha era da cor das nervuras que havia no pavimento, mas o aroma do sangue derramado não era humano. Era vampiro. E o que tinha sido atropelado tinha um comprido cabelo negro...
A voz da mulher era estridente.
— Temos que levá-lo ao hospital...
Tohr interviu, interrompendo-a:
— É meu.
O homem tinha levantado o olhar.
— Seu amigo... Não o vi... Vestido de negro... Saiu de um nada...
— Ocuparei-me dele. — nesse ponto, Tohr deixou de explicar-se e simplesmente por meio de sua vontade, tinha enviado aos dois humanos a um estado de estupor. Uma rápida sugestão mental os enviou de volta a seu carro e os pôs em caminho com a impressão de que tinham golpeado uma lata de lixo. Supôs que a chuva se ocuparia do sangue da frente do carro, e eles mesmos poderiam arrumar o amassado.
Quando se inclinou sobre o corpo do herdeiro do trono da raça, o coração de Tohr pulsava tão rápido como um martelo hidráulico. Havia sangue por toda parte, emanando rápido de um corte na cabeça de Wrath, por isso Tohr tirou a jaqueta, mordeu a manga, e rasgou uma tira de couro. Depois de envolver as têmporas do herdeiro e atar a bandagem improvisada tão forte como pôde, deteve uma caminhonete que passava, apontou com a arma ao fanático de Grease que estava atrás do volante, e fez com que o humano conduzisse até o bairro de Havers.
Ele e Wrath viajaram na carroceria traseira, e todo o tempo, esteve mantendo pressão sobre a cabeça ferida de Wrath, sob a chuva fria. Uma chuva tardia de novembro, talvez dezembro. Entretanto, agradecia que não fosse verão. Sem dúvida o frio havia diminuído o batimento do coração de Wrath e aliviado sua pressão sangüínea.
A meio quilômetro da casa de Havers, na parte luxuosa de Caldwell, Tohr havia dito ao humano que estacionasse e enquanto ficava pelo caminho lavou seu cérebro.
Os minutos que Tohr levou para chegar até a clínica foram os mais compridos de sua vida, mas conseguiu levar Wrath ali, e Havers fechou o que tinha resultado ser o corte de uma das artérias temporais.
O dia seguinte foi crítico. Inclusive com Marissa ali para alimentar ao Wrath, o rei tinha perdido tanto sangue que não evoluía como se esperava, e Tohr ficou todo o tempo sentado em uma cadeira junto à cama. Enquanto Wrath jazia tão quieto, Tohr sentia como se a vida da raça inteira pendesse de um fio, o único que podia ocupar o trono estava preso em um sonho que se distanciava por apenas uns poucos neurônios de um estado vegetativo permanente.
A notícia se espalhou e as pessoas acudiam desesperadas. As enfermeiras e o médico. Outros pacientes que se deixaram cair para rezar pelo rei a quem não serviriam. Os Irmãos, que tinham utilizado o telefone por turnos para ligar a cada quinze minutos.
A sensação coletiva era que sem o Wrath não havia esperança. Nem futuro. Nem oportunidade.
Entretanto, Wrath viveu, despertando irascível, o que o fez suspirar de alívio... Porque se um paciente tinha a energia para estar de saco cheio, ia superar.
O anoitecer seguinte, depois de ter estado fora de serviço durante vinte e quatro horas seguidas e tendo assustado de morte a todo mundo que lhe rodeava, Wrath tinha desligado a IV[39], vestiu-se, e se foi.
Sem dizer nenhuma palavra a nenhum deles.
Tohr tinha esperado... Algo. Não um obrigado, mas algum reconhecimento Ou... Algo. Demônios, agora Wrath era um filho da puta mal-humorado, mas nesse então? Era diretamente tóxico. Mesmo assim... Nada? Depois de ter salvado a vida do cara?
Recordava bastante à forma em que ele esteve tratando ao John. E a seus irmãos.
Tohr envolveu a toalha ao redor da cintura e voltou para o ponto mais importante da lembrança. Wrath tinha saído ali fora a lutar sozinho. Lá em 58, tinha sido um golpe de sorte que Tohr estivesse onde estava e tivesse encontrado o rei antes que fosse muito tarde.
— Hora de despertar. — disse Lassiter.
Capítulo 17
Enquanto a noite chegava e se instalava, Ehlena rezava para não ter que chegar tarde ao trabalho outra vez. Com o relógio correndo, esperou no andar de acima, na cozinha com o CranRas e as drogas moídas. Tinha sido meticulosa com a limpeza: tinha guardado a colher. Checando todas as superfícies duas vezes. Inclusive comprovou que o salão estivesse apropriadamente organizado.
— Pai? — chamou em direção ao porão.
Enquanto prestava atenção, a espera de sons de pés arrastando-se e palavras sem sentido pronunciadas baixinho, pensou nos sonhos estranhos que teve durante o dia. Imaginou o Rehv na escura distância com os braços pendurado nos flancos. Seu magnífico corpo nu estava iluminado como se estivesse em exibição, seus músculos se sobressaindo em um poderoso desdobramento e a cor torrada de sua pele era quente e dourada. Sua cabeça estava inclinada para baixo e tinha os olhos fechados como se estivesse em repouso.
Cativada, convocada, tinha atravessado um chão de pedra fria até ele, pronunciando seu nome uma e outra vez.
Ele não tinha respondido. Não tinha elevado a cabeça. Não tinha aberto os olhos.
O medo tinha assobiado ao longo de suas veias e tinha estremecido seu coração, e tinha se apressado para chegar a ele, mas ele tinha permanecido sempre distante, um objetivo nunca realizado, um destino nunca alcançado.
Despertara com lágrimas nos olhos e o corpo tremendo. Quando a sufocante comoção tinha retrocedido, o significado ficou claro, mas na realidade, não necessitava que seu subconsciente lhe dissesse o que ela já sabia.
Sacudindo a si mesma, voltou a gritar para baixo.
— Pai?
Quando não houve resposta, Ehlena pegou a xícara de seu pai e desceu ao porão. Fez lentamente, embora não porque tivesse medo de derramar o CranRas vermelho sangue sobre seu uniforme branco. Às vezes seu pai não se levantava por si mesmo e ela tinha que fazer este descida, e cada vez que descia os degraus por esse motivo, perguntava-se se finalmente teria ocorrido, se seu pai teria sido chamado ao Fade.
Não estava pronta para perdê-lo. Ainda não, sem importar quão difíceis fossem as coisas.
Introduzindo a cabeça através da porta de seu dormitório, o viu sentado ante sua escrivaninha esculpida à mão, rodeado de pilhas irregulares de papéis e velas apagadas.
Obrigado, Virgem Escriba.
Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, preocupou-a que a falta de luz pudesse danificar a visão de seu pai, mas as velas ficariam como estavam, porque não havia nenhum fósforo nem acendedor na casa. A última vez que ele tinha posto suas mãos sobre um fósforo tinha sido em sua antiga casa... E tinha incendiado o apartamento porque suas vozes haviam dito.
Isso ocorreu fazia dois anos, e fora a razão de que lhe tivessem receitado remédios.
— Pai?
Ele levantou o olhar da desordem e pareceu surpreso.
— Minha filha, como vai esta noite?
Sempre fazia a mesma pergunta, e sempre lhe dava a mesma resposta na Antiga Língua.
— Bem, meu pai. E você?
— Como sempre encantado de te saudar. Ah, sim, a doggen preparou meu suco. Que amável. — seu pai pegou a xícara — Aonde vai?
Isto conduziu às suas “pas de deux” verbal a respeito de que não aprovava que trabalhasse e ela explicava que o fazia porque gostava, ele se encolhia de ombros e afirmava não entender à geração jovem.
— Seriamente tenho que ir, — lhe disse — mas Lusie chegará em questão de minutos.
— Sim, bem, bem. Em realidade, estou ocupado com meu livro, mas a entreterei durante um momento, como é apropriado. Entretanto, tenho que me concentrar em meu trabalho. — ondulou a mão ao redor da representação física do caos de sua mente, seu gesto elegante em contradição com a irregular coleção de papéis cheios de sem sentidos — Isto tem que ser feito.
— É obvio que sim, pai.
Ele terminou o CranRas e, quando Ehlena foi pegá-lo de sua mão, franziu o cenho.
— Certamente a criada pode fazer isso.
— Gosto de ajudá-la. Tem muitas responsabilidades. — não podia ser mais certo. A doggen tinha que seguir todas as regras para objetos e onde pertenciam, assim como fazer as compras e ganhar o dinheiro e pagar as faturas e o vigiar. A doggen estava cansada. A doggen estava esgotada.
Mas era absolutamente necessário que a xícara fosse para a cozinha.
— Pai, por favor, solte a taça para que possa levá-la para cima. A donzela teme te incomodar, e gostaria de lhe economizar essa preocupação.
Por um momento, os olhos dele se pousaram nela como estavam acostumados a fazer.
— Tem um coração formoso e generoso. Estou muito orgulhoso de te chamar de filha.
Ehlena piscou ferozmente e com voz áspera disse:
— Ser seu orgulho significa tudo para mim.
Ele estendeu o braço e apertou sua mão.
— Vai, minha filha. Vá a esse “seu trabalho”, e volte para casa comigo com histórias de sua noite.
Oh... Deus.
Era exatamente o que havia lhe dito fazia muito tempo, quando ela estava indo a um colégio particular e sua mãe estava viva e viviam entre a família e a glymera como gente de importância.
Inclusive, embora soubesse ser provável que quando voltasse para casa ele não tivesse nenhuma lembrança de haver lhe feito a velha e adorável pergunta, ela sorriu e se alimentou das saborosas migalhas do passado.
— Como sempre, meu pai. Como sempre.
Partiu com o som do passar de páginas e o “tink-tink-tink” de uma pluma golpeando a borda de um tinteiro de cristal.
Escada acima enxaguou a xícara, secou e a guardou na despensa, logo se assegurou de que no frigorífico tudo estivesse onde devia estar. Quando recebeu a mensagem de texto de que Lusie estava a caminho, transpassou a porta, fechou-a, e se desmaterializou para a clínica.
Quando chegou ao trabalho, sentiu um grande alívio de ser como todos os outros, chegando na hora, pondo as coisas em seu armário, falando de nada em particular antes que começasse o turno.
Mas então quando estava na cafeteira, Catya se aproximou dela, toda sorrisos.
— Assim... Ontem à noite foi...? Vamos, conte.
Ehlena terminou de encher seu copo e ocultou uma careta depois de um primeiro gole profundo que lhe queimou a língua.
— Acredito que não apareceu resume tudo.
— Não apareceu?
— Sim. Como em “ele não apareceu”.
Catya sacudiu a cabeça.
— Maldito seja.
— Não, está bem. De verdade. Quero dizer, não é como se tivesse esperado muito. —sim, só uma fantasia completa sobre o futuro, que incluía coisas como um hellren, uma família própria, uma vida que valesse a pena viver. Nada de outro mundo — Está bem.
— Sabe? Ontem à noite estive pensando. Tenho um primo que é...
— Obrigado, mas não. Com meu pai como está não deveria sair com ninguém. —Ehlena franziu o cenho, ao recordar quão rapidamente Rehv lhe tinha dado razão a respeito disso. Embora pudesse dizer que isso o fazia uma espécie de cavalheiro, era difícil não sentir-se um pouco aborrecida.
— Preocupar-se por seu pai não significa...
— Hey, por que não me ocupo do balcão de recepção durante a mudança de volta?
Catya se deteve, mas os olhos da fêmea se iluminaram lançando um montão de mensagens, a maior parte das quais poderiam se resumir a: “Quando esta garota vai despertar?”
— Irei agora mesmo. — disse Ehlena, dando a volta e afastando-se.
— Não durará para sempre.
— É obvio que não. A maior parte de nosso turno já chegou.
Catya sacudiu a cabeça.
— Isso não é o que quis dizer, e sabe. A vida não dura para sempre. Seu pai tem uma séria enfermidade psicológica, e é muito boa com ele, mas poderia ficar assim durante um século.
— Em cujo caso ainda sobrará ao redor de setecentos anos mais para mim. Estarei na recepção. Desculpe.
Na recepção, Ehlena tomou posição depois do computador e introduziu a contra-senha. Não havia ninguém na sala de espera porque o sol acabava de se pôr, mas os pacientes começariam a chegar muito em breve, e ela não podia esperar a distração.
Revisando o horário de Havers, não viu nada incomum. Verificações. Tratamentos a pacientes. Seguimentos cirúrgicos...
A campainha exterior tocou e levantou o olhar para um monitor de segurança. Ali em uma vista do vestíbulo exterior, viu um macho que se agasalhava em seu casaco para se proteger do vento frio.
Apertou o botão do inter comunicador e disse:
— Boa noite. No que posso lhe ajudar?
O rosto que levantou o olhar para a câmera era um que já tinha visto antes. Três e três noites atrás. O primo de Stephan.
— Alix? — disse — É Ehlena. Como está...?
— Estou aqui para ver se o trouxeram.
— Trouxeram?
— Ao Stephan.
— Não acredito, mas me deixe comprovar enquanto entra.
Ehlena pressionou o botão para abrir a fechadura e foi ao computador ver a lista de pacientes ingressados. Enquanto abria a série de portas para Alix, revisava os nomes, um por um.
Não fazia referência ao ingresso de Stephan como paciente.
No instante em que Alix entrou na sala de espera, o sangue em suas veias congelou ao ver a cara do macho. Os cruéis círculos escuros sob seus olhos cinza falavam de algo mais que uma simples falta de sono.
— Stephan não voltou para casa ontem à noite. — disse.
Rehv lamentava dezembro, e não só porque o frio no norte de Nova Iorque fosse suficiente para fazê-lo desejar ficar em um plano especialista de pirotecnia só para esquentar-se.
Em dezembro a noite caía cedo. O sol, esse estúpido preguiçoso, flácido maricas, retrocedia em seus esforços tão cedo como as quatro e meia da tarde, e isso para Rehv significava que o “encontro-de-primeira-terça-do-mês-para-atuar-como-semental” começava cedo.
Acabavam de dar as dez em ponto quando entrou no Parque Estatal Black Snake depois de uma viagem de carro de duas horas para o norte desde Caldwell. Trez, que sempre se desmaterializava para ali, sem dúvida já teria tomado posição ao redor da cabana, camuflando-se e dispondo-se a atuar de guarda.
Assim como de testemunha.
O fato de que o cara, que era indiscutivelmente seu melhor amigo, tivesse que observar todo o assunto era um triturador de testículos que vinha a acrescentar-se a todo o carrossel de cagadas. O problema era, que depois que tudo terminava, Rehv precisava de ajuda para voltar para casa, e Trez era bom nesse tipo de merdas.
Xhex queria ocupar-se, é obvio, mas não se podia confiar nela. Não quando se tratava da princesa. Se Rehv lhe voltasse às costas durante um segundo a cabana poderia terminar com uma nova capa de pintura fresca nas paredes... Da variedade horripilante.
Como sempre, Rehv estacionou no estacionamento de terra que havia do lado escuro da montanha. Não havia outros carros, e esperava que os atalhos que se abriam na parte de atrás do estacionamento estivessem vazios também.
Olhando através do pára-brisa, ante sua vista tudo aparecia vermelho e plano e apesar de que desprezava a sua meio irmã, odiava olhá-la e desejava que todo este sujo e fodido assunto se acabasse de uma vez, seu corpo não estava intumescido de frio, a não ser vivo e ronronando. Dentro de suas calças, seu pênis duro estava preparado e pronto para o que estava a ponto de ocorrer.
Agora se somente pudesse obrigar-se a sair do carro.
Pousou a mão no trinco da porta, mas não pôde puxá-lo.
Havia tanta paz. Quão único perturbava o silêncio eram os leves e metálicos sons que o motor do Bentley fazia ao esfriar.
Sem razão aparente, pensou na adorável risada de Ehlena, e isso foi o que lhe fez abrir a porta. Com um movimento rápido, tirou a cabeça do carro justamente quando seu estômago se fechava como um punho e quase vomita. Quando o frio acalmou sua náusea, tentou tirar Ehlena da mente. Ela era tão limpa e honorável que não podia suportar tê-la em seus pensamentos quando estava a ponto de fazer isto.
O que era uma surpresa.
Proteger a alguém do mundo cruel, do mortal e perigoso, do poluído, o obsceno, e o asqueroso não era seu estilo. Mas se tinha ensinado a si mesmo a fazer justamente isso quando se tratava das únicas três fêmeas normais na vida. Pela que lhe tinha dado a vida, a que tinha criado como se fosse sua própria e a pequena que sua irmã tinha dado à luz recentemente, confrontaria todo tipo de perigos, mataria com suas próprias mãos algo que as ameaçasse, perseguiria e destruiria até a mais mínima ameaça.
E, de algum modo a cálida conversa que teve com a Ehlena mais cedo a punha nessa curta, curta lista.
O que significava que tinha que deixá-la fora. Junto com as outras três.
Tinha-lhe caído bem vivendo como uma puta, porque obtinha um preço caro da que o fodia, e, além disso, a prostituição não era nada mais que o que merecia, considerando o modo em que seu autêntico pai tinha forçado sua concepção sobre sua mãe. Mas ele assumia a responsabilidade. Ele ia à cabana sozinho e ele obrigava seu corpo a fazer o que ninguém o obrigava.
Essas poucas pessoas normais que havia em sua vida tinham que permanecer muito, muito longe de todo esse assunto, e isso significava que quando vinha aqui devia erradicá-las de seu pensamento e seu coração. Mais tarde, logo depois de ter se recuperado, tomado banho e dormido, poderia voltar a recordar os olhos cor toffe de Ehlena e a forma em que cheirava a canela e como riu apesar de si mesmo quando falaram. Por agora, afastou a ela, a sua mãe, a sua irmã e a sua amada sobrinha de seu lóbulo frontal, fechando cada lembrança que tinha em uma seção separada de seu cérebro e enclausurando-os.
A princesa sempre tentava entrar em sua mente, e não queria que soubesse nada daqueles que apreciava ou pelos quais se preocupava.
Quando uma intensa rajada de vento quase lhe fecha violentamente a porta na cabeça, Rehv puxou sua zibelina envolvendo-se frouxamente ao redor de seu corpo, saiu, e fechou o Bentley. Enquanto caminhava para o início do caminho, notou que o terreno estava congelado sob seus Penetre Haans, a terra que rangia sob seus pés era dura e resistente.
Tecnicamente agora o parque estava fechado pela estação, e uma corrente pendurava atravessando a entrada do atalho que levava mais à frente do mapa da montanha e às cabanas de aluguel. Entretanto, era mais provável que fosse o tempo o que mantinha as pessoas afastadas e não o Serviço do Parque Adirondack. Depois de passar sobre a corrente, passou a folha de registro que estava pendurava de uma prancheta apesar de que se supunha que ninguém devia utilizar os atalhos. Ele nunca assinava.
Sim, como se os guardas humanos realmente precisassem saber o que dois sympaths estavam fazendo em uma daquelas cabanas. Ceerrrrtttoooooo.
O bom de dezembro era que nos meses invernais o bosque ficava menos claustrofóbico, seus carvalhos e suas sebes não eram mais que troncos e ramos fracos que deixavam ver bastante da noite estrelada. Ao redor deles, as árvores de folha perene estavam de festa, seus ramos amaciados eram o “se foda” a seus irmãos agora nus, vingando-se por toda a vistosa folhagem outonal que as outras árvores acabavam de mostrar.
Penetrando a linha de árvores, seguiu o atalho principal enquanto este se estreitava gradualmente. Atalhos menores se separavam a direita e esquerda, marcados com rústicos pôsteres de madeira com nomes como Passeio do Sociável, Ataque Relâmpago, Cúpula Extensa e Cúpula Pequena. Ele seguiu em linha reta, seu fôlego formava nuvens ao abandonar seus lábios e o som de seus sapatos sobre a terra congelada parecia muito ruidoso. No alto, a lua se via brilhante, e tinha a forma de uma meia-lua afiada como uma faca, que para ele com seus impulsos symphath decididamente fora de controle, era da cor dos olhos rubi de sua chantagista.
Trez fez sua aparição em forma de uma brisa gelada que percorreu o atalho.
— Hey, amigo. — disse Rehv baixinho.
A voz do Trez flutuou no interior de sua cabeça enquanto a forma Sombra do cara se condensava em uma onda que brilhava tenuamente.
Acaba logo com ela. Quanto mais rápido obtenhamos o que necessitará depois melhor.
— As coisas são como são.
Quanto antes. Melhor.
— Veremos.
Trez lhe amaldiçoou e voltou a se dissolver em uma fria rajada de vento, lançando-se para frente fora de vista.
A verdade era que, por muito que Rehv odiasse vir, algumas vezes não queria partir. Gostava de fazer mal à princesa, e ela era uma boa oponente. Ardilosa, rápida e cruel. Era a única saída para seu lado mau, e, como um corredor faminto de treinamento, precisava do exercício.
Além disso, talvez fosse como seu braço: a podridão se sentia bem.
Rehv tomou o sexto à esquerda, entrando em um atalho que era só o bastante amplo para uma pessoa, e muito em breve, a cabana ficou à vista. A brilhante luz da lua, seus lenhos eram de uma cor parecida ao vinho rosado.
Quando chegou à porta, estendeu a mão esquerda para frente, e quando estava aferrando a alavanca de madeira pensou em Ehlena e em como se preocupou o suficiente por ele para telefonar e perguntar por seu braço.
Durante um breve momento se permitiu um deslize e evocou o som da voz dela em seu ouvido.
Não entendo por que não cuida de você mesmo.
A porta escapou de seu agarre, abrindo-se tão rápido que golpeou contra a parede.
A princesa estava de pé no centro da cabana, com sua brilhante túnica vermelha, rubis em sua garganta e os olhos cor vermelho sangue, toda a cor do ódio. Com seu escasso cabelo enrolado e recolhido por cima de seu pescoço, sua pele pálida, e os escorpiões albinos vivos que usava como brincos, era um horror delicioso, uma boneca Kabuki construída por uma mão malvada. E era malvada, sua escuridão lhe chegava em forma de ondas, emanando do centro de seu peito ainda quando nada nela se movia e seu rosto com forma de lua permanecia inalterado pelo aborrecimento.
Sua voz, por outro lado, era ardilosa como uma folha afiada.
— Nada de cenas de praia esta noite em sua mente. Não, nada de praia esta noite.
Rehv cobriu Ehlena rapidamente com uma imagem de um glorioso estereótipo das Bahamas, todo sol, mar e areia. Era algo que tinha visto na TV anos atrás, em um “especial escapadas”, como havia dito o anunciador, com gente em traje de banho passeando de mãos dadas. Dada sua vivacidade, a imagem era o suspensório perfeito para os argumentos de sua matéria cinza.
— Quem é ela?
— Quem é quem? — disse enquanto entrava.
A cabana estava cálida, graças a ela, um pequeno truque de agitação molecular do ar que se acrescentava quando estava de saco cheio. Não obstante, o calor que gerava não era alegre como o que provinha de um fogo... Era mais da classe de sufoco que conseguia com um caso de diarréia.
— Quem é a fêmea que havia em sua mente?
— Só uma modelo de um anúncio de TV, minha queridíssima cadela. — disse tão brandamente como ela. Sem lhe dar as costas, fechou a porta tranqüilamente — Ciumenta?
— Para estar ciumenta, teria que estar ameaçada. E isso seria absurdo. — a princesa sorriu — Mas penso que deve me dizer quem é ela.
— Isso é tudo o que quer fazer? Falar? — Rehv deliberadamente deixou que seu casaco se abrisse e embalou em sua mão o pênis e o pesado escroto — Normalmente quer de mim algo mais que conversa.
— Muito certo. O melhor e mais elevado uso para você é o que os humanos chamam... Um consolador, não? Um brinquedo para uma fêmea com o que dar prazer a si mesma.
— Fêmea não é necessariamente a palavra que utilizaria para te descrever.
— Certamente. Bem amada seria melhor.
Ela elevou uma mão horrenda até seu penteado, deslizando seus dedos ossudos de três articulações sobre a cuidadosa obra, seu pulso era mais fino que a asa de uma batedeira de arame. Seu corpo não era diferente: todos os symphaths estavam constituídos como jogadores de xadrez, não como zagueiros, o que estava de acordo com sua preferência de lutar com a mente e, não com o corpo. A vestimenta que usavam, não era nem de machos nem de fêmeas, a não ser uma versão destilada de ambos os sexos, e por isso a princesa o desejava como o fazia. Gostava de seu corpo, seus músculos, sua óbvia e brutal masculinidade, e habitualmente queria ser fisicamente refreada durante o sexo... Algo que seguro como a merda não conseguia em casa. Pelo que ele sabia a versão symphath do ato se limitava a algumas posturas mentais seguidas de duas esfregações e um ofego por parte do macho. Além disso, estava disposto a apostar que o tio de ambos tinha o pênis como o de um hamster, e os testículos do tamanho de borrachas de lápis.
Não é que alguma vez o tivesse comprovado… Mas vamos, o cara não era exatamente uma comparação de testosterona.
A princesa se movia pela cabana como se estivesse desdobrando sua graça, mas havia um propósito em deslocar-se de janela em janela e olhar para fora.
Demônios, sempre com as janelas.
— Onde está seu cão guardião esta noite? — disse ela.
— Sempre venho sozinho.
— Mente a seu amor.
— Por que ia querer que alguém visse isto?
— Porque sou formosa. — deteve-se diante dos vidros mais próximos à porta — Está aí à direita, junto ao pinheiro.
Rehv não precisava inclinar-se a um lado e olhar para saber que tinha razão. É obvio que ela podia sentir o Trez, só que não podia estar completamente segura de onde estava ou o que era.
Ainda assim, disse:
— Não há nada exceto árvores.
— Mentira.
— Tem medo das sombras, Princesa?
Quando ela olhou sobre o ombro, o escorpião albino que pendurava do lóbulo de sua orelha também fez contato ocular com ele.
— O problema não é o medo. É a deslealdade. Não suporto a deslealdade.
— A menos que seja você quem a está praticando, é obvio.
— Oh, sou bastante leal a você, meu amor. Exceto pelo irmão de nosso pai, como já sabe. — girou e quadrou os ombros em toda sua altura — Meu consorte é o único além de você. E vim aqui sozinha.
— Suas virtudes são abundantes, embora como disse, por favor, leva a mais em sua cama. Toma a cem machos mais.
— Ninguém poderia comparar-se contigo.
Dava vontade de vomitar em Rehv cada vez que lhe prodigalizava um falso elogio, e ela sabia. Pelo que, naturalmente insistia em dizer merdas como essa.
— Diga-me. — disse para mudar de assunto — Já que tirou o tema de nosso tio, como vai o muito idiota?
— Ainda te acredita morto. Assim sigo honrando minha parte de nossa relação.
Rehv colocou a mão no bolso de seu casaco de zibelina e tirou os duzentos e cinqüenta mil dólares em rubis cortados. Atirou o feliz pacotinho ao chão para a borda da túnica dela e tirou o casaco. A jaqueta de seu traje e seus sapatos foram o seguinte. Depois suas meias três quartos de seda, suas calças e sua camisa. Nenhum boxer que tirar. Para que incomodar-se?
Rehvenge permaneceu ante ela completamente ereto, com os pés bem plantados no chão, respirando tranqüilamente, inalando e exalando com seu forte peito.
— E estou preparado para completar nossa transação.
Os olhos rubi desceram por seu corpo e se detiveram em seu sexo, abriu a boca, e percorreu o lábio inferior com sua língua bífida. Em suas orelhas, os escorpiões retorceram suas extremidades com espera, como se respondessem a seu arrebatamento sexual.
A princesa apontou para a bolsa de veludo.
— Recolhe isso e me dê isso apropriadamente.
— Não.
— Recolhe-o.
— Você gosta de se inclinar diante de mim. Por que te roubar seu hobby favorito?
A princesa colocou as mãos nas longas mangas de sua túnica e foi para ele da forma suave com que se moviam os symphaths, virtualmente flutuando sobre o chão de madeira. Quando se aproximou, ele manteve sua posição, porque preferia morrer e apodrecer antes de dar um passo atrás para o prazer dela.
Olharam-se um ao outro, e no profundo e maligno silêncio, ele sentiu uma terrível comunhão com ela. Eram iguais, e embora fosse um pensamento que odiava, sentia alívio em ceder a sua autêntica natureza.
— Recolhe-o...
— Não.
Ela descruzou os braços e uma de suas mãos de seis dedos rasgou o ar em direção a seu rosto, a bofetada foi forte e aguda como seus olhos rubi. Rehv se negou a deixar que sua cabeça retrocedesse pelo impacto enquanto o som reverberava tão ruidosamente como um prato quebrando-se.
— Quero que me pague seu tributo adequadamente. E quero saber quem é ela. Percebi seu interesse por esta antes... Quando está longe de mim.
Rehv manteve o anúncio de praia aceso em seu lóbulo frontal e soube que ela ostentava.
— Não me inclino perante você nem ante ninguém, cadela. Assim, se quiser essa bolsa, vai ter que te tocar os dedos dos pés. E quanto ao que acredita saber, está enganada. Não há ninguém para mim.
Esbofeteou-o de novo, a ardência desceu por sua medula espinhal e pulsou na cabeça de seu pênis.
— Inclina-te ante mim cada vez que vem aqui com seu patético pagamento e seu sexo faminto. Necessita isto, necessita-me.
Ele levou sua cara mais perto da dela.
— Não adule a você mesma, princesa. É uma obrigação, não uma escolha.
— Engano. Vive para me odiar.
A princesa pegou seu pênis na mão, envolvendo-o firmemente com seus dedos mortos. Quando sentiu o contato e a carícia, seu estômago revolveu... E ainda assim sua ereção se umedeceu ante a atenção inclusive quando não podia suportá-la, embora não a encontrava absolutamente atrativa, seu lado symphath estava completamente preso nesta batalha de vontades, e isso era o erótico.
A princesa se inclinou para ele, esfregando com seu dedo indicador a pua que tinha na base de sua ereção.
— Seja quem for essa fêmea de sua cabeça, não pode competir com o que temos.
Rehv pôs as mãos dos lados do pescoço de sua chantagista e pressionou com os polegares até que ela ofegou.
— Posso te arrancar a cabeça da coluna.
— Não o fará. — lhe passou os lábios vermelhos e acetinados pela garganta e o batom de pimentas moídas que levava o queimou — Porque não poderíamos fazer isto se estivesse morta.
— Não subestime a atração da necrofilia. Especialmente quando se trata de você. — agarrou a parte de trás de seu coque e puxou com força — Vamos ao ponto?
— Depois que você recolha...
— Isso não vai acontecer. Não me inclino. — com sua mão livre, rasgou a frente da túnica, expondo a malha fina do body que sempre usava. Girando-a, forçou-a a ficar de cara à porta, procurando entre as dobras de vermelho cetim enquanto ela ofegava. A malha que vestia estava empapada de veneno de escorpião, e enquanto abria caminho para seu centro, o veneno empapava sua pele. Com sorte, poderia foder um momento enquanto ainda conservava a túnica posta...
A princesa se desmaterializou fora de suas garras e voltou a tomar forma justamente ante a janela através da qual Trez poderia ver. Com um rápido movimento, sua túnica a abandonou, eliminada por sua vontade e sua carne foi revelada. Estava constituída como a serpente que era, muitos nervos, e muito magra e quando a luz da lua se refletia sobre os fios entremeados de seu reluzente body dava a impressão de ter escamas.
Seus pés estavam plantados de cada lado da bolsa de rubis.
— Adorará-me. — disse isso, passando a mão entre as coxas e acariciando a fenda — Com a boca.
Rehv se aproximou e ficou de joelhos. Levantando o olhar para ela, disse com um sorriso:
— E será você quem recolherá essa bolsa.
Capítulo 18
Ehlena se deteve fora do necrotério da clínica, com ambos os braços rodeando seu peito, o coração na garganta e as preces saindo de seus lábios. Apesar de seu uniforme, não estava esperando em caráter profissional e o cartaz de SÓ PESSOAL que estava ao nível de seus olhos a freava tanto como se fosse alguém com roupas comuns. Enquanto os segundos passavam lentos como séculos, olhava as letras como se tivesse esquecido como ler. A palavra só estava em uma metade das portas, e pessoal na outra. Em letras vermelhas maiúsculas. Debaixo das letras em português, estava a tradução na Antiga Língua.
Alix tinha atravessado as portas fazia um momento com o Havers a seu lado.
Por favor… Que não seja Stephan. Por favor, não deixe que o John Doe seja Stephan.
O pranto que se filtrou através das portas de SÓ PESSOAL provocou que fechasse os olhos, tão forte que fez com que a cabeça desse voltas.
Depois de tudo, não a tinha deixado plantada.
Dez minutos depois Alix saiu, tinha o rosto pálido e a parte inferior dos olhos avermelhada devido à quantidade de vezes que enxugou as abundantes lágrimas. Havers estava logo atrás dele, o médico se mostrava igualmente desconsolado.
Ehlena se adiantou e pegou ao Alix entre seus braços.
— Sinto tanto.
— Como… Como digo a seus pais… Eles não queriam que viesse até aqui… Oh, Deus…
Ehlena sustentou o corpo estremecido do macho até que Alix se endireitou e arrastou ambas as mãos por seu rosto.
— Estava desejando sair contigo.
— E eu com ele.
Havers pôs sua mão sobre o ombro de Alix.
— Quer levar isso contigo?
O macho olhou para trás, às portas, e fechou a boca até que se converteu somente em uma fina linha.
— Vamos querer começar com os... Rituais mortuários... Mas...
— Você gostaria que o amortalhasse? — perguntou Havers brandamente.
Alix fechou os olhos e assentiu.
— Não podemos deixar que sua mãe veja seu rosto. Isso a mataria. Eu o faria, mas...
— Cuidaremos dele muito bem. — disse Ehlena — Pode confiar que nos ocuparemos com respeito e reverência.
— Não acredito que possa… — Alix olhou em sua direção — Está mal de minha parte?
— Não. — disse sustentando ambas as mãos — E lhe prometo, faremos com amor.
— Mas deveria ajudar…
— Pode confiar em nós. — enquanto o macho piscava rapidamente, Ehlena o guiou gentilmente, afastando-o das portas do necrotério — Quero que vá esperar em uma das salas de estar familiares.
Ehlena acompanhou o primo de Stephan pelo corredor até chegar ao vestíbulo onde estavam as salas de exame. Quando outra enfermeira passou por ali, Ehlena lhe pediu que o levasse a uma sala de espera privada e logo retornou ao necrotério.
Antes de entrar, respirou profundamente e endireitou os ombros. Quando entrou empurrando as portas, cheirou ervas e viu Havers de pé junto a um corpo coberto por um lençol branco. O andar de Ehlena fraquejou.
— Meu coração está oprimido. — disse o médico — Tão oprimido. Não queria que esse pobre moço visse assim a seu familiar de sangue, mas depois de identificar suas roupas, ele insistiu. Tinha que vê-lo.
— Porque tinha que assegurar-se.
Era o que ela teria necessitado ao estar nessa situação.
Havers levantou o lençol, dobrando-o sobre o peito e Ehlena tampou bruscamente a boca com a mão para conter um ofego.
O rosto de Stephan, golpeado e sujo, estava quase irreconhecível.
Ela tragou uma vez. E outra vez. E uma terceira vez.
Querida Virgem Escriba, vinte e quatro horas antes, ele estava vivo. Vivo e no centro, desejando vê-la. Logo uma má decisão de ir para um lado e não para o outro o tinha feito terminar aqui, jazendo sobre uma cama fria de aço inoxidável, a ponto de ser preparado para seu ritual mortuário.
— Trarei as mortalhas. — disse bruscamente Ehlena quando Havers tirou completamente o lençol do corpo.
O necrotério era pequeno, com apenas oito unidades de refrigeração e duas mesas de exame, mas estava bem provido quanto a equipamento e fornecimentos. As mortalhas cerimoniais eram guardadas em um armário próximo do escritório, e quando abriu a porta, saiu uma fresca baforada herbal. As bandas de linho tinham sete centímetros e meio de largura e vinham em cilindros do tamanho dos dois punhos de Ehlena. Empapados de uma combinação de romeiro, lavanda e sal marinho, irradiavam um aroma suficientemente prazenteiro que, não obstante, faziam-na retroceder cada vez que captava aquele odor.
Morte. Era o aroma da morte.
Tirou dez cilindros e os empilhou em seus braços, logo voltou onde estava o corpo de Stephan totalmente exposto, com apenas um tecido sobre seus quadris.
Depois de um momento, Havers saiu de um vestiário que havia no fundo, usando uma túnica negra atada com uma faixa negra. Ao redor do pescoço, suspensa de uma corrente de prata larga e pesada, tinha uma ferramenta ornamentada para cortar, muito afiada que era tão antiga, que o trabalho de filigrana da manga tinha curvas obscurecidas dentro de seu curvilíneo desenho.
Ehlena abaixou a cabeça enquanto Havers elevava à Virgem Escriba as preces requeridas para o pacífico descanso de Stephan dentro do tenro abraço do Fade. Quando o doutor esteve preparado, passou-lhe o primeiro dos cilindros aromáticos e começaram com a mão direita de Stephan, como era adequado. Com muitíssima gentileza e cuidado, sustentou o membro frio e cinza no ar, enquanto Havers envolvia a carne apertadamente, voltando a pôr a tira de linho sobre si mesmo. Quando chegaram até o ombro, moveram-se para a perna direita, depois foi a mão esquerda, o braço esquerdo e logo a perna esquerda.
Quando tiraram o tecido de seus quadris, Ehlena se deu volta, como era requerido por ser fêmea. Se tivesse sido um corpo feminino, não o teria que fazer, embora um assistente masculino o teria feito por respeito. Depois que os quadris foram envoltos, enfaixaram o tronco até o peito e cobriram os ombros.
Com cada passada do linho, o aroma a ervas golpeava de novo o nariz até que sentiu como se não pudesse respirar.
Ou talvez não fosse o aroma que havia no ar, mas sim os pensamentos que havia em sua mente. Ele teria sido seu futuro? Teria conhecido seu corpo? Poderia ter sido seu hellren e o pai de seus filhos?
Perguntas que nunca seriam respondidas.
Ehlena franziu o cenho. Não, em realidade, todas tinham sido.
Cada uma delas com um não.
Enquanto passava outro cilindro ao médico da raça, perguntou-se se Stephan tinha vivido uma vida plena e satisfatória.
Não, pensou. Tinha sido extorquido. Totalmente extorquido.
Enganado.
O rosto era o último em ser coberto e sustentou a cabeça de Stephan enquanto o doutor enrolava e enrolava o linho lentamente. Ehlena respirava com dificuldade e só quando Havers cobriu os olhos, uma lágrima deixou os próprios e aterrissou na mortalha branca.
Havers pôs a mão brevemente em seu ombro e logo terminou o trabalho.
O sal que havia nas fibras do linho funcionava como um selador para que nenhum fluído filtrasse através da malha, e o mineral também preservava o corpo para o sepulcro. As ervas serviam para a função óbvia no curto prazo de mascarar qualquer aroma, mas também eram emblemas dos frutos da terra, os ciclos de crescimento e morte.
Com uma maldição, voltou para o armário e retirou um sudário negro, com o qual Havers e ela envolveram Stephan. O exterior negro simbolizava a carne mortal corruptível, o interior branco, a pureza e incandescência da alma dentro de seu lar eterno no Fade.
Ehlena tinha escutado uma vez que os rituais serviam a importantes propósitos além de seu aspecto prático. Supunha-se que ajudavam a cura psicológica, mas estando junto ao corpo morto de Stephan sentia que isso era pura merda. Era uma aceitação falsa, uma patética tentativa para conter as exigências de um destino cruel com um tecido de aroma doce.
Não era nada mais que uma capa sobre um sofá manchado de sangue.
Detiveram-se junto à cabeça de Stephan para lhe oferecer um momento de silêncio e logo empurraram a maca deslocando-a do fundo do necrotério para o sistema de túneis que corriam subterraneamente até as garagens. Ali, puseram o Stephan em uma das quatro ambulâncias que estavam feitas para parecer exatamente com as que os humanos usavam.
— Levarei a ambos a casa dos pais. — disse ela.
— Necessita que a acompanhem?
— Parece-me que para o Alix será melhor não ter audiência.
— Embora tomará cuidado, verdade? Não só com eles, mas também com sua própria segurança?
— Sim.
Cada uma das ambulâncias tinha uma pistola debaixo do assento do condutor, e assim que Ehlena começou a trabalhar na clínica, Catya lhe ensinou a disparar: não cabia dúvida, de que podia dirigir algo que ficasse em seu caminho.
Quando Havers e ela fecharam as portas duplas da ambulância, Ehlena olhou para a entrada do túnel.
— Parece que vou voltar para a clínica pelo estacionamento. Preciso de ar.
Havers assentiu.
— E eu farei o mesmo. Dou-me conta que também necessito ar.
Juntos saíram à noite fria e clara.
Como a boa puta que Rehv era fez tudo o que lhe pediram. O fato de que fosse rude e cruel era uma concessão a seu livre-arbítrio... E novamente, parte da razão pela qual a princesa gostava do assunto que tinham.
Quando tudo terminou e ambos estiveram esgotados — ela por ter tantos orgasmos, ele porque o veneno de escorpião tinha penetrado profundamente em sua corrente sanguínea — esses malditos rubis seguiam onde os tinha jogado. No chão.
A princesa estava escancarada contra o batente da janela, ofegando dificultosamente, com seus dedos de três nódulos estendidos, provavelmente porque sabia que o enojavam como a merda. Ele estava do outro lado da cabana, tão longe dela como podia, de pé, cambaleando.
Enquanto tentava respirar, odiou que o ar da cabana cheirasse a sexo sujo. Do mesmo modo, tinha o aroma dela por todo seu corpo, cobrindo-o, sufocando-o tanto, que apesar de ter sangue symphath em suas veias, sentia vontade de vomitar. Ou possivelmente isso era devido ao veneno. Quem merda podia saber?
Ela levantou uma de suas mãos ossudas e apontou para a bolsa de veludo.
— Le-van-ta-os.
Os olhos de Rehv se travaram com os dela, e sacudiu a cabeça de um lado a outro lentamente.
— Será melhor que volte para nosso tio. — disse com tom áspero — Estou disposto a apostar que se te ausentar por muito tempo ele desconfiará.
Com isso, a tinha. O irmão do pai de ambos era um sociopata, calculista e desconfiado. Igual a eles.
Tudo ficava em família, como estavam acostumados a dizer.
A túnica da princesa se levantou do chão e flutuou para sua proprietária, e enquanto pendurava no ar a seu lado, retirou do bolso interior uma bandagem longa e vermelha. Deslizando-a entre suas pernas, envolveu o sexo, mantendo dentro o que ele tinha deixado. Depois se vestiu, e cobriu a metade da túnica que ele tinha esmigalhado, formando uma dobra sob a capa superior. O cinturão de ouro, ou ao menos ele assumia que era de ouro, dada a forma em que refletia a luz, foi o seguinte.
— Envie lembranças a meu tio. — disse Rehv arrastando as palavras — Ou... Não.
— Le... Van... Ta... Os.
— Ou se inclina para recolher essa bolsa, ou vai sem ela.
Os olhos da princesa cintilaram com o tipo de rancor que fazia tão divertido discutir com assassinos, e permaneceram olhando um ao outro durante compridos e hostis minutos.
A princesa se quebrou. Exatamente como ele havia dito que o faria.
Para sua eterna satisfação, foi ela quem os recolheu, sua capitulação quase o fez gozar de novo, sua lingüeta ameaçou enganchar-se apesar de que não havia nada contra o que travar-se.
— Poderia ser rei. — disse ela estendendo a mão, e fazendo com que a bolsa de veludo com os rubis se elevasse do chão — Mata-o e poderá ser rei.
— Se mato a você, poderia ser feliz.
— Nunca será feliz. É de uma raça separada, vivendo uma mentira entre inferiores. —sorriu e uma alegria verdadeira se refletiu em seu rosto — Exceto aqui comigo. Aqui, pode ser honesto. Até o próximo mês, meu amor.
Atirou-lhe um beijo com suas horríveis mãos e se desmaterializou, dissipando-se da forma em que tinha feito o fôlego dele fora da cabana, devorado pelo fino ar da noite.
Os joelhos de Rehv cederam e se derrubou no chão, aterrissando em uma pilha de ossos. Jazendo sobre as pranchas rústicas, era consciente de tudo: os músculos de suas coxas com cãibras, o comichão na ponta de seu pênis quando o prepúcio voltou para seu lugar, o tragar compulsivo causado pelo veneno de escorpião.
Enquanto a frieza da cabana se filtrava para fora, náuseas o percorreram como uma maré fétida e oleosa e seu estômago se fechou como um punho, formando um montão de “vamos daqui” que apertava sua garganta. As ânsias de vômito instintivas seguiram as ordens e abriu muito a boca, mas não saiu nada.
Sabia bem que não devia comer antes de ter um encontro.
Trez atravessou a porta tão silenciosamente que não foi até que as botas do cara estiveram frente a seu rosto que Rehv notou que seu melhor amigo estava com ele.
A voz do segurança foi amável:
— Vamos te tirar daqui.
Rehv esperou uma interrupção nas ânsias de vomito, para tratar de levantar do chão.
— Deixa... Que me vista.
O veneno de escorpião disparou a toda velocidade através de seu sistema nervoso central, interferindo com sua auto-estrada neuronal e conseqüentemente, fazendo com que arrastar seu corpo até onde estavam suas roupas envolvesse um desdobramento vergonhoso de debilidade. O problema era que o antídoto devia permanecer no carro, do contrário a princesa o teria encontrado, e mostrar uma debilidade tão substancial como essa era como entregar sua arma carregada a seu inimigo.
Evidentemente Trez perdeu a paciência com o show, porque se aproximou e recolheu o casaco.
— Só ponha isto assim poderemos te tratar.
— Vestirei-me. — era o orgulho da puta.
Trez amaldiçoou e se ajoelhou com o casaco.
— Porra, Rehv...
— Não… — um ofego selvagem o interrompeu e fez com que caísse sobre o chão, oferecendo uma rápida aproximação dos nós das pranchas de pinheiro.
Caralho, estava mau esta noite. Pior do que alguma vez tinha estado.
— Rehv, sinto muito, mas vou tomar o controle.
Trez ignorou os intentos patéticos de Rehv por rechaçar sua ajuda, e depois de envolvê-lo com a zibelina, seu amigo o levantou e o carregou para fora como uma peça quebrada de equipe.
— Não pode continuar fazendo isto. — disse Trez enquanto suas pernas longas os levavam rapidamente para o Bentley.
— Observe.
Para manter a ele e a Xhex vivos e no mundo livre, tinha que fazê-lo.
Capítulo 19
Rehv despertou no seu dormitório de seu grande rancho nas Adirondacks que utilizava como refúgio. Podia dizer onde estava pelas janelas que iam do chão ao teto, o alegre fogo que tinha em frente, e o fato de que o pé da cama tinha putti esculpidos em mogno. O que não estava claro era quantas horas tinham passado desde seu encontro com a princesa. Uma? Cem?
Do outro lado do tênue cômodo, Trez estava sentado em um sofá cor vermelho escuro, lendo à débil luz amarela de uma luminária de mesa.
Rehv pigarreou.
— Que livro é?
O segurança elevou o olhar, os olhos amendoados enfocando-se com uma acuidade da qual Rehv poderia ter prescindido.
— Está acordado.
— Que livro?
— É “O dicionário da morte das Sombras”.
— Leitura ligeira. E eu aqui pensando que fosse fã de Candace Bushnell.
— Como se sente?
— Bem. Genial. Animado como a merda. — Rehv grunhiu enquanto se impulsionava mais alto sobre os travesseiros. Apesar do casaco de zibelina, que tinha em volta do corpo nu, e das colchas, mantas e edredons de plumas que tinha em cima, seguia tão frio como o rabo de um pingüim, assim obviamente Trez lhe tinha injetado muita dopamina. Mas pelo menos a antitoxina tinha funcionado, os fôlegos e a falta de fôlego tinham desaparecido.
Trez fechou lentamente a capa do livro antigo.
— Estou me preparando, isso é tudo.
— Para entrar em sacerdócio? Pensava que toda a coisa do rei era sua especialidade.
O segurança pôs o livro na mesa baixa que tinha ao lado e se elevou em toda sua estatura. Depois de esticar todo o corpo, aproximou-se da cama.
— Quer alimento?
— Sim. Estaria bem.
— Dê-me quinze minutos.
Quando a porta se fechou atrás do macho, Rehv procurou ao seu redor e encontrou o bolso interior da zibelina. Quando tirou o telefone e o comprovou, não havia mensagens. Nenhuma mensagem de texto.
Ehlena não se aproximou, nem se pôs em contato com ele. Mas então, por que teria que fazê-lo?
Olhou fixamente o telefone e riscou o teclado com o polegar. Ansiava muitíssimo ouvir sua voz, como se escutá-la pudesse apagar tudo o que tinha acontecido nessa cabana.
Como se ela pudesse fazer desaparecer as duas décadas e meia passadas.
Rehv entrou em seus contatos e fez aparecer seu número na tela. Era provável que estivesse no trabalho, mas, se deixava uma mensagem, possivelmente o ligaria no descanso. Duvidou, mas logo pressionou enviar e pôs o telefone em sua orelha.
No instante em que ouviu o sinal de chamada, teve uma imagem vívida e vil dele tendo relações sexuais com a princesa, de seus quadris amassando, da luz da lua lançando sombras obscenas sobre o chão rústico.
Terminou a chamada com um murro rápido, sentindo como se seu corpo estivesse revestido de merda feita loção.
Deus, não havia suficientes banhos no mundo para limpá-lo o bastante para ser digno de falar com Ehlena. Nem bastante sabão, nem água sanitária, nem bucha. Enquanto a imaginava com seu antigo uniforme de enfermeira, o cabelo loiro avermelhado recolhido para trás em um pulcro coque, e seus silenciosos sapatos brancos, soube que se alguma vez a tocasse a mancharia pela vida toda.
Com o polegar intumescido, acariciou a tela plana do telefone, como se fosse sua bochecha, logo deixou que a mão caísse na cama. A vista das brilhantes veias vermelhas do braço recordou um par de coisas mais que tinha feito com a princesa.
Nunca tinha pensado que seu corpo fosse um dom especial. Era grande e musculoso, por isso era útil, e ao outro sexo gostava o que significava que era uma espécie de vantagem. E funcionava bem… Bom, exceto pelos efeitos secundários que lhe ocasionava a dopamina e a alergia ao veneno de escorpião.
Mas, realmente a quem importava?
Convexo na cama na quase escuridão, com o telefone na mão, viu mais cenas horrorosas de seu tempo com a princesa… Ela lhe mamando, ele agachando-se e fodendo-a por detrás, sua boca entre as coxas dela. Recordou o que sentia quando a lingüeta de seu pênis se travava e ambos ficavam enganchados.
Então pensou em Ehlena medindo sua pressão… E em como tinha dado um passo atrás, afastando-se dele.
Tinha razão ao ter feito isso.
Era um equívoco ligar para ela.
Com deliberado cuidado, moveu o polegar pelos botões e entrou em sua informação de contato. Não se deteve nem uma vez enquanto a apagava do telefone, e quando desapareceu, um calor inesperado lhe encheu o peito… Indicando que de acordo com lado de sua mãe, fazia o correto.
A próxima vez que fosse à clínica, pediria outra enfermeira. E, se voltasse a ver Ehlena, a deixaria em paz.
Trez entrou com uma bandeja de flocos de aveia, um pouco de chá e algumas torradas.
— Hmmm. — disse Rehv sem entusiasmo.
— Seja um menino bom e termine isso. Na próxima refeição trarei ovos com toucinho.
Quando a bandeja esteve assentada sobre suas pernas, Rehv atirou o telefone sobre a pele e levantou a colher. Bruscamente, e por nenhuma absoluta e positiva razão em especial, disse:
— Esteve apaixonado alguma vez, Trez?
— Não. — o segurança retornou a sua cadeira no rincão, o abajur curvo iluminou seu rosto bonito e escuro — Vi iAm tentar e decidi que não era para mim.
— iAm? Não me foda. Não sabia que seu irmão tinha tido uma garota.
— Não fala dela, e nunca a conheci. Mas durante um tempo se sentiu miserável do modo em que só uma fêmea pode pôr a um tipo.
Rehv fez girar o açúcar mascavo que estava polvilhado sobre a aveia.
— Acredita que alguma vez te emparelhará?
— Não. — Trez sorriu, e seus perfeitos dentes brancos cintilaram — Por que as perguntas?
Rehv levou a colher à boca e comeu.
— Por nenhuma razão.
— Sim. Certo.
— Estes flocos de aveia são fantásticos.
— Você odeia os flocos de aveia.
Rehv riu um pouco e seguiu comendo para sossegar-se, pensando que o tema do amor não era de sua incumbência. Mas o trabalho, seguro como o inferno que sim o era.
— Aconteceu algo nos clubes? — perguntou.
— Tudo vai como a seda.
— Bem.
Rehv despachou lentamente a Quaker Oats, perguntando-se por que, se tudo ia perfeito e de primeira em Caldwell, tinha uma sensação de desgosto no intestino.
Provavelmente, pensou, era a aveia.
— Disse a Xhex que estou bem, verdade?
— Sim. — disse Trez, levantando o livro que tinha estado lendo — Menti.
Xhex estava sentada atrás de seu escritório e olhava fixamente a seus dois melhores seguranças, Big Rob e Silent Tom. Eram humanos, mas eram preparados e com seus jeans baixos, emitiam a enganosa sensação de tranqüilidade que ela procurava.
— O que podemos fazer por você, chefe? —perguntou Big Rob.
Inclinando-se para frente em sua cadeira, tirou dois montões de notas do bolso traseiro de suas calças de couro. Mostrava-os deliberadamente, dividindo-os em duas pilhas e deslizando-os para os homens.
— Preciso que façam um trabalho extra-oficial.
Seus assentimentos foram tão rápidos como suas mãos sobre essas notas.
— O que você quiser. — disse Big Rob.
— Durante o verão, tivemos um barman que despedimos por roubar. O tipo se chamava Grady. Recordam…
— Vi essa merda a respeito de Chrissy no periódico.
— Fodido bastardo. — Silent Tom interveio pela primeira vez.
Xhex não se surpreendeu que soubessem toda a história.
— Quero que encontrem Grady. — quando Big Rob começou a fazer soar seus nódulos, ela sacudiu a cabeça — Não. O único que quero que façam é que me consigam um endereço. Se os vir, cumprimentem de longe e se afastem. Está claro? Não façam mais que lhe roçar a manga.
Ambos sorriram cruelmente.
— Nenhum problema, chefe. — murmurou Big Rob — O guardaremos para você.
— O DPC o busca também.
— Sem dúvida que sim.
— Não queremos que a polícia saiba o que estão fazendo.
— Nenhum problema.
— Ocuparei-me de cobrir seus turnos. Quanto mais rápido o encontrarem, mais feliz estarei.
Big Rob olhou ao Silent Tom. Após um momento, tiraram as notas que lhes tinha dado dos bolsos e as deslizaram pela mesa.
— Faremos o correto pela Chrissy, chefe. Não se preocupe.
— Com vocês nisto, não o farei.
A porta se fechou atrás deles, e Xhex passou as palmas acima e abaixo pelas coxas, forçando aos cilícios que tinha nas pernas a entrar mais profundamente em sua pele. Estava ardendo pela necessidade de sair ela mesma, mas com Rehv no norte e os entendimentos que fariam esta noite, não podia deixar o clube. E o que era igualmente importante, quanto ao Grady não ia poder fazer os preparativos ela mesma. Esse detetive da homicídios a estava vigiando.
Transladando os olhos ao telefone, quis amaldiçoar. Trez a tinha ligado mais cedo para dizer que Rehv tinha terminado o negócio com a princesa, e o som da voz do segurança tinha indicado o que suas palavras não diziam: o corpo de Rehv não ia agüentar muita tortura mais.
Outra situação mais que se via forçada a agüentar, sentada sobre seu rabo, esperando.
A impotência não era um estado com o qual se sentisse cômoda, mas quando se tratava da princesa, estava acostumada a sentir-se impotente. Fazia vinte anos, quando as escolhas de Xhex os tinham posto nesta situação, Rehv lhe havia dito que se ocuparia das coisas com uma condição: deixaria dirigi-lo a sua maneira sem intervir. Tinha feito jurar que permaneceria afastada, e embora a matasse, tinha cumprido a promessa e vivia com a realidade de que Rehv se viu forçado a cair nas mãos dessa puta por causa dela.
Maldita fora desejava que perdesse a paciência e arremetesse contra ela. Só uma vez. Em troca, seguia agüentando, pagando com seu corpo a dívida que ela tinha gerado.
Ela o tinha convertido em uma puta.
Xhex deixou o escritório porque não podia suportar passar mais tempo consigo mesma, e quando esteve no clube rezou para que houvesse uma escaramuça na parte do povo, como um triângulo amoroso explodindo, onde algum tipo esbofeteasse a outro por uma garota com lábios de peixe e tetas de plástico. Ou possivelmente um encontro no banheiro de homens da sobreloja se fosse ao traste. Merda! Estava tão desesperada que inclusive agarraria a um bêbado de saco cheio com seu patrão ou algum casal em um rincão escuro que tivessem levado o manuseio cruzando a linha até a penetração.
Precisava golpear algo e sua melhor oportunidade era com as massas. Se só houvesse…
Era sua sorte. Todos estavam se comportando.
Miseráveis estúpidos.
Finalmente, terminou indo à seção VIP porque estava deixando os seguranças da pista dementes ao ficar rodando por ali em busca de briga. E, além disso, tinha que usar os músculos em um trato de maior importância.
Ao atravessar a corda de veludo, seus olhos foram diretos à mesa da Irmandade. John Matthew e seus companheiros não estavam ali, mas bom, sendo tão cedo, estariam fora caçando lessers. Os engolidores de Corona viriam mais tarde, se é que o fariam.
Não lhe importava se John viria.
Nada absolutamente.
Aproximando-se de iAm, disse:
— Preparados?
O segurança assentiu.
— Rally tem o produto preparado. Os compradores devem estar aqui em vinte minutos.
— Bem.
Essa noite levariam a cabo dois entendimentos de seis cifras por coca, e com o Rehv fora de combate e Trez acompanhando-o no norte, ela e iAm estavam no comando das transações. Embora o dinheiro fosse trocar de mãos no escritório, o produto ia ser carregado nos carros, no beco traseiro, porque quatro quilogramas de pó sul-americano puro não era o tipo de coisas que ela quisesse que estivesse dando voltas pelo clube. Merda, o fato de que os compradores fossem chegar com maletas contendo dinheiro em efetivo era bastante problemático.
Xhex estava na porta do escritório quando vislumbrou a Marie-Terese insinuando-se a um homem com terno. O homem a olhava com admiração e maravilha, como se fosse o equivalente feminino de um carro esportivo que alguém acabava de lhe dar as chaves.
A luz cintilou na aliança de casamento que levava quando estendeu a mão para a carteira.
Marie-Terese sacudiu a cabeça e levantou sua elegante mão para detê-lo, logo pôs ao absorto homem de pé e precedeu o caminho por volta dos banheiros particulares da parte de trás, onde o dinheiro trocaria de mão.
Xhex girou e se encontrou frente à mesa da Irmandade.
Enquanto olhava o lugar onde John Matthew estava acostumado a sentar-se habitualmente, pensou no John[40] mais recente de Marie-Terese. Xhex estava disposta a apostar que o HDP que estava a ponto de soltar quinhentos dólares para ser mamado ou fodido ou possivelmente mil por ambos, não olhava a sua mulher com esse tipo de excitação e luxúria. Era a fantasia. Ele não sabia nada a respeito de Marie-Terese, não tinha nem idéia de que fazia dois anos seu filho tinha sido seqüestrado por seu ex-marido e que ela estava trabalhando para pagar o custo da volta do menino. Para ele, ela era um magnífico pedaço de carne, algo com o que brincar e ser deixado atrás. Prolixo. Limpo.
Todos os John eram assim.
E também o era o John de Xhex. Ela era uma fantasia para ele. Nada mais. Uma mentira erótica que evocava para fazer uma punheta… O que realmente não era algo do que o culpasse, porque ela estava fazendo o mesmo com ele. E a ironia era que ele era um dos melhores amantes que jamais tinha tido, embora isso fosse porque podia fazer algo que quisesse durante tanto tempo como necessitasse para se saciar, e nunca havia queixa, reservas nem pedidos.
Prolixo. Limpo. A voz de iAm saiu do auricular.
— Os compradores acabam de entrar.
— Perfeito. Vamos fazê-lo.
Terminaria com os dois entendimentos, e logo tinha seu próprio trabalho particular que fazer. Agora, isso era algo que valia a pena ansiar. Ao final da noite, ia conseguir exatamente a classe de liberação que necessitava.
Do outro lado da cidade, em um tranqüilo beco sem saída em uma vizinhança segura, Ehlena estava estacionada diante de uma modesta casa colonial, sem intenção de ir a nenhum lugar em um futuro próximo.
A chave não entrava no painel de acesso da ambulância.
Tendo terminado com o que deveria ter sido a parte mais difícil da viagem, tendo entregado Stephan a salvo aos braços de seus familiares de sangue, acabava surpreendente que colocar a maldita chave no condenado contato fosse mais difícil.
— Vamos… — Ehlena se concentrou em estabilizar sua mão. E acabou olhando realmente muito de perto a forma em que o pedaço de metal saltava ao redor do buraco ao que pertencia.
Recostou-se no assento com uma maldição, sabendo que estava aumentando a desdita da casa, que a ambulância estacionada ali fora era simplesmente outra declaração expressa a gritos da tragédia.
Como se o corpo do amado filho da família não fosse suficiente.
Girou a cabeça e olhou fixamente as janelas coloniais. Havia sombras deslocando-se do outro lado das cortinas de gaze.
Depois de entrar de ré pelo caminho de entrada, Alix tinha ingressado na casa e ela tinha esperado na noite fria. Um momento depois, a porta da garagem tinha rodado para cima e Alix tinha saído com um macho mais velho que se parecia muito a Stephan. Ela tinha feito uma reverência e tinha lhe estreitado a mão, e logo tinha aberto a porta traseira da ambulância. O macho teve que por uma mão sobre a boca enquanto ela e Alix tiravam a maca.
— Meu filho… — tinha gemido.
Nunca esqueceria o som dessa voz. Oco. Sem esperança. Com o coração quebrado.
O pai de Stephan e Alix o levaram para a casa, e assim como no necrotério, um momento depois se escutou um pranto. Esta vez, entretanto, tinha sido o lamento mais agudo de uma fêmea. A mãe de Stephan.
Alix tinha retornado no momento em que Ehlena estava empurrando a maca para o interior da ambulância, e estava piscando rapidamente, como se estivesse enfrentando um forte vento. Depois de apresentar seus respeitos e despedir-se, subiu atrás do volante e… Não tinha podido arrancar o maldito veículo.
Do outro lado das cortinas de gaze, viu duas silhuetas fundirem-se em um abraço. E logo foram três. E logo vieram mais.
Sem nenhuma razão aparente, pensou nas janelas da casa que alugava para ela e seu pai, todas cobertas com papel alumínio, seladas para deixar o mundo de fora.
Quem estaria junto a seu corpo envolto quando sua vida acabasse? Seu pai sabia quem era ela a maior parte do tempo, mas raramente estava conectado a ela. O pessoal da clínica era muito amável, mas isso era trabalho, não pessoal. Pagava a Lusie para vir.
Quem cuidaria de seu pai?
Sempre tinha assumido que ele se iria primeiro, mas então, sem dúvida a família de Stephan tinha pensado o mesmo.
Ehlena afastou o olhar dos enfermos e fixou no pára-brisa dianteiro da ambulância.
A vida era muito curta, por muito que vivesse. Não acreditava que alguém estivesse preparado, quando chegava seu turno, para deixar amigos, familiares e as coisas que os faziam felizes, ainda que tivessem quinhentos anos, como seu pai, ou cinqüenta, como Stephan.
O tempo era uma fonte interminável de dias e noites como a galáxia era grande.
Fez com que se perguntasse: Que demônios estava fazendo com o tempo que tinha? Seu trabalho lhe dava um propósito, certo, e cuidava de seu pai, o que era o que se fazia pela família. Mas aonde ia? A lugar nenhum. E não se referia a estar sentada nesta ambulância com as mãos tão trementes que não podia colocar uma chave na ignição.
O assunto era que, não é que queria mudar tudo. Só queria algo para si mesma, algo que a fizesse saber que estava viva.
Os profundos olhos cor ametista de Rehvenge lhe vieram à mente como saídos de nenhuma parte, e como uma câmera que vai se afastando, viu seu rosto esculpido, seu penteado moicano, sua roupa fina e sua bengala.
Esta vez, quando se esticou para frente com a chave, a coisa entrou firmemente e o motor diesel despertou com um grunhido. Quando a calefação soltou uma rajada de ar frio, desligou o ventilador, colocou a alavanca em “avanço” e saiu da casa, do beco sem saída e da vizinhança.
Que já não parecia tranqüilo.
Atrás do volante, ia conduzindo e ao mesmo tempo estava ausente, cativada pela imagem de um macho que não podia ter, mas que nesse momento precisava com loucura.
Seus sentimentos eram inconvenientes por muitos motivos. Pelo amor de Deus, eram uma traição a Stephan, apesar de que, na realidade, não o tinha conhecido. Simplesmente parecia uma falta de respeito estar desejando a outro macho enquanto seu corpo era chorado por seu sangue.
Salvo que teria desejado ao Rehvenge de todos os modos.
— Maldito seja.
A clínica estava do outro lado do rio, e a alegrava, porque nesse momento não poderia encarar o trabalho. Estava muito doída, triste e zangada consigo mesma.
O que precisava era…
Starbucks. Oh, sim, isso era exatamente o que necessitava.
A uns oito quilômetros dali, em um lugar ao redor do qual havia um supermercado Hannaford, uma floricultura, uma boutique do LensCrafters, e uma loja Blockbuster, encontrou um Starbucks que permanecia aberto até as duas da manhã. Levou a ambulância a um lado e saiu.
Quando deixou a clínica com o Alix e Stephan, não pensou em trazer o casaco, assim aconchegou sua bolsa, correu pela calçada e atravessou a porta a toda pressa. No interior, o lugar era como a maioria deles: nós de madeira vermelhos, chão de ladrilhos cinza, muitas janelas, cadeiras amaciadas e pequenas mesas. No mostrador havia muffins a venda e uma vitrine de vidro com quadradinhos de bolacha de limão, brownies e pão-doce e dois humanos próximos aos vinte dirigiam as máquinas de café. O ar cheirava a avelã, café e chocolate, e esse aroma apagou de seu nariz o persistente aroma herbal das mortalhas.
— Posso ajudá-la? — perguntou o menino mais alto.
— Um Latte comprido, com espuma, sem creme. Para levar.
O macho humano sorriu e se afastou. Tinha uma barba escura recortada e um brinco no nariz, sua camiseta estava salpicada de gráficos que soletravam as palavras COMEDOR DE TOMATE dentro de gotas do que poderia ter sido sangue, ou dado o nome da banda, ketchup.
— Gostaria de algo mais? Os pães-doces de canela são espetaculares.
— Não, obrigado.
Enquanto se encarregava de seu pedido não afastou a vista dela, e para evitar ter que tratar com sua atenção, procurou na bolsa e checou seu telefone no caso de que Lusie…
CHAMADA PERDIDA. Ver agora?
Pressionou o sim, rezando para que não se tratasse de seu pai…
Apareceu o número de Rehvenge, embora não seu nome, porque não o tinha posto no telefone. Olhou fixamente os dígitos.
Deus! Era como se lhe tivesse lido a mente.
— Seu latte! Olá?
— Sinto muito. — guardou o telefone, pegou o que o homem estendia e agradeceu.
— Dupla taça como o desejava. As asas também.
— Obrigado.
— Ouça, trabalha em um dos hospitais por aqui? — perguntou, observando seu uniforme.
— Clínica particular. Obrigada outra vez.
Saiu rapidamente e não perdeu tempo em entrar na ambulância. Quando esteve novamente atrás do volante, travou as fechaduras das portas, arrancou o motor e ligou a calefação imediatamente, porque o ar que saía ainda estava morno.
O latte estava realmente bom. Super quente. O sabor perfeito.
Tirou o telefone outra vez, foi à lista de chamadas recebidas e escolheu o número de Rehvenge.
Respirou fundo e tomou um comprido trago do latte.
E pressionou enviar.
O código de área do destino era o 518. Quem teria dito?