Biblio VT
— O que está fazendo? — pergunto quando meu pai entra no estacionamento de uma loja de conveniência, a pouco mais de um quilômetro de onde minha mãe e eu estamos morando agora. Minha voz soa meio desafinada depois de passar cinco horas de viagem sem falar. Eu estava com medo de que, se dissesse alguma coisa, tudo dentro de mim transbordaria. Minha raiva. Minha mágoa. Minha decepção com o homem que costumava ser meu super-herói.
— Preciso abastecer o carro e ir ao banheiro — diz ele.
— Ir ao banheiro? Quer dizer que você não pode nem entrar para ver minha mãe quando me deixar em casa? — Sinto o coração apertado como se uma mão gigante o esmagasse.
Ele me olha nos olhos, ignora minhas perguntas e diz apenas:
— Você quer alguma coisa?
— Sim, minha vida de volta! — Saio do carro e bato a porta com tanta força que o barulho de metal contra metal reverbera no ar abafado do Texas. Arrasto os pés pelo estacionamento, enquanto fito minhas sandálias brancas devorando a calçada e tento esconder o brilho das lágrimas nos meus olhos.
— Chloe! — meu pai me chama. Eu ando mais rápido.
Com os olhos ainda colados no chão, abro a porta, entro com tudo dentro da loja e dou um encontrão em alguém, esmagando meus peitos contra o peito da pessoa.
— Merda! — rosna uma voz grave.
Um copo de isopor bate no chão e uma bebida vermelho-sangue explode nas minhas sandálias brancas. O copo vira, provocando uma hemorragia no piso de ladrilhos brancos.
Engulo o nó na garganta e dou um passo para trás, afastando meu sutiã tamanho P do tórax de um sujeito.
— Desculpe — ele murmura, embora a culpa seja minha.
Eu me forço a olhar para ele e vejo primeiro o peito largo, depois os olhos verdes e em seguida o cabelo preto-azeviche caído na testa. Ah, droga! Eu não podia ter trombado com algum velhinho de bengala?
Volto a fitar os olhos brilhantes do desconhecido e vejo uma mudança neles. Não estão mais com uma expressão de quem se desculpa. Agora parecem chocados e então... zangados.
Eu deveria dizer algo do tipo, Eu é que tenho que me desculpar, mas o nó na minha garganta volta com força total.
— Merda. — A palavra volta a escapar, agora com uma cara feia.
Concordo, tudo isso é uma merda!
Ouço meu pai chamar meu nome novamente, do lado de fora da loja.
Minha garganta fica mais apertada e as lágrimas ardem nos meus olhos. Com vergonha de chorar na frente de um estranho, arranco minhas sandálias e disparo na direção de uma geladeira cheia de refrigerantes.
Abro a porta de vidro e estico o pescoço para sentir o ar frio, precisando muito esfriar a cabeça. Enxugo algumas lágrimas rebeldes nas bochechas, depois sinto alguém ao meu lado. Meu pai não vai deixar isso passar em branco.
— Apenas admita que você estragou tudo! — eu digo, depois olho para o lado e sou engolida por aqueles mesmos olhos verde-claros zangados de um minuto atrás. — Pensei que você fosse... Foi mal... — balbucio, sabendo que é tarde para um pedido de desculpas. O olhar dele é inquietante.
O garoto continua a me encarar. Um olhar que não faz a mínima questão de esconder a antipatia. Como se a irritação dele não fosse apenas pela raspadinha derramada.
— Eu pago a sua bebida. — Ele nem pisca, então acrescento: — Me desculpe.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta fica sem resposta.
— O quê? Eu conheço você? — Sei que fui rude, mas, gato ou não, o cara está me deixando assustada.
Os olhos dele brilham de raiva.
— O que você quer? — Não entendo por que há um tom de acusação na voz dele.
— Como assim?
— Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Ele ainda está me encarando. Percebo que estou me sentindo intimidada com aquele olhar.
— Eu não sou... Você deve estar me confundindo com outra pessoa. — Balanço a cabeça, sem saber se o cara é tão louco quanto sexy. — Não sei do que você está falando. Mas já me desculpei. — Pego uma lata de bebida e, descalça, com as sandálias gosmentas na mão, ando rápido para a entrada da loja.
Meu pai entra, carrancudo.
— Cuidado! — diz a moça do caixa ao meu pai, enquanto limpa o chão sujo de raspadinha em frente à porta.
— Desculpe — murmuro para a moça e aponto para o meu pai. — Ele vai pagar meu refrigerante! E essa raspadinha aí no chão.
Disparo até o carro, entro e seguro a lata fria de refrigerante contra a testa. Os fios de cabelo na minha nuca começam a ficar arrepiados. Olho em volta e o gato esquisitão está do lado de fora da loja, me encarando novamente.
Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
É isso aí, o cara não bate bem. Desvio o olhar para fugir da vigilância dele. Meu pai volta para o carro. Ele não dá partida, fica ali parado, só me olhando.
— Você sabe que isso não é fácil para mim também.
— Ok. — Então, por que você saiu de casa?
Ele liga o carro, mas, antes de partirmos, olho em volta novamente e vejo o garoto de cabelos pretos parado no estacionamento, escrevendo algo na palma da mão.
Engano meu ou ele está anotando o número da placa do meu pai? Esse cara é muito doido! Eu quase digo algo para o meu pai, mas me lembro de que estou chateada com ele.
Meu pai acelera. Fico atenta ao espelho retrovisor. O cara gostosão fica ali, com os olhos colados no carro do meu pai, e eu também não tiro os olhos dele até que não passe de um pontinho preto no retrovisor.
— Sei que é difícil — diz meu pai. — Penso em você todo dia.
Eu balanço a cabeça, como se entendesse, mas não falo nada.
Minutos depois, meu pai encosta o carro na frente da nossa casa. Ou melhor, da casa onde moramos minha mãe e eu. Meu pai não mora mais conosco.
— Eu te ligo amanhã para ver como foi o seu primeiro dia de aula.
Meu estômago se contrai como um tatu-bola com o lembrete de que vou começar meu último ano do ensino médio numa escola nova. Olho para a casa velha no bairro antigo. A casa que um dia pertenceu à minha avó materna e que minha mãe alugou para um casal de idosos nos últimos anos. Agora moramos nela. Uma casa que cheira a gente velha... e a tristeza.
— Ela está em casa? — pergunta meu pai.
À luz do entardecer, nossa casa está às escuras. Uma luz dourada se infiltra por debaixo da porta da casa ao lado, onde mora Lindsey; ela foi a primeira pessoa da minha idade que conheci na cidade.
— Mamãe provavelmente está descansando — respondo.
Ficamos calados por um momento.
— Como ela está?
Achei que não ia perguntar... Olho para eu pai, enquanto ele segura o volante com força e analisa a casa.
— Bem. — Abro a porta do carro, sem querer me despedir. Dói demais.
— Ei! — ele sorri. — Pode me dar pelo menos um abraço?
Eu não quero dar, mas por algum motivo (porque sob toda aquela raiva, eu ainda o amo) eu me inclino sobre o console entre os bancos e o abraço. Ele não tem mais nem o cheiro do meu pai. Está usando uma colônia que Darlene provavelmente comprou para ele. Lágrimas ardem nos meus olhos.
— Tchau. — Tiro do carro um pé melado de raspadinha.
Antes de eu levantar o traseiro do banco, ele diz:
— Ela vai voltar logo a trabalhar?
Eu me viro para ele.
— Foi por isso que você perguntou como ela está? Por causa do dinheiro?
— Não. — Mas a mentira é tão clara na voz dele que fica pairando no ar.
Quem é esse homem? Ele tinge os fios grisalhos nas têmporas. Agora usa o cabelo espetado e está vestindo uma camiseta com o nome de uma banda que ele nem sabia que existia até Darlene aparecer na vida dele.
Antes que eu possa me conter, as palavras se derramam da minha boca:
— Por quê? Sua namorada está precisando de mais um par de sapatos de grife?
— Não, Chloe — ele diz num tom severo. — Você está falando como a sua mãe.
A mágoa agora aperta a minha garganta.
— Ah, pelo amor de Deus... Se eu falasse como a minha mãe, diria: “A putinha está precisando de mais um par de sapatos de grife?”. — Eu me viro outra vez para a porta do carro.
Ele pega meu braço.
— Olhe aqui, mocinha, não posso esperar que você goste dela assim como eu, mas gostaria que pelo menos a tratasse com respeito.
— Respeito? A pessoa precisa merecer respeito, pai! Se eu usasse as roupas que ela veste, você me mataria. Na verdade, nem você eu respeito mais! Você arruinou a minha vida. Você ferrou a vida da mamãe. E agora está transando com alguém dezoito anos mais jovem que você. — Saio do carro e, a meio caminho da soleira de casa, ouço a porta do carro se abrir e bater.
— Chloe. Suas coisas. — Ele parece zangado, mas não mais do que eu, porque, além de raiva, sinto mágoa.
Se eu não estivesse com receio de que ele me seguisse até em casa, todo ofendido, e começasse uma discussão com a minha mãe, eu não voltaria para pegar nada. Mas não quero mais ouvi-los discutindo. E não sei se minha mãe também iria aguentar. Não tenho opção a não ser fazer a coisa certa. É péssimo quando você é a única pessoa na família que se comporta como um adulto.
Eu me viro, seco as lágrimas bruscamente e me volto para o meio-fio.
Meu pai está de pé ao lado do carro, com uma mão segura a minha mochila e, com a outra, uma enorme sacola com as roupas novas que comprou para eu usar na escola. Ótimo. Agora me sinto a filha desalmada e ingrata.
Quando me aproximo, murmuro:
— Obrigada pelas roupas.
— Por que está tão brava comigo? — ele pergunta.
Tantas razões... Qual delas eu escolho?
— Você deixou Darlene transformar meu quarto numa academia de ginástica.
Ele balança a cabeça.
— Nós tiramos suas coisas e colocamos no outro quarto.
— Mas aquele quarto era meu, pai.
— É por isso que você está tão brava ou será porque... ? — Ele faz uma pausa. — Não é culpa minha que sua mãe tenha ficado...
— Continue pensando assim — eu digo. — Um dia desses, você pode até começar a acreditar!
Com as mãos ocupadas e o peito pesado, deixo meu super-herói e meu coração partido abandonados na calçada. Minhas lágrimas estão caindo rápidas e quentes quando fecho a porta da frente atrás de mim.
Docinho, um vira-lata amarelo de porte médio, me cumprimenta com um ganido e o rabo abanando. Eu o ignoro. Largo a mochila, a sacola de compras e vou para o banheiro. Félix, meu gato amarelo tigrado, vem correndo e entra comigo.
Tento fechar a porta de um jeito normal, em vez de batê-la com raiva. Se minha mãe me vir assim, vai ficar chateada. Pior ainda, isso alimentará sua raiva.
— Chloe? — minha mãe chama. — É você?
— Sim. Estou no banheiro. — Espero que minha voz não revele quanto me sinto arrasada.
Eu me sento no vaso sanitário, pressiono as costas das mãos contra a testa e tento respirar.
Os passos da minha mãe fazem o velho assoalho de madeira ranger. A voz dela soa atrás da porta.
— Está tudo bem, querida?
Félix está ronronando e se esfregando na minha perna.
— Sim. Mas meu estômago nem tanto... Acho que o bolo de carne que comi na casa do papai não caiu bem.
— Darlene é quem estava cozinhando? — O tom de voz dela denuncia o ódio reprimido.
Eu cerro os dentes.
— Sim.
— Por favor, diga que seu pai repetiu o prato.
Fecho os olhos, quando o que realmente quero fazer é gritar: Pare com isso! Eu entendo por que minha mãe está tão furiosa. Entendo que meu pai é um filho da mãe. Entendo que ele se recusa a assumir a culpa e que isso só piora as coisas. Entendo o que ela passou. Entendo tudo isso. Mas ela tem ideia do quanto me dói ouvi-la falar tão mal de alguém que eu ainda amo?
— Vou me sentar um pouco lá fora, no quintal — diz ela. — Quando sair daí, vá se sentar lá comigo.
— Ok — respondo.
Os passos da minha mãe se afastam.
Fico sentada no vaso e tento não pensar em tudo que me magoa. Em vez disso, faço carinho em Félix. Seus olhos, tão verdes, me levam de volta ao garoto da loja. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Que diabos ele quis dizer com isso?
Saio do banheiro, mas, antes de abrir a porta dos fundos, olho pela janela e vejo minha mãe no gramado, reclinada numa cadeira de armar. O sol está se pondo e ela está banhada numa luz dourada. Os olhos estão fechados e o peito se move para cima e para baixo, respirando lentamente. Está tão magra... magra demais.
O lenço azul desbotado escorregou da cabeça dela. Tudo que eu vejo é sua cabeça sem cabelos. E — pronto! Estou com raiva do meu pai outra vez.
Talvez ele esteja certo. Talvez eu o culpe pelo câncer da minha mãe.
Não adianta nem eu me lembrar de que, três semanas atrás, o médico a considerou curada. De fato, o câncer de mama foi detectado tão cedo que os médicos insistiram em dizer que deveríamos considerá-lo só um pequeno obstáculo no caminho.
Mas eu odeio os solavancos que os obstáculos podem provocar...
Meu olhar é atraído para a cabeça dela novamente. O médico afirmou que as breves sessões de quimioterapia eram só para ter certeza de que não restaria nenhuma célula cancerígena. Mas até eu ver o cabelo da minha mãe voltando a crescer e as costelas protuberantes sumindo, não vou parar de ter medo de perdê-la.
Quando ela foi diagnosticada, pensei que meu pai voltaria, que ele perceberia que ainda a amava. O mais triste é que acho que minha mãe pensou o mesmo. Mas isso não aconteceu.
Minha mãe abre os olhos, ajusta o lenço na cabeça e fica de pé com os braços abertos.
— Venha cá. Senti sua falta.
— Só fiquei três dias fora — digo. Mas é a primeira vez que durmo fora de casa desde que minha mãe adoeceu. E senti falta dela também.
Caímos nos braços uma da outra. Os abraços dela começaram a ficar mais longos desde que se separou do meu pai. Os meus ficaram mais apertados desde que a temida doença de minha mãe marcou nossas vidas.
Eu retribuo o abraço dela. Docinho está aos meus pés, a cauda abanando e batendo na minha perna.
— Ela redecorou a casa? — O tom de voz dela é casual, mas ainda carregado de animosidade.
Apenas o meu quarto. Mudando de assunto, eu pergunto:
— O que você fez enquanto estive fora?
— Li dois livros. — Ela sorri.
— Você não pegou seu manuscrito e tentou escrever?
Antes da separação, minha mãe passava todo o seu tempo livre trabalhando em seu livro. Ela chamava esse hobbie de “minha paixão”. Suponho que meu pai tenha exterminado essa paixão também.
— Não. Não tive vontade — ela diz. — Ah, olhe! — Ela tira a bandana. — Já está nascendo uma leve penugem na minha cabeça. Ouvi dizer que algumas mulheres gastam uma fortuna para ficar com esse visual.
Eu solto uma risada, não porque seja engraçado, mas porque ela está rindo. Eu não me lembro da última vez que minha mãe riu. Será que as coisas estão melhorando?
Ela vai até a cadeira de balanço dupla e se senta.
— Sente-se.
A cadeira afunda sob o nosso peso. O ombro de minha mãe esbarra no meu e ela olha fixamente para mim. Será que percebeu que meus olhos estão inchados de tanto chorar?
— O que há de errado, querida?
A preocupação em sua voz, o amor em seus olhos, tudo isso me faz lembrar de quando eu podia contar com ela para desabafar meus problemas. Quando eu não pesava cada palavra para garantir que não iria magoá-la. Porque ela já está sofrendo demais.
— Nada — eu digo.
Ela contrai os lábios.
— Seu pai deixou você chateada?
— Não — minto.
O olhar dela se demora em mim como se ela soubesse que não estou sendo sincera. Eu invento alguma coisa:
— É Alex.
— Você o viu enquanto estava na casa do seu pai?
Outro nó se forma na minha garganta. Acho que esse assunto também é delicado.
— Ele veio me ver e conversamos no carro.
— E então...?
— Não aconteceu nada. — Guardo essa dor para outra hora. — Eu disse a você que ele está saindo com outra pessoa.
— Sinto muito, querida. Você me odeia por tê-la feito se mudar de cidade?
Gente, não dá para odiar alguém que tem câncer! Mas e agora que o câncer está curado...? É tentador, mas não posso. Assim como não posso odiar meu pai.
— Eu não te odeio, mãe.
— Mas você odeia morar aqui? — A culpa acrescenta uma nota triste à voz dela. É a primeira vez que ela considera meus sentimentos sobre isso. Eu tentei ao máximo convencê-la a não se mudar, cheguei a implorar, mas ela não fez concessões. Então eu fiz. Fiz um monte de concessões.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Só é difícil.
Meu celular toca, indicando a chegada de uma mensagem. Não quero olhar agora, porque acho que é meu pai mandando uma mensagem para pedir desculpas e minha mãe pode ver, então vou ter que explicar. Ele está arrependido, não está? Quero acreditar que ele tenha percebido que dar meu quarto a Darlene foi um erro.
— Quem é? — pergunta minha mãe.
— Não sei. — O celular permanece no meu bolso.
Ele toca novamente. Merda!
— Você pode olhar para ver quem é... — diz minha mãe.
Eu tiro o celular do bolso e verifico as mensagens. Não é meu pai. E isso também me magoa.
— É Lindsey. — Eu leio a mensagem dela. Apareça quando puder.
— Ela ligou antes para ver se você estava em casa. Por que não vai vê-la? Vou preparar o jantar.
— Vou apenas mandar uma mensagem para ela — digo, sabendo que Lindsey vai perguntar sobre a minha viagem e eu não a conheço bem o suficiente para despejar tudo em cima dela.
— Ok. — Minha mãe dá um tapinha no meu braço. — O que você quer jantar?
— Pizza. — Estou morrendo de fome. Eu mal toquei no almoço na casa do meu pai.
— Pizza? Com o estômago revirado desse jeito? — diz minha mãe. — Que tal sopa de tomate e queijo grelhado?
Eu odeio sopa de tomate. É comida de hospital. Comida de quem tem câncer. Nós comemos isso quase todas as noites durante a quimioterapia. Então, mais uma vez, suponho que seja isso que eu ganhe por mentir.
— Claro!
Depois de um prato de sopa, um sanduíche e dois episódios de uma série, dou um abraço de boa-noite na minha mãe e vou para a cama. Docinho e Félix me seguem quando entro no meu quarto. Ou melhor, o quarto em que durmo. Meu quarto não existe mais.
Pego o celular para ver se alguma das minhas antigas amigas, ou talvez Alex, me mandou uma mensagem. Nada exceto outra mensagem de Lindsey, me lembrando de avisá-la quando estiver saindo para a escola na manhã seguinte.
Eu desabo na minha cama. Félix salta para cima do colchão, se aconchega ao meu lado e começa a ronronar. Docinho faz o mesmo e fica aos meus pés. Com o celular ainda na mão, deslizo a tela para as selfies que tirei de mim, Kara e Sandy neste final de semana. Nós estamos sorrindo, mas não é um sorriso sincero, natural. Parece que nós três estamos só fazendo pose. Como se estivéssemos fingindo alguma coisa. Fingindo um sorriso. Fingindo amizade.
Continuo passando as fotos com o dedo até chegar às mais antigas, com Kara e Sandy. Nós não estamos posando ou fingindo. Estamos nos divertindo. Isso está claro na nossa expressão, nos nossos sorrisos verdadeiros.
Eu continuo olhando as fotos até encontrar uma só minha e de Alex. Ele está beijando minha bochecha. Seus olhos azuis não aparecem na foto, e eu posso dizer que ele está rindo. Lembro-me de quando foi tirada. Na primeira noite em que dormimos juntos. Lágrimas enchem meus olhos e meu dedo desliza mais rapidamente. Imagens, instantâneos da minha vida agora não passam de borrões coloridos voando pela tela do meu celular.
Será que, na realidade, é apenas disso que se trata a vida? Borrões coloridos? Uma colagem de momentos efêmeros, em diferentes tons e matizes de emoção? Momentos em que você está feliz, triste, com raiva, com medo, e aqueles em que você está apenas fingindo.
Jogo o celular nos pés da cama e olho para o ventilador de teto girando, enquanto minhas emoções parecem fazer o mesmo. Meus olhos ficam pesados e então — pronto! — não estou mais olhando para o ventilador. Estou presa numa lembrança quase tão antiga quanto eu.
Estou sentada num sofá marrom. Meus pés, dentro de sapatos pretos de fivela, balançando bem acima de um tapete sujo. Estou usando um vestido de princesa com babados rosa, mas não sou uma princesa feliz. Soluços profundos e sinceros, meus soluços, ecoam ao meu redor. Eu me sinto um peixe fora d’água. Não consigo respirar.
Sento-me tão rápido que Félix pula da cama.
É a única lembrança que tenho antes de me tornar Chloe Holden. Alguns meses antes do meu terceiro aniversário. Antes de eu ser adotada.
Ultimamente, essa lembrança tem me ocorrido. Me assombrando, de certa forma. Mas eu sei por quê. É a sensação. A sensação de ser arrancada do meu mundo e colocada em outro lugar.
Não que isso não tenha sido bom. Naquela época, tive muita sorte em ser adotada, e por pais perfeitos. Ganhei uma mãe, um pai, tenho um gato chamado Félix e, ainda por cima, adotamos um cachorro chamado Docinho. Morávamos numa casa de tijolinhos brancos de três quartos, onde sempre havia risadas. E amor. Eu tinha amigos com quem cresci. Um namorado a quem entreguei a minha virgindade.
Eu tinha uma vida. Eu era feliz. Meus sorrisos eram de verdade nas fotos.
Aí meu pai passou a trabalhar até tarde.
Começaram as brigas dos meus pais.
O caso do meu pai.
A depressão da minha mãe.
O divórcio.
O câncer.
E depois a mudança da cidade de El Paso para Joyful, no Texas. Que, a propósito, de alegre não tem nada... [-11
E aqui estou eu. Arrancada do meu mundo outra vez. Arrancada brutalmente.
Mas, desta vez, não estou me sentindo tão sortuda assim.
2
Tentando me convencer de que este primeiro dia de aula não vai ser tão ruim quanto imagino, corro os dedos pelo meu cabelo grosso e escuro, que passei meia hora alisando. Depois de dar uma última olhada no espelho da penteadeira, envio uma mensagem para Lindsey e saio do quarto apressada.
Minha mãe, sumindo dentro de um roupão cor-de-rosa grande demais para ela, está sentada na mesa da cozinha, olhando para mim.
— Gosto mais da blusa vermelha.
— Eu sei. Mas prefiro esta hoje.
Dou um abraço nela. Sei que fico bem de vermelho, mas vou aparecer demais, tipo, Olhem para mim, eu sou a garota nova da escola! Então preferi usar uma blusa bege em vez disso.
— Me deseje sorte — diz ela.
— Por quê? O que você vai fazer? Vai começar a escrever de novo?
— Não. Estou procurando emprego.
Meu primeiro pensamento é que minha mãe deve esperar até o cabelo dela crescer.
— Você sente vontade de trabalhar?
— Sim. Estou cansada de não fazer nada.
— Então boa sorte. — Pego a mochila, faço um carinho rápido em Félix e em Docinho e saio, tentando não pensar em meu pai perguntando se minha mãe está trabalhando. Tentando não pensar que nunca recebi um pedido de desculpas dele.
Lindsey, vestindo jeans preto, blusa preta, unhas esmaltadas de preto e batom vermelho, está esperando ao lado da garagem. Seus cabelos loiro-claros com reflexos caem em cascata sobre os ombros. Ela parece saída de uma capa de revista.
— Caprichou no visual, hein? — eu digo.
Ela sorri.
— Meu plano é fazer Jonathon morrer de arrependimento.
Eu já ouvi tudo sobre Jonathon. A quem ela, na maioria das vezes, chama de “aquele cão sarnento traidor”. Eu o vi uma ou duas vezes quando nos mudamos. Foi só quando eles romperam o namoro que Lindsey e eu começamos a conversar. E só recentemente contei a ela sobre Alex, mas nós ainda não arranjamos um apelido perfeito para o meu ex-namorado.
Se a minha mãe não tivesse me arrastado para outra cidade do Texas, Alex e eu ainda estaríamos juntos. Não tenho certeza se poderia chamar de amor o que sentíamos, mas acho que estávamos perto disso. Quando fui embora, concordamos que iríamos manter um relacionamento a distância.
Só durou quatro semanas.
— Como foi a visita à casa do seu pai e do brinquedinho sexual dele? — ela pergunta enquanto caminhamos para o meu carro.
— Um verdadeiro inferno — digo, depois mudo de assunto. — Você já escolheu seu novo crush? — Entramos no meu Chevy Cruze branco.
— Sim, David Drake. Ele me convidou para sair no ano passado, logo depois que comecei a namorar Jonathon. Ele é engraçado, fofo e educado.
No trajeto, Lindsey fala sobre o horário das suas aulas e conta que tem três aulas com Jamie. Jamie é sua melhor amiga, que esteve fora durante o verão. Eu fico preocupada, achando que agora que a melhor amiga está de volta, Lindsey vai me deixar de lado quando mais preciso.
— Espero que a gente tenha aulas juntas — digo a Lindsey.
Quase todo mundo recebeu o horário das aulas por e-mail. Vou pegar o meu depois com a conselheira. Mas como Lindsey não faz as aulas mais puxadas, como eu, de conteúdo mais completo e aprofundado, duvido que tenhamos aulas nas mesmas classes.
Entro no estacionamento da escola e penduro no espelho retrovisor a autorização para estacionar ali. Minha mãe obrigou meu pai a pagar o plano mensal do estacionamento. Meu estômago começa a revirar ao ver pessoas que não conheço. Eu olho para Lindsey.
Ela está me olhando de um jeito estranho.
— Cara, você está nervosa mesmo!
— Um pouco, por quê?
Ela faz uma cara engraçada.
— Não sei. Achei que fosse mais peituda.
— Eu? Por quê?
— Sua mãe tem câncer. Você precisou se mudar no último ano do ensino médio e está, tipo, numa boa com tudo isso. Eu estaria surtando.
Eu digo a verdade.
— Eu estou surtando. Apenas finjo que não. — Saltamos do carro e pegamos nossas mochilas no banco de trás.
A poucos metros do meu carro, sinto pessoas olhando para mim e acenando para Lindsey. Levanto o queixo e finjo que não estou nem aí. Lindsey começa a falar sobre onde vamos nos encontrar depois das aulas e me diz para mandar uma mensagem quando eu souber os meus horários.
Estamos quase saindo do estacionamento quando ouço gritos. Paramos.
Um cara grandalhão, de cabelo castanho-claro, está rindo de outro, mais novo, com cara de ser do segundo ano. O valentão está segurando uma mochila e fazendo algumas piadas sobre a estatura do mais baixinho.
O rosto do garoto está vermelho, como se ele estivesse envergonhado e com muita raiva. Meu coração se compadece do aluno do segundo ano, que parece tão desconfortável quanto eu ali. Estou pensando em fazer alguma coisa quando outra pessoa faz. Alguém com cabelo preto- azeviche e ombros com um quilômetro de largura. Eu acho que ele é professor; então — droga! — eu o reconheço! É o cara paranoico com quem trombei na loja de conveniência.
— Pare de ser idiota! — O psicopata da loja tira a mochila da mão do garoto babaca e a joga para o garoto mais novo, que a agarra e sai correndo.
— Olha como ele corre! — diz o valentão, rindo. Mas, caramba, eu odeio valentões!
O cara estranho fala algo que não consigo ouvir. Eu chego mais perto. Lindsey se aproxima junto comigo.
O idiota explode:
— Quem diabos você pensa que é?
Lindsey se inclina.
— Isso está ficando interessante.
Eu não olho para ela. Meus olhos estão presos na cena.
— Paul é o cara que pegou a mochila do garoto — Lindsey continua, baixinho. — Ele é jogador de futebol. O outro cara é o Cash. Ele começou a estudar aqui na metade do último ano escolar. Costumava frequentar a Westwood Academy, uma escola particular para onde vão as crianças ricas. Mas há boatos de que cresceu num orfanato e é mau elemento.
— Paul é quem está agindo como um mau elemento. — Eu tento ligar o cara que está defendendo o garoto mais novo com o lunático que conheci ontem.
— Verdade. Paul é que vive praticando bullying — Lindsey admite.
Paul se aproxima de Cash. Apesar do encontro de ontem, estou torcendo por Cash. Não gosto de psicopatas, mas gosto menos ainda de valentões.
Cash não se move, mas seus ombros se alargam. Paul não parece assustado, mas ele deveria estar. Cash é uns cinco centímetros mais alto do que Paul. Mas não é a altura que o torna tão intimidador. É a linguagem corporal dele. Ele parece durão. Ainda mais durão agora do que ontem.
— Eu fiz uma pergunta! — Paul grita. — Quem você acha que é, garoto adotado?
Os ombros de Cash se alargam ainda mais.
— Sou o único aqui que não tem que pegar alguém menor do que eu para me sentir importante.
Paul se aproxima e cola o rosto no de Cash.
Cash fala alto:
— Vá embora enquanto pode. — Seu tom é ameaçador.
— Você é que vai embora! — rebate Paul.
Acho que Cash está prestes a recuar o punho para dar um soco no outro, mas ele me surpreende e diz:
— Você não vale o aborrecimento.
Ele se vira para ir embora.
Não sei se estou decepcionada por Cash não dar uma lição em Paul ou se ele tomou a atitude certa.
Cash se afasta alguns passos quando Paul avança e o empurra pelo ombro. Cash se desequilibra.
— Covarde! — Paul o acusa.
— Você é que é covarde por esperar eu virar as costas.
— Bem, agora estou na sua frente. — Paul desfere um soco.
Cash desvia para a esquerda. O punho de Paul golpeia o ar.
Todo mundo ri. Isso alimenta a fúria de Paul. Ele levanta os punhos na frente do rosto e começa a transferir o peso de um pé para o outro, como se fosse um boxeador profissional.
Cash leva os punhos até o queixo. Todos começam a gritar.
— Acaba com esse imbecil! Dá uma lição nele!
De alguma forma, sei que eles não estão torcendo por Cash. Eu não vou gostar dessa escola.
Estou achando que devemos ir embora, mas, assim como Lindsey, não consigo tirar os olhos da cena. Os dois caras se movem em círculo. Paul desfere outro soco, Cash se abaixa. Paul solta um rosnado.
Espero Cash fazer algum comentário irônico, mas ele não fala nada.
Tenho a sensação de que não quer lutar.
De repente, eles se posicionam de modo que Cash fica de frente para mim.
Aqueles olhos verdes líquidos olham para a frente e encontram os meus, castanhos. Ele congela.
É quando Paul desfere outro soco e seu punho atinge o olho de Cash. Ele quase cai, mas, com fúria, golpeia Paul — primeiro na barriga, depois no nariz. Paul cai, ofegante, e coloca a mão sobre o nariz. Sangue escorre entre os dedos dele.
— Parem! — alguém grita. Um homem corre na direção do grupo. Dessa vez é um professor de fato. A aglomeração começa a se dispersar.
— Vamos dar no pé. — Lindsey me puxa. Logo antes de eu me virar, o olhar de Cash me encontra novamente. Seu olho esquerdo já está inchando. Eu me viro e sigo Lindsey.
— Isso foi bem estranho... — Lindsey se apressa em direção à entrada da escola.
— A briga? — pergunto.
— Não. Cash olhando para você. Você o conhece?
— Não — eu digo, mas não explico mais nada.
— Bem, algo em você chamou a atenção dele.
— Eu provavelmente pareço alguém que ele conhece. — Me lembro de dizer o mesmo para ele na loja.
— Ou ele gosta de você. Todas as garotas da escola já tentaram chamar a atenção dele e não conseguiram. Você chega aqui e ele leva um soco enquanto olha para você.
— Talvez não estivesse olhando para mim — digo, sem muita convicção.
— Sei. — Lindsey revira os olhos.
Olho para a escola que aparece diante de mim e tudo que eu quero é dar meia-volta e voltar para casa.
Estou esperando na secretaria para pegar meus horários com a conselheira, a srta. Anderson, quando ouço uma voz zangada atrás de mim.
— Você quebrou o nariz dele.
Estou quase certa de que é a voz do professor que interrompeu a briga. Não viro a cabeça para ver quem é. Fico olhando para a frente, enquanto passam por mim. O professor empurra a porta giratória que leva à parte de trás da secretaria. Cash o segue.
Ele está quase passando pela porta quando se vira para trás. Seus olhos, ou melhor, “seu olho” me encontra — o outro está tão inchado que nem abre mais. O ar de acusação é evidente em sua expressão. Parece até que sou eu a responsável pelo olho roxo. Ouço o professor dizer algo e Cash se vira para a frente e o segue.
Incomodada com aquele olhar, vejo a recepcionista acenando para que eu me aproxime. Ela abre a porta e eu a sigo por um corredor, até os fundos. Viramos uma esquina e vejo o professor que interrompeu a briga. Parecendo chateado, ele conversa com uma mulher de cabelos pretos.
A recepcionista limpa a garganta.
O professor e a mulher olham para ela.
— Chloe Holden. — A recepcionista faz um gesto na minha direção.
— Leve-a até o meu escritório. — A recepcionista concorda com um ar contrariado. — Eu já estou indo.
Sou conduzida até outra sala e eu me sento na cadeira mais próxima da porta, enquanto a recepcionista dá meia-volta e sai. Posso ouvir ao longe a conversa entre o professor e a conselheira. Eu me reclino na cadeira.
— Não — diz a conselheira. — Estou dizendo para averiguar os fatos antes de fazer suposições.
— Eu já averiguei — respondeu o homem. — Paul Cane me disse o que aconteceu e três alunos confirmaram a história.
— Três amigos de Paul, posso apostar — diz a srta. Anderson. — Vou atender essa nova aluna e depois falo com ele.
— Vai perder o seu tempo — diz o professor.
— Bem, é o meu tempo que vou perder — responde a conselheira com rispidez.
Ouço passos vindo na minha direção. Sento-me mais ereta na cadeira e finjo que não estava prestando atenção na conversa.
— Sinto muito fazer você esperar. — Ela me oferece a mão, mas ainda está com a testa franzida. — Sou a srta. Anderson.
Aperto a mão dela. Pode parecer estranho, mas já gosto dela por defender sua opinião, apesar da oposição do professor.
— Eu sou Chloe Holden.
Ela se senta atrás da mesa e, em seguida, puxa um arquivo de uma pilha de papéis.
— Pedi seu histórico escolar para o Lionsgate High. Vi suas notas. São impressionantes. Com toda essa dedicação, você vai longe.
Eu ouço muito isso. Sou inteligente, mas não me dedico tanto assim aos estudos. As coisas, na escola, são fáceis para mim. Na realidade, na minha antiga escola, eu normalmente errava de propósito uma ou duas perguntas nas provas, para que minhas amigas não me odiassem. Ser inteligente demais não é legal.
— Você está planejando ir para a faculdade, certo?
— Estou, sim — digo. — Meus pais frequentaram a Universidade de Houston, então pretendo ir para lá também.
— Com essas notas, você pode ir para a universidade que quiser. Já solicitou uma bolsa?
Eu confirmo com a cabeça. Pelo menos meu pai vai ter uma folga nas mensalidades quando eu for para a faculdade.
— Bem, coloquei você nas turmas em que o conteúdo das matérias é visto com mais profundidade. Assim, acho que não vai ficar entediada.
Assinto com a cabeça outra vez, meus pensamentos ainda no que a ouvi dizendo para o professor no corredor.
— Sua mãe mencionou que está fazendo quimioterapia. E que se divorciou recentemente.
Por que mamãe contou isso a ela? Eu congelo na cadeira.
— Se você precisar conversar, saiba que estou à disposição.
— Obrigada — digo. — Eu estou bem. Minha mãe também. Ela está curada do câncer agora.
— Ótimo! — Ela olha para o computador. — Estou imprimindo os seus horários e vou pedir a alguém que a acompanhe por alguns dias até que você aprenda a se localizar dentro da escola.
Quero recusar a escolta, mas também não quero correr o risco de me perder dentro do prédio e chamar ainda mais atenção.
Ela faz uma ligação rápida e me entrega meus horários, depois de tirá-los da impressora.
— Sandra vai encontrar você no escritório principal.
Concordo novamente, pego minha mochila, dou dois passos em direção à porta e depois me viro.
— Ah, sobre o que aconteceu no estacionamento...
— O quê?
— A briga — eu digo.
— Você estava lá? — Ela se inclina para a frente. Eu tenho a sensação de que gosta de Cash ou talvez saiba que Paul pratica bullying.
— Sim, o cara com cabelos mais claros, acho que alguém o chamou de Paul, ele estava provocando um garoto mais novo. Pegou a mochila dele e não queria devolver. O outro cara, Cash, devolveu a mochila para o garoto. Paul começou a briga. Cash tentou até se afastar dele.
Os olhos da srta. Anderson se arregalam com um sorriso.
— Você conhece algum dos dois?
— Não, não conheço. Só vi a briga. E... alguém me disse o nome deles.
— Obrigada. — Ela parece aliviada.
Eu saio e paro, quase colidindo com o peito de Cash outra vez. Nossos olhares se encontram. Ou o meu olhar e o “meio olhar” dele. Seu olho está inchado agora. Mas juro que o outro está me acusando de alguma coisa.
As palavras “Desculpe por defender você” estão na ponta da língua. Eu não as digo.
Passo por ele com pressa.
Sinto seu olhar sobre mim. Como senti ontem. Calafrios percorrem minha espinha.
O que há com esse cara?
3
Trinta minutos depois, Cash Colton entrou no jipe. Por que ela me defendeu? Então tudo se encaixou e ele soube no mesmo instante: Porque eu estava certo.
Esbarrar nele tinha sido a estratégia perfeita. Sempre faça repararem em você. Não se aproxime. Faça com que suspeitem.
Foi tudo uma estratégia.
Bem, nem tudo. A briga não poderia ter sido. Ninguém poderia adivinhar que ele sairia em defesa do garoto. Cash não sabia nem por que tinha feito aquilo. Exceto... pelo fato de que aquele garotinho assustado costumava ser ele...
Defendê-lo, no entanto, tinha que fazer parte do jogo dela. Fazer com que confiassem nela. Acreditassem que ela é uma pessoa amigável.
Ela ia precisar de sorte. Cash não confiava em ninguém. Nem mesmo em alguém com seios bonitos.
Ninguém pode trapacear um trapaceiro — não quando ele sabe todos os tipos de truque. Foi treinado pelo melhor de todos: seu pai malandrão, agora já falecido.
Ele saiu do estacionamento da escola cantando pneu. Depois de inocentá-lo da briga, a srta. Anderson havia chamado sua mãe adotiva, a sra. Susan Fuller. Por ser médica e uma pessoa amorosa, ela insistiu em vê-lo antes de decidir se ele precisava ir ao pronto-socorro ou não. Ele deveria esperar que ela viesse examiná-lo antes de voltar às aulas.
A um quarteirão da escola, ele ligou para a sra. Fuller.
Ela atendeu:
— Estou a caminho. Você está bem?
— Estou. Não precisa vir. Estou indo para casa agora tomar uma aspirina.
— Cash, a srta. Anderson, queria que você ficasse na escola. Você não deveria ter...
— Ah, é? Eu não sabia. — Na verdade, ele tinha ouvido toda a conversa atrás da porta e saído furtivamente antes que alguém pudesse detê-lo. — Pensei que eu estava livre para ir embora, depois que ela falou com você.
— Não, querido, você não deveria estar dirigindo. Pode ter sofrido uma concussão. A que distância está de casa?
— Praticamente lá — ele mentiu de novo e sentiu um aperto no estômago.
— Você não está com tontura, está?
— Não.
— Ok, então siga em frente e volte para casa. Vou ligar para avisar a srta. Anderson. Estarei em casa em vinte minutos.
— Mas não é preciso. Estou bem. — Ele olhou para o relógio no painel. Oito e quarenta.
— Foi isso que você disse dois anos atrás, quando seu apêndice supurou — ela disse.
— E eu ainda estou vivo. Então eu estava bem, não estava?
— Depois de oito dias no hospital. — Ela suspirou. Cash ouvia muitos suspiros da mãe adotiva. Desapontá-la era a última coisa que ele queria. E, por mais que tentasse evitar, sempre a decepcionava. O passado de Cash o seguia por toda parte.
Os Fuller complicaram a vida deles quando optaram por adotá-lo [2]. Não que fossem sofrer por muito mais tempo. Em dois meses, ele já teria idade para deixar o lar adotivo. Ele não poderia fazer isso antes de terminar o ensino médio...
— Pare o carro e me ligue se sentir tontura.
— Entendido. — Ele desligou. Consultando o relógio novamente, ele passou a entrada para o bairro de Stallion, onde os Fuller moravam — ou melhor, onde ele ocupava um dos quartos da casa deles — e foi direto para o Walmart. O olho latejava.
Estacionou o jipe, entrou na loja e seguiu até o quadro de avisos.
Cada vez que ia ao supermercado, ele examinava aquele quadro. A primeira vez que tinha se deparado com ele, a vontade que teve foi de rasgá-lo, com receio de que os Fuller o vissem e ficassem tristes. Mais tarde, ele descobriu que os próprios pais é que tinham colocado o folheto ali.
E ali estava ela. Na foto, olhando para Cash.
O mesmo formato de olhos. A mesma mandíbula. Os mesmos lábios.
— Merda!
Isso não significava que fosse ela. A imagem que simulava a aparência dela com a idade que teria hoje poderia não ser exata. As fotos às vezes mentiam. Ele sabia disso por experiência própria. Mas, caramba, aquela garota parecia mais com ela em pessoa do que a foto que um filho da mãe dera à sra. Fuller um ano atrás. E depois que a sra. Fuller entregou a ele 3 mil dólares para encontrar a tal garota, ele convenientemente desapareceu. E levou uma parte do coração da mãe adotiva também. Só agora ela estava voltando ao normal.
Se ao menos a sra. Fuller tivesse contado a Cash, ele teria explicado a ela como funciona esse tipo de falcatrua.
Seria o mesmo vigarista voltando para conseguir mais dinheiro? Provavelmente. Mas, desta vez, havia se tornado seu jogo mais sofisticado. Só que agora Cash sabia o que estava acontecendo. E iria detê-lo.
Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Quando estendeu a mão para tirar a foto do quadro, ouviu uma porta se abrir atrás dele. Cash se afastou e fingiu que verificava um cupom de ração para cachorro.
Enfiou as mãos nos bolsos, esperando a pessoa empurrar o carrinho pela porta. Quando não ouviu mais nenhum passo, concentrou-se novamente no panfleto.
Havia uma cópia do folheto na casa dele, também. Guardada num arquivo. Mas vasculhar a escrivaninha do sr. Fuller não parecia certo. Especialmente depois de Cash já ter sido pego fazendo isso uma vez. Ele estava com os Fuller havia apenas alguns meses, algumas semanas antes do seu aniversário de 15 anos, quando viu a sra. Fuller, com lágrimas nos olhos, olhando para o arquivo aberto. Mais tarde, quando ela já confiava nele a ponto de deixá-lo sozinho em casa, Cash descobriu o que a fizera chorar.
Ele não tinha ouvido a sra. Fuller entrar em casa aquele dia. No segundo em que ela o viu, Cash teve certeza de que ela ia gritar, depois ligar para dizer aos assistentes sociais que viessem buscá-lo. Outras três famílias já o tinham devolvido. Mas a sra. Fuller puxou uma cadeira e colocou-a ao lado dele, próximo à escrivaninha do marido, e perguntou o que ele estava fazendo.
Cash foi sincero:
— Eu queria saber o que a fez chorar.
Ela suspirou, um suspiro que era um gemido baixo misturado com uma expiração longa, e ele logo descobriu que aquele suspiro era a marca registrada da sra. Fuller, nos momentos em que estava infeliz. Depois ela contou a história toda. E chorou também enquanto a contava.
A porta do Walmart se fechou. Ele pegou o papel pregado no quadro, dobrou-o, guardou no bolso e saiu de lá. De volta ao carro, ligou o motor e verificou as horas. Droga. Ele tinha cinco minutos para chegar em casa antes da sra. Fuller.
E se ela chegasse lá antes dele, ficaria chateada.
Embora Cash não pudesse ser a pessoa que os pais adotivos queriam que fosse, ele se esforçava para não decepcioná-los. Dirigiu como se fugisse do próprio diabo. Sentado ereto, tomava ainda mais cuidado porque estava enxergando apenas com um olho. Mas ele provavelmente conseguiria dirigir até com os olhos vendados. Tinha muita prática.
Outra coisa que seu pai havia lhe ensinado. Com apenas 9 anos, ele era o motorista de fuga quando o pai roubava lojas de conveniência. Você tem que ganhar seu próprio sustento, garoto. Fazia sete anos que ele não via o rosto do homem, mas a voz dele ainda ecoava em sua cabeça.
Cash estacionou na garagem, destrancou a porta da frente e digitou o código de segurança. Correu pelas escadas, saltando dois degraus por vez, entrou no quarto e escondeu o folheto em sua escrivaninha. Depois correu de volta até o andar de baixo, pegou duas aspirinas, mastigou-as e se deixou cair no sofá. Félix, o velho gato malhado amarelo, miava para que ele o pegasse no colo. O pobrezinho já estava cego como um morcego. Ele pegou o bichano e lhe deu umas palmadinhas de leve. Mal tinha se reclinado no sofá quando a porta se abriu.
— Cash? — Era a voz da sra. Fuller, quase melodiosa, chamando-o.
— Estou aqui, na sala de estar — gritou ele.
Ela entrou e ele a viu franzir a testa.
— Ai, meu Deus!
Ela se aproximou e levantou o queixo dele com dois dedos. Cash tentou não se encolher. Não que tivesse aflição que o tocassem. A sra. Fuller tinha carta branca. Mas é que ele sentia dor quando ela o tocava. Não uma dor física, uma dor emocional...
— Acho que você precisa de um raio X. Só para...
— Não. — Ele se afastou. — É só um olho roxo. Já estou acostumado.
Lá veio o suspiro.
— Você pôs gelo?
— Por alguns minutos na escola.
Ela correu para a cozinha e voltou com um saco de ervilhas congeladas. Sua expressão era determinada. Ele suspeitou que a história do raio X não seria esquecida.
— Eu não vou ao hospital. — Ele pegou as ervilhas.
Um suspiro triste saiu dos lábios dela novamente e ela se sentou na cadeira em frente ao sofá. Eles se olharam nos olhos. Cash a comparou com a garota nova da escola. Havia muitas semelhanças. Mas não a cor dos olhos. Os olhos da sra. Fuller eram azuis. A garota tinha olhos castanhos com manchas verdes e douradas.
A sra. Fuller deu uma palmadinha nos joelhos e se balançou na cadeira algumas vezes. Isso geralmente significava que ela tinha algo na cabeça e queria conversar. Alguma coisa séria.
Ele esperou.
— A srta. Anderson me disse o que você fez. Defendeu aquele garoto.
Ele assentiu e continuou esperando. Não devia ser só isso.
— Estou orgulhosa de você, mas preferia que o tivesse defendido sem brigar. Você já sabe fazer melhor do que isso. — A decepção brilhava nos olhos dela. Cash se encolheu.
Quando apanhava do pai não doía tanto. Ele detestava — odiava — decepcionar a sra. Fuller
Cash tinha dezenas de justificativas na ponta da língua. Eu tentei ir embora. Ele bateu primeiro. Mas já fazia muito tempo que ele tinha aprendido que não adiantava se defender. As pessoas pensavam o que queriam.
— Desculpe — ele balbuciou.
— Você não pode ser expulso de outra escola.
E isso não foi culpa minha também. Cash levantou o queixo.
— Eles disseram que vão me expulsar?
— Não. Quando liguei de volta, a srta. Anderson deu a entender que você não vai ser punido. Vários alunos se manifestaram e defenderam você.
— Vários? — Ele tinha ficado chocado ao saber que um aluno o defendera. Então se lembrou de ter visto Jack quando o treinador interrompeu a briga. Ele e Jack não eram grandes amigos, mas no ano anterior tinham feito um projeto de ciências juntos e realmente haviam se dado bem.
— Foi isso que ela disse. Mas, se acontecer de novo, eles não vão facilitar para você.
Ele assentiu novamente.
— Pode voltar ao trabalho. Estou bem.
— Tudo bem. Minha assistente vai atender meus pacientes de hoje.
Mas não estava tudo bem. Os Fuller não mereciam ter que resolver as encrencas em que ele se metia. Perder a filha já era um fardo pesado demais. O que eles mereciam era ter a filha de verdade de volta. Mas qual era a probabilidade de Emily Fuller não estar sob sete palmos de terra?
Isso não impediria vigaristas de quererem tirar vantagem dos Fuller. Ele sabia. Havia convivido com um deles. Tinha sido um deles. Ele e o pai haviam cometido uma fraude semelhante certa vez, depois que o pai vira a foto de uma criança parecida com Cash num quadro de pessoas desaparecidas. O pai tinha feito uma breve pesquisa. A pobre mulher que havia colocado a foto no quadro estava sempre almoçando no parque perto do trabalho dele. Eles foram até lá todos os dias durante uma semana. O trabalho de Cash era encará-la. Chamar a atenção dela. Fazê-la morder a isca.
A mulher finalmente mordeu. Aproximou-se deles.
O pai dele era bom. Desempenhou bem seu papel. Contou a triste história de que não sabia o sobrenome de Cash. Que o garoto era o filho da irmã que ele perdera havia muito tempo — embora ele nunca soubera que ela havia tido um filho. Ela falecera e deixara o garoto para ele criar.
Demorou mais um dia para a mulher compartilhar sua própria história triste com eles. Só que a dela era verdadeira. Ela havia dado à luz um menino, que tinha desaparecido aos 4 anos de idade. Cash se parecia muito com ele.
— Venha cá — a mulher pedira a ele. Ela tinha lágrimas nos olhos. Com as mãos trêmulas, tocou no rosto de Cash. Ele se lembrava de ter se retraído um pouco. — Você é David? Você se lembra de mim? É por isso que você estava me encarando?
— Eu não sei — ele mentiu. Mentiu como o pai o obrigara a fazer. Então o pai o cutucou no ombro para lembrá-lo de terminar de falar o que haviam combinado. Tinha 6 anos de idade e já tinha que ganhar seu sustento. — Você tinha um cachorro preto com uma mancha branca no focinho?
A lembrança de como aquela mulher estava desesperada ainda assombrava Cash às vezes. Ela não hesitara: dera ao pai dele o dinheiro para que fizessem o teste do DNA de Cash. Claro que nunca fizeram. Naquela noite, eles fugiram de carro da cidade de Little Rock, em Arkansas, com 5 mil dólares no bolso. Provavelmente, o dinheiro que a mulher economizara a vida toda.
— Aquilo foi errado! Eu nunca vou fazer isso de novo — Cash disse ao pai. Aquele havia sido seu primeiro olho roxo. Tinha doído. Mas ele estava certo de que tinha doído ainda mais na mulher.
Cash nunca deixaria que isso acontecesse aos Fuller.
Ele precisava encontrar respostas.
— Oi, querida. Como foi na escola?
Minha mãe está me esperando quando entro em casa aquela tarde. Achei que ela ainda estaria procurando emprego. Não estou a fim de ser interrogada.
— Foi tudo bem — digo.
— Lindsey apresentou você para todo mundo?
— Sim. Conheci Jamie, a melhor amiga dela. Ela é legal. — E ela era mesmo, mas notei que não parou de me contar histórias sobre Lindsey e ela, como se tentasse provar alguma coisa. Como se quisesse deixar claro que eu sou a garota nova e Lindsey é a melhor amiga dela.
Não me importo com isso. Faltam apenas nove meses para eu me formar.
Percebo que minha mãe está esperando que eu conte mais.
— Lindsey quer que eu saia com elas mais tarde. Jamie vai à casa dela. — Se eu estivesse em El Paso, estaria com Sandy e Kara. Estaríamos comparando as nossas experiências na escola, nossos professores, os caras que parecem mais gatos este ano do que no ano passado.
Mas não estou em El Paso. Estou aqui. E por isso não vou dar uma de idiota; vou me contentar em ser a segunda melhor amiga de Lindsey e agradecer por isso.
— Como foi seu dia? — pergunto. — Encontrou um emprego?
O sorriso dela se amplia e é muito bom vê-la sorrir.
— Encontrou?
— Sim, fui ao consultório do meu médico, o dr. James, meu oncologista. Há dois médicos no consultório. Eu disse a ele que tinha diploma de enfermagem e ele praticamente me ofereceu um emprego. Eles têm que checar meus antecedentes e preciso ser entrevistada por outro médico, mas parece que consegui a vaga.
Ela está sorrindo, feliz. Eu a abraço.
Quando nos separamos, ainda está sorrindo.
— Vai dar certo. — Ela segura minhas bochechas como fazia desde que eu era uma garotinha. — Nós aqui. Vai dar certo.
Concordo, querendo acreditar. E vendo-a feliz, quase acredito.
No dia seguinte, eu me recuso a andar pela escola com uma escolta. Tenho certeza de que já sei me localizar. Ledo engano. Me perdi e chego atrasada para a segunda aula, de Literatura Americana, sentindo como se tivesse uma placa de neon piscando nas minhas costas com a inscrição ALUNA NOVA.
Infelizmente, aquela sensação de ser observada nunca desaparece. E eu vejo quem está olhando: Cash. Ele está começando a me assustar. Conto os minutos para a aula terminar.
No intervalo entre as aulas, vou ao meu armário para trocar de livros. Estou com os dois braços ocupados quando sinto alguém ao meu lado. Meu coração vai parar na garganta. Acho que é Cash.
Errado.
Olho para cima e encontro um par de olhos azul-claros sedutores, que pertencem ao garoto bonito que notei na aula de Literatura Americana.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? Precisa de um encontro na sexta à noite?
Eu retribuo o sorriso. Meu coração bate de emoção.
— Sou David Drake.
— Eu sou... — Meu nome gruda na língua enquanto tento descobrir onde ouvi o nome dele antes. Então — pronto! —, eu me lembro. E não é nada bom.
David Drake é o novo crush de Lindsey. Merda.
— Eu... não estou interessada. — Eu me afasto para recuperar meu espaço e me concentro no meu armário.
— Pensei que seu nome era Chloe.
— É sério. — Olho para ele outra vez, desta vez sem sorrir.
O sorriso do garoto continua intacto.
— Quem sabe você comece a se interessar com o tempo...
— Sou comprometida.
— Deixou um namorado na cidade de onde veio?
— Sim — minto, jogando o cabelo para trás. — Estamos praticamente noivos.
Ele coloca a mão direita contra o peito.
— Como assim? Você acabou de partir meu coração.
Balanço a cabeça e tenho uma ideia. Antes que eu possa concluir se a ideia é boa ou ruim, conto a ele.
— Sabe, ouvi falar de uma garota que gosta de você.
— Quem?
— Não posso dizer, mas... uma dica é que você a convidou para sair no ano passado.
Ele franze a testa.
— Sara?
Eu não respondo.
— Lisa?
Eu franzo a testa.
— Katie? Paula? Anna? Lacy? Carol? Jackie? Hannah?
Não estou acreditando...
— Estou brincando — diz ele. — Como só convidei duas garotas para sair e uma delas vem à escola com você, eu sei quem é. Mas achei que ela estivesse com Jonathon.
Eu me preocupo, achando que deveria ter ficado de boca fechada, então só encolho os ombros e me viro para me afastar. Por que sempre quero consertar as coisas?
Dou apenas alguns passos quando vejo Cash novamente, dois armários depois do meu. Ele não está olhando para mim, mas aposto o meu melhor sutiã que ele estava ouvindo a minha conversa com David.
Então vejo Jamie do outro lado do corredor. Ela desvia o olhar rápido e vai embora. Eu sei que ela viu David falando comigo.
Droga! Provavelmente está indo contar para Lindsey agora mesmo.
Cash esperou até o sr. Alieda deixar a sala de aula, para dar uma rápida corrida ao banheiro e entrar no laboratório de ciências. Correu para os dois terrários encostados à parede. Os alunos começariam a chegar a qualquer momento. Um tanque continha uma jiboia, o outro tinha comida viva para a cobra. Abrindo a mochila vazia, ele tirou dali uma luva.
O camundongo ficou de pé nas patas traseiras e olhou para Cash, mexendo os bigodes.
— Vamos fazer um acordo? Eu ajudo você e você me ajuda. Você tem uma chance de conquistar a liberdade. E eu consigo... respostas. Talvez.
Cash pegou o camundongo com delicadeza e colocou-o na mochila vazia. Depois de recolocar a tampa no terrário, ele foi para a secretaria.
Não era o melhor plano que ele já tinha engendrado, mas era um plano.
Naquela manhã, ao agendar uma reunião com a srta. Anderson, ele tinha ficado em dúvida quanto ao melhor horário até descobrir que ela almoçava entre onze e onze e meia. Perfeito. Era naquele horário que ele almoçava também.
Tudo o que ele precisava era de três minutos no escritório dela. Três.
Ele poderia esperar e voltar à noite, mas e se fosse pego...? Invasão dava cadeia. Liberar um camundongo indefeso era uma ofensa perdoável.
Ao entrar na secretaria, ele viu três garotas esperando para falar com a funcionária da recepção. Aquilo podia funcionar.
Ele ficou atrás das meninas, abriu a mochila e colocou o camundongo no chão. O bichinho demorou cerca de quatro segundos para correr em busca da liberdade.
Voltando a fechar a mochila, ele disse:
— Isso é um camundongo?
Assim como ele tinha planejado, reinou o caos. O camundongo correu para baixo do balcão.
A recepcionista gritou e correu para fora da secretaria. Enquanto as meninas continuavam gritando, Cash entrou na secretaria, olhando para o chão como se procurasse o roedor.
Uma vez no corredor, ele correu para a porta da srta. Anderson e pegou, no bolso, seu clipe de papel. Mas encontrou a porta aberta. Ótimo. Entrou no escritório, fechou a porta e foi direto para a mesa onde tinha visto o arquivo de Chloe Holden.
Com os ouvidos atentos para ouvir qualquer movimento do lado de fora, ele abriu a pasta. Não a leu. Faria isso mais tarde.
Tirou a primeira foto, virou o papel e tirou a segunda. Mais uma página virada e fechou o arquivo, devolveu-o ao topo da pilha e virou-se para sair. Abriu a porta para ouvir se vinha alguém.
Vozes soaram. Ele reconheceu a voz da srta. Anderson.
Então ouviu o salto alto das mulheres batendo no assoalho do corredor.
Merda. Ele tinha sido pego.
4
Cash! — ela exclamou, parando de repente ao entrar na sala.
— Olá. — Ele se sentou na cadeira em frente à mesa dela e se forçou a relaxar. Pareça inocente. Às vezes o único jeito é fingir até parecer que é verdade.
— O que... você está fazendo aqui? — a srta. Anderson perguntou.
Ele se virou e olhou para ela.
— Tenho horário marcado.
Ele manteve a expressão sob controle, mesmo quando o pânico deixava as palmas de suas mãos suadas. Sinceramente, se aquilo poupasse os Fuller da decepção, não se importava de ser pego.
Ela olhou para o relógio na parede.
— Isso é daqui vinte minutos.
— Não foi o que me disseram na secretaria hoje de manhã.
Ele fez uma cara de quem demonstrava confusão. Eles podem não acreditar no que você diz, mas vão quase sempre acreditar no que veem.
— Sinto muito. — Ele se levantou. — Volto depois. Eu só... quando entrei, eu estava alguns minutos atrasado e não havia ninguém no balcão da frente... Não queria deixá-la esperando. Então vim para cá. Achei que a senhora pudesse estar no... banheiro ou algo assim. — Ele baixou os olhos como se estivesse envergonhado.
— Não. Eu fui... à sala dos professores. — Os ombros dela relaxaram. Ela estava acreditando. Seus batimentos cardíacos se normalizaram. Cash não queria ter que ouvir a sra. Fuller suspirar hoje.
Ele deu um passo em direção à porta.
— Ok, vou embora e...
— Não. Tudo bem. Eles devem ter informado o horário errado. Esse é o meu horário de almoço.
— Bem... — Ele não via a hora de ler o arquivo. — Não quero atrapalhar o seu almoço...
— Não, fique. Já almocei.
Cash se sentou novamente. A srta. Anderson se acomodou atrás da escrivaninha. Quando notou o jeito como ela estava olhando para ele, o pânico aumentou novamente. Não estava olhando como se ela soubesse que ele estava mentindo. Ou como se tivesse uma ideia do que Cash estava fazendo. Mas como se quisesse corrigi-lo.
Quantas vezes ele já havia se sentado diante de um conselheiro ou psicólogo e eles tinham tentado entrar em sua cabeça? Como se pensassem que, convencendo-o a se abrir, poderiam torná-lo uma pessoa melhor. Eles não podiam.
Ninguém poderia mudar seu passado. Ninguém poderia mudar o que já tinha acontecido. Ou as coisas terríveis que ele já tinha feito. Falar sobre isso só piorava.
— Você sabe por que eu queria falar com você?
— Imagino que seja por causa da briga — Cash disse.
— Bem, sim, mas eu também queria só... ver se você está bem. — Ela se concentrou no rosto machucado dele. — E conversar.
Bem, já ia começar o sermão. Ele respirou fundo.
— Srta. Anderson, não quero parecer desrespeitoso. E se quiser falar comigo, me dar uma punição pela briga, vou ficar sentado aqui e ouvir. Mas, na verdade, não quero falar sobre outras coisas.
Ela olhou para baixo como se quisesse organizar os pensamentos.
— Ok — a srta. Anderson disse, mas levou alguns segundos para falar outra vez. — Me contaram o que realmente aconteceu naquela briga. Eu sinto muito.
— Eu também — disse ele.
— Praticar bullying é proibido e ponto final. O que Paul fez é inaceitável. Me disseram que você tentou ir embora.
Ele deu de ombros como se não fosse importante, mas se sentiu compreendido. Não se sentia assim com muita frequência.
— Mas não acho que você saiba quanto é forte. Tenho certeza de que não pretendia bater nele com tanta força.
Sim, eu pretendia. O cretino tinha dado um soco em seu olho. Cash queria machucar aquele filho da puta. Mas não disse isso.
A srta. Anderson se remexeu na cadeira.
— Graças a Deus, o nariz de Paul não estava quebrado.
Ele teve que se esforçar para esconder a decepção.
— A questão é que eu sei como são os adolescentes. E eu sei que ele bateu primeiro. Mas precisamos garantir que isso não aconteça novamente.
— Eu não vou dar mais na cara dele — disse Cash.
— Mas e se ele der na sua?
Cash não respondeu. Não podia. Dizer que ele não se defenderia seria mentir. E as pessoas podiam não acreditar, mas ele não gostava de mentir.
— Veja. Em dois meses, você fará 18 anos e Paul ainda vai ter 17. Se acontecer outra briga, isso pode acarretar graves consequências para você.
Com o ar preso nos pulmões, Cash perguntou:
— Então você quer que eu saia da escola? — Isso era exatamente o que os Fuller não queriam. O objetivo deles era que Cash se formasse no ensino médio.
Os olhos dela se arregalaram.
— Não! Só quero que você esteja ciente disso, para que assim possa evitar qualquer complicação com a Justiça.
Ele assentiu.
— Vou me lembrar disso. Posso ir agora?
Se a expressão dela indicava alguma coisa, a srta. Anderson tinha percebido a emoção no tom de voz dele.
— Só mais uma coisa.
Cash se preparou para ouvir.
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha 11 anos, por causa de um motorista embriagado. Meus pais é que estavam bêbados. Minha avó não achou que pudesse me criar. Cresci num lar temporário.
Isso não era o que ele esperava ouvir.
— Eu sinto muito.
Cash estava sendo sincero, mas ainda não queria se abrir com ela. Também não queria saber a história dela. Não queria chegar perto de se preocupar com mais ninguém. Preocupar-se com os Fuller já era ruim o suficiente.
— Eu também — disse a srta. Anderson. — O que estou tentando dizer é que sei o que é crescer no meio do caos. Se você quiser conversar, sabe onde me encontrar.
Sim, farei isso quando o diabo começar a servir bolo de sorvete no inferno.
— Vou me lembrar disso. — Ele se levantou e saiu da sala.
Entro no refeitório. Os cheiros, a multidão de estranhos e o burburinho me fazem querer sumir dali.
Olho em volta e todo mundo está batendo papo. Eles não percebem todo o barulho, porque fazem parte dele. Eles não veem estranhos; veem amigos.
Cinco minutos depois, estou me sentindo sozinha e deslocada enquanto como uma pizza que parece feita de papelão.
É nesse momento que alguém se senta ao meu lado. Lindsey. Ela está de braços cruzados. Parece aborrecida. Comigo.
No mesmo instante, eu sei por quê. Ela ouviu falar da visitinha de David ao meu armário.
— Não gostei dele — já fui dizendo.
— Tem certeza?
— Tenho. Gosto de garotos de cabelos pretos e que fazem o tipo mais caladão. — Se eu pudesse excluir a última parte, faria isso, porque minha descrição pareceu demais com a do cara de olho inchado que anda me causando arrepios ultimamente.
Ela olha para mim.
— Mas não importa. David gostou de você.
— Não. Ele nem me conhece. Sou apenas a aluna nova e isso, para os caras, significa apenas “carne fresca”. Ou, como minha mãe costuma dizer, sou a “vaca nova no pasto”. Os touros veem uma vaca nova no pasto e logo vão atrás dela. Começam a bufar, remexer a terra e babar.
Lindsey se acomoda na cadeira, parecendo mais conformada.
— Eu não quero um touro que fica atrás das vacas novas. Já fiz isso antes.
Eu não pretendia desmotivá-la.
— Você não pode julgar David. Ele não é o seu touro ainda. Depois que você pegá-lo pelos chifres, marcar seu nome no traseiro dele e ver que ele começa a atender quando você o chama, aí sim você vai poder levá-lo para o matadouro caso ele persiga uma vaca nova. Pode vendê-lo como comida de cachorro e fazer picadinho com os testículos dele.
Lindsey solta uma risada.
— Picadinho com os testículos dele já é demais.
— Ei, esse é o sonho da minha mãe. Ver os cojones do meu pai flutuando no formol e meu cachorro dando uma mordida no traseiro dele.
Nós duas rimos, mas logo o sorriso de Lindsey se dissipa.
— Então por que fazemos isso? Por que nos apaixonamos se todos os caras são touros babões perseguindo as vacas novas?
— Porque talvez exista um ou dois que não sejam assim — digo, sentindo a mágoa de ser filha de um homem com uma queda por vacas novas aumentar no meu peito, mas Lindsey e eu só compartilhamos um sorriso triste.
E nesse instante algo me ocorre. Numa questão de minutos, deixei de ser uma alienígena num mundo estranho para fazer parte dele. Estou criando raízes.
Minha amizade com Lindsey está passando do estágio em que estamos nos conhecendo e indo para a parte onde nos tornamos aliadas, rindo de coisas que não são realmente engraçadas para ajudar uma à outra.
Parece bom, mas há uma parte de mim que quer tirar os pés da terra e cortar as raízes, porque sei que vou sofrer quando tiver que deixar esta vida e ir para a faculdade. Vai doer assim como doeu quando fui arrancada de El Paso.
Paro de rir e Lindsey segue o exemplo. Solto um suspiro. Lindsey olha para mim.
— A sua mãe realmente disse que quer fazer picadinho com os testículos do seu pai? — Ela não está mais dizendo isso como se fosse engraçado. Ela está dizendo como se soubesse que isso me machuca.
Eu faço que sim com a cabeça.
— A sua mãe não costuma brigar com seu pai?
Ela pensa um pouco.
— Às vezes, mas... Eles se divorciaram há quinze anos. Provavelmente brigavam muito, mas eu não me lembro.
Sei que ela está dizendo isso apenas para que eu me sinta melhor.
— Merda... — diz Lindsey.
— O que foi? — pergunto.
— É Jonathon. De camiseta preta. Paquerando a garota ali.
Lembro-me de tê-lo visto algumas vezes naquele verão.
Ele tem cabelos castanhos e é bonito, mas na verdade... nem tanto.
— David é mais gato.
Cash conseguiu permissão para visitar a biblioteca durante o horário de estudos. Os celulares eram proibidos ali, mas, no ano anterior, a bibliotecária não dava muita atenção a isso. Se o aluno fizesse silêncio e não tumultuasse o ambiente, ela o deixava em paz. Conhecer as regras antes de quebrá-las era outra lição que Cash aprendera com o pai.
Ele pegou as fotos do arquivo em seu celular e aumentou o zoom para que pudesse ler sobre Chloe Holden.
A primeira informação que coletou foi o aniversário dela: 18 de novembro. Emily tinha nascido em 6 de novembro. Mas, se a pessoa é sequestrada, é claro que vão mudar a data de nascimento dela. Segunda informação: ela era inteligente. Suas notas eram bem mais altas do que as dele. Mas, se ela estivesse aplicando um golpe, teria mesmo que ser alguém bem esperto.
Então ele descobriu que os pais dela tinham se divorciado recentemente. E se eles fossem de fato os pais dela?
Ele leu uma anotação da srta. Anderson. Mãe, JoAnne Holden, tem câncer. Bem, isso é o que diziam. Cash “também tinha câncer”. O pai dele raspava a cabeça e as sobrancelhas do filho e postava fotos dele numa página do GoFundMe, em que as pessoas levantavam fundos para realizar seus sonhos ou pagar seus tratamentos de saúde, entre outras coisas.
No que dizia respeito a seu pai, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para ganhar uma grana ilícita. Cash tinha até obrigado Cash a seguir uma dieta rigorosa no mês anterior ao golpe, para parecer doente.
Cash leu algumas anotações da escola antiga de Chloe. Ela jogava futebol.
Essa era a isca de que ele precisava. Cash abriu o Google para encontrar o nome do time de futebol da antiga escola dela. Encontrou e foi pesquisar as imagens.
Só precisou de cinco minutos para clicar nos links e encontrá-la. Ele ficou ali, contemplando as fotos. Das três garotas na imagem, Chloe — se é que esse era o nome verdadeiro dela — era a que mais se destacava. Ela era a mais alta, a mais curvilínea e a mais gata.
Não que ele já não tivesse notado. Droga, ainda se lembrava de como era a sensação do corpo dela contra o dele. Mas Cash podia apreciar uma imagem com mais atenção do que pessoalmente. Ou de um jeito que ele não ousaria fazer ao vivo.
Muitas vezes, Chloe o pegara olhando para ela. Nem todas as vezes ele estava olhando com cara de quem olha uma garota. Às vezes, Cash a comparava com a sra. Fuller. E, caramba, ele via ainda mais semelhanças observando aquelas fotos!
Clicando na imagem, ele procurou pela conta de Chloe no Instagram.
Encontrou uma, mas ela não postava nada fazia três meses.
Se aquilo era um golpe, ela teria mantido as postagens, não teria? Ou talvez não.
As imagens e postagens que ele podia ver pareciam reais. Ele verificou as fotos. Havia várias dela com um cara, Alex. Eles se abraçando. Se beijando. Parecendo felizes. Numa delas, Chloe estava sentada no colo dele.
Cara sortudo...
Ele se lembrou do que ela tinha falado a David Drake sobre o namorado: estamos praticamente noivos. A mentira transpareceu na voz dela e na linguagem corporal.
Ele viu que Alex tinha deixado comentários numa das fotos: “Você está linda, mozão”. Ele clicou no link do perfil dele, esperando que as fotos não fossem privadas. Não eram. E... Ha, ha! Ali estava. A verdade. Uma foto do cara com outra garota. Postada na semana anterior. Ele voltou a olhar as fotos antigas e encontrou uma com Chloe no treino de futebol. Então, parecia que ela realmente era de El Paso. Isso não descartava um golpe. Ele tinha só arranhado a superfície.
5
O sinal tocou, na segunda-feira. Agora já completei uma semana na nova escola. Eu ainda não gosto dela, mas odeio menos. Ou talvez esteja apenas me acostumando. Me acostumando a ser a aluna nova. Me acostumando a ver Cash Colton me encarando como se eu tivesse comido o último biscoito do pacote.
Me acostumando a não ter pai. Porque ele nem me telefonou.
Estou quase na porta da escola quando percebo que esqueci meu livro de História no armário. Volto para pegá-lo e encontro Lindsey.
— O que houve? — pergunto.
Lindsey morde o lábio inferior.
— Eu vou... Vou para casa com Jamie. Ela quer conversar sobre o ex-namorado.
Eu sabia que o plano de Lindsey para que nos tornássemos as três mosqueteiras estava condenado quando os planos que tínhamos para o fim de semana caíram por terra. É por isso que começar a estudar numa escola nova na última série do ensino médio é uma droga. Você não pode simplesmente se tornar amiga de alguém. Você precisa ser aprovada pelas amigas dessa pessoa.
— Vejo você mais tarde. — Eu até sorrio.
— Sim. — Ela se vira, depois volta a olhar para mim. — Foi mal. Eu cheguei a perguntar se você podia ir...
— Tudo bem. Vocês duas têm aula de História e ficaram todo o verão sem se ver. Entendo. De verdade.
Ela se afasta, ainda parecendo culpada. Me sinto mal por fazê-la se sentir assim.
Quando pego meu livro e saio novamente, o estacionamento está vazio. A maioria dos carros já faz fila na saída para deixar o pátio. Buzinas soam. As risadas vazam pelas janelas e fazem com que eu me sinta ainda mais sozinha.
Pego as chaves do carro na mochila e clico o botão de abrir as portas. Quando me sento atrás do volante, percebo que meu carro está diferente. Algo parece estranho, fora de prumo. A mesma sensação que eu tenho dentro de mim.
Eu saio do carro e meu olhar vai direto para o pneu traseiro. Está murcho.
— Merda!
Pego o celular para ligar para o meu pai. Então paro. Meu pai não está mais disponível para me ajudar com essas coisas. E — pronto! — eu me lembro de que, logo depois que tirei minha carteira de motorista e antes do caso do meu pai, ele me ensinou a trocar pneu. Ele fez de conta que era um jogo e cronometramos para ver quem conseguia trocar mais rápido. Eu venci e ganhei dez dólares. Na verdade, venci três vezes. Acabei ganhando trinta dólares.
Agora aquela lembrança já não parece mais tão boa, porque eu me pergunto se meu pai já sabia que estava indo embora de casa. Sabia que eu não poderia mais contar com ele.
Evitando sentir pena de mim mesma, concentro-me no lado positivo: pelo menos eu sei trocar meu próprio pneu. Largando a mochila no banco, abro o porta-malas.
— Precisa de uma mãozinha?
Eu prendo a respiração. Cash está encostado num jipe estacionado ao meu lado, como se já estivesse há algum tempo parado lá. Como eu não o vi?
— Posso ajudar. — Nenhuma acusação em seus olhos ou no seu tom de voz agora. Pelo menos acho que não. Nunca tive tanta dificuldade para interpretar uma pessoa... — ou será que nunca encontrei alguém tão bom em camuflar emoções?
— Não. Posso fazer isso sozinha. Obrigada. — Esse cara me deixa nervosa, por várias razões.
— Eu tenho uma coisa para consertar pneus instantaneamente. Só vai demorar um segundo.
— Que coisa? — pergunto.
— Chama Fix-a-Flat. Infla o pneu e sela qualquer vazamento. Você vai poder dirigir até um borracheiro.
— Não esquenta. Tenho um estepe.
Ele se aproxima. Borboletas voam no meu estômago.
— Você sabe trocar pneu? — Ele enfia a mão direita no bolso do jeans.
Eu levanto o queixo.
— Você não acha que as garotas conseguem trocar um pneu?
Ele parece pensar na minha pergunta.
— Acho que a maioria das garotas não quer trocar pneus.
— Bem, esta garota aqui não se importa.
Inclino-me no meu porta-malas e afrouxo a porca para pegar o estepe.
Não o ouço se mexer. Será que ele está pensando em me observar? Irritante. Mas tudo bem. Talvez eu tenha coragem de fazer a ele algumas perguntinhas.
— Você é nova aqui? — Cash diz.
— Sim. — Pego o pneu e o deixo cair no chão. Então tiro o macaco do carro.
— De onde você é? — ele pergunta.
Coloco o macaco no chão e pego a chave de roda. Só então olho para ele e reúno coragem.
— O que você quis dizer no posto de gasolina, sobre eu querer fazer alguma coisa?
Ele não parece chocado com a pergunta.
— Você tinha razão. Você parece alguém que eu conhecia.
— Mas, obviamente, você descobriu que não sou essa pessoa, então por que ainda continuou me encarando?
Os olhos verdes dele se estreitam e seus lábios se abrem num sorriso incrível.
— Por que os caras geralmente encaram as garotas?
— Porque são uns pervertidos? — pergunto, me lembrando do bate- papo com Lindsay sobre touros e vacas.
Ele ri.
Eu sou pega de surpresa pelo som da risada dele e, por incrível que pareça, ele parece surpreso também. Como se não costumasse rir muito.
Ficamos em silêncio e olhamos um para o outro.
— Com quem? — pergunto.
— O quê?
— Com quem eu me pareço? — Eu me ajoelho para colocar o macaco no lugar.
— Ela já morreu. — Sua voz parece solene.
Eu olho para ele.
— Sinto muito.
— Eu também.
Cash se ajoelha ao meu lado para ver onde eu encaixei o macaco, como se pensasse que fiz tudo errado. A perna dele roça na minha. É um gesto inocente, mas parece íntimo. Seu cheiro, que lembra grama recém-cortada, enche meu nariz e se sobrepõe ao cheiro dos pneus oleosos.
— Então, o que trouxe você aqui? — ele pergunta.
Minha mente está ocupada apreciando o perfume dele, por isso demoro um segundo para responder.
— O que trouxe você aqui? — rebato, tentando não pensar no formigamento na minha perna, provocado pela sua coxa musculosa, coberta pelo jeans.
A sobrancelha esquerda sobre o olho roxo se levanta e ele cerra a mandíbula.
— Você não gosta muito de responder perguntas, não é? — Agora o tom é de acusação.
— Obviamente, você também não. — Encaixo a chave de roda na porca e a viro. Não vai ceder. Merda.
— Quer ajuda? — Ele se aproxima.
— Eu consigo. — Reajusto a chave e jogo todo o meu peso sobre ela, lembrando do que meu pai me ensinou. Meu peso não é suficiente. Droga. Quem quer que tenha colocado esse pneu usou toda a sua força.
— E agora? — Cash se aproxima ainda mais.
— Quê? — A minha frustração é evidente mesmo respondendo com uma única palavra.
— Quer ajuda agora? — Ele está sorrindo novamente. — Prometo não subestimar você por causa disso.
— Não tem graça — eu digo.
— Foi mal. — Os lábios dele não estão mais sorrindo, mas seus olhos estão.
Eu cedo e dou mais espaço a ele.
— Esses pneus são novinhos em folha. Não deveriam ter murchado.
Cash pega a chave de roda e, com uma volta do pulso, o músculo do bíceps se contrai sob a manga da camiseta cinza e a porca se solta.
Ele olha para mim. Mesmo com o olho roxo, seu sorriso dispara um alarme na minha cabeça. Um daqueles sorrisos tortos que saem da boca, vão direto para o meu estômago e acordam mais borboletas. O tipo de sorriso que Alex costumava me dar.
— Você já tinha afrouxado pra mim. — Ele passa para a segunda porca. Volto a assistir seus músculos se contraírem novamente. As borboletas voam como loucas.
Depois de vários segundos de silêncio, Cash me olha.
— Não consegui me entrosar muito na minha última escola.
— Ah... — Porque ele se abriu, eu faço o mesmo. — Meus pais se divorciaram.
— E Joyful pareceu o lugar ideal para morarem? — Ele continua trocando o pneu.
— Não. Minha avó morava aqui. Ela faleceu, minha mãe herdou a casa.
— Então você já morou aqui? — A pergunta parece importante para Cash, mas estou muito ocupada observando os músculos dele para pensar nisso.
— Não. — Então percebo que é mentira. Morei aqui por algumas semanas depois de ser adotada. — Quer dizer, sim, mas não me lembro.
— Como não se lembra?
— É que eu não tinha nem 3 anos de idade quando nos mudamos.
Ele para de trocar o pneu e me lança um longo olhar.
— Ok.
— Ok o quê? — Meu tom é curto e grosso.
— Ok, acredito em você.
— Mas por que acha que eu mentiria? O que há com...?
— Todo mundo conta uma mentira de vez em quando.
— Eu não!
Ele levanta a sobrancelha do olho roxo novamente.
— Você mentiu para David sobre ainda estar com Alex.
— Você estava escutando a nossa conversa?
— Confesso que sim. — O olhar dele colide com o meu.
Pressiono as mãos no asfalto.
— Como sabe que o nome do meu namorado é Alex? Não contei a David.
Ele continua removendo as porcas. A calma que demonstra me assusta. Ninguém solta uma bomba assim e volta a trocar um pneu!
— Responda! — Eu bato na perna dele com o pé.
Ele continua trabalhando.
— Dei uma olhada no seu Instagram. Suas fotos estão visíveis para o público. Você devia ter mais cuidado com isso. — Cash olha para mim, a expressão dele é insondável.
Eu franzo a testa.
— Mas como sabe que terminamos?
— Porque há uma foto no Instagram dele com outra garota. E eu não acho que você seja do tipo que aceita esse tipo de coisa.
Não sei bem como reagir a isso. Tudo está confuso na minha cabeça.
— O que você é? Algum tipo de investigador de crimes digitais? Ou um stalker?
Ele volta a se concentrar no meu pneu.
— Estou mais para investigador...
— Por que está investigando a minha vida?
— Achei que já tínhamos esclarecido isso antes.
— Porque pareço alguém que você conhece?
Cash confirma com a cabeça.
— Mas se a pessoa com quem pareço já morreu, por que você precisaria...?
— Ela tem uma irmã.
O tom com que ele fala é de alguma forma diferente. Será que está mentindo agora? Os olhos dele encontram os meus.
— Achei que ela poderia tentar prejudicar alguém que é importante para mim.
Há tanta honestidade naquelas palavras, em seu olhar, que acredito nele. Ou acho que acredito.
— Por que acredito em você às vezes e outras vezes, não?
Ele começa a desparafusar a última porca.
— Sei lá. Talvez porque tenha dificuldade para confiar nas pessoas. — Cash tira o pneu e coloca na calçada.
O tom é provocador, no entanto... Ele coloca o estepe no lugar e aperta as porcas. Abaixa o macaco e depois o retira de onde está encaixado.
Ele tem razão. Tenho dificuldade para confiar nas pessoas. É o que acontece quando a sua família entrega você para adoção e depois o pai que a adotou abandona sua mãe e decide morar com uma piranha mais nova.
— Você é difícil de entender — eu digo.
— Você também. — Cash estende a mão para me ajudar a levantar.
Eu quase a pego, mas depois me arrependo.
— Nós poderíamos resolver isso já — diz ele. — Há um lugar mais para cima, nesta rua, que serve café, chai ou qualquer outra coisa de que você goste.
Levanto-me, sem a ajuda dele, e limpo o pó das minhas mãos, passando-as no meu traseiro.
— O que acha? — ele pergunta.
Olho para Cash, minha cabeça girando.
— Não sei ainda...
6
O truque do pneu funcionou à perfeição, mas teria sido mais fácil se ela tivesse me deixado usar o Fix-a-Flat.
Ele saiu do estacionamento em seu carro e a viu fazer o mesmo. O celular dela tocou. Levantando um dedo para pedir que ele esperasse, ela atendeu.
— Não sei. Mas coloquei o estepe. Sim, apenas alguns minutos — Chloe disse. — Tudo bem. — Ela desligou e guardou o celular na mochila. — Minha mãe.
Ele quase perguntou como estava a mãe dela, mas parou a tempo.
— Você mora perto da escola? — Cash perguntou, embora tivesse conseguido o endereço dela no arquivo.
— A uns dois quilômetros. Em Oak Tree Park. E você?
— Um pouco mais longe — disse ele. — Em Stallion.
— Aquele condomínio com a estátua do cavalo e um lago na entrada? — ela perguntou.
Cash assentiu e se perguntou se ela o discriminaria por morar num bairro de classe alta. Alguns colegas de escola tinham jogado isso na cara dele no ano anterior.
Depois de entrarem na cafeteria, Chloe consultou o cardápio diante do balcão e pediu um chá de pêssego. Ele pediu uma Coca-Cola. Quando tentou pagar pelo pedido dela, ela recusou e entregou um cartão de crédito ao rapaz do caixa. Bebidas na mão, ele a conduziu até uma mesa nos fundos.
— É um lugar agradável — disse ela.
— Sim. Eu costumava lavar louça aqui aos 15, para ganhar uns trocados.
— E agora?
— Trabalho meio período numa oficina. Troco pneus e coisas assim.
— Ele sorriu. — Então, você gosta de Joyful?
— É legal. — Aquilo soou como uma mentira.
— De onde você veio?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Você não encontrou essa informação quando estava me investigando?
Ele se recostou na cadeira.
— Ok. El Paso. Você sente falta de lá?
Ela contou como as duas cidades eram diferentes. Foi uma conversa sobre banalidades, mas Cash prestou atenção em cada palavra. Depois, Chloe tomou um gole do chá e olhou para ele por cima do copo de papel.
— Agora é a minha vez.
— Sua vez?
— Você desenterrou informações sobre mim pelas minhas costas. Eu vou fazer da maneira correta e perguntar.
— Então você gosta de fazer tudo da maneira certa, hein? — ele disse, tentando parecer casual e mudar de assunto.
Ela não respondeu. E ele teve a sensação de que Chloe ainda estava refletindo sobre a coisa toda do Instagram.
Cash odiava perguntas, mas conhecia bem esse jogo, e se não dissesse alguma coisa, ela não abriria mais a boca.
— Ok. O que você quer saber?
Ela olhou para o chá como se estivesse elaborando uma lista de perguntas mentalmente.
Cash se perguntou o que ela já sabia sobre ele. Muitas questões da vida particular dele já eram do conhecimento de todos.
Cash se lembrou de Paul chamando-o de garoto adotado, como se fosse alguma coisa de que devesse se envergonhar. Mal sabia Paul que ele tinha muito mais vergonha da vida que levava antes de entrar para o programa de adoção do governo.
— Por que você não se entrosou na antiga escola?
Ele encolheu os ombros.
— Os alunos eram filhinhos de papai. Achavam que não podiam ser responsabilizados pelas suas ações. E a direção da escola parecia pensar o mesmo.
Ela correu um dedo pelo copo.
— Então, o que o fez sair? — Ela olhou bem nos olhos dele, como se procurasse a verdade.
Sim. Ele conhecia muito bem esse jogo. Diga algo pessoal. Vão achar que te conhecem e responder às perguntas sem criar caso. Normalmente, era a essa altura que ele inventava alguma coisa. Mas, por algum motivo, não sentia vontade de fingir.
Os ombros dele ficaram rígidos.
— Não saí da escola. Fui expulso.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você fez?
Ele já devia estar preparado para essa reação, mas isso ainda lhe dava nos nervos.
— Por que você já concluiu que eu fiz alguma coisa errada?
Ela franziu a testa.
— Porque você disse que foi expulso. Ninguém é expulso por nada.
— Certo. Mas você supôs que a culpa foi minha.
Ela olhou para Cash. Seus instintos lhe diziam que ele estava revelando muito mais do que pretendia.
— Não estou supondo nada. Estou perguntando.
Ele hesitou, contrariado por não estar mentindo, mas sem poder voltar atrás agora.
— Você quer a verdade? Ou quer que eu ofereça uma versão mais bonita?
— A verdade. — No entanto, a maneira como ela se afastou na cadeira revelou que preferia a versão mais bonita.
Cash deu a ela o meio-termo:
— Três jogadores de futebol da minha antiga escola estavam tirando vantagem de uma garota. Eu dei um fim à brincadeira deles. Quando terminei, um cara estava com o maxilar quebrado.
Chloe perdeu o fôlego.
— Era sua namorada?
— Não. A garota não dava a mínima para mim. O que deveria significar que eu não dava a mínima para ela. Mas... não era esse o caso. E os caras mentiram e disseram que eu apareci do nada, querendo briga.
— Mas e a garota? Com certeza, ela...
— Negou tudo à polícia.
— Mas como pôde...? Por quê?
— Ficou com vergonha. E, além disso, queria ser líder de torcida e achou que, se dissesse alguma coisa contra eles, poderia não conseguir fazer parte da equipe. Ela só lamentou que eu tivesse arranjado problemas por querer ajudá-la. Ele suspirou. — Mas sei que isso vive acontecendo. As vítimas normalmente preferem não dizer nada.
— Sim, mas... — Chloe colocou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
Ela parecia zangada. Isso deveria ser bom, mas não era. Ele se sentia exposto.
— Ainda assim, isso causou um belo estrago. — Os lábios de Chloe se contraíram.
— Sim, é verdade. — Cash se sentiu um pouco melhor.
Ambos se recostaram na cadeira em silêncio, como se precisassem de um tempo para pensar. Ele sabia que precisava.
Quando ela olhou para Cash, ele falou primeiro.
— Agora é a minha vez?
Ela piscou.
— Acho que sim.
Você está tentando enganar os Fuller?
Ele não podia perguntar isso.
— Por que você estava tão chateada na loja de conveniência?
Ela pareceu surpresa, mas depois suspirou.
— Você quer a verdade? Ou quer a versão mais bonita?
Ele sorriu, gostando de saber que ela realmente tinha ouvido.
— A verdade.
— Eu estava chateada com o meu pai.
— Por quê?
— Você está com tempo? — Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Tenho o dia todo — ele respondeu, e era verdade. Cash precisava descobrir quem ela era. Mas uma voz dentro dele dizia que não era só isso.
Ele gostava de ouvi-la falar, de contemplar suas expressões e o jeito como mexia as mãos.
Gostava de ouvir a voz de Chloe, embora ele preferisse não ver o brilho de tristeza nos olhos castanhos.
— Até um ano atrás, ele era tipo... o melhor pai do mundo. O pai que me levava com as minhas amigas aos bailes da escola. Quando ele ia nos buscar, nos levava para comer hambúrgueres às duas da manhã. Mas depois... — Ela fez uma pausa. — Depois ele traiu minha mãe com uma mulher apenas sete anos mais velha do que eu. Agora ela está morando com ele. Meu pai está fazendo papel de palhaço, tentando agir como se fosse mais jovem, tingindo o cabelo, usando gel... Ah, e deixou que ela transformasse meu quarto numa academia. Ela colocou lá um aparelho para endurecer os glúteos e outros aparelhos estranhos onde costumava ficar a minha cama.
A voz dela tornou-se mais aguda.
— Ela usa microssaias! E um decote até aqui. — Ela colocou a mão na metade dos seios. O olhar dele foi atraído para lá, mas ele não deixou que se demorasse ali por muito tempo, mesmo querendo muito. — Ah, e ele me disse que me ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Porque está muito ocupado descabelando o palhaço com a srta. Bunda Durinha.
Cash riu, mas quando viu a expressão de dor no rosto dela, reprimiu o sorriso.
— Lamento. Isso é uma droga.
— Sim. Uma droga. — Ela afastou a bebida e suspirou. Suspirou como a sra. Fuller, quando ficava decepcionada.
Um som profundo e triste que ele não gostava de ouvir. Um som que o fazia querer acreditar nela.
Chloe ergueu os olhos e Cash viu que ela reprimia as lágrimas.
— Desculpe eu ter descarregado tudo em você. Não foi legal.
— Ei, eu que perguntei...
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se abruptamente. Num instante já estava cruzando a porta num flash.
Ainda imaginando o que havia acontecido, ele a observou pela janela enquanto o carro partia. Quando olhou para baixo, viu que o cartão de crédito dela ainda estava em cima da mesa.
Uma hora depois, ele já tinha terminado sua lição de casa na cafeteria e decidido enrolar um pouco antes de ir à casa de Chloe, para lhe devolver o cartão.
Digitou no celular o número da residência dos Fuller e ficou surpreso quando o pai adotivo atendeu.
— Ei, eu já ia ligar para você. Está tudo bem?
— Sim — respondeu Cash. — Parei na casa de um amigo para fazer o dever de casa. Tudo bem se eu chegar por volta das seis?
— Claro. Somos apenas você e eu hoje à noite. Susan teve uma emergência no hospital. Pensei em sairmos e comprarmos algo para ela comer. Talvez pegar um sorvete também.
— Aquele tipo de emergência? — O peito de Cash se apertou.
Susan Fuller era oncologista e não tinha que atender muitas emergências. As crises dela significavam que tinha perdido um paciente ou estava prestes a perder. Ela sempre tinha dificuldade para lidar com isso.
— Receio que sim — ele respondeu.
Cash não era tão próximo do sr. Fuller quanto era da mãe adotiva, mas não podia negar que o homem amava a esposa. Só por isso, Cash o respeitava.
Parte da distância entre eles era por culpa do próprio Cash. Depois de onze anos com seu pai e alguns lares temporários não tão bons, ele resistia à figura paterna. O sr. Fuller se esforçava, no entanto. No ano anterior, depois que Cash tinha passado a frequentar algumas aulas numa faculdade e começado a namorar garotas mais velhas, o sr. Fuller tivera com ele uma conversa sobre sexo e lhe dera um pacote de preservativos.
— Você prefere churrasco ou pizza? — perguntou o sr. Fuller.
— Acho que ela gosta mais de churrasco.
— Concordo. Não chegue muito depois das seis. Quero voltar antes que ela chegue em casa.
— Não posso encontrar você no restaurante?
Quando Cash desligou, pensou em como toda aquela história em torno de Chloe afetaria a mãe adotiva. Se ele procurasse os pais agora para contar tudo e depois descobrisse que Chloe não era Emily Fuller, aquilo poderia trazer de volta toda a dor de perdê-la pela primeira vez, como na época em que aquele vigarista os tinha enganado no ano anterior. Cash não podia dizer nada antes de ter certeza.
Minha mãe e eu estamos esperando consertarem o meu pneu. Na televisão da sala de espera da loja está passando um programa político. Estamos folheando revistas. Lembro-me de quando minha mãe costumava comprá-las para encontrar personagens para seus livros. É triste saber que ela parou de escrever.
Olho para o lado e ela está lendo uma revista, a cabeça coberta com a bandana desbotada. Normalmente, ela usa uma peruca quando saímos.
Hoje não. Mal posso esperar para ver o cabelo dela voltar a crescer. Para vê-la ganhar peso. Estou cansada de vê-la com a aparência de um zumbi.
— Você almoçou hoje? — pergunto ao virar a página da revista.
Ela ergue os olhos.
— Sim.
— O que você comeu?
— Um sanduíche, acho.
— Com batatas fritas?
— Não.
— Você deveria ter comido batatas fritas.
Ela sorri.
— Você é nutricionista?
— Não. Sou sua filha que acha que você está muito magra. Sério, você precisa comer mais. Podemos sair para jantar. Comer algo cheio de calorias.
— Pizza? — Ela sorri.
— Com recheio extra.
— Combinado.
— E você toma uma cerveja.
Ela ri.
— Não posso beber por causa dos remédios.
— Que remédios?
— O comprimido que tenho de tomar por três anos para evitar que o câncer volte.
Sento-me ereta, com uma dor se instalando no meu peito.
— Os médicos acham que pode voltar?
— Não. — Ela bate o ombro no meu. — O remédio é para garantir que não volte.
Eu olho para ela, de repente cheia de preocupação.
— Holden? — Um homem vestindo macacão entra na sala, vindo da oficina.
— Sou eu. — Minha mãe fica em pé.
— Boas notícias. Não há nada de errado com o seu pneu.
— Mas estava murcho! — eu digo.
— Bem, às vezes o pneu pode ficar mais baixo devido à mudança de temperatura, mas, como isso não aconteceu, eu diria que alguém o murchou de propósito.
— Por que alguém faria isso? — Minha mãe me pergunta.
— Sei lá. — Então me lembro de Cash parado ao lado do meu carro. Ele não faria isso, faria?
— Poderia ser pior — diz o mecânico. — Poderiam ter cortado os pneus.
Às quatro e meia, Chloe ainda não estava em casa. Nem mesmo às cinco. Por fim, às cinco e meia, Cash viu o carro dela e estacionou em frente à casa.
Ele pegou o cartão de crédito e o colocou no bolso da frente do jeans. Subindo na varanda, viu uma grande janela com as cortinas abertas. Espiou lá dentro. Uma mulher estava sentada à mesa de jantar. Ela estava usando uma bandana, mas por baixo ele viu que não havia nem um fio de cabelo. As maçãs do rosto estavam salientes. Os olhos, fundos.
A visão o levou à época em que o pai raspava a cabeça e as sobrancelhas de Cash para tirar foto. Ele perdeu vários quilos, após passar fome por quase um mês; depois o pai passou sombra preta sob seus olhos para fazê-lo parecer ainda mais doente. Funcionou. O pai se orgulhava do dinheiro que as pessoas tinham doado para salvar o menino com câncer.
Mas essa mulher não estava usando maquiagem. O peito dele doía por Chloe. Será que a mãe dela ia morrer? Ele sofria até pela mãe adotiva. A mãe de Chloe era o tipo de paciente que a sra. Fuller tratava. O tipo que morria nas mãos dela, não importava quanto se esforçava para tentar salvar.
Suspirando, resignado, ele tocou a campainha. Os olhos da mulher encontraram os dele através da janela.
Quando ela se levantou, pareceu ainda mais magra.
A porta da frente se abriu e ele se apresentou.
— Oi. Meu nome é Cash. Estudo na escola de Chloe. Ela está em casa?
A mulher sorriu.
— Entre. Sou JoAnne Holden, mãe de Chloe. Ela está no quarto. — Então chamou: — Chloe?
Ele entrou. Um gato tigrado amarelo, igual a Félix, pulou de uma cadeira.
— Você gostaria de beber alguma coisa?
— Não, obrigado. — As mãos dele estavam suadas. Será que ele estava nervoso só porque estava conhecendo a mãe de Chloe? Ou seria porque essa mulher poderia ser a sequestradora de Emily Fuller?
Chloe entrou. A postura dela era rígida, os olhos acusadores. Já não tinham passado dessa fase?
— Vamos para o quintal. — Ela passou por ele sem cumprimentá-lo.
Cash agradeceu a mãe dela com a cabeça e seguiu Chloe, passaram pela sala até chegar a um quintal nos fundos.
Ela se virou para trás.
— Feche a porta.
Cash fechou, mas a expressão nos olhos dela dizia que seria melhor se ele encontrasse uma rota de fuga.
— Como você sabia onde eu morava?
A pergunta dela fez Cash suspirar de alívio. Ele sabia o que dizer.
— Você me disse que morava em Oak Tree. Dei uma volta pelo bairro até ver seu carro. Trouxe isso para você.
Ele tirou o cartão de crédito dela do bolso.
— Você esqueceu na cafeteria.
Chloe pegou o cartão, a suspeita ainda em seus olhos.
— Você murchou o meu pneu?
A pergunta saiu enérgica e foi como um soco no estômago. Ele sabia que aquela suspeita poderia surgir e o plano dele era negar. Esse ainda era seu plano, mas agora parecia muito ruim.
— Seu pneu não estava furado? — Aquilo tinha soado convincente? Merda, claro que não. Ele deveria ter cortado o pneu, mas isso teria custado o dinheiro dela.
— Não. — A mão dela pousou no quadril. — Foi você quem o murchou?
— Por que eu faria isso? — Responda a uma pergunta com outra pergunta. Isso confunde as pessoas.
— Não sei. Mas alguém fez isso. E você estava lá.
Ela não se deixava enganar com facilidade.
— E eu o troquei para você. Não gosto tanto assim de trocar pneus. Uau, você realmente tem dificuldade para confiar nas pessoas, hein?
Pela expressão dela, Cash percebeu que tinha dito a coisa errada.
— Sim, eu tenho. E, neste momento, não confio em você.
— Bem. Sugiro que verifique se não usei o seu cartão.
Então saiu pelo portão externo.
O que o deixou mais surpreso foi o fato de se sentir magoado por Chloe não acreditar nele, mesmo que ela estivesse certa em não querer acreditar.
7
Eram onze horas da noite quando o estômago de Cash começou a reclamar de fome. Ele tinha perdido o apetite depois de sair da casa de Chloe e passara a maior parte da noite em seu quarto, depois de encontrar o sr. Fuller para comprar o jantar.
Quando desceu as escadas sem fazer barulho e abriu a geladeira, viu a mãe adotiva sentada na sala de jantar — no escuro. Félix, seu gato, estava estendido sobre a mesa e ela acariciava lentamente o pelo dele. Ela estava de costas para a porta, mas o ouvira entrar.
Ele se aproximou e ficou ao lado dela. A mãe adotiva colocou Félix no chão e enxugou as lágrimas antes de olhar para Cash.
— Sinto muito — disse ele.
Ela assentiu.
— Também sinto.
Cash se sentou ao lado dela.
— Você salva muito mais pessoas do que perde.
A sra. Fuller ofereceu a ele um sorriso triste.
— Ela era apenas alguns anos mais velha que você — ela disse. — Alguns anos mais velha que Emily. Eu queria salvá-la. — Ela respirou fundo. — É difícil perder um paciente, mas quando eles são jovens... Acho que, se eu pudesse salvá-los, isso poderia compensar... — Ela colocou os dedos sobre os lábios trêmulos.
— Compensar o quê?
Ela balançou a cabeça.
— Foi culpa minha. Eu estava tão ocupada com a faculdade... Era meu dia de cuidar da Emily, mas liguei para a babá e pedi para que ela a levasse para passear.
— Não foi culpa sua — Cash disse bruscamente.
— Eu sei. Só estou com pena de mim mesma. E amanhã é... Vai fazer quinze anos que Emily desapareceu. — Ela fez uma pausa. — Odeio não ter conseguido salvá-la.
Quinze anos. Ele não sabia nem mesmo de quem ela estava falando ao dizer que não tinha conseguido salvar. A garota com câncer ou a filha dela?
A sra. Fuller esfregou os olhos e olhou para ele. De perto, ele viu a expressão dela, tão cheia de dor.
Ele colocou a mão no braço da mãe adotiva. De onde vinham as palavras, Cash não sabia, mas elas deixaram seus lábios:
— Você me salvou.
— Eu salvei? — A voz dela tremia. — Às vezes eu me preocupo quando vejo que você não deixa que a gente se aproxime muito de você...
— Você está mais próxima de mim do que qualquer outra pessoa jamais esteve. — E aquela era a mais pura verdade.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Obrigada. É demais pedir um abraço?
Ele balançou a cabeça, mesmo que preferisse evitar abraços.
Eles ficaram de pé e os braços dela o envolveram. Cash não se moveu, a dor que sentia no peito era profunda. A garganta apertou.
Ela o soltou rapidamente, como se sentisse quanto era difícil para ele.
— Nós amamos você como um filho.
Vocês não deveriam.
— Eu sei. — Mas eles mereciam ter a filha de volta e, se ele pudesse, se fosse possível, iria devolvê-la aos Fuller.
Estou me arrumando para ir à escola na manhã seguinte, quando meu celular toca. Tenho certeza que é Lindsey, por isso atendo. Me enganei.
— Como está a filhinha do papai? — É o homem que me deve um pedido de desculpas. De repente, quero que ele saiba que me magoou. Parece que não resta mais nada nele do pai que eu conhecia. O cara que costumava me levar para comer comida indiana porque minha mãe não gostava. O cara que costumava me abraçar forte, que me ensinou a trocar pneu. Ele se foi. Já era.
— Como está minha garota? — ele pergunta novamente.
— Bem.
— Como está indo na escola?
— Muito engraçado... — Mas não estou rindo.
— O que é engraçado?
— Pensei que você fosse me ligar no primeiro dia de aula para saber como foi.
— Ah... — A culpa está estampada nessa única palavra. — Sinto muito, querida. Foi uma semana agitada.
Este é o momento em que deveria dizer que está tudo bem e deixá-lo falar quanto sente a minha falta. Mas não consigo.
— É bom saber que não estou na sua lista de prioridades.
— Chloe! Não diga isso.
— Por quê? É verdade. Você deu a Darlene meu quarto. Diz que vai ligar, mas não liga. O que mais? Agora vai se negar a pagar a pensão também?
— Por quê? Sua mãe está falando mal de mim?
— Sim, mas ela já faz isso há muito tempo. Mas agora finalmente estou percebendo que o que ela diz é verdade.
Desligo e começo a chorar. Mas, por outro lado, me sinto bem. Ele merecia isso.
Ao consultar o relógio, vejo que tenho que me apressar. Passo rápido pela minha mãe, para ela não ver que eu estava chorando.
Quando saio, Lindsey está esperando ao lado do meu carro.
— Algo errado?
— Tudo.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— Isso pode parecer terrível, mas agora você não está mais fingindo tão bem e eu gosto mais de você assim.
Eu olho para ela como quem diz “Do que você está falando?”.
— Antes, você agia como se fosse a Mulher-Maravilha. Eu me sentia mal quando te contava meus problemas, porque você podia me achar meio patética. — Ela dá a volta para entrar no carro.
— De que problemas você está falando? — pergunto, para não parecer mais patética ainda. Eu me sento atrás do volante. — Além do cão sarnento traidor?
Ela se acomoda no banco do passageiro e parece hesitante.
— Não vou aborrecer você com detalhes, mas... — Ela faz uma cara assustada e fica séria. — Minha mãe é gay.
Eu olho para ela.
— Eu já sabia.
Ela me olha perplexa.
— É tão óbvio assim?
— Sim. A namorada da sua mãe está sempre na sua casa e, quando assistem TV, ficam de mãos dadas. Por que isso...?
— É um problema? — Ela termina a minha frase. — Não é. Estou feliz que ela tenha se encontrado e encontrado Lola. Uns dois anos atrás, ela teve depressão. Até sete meses atrás, estava tomando antidepressivos, solitária e infeliz. Ela é muito mais feliz agora. E para mim tudo bem... Mas... nem todo mundo aceita. E tenho medo que...
— Você não deveria se importar com o que as pessoas pensam. Quem a sua mãe ama não é da conta de ninguém. Você tem uma mãe que é gay. Ponto final. Isso não é nada de mais.
Os olhos dela se estreitam.
— Você não entende. Não é que eu me importe com o que pensam. Eu tenho medo de que, da próxima vez que alguém disser alguma coisa sobre ela, eu pule na garganta da criatura. É a minha mãe! Odeio que o mundo a julgue.
Eu sorrio.
— Ótimo. Quem disse algo sobre ela?
— Clare, uma das primas de Jamie. Foi logo antes de Jamie viajar para o acampamento. Eu não sabia que Jamie tinha contado a ela sobre a minha mãe até ela começar a dizer quanto aquilo devia ser estranho para mim. Eu simplesmente fui embora. Nem me despedi de Jamie. Mais tarde, fiquei tão brava comigo mesma por não defender minha mãe que agora não vejo a hora de outra pessoa dizer alguma coisa.
Eu olho para ela.
— É o seguinte. Quando alguém disser alguma coisa, venha me chamar e vou ajudar você a dar uma lição nessa pessoa. Estou ficando boa nisso.
Lindsey suspira.
— Estou tão feliz que você tenha se mudado para a casa ao lado da minha!
Eu não posso dizer o mesmo, porque ainda sinto muita falta da minha outra vida, mas sorrio. Naquele momento, sei que não sou apenas colega de Lindsey. Gostando ou não da cidade, consegui uma boa amiga. Então decido confiar nela e contar sobre Cash e o pneu murcho.
— E se ele fez isso apenas para ter um motivo para falar com você? — ela pergunta.
— Se ele quisesse falar comigo, poderia ter simplesmente se aproximado e falado comigo. Ele não é tímido.
— Você não sabe. Ele talvez não seja tão confiante quanto parece.
Será que exagerei, por causa das minhas próprias inseguranças? Porque não acredito que ele possa estar interessado em alguém como eu?
Será que cheguei automaticamente à conclusão errada, como todas as outras pessoas? Ao me lembrar da história sobre como ele foi expulso da sua última escola, porque as pessoas preferiram acreditar no pior com relação a ele, começo a me sentir culpada.
— Sou uma cretina — murmuro e Lindsey ri.
Cash decidiu se desculpar. Ele faria qualquer coisa para voltar a ter a confiança de Chloe. Precisava de respostas e a única maneira de consegui-las era se aproximar dela. Ele tinha que descobrir se ela era Emily Fuller.
Ele não sabia exatamente o que precisava para provar ou refutar sua suspeita. Mas seus instintos lhe diziam que ele saberia quando ouvisse. E não ouviria nada se ela se afastasse dele.
Ele viu Chloe perto do armário, mas, antes que pudesse se aproximar, ela desapareceu no corredor, entre os outros alunos. No caminho para a aula de Literatura Americana, que eles tinham juntos, ele olhou para a esquerda e para a direita, esperando encontrá-la. Quando se aproximou da porta da sala de aula, ele a viu parada ali, esperando.
Seus olhares se encontraram e ela começou a andar na direção dele. Ele não estava perto o suficiente para decifrar a expressão nos olhos dela. Mas a tensão fez com que seu estômago se contraísse.
Chloe parou na frente dele, então fez um gesto para que se afastassem da porta.
— Oi. Eu...
— Olha, eu...
— Pode falar — disse Cash. Sempre deixe a outra pessoa falar primeiro. Seu plano de jogo talvez mude.
Ela mordeu o lábio.
— Sinto muito. Não deveria ter acusado você. Fui rude. — Chloe olhou para ele. O pedido de desculpas iluminou os olhos castanhos dela. Ele viu as manchas verdes e douradas. Seus olhos seriam da mesma cor que os do sr. Fuller?
Seu próprio pedido de desculpas estava na ponta da língua. Quando falar com uma garota tinha ficado tão difícil?
Em vez disso, ele sorriu.
— Tudo bem.
— Não, não está tudo bem.
Ela fez uma pausa como se fosse a vez dele de dizer alguma coisa, mas Cash estava muito ocupado se recriminando, porque ele era o culpado e deveria ser o único a pedir desculpas. Ela se virou para entrar na sala de aula.
— Espere. — Ele pegou o braço dela e sentiu o mesmo choque. Como tocar num fio desencapado. Mas a sensação logo desapareceu e tudo o que restou foi a sensação de como a pele dela era macia. — Podemos falar sobre isso mais tarde?
— Sim. — Ela sorriu e não saiu do lugar.
Demorou um segundo para Cash perceber que ainda segurava o braço dela. E estava acariciando a pele dela com o polegar. Mas, caramba, ele gostava da sensação de estar tocando Chloe...
Com relutância ele a soltou e deixou-a ir para a aula. O toque podia ter vindo com uma centelha de dor, mas o que viera a seguir — a pele quente, suave e feminina — fizera tudo valer a pena.
8
Depois da escola, Cash dirigiu até a casa de Chloe, mas estacionou algumas casas à frente. Enquanto esperava, sentiu certo nervosismo. Estava pensando em sugerir que se encontrassem na cafeteria. Algo sobre a mãe de Chloe o deixava apreensivo. Vê-la tão doente e questionar se ela tinha sequestrado Chloe tornava tudo mais difícil.
Ele se perguntou quão difícil não seria para Chloe ver a mãe dela tão magra. E ele só contribuiria para aumentar os problemas da garota se dissesse que ela podia ser Emily Fuller. Ocorreu-lhe que seria mais fácil se ela não fosse a filha dos Fuller.
Ele não teria que mentir para ela.
O carro de Chloe entrou na garagem da casa.
Cash viu pelo espelho retrovisor a amiga dela colocando a mochila no ombro. Ele tinha reparado nela no ano anterior. Não estava na sua lista de garotas insuportáveis.
Chloe saiu do carro. Cash gostava de observá-la, especialmente quando ela não sabia que estava sendo observada. Ela parecia de alguma forma... diferente das outras garotas. Quando cruzava com outras pessoas no corredor, pedia licença. A maioria não fazia isso. Ela sorria para os outros alunos — não apenas para os mais populares, como algumas garotas faziam.
Cash também via os garotos olhando para ela. Não podia culpá-los. Ele olhava também. Só que alguns caras eram uns cretinos.
Só quando Chloe viu o carro dele é que Cash saiu.
— Vamos entrar. — O cabelo dela balançava em volta dos ombros e a camisa vermelha se ajustava aos seios.
Ele a seguiu para dentro da casa.
— Mãe? — Chloe chamou. — Cash está aqui. Vamos nos sentar lá fora, no quintal. — Cash ouviu a mãe dela responder algo do quarto.
Chloe largou a mochila numa cadeira da sala de jantar.
— Aposto que a sua casa é muito melhor que a minha.
— Na verdade, não — Cash mentiu, porque seria rude da parte dele se concordasse com ela. Mas com exceção da casa dos Fuller, a casa de Chloe era melhor do que qualquer outra em que ele já tinha morado. Durante seis meses, ele e o pai haviam morado numa cabana na floresta sem água corrente, eletricidade ou banheiro.
Ele a seguiu pela casa e viu alguns porta-retratos na mesinha ao lado do sofá. Ali havia várias fotos de Chloe quando era pequena. Uma delas chamou a atenção dele, como se ele já a tivesse visto antes. Era Chloe segurando um gato tigrado amarelo. Ele pegou o porta-retratos. Estava imaginando coisas ou era a mesma foto que a Susan Fuller tinha num dos quartos vazios? Se pudesse, fotografaria a foto para poder compará-las.
Cash levantou os olhos e percebeu que Chloe estava olhando para ele.
— Você era uma gracinha.
— Obrigada. — Ela fez sinal para ele acompanhá-la até o quintal. Lembrou-se da última vez em que estivera ali, quando ela o acusara de ter murchado seu pneu. Esperava que desta vez não houvesse acusações.
Quando saíram no quintal, um cachorro amarelo, de tamanho médio e raça indefinida, veio correndo para cima dele, latindo. Não era um latido ameaçador, mas brincalhão. Cash acariciou o animal.
— Não, não pule, Docinho! — Chloe foi se sentar no balanço. Cash teve a sensação de que ela esperava que ele fizesse o mesmo. Então se sentou, deixando de propósito um espaço entre eles. Mas, mesmo assim, estavam muito próximos. Ele podia sentir o aroma que exalava dela. Um perfume de frutas e flores. Não um perfume, mas uma colônia, e talvez um brilho labial também, porque ele notou que os lábios dela estavam brilhantes.
O cachorro colocou a pata na perna de Cash.
— Ela é bonita.
— Ele — disse Chloe.
— Você deu o nome de Docinho para um macho?
— Ele era muito bonzinho. E eu tinha 7 anos.
Cash soltou uma risadinha.
— Você provavelmente o castrou também, para tirar dele qualquer resquício de masculinidade...
Ela levantou uma sobrancelha e acariciou o cachorro.
— Só depois que ele cruzou com a cachorra do vizinho e ela teve vários filhotes. E foi na festa do meu aniversário. Na frente de todos os amigos da minha classe. Minha festa teve cama elástica, um palhaço e uma aula de educação sexual.
Ele riu e percebeu que fazia muito isso quando Chloe estava presente. Então pensou no que ela tinha dito. Cash não tinha realmente refletido sobre como tinha sido a infância dela, mas não parecia ruim. Será que pessoas que organizam festas de aniversário bem elaboradas para os filhos sequestram crianças?
Ele nunca tivera uma festa de aniversário. Teve apenas um bolo de aniversário antes da chegada dos Fuller. Agora os aniversários nunca passavam em branco. Sempre havia bolo e presentes. E a mãe adotiva sempre tirava o dia de folga e cozinhava o que ele queria. Se Cash não dissesse o que queria, ela fazia os pratos que sabia que ele gostava. Será que era isso que Chloe também tinha?
Percebendo que o silêncio estava ficando pesado, ele disse:
— Parece que foi uma ótima festa de aniversário.
— Foi inesquecível.
— Eu não estou nem aí! — A voz em tom elevado da mãe de Chloe vazou por trás da porta dos fundos, mesmo fechada.
Chloe franziu a testa.
— Bem, eu só disse a verdade! — A voz da mãe soou irritada novamente.
— Merda. — Chloe saiu do balanço. — Já volto.
Ela disparou para dentro. O cachorro sentado ao lado dele choramingou. Quando a porta se fechou, ele ouviu Chloe dizer:
— Mãe! Cash está aqui.
A voz da mãe dela explodiu novamente.
— Talvez você devesse ter pensado nisso antes de começar a transar com alguém que poderia ser irmã dela! Sim, eu disse isso. Você é um merda. E ela é uma vadia!
— Mamãe! Pare! — A voz de Chloe soou mais alto.
— Passe bem! — A mãe gritou, e então... — Você disse ao seu pai que eu estava falando mal dele?
Cash abaixou os pés para interromper o movimento estridente do balanço e ouvir o que ela diria em seguida.
— Eu... Nós podemos conversar sobre isso mais tarde? Cash está aqui.
— Por que você conta a ele tudo o que eu digo? — A mãe dela gritou.
A voz de Chloe soou em seguida.
— Eu não tinha intenção... — A dor era evidente na voz dela. O mesmo tipo de dor que ele tinha ouvido no dia anterior, quando contou a ele sobre o pai.
— Aquele homem não tem vergonha na cara! E pode dizer a ele que eu disse isso!
Uma porta bateu lá dentro. Cash passou as mãos no jeans e se perguntou se deveria ir embora.
Chloe voltou para o quintal.
O rosto dela estava vermelho. Estava de braços cruzados, como se estivesse zangada ou envergonhada. Talvez as duas coisas.
Ela encontrou os olhos dele.
— Olha, eu vou te dar um conselho: vá embora e me esqueça. Você não tem que ouvir os melodramas dessa minha família maluca.
Ele não saiu do lugar. Só queria ter algo para dizer que a fizesse se sentir melhor.
— Tive uma família muito pior. São apenas os problemas do divórcio.
Ela se aproximou e deixou-se cair no balanço.
— Foi mal...
Quando ela virou o rosto para cima, ele viu lágrimas nos cílios longos e escuros.
— Sério, está tudo bem.
— Minha vida é uma zona. Você não vai querer... — Chloe mordeu o lábio.
— Não. A vida dos seus pais é uma zona. Você é apenas uma vítima inocente.
Cash não podia acreditar que estava reciclando alguns dos velhos clichês que os psicólogos costumavam repetir para ele enquanto estava no hospital, depois de ter sido baleado. A psicóloga estava lá quando ele acordara. Cash tinha se lembrado de perguntar a ela:
— Eu vou para a cadeia?
Ela tentou consolá-lo.
— Não. Você não fez nada de errado.
Ele se lembrou de levantar o queixo, disposto a aceitar sua punição.
— Sim, eu fiz.
— Você não é má pessoa. Foi seu pai quem fez coisas ruins. Você é jovem, fez o que tinha que fazer para sobreviver.
Ao lado dele, Chloe balançou a cabeça.
— Não. Eu não sou inocente desta vez. — Mais uma vez, ela mordeu o lábio. — Meu pai ligou esta manhã e eu disse algo que não deveria ter dito. Eu queria magoar meu pai, não a minha mãe.
Ele não sabia direito o que o levou a fazer aquilo, mas colocou o braço sobre os ombros de Chloe. Um choque de prazer percorreu o corpo dele, acompanhado de dor. Mas então a dor se foi.
Ela soltou aquele som triste novamente — um suspiro muito parecido com o da sra. Fuller, o que o fez lembrar por que ele estava ali. Antes que Cash pudesse mover o braço, Chloe se inclinou contra ele.
Ele tentou não recuar.
— Ainda tem a ver com eles. Não com você.
Ela olhou para ele. Estavam tão perto que Cash poderia contar os cílios dela. E isso deu a ele uma visão panorâmica da dor nos olhos castanhos dela.
— Você é muito bom nisso — Chloe sussurrou.
— No quê?
— Em saber dizer a coisa certa.
— Que estranho... Eu geralmente sou péssimo nisso. — Cash forçou um sorriso, sentindo cada centímetro do corpo dela contra o dele. Sentindo quanto aquilo parecia certo e errado ao mesmo tempo.
— Seus pais se divorciaram? — perguntou ela.
Ele sentiu o ar preso na garganta. A última coisa que queria era falar sobre o passado.
— Não. Eles morreram.
— O que aconteceu? Desculpe, eu não deveria...
Docinho bateu contra o joelho dele, com uma bola de tênis amarela na boca. Com o braço livre, Cash jogou a bola longe para o cachorro pegar.
— Sua mãe parecia furiosa.
— Ela não está apenas furiosa. Ela está amargurada.
Chloe olhou para a porta e sua expressão era de tristeza novamente.
— Não posso culpá-la, só que... dói ouvi-la xingar meu pai o tempo todo. Eu sei que ele merece. Mas... — Ela cobriu o rosto com as mãos. — Droga. Estou fazendo de novo.
— Fazendo o quê?
— Despejando os meus problemas em cima de você.
Cash sorriu.
— Eu aguento.
Ela riu e recostou-se nele. Estavam ainda mais perto agora.
Ele inspirou o perfume dela.
— É câncer que ela tem?
— Sim.
— Ela vai ficar bem?
A raiva nos olhos dela se transformou em tristeza.
— O médico disse que ela está curada. Mas acabei de descobrir... que o câncer pode voltar. — Chloe fez uma pausa. — Mal posso esperar o dia em que ela deixar de parecer... que está morrendo.
— Sinto muito. — Cash quase disse que a mãe adotiva era oncologista, mas falar sobre a mulher que ele achava que podia ser a mãe dela parecia errado.
Os olhos deles se encontraram. E ali ficaram. Os lábios dela vieram ao encontro dos dele.
Cash recuou.
Ela se encolheu.
— Foi mal...
— Não. Eu só... Eu não estava... — Ele não conseguia desviar os olhos dos lábios dela. Então ele se inclinou. Seus sentidos continuavam hiperalertas.
Ele sentiu tudo intensamente. O sabor dos lábios dela. Um pouco salgados, por causa das lágrimas. A textura deles. Macios, quentes. Úmidos. O modo como ela chegou um pouco mais perto e seus seios pressionaram suavemente as costelas dele. Cash a queria mais perto, para que pudesse envolver sua cintura, deslizar as mãos sob a camisa vermelha, para sentir a pele nos lugares que não tinha conseguido ver.
Percebendo que não deveria estar pensando aquilo, ele pôs fim ao beijo, mas conseguiu fazer isso bem devagar.
Chloe sorriu.
— Isso foi bom.
— Sim. Foi mesmo...
Mas, que droga, ele estava indo longe demais! Aquilo podia acabar muito mal.
Cash estacionou na garagem, entrou em casa e digitou o código para desligar o alarme. Ele tinha ido embora depois que os dois haviam se beijado pela quinta vez. Cinco beijos. Ele ficou dizendo a si mesmo que precisava parar, mas não conseguia. Não quando ela se sentou tão perto e parecia tão disposta, olhando para ele com desejo misturado com tristeza. Chloe precisava ser beijada e ele precisava beijá-la.
Ele subiu os degraus de madeira e cruzou o corredor até o quarto onde a sra. Fuller guardava todas as recordações da filha que havia perdido. Fotografias, bichinhos de pelúcia com que a criança brincava, livros que ele imaginava que a mãe lia para ela. Na cômoda ainda havia algumas roupas. Era como um museu dedicado à filha.
Quando acendeu a luz, ele descobriu que a cama estava desarrumada. Ele apostava que ela tinha dormido ali na noite anterior. Sempre fazia isso quando estava com algum problema.
Cash foi até as prateleiras que continham livros e porta-retratos. E encontrou. A foto de Emily Fuller segurando um gatinho. Não apenas qualquer gatinho, mas Félix. O gato malhado amarelo quase idêntico ao da fotografia na casa de Chloe. Igualmente idêntica era a garota.
Ele pegou a foto.
A mãe adotiva tinha lhe contado muitas vezes como Emily amava Félix. Eles haviam encontrado o gatinho abandonado na rua. Era por isso que a mãe adotiva amava tanto aquele gato. Aquela seria uma peça do quebra-cabeça? Ou todos os pais decentes tinham fotos dos filhos com seus animais de estimação? Mas como essas duas garotas poderiam se parecer tanto? E seria coincidência que os gatinhos se parecessem também?
Ele pegou o celular para fotografar o porta-retratos.
9
Atenta a cada barulhinho vindo do quarto da minha mãe, eu coloco o que restou de uma pizza no forno, esperando que o cheiro apetitoso a atraia para a cozinha. Cash saiu faz uma hora, mas minha mãe não apareceu ainda. Será que ela está chorando? Está deprimida? Irritada?
Parte de mim gostaria de obrigá-la a sair do quarto. Ela está agindo como uma criança birrenta.
Quando é que assumi o papel da mãe nesta casa?
Ah, sim, quando ela teve câncer. Ou talvez quando meu pai a abandonou.
Desconto minha frustração na alface, no tomate e nas cenouras que estou picando. Félix mia e circula entre os meus tornozelos.
Com as mãos no piloto automático, minha mente divaga. Estou angustiada com a minha mãe e ao mesmo tempo nas nuvens por ter sido beijada por Cash. Beijada cinco vezes. Eu tomei a iniciativa. Quero dizer, os lábios dele estavam tão perto que eu simplesmente o beijei. Mas os outros quatro beijos foram iniciativa dele.
Eu posso fechar os olhos e ainda sentir seus lábios contra os meus. Saboreio a lembrança e... os sentimentos novos que brotam no meu peito. Esperança. Empolgação. Antecipação.
Desde que meus pais começaram a se desentender, sinto como se alguém tivesse roubado a minha alegria. Mas talvez ela não tenha sido roubada, apenas reprimida. Talvez...
A porta do quarto da minha mãe se abre. Ela entra na cozinha em meio a uma aura de depressão.
— Estou esquentando a pizza — digo.
— Não estou com fome.
— Você tem que comer. — Sim, eu sou a mãe aqui.
Nossos olhares se encontram. Eu vejo a mágoa nos olhos fundos dela. Toda a alegria que eu sinto no peito murcha como uma flor deixada num vaso sem água. Sou tomada por um sentimento de culpa.
— Eu não fico falando de você para o papai. Ele ligou esta manhã e fiquei com raiva.
— Por quê?
— Ele me disse que ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Quando reclamei, ele perguntou se você estava falando mal dele e se era por isso que eu estava sendo agressiva. Eu disse que, sim, que você estava falando mal dele, mas que não era esse o problema. O problema era que agora eu estava percebendo que tudo que você dizia era verdade. Eu não quis...
Ela se senta.
— Então ele disse que ligaria e não ligou?
Isso não está ajudando. Agora ela vai ficar brava de novo. Eu me deixo contagiar por essa raiva.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não fique com raiva.
— Como posso não ficar com raiva? Olha o que ele fez comigo! — Ela arranca a bandana.
— O que aconteceu com aquela minha mãe que estava feliz outro dia? Que disse que tudo ia ficar bem?
— Seu pai aconteceu! — Lágrimas enchem os olhos dela.
Lágrimas enchem meus olhos também. Sento-me ao lado dela.
— Mãe, você precisa de ajuda. Precisa de terapia ou algo assim. Você pode sobreviver ao câncer, mas essa amargura vai te matar.
Sem mais uma palavra, ela volta para o quarto.
Eu desligo o forno, vou para o meu quarto e bato a porta.
Nenhuma de nós janta.
Na manhã seguinte, quando saio do meu quarto para fazer xixi, minha mãe me chama. Ela está sentada na cozinha, vestida com o roupão cor- de-rosa, que parece engolir seu corpo inteiro.
— Podemos conversar?
Tento decifrar o humor em que ela está. Ainda está furiosa? Ainda está deprimida? Quando me aproximo, sinto outra coisa. Culpa.
— Sente-se. — Ela faz um gesto indicando a mesa.
Eu me sento na frente da minha mãe. As olheiras sob os olhos dela estão mais escuras. Ela não anda dormindo.
— Sinto muito — diz minha mãe. Lágrimas caem dos seus olhos verdes. — Eu tive um dia ruim ontem. Ficaram de me ligar ontem para falar sobre a vaga de emprego no consultório, mas ninguém ligou. Estou achando que podem ter mudado de ideia. E o remédio que estou tomando causa sintomas de gripe. Comecei a sentir pena de mim mesma, então o seu pai me ligou e eu perdi a cabeça. — Ela pega minha mão. — Me desculpe por ter surtado na frente do seu amigo.
Embora eu quisesse acreditar que tudo está bem agora, não posso. Não é o primeiro pedido de desculpas que ouço dela.
— Amo você, mãe — digo. — E eu te perdoo. Mas você precisa fazer terapia.
— Foi só um dia ruim.
Eu enrijeço os ombros e digo a mim mesma que não sou a mãe dela.
— É mais do que isso. Você parou de escrever. Parou de viver. Parou de comer. Não foi só um dia ruim. Você teve um ano ruim. Vejo anúncios na TV dizendo que hoje existe todo tipo de remédio para a depressão.
— Querida, eu não preciso...
— Você precisa, mãe. — Eu a olho bem nos olhos.
Ela hesita e diz com relutância:
— Vou ver se o nosso seguro-saúde cobre.
Não era um sim, mas também não era um não.
Termino de me arrumar, abraço minha mãe e a lembro de ligar para o seguro-saúde. Quando saio, Lindsey está ao lado do meu carro. Ela havia me mandado uma mensagem ontem à noite, cerca de uma hora depois que me tranquei no meu quarto, implorando para eu ir à casa dela, mas eu só liguei. Não contei sobre a minha mãe, não estava pronta para conversar sobre isso, mas contei sobre Cash. Sobre nós nos beijando.
Quando ela me vê, sorri.
— Ainda caminhando nas nuvens?
— Mais ou menos... — Entro no meu carro.
Lindsey se senta no banco do passageiro.
— Eu mal posso acreditar que você está namorando Cash Colton. Ele é o cara mais gato da escola!
— Calma aí! Não estou namorando Cash. Ainda não.
Quando dou partida no carro, vejo minha mãe olhando pela janela.
Despenco das nuvens um pouco mais.
— Ok, deixe-me reformular — diz Lindsey. — Mal posso acreditar que você está dando uns amassos no cara mais gato da escola.
— Não dei uns amassos... Foram só cinco beijos...
— Hmm... — diz Lindsey. — Acho que foram amassos, sim. Vamos ver o que o Google diz. — Ela pega o celular e, em alguns segundos, está lendo e rindo.
— O que foi? — pergunto.
— Bem, de acordo com o Google, são vários os significados de “dar uns amassos”. Só beijar é um deles. Beijar com a língua é outro. — Ela olha para mim. — Você deu um beijo de língua no Cash?
— Digamos que sim...
— Ah, olha só... — Ela se concentra no celular. — Aqui está outro significado: “Trocar carícias, esfregar-se um no outro ou remover peças de roupa”.
— Nós não removemos nenhuma peça de roupa! — Eu solto uma risada.
Ela continua.
— Ouça esta aqui: “Qualquer coisa que não incluir penetração”. Penetração? Isso parece tão pervertido...
O comentário me faz bufar e depois pergunto:
— E quando você vai falar com David?
— Não vou. Se gosta de mim, ele é que vai falar comigo. — Lindsey afivela o cinto de segurança. — Adivinha quem mandou uma mensagem ontem à noite?
— Quem?
— Jonathon.
— O cachorro sarnento traidor? — Começo a dirigir.
Ela confirma.
Piso repentinamente no freio quando vejo o farol vermelho. O carro dá um solavanco.
— Não... — digo com firmeza.
— Não o quê?
— Não, você não vai voltar com ele! Ele te tratou como lixo.
— Mas...
— Sem desculpas! Não seria sua amiga se deixasse você voltar com ele.
Ela baixa a cabeça.
— Tem razão.
— Fale com David hoje!
— Talvez — Lindsey responde.
— Nada de talvez! Faça isso. E nem estou dizendo para sair com ele, apenas...
— Apenas o quê?
— Sinta que é possível. Descubra o poder que existe dentro de toda garota e pare de pensar que precisa de Jonathon para ser feliz. Às vezes acho que precisamos saber que outro cara gosta de nós para nos sentirmos bem com a gente mesmo. Às vezes só precisamos saber que conseguimos fazer um cara perceber que talvez a gente não precise de cara nenhum.
— É isso que você está fazendo com Cash? Encontrando o poder que existe dentro de toda garota?
A pergunta rola na minha cabeça.
— Talvez. Não sei ainda. — Mas quando penso nele, sinto que é mais do que isso.
Cash chegou cedo na escola, mas disse a si mesmo que sua pressa para chegar não tinha nada a ver com Chloe.
Na noite anterior, ele só conseguia pensar nela. Ficou se perguntando se ela seria Emily. Se havia gostado tanto de beijá-lo quanto ele gostara de beijá-la. Se ela iria odiá-lo quando ele contasse sobre as suas suspeitas.
Quando virou no corredor, ele a viu. Diminuiu o passo e a observou. Prestou atenção na maneira como o cabelo dela caía nas costas, enquanto ela guardava a mochila no armário.
Então ele se aproximou até parar ao lado dela.
— Olá.
Chloe se virou e sorriu.
— Oi.
— Oi. — O olhar de Cash foi direto para os lábios dela e ele quis beijá-la. Nunca fora de demonstrar afeto em público, mas poderia dizer que seria fácil mudar de ideia.
Percebendo que ficar olhando para os lábios de Chloe era estranho, ele desviou o olhar para o livro de matemática que ela segurava contra os seios. Mas deixar que o olhar se demorasse ali seria ainda mais estranho, então Cash falou sem pensar:
— Indo para a aula de Cálculo? Você tem aula com o sr. Williams? Eu tenho aula com ele mais tarde.
Desde a noite anterior, ele sabia que ela tinha aula com o sr. Williams, pois tinha lido e relido o arquivo que fotografara no escritório da srta. Anderson.
— Sim — ela respondeu. — Ele parece legal. Qual é a sua primeira aula?
— História. — O alarme tocou.
— Preciso ir — disse ela. — Vejo você na aula de Literatura Americana.
— Até mais tarde. — Ele se inclinou na direção dela. — Gostei de ontem.
Ela sorriu e aqueles suaves olhos castanhos o fitaram através dos cílios.
— Eu também.
Ela se afastou. Ele a viu cruzar o corredor em meio à multidão. O jeans preto que ela usava se ajustava quase tão bem quanto o jeans azul que vestira no dia anterior.
Ele ficou ali parado até a visão dela ser obstruída por outros alunos.
Considerando que Cash fazia parte de quase todas as aulas de conteúdo mais aprofundado, era estranho que só tivessem uma aula juntos aquele dia. Apenas azar. Ou talvez fosse porque ele tinha escolhido estudar Tecnologia Automotiva.
No ano anterior, quando montava sua grade de aula, a srta. Anderson tinha tentado convencê-lo a não fazer isso.
— Mas eu não posso mantê-lo em todas as aulas mais avançadas se estiver estudando Tecnologia Automotiva. Você poderia escolher outra aula de matemática para se preparar melhor para os cursos universitários.
Ele explicou que havia planejado cursar aulas de matemática numa faculdade antes de se formar. E ele já estava fazendo isso. Aquela noite era sua primeira aula.
— Então você planeja ir para a faculdade? — ela perguntou como se não esperasse que ele tivesse esses planos. Agora que sabia que a srta. Andreson era adotada, ele estava meio desapontado ao ver que ela tinha automaticamente pensado o pior dele. Pessoas comuns faziam aquilo, não pessoas que entendiam o que era uma adoção.
Ou talvez ela tivesse entendido até bem demais. A maioria das crianças adotadas por meio do programa do governo acabava na prisão. Quando Cash leu essa estatística, ficou chateado. Pensou nas poucas crianças adotadas de que ele realmente gostava. Não que tivesse mantido contato com elas. Isso era quase impossível em razão do número de vezes que mudara de lar temporário.
Enquanto caminhava para a aula de História, lembrou-se da pergunta seguinte da srta. Anderson. Ela quis saber:
— Então por que fazer Tecnologia Automotiva?
Cash disse a ela:
— Porque eu gosto.
E ele gostava mesmo. Mas a verdade era que, quando terminasse o ensino médio, não planejava receber uma mesada dos pais adotivos. Se algo acontecesse com o carro dele, era melhor que ele estivesse preparado para consertar.
Além disso, a oficina estava lhe atribuindo serviços cada vez maiores, agora que sabiam que ele estava cursando Tecnologia Automotiva, e ele esperava trabalhar numa grande oficina mecânica enquanto fazia faculdade.
Incomodava-o o fato de os Fuller terem comprado um jipe para ele. Eles o tinham convencido a aceitá-lo. Mas Cash se arrependera. E estava determinado a reembolsá-los.
Depois do almoço, vou ao meu armário buscar meus livros. Com o armário aberto, pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem para minha mãe. Você ligou para o seguro-saúde?
Ela precisava saber que eu não tinha me esquecido.
Estou esperando para ver se ela vai responder quando sinto alguém de pé ao meu lado. Abro um sorriso, pensando que é Cash. Mas, quando olho, vejo o rosto de um valentão com um nariz muito machucado. O nariz que Cash socou.
— Oi — ele diz. — Sou Paul Cane. Quarterback do time de futebol.
Eu olho para o meu celular novamente, esperando que ele vá embora. Ele obviamente acha que eu deveria ficar impressionada com a posição dele no futebol.
— Pois não?
— Chloe, certo? — ele pergunta.
— Sim.
— Pensei em fazer um favor a você.
Isso me faz levantar o olhar.
— Vi você saindo com aquele cara, Cash. Você provavelmente não sabe, mas ele é adotado.
Para mim isso é como derramar suco de limão num corte profundo.
— E daí? — percebo o tom frio da minha voz e espero que ele também tenha percebido.
Ele deve ter percebido, porque parece decepcionado.
— Conheço alguns alunos que frequentam a antiga escola de Cash, e há boatos de que ele é mau elemento.
Eu lanço um dos meus sorrisos mais amarelos e falsos.
— O bom é que não desperdiço meu tempo com boatos.
Os olhos cinzentos dele escurecem.
— Dizem que ele matou o pai. Um tiro bem no coração.
Isso me deixa atordoada, mas não demonstro.
— Como eu disse, não dou a mínima atenção para boatos.
Começo a andar, mas ele pega meu braço.
— Você deveria dar. — O tom da voz dele é tão arrogante quanto no dia em que praticou o bullying. Como se ele fosse mais esperto que todo mundo, superior. Mas eu o vejo simplesmente pelo que ele é: um babaca.
Eu olho para a mão dele e afasto o meu braço.
Ombros tensos, bato a porta do meu armário com um pouco de força demais. O barulho ecoa no corredor. Pessoas se viram para olhar.
Quando começo a andar, minha mente começa a dar voltas. Será que Cash de fato matou o próprio pai?
10
Quando toca o último sinal do dia, Lindsey me encontra em frente ao meu armário e vamos juntas ao estacionamento. Estou decepcionada que Cash não veio falar comigo. Durante todo o dia pensei no que Paul me disse. Não que eu acredite nele.
Sei que Paul é um idiota que diria qualquer coisa para prejudicar Cash. E se Cash soubesse o que ele disse, ficaria chateado. E é por isso que não vou dizer nada a ele.
Quando Lindsey e eu nos aproximamos do meu carro, eu o vejo encostado contra a lataria. Lembro com clareza como foi beijá-lo. Um sorriso aparece nos meus lábios e depois nos meus olhos.
Não. Ele não é um assassino.
— Você quer que eu deixe vocês dois sozinhos? — Lindsey pergunta.
— Não — eu digo.
Nós continuamos andando e tudo que eu posso ver é Cash. Em como seus olhos verdes brilham enquanto me olham. Na expressão dele, quase sorrindo.
— Esta é Lindsey.
Cash é educado e diz:
— Olá. Conheço você de vista desde o ano passado.
— Oi. — Ela pega o celular. — Eu preciso mandar uma mensagem... para uma pessoa. — Ela vai para o outro lado do carro. Sei que está apenas nos dando um pouco de privacidade e lhe sou grata por isso. Me aproximo dele.
— Espero que goste da sua aula de hoje à noite.
— Eu só queria me despedir.
Olho para ele. Seu olho roxo está melhor. Uma rajada de vento tira o cabelo preto da testa. Eu me pergunto se ele quer me beijar de novo. Sei que quero beijá-lo, mas usei toda a minha coragem quando o beijei primeiro ontem.
— Tudo bem se eu te mandar uma mensagem ou te ligar mais tarde? — ele pergunta.
— Tudo bem. — Nós trocamos números de telefone.
— Você pode me ligar também. — Cash passa a mão no meu braço. Sei que ele não está planejando me beijar. Mas o toque de alguma forma me tira o fôlego tanto quanto o beijo.
Fico ali parada, vendo-o se afastar. Ele se vira uma vez e abre um sorriso. Isso é tão bom...
— Sem beijo? — Lindsey pergunta depois que entramos no carro.
— Sem beijo. — Eu ofereço a ela um sorriso e quase digo quanto me sinto bem.
Ela suspira.
— Você sabe que isso tudo é muito louco? Sério, as garotas ficavam, tipo, se jogando em cima dele, e ele ignorava todas elas.
— Também acho muito louco... — comento, e a insegurança me atinge em cheio. Sei que ele disse que eu me pareço com alguém e foi por isso que tudo começou, mas, se Cash pode ter qualquer garota que quiser, o que está fazendo comigo?
Afasto esse pensamento e olho para Lindsey.
— Você falou com David hoje?
Ela sorri.
— Falei.
— E como foi?
— Usei o poder que toda garota tem! — diz ela. — E se ele me convidar para sair, eu vou. Eu não sei se ele gosta de mim, mas eu gosto dele. Ele é... revigorante.
— Ótimo! — Enquanto esperamos na fila para sair do estacionamento, ouço uma batida na janela da frente, do lado do passageiro.
É Jamie.
Lindsey abaixa o vidro.
— Oi — Jamie diz para Lindsey, sem nem me cumprimentar com um aceno de cabeça.
— Quer ir para casa comigo? A gente faz o dever de casa juntas...
— Hã... — Lindsey olha para mim como se estivesse constrangida.
— Pode ir — eu digo.
— Ok, então — diz Lindsey.
Eu fico olhando enquanto Lindsey salta do carro e se afasta com Jamie, dizendo a mim mesma que não estou com ciúme. O carro na minha frente anda um pouco mais. Eu faço o mesmo. Olho pelo retrovisor e as vejo dando risada. Não estou com ciúme, repito, mas machuca um pouco de qualquer forma.
Cash deixou Chloe, pensando se não deveria tê-la beijado. Ele andou na direção do jipe. Parecia que ela queria ser beijada. Talvez devesse mandar uma mensagem para dizer que ele queria também. Faria isso. Então se perguntou novamente se aquilo era sensato. Como ela iria reagir quando ele contasse sobre Emily? Cash preferia que ela não tivesse relação nenhuma com aquela história. Ele não tinha planejado gostar dela.
Claro que Chloe compreenderia.
Mas ele precisava contar em breve. Muito em breve. Ele não sabia o que estava esperando. Mais provas?
Quando se aproximou do jipe, viu algo estranho na porta do motorista. A raiva ferveu dentro dele enquanto fitava o risco fino na lateral do carro. Algum idiota havia riscado seu jipe. E ele apostava que o idiota tinha um nariz inchado também.
Cash ficou ali, cerrando e abrindo os punhos. Queria encontrar aquele cretino e lhe dar uma lição. Então se lembrou do suspiro triste da mãe adotiva.
Embora soubesse que Paul tinha feito aquilo, ele não tinha provas. Assim como não tinha provas do estupro. Quem acreditaria nele? Ninguém. Se ele fosse atrás de Paul agora, seria acusado de começar a briga. E teria problemas. Poderia ser expulso da escola novamente.
— Merda! — Cash se forçou a entrar no jipe. Ficou sentado ali, segurando o volante com tanta força que seus punhos doeram. De alguma forma, de algum jeito, tinha que dar uma lição em Paul, mas sem arranjar problemas.
Paro na calçada e fico olhando para a casa antiga. Tenho medo de entrar. Medo de ver minha mãe fazendo drama. Estou cansada de drama.
Ela me contou que esse foi o primeiro lugar onde vieram depois da adoção. Ela estava tão animada para me mostrar aos pais... Por que não me lembro disso? Minha única lembrança é a de olhar para aquele tapete sujo e para meus sapatos pretos de fivela. Triste, sozinha. Assustada. Eu me pergunto se estava sentindo falta dos meus verdadeiros pais naquele dia. Eu me pergunto por que eles não me quiseram mais.
Me pergunto por que diabos desperdiço tempo pensando nisso. Sempre acabo sentindo dó de mim mesma. Sentindo-me patética. E não quero ser essa garota que tem pena de si mesma.
Pego minha mochila e saio do carro.
Ao entrar em casa, eu me preparo para outra discussão com minha mãe. Ela não respondeu à minha mensagem perguntando se havia ligado para o seguro-saúde.
Ela está na cozinha. Arrumada. Isso é um bom sinal. Mas vestindo roupas dois números maiores, ela me lembra um pouco um manequim vestido com trajes largos demais.
Ao entrar na cozinha, coloco a mochila sobre a mesa. Ela está sorrindo e eu não consigo não me perguntar se não está apenas fingindo.
— Como foi seu dia?
— Ótimo! — ela diz.
— Você começou a escrever de novo? — Ela costumava ficar realmente feliz quando conseguia escrever várias páginas do seu livro.
— Não. Recebi uma ligação do consultório médico. Eu tenho uma entrevista amanhã para me encontrar com o outro médico. Surtei por nada.
— Isso é ótimo, mamãe!
Odeio ser estraga-prazer, mas tenho que perguntar.
— Você ligou para o seguro-saúde?
O sorriso dela diminui.
— Liguei. Eles vão me enviar um e-mail com uma lista de terapeutas.
— Eles não têm simplesmente um site que você possa acessar?
— Sim, mas está em manutenção, por isso a funcionária vai me enviar uma lista atualizada.
Eu não sei se isso é só uma tática para adiar a terapia, mas não sei como argumentar.
— Ótimo. Eu só quero...
— Preciso ir às compras — ela interrompe. — Usei a minha única roupa apresentável na primeira entrevista. E como hoje é 4 de setembro... — Ela me manda um beijo. — Achei que poderíamos sair para comemorar. Aproveito e compro uma roupa para você também.
Eu me esqueci da data.
Quando eu era mais nova, 4 de setembro era como um segundo aniversário para mim. Presentes e bolo. É o dia em que eles me adotaram. Nós sempre comemorávamos. No ano passado, depois que meu pai foi embora, ele enviou flores.
Passo os olhos pelo balcão da cozinha só para dar uma checada rápida. Nada de flores. Talvez elas cheguem mais tarde. Ou talvez meu pai também tenha esquecido.
Minha mãe ainda está sorrindo.
— Onde você gostaria de comer?
Eu me forço a parecer interessada. Acho que ainda estou chateada com ela por me envergonhar na frente de Cash, mas faço a coisa certa.
— Naquele restaurante italiano, na avenida principal.
Às oito da noite, já em casa, abraço minha mãe, digo a ela que me diverti ajudando-a a escolher uma roupa e agradeço pela blusa. Não deixei que ela comprasse outra calça jeans, porque sei que ela não tem muito dinheiro.
Na verdade, eu me diverti bastante. Minha mãe estava... quase normal. Nós não falamos sobre meu pai, nem a respeito do telefonema ou do seguro-saúde. Comemos frango marsala e tiramisu, e ela contou como foi a infância dela nesta cidade. Até falou um pouco sobre algumas das suas antigas amigas e sugeri que ela tentasse entrar em contato com elas.
No caminho para casa, ela perguntou sobre Cash. Ele é seu namorado? O que você sabe sobre ele? Minhas respostas — evasivas — foram propositalmente curtas para não prolongar o assunto. Desde que Lindsey mencionou que todas as garotas praticamente se jogavam em cima de Cash, tenho questionado o interesse dele por mim. Além disso, cinco beijos não fazem de ninguém um namorado, e eu não vou entrar naquele assunto sobre ele ser adotado. Mas a pergunta da minha mãe me faz pensar em como sei pouco sobre ele.
Depois de pegar uma garrafinha de água, vou para o meu quarto fazer a lição de casa e penso no que vou escrever para Cash. Ou na razão por que ele não me mandou nenhuma mensagem.
Odeio me sentir assim. Por que não posso simplesmente mandar uma mensagem para ele? Tenho receio de dizer algo idiota e ele parar de gostar de mim. Tenho medo de que ele não me mande nenhuma mensagem porque encontrou uma universitária muito mais bonita do que eu.
Sim, eu sou uma boba insegura. Sempre culpo a adoção. O fato de saber que meus verdadeiros pais não me quiseram. Às vezes quero encontrá-los e perguntar por quê.
Eu desabo na minha cama e Félix se deita sobre meu peito. Ouço seu ronronar e esse som me acalma. Abro meu aplicativo de fotos e tiro uma foto dele. Só sai metade de sua carinha, mas a foto fica bonita.
Eu finalmente o empurro para sair de cima de mim, fico de bruços e escrevo: Como foi a aula?
Imediatamente, vejo que ele leu a minha mensagem. Sorrio e me pergunto se ele estava prestes a me escrever também.
Cash: Entediante. Professor estava atrasado.
Eu: Que pena. Você ainda está na faculdade?
Ele: Não. O que você fez hoje à noite?
Eu: Saí para jantar em um restaurante italiano com a minha mãe.
Ele: Ela está de bom humor?
Eu: Não surtou mais. ©
Ele: Que bom.
Félix se deita sobre as minhas costas e fica afofando meus ombros.
Faço uma pausa e olho outra vez o celular. Devo me despedir agora?
Ele: Eu gostaria de ter beijado você no estacionamento.
Dou risada e solto um gritinho.
Eu: Eu também.
Ele: Posso te ver amanhã à tarde?
Eu não quero trazê-lo em casa novamente.
Eu: Que tal se a gente se encontrar naquela cafeteria depois de eu deixar Lindsey em casa?
Ele: Boa ideia.
Eu: Preciso fazer a lição de casa, mas o meu gato não me deixa em paz.
Ele: O gato dos Fuller também é assim.
Tenho a triste sensação de que ele não pensa no gato como se fosse dele e não se refere à casa dos Fuller como se fosse a casa dele. Eu me pergunto se as coisas são ruins lá. Quero perguntar, mas não sei como. Em vez disso, anexo a foto que acabei de tirar de Félix e uma legenda.
Eu: Olha o Félix.
Deitado na cama, Cash leu a mensagem. Ele se levantou na hora. Caramba! O nome do gato dela é Félix? Ele tentou se lembrar se havia contado a ela qual era o nome do gato dos Fuller. Ele não havia contado. Não tinha nem falado do gato ainda. Certo?
Ele: O nome do seu gato é Félix?
Ela: Sim.
Ele: Quem deu esse nome a ele?
Ela: Eu. Era pequena. Tinha 3 ou 4 anos. Por quê?
Merda! Ele saltou da cama e começou a andar pelo quarto.
Mas, puxa, se isso fosse um golpe, seria a maneira perfeita de aplicá-lo! Continuar dando dicas até... mas não era um golpe.
Ele ficou ali, o dedo posicionado acima do celular, sem saber o que digitar. O que dizer. Finalmente digitou:
Ele: O gato dos Fuller se chama Félix.
Ela: Mentes brilhantes pensam de maneira parecida.
Ele: Sim.
Ela: Foi você quem deu esse nome a ele?
Cash se sentou outra vez enquanto suas emoções desciam por uma tirolesa, abalando seus nervos. Digitou: Não. Ele é velho.
Ele tinha que contar a ela. No dia seguinte. Mostraria a foto em que tinham feito a progressão da idade dela. Chloe ficaria com raiva? Iria descontar a raiva nele? Ficaria chateada por ele ter escondido isso dela? Seria o final do relacionamento entre eles?
— Provavelmente — Cash respondeu em voz alta. Mas ele não tinha escolha.
11
— O que você está fazendo?
Merda. Cash olhou através do para-brisa. Eram cinco da manhã e ele achava que poderia fazer aquilo sem que ninguém soubesse.
A sra. Fuller, ainda de roupão, estava parada na porta da garagem. Que horas ela acordava?
Ele não tinha contado aos Fuller que o carro dele fora riscado. Agora, como explicar por que ele estava instalando uma câmera em seu carro? Ele tinha cerca de um segundo para decidir se deveria dizer a verdade ou mentir. Mentir não parecia justo.
Ele saiu do jipe.
— Estou instalando uma câmera.
— Uma câmera? Por quê?
— Ontem alguém riscou a minha porta.
— O quê? — Franzindo a testa, ela se aproximou e olhou a lateral do jipe. — Por que alguém faria isto?
— Estou achando que é o cara com quem briguei. Mas não posso provar. Então, achei que, se o pegasse no flagra, poderia ter certeza. — O que ele faria se esse plano funcionasse? Ah, já tinha algumas ideias. A maioria delas incluía socos e todas o deixariam em maus lençóis.
Mas aquilo era algo em que ele pensaria mais tarde.
— Você denunciou?
— Não.
Ela apertou os lábios.
— Por quê? A escola precisa saber.
Ele sentiu um nó no estômago.
— Por favor, me deixe resolver do meu jeito.
Ela ficou rígida.
— E se envolver em outra briga com ele?
— Eu não vou brigar — Cash disse, sabendo que estava fazendo uma promessa que dificilmente conseguiria cumprir. — Não tenho certeza se foi ele quem fez isso. Isso pode até ter acontecido na faculdade. — Era mentira. — Não quero acusar ninguém sem provas. Se riscarem meu carro de novo, vou saber quem foi.
— E o que vai fazer quando souber?
— Não vou começar uma briga. Prometo.
A sra. Fuller soltou aquele suspiro triste e ele sentiu um aperto no peito, sabendo que a estava decepcionando novamente.
— Precisamos acionar o seguro do carro. Tenho certeza de que o conserto está coberto.
— Tudo bem. Vou dar um jeito. — Não importava que fosse importante para ele.
— Você não deveria resolver isso sozinho. Vou avisar Tony e você e ele podem decidir como solucionar isso.
Droga! Ele deveria ter mentido.
— Onde você conseguiu a câmera? — ela perguntou.
— Numa loja de peças automotivas. Paguei com o meu próprio dinheiro.
A sra. Fuller soltou outro longo suspiro.
— Você tem o nosso cartão de crédito. Poderia ter usado.
Sim, ele tinha e nunca usara. Nunca faria isso. Nunca tirava vantagem dos Fuller nem pedia a eles mais do que precisava.
— Já que está acordado, venha tomar café da manhã comigo. Estou fazendo ovos com torradas.
Ele queria recusar, mas sabia que ela ficaria chateada.
— Está bem.
— Fica pronto em cinco minutos — disse ela.
Ele instalou a câmera em três minutos e entrou.
— O sr. Fuller não acordou ainda? — perguntou Cash.
— Ele só tem paciente às nove, por isso está dormindo — disse ela.
— Você quer suco? — Cash perguntou.
— Por favor.
Quando ele se aproximou do balcão, viu algo ali, ao lado da bolsa da sra. Fuller. Sua respiração ficou presa.
— O que você está fazendo com isso? — Ele olhou para a foto de Emily com a progressão da idade.
— Alguém pegou a que estava no Walmart. Eu imprimi outra.
Cash olhou para a sra. Fuller enquanto ela fritava os ovos.
— Não fale nada. Tony já disse. — Ela tirou a frigideira do fogão. — Sei que as chances de encontrá-la são praticamente nulas. Sei que a foto que aquele homem me mostrou é provavelmente uma farsa. Mas que mal faz afixar esta naquele quadro?
Ela cruzou os braços.
— Adoraria saber quem a tirou de lá.
A culpa apertou o peito de Cash.
A sra. Fuller tirou a torrada da torradeira e a colocou num prato.
— Será que acharam que ela se parecia com alguém? Não consigo parar de pensar. E se for a pessoa que a levou? Todos pensam que ela está morta. Eu entendo. — Ela colocou a torrada na mesa. — Mas e se não estiver? — A sra. Fuller olhou para ele. — Eu não estou obcecada com isso. Eu só.... Que mal faria deixar uma foto naquele quadro?
Cash viu a dor nos olhos dela e se perguntou se ela e o sr. Fuller teriam discutido sobre isso. Cash os ouvira brigando depois que foram enganados. O marido queria que ela esquecesse. Ela o acusara de esquecer a filha.
— Sinto muito.
A sra. Fuller franziu as sobrancelhas.
— Eu sei. Não faça tempestade em corpo d’água, assim como Tony. Estou bem.
Ela não estava bem, pensou Cash. Tinha perdido a filha. Por que, depois de quinze anos, sua mãe adotiva ainda ansiava pela filha, enquanto a mãe dele tinha acordado uma manhã e ido embora?
Cash ouviu as palavras do pai: Ela não estava nem aí pra você.
O alarme toca e eu tropeço a caminho do banheiro, ainda meio dormindo. As luzes estão acesas na sala de estar. O aroma de café perfuma o ar. Eu diminuo os passos para espiar a minha mãe, sem a bandana, sentada no sofá. Está usando o roupão muito grande para ela e folheia um álbum de fotos. Ela vira uma página. Algo na lentidão do gesto demonstra o humor em que ela está.
E não é bom.
Esperando que eu esteja errada, vou fazer xixi. Então saio do banheiro e entro na sala de estar, imprimindo de propósito mais alegria à minha voz.
— Bom dia!
Ela ergue os olhos. Eu desanimo ao ver as lágrimas nos olhos dela. Espero que o e-mail do seguro-saúde com a lista de terapeutas chegue hoje.
Ao me aproximar, sinto como se estivesse entrando numa bolha de tristeza. Meu olhar se desvia para o álbum. Espero ver uma foto do meu pai, mesmo achando que eu tenha confiscado e escondido todas as fotos dele quando a encontrei arrancando-as do álbum e rasgando-as. Mas não é a foto do papai que ela está olhando.
É da minha avó, quando era mais nova. Eu me lembro dela.
Minha mãe enxuga uma lágrima da bochecha.
— Sonhei com ela.
Quando me sento ao lado da minha mãe, o sofá solta um assovio. Contemplo a imagem de uma mulher de cabelos castanho-claros, olhos verde-claros e um sorriso radiante. Pela primeira vez, percebo quanto minha mãe se parece com ela. No entanto, não a vejo abrir um sorriso tão grande faz muito tempo.
Ela vira a página. Há uma foto dos meus avós. Minha mãe era filha única e nasceu quando eles já tinham certa idade. O pai dela morreu logo depois que fui adotada.
Vovó morreu quando eu tinha 7 anos. Ela sempre vinha ficar conosco no Natal e nas férias de verão. Naquela época, minha mãe trabalhava em período integral no hospital e minha avó ficava cuidando de mim. Lembro-me dela sempre comendo e me oferecendo tangerinas; ela até cheirava a tangerina. Sempre lia para mim à noite e seus abraços eram bem apertados. Ela me chamava de Mosquitinho. Eu odiava insetos, mas sabia que era um apelido carinhoso.
Também me lembro de acordar uma manhã e encontrar minha mãe chorando na cozinha. Meu pai estava abraçado a ela. Ele então se afastou de minha mãe e me puxou para o lado e explicou que vovó tinha ido para o céu, por isso minha mãe estava triste. Eu me lembro de chorar naquele dia também. Eu amava minha avó. Iria sentir falta dos abraços de tangerina e das caras engraçadas que ela fazia quando lia para mim.
Agora, depois que quase perdi minha mãe, quero chorar de novo — mas pela minha mãe desta vez. Posso imaginar muito bem como é perder um pai ou uma mãe.
— Foi um sonho bom? — pergunto.
— Sim. Estávamos cozinhando. Descascando batatas e rindo. Eu ainda sinto falta dela.
— Aposto que sente. — Meu coração fica apertado. Eu toco a cabeça dela.
— Ei, está nascendo cabelo! Cabelo de verdade, não só uma penugem.
— Sim, eu também notei. — Ela sorri, mas seus olhos parecem cansados.
— A que horas você acordou?
— Estou acordada desde as três da manhã.
— Volte para a cama — eu digo.
— Não. Preciso me preparar emocionalmente para a minha entrevista.
— Ah, claro. — Aperto a mão dela. — Boa sorte.
— Minha entrevista é só às quatro e meia. Te vejo antes de sair. Vou precisar que você me lembre de que não tenho com que me preocupar.
Não, não vai dar! Vou me encontrar com Cash. As palavras estão na ponta da língua, mas não consigo empurrá-las para fora.
— Claro.
Droga. Droga. Droga. Estou murmurando baixinho vinte minutos depois, enquanto passo um pouco de brilho nos lábios. Por que não consigo apenas dizer boa sorte para ela agora? Minha mãe precisa viver a vida dela e, até que faça isso, vai ser difícil eu conseguir viver a minha. O pensamento de ir para a faculdade parece impossível. Vejo a imagem na minha cabeça: eu envelhecendo ao lado da minha mãe.
Olho para o meu rosto no espelho do banheiro e me pergunto se depressão é algo contagioso.
A verdade é que eu provavelmente estava deprimida antes do início das aulas. Mas ter um lugar para onde ir todo dia e talvez a emoção de encontrar Cash e, quem sabe, até me tornar a melhor amiga de Lindsey fizeram minha vida parecer mais divertida. Melhor. Menos amarga.
Isso me dá a esperança de que minha mãe sinta o mesmo com relação ao trabalho dela. Com o novo emprego e a terapia, talvez eu consiga minha mãe de volta.
Eu ouço Docinho choramingando na porta do banheiro. Abro e ele está ali, com a guia na boca.
— Desculpa, amigão. Tenho que ir para a escola. Talvez esta tarde.
Então percebo que, embora eu não consiga encontrar Cash logo após a escola, a entrevista da minha mãe vai durar tempo suficiente para eu vê-lo enquanto ela estiver fora.
— Você gostou de Cash, não gostou? Tudo bem se ele for conosco no nosso passeio, certo? — Docinho abana o rabo. Ah, eu podia ter esperança, no final das contas.
Era cedo quando Cash chegou à casa de Chloe. Ela tinha pedido que ele chegasse às quatro e meia, então ele estacionou quatro casas abaixo e esperou. Ele estava uma pilha de nervos e seus ombros estavam, rígidos.
Ele tocou no bolso da frente, onde estava a foto com a progressão da idade.
Como ele iria explicar aquilo? Chloe ficaria chateada? Será que o fato de descobrir sobre a foto a levaria a desvendar todas as outras mentiras dele? O pneu? O arquivo da escola? Cash continuava dizendo a si mesmo que na hora decidiria o que fazer. Mas não estava a fim de improvisar.
Precisando de algo com que se ocupar, começou a excluir alguns vídeos gravados do cartão de memória da câmera do carro. Não tinha conseguido nada ainda. Mas podia demorar um pouco até que os agressores ficassem decepcionados pela falta de reação dele e tentassem novamente. Isso é o que eles queriam. Uma reação. Paul queria que ele começasse uma briga. Então, ele poderia dizer: Veja, Cash começou essa briga e a anterior também.
Cash não ia dar a Paul o que ele queria. Na verdade, hoje ele havia se desviado do seu caminho habitual só para passar ao lado de Paul e seus amigos, e sorrira o tempo todo.
Ele sabia que isso irritava Paul.
Paciência é a chave. Espere as pessoas fazerem alguma coisa. Elas vão fazer alguma besteira. Sempre fazem.
De onde estava estacionado, ele viu Chloe andando com a mãe até o carro. Antes de a mãe entrar, Chloe a abraçou. Ele lembrou que a mãe dela tinha uma entrevista de emprego naquele dia.
A cena lhe pareceu estranha. Como se Chloe fosse a mãe, não a filha.
Mais uma razão para Cash se preocupar com a história toda de Emily. O tiro poderia sair pela culatra. A primeira reação de Chloe poderia ser defender a mãe. Não, ele não acusaria os pais dela de serem os sequestradores, mas isso estava implícito.
Seus instintos lhe diziam para adiar a revelação, mas haveria um momento melhor para contar tudo a ela?
Chloe observou a mãe ir embora. Quando ela se virou para voltar para dentro de casa, seu olhar se desviou para a rua. Ela colocou a mão na testa para bloquear o sol e olhou na direção do carro dele. Droga. Ela o viu.
Cash ligou o motor e parou na frente da casa de Chloe.
Sentindo-se culpado por espioná-la, ele saiu do carro com a cabeça baixa, ensaiando o que dizer.
— Eu cheguei cedo e não quis incomodá-la.
— Você não precisava esperar no carro. — Ela não parecia chateada. Cash percebeu que havia reconquistado a confiança dela. E agora estava prestes a destruir essa confiança.
Um sorriso iluminou o rosto dela. Uma brisa agitou seus cabelos. Era o clima perfeito para ir ao parque.
— Entre — Chloe disse. — Vou pegar Docinho.
Ele a seguiu para dentro. Ela se virou e olhou para ele. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos desde que tinham se beijado. Será que ela esperava que ele a beijasse agora? Ele queria. Tinha pensado tanto naqueles beijos... A lembrança estava tatuada em sua mente. Mas não parecia certo beijá-la novamente enquanto ele estava mantendo aquele grande segredo.
Ela chamou o cachorro. Um latido veio do quintal e ela deixou o cão entrar.
— Quer ir passear, amigão?
Ela pegou a guia e a prendeu à coleira do cachorro, então parou.
— Vou correr até lá em cima e pegar um cobertor para a gente se sentar.
Enquanto Chloe disparava para o quarto, ele foi dar uma olhada nas fotos de família, na mesa ao lado do sofá. Encontrou aquela com uma Chloe pequena segurando o gato. Ele percebeu outra coincidência. Tanto Chloe quanto Emily estavam com um vestido cor-de-rosa. Ele pegou o celular no bolso para tirar uma foto, mas ouviu passos e guardou o aparelho.
Um gato tigrado amarelo a seguia. Ele olhou para o animal se esfregando nos tornozelos dela. Os dois Félix eram idênticos. Seria por isso que a jovem Chloe tinha dado a eles o mesmo nome?
— Félix? — ele perguntou.
— Sim. Ele é um amor. — Ela largou o cobertor numa cadeira próxima e agachou-se para acariciar o felino. A camiseta que ela usava tinha um decote que lhe dava uma visão de parte dos seios. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.
— Félix, este é Cash — apresentou ela.
Chloe se levantou e ele mal conseguiu desviar os olhos para o gato. Ele pegou o cobertor e, enquanto saíam da casa, ela se inclinou para mais perto dele. O choque de prazer e de dor acertou-o em cheio. Apesar do desconforto gerado pela culpa, ele adorava tocá-la.
Quando chegaram ao parque, Docinho começou a saltitar. Cash pegou a guia e Chloe ficou com o cobertor. O parque estava quase vazio. Eles encontraram um local sob a sombra de uma árvore e ela estendeu o cobertor na grama.
— Posso tirar a guia dele? — Cash perguntou.
— Sim. Ele fica por perto.
Cash se sentou ao lado de Chloe e soltou o cachorro, que congelou no lugar como se estivesse hipnotizado pela bola nas mãos dela.
Ela jogou a bola e Docinho correu. Chloe sorriu.
— Já vou pedindo desculpas. Ele não vai dar sossego por causa dessa bola. Tem obsessão por ela.
— Tudo bem — disse Cash. — Estou começando a ter obsessão por Chloe, então posso entender.
Ela riu.
— Acho que estou começando a ter obsessão por Cash também.
— Ótimo! — ele disse.
Sorrindo, ela olhou para o céu.
— É um belo dia.
Cash seguiu o olhar dela até o céu azul salpicado de nuvens brancas e fofas.
— Sim.
Chloe se recostou no cobertor. O decote dela subiu o suficiente para que ele pudesse olhá-la sem ficar babando. Os cabelos longos e castanhos estavam espalhados ao redor dos ombros e o sol suave do entardecer iluminava o rosto dela.
Ele queria beijá-la e deixar a conversa para depois.
Os olhos castanhos dela encontraram os dele.
— Você ficava tentando encontrar figuras nas nuvens, quando criança?
— Encontrar o quê? — Cash perguntou, estava tão ocupado olhando para ela que não prestara atenção ao que Chloe dissera.
— Você sabe, tipo elefantes ou dragões. No céu. Agora mesmo vejo um cavalo.
Ela apontou para cima.
Ele tentou seguir o dedo dela.
— Tudo o que vejo são nuvens.
Chloe riu.
— Use a imaginação. Não vê a cabeça, as patas e a cauda atrás?
Ele tentou.
— Lamento, mas...
— Minha mãe e eu costumávamos ir para o quintal e ficar olhando o céu por horas, tentando encontrar coisas. Ela sempre levava um saquinho de Skittles. E, sempre que uma de nós encontrava algo, ganhávamos um vermelho. — Ela sorriu.
— Por que vermelho?
— Porque os vermelhos são os melhores. São doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Cash forçou um sorriso e novamente tentou ligar alguém que procurava formas em nuvens na companhia da filha com a imagem de uma sequestradora. Algo parecia errado.
— Você se lembra dos seus pais? — ela perguntou.
A pergunta o pegou desprevenido. Docinho veio correndo com a bola na boca. Cash pegou a bola, grato pela pequena interrupção, e jogou-a novamente.
— Da minha mãe, não. Do meu pai, sim.
— Como ele era?
Ele voltou a olhar para o céu. Um cretino.
— Acho que vi o cavalo.
Quando Cash olhou para Chloe, ela estava franzindo a testa.
— Você faz muito isso.
— O quê?
— Mudar de assunto. — Ela mordeu o lábio. — Você não gosta de falar sobre eles, não é?
— Na verdade, não.
Ele respirou fundo.
— Chloe, eu preciso...
— Eu sinto que você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre você.
— Eu não sei tudo sobre você — disse ele, tentando escapar da conversa.
— Você sabe que meu pai é um idiota que vive me enganando. Você sabe que meu namorado se chamava Alex e que minha mãe teve câncer.
— Que tipo de câncer? — Cash perguntou e, para seu crédito, ele queria mesmo saber. Tinha ouvido a sra. Fuller falar sobre cânceres que eram mais difíceis de curar.
Chloe sentou-se.
— Câncer de mama. — Ela puxou um joelho e o abraçou. Dava para perceber que era difícil para ela falar sobre a doença da mãe.
— Mas ela está livre do câncer agora, certo?
— Sim. Foi diagnosticado cedo. Minha avó teve câncer de mama, então minha mãe fazia mamografias anuais. Ela estava com medo de ter o gene do câncer.
— Gene do câncer? — Cash perguntou.
— Há um gene de câncer de mama hereditário. Ela fez o teste e foi comprovado que não o tem.
— Tenho certeza de que você ficou aliviada — ele disse, sem saber o que dizer.
— Bem, como ela não é minha mãe biológica, isso não me afetou.
As palavras de Chloe ficaram dando voltas na cabeça dele. Não é minha mãe biológica. Docinho veio correndo e deixou cair a bola ao lado de Cash. Ele o ignorou.
— Ela... não é sua mãe de verdade?
— Não. Eu sou adotada. — Ela puxou a outra perna para cima. — E lá vou eu de novo, falar de mim a você. Já que você conhece Alex, conte-me sobre sua ex-namorada.
Chloe é adotada? Isso significa...?
— Adotada?
— Não mude de assunto. Conte-me sobre sua antiga namorada.
Cash teve que se concentrar para responder.
— Eu namorei uma garota por alguns meses quando tinha 16 anos.
— Da escola particular?
— Não, ela morava em Langly.
— Como você a conheceu?
— Os pais dela têm uma casa no lago ao lado da casa de veraneio dos Fuller, mas...
Não é minha mãe biológica.
— O que aconteceu? — Chloe perguntou.
— Ela conheceu outra pessoa.
Ele precisava dizer a Chloe agora.
Antes que Cash pudesse dizer mais uma palavra, ela continuou.
— Você gostava dela?
— Não. Um pouco. Só namoramos por uns dois meses.
— E essa foi a única namorada que você teve? — O tom de voz de Chloe dizia que ela não iria desistir.
— Neste verão, saí com algumas universitárias.
— Garotas mais velhas? — As sobrancelhas dela se levantaram, como se aquilo fosse uma coisa ruim.
— Apenas um ano ou um pouco mais do que isso.
— Você ainda está saindo com elas?
— Não. Chloe, eu preciso...
— Há quanto tempo você mora com os Fuller?
Docinho bateu com a bola na perna dele. Cash a jogou novamente.
— Faz três anos.
Ela descansou a mão no braço dele. Seu toque enviou uma faísca de dor direto para o peito de Cash. Mas então, com a mesma rapidez, a centelha lhe deu prazer.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele colocou um dedo nos lábios dela.
— Pare de fazer perguntas. — O tom foi mais agudo do que ele pretendia. — Estou tentando te dizer uma coisa.
Ela fez uma careta.
— Ok.
Ótimo. Cash já a irritara e nem tinha começado a falar ainda. Ele passou a mão pelos cabelos.
— Eu só vou mostrar a você.
— Me mostrar o quê? — Ela inclinou a cabeça para o lado como um filhote de cachorro curioso.
Ele tirou do bolso a foto com a progressão da idade e entregou a Chloe. Ela desdobrou a foto. Examinou-a e depois olhou para ele.
— O que é isso?
Cash não viu o reconhecimento que ele esperava nos olhos dela.
O coração dele acelerou no peito.
— É uma foto de Emily Fuller com a idade que ela teria hoje.
— Emily Fuller, o mesmo sobrenome dos seus pais adotivos?
Cash assentiu.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Eu ainda não entendi por que você está me mostrando isso.
— É você. Não vê?
Chloe olhou para a foto novamente, os olhos arregalados.
— Não sou eu.
— Parece você.
— Não. Quero dizer, talvez um pouco, mas não... parece de fato.
Ela examinou a foto novamente.
Cash viu um vinco aparecer entre as sobrancelhas dela. Chloe estaria se reconhecendo agora?
Agora ela parecia preocupada.
— Os Fuller... deram o bebê deles para adoção?
12
— Não — diz Cash.
Estou tentando entender o que ele está dizendo. Olho para a foto. Não, não é uma foto, mas um desenho. Ou um desenho feito no computador. Um daqueles mostrados nas séries policiais da TV. Eu vejo uma semelhança, mas não é tão grande assim. Ou será que é?
— Então, não sou eu. Fui adotada.
Ele me olha como se pedisse desculpas.
— Ela foi sequestrada.
As palavras de Cash ecoam nos meus ouvidos e minha resposta vem imediatamente.
— Eu não fui.
— Quantos anos você tinha quando foi adotada?
— Espere. Você acha que...? Isso é loucura.
— Eu sei que é, mas apenas me responda. Quantos anos você tinha?
— Quase 3.
Os olhos dele se apertam como se isso provasse alguma coisa.
— Você se lembra dos seus pais de verdade?
— Não. Mas você não está escutando. Eu fui adotada.
— Chloe, Emily Fuller desapareceu dois meses antes de fazer 3 anos de idade.
Um sentimento desconfortável brota no meu peito.
— Eu fui adotada. Não sequestrada.
— Tem mais uma coisa. — Ele pega o celular, encontra algo e passa o aparelho para mim.
— Veja.
Com uma mão estou segurando a foto, com a outra, o celular dele. De repente, as duas coisas parecem pesadas.
Eu quase não olho para a tela, mas então crio coragem. É uma foto emoldurada minha quando criança, com Félix no colo.
— Por que você tirou uma foto disso?
— Chloe, essa é Emily Fuller. Tirei essa foto na casa dos Fuller.
— Não, esta é a foto que está na minha casa.
Eu olho para a imagem e percebo que estou enganada. Na foto que há em casa, estou de pé ao lado de um balanço.
— Ok, eu pareço com ela, mas isso não...
— O nome do gato é Félix.
— Hã?
— Você disse que deu ao seu gato o nome de Félix. O gato dos Fuller se chama Félix.
O ar fica preso no meu peito, uma grande bolha que pressiona meus órgãos.
— Muitos gatos se chamam Félix. Havia um desenho animado...
— Seus pais se mudaram para longe logo após dizerem que adotaram você.
Dizerem? A bolha torna-se dolorosa.
— Você acha que meus pais me sequestraram? Você está maluco.
Olho a foto novamente e meu polegar acidentalmente passa o dedo na tela. A imagem muda. Eu pisco e olho. É um formulário. Mas tem o meu nome.
— O que é isso? — Eu mostro para ele o celular.
Culpa transparece nos olhos de Cash.
— Seus arquivos escolares. Eu precisava descobrir se...
— Descobrir o quê? — Minha coluna vertebral se enrijece.
— Achei que você poderia estar tentando enganar os Fuller.
— Enganá-los? O que você quer dizer?
— Se você parecia com Emily, então talvez estivesse tentando extorquir dinheiro deles.
Eu inspiro uma lufada de ar, aumentando a bolha. Balanço a cabeça. Nada faz sentido. Fico sentada ali, sentindo o sol na minha pele e a acusação de Cash na minha cabeça.
— Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso? — Então me lembro do que Cash me disse naquele dia na loja de conveniência. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
— As pessoas fazem coisas assim. — A expressão dele é quase de irritação.
Mas ele não tem o direito de ficar com raiva. Eu tenho.
— Então é disso — gesticulo indicando o espaço entre nós — que se trata o nosso relacionamento? — Olho para a foto do formulário. Tem o meu endereço nele. — Você não estava dirigindo pelo meu bairro procurando o meu carro aquele dia. Você sabia onde eu morava.
Cash não responde. Não precisa. A expressão dele deixa transparecer a verdade.
— Você... Foi você quem murchou o meu pneu!
— Eu precisava me aproximar de você para descobrir.
— Nada disso é real! — A raiva cresce por dentro, eu não consigo me conter. Jogo o celular para ele e me levanto. — Você é um sem-noção.
Cash também se levanta.
Cubro os olhos com as mãos, vejo tudo escuro, depois lampejos de luz.
— Ah, Deus. Eu te beijei. Tiro as mãos do rosto e olho para ele. — Você... Você nem gosta de mim.
— Isso não é verdade. Eu te beijei também e depois te beijei mais quatro vezes. Eu não pretendia... me apaixonar por você, mas me apaixonei.
Pego a guia de Docinho.
— Vou para casa.
— Chloe, não. Vamos conversar.
— Não. — Eu levanto a mão. Chamo Docinho. Quando ele vem, coloco a guia nele.
Dou um passo. Cash pega meu braço.
— Vou te levar.
Eu puxo o braço.
— Não. Vou andando. — Preciso ficar sozinha. Eu preciso... — Eu não sei do que preciso, exceto que tenho que ficar longe dele. Longe das acusações absurdas.
Eu o ouço chamar meu nome, mas continuo colocando um pé na frente do outro. Eu fui adotada. Não... Não. Não é verdade. Não pode ser. Eu não acredito. Então me recordo da minha única lembrança: eu, sentada num sofá, olhando para um tapete sujo. Eu me lembro de me sentir tão perdida. Tão abandonada. Tão assustada.
Continuo andando. Meus joelhos estão tremendo, ou será que é o chão embaixo de mim que está estremecendo? Todo o meu mundo está estremecendo. Isso não pode ser verdade.
Eu caminho rápido. Docinho continua andando ao meu lado. O ruído de suas patas batendo na calçada enche minha cabeça. Cada vez que ouço um carro se aproximando, fico com medo de que seja Cash.
Meu celular toca. Eu ignoro. Ao me aproximar de casa, vejo o carro de Jamie estacionado em frente à casa de Lindsey. As duas estão nos degraus da varanda de Lindsey. Eu não quero falar com elas.
Sei que ainda estou segurando a foto que Cash me mostrou. Eu amasso a foto, vou jogá-la fora, mas mudo de ideia e a guardo no bolso. Saio da calçada quando estou em frente à minha casa.
— Chloe? — Alguém me chama da casa ao lado.
Eu ignoro e continuo andando. Procuro no meu bolso a chave da porta, ando até a varanda e rezo para que elas desistam.
Elas não desistem.
Eu as ouço subindo os degraus atrás de mim. Por favor, vão embora. Eu percebo que estou chorando.
— O que foi? — É a voz de Lindsey, mas ouço os passos de outra pessoa, então sei que Jamie está com ela. Jamie nem gosta de mim. Eu não quero que ela me veja chorando como um bebê.
— Eu não posso falar agora. — Abro a porta, coloco Docinho para dentro, fecho a porta na cara delas e corro para o meu quarto. Eu me jogo na cama e abraço um travesseiro com força suficiente para fazê-lo explodir. Félix pula no colchão, tentando se aconchegar a mim.
Eu não acredito, digo a mim mesma. Então, por que estou tão arrasada?
Digo a mim mesma que é porque fiz papel de idiota quando beijei Cash.
Meu celular toca. Ignoro.
Cinco minutos depois, ele toca novamente.
E de novo.
E de novo.
Arranco-o do bolso para desligá-lo, mas vejo que há uma mensagem da minha mãe.
Ah, ótimo! Verifico para ver o que ela diz, sabendo que não posso estar chorando quando ela chegar em casa.
Consegui o emprego! Preenchendo a papelada. Comprando comida chinesa para o jantar. Vejo você em uma hora.
Ouço uma batida na porta da frente. Merda! É Cash?
Olho pela minha janela, onde posso ver a rua. O carro dele não está em frente, mas não consigo ver quem está na varanda.
Meu celular apita novamente. É Lindsey.
Preocupada. Você está bem?
Eu mando uma mensagem de volta.
É você quem está na porta?
Sim.
Sozinha?
Simmm.
Eu enxugo o rosto, me obrigo a me levantar e vou até a porta da frente.
— O que há de errado? — Lindsey pergunta assim que eu abro a porta. Ela não aguarda um convite; simplesmente entra.
— É uma maluquice — eu digo.
— O que é uma maluquice? Cash fez alguma coisa?
Pego a foto amassada do bolso e a aliso para desamassá-la.
— Essa garota não se parece comigo, não é?
Lindsey pega o papel amassado, olha para ele e depois olha para mim.
— Parece, sim. O que é isso?
Meu peito aperta. Vou para a sala e me largo no sofá. Meu corpo parece mais pesado ainda.
— Você deveria dizer que não.
Ela se senta ao meu lado.
— Desculpa. Você deveria ter me dito isso antes de perguntar.
Eu respiro fundo. Ainda quero chorar, mas me seguro. Olho para Lindsey.
— Você não pode contar a ninguém.
— Eu não vou contar.
— Cash pensa... Ele acha que eu sou a filha desaparecida dos pais adotivos dele.
Ela olha para mim como se eu não estivesse falando coisa com coisa, o que me dá um pouco de esperança. Porque nada daquilo faz sentido. Não pode ser verdade.
— O quê?
— Ela foi sequestrada.
Os olhos de Lindsey se arregalam.
— Ele acha que você foi sequestrada?
Lindsey faz um som de bufar que é meio risada, meio descrença.
— Sim. É loucura. Eu acho que ele nem gosta de mim. Cash pensou que eu estava tentando enganar os pais adotivos dele, tentando extorquir dinheiro deles. Ah, e imagine só! Ele murchou meu pneu.
— O quê? — Lindsey repete. Então ela olha novamente para a foto.
— Ok, parece com você, mas... Isso é loucura.
— Eu sei. Quero dizer, sim, fui adotada, mas...
— Espera aí. — Ela se inclina para mais perto. — Você foi adotada?
— Sim.
Lindsey arregala os olhos.
— Ok, mas quando você foi adotada e quando essa garota desapareceu?
Eu franzo a testa.
— Na mesma época.
Ela olha para a foto novamente.
— Merda. — Quando Lindsey olha para mim, posso ver em seus olhos que ela está começando a acreditar.
— Não pode ser verdade. Meus pais não são sequestradores!
Ela faz uma careta e devolve a foto para mim.
— Você já procurou na internet?
— Procurou o quê?
— O sequestro?
— Não. — Eu me levanto. — Mas agora vou procurar. — Corro para o meu quarto, onde meu laptop está ligado.
— Você sabe o nome da garota? — Lindsey pergunta, me seguindo.
— Sim. — Sento-me na minha escrivaninha e coloco a foto de lado. Meu celular toca. Provavelmente é Cash. Eu o ignoro e digito na barra de pesquisa do Google: criança desaparecida Emily Fuller. Ao digitar o nome, sinto calafrios, como se isso significasse algo para mim. Mas não pode significar nada. Então ouço o nome na minha cabeça. Emily. Emily. Emily. Há uma familiaridade nele que eu odeio, mas não compreendo.
Clico no primeiro link, mas existe, tipo, uma dezena deles. O link se abre. Vejo a foto de uma garotinha. Uma garotinha que se parece muito comigo quando eu era pequena. Eu começo a ler. “Desaparecida em 3 de setembro de 2004.” Minha respiração fica presa na garganta. Eu fui adotada em 4 de setembro.
Lindsey está lendo por cima do meu ombro.
— Você só foi adotada quando tinha 3 anos de idade?
— Quase 3 — respondo.
— Isso é muito estranho... — A voz dela ecoa.
Eu olho para Lindsey.
— Não sou eu. Não pode ser.
Meu celular toca novamente.
— Merda. — Eu o pego, vejo o nome de Cash e desligo.
Nesse momento, a campainha toca.
Lindsey se vira como se planejasse atender.
Eu agarro o braço dela.
— Não. Não quero vê-lo.
— Cash? — ela pergunta, e vai até a janela.
— Não vejo jipe nenhum lá fora. É uma van com o logotipo de uma floricultura.
A campainha toca novamente. Vou até a porta da frente e abro. Um homem está ali, com flores nas mãos.
— Chloe Holden? — ele pergunta.
É uma dessas perguntas que eu não deveria ter que pensar para responder, mas agora penso. Na verdade, pensei muito nisso durante toda a minha vida. Em quem realmente sou. Em quem meus pais realmente são.
Em que eu poderia ter feito de errado, tão pequena, para que meus pais me dessem para adoção.
De repente, sei quem enviou as flores. E começo a chorar novamente.
Uma hora depois, minha mãe está falando sem parar. Estamos sentadas na cozinha. Eu dou uma mordida no frango xadrez que ela trouxe para casa.
— Eles me adoraram! — Ela está animada. Feliz. Por isso escondi as flores no meu quarto. Eu quase as joguei fora. Eu já tinha tirado o buquê do vaso e segurado as flores acima da lata de lixo, mas não consegui.
Ele é meu pai. E... ele não é meu sequestrador. Essa coisa toda é um erro.
Então por que não conto à minha mãe?
Abro a boca para contar, mas nada sai. Porque isso poderia perturbá-la? Porque talvez eu não esteja convencida de que não é nada? As datas. O gato chamado Félix. A foto. Droga.
— Ele me disse que, por ter tido câncer, eu poderia oferecer mais apoio aos pacientes.
Estou tentando ouvir, mas ela já está se repetindo. Estou olhando para cima, depois para baixo, com o garfo na mão, enquanto persigo uma castanha-de-caju pelo prato.
— É o trabalho perfeito para você. — Pego a castanha e coloco na boca. Mastigo. Engulo. Não consigo sentir o gosto.
Minha mãe deixa cair o garfo.
— Não coma demais. Comprei sorvete de chocolate.
— Hmm... — Empurro meu prato e falsifico outro sorriso.
— Eu só começo quando a outra enfermeira sair. O que pode demorar duas ou três semanas. Eu gostaria que fosse agora. Ela estende o braço para pedir o meu prato. — Eu já contei que comprei umas bebidas que servem como suplemento alimentar? Eu me pesei esta manhã. Perdi mais alguns gramas.
Sim, porque você não come quando está chateada e você está quase sempre chateada.
— Você deveria beber, tipo, três por dia.
— Duas.
Olho para ela e tenho medo de perguntar, mas preciso. Porque, mesmo que ela esteja feliz agora, tenho medo de que algo pequeno, como o vaso de flores escondido no meu quarto, possa mudar isso.
— Você já recebeu os nomes dos terapeutas?
— Sim. E marquei uma consulta também.
Estou chocada.
— Sério?
— Sim. E é amanhã. — Ela aponta o garfo para mim. — Alguém cancelou a consulta.
— Ótimo!
Ela olha para mim, toda maternal.
— Você está se sentindo bem?
— Sim.
— Seus olhos parecem inchados.
Meu estômago aperta.
— Estou bem. Levei Docinho para passear. Eu acho que é alergia.
Ela continua a olhar.
— Seu pai ligou de novo?
— Não. — Merda. Ela sabe que andei chorando. E eu posso ver que a felicidade escorre dos olhos dela à simples menção do meu pai.
Ela continua me olhando.
— Tem certeza?
— Eu não tenho falado com meu pai. — Essa confissão me provoca um pouco de culpa. Eu deveria ter ligado para ele depois que as flores chegaram.
Não liguei.
— O que a deixou chateada?
— Nada. Estou bem, mãe.
— O que o deixou tão chateado?
Cash olhou para a sra. Fuller, parada à porta da cozinha. Quinta-feira era o dia de o sr. Fuller acordar mais tarde, então estavam apenas os dois acordados. E como ele não quisera jantar na noite anterior, ela tinha certeza de que havia algo errado. E havia mesmo.
Cash queria ir para o quarto e terminar a lição de casa, mas eles tinham uma regra tácita: se ela estivesse em casa, ele só tinha permissão para ir para o quarto depois das oito. Mesmo se Cash tivesse dever de casa, esperavam que ele o fizesse na cozinha.
A sra. Fuller achava que era isso que havia de errado com os adolescentes de hoje em dia. Os filhos passavam muito tempo no quarto e não conviviam o suficiente com a família.
Não importava que ela não fosse da família de Cash.
Era uma regra idiota.
— Não estou chateado. Eu já disse a você que comi um hambúrguer.
Ela fez uma careta.
— Isso explica por que você não jantou. Mas por que parece tão desanimado?
Porque magoei Chloe. Cash deveria ter pensado melhor antes de falar com ela. Ele deveria ter...
— É a lição de casa. Eu odeio resolver problemas de matemática.
A sra. Fuller se sentou.
— Eu posso ajudar. Não sou tão boa quanto Tony, mas...
— Não. — Ele olhou para o livro.
Cash a sentiu olhando para ele.
— Algo está aborrecendo você, Cash.
— Eu só preciso terminar isso.
Ela estendeu a mão e ergueu o queixo dele e o olhou direto nos olhos. O toque dela doía, como o de Chloe havia doído aquele dia mais cedo.
— Eu me preocupo com você. — Ela o olhou como se estivesse tentando ler a alma dele.
Cash não queria ninguém vendo o que havia na sua alma.
— Pare de tentar me psicanalisar.
Ela deixou cair a mão.
— Na outra noite, quando você veio à sala de jantar, eu estava sofrendo e você me ajudou. Não acho que me lembrei de dizer obrigada.
— Não há de quê — Cash disse, sem saber por que ela estava fazendo aquilo.
— Eu quero fazer o mesmo por você. — O suspiro dela encheu o cômodo. — Mas você não nos conta os seus problemas. Você nos afasta. Eu quero fazer as coisas direito.
Você não pode fazer direito.
— Eu já disse que estou bem. — Um dia ele teria que contar aos Fuller sobre toda aquela história de Chloe/Emily, mas não enquanto Chloe estivesse chateada. E não até que Cash tivesse certeza absoluta de que estava certo. No caminho para casa, ele tinha pensado nas palavras de Chloe. Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso?
O tipo dele. Cash fez isso. Ele se lembrou da dor profunda que viu nos olhos da mulher quando ele mentiu sobre ser o filho dela.
Cash tinha que ter certeza de que estava certo sobre Chloe ser Emily antes de contar aos Fuller.
Ele tinha que acabar com aquela raiva de Chloe para que pudessem descobrir a verdade. Mas como, se ela não estava nem mesmo respondendo às suas mensagens?
— Você não está bem — disse a sra. Fuller. — É como se achasse que não nos importamos. Nós te amamos.
Ele deixou cair o lápis.
— Pare. — A mesma frustração que Cash tinha sentido com Chloe brotou dentro dele.
— Parar o quê?
— Isso que está fazendo. Me desculpe, não posso ser o que você quer que eu seja. — Ele fechou o livro com força.
Os ombros da sra. Fuller afundaram.
— O que você acha que eu quero que você seja, Cash?
A resposta saiu sem que ele pudesse detê-la.
— Seu filho! Eu não sou seu filho!
A dor ficou estampada na expressão dela e ele quis dar um chute em si mesmo.
Cash olhou para o relógio do forno.
— São cinco para as oito. Posso ir para o meu quarto?
Ela assentiu.
Ele saiu da cozinha, mas não rápido o suficiente para não ouvir o suspiro de decepção da mãe adotiva.
Droga! Ele nunca fazia nada certo.
13
Eu estaciono na escola na manhã seguinte. Lindsey falou o caminho todo até aqui. Fazendo perguntas que não sei responder. Mas não fico irritada, porque são perguntas que eu preciso fazer a mim mesma. Emily Fuller tinha alguma marca de nascença? Havia algum suspeito? Havia descrições dos suspeitos?
Eu não voltei ao computador ontem à noite. Não consegui. Em vez disso, li um livro. Fiquei acordada e li um romance inteiro sobre vampiros e metamorfos, porque a história era muito distante da minha própria realidade. Eu queria ser transportada para longe da minha vida. Porque a minha vida é uma insana caixa de Pandora e, se eu abri-la, tenho medo do que vou encontrar.
Eu acabo de estacionar e olho para os prédios da escola. Estou cansada. Acho que dormi uma hora, talvez. Graças a Deus é sexta-feira. Pego minha bolsa e a mochila e percebo que não vou conseguir enfrentar isso também. Não vou conseguir passar o dia fingindo que está tudo bem. Não vou conseguir enfrentar Cash. Eu não tive nem coragem de ler as mensagens dele ainda.
— É isso, não vou para a escola — deixo escapar.
— Sério? — Lindsey pergunta.
— Quero pesquisar sobre Emily Fuller. — Por que toda vez que digo esse nome, sinto um déjà-vu? Emily. Emily. Emily.
— Eu tenho prova — diz Lindsey —, mas...
— Não — eu digo. — Preciso ficar sozinha. — Fui rude com ela? — Não é nada com você. Eu é que tenho que digerir essa coisa toda. Preciso ler todos aqueles artigos.
— Sua mãe não está em casa? — ela pergunta.
— Eu vou à biblioteca.
Ela parece preocupada.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Eu confirmo com a cabeça.
— Venho buscá-la depois das aulas.
— Não. Vou pedir para Jamie me levar para casa. — Ela me abraça. — Vai ficar tudo bem.
Como?, quero perguntar. Só vai ficar tudo bem se eu descobrir que nada daquilo é verdade. E mesmo assim, não vai ficar assim tão bem. Minha vida está uma bagunça.
O sr. Fuller tinha, por fim, ido falar com Cash sobre o fato de o jipe ter sido riscado. A conversa quase atrasou Cash para a escola. Ele mentiu sobre não saber onde o vandalismo tinha acontecido. O sr. Fuller insistiu em denunciar o estrago ao seguro, mas não estava obrigando Cash a fazer denúncia na escola. No entanto, ele teve que fazer ao pai adotivo a mesma promessa que fizera à mãe. Que, se ele flagrasse algo na câmera, resolveria o problema sem brigas. Manter essa promessa não seria fácil, mas Cash pretendia tentar.
O sr. Fuller não havia mencionado nada sobre o comportamento rude de Cash com a sra. Fuller. A mãe talvez não tivesse contado ao marido. Provavelmente porque temia que o sr. Fuller expulsaria Cash de casa. Será que ela sabia que os dois estariam melhor sem Cash? Ele se sentia um mau caráter por magoá-la. Por que tinha se transformado naquele cretino?
Estresse. Preocupação com Chloe. O fato de estar chateado com o vandalismo que Paul fizera no jipe que os Fuller lhe haviam dado. O jipe que ele não merecia. O jipe que era a única coisa nova e perfeita que ele já tivera na vida.
Cash não via a hora de a primeira aula acabar, pois estava desesperado para ver Chloe. Esperou até Literatura Americana para encontrá-la antes que ela entrasse na segunda aula — na esperança de que ela falasse com ele. Chloe não apareceu.
Antes que o sinal tocasse, ele foi para a ala leste da escola, onde ficava o armário de Lindsey.
— Ei — ele chamou quando a viu.
Surpresa, ela apertou os olhos.
— Oi.
— Você sabe onde Chloe está? — ele perguntou.
Lindsey franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Espero que você não esteja brincando com ela.
Agora era a vez dele de se surpreender.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer! A vida dela já não está fácil. A perda do namorado, o divórcio dos pais e o câncer da mãe, e agora você despeja em cima dela aquela história de ela ter sido sequestrada.
Ele não tinha dito a Chloe para não contar a ninguém, mas ficou chocado ao descobrir que ela havia contado.
— Eu preciso falar com ela. Onde ela está?
— Ela não veio à escola. Disse que precisava pesquisar tudo que pudesse encontrar sobre o sequestro.
— Ela trouxe o laptop? — Cash perguntou.
Lindsey franziu a testa de novo.
— Hã?
— Ela está com o laptop?
— Por quê...?
— A mãe dela provavelmente está em casa, então Chloe não iria querer fazer essa pesquisa lá. Se não está com o laptop, isso significa que está na biblioteca.
A expressão de Lindsey confirmou seu raciocínio.
— Não fui eu que disse. — As palavras dela o perseguiram pelo corredor enquanto Cash desaparecia em meio à multidão.
É como se o silêncio da biblioteca estivesse pesando sobre mim. A cada dois minutos, olho por cima do ombro, com medo de que alguém esteja observando o que estou lendo, vendo as imagens, me vendo. Por razões que não posso entender, estou com medo. E não apenas da verdade. É o tipo de medo que sentimos quando imaginamos um monstro embaixo da cama.
Eu tento afastar isso. Olhando para o computador, não consigo acreditar que existam tantos artigos sobre o sequestro de Emily Fuller.
Mesmo que seja coincidência, não consigo deixar de me perguntar como meus pais não viram as fotos ou as reportagens e não acharam que eu parecia com Emily.
Termino o oitavo artigo. Meu coração está apertado e meus nervos, à flor da pele. Quando respiro, meu coração bate na garganta. Me esforço para não chorar. Clico num vídeo e coloco os fones de ouvido que estão ao lado do computador. Antes de apertar o botão, olho para o rosto de uma mulher na tela. Seus cabelos escuros, olhos azuis e feições me hipnotizam. Eu não quero ver, mas não consigo desviar o olhar. Eu me pareço com ela.
Minha respiração fica presa na garganta. Durante toda a minha vida, tentei não me perguntar como seria a minha mãe biológica. Eu tentei não ficar ressentida, porque tenho uma mãe, uma mãe que me ama. Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe biológica não me amar. De ela simplesmente me entregar para alguma agência de adoção. E nessa única lembrança que tenho de mim mesma, chorando, sei que estou sentindo falta dela.
Eu sempre disse a mim mesma que não importava que ela tivesse desistido de mim, mas o abandono sempre esteve ali, me assombrando, roubando a felicidade do meu coração. Sempre me fazendo me perguntar o que havia de errado comigo.
Mas e se ela não tivesse me dado para adoção? E se, no final das contas, ela me quisesse?
Na minha cabeça, vejo a imagem da minha mãe adotiva, quase careca e magra demais, num roupão cor-de-rosa folgado. Por que sinto como se a estivesse traindo? Um nó se forma na minha garganta. Eu aperto o play.
“Por favor, por favor, não machuquem o meu bebê.” A voz dela soa na minha cabeça como música. É familiar ou minha mente está me iludindo? “Ela é uma boa menina", continua a mulher. “Ela é feliz, meiga e inteligente.” Há tanta dor na voz dessa mulher que ela vaza do computador e penetra a minha pele, o meu peito e se enrodilha como uma bola de elásticos prestes a se desenrolar. “Por favor, não machuquem meu bebê. Por favor, devolvam a minha filha. Eu não consigo nem respirar sem ela.”
Lágrimas escorrem pelas bochechas dela. Lágrimas estão escorrendo pelas minhas bochechas. Eu não me preocupo em enxugá-las. Isso dói. Dói tanto...
Como é possível? Isso é uma loucura. É um absurdo. Tem que ser um engano.
Alguém se senta ao meu lado. O medo me domina. Um grito sobe até a minha garganta. Eu me sobressalto, depois vejo Cash através das lágrimas.
Arranco os fones de ouvido.
— Chloe, por favor, vamos conversar.
Pego minha bolsa e minhas anotações e saio correndo da biblioteca. É apenas Cash, mas o medo paira sobre mim. O monstro embaixo da cama está lá fora.
Calafrios percorrem minha coluna como aranhas.
Escuto passos atrás de mim. É apenas Cash, mas percebo o meu coração batendo na garganta, enquanto ouço a voz dele implorando. Há um zunido nos meus ouvidos. Lágrimas deslizam por minhas bochechas. Um medo infundado, inexplicável, me envolve.
Chego ao meu carro e percebo que tenho que procurar as chaves. Antes que eu possa colocar a mão na bolsa, Cash está parado na minha frente.
— Precisamos conversar!
A bola de elásticos no meu peito começa a se soltar. Um. Dois. Três. Pop, pop, pop. Eles machucam minha pele.
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto.
— Você não estava na escola.
Eu pisco.
— Você foi à minha casa? Se você tiver dito algo sobre isso à minha mãe... — Coloco o dedo no peito dele. — Se você tiver feito isso...!
— Eu não fiz nada.
— Ela já está sofrendo demais. Você não vai contar...
— Não vou. Pode acreditar.
Eu balanço a cabeça.
— Claro, como se você nunca tivesse mentido para mim nem nada.
Cash segura as minhas mãos.
— Você está certa. Eu menti. Meti o pé pelas mãos. Não sabia como dizer a você. Desculpe.
Começo a vasculhar a bolsa, procurando as chaves.
— Mas, Chloe, eu sei que você tem perguntas e eu posso responder muitas delas.
Balanço a cabeça mais uma vez.
— É um equívoco — eu digo e gostaria de acreditar nisso. Gostaria que o nome Emily não fosse tão familiar para mim. Queria que a voz da mulher no vídeo não continuasse ecoando no meu ouvido. Gostaria que esse medo louco desaparecesse. — Tem que ser um equívoco.
— Sei que é difícil. E talvez seja um equívoco. Mas vamos descobrir.
— Como? — pergunto a ele, em um tom de voz muito alto. — O que você quer que eu faça? Vá até a minha mãe e pergunte: “Ei, você me sequestrou?” — Eu fecho as mãos em punhos apertados. — Você não viu como a minha mãe está? Ela não está nem comendo direito, porque está deprimida. Isso a mataria!
Volto a vasculhar minha bolsa.
— Onde estão minhas malditas chaves? — Meu coração está batendo tão rápido que o meu peito vibra.
Vou até o capô do carro e despejo o conteúdo da bolsa em cima dele. Minha carteira, meu celular, pó compacto, um absorvente interno e algumas moedas soltas caem da bolsa e deslizam pelo capô. Eu olho minhas coisas, nada. Não acho minhas chaves. Devo ter deixado na biblioteca.
Pego minha carteira, a única coisa sem a qual não posso viver, e começo a voltar para a biblioteca.
Ele caminha ao meu lado.
— Chloe, por favor. Venha se sentar no meu jipe e vamos conversar. Podemos investigar isso juntos.
Eu o encaro.
— Talvez eu não queira descobrir a verdade.
Os olhos verdes dele se fixam em mim.
— Você está chateada. Está chorando e, se for à biblioteca, vão achar que algo está errado. Venha se sentar no meu jipe. Eu vou encontrar as suas chaves.
Seu tom de voz tranquilizador me contagia. Passo a mão no rosto.
— Ele está logo atrás de você. — Cash enfia a mão no bolso e eu ouço um sinal sonoro quando a porta do jipe se abre. — Entre. Vou encontrar suas chaves, ok?
Eu obedeço. Não sei por que, mas eu me viro e entro no jipe. Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos. Mas então abro os olhos com a sensação de que alguém está do lado de fora, me olhando pela janela. Mas não há ninguém ali.
Fico sentada no carro, respirando. Só respirando. Em alguns minutos, ouço Cash voltar para o jipe.
Levanto a cabeça.
— Encontrou?
— Sim — ele diz, mas não vejo nada nas mãos dele. — Podemos conversar? Por favor.
Quero insistir para que ele entregue as chaves, mas a lógica intervém.
— Eu não sei o que dizer.
— Então deixe-me dizer outra vez que sinto muito. — Ele parece tão sincero. — Não sei como poderia ter lidado com isso de forma diferente, mas obviamente meti os pés pelas mãos.
— Não brinca, Sherlock!
Ele sorri, depois volta a ficar sério e parece culpado.
O som dos carros passando e da vida acontecendo ecoa do lado de fora do jipe, mas, ali dentro, tudo está silencioso. Eu respiro outra vez e tento afastar o pânico que cresce dentro de mim.
— Sério, como você me encontrou aqui?
— Quando vi que você não estava na escola, perguntei a Lindsey. Ela disse que você queria pesquisar sobre o sequestro. Com sua mãe em casa, imaginei que o único lugar para fazer isso era a biblioteca.
Eu balanço a cabeça confirmando, depois puxo o quebra-sol do carro para baixo e me olho no espelho. Ele tem razão. Eu pareço chateada. Esfrego os dedos no rosto e limpo pelo menos parte da maquiagem borrada. Então olho para as minhas feições e me lembro do rosto no vídeo. Do rosto dela. Minha mente recapitula o que acabei de ler. Lágrimas enchem meus olhos.
Eu me reclino no assento.
— Meus pais nunca teriam me sequestrado. — Olho para ele.
Eu posso ver que Cash tem dúvidas. Mas como posso ficar chateada com ele quando existe uma pequena parte de mim que...
— Então vamos investigar a adoção. Você sabe o nome da agência?
— Não — eu digo.
— Você sabe se eles são da região, de algum lugar próximo daqui?
— Acho que sim.
— Existe alguma maneira de você encontrar o nome da agência? Sua mãe tem documentos ou algo assim?
Lembro-me vagamente de um dia em que minha mãe encontrou esses documentos quando estava procurando a apólice de seguro da minha avó. Mas isso foi há muito tempo.
— Sim, mas não sei se ela não os deixou na casa do meu pai.
Ele balança a cabeça. Mais dúvidas.
— Talvez você possa dar uma olhada na sua casa.
— Sim.
— E a sua certidão de nascimento?
— Isso ela tem. Usou para me matricular na escola. Mas eu já vi. Lá está escrito que sou Chloe Holden e que meus pais adotivos são meus pais. E que nasci em 18 de novembro.
— Em que lugar você nasceu?
— Eu não sei. — Algo me ocorre. — Você não contou... a eles, para os Fuller, não é?
— Não. Acho que precisamos ter certeza antes de contar. Se eles pensarem que você é Emily e depois... você descobrir que não é, isso os fará sofrer muito.
Eu fecho os olhos por um segundo. Fico curiosa.
— Como eles são?
Cash olha para mim e vejo compaixão nos olhos dele.
— Eles são... legais. Muito bondosos. Rigorosos. Muito rigorosos. — Ele suspira. — São melhores que a maioria das pessoas. Muito melhores.
Ao ouvir a resposta de Cash, compreendo muito do que ele sente. Amor, respeito e algo mais que não consigo definir, mas estou muito sobrecarregada para perguntar agora. A verdade é que tenho tantas outras perguntas... Um dos artigos dizia que ambos estavam na faculdade de medicina quando a filha foi levada. Eu quero saber qual é a especialidade deles. Se os Fuller já disseram a Cash alguma coisa sobre Emily. Eles ainda sentem falta dela? Tenho algum trejeito da filha deles? Mas tenho medo de desmoronar se perguntar. Então não faço isso.
— Você não se lembra de nada antes de ser adotada? — Cash pergunta.
Eu quase lhe conto sobre a lembrança que tenho, mas estou muito perturbada para falar sobre isso.
— Quase nada.
— Você estava assistindo ao vídeo. A sra. Fuller lhe parece familiar?
— A voz... — Um nó de emoção se forma na minha garganta. — Eu não posso acreditar. Tem que haver um engano.
— Então vamos provar que há um engano.
— Como? — Fecho a mão num punho apertado.
— Há um arquivo na mesa do sr. Fuller, onde eles guardam uma cópia de todos os artigos. Vou tentar encontrá-lo e tirar fotos para termos cópias de tudo. Isso pode ajudar. Você procura os documentos da adoção.
— E se eu não conseguir? Não vou perguntar...
— Vamos descobrir.
— Você acredita que eles me sequestraram, não acredita? — A dor dentro de mim duplica de tamanho.
— Eu não sei no que eu acredito — ele diz. — Mas, juntos, podemos encontrar a verdade.
Meu punho aperta mais forte.
— Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.
— Chloe, se você for Emily e seus pais a tiverem sequestrado, eles merecem...
— Eles não me sequestraram!
— Então por que não é uma boa ideia? Você quer respostas, não quer?
Eu quero. Acho que quero.
— Talvez eu não queira.
— Como você pode não querer saber a verdade?
— Minha vida já está de ponta-cabeça. — Mais lágrimas se acumulam nos meus olhos. — Eu tenho que ir. — Saio do jipe, olho para o meu carro estacionado perto e então me lembro de que ele está com as minhas chaves. Eu só fico parada ali.
Ouço quando Cash sai do jipe. Ele anda até ficar na minha frente.
— Quando você quiser conversar, me ligue, ok? — Cash parece preocupado e parte de mim quer abraçá-lo e chorar no ombro dele.
Em vez disso, só balanço a cabeça.
— Trabalho hoje à noite na oficina, mas saio por volta das oito. Poderíamos comer uma pizza.
— Não — eu digo.
Ele me entrega as minhas chaves.
Elas estão pesadas. Meu coração está pesado com a possibilidade de que eu seja Emily Fuller. Que meus pais nunca tenham desistido de mim. Que aquele monstro, o monstro embaixo da cama, tenha me tirado deles.
Entro no meu carro e saio do estacionamento. Não sei para onde estou indo, mas dirijo assim mesmo.
14
Cash observou enquanto Chloe se afastava. Aquilo ia de mal a pior! O que ele está fazendo de errado? Como ela poderia não querer respostas?
Então se lembrou do teste de DNA que ele nunca tinha olhado. Os Fuller haviam feito para ele no ano anterior, caso ele quisesse procurar a mãe biológica. O pai dele sempre dissera que a mãe tinha simplesmente acordado um dia e ido embora, abandonando-o. A sra. Fuller questionou essa história:
— Você não sabe, seu pai pode ter tirado você dela, como a pessoa que levou Emily.
A mãe adotiva tinha razão, mas Cash ainda não havia se convencido disso. Ele tinha medo de saber a verdade. Medo de como se sentiria ao descobrir a verdade. Era isso que Chloe estava sentindo? Às vezes o que você não sabe é mais assustador do que aquilo que você sabe. Mesmo que aquilo que você saiba já seja bastante assustador...
Ele ficou no estacionamento por uns bons trinta minutos, apenas remoendo as coisas. Sem saber se deveria voltar para a escola ou simplesmente ir para casa.
Quando resolveu ir para casa, sentiu um buraco no estômago. Ele não havia jantado na noite anterior nem tomado café da manhã, e estava morrendo de fome. Então parou numa loja de conveniência onde havia um McDonald’s. Enquanto andava pelo corredor de doces da loja, viu sacos vermelhos brilhantes de Skittles e lembrou de Chloe falando sobre os Skittles vermelhos. Eles são doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Ele pegou quatro pacotes.
Passei o resto do dia encolhida num banco do Whataburger. As cores brilhantes da hamburgueria e os fregueses alegres afugentam o medo infundado de antes. Lutando para ficar acordada, começo a navegar pelas páginas do Facebook dos meus antigos amigos e constato que todas as pessoas da minha antiga vida estão ótimas enquanto a minha vida fica cada vez mais insana. Visito a página de Alex. Ele adicionou várias fotos dele e de Cassie.
Depois procuro alguns dos meus autores favoritos e compro outro livro de vampiros para quando eu não conseguir dormir. Em seguida, leio alguns artigos on-line sobre como descobrir se um cara está saindo com você só porque quer sexo.
Eu queria que existisse um artigo que explicasse se um cara está saindo com você só porque acha que você é a filha dos pais adotivos dele. Que raiva! Então, quando penso em Cash, resolvo checar as mensagens não lidas que ele me enviou ontem.
São catorze.
Uma delas queria me lembrar de que a culpa não era dele.
Duas eram pedidos de desculpa, uma delas por ter enviado a mensagem de que a culpa não era dele.
Três eram para me avisar de que esqueci meu cobertor com ele. Duas eram para perguntar se ele podia me entregar.
Sete eram variações de Me ligue.
E uma mensagem muito longa era para dizer que eu tinha entendido tudo errado. Ela dizia: Você está errada em pensar que não gosto de você. Achei você linda desde o instante em que trombou comigo e derramou toda a minha raspadinha. E você chamou minha atenção no ato. Então vi quem você era e tentei não pensar que você era linda. Mas não consegui. Então comecei a conversar com você e vi que, além de linda, você é engraçada e inteligente, e não consegui deixar de gostar de você. A única razão pela qual não beijei você primeiro foi porque eu estava com medo de que pudesse interferir no que eu estava prestes a te contar. E isso de fato aconteceu. Mas ainda gosto de você. E quero te beijar novamente. E de novo.
Essa mensagem me tocou. Droga. Gosto dele também. E se a minha vida não fosse um caos, eu estaria pulando de alegria, porque também gosto muito de Cash.
Meu celular toca e chega uma figurinha da palavra “Olá” escrita em vermelho, com a mesma fonte usada no pacote de Skittles. A próxima mensagem diz para ligar para ele quando eu tiver vontade de conversar. E depois: Eu sei que isso é difícil.
A emoção forma um nó na minha garganta. Pego minhas batatas fritas frias, escrevo com elas a palavra “Oi”, tiro uma foto e escrevo que vou entrar em contato à noite.
A resposta é outra foto: um Skittles com um rosto sorridente.
Sim. Eu realmente gosto de Cash.
No mesmo horário em que as aulas acabaram, fui para casa com um humor muito melhor do que quando saí, mas no momento em que entro em casa e vejo minha mãe, com lágrimas nos olhos, sentada na mesa da cozinha com as flores que escondi no meu quarto, meu humor despenca.
— Por que você mentiu para mim?
— Não menti — digo.
— Você não me disse que recebeu essas flores.
— Isso não é mentir.
— Bem, você me fez mentir! Liguei para o seu pai e dei uma bronca nele por se esquecer de lhe enviar alguma coisa. Ele jurou que enviou. Então eu encontrei as flores. Por que não me disse?
— Porque eu estava com medo de chatear você. Justamente o que está acontecendo. — Meu coração está batendo na boca e eu não preciso disso agora. Quando poderei levantar as mãos no ar e gritar “Chega!”?
— Você não pode esconder as coisas de mim! — ela retruca.
— Eu não estava...
— Seu pai está bravo por você não ter ligado para ele. Me acusou de fazê-la ficar contra ele. Vem vê-la amanhã. Mas eu não quero colocar os olhos nele novamente! Ele é um cretino. — Então vai para o quarto, batendo a porta.
Largo a bolsa e a mochila na mesa da cozinha e me jogo na cadeira. Chego à conclusão de que a sessão de terapia não adiantou muito.
Meu peito aperta, um nó se forma na minha garganta e estou chorando. Fico apenas sentada ali e tento não seguir minha mãe até o fundo do poço, onde tudo que existe é a depressão.
Nessa noite, troco mensagens com Lindsey. Ela quer que eu vá à casa dela, mas eu não tenho condições.
Estou prestes a ligar para Cash quando minha mãe bate na minha porta. Ela enfia a cabeça pelo vão. Vejo um pedido de desculpas em seus olhos.
— Posso entrar?
Eu deixo.
Ela se aproxima e se senta na beira da minha cama.
— Sinto muito. Novamente.
Eu assinto. O que devo falar? Eu não perdoo você? Estou cansada de tudo isso? Você me sequestrou? A última pergunta, que dá voltas na minha cabeça, bate fundo no meu peito.
— Obrigada pelo macarrão com queijo — diz ela.
Eu havia preparado o macarrão e deixado um prato sobre o fogão.
— Você tomou uma daquelas garrafinhas que fazem bem à sua saúde?
— Não, mas vou tomar.
Ela toca a minha mão.
— Sou uma péssima mãe.
No momento, isso é verdade. Mas, antes que meu pai a abandonasse, antes do câncer, ela era incrível. Então balancei a cabeça, dizendo que não. De todos os meus amigos, eu sempre soube que eu era a que tinha mais sorte quando se tratava de pais. Eu me sentiria tão amada se eles fossem sequestradores de crianças? Acho que não.
Percebo que minha mãe está me olhando.
— Como foi a terapia?
— Difícil. A terapeuta disse que tenho muita raiva.
— Você tem.
— Vou começar a ir uma vez por semana. Vou melhorar.
— E os remédios? — pergunto.
— Vamos tentar sem eles a princípio. Vou começar a fazer caminhadas todos os dias.
Eu tento não ser pessimista, mas quero gritar, Caminhadas não vão resolver!
— O terapeuta também acha que vou melhorar quando começar a trabalhar. Você sabe, sair de casa e ter algo em que pensar, além do câncer e do cretino do seu pai.
O comentário sobre o meu pai me incomoda, mas pelo menos ela está fazendo terapia e falando sobre isso.
— E se você não quiser ver seu pai, não precisa fazer isso.
Minha mente dispara. Eu não estou com vontade de vê-lo, mas não quero que a minha mãe sinta que tem o poder, consciente ou subconsciente, de determinar se quero vê-lo ou não.
— Eu vou vê-lo.
Decepção transparece nos olhos dela. Mas minha mãe assente.
— Encontrei um bom filme. Uma comédia. O terapeuta sugeriu que eu comece a rir mais. Quer assistir comigo?
— Sim. Só preciso fazer uma ligação primeiro.
Seu tom de voz fica mais agudo.
— Para o seu pai?
— Não. Cash. — Vou falar com meu pai quando ele vier, mas só de pensar nisso, já me encho de pavor.
— Você gosta dele, não gosta?
— Sim. — Admitir é difícil.
— Apenas tenha cuidado. Os homens podem apunhalá-la pelas costas. — Depois de falar isso, ela sai do meu quarto.
Que conselho maternal mais doce e acolhedor... Eu volto para a cama. Penso em Cash e lembro como doeu quando meu pai foi embora. Lembro como doeu me afastar de Alex. Lembro que preciso ir para a faculdade no próximo ano. Lembro de minha única memória de quando eu era pequena, de ser arrancada da minha vida. Odeio esse sentimento e, se eu chegar perto de Cash, vou me sentir assim novamente. Já vou me sentir assim com Lindsey.
Tenho muitas razões para proteger meu coração, para não me deixar me apaixonar por Cash. Razões que nem incluem a suspeita dele de que eu seja Emily Fuller.
Volto a ouvir a pergunta que ele me fez antes.
Como você pode não querer saber a verdade?
Meu celular toca. Pensando que é Cash, meu coração dá um salto. Não é ele.
Antes de atender, verifico se minha mãe fechou a porta.
— Oi, pai.
— Como foi o seu dia? — a sra. Fuller perguntou quando Cash chegou em casa do trabalho e entrou na cozinha. O plano dele era subir as escadas e ir para o quarto, começar a lição de casa e decidir se iria tomar a iniciativa e ligar para Chloe ou esperar e deixar que ela fizesse isso.
— Ok — Cash respondeu, lembrando que ele e a mãe não tinham terminado a conversa de um jeito muito amigável na noite anterior.
— Posso fazer um sanduíche?
Ela franziu a testa e ele sabia por quê.
— Eu quis dizer, vou fazer um sanduíche. — A sra. Fuller odiava quando ele perguntava se podia fazer alguma coisa. Ela dizia que era um sinal de que ele não se sentia em casa. Ela estava certa. Cash não se sentia mesmo. Sim, ele gostava muito dos Fuller, mas não podia deixar de se perguntar se os dois não mudariam de ideia sobre ele se soubessem de todas as coisas que tinha feito ao lado do pai biológico. Eles não percebiam que Cash não era digno de generosidade?
— Melhor assim — disse ela. — Mas se estiver interessado, pode comer a pizza que guardei no forno para você.
— Muito interessado. — Ele tirou a caixa do forno e colocou no balcão. — Obrigado. — Cash pegou uma fatia e afundou os dentes no recheio macio e morno de muçarela e calabresa.
— De nada. — Ela sorriu. A sra. Fuller gostava de agradá-lo, tanto que às vezes o incomodava. — Tem salada na geladeira. Posso pegar para você.
— Não, apenas pizza, obrigado — ele agradeceu, mastigando com gosto.
Ela pegou um prato no armário e acenou para ele se sentar.
— Sente-se e coma. Vamos conversar um pouco antes de você subir e se trancar no seu quarto.
Cash se perguntou se isso era uma queixa com relação à noite anterior. De qualquer maneira, ele pegou a caixa e foi para a mesa.
— Onde está o sr. Fuller? — perguntou antes dar a segunda mordida.
— Foi nadar. — Ela apontou para fora, onde as luzes da piscina iluminavam o quintal. — Ele comeu cinco pedaços de pizza.
Ela pegou a tigela de Skittles que Cash havia deixado na mesa enquanto mandava uma mensagem para Chloe.
— Foi você quem comprou esses Skittles ou foi Tony? — ela perguntou.
— Fui eu.
Ela balançou a tigela por um segundo.
— Onde estão os vermelhos? São os melhores.
Cash engoliu a pizza.
— Eu comi. — Era mentira. Eles estavam num saquinho em seu quarto.
A sra. Fuller colocou a tigela na mesa.
— Você não me contou como são as suas aulas na faculdade.
— São boas. O professor é chato, mas não vejo problema. — Ele terminou sua primeira fatia e pegou outra. Ela lhe entregou um guardanapo. Cash colocou a pizza no prato e limpou a boca. — Como foi o seu dia?
— Foi ok.
— Salvou a vida de alguém?
— Estou trabalhando nisso. — Ela olhou para a tigela de Skittles, tirou uma balinha laranja e colocou na boca. — Você sabe, Tony e eu conversamos e você pode parar de trabalhar se quiser se dedicar mais à escola e terminar o ensino médio.
— Não, estou bem assim. Só tenho aula na faculdade às quartas-feiras. — Ele saboreava o segundo pedaço. A sra. Fuller assistiu Cash acabar de mastigar. Ele pegou o terceiro.
Ela franziu a testa.
— Não que a gente ache que você não dê conta. Achamos que você é muito capaz. É que... pense em como seria mais fácil se você apenas se concentrasse nos estudos.
— Eu gosto de trabalhar. — Cash deu outra mordida. — Essa pizza é muito boa — ele acrescentou, esperando mudar de assunto.
— Você está indo muito bem, mas poderia tirar notas melhores e entrar numa...
— Eu estou bem assim. — Seu plano era fazer um curso técnico depois do ensino médio e mais tarde ingressar na Universidade de Houston, que seria custeada por um programa do governo para pessoas como ele, que moravam em lares temporários. Mas Cash não queria falar sobre faculdades esta noite. Eles já haviam discutido quando ele disse que iria pleitear uma bolsa do governo que o programa de adoção oferecia. Cash já lhes devia o jipe. Não queria que pagassem também a faculdade.
— Você pode estudar onde quiser.
— Está tarde. Eu queria fazer a lição de casa. — Ele pegou o prato e o colocou na máquina de lavar louça. — Obrigado pela pizza. — Enquanto ele passava pela mesa, pegou outra fatia.
— Cash — ela chamou, parecendo um pouco impaciente.
Dando outra mordida, ele se virou, esperando que a sra. Fuller começasse a listar as universidades. Boas universidades, universidades caras. Ele começou a falar com o pedaço de pizza na boca.
— Olha, eu preciso...
— Queremos adotá-lo.
Ele ouviu as palavras, mas não as assimilou. O bocado de pizza, já no meio da garganta, bateu contra seu pomo de adão. Sua mente disparou. O coração doía. Ele se lembrou de quando disse que não era filho dela.
Era por isso que a sra. Fuller estava fazendo aquilo? Achava que ele queria ser filho dela?
Era a última coisa que Cash queria. Seu objetivo sempre fora pagá-los pelo jipe e sair da vida deles para que seus problemas não continuassem a afetá-los.
— Não. Péssima ideia. — Ele subiu as escadas correndo.
— Por quê? — ela perguntou, enquanto Cash subia. — Por que é uma péssima ideia? — Ele não respondeu.
15
Dez minutos depois do começo do filme e da segunda piada sobre preservativo, minha mãe decide que ele não é engraçado nem apropriado. Na verdade, é engraçado, pelo menos foi quando assisti com Alex um ano atrás. Lembro-me de todas as vezes que íamos à casa dele, deitávamos na cama e assistíamos a filmes. E fazíamos outras coisas.
Os pais dele tinham uma imobiliária e trabalhavam até tarde. Nós tínhamos a casa inteira para nós até por volta das oito. Eu, sinceramente, acho que, se os pais dele tivessem um horário de trabalho normal, nós não teríamos uma vida sexual.
Minha mãe tira o filme e assistimos à série Law & Order. Eu quase a lembro de que deveríamos assistir algo engraçado, mas tenho medo de que ela desligue a TV. Então fico de boca fechada. É uma reprise. Eu já vi esse episódio. Mas não quero que minha mãe se sinta abandonada, então fico e finjo assistir. O que estou realmente fazendo é repassando mentalmente o telefonema do meu pai.
Ele não fez rodeios. Pediu desculpas por não me ligar no primeiro dia de aula, alegando que tivera uma semana ruim. Eu queria perguntar se tinha algo a ver com a nova namorada.
Ele não disse nada sobre ter dado o meu quarto a Darlene, mas me falou que me amava e que sabia que não era perfeito.
Não pude discordar. Mas por mais triste que seja, acho que isso fazia parte do problema. Antes, ele era perfeito. Então Darlene apareceu. E sugou tudo o que ele tinha de perfeito. Ele me lembrou de que eu era filha dele e que a minha mãe não deveria tentar me colocar contra ele. Não pude discordar disso também.
Ele disse que precisava me ver e que sentia a minha falta. E eu gostasse ou não, ele era meu pai e não ia deixar minha mãe ficar entre nós. Eu quase perguntei: E Darlene? Você vai deixar que ela fique entre nós?
Consegui ficar quieta e concordei em jantar com ele amanhã à noite. Mas só depois que me certifiquei de que seríamos apenas nós dois. Eu notei o tom contrariado na voz dele quando perguntei. Eu não sabia se ele planejava trazer Darlene, mas ele concordou em vir sozinho. Ainda assim, estou esperando o nosso jantar com o mesmo entusiasmo com que espero minha menstruação.
Pego o álbum de fotos que minha mãe deixou sobre a mesa do escritório. Vou virando as páginas. Não acho que já tenha visto esse. Aposto que era de uma das minhas avós. Até nos mudarmos para cá, a maior parte das coisas da minha avó estava encaixotada no sótão.
Eu observo as imagens em preto e branco dos meus avós e da minha mãe quando era pequena.
Fotos dela quando criança, parecendo feliz. Viro a página e encontro fotos minhas.
Eu bem pequena. Eu segurando um presente com um grande laço.
Eu não parecendo feliz, apesar de estar segurando um presente.
Ali estão duas fotos que foram editadas, o que significa que minha mãe cortou a imagem do meu pai com a tesoura.
Minha mãe me vê olhando o álbum. Ela aponta para uma foto em que aparecem meus avós e eu.
— Essa foi tirada quando você os conheceu.
Eu observo a imagem. Meu eu mais jovem está olhando para a câmera como se estivesse implorando para alguém me salvar. O olhar no meu rosto me lembra o olhar dos animais que a gente vê naqueles anúncios comoventes para arrecadar dinheiro, promovidos pelas ONGs que cuidam de animais abandonados. O medo que eu tinha empurrado para longe me domina novamente.
Então vejo uma contusão na minha bochecha. Como eu teria me machucado?
— Tínhamos acabado de buscar você e viemos direto para cá, da agência de adoção.
Sinto meu coração acelerar.
— Como eu ganhei esse machucado?
Minha mãe olha para a foto.
— Eles disseram que você caiu no parquinho. Por quê?
Eu não sei, realmente não sei, mas o medo deixa os pelos da minha nuca arrepiados. Então percebo que essa é a minha chance de fazer perguntas.
— Então você me adotou numa agência daqui?
Eu folheio o álbum, não querendo que ela me veja esperando sua resposta com respiração suspensa.
— Em Fort Landing. Duas cidades mais para a frente. Eu lembro que a coloquei na cadeirinha do carro e voltei com você.
Eu olho para minha mãe. Ela ostenta um sorriso enquanto fala sobre mim quando eu era pequena. Um sorriso de amor. Não é o olhar de alguém que se lembra de ter sequestrado uma criança.
Eu não sei se posso chamar de alívio, mas meu peito fica mais leve. É como se isso confirmasse o que eu acredito que seja verdade. Meus pais não me sequestraram. Eu sei disso. Eu apostaria minha vida nisso.
— Quanto tempo levou a adoção?
— Oito meses. Os oito meses mais longos da minha vida.
Eu volto a olhar a foto do meu eu mais jovem. Tenho cabelos castanho-escuros encaracolados e meus olhos parecem grandes demais para o meu rosto.
— Eu pareço assustada.
— Você era nervosa. Confusa. Morou num lar temporário por um mês. Ficou apegada a eles.
Meu coração dá outro salto. Se isso é verdade, se morei num lar temporário, então não sou Emily Fuller, porque ela foi sequestrada no dia anterior à minha adoção.
— Eles disseram que demoraria um tempo para você se ajustar.
Eu engulo em seco.
— E demorou?
— Sim. Dormi com você por quase um mês, porque você chorava à noite. Eu te abraçava e cantava para você.
Eu acho que me lembro dela cantando. Meu peito dói quase como se estivesse sentindo o que senti na época. O que senti na única lembrança que me assombra. Confusa. Assustada. Insegura. Abandonada. Mal-amada.
— Eu falava alguma coisa sobre isso?
— Só que você queria sua mãe e seu pai. Partia meu coração. Eu ficava te dizendo que éramos sua mamãe e seu papai a partir daquele dia. Não demorou para você começar a sorrir.
Uma pergunta não sai da minha cabeça. Algo que eu secretamente sempre me perguntava.
— A agência lhe informou por que fui para a adoção?
Minha mãe parece surpresa. E também estou surpresa. Surpresa por nunca ter perguntado antes. Então, de repente, sei por que nunca perguntei. Parecia mais seguro não saber.
— Eles disseram que sua mãe era muito jovem e não era casada. Ela queria ficar com você, mas era difícil demais do ponto de vista financeiro. Nós temos muita sorte em ter você. Você é uma bênção. Tentei engravidar por muitos anos. Seu avô conheceu um casal que indicou essa agência. Não era muito caro. Eles conseguiam pais adotivos para muitas crianças mestiças um pouco mais velhas, cuja adoção é mais difícil.
Eles me disseram que eu sou, em parte, descendente de hispânicos, o que explica a coloração castanho-esverdeada dos meus olhos.
— Minha mãe é hispânica ou meu pai?
— Eu não sei.
Viro a página. Há uma foto minha com uma boneca. Uma daquelas que se parece com a criança que a ganha. Estamos com um vestido igual. Temos cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos castanho-esverdeados. A boneca está sorrindo e, nessa foto, eu também. Eu me pergunto quanto tempo já tinha se passado desde a adoção.
Minha mãe sorri.
— Você adorava essa boneca. Fomos a uma loja onde tivemos que assinar um termo de adoção depois de comprar a boneca. Você a carregava para todo lugar.
— Eu não me lembro — digo. Recordo-me da caixa de brinquedos que vi no sótão da casa do meu pai quando estávamos nos mudando. — Eu ainda a tenho?
— Não. Nós a esquecemos num parque alguns meses depois que você a ganhou. Nós voltamos, mas alguém já tinha levado a boneca. Você chorou por semanas, querendo Emily de volta.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Emily?
— Sim, foi o nome que você deu a ela.
Eram dez horas da noite quando o celular de Cash tocou. Ele saltou da sua escrivaninha, onde fazia o dever de casa distraidamente, enquanto pensava no que a mãe adotiva tinha dito e torcia para que ela não decidisse tentar terminar a conversa. Porque ele não sabia como terminá-la.
Por que é uma péssima ideia?
A única resposta de Cash seria perguntar por que ela achava que seria uma boa ideia. Os Fuller já tinham feito muito mais do que se esperava deles. Não sabiam como era difícil corresponder às expectativas deles? A sra. Fuller não se lembrava de como tinha ficado decepcionada quando o expulsaram da Westwood Academy? Ou, um ano antes, quando o acusaram de roubar um carro no bairro só porque ele fazia parte de um programa de adoção do governo?
Ou mesmo quando ele se envolveu na briga com Paul? Cash nunca conseguiria apagar seu passado. Droga, eles não conheciam metade do seu passado! Cash costumava furtar a aposentadoria do bolso de idosos. Roubava carros. Uma vez, quando o pai trabalhava na casa de um casal idoso, Cash havia entrado e furtado os cartões do banco e um colar valioso da mulher, uma joia que o marido acabara de comprar para presentear a esposa nas bodas de ouro.
Ele viu o número de Chloe na tela.
— Oi.
— Desculpe ligar tão tarde. Foi uma noite insana.
— Sua mãe não descobriu que você faltou às aulas hoje, não é?
— Não. Você contou para alguém?
— Não.
Ela ficou quieta e depois falou:
— Olha, eu tenho certeza de que minha mãe e meu pai não me sequestraram, mas... Estou achando que alguém fez isso. E você tem razão. Eu quero respostas.
— Ótimo. — Pausa. — Aconteceu alguma coisa para você mudar de ideia?
Chloe contou o que havia descoberto sobre a agência de adoção e o lar temporário em que tinha ficado durante um mês e sobre a boneca que se chamava Emily.
Ele odiava perceber a dor na voz dela.
— Vamos descobrir a verdade.
— Como?
— Acho que precisamos conversar com a sua babá. — Cash se sentou na cama.
— Babá?
— Emily estava com a babá quando desapareceu.
— Como você sabe?
— A sra. Fuller comentou um dia. E, desde que você chegou aqui, estou pesquisando na internet. Também li alguma coisa, alguns anos atrás, num arquivo que eles têm. E há outras coisas nesse arquivo. Tipo relatórios policiais e outras coisas. Vou tentar ver o arquivo novamente. Mas tenho que esperar quando eles não estiverem em casa. Mas, assim que eu desligar, vou ver quantas agências de adoção existem em Fort Landing. É uma cidade maior que Joyful. Pode existir mais de uma.
— São três — Chloe disse. — Eu chequei. Mas apenas uma estava aberta na época em que fui adotada, a Agência de Adoção New Hope, mas isso não significa que seja essa.
— Tem razão. — Ele encostou na cabeceira da cama. — Vou começar tentando encontrar a babá.
— Como?
— Internet.
— Encontrei minha certidão de nascimento. Ela diz que nasci aqui. — Cash a ouviu suspirar e o suspiro se parecia muito com o da sra. Fuller que o tocava tanto.
— Vamos descobrir.
— Você diz isso como se acreditasse que vamos mesmo descobrir.
— Eu acredito. Sou bom em descobrir coisas. Resolver quebra-cabeças. — Cada golpe é como um quebra-cabeça. Você só tem que descobrir quais peças juntar. Ele fez uma pausa. — Trabalho amanhã, mas saio às cinco. Você quer me encontrar? Podemos comer alguma coisa e conversar.
— Eu não posso. Meu pai está vindo para a cidade.
Será que ela só está dizendo isso porque não quer me ver?
— E domingo? — Ele apertou mais o celular na mão.
A linha ficou muda.
— Preciso pedir à minha mãe, mas não deve ser problema.
Ele se lembrou do que Chloe havia dito sobre o pai.
— Você vai ver seu pai numa boa?
— Não. Mas não importa... Não tenho escolha.
— Você sempre tem escolha — disse Cash. Até ele tinha escolha quando estava com o pai.
— Nenhuma que não causaria problemas.
— Já ouviu dizer que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos?
— Então você é aquele que quebra ovos enquanto eu sou uma pessoa que põe panos quentes. Não tenho certeza se somos compatíveis.
Ele riu.
— Eu só quebro ovos quando não há outro jeito.
— Quando não houve outro jeito? — Chloe perguntou.
— O que você quer dizer?
— Quando foi a última vez que você teve que se defender? Além daquele dia em que brigou para defender o garoto, no primeiro dia de aula.
— Esta noite — ele disse, depois se arrependeu.
— O que aconteceu?
Cash concluiu que poderia contar parte do que havia acontecido.
— A sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina.
— Por quê?
— Ela acha que me sobrecarrega por causa das aulas na faculdade e o ensino médio.
— Você está tendo aulas numa faculdade?
— Sim. Nas quartas-feiras à noite. Só para ajudar.
— Isso parece muita coisa mesmo — ela diz.
— Eu dou conta. Além disso, não é só por causa do tempo. Ela tem receio que eu mude de ideia e decida trabalhar na oficina e não ir para a faculdade.
— Mas, se você já está fazendo aula numa faculdade, por que ela tem esse receio?
— Porque também estou cursando Tecnologia Automotiva e não estou me candidatando para uma faculdade chique.
— Para que faculdade ela quer que você vá?
— Rice ou Harvard, pelo que sei.
— E por que você não quer ir para uma boa faculdade?
— Porque tem que ser uma faculdade estadual que a minha bolsa cubra.
No momento em que ele disse isso, desejou ter ficado quieto. Era como se a bolsa fosse uma esmola.
— Você tem uma bolsa do governo?
Cash hesitou.
— Por causa do programa de adoção.
— Isso é bom — disse Chloe.
— Sim — ele mentiu. E continuava dizendo a si mesmo que, quando concluísse a faculdade, reembolsaria o Estado também. Durante toda a vida, o pai dele não tinha feito nada a não ser lesar as pessoas. Cash tinha lesado muitas pessoas. Ele queria compensar isso.
— Você tem planos para a faculdade? — Cash perguntou para mudar de assunto.
— Universidade de Houston, provavelmente.
— Estou pensando nessa também. Mas por que “provavelmente”?
— No momento não posso deixar minha mãe do jeito que está.
— Mas ela já superou o câncer.
— Ela não superou o divórcio.
Ele se lembrou de Chloe dizendo que a mãe estava deprimida.
— Ela está muito mal?
— Depende de quando você pergunta. Hoje mais cedo, eu diria que ela estava realmente muito mal. Esta noite, estava melhor. Pelo menos está recebendo ajuda agora.
— Terapia?
— Sim. Hoje foi a primeira vez que ela foi. Espero que ajude.
— Sim. — Cash não colocava muita fé em terapeutas ou psiquiatras. Ele tinha sido forçado a fazer terapia por um ano, quando foi para um lar temporário. A única diferença era que havia aprendido a esconder melhor suas emoções.
A terapeuta não cansava de dizer: Nada do que você fez foi culpa sua. Mas era, sim. Ele sabia que estava errado quando fazia.
— Ela conseguiu um emprego, então espero que também ajude. Mas só começa daqui a algumas semanas.
— Que tipo de trabalho ela faz?
— Enfermagem.
— É isso que você vai cursar na faculdade? Medicina? — E se ela fosse a filha dos Fuller, não seria apropriado?
— Não. Estou pensando em Jornalismo. Ou Literatura Inglesa.
— Você quer ser escritora?
— Não. Minha mãe costumava escrever. Ela escreveu vários livros. Teve um editor numa grande editora de Nova York que pediu para ela fazer uma revisão no último que escreveu, mas então meu pai resolveu se separar e ela parou. Graças a Deus, ela não parou de ler livros.
— Você gosta de ler? — ele perguntou.
— Sim.
— O que você lê? Histórias de amor? — Cash perguntou para provocar.
— Claro! — Chloe riu. — Estou lendo um de ficção fantástica no momento. E você, lê?
— Eu costumava ler mais quando não estava trabalhando. Mas, gosto, sim.
— O que você leu nestes últimos tempos?
— Eu li Outsiders — Vidas sem Rumo e alguns do Stephen King durante o verão. Tentei ler Cinquenta Tons de Cinza, mas...
— Você leu Cinquenta Tons de Cinza? — Ela riu um pouco mais. — E você me recrimina por ler histórias de amor?
16
A risada dela fez o peito de Cash instantaneamente parecer mais leve.
— Eu disse que tentei ler. Não consegui terminar o primeiro capítulo.
— Não consigo nem imaginar você comprando ou pegando esse livro emprestado na biblioteca.
— Não fiz nada disso — ele disse. — A sra. Fuller leu e um dia eu entrei na biblioteca deles e peguei. Você não leu?
— Não. — O tom dela era agudo, denunciando uma mentira.
— Mentira. Você leu, sim.
Ela riu com culpa.
— Ok, eu e minhas amigas estávamos curiosas.
— E o que você achou? — Cash reajustou o travesseiro atrás das costas.
— Eu sei por que você não passou do primeiro capítulo. O que você planeja fazer na faculdade?
Cash notou que ela tinha mudado de assunto.
— Provavelmente algo ligado à área de negócios. Ainda estou indeciso também. Ele fez uma pausa. — Então, o que mais você faz além de ler livros eróticos?
Chloe riu de novo.
— Não sei.
— Você gosta de correr ou algo assim?
— Só se alguém estiver me perseguindo.
Agora foi ele quem riu.
— Quero dizer, para manter a forma.
— Eu sei. Eu costumava jogar futebol.
— E você era a mais bonita do time. — Ele lembrou da foto de Chloe e de várias colegas jogando futebol de shorts e a parte de cima de um biquíni. Ela parecia incrível.
— Como sabe? Ah, sim, você me stalkeou na internet.
— Eu não stalkeei você. Pesquisei sobre você.
— Você tem perfil no Facebook? — Ele a ouviu digitar algo no computador.
— Não. Pelo menos não com a minha verdadeira identidade.
— Você tem uma conta falsa no Facebook? Mas não tem uma com a sua verdadeira identidade...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Porque... gosto de stalkear as pessoas na internet. — Era uma piada. Chloe não riu.
— Sério?
— Na outra escola, ouvi dizer que alguns alunos estavam falando sobre mim no Facebook. Eu quis ver se era verdade... anonimamente.
Ela não disse nada por alguns segundos, então:
— Você costuma correr?
— Eu tento. Mas, neste verão, nadei mais.
— Você faz parte de uma equipe de natação? — ela perguntou.
— Não. Os Fuller têm piscina. E eu vou muito à casa de veraneio deles, no lago.
— Você não pratica esportes?
— Gosto de assistir. Mas nunca joguei.
— Sério? Com o seu tamanho, acho que algum treinador já devia ter feito você jogar futebol americano há muitos anos.
— Eles preferem evitar estudantes que moram em lares temporários. Nós nos mudamos muito.
— Você também?
— O quê? — ele perguntou.
— Mudou-se muito, antes de morar com os Fuller?
Ele passou a mão no rosto. Por que ele havia mencionado o programa de adoção?
— Eles são a minha quarta casa.
— Foi ruim?
Não tão ruim quanto viver com meu pai.
— Na verdade, não.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele queria mudar de assunto, mas Chloe o acusara de fazer isso no parque.
— Tinha 11.
— Como... como o seu pai morreu?
Merda. Essa era a desvantagem de se aproximar de uma garota. Ela queria saber a história da sua vida.
A linha ficou muda.
— Você não precisa contar, se não quiser.
Ele quase disse “ótimo”, mas optou por:
— É uma longa história, e já está tarde.
— Sim. Melhor a gente desligar.
Cash a sentiu se afastando. Quando ele queria que Chloe se aproximasse.
— Ele morreu num acidente de carro. — Era verdade. Cash tinha batido o carro, mas a bala no peito do pai é que o matara.
— Você estava no carro com ele?
— Não.
— Sinto muito. — A emoção veio acompanhada de um pedido de desculpas. — Quando minha mãe teve câncer, eu estava com tanto medo de perdê-la... Não sei se conseguiria superar algo assim. Isso deve ter sido muito difícil pra você.
Cash odiava a compaixão que sentia na voz dela. Ele não merecia. E nem o vigarista do pai.
É sábado à tarde e estou na casa de Lindsey, ajudando-a a decidir o que vestir no seu encontro com David. Estou empolgada com a notícia de que estão saindo. E estou me esforçando para irradiar boas vibrações. Minha mãe ficou deitada o dia todo. Eu mal consegui tirá-la do quarto para comer.
Vê-la deprimida faz com que eu me sinta culpada por ter concordado em ver meu pai. Ah, sei que não é justo que ela me faça sentir dessa forma e, sinceramente, não acho que minha mãe queira que eu me sinta assim. Mas ela faz isso e eu me sinto culpada. Adicione a tudo isso o fato de que não estou ansiosa para ver meu pai e é compreensível que meu humor não esteja muito melhor do que o da minha mãe.
— Eu gosto mais dessa blusa azul — digo a Lindsey.
— Não é muito sem graça?
— Não, realça seus seios.
— Não mostra demais, não é? Não quero que ele pense que estou tentando levá-lo para o banco de trás do carro no primeiro encontro.
Eu solto uma risada.
— Essa blusa não diz “vamos saltar para o banco de trás?”. Ela diz “olhe pra mim”.
— E olhar para mim é bom, certo? — Ela franze a testa. — Não sei se estou pronta para isso.
— Você está pronta — eu garanto.
Ela me olha pelo espelho.
— Eu preferia que fosse um encontro duplo. Você não pode ligar para Cash e ver se vocês podem ir conosco? — Ela se vira.
— Eu não posso. Vou ver meu pai hoje à noite, esqueceu?
— Ah, que pena. — Ela franze a testa. — Foi mal.
— Eu também lamento... — Desabo na cama dela e juro que não vou começar a me queixar da minha vida. Já fiz isso o suficiente ontem à noite, quando conversamos depois do telefonema de Cash. Sandy, uma das minhas amigas antigas, só reclamava. — Além disso, eu ainda não estou saindo com Cash.
— Vocês vão sair no domingo. Além disso, você ficou com ele no balanço da varanda.
— É verdade. — Eu sorrio, ao me lembrar e, se eu pudesse só pensar nisso, em vez de em outras coisas, ficaria mais feliz. — Mas não sei se é um encontro de fato ou só uma reunião para descobrir se sou Emily Fuller.
Ela revira os olhos.
— Depois daquela mensagem que ele enviou sobre querer beijar você?
Sim, eu mostrei a ela a mensagem de Cash.
— Tem razão. Acho que você não é a única que está nervosa.
— Apenas rezo para que, se ele tentar me beijar, eu não pense em Jonathon. Ele me enviou um e-mail esta manhã. Me perguntou o que eu ia fazer no final de semana.
— Você não respondeu o e-mail, não é?
— Respondi, mas apenas para dizer que estava ocupada. Tive que deixar claro que não estou em casa chorando por causa dele.
— Ele perguntou o que você andava fazendo?
— Perguntou. Eu não respondi. — Ela sorri.
— Esqueça esse cara — eu digo. — Esta noite vai ser divertida.
Lindsey se deixa cair na cama.
— Será que devo contar a David meu segredo mais profundo e sombrio?
— Qual segredo?
— Que minha mãe é lésbica. Ou isso não é algo que se diga no primeiro encontro?
— Por que você precisaria contar a ele?
— Porque se Lola estiver aqui, ele pode descobrir como você descobriu.
— Você não sentiria essa necessidade de contar a ele se sua mãe fosse heterossexual. Então, por que contar só porque ela é homossexual?
— Porque nem todo mundo acha que isso é normal como você.
— Não acho que você precise fazer alarde sobre isso.
Ela sorri.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo. Por dizer todas as coisas certas. Pedi a Jamie para fazer isso e ela disse que ela e a prima iam à manicure.
— Não esquenta. — Não sei se Lindsey percebeu que ela acabou de me dizer que sou sua segunda opção. É uma droga ser a segunda opção de alguém. Mas, ei, é melhor do que não ser opção nenhuma.
— Você vai perguntar ao seu pai o nome da agência de adoção?
— Se eu conseguir encontrar uma maneira de abordar esse assunto na conversa...
— Por que simplesmente não pergunta?
— Porque não sinto vontade de explicar que eu posso ser uma criança sequestrada!
Lindsey passa a escova nos cabelos.
— Você realmente não se lembra de nada da sua vida de antes?
Eu conto a ela sobre a minha única lembrança com o vestido de princesa.
— E o sequestro? Quero dizer, deve ter sido traumático e você se lembraria dele.
— Eu não me lembro.
O medo toma conta de mim. Conto a ela sobre a foto com o machucado no rosto. Do medo inexplicável que sinto.
— Ok, isso é de arrepiar — diz ela.
— Sim.
— Você não precisa contar ao seu pai sobre a história do sequestro. Apenas diga que esteve pensando sobre a adoção.
— Sim. — Mas como eu disse a Cash, sou de pôr panos quentes, não de quebrar ovos. Por outro lado, nas últimas vezes em que conversei ou estive com meu pai, eu estava surtando. Mas a coisa toda do sequestro é diferente. É muito maior. E se eu descobrir que sou realmente Emily Fuller, não vai haver uma tigela grande o suficiente para recolher todos os ovos que vou quebrar.
Meu celular avisa sobre a chegada de uma mensagem. Achando que é de Cash, sinto uma emoção brotar no meu peito. Não é de Cash.
É da minha mãe.
Avise seu pai que não deve entrar em casa. Eu não quero vê-lo! E pergunte a ele por que não pagou o seguro do seu carro ainda.
Um pensamento insano me ocorre. Não sobre minha mãe, mas sobre meu pai. Sobre perdoar papai.
Talvez eu não seja capaz de perdoá-lo até que minha mãe esteja bem. Talvez eu não seja capaz de perdoar meu pai até que minha mãe o perdoe.
O que pode ser, tipo... nunca.
Isso parece errado, mas pode ser verdade.
Eu me reclino na cama de Lindsey.
— Odeio a minha vida.
Cash trabalhou até um pouco mais tarde e já eram seis horas quando foi trocar de roupa. O celular tocou e, esperando que fosse uma mensagem de Chloe, ele pegou o aparelho. Não havia mandado uma mensagem para ela ainda, com receio de que ela fizesse perguntas sobre seu pai novamente, mas decidiu que mandaria uma mensagem mais tarde.
Cash esperava que ela estivesse acordada quando ele fizesse outra ligação tarde da noite. Se não fosse para falar sobre o passado, ele gostava de conversar com Chloe. Ele sorriu ao se lembrar da conversa sobre Cinquenta Tons de Cinza.
Olhou para a tela do celular. Não era uma mensagem de Chloe. Era da sra. Fuller. Ele se encheu de pavor. Tinha saído de casa aquela manhã sem vê-la. Cash não tinha ideia de como ela reagiria ao seu comentário de que seria uma “péssima ideia” adotá-lo.
Ele leu a mensagem.
Tony e eu estamos com vontade de comer comida indiana. Quer se juntar a nós no Kiran's Café?
Ele queria recusar o convite, mas talvez ir jantar fora fosse mais fácil do que enfrentá-la em casa.
Ele mandou uma mensagem. Que horas?
Sete?
Certo.
Ela enviou o emoji de uma carinha sorridente. A sra. Fuller sempre mandava mensagens com muitas carinhas sorridentes. Cash sabia que era um sinal de que ela se importava com ele. Ele também gostava de recebê-las.
Como ainda faltava uma hora, decidiu dar uma corrida até a livraria. Conversar com Chloe sobre livros o deixara com vontade de ler um. Talvez ele encontrasse um livro de ficção fantástica sobre o qual pudessem conversar.
Quando saio do banheiro, depois de me arrumar para me encontrar com meu pai, minha mãe está enrodilhada no sofá, com um livro e Félix no colo.
Ela olha para mim.
— Você está bonita.
— Obrigada. — Tudo o que fiz foi pentear o cabelo e colocar rímel e brilho labial, mas eu sei que essa é minha mãe fingindo que está tudo bem, e eu agradeço. Consulto as horas e vejo que são quase seis e meia.
Inclinando-me, acaricio Docinho, que está abanando o rabo como se achasse que vamos sair para dar um passeio.
— Você quer que eu traga algo para você comer? — pergunto à minha mãe.
— Não! Não quero comer nada que seu pai tenha comprado. — Ela já não está fingindo que está tudo bem.
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Por que você não escreve? — sugiro.
— Talvez.
Aposto que ela não vai nem tentar. E provavelmente não vai comer também. Eu verifiquei e, até hoje, ela só tomou duas das suas bebidas nutritivas, no total. E a promessa de beber duas por dia? Juro, minha mãe parece ainda mais magra agora.
— Até mais tarde.
Pego a bolsa e saio, me sentindo culpada por deixá-la sozinha.
Sentada nos degraus da varanda, vejo uma picape parar em frente à casa ao lado. Então Jonathon, o cão sarnento traidor, sai do carro. Ele me vê e me cumprimenta com a cabeça. Aceno de volta, mas não de uma maneira amigável. Sei que Lindsey já saiu há trinta minutos.
Eu o ouço bater na porta e perguntar por Lindsey. Escuto a mãe dela responder.
— Ela saiu.
— Pode dizer a ela...?
A porta se fecha. Eu sorrio. A mãe de Lindsey também não gosta do cão sarnento traidor.
Ainda estou sorrindo quando ouço passos. Ah, merda!
Olho para a rua, rezando para ver o carro do meu pai chegando. Mas não.
Quando vejo, Jonathon está na minha frente.
— Você é a garota nova da escola, não é? Chelsea?
— Chloe — corrijo-o.
— Você e Lindsey não vão juntas para a escola?
— Sim. — Cadê você, pai?
— Você sabe onde ela está?
O que eu digo? O que eu digo?! Eu poderia dizer que ela saiu com um cara muito gato. Ou eu poderia...
— Não.
— Sabe com quem ela está?
O que eu digo agora? Vou optar pela verdade outra vez.
— Sim.
Ele faz uma careta.
— Mas não vai me dizer, certo?
— Não sou eu que tenho que dizer.
— Sabe, não sou um cara tão ruim quanto ela disse que sou.
Sei. Quer dizer, então, que você não pôs chifres nela?, eu penso, mas não pergunto.
Ele se inclina contra a cerca da varanda.
— De que cidade você veio?
— El Paso — digo, desejando que ele vá embora.
— Você gosta daqui?
— Não. — Quando olho para cima, ele está olhando para os meus peitos. Como se esse cara tivesse alguma chance comigo.
Ele esfrega a sola do sapato no degrau.
— Bem, já que não estou fazendo nada e você não está fazendo nada, quem sabe a gente possa...?
— Não. — O carro do meu pai para em frente à minha casa. Eu me levanto. — Tchau!
Quando entro no carro, a cabeça do meu pai está virada na direção de Jonathon, que fica nos encarando enquanto volta para a sua picape. Considerando que meu pai está dirigindo um conversível vermelho e tem cabelos espetados, Jonathon provavelmente acha que meu pai é meu namorado. Ai, credo!
— Quem é esse? — meu pai pergunta.
— Ninguém. — Esqueço minha antipatia por Jonathon e me defronto com a minha decepção em relação a meu pai. Ele precisa desistir desse cabelo espetado.
— Você já está namorando?
— Não. — Então eu me lembro de Cash. — Talvez.
— Não acha que é um pouco cedo?
Balanço a cabeça, discordando.
— Por que não nos apresenta? — Ele fala como um pai zeloso. Por que isso me irrita? Então percebo por quê. Meu pai perdeu o direito de falar comigo sobre garotos ou sobre sexo quando começou a transar com Darlene.
— Primeiro porque aquele cara não é meu namorado. Segundo, porque... deixa quieto. — Calo a boca. Eu não quero discutir.
Meu pai olha para mim e, pela expressão dele, posso ver que está pensando o mesmo que eu.
— É bom ver você. — Ele estende a mão e aperta a minha. — Faz muito tempo que não saímos juntos, só nós dois.
Se sentiu tanto a minha falta, por que não enviou flores na data certa ou não me ligou quando disse que ligaria? Eu engulo a pergunta. Hoje não vou quebrar ovos. Mas penso no comentário de Lindsey sobre fazer ao meu pai algumas perguntas “vagas” sobre a agência de adoção. Isso eu posso fazer.
Meu pai começa a falar.
— Procurei no Google restaurantes indianos em Joyful. Achei um, o Kiran’s Café. Que tal um frango na manteiga?
17
A caminho do restaurante, conversamos sobre assuntos neutros. O clima. O último livro que li. Ele está tentando conversar, mas os assuntos acabam tão rápido que tenho receio de que logo não tenhamos mais sobre o que conversar.
— Como estão Brandon e Patrick? — pergunto, me referindo ao primo do meu pai e o marido dele. Acho que esse é um assunto seguro.
— Não sei. Faz muito tempo que não vejo os dois.
— Por quê? — Eles costumavam ir em casa pelo menos uma vez por mês, além de passar os feriados conosco. Brandon, que é chef de cozinha, sempre se encarregava das refeições.
— Nós vivemos ocupados.
Quando diz “nós”, meu pai se refere a ele e a Darlene. Antes que eu possa me conter, meu próximo pensamento sai pela minha boca:
— Eles não gostam de Darlene? — Isso não deveria me deixar feliz, mas deixa. — Ou ela não gosta deles?
Essa possibilidade aumenta a minha angústia com relação ao meu pai. Como meus avós paternos morreram em um acidente de carro logo depois que meus pais se casaram, Brandon é o único parente que meu pai tem.
— Você não devia deixar Darlene acabar com a sua família. — Quer dizer que, mais uma vez, ele deixou que ela separasse a nossa família.
A expressão do meu pai muda.
— Não é bem assim. — A mentira fica evidente na voz dele.
Em alguns minutos, meu pai estaciona e entramos no restaurante impregnado com um aroma intenso de curry, cominho e açafrão. Meu estômago se contrai de fome, mas meu coração se contrai de dor. Sou transportada de volta a todas as vezes em que saí com meu pai no passado. Volto à época em que sair com ele era um dos meus programas favoritos. Nós ríamos. Falávamos de futebol. Discutíamos filmes. Ele perguntava sobre a escola, os meus amigos, a minha vida. Não como se estivesse checando o que eu andava fazendo, mas como se quisesse saber tudo sobre mim porque eu o interessava. Porque eu era importante para ele.
Sinto falta disso. Sinto falta dele. Do meu antigo pai. De como éramos antes. Um nó se forma na minha garganta.
Estamos sentados a uma mesa perto da porta. O garçom, um homem alto, mais velho e de ascendência indiana, nos entrega os cardápios. Noto que meu pai está olhando em volta como se estivesse confuso. Ele pega o cardápio, mas olha para o garçom.
— Este lugar não costumava ser a Pauline Pizzaria?
— Sim — diz o garçom. — Meu irmão comprou o ponto sete anos atrás.
— Foi o que pensei.
O garçom anota nossas bebidas e se afasta.
Meu pai olha para mim.
— Sua mãe trabalhava aqui. Eu costumava comer pizza aqui toda sexta-feira à noite, porque um funcionário que trabalhava às sextas-feiras gostava dela. — Há uma expressão suave no rosto dele, como se a lembrança fosse boa; então, de repente, ele pisca e o ar de felicidade desaparece. Meu pai abre o cardápio, como se quisesse se esconder atrás dele. É só uma suposição, mas juro que ele parece sofrer ao se lembrar da minha mãe. Ou talvez ao se lembrar do quanto a está fazendo sofrer.
Por outro lado, posso jurar que meu pai não sabe quanto ele magoou minha mãe. Ou quanto me magoou.
É muito egoísmo da minha parte querer que ele sofra também? Talvez seja normal, mas parece errado. Tudo parece errado. Estar aqui com ele parece errado.
Ele baixa o cardápio.
— Você quer pedir o de sempre? Frango na manteiga e cordeiro vindaloo, e dividimos os pratos?
— Tudo bem — eu digo.
— Quer mais alguma coisa?
— Talvez — eu digo, pensando que, quanto mais comida tivermos para comer, menos tempo teremos para conversar.
O garçom traz nossas bebidas.
— Prontos para pedir?
Meu pai olha para mim.
— Vamos pedir esses dois pratos primeiro e, depois, se você quiser mais alguma coisa, pedimos também, ok?
Eu concordo. Meu pai faz o pedido.
Quando o garçom se afasta, voltamos a olhar um para o outro.
— Na escola, vai tudo bem? — ele pergunta.
Acho que meu pai quer que eu diga que vai tudo bem, assim pode se sentir menos culpado.
Estou sobrevivendo. Aos trancos e barrancos.
Não vou amenizar a culpa dele.
Ele me fala que encontrou Kara e Sandy na loja de CDs. Como meu pai só entrava na loja de CDs se eu implorasse, acho que ele estava com Darlene. Imagino o choque das minhas antigas amigas ao ver Darlene. Eu me pergunto por que nenhuma das duas me mandou uma mensagem falando sobre isso. Elas provavelmente acharam que isso ia me deixar chateada. Constrangida. Elas têm razão.
— Estou com fome — diz meu pai quando um garçom diferente passa por nós com dois pratos de comida.
— Eu também — minto. Não sei se vou conseguir comer. Todos aqueles aromas que antes me inspiravam sentimentos de amor agora me provocam náuseas.
Ficamos em silêncio outra vez. O telefone do meu pai toca avisando da chegada de uma mensagem. Ele lê. Eu me pergunto se é Darlene. Não. Ainda não tenho fome. O barulho do restaurante aumenta. Garfos batendo nos pratos. Ruídos de refeições sendo preparadas na cozinha. O burburinho das conversas. Ouço a recepcionista perguntando para quantos é a mesa.
— Três. Obrigado — responde o cliente. A voz me parece familiar.
Olho na direção da porta. Perco o fôlego. Cash está entrando com um homem e uma mulher.
A mulher do vídeo, só que mais velha. O homem tem cabelos escuros. E olhos castanhos. O mesmo tom castanho dos meus olhos.
Analiso o rosto dele.
Depois o rosto dela.
Eles são meus pais? Tenho o DNA deles? Fui arrancada da minha família?
Parte de mim quer correr até eles, outra parte quer fugir.
Cash deve ter sentido o meu olhar, porque olha na minha direção e arregala os olhos, como quem diz, “Ah, merda".
Abro o cardápio para cobrir meu rosto.
— Por aqui — ouço a recepcionista dizer. Os passos se distanciam. Meu coração bate forte no peito. Ouço o sangue fluindo nos meus ouvidos.
Abaixo o menu e vejo Cash tentando fazer os Fuller se sentarem de costas para mim.
O pânico sobe até o meu peito como um líquido quente. Meus pulmões recusam o oxigênio.
— Você encontrou outra coisa que queira pedir? — meu pai pergunta.
Eu desvio os olhos para a mesa de Cash e depois para a porta.
— Não vai dar... — digo, sem querer, em voz alta.
— O que não vai dar? — ele pergunta.
Eu me levanto, não tão rápido a ponto de chamar atenção, e sigo na direção da porta.
— Chloe? — meu pai me chama. Não olho para trás.
Abro a porta. O ar quente me envolve. Ainda não consigo respirar.
— Merda!
Vou até o carro do meu pai e me encosto no capô. Meu coração está batendo na garganta. E então a ficha cai. Eu tenho que saber. Tenho que saber se eles são meus pais. Tenho que saber se não fui simplesmente abandonada, como se não fosse importante. Como se não fosse amada. Aperto os punhos.
Então ouço passos. O medo dá um nó no meu estômago. Será que eles me viram? Será que tudo vai acontecer agora? Por mais que eu queira conhecê-los, estou com medo. Ergo os olhos. É meu pai.
Seus passos devoram a calçada, na minha direção. Ele me olha com a testa franzida.
— Que diabos aconteceu? — ele me pergunta. Seus ombros estão tensos, sua expressão é carregada; a frustração é uma nuvem ao redor dele.
A raiva dele desperta a minha. Minha mente dispara e a única coisa em que consigo pensar é repetir o que eu já disse.
— Não vai dar.
— Não vai dar para fazer o quê?
— Ter um encontro de pai e filha como se tudo estivesse bem quando não está. — No segundo em que a desculpa sai da minha boca, não é mais uma desculpa. É a mais pura verdade. — Você me abandonou. Você não está nem aí comigo. — Sinto-me abandonada, como na época em que tinha 3 anos. Então, do nada, ouço uma voz, “Seu pai e sua mãe não querem mais você". De onde, diabos, vem essa voz? Lágrimas enchem meus olhos. — Você pode abrir o carro? Por favor!
A expressão do meu pai endurece.
— Eu me divorciei da sua mãe, não de você!
— Não é o que parece — rebato.
Ele fica ali, ainda com raiva, ainda frustrado e ainda o homem que culpo por me causar tanta dor. Como ele pode não se envergonhar de si mesmo?
— Vou lá pagar o jantar. — Ele abre o carro.
Deslizo para o banco do passageiro e me encolho para que ninguém me veja caso saia do restaurante. É muito estranho que eu esteja aqui fora discutindo com meu pai enquanto meu pai e minha mãe de verdade podem, muito bem, estar dentro do restaurante.
Começo a suar, mas não me importo. Fico sentada ali, com as janelas fechadas e sentindo calor. Então sinto novamente. O medo. Quero fugir. Estou com medo.
Fecho os olhos, pressiono a cabeça contra o encosto do banco e tento respirar. O tempo passa. Um minuto. Dois. Três.
Cinco.
Oito.
Que diabos meu pai está fazendo? Ah, Deus. Será que os Fuller me viram e foram confrontar meu pai?
Meu celular toca e chega uma mensagem. Pego o aparelho. É Cash.
Ele: Está tudo bem?
Eu: Não. O que está acontecendo?
Ele: Seu pai está pegando a comida para viagem.
Eu: Eles me viram?
Ele: Não.
Ouço a porta do carro se abrindo. Sinto outra onda de medo. Eu a reprimo. Meu pai, parecendo chateado, me entrega uma grande sacola branca.
Ele se senta atrás do volante, mas não liga o carro.
— Você é minha filha. Minha garotinha. Não posso perder você, Chloe!
Lágrimas enchem meus olhos e eu me viro para a janela. O aroma de comida indiana invade o carro, o cheiro dos meus encontros com meu pai. De repente, passo a não gostar mais daquele cheiro.
Ele começa a falar novamente.
— Sei que eu deveria ter ligado e estraguei tudo. E, sim, eu só me lembrei tarde demais que era a data da sua adoção. Por isso suas flores não chegaram até você a tempo. Eu sou humano. Não sou perfeito, Chloe.
Meu peito queima de raiva, mágoa, desespero. Um pouco por causa de hoje. Um pouco por causa do passado. Ainda não consigo olhar para ele, mas digo:
— Você costumava ser perfeito. Você costumava se lembrar das coisas. Eu costumava ter importância para você.
Eu o ouço bater a mão no volante e dizer um palavrão de cinco letras. Depois de um segundo, ele diz:
— Você ainda é importante para mim.
O silêncio paira entre nós, dentro do carro. Tudo que ouço somos nós dois respirando e meu coração se partindo.
— Muitos pais se divorciam — diz ele como se isso fosse justificativa. — Pais e filhas no mundo todo continuam se dando bem. Por que nós não podemos?
A pergunta paira no ar e a resposta surge dentro de mim como o vulcão que ele e eu construímos para o meu projeto de ciências, na quinta série.
— Acho que a mãe delas não teve câncer! — Minha voz soa estridente. — O pai delas não as deixou cuidando de tudo. Tendo que lidar com a mãe vomitando por semanas a fio, enfrentando o pensamento de que a mãe estava morrendo!
As palavras jorram da minha boca. Não consigo contê-las. Estou quebrando todos os ovos. Não me importo. Parece que, se eu não disser tudo isso, algo dentro de mim vai explodir.
— Mamãe teve câncer! Mas é como se eu também tivesse tido. Fui eu quem preparou sopa de tomate e sanduíches de queijo grelhado para ela, porque ela não conseguia comer outra coisa. Fui eu quem se sentou no chão do banheiro com ela chorando, porque o cabelo estava caindo. Fui eu quem teve de ser forte quando não me sentia forte. Eu, pai! — Bato no peito. — Eu! Droga! Ela precisava de você. Eu precisava de você! Mas você estava muito ocupado para se importar... tingindo o cabelo, comprando um novo guarda-roupa e transando com a Darlene!
Meu pai segura o volante e desvia os olhos de mim. Respira fundo. Segura o ar. Segura mais um pouco. Então olha para mim, novamente. Eu vejo tudo nos olhos dele. Culpa. Dor. Até amor. E isso é o que mais dói.
— Eu... Eu sinto muito. Eu não... Eu fiz tudo errado. Fiz mesmo, querida.
Eu respiro com dificuldade. Estou instável. Todo meu mundo está instável.
Meu pai liga o carro e acelera. Meu colo está quente por causa das caixas na sacola. O cheiro impregna o carro. Quero jogar tudo pela janela. Nunca mais vou comer comida indiana outra vez.
Ele dirige em direção à minha casa. Entra no meu bairro. Mas não vira na minha rua.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Não sei. Mas não posso deixar você sair deste carro até...
— O quê? — pergunto.
Eu o ouço engolir em seco.
— Até que... me perdoe. — A voz dele falha.
— Então vamos ficar neste carro por muito tempo! — Digo a mim mesma para não me sentir mal por ele estar sofrendo.
Ele vai para o parque. O mesmo ao qual Cash e eu fomos quando ele me contou sobre Emily.
Estaciona sob um poste de luz.
— Chloe, eu não sei o que eu estava pensando. Na verdade, eu não estava pensando. Você estava crescendo, sonhando com a faculdade e com garotos. Sua mãe só pensava em escrever, sonhando com uma nova carreira. E eu... Eu não tinha sonhos. Eu me sentia velho e cansado. — Ele respira fundo. — Então conheci Darlene e... — Ele para de falar.
— E você a amou mais do que amava mamãe e a mim?
Ele respira.
— Não. Mas não há desculpa para o que eu fiz. Eu vejo isso agora. É tão assustadoramente claro. Eu fui um idiota. Não mereço o seu amor. Não mereço o seu perdão. Mas não posso perder a minha garotinha. Por favor... me perdoe.
A dor dele é tão real que eu a sinto. Fico sem falar por quase um minuto, porque não sei o que dizer, mas depois as palavras jorram da minha boca.
— Eu não me recusei a ver você. Mas perdoar não é nada fácil. — Eu engulo. — Ainda te amo, mas às vezes preferia não amar.
Ele balança a cabeça, como se entendesse.
— O que posso fazer para ajudar? Faço qualquer coisa. Me diga. Sua mãe precisa de dinheiro?
— Eu... acho que não. Mas ela me disse para perguntar por que o seguro do meu carro não está pago.
— Não está pago? — ele pergunta.
— Ela disse que não.
— Mas Darlene disse... Vou averiguar. O que mais posso fazer?
— Nada. — Ouvir o nome de Darlene me deixa com raiva de novo.
Meu celular toca com a chegada de outra mensagem. Eu não olho. Deve ser Cash.
Ficamos sentados em silêncio, no carro, sentindo o calor.
— Trouxemos você aqui no dia em que a buscamos — meu pai diz.
Eu olho para ele, sem entender. Ele continua:
— Quando pegamos você na agência, fomos ver seus avós e depois viemos aqui. Eu coloquei você no balanço. Lembro-me de pensar em como você era delicada. Tão pequena, mesmo não sendo mais um bebê. Eu estava com medo, sabendo que, a partir daquele momento eu era responsável por cuidar de você. Coloquei você no balanço, mas estava com medo de empurrar com força demais e você cair. Você parecia assustada. Eu queria fazer alguma coisa, qualquer coisa para provar a você que eu era um cara legal. — Ouço a voz dele ficar embargada. — Eu me apaixonei por você logo de cara. Jurei que nunca deixaria ninguém machucá-la e agora eu sou o idiota que está te machucando. Eu me odeio por isso.
Eu não digo nada.
— Sei que vai levar um tempo para você me perdoar, mas não vou desaparecer da sua vida. Eu amo você — ele diz.
Sei que parece loucura, mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu, nunca duvidei que meu pai não me amasse. Eu simplesmente não consigo entender como ele pode ter me amado e feito o que fez.
Sei que ele espera que eu responda. Que eu diga que o amo. Mas eu já disse isso uma vez. É tudo o que posso fazer.
18
— Chloe? — Meu pai pega a minha mão. O toque me provoca um choque de dor. Eu quase me afasto, mas não faço isso porque sei que vou magoá-lo.
Nós ficamos sentados ali. Lembro-me do que eu queria perguntar a ele esta noite.
— Qual era o nome da agência de adoção?
— O quê?
Tiro a minha mão da dele.
— O nome da agência de adoção. Era em Fort Landing, não era?
— Sim. Acho que era... New Hope ou algo assim. Por quê?
Dou de ombros.
— Só curiosidade.
— Você está querendo...
— Não — me apresso a dizer. — E não diga nada à mamãe. Tenho medo que ela fique chateada.
— Não vou dizer nada.
Depois de outros segundos de silêncio, ele abre a porta do carro.
— Vamos lá? — diz ele.
— Onde?
— No balanço? Você costumava querer que eu te balançasse o tempo todo.
— Não — eu digo.
— Me deixe fazer isso... Você me disse uma vez que balançar era tão bom quanto voar.
Quase volto a recusar o convite, mas me lembro de quanto ele parecia chateado alguns minutos atrás, então resolvo sair do carro. Está escuro, mas a lua está cheia e brilhante. A noite está tão silenciosa que ouço nossos passos na calçada. Caminhamos até os balanços mais altos. Cada um se senta em um, deixando um espaço entre nós. Ele parece grande demais para estar num balanço. Eu me sinto muito grande. Mas a mágoa entre nós, de alguma forma, parece menor.
Eu balanço. Pernas para trás. Pernas para a frente. Contemplo a grande bola prateada no céu, as estrelas brilhantes. O movimento, o vaivém, parece de alguma forma catártico. A sensação é de que estamos voando.
Uma lufada de ar passa por mim quando meu pai pega impulso. Enquanto ele avança, eu recuo. Não estamos no mesmo ritmo. Percebo que pode demorar um pouco até que a minha relação com meu pai volte a ser como antes.
Eu não sei quando conseguirei perdoá-lo, mas essa é a primeira vez que sinto o arrependimento dele. Isso não resolve nada. Mas é um começo. Talvez nunca mais seja como antes, mas espero que encontremos um novo ritmo, um novo relacionamento entre pai e filha que não cause mágoas.
Acho que quebrar ovos pode ter suas vantagens.
Quando entro em casa, não sinto cheiro de comida vindo da cozinha. Minha mãe não preparou o jantar. Vou até o quarto, esperando que ela esteja acordada.
Ela está. Deitada no sofá, lendo. Não está escrevendo. Eu fico ali, lembrando-me de como me senti quando vi a sra. Fuller, como se tivessem me roubado alguma coisa — o amor da minha mãe. No entanto, eu tenho uma mãe. E por mais relapsa que tenha sido neste último ano, ela me ama. Eu sei disso. E eu a amo.
Ela ergue os olhos e de repente me sinto culpada. Culpada por ter sentido que ela não bastava, culpada por ter me queixado ao meu pai por ter de cuidar dela. Sim, eu sou uma cretina. Foi horrível para mim, mas não tanto quanto foi para ela. E, se fosse eu que tivesse adoecido, ela faria a mesma coisa por mim. Só que ela nunca teria reclamado. Meu peito se aperta.
Pego o meu celular.
— Você quer de quê?
— O quê?
— Estou pedindo uma pizza para nós.
— Pensei que você tinha saído com seu pai para jantar...
— Eu não comi nada — digo.
— Por quê? — ela pergunta.
— Estava sem apetite.
— Vocês discutiram? — Ela se endireita no sofá, como se estivesse se preparando para ficar com raiva.
— Quero a de lombo canadense com abacaxi — minto, porque sei que ela adora. — Um pouquinho doce e um pouquinho salgada. Está bom para você?
— Sim. Sobre o que foi a discussão?
— Você quer salada?
— Você não vai me contar?
— Você sabe o que acho que devemos fazer? — pergunto.
— O quê? — ela diz parecendo um pouco frustrada.
— Encomendar a pizza e depois dar outra chance para aquele filme que você queria assistir.
Ela faz uma careta.
— Era um pouco forte...
— Talvez. Mas o humor às vezes é um pouco forte. E nós duas precisamos rir.
— Você já viu?
— Sim. Mas quero ver de novo.
— Com quem? Com quem você viu aquele filme?
Eu franzo a testa.
— Promete que não vai ficar brava?
— Alex? — Como eu não nego, ela parece chocada, mas não muito brava.
— Sim. E nós dois rimos muito. E você está precisando rir também. Então vamos comer a pizza e assistir ao filme. E vamos rir das piadas de camisinha. Ok?
Ela parece surpresa com o meu jeito de falar, meio autoritário.
— Acho que não tenho escolha.
Lembro-me de Cash dizendo: Você sempre tem escolha. Mas, para minha mãe, essa é a escolha certa. E fico feliz que ela não esteja discutindo comigo. Já discuti o suficiente esta noite.
Quando Cash e os Fuller chegaram em casa, ele queria ir direto para o quarto.
— Acho que vou ler um pouco — disse a sra. Fuller, subindo as escadas, rumo à suíte principal.
Quando Cash começou a subir para o andar de cima, ouviu o sr. Fuller dizer:
— Cash, pegue duas cervejas na geladeira e vamos conversar aqui fora.
O quê?
— Cerveja?
— Sei que você já ficou bêbado antes.
— Eu não bebo tanto assim. — Ele já tinha visto o pai biológico beber demais e não tinha nenhuma vontade de fazer o mesmo.
— Eu não iria oferecer uma a você se achasse que bebe demais. Vou esperar aqui fora.
Cash pegou duas Bud Lights.
— O que eu fiz? — perguntou, com o palpite de que aquela pergunta tinha a ver com o comentário mal-humorado que soltara como resposta à sugestão de ser adotado.
— Obrigado por ir jantar conosco. Susan estava com receio de que você não fosse.
O sr. Fuller torceu a tampa da cerveja. Cash fez o mesmo.
— Ela te ama. — O sr. Fuller levantou a cerveja e deu uma golada.
— Ama até demais... — Cash tomou um gole.
— Ninguém pode amar demais — disse o sr. Fuller.
Cash discordava.
— Esta conversa é porque ela me disse que queria me adotar, não é?
O sr. Fuller baixou a cerveja.
— Nós não entendemos. Por que você não quer?
— Vou fazer 18 anos daqui a seis semanas. Não preciso de ninguém cuidando de mim.
— Todo mundo precisa de uma família, Cash.
Não, não é verdade.
— Olha, não é que eu não seja grato ao que vocês fazem por mim.
— Nós sabemos disso, Cash. É por isso mesmo. Você é grato. Nós temos certeza. E, tirando as briguinhas por aí, você é um bom garoto. Até suporta as regras de Susan... e algumas são ridículas! E eu sei que é porque você gosta dela. É por isso que não entendo por que você não quer a adoção.
Cash encolheu os ombros.
— Eu não sei o que dizer. Só não acho necessário.
O sr. Fuller tomou outro gole de cerveja.
— Você sabe do que ela tem medo?
— Não. — Cash girou a garrafa gelada nas mãos.
— Que, depois do seu aniversário, você arrume suas coisas e vá embora e nós nunca mais vejamos você. E... Caramba! Ela ainda sofre porque perdeu a filha. Não pode perder o filho.
A dor apertou o peito de Cash. Por isso ele esperava que Chloe fosse Emily.
— Não pretendo me mudar antes de me formar.
— E depois? — perguntou o sr. Fuller.
— Eu preciso ser eu mesmo.
— E quando tentamos fazê-lo ser algo que você não é?
— O tempo todo — disse ele, num tom firme. Você quer que eu seja seu filho. — Você ficou chateado quando me inscrevi em Tecnologia Automotiva. Você quer que eu vá para uma faculdade chique. E a sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina. O que eu não vou fazer.
— É errado da nossa parte querer que você vá para uma faculdade melhor? Você é tão inteligente, Cash! Você tem notas mais altas do que eu e Susan tínhamos. Você pode ser o que quiser. Por que quer ser mecânico?
— Não há nada de errado em ser mecânico. E eu vou para a faculdade, só não vou fazer o que você quer.
— Mas nós temos dinheiro...
— Eu consegui uma bolsa! — Cash se levantou.
— Cash, filho, por favor, sente-se.
Eu não sou seu filho.
Ao ver que Cash não faria isso, o sr. Fuller continuou:
— Estou implorando a você, não a magoe mais do que ela já foi magoada.
— Estou tentando não fazer isso. — Cash disparou para o andar de cima, procurando não bater a porta do quarto com muita força.
No quarto, o celular tocou. Uma mensagem de Chloe. Ele tinha enviado uma mensagem para ela mais cedo e perguntado se poderiam conversar.
A resposta dela: Esta noite não posso. Vamos conversar amanhã.
— Merda! — Cash jogou o aparelho na cama. Ele bem que precisava de uma distração. Precisava rir um pouco. Precisava ouvir a voz suave dela. Queria provocá-la mais sobre a leitura de Cinquenta Tons de Cinza e contar sobre o livro que comprara.
Ele queria...
Ele queria...
Ele queria...
Eram onze horas quando fui dormir. Minha mãe e eu rimos muito com o filme. Acho que foi um bom filme, mas na verdade ri mais de minha mãe do que de qualquer outra coisa. Agora não consigo dormir. Nada mais parece tão engraçado. Continuo vendo os Fuller na minha frente. O rosto dela no restaurante. O rosto dele. Os olhos dele. O homem que poderia ser meu pai.
Fico me perguntando se sou Emily. E se eu sou, o que seria da minha vida se eu não tivesse sido sequestrada e levada para longe da minha verdadeira família? Na outra vida, eu ainda seria eu? Como eles ainda são casados, eu teria sido poupada da tristeza causada pelo divórcio dos meus pais? Da angústia causada pelo câncer da minha mãe? Eu teria ido para uma escola particular e agora estaria planejando ingressar em uma das melhores faculdades do país? Quem eu seria se não tivesse crescido achando... achando que fui abandonada? Que fiz algo de errado. Até que ponto minha vida teria sido melhor?
Isso faz com que eu me sinta culpada novamente. Como se querer respostas, querer saber se meus verdadeiros pais me amavam, fizesse de mim uma filha ingrata aos olhos dos pais que me adotaram.
Afastando esse pensamento, começo a recapitular todas as coisas que eu disse para o meu pai. Tudo que eu disse é verdade, mas eu me lembro das lágrimas nos olhos dele, da dor que minhas palavras lhe causaram. Mesmo sabendo que ele mereceu, não me parece certo fazê-lo sofrer.
O pensamento mais absurdo me ocorre. E se o meu pai sofresse um acidente a caminho de casa? E se eu o perdesse! Lembro-me dele dizendo que me ama, enquanto estávamos sentados no carro. Ele precisava ouvir que eu também o amo, mas eu não disse nada. E se aquela foi a última chance que tive de dizer isso?
Eu sei, não devia pensar em tragédias como essa, mas penso assim mesmo, e essa bola de emoção — de tristeza e de uma culpa que eu não deveria sentir — fica represada no meu peito, como um grande elefante cor-de-rosa.
Pego o celular para mandar uma mensagem para o meu pai. Então percebo que ele não está na casa dele, percebo que a casa dele era minha e agora é a casa de Darlene. Jogo o celular longe e fecho as mãos em punho.
Penso em escrever uma mensagem para Lindsey, mas tenho certeza de que ela ainda está fora com David.
À meia-noite, pego o celular para mandar uma mensagem para Cash. Quero contar a ele que descobri o nome da agência de adoção. Quero alguém para me dizer que eu não deveria me sentir desleal por precisar de respostas. Ou talvez eu só queira conversar. Com ele. Ontem à noite, nossa conversa foi divertida. Me fez esquecer como a minha vida está bagunçada.
Não importa que ele esteja ajudando a descobrir se sou uma criança sequestrada. Não importa, por causa da provocação, do flerte, do desejo de saber mais sobre ele. Isso é divertido. É normal.
Eu preciso de mais coisas normais.
Começo a mandar uma mensagem para ele, mas o imagino dormindo em sua cama. Até imagino-o sem camisa. Nunca o vi sem camisa, mas posso imaginar como seria bom.
Nesse momento, meu celular toca, avisando sobre a chegada de uma mensagem. Levanto da cama num salto e pego o celular.
É dele. Está acordada?
Eu: Sim. Quer conversar?
Ele: Não.
Eu: Não...?
Ele: Quero ver você. Estou aqui fora, em frente à sua casa.
Eu: Em frente à minha casa? Agora?
Eu corro para a janela. Meu coração dispara.
Eu vejo o jipe dele. E mais do que tudo, quero ver Cash.
19
Eu me viro para ir até a porta, mas ouço o velho assoalho de madeira rangendo embaixo dos meus pés descalços. Paro e percebo que estou vestindo apenas shorts e uma camiseta combinando.
Estou decente?
Sim. Embora esteja sem sutiã, a blusa não é justa.
Meu próximo pensamento é se minha mãe está me ouvindo.
Corro de volta para a janela.
Não tem tela. Estou prestes a destrancá-la quando meu celular tocar novamente.
Ele: Isso significa que você não quer me ver?
Eu: Estou abrindo a janela.
Ouço a porta do jipe abrir e fechar, e vejo Cash. O peso no meu peito diminui como neblina se dissipando.
Ele parece tão lindo, caminhando em direção à minha janela... Em direção a mim.
— Tenho medo de acordar minha mãe, se abrir a porta da frente — sussurro.
Ele olha para cima.
— Você quer que eu entre?
— Não, eu vou sair. — Olho para baixo. É apenas uma queda de um metro de altura. Considerando que tenho um metro e setenta de altura, não é nada. Coloco o tronco para fora da janela, monto no parapeito, depois me viro e coloco a outra perna para fora. Estou inclinada para a frente, sentada na janela. Tudo que preciso fazer é saltar.
— Eu pego você. — As palavras dele soam tão doces. Eu quero que ele me pegue.
Cash estica a mão e eu salto. As mãos deslizam para baixo da minha blusa de pijama. Sinto o toque dele na minha cintura nua, e é tão bom, tão quente, tão doce. Eu instantaneamente sinto borboletas no estômago.
Quando coloco os pés no chão, recupero o fôlego, não por causa do salto, e sim em razão do toque de Cash. Ele me puxou para mais perto ou eu é que me aproximei?
Nós nos beijamos. Os lábios macios de Cash deslizam sobre os meus. As mãos dele descansam na minha cintura, e seus polegares fazem pequenos círculos nas minhas costas, logo acima da minha cintura. Minhas mãos se movem para a cintura dele.
Eu me inclino mais para perto. Meus seios, sem sutiã, estão comprimidos contra o peito sólido dele. Uma emoção, um doce formigamento, toma conta de mim.
— Uau. — Ele se afasta.
— Sim. — Eu sorrio. — Eu queria mandar uma mensagem para você.
— Por que não mandou?
— Achei que estivesse dormindo.
— Não consegui dormir — ele diz.
— Nem eu.
— Noite ruim? — ele pergunta.
— Sim. E você?
— Sim. Mas está melhor agora. — Ele se aproxima e me beija novamente. Desta vez, a língua dele desliza entre os meus lábios; sua boca tem gosto de menta, como se ele tivesse tomado um refresco.
Quando o beijo termina, estamos ambos sem fôlego.
— Você quer ir a algum lugar?
Eu reviro os olhos.
— Estou de pijama e descalça.
Seus olhos se desviam para os meus pés.
— Que fofura...
Enfio os dedos na grama quente.
— Meus pés?
— Você inteira! — diz ele. — Quer se sentar na varanda?
Eu ouço um miado. Félix pula no peitoril da janela do meu quarto.
— Não! — digo a ele, e Félix volta para o meu quarto. Cash fecha a janela.
— Talvez no seu carro — eu digo, sem querer que ninguém me veja de pijama, beijando um cara na minha varanda da frente.
— Tudo bem. — Ele tira a mão da minha cintura e segura a minha mão enquanto caminhamos para o carro dele. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
— O que aconteceu? — pergunto, lembrando-me do comentário sobre a noite ruim. — Eles não me viram, não é?
— Não. Só um pouco mais da mesma ladainha.
— Você quer dizer deixar o emprego e ir para uma faculdade melhor?
— Sim — diz ele.
— Lamento por você.
Chegamos ao jipe de Cash.
— Você quer sentar no banco de trás?
Lembro-me do comentário de Lindsey sobre não querer que David pensasse que ela queria se sentar no banco de trás.
— Só para conversar — diz Cash, como se estivesse lendo meus pensamentos. — E beijar. — Ele parece envergonhado. — Não é para... você sabe.
— Sei. — Eu sorrio porque acredito nele. Cash não está ali para tentar algo para o qual eu não esteja pronta.
Fico na ponta dos pés e beijo a bochecha dele.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por vir aqui.
Cash abre a porta de trás e entra no jipe depois de mim. O console entre os assentos está abaixado. Deslizo apenas até a metade do banco e fico perto dele. Cash se acomoda ao meu lado e fecha a porta.
— Ovelhas — diz ele.
— O quê? — pergunto.
— Você tem ovelhas nos shorts e na blusa.
Eu olho para baixo.
— Estou de pijama.
— Eu sei. — Sorrindo, ele tira meu cabelo da bochecha. — Ah, tome.
Ele tira algo do bolso. É um saquinho.
Eu sorrio ao ver o que é.
— Skittles vermelhos. Obrigada. — Coloco um na boca.
Então coloco um na boca dele.
— O que fez a sua noite ficar ruim? Encontrar os Fuller no restaurante?
— Em parte. E eu sou uma quebradora de ovos agora.
— O quê?
— Lembra que eu acusei você de ser um quebrador de ovos enquanto eu sou alguém que gosta de pôr panos quentes?
— Sim. O que você fez?
— Fiquei com muita raiva. Disse ao meu pai o que eu pensava dele por ter saído de casa e me deixado sozinha para cuidar da minha mãe doente.
— Muito bem. — Seu tom carinhoso me atinge em cheio no coração. — O que ele disse?
— Acho que meu pai finalmente percebeu o idiota que ele foi.
— Isso foi bom? — pergunta Cash.
— Não. Na verdade, não. Eu o magoei. — Mordo o lábio. — Ele chorou. Implorou para que eu o perdoasse.
— E você o perdoou — ele diz quase como se fosse uma coisa ruim.
— Não. Eu disse a ele que não era fácil. Mas eu falei que ainda o amo.
— Você é uma pessoa melhor do que eu — Cash diz.
Eu vejo algo nos olhos dele.
— Quem você precisa perdoar?
— Muitas pessoas.
Ele me beija novamente. Eu me perco na sensação da sua boca contra a minha.
Em alguns minutos, estamos deitados no assento, um de frente para o outro. Nós nos beijamos, nos beijamos e nos beijamos. As minhas mãos estão em seu peito; as dele, ainda na minha cintura. Ele sobe a minha blusa nas costas e suas mãos começam a vir para a frente. Para os meus seios.
Então ele tira as mãos das minhas costas e enterra o rosto no meu pescoço. Sinto sua respiração contra minha bochecha. Eu abro os olhos.
As janelas do carro estão embaçadas. Ele levanta a cabeça e eu vejo seus olhos. As pupilas estão dilatadas. Eu sei que ele parou para cumprir sua promessa. E eu quase gostaria que ele não tivesse prometido nada.
Cash sorri. Eu sorrio de volta.
— Eu precisava disso — ele diz. — Você me faz... esquecer as coisas ruins.
— Sim. — Eu o beijo outra vez, mas termino rapidamente. Lá no fundo, sei que precisamos desacelerar. Sei o que vem a seguir. E, embora pareça ótimo, não estou realmente pronta para o próximo passo.
Eu toco os lábios dele.
— Você faz eu me sentir tão... normal.
— Normal? — Ele sorri contra os meus dedos. — Para uma garota que lê histórias de amor, acho que você pode fazer melhor do que isso.
Eu solto uma risada.
— Não, quero dizer, não sou Chloe, cuja mãe tem câncer ou está depressiva. Ou Chloe, cujo pai é um cafajeste. Ou Chloe que pode ser uma garota sequestrada. Sou apenas uma garota normal, sentindo coisas incríveis enquanto beija um cara muito gato.
— Gosto da parte do “cara muito gato” — diz ele.
— Eu gosto do cara muito gato.
— Você é incrível. — Cash corre um dedo pela minha bochecha.
Lembro-me do que eu queria dizer a ele.
— Você estava certo. Meus pais usaram a Agência de Adoção New Hope.
— Como você sabe?
— Perguntei ao meu pai.
— Você contou a ele...?
— Não, eu disse que estava curiosa e pedi que não comentasse nada com a minha mãe.
Cash assente.
— Deveríamos ir até essa agência. Pedir para ver a sua documentação.
— Eles me deixariam ver? — Sento-me.
— Você não tem 18 anos ainda, mas logo terá, então quem sabe? Talvez deem algum papel para seus pais assinarem.
A mágica do beijo começa a desaparecer e eu me lembro do que estou enfrentando.
— Eu quero fazer isso. Vou fazer, mas... — Eu me lembro de ouvir minha mãe rindo aquela noite. — Não posso pedir para a minha mãe assinar nada. Isso pode deixá-la ainda mais deprimida.
— Eu poderia forjar a assinatura dela.
— Isso é ilegal.
— Não tão ilegal quanto sequestrar uma criança.
Sim, a mágica se foi.
— Meus pais não me sequestraram. Eles me adotaram.
— Eu não quis dizer... — Cash hesita. — Antes de irmos, precisamos saber tudo que for possível. Vou tentar dar uma olhada no arquivo. Podemos ir à agência na segunda-feira.
Concordo.
Os olhos verdes encontram os meus com cautela.
— Quando perguntei se você se lembrou de algo de antes da adoção, você disse “mais ou menos”. Do que você se lembra?
— Nem chega a ser uma lembrança completa. Estou sentada num sofá, ele é marrom-claro e manchado. Estou chorando, assustada. Calço sapatos pretos de verniz, com fivelas. O tapete é sujo. E estou usando um vestido de princesa e segurando uma tiara.
— Havia alguém com você?
— Não sei. Tudo o que sei é que estou com medo.
— Como se você tivesse sido sequestrada?
— Não sei, mas esse sentimento, esse mesmo medo, às vezes eu sinto do nada. — Minha garganta dá um nó. — Ou talvez seja do dia em que a minha mãe me deixou na agência de adoção. E se estivermos errados? E se tudo isso for uma coincidência? E meus verdadeiros pais simplesmente não me queriam?
Ele franze a testa.
— São muitas coincidências. Sua vida aqui. O nome do seu gato. A data em que Emily foi sequestrada e que você foi adotada. A sua boneca.
— Sim, mas ainda assim podem ser simples coincidências.
O ombro dele se aproxima do meu.
— Vamos descobrir.
Fecho os olhos e me lembro de quase ouvir alguém me dizendo que minha mãe e meu pai não me queriam mais. Isso aconteceu ou foi só uma impressão que eu tive? E o machucado no rosto...?
— Você acha que, se os Fuller tivessem me visto, eles me reconheceriam?
— Sim. Você está como naquela foto.
Eu me inclino contra ele.
— Isso é tão difícil...
— Eu sei — diz Cash.
Nesse momento, um carro para em frente à casa de Lindsey. Vejo quando os faróis se apagam.
— É Lindsey voltando para casa, depois do encontro com David. — Eu me abaixo no assento e o puxo para baixo. Ele volta a se levantar.
— Opa! Eles estão na varanda. Vão se beijar.
— Pare de bisbilhotar. — Mas então eu me levanto e vejo David beijar Lindsey.
— Que bom! — digo, esperando que Lindsey não esteja pensando em Jonathon.
— Isso é mais que bom. — Cash me puxa para baixo e me beija. E ele está certo. É mais do que bom.
Nos beijamos até ouvirmos o carro de David se afastar. Então eu digo:
— Já é tarde.
— Tem razão. — Ele me leva de volta até a janela e a abre.
Eu calculo a altura.
— Entrar vai ser mais difícil do que foi para sair.
— Salte e eu te dou impulso. — Ele pega os Skittles da minha mão e os coloca no bolso.
Apoio as mãos no parapeito da janela e pulo. As mãos dele empurram meu traseiro e Cash me dá impulso para cima. Metade do meu corpo já está do lado de dentro. De repente, acho engraçado. Dou risada e olho para trás.
— Já pode tirar as mãos da minha bunda agora.
— Eu estava apenas ajudando — diz ele, e sorri.
Acabo de escalar a janela, depois me viro e olho para Cash.
Ele me entrega as balas e depois dá um salto se apoiando no parapeito. Seus ombros enchem o espaço da janela, os bíceps musculosos enrijecendo, os olhos verdes nos meus.
Ele me dá um breve beijo de despedida.
— Bons sonhos.
— Você também.
Eu o vejo voltar para o carro. Corro a língua pelos lábios para saborear o gosto do beijo dele. Mesmo com todos os problemas, pela primeira vez estou começando a gostar de morar em Joyful.
C O N T I N U A
— O que está fazendo? — pergunto quando meu pai entra no estacionamento de uma loja de conveniência, a pouco mais de um quilômetro de onde minha mãe e eu estamos morando agora. Minha voz soa meio desafinada depois de passar cinco horas de viagem sem falar. Eu estava com medo de que, se dissesse alguma coisa, tudo dentro de mim transbordaria. Minha raiva. Minha mágoa. Minha decepção com o homem que costumava ser meu super-herói.
— Preciso abastecer o carro e ir ao banheiro — diz ele.
— Ir ao banheiro? Quer dizer que você não pode nem entrar para ver minha mãe quando me deixar em casa? — Sinto o coração apertado como se uma mão gigante o esmagasse.
Ele me olha nos olhos, ignora minhas perguntas e diz apenas:
— Você quer alguma coisa?
— Sim, minha vida de volta! — Saio do carro e bato a porta com tanta força que o barulho de metal contra metal reverbera no ar abafado do Texas. Arrasto os pés pelo estacionamento, enquanto fito minhas sandálias brancas devorando a calçada e tento esconder o brilho das lágrimas nos meus olhos.
— Chloe! — meu pai me chama. Eu ando mais rápido.
Com os olhos ainda colados no chão, abro a porta, entro com tudo dentro da loja e dou um encontrão em alguém, esmagando meus peitos contra o peito da pessoa.
— Merda! — rosna uma voz grave.
Um copo de isopor bate no chão e uma bebida vermelho-sangue explode nas minhas sandálias brancas. O copo vira, provocando uma hemorragia no piso de ladrilhos brancos.
Engulo o nó na garganta e dou um passo para trás, afastando meu sutiã tamanho P do tórax de um sujeito.
— Desculpe — ele murmura, embora a culpa seja minha.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ARRANCADA_DO_MEU_MUNDO.jpg
Eu me forço a olhar para ele e vejo primeiro o peito largo, depois os olhos verdes e em seguida o cabelo preto-azeviche caído na testa. Ah, droga! Eu não podia ter trombado com algum velhinho de bengala?
Volto a fitar os olhos brilhantes do desconhecido e vejo uma mudança neles. Não estão mais com uma expressão de quem se desculpa. Agora parecem chocados e então... zangados.
Eu deveria dizer algo do tipo, Eu é que tenho que me desculpar, mas o nó na minha garganta volta com força total.
— Merda. — A palavra volta a escapar, agora com uma cara feia.
Concordo, tudo isso é uma merda!
Ouço meu pai chamar meu nome novamente, do lado de fora da loja.
Minha garganta fica mais apertada e as lágrimas ardem nos meus olhos. Com vergonha de chorar na frente de um estranho, arranco minhas sandálias e disparo na direção de uma geladeira cheia de refrigerantes.
Abro a porta de vidro e estico o pescoço para sentir o ar frio, precisando muito esfriar a cabeça. Enxugo algumas lágrimas rebeldes nas bochechas, depois sinto alguém ao meu lado. Meu pai não vai deixar isso passar em branco.
— Apenas admita que você estragou tudo! — eu digo, depois olho para o lado e sou engolida por aqueles mesmos olhos verde-claros zangados de um minuto atrás. — Pensei que você fosse... Foi mal... — balbucio, sabendo que é tarde para um pedido de desculpas. O olhar dele é inquietante.
O garoto continua a me encarar. Um olhar que não faz a mínima questão de esconder a antipatia. Como se a irritação dele não fosse apenas pela raspadinha derramada.
— Eu pago a sua bebida. — Ele nem pisca, então acrescento: — Me desculpe.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta fica sem resposta.
— O quê? Eu conheço você? — Sei que fui rude, mas, gato ou não, o cara está me deixando assustada.
Os olhos dele brilham de raiva.
— O que você quer? — Não entendo por que há um tom de acusação na voz dele.
— Como assim?
— Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Ele ainda está me encarando. Percebo que estou me sentindo intimidada com aquele olhar.
— Eu não sou... Você deve estar me confundindo com outra pessoa. — Balanço a cabeça, sem saber se o cara é tão louco quanto sexy. — Não sei do que você está falando. Mas já me desculpei. — Pego uma lata de bebida e, descalça, com as sandálias gosmentas na mão, ando rápido para a entrada da loja.
Meu pai entra, carrancudo.
— Cuidado! — diz a moça do caixa ao meu pai, enquanto limpa o chão sujo de raspadinha em frente à porta.
— Desculpe — murmuro para a moça e aponto para o meu pai. — Ele vai pagar meu refrigerante! E essa raspadinha aí no chão.
Disparo até o carro, entro e seguro a lata fria de refrigerante contra a testa. Os fios de cabelo na minha nuca começam a ficar arrepiados. Olho em volta e o gato esquisitão está do lado de fora da loja, me encarando novamente.
Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
É isso aí, o cara não bate bem. Desvio o olhar para fugir da vigilância dele. Meu pai volta para o carro. Ele não dá partida, fica ali parado, só me olhando.
— Você sabe que isso não é fácil para mim também.
— Ok. — Então, por que você saiu de casa?
Ele liga o carro, mas, antes de partirmos, olho em volta novamente e vejo o garoto de cabelos pretos parado no estacionamento, escrevendo algo na palma da mão.
Engano meu ou ele está anotando o número da placa do meu pai? Esse cara é muito doido! Eu quase digo algo para o meu pai, mas me lembro de que estou chateada com ele.
Meu pai acelera. Fico atenta ao espelho retrovisor. O cara gostosão fica ali, com os olhos colados no carro do meu pai, e eu também não tiro os olhos dele até que não passe de um pontinho preto no retrovisor.
— Sei que é difícil — diz meu pai. — Penso em você todo dia.
Eu balanço a cabeça, como se entendesse, mas não falo nada.
Minutos depois, meu pai encosta o carro na frente da nossa casa. Ou melhor, da casa onde moramos minha mãe e eu. Meu pai não mora mais conosco.
— Eu te ligo amanhã para ver como foi o seu primeiro dia de aula.
Meu estômago se contrai como um tatu-bola com o lembrete de que vou começar meu último ano do ensino médio numa escola nova. Olho para a casa velha no bairro antigo. A casa que um dia pertenceu à minha avó materna e que minha mãe alugou para um casal de idosos nos últimos anos. Agora moramos nela. Uma casa que cheira a gente velha... e a tristeza.
— Ela está em casa? — pergunta meu pai.
À luz do entardecer, nossa casa está às escuras. Uma luz dourada se infiltra por debaixo da porta da casa ao lado, onde mora Lindsey; ela foi a primeira pessoa da minha idade que conheci na cidade.
— Mamãe provavelmente está descansando — respondo.
Ficamos calados por um momento.
— Como ela está?
Achei que não ia perguntar... Olho para eu pai, enquanto ele segura o volante com força e analisa a casa.
— Bem. — Abro a porta do carro, sem querer me despedir. Dói demais.
— Ei! — ele sorri. — Pode me dar pelo menos um abraço?
Eu não quero dar, mas por algum motivo (porque sob toda aquela raiva, eu ainda o amo) eu me inclino sobre o console entre os bancos e o abraço. Ele não tem mais nem o cheiro do meu pai. Está usando uma colônia que Darlene provavelmente comprou para ele. Lágrimas ardem nos meus olhos.
— Tchau. — Tiro do carro um pé melado de raspadinha.
Antes de eu levantar o traseiro do banco, ele diz:
— Ela vai voltar logo a trabalhar?
Eu me viro para ele.
— Foi por isso que você perguntou como ela está? Por causa do dinheiro?
— Não. — Mas a mentira é tão clara na voz dele que fica pairando no ar.
Quem é esse homem? Ele tinge os fios grisalhos nas têmporas. Agora usa o cabelo espetado e está vestindo uma camiseta com o nome de uma banda que ele nem sabia que existia até Darlene aparecer na vida dele.
Antes que eu possa me conter, as palavras se derramam da minha boca:
— Por quê? Sua namorada está precisando de mais um par de sapatos de grife?
— Não, Chloe — ele diz num tom severo. — Você está falando como a sua mãe.
A mágoa agora aperta a minha garganta.
— Ah, pelo amor de Deus... Se eu falasse como a minha mãe, diria: “A putinha está precisando de mais um par de sapatos de grife?”. — Eu me viro outra vez para a porta do carro.
Ele pega meu braço.
— Olhe aqui, mocinha, não posso esperar que você goste dela assim como eu, mas gostaria que pelo menos a tratasse com respeito.
— Respeito? A pessoa precisa merecer respeito, pai! Se eu usasse as roupas que ela veste, você me mataria. Na verdade, nem você eu respeito mais! Você arruinou a minha vida. Você ferrou a vida da mamãe. E agora está transando com alguém dezoito anos mais jovem que você. — Saio do carro e, a meio caminho da soleira de casa, ouço a porta do carro se abrir e bater.
— Chloe. Suas coisas. — Ele parece zangado, mas não mais do que eu, porque, além de raiva, sinto mágoa.
Se eu não estivesse com receio de que ele me seguisse até em casa, todo ofendido, e começasse uma discussão com a minha mãe, eu não voltaria para pegar nada. Mas não quero mais ouvi-los discutindo. E não sei se minha mãe também iria aguentar. Não tenho opção a não ser fazer a coisa certa. É péssimo quando você é a única pessoa na família que se comporta como um adulto.
Eu me viro, seco as lágrimas bruscamente e me volto para o meio-fio.
Meu pai está de pé ao lado do carro, com uma mão segura a minha mochila e, com a outra, uma enorme sacola com as roupas novas que comprou para eu usar na escola. Ótimo. Agora me sinto a filha desalmada e ingrata.
Quando me aproximo, murmuro:
— Obrigada pelas roupas.
— Por que está tão brava comigo? — ele pergunta.
Tantas razões... Qual delas eu escolho?
— Você deixou Darlene transformar meu quarto numa academia de ginástica.
Ele balança a cabeça.
— Nós tiramos suas coisas e colocamos no outro quarto.
— Mas aquele quarto era meu, pai.
— É por isso que você está tão brava ou será porque... ? — Ele faz uma pausa. — Não é culpa minha que sua mãe tenha ficado...
— Continue pensando assim — eu digo. — Um dia desses, você pode até começar a acreditar!
Com as mãos ocupadas e o peito pesado, deixo meu super-herói e meu coração partido abandonados na calçada. Minhas lágrimas estão caindo rápidas e quentes quando fecho a porta da frente atrás de mim.
Docinho, um vira-lata amarelo de porte médio, me cumprimenta com um ganido e o rabo abanando. Eu o ignoro. Largo a mochila, a sacola de compras e vou para o banheiro. Félix, meu gato amarelo tigrado, vem correndo e entra comigo.
Tento fechar a porta de um jeito normal, em vez de batê-la com raiva. Se minha mãe me vir assim, vai ficar chateada. Pior ainda, isso alimentará sua raiva.
— Chloe? — minha mãe chama. — É você?
— Sim. Estou no banheiro. — Espero que minha voz não revele quanto me sinto arrasada.
Eu me sento no vaso sanitário, pressiono as costas das mãos contra a testa e tento respirar.
Os passos da minha mãe fazem o velho assoalho de madeira ranger. A voz dela soa atrás da porta.
— Está tudo bem, querida?
Félix está ronronando e se esfregando na minha perna.
— Sim. Mas meu estômago nem tanto... Acho que o bolo de carne que comi na casa do papai não caiu bem.
— Darlene é quem estava cozinhando? — O tom de voz dela denuncia o ódio reprimido.
Eu cerro os dentes.
— Sim.
— Por favor, diga que seu pai repetiu o prato.
Fecho os olhos, quando o que realmente quero fazer é gritar: Pare com isso! Eu entendo por que minha mãe está tão furiosa. Entendo que meu pai é um filho da mãe. Entendo que ele se recusa a assumir a culpa e que isso só piora as coisas. Entendo o que ela passou. Entendo tudo isso. Mas ela tem ideia do quanto me dói ouvi-la falar tão mal de alguém que eu ainda amo?
— Vou me sentar um pouco lá fora, no quintal — diz ela. — Quando sair daí, vá se sentar lá comigo.
— Ok — respondo.
Os passos da minha mãe se afastam.
Fico sentada no vaso e tento não pensar em tudo que me magoa. Em vez disso, faço carinho em Félix. Seus olhos, tão verdes, me levam de volta ao garoto da loja. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Que diabos ele quis dizer com isso?
Saio do banheiro, mas, antes de abrir a porta dos fundos, olho pela janela e vejo minha mãe no gramado, reclinada numa cadeira de armar. O sol está se pondo e ela está banhada numa luz dourada. Os olhos estão fechados e o peito se move para cima e para baixo, respirando lentamente. Está tão magra... magra demais.
O lenço azul desbotado escorregou da cabeça dela. Tudo que eu vejo é sua cabeça sem cabelos. E — pronto! Estou com raiva do meu pai outra vez.
Talvez ele esteja certo. Talvez eu o culpe pelo câncer da minha mãe.
Não adianta nem eu me lembrar de que, três semanas atrás, o médico a considerou curada. De fato, o câncer de mama foi detectado tão cedo que os médicos insistiram em dizer que deveríamos considerá-lo só um pequeno obstáculo no caminho.
Mas eu odeio os solavancos que os obstáculos podem provocar...
Meu olhar é atraído para a cabeça dela novamente. O médico afirmou que as breves sessões de quimioterapia eram só para ter certeza de que não restaria nenhuma célula cancerígena. Mas até eu ver o cabelo da minha mãe voltando a crescer e as costelas protuberantes sumindo, não vou parar de ter medo de perdê-la.
Quando ela foi diagnosticada, pensei que meu pai voltaria, que ele perceberia que ainda a amava. O mais triste é que acho que minha mãe pensou o mesmo. Mas isso não aconteceu.
Minha mãe abre os olhos, ajusta o lenço na cabeça e fica de pé com os braços abertos.
— Venha cá. Senti sua falta.
— Só fiquei três dias fora — digo. Mas é a primeira vez que durmo fora de casa desde que minha mãe adoeceu. E senti falta dela também.
Caímos nos braços uma da outra. Os abraços dela começaram a ficar mais longos desde que se separou do meu pai. Os meus ficaram mais apertados desde que a temida doença de minha mãe marcou nossas vidas.
Eu retribuo o abraço dela. Docinho está aos meus pés, a cauda abanando e batendo na minha perna.
— Ela redecorou a casa? — O tom de voz dela é casual, mas ainda carregado de animosidade.
Apenas o meu quarto. Mudando de assunto, eu pergunto:
— O que você fez enquanto estive fora?
— Li dois livros. — Ela sorri.
— Você não pegou seu manuscrito e tentou escrever?
Antes da separação, minha mãe passava todo o seu tempo livre trabalhando em seu livro. Ela chamava esse hobbie de “minha paixão”. Suponho que meu pai tenha exterminado essa paixão também.
— Não. Não tive vontade — ela diz. — Ah, olhe! — Ela tira a bandana. — Já está nascendo uma leve penugem na minha cabeça. Ouvi dizer que algumas mulheres gastam uma fortuna para ficar com esse visual.
Eu solto uma risada, não porque seja engraçado, mas porque ela está rindo. Eu não me lembro da última vez que minha mãe riu. Será que as coisas estão melhorando?
Ela vai até a cadeira de balanço dupla e se senta.
— Sente-se.
A cadeira afunda sob o nosso peso. O ombro de minha mãe esbarra no meu e ela olha fixamente para mim. Será que percebeu que meus olhos estão inchados de tanto chorar?
— O que há de errado, querida?
A preocupação em sua voz, o amor em seus olhos, tudo isso me faz lembrar de quando eu podia contar com ela para desabafar meus problemas. Quando eu não pesava cada palavra para garantir que não iria magoá-la. Porque ela já está sofrendo demais.
— Nada — eu digo.
Ela contrai os lábios.
— Seu pai deixou você chateada?
— Não — minto.
O olhar dela se demora em mim como se ela soubesse que não estou sendo sincera. Eu invento alguma coisa:
— É Alex.
— Você o viu enquanto estava na casa do seu pai?
Outro nó se forma na minha garganta. Acho que esse assunto também é delicado.
— Ele veio me ver e conversamos no carro.
— E então...?
— Não aconteceu nada. — Guardo essa dor para outra hora. — Eu disse a você que ele está saindo com outra pessoa.
— Sinto muito, querida. Você me odeia por tê-la feito se mudar de cidade?
Gente, não dá para odiar alguém que tem câncer! Mas e agora que o câncer está curado...? É tentador, mas não posso. Assim como não posso odiar meu pai.
— Eu não te odeio, mãe.
— Mas você odeia morar aqui? — A culpa acrescenta uma nota triste à voz dela. É a primeira vez que ela considera meus sentimentos sobre isso. Eu tentei ao máximo convencê-la a não se mudar, cheguei a implorar, mas ela não fez concessões. Então eu fiz. Fiz um monte de concessões.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Só é difícil.
Meu celular toca, indicando a chegada de uma mensagem. Não quero olhar agora, porque acho que é meu pai mandando uma mensagem para pedir desculpas e minha mãe pode ver, então vou ter que explicar. Ele está arrependido, não está? Quero acreditar que ele tenha percebido que dar meu quarto a Darlene foi um erro.
— Quem é? — pergunta minha mãe.
— Não sei. — O celular permanece no meu bolso.
Ele toca novamente. Merda!
— Você pode olhar para ver quem é... — diz minha mãe.
Eu tiro o celular do bolso e verifico as mensagens. Não é meu pai. E isso também me magoa.
— É Lindsey. — Eu leio a mensagem dela. Apareça quando puder.
— Ela ligou antes para ver se você estava em casa. Por que não vai vê-la? Vou preparar o jantar.
— Vou apenas mandar uma mensagem para ela — digo, sabendo que Lindsey vai perguntar sobre a minha viagem e eu não a conheço bem o suficiente para despejar tudo em cima dela.
— Ok. — Minha mãe dá um tapinha no meu braço. — O que você quer jantar?
— Pizza. — Estou morrendo de fome. Eu mal toquei no almoço na casa do meu pai.
— Pizza? Com o estômago revirado desse jeito? — diz minha mãe. — Que tal sopa de tomate e queijo grelhado?
Eu odeio sopa de tomate. É comida de hospital. Comida de quem tem câncer. Nós comemos isso quase todas as noites durante a quimioterapia. Então, mais uma vez, suponho que seja isso que eu ganhe por mentir.
— Claro!
Depois de um prato de sopa, um sanduíche e dois episódios de uma série, dou um abraço de boa-noite na minha mãe e vou para a cama. Docinho e Félix me seguem quando entro no meu quarto. Ou melhor, o quarto em que durmo. Meu quarto não existe mais.
Pego o celular para ver se alguma das minhas antigas amigas, ou talvez Alex, me mandou uma mensagem. Nada exceto outra mensagem de Lindsey, me lembrando de avisá-la quando estiver saindo para a escola na manhã seguinte.
Eu desabo na minha cama. Félix salta para cima do colchão, se aconchega ao meu lado e começa a ronronar. Docinho faz o mesmo e fica aos meus pés. Com o celular ainda na mão, deslizo a tela para as selfies que tirei de mim, Kara e Sandy neste final de semana. Nós estamos sorrindo, mas não é um sorriso sincero, natural. Parece que nós três estamos só fazendo pose. Como se estivéssemos fingindo alguma coisa. Fingindo um sorriso. Fingindo amizade.
Continuo passando as fotos com o dedo até chegar às mais antigas, com Kara e Sandy. Nós não estamos posando ou fingindo. Estamos nos divertindo. Isso está claro na nossa expressão, nos nossos sorrisos verdadeiros.
Eu continuo olhando as fotos até encontrar uma só minha e de Alex. Ele está beijando minha bochecha. Seus olhos azuis não aparecem na foto, e eu posso dizer que ele está rindo. Lembro-me de quando foi tirada. Na primeira noite em que dormimos juntos. Lágrimas enchem meus olhos e meu dedo desliza mais rapidamente. Imagens, instantâneos da minha vida agora não passam de borrões coloridos voando pela tela do meu celular.
Será que, na realidade, é apenas disso que se trata a vida? Borrões coloridos? Uma colagem de momentos efêmeros, em diferentes tons e matizes de emoção? Momentos em que você está feliz, triste, com raiva, com medo, e aqueles em que você está apenas fingindo.
Jogo o celular nos pés da cama e olho para o ventilador de teto girando, enquanto minhas emoções parecem fazer o mesmo. Meus olhos ficam pesados e então — pronto! — não estou mais olhando para o ventilador. Estou presa numa lembrança quase tão antiga quanto eu.
Estou sentada num sofá marrom. Meus pés, dentro de sapatos pretos de fivela, balançando bem acima de um tapete sujo. Estou usando um vestido de princesa com babados rosa, mas não sou uma princesa feliz. Soluços profundos e sinceros, meus soluços, ecoam ao meu redor. Eu me sinto um peixe fora d’água. Não consigo respirar.
Sento-me tão rápido que Félix pula da cama.
É a única lembrança que tenho antes de me tornar Chloe Holden. Alguns meses antes do meu terceiro aniversário. Antes de eu ser adotada.
Ultimamente, essa lembrança tem me ocorrido. Me assombrando, de certa forma. Mas eu sei por quê. É a sensação. A sensação de ser arrancada do meu mundo e colocada em outro lugar.
Não que isso não tenha sido bom. Naquela época, tive muita sorte em ser adotada, e por pais perfeitos. Ganhei uma mãe, um pai, tenho um gato chamado Félix e, ainda por cima, adotamos um cachorro chamado Docinho. Morávamos numa casa de tijolinhos brancos de três quartos, onde sempre havia risadas. E amor. Eu tinha amigos com quem cresci. Um namorado a quem entreguei a minha virgindade.
Eu tinha uma vida. Eu era feliz. Meus sorrisos eram de verdade nas fotos.
Aí meu pai passou a trabalhar até tarde.
Começaram as brigas dos meus pais.
O caso do meu pai.
A depressão da minha mãe.
O divórcio.
O câncer.
E depois a mudança da cidade de El Paso para Joyful, no Texas. Que, a propósito, de alegre não tem nada... [-11
E aqui estou eu. Arrancada do meu mundo outra vez. Arrancada brutalmente.
Mas, desta vez, não estou me sentindo tão sortuda assim.
2
Tentando me convencer de que este primeiro dia de aula não vai ser tão ruim quanto imagino, corro os dedos pelo meu cabelo grosso e escuro, que passei meia hora alisando. Depois de dar uma última olhada no espelho da penteadeira, envio uma mensagem para Lindsey e saio do quarto apressada.
Minha mãe, sumindo dentro de um roupão cor-de-rosa grande demais para ela, está sentada na mesa da cozinha, olhando para mim.
— Gosto mais da blusa vermelha.
— Eu sei. Mas prefiro esta hoje.
Dou um abraço nela. Sei que fico bem de vermelho, mas vou aparecer demais, tipo, Olhem para mim, eu sou a garota nova da escola! Então preferi usar uma blusa bege em vez disso.
— Me deseje sorte — diz ela.
— Por quê? O que você vai fazer? Vai começar a escrever de novo?
— Não. Estou procurando emprego.
Meu primeiro pensamento é que minha mãe deve esperar até o cabelo dela crescer.
— Você sente vontade de trabalhar?
— Sim. Estou cansada de não fazer nada.
— Então boa sorte. — Pego a mochila, faço um carinho rápido em Félix e em Docinho e saio, tentando não pensar em meu pai perguntando se minha mãe está trabalhando. Tentando não pensar que nunca recebi um pedido de desculpas dele.
Lindsey, vestindo jeans preto, blusa preta, unhas esmaltadas de preto e batom vermelho, está esperando ao lado da garagem. Seus cabelos loiro-claros com reflexos caem em cascata sobre os ombros. Ela parece saída de uma capa de revista.
— Caprichou no visual, hein? — eu digo.
Ela sorri.
— Meu plano é fazer Jonathon morrer de arrependimento.
Eu já ouvi tudo sobre Jonathon. A quem ela, na maioria das vezes, chama de “aquele cão sarnento traidor”. Eu o vi uma ou duas vezes quando nos mudamos. Foi só quando eles romperam o namoro que Lindsey e eu começamos a conversar. E só recentemente contei a ela sobre Alex, mas nós ainda não arranjamos um apelido perfeito para o meu ex-namorado.
Se a minha mãe não tivesse me arrastado para outra cidade do Texas, Alex e eu ainda estaríamos juntos. Não tenho certeza se poderia chamar de amor o que sentíamos, mas acho que estávamos perto disso. Quando fui embora, concordamos que iríamos manter um relacionamento a distância.
Só durou quatro semanas.
— Como foi a visita à casa do seu pai e do brinquedinho sexual dele? — ela pergunta enquanto caminhamos para o meu carro.
— Um verdadeiro inferno — digo, depois mudo de assunto. — Você já escolheu seu novo crush? — Entramos no meu Chevy Cruze branco.
— Sim, David Drake. Ele me convidou para sair no ano passado, logo depois que comecei a namorar Jonathon. Ele é engraçado, fofo e educado.
No trajeto, Lindsey fala sobre o horário das suas aulas e conta que tem três aulas com Jamie. Jamie é sua melhor amiga, que esteve fora durante o verão. Eu fico preocupada, achando que agora que a melhor amiga está de volta, Lindsey vai me deixar de lado quando mais preciso.
— Espero que a gente tenha aulas juntas — digo a Lindsey.
Quase todo mundo recebeu o horário das aulas por e-mail. Vou pegar o meu depois com a conselheira. Mas como Lindsey não faz as aulas mais puxadas, como eu, de conteúdo mais completo e aprofundado, duvido que tenhamos aulas nas mesmas classes.
Entro no estacionamento da escola e penduro no espelho retrovisor a autorização para estacionar ali. Minha mãe obrigou meu pai a pagar o plano mensal do estacionamento. Meu estômago começa a revirar ao ver pessoas que não conheço. Eu olho para Lindsey.
Ela está me olhando de um jeito estranho.
— Cara, você está nervosa mesmo!
— Um pouco, por quê?
Ela faz uma cara engraçada.
— Não sei. Achei que fosse mais peituda.
— Eu? Por quê?
— Sua mãe tem câncer. Você precisou se mudar no último ano do ensino médio e está, tipo, numa boa com tudo isso. Eu estaria surtando.
Eu digo a verdade.
— Eu estou surtando. Apenas finjo que não. — Saltamos do carro e pegamos nossas mochilas no banco de trás.
A poucos metros do meu carro, sinto pessoas olhando para mim e acenando para Lindsey. Levanto o queixo e finjo que não estou nem aí. Lindsey começa a falar sobre onde vamos nos encontrar depois das aulas e me diz para mandar uma mensagem quando eu souber os meus horários.
Estamos quase saindo do estacionamento quando ouço gritos. Paramos.
Um cara grandalhão, de cabelo castanho-claro, está rindo de outro, mais novo, com cara de ser do segundo ano. O valentão está segurando uma mochila e fazendo algumas piadas sobre a estatura do mais baixinho.
O rosto do garoto está vermelho, como se ele estivesse envergonhado e com muita raiva. Meu coração se compadece do aluno do segundo ano, que parece tão desconfortável quanto eu ali. Estou pensando em fazer alguma coisa quando outra pessoa faz. Alguém com cabelo preto- azeviche e ombros com um quilômetro de largura. Eu acho que ele é professor; então — droga! — eu o reconheço! É o cara paranoico com quem trombei na loja de conveniência.
— Pare de ser idiota! — O psicopata da loja tira a mochila da mão do garoto babaca e a joga para o garoto mais novo, que a agarra e sai correndo.
— Olha como ele corre! — diz o valentão, rindo. Mas, caramba, eu odeio valentões!
O cara estranho fala algo que não consigo ouvir. Eu chego mais perto. Lindsey se aproxima junto comigo.
O idiota explode:
— Quem diabos você pensa que é?
Lindsey se inclina.
— Isso está ficando interessante.
Eu não olho para ela. Meus olhos estão presos na cena.
— Paul é o cara que pegou a mochila do garoto — Lindsey continua, baixinho. — Ele é jogador de futebol. O outro cara é o Cash. Ele começou a estudar aqui na metade do último ano escolar. Costumava frequentar a Westwood Academy, uma escola particular para onde vão as crianças ricas. Mas há boatos de que cresceu num orfanato e é mau elemento.
— Paul é quem está agindo como um mau elemento. — Eu tento ligar o cara que está defendendo o garoto mais novo com o lunático que conheci ontem.
— Verdade. Paul é que vive praticando bullying — Lindsey admite.
Paul se aproxima de Cash. Apesar do encontro de ontem, estou torcendo por Cash. Não gosto de psicopatas, mas gosto menos ainda de valentões.
Cash não se move, mas seus ombros se alargam. Paul não parece assustado, mas ele deveria estar. Cash é uns cinco centímetros mais alto do que Paul. Mas não é a altura que o torna tão intimidador. É a linguagem corporal dele. Ele parece durão. Ainda mais durão agora do que ontem.
— Eu fiz uma pergunta! — Paul grita. — Quem você acha que é, garoto adotado?
Os ombros de Cash se alargam ainda mais.
— Sou o único aqui que não tem que pegar alguém menor do que eu para me sentir importante.
Paul se aproxima e cola o rosto no de Cash.
Cash fala alto:
— Vá embora enquanto pode. — Seu tom é ameaçador.
— Você é que vai embora! — rebate Paul.
Acho que Cash está prestes a recuar o punho para dar um soco no outro, mas ele me surpreende e diz:
— Você não vale o aborrecimento.
Ele se vira para ir embora.
Não sei se estou decepcionada por Cash não dar uma lição em Paul ou se ele tomou a atitude certa.
Cash se afasta alguns passos quando Paul avança e o empurra pelo ombro. Cash se desequilibra.
— Covarde! — Paul o acusa.
— Você é que é covarde por esperar eu virar as costas.
— Bem, agora estou na sua frente. — Paul desfere um soco.
Cash desvia para a esquerda. O punho de Paul golpeia o ar.
Todo mundo ri. Isso alimenta a fúria de Paul. Ele levanta os punhos na frente do rosto e começa a transferir o peso de um pé para o outro, como se fosse um boxeador profissional.
Cash leva os punhos até o queixo. Todos começam a gritar.
— Acaba com esse imbecil! Dá uma lição nele!
De alguma forma, sei que eles não estão torcendo por Cash. Eu não vou gostar dessa escola.
Estou achando que devemos ir embora, mas, assim como Lindsey, não consigo tirar os olhos da cena. Os dois caras se movem em círculo. Paul desfere outro soco, Cash se abaixa. Paul solta um rosnado.
Espero Cash fazer algum comentário irônico, mas ele não fala nada.
Tenho a sensação de que não quer lutar.
De repente, eles se posicionam de modo que Cash fica de frente para mim.
Aqueles olhos verdes líquidos olham para a frente e encontram os meus, castanhos. Ele congela.
É quando Paul desfere outro soco e seu punho atinge o olho de Cash. Ele quase cai, mas, com fúria, golpeia Paul — primeiro na barriga, depois no nariz. Paul cai, ofegante, e coloca a mão sobre o nariz. Sangue escorre entre os dedos dele.
— Parem! — alguém grita. Um homem corre na direção do grupo. Dessa vez é um professor de fato. A aglomeração começa a se dispersar.
— Vamos dar no pé. — Lindsey me puxa. Logo antes de eu me virar, o olhar de Cash me encontra novamente. Seu olho esquerdo já está inchando. Eu me viro e sigo Lindsey.
— Isso foi bem estranho... — Lindsey se apressa em direção à entrada da escola.
— A briga? — pergunto.
— Não. Cash olhando para você. Você o conhece?
— Não — eu digo, mas não explico mais nada.
— Bem, algo em você chamou a atenção dele.
— Eu provavelmente pareço alguém que ele conhece. — Me lembro de dizer o mesmo para ele na loja.
— Ou ele gosta de você. Todas as garotas da escola já tentaram chamar a atenção dele e não conseguiram. Você chega aqui e ele leva um soco enquanto olha para você.
— Talvez não estivesse olhando para mim — digo, sem muita convicção.
— Sei. — Lindsey revira os olhos.
Olho para a escola que aparece diante de mim e tudo que eu quero é dar meia-volta e voltar para casa.
Estou esperando na secretaria para pegar meus horários com a conselheira, a srta. Anderson, quando ouço uma voz zangada atrás de mim.
— Você quebrou o nariz dele.
Estou quase certa de que é a voz do professor que interrompeu a briga. Não viro a cabeça para ver quem é. Fico olhando para a frente, enquanto passam por mim. O professor empurra a porta giratória que leva à parte de trás da secretaria. Cash o segue.
Ele está quase passando pela porta quando se vira para trás. Seus olhos, ou melhor, “seu olho” me encontra — o outro está tão inchado que nem abre mais. O ar de acusação é evidente em sua expressão. Parece até que sou eu a responsável pelo olho roxo. Ouço o professor dizer algo e Cash se vira para a frente e o segue.
Incomodada com aquele olhar, vejo a recepcionista acenando para que eu me aproxime. Ela abre a porta e eu a sigo por um corredor, até os fundos. Viramos uma esquina e vejo o professor que interrompeu a briga. Parecendo chateado, ele conversa com uma mulher de cabelos pretos.
A recepcionista limpa a garganta.
O professor e a mulher olham para ela.
— Chloe Holden. — A recepcionista faz um gesto na minha direção.
— Leve-a até o meu escritório. — A recepcionista concorda com um ar contrariado. — Eu já estou indo.
Sou conduzida até outra sala e eu me sento na cadeira mais próxima da porta, enquanto a recepcionista dá meia-volta e sai. Posso ouvir ao longe a conversa entre o professor e a conselheira. Eu me reclino na cadeira.
— Não — diz a conselheira. — Estou dizendo para averiguar os fatos antes de fazer suposições.
— Eu já averiguei — respondeu o homem. — Paul Cane me disse o que aconteceu e três alunos confirmaram a história.
— Três amigos de Paul, posso apostar — diz a srta. Anderson. — Vou atender essa nova aluna e depois falo com ele.
— Vai perder o seu tempo — diz o professor.
— Bem, é o meu tempo que vou perder — responde a conselheira com rispidez.
Ouço passos vindo na minha direção. Sento-me mais ereta na cadeira e finjo que não estava prestando atenção na conversa.
— Sinto muito fazer você esperar. — Ela me oferece a mão, mas ainda está com a testa franzida. — Sou a srta. Anderson.
Aperto a mão dela. Pode parecer estranho, mas já gosto dela por defender sua opinião, apesar da oposição do professor.
— Eu sou Chloe Holden.
Ela se senta atrás da mesa e, em seguida, puxa um arquivo de uma pilha de papéis.
— Pedi seu histórico escolar para o Lionsgate High. Vi suas notas. São impressionantes. Com toda essa dedicação, você vai longe.
Eu ouço muito isso. Sou inteligente, mas não me dedico tanto assim aos estudos. As coisas, na escola, são fáceis para mim. Na realidade, na minha antiga escola, eu normalmente errava de propósito uma ou duas perguntas nas provas, para que minhas amigas não me odiassem. Ser inteligente demais não é legal.
— Você está planejando ir para a faculdade, certo?
— Estou, sim — digo. — Meus pais frequentaram a Universidade de Houston, então pretendo ir para lá também.
— Com essas notas, você pode ir para a universidade que quiser. Já solicitou uma bolsa?
Eu confirmo com a cabeça. Pelo menos meu pai vai ter uma folga nas mensalidades quando eu for para a faculdade.
— Bem, coloquei você nas turmas em que o conteúdo das matérias é visto com mais profundidade. Assim, acho que não vai ficar entediada.
Assinto com a cabeça outra vez, meus pensamentos ainda no que a ouvi dizendo para o professor no corredor.
— Sua mãe mencionou que está fazendo quimioterapia. E que se divorciou recentemente.
Por que mamãe contou isso a ela? Eu congelo na cadeira.
— Se você precisar conversar, saiba que estou à disposição.
— Obrigada — digo. — Eu estou bem. Minha mãe também. Ela está curada do câncer agora.
— Ótimo! — Ela olha para o computador. — Estou imprimindo os seus horários e vou pedir a alguém que a acompanhe por alguns dias até que você aprenda a se localizar dentro da escola.
Quero recusar a escolta, mas também não quero correr o risco de me perder dentro do prédio e chamar ainda mais atenção.
Ela faz uma ligação rápida e me entrega meus horários, depois de tirá-los da impressora.
— Sandra vai encontrar você no escritório principal.
Concordo novamente, pego minha mochila, dou dois passos em direção à porta e depois me viro.
— Ah, sobre o que aconteceu no estacionamento...
— O quê?
— A briga — eu digo.
— Você estava lá? — Ela se inclina para a frente. Eu tenho a sensação de que gosta de Cash ou talvez saiba que Paul pratica bullying.
— Sim, o cara com cabelos mais claros, acho que alguém o chamou de Paul, ele estava provocando um garoto mais novo. Pegou a mochila dele e não queria devolver. O outro cara, Cash, devolveu a mochila para o garoto. Paul começou a briga. Cash tentou até se afastar dele.
Os olhos da srta. Anderson se arregalam com um sorriso.
— Você conhece algum dos dois?
— Não, não conheço. Só vi a briga. E... alguém me disse o nome deles.
— Obrigada. — Ela parece aliviada.
Eu saio e paro, quase colidindo com o peito de Cash outra vez. Nossos olhares se encontram. Ou o meu olhar e o “meio olhar” dele. Seu olho está inchado agora. Mas juro que o outro está me acusando de alguma coisa.
As palavras “Desculpe por defender você” estão na ponta da língua. Eu não as digo.
Passo por ele com pressa.
Sinto seu olhar sobre mim. Como senti ontem. Calafrios percorrem minha espinha.
O que há com esse cara?
3
Trinta minutos depois, Cash Colton entrou no jipe. Por que ela me defendeu? Então tudo se encaixou e ele soube no mesmo instante: Porque eu estava certo.
Esbarrar nele tinha sido a estratégia perfeita. Sempre faça repararem em você. Não se aproxime. Faça com que suspeitem.
Foi tudo uma estratégia.
Bem, nem tudo. A briga não poderia ter sido. Ninguém poderia adivinhar que ele sairia em defesa do garoto. Cash não sabia nem por que tinha feito aquilo. Exceto... pelo fato de que aquele garotinho assustado costumava ser ele...
Defendê-lo, no entanto, tinha que fazer parte do jogo dela. Fazer com que confiassem nela. Acreditassem que ela é uma pessoa amigável.
Ela ia precisar de sorte. Cash não confiava em ninguém. Nem mesmo em alguém com seios bonitos.
Ninguém pode trapacear um trapaceiro — não quando ele sabe todos os tipos de truque. Foi treinado pelo melhor de todos: seu pai malandrão, agora já falecido.
Ele saiu do estacionamento da escola cantando pneu. Depois de inocentá-lo da briga, a srta. Anderson havia chamado sua mãe adotiva, a sra. Susan Fuller. Por ser médica e uma pessoa amorosa, ela insistiu em vê-lo antes de decidir se ele precisava ir ao pronto-socorro ou não. Ele deveria esperar que ela viesse examiná-lo antes de voltar às aulas.
A um quarteirão da escola, ele ligou para a sra. Fuller.
Ela atendeu:
— Estou a caminho. Você está bem?
— Estou. Não precisa vir. Estou indo para casa agora tomar uma aspirina.
— Cash, a srta. Anderson, queria que você ficasse na escola. Você não deveria ter...
— Ah, é? Eu não sabia. — Na verdade, ele tinha ouvido toda a conversa atrás da porta e saído furtivamente antes que alguém pudesse detê-lo. — Pensei que eu estava livre para ir embora, depois que ela falou com você.
— Não, querido, você não deveria estar dirigindo. Pode ter sofrido uma concussão. A que distância está de casa?
— Praticamente lá — ele mentiu de novo e sentiu um aperto no estômago.
— Você não está com tontura, está?
— Não.
— Ok, então siga em frente e volte para casa. Vou ligar para avisar a srta. Anderson. Estarei em casa em vinte minutos.
— Mas não é preciso. Estou bem. — Ele olhou para o relógio no painel. Oito e quarenta.
— Foi isso que você disse dois anos atrás, quando seu apêndice supurou — ela disse.
— E eu ainda estou vivo. Então eu estava bem, não estava?
— Depois de oito dias no hospital. — Ela suspirou. Cash ouvia muitos suspiros da mãe adotiva. Desapontá-la era a última coisa que ele queria. E, por mais que tentasse evitar, sempre a decepcionava. O passado de Cash o seguia por toda parte.
Os Fuller complicaram a vida deles quando optaram por adotá-lo [2]. Não que fossem sofrer por muito mais tempo. Em dois meses, ele já teria idade para deixar o lar adotivo. Ele não poderia fazer isso antes de terminar o ensino médio...
— Pare o carro e me ligue se sentir tontura.
— Entendido. — Ele desligou. Consultando o relógio novamente, ele passou a entrada para o bairro de Stallion, onde os Fuller moravam — ou melhor, onde ele ocupava um dos quartos da casa deles — e foi direto para o Walmart. O olho latejava.
Estacionou o jipe, entrou na loja e seguiu até o quadro de avisos.
Cada vez que ia ao supermercado, ele examinava aquele quadro. A primeira vez que tinha se deparado com ele, a vontade que teve foi de rasgá-lo, com receio de que os Fuller o vissem e ficassem tristes. Mais tarde, ele descobriu que os próprios pais é que tinham colocado o folheto ali.
E ali estava ela. Na foto, olhando para Cash.
O mesmo formato de olhos. A mesma mandíbula. Os mesmos lábios.
— Merda!
Isso não significava que fosse ela. A imagem que simulava a aparência dela com a idade que teria hoje poderia não ser exata. As fotos às vezes mentiam. Ele sabia disso por experiência própria. Mas, caramba, aquela garota parecia mais com ela em pessoa do que a foto que um filho da mãe dera à sra. Fuller um ano atrás. E depois que a sra. Fuller entregou a ele 3 mil dólares para encontrar a tal garota, ele convenientemente desapareceu. E levou uma parte do coração da mãe adotiva também. Só agora ela estava voltando ao normal.
Se ao menos a sra. Fuller tivesse contado a Cash, ele teria explicado a ela como funciona esse tipo de falcatrua.
Seria o mesmo vigarista voltando para conseguir mais dinheiro? Provavelmente. Mas, desta vez, havia se tornado seu jogo mais sofisticado. Só que agora Cash sabia o que estava acontecendo. E iria detê-lo.
Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Quando estendeu a mão para tirar a foto do quadro, ouviu uma porta se abrir atrás dele. Cash se afastou e fingiu que verificava um cupom de ração para cachorro.
Enfiou as mãos nos bolsos, esperando a pessoa empurrar o carrinho pela porta. Quando não ouviu mais nenhum passo, concentrou-se novamente no panfleto.
Havia uma cópia do folheto na casa dele, também. Guardada num arquivo. Mas vasculhar a escrivaninha do sr. Fuller não parecia certo. Especialmente depois de Cash já ter sido pego fazendo isso uma vez. Ele estava com os Fuller havia apenas alguns meses, algumas semanas antes do seu aniversário de 15 anos, quando viu a sra. Fuller, com lágrimas nos olhos, olhando para o arquivo aberto. Mais tarde, quando ela já confiava nele a ponto de deixá-lo sozinho em casa, Cash descobriu o que a fizera chorar.
Ele não tinha ouvido a sra. Fuller entrar em casa aquele dia. No segundo em que ela o viu, Cash teve certeza de que ela ia gritar, depois ligar para dizer aos assistentes sociais que viessem buscá-lo. Outras três famílias já o tinham devolvido. Mas a sra. Fuller puxou uma cadeira e colocou-a ao lado dele, próximo à escrivaninha do marido, e perguntou o que ele estava fazendo.
Cash foi sincero:
— Eu queria saber o que a fez chorar.
Ela suspirou, um suspiro que era um gemido baixo misturado com uma expiração longa, e ele logo descobriu que aquele suspiro era a marca registrada da sra. Fuller, nos momentos em que estava infeliz. Depois ela contou a história toda. E chorou também enquanto a contava.
A porta do Walmart se fechou. Ele pegou o papel pregado no quadro, dobrou-o, guardou no bolso e saiu de lá. De volta ao carro, ligou o motor e verificou as horas. Droga. Ele tinha cinco minutos para chegar em casa antes da sra. Fuller.
E se ela chegasse lá antes dele, ficaria chateada.
Embora Cash não pudesse ser a pessoa que os pais adotivos queriam que fosse, ele se esforçava para não decepcioná-los. Dirigiu como se fugisse do próprio diabo. Sentado ereto, tomava ainda mais cuidado porque estava enxergando apenas com um olho. Mas ele provavelmente conseguiria dirigir até com os olhos vendados. Tinha muita prática.
Outra coisa que seu pai havia lhe ensinado. Com apenas 9 anos, ele era o motorista de fuga quando o pai roubava lojas de conveniência. Você tem que ganhar seu próprio sustento, garoto. Fazia sete anos que ele não via o rosto do homem, mas a voz dele ainda ecoava em sua cabeça.
Cash estacionou na garagem, destrancou a porta da frente e digitou o código de segurança. Correu pelas escadas, saltando dois degraus por vez, entrou no quarto e escondeu o folheto em sua escrivaninha. Depois correu de volta até o andar de baixo, pegou duas aspirinas, mastigou-as e se deixou cair no sofá. Félix, o velho gato malhado amarelo, miava para que ele o pegasse no colo. O pobrezinho já estava cego como um morcego. Ele pegou o bichano e lhe deu umas palmadinhas de leve. Mal tinha se reclinado no sofá quando a porta se abriu.
— Cash? — Era a voz da sra. Fuller, quase melodiosa, chamando-o.
— Estou aqui, na sala de estar — gritou ele.
Ela entrou e ele a viu franzir a testa.
— Ai, meu Deus!
Ela se aproximou e levantou o queixo dele com dois dedos. Cash tentou não se encolher. Não que tivesse aflição que o tocassem. A sra. Fuller tinha carta branca. Mas é que ele sentia dor quando ela o tocava. Não uma dor física, uma dor emocional...
— Acho que você precisa de um raio X. Só para...
— Não. — Ele se afastou. — É só um olho roxo. Já estou acostumado.
Lá veio o suspiro.
— Você pôs gelo?
— Por alguns minutos na escola.
Ela correu para a cozinha e voltou com um saco de ervilhas congeladas. Sua expressão era determinada. Ele suspeitou que a história do raio X não seria esquecida.
— Eu não vou ao hospital. — Ele pegou as ervilhas.
Um suspiro triste saiu dos lábios dela novamente e ela se sentou na cadeira em frente ao sofá. Eles se olharam nos olhos. Cash a comparou com a garota nova da escola. Havia muitas semelhanças. Mas não a cor dos olhos. Os olhos da sra. Fuller eram azuis. A garota tinha olhos castanhos com manchas verdes e douradas.
A sra. Fuller deu uma palmadinha nos joelhos e se balançou na cadeira algumas vezes. Isso geralmente significava que ela tinha algo na cabeça e queria conversar. Alguma coisa séria.
Ele esperou.
— A srta. Anderson me disse o que você fez. Defendeu aquele garoto.
Ele assentiu e continuou esperando. Não devia ser só isso.
— Estou orgulhosa de você, mas preferia que o tivesse defendido sem brigar. Você já sabe fazer melhor do que isso. — A decepção brilhava nos olhos dela. Cash se encolheu.
Quando apanhava do pai não doía tanto. Ele detestava — odiava — decepcionar a sra. Fuller
Cash tinha dezenas de justificativas na ponta da língua. Eu tentei ir embora. Ele bateu primeiro. Mas já fazia muito tempo que ele tinha aprendido que não adiantava se defender. As pessoas pensavam o que queriam.
— Desculpe — ele balbuciou.
— Você não pode ser expulso de outra escola.
E isso não foi culpa minha também. Cash levantou o queixo.
— Eles disseram que vão me expulsar?
— Não. Quando liguei de volta, a srta. Anderson deu a entender que você não vai ser punido. Vários alunos se manifestaram e defenderam você.
— Vários? — Ele tinha ficado chocado ao saber que um aluno o defendera. Então se lembrou de ter visto Jack quando o treinador interrompeu a briga. Ele e Jack não eram grandes amigos, mas no ano anterior tinham feito um projeto de ciências juntos e realmente haviam se dado bem.
— Foi isso que ela disse. Mas, se acontecer de novo, eles não vão facilitar para você.
Ele assentiu novamente.
— Pode voltar ao trabalho. Estou bem.
— Tudo bem. Minha assistente vai atender meus pacientes de hoje.
Mas não estava tudo bem. Os Fuller não mereciam ter que resolver as encrencas em que ele se metia. Perder a filha já era um fardo pesado demais. O que eles mereciam era ter a filha de verdade de volta. Mas qual era a probabilidade de Emily Fuller não estar sob sete palmos de terra?
Isso não impediria vigaristas de quererem tirar vantagem dos Fuller. Ele sabia. Havia convivido com um deles. Tinha sido um deles. Ele e o pai haviam cometido uma fraude semelhante certa vez, depois que o pai vira a foto de uma criança parecida com Cash num quadro de pessoas desaparecidas. O pai tinha feito uma breve pesquisa. A pobre mulher que havia colocado a foto no quadro estava sempre almoçando no parque perto do trabalho dele. Eles foram até lá todos os dias durante uma semana. O trabalho de Cash era encará-la. Chamar a atenção dela. Fazê-la morder a isca.
A mulher finalmente mordeu. Aproximou-se deles.
O pai dele era bom. Desempenhou bem seu papel. Contou a triste história de que não sabia o sobrenome de Cash. Que o garoto era o filho da irmã que ele perdera havia muito tempo — embora ele nunca soubera que ela havia tido um filho. Ela falecera e deixara o garoto para ele criar.
Demorou mais um dia para a mulher compartilhar sua própria história triste com eles. Só que a dela era verdadeira. Ela havia dado à luz um menino, que tinha desaparecido aos 4 anos de idade. Cash se parecia muito com ele.
— Venha cá — a mulher pedira a ele. Ela tinha lágrimas nos olhos. Com as mãos trêmulas, tocou no rosto de Cash. Ele se lembrava de ter se retraído um pouco. — Você é David? Você se lembra de mim? É por isso que você estava me encarando?
— Eu não sei — ele mentiu. Mentiu como o pai o obrigara a fazer. Então o pai o cutucou no ombro para lembrá-lo de terminar de falar o que haviam combinado. Tinha 6 anos de idade e já tinha que ganhar seu sustento. — Você tinha um cachorro preto com uma mancha branca no focinho?
A lembrança de como aquela mulher estava desesperada ainda assombrava Cash às vezes. Ela não hesitara: dera ao pai dele o dinheiro para que fizessem o teste do DNA de Cash. Claro que nunca fizeram. Naquela noite, eles fugiram de carro da cidade de Little Rock, em Arkansas, com 5 mil dólares no bolso. Provavelmente, o dinheiro que a mulher economizara a vida toda.
— Aquilo foi errado! Eu nunca vou fazer isso de novo — Cash disse ao pai. Aquele havia sido seu primeiro olho roxo. Tinha doído. Mas ele estava certo de que tinha doído ainda mais na mulher.
Cash nunca deixaria que isso acontecesse aos Fuller.
Ele precisava encontrar respostas.
— Oi, querida. Como foi na escola?
Minha mãe está me esperando quando entro em casa aquela tarde. Achei que ela ainda estaria procurando emprego. Não estou a fim de ser interrogada.
— Foi tudo bem — digo.
— Lindsey apresentou você para todo mundo?
— Sim. Conheci Jamie, a melhor amiga dela. Ela é legal. — E ela era mesmo, mas notei que não parou de me contar histórias sobre Lindsey e ela, como se tentasse provar alguma coisa. Como se quisesse deixar claro que eu sou a garota nova e Lindsey é a melhor amiga dela.
Não me importo com isso. Faltam apenas nove meses para eu me formar.
Percebo que minha mãe está esperando que eu conte mais.
— Lindsey quer que eu saia com elas mais tarde. Jamie vai à casa dela. — Se eu estivesse em El Paso, estaria com Sandy e Kara. Estaríamos comparando as nossas experiências na escola, nossos professores, os caras que parecem mais gatos este ano do que no ano passado.
Mas não estou em El Paso. Estou aqui. E por isso não vou dar uma de idiota; vou me contentar em ser a segunda melhor amiga de Lindsey e agradecer por isso.
— Como foi seu dia? — pergunto. — Encontrou um emprego?
O sorriso dela se amplia e é muito bom vê-la sorrir.
— Encontrou?
— Sim, fui ao consultório do meu médico, o dr. James, meu oncologista. Há dois médicos no consultório. Eu disse a ele que tinha diploma de enfermagem e ele praticamente me ofereceu um emprego. Eles têm que checar meus antecedentes e preciso ser entrevistada por outro médico, mas parece que consegui a vaga.
Ela está sorrindo, feliz. Eu a abraço.
Quando nos separamos, ainda está sorrindo.
— Vai dar certo. — Ela segura minhas bochechas como fazia desde que eu era uma garotinha. — Nós aqui. Vai dar certo.
Concordo, querendo acreditar. E vendo-a feliz, quase acredito.
No dia seguinte, eu me recuso a andar pela escola com uma escolta. Tenho certeza de que já sei me localizar. Ledo engano. Me perdi e chego atrasada para a segunda aula, de Literatura Americana, sentindo como se tivesse uma placa de neon piscando nas minhas costas com a inscrição ALUNA NOVA.
Infelizmente, aquela sensação de ser observada nunca desaparece. E eu vejo quem está olhando: Cash. Ele está começando a me assustar. Conto os minutos para a aula terminar.
No intervalo entre as aulas, vou ao meu armário para trocar de livros. Estou com os dois braços ocupados quando sinto alguém ao meu lado. Meu coração vai parar na garganta. Acho que é Cash.
Errado.
Olho para cima e encontro um par de olhos azul-claros sedutores, que pertencem ao garoto bonito que notei na aula de Literatura Americana.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? Precisa de um encontro na sexta à noite?
Eu retribuo o sorriso. Meu coração bate de emoção.
— Sou David Drake.
— Eu sou... — Meu nome gruda na língua enquanto tento descobrir onde ouvi o nome dele antes. Então — pronto! —, eu me lembro. E não é nada bom.
David Drake é o novo crush de Lindsey. Merda.
— Eu... não estou interessada. — Eu me afasto para recuperar meu espaço e me concentro no meu armário.
— Pensei que seu nome era Chloe.
— É sério. — Olho para ele outra vez, desta vez sem sorrir.
O sorriso do garoto continua intacto.
— Quem sabe você comece a se interessar com o tempo...
— Sou comprometida.
— Deixou um namorado na cidade de onde veio?
— Sim — minto, jogando o cabelo para trás. — Estamos praticamente noivos.
Ele coloca a mão direita contra o peito.
— Como assim? Você acabou de partir meu coração.
Balanço a cabeça e tenho uma ideia. Antes que eu possa concluir se a ideia é boa ou ruim, conto a ele.
— Sabe, ouvi falar de uma garota que gosta de você.
— Quem?
— Não posso dizer, mas... uma dica é que você a convidou para sair no ano passado.
Ele franze a testa.
— Sara?
Eu não respondo.
— Lisa?
Eu franzo a testa.
— Katie? Paula? Anna? Lacy? Carol? Jackie? Hannah?
Não estou acreditando...
— Estou brincando — diz ele. — Como só convidei duas garotas para sair e uma delas vem à escola com você, eu sei quem é. Mas achei que ela estivesse com Jonathon.
Eu me preocupo, achando que deveria ter ficado de boca fechada, então só encolho os ombros e me viro para me afastar. Por que sempre quero consertar as coisas?
Dou apenas alguns passos quando vejo Cash novamente, dois armários depois do meu. Ele não está olhando para mim, mas aposto o meu melhor sutiã que ele estava ouvindo a minha conversa com David.
Então vejo Jamie do outro lado do corredor. Ela desvia o olhar rápido e vai embora. Eu sei que ela viu David falando comigo.
Droga! Provavelmente está indo contar para Lindsey agora mesmo.
Cash esperou até o sr. Alieda deixar a sala de aula, para dar uma rápida corrida ao banheiro e entrar no laboratório de ciências. Correu para os dois terrários encostados à parede. Os alunos começariam a chegar a qualquer momento. Um tanque continha uma jiboia, o outro tinha comida viva para a cobra. Abrindo a mochila vazia, ele tirou dali uma luva.
O camundongo ficou de pé nas patas traseiras e olhou para Cash, mexendo os bigodes.
— Vamos fazer um acordo? Eu ajudo você e você me ajuda. Você tem uma chance de conquistar a liberdade. E eu consigo... respostas. Talvez.
Cash pegou o camundongo com delicadeza e colocou-o na mochila vazia. Depois de recolocar a tampa no terrário, ele foi para a secretaria.
Não era o melhor plano que ele já tinha engendrado, mas era um plano.
Naquela manhã, ao agendar uma reunião com a srta. Anderson, ele tinha ficado em dúvida quanto ao melhor horário até descobrir que ela almoçava entre onze e onze e meia. Perfeito. Era naquele horário que ele almoçava também.
Tudo o que ele precisava era de três minutos no escritório dela. Três.
Ele poderia esperar e voltar à noite, mas e se fosse pego...? Invasão dava cadeia. Liberar um camundongo indefeso era uma ofensa perdoável.
Ao entrar na secretaria, ele viu três garotas esperando para falar com a funcionária da recepção. Aquilo podia funcionar.
Ele ficou atrás das meninas, abriu a mochila e colocou o camundongo no chão. O bichinho demorou cerca de quatro segundos para correr em busca da liberdade.
Voltando a fechar a mochila, ele disse:
— Isso é um camundongo?
Assim como ele tinha planejado, reinou o caos. O camundongo correu para baixo do balcão.
A recepcionista gritou e correu para fora da secretaria. Enquanto as meninas continuavam gritando, Cash entrou na secretaria, olhando para o chão como se procurasse o roedor.
Uma vez no corredor, ele correu para a porta da srta. Anderson e pegou, no bolso, seu clipe de papel. Mas encontrou a porta aberta. Ótimo. Entrou no escritório, fechou a porta e foi direto para a mesa onde tinha visto o arquivo de Chloe Holden.
Com os ouvidos atentos para ouvir qualquer movimento do lado de fora, ele abriu a pasta. Não a leu. Faria isso mais tarde.
Tirou a primeira foto, virou o papel e tirou a segunda. Mais uma página virada e fechou o arquivo, devolveu-o ao topo da pilha e virou-se para sair. Abriu a porta para ouvir se vinha alguém.
Vozes soaram. Ele reconheceu a voz da srta. Anderson.
Então ouviu o salto alto das mulheres batendo no assoalho do corredor.
Merda. Ele tinha sido pego.
4
Cash! — ela exclamou, parando de repente ao entrar na sala.
— Olá. — Ele se sentou na cadeira em frente à mesa dela e se forçou a relaxar. Pareça inocente. Às vezes o único jeito é fingir até parecer que é verdade.
— O que... você está fazendo aqui? — a srta. Anderson perguntou.
Ele se virou e olhou para ela.
— Tenho horário marcado.
Ele manteve a expressão sob controle, mesmo quando o pânico deixava as palmas de suas mãos suadas. Sinceramente, se aquilo poupasse os Fuller da decepção, não se importava de ser pego.
Ela olhou para o relógio na parede.
— Isso é daqui vinte minutos.
— Não foi o que me disseram na secretaria hoje de manhã.
Ele fez uma cara de quem demonstrava confusão. Eles podem não acreditar no que você diz, mas vão quase sempre acreditar no que veem.
— Sinto muito. — Ele se levantou. — Volto depois. Eu só... quando entrei, eu estava alguns minutos atrasado e não havia ninguém no balcão da frente... Não queria deixá-la esperando. Então vim para cá. Achei que a senhora pudesse estar no... banheiro ou algo assim. — Ele baixou os olhos como se estivesse envergonhado.
— Não. Eu fui... à sala dos professores. — Os ombros dela relaxaram. Ela estava acreditando. Seus batimentos cardíacos se normalizaram. Cash não queria ter que ouvir a sra. Fuller suspirar hoje.
Ele deu um passo em direção à porta.
— Ok, vou embora e...
— Não. Tudo bem. Eles devem ter informado o horário errado. Esse é o meu horário de almoço.
— Bem... — Ele não via a hora de ler o arquivo. — Não quero atrapalhar o seu almoço...
— Não, fique. Já almocei.
Cash se sentou novamente. A srta. Anderson se acomodou atrás da escrivaninha. Quando notou o jeito como ela estava olhando para ele, o pânico aumentou novamente. Não estava olhando como se ela soubesse que ele estava mentindo. Ou como se tivesse uma ideia do que Cash estava fazendo. Mas como se quisesse corrigi-lo.
Quantas vezes ele já havia se sentado diante de um conselheiro ou psicólogo e eles tinham tentado entrar em sua cabeça? Como se pensassem que, convencendo-o a se abrir, poderiam torná-lo uma pessoa melhor. Eles não podiam.
Ninguém poderia mudar seu passado. Ninguém poderia mudar o que já tinha acontecido. Ou as coisas terríveis que ele já tinha feito. Falar sobre isso só piorava.
— Você sabe por que eu queria falar com você?
— Imagino que seja por causa da briga — Cash disse.
— Bem, sim, mas eu também queria só... ver se você está bem. — Ela se concentrou no rosto machucado dele. — E conversar.
Bem, já ia começar o sermão. Ele respirou fundo.
— Srta. Anderson, não quero parecer desrespeitoso. E se quiser falar comigo, me dar uma punição pela briga, vou ficar sentado aqui e ouvir. Mas, na verdade, não quero falar sobre outras coisas.
Ela olhou para baixo como se quisesse organizar os pensamentos.
— Ok — a srta. Anderson disse, mas levou alguns segundos para falar outra vez. — Me contaram o que realmente aconteceu naquela briga. Eu sinto muito.
— Eu também — disse ele.
— Praticar bullying é proibido e ponto final. O que Paul fez é inaceitável. Me disseram que você tentou ir embora.
Ele deu de ombros como se não fosse importante, mas se sentiu compreendido. Não se sentia assim com muita frequência.
— Mas não acho que você saiba quanto é forte. Tenho certeza de que não pretendia bater nele com tanta força.
Sim, eu pretendia. O cretino tinha dado um soco em seu olho. Cash queria machucar aquele filho da puta. Mas não disse isso.
A srta. Anderson se remexeu na cadeira.
— Graças a Deus, o nariz de Paul não estava quebrado.
Ele teve que se esforçar para esconder a decepção.
— A questão é que eu sei como são os adolescentes. E eu sei que ele bateu primeiro. Mas precisamos garantir que isso não aconteça novamente.
— Eu não vou dar mais na cara dele — disse Cash.
— Mas e se ele der na sua?
Cash não respondeu. Não podia. Dizer que ele não se defenderia seria mentir. E as pessoas podiam não acreditar, mas ele não gostava de mentir.
— Veja. Em dois meses, você fará 18 anos e Paul ainda vai ter 17. Se acontecer outra briga, isso pode acarretar graves consequências para você.
Com o ar preso nos pulmões, Cash perguntou:
— Então você quer que eu saia da escola? — Isso era exatamente o que os Fuller não queriam. O objetivo deles era que Cash se formasse no ensino médio.
Os olhos dela se arregalaram.
— Não! Só quero que você esteja ciente disso, para que assim possa evitar qualquer complicação com a Justiça.
Ele assentiu.
— Vou me lembrar disso. Posso ir agora?
Se a expressão dela indicava alguma coisa, a srta. Anderson tinha percebido a emoção no tom de voz dele.
— Só mais uma coisa.
Cash se preparou para ouvir.
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha 11 anos, por causa de um motorista embriagado. Meus pais é que estavam bêbados. Minha avó não achou que pudesse me criar. Cresci num lar temporário.
Isso não era o que ele esperava ouvir.
— Eu sinto muito.
Cash estava sendo sincero, mas ainda não queria se abrir com ela. Também não queria saber a história dela. Não queria chegar perto de se preocupar com mais ninguém. Preocupar-se com os Fuller já era ruim o suficiente.
— Eu também — disse a srta. Anderson. — O que estou tentando dizer é que sei o que é crescer no meio do caos. Se você quiser conversar, sabe onde me encontrar.
Sim, farei isso quando o diabo começar a servir bolo de sorvete no inferno.
— Vou me lembrar disso. — Ele se levantou e saiu da sala.
Entro no refeitório. Os cheiros, a multidão de estranhos e o burburinho me fazem querer sumir dali.
Olho em volta e todo mundo está batendo papo. Eles não percebem todo o barulho, porque fazem parte dele. Eles não veem estranhos; veem amigos.
Cinco minutos depois, estou me sentindo sozinha e deslocada enquanto como uma pizza que parece feita de papelão.
É nesse momento que alguém se senta ao meu lado. Lindsey. Ela está de braços cruzados. Parece aborrecida. Comigo.
No mesmo instante, eu sei por quê. Ela ouviu falar da visitinha de David ao meu armário.
— Não gostei dele — já fui dizendo.
— Tem certeza?
— Tenho. Gosto de garotos de cabelos pretos e que fazem o tipo mais caladão. — Se eu pudesse excluir a última parte, faria isso, porque minha descrição pareceu demais com a do cara de olho inchado que anda me causando arrepios ultimamente.
Ela olha para mim.
— Mas não importa. David gostou de você.
— Não. Ele nem me conhece. Sou apenas a aluna nova e isso, para os caras, significa apenas “carne fresca”. Ou, como minha mãe costuma dizer, sou a “vaca nova no pasto”. Os touros veem uma vaca nova no pasto e logo vão atrás dela. Começam a bufar, remexer a terra e babar.
Lindsey se acomoda na cadeira, parecendo mais conformada.
— Eu não quero um touro que fica atrás das vacas novas. Já fiz isso antes.
Eu não pretendia desmotivá-la.
— Você não pode julgar David. Ele não é o seu touro ainda. Depois que você pegá-lo pelos chifres, marcar seu nome no traseiro dele e ver que ele começa a atender quando você o chama, aí sim você vai poder levá-lo para o matadouro caso ele persiga uma vaca nova. Pode vendê-lo como comida de cachorro e fazer picadinho com os testículos dele.
Lindsey solta uma risada.
— Picadinho com os testículos dele já é demais.
— Ei, esse é o sonho da minha mãe. Ver os cojones do meu pai flutuando no formol e meu cachorro dando uma mordida no traseiro dele.
Nós duas rimos, mas logo o sorriso de Lindsey se dissipa.
— Então por que fazemos isso? Por que nos apaixonamos se todos os caras são touros babões perseguindo as vacas novas?
— Porque talvez exista um ou dois que não sejam assim — digo, sentindo a mágoa de ser filha de um homem com uma queda por vacas novas aumentar no meu peito, mas Lindsey e eu só compartilhamos um sorriso triste.
E nesse instante algo me ocorre. Numa questão de minutos, deixei de ser uma alienígena num mundo estranho para fazer parte dele. Estou criando raízes.
Minha amizade com Lindsey está passando do estágio em que estamos nos conhecendo e indo para a parte onde nos tornamos aliadas, rindo de coisas que não são realmente engraçadas para ajudar uma à outra.
Parece bom, mas há uma parte de mim que quer tirar os pés da terra e cortar as raízes, porque sei que vou sofrer quando tiver que deixar esta vida e ir para a faculdade. Vai doer assim como doeu quando fui arrancada de El Paso.
Paro de rir e Lindsey segue o exemplo. Solto um suspiro. Lindsey olha para mim.
— A sua mãe realmente disse que quer fazer picadinho com os testículos do seu pai? — Ela não está mais dizendo isso como se fosse engraçado. Ela está dizendo como se soubesse que isso me machuca.
Eu faço que sim com a cabeça.
— A sua mãe não costuma brigar com seu pai?
Ela pensa um pouco.
— Às vezes, mas... Eles se divorciaram há quinze anos. Provavelmente brigavam muito, mas eu não me lembro.
Sei que ela está dizendo isso apenas para que eu me sinta melhor.
— Merda... — diz Lindsey.
— O que foi? — pergunto.
— É Jonathon. De camiseta preta. Paquerando a garota ali.
Lembro-me de tê-lo visto algumas vezes naquele verão.
Ele tem cabelos castanhos e é bonito, mas na verdade... nem tanto.
— David é mais gato.
Cash conseguiu permissão para visitar a biblioteca durante o horário de estudos. Os celulares eram proibidos ali, mas, no ano anterior, a bibliotecária não dava muita atenção a isso. Se o aluno fizesse silêncio e não tumultuasse o ambiente, ela o deixava em paz. Conhecer as regras antes de quebrá-las era outra lição que Cash aprendera com o pai.
Ele pegou as fotos do arquivo em seu celular e aumentou o zoom para que pudesse ler sobre Chloe Holden.
A primeira informação que coletou foi o aniversário dela: 18 de novembro. Emily tinha nascido em 6 de novembro. Mas, se a pessoa é sequestrada, é claro que vão mudar a data de nascimento dela. Segunda informação: ela era inteligente. Suas notas eram bem mais altas do que as dele. Mas, se ela estivesse aplicando um golpe, teria mesmo que ser alguém bem esperto.
Então ele descobriu que os pais dela tinham se divorciado recentemente. E se eles fossem de fato os pais dela?
Ele leu uma anotação da srta. Anderson. Mãe, JoAnne Holden, tem câncer. Bem, isso é o que diziam. Cash “também tinha câncer”. O pai dele raspava a cabeça e as sobrancelhas do filho e postava fotos dele numa página do GoFundMe, em que as pessoas levantavam fundos para realizar seus sonhos ou pagar seus tratamentos de saúde, entre outras coisas.
No que dizia respeito a seu pai, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para ganhar uma grana ilícita. Cash tinha até obrigado Cash a seguir uma dieta rigorosa no mês anterior ao golpe, para parecer doente.
Cash leu algumas anotações da escola antiga de Chloe. Ela jogava futebol.
Essa era a isca de que ele precisava. Cash abriu o Google para encontrar o nome do time de futebol da antiga escola dela. Encontrou e foi pesquisar as imagens.
Só precisou de cinco minutos para clicar nos links e encontrá-la. Ele ficou ali, contemplando as fotos. Das três garotas na imagem, Chloe — se é que esse era o nome verdadeiro dela — era a que mais se destacava. Ela era a mais alta, a mais curvilínea e a mais gata.
Não que ele já não tivesse notado. Droga, ainda se lembrava de como era a sensação do corpo dela contra o dele. Mas Cash podia apreciar uma imagem com mais atenção do que pessoalmente. Ou de um jeito que ele não ousaria fazer ao vivo.
Muitas vezes, Chloe o pegara olhando para ela. Nem todas as vezes ele estava olhando com cara de quem olha uma garota. Às vezes, Cash a comparava com a sra. Fuller. E, caramba, ele via ainda mais semelhanças observando aquelas fotos!
Clicando na imagem, ele procurou pela conta de Chloe no Instagram.
Encontrou uma, mas ela não postava nada fazia três meses.
Se aquilo era um golpe, ela teria mantido as postagens, não teria? Ou talvez não.
As imagens e postagens que ele podia ver pareciam reais. Ele verificou as fotos. Havia várias dela com um cara, Alex. Eles se abraçando. Se beijando. Parecendo felizes. Numa delas, Chloe estava sentada no colo dele.
Cara sortudo...
Ele se lembrou do que ela tinha falado a David Drake sobre o namorado: estamos praticamente noivos. A mentira transpareceu na voz dela e na linguagem corporal.
Ele viu que Alex tinha deixado comentários numa das fotos: “Você está linda, mozão”. Ele clicou no link do perfil dele, esperando que as fotos não fossem privadas. Não eram. E... Ha, ha! Ali estava. A verdade. Uma foto do cara com outra garota. Postada na semana anterior. Ele voltou a olhar as fotos antigas e encontrou uma com Chloe no treino de futebol. Então, parecia que ela realmente era de El Paso. Isso não descartava um golpe. Ele tinha só arranhado a superfície.
5
O sinal tocou, na segunda-feira. Agora já completei uma semana na nova escola. Eu ainda não gosto dela, mas odeio menos. Ou talvez esteja apenas me acostumando. Me acostumando a ser a aluna nova. Me acostumando a ver Cash Colton me encarando como se eu tivesse comido o último biscoito do pacote.
Me acostumando a não ter pai. Porque ele nem me telefonou.
Estou quase na porta da escola quando percebo que esqueci meu livro de História no armário. Volto para pegá-lo e encontro Lindsey.
— O que houve? — pergunto.
Lindsey morde o lábio inferior.
— Eu vou... Vou para casa com Jamie. Ela quer conversar sobre o ex-namorado.
Eu sabia que o plano de Lindsey para que nos tornássemos as três mosqueteiras estava condenado quando os planos que tínhamos para o fim de semana caíram por terra. É por isso que começar a estudar numa escola nova na última série do ensino médio é uma droga. Você não pode simplesmente se tornar amiga de alguém. Você precisa ser aprovada pelas amigas dessa pessoa.
— Vejo você mais tarde. — Eu até sorrio.
— Sim. — Ela se vira, depois volta a olhar para mim. — Foi mal. Eu cheguei a perguntar se você podia ir...
— Tudo bem. Vocês duas têm aula de História e ficaram todo o verão sem se ver. Entendo. De verdade.
Ela se afasta, ainda parecendo culpada. Me sinto mal por fazê-la se sentir assim.
Quando pego meu livro e saio novamente, o estacionamento está vazio. A maioria dos carros já faz fila na saída para deixar o pátio. Buzinas soam. As risadas vazam pelas janelas e fazem com que eu me sinta ainda mais sozinha.
Pego as chaves do carro na mochila e clico o botão de abrir as portas. Quando me sento atrás do volante, percebo que meu carro está diferente. Algo parece estranho, fora de prumo. A mesma sensação que eu tenho dentro de mim.
Eu saio do carro e meu olhar vai direto para o pneu traseiro. Está murcho.
— Merda!
Pego o celular para ligar para o meu pai. Então paro. Meu pai não está mais disponível para me ajudar com essas coisas. E — pronto! — eu me lembro de que, logo depois que tirei minha carteira de motorista e antes do caso do meu pai, ele me ensinou a trocar pneu. Ele fez de conta que era um jogo e cronometramos para ver quem conseguia trocar mais rápido. Eu venci e ganhei dez dólares. Na verdade, venci três vezes. Acabei ganhando trinta dólares.
Agora aquela lembrança já não parece mais tão boa, porque eu me pergunto se meu pai já sabia que estava indo embora de casa. Sabia que eu não poderia mais contar com ele.
Evitando sentir pena de mim mesma, concentro-me no lado positivo: pelo menos eu sei trocar meu próprio pneu. Largando a mochila no banco, abro o porta-malas.
— Precisa de uma mãozinha?
Eu prendo a respiração. Cash está encostado num jipe estacionado ao meu lado, como se já estivesse há algum tempo parado lá. Como eu não o vi?
— Posso ajudar. — Nenhuma acusação em seus olhos ou no seu tom de voz agora. Pelo menos acho que não. Nunca tive tanta dificuldade para interpretar uma pessoa... — ou será que nunca encontrei alguém tão bom em camuflar emoções?
— Não. Posso fazer isso sozinha. Obrigada. — Esse cara me deixa nervosa, por várias razões.
— Eu tenho uma coisa para consertar pneus instantaneamente. Só vai demorar um segundo.
— Que coisa? — pergunto.
— Chama Fix-a-Flat. Infla o pneu e sela qualquer vazamento. Você vai poder dirigir até um borracheiro.
— Não esquenta. Tenho um estepe.
Ele se aproxima. Borboletas voam no meu estômago.
— Você sabe trocar pneu? — Ele enfia a mão direita no bolso do jeans.
Eu levanto o queixo.
— Você não acha que as garotas conseguem trocar um pneu?
Ele parece pensar na minha pergunta.
— Acho que a maioria das garotas não quer trocar pneus.
— Bem, esta garota aqui não se importa.
Inclino-me no meu porta-malas e afrouxo a porca para pegar o estepe.
Não o ouço se mexer. Será que ele está pensando em me observar? Irritante. Mas tudo bem. Talvez eu tenha coragem de fazer a ele algumas perguntinhas.
— Você é nova aqui? — Cash diz.
— Sim. — Pego o pneu e o deixo cair no chão. Então tiro o macaco do carro.
— De onde você é? — ele pergunta.
Coloco o macaco no chão e pego a chave de roda. Só então olho para ele e reúno coragem.
— O que você quis dizer no posto de gasolina, sobre eu querer fazer alguma coisa?
Ele não parece chocado com a pergunta.
— Você tinha razão. Você parece alguém que eu conhecia.
— Mas, obviamente, você descobriu que não sou essa pessoa, então por que ainda continuou me encarando?
Os olhos verdes dele se estreitam e seus lábios se abrem num sorriso incrível.
— Por que os caras geralmente encaram as garotas?
— Porque são uns pervertidos? — pergunto, me lembrando do bate- papo com Lindsay sobre touros e vacas.
Ele ri.
Eu sou pega de surpresa pelo som da risada dele e, por incrível que pareça, ele parece surpreso também. Como se não costumasse rir muito.
Ficamos em silêncio e olhamos um para o outro.
— Com quem? — pergunto.
— O quê?
— Com quem eu me pareço? — Eu me ajoelho para colocar o macaco no lugar.
— Ela já morreu. — Sua voz parece solene.
Eu olho para ele.
— Sinto muito.
— Eu também.
Cash se ajoelha ao meu lado para ver onde eu encaixei o macaco, como se pensasse que fiz tudo errado. A perna dele roça na minha. É um gesto inocente, mas parece íntimo. Seu cheiro, que lembra grama recém-cortada, enche meu nariz e se sobrepõe ao cheiro dos pneus oleosos.
— Então, o que trouxe você aqui? — ele pergunta.
Minha mente está ocupada apreciando o perfume dele, por isso demoro um segundo para responder.
— O que trouxe você aqui? — rebato, tentando não pensar no formigamento na minha perna, provocado pela sua coxa musculosa, coberta pelo jeans.
A sobrancelha esquerda sobre o olho roxo se levanta e ele cerra a mandíbula.
— Você não gosta muito de responder perguntas, não é? — Agora o tom é de acusação.
— Obviamente, você também não. — Encaixo a chave de roda na porca e a viro. Não vai ceder. Merda.
— Quer ajuda? — Ele se aproxima.
— Eu consigo. — Reajusto a chave e jogo todo o meu peso sobre ela, lembrando do que meu pai me ensinou. Meu peso não é suficiente. Droga. Quem quer que tenha colocado esse pneu usou toda a sua força.
— E agora? — Cash se aproxima ainda mais.
— Quê? — A minha frustração é evidente mesmo respondendo com uma única palavra.
— Quer ajuda agora? — Ele está sorrindo novamente. — Prometo não subestimar você por causa disso.
— Não tem graça — eu digo.
— Foi mal. — Os lábios dele não estão mais sorrindo, mas seus olhos estão.
Eu cedo e dou mais espaço a ele.
— Esses pneus são novinhos em folha. Não deveriam ter murchado.
Cash pega a chave de roda e, com uma volta do pulso, o músculo do bíceps se contrai sob a manga da camiseta cinza e a porca se solta.
Ele olha para mim. Mesmo com o olho roxo, seu sorriso dispara um alarme na minha cabeça. Um daqueles sorrisos tortos que saem da boca, vão direto para o meu estômago e acordam mais borboletas. O tipo de sorriso que Alex costumava me dar.
— Você já tinha afrouxado pra mim. — Ele passa para a segunda porca. Volto a assistir seus músculos se contraírem novamente. As borboletas voam como loucas.
Depois de vários segundos de silêncio, Cash me olha.
— Não consegui me entrosar muito na minha última escola.
— Ah... — Porque ele se abriu, eu faço o mesmo. — Meus pais se divorciaram.
— E Joyful pareceu o lugar ideal para morarem? — Ele continua trocando o pneu.
— Não. Minha avó morava aqui. Ela faleceu, minha mãe herdou a casa.
— Então você já morou aqui? — A pergunta parece importante para Cash, mas estou muito ocupada observando os músculos dele para pensar nisso.
— Não. — Então percebo que é mentira. Morei aqui por algumas semanas depois de ser adotada. — Quer dizer, sim, mas não me lembro.
— Como não se lembra?
— É que eu não tinha nem 3 anos de idade quando nos mudamos.
Ele para de trocar o pneu e me lança um longo olhar.
— Ok.
— Ok o quê? — Meu tom é curto e grosso.
— Ok, acredito em você.
— Mas por que acha que eu mentiria? O que há com...?
— Todo mundo conta uma mentira de vez em quando.
— Eu não!
Ele levanta a sobrancelha do olho roxo novamente.
— Você mentiu para David sobre ainda estar com Alex.
— Você estava escutando a nossa conversa?
— Confesso que sim. — O olhar dele colide com o meu.
Pressiono as mãos no asfalto.
— Como sabe que o nome do meu namorado é Alex? Não contei a David.
Ele continua removendo as porcas. A calma que demonstra me assusta. Ninguém solta uma bomba assim e volta a trocar um pneu!
— Responda! — Eu bato na perna dele com o pé.
Ele continua trabalhando.
— Dei uma olhada no seu Instagram. Suas fotos estão visíveis para o público. Você devia ter mais cuidado com isso. — Cash olha para mim, a expressão dele é insondável.
Eu franzo a testa.
— Mas como sabe que terminamos?
— Porque há uma foto no Instagram dele com outra garota. E eu não acho que você seja do tipo que aceita esse tipo de coisa.
Não sei bem como reagir a isso. Tudo está confuso na minha cabeça.
— O que você é? Algum tipo de investigador de crimes digitais? Ou um stalker?
Ele volta a se concentrar no meu pneu.
— Estou mais para investigador...
— Por que está investigando a minha vida?
— Achei que já tínhamos esclarecido isso antes.
— Porque pareço alguém que você conhece?
Cash confirma com a cabeça.
— Mas se a pessoa com quem pareço já morreu, por que você precisaria...?
— Ela tem uma irmã.
O tom com que ele fala é de alguma forma diferente. Será que está mentindo agora? Os olhos dele encontram os meus.
— Achei que ela poderia tentar prejudicar alguém que é importante para mim.
Há tanta honestidade naquelas palavras, em seu olhar, que acredito nele. Ou acho que acredito.
— Por que acredito em você às vezes e outras vezes, não?
Ele começa a desparafusar a última porca.
— Sei lá. Talvez porque tenha dificuldade para confiar nas pessoas. — Cash tira o pneu e coloca na calçada.
O tom é provocador, no entanto... Ele coloca o estepe no lugar e aperta as porcas. Abaixa o macaco e depois o retira de onde está encaixado.
Ele tem razão. Tenho dificuldade para confiar nas pessoas. É o que acontece quando a sua família entrega você para adoção e depois o pai que a adotou abandona sua mãe e decide morar com uma piranha mais nova.
— Você é difícil de entender — eu digo.
— Você também. — Cash estende a mão para me ajudar a levantar.
Eu quase a pego, mas depois me arrependo.
— Nós poderíamos resolver isso já — diz ele. — Há um lugar mais para cima, nesta rua, que serve café, chai ou qualquer outra coisa de que você goste.
Levanto-me, sem a ajuda dele, e limpo o pó das minhas mãos, passando-as no meu traseiro.
— O que acha? — ele pergunta.
Olho para Cash, minha cabeça girando.
— Não sei ainda...
6
O truque do pneu funcionou à perfeição, mas teria sido mais fácil se ela tivesse me deixado usar o Fix-a-Flat.
Ele saiu do estacionamento em seu carro e a viu fazer o mesmo. O celular dela tocou. Levantando um dedo para pedir que ele esperasse, ela atendeu.
— Não sei. Mas coloquei o estepe. Sim, apenas alguns minutos — Chloe disse. — Tudo bem. — Ela desligou e guardou o celular na mochila. — Minha mãe.
Ele quase perguntou como estava a mãe dela, mas parou a tempo.
— Você mora perto da escola? — Cash perguntou, embora tivesse conseguido o endereço dela no arquivo.
— A uns dois quilômetros. Em Oak Tree Park. E você?
— Um pouco mais longe — disse ele. — Em Stallion.
— Aquele condomínio com a estátua do cavalo e um lago na entrada? — ela perguntou.
Cash assentiu e se perguntou se ela o discriminaria por morar num bairro de classe alta. Alguns colegas de escola tinham jogado isso na cara dele no ano anterior.
Depois de entrarem na cafeteria, Chloe consultou o cardápio diante do balcão e pediu um chá de pêssego. Ele pediu uma Coca-Cola. Quando tentou pagar pelo pedido dela, ela recusou e entregou um cartão de crédito ao rapaz do caixa. Bebidas na mão, ele a conduziu até uma mesa nos fundos.
— É um lugar agradável — disse ela.
— Sim. Eu costumava lavar louça aqui aos 15, para ganhar uns trocados.
— E agora?
— Trabalho meio período numa oficina. Troco pneus e coisas assim.
— Ele sorriu. — Então, você gosta de Joyful?
— É legal. — Aquilo soou como uma mentira.
— De onde você veio?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Você não encontrou essa informação quando estava me investigando?
Ele se recostou na cadeira.
— Ok. El Paso. Você sente falta de lá?
Ela contou como as duas cidades eram diferentes. Foi uma conversa sobre banalidades, mas Cash prestou atenção em cada palavra. Depois, Chloe tomou um gole do chá e olhou para ele por cima do copo de papel.
— Agora é a minha vez.
— Sua vez?
— Você desenterrou informações sobre mim pelas minhas costas. Eu vou fazer da maneira correta e perguntar.
— Então você gosta de fazer tudo da maneira certa, hein? — ele disse, tentando parecer casual e mudar de assunto.
Ela não respondeu. E ele teve a sensação de que Chloe ainda estava refletindo sobre a coisa toda do Instagram.
Cash odiava perguntas, mas conhecia bem esse jogo, e se não dissesse alguma coisa, ela não abriria mais a boca.
— Ok. O que você quer saber?
Ela olhou para o chá como se estivesse elaborando uma lista de perguntas mentalmente.
Cash se perguntou o que ela já sabia sobre ele. Muitas questões da vida particular dele já eram do conhecimento de todos.
Cash se lembrou de Paul chamando-o de garoto adotado, como se fosse alguma coisa de que devesse se envergonhar. Mal sabia Paul que ele tinha muito mais vergonha da vida que levava antes de entrar para o programa de adoção do governo.
— Por que você não se entrosou na antiga escola?
Ele encolheu os ombros.
— Os alunos eram filhinhos de papai. Achavam que não podiam ser responsabilizados pelas suas ações. E a direção da escola parecia pensar o mesmo.
Ela correu um dedo pelo copo.
— Então, o que o fez sair? — Ela olhou bem nos olhos dele, como se procurasse a verdade.
Sim. Ele conhecia muito bem esse jogo. Diga algo pessoal. Vão achar que te conhecem e responder às perguntas sem criar caso. Normalmente, era a essa altura que ele inventava alguma coisa. Mas, por algum motivo, não sentia vontade de fingir.
Os ombros dele ficaram rígidos.
— Não saí da escola. Fui expulso.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você fez?
Ele já devia estar preparado para essa reação, mas isso ainda lhe dava nos nervos.
— Por que você já concluiu que eu fiz alguma coisa errada?
Ela franziu a testa.
— Porque você disse que foi expulso. Ninguém é expulso por nada.
— Certo. Mas você supôs que a culpa foi minha.
Ela olhou para Cash. Seus instintos lhe diziam que ele estava revelando muito mais do que pretendia.
— Não estou supondo nada. Estou perguntando.
Ele hesitou, contrariado por não estar mentindo, mas sem poder voltar atrás agora.
— Você quer a verdade? Ou quer que eu ofereça uma versão mais bonita?
— A verdade. — No entanto, a maneira como ela se afastou na cadeira revelou que preferia a versão mais bonita.
Cash deu a ela o meio-termo:
— Três jogadores de futebol da minha antiga escola estavam tirando vantagem de uma garota. Eu dei um fim à brincadeira deles. Quando terminei, um cara estava com o maxilar quebrado.
Chloe perdeu o fôlego.
— Era sua namorada?
— Não. A garota não dava a mínima para mim. O que deveria significar que eu não dava a mínima para ela. Mas... não era esse o caso. E os caras mentiram e disseram que eu apareci do nada, querendo briga.
— Mas e a garota? Com certeza, ela...
— Negou tudo à polícia.
— Mas como pôde...? Por quê?
— Ficou com vergonha. E, além disso, queria ser líder de torcida e achou que, se dissesse alguma coisa contra eles, poderia não conseguir fazer parte da equipe. Ela só lamentou que eu tivesse arranjado problemas por querer ajudá-la. Ele suspirou. — Mas sei que isso vive acontecendo. As vítimas normalmente preferem não dizer nada.
— Sim, mas... — Chloe colocou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
Ela parecia zangada. Isso deveria ser bom, mas não era. Ele se sentia exposto.
— Ainda assim, isso causou um belo estrago. — Os lábios de Chloe se contraíram.
— Sim, é verdade. — Cash se sentiu um pouco melhor.
Ambos se recostaram na cadeira em silêncio, como se precisassem de um tempo para pensar. Ele sabia que precisava.
Quando ela olhou para Cash, ele falou primeiro.
— Agora é a minha vez?
Ela piscou.
— Acho que sim.
Você está tentando enganar os Fuller?
Ele não podia perguntar isso.
— Por que você estava tão chateada na loja de conveniência?
Ela pareceu surpresa, mas depois suspirou.
— Você quer a verdade? Ou quer a versão mais bonita?
Ele sorriu, gostando de saber que ela realmente tinha ouvido.
— A verdade.
— Eu estava chateada com o meu pai.
— Por quê?
— Você está com tempo? — Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Tenho o dia todo — ele respondeu, e era verdade. Cash precisava descobrir quem ela era. Mas uma voz dentro dele dizia que não era só isso.
Ele gostava de ouvi-la falar, de contemplar suas expressões e o jeito como mexia as mãos.
Gostava de ouvir a voz de Chloe, embora ele preferisse não ver o brilho de tristeza nos olhos castanhos.
— Até um ano atrás, ele era tipo... o melhor pai do mundo. O pai que me levava com as minhas amigas aos bailes da escola. Quando ele ia nos buscar, nos levava para comer hambúrgueres às duas da manhã. Mas depois... — Ela fez uma pausa. — Depois ele traiu minha mãe com uma mulher apenas sete anos mais velha do que eu. Agora ela está morando com ele. Meu pai está fazendo papel de palhaço, tentando agir como se fosse mais jovem, tingindo o cabelo, usando gel... Ah, e deixou que ela transformasse meu quarto numa academia. Ela colocou lá um aparelho para endurecer os glúteos e outros aparelhos estranhos onde costumava ficar a minha cama.
A voz dela tornou-se mais aguda.
— Ela usa microssaias! E um decote até aqui. — Ela colocou a mão na metade dos seios. O olhar dele foi atraído para lá, mas ele não deixou que se demorasse ali por muito tempo, mesmo querendo muito. — Ah, e ele me disse que me ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Porque está muito ocupado descabelando o palhaço com a srta. Bunda Durinha.
Cash riu, mas quando viu a expressão de dor no rosto dela, reprimiu o sorriso.
— Lamento. Isso é uma droga.
— Sim. Uma droga. — Ela afastou a bebida e suspirou. Suspirou como a sra. Fuller, quando ficava decepcionada.
Um som profundo e triste que ele não gostava de ouvir. Um som que o fazia querer acreditar nela.
Chloe ergueu os olhos e Cash viu que ela reprimia as lágrimas.
— Desculpe eu ter descarregado tudo em você. Não foi legal.
— Ei, eu que perguntei...
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se abruptamente. Num instante já estava cruzando a porta num flash.
Ainda imaginando o que havia acontecido, ele a observou pela janela enquanto o carro partia. Quando olhou para baixo, viu que o cartão de crédito dela ainda estava em cima da mesa.
Uma hora depois, ele já tinha terminado sua lição de casa na cafeteria e decidido enrolar um pouco antes de ir à casa de Chloe, para lhe devolver o cartão.
Digitou no celular o número da residência dos Fuller e ficou surpreso quando o pai adotivo atendeu.
— Ei, eu já ia ligar para você. Está tudo bem?
— Sim — respondeu Cash. — Parei na casa de um amigo para fazer o dever de casa. Tudo bem se eu chegar por volta das seis?
— Claro. Somos apenas você e eu hoje à noite. Susan teve uma emergência no hospital. Pensei em sairmos e comprarmos algo para ela comer. Talvez pegar um sorvete também.
— Aquele tipo de emergência? — O peito de Cash se apertou.
Susan Fuller era oncologista e não tinha que atender muitas emergências. As crises dela significavam que tinha perdido um paciente ou estava prestes a perder. Ela sempre tinha dificuldade para lidar com isso.
— Receio que sim — ele respondeu.
Cash não era tão próximo do sr. Fuller quanto era da mãe adotiva, mas não podia negar que o homem amava a esposa. Só por isso, Cash o respeitava.
Parte da distância entre eles era por culpa do próprio Cash. Depois de onze anos com seu pai e alguns lares temporários não tão bons, ele resistia à figura paterna. O sr. Fuller se esforçava, no entanto. No ano anterior, depois que Cash tinha passado a frequentar algumas aulas numa faculdade e começado a namorar garotas mais velhas, o sr. Fuller tivera com ele uma conversa sobre sexo e lhe dera um pacote de preservativos.
— Você prefere churrasco ou pizza? — perguntou o sr. Fuller.
— Acho que ela gosta mais de churrasco.
— Concordo. Não chegue muito depois das seis. Quero voltar antes que ela chegue em casa.
— Não posso encontrar você no restaurante?
Quando Cash desligou, pensou em como toda aquela história em torno de Chloe afetaria a mãe adotiva. Se ele procurasse os pais agora para contar tudo e depois descobrisse que Chloe não era Emily Fuller, aquilo poderia trazer de volta toda a dor de perdê-la pela primeira vez, como na época em que aquele vigarista os tinha enganado no ano anterior. Cash não podia dizer nada antes de ter certeza.
Minha mãe e eu estamos esperando consertarem o meu pneu. Na televisão da sala de espera da loja está passando um programa político. Estamos folheando revistas. Lembro-me de quando minha mãe costumava comprá-las para encontrar personagens para seus livros. É triste saber que ela parou de escrever.
Olho para o lado e ela está lendo uma revista, a cabeça coberta com a bandana desbotada. Normalmente, ela usa uma peruca quando saímos.
Hoje não. Mal posso esperar para ver o cabelo dela voltar a crescer. Para vê-la ganhar peso. Estou cansada de vê-la com a aparência de um zumbi.
— Você almoçou hoje? — pergunto ao virar a página da revista.
Ela ergue os olhos.
— Sim.
— O que você comeu?
— Um sanduíche, acho.
— Com batatas fritas?
— Não.
— Você deveria ter comido batatas fritas.
Ela sorri.
— Você é nutricionista?
— Não. Sou sua filha que acha que você está muito magra. Sério, você precisa comer mais. Podemos sair para jantar. Comer algo cheio de calorias.
— Pizza? — Ela sorri.
— Com recheio extra.
— Combinado.
— E você toma uma cerveja.
Ela ri.
— Não posso beber por causa dos remédios.
— Que remédios?
— O comprimido que tenho de tomar por três anos para evitar que o câncer volte.
Sento-me ereta, com uma dor se instalando no meu peito.
— Os médicos acham que pode voltar?
— Não. — Ela bate o ombro no meu. — O remédio é para garantir que não volte.
Eu olho para ela, de repente cheia de preocupação.
— Holden? — Um homem vestindo macacão entra na sala, vindo da oficina.
— Sou eu. — Minha mãe fica em pé.
— Boas notícias. Não há nada de errado com o seu pneu.
— Mas estava murcho! — eu digo.
— Bem, às vezes o pneu pode ficar mais baixo devido à mudança de temperatura, mas, como isso não aconteceu, eu diria que alguém o murchou de propósito.
— Por que alguém faria isso? — Minha mãe me pergunta.
— Sei lá. — Então me lembro de Cash parado ao lado do meu carro. Ele não faria isso, faria?
— Poderia ser pior — diz o mecânico. — Poderiam ter cortado os pneus.
Às quatro e meia, Chloe ainda não estava em casa. Nem mesmo às cinco. Por fim, às cinco e meia, Cash viu o carro dela e estacionou em frente à casa.
Ele pegou o cartão de crédito e o colocou no bolso da frente do jeans. Subindo na varanda, viu uma grande janela com as cortinas abertas. Espiou lá dentro. Uma mulher estava sentada à mesa de jantar. Ela estava usando uma bandana, mas por baixo ele viu que não havia nem um fio de cabelo. As maçãs do rosto estavam salientes. Os olhos, fundos.
A visão o levou à época em que o pai raspava a cabeça e as sobrancelhas de Cash para tirar foto. Ele perdeu vários quilos, após passar fome por quase um mês; depois o pai passou sombra preta sob seus olhos para fazê-lo parecer ainda mais doente. Funcionou. O pai se orgulhava do dinheiro que as pessoas tinham doado para salvar o menino com câncer.
Mas essa mulher não estava usando maquiagem. O peito dele doía por Chloe. Será que a mãe dela ia morrer? Ele sofria até pela mãe adotiva. A mãe de Chloe era o tipo de paciente que a sra. Fuller tratava. O tipo que morria nas mãos dela, não importava quanto se esforçava para tentar salvar.
Suspirando, resignado, ele tocou a campainha. Os olhos da mulher encontraram os dele através da janela.
Quando ela se levantou, pareceu ainda mais magra.
A porta da frente se abriu e ele se apresentou.
— Oi. Meu nome é Cash. Estudo na escola de Chloe. Ela está em casa?
A mulher sorriu.
— Entre. Sou JoAnne Holden, mãe de Chloe. Ela está no quarto. — Então chamou: — Chloe?
Ele entrou. Um gato tigrado amarelo, igual a Félix, pulou de uma cadeira.
— Você gostaria de beber alguma coisa?
— Não, obrigado. — As mãos dele estavam suadas. Será que ele estava nervoso só porque estava conhecendo a mãe de Chloe? Ou seria porque essa mulher poderia ser a sequestradora de Emily Fuller?
Chloe entrou. A postura dela era rígida, os olhos acusadores. Já não tinham passado dessa fase?
— Vamos para o quintal. — Ela passou por ele sem cumprimentá-lo.
Cash agradeceu a mãe dela com a cabeça e seguiu Chloe, passaram pela sala até chegar a um quintal nos fundos.
Ela se virou para trás.
— Feche a porta.
Cash fechou, mas a expressão nos olhos dela dizia que seria melhor se ele encontrasse uma rota de fuga.
— Como você sabia onde eu morava?
A pergunta dela fez Cash suspirar de alívio. Ele sabia o que dizer.
— Você me disse que morava em Oak Tree. Dei uma volta pelo bairro até ver seu carro. Trouxe isso para você.
Ele tirou o cartão de crédito dela do bolso.
— Você esqueceu na cafeteria.
Chloe pegou o cartão, a suspeita ainda em seus olhos.
— Você murchou o meu pneu?
A pergunta saiu enérgica e foi como um soco no estômago. Ele sabia que aquela suspeita poderia surgir e o plano dele era negar. Esse ainda era seu plano, mas agora parecia muito ruim.
— Seu pneu não estava furado? — Aquilo tinha soado convincente? Merda, claro que não. Ele deveria ter cortado o pneu, mas isso teria custado o dinheiro dela.
— Não. — A mão dela pousou no quadril. — Foi você quem o murchou?
— Por que eu faria isso? — Responda a uma pergunta com outra pergunta. Isso confunde as pessoas.
— Não sei. Mas alguém fez isso. E você estava lá.
Ela não se deixava enganar com facilidade.
— E eu o troquei para você. Não gosto tanto assim de trocar pneus. Uau, você realmente tem dificuldade para confiar nas pessoas, hein?
Pela expressão dela, Cash percebeu que tinha dito a coisa errada.
— Sim, eu tenho. E, neste momento, não confio em você.
— Bem. Sugiro que verifique se não usei o seu cartão.
Então saiu pelo portão externo.
O que o deixou mais surpreso foi o fato de se sentir magoado por Chloe não acreditar nele, mesmo que ela estivesse certa em não querer acreditar.
7
Eram onze horas da noite quando o estômago de Cash começou a reclamar de fome. Ele tinha perdido o apetite depois de sair da casa de Chloe e passara a maior parte da noite em seu quarto, depois de encontrar o sr. Fuller para comprar o jantar.
Quando desceu as escadas sem fazer barulho e abriu a geladeira, viu a mãe adotiva sentada na sala de jantar — no escuro. Félix, seu gato, estava estendido sobre a mesa e ela acariciava lentamente o pelo dele. Ela estava de costas para a porta, mas o ouvira entrar.
Ele se aproximou e ficou ao lado dela. A mãe adotiva colocou Félix no chão e enxugou as lágrimas antes de olhar para Cash.
— Sinto muito — disse ele.
Ela assentiu.
— Também sinto.
Cash se sentou ao lado dela.
— Você salva muito mais pessoas do que perde.
A sra. Fuller ofereceu a ele um sorriso triste.
— Ela era apenas alguns anos mais velha que você — ela disse. — Alguns anos mais velha que Emily. Eu queria salvá-la. — Ela respirou fundo. — É difícil perder um paciente, mas quando eles são jovens... Acho que, se eu pudesse salvá-los, isso poderia compensar... — Ela colocou os dedos sobre os lábios trêmulos.
— Compensar o quê?
Ela balançou a cabeça.
— Foi culpa minha. Eu estava tão ocupada com a faculdade... Era meu dia de cuidar da Emily, mas liguei para a babá e pedi para que ela a levasse para passear.
— Não foi culpa sua — Cash disse bruscamente.
— Eu sei. Só estou com pena de mim mesma. E amanhã é... Vai fazer quinze anos que Emily desapareceu. — Ela fez uma pausa. — Odeio não ter conseguido salvá-la.
Quinze anos. Ele não sabia nem mesmo de quem ela estava falando ao dizer que não tinha conseguido salvar. A garota com câncer ou a filha dela?
A sra. Fuller esfregou os olhos e olhou para ele. De perto, ele viu a expressão dela, tão cheia de dor.
Ele colocou a mão no braço da mãe adotiva. De onde vinham as palavras, Cash não sabia, mas elas deixaram seus lábios:
— Você me salvou.
— Eu salvei? — A voz dela tremia. — Às vezes eu me preocupo quando vejo que você não deixa que a gente se aproxime muito de você...
— Você está mais próxima de mim do que qualquer outra pessoa jamais esteve. — E aquela era a mais pura verdade.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Obrigada. É demais pedir um abraço?
Ele balançou a cabeça, mesmo que preferisse evitar abraços.
Eles ficaram de pé e os braços dela o envolveram. Cash não se moveu, a dor que sentia no peito era profunda. A garganta apertou.
Ela o soltou rapidamente, como se sentisse quanto era difícil para ele.
— Nós amamos você como um filho.
Vocês não deveriam.
— Eu sei. — Mas eles mereciam ter a filha de volta e, se ele pudesse, se fosse possível, iria devolvê-la aos Fuller.
Estou me arrumando para ir à escola na manhã seguinte, quando meu celular toca. Tenho certeza que é Lindsey, por isso atendo. Me enganei.
— Como está a filhinha do papai? — É o homem que me deve um pedido de desculpas. De repente, quero que ele saiba que me magoou. Parece que não resta mais nada nele do pai que eu conhecia. O cara que costumava me levar para comer comida indiana porque minha mãe não gostava. O cara que costumava me abraçar forte, que me ensinou a trocar pneu. Ele se foi. Já era.
— Como está minha garota? — ele pergunta novamente.
— Bem.
— Como está indo na escola?
— Muito engraçado... — Mas não estou rindo.
— O que é engraçado?
— Pensei que você fosse me ligar no primeiro dia de aula para saber como foi.
— Ah... — A culpa está estampada nessa única palavra. — Sinto muito, querida. Foi uma semana agitada.
Este é o momento em que deveria dizer que está tudo bem e deixá-lo falar quanto sente a minha falta. Mas não consigo.
— É bom saber que não estou na sua lista de prioridades.
— Chloe! Não diga isso.
— Por quê? É verdade. Você deu a Darlene meu quarto. Diz que vai ligar, mas não liga. O que mais? Agora vai se negar a pagar a pensão também?
— Por quê? Sua mãe está falando mal de mim?
— Sim, mas ela já faz isso há muito tempo. Mas agora finalmente estou percebendo que o que ela diz é verdade.
Desligo e começo a chorar. Mas, por outro lado, me sinto bem. Ele merecia isso.
Ao consultar o relógio, vejo que tenho que me apressar. Passo rápido pela minha mãe, para ela não ver que eu estava chorando.
Quando saio, Lindsey está esperando ao lado do meu carro.
— Algo errado?
— Tudo.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— Isso pode parecer terrível, mas agora você não está mais fingindo tão bem e eu gosto mais de você assim.
Eu olho para ela como quem diz “Do que você está falando?”.
— Antes, você agia como se fosse a Mulher-Maravilha. Eu me sentia mal quando te contava meus problemas, porque você podia me achar meio patética. — Ela dá a volta para entrar no carro.
— De que problemas você está falando? — pergunto, para não parecer mais patética ainda. Eu me sento atrás do volante. — Além do cão sarnento traidor?
Ela se acomoda no banco do passageiro e parece hesitante.
— Não vou aborrecer você com detalhes, mas... — Ela faz uma cara assustada e fica séria. — Minha mãe é gay.
Eu olho para ela.
— Eu já sabia.
Ela me olha perplexa.
— É tão óbvio assim?
— Sim. A namorada da sua mãe está sempre na sua casa e, quando assistem TV, ficam de mãos dadas. Por que isso...?
— É um problema? — Ela termina a minha frase. — Não é. Estou feliz que ela tenha se encontrado e encontrado Lola. Uns dois anos atrás, ela teve depressão. Até sete meses atrás, estava tomando antidepressivos, solitária e infeliz. Ela é muito mais feliz agora. E para mim tudo bem... Mas... nem todo mundo aceita. E tenho medo que...
— Você não deveria se importar com o que as pessoas pensam. Quem a sua mãe ama não é da conta de ninguém. Você tem uma mãe que é gay. Ponto final. Isso não é nada de mais.
Os olhos dela se estreitam.
— Você não entende. Não é que eu me importe com o que pensam. Eu tenho medo de que, da próxima vez que alguém disser alguma coisa sobre ela, eu pule na garganta da criatura. É a minha mãe! Odeio que o mundo a julgue.
Eu sorrio.
— Ótimo. Quem disse algo sobre ela?
— Clare, uma das primas de Jamie. Foi logo antes de Jamie viajar para o acampamento. Eu não sabia que Jamie tinha contado a ela sobre a minha mãe até ela começar a dizer quanto aquilo devia ser estranho para mim. Eu simplesmente fui embora. Nem me despedi de Jamie. Mais tarde, fiquei tão brava comigo mesma por não defender minha mãe que agora não vejo a hora de outra pessoa dizer alguma coisa.
Eu olho para ela.
— É o seguinte. Quando alguém disser alguma coisa, venha me chamar e vou ajudar você a dar uma lição nessa pessoa. Estou ficando boa nisso.
Lindsey suspira.
— Estou tão feliz que você tenha se mudado para a casa ao lado da minha!
Eu não posso dizer o mesmo, porque ainda sinto muita falta da minha outra vida, mas sorrio. Naquele momento, sei que não sou apenas colega de Lindsey. Gostando ou não da cidade, consegui uma boa amiga. Então decido confiar nela e contar sobre Cash e o pneu murcho.
— E se ele fez isso apenas para ter um motivo para falar com você? — ela pergunta.
— Se ele quisesse falar comigo, poderia ter simplesmente se aproximado e falado comigo. Ele não é tímido.
— Você não sabe. Ele talvez não seja tão confiante quanto parece.
Será que exagerei, por causa das minhas próprias inseguranças? Porque não acredito que ele possa estar interessado em alguém como eu?
Será que cheguei automaticamente à conclusão errada, como todas as outras pessoas? Ao me lembrar da história sobre como ele foi expulso da sua última escola, porque as pessoas preferiram acreditar no pior com relação a ele, começo a me sentir culpada.
— Sou uma cretina — murmuro e Lindsey ri.
Cash decidiu se desculpar. Ele faria qualquer coisa para voltar a ter a confiança de Chloe. Precisava de respostas e a única maneira de consegui-las era se aproximar dela. Ele tinha que descobrir se ela era Emily Fuller.
Ele não sabia exatamente o que precisava para provar ou refutar sua suspeita. Mas seus instintos lhe diziam que ele saberia quando ouvisse. E não ouviria nada se ela se afastasse dele.
Ele viu Chloe perto do armário, mas, antes que pudesse se aproximar, ela desapareceu no corredor, entre os outros alunos. No caminho para a aula de Literatura Americana, que eles tinham juntos, ele olhou para a esquerda e para a direita, esperando encontrá-la. Quando se aproximou da porta da sala de aula, ele a viu parada ali, esperando.
Seus olhares se encontraram e ela começou a andar na direção dele. Ele não estava perto o suficiente para decifrar a expressão nos olhos dela. Mas a tensão fez com que seu estômago se contraísse.
Chloe parou na frente dele, então fez um gesto para que se afastassem da porta.
— Oi. Eu...
— Olha, eu...
— Pode falar — disse Cash. Sempre deixe a outra pessoa falar primeiro. Seu plano de jogo talvez mude.
Ela mordeu o lábio.
— Sinto muito. Não deveria ter acusado você. Fui rude. — Chloe olhou para ele. O pedido de desculpas iluminou os olhos castanhos dela. Ele viu as manchas verdes e douradas. Seus olhos seriam da mesma cor que os do sr. Fuller?
Seu próprio pedido de desculpas estava na ponta da língua. Quando falar com uma garota tinha ficado tão difícil?
Em vez disso, ele sorriu.
— Tudo bem.
— Não, não está tudo bem.
Ela fez uma pausa como se fosse a vez dele de dizer alguma coisa, mas Cash estava muito ocupado se recriminando, porque ele era o culpado e deveria ser o único a pedir desculpas. Ela se virou para entrar na sala de aula.
— Espere. — Ele pegou o braço dela e sentiu o mesmo choque. Como tocar num fio desencapado. Mas a sensação logo desapareceu e tudo o que restou foi a sensação de como a pele dela era macia. — Podemos falar sobre isso mais tarde?
— Sim. — Ela sorriu e não saiu do lugar.
Demorou um segundo para Cash perceber que ainda segurava o braço dela. E estava acariciando a pele dela com o polegar. Mas, caramba, ele gostava da sensação de estar tocando Chloe...
Com relutância ele a soltou e deixou-a ir para a aula. O toque podia ter vindo com uma centelha de dor, mas o que viera a seguir — a pele quente, suave e feminina — fizera tudo valer a pena.
8
Depois da escola, Cash dirigiu até a casa de Chloe, mas estacionou algumas casas à frente. Enquanto esperava, sentiu certo nervosismo. Estava pensando em sugerir que se encontrassem na cafeteria. Algo sobre a mãe de Chloe o deixava apreensivo. Vê-la tão doente e questionar se ela tinha sequestrado Chloe tornava tudo mais difícil.
Ele se perguntou quão difícil não seria para Chloe ver a mãe dela tão magra. E ele só contribuiria para aumentar os problemas da garota se dissesse que ela podia ser Emily Fuller. Ocorreu-lhe que seria mais fácil se ela não fosse a filha dos Fuller.
Ele não teria que mentir para ela.
O carro de Chloe entrou na garagem da casa.
Cash viu pelo espelho retrovisor a amiga dela colocando a mochila no ombro. Ele tinha reparado nela no ano anterior. Não estava na sua lista de garotas insuportáveis.
Chloe saiu do carro. Cash gostava de observá-la, especialmente quando ela não sabia que estava sendo observada. Ela parecia de alguma forma... diferente das outras garotas. Quando cruzava com outras pessoas no corredor, pedia licença. A maioria não fazia isso. Ela sorria para os outros alunos — não apenas para os mais populares, como algumas garotas faziam.
Cash também via os garotos olhando para ela. Não podia culpá-los. Ele olhava também. Só que alguns caras eram uns cretinos.
Só quando Chloe viu o carro dele é que Cash saiu.
— Vamos entrar. — O cabelo dela balançava em volta dos ombros e a camisa vermelha se ajustava aos seios.
Ele a seguiu para dentro da casa.
— Mãe? — Chloe chamou. — Cash está aqui. Vamos nos sentar lá fora, no quintal. — Cash ouviu a mãe dela responder algo do quarto.
Chloe largou a mochila numa cadeira da sala de jantar.
— Aposto que a sua casa é muito melhor que a minha.
— Na verdade, não — Cash mentiu, porque seria rude da parte dele se concordasse com ela. Mas com exceção da casa dos Fuller, a casa de Chloe era melhor do que qualquer outra em que ele já tinha morado. Durante seis meses, ele e o pai haviam morado numa cabana na floresta sem água corrente, eletricidade ou banheiro.
Ele a seguiu pela casa e viu alguns porta-retratos na mesinha ao lado do sofá. Ali havia várias fotos de Chloe quando era pequena. Uma delas chamou a atenção dele, como se ele já a tivesse visto antes. Era Chloe segurando um gato tigrado amarelo. Ele pegou o porta-retratos. Estava imaginando coisas ou era a mesma foto que a Susan Fuller tinha num dos quartos vazios? Se pudesse, fotografaria a foto para poder compará-las.
Cash levantou os olhos e percebeu que Chloe estava olhando para ele.
— Você era uma gracinha.
— Obrigada. — Ela fez sinal para ele acompanhá-la até o quintal. Lembrou-se da última vez em que estivera ali, quando ela o acusara de ter murchado seu pneu. Esperava que desta vez não houvesse acusações.
Quando saíram no quintal, um cachorro amarelo, de tamanho médio e raça indefinida, veio correndo para cima dele, latindo. Não era um latido ameaçador, mas brincalhão. Cash acariciou o animal.
— Não, não pule, Docinho! — Chloe foi se sentar no balanço. Cash teve a sensação de que ela esperava que ele fizesse o mesmo. Então se sentou, deixando de propósito um espaço entre eles. Mas, mesmo assim, estavam muito próximos. Ele podia sentir o aroma que exalava dela. Um perfume de frutas e flores. Não um perfume, mas uma colônia, e talvez um brilho labial também, porque ele notou que os lábios dela estavam brilhantes.
O cachorro colocou a pata na perna de Cash.
— Ela é bonita.
— Ele — disse Chloe.
— Você deu o nome de Docinho para um macho?
— Ele era muito bonzinho. E eu tinha 7 anos.
Cash soltou uma risadinha.
— Você provavelmente o castrou também, para tirar dele qualquer resquício de masculinidade...
Ela levantou uma sobrancelha e acariciou o cachorro.
— Só depois que ele cruzou com a cachorra do vizinho e ela teve vários filhotes. E foi na festa do meu aniversário. Na frente de todos os amigos da minha classe. Minha festa teve cama elástica, um palhaço e uma aula de educação sexual.
Ele riu e percebeu que fazia muito isso quando Chloe estava presente. Então pensou no que ela tinha dito. Cash não tinha realmente refletido sobre como tinha sido a infância dela, mas não parecia ruim. Será que pessoas que organizam festas de aniversário bem elaboradas para os filhos sequestram crianças?
Ele nunca tivera uma festa de aniversário. Teve apenas um bolo de aniversário antes da chegada dos Fuller. Agora os aniversários nunca passavam em branco. Sempre havia bolo e presentes. E a mãe adotiva sempre tirava o dia de folga e cozinhava o que ele queria. Se Cash não dissesse o que queria, ela fazia os pratos que sabia que ele gostava. Será que era isso que Chloe também tinha?
Percebendo que o silêncio estava ficando pesado, ele disse:
— Parece que foi uma ótima festa de aniversário.
— Foi inesquecível.
— Eu não estou nem aí! — A voz em tom elevado da mãe de Chloe vazou por trás da porta dos fundos, mesmo fechada.
Chloe franziu a testa.
— Bem, eu só disse a verdade! — A voz da mãe soou irritada novamente.
— Merda. — Chloe saiu do balanço. — Já volto.
Ela disparou para dentro. O cachorro sentado ao lado dele choramingou. Quando a porta se fechou, ele ouviu Chloe dizer:
— Mãe! Cash está aqui.
A voz da mãe dela explodiu novamente.
— Talvez você devesse ter pensado nisso antes de começar a transar com alguém que poderia ser irmã dela! Sim, eu disse isso. Você é um merda. E ela é uma vadia!
— Mamãe! Pare! — A voz de Chloe soou mais alto.
— Passe bem! — A mãe gritou, e então... — Você disse ao seu pai que eu estava falando mal dele?
Cash abaixou os pés para interromper o movimento estridente do balanço e ouvir o que ela diria em seguida.
— Eu... Nós podemos conversar sobre isso mais tarde? Cash está aqui.
— Por que você conta a ele tudo o que eu digo? — A mãe dela gritou.
A voz de Chloe soou em seguida.
— Eu não tinha intenção... — A dor era evidente na voz dela. O mesmo tipo de dor que ele tinha ouvido no dia anterior, quando contou a ele sobre o pai.
— Aquele homem não tem vergonha na cara! E pode dizer a ele que eu disse isso!
Uma porta bateu lá dentro. Cash passou as mãos no jeans e se perguntou se deveria ir embora.
Chloe voltou para o quintal.
O rosto dela estava vermelho. Estava de braços cruzados, como se estivesse zangada ou envergonhada. Talvez as duas coisas.
Ela encontrou os olhos dele.
— Olha, eu vou te dar um conselho: vá embora e me esqueça. Você não tem que ouvir os melodramas dessa minha família maluca.
Ele não saiu do lugar. Só queria ter algo para dizer que a fizesse se sentir melhor.
— Tive uma família muito pior. São apenas os problemas do divórcio.
Ela se aproximou e deixou-se cair no balanço.
— Foi mal...
Quando ela virou o rosto para cima, ele viu lágrimas nos cílios longos e escuros.
— Sério, está tudo bem.
— Minha vida é uma zona. Você não vai querer... — Chloe mordeu o lábio.
— Não. A vida dos seus pais é uma zona. Você é apenas uma vítima inocente.
Cash não podia acreditar que estava reciclando alguns dos velhos clichês que os psicólogos costumavam repetir para ele enquanto estava no hospital, depois de ter sido baleado. A psicóloga estava lá quando ele acordara. Cash tinha se lembrado de perguntar a ela:
— Eu vou para a cadeia?
Ela tentou consolá-lo.
— Não. Você não fez nada de errado.
Ele se lembrou de levantar o queixo, disposto a aceitar sua punição.
— Sim, eu fiz.
— Você não é má pessoa. Foi seu pai quem fez coisas ruins. Você é jovem, fez o que tinha que fazer para sobreviver.
Ao lado dele, Chloe balançou a cabeça.
— Não. Eu não sou inocente desta vez. — Mais uma vez, ela mordeu o lábio. — Meu pai ligou esta manhã e eu disse algo que não deveria ter dito. Eu queria magoar meu pai, não a minha mãe.
Ele não sabia direito o que o levou a fazer aquilo, mas colocou o braço sobre os ombros de Chloe. Um choque de prazer percorreu o corpo dele, acompanhado de dor. Mas então a dor se foi.
Ela soltou aquele som triste novamente — um suspiro muito parecido com o da sra. Fuller, o que o fez lembrar por que ele estava ali. Antes que Cash pudesse mover o braço, Chloe se inclinou contra ele.
Ele tentou não recuar.
— Ainda tem a ver com eles. Não com você.
Ela olhou para ele. Estavam tão perto que Cash poderia contar os cílios dela. E isso deu a ele uma visão panorâmica da dor nos olhos castanhos dela.
— Você é muito bom nisso — Chloe sussurrou.
— No quê?
— Em saber dizer a coisa certa.
— Que estranho... Eu geralmente sou péssimo nisso. — Cash forçou um sorriso, sentindo cada centímetro do corpo dela contra o dele. Sentindo quanto aquilo parecia certo e errado ao mesmo tempo.
— Seus pais se divorciaram? — perguntou ela.
Ele sentiu o ar preso na garganta. A última coisa que queria era falar sobre o passado.
— Não. Eles morreram.
— O que aconteceu? Desculpe, eu não deveria...
Docinho bateu contra o joelho dele, com uma bola de tênis amarela na boca. Com o braço livre, Cash jogou a bola longe para o cachorro pegar.
— Sua mãe parecia furiosa.
— Ela não está apenas furiosa. Ela está amargurada.
Chloe olhou para a porta e sua expressão era de tristeza novamente.
— Não posso culpá-la, só que... dói ouvi-la xingar meu pai o tempo todo. Eu sei que ele merece. Mas... — Ela cobriu o rosto com as mãos. — Droga. Estou fazendo de novo.
— Fazendo o quê?
— Despejando os meus problemas em cima de você.
Cash sorriu.
— Eu aguento.
Ela riu e recostou-se nele. Estavam ainda mais perto agora.
Ele inspirou o perfume dela.
— É câncer que ela tem?
— Sim.
— Ela vai ficar bem?
A raiva nos olhos dela se transformou em tristeza.
— O médico disse que ela está curada. Mas acabei de descobrir... que o câncer pode voltar. — Chloe fez uma pausa. — Mal posso esperar o dia em que ela deixar de parecer... que está morrendo.
— Sinto muito. — Cash quase disse que a mãe adotiva era oncologista, mas falar sobre a mulher que ele achava que podia ser a mãe dela parecia errado.
Os olhos deles se encontraram. E ali ficaram. Os lábios dela vieram ao encontro dos dele.
Cash recuou.
Ela se encolheu.
— Foi mal...
— Não. Eu só... Eu não estava... — Ele não conseguia desviar os olhos dos lábios dela. Então ele se inclinou. Seus sentidos continuavam hiperalertas.
Ele sentiu tudo intensamente. O sabor dos lábios dela. Um pouco salgados, por causa das lágrimas. A textura deles. Macios, quentes. Úmidos. O modo como ela chegou um pouco mais perto e seus seios pressionaram suavemente as costelas dele. Cash a queria mais perto, para que pudesse envolver sua cintura, deslizar as mãos sob a camisa vermelha, para sentir a pele nos lugares que não tinha conseguido ver.
Percebendo que não deveria estar pensando aquilo, ele pôs fim ao beijo, mas conseguiu fazer isso bem devagar.
Chloe sorriu.
— Isso foi bom.
— Sim. Foi mesmo...
Mas, que droga, ele estava indo longe demais! Aquilo podia acabar muito mal.
Cash estacionou na garagem, entrou em casa e digitou o código para desligar o alarme. Ele tinha ido embora depois que os dois haviam se beijado pela quinta vez. Cinco beijos. Ele ficou dizendo a si mesmo que precisava parar, mas não conseguia. Não quando ela se sentou tão perto e parecia tão disposta, olhando para ele com desejo misturado com tristeza. Chloe precisava ser beijada e ele precisava beijá-la.
Ele subiu os degraus de madeira e cruzou o corredor até o quarto onde a sra. Fuller guardava todas as recordações da filha que havia perdido. Fotografias, bichinhos de pelúcia com que a criança brincava, livros que ele imaginava que a mãe lia para ela. Na cômoda ainda havia algumas roupas. Era como um museu dedicado à filha.
Quando acendeu a luz, ele descobriu que a cama estava desarrumada. Ele apostava que ela tinha dormido ali na noite anterior. Sempre fazia isso quando estava com algum problema.
Cash foi até as prateleiras que continham livros e porta-retratos. E encontrou. A foto de Emily Fuller segurando um gatinho. Não apenas qualquer gatinho, mas Félix. O gato malhado amarelo quase idêntico ao da fotografia na casa de Chloe. Igualmente idêntica era a garota.
Ele pegou a foto.
A mãe adotiva tinha lhe contado muitas vezes como Emily amava Félix. Eles haviam encontrado o gatinho abandonado na rua. Era por isso que a mãe adotiva amava tanto aquele gato. Aquela seria uma peça do quebra-cabeça? Ou todos os pais decentes tinham fotos dos filhos com seus animais de estimação? Mas como essas duas garotas poderiam se parecer tanto? E seria coincidência que os gatinhos se parecessem também?
Ele pegou o celular para fotografar o porta-retratos.
9
Atenta a cada barulhinho vindo do quarto da minha mãe, eu coloco o que restou de uma pizza no forno, esperando que o cheiro apetitoso a atraia para a cozinha. Cash saiu faz uma hora, mas minha mãe não apareceu ainda. Será que ela está chorando? Está deprimida? Irritada?
Parte de mim gostaria de obrigá-la a sair do quarto. Ela está agindo como uma criança birrenta.
Quando é que assumi o papel da mãe nesta casa?
Ah, sim, quando ela teve câncer. Ou talvez quando meu pai a abandonou.
Desconto minha frustração na alface, no tomate e nas cenouras que estou picando. Félix mia e circula entre os meus tornozelos.
Com as mãos no piloto automático, minha mente divaga. Estou angustiada com a minha mãe e ao mesmo tempo nas nuvens por ter sido beijada por Cash. Beijada cinco vezes. Eu tomei a iniciativa. Quero dizer, os lábios dele estavam tão perto que eu simplesmente o beijei. Mas os outros quatro beijos foram iniciativa dele.
Eu posso fechar os olhos e ainda sentir seus lábios contra os meus. Saboreio a lembrança e... os sentimentos novos que brotam no meu peito. Esperança. Empolgação. Antecipação.
Desde que meus pais começaram a se desentender, sinto como se alguém tivesse roubado a minha alegria. Mas talvez ela não tenha sido roubada, apenas reprimida. Talvez...
A porta do quarto da minha mãe se abre. Ela entra na cozinha em meio a uma aura de depressão.
— Estou esquentando a pizza — digo.
— Não estou com fome.
— Você tem que comer. — Sim, eu sou a mãe aqui.
Nossos olhares se encontram. Eu vejo a mágoa nos olhos fundos dela. Toda a alegria que eu sinto no peito murcha como uma flor deixada num vaso sem água. Sou tomada por um sentimento de culpa.
— Eu não fico falando de você para o papai. Ele ligou esta manhã e fiquei com raiva.
— Por quê?
— Ele me disse que ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Quando reclamei, ele perguntou se você estava falando mal dele e se era por isso que eu estava sendo agressiva. Eu disse que, sim, que você estava falando mal dele, mas que não era esse o problema. O problema era que agora eu estava percebendo que tudo que você dizia era verdade. Eu não quis...
Ela se senta.
— Então ele disse que ligaria e não ligou?
Isso não está ajudando. Agora ela vai ficar brava de novo. Eu me deixo contagiar por essa raiva.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não fique com raiva.
— Como posso não ficar com raiva? Olha o que ele fez comigo! — Ela arranca a bandana.
— O que aconteceu com aquela minha mãe que estava feliz outro dia? Que disse que tudo ia ficar bem?
— Seu pai aconteceu! — Lágrimas enchem os olhos dela.
Lágrimas enchem meus olhos também. Sento-me ao lado dela.
— Mãe, você precisa de ajuda. Precisa de terapia ou algo assim. Você pode sobreviver ao câncer, mas essa amargura vai te matar.
Sem mais uma palavra, ela volta para o quarto.
Eu desligo o forno, vou para o meu quarto e bato a porta.
Nenhuma de nós janta.
Na manhã seguinte, quando saio do meu quarto para fazer xixi, minha mãe me chama. Ela está sentada na cozinha, vestida com o roupão cor- de-rosa, que parece engolir seu corpo inteiro.
— Podemos conversar?
Tento decifrar o humor em que ela está. Ainda está furiosa? Ainda está deprimida? Quando me aproximo, sinto outra coisa. Culpa.
— Sente-se. — Ela faz um gesto indicando a mesa.
Eu me sento na frente da minha mãe. As olheiras sob os olhos dela estão mais escuras. Ela não anda dormindo.
— Sinto muito — diz minha mãe. Lágrimas caem dos seus olhos verdes. — Eu tive um dia ruim ontem. Ficaram de me ligar ontem para falar sobre a vaga de emprego no consultório, mas ninguém ligou. Estou achando que podem ter mudado de ideia. E o remédio que estou tomando causa sintomas de gripe. Comecei a sentir pena de mim mesma, então o seu pai me ligou e eu perdi a cabeça. — Ela pega minha mão. — Me desculpe por ter surtado na frente do seu amigo.
Embora eu quisesse acreditar que tudo está bem agora, não posso. Não é o primeiro pedido de desculpas que ouço dela.
— Amo você, mãe — digo. — E eu te perdoo. Mas você precisa fazer terapia.
— Foi só um dia ruim.
Eu enrijeço os ombros e digo a mim mesma que não sou a mãe dela.
— É mais do que isso. Você parou de escrever. Parou de viver. Parou de comer. Não foi só um dia ruim. Você teve um ano ruim. Vejo anúncios na TV dizendo que hoje existe todo tipo de remédio para a depressão.
— Querida, eu não preciso...
— Você precisa, mãe. — Eu a olho bem nos olhos.
Ela hesita e diz com relutância:
— Vou ver se o nosso seguro-saúde cobre.
Não era um sim, mas também não era um não.
Termino de me arrumar, abraço minha mãe e a lembro de ligar para o seguro-saúde. Quando saio, Lindsey está ao lado do meu carro. Ela havia me mandado uma mensagem ontem à noite, cerca de uma hora depois que me tranquei no meu quarto, implorando para eu ir à casa dela, mas eu só liguei. Não contei sobre a minha mãe, não estava pronta para conversar sobre isso, mas contei sobre Cash. Sobre nós nos beijando.
Quando ela me vê, sorri.
— Ainda caminhando nas nuvens?
— Mais ou menos... — Entro no meu carro.
Lindsey se senta no banco do passageiro.
— Eu mal posso acreditar que você está namorando Cash Colton. Ele é o cara mais gato da escola!
— Calma aí! Não estou namorando Cash. Ainda não.
Quando dou partida no carro, vejo minha mãe olhando pela janela.
Despenco das nuvens um pouco mais.
— Ok, deixe-me reformular — diz Lindsey. — Mal posso acreditar que você está dando uns amassos no cara mais gato da escola.
— Não dei uns amassos... Foram só cinco beijos...
— Hmm... — diz Lindsey. — Acho que foram amassos, sim. Vamos ver o que o Google diz. — Ela pega o celular e, em alguns segundos, está lendo e rindo.
— O que foi? — pergunto.
— Bem, de acordo com o Google, são vários os significados de “dar uns amassos”. Só beijar é um deles. Beijar com a língua é outro. — Ela olha para mim. — Você deu um beijo de língua no Cash?
— Digamos que sim...
— Ah, olha só... — Ela se concentra no celular. — Aqui está outro significado: “Trocar carícias, esfregar-se um no outro ou remover peças de roupa”.
— Nós não removemos nenhuma peça de roupa! — Eu solto uma risada.
Ela continua.
— Ouça esta aqui: “Qualquer coisa que não incluir penetração”. Penetração? Isso parece tão pervertido...
O comentário me faz bufar e depois pergunto:
— E quando você vai falar com David?
— Não vou. Se gosta de mim, ele é que vai falar comigo. — Lindsey afivela o cinto de segurança. — Adivinha quem mandou uma mensagem ontem à noite?
— Quem?
— Jonathon.
— O cachorro sarnento traidor? — Começo a dirigir.
Ela confirma.
Piso repentinamente no freio quando vejo o farol vermelho. O carro dá um solavanco.
— Não... — digo com firmeza.
— Não o quê?
— Não, você não vai voltar com ele! Ele te tratou como lixo.
— Mas...
— Sem desculpas! Não seria sua amiga se deixasse você voltar com ele.
Ela baixa a cabeça.
— Tem razão.
— Fale com David hoje!
— Talvez — Lindsey responde.
— Nada de talvez! Faça isso. E nem estou dizendo para sair com ele, apenas...
— Apenas o quê?
— Sinta que é possível. Descubra o poder que existe dentro de toda garota e pare de pensar que precisa de Jonathon para ser feliz. Às vezes acho que precisamos saber que outro cara gosta de nós para nos sentirmos bem com a gente mesmo. Às vezes só precisamos saber que conseguimos fazer um cara perceber que talvez a gente não precise de cara nenhum.
— É isso que você está fazendo com Cash? Encontrando o poder que existe dentro de toda garota?
A pergunta rola na minha cabeça.
— Talvez. Não sei ainda. — Mas quando penso nele, sinto que é mais do que isso.
Cash chegou cedo na escola, mas disse a si mesmo que sua pressa para chegar não tinha nada a ver com Chloe.
Na noite anterior, ele só conseguia pensar nela. Ficou se perguntando se ela seria Emily. Se havia gostado tanto de beijá-lo quanto ele gostara de beijá-la. Se ela iria odiá-lo quando ele contasse sobre as suas suspeitas.
Quando virou no corredor, ele a viu. Diminuiu o passo e a observou. Prestou atenção na maneira como o cabelo dela caía nas costas, enquanto ela guardava a mochila no armário.
Então ele se aproximou até parar ao lado dela.
— Olá.
Chloe se virou e sorriu.
— Oi.
— Oi. — O olhar de Cash foi direto para os lábios dela e ele quis beijá-la. Nunca fora de demonstrar afeto em público, mas poderia dizer que seria fácil mudar de ideia.
Percebendo que ficar olhando para os lábios de Chloe era estranho, ele desviou o olhar para o livro de matemática que ela segurava contra os seios. Mas deixar que o olhar se demorasse ali seria ainda mais estranho, então Cash falou sem pensar:
— Indo para a aula de Cálculo? Você tem aula com o sr. Williams? Eu tenho aula com ele mais tarde.
Desde a noite anterior, ele sabia que ela tinha aula com o sr. Williams, pois tinha lido e relido o arquivo que fotografara no escritório da srta. Anderson.
— Sim — ela respondeu. — Ele parece legal. Qual é a sua primeira aula?
— História. — O alarme tocou.
— Preciso ir — disse ela. — Vejo você na aula de Literatura Americana.
— Até mais tarde. — Ele se inclinou na direção dela. — Gostei de ontem.
Ela sorriu e aqueles suaves olhos castanhos o fitaram através dos cílios.
— Eu também.
Ela se afastou. Ele a viu cruzar o corredor em meio à multidão. O jeans preto que ela usava se ajustava quase tão bem quanto o jeans azul que vestira no dia anterior.
Ele ficou ali parado até a visão dela ser obstruída por outros alunos.
Considerando que Cash fazia parte de quase todas as aulas de conteúdo mais aprofundado, era estranho que só tivessem uma aula juntos aquele dia. Apenas azar. Ou talvez fosse porque ele tinha escolhido estudar Tecnologia Automotiva.
No ano anterior, quando montava sua grade de aula, a srta. Anderson tinha tentado convencê-lo a não fazer isso.
— Mas eu não posso mantê-lo em todas as aulas mais avançadas se estiver estudando Tecnologia Automotiva. Você poderia escolher outra aula de matemática para se preparar melhor para os cursos universitários.
Ele explicou que havia planejado cursar aulas de matemática numa faculdade antes de se formar. E ele já estava fazendo isso. Aquela noite era sua primeira aula.
— Então você planeja ir para a faculdade? — ela perguntou como se não esperasse que ele tivesse esses planos. Agora que sabia que a srta. Andreson era adotada, ele estava meio desapontado ao ver que ela tinha automaticamente pensado o pior dele. Pessoas comuns faziam aquilo, não pessoas que entendiam o que era uma adoção.
Ou talvez ela tivesse entendido até bem demais. A maioria das crianças adotadas por meio do programa do governo acabava na prisão. Quando Cash leu essa estatística, ficou chateado. Pensou nas poucas crianças adotadas de que ele realmente gostava. Não que tivesse mantido contato com elas. Isso era quase impossível em razão do número de vezes que mudara de lar temporário.
Enquanto caminhava para a aula de História, lembrou-se da pergunta seguinte da srta. Anderson. Ela quis saber:
— Então por que fazer Tecnologia Automotiva?
Cash disse a ela:
— Porque eu gosto.
E ele gostava mesmo. Mas a verdade era que, quando terminasse o ensino médio, não planejava receber uma mesada dos pais adotivos. Se algo acontecesse com o carro dele, era melhor que ele estivesse preparado para consertar.
Além disso, a oficina estava lhe atribuindo serviços cada vez maiores, agora que sabiam que ele estava cursando Tecnologia Automotiva, e ele esperava trabalhar numa grande oficina mecânica enquanto fazia faculdade.
Incomodava-o o fato de os Fuller terem comprado um jipe para ele. Eles o tinham convencido a aceitá-lo. Mas Cash se arrependera. E estava determinado a reembolsá-los.
Depois do almoço, vou ao meu armário buscar meus livros. Com o armário aberto, pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem para minha mãe. Você ligou para o seguro-saúde?
Ela precisava saber que eu não tinha me esquecido.
Estou esperando para ver se ela vai responder quando sinto alguém de pé ao meu lado. Abro um sorriso, pensando que é Cash. Mas, quando olho, vejo o rosto de um valentão com um nariz muito machucado. O nariz que Cash socou.
— Oi — ele diz. — Sou Paul Cane. Quarterback do time de futebol.
Eu olho para o meu celular novamente, esperando que ele vá embora. Ele obviamente acha que eu deveria ficar impressionada com a posição dele no futebol.
— Pois não?
— Chloe, certo? — ele pergunta.
— Sim.
— Pensei em fazer um favor a você.
Isso me faz levantar o olhar.
— Vi você saindo com aquele cara, Cash. Você provavelmente não sabe, mas ele é adotado.
Para mim isso é como derramar suco de limão num corte profundo.
— E daí? — percebo o tom frio da minha voz e espero que ele também tenha percebido.
Ele deve ter percebido, porque parece decepcionado.
— Conheço alguns alunos que frequentam a antiga escola de Cash, e há boatos de que ele é mau elemento.
Eu lanço um dos meus sorrisos mais amarelos e falsos.
— O bom é que não desperdiço meu tempo com boatos.
Os olhos cinzentos dele escurecem.
— Dizem que ele matou o pai. Um tiro bem no coração.
Isso me deixa atordoada, mas não demonstro.
— Como eu disse, não dou a mínima atenção para boatos.
Começo a andar, mas ele pega meu braço.
— Você deveria dar. — O tom da voz dele é tão arrogante quanto no dia em que praticou o bullying. Como se ele fosse mais esperto que todo mundo, superior. Mas eu o vejo simplesmente pelo que ele é: um babaca.
Eu olho para a mão dele e afasto o meu braço.
Ombros tensos, bato a porta do meu armário com um pouco de força demais. O barulho ecoa no corredor. Pessoas se viram para olhar.
Quando começo a andar, minha mente começa a dar voltas. Será que Cash de fato matou o próprio pai?
10
Quando toca o último sinal do dia, Lindsey me encontra em frente ao meu armário e vamos juntas ao estacionamento. Estou decepcionada que Cash não veio falar comigo. Durante todo o dia pensei no que Paul me disse. Não que eu acredite nele.
Sei que Paul é um idiota que diria qualquer coisa para prejudicar Cash. E se Cash soubesse o que ele disse, ficaria chateado. E é por isso que não vou dizer nada a ele.
Quando Lindsey e eu nos aproximamos do meu carro, eu o vejo encostado contra a lataria. Lembro com clareza como foi beijá-lo. Um sorriso aparece nos meus lábios e depois nos meus olhos.
Não. Ele não é um assassino.
— Você quer que eu deixe vocês dois sozinhos? — Lindsey pergunta.
— Não — eu digo.
Nós continuamos andando e tudo que eu posso ver é Cash. Em como seus olhos verdes brilham enquanto me olham. Na expressão dele, quase sorrindo.
— Esta é Lindsey.
Cash é educado e diz:
— Olá. Conheço você de vista desde o ano passado.
— Oi. — Ela pega o celular. — Eu preciso mandar uma mensagem... para uma pessoa. — Ela vai para o outro lado do carro. Sei que está apenas nos dando um pouco de privacidade e lhe sou grata por isso. Me aproximo dele.
— Espero que goste da sua aula de hoje à noite.
— Eu só queria me despedir.
Olho para ele. Seu olho roxo está melhor. Uma rajada de vento tira o cabelo preto da testa. Eu me pergunto se ele quer me beijar de novo. Sei que quero beijá-lo, mas usei toda a minha coragem quando o beijei primeiro ontem.
— Tudo bem se eu te mandar uma mensagem ou te ligar mais tarde? — ele pergunta.
— Tudo bem. — Nós trocamos números de telefone.
— Você pode me ligar também. — Cash passa a mão no meu braço. Sei que ele não está planejando me beijar. Mas o toque de alguma forma me tira o fôlego tanto quanto o beijo.
Fico ali parada, vendo-o se afastar. Ele se vira uma vez e abre um sorriso. Isso é tão bom...
— Sem beijo? — Lindsey pergunta depois que entramos no carro.
— Sem beijo. — Eu ofereço a ela um sorriso e quase digo quanto me sinto bem.
Ela suspira.
— Você sabe que isso tudo é muito louco? Sério, as garotas ficavam, tipo, se jogando em cima dele, e ele ignorava todas elas.
— Também acho muito louco... — comento, e a insegurança me atinge em cheio. Sei que ele disse que eu me pareço com alguém e foi por isso que tudo começou, mas, se Cash pode ter qualquer garota que quiser, o que está fazendo comigo?
Afasto esse pensamento e olho para Lindsey.
— Você falou com David hoje?
Ela sorri.
— Falei.
— E como foi?
— Usei o poder que toda garota tem! — diz ela. — E se ele me convidar para sair, eu vou. Eu não sei se ele gosta de mim, mas eu gosto dele. Ele é... revigorante.
— Ótimo! — Enquanto esperamos na fila para sair do estacionamento, ouço uma batida na janela da frente, do lado do passageiro.
É Jamie.
Lindsey abaixa o vidro.
— Oi — Jamie diz para Lindsey, sem nem me cumprimentar com um aceno de cabeça.
— Quer ir para casa comigo? A gente faz o dever de casa juntas...
— Hã... — Lindsey olha para mim como se estivesse constrangida.
— Pode ir — eu digo.
— Ok, então — diz Lindsey.
Eu fico olhando enquanto Lindsey salta do carro e se afasta com Jamie, dizendo a mim mesma que não estou com ciúme. O carro na minha frente anda um pouco mais. Eu faço o mesmo. Olho pelo retrovisor e as vejo dando risada. Não estou com ciúme, repito, mas machuca um pouco de qualquer forma.
Cash deixou Chloe, pensando se não deveria tê-la beijado. Ele andou na direção do jipe. Parecia que ela queria ser beijada. Talvez devesse mandar uma mensagem para dizer que ele queria também. Faria isso. Então se perguntou novamente se aquilo era sensato. Como ela iria reagir quando ele contasse sobre Emily? Cash preferia que ela não tivesse relação nenhuma com aquela história. Ele não tinha planejado gostar dela.
Claro que Chloe compreenderia.
Mas ele precisava contar em breve. Muito em breve. Ele não sabia o que estava esperando. Mais provas?
Quando se aproximou do jipe, viu algo estranho na porta do motorista. A raiva ferveu dentro dele enquanto fitava o risco fino na lateral do carro. Algum idiota havia riscado seu jipe. E ele apostava que o idiota tinha um nariz inchado também.
Cash ficou ali, cerrando e abrindo os punhos. Queria encontrar aquele cretino e lhe dar uma lição. Então se lembrou do suspiro triste da mãe adotiva.
Embora soubesse que Paul tinha feito aquilo, ele não tinha provas. Assim como não tinha provas do estupro. Quem acreditaria nele? Ninguém. Se ele fosse atrás de Paul agora, seria acusado de começar a briga. E teria problemas. Poderia ser expulso da escola novamente.
— Merda! — Cash se forçou a entrar no jipe. Ficou sentado ali, segurando o volante com tanta força que seus punhos doeram. De alguma forma, de algum jeito, tinha que dar uma lição em Paul, mas sem arranjar problemas.
Paro na calçada e fico olhando para a casa antiga. Tenho medo de entrar. Medo de ver minha mãe fazendo drama. Estou cansada de drama.
Ela me contou que esse foi o primeiro lugar onde vieram depois da adoção. Ela estava tão animada para me mostrar aos pais... Por que não me lembro disso? Minha única lembrança é a de olhar para aquele tapete sujo e para meus sapatos pretos de fivela. Triste, sozinha. Assustada. Eu me pergunto se estava sentindo falta dos meus verdadeiros pais naquele dia. Eu me pergunto por que eles não me quiseram mais.
Me pergunto por que diabos desperdiço tempo pensando nisso. Sempre acabo sentindo dó de mim mesma. Sentindo-me patética. E não quero ser essa garota que tem pena de si mesma.
Pego minha mochila e saio do carro.
Ao entrar em casa, eu me preparo para outra discussão com minha mãe. Ela não respondeu à minha mensagem perguntando se havia ligado para o seguro-saúde.
Ela está na cozinha. Arrumada. Isso é um bom sinal. Mas vestindo roupas dois números maiores, ela me lembra um pouco um manequim vestido com trajes largos demais.
Ao entrar na cozinha, coloco a mochila sobre a mesa. Ela está sorrindo e eu não consigo não me perguntar se não está apenas fingindo.
— Como foi seu dia?
— Ótimo! — ela diz.
— Você começou a escrever de novo? — Ela costumava ficar realmente feliz quando conseguia escrever várias páginas do seu livro.
— Não. Recebi uma ligação do consultório médico. Eu tenho uma entrevista amanhã para me encontrar com o outro médico. Surtei por nada.
— Isso é ótimo, mamãe!
Odeio ser estraga-prazer, mas tenho que perguntar.
— Você ligou para o seguro-saúde?
O sorriso dela diminui.
— Liguei. Eles vão me enviar um e-mail com uma lista de terapeutas.
— Eles não têm simplesmente um site que você possa acessar?
— Sim, mas está em manutenção, por isso a funcionária vai me enviar uma lista atualizada.
Eu não sei se isso é só uma tática para adiar a terapia, mas não sei como argumentar.
— Ótimo. Eu só quero...
— Preciso ir às compras — ela interrompe. — Usei a minha única roupa apresentável na primeira entrevista. E como hoje é 4 de setembro... — Ela me manda um beijo. — Achei que poderíamos sair para comemorar. Aproveito e compro uma roupa para você também.
Eu me esqueci da data.
Quando eu era mais nova, 4 de setembro era como um segundo aniversário para mim. Presentes e bolo. É o dia em que eles me adotaram. Nós sempre comemorávamos. No ano passado, depois que meu pai foi embora, ele enviou flores.
Passo os olhos pelo balcão da cozinha só para dar uma checada rápida. Nada de flores. Talvez elas cheguem mais tarde. Ou talvez meu pai também tenha esquecido.
Minha mãe ainda está sorrindo.
— Onde você gostaria de comer?
Eu me forço a parecer interessada. Acho que ainda estou chateada com ela por me envergonhar na frente de Cash, mas faço a coisa certa.
— Naquele restaurante italiano, na avenida principal.
Às oito da noite, já em casa, abraço minha mãe, digo a ela que me diverti ajudando-a a escolher uma roupa e agradeço pela blusa. Não deixei que ela comprasse outra calça jeans, porque sei que ela não tem muito dinheiro.
Na verdade, eu me diverti bastante. Minha mãe estava... quase normal. Nós não falamos sobre meu pai, nem a respeito do telefonema ou do seguro-saúde. Comemos frango marsala e tiramisu, e ela contou como foi a infância dela nesta cidade. Até falou um pouco sobre algumas das suas antigas amigas e sugeri que ela tentasse entrar em contato com elas.
No caminho para casa, ela perguntou sobre Cash. Ele é seu namorado? O que você sabe sobre ele? Minhas respostas — evasivas — foram propositalmente curtas para não prolongar o assunto. Desde que Lindsey mencionou que todas as garotas praticamente se jogavam em cima de Cash, tenho questionado o interesse dele por mim. Além disso, cinco beijos não fazem de ninguém um namorado, e eu não vou entrar naquele assunto sobre ele ser adotado. Mas a pergunta da minha mãe me faz pensar em como sei pouco sobre ele.
Depois de pegar uma garrafinha de água, vou para o meu quarto fazer a lição de casa e penso no que vou escrever para Cash. Ou na razão por que ele não me mandou nenhuma mensagem.
Odeio me sentir assim. Por que não posso simplesmente mandar uma mensagem para ele? Tenho receio de dizer algo idiota e ele parar de gostar de mim. Tenho medo de que ele não me mande nenhuma mensagem porque encontrou uma universitária muito mais bonita do que eu.
Sim, eu sou uma boba insegura. Sempre culpo a adoção. O fato de saber que meus verdadeiros pais não me quiseram. Às vezes quero encontrá-los e perguntar por quê.
Eu desabo na minha cama e Félix se deita sobre meu peito. Ouço seu ronronar e esse som me acalma. Abro meu aplicativo de fotos e tiro uma foto dele. Só sai metade de sua carinha, mas a foto fica bonita.
Eu finalmente o empurro para sair de cima de mim, fico de bruços e escrevo: Como foi a aula?
Imediatamente, vejo que ele leu a minha mensagem. Sorrio e me pergunto se ele estava prestes a me escrever também.
Cash: Entediante. Professor estava atrasado.
Eu: Que pena. Você ainda está na faculdade?
Ele: Não. O que você fez hoje à noite?
Eu: Saí para jantar em um restaurante italiano com a minha mãe.
Ele: Ela está de bom humor?
Eu: Não surtou mais. ©
Ele: Que bom.
Félix se deita sobre as minhas costas e fica afofando meus ombros.
Faço uma pausa e olho outra vez o celular. Devo me despedir agora?
Ele: Eu gostaria de ter beijado você no estacionamento.
Dou risada e solto um gritinho.
Eu: Eu também.
Ele: Posso te ver amanhã à tarde?
Eu não quero trazê-lo em casa novamente.
Eu: Que tal se a gente se encontrar naquela cafeteria depois de eu deixar Lindsey em casa?
Ele: Boa ideia.
Eu: Preciso fazer a lição de casa, mas o meu gato não me deixa em paz.
Ele: O gato dos Fuller também é assim.
Tenho a triste sensação de que ele não pensa no gato como se fosse dele e não se refere à casa dos Fuller como se fosse a casa dele. Eu me pergunto se as coisas são ruins lá. Quero perguntar, mas não sei como. Em vez disso, anexo a foto que acabei de tirar de Félix e uma legenda.
Eu: Olha o Félix.
Deitado na cama, Cash leu a mensagem. Ele se levantou na hora. Caramba! O nome do gato dela é Félix? Ele tentou se lembrar se havia contado a ela qual era o nome do gato dos Fuller. Ele não havia contado. Não tinha nem falado do gato ainda. Certo?
Ele: O nome do seu gato é Félix?
Ela: Sim.
Ele: Quem deu esse nome a ele?
Ela: Eu. Era pequena. Tinha 3 ou 4 anos. Por quê?
Merda! Ele saltou da cama e começou a andar pelo quarto.
Mas, puxa, se isso fosse um golpe, seria a maneira perfeita de aplicá-lo! Continuar dando dicas até... mas não era um golpe.
Ele ficou ali, o dedo posicionado acima do celular, sem saber o que digitar. O que dizer. Finalmente digitou:
Ele: O gato dos Fuller se chama Félix.
Ela: Mentes brilhantes pensam de maneira parecida.
Ele: Sim.
Ela: Foi você quem deu esse nome a ele?
Cash se sentou outra vez enquanto suas emoções desciam por uma tirolesa, abalando seus nervos. Digitou: Não. Ele é velho.
Ele tinha que contar a ela. No dia seguinte. Mostraria a foto em que tinham feito a progressão da idade dela. Chloe ficaria com raiva? Iria descontar a raiva nele? Ficaria chateada por ele ter escondido isso dela? Seria o final do relacionamento entre eles?
— Provavelmente — Cash respondeu em voz alta. Mas ele não tinha escolha.
11
— O que você está fazendo?
Merda. Cash olhou através do para-brisa. Eram cinco da manhã e ele achava que poderia fazer aquilo sem que ninguém soubesse.
A sra. Fuller, ainda de roupão, estava parada na porta da garagem. Que horas ela acordava?
Ele não tinha contado aos Fuller que o carro dele fora riscado. Agora, como explicar por que ele estava instalando uma câmera em seu carro? Ele tinha cerca de um segundo para decidir se deveria dizer a verdade ou mentir. Mentir não parecia justo.
Ele saiu do jipe.
— Estou instalando uma câmera.
— Uma câmera? Por quê?
— Ontem alguém riscou a minha porta.
— O quê? — Franzindo a testa, ela se aproximou e olhou a lateral do jipe. — Por que alguém faria isto?
— Estou achando que é o cara com quem briguei. Mas não posso provar. Então, achei que, se o pegasse no flagra, poderia ter certeza. — O que ele faria se esse plano funcionasse? Ah, já tinha algumas ideias. A maioria delas incluía socos e todas o deixariam em maus lençóis.
Mas aquilo era algo em que ele pensaria mais tarde.
— Você denunciou?
— Não.
Ela apertou os lábios.
— Por quê? A escola precisa saber.
Ele sentiu um nó no estômago.
— Por favor, me deixe resolver do meu jeito.
Ela ficou rígida.
— E se envolver em outra briga com ele?
— Eu não vou brigar — Cash disse, sabendo que estava fazendo uma promessa que dificilmente conseguiria cumprir. — Não tenho certeza se foi ele quem fez isso. Isso pode até ter acontecido na faculdade. — Era mentira. — Não quero acusar ninguém sem provas. Se riscarem meu carro de novo, vou saber quem foi.
— E o que vai fazer quando souber?
— Não vou começar uma briga. Prometo.
A sra. Fuller soltou aquele suspiro triste e ele sentiu um aperto no peito, sabendo que a estava decepcionando novamente.
— Precisamos acionar o seguro do carro. Tenho certeza de que o conserto está coberto.
— Tudo bem. Vou dar um jeito. — Não importava que fosse importante para ele.
— Você não deveria resolver isso sozinho. Vou avisar Tony e você e ele podem decidir como solucionar isso.
Droga! Ele deveria ter mentido.
— Onde você conseguiu a câmera? — ela perguntou.
— Numa loja de peças automotivas. Paguei com o meu próprio dinheiro.
A sra. Fuller soltou outro longo suspiro.
— Você tem o nosso cartão de crédito. Poderia ter usado.
Sim, ele tinha e nunca usara. Nunca faria isso. Nunca tirava vantagem dos Fuller nem pedia a eles mais do que precisava.
— Já que está acordado, venha tomar café da manhã comigo. Estou fazendo ovos com torradas.
Ele queria recusar, mas sabia que ela ficaria chateada.
— Está bem.
— Fica pronto em cinco minutos — disse ela.
Ele instalou a câmera em três minutos e entrou.
— O sr. Fuller não acordou ainda? — perguntou Cash.
— Ele só tem paciente às nove, por isso está dormindo — disse ela.
— Você quer suco? — Cash perguntou.
— Por favor.
Quando ele se aproximou do balcão, viu algo ali, ao lado da bolsa da sra. Fuller. Sua respiração ficou presa.
— O que você está fazendo com isso? — Ele olhou para a foto de Emily com a progressão da idade.
— Alguém pegou a que estava no Walmart. Eu imprimi outra.
Cash olhou para a sra. Fuller enquanto ela fritava os ovos.
— Não fale nada. Tony já disse. — Ela tirou a frigideira do fogão. — Sei que as chances de encontrá-la são praticamente nulas. Sei que a foto que aquele homem me mostrou é provavelmente uma farsa. Mas que mal faz afixar esta naquele quadro?
Ela cruzou os braços.
— Adoraria saber quem a tirou de lá.
A culpa apertou o peito de Cash.
A sra. Fuller tirou a torrada da torradeira e a colocou num prato.
— Será que acharam que ela se parecia com alguém? Não consigo parar de pensar. E se for a pessoa que a levou? Todos pensam que ela está morta. Eu entendo. — Ela colocou a torrada na mesa. — Mas e se não estiver? — A sra. Fuller olhou para ele. — Eu não estou obcecada com isso. Eu só.... Que mal faria deixar uma foto naquele quadro?
Cash viu a dor nos olhos dela e se perguntou se ela e o sr. Fuller teriam discutido sobre isso. Cash os ouvira brigando depois que foram enganados. O marido queria que ela esquecesse. Ela o acusara de esquecer a filha.
— Sinto muito.
A sra. Fuller franziu as sobrancelhas.
— Eu sei. Não faça tempestade em corpo d’água, assim como Tony. Estou bem.
Ela não estava bem, pensou Cash. Tinha perdido a filha. Por que, depois de quinze anos, sua mãe adotiva ainda ansiava pela filha, enquanto a mãe dele tinha acordado uma manhã e ido embora?
Cash ouviu as palavras do pai: Ela não estava nem aí pra você.
O alarme toca e eu tropeço a caminho do banheiro, ainda meio dormindo. As luzes estão acesas na sala de estar. O aroma de café perfuma o ar. Eu diminuo os passos para espiar a minha mãe, sem a bandana, sentada no sofá. Está usando o roupão muito grande para ela e folheia um álbum de fotos. Ela vira uma página. Algo na lentidão do gesto demonstra o humor em que ela está.
E não é bom.
Esperando que eu esteja errada, vou fazer xixi. Então saio do banheiro e entro na sala de estar, imprimindo de propósito mais alegria à minha voz.
— Bom dia!
Ela ergue os olhos. Eu desanimo ao ver as lágrimas nos olhos dela. Espero que o e-mail do seguro-saúde com a lista de terapeutas chegue hoje.
Ao me aproximar, sinto como se estivesse entrando numa bolha de tristeza. Meu olhar se desvia para o álbum. Espero ver uma foto do meu pai, mesmo achando que eu tenha confiscado e escondido todas as fotos dele quando a encontrei arrancando-as do álbum e rasgando-as. Mas não é a foto do papai que ela está olhando.
É da minha avó, quando era mais nova. Eu me lembro dela.
Minha mãe enxuga uma lágrima da bochecha.
— Sonhei com ela.
Quando me sento ao lado da minha mãe, o sofá solta um assovio. Contemplo a imagem de uma mulher de cabelos castanho-claros, olhos verde-claros e um sorriso radiante. Pela primeira vez, percebo quanto minha mãe se parece com ela. No entanto, não a vejo abrir um sorriso tão grande faz muito tempo.
Ela vira a página. Há uma foto dos meus avós. Minha mãe era filha única e nasceu quando eles já tinham certa idade. O pai dela morreu logo depois que fui adotada.
Vovó morreu quando eu tinha 7 anos. Ela sempre vinha ficar conosco no Natal e nas férias de verão. Naquela época, minha mãe trabalhava em período integral no hospital e minha avó ficava cuidando de mim. Lembro-me dela sempre comendo e me oferecendo tangerinas; ela até cheirava a tangerina. Sempre lia para mim à noite e seus abraços eram bem apertados. Ela me chamava de Mosquitinho. Eu odiava insetos, mas sabia que era um apelido carinhoso.
Também me lembro de acordar uma manhã e encontrar minha mãe chorando na cozinha. Meu pai estava abraçado a ela. Ele então se afastou de minha mãe e me puxou para o lado e explicou que vovó tinha ido para o céu, por isso minha mãe estava triste. Eu me lembro de chorar naquele dia também. Eu amava minha avó. Iria sentir falta dos abraços de tangerina e das caras engraçadas que ela fazia quando lia para mim.
Agora, depois que quase perdi minha mãe, quero chorar de novo — mas pela minha mãe desta vez. Posso imaginar muito bem como é perder um pai ou uma mãe.
— Foi um sonho bom? — pergunto.
— Sim. Estávamos cozinhando. Descascando batatas e rindo. Eu ainda sinto falta dela.
— Aposto que sente. — Meu coração fica apertado. Eu toco a cabeça dela.
— Ei, está nascendo cabelo! Cabelo de verdade, não só uma penugem.
— Sim, eu também notei. — Ela sorri, mas seus olhos parecem cansados.
— A que horas você acordou?
— Estou acordada desde as três da manhã.
— Volte para a cama — eu digo.
— Não. Preciso me preparar emocionalmente para a minha entrevista.
— Ah, claro. — Aperto a mão dela. — Boa sorte.
— Minha entrevista é só às quatro e meia. Te vejo antes de sair. Vou precisar que você me lembre de que não tenho com que me preocupar.
Não, não vai dar! Vou me encontrar com Cash. As palavras estão na ponta da língua, mas não consigo empurrá-las para fora.
— Claro.
Droga. Droga. Droga. Estou murmurando baixinho vinte minutos depois, enquanto passo um pouco de brilho nos lábios. Por que não consigo apenas dizer boa sorte para ela agora? Minha mãe precisa viver a vida dela e, até que faça isso, vai ser difícil eu conseguir viver a minha. O pensamento de ir para a faculdade parece impossível. Vejo a imagem na minha cabeça: eu envelhecendo ao lado da minha mãe.
Olho para o meu rosto no espelho do banheiro e me pergunto se depressão é algo contagioso.
A verdade é que eu provavelmente estava deprimida antes do início das aulas. Mas ter um lugar para onde ir todo dia e talvez a emoção de encontrar Cash e, quem sabe, até me tornar a melhor amiga de Lindsey fizeram minha vida parecer mais divertida. Melhor. Menos amarga.
Isso me dá a esperança de que minha mãe sinta o mesmo com relação ao trabalho dela. Com o novo emprego e a terapia, talvez eu consiga minha mãe de volta.
Eu ouço Docinho choramingando na porta do banheiro. Abro e ele está ali, com a guia na boca.
— Desculpa, amigão. Tenho que ir para a escola. Talvez esta tarde.
Então percebo que, embora eu não consiga encontrar Cash logo após a escola, a entrevista da minha mãe vai durar tempo suficiente para eu vê-lo enquanto ela estiver fora.
— Você gostou de Cash, não gostou? Tudo bem se ele for conosco no nosso passeio, certo? — Docinho abana o rabo. Ah, eu podia ter esperança, no final das contas.
Era cedo quando Cash chegou à casa de Chloe. Ela tinha pedido que ele chegasse às quatro e meia, então ele estacionou quatro casas abaixo e esperou. Ele estava uma pilha de nervos e seus ombros estavam, rígidos.
Ele tocou no bolso da frente, onde estava a foto com a progressão da idade.
Como ele iria explicar aquilo? Chloe ficaria chateada? Será que o fato de descobrir sobre a foto a levaria a desvendar todas as outras mentiras dele? O pneu? O arquivo da escola? Cash continuava dizendo a si mesmo que na hora decidiria o que fazer. Mas não estava a fim de improvisar.
Precisando de algo com que se ocupar, começou a excluir alguns vídeos gravados do cartão de memória da câmera do carro. Não tinha conseguido nada ainda. Mas podia demorar um pouco até que os agressores ficassem decepcionados pela falta de reação dele e tentassem novamente. Isso é o que eles queriam. Uma reação. Paul queria que ele começasse uma briga. Então, ele poderia dizer: Veja, Cash começou essa briga e a anterior também.
Cash não ia dar a Paul o que ele queria. Na verdade, hoje ele havia se desviado do seu caminho habitual só para passar ao lado de Paul e seus amigos, e sorrira o tempo todo.
Ele sabia que isso irritava Paul.
Paciência é a chave. Espere as pessoas fazerem alguma coisa. Elas vão fazer alguma besteira. Sempre fazem.
De onde estava estacionado, ele viu Chloe andando com a mãe até o carro. Antes de a mãe entrar, Chloe a abraçou. Ele lembrou que a mãe dela tinha uma entrevista de emprego naquele dia.
A cena lhe pareceu estranha. Como se Chloe fosse a mãe, não a filha.
Mais uma razão para Cash se preocupar com a história toda de Emily. O tiro poderia sair pela culatra. A primeira reação de Chloe poderia ser defender a mãe. Não, ele não acusaria os pais dela de serem os sequestradores, mas isso estava implícito.
Seus instintos lhe diziam para adiar a revelação, mas haveria um momento melhor para contar tudo a ela?
Chloe observou a mãe ir embora. Quando ela se virou para voltar para dentro de casa, seu olhar se desviou para a rua. Ela colocou a mão na testa para bloquear o sol e olhou na direção do carro dele. Droga. Ela o viu.
Cash ligou o motor e parou na frente da casa de Chloe.
Sentindo-se culpado por espioná-la, ele saiu do carro com a cabeça baixa, ensaiando o que dizer.
— Eu cheguei cedo e não quis incomodá-la.
— Você não precisava esperar no carro. — Ela não parecia chateada. Cash percebeu que havia reconquistado a confiança dela. E agora estava prestes a destruir essa confiança.
Um sorriso iluminou o rosto dela. Uma brisa agitou seus cabelos. Era o clima perfeito para ir ao parque.
— Entre — Chloe disse. — Vou pegar Docinho.
Ele a seguiu para dentro. Ela se virou e olhou para ele. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos desde que tinham se beijado. Será que ela esperava que ele a beijasse agora? Ele queria. Tinha pensado tanto naqueles beijos... A lembrança estava tatuada em sua mente. Mas não parecia certo beijá-la novamente enquanto ele estava mantendo aquele grande segredo.
Ela chamou o cachorro. Um latido veio do quintal e ela deixou o cão entrar.
— Quer ir passear, amigão?
Ela pegou a guia e a prendeu à coleira do cachorro, então parou.
— Vou correr até lá em cima e pegar um cobertor para a gente se sentar.
Enquanto Chloe disparava para o quarto, ele foi dar uma olhada nas fotos de família, na mesa ao lado do sofá. Encontrou aquela com uma Chloe pequena segurando o gato. Ele percebeu outra coincidência. Tanto Chloe quanto Emily estavam com um vestido cor-de-rosa. Ele pegou o celular no bolso para tirar uma foto, mas ouviu passos e guardou o aparelho.
Um gato tigrado amarelo a seguia. Ele olhou para o animal se esfregando nos tornozelos dela. Os dois Félix eram idênticos. Seria por isso que a jovem Chloe tinha dado a eles o mesmo nome?
— Félix? — ele perguntou.
— Sim. Ele é um amor. — Ela largou o cobertor numa cadeira próxima e agachou-se para acariciar o felino. A camiseta que ela usava tinha um decote que lhe dava uma visão de parte dos seios. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.
— Félix, este é Cash — apresentou ela.
Chloe se levantou e ele mal conseguiu desviar os olhos para o gato. Ele pegou o cobertor e, enquanto saíam da casa, ela se inclinou para mais perto dele. O choque de prazer e de dor acertou-o em cheio. Apesar do desconforto gerado pela culpa, ele adorava tocá-la.
Quando chegaram ao parque, Docinho começou a saltitar. Cash pegou a guia e Chloe ficou com o cobertor. O parque estava quase vazio. Eles encontraram um local sob a sombra de uma árvore e ela estendeu o cobertor na grama.
— Posso tirar a guia dele? — Cash perguntou.
— Sim. Ele fica por perto.
Cash se sentou ao lado de Chloe e soltou o cachorro, que congelou no lugar como se estivesse hipnotizado pela bola nas mãos dela.
Ela jogou a bola e Docinho correu. Chloe sorriu.
— Já vou pedindo desculpas. Ele não vai dar sossego por causa dessa bola. Tem obsessão por ela.
— Tudo bem — disse Cash. — Estou começando a ter obsessão por Chloe, então posso entender.
Ela riu.
— Acho que estou começando a ter obsessão por Cash também.
— Ótimo! — ele disse.
Sorrindo, ela olhou para o céu.
— É um belo dia.
Cash seguiu o olhar dela até o céu azul salpicado de nuvens brancas e fofas.
— Sim.
Chloe se recostou no cobertor. O decote dela subiu o suficiente para que ele pudesse olhá-la sem ficar babando. Os cabelos longos e castanhos estavam espalhados ao redor dos ombros e o sol suave do entardecer iluminava o rosto dela.
Ele queria beijá-la e deixar a conversa para depois.
Os olhos castanhos dela encontraram os dele.
— Você ficava tentando encontrar figuras nas nuvens, quando criança?
— Encontrar o quê? — Cash perguntou, estava tão ocupado olhando para ela que não prestara atenção ao que Chloe dissera.
— Você sabe, tipo elefantes ou dragões. No céu. Agora mesmo vejo um cavalo.
Ela apontou para cima.
Ele tentou seguir o dedo dela.
— Tudo o que vejo são nuvens.
Chloe riu.
— Use a imaginação. Não vê a cabeça, as patas e a cauda atrás?
Ele tentou.
— Lamento, mas...
— Minha mãe e eu costumávamos ir para o quintal e ficar olhando o céu por horas, tentando encontrar coisas. Ela sempre levava um saquinho de Skittles. E, sempre que uma de nós encontrava algo, ganhávamos um vermelho. — Ela sorriu.
— Por que vermelho?
— Porque os vermelhos são os melhores. São doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Cash forçou um sorriso e novamente tentou ligar alguém que procurava formas em nuvens na companhia da filha com a imagem de uma sequestradora. Algo parecia errado.
— Você se lembra dos seus pais? — ela perguntou.
A pergunta o pegou desprevenido. Docinho veio correndo com a bola na boca. Cash pegou a bola, grato pela pequena interrupção, e jogou-a novamente.
— Da minha mãe, não. Do meu pai, sim.
— Como ele era?
Ele voltou a olhar para o céu. Um cretino.
— Acho que vi o cavalo.
Quando Cash olhou para Chloe, ela estava franzindo a testa.
— Você faz muito isso.
— O quê?
— Mudar de assunto. — Ela mordeu o lábio. — Você não gosta de falar sobre eles, não é?
— Na verdade, não.
Ele respirou fundo.
— Chloe, eu preciso...
— Eu sinto que você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre você.
— Eu não sei tudo sobre você — disse ele, tentando escapar da conversa.
— Você sabe que meu pai é um idiota que vive me enganando. Você sabe que meu namorado se chamava Alex e que minha mãe teve câncer.
— Que tipo de câncer? — Cash perguntou e, para seu crédito, ele queria mesmo saber. Tinha ouvido a sra. Fuller falar sobre cânceres que eram mais difíceis de curar.
Chloe sentou-se.
— Câncer de mama. — Ela puxou um joelho e o abraçou. Dava para perceber que era difícil para ela falar sobre a doença da mãe.
— Mas ela está livre do câncer agora, certo?
— Sim. Foi diagnosticado cedo. Minha avó teve câncer de mama, então minha mãe fazia mamografias anuais. Ela estava com medo de ter o gene do câncer.
— Gene do câncer? — Cash perguntou.
— Há um gene de câncer de mama hereditário. Ela fez o teste e foi comprovado que não o tem.
— Tenho certeza de que você ficou aliviada — ele disse, sem saber o que dizer.
— Bem, como ela não é minha mãe biológica, isso não me afetou.
As palavras de Chloe ficaram dando voltas na cabeça dele. Não é minha mãe biológica. Docinho veio correndo e deixou cair a bola ao lado de Cash. Ele o ignorou.
— Ela... não é sua mãe de verdade?
— Não. Eu sou adotada. — Ela puxou a outra perna para cima. — E lá vou eu de novo, falar de mim a você. Já que você conhece Alex, conte-me sobre sua ex-namorada.
Chloe é adotada? Isso significa...?
— Adotada?
— Não mude de assunto. Conte-me sobre sua antiga namorada.
Cash teve que se concentrar para responder.
— Eu namorei uma garota por alguns meses quando tinha 16 anos.
— Da escola particular?
— Não, ela morava em Langly.
— Como você a conheceu?
— Os pais dela têm uma casa no lago ao lado da casa de veraneio dos Fuller, mas...
Não é minha mãe biológica.
— O que aconteceu? — Chloe perguntou.
— Ela conheceu outra pessoa.
Ele precisava dizer a Chloe agora.
Antes que Cash pudesse dizer mais uma palavra, ela continuou.
— Você gostava dela?
— Não. Um pouco. Só namoramos por uns dois meses.
— E essa foi a única namorada que você teve? — O tom de voz de Chloe dizia que ela não iria desistir.
— Neste verão, saí com algumas universitárias.
— Garotas mais velhas? — As sobrancelhas dela se levantaram, como se aquilo fosse uma coisa ruim.
— Apenas um ano ou um pouco mais do que isso.
— Você ainda está saindo com elas?
— Não. Chloe, eu preciso...
— Há quanto tempo você mora com os Fuller?
Docinho bateu com a bola na perna dele. Cash a jogou novamente.
— Faz três anos.
Ela descansou a mão no braço dele. Seu toque enviou uma faísca de dor direto para o peito de Cash. Mas então, com a mesma rapidez, a centelha lhe deu prazer.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele colocou um dedo nos lábios dela.
— Pare de fazer perguntas. — O tom foi mais agudo do que ele pretendia. — Estou tentando te dizer uma coisa.
Ela fez uma careta.
— Ok.
Ótimo. Cash já a irritara e nem tinha começado a falar ainda. Ele passou a mão pelos cabelos.
— Eu só vou mostrar a você.
— Me mostrar o quê? — Ela inclinou a cabeça para o lado como um filhote de cachorro curioso.
Ele tirou do bolso a foto com a progressão da idade e entregou a Chloe. Ela desdobrou a foto. Examinou-a e depois olhou para ele.
— O que é isso?
Cash não viu o reconhecimento que ele esperava nos olhos dela.
O coração dele acelerou no peito.
— É uma foto de Emily Fuller com a idade que ela teria hoje.
— Emily Fuller, o mesmo sobrenome dos seus pais adotivos?
Cash assentiu.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Eu ainda não entendi por que você está me mostrando isso.
— É você. Não vê?
Chloe olhou para a foto novamente, os olhos arregalados.
— Não sou eu.
— Parece você.
— Não. Quero dizer, talvez um pouco, mas não... parece de fato.
Ela examinou a foto novamente.
Cash viu um vinco aparecer entre as sobrancelhas dela. Chloe estaria se reconhecendo agora?
Agora ela parecia preocupada.
— Os Fuller... deram o bebê deles para adoção?
12
— Não — diz Cash.
Estou tentando entender o que ele está dizendo. Olho para a foto. Não, não é uma foto, mas um desenho. Ou um desenho feito no computador. Um daqueles mostrados nas séries policiais da TV. Eu vejo uma semelhança, mas não é tão grande assim. Ou será que é?
— Então, não sou eu. Fui adotada.
Ele me olha como se pedisse desculpas.
— Ela foi sequestrada.
As palavras de Cash ecoam nos meus ouvidos e minha resposta vem imediatamente.
— Eu não fui.
— Quantos anos você tinha quando foi adotada?
— Espere. Você acha que...? Isso é loucura.
— Eu sei que é, mas apenas me responda. Quantos anos você tinha?
— Quase 3.
Os olhos dele se apertam como se isso provasse alguma coisa.
— Você se lembra dos seus pais de verdade?
— Não. Mas você não está escutando. Eu fui adotada.
— Chloe, Emily Fuller desapareceu dois meses antes de fazer 3 anos de idade.
Um sentimento desconfortável brota no meu peito.
— Eu fui adotada. Não sequestrada.
— Tem mais uma coisa. — Ele pega o celular, encontra algo e passa o aparelho para mim.
— Veja.
Com uma mão estou segurando a foto, com a outra, o celular dele. De repente, as duas coisas parecem pesadas.
Eu quase não olho para a tela, mas então crio coragem. É uma foto emoldurada minha quando criança, com Félix no colo.
— Por que você tirou uma foto disso?
— Chloe, essa é Emily Fuller. Tirei essa foto na casa dos Fuller.
— Não, esta é a foto que está na minha casa.
Eu olho para a imagem e percebo que estou enganada. Na foto que há em casa, estou de pé ao lado de um balanço.
— Ok, eu pareço com ela, mas isso não...
— O nome do gato é Félix.
— Hã?
— Você disse que deu ao seu gato o nome de Félix. O gato dos Fuller se chama Félix.
O ar fica preso no meu peito, uma grande bolha que pressiona meus órgãos.
— Muitos gatos se chamam Félix. Havia um desenho animado...
— Seus pais se mudaram para longe logo após dizerem que adotaram você.
Dizerem? A bolha torna-se dolorosa.
— Você acha que meus pais me sequestraram? Você está maluco.
Olho a foto novamente e meu polegar acidentalmente passa o dedo na tela. A imagem muda. Eu pisco e olho. É um formulário. Mas tem o meu nome.
— O que é isso? — Eu mostro para ele o celular.
Culpa transparece nos olhos de Cash.
— Seus arquivos escolares. Eu precisava descobrir se...
— Descobrir o quê? — Minha coluna vertebral se enrijece.
— Achei que você poderia estar tentando enganar os Fuller.
— Enganá-los? O que você quer dizer?
— Se você parecia com Emily, então talvez estivesse tentando extorquir dinheiro deles.
Eu inspiro uma lufada de ar, aumentando a bolha. Balanço a cabeça. Nada faz sentido. Fico sentada ali, sentindo o sol na minha pele e a acusação de Cash na minha cabeça.
— Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso? — Então me lembro do que Cash me disse naquele dia na loja de conveniência. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
— As pessoas fazem coisas assim. — A expressão dele é quase de irritação.
Mas ele não tem o direito de ficar com raiva. Eu tenho.
— Então é disso — gesticulo indicando o espaço entre nós — que se trata o nosso relacionamento? — Olho para a foto do formulário. Tem o meu endereço nele. — Você não estava dirigindo pelo meu bairro procurando o meu carro aquele dia. Você sabia onde eu morava.
Cash não responde. Não precisa. A expressão dele deixa transparecer a verdade.
— Você... Foi você quem murchou o meu pneu!
— Eu precisava me aproximar de você para descobrir.
— Nada disso é real! — A raiva cresce por dentro, eu não consigo me conter. Jogo o celular para ele e me levanto. — Você é um sem-noção.
Cash também se levanta.
Cubro os olhos com as mãos, vejo tudo escuro, depois lampejos de luz.
— Ah, Deus. Eu te beijei. Tiro as mãos do rosto e olho para ele. — Você... Você nem gosta de mim.
— Isso não é verdade. Eu te beijei também e depois te beijei mais quatro vezes. Eu não pretendia... me apaixonar por você, mas me apaixonei.
Pego a guia de Docinho.
— Vou para casa.
— Chloe, não. Vamos conversar.
— Não. — Eu levanto a mão. Chamo Docinho. Quando ele vem, coloco a guia nele.
Dou um passo. Cash pega meu braço.
— Vou te levar.
Eu puxo o braço.
— Não. Vou andando. — Preciso ficar sozinha. Eu preciso... — Eu não sei do que preciso, exceto que tenho que ficar longe dele. Longe das acusações absurdas.
Eu o ouço chamar meu nome, mas continuo colocando um pé na frente do outro. Eu fui adotada. Não... Não. Não é verdade. Não pode ser. Eu não acredito. Então me recordo da minha única lembrança: eu, sentada num sofá, olhando para um tapete sujo. Eu me lembro de me sentir tão perdida. Tão abandonada. Tão assustada.
Continuo andando. Meus joelhos estão tremendo, ou será que é o chão embaixo de mim que está estremecendo? Todo o meu mundo está estremecendo. Isso não pode ser verdade.
Eu caminho rápido. Docinho continua andando ao meu lado. O ruído de suas patas batendo na calçada enche minha cabeça. Cada vez que ouço um carro se aproximando, fico com medo de que seja Cash.
Meu celular toca. Eu ignoro. Ao me aproximar de casa, vejo o carro de Jamie estacionado em frente à casa de Lindsey. As duas estão nos degraus da varanda de Lindsey. Eu não quero falar com elas.
Sei que ainda estou segurando a foto que Cash me mostrou. Eu amasso a foto, vou jogá-la fora, mas mudo de ideia e a guardo no bolso. Saio da calçada quando estou em frente à minha casa.
— Chloe? — Alguém me chama da casa ao lado.
Eu ignoro e continuo andando. Procuro no meu bolso a chave da porta, ando até a varanda e rezo para que elas desistam.
Elas não desistem.
Eu as ouço subindo os degraus atrás de mim. Por favor, vão embora. Eu percebo que estou chorando.
— O que foi? — É a voz de Lindsey, mas ouço os passos de outra pessoa, então sei que Jamie está com ela. Jamie nem gosta de mim. Eu não quero que ela me veja chorando como um bebê.
— Eu não posso falar agora. — Abro a porta, coloco Docinho para dentro, fecho a porta na cara delas e corro para o meu quarto. Eu me jogo na cama e abraço um travesseiro com força suficiente para fazê-lo explodir. Félix pula no colchão, tentando se aconchegar a mim.
Eu não acredito, digo a mim mesma. Então, por que estou tão arrasada?
Digo a mim mesma que é porque fiz papel de idiota quando beijei Cash.
Meu celular toca. Ignoro.
Cinco minutos depois, ele toca novamente.
E de novo.
E de novo.
Arranco-o do bolso para desligá-lo, mas vejo que há uma mensagem da minha mãe.
Ah, ótimo! Verifico para ver o que ela diz, sabendo que não posso estar chorando quando ela chegar em casa.
Consegui o emprego! Preenchendo a papelada. Comprando comida chinesa para o jantar. Vejo você em uma hora.
Ouço uma batida na porta da frente. Merda! É Cash?
Olho pela minha janela, onde posso ver a rua. O carro dele não está em frente, mas não consigo ver quem está na varanda.
Meu celular apita novamente. É Lindsey.
Preocupada. Você está bem?
Eu mando uma mensagem de volta.
É você quem está na porta?
Sim.
Sozinha?
Simmm.
Eu enxugo o rosto, me obrigo a me levantar e vou até a porta da frente.
— O que há de errado? — Lindsey pergunta assim que eu abro a porta. Ela não aguarda um convite; simplesmente entra.
— É uma maluquice — eu digo.
— O que é uma maluquice? Cash fez alguma coisa?
Pego a foto amassada do bolso e a aliso para desamassá-la.
— Essa garota não se parece comigo, não é?
Lindsey pega o papel amassado, olha para ele e depois olha para mim.
— Parece, sim. O que é isso?
Meu peito aperta. Vou para a sala e me largo no sofá. Meu corpo parece mais pesado ainda.
— Você deveria dizer que não.
Ela se senta ao meu lado.
— Desculpa. Você deveria ter me dito isso antes de perguntar.
Eu respiro fundo. Ainda quero chorar, mas me seguro. Olho para Lindsey.
— Você não pode contar a ninguém.
— Eu não vou contar.
— Cash pensa... Ele acha que eu sou a filha desaparecida dos pais adotivos dele.
Ela olha para mim como se eu não estivesse falando coisa com coisa, o que me dá um pouco de esperança. Porque nada daquilo faz sentido. Não pode ser verdade.
— O quê?
— Ela foi sequestrada.
Os olhos de Lindsey se arregalam.
— Ele acha que você foi sequestrada?
Lindsey faz um som de bufar que é meio risada, meio descrença.
— Sim. É loucura. Eu acho que ele nem gosta de mim. Cash pensou que eu estava tentando enganar os pais adotivos dele, tentando extorquir dinheiro deles. Ah, e imagine só! Ele murchou meu pneu.
— O quê? — Lindsey repete. Então ela olha novamente para a foto.
— Ok, parece com você, mas... Isso é loucura.
— Eu sei. Quero dizer, sim, fui adotada, mas...
— Espera aí. — Ela se inclina para mais perto. — Você foi adotada?
— Sim.
Lindsey arregala os olhos.
— Ok, mas quando você foi adotada e quando essa garota desapareceu?
Eu franzo a testa.
— Na mesma época.
Ela olha para a foto novamente.
— Merda. — Quando Lindsey olha para mim, posso ver em seus olhos que ela está começando a acreditar.
— Não pode ser verdade. Meus pais não são sequestradores!
Ela faz uma careta e devolve a foto para mim.
— Você já procurou na internet?
— Procurou o quê?
— O sequestro?
— Não. — Eu me levanto. — Mas agora vou procurar. — Corro para o meu quarto, onde meu laptop está ligado.
— Você sabe o nome da garota? — Lindsey pergunta, me seguindo.
— Sim. — Sento-me na minha escrivaninha e coloco a foto de lado. Meu celular toca. Provavelmente é Cash. Eu o ignoro e digito na barra de pesquisa do Google: criança desaparecida Emily Fuller. Ao digitar o nome, sinto calafrios, como se isso significasse algo para mim. Mas não pode significar nada. Então ouço o nome na minha cabeça. Emily. Emily. Emily. Há uma familiaridade nele que eu odeio, mas não compreendo.
Clico no primeiro link, mas existe, tipo, uma dezena deles. O link se abre. Vejo a foto de uma garotinha. Uma garotinha que se parece muito comigo quando eu era pequena. Eu começo a ler. “Desaparecida em 3 de setembro de 2004.” Minha respiração fica presa na garganta. Eu fui adotada em 4 de setembro.
Lindsey está lendo por cima do meu ombro.
— Você só foi adotada quando tinha 3 anos de idade?
— Quase 3 — respondo.
— Isso é muito estranho... — A voz dela ecoa.
Eu olho para Lindsey.
— Não sou eu. Não pode ser.
Meu celular toca novamente.
— Merda. — Eu o pego, vejo o nome de Cash e desligo.
Nesse momento, a campainha toca.
Lindsey se vira como se planejasse atender.
Eu agarro o braço dela.
— Não. Não quero vê-lo.
— Cash? — ela pergunta, e vai até a janela.
— Não vejo jipe nenhum lá fora. É uma van com o logotipo de uma floricultura.
A campainha toca novamente. Vou até a porta da frente e abro. Um homem está ali, com flores nas mãos.
— Chloe Holden? — ele pergunta.
É uma dessas perguntas que eu não deveria ter que pensar para responder, mas agora penso. Na verdade, pensei muito nisso durante toda a minha vida. Em quem realmente sou. Em quem meus pais realmente são.
Em que eu poderia ter feito de errado, tão pequena, para que meus pais me dessem para adoção.
De repente, sei quem enviou as flores. E começo a chorar novamente.
Uma hora depois, minha mãe está falando sem parar. Estamos sentadas na cozinha. Eu dou uma mordida no frango xadrez que ela trouxe para casa.
— Eles me adoraram! — Ela está animada. Feliz. Por isso escondi as flores no meu quarto. Eu quase as joguei fora. Eu já tinha tirado o buquê do vaso e segurado as flores acima da lata de lixo, mas não consegui.
Ele é meu pai. E... ele não é meu sequestrador. Essa coisa toda é um erro.
Então por que não conto à minha mãe?
Abro a boca para contar, mas nada sai. Porque isso poderia perturbá-la? Porque talvez eu não esteja convencida de que não é nada? As datas. O gato chamado Félix. A foto. Droga.
— Ele me disse que, por ter tido câncer, eu poderia oferecer mais apoio aos pacientes.
Estou tentando ouvir, mas ela já está se repetindo. Estou olhando para cima, depois para baixo, com o garfo na mão, enquanto persigo uma castanha-de-caju pelo prato.
— É o trabalho perfeito para você. — Pego a castanha e coloco na boca. Mastigo. Engulo. Não consigo sentir o gosto.
Minha mãe deixa cair o garfo.
— Não coma demais. Comprei sorvete de chocolate.
— Hmm... — Empurro meu prato e falsifico outro sorriso.
— Eu só começo quando a outra enfermeira sair. O que pode demorar duas ou três semanas. Eu gostaria que fosse agora. Ela estende o braço para pedir o meu prato. — Eu já contei que comprei umas bebidas que servem como suplemento alimentar? Eu me pesei esta manhã. Perdi mais alguns gramas.
Sim, porque você não come quando está chateada e você está quase sempre chateada.
— Você deveria beber, tipo, três por dia.
— Duas.
Olho para ela e tenho medo de perguntar, mas preciso. Porque, mesmo que ela esteja feliz agora, tenho medo de que algo pequeno, como o vaso de flores escondido no meu quarto, possa mudar isso.
— Você já recebeu os nomes dos terapeutas?
— Sim. E marquei uma consulta também.
Estou chocada.
— Sério?
— Sim. E é amanhã. — Ela aponta o garfo para mim. — Alguém cancelou a consulta.
— Ótimo!
Ela olha para mim, toda maternal.
— Você está se sentindo bem?
— Sim.
— Seus olhos parecem inchados.
Meu estômago aperta.
— Estou bem. Levei Docinho para passear. Eu acho que é alergia.
Ela continua a olhar.
— Seu pai ligou de novo?
— Não. — Merda. Ela sabe que andei chorando. E eu posso ver que a felicidade escorre dos olhos dela à simples menção do meu pai.
Ela continua me olhando.
— Tem certeza?
— Eu não tenho falado com meu pai. — Essa confissão me provoca um pouco de culpa. Eu deveria ter ligado para ele depois que as flores chegaram.
Não liguei.
— O que a deixou chateada?
— Nada. Estou bem, mãe.
— O que o deixou tão chateado?
Cash olhou para a sra. Fuller, parada à porta da cozinha. Quinta-feira era o dia de o sr. Fuller acordar mais tarde, então estavam apenas os dois acordados. E como ele não quisera jantar na noite anterior, ela tinha certeza de que havia algo errado. E havia mesmo.
Cash queria ir para o quarto e terminar a lição de casa, mas eles tinham uma regra tácita: se ela estivesse em casa, ele só tinha permissão para ir para o quarto depois das oito. Mesmo se Cash tivesse dever de casa, esperavam que ele o fizesse na cozinha.
A sra. Fuller achava que era isso que havia de errado com os adolescentes de hoje em dia. Os filhos passavam muito tempo no quarto e não conviviam o suficiente com a família.
Não importava que ela não fosse da família de Cash.
Era uma regra idiota.
— Não estou chateado. Eu já disse a você que comi um hambúrguer.
Ela fez uma careta.
— Isso explica por que você não jantou. Mas por que parece tão desanimado?
Porque magoei Chloe. Cash deveria ter pensado melhor antes de falar com ela. Ele deveria ter...
— É a lição de casa. Eu odeio resolver problemas de matemática.
A sra. Fuller se sentou.
— Eu posso ajudar. Não sou tão boa quanto Tony, mas...
— Não. — Ele olhou para o livro.
Cash a sentiu olhando para ele.
— Algo está aborrecendo você, Cash.
— Eu só preciso terminar isso.
Ela estendeu a mão e ergueu o queixo dele e o olhou direto nos olhos. O toque dela doía, como o de Chloe havia doído aquele dia mais cedo.
— Eu me preocupo com você. — Ela o olhou como se estivesse tentando ler a alma dele.
Cash não queria ninguém vendo o que havia na sua alma.
— Pare de tentar me psicanalisar.
Ela deixou cair a mão.
— Na outra noite, quando você veio à sala de jantar, eu estava sofrendo e você me ajudou. Não acho que me lembrei de dizer obrigada.
— Não há de quê — Cash disse, sem saber por que ela estava fazendo aquilo.
— Eu quero fazer o mesmo por você. — O suspiro dela encheu o cômodo. — Mas você não nos conta os seus problemas. Você nos afasta. Eu quero fazer as coisas direito.
Você não pode fazer direito.
— Eu já disse que estou bem. — Um dia ele teria que contar aos Fuller sobre toda aquela história de Chloe/Emily, mas não enquanto Chloe estivesse chateada. E não até que Cash tivesse certeza absoluta de que estava certo. No caminho para casa, ele tinha pensado nas palavras de Chloe. Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso?
O tipo dele. Cash fez isso. Ele se lembrou da dor profunda que viu nos olhos da mulher quando ele mentiu sobre ser o filho dela.
Cash tinha que ter certeza de que estava certo sobre Chloe ser Emily antes de contar aos Fuller.
Ele tinha que acabar com aquela raiva de Chloe para que pudessem descobrir a verdade. Mas como, se ela não estava nem mesmo respondendo às suas mensagens?
— Você não está bem — disse a sra. Fuller. — É como se achasse que não nos importamos. Nós te amamos.
Ele deixou cair o lápis.
— Pare. — A mesma frustração que Cash tinha sentido com Chloe brotou dentro dele.
— Parar o quê?
— Isso que está fazendo. Me desculpe, não posso ser o que você quer que eu seja. — Ele fechou o livro com força.
Os ombros da sra. Fuller afundaram.
— O que você acha que eu quero que você seja, Cash?
A resposta saiu sem que ele pudesse detê-la.
— Seu filho! Eu não sou seu filho!
A dor ficou estampada na expressão dela e ele quis dar um chute em si mesmo.
Cash olhou para o relógio do forno.
— São cinco para as oito. Posso ir para o meu quarto?
Ela assentiu.
Ele saiu da cozinha, mas não rápido o suficiente para não ouvir o suspiro de decepção da mãe adotiva.
Droga! Ele nunca fazia nada certo.
13
Eu estaciono na escola na manhã seguinte. Lindsey falou o caminho todo até aqui. Fazendo perguntas que não sei responder. Mas não fico irritada, porque são perguntas que eu preciso fazer a mim mesma. Emily Fuller tinha alguma marca de nascença? Havia algum suspeito? Havia descrições dos suspeitos?
Eu não voltei ao computador ontem à noite. Não consegui. Em vez disso, li um livro. Fiquei acordada e li um romance inteiro sobre vampiros e metamorfos, porque a história era muito distante da minha própria realidade. Eu queria ser transportada para longe da minha vida. Porque a minha vida é uma insana caixa de Pandora e, se eu abri-la, tenho medo do que vou encontrar.
Eu acabo de estacionar e olho para os prédios da escola. Estou cansada. Acho que dormi uma hora, talvez. Graças a Deus é sexta-feira. Pego minha bolsa e a mochila e percebo que não vou conseguir enfrentar isso também. Não vou conseguir passar o dia fingindo que está tudo bem. Não vou conseguir enfrentar Cash. Eu não tive nem coragem de ler as mensagens dele ainda.
— É isso, não vou para a escola — deixo escapar.
— Sério? — Lindsey pergunta.
— Quero pesquisar sobre Emily Fuller. — Por que toda vez que digo esse nome, sinto um déjà-vu? Emily. Emily. Emily.
— Eu tenho prova — diz Lindsey —, mas...
— Não — eu digo. — Preciso ficar sozinha. — Fui rude com ela? — Não é nada com você. Eu é que tenho que digerir essa coisa toda. Preciso ler todos aqueles artigos.
— Sua mãe não está em casa? — ela pergunta.
— Eu vou à biblioteca.
Ela parece preocupada.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Eu confirmo com a cabeça.
— Venho buscá-la depois das aulas.
— Não. Vou pedir para Jamie me levar para casa. — Ela me abraça. — Vai ficar tudo bem.
Como?, quero perguntar. Só vai ficar tudo bem se eu descobrir que nada daquilo é verdade. E mesmo assim, não vai ficar assim tão bem. Minha vida está uma bagunça.
O sr. Fuller tinha, por fim, ido falar com Cash sobre o fato de o jipe ter sido riscado. A conversa quase atrasou Cash para a escola. Ele mentiu sobre não saber onde o vandalismo tinha acontecido. O sr. Fuller insistiu em denunciar o estrago ao seguro, mas não estava obrigando Cash a fazer denúncia na escola. No entanto, ele teve que fazer ao pai adotivo a mesma promessa que fizera à mãe. Que, se ele flagrasse algo na câmera, resolveria o problema sem brigas. Manter essa promessa não seria fácil, mas Cash pretendia tentar.
O sr. Fuller não havia mencionado nada sobre o comportamento rude de Cash com a sra. Fuller. A mãe talvez não tivesse contado ao marido. Provavelmente porque temia que o sr. Fuller expulsaria Cash de casa. Será que ela sabia que os dois estariam melhor sem Cash? Ele se sentia um mau caráter por magoá-la. Por que tinha se transformado naquele cretino?
Estresse. Preocupação com Chloe. O fato de estar chateado com o vandalismo que Paul fizera no jipe que os Fuller lhe haviam dado. O jipe que ele não merecia. O jipe que era a única coisa nova e perfeita que ele já tivera na vida.
Cash não via a hora de a primeira aula acabar, pois estava desesperado para ver Chloe. Esperou até Literatura Americana para encontrá-la antes que ela entrasse na segunda aula — na esperança de que ela falasse com ele. Chloe não apareceu.
Antes que o sinal tocasse, ele foi para a ala leste da escola, onde ficava o armário de Lindsey.
— Ei — ele chamou quando a viu.
Surpresa, ela apertou os olhos.
— Oi.
— Você sabe onde Chloe está? — ele perguntou.
Lindsey franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Espero que você não esteja brincando com ela.
Agora era a vez dele de se surpreender.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer! A vida dela já não está fácil. A perda do namorado, o divórcio dos pais e o câncer da mãe, e agora você despeja em cima dela aquela história de ela ter sido sequestrada.
Ele não tinha dito a Chloe para não contar a ninguém, mas ficou chocado ao descobrir que ela havia contado.
— Eu preciso falar com ela. Onde ela está?
— Ela não veio à escola. Disse que precisava pesquisar tudo que pudesse encontrar sobre o sequestro.
— Ela trouxe o laptop? — Cash perguntou.
Lindsey franziu a testa de novo.
— Hã?
— Ela está com o laptop?
— Por quê...?
— A mãe dela provavelmente está em casa, então Chloe não iria querer fazer essa pesquisa lá. Se não está com o laptop, isso significa que está na biblioteca.
A expressão de Lindsey confirmou seu raciocínio.
— Não fui eu que disse. — As palavras dela o perseguiram pelo corredor enquanto Cash desaparecia em meio à multidão.
É como se o silêncio da biblioteca estivesse pesando sobre mim. A cada dois minutos, olho por cima do ombro, com medo de que alguém esteja observando o que estou lendo, vendo as imagens, me vendo. Por razões que não posso entender, estou com medo. E não apenas da verdade. É o tipo de medo que sentimos quando imaginamos um monstro embaixo da cama.
Eu tento afastar isso. Olhando para o computador, não consigo acreditar que existam tantos artigos sobre o sequestro de Emily Fuller.
Mesmo que seja coincidência, não consigo deixar de me perguntar como meus pais não viram as fotos ou as reportagens e não acharam que eu parecia com Emily.
Termino o oitavo artigo. Meu coração está apertado e meus nervos, à flor da pele. Quando respiro, meu coração bate na garganta. Me esforço para não chorar. Clico num vídeo e coloco os fones de ouvido que estão ao lado do computador. Antes de apertar o botão, olho para o rosto de uma mulher na tela. Seus cabelos escuros, olhos azuis e feições me hipnotizam. Eu não quero ver, mas não consigo desviar o olhar. Eu me pareço com ela.
Minha respiração fica presa na garganta. Durante toda a minha vida, tentei não me perguntar como seria a minha mãe biológica. Eu tentei não ficar ressentida, porque tenho uma mãe, uma mãe que me ama. Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe biológica não me amar. De ela simplesmente me entregar para alguma agência de adoção. E nessa única lembrança que tenho de mim mesma, chorando, sei que estou sentindo falta dela.
Eu sempre disse a mim mesma que não importava que ela tivesse desistido de mim, mas o abandono sempre esteve ali, me assombrando, roubando a felicidade do meu coração. Sempre me fazendo me perguntar o que havia de errado comigo.
Mas e se ela não tivesse me dado para adoção? E se, no final das contas, ela me quisesse?
Na minha cabeça, vejo a imagem da minha mãe adotiva, quase careca e magra demais, num roupão cor-de-rosa folgado. Por que sinto como se a estivesse traindo? Um nó se forma na minha garganta. Eu aperto o play.
“Por favor, por favor, não machuquem o meu bebê.” A voz dela soa na minha cabeça como música. É familiar ou minha mente está me iludindo? “Ela é uma boa menina", continua a mulher. “Ela é feliz, meiga e inteligente.” Há tanta dor na voz dessa mulher que ela vaza do computador e penetra a minha pele, o meu peito e se enrodilha como uma bola de elásticos prestes a se desenrolar. “Por favor, não machuquem meu bebê. Por favor, devolvam a minha filha. Eu não consigo nem respirar sem ela.”
Lágrimas escorrem pelas bochechas dela. Lágrimas estão escorrendo pelas minhas bochechas. Eu não me preocupo em enxugá-las. Isso dói. Dói tanto...
Como é possível? Isso é uma loucura. É um absurdo. Tem que ser um engano.
Alguém se senta ao meu lado. O medo me domina. Um grito sobe até a minha garganta. Eu me sobressalto, depois vejo Cash através das lágrimas.
Arranco os fones de ouvido.
— Chloe, por favor, vamos conversar.
Pego minha bolsa e minhas anotações e saio correndo da biblioteca. É apenas Cash, mas o medo paira sobre mim. O monstro embaixo da cama está lá fora.
Calafrios percorrem minha coluna como aranhas.
Escuto passos atrás de mim. É apenas Cash, mas percebo o meu coração batendo na garganta, enquanto ouço a voz dele implorando. Há um zunido nos meus ouvidos. Lágrimas deslizam por minhas bochechas. Um medo infundado, inexplicável, me envolve.
Chego ao meu carro e percebo que tenho que procurar as chaves. Antes que eu possa colocar a mão na bolsa, Cash está parado na minha frente.
— Precisamos conversar!
A bola de elásticos no meu peito começa a se soltar. Um. Dois. Três. Pop, pop, pop. Eles machucam minha pele.
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto.
— Você não estava na escola.
Eu pisco.
— Você foi à minha casa? Se você tiver dito algo sobre isso à minha mãe... — Coloco o dedo no peito dele. — Se você tiver feito isso...!
— Eu não fiz nada.
— Ela já está sofrendo demais. Você não vai contar...
— Não vou. Pode acreditar.
Eu balanço a cabeça.
— Claro, como se você nunca tivesse mentido para mim nem nada.
Cash segura as minhas mãos.
— Você está certa. Eu menti. Meti o pé pelas mãos. Não sabia como dizer a você. Desculpe.
Começo a vasculhar a bolsa, procurando as chaves.
— Mas, Chloe, eu sei que você tem perguntas e eu posso responder muitas delas.
Balanço a cabeça mais uma vez.
— É um equívoco — eu digo e gostaria de acreditar nisso. Gostaria que o nome Emily não fosse tão familiar para mim. Queria que a voz da mulher no vídeo não continuasse ecoando no meu ouvido. Gostaria que esse medo louco desaparecesse. — Tem que ser um equívoco.
— Sei que é difícil. E talvez seja um equívoco. Mas vamos descobrir.
— Como? — pergunto a ele, em um tom de voz muito alto. — O que você quer que eu faça? Vá até a minha mãe e pergunte: “Ei, você me sequestrou?” — Eu fecho as mãos em punhos apertados. — Você não viu como a minha mãe está? Ela não está nem comendo direito, porque está deprimida. Isso a mataria!
Volto a vasculhar minha bolsa.
— Onde estão minhas malditas chaves? — Meu coração está batendo tão rápido que o meu peito vibra.
Vou até o capô do carro e despejo o conteúdo da bolsa em cima dele. Minha carteira, meu celular, pó compacto, um absorvente interno e algumas moedas soltas caem da bolsa e deslizam pelo capô. Eu olho minhas coisas, nada. Não acho minhas chaves. Devo ter deixado na biblioteca.
Pego minha carteira, a única coisa sem a qual não posso viver, e começo a voltar para a biblioteca.
Ele caminha ao meu lado.
— Chloe, por favor. Venha se sentar no meu jipe e vamos conversar. Podemos investigar isso juntos.
Eu o encaro.
— Talvez eu não queira descobrir a verdade.
Os olhos verdes dele se fixam em mim.
— Você está chateada. Está chorando e, se for à biblioteca, vão achar que algo está errado. Venha se sentar no meu jipe. Eu vou encontrar as suas chaves.
Seu tom de voz tranquilizador me contagia. Passo a mão no rosto.
— Ele está logo atrás de você. — Cash enfia a mão no bolso e eu ouço um sinal sonoro quando a porta do jipe se abre. — Entre. Vou encontrar suas chaves, ok?
Eu obedeço. Não sei por que, mas eu me viro e entro no jipe. Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos. Mas então abro os olhos com a sensação de que alguém está do lado de fora, me olhando pela janela. Mas não há ninguém ali.
Fico sentada no carro, respirando. Só respirando. Em alguns minutos, ouço Cash voltar para o jipe.
Levanto a cabeça.
— Encontrou?
— Sim — ele diz, mas não vejo nada nas mãos dele. — Podemos conversar? Por favor.
Quero insistir para que ele entregue as chaves, mas a lógica intervém.
— Eu não sei o que dizer.
— Então deixe-me dizer outra vez que sinto muito. — Ele parece tão sincero. — Não sei como poderia ter lidado com isso de forma diferente, mas obviamente meti os pés pelas mãos.
— Não brinca, Sherlock!
Ele sorri, depois volta a ficar sério e parece culpado.
O som dos carros passando e da vida acontecendo ecoa do lado de fora do jipe, mas, ali dentro, tudo está silencioso. Eu respiro outra vez e tento afastar o pânico que cresce dentro de mim.
— Sério, como você me encontrou aqui?
— Quando vi que você não estava na escola, perguntei a Lindsey. Ela disse que você queria pesquisar sobre o sequestro. Com sua mãe em casa, imaginei que o único lugar para fazer isso era a biblioteca.
Eu balanço a cabeça confirmando, depois puxo o quebra-sol do carro para baixo e me olho no espelho. Ele tem razão. Eu pareço chateada. Esfrego os dedos no rosto e limpo pelo menos parte da maquiagem borrada. Então olho para as minhas feições e me lembro do rosto no vídeo. Do rosto dela. Minha mente recapitula o que acabei de ler. Lágrimas enchem meus olhos.
Eu me reclino no assento.
— Meus pais nunca teriam me sequestrado. — Olho para ele.
Eu posso ver que Cash tem dúvidas. Mas como posso ficar chateada com ele quando existe uma pequena parte de mim que...
— Então vamos investigar a adoção. Você sabe o nome da agência?
— Não — eu digo.
— Você sabe se eles são da região, de algum lugar próximo daqui?
— Acho que sim.
— Existe alguma maneira de você encontrar o nome da agência? Sua mãe tem documentos ou algo assim?
Lembro-me vagamente de um dia em que minha mãe encontrou esses documentos quando estava procurando a apólice de seguro da minha avó. Mas isso foi há muito tempo.
— Sim, mas não sei se ela não os deixou na casa do meu pai.
Ele balança a cabeça. Mais dúvidas.
— Talvez você possa dar uma olhada na sua casa.
— Sim.
— E a sua certidão de nascimento?
— Isso ela tem. Usou para me matricular na escola. Mas eu já vi. Lá está escrito que sou Chloe Holden e que meus pais adotivos são meus pais. E que nasci em 18 de novembro.
— Em que lugar você nasceu?
— Eu não sei. — Algo me ocorre. — Você não contou... a eles, para os Fuller, não é?
— Não. Acho que precisamos ter certeza antes de contar. Se eles pensarem que você é Emily e depois... você descobrir que não é, isso os fará sofrer muito.
Eu fecho os olhos por um segundo. Fico curiosa.
— Como eles são?
Cash olha para mim e vejo compaixão nos olhos dele.
— Eles são... legais. Muito bondosos. Rigorosos. Muito rigorosos. — Ele suspira. — São melhores que a maioria das pessoas. Muito melhores.
Ao ouvir a resposta de Cash, compreendo muito do que ele sente. Amor, respeito e algo mais que não consigo definir, mas estou muito sobrecarregada para perguntar agora. A verdade é que tenho tantas outras perguntas... Um dos artigos dizia que ambos estavam na faculdade de medicina quando a filha foi levada. Eu quero saber qual é a especialidade deles. Se os Fuller já disseram a Cash alguma coisa sobre Emily. Eles ainda sentem falta dela? Tenho algum trejeito da filha deles? Mas tenho medo de desmoronar se perguntar. Então não faço isso.
— Você não se lembra de nada antes de ser adotada? — Cash pergunta.
Eu quase lhe conto sobre a lembrança que tenho, mas estou muito perturbada para falar sobre isso.
— Quase nada.
— Você estava assistindo ao vídeo. A sra. Fuller lhe parece familiar?
— A voz... — Um nó de emoção se forma na minha garganta. — Eu não posso acreditar. Tem que haver um engano.
— Então vamos provar que há um engano.
— Como? — Fecho a mão num punho apertado.
— Há um arquivo na mesa do sr. Fuller, onde eles guardam uma cópia de todos os artigos. Vou tentar encontrá-lo e tirar fotos para termos cópias de tudo. Isso pode ajudar. Você procura os documentos da adoção.
— E se eu não conseguir? Não vou perguntar...
— Vamos descobrir.
— Você acredita que eles me sequestraram, não acredita? — A dor dentro de mim duplica de tamanho.
— Eu não sei no que eu acredito — ele diz. — Mas, juntos, podemos encontrar a verdade.
Meu punho aperta mais forte.
— Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.
— Chloe, se você for Emily e seus pais a tiverem sequestrado, eles merecem...
— Eles não me sequestraram!
— Então por que não é uma boa ideia? Você quer respostas, não quer?
Eu quero. Acho que quero.
— Talvez eu não queira.
— Como você pode não querer saber a verdade?
— Minha vida já está de ponta-cabeça. — Mais lágrimas se acumulam nos meus olhos. — Eu tenho que ir. — Saio do jipe, olho para o meu carro estacionado perto e então me lembro de que ele está com as minhas chaves. Eu só fico parada ali.
Ouço quando Cash sai do jipe. Ele anda até ficar na minha frente.
— Quando você quiser conversar, me ligue, ok? — Cash parece preocupado e parte de mim quer abraçá-lo e chorar no ombro dele.
Em vez disso, só balanço a cabeça.
— Trabalho hoje à noite na oficina, mas saio por volta das oito. Poderíamos comer uma pizza.
— Não — eu digo.
Ele me entrega as minhas chaves.
Elas estão pesadas. Meu coração está pesado com a possibilidade de que eu seja Emily Fuller. Que meus pais nunca tenham desistido de mim. Que aquele monstro, o monstro embaixo da cama, tenha me tirado deles.
Entro no meu carro e saio do estacionamento. Não sei para onde estou indo, mas dirijo assim mesmo.
14
Cash observou enquanto Chloe se afastava. Aquilo ia de mal a pior! O que ele está fazendo de errado? Como ela poderia não querer respostas?
Então se lembrou do teste de DNA que ele nunca tinha olhado. Os Fuller haviam feito para ele no ano anterior, caso ele quisesse procurar a mãe biológica. O pai dele sempre dissera que a mãe tinha simplesmente acordado um dia e ido embora, abandonando-o. A sra. Fuller questionou essa história:
— Você não sabe, seu pai pode ter tirado você dela, como a pessoa que levou Emily.
A mãe adotiva tinha razão, mas Cash ainda não havia se convencido disso. Ele tinha medo de saber a verdade. Medo de como se sentiria ao descobrir a verdade. Era isso que Chloe estava sentindo? Às vezes o que você não sabe é mais assustador do que aquilo que você sabe. Mesmo que aquilo que você saiba já seja bastante assustador...
Ele ficou no estacionamento por uns bons trinta minutos, apenas remoendo as coisas. Sem saber se deveria voltar para a escola ou simplesmente ir para casa.
Quando resolveu ir para casa, sentiu um buraco no estômago. Ele não havia jantado na noite anterior nem tomado café da manhã, e estava morrendo de fome. Então parou numa loja de conveniência onde havia um McDonald’s. Enquanto andava pelo corredor de doces da loja, viu sacos vermelhos brilhantes de Skittles e lembrou de Chloe falando sobre os Skittles vermelhos. Eles são doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Ele pegou quatro pacotes.
Passei o resto do dia encolhida num banco do Whataburger. As cores brilhantes da hamburgueria e os fregueses alegres afugentam o medo infundado de antes. Lutando para ficar acordada, começo a navegar pelas páginas do Facebook dos meus antigos amigos e constato que todas as pessoas da minha antiga vida estão ótimas enquanto a minha vida fica cada vez mais insana. Visito a página de Alex. Ele adicionou várias fotos dele e de Cassie.
Depois procuro alguns dos meus autores favoritos e compro outro livro de vampiros para quando eu não conseguir dormir. Em seguida, leio alguns artigos on-line sobre como descobrir se um cara está saindo com você só porque quer sexo.
Eu queria que existisse um artigo que explicasse se um cara está saindo com você só porque acha que você é a filha dos pais adotivos dele. Que raiva! Então, quando penso em Cash, resolvo checar as mensagens não lidas que ele me enviou ontem.
São catorze.
Uma delas queria me lembrar de que a culpa não era dele.
Duas eram pedidos de desculpa, uma delas por ter enviado a mensagem de que a culpa não era dele.
Três eram para me avisar de que esqueci meu cobertor com ele. Duas eram para perguntar se ele podia me entregar.
Sete eram variações de Me ligue.
E uma mensagem muito longa era para dizer que eu tinha entendido tudo errado. Ela dizia: Você está errada em pensar que não gosto de você. Achei você linda desde o instante em que trombou comigo e derramou toda a minha raspadinha. E você chamou minha atenção no ato. Então vi quem você era e tentei não pensar que você era linda. Mas não consegui. Então comecei a conversar com você e vi que, além de linda, você é engraçada e inteligente, e não consegui deixar de gostar de você. A única razão pela qual não beijei você primeiro foi porque eu estava com medo de que pudesse interferir no que eu estava prestes a te contar. E isso de fato aconteceu. Mas ainda gosto de você. E quero te beijar novamente. E de novo.
Essa mensagem me tocou. Droga. Gosto dele também. E se a minha vida não fosse um caos, eu estaria pulando de alegria, porque também gosto muito de Cash.
Meu celular toca e chega uma figurinha da palavra “Olá” escrita em vermelho, com a mesma fonte usada no pacote de Skittles. A próxima mensagem diz para ligar para ele quando eu tiver vontade de conversar. E depois: Eu sei que isso é difícil.
A emoção forma um nó na minha garganta. Pego minhas batatas fritas frias, escrevo com elas a palavra “Oi”, tiro uma foto e escrevo que vou entrar em contato à noite.
A resposta é outra foto: um Skittles com um rosto sorridente.
Sim. Eu realmente gosto de Cash.
No mesmo horário em que as aulas acabaram, fui para casa com um humor muito melhor do que quando saí, mas no momento em que entro em casa e vejo minha mãe, com lágrimas nos olhos, sentada na mesa da cozinha com as flores que escondi no meu quarto, meu humor despenca.
— Por que você mentiu para mim?
— Não menti — digo.
— Você não me disse que recebeu essas flores.
— Isso não é mentir.
— Bem, você me fez mentir! Liguei para o seu pai e dei uma bronca nele por se esquecer de lhe enviar alguma coisa. Ele jurou que enviou. Então eu encontrei as flores. Por que não me disse?
— Porque eu estava com medo de chatear você. Justamente o que está acontecendo. — Meu coração está batendo na boca e eu não preciso disso agora. Quando poderei levantar as mãos no ar e gritar “Chega!”?
— Você não pode esconder as coisas de mim! — ela retruca.
— Eu não estava...
— Seu pai está bravo por você não ter ligado para ele. Me acusou de fazê-la ficar contra ele. Vem vê-la amanhã. Mas eu não quero colocar os olhos nele novamente! Ele é um cretino. — Então vai para o quarto, batendo a porta.
Largo a bolsa e a mochila na mesa da cozinha e me jogo na cadeira. Chego à conclusão de que a sessão de terapia não adiantou muito.
Meu peito aperta, um nó se forma na minha garganta e estou chorando. Fico apenas sentada ali e tento não seguir minha mãe até o fundo do poço, onde tudo que existe é a depressão.
Nessa noite, troco mensagens com Lindsey. Ela quer que eu vá à casa dela, mas eu não tenho condições.
Estou prestes a ligar para Cash quando minha mãe bate na minha porta. Ela enfia a cabeça pelo vão. Vejo um pedido de desculpas em seus olhos.
— Posso entrar?
Eu deixo.
Ela se aproxima e se senta na beira da minha cama.
— Sinto muito. Novamente.
Eu assinto. O que devo falar? Eu não perdoo você? Estou cansada de tudo isso? Você me sequestrou? A última pergunta, que dá voltas na minha cabeça, bate fundo no meu peito.
— Obrigada pelo macarrão com queijo — diz ela.
Eu havia preparado o macarrão e deixado um prato sobre o fogão.
— Você tomou uma daquelas garrafinhas que fazem bem à sua saúde?
— Não, mas vou tomar.
Ela toca a minha mão.
— Sou uma péssima mãe.
No momento, isso é verdade. Mas, antes que meu pai a abandonasse, antes do câncer, ela era incrível. Então balancei a cabeça, dizendo que não. De todos os meus amigos, eu sempre soube que eu era a que tinha mais sorte quando se tratava de pais. Eu me sentiria tão amada se eles fossem sequestradores de crianças? Acho que não.
Percebo que minha mãe está me olhando.
— Como foi a terapia?
— Difícil. A terapeuta disse que tenho muita raiva.
— Você tem.
— Vou começar a ir uma vez por semana. Vou melhorar.
— E os remédios? — pergunto.
— Vamos tentar sem eles a princípio. Vou começar a fazer caminhadas todos os dias.
Eu tento não ser pessimista, mas quero gritar, Caminhadas não vão resolver!
— O terapeuta também acha que vou melhorar quando começar a trabalhar. Você sabe, sair de casa e ter algo em que pensar, além do câncer e do cretino do seu pai.
O comentário sobre o meu pai me incomoda, mas pelo menos ela está fazendo terapia e falando sobre isso.
— E se você não quiser ver seu pai, não precisa fazer isso.
Minha mente dispara. Eu não estou com vontade de vê-lo, mas não quero que a minha mãe sinta que tem o poder, consciente ou subconsciente, de determinar se quero vê-lo ou não.
— Eu vou vê-lo.
Decepção transparece nos olhos dela. Mas minha mãe assente.
— Encontrei um bom filme. Uma comédia. O terapeuta sugeriu que eu comece a rir mais. Quer assistir comigo?
— Sim. Só preciso fazer uma ligação primeiro.
Seu tom de voz fica mais agudo.
— Para o seu pai?
— Não. Cash. — Vou falar com meu pai quando ele vier, mas só de pensar nisso, já me encho de pavor.
— Você gosta dele, não gosta?
— Sim. — Admitir é difícil.
— Apenas tenha cuidado. Os homens podem apunhalá-la pelas costas. — Depois de falar isso, ela sai do meu quarto.
Que conselho maternal mais doce e acolhedor... Eu volto para a cama. Penso em Cash e lembro como doeu quando meu pai foi embora. Lembro como doeu me afastar de Alex. Lembro que preciso ir para a faculdade no próximo ano. Lembro de minha única memória de quando eu era pequena, de ser arrancada da minha vida. Odeio esse sentimento e, se eu chegar perto de Cash, vou me sentir assim novamente. Já vou me sentir assim com Lindsey.
Tenho muitas razões para proteger meu coração, para não me deixar me apaixonar por Cash. Razões que nem incluem a suspeita dele de que eu seja Emily Fuller.
Volto a ouvir a pergunta que ele me fez antes.
Como você pode não querer saber a verdade?
Meu celular toca. Pensando que é Cash, meu coração dá um salto. Não é ele.
Antes de atender, verifico se minha mãe fechou a porta.
— Oi, pai.
— Como foi o seu dia? — a sra. Fuller perguntou quando Cash chegou em casa do trabalho e entrou na cozinha. O plano dele era subir as escadas e ir para o quarto, começar a lição de casa e decidir se iria tomar a iniciativa e ligar para Chloe ou esperar e deixar que ela fizesse isso.
— Ok — Cash respondeu, lembrando que ele e a mãe não tinham terminado a conversa de um jeito muito amigável na noite anterior.
— Posso fazer um sanduíche?
Ela franziu a testa e ele sabia por quê.
— Eu quis dizer, vou fazer um sanduíche. — A sra. Fuller odiava quando ele perguntava se podia fazer alguma coisa. Ela dizia que era um sinal de que ele não se sentia em casa. Ela estava certa. Cash não se sentia mesmo. Sim, ele gostava muito dos Fuller, mas não podia deixar de se perguntar se os dois não mudariam de ideia sobre ele se soubessem de todas as coisas que tinha feito ao lado do pai biológico. Eles não percebiam que Cash não era digno de generosidade?
— Melhor assim — disse ela. — Mas se estiver interessado, pode comer a pizza que guardei no forno para você.
— Muito interessado. — Ele tirou a caixa do forno e colocou no balcão. — Obrigado. — Cash pegou uma fatia e afundou os dentes no recheio macio e morno de muçarela e calabresa.
— De nada. — Ela sorriu. A sra. Fuller gostava de agradá-lo, tanto que às vezes o incomodava. — Tem salada na geladeira. Posso pegar para você.
— Não, apenas pizza, obrigado — ele agradeceu, mastigando com gosto.
Ela pegou um prato no armário e acenou para ele se sentar.
— Sente-se e coma. Vamos conversar um pouco antes de você subir e se trancar no seu quarto.
Cash se perguntou se isso era uma queixa com relação à noite anterior. De qualquer maneira, ele pegou a caixa e foi para a mesa.
— Onde está o sr. Fuller? — perguntou antes dar a segunda mordida.
— Foi nadar. — Ela apontou para fora, onde as luzes da piscina iluminavam o quintal. — Ele comeu cinco pedaços de pizza.
Ela pegou a tigela de Skittles que Cash havia deixado na mesa enquanto mandava uma mensagem para Chloe.
— Foi você quem comprou esses Skittles ou foi Tony? — ela perguntou.
— Fui eu.
Ela balançou a tigela por um segundo.
— Onde estão os vermelhos? São os melhores.
Cash engoliu a pizza.
— Eu comi. — Era mentira. Eles estavam num saquinho em seu quarto.
A sra. Fuller colocou a tigela na mesa.
— Você não me contou como são as suas aulas na faculdade.
— São boas. O professor é chato, mas não vejo problema. — Ele terminou sua primeira fatia e pegou outra. Ela lhe entregou um guardanapo. Cash colocou a pizza no prato e limpou a boca. — Como foi o seu dia?
— Foi ok.
— Salvou a vida de alguém?
— Estou trabalhando nisso. — Ela olhou para a tigela de Skittles, tirou uma balinha laranja e colocou na boca. — Você sabe, Tony e eu conversamos e você pode parar de trabalhar se quiser se dedicar mais à escola e terminar o ensino médio.
— Não, estou bem assim. Só tenho aula na faculdade às quartas-feiras. — Ele saboreava o segundo pedaço. A sra. Fuller assistiu Cash acabar de mastigar. Ele pegou o terceiro.
Ela franziu a testa.
— Não que a gente ache que você não dê conta. Achamos que você é muito capaz. É que... pense em como seria mais fácil se você apenas se concentrasse nos estudos.
— Eu gosto de trabalhar. — Cash deu outra mordida. — Essa pizza é muito boa — ele acrescentou, esperando mudar de assunto.
— Você está indo muito bem, mas poderia tirar notas melhores e entrar numa...
— Eu estou bem assim. — Seu plano era fazer um curso técnico depois do ensino médio e mais tarde ingressar na Universidade de Houston, que seria custeada por um programa do governo para pessoas como ele, que moravam em lares temporários. Mas Cash não queria falar sobre faculdades esta noite. Eles já haviam discutido quando ele disse que iria pleitear uma bolsa do governo que o programa de adoção oferecia. Cash já lhes devia o jipe. Não queria que pagassem também a faculdade.
— Você pode estudar onde quiser.
— Está tarde. Eu queria fazer a lição de casa. — Ele pegou o prato e o colocou na máquina de lavar louça. — Obrigado pela pizza. — Enquanto ele passava pela mesa, pegou outra fatia.
— Cash — ela chamou, parecendo um pouco impaciente.
Dando outra mordida, ele se virou, esperando que a sra. Fuller começasse a listar as universidades. Boas universidades, universidades caras. Ele começou a falar com o pedaço de pizza na boca.
— Olha, eu preciso...
— Queremos adotá-lo.
Ele ouviu as palavras, mas não as assimilou. O bocado de pizza, já no meio da garganta, bateu contra seu pomo de adão. Sua mente disparou. O coração doía. Ele se lembrou de quando disse que não era filho dela.
Era por isso que a sra. Fuller estava fazendo aquilo? Achava que ele queria ser filho dela?
Era a última coisa que Cash queria. Seu objetivo sempre fora pagá-los pelo jipe e sair da vida deles para que seus problemas não continuassem a afetá-los.
— Não. Péssima ideia. — Ele subiu as escadas correndo.
— Por quê? — ela perguntou, enquanto Cash subia. — Por que é uma péssima ideia? — Ele não respondeu.
15
Dez minutos depois do começo do filme e da segunda piada sobre preservativo, minha mãe decide que ele não é engraçado nem apropriado. Na verdade, é engraçado, pelo menos foi quando assisti com Alex um ano atrás. Lembro-me de todas as vezes que íamos à casa dele, deitávamos na cama e assistíamos a filmes. E fazíamos outras coisas.
Os pais dele tinham uma imobiliária e trabalhavam até tarde. Nós tínhamos a casa inteira para nós até por volta das oito. Eu, sinceramente, acho que, se os pais dele tivessem um horário de trabalho normal, nós não teríamos uma vida sexual.
Minha mãe tira o filme e assistimos à série Law & Order. Eu quase a lembro de que deveríamos assistir algo engraçado, mas tenho medo de que ela desligue a TV. Então fico de boca fechada. É uma reprise. Eu já vi esse episódio. Mas não quero que minha mãe se sinta abandonada, então fico e finjo assistir. O que estou realmente fazendo é repassando mentalmente o telefonema do meu pai.
Ele não fez rodeios. Pediu desculpas por não me ligar no primeiro dia de aula, alegando que tivera uma semana ruim. Eu queria perguntar se tinha algo a ver com a nova namorada.
Ele não disse nada sobre ter dado o meu quarto a Darlene, mas me falou que me amava e que sabia que não era perfeito.
Não pude discordar. Mas por mais triste que seja, acho que isso fazia parte do problema. Antes, ele era perfeito. Então Darlene apareceu. E sugou tudo o que ele tinha de perfeito. Ele me lembrou de que eu era filha dele e que a minha mãe não deveria tentar me colocar contra ele. Não pude discordar disso também.
Ele disse que precisava me ver e que sentia a minha falta. E eu gostasse ou não, ele era meu pai e não ia deixar minha mãe ficar entre nós. Eu quase perguntei: E Darlene? Você vai deixar que ela fique entre nós?
Consegui ficar quieta e concordei em jantar com ele amanhã à noite. Mas só depois que me certifiquei de que seríamos apenas nós dois. Eu notei o tom contrariado na voz dele quando perguntei. Eu não sabia se ele planejava trazer Darlene, mas ele concordou em vir sozinho. Ainda assim, estou esperando o nosso jantar com o mesmo entusiasmo com que espero minha menstruação.
Pego o álbum de fotos que minha mãe deixou sobre a mesa do escritório. Vou virando as páginas. Não acho que já tenha visto esse. Aposto que era de uma das minhas avós. Até nos mudarmos para cá, a maior parte das coisas da minha avó estava encaixotada no sótão.
Eu observo as imagens em preto e branco dos meus avós e da minha mãe quando era pequena.
Fotos dela quando criança, parecendo feliz. Viro a página e encontro fotos minhas.
Eu bem pequena. Eu segurando um presente com um grande laço.
Eu não parecendo feliz, apesar de estar segurando um presente.
Ali estão duas fotos que foram editadas, o que significa que minha mãe cortou a imagem do meu pai com a tesoura.
Minha mãe me vê olhando o álbum. Ela aponta para uma foto em que aparecem meus avós e eu.
— Essa foi tirada quando você os conheceu.
Eu observo a imagem. Meu eu mais jovem está olhando para a câmera como se estivesse implorando para alguém me salvar. O olhar no meu rosto me lembra o olhar dos animais que a gente vê naqueles anúncios comoventes para arrecadar dinheiro, promovidos pelas ONGs que cuidam de animais abandonados. O medo que eu tinha empurrado para longe me domina novamente.
Então vejo uma contusão na minha bochecha. Como eu teria me machucado?
— Tínhamos acabado de buscar você e viemos direto para cá, da agência de adoção.
Sinto meu coração acelerar.
— Como eu ganhei esse machucado?
Minha mãe olha para a foto.
— Eles disseram que você caiu no parquinho. Por quê?
Eu não sei, realmente não sei, mas o medo deixa os pelos da minha nuca arrepiados. Então percebo que essa é a minha chance de fazer perguntas.
— Então você me adotou numa agência daqui?
Eu folheio o álbum, não querendo que ela me veja esperando sua resposta com respiração suspensa.
— Em Fort Landing. Duas cidades mais para a frente. Eu lembro que a coloquei na cadeirinha do carro e voltei com você.
Eu olho para minha mãe. Ela ostenta um sorriso enquanto fala sobre mim quando eu era pequena. Um sorriso de amor. Não é o olhar de alguém que se lembra de ter sequestrado uma criança.
Eu não sei se posso chamar de alívio, mas meu peito fica mais leve. É como se isso confirmasse o que eu acredito que seja verdade. Meus pais não me sequestraram. Eu sei disso. Eu apostaria minha vida nisso.
— Quanto tempo levou a adoção?
— Oito meses. Os oito meses mais longos da minha vida.
Eu volto a olhar a foto do meu eu mais jovem. Tenho cabelos castanho-escuros encaracolados e meus olhos parecem grandes demais para o meu rosto.
— Eu pareço assustada.
— Você era nervosa. Confusa. Morou num lar temporário por um mês. Ficou apegada a eles.
Meu coração dá outro salto. Se isso é verdade, se morei num lar temporário, então não sou Emily Fuller, porque ela foi sequestrada no dia anterior à minha adoção.
— Eles disseram que demoraria um tempo para você se ajustar.
Eu engulo em seco.
— E demorou?
— Sim. Dormi com você por quase um mês, porque você chorava à noite. Eu te abraçava e cantava para você.
Eu acho que me lembro dela cantando. Meu peito dói quase como se estivesse sentindo o que senti na época. O que senti na única lembrança que me assombra. Confusa. Assustada. Insegura. Abandonada. Mal-amada.
— Eu falava alguma coisa sobre isso?
— Só que você queria sua mãe e seu pai. Partia meu coração. Eu ficava te dizendo que éramos sua mamãe e seu papai a partir daquele dia. Não demorou para você começar a sorrir.
Uma pergunta não sai da minha cabeça. Algo que eu secretamente sempre me perguntava.
— A agência lhe informou por que fui para a adoção?
Minha mãe parece surpresa. E também estou surpresa. Surpresa por nunca ter perguntado antes. Então, de repente, sei por que nunca perguntei. Parecia mais seguro não saber.
— Eles disseram que sua mãe era muito jovem e não era casada. Ela queria ficar com você, mas era difícil demais do ponto de vista financeiro. Nós temos muita sorte em ter você. Você é uma bênção. Tentei engravidar por muitos anos. Seu avô conheceu um casal que indicou essa agência. Não era muito caro. Eles conseguiam pais adotivos para muitas crianças mestiças um pouco mais velhas, cuja adoção é mais difícil.
Eles me disseram que eu sou, em parte, descendente de hispânicos, o que explica a coloração castanho-esverdeada dos meus olhos.
— Minha mãe é hispânica ou meu pai?
— Eu não sei.
Viro a página. Há uma foto minha com uma boneca. Uma daquelas que se parece com a criança que a ganha. Estamos com um vestido igual. Temos cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos castanho-esverdeados. A boneca está sorrindo e, nessa foto, eu também. Eu me pergunto quanto tempo já tinha se passado desde a adoção.
Minha mãe sorri.
— Você adorava essa boneca. Fomos a uma loja onde tivemos que assinar um termo de adoção depois de comprar a boneca. Você a carregava para todo lugar.
— Eu não me lembro — digo. Recordo-me da caixa de brinquedos que vi no sótão da casa do meu pai quando estávamos nos mudando. — Eu ainda a tenho?
— Não. Nós a esquecemos num parque alguns meses depois que você a ganhou. Nós voltamos, mas alguém já tinha levado a boneca. Você chorou por semanas, querendo Emily de volta.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Emily?
— Sim, foi o nome que você deu a ela.
Eram dez horas da noite quando o celular de Cash tocou. Ele saltou da sua escrivaninha, onde fazia o dever de casa distraidamente, enquanto pensava no que a mãe adotiva tinha dito e torcia para que ela não decidisse tentar terminar a conversa. Porque ele não sabia como terminá-la.
Por que é uma péssima ideia?
A única resposta de Cash seria perguntar por que ela achava que seria uma boa ideia. Os Fuller já tinham feito muito mais do que se esperava deles. Não sabiam como era difícil corresponder às expectativas deles? A sra. Fuller não se lembrava de como tinha ficado decepcionada quando o expulsaram da Westwood Academy? Ou, um ano antes, quando o acusaram de roubar um carro no bairro só porque ele fazia parte de um programa de adoção do governo?
Ou mesmo quando ele se envolveu na briga com Paul? Cash nunca conseguiria apagar seu passado. Droga, eles não conheciam metade do seu passado! Cash costumava furtar a aposentadoria do bolso de idosos. Roubava carros. Uma vez, quando o pai trabalhava na casa de um casal idoso, Cash havia entrado e furtado os cartões do banco e um colar valioso da mulher, uma joia que o marido acabara de comprar para presentear a esposa nas bodas de ouro.
Ele viu o número de Chloe na tela.
— Oi.
— Desculpe ligar tão tarde. Foi uma noite insana.
— Sua mãe não descobriu que você faltou às aulas hoje, não é?
— Não. Você contou para alguém?
— Não.
Ela ficou quieta e depois falou:
— Olha, eu tenho certeza de que minha mãe e meu pai não me sequestraram, mas... Estou achando que alguém fez isso. E você tem razão. Eu quero respostas.
— Ótimo. — Pausa. — Aconteceu alguma coisa para você mudar de ideia?
Chloe contou o que havia descoberto sobre a agência de adoção e o lar temporário em que tinha ficado durante um mês e sobre a boneca que se chamava Emily.
Ele odiava perceber a dor na voz dela.
— Vamos descobrir a verdade.
— Como?
— Acho que precisamos conversar com a sua babá. — Cash se sentou na cama.
— Babá?
— Emily estava com a babá quando desapareceu.
— Como você sabe?
— A sra. Fuller comentou um dia. E, desde que você chegou aqui, estou pesquisando na internet. Também li alguma coisa, alguns anos atrás, num arquivo que eles têm. E há outras coisas nesse arquivo. Tipo relatórios policiais e outras coisas. Vou tentar ver o arquivo novamente. Mas tenho que esperar quando eles não estiverem em casa. Mas, assim que eu desligar, vou ver quantas agências de adoção existem em Fort Landing. É uma cidade maior que Joyful. Pode existir mais de uma.
— São três — Chloe disse. — Eu chequei. Mas apenas uma estava aberta na época em que fui adotada, a Agência de Adoção New Hope, mas isso não significa que seja essa.
— Tem razão. — Ele encostou na cabeceira da cama. — Vou começar tentando encontrar a babá.
— Como?
— Internet.
— Encontrei minha certidão de nascimento. Ela diz que nasci aqui. — Cash a ouviu suspirar e o suspiro se parecia muito com o da sra. Fuller que o tocava tanto.
— Vamos descobrir.
— Você diz isso como se acreditasse que vamos mesmo descobrir.
— Eu acredito. Sou bom em descobrir coisas. Resolver quebra-cabeças. — Cada golpe é como um quebra-cabeça. Você só tem que descobrir quais peças juntar. Ele fez uma pausa. — Trabalho amanhã, mas saio às cinco. Você quer me encontrar? Podemos comer alguma coisa e conversar.
— Eu não posso. Meu pai está vindo para a cidade.
Será que ela só está dizendo isso porque não quer me ver?
— E domingo? — Ele apertou mais o celular na mão.
A linha ficou muda.
— Preciso pedir à minha mãe, mas não deve ser problema.
Ele se lembrou do que Chloe havia dito sobre o pai.
— Você vai ver seu pai numa boa?
— Não. Mas não importa... Não tenho escolha.
— Você sempre tem escolha — disse Cash. Até ele tinha escolha quando estava com o pai.
— Nenhuma que não causaria problemas.
— Já ouviu dizer que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos?
— Então você é aquele que quebra ovos enquanto eu sou uma pessoa que põe panos quentes. Não tenho certeza se somos compatíveis.
Ele riu.
— Eu só quebro ovos quando não há outro jeito.
— Quando não houve outro jeito? — Chloe perguntou.
— O que você quer dizer?
— Quando foi a última vez que você teve que se defender? Além daquele dia em que brigou para defender o garoto, no primeiro dia de aula.
— Esta noite — ele disse, depois se arrependeu.
— O que aconteceu?
Cash concluiu que poderia contar parte do que havia acontecido.
— A sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina.
— Por quê?
— Ela acha que me sobrecarrega por causa das aulas na faculdade e o ensino médio.
— Você está tendo aulas numa faculdade?
— Sim. Nas quartas-feiras à noite. Só para ajudar.
— Isso parece muita coisa mesmo — ela diz.
— Eu dou conta. Além disso, não é só por causa do tempo. Ela tem receio que eu mude de ideia e decida trabalhar na oficina e não ir para a faculdade.
— Mas, se você já está fazendo aula numa faculdade, por que ela tem esse receio?
— Porque também estou cursando Tecnologia Automotiva e não estou me candidatando para uma faculdade chique.
— Para que faculdade ela quer que você vá?
— Rice ou Harvard, pelo que sei.
— E por que você não quer ir para uma boa faculdade?
— Porque tem que ser uma faculdade estadual que a minha bolsa cubra.
No momento em que ele disse isso, desejou ter ficado quieto. Era como se a bolsa fosse uma esmola.
— Você tem uma bolsa do governo?
Cash hesitou.
— Por causa do programa de adoção.
— Isso é bom — disse Chloe.
— Sim — ele mentiu. E continuava dizendo a si mesmo que, quando concluísse a faculdade, reembolsaria o Estado também. Durante toda a vida, o pai dele não tinha feito nada a não ser lesar as pessoas. Cash tinha lesado muitas pessoas. Ele queria compensar isso.
— Você tem planos para a faculdade? — Cash perguntou para mudar de assunto.
— Universidade de Houston, provavelmente.
— Estou pensando nessa também. Mas por que “provavelmente”?
— No momento não posso deixar minha mãe do jeito que está.
— Mas ela já superou o câncer.
— Ela não superou o divórcio.
Ele se lembrou de Chloe dizendo que a mãe estava deprimida.
— Ela está muito mal?
— Depende de quando você pergunta. Hoje mais cedo, eu diria que ela estava realmente muito mal. Esta noite, estava melhor. Pelo menos está recebendo ajuda agora.
— Terapia?
— Sim. Hoje foi a primeira vez que ela foi. Espero que ajude.
— Sim. — Cash não colocava muita fé em terapeutas ou psiquiatras. Ele tinha sido forçado a fazer terapia por um ano, quando foi para um lar temporário. A única diferença era que havia aprendido a esconder melhor suas emoções.
A terapeuta não cansava de dizer: Nada do que você fez foi culpa sua. Mas era, sim. Ele sabia que estava errado quando fazia.
— Ela conseguiu um emprego, então espero que também ajude. Mas só começa daqui a algumas semanas.
— Que tipo de trabalho ela faz?
— Enfermagem.
— É isso que você vai cursar na faculdade? Medicina? — E se ela fosse a filha dos Fuller, não seria apropriado?
— Não. Estou pensando em Jornalismo. Ou Literatura Inglesa.
— Você quer ser escritora?
— Não. Minha mãe costumava escrever. Ela escreveu vários livros. Teve um editor numa grande editora de Nova York que pediu para ela fazer uma revisão no último que escreveu, mas então meu pai resolveu se separar e ela parou. Graças a Deus, ela não parou de ler livros.
— Você gosta de ler? — ele perguntou.
— Sim.
— O que você lê? Histórias de amor? — Cash perguntou para provocar.
— Claro! — Chloe riu. — Estou lendo um de ficção fantástica no momento. E você, lê?
— Eu costumava ler mais quando não estava trabalhando. Mas, gosto, sim.
— O que você leu nestes últimos tempos?
— Eu li Outsiders — Vidas sem Rumo e alguns do Stephen King durante o verão. Tentei ler Cinquenta Tons de Cinza, mas...
— Você leu Cinquenta Tons de Cinza? — Ela riu um pouco mais. — E você me recrimina por ler histórias de amor?
16
A risada dela fez o peito de Cash instantaneamente parecer mais leve.
— Eu disse que tentei ler. Não consegui terminar o primeiro capítulo.
— Não consigo nem imaginar você comprando ou pegando esse livro emprestado na biblioteca.
— Não fiz nada disso — ele disse. — A sra. Fuller leu e um dia eu entrei na biblioteca deles e peguei. Você não leu?
— Não. — O tom dela era agudo, denunciando uma mentira.
— Mentira. Você leu, sim.
Ela riu com culpa.
— Ok, eu e minhas amigas estávamos curiosas.
— E o que você achou? — Cash reajustou o travesseiro atrás das costas.
— Eu sei por que você não passou do primeiro capítulo. O que você planeja fazer na faculdade?
Cash notou que ela tinha mudado de assunto.
— Provavelmente algo ligado à área de negócios. Ainda estou indeciso também. Ele fez uma pausa. — Então, o que mais você faz além de ler livros eróticos?
Chloe riu de novo.
— Não sei.
— Você gosta de correr ou algo assim?
— Só se alguém estiver me perseguindo.
Agora foi ele quem riu.
— Quero dizer, para manter a forma.
— Eu sei. Eu costumava jogar futebol.
— E você era a mais bonita do time. — Ele lembrou da foto de Chloe e de várias colegas jogando futebol de shorts e a parte de cima de um biquíni. Ela parecia incrível.
— Como sabe? Ah, sim, você me stalkeou na internet.
— Eu não stalkeei você. Pesquisei sobre você.
— Você tem perfil no Facebook? — Ele a ouviu digitar algo no computador.
— Não. Pelo menos não com a minha verdadeira identidade.
— Você tem uma conta falsa no Facebook? Mas não tem uma com a sua verdadeira identidade...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Porque... gosto de stalkear as pessoas na internet. — Era uma piada. Chloe não riu.
— Sério?
— Na outra escola, ouvi dizer que alguns alunos estavam falando sobre mim no Facebook. Eu quis ver se era verdade... anonimamente.
Ela não disse nada por alguns segundos, então:
— Você costuma correr?
— Eu tento. Mas, neste verão, nadei mais.
— Você faz parte de uma equipe de natação? — ela perguntou.
— Não. Os Fuller têm piscina. E eu vou muito à casa de veraneio deles, no lago.
— Você não pratica esportes?
— Gosto de assistir. Mas nunca joguei.
— Sério? Com o seu tamanho, acho que algum treinador já devia ter feito você jogar futebol americano há muitos anos.
— Eles preferem evitar estudantes que moram em lares temporários. Nós nos mudamos muito.
— Você também?
— O quê? — ele perguntou.
— Mudou-se muito, antes de morar com os Fuller?
Ele passou a mão no rosto. Por que ele havia mencionado o programa de adoção?
— Eles são a minha quarta casa.
— Foi ruim?
Não tão ruim quanto viver com meu pai.
— Na verdade, não.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele queria mudar de assunto, mas Chloe o acusara de fazer isso no parque.
— Tinha 11.
— Como... como o seu pai morreu?
Merda. Essa era a desvantagem de se aproximar de uma garota. Ela queria saber a história da sua vida.
A linha ficou muda.
— Você não precisa contar, se não quiser.
Ele quase disse “ótimo”, mas optou por:
— É uma longa história, e já está tarde.
— Sim. Melhor a gente desligar.
Cash a sentiu se afastando. Quando ele queria que Chloe se aproximasse.
— Ele morreu num acidente de carro. — Era verdade. Cash tinha batido o carro, mas a bala no peito do pai é que o matara.
— Você estava no carro com ele?
— Não.
— Sinto muito. — A emoção veio acompanhada de um pedido de desculpas. — Quando minha mãe teve câncer, eu estava com tanto medo de perdê-la... Não sei se conseguiria superar algo assim. Isso deve ter sido muito difícil pra você.
Cash odiava a compaixão que sentia na voz dela. Ele não merecia. E nem o vigarista do pai.
É sábado à tarde e estou na casa de Lindsey, ajudando-a a decidir o que vestir no seu encontro com David. Estou empolgada com a notícia de que estão saindo. E estou me esforçando para irradiar boas vibrações. Minha mãe ficou deitada o dia todo. Eu mal consegui tirá-la do quarto para comer.
Vê-la deprimida faz com que eu me sinta culpada por ter concordado em ver meu pai. Ah, sei que não é justo que ela me faça sentir dessa forma e, sinceramente, não acho que minha mãe queira que eu me sinta assim. Mas ela faz isso e eu me sinto culpada. Adicione a tudo isso o fato de que não estou ansiosa para ver meu pai e é compreensível que meu humor não esteja muito melhor do que o da minha mãe.
— Eu gosto mais dessa blusa azul — digo a Lindsey.
— Não é muito sem graça?
— Não, realça seus seios.
— Não mostra demais, não é? Não quero que ele pense que estou tentando levá-lo para o banco de trás do carro no primeiro encontro.
Eu solto uma risada.
— Essa blusa não diz “vamos saltar para o banco de trás?”. Ela diz “olhe pra mim”.
— E olhar para mim é bom, certo? — Ela franze a testa. — Não sei se estou pronta para isso.
— Você está pronta — eu garanto.
Ela me olha pelo espelho.
— Eu preferia que fosse um encontro duplo. Você não pode ligar para Cash e ver se vocês podem ir conosco? — Ela se vira.
— Eu não posso. Vou ver meu pai hoje à noite, esqueceu?
— Ah, que pena. — Ela franze a testa. — Foi mal.
— Eu também lamento... — Desabo na cama dela e juro que não vou começar a me queixar da minha vida. Já fiz isso o suficiente ontem à noite, quando conversamos depois do telefonema de Cash. Sandy, uma das minhas amigas antigas, só reclamava. — Além disso, eu ainda não estou saindo com Cash.
— Vocês vão sair no domingo. Além disso, você ficou com ele no balanço da varanda.
— É verdade. — Eu sorrio, ao me lembrar e, se eu pudesse só pensar nisso, em vez de em outras coisas, ficaria mais feliz. — Mas não sei se é um encontro de fato ou só uma reunião para descobrir se sou Emily Fuller.
Ela revira os olhos.
— Depois daquela mensagem que ele enviou sobre querer beijar você?
Sim, eu mostrei a ela a mensagem de Cash.
— Tem razão. Acho que você não é a única que está nervosa.
— Apenas rezo para que, se ele tentar me beijar, eu não pense em Jonathon. Ele me enviou um e-mail esta manhã. Me perguntou o que eu ia fazer no final de semana.
— Você não respondeu o e-mail, não é?
— Respondi, mas apenas para dizer que estava ocupada. Tive que deixar claro que não estou em casa chorando por causa dele.
— Ele perguntou o que você andava fazendo?
— Perguntou. Eu não respondi. — Ela sorri.
— Esqueça esse cara — eu digo. — Esta noite vai ser divertida.
Lindsey se deixa cair na cama.
— Será que devo contar a David meu segredo mais profundo e sombrio?
— Qual segredo?
— Que minha mãe é lésbica. Ou isso não é algo que se diga no primeiro encontro?
— Por que você precisaria contar a ele?
— Porque se Lola estiver aqui, ele pode descobrir como você descobriu.
— Você não sentiria essa necessidade de contar a ele se sua mãe fosse heterossexual. Então, por que contar só porque ela é homossexual?
— Porque nem todo mundo acha que isso é normal como você.
— Não acho que você precise fazer alarde sobre isso.
Ela sorri.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo. Por dizer todas as coisas certas. Pedi a Jamie para fazer isso e ela disse que ela e a prima iam à manicure.
— Não esquenta. — Não sei se Lindsey percebeu que ela acabou de me dizer que sou sua segunda opção. É uma droga ser a segunda opção de alguém. Mas, ei, é melhor do que não ser opção nenhuma.
— Você vai perguntar ao seu pai o nome da agência de adoção?
— Se eu conseguir encontrar uma maneira de abordar esse assunto na conversa...
— Por que simplesmente não pergunta?
— Porque não sinto vontade de explicar que eu posso ser uma criança sequestrada!
Lindsey passa a escova nos cabelos.
— Você realmente não se lembra de nada da sua vida de antes?
Eu conto a ela sobre a minha única lembrança com o vestido de princesa.
— E o sequestro? Quero dizer, deve ter sido traumático e você se lembraria dele.
— Eu não me lembro.
O medo toma conta de mim. Conto a ela sobre a foto com o machucado no rosto. Do medo inexplicável que sinto.
— Ok, isso é de arrepiar — diz ela.
— Sim.
— Você não precisa contar ao seu pai sobre a história do sequestro. Apenas diga que esteve pensando sobre a adoção.
— Sim. — Mas como eu disse a Cash, sou de pôr panos quentes, não de quebrar ovos. Por outro lado, nas últimas vezes em que conversei ou estive com meu pai, eu estava surtando. Mas a coisa toda do sequestro é diferente. É muito maior. E se eu descobrir que sou realmente Emily Fuller, não vai haver uma tigela grande o suficiente para recolher todos os ovos que vou quebrar.
Meu celular avisa sobre a chegada de uma mensagem. Achando que é de Cash, sinto uma emoção brotar no meu peito. Não é de Cash.
É da minha mãe.
Avise seu pai que não deve entrar em casa. Eu não quero vê-lo! E pergunte a ele por que não pagou o seguro do seu carro ainda.
Um pensamento insano me ocorre. Não sobre minha mãe, mas sobre meu pai. Sobre perdoar papai.
Talvez eu não seja capaz de perdoá-lo até que minha mãe esteja bem. Talvez eu não seja capaz de perdoar meu pai até que minha mãe o perdoe.
O que pode ser, tipo... nunca.
Isso parece errado, mas pode ser verdade.
Eu me reclino na cama de Lindsey.
— Odeio a minha vida.
Cash trabalhou até um pouco mais tarde e já eram seis horas quando foi trocar de roupa. O celular tocou e, esperando que fosse uma mensagem de Chloe, ele pegou o aparelho. Não havia mandado uma mensagem para ela ainda, com receio de que ela fizesse perguntas sobre seu pai novamente, mas decidiu que mandaria uma mensagem mais tarde.
Cash esperava que ela estivesse acordada quando ele fizesse outra ligação tarde da noite. Se não fosse para falar sobre o passado, ele gostava de conversar com Chloe. Ele sorriu ao se lembrar da conversa sobre Cinquenta Tons de Cinza.
Olhou para a tela do celular. Não era uma mensagem de Chloe. Era da sra. Fuller. Ele se encheu de pavor. Tinha saído de casa aquela manhã sem vê-la. Cash não tinha ideia de como ela reagiria ao seu comentário de que seria uma “péssima ideia” adotá-lo.
Ele leu a mensagem.
Tony e eu estamos com vontade de comer comida indiana. Quer se juntar a nós no Kiran's Café?
Ele queria recusar o convite, mas talvez ir jantar fora fosse mais fácil do que enfrentá-la em casa.
Ele mandou uma mensagem. Que horas?
Sete?
Certo.
Ela enviou o emoji de uma carinha sorridente. A sra. Fuller sempre mandava mensagens com muitas carinhas sorridentes. Cash sabia que era um sinal de que ela se importava com ele. Ele também gostava de recebê-las.
Como ainda faltava uma hora, decidiu dar uma corrida até a livraria. Conversar com Chloe sobre livros o deixara com vontade de ler um. Talvez ele encontrasse um livro de ficção fantástica sobre o qual pudessem conversar.
Quando saio do banheiro, depois de me arrumar para me encontrar com meu pai, minha mãe está enrodilhada no sofá, com um livro e Félix no colo.
Ela olha para mim.
— Você está bonita.
— Obrigada. — Tudo o que fiz foi pentear o cabelo e colocar rímel e brilho labial, mas eu sei que essa é minha mãe fingindo que está tudo bem, e eu agradeço. Consulto as horas e vejo que são quase seis e meia.
Inclinando-me, acaricio Docinho, que está abanando o rabo como se achasse que vamos sair para dar um passeio.
— Você quer que eu traga algo para você comer? — pergunto à minha mãe.
— Não! Não quero comer nada que seu pai tenha comprado. — Ela já não está fingindo que está tudo bem.
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Por que você não escreve? — sugiro.
— Talvez.
Aposto que ela não vai nem tentar. E provavelmente não vai comer também. Eu verifiquei e, até hoje, ela só tomou duas das suas bebidas nutritivas, no total. E a promessa de beber duas por dia? Juro, minha mãe parece ainda mais magra agora.
— Até mais tarde.
Pego a bolsa e saio, me sentindo culpada por deixá-la sozinha.
Sentada nos degraus da varanda, vejo uma picape parar em frente à casa ao lado. Então Jonathon, o cão sarnento traidor, sai do carro. Ele me vê e me cumprimenta com a cabeça. Aceno de volta, mas não de uma maneira amigável. Sei que Lindsey já saiu há trinta minutos.
Eu o ouço bater na porta e perguntar por Lindsey. Escuto a mãe dela responder.
— Ela saiu.
— Pode dizer a ela...?
A porta se fecha. Eu sorrio. A mãe de Lindsey também não gosta do cão sarnento traidor.
Ainda estou sorrindo quando ouço passos. Ah, merda!
Olho para a rua, rezando para ver o carro do meu pai chegando. Mas não.
Quando vejo, Jonathon está na minha frente.
— Você é a garota nova da escola, não é? Chelsea?
— Chloe — corrijo-o.
— Você e Lindsey não vão juntas para a escola?
— Sim. — Cadê você, pai?
— Você sabe onde ela está?
O que eu digo? O que eu digo?! Eu poderia dizer que ela saiu com um cara muito gato. Ou eu poderia...
— Não.
— Sabe com quem ela está?
O que eu digo agora? Vou optar pela verdade outra vez.
— Sim.
Ele faz uma careta.
— Mas não vai me dizer, certo?
— Não sou eu que tenho que dizer.
— Sabe, não sou um cara tão ruim quanto ela disse que sou.
Sei. Quer dizer, então, que você não pôs chifres nela?, eu penso, mas não pergunto.
Ele se inclina contra a cerca da varanda.
— De que cidade você veio?
— El Paso — digo, desejando que ele vá embora.
— Você gosta daqui?
— Não. — Quando olho para cima, ele está olhando para os meus peitos. Como se esse cara tivesse alguma chance comigo.
Ele esfrega a sola do sapato no degrau.
— Bem, já que não estou fazendo nada e você não está fazendo nada, quem sabe a gente possa...?
— Não. — O carro do meu pai para em frente à minha casa. Eu me levanto. — Tchau!
Quando entro no carro, a cabeça do meu pai está virada na direção de Jonathon, que fica nos encarando enquanto volta para a sua picape. Considerando que meu pai está dirigindo um conversível vermelho e tem cabelos espetados, Jonathon provavelmente acha que meu pai é meu namorado. Ai, credo!
— Quem é esse? — meu pai pergunta.
— Ninguém. — Esqueço minha antipatia por Jonathon e me defronto com a minha decepção em relação a meu pai. Ele precisa desistir desse cabelo espetado.
— Você já está namorando?
— Não. — Então eu me lembro de Cash. — Talvez.
— Não acha que é um pouco cedo?
Balanço a cabeça, discordando.
— Por que não nos apresenta? — Ele fala como um pai zeloso. Por que isso me irrita? Então percebo por quê. Meu pai perdeu o direito de falar comigo sobre garotos ou sobre sexo quando começou a transar com Darlene.
— Primeiro porque aquele cara não é meu namorado. Segundo, porque... deixa quieto. — Calo a boca. Eu não quero discutir.
Meu pai olha para mim e, pela expressão dele, posso ver que está pensando o mesmo que eu.
— É bom ver você. — Ele estende a mão e aperta a minha. — Faz muito tempo que não saímos juntos, só nós dois.
Se sentiu tanto a minha falta, por que não enviou flores na data certa ou não me ligou quando disse que ligaria? Eu engulo a pergunta. Hoje não vou quebrar ovos. Mas penso no comentário de Lindsey sobre fazer ao meu pai algumas perguntas “vagas” sobre a agência de adoção. Isso eu posso fazer.
Meu pai começa a falar.
— Procurei no Google restaurantes indianos em Joyful. Achei um, o Kiran’s Café. Que tal um frango na manteiga?
17
A caminho do restaurante, conversamos sobre assuntos neutros. O clima. O último livro que li. Ele está tentando conversar, mas os assuntos acabam tão rápido que tenho receio de que logo não tenhamos mais sobre o que conversar.
— Como estão Brandon e Patrick? — pergunto, me referindo ao primo do meu pai e o marido dele. Acho que esse é um assunto seguro.
— Não sei. Faz muito tempo que não vejo os dois.
— Por quê? — Eles costumavam ir em casa pelo menos uma vez por mês, além de passar os feriados conosco. Brandon, que é chef de cozinha, sempre se encarregava das refeições.
— Nós vivemos ocupados.
Quando diz “nós”, meu pai se refere a ele e a Darlene. Antes que eu possa me conter, meu próximo pensamento sai pela minha boca:
— Eles não gostam de Darlene? — Isso não deveria me deixar feliz, mas deixa. — Ou ela não gosta deles?
Essa possibilidade aumenta a minha angústia com relação ao meu pai. Como meus avós paternos morreram em um acidente de carro logo depois que meus pais se casaram, Brandon é o único parente que meu pai tem.
— Você não devia deixar Darlene acabar com a sua família. — Quer dizer que, mais uma vez, ele deixou que ela separasse a nossa família.
A expressão do meu pai muda.
— Não é bem assim. — A mentira fica evidente na voz dele.
Em alguns minutos, meu pai estaciona e entramos no restaurante impregnado com um aroma intenso de curry, cominho e açafrão. Meu estômago se contrai de fome, mas meu coração se contrai de dor. Sou transportada de volta a todas as vezes em que saí com meu pai no passado. Volto à época em que sair com ele era um dos meus programas favoritos. Nós ríamos. Falávamos de futebol. Discutíamos filmes. Ele perguntava sobre a escola, os meus amigos, a minha vida. Não como se estivesse checando o que eu andava fazendo, mas como se quisesse saber tudo sobre mim porque eu o interessava. Porque eu era importante para ele.
Sinto falta disso. Sinto falta dele. Do meu antigo pai. De como éramos antes. Um nó se forma na minha garganta.
Estamos sentados a uma mesa perto da porta. O garçom, um homem alto, mais velho e de ascendência indiana, nos entrega os cardápios. Noto que meu pai está olhando em volta como se estivesse confuso. Ele pega o cardápio, mas olha para o garçom.
— Este lugar não costumava ser a Pauline Pizzaria?
— Sim — diz o garçom. — Meu irmão comprou o ponto sete anos atrás.
— Foi o que pensei.
O garçom anota nossas bebidas e se afasta.
Meu pai olha para mim.
— Sua mãe trabalhava aqui. Eu costumava comer pizza aqui toda sexta-feira à noite, porque um funcionário que trabalhava às sextas-feiras gostava dela. — Há uma expressão suave no rosto dele, como se a lembrança fosse boa; então, de repente, ele pisca e o ar de felicidade desaparece. Meu pai abre o cardápio, como se quisesse se esconder atrás dele. É só uma suposição, mas juro que ele parece sofrer ao se lembrar da minha mãe. Ou talvez ao se lembrar do quanto a está fazendo sofrer.
Por outro lado, posso jurar que meu pai não sabe quanto ele magoou minha mãe. Ou quanto me magoou.
É muito egoísmo da minha parte querer que ele sofra também? Talvez seja normal, mas parece errado. Tudo parece errado. Estar aqui com ele parece errado.
Ele baixa o cardápio.
— Você quer pedir o de sempre? Frango na manteiga e cordeiro vindaloo, e dividimos os pratos?
— Tudo bem — eu digo.
— Quer mais alguma coisa?
— Talvez — eu digo, pensando que, quanto mais comida tivermos para comer, menos tempo teremos para conversar.
O garçom traz nossas bebidas.
— Prontos para pedir?
Meu pai olha para mim.
— Vamos pedir esses dois pratos primeiro e, depois, se você quiser mais alguma coisa, pedimos também, ok?
Eu concordo. Meu pai faz o pedido.
Quando o garçom se afasta, voltamos a olhar um para o outro.
— Na escola, vai tudo bem? — ele pergunta.
Acho que meu pai quer que eu diga que vai tudo bem, assim pode se sentir menos culpado.
Estou sobrevivendo. Aos trancos e barrancos.
Não vou amenizar a culpa dele.
Ele me fala que encontrou Kara e Sandy na loja de CDs. Como meu pai só entrava na loja de CDs se eu implorasse, acho que ele estava com Darlene. Imagino o choque das minhas antigas amigas ao ver Darlene. Eu me pergunto por que nenhuma das duas me mandou uma mensagem falando sobre isso. Elas provavelmente acharam que isso ia me deixar chateada. Constrangida. Elas têm razão.
— Estou com fome — diz meu pai quando um garçom diferente passa por nós com dois pratos de comida.
— Eu também — minto. Não sei se vou conseguir comer. Todos aqueles aromas que antes me inspiravam sentimentos de amor agora me provocam náuseas.
Ficamos em silêncio outra vez. O telefone do meu pai toca avisando da chegada de uma mensagem. Ele lê. Eu me pergunto se é Darlene. Não. Ainda não tenho fome. O barulho do restaurante aumenta. Garfos batendo nos pratos. Ruídos de refeições sendo preparadas na cozinha. O burburinho das conversas. Ouço a recepcionista perguntando para quantos é a mesa.
— Três. Obrigado — responde o cliente. A voz me parece familiar.
Olho na direção da porta. Perco o fôlego. Cash está entrando com um homem e uma mulher.
A mulher do vídeo, só que mais velha. O homem tem cabelos escuros. E olhos castanhos. O mesmo tom castanho dos meus olhos.
Analiso o rosto dele.
Depois o rosto dela.
Eles são meus pais? Tenho o DNA deles? Fui arrancada da minha família?
Parte de mim quer correr até eles, outra parte quer fugir.
Cash deve ter sentido o meu olhar, porque olha na minha direção e arregala os olhos, como quem diz, “Ah, merda".
Abro o cardápio para cobrir meu rosto.
— Por aqui — ouço a recepcionista dizer. Os passos se distanciam. Meu coração bate forte no peito. Ouço o sangue fluindo nos meus ouvidos.
Abaixo o menu e vejo Cash tentando fazer os Fuller se sentarem de costas para mim.
O pânico sobe até o meu peito como um líquido quente. Meus pulmões recusam o oxigênio.
— Você encontrou outra coisa que queira pedir? — meu pai pergunta.
Eu desvio os olhos para a mesa de Cash e depois para a porta.
— Não vai dar... — digo, sem querer, em voz alta.
— O que não vai dar? — ele pergunta.
Eu me levanto, não tão rápido a ponto de chamar atenção, e sigo na direção da porta.
— Chloe? — meu pai me chama. Não olho para trás.
Abro a porta. O ar quente me envolve. Ainda não consigo respirar.
— Merda!
Vou até o carro do meu pai e me encosto no capô. Meu coração está batendo na garganta. E então a ficha cai. Eu tenho que saber. Tenho que saber se eles são meus pais. Tenho que saber se não fui simplesmente abandonada, como se não fosse importante. Como se não fosse amada. Aperto os punhos.
Então ouço passos. O medo dá um nó no meu estômago. Será que eles me viram? Será que tudo vai acontecer agora? Por mais que eu queira conhecê-los, estou com medo. Ergo os olhos. É meu pai.
Seus passos devoram a calçada, na minha direção. Ele me olha com a testa franzida.
— Que diabos aconteceu? — ele me pergunta. Seus ombros estão tensos, sua expressão é carregada; a frustração é uma nuvem ao redor dele.
A raiva dele desperta a minha. Minha mente dispara e a única coisa em que consigo pensar é repetir o que eu já disse.
— Não vai dar.
— Não vai dar para fazer o quê?
— Ter um encontro de pai e filha como se tudo estivesse bem quando não está. — No segundo em que a desculpa sai da minha boca, não é mais uma desculpa. É a mais pura verdade. — Você me abandonou. Você não está nem aí comigo. — Sinto-me abandonada, como na época em que tinha 3 anos. Então, do nada, ouço uma voz, “Seu pai e sua mãe não querem mais você". De onde, diabos, vem essa voz? Lágrimas enchem meus olhos. — Você pode abrir o carro? Por favor!
A expressão do meu pai endurece.
— Eu me divorciei da sua mãe, não de você!
— Não é o que parece — rebato.
Ele fica ali, ainda com raiva, ainda frustrado e ainda o homem que culpo por me causar tanta dor. Como ele pode não se envergonhar de si mesmo?
— Vou lá pagar o jantar. — Ele abre o carro.
Deslizo para o banco do passageiro e me encolho para que ninguém me veja caso saia do restaurante. É muito estranho que eu esteja aqui fora discutindo com meu pai enquanto meu pai e minha mãe de verdade podem, muito bem, estar dentro do restaurante.
Começo a suar, mas não me importo. Fico sentada ali, com as janelas fechadas e sentindo calor. Então sinto novamente. O medo. Quero fugir. Estou com medo.
Fecho os olhos, pressiono a cabeça contra o encosto do banco e tento respirar. O tempo passa. Um minuto. Dois. Três.
Cinco.
Oito.
Que diabos meu pai está fazendo? Ah, Deus. Será que os Fuller me viram e foram confrontar meu pai?
Meu celular toca e chega uma mensagem. Pego o aparelho. É Cash.
Ele: Está tudo bem?
Eu: Não. O que está acontecendo?
Ele: Seu pai está pegando a comida para viagem.
Eu: Eles me viram?
Ele: Não.
Ouço a porta do carro se abrindo. Sinto outra onda de medo. Eu a reprimo. Meu pai, parecendo chateado, me entrega uma grande sacola branca.
Ele se senta atrás do volante, mas não liga o carro.
— Você é minha filha. Minha garotinha. Não posso perder você, Chloe!
Lágrimas enchem meus olhos e eu me viro para a janela. O aroma de comida indiana invade o carro, o cheiro dos meus encontros com meu pai. De repente, passo a não gostar mais daquele cheiro.
Ele começa a falar novamente.
— Sei que eu deveria ter ligado e estraguei tudo. E, sim, eu só me lembrei tarde demais que era a data da sua adoção. Por isso suas flores não chegaram até você a tempo. Eu sou humano. Não sou perfeito, Chloe.
Meu peito queima de raiva, mágoa, desespero. Um pouco por causa de hoje. Um pouco por causa do passado. Ainda não consigo olhar para ele, mas digo:
— Você costumava ser perfeito. Você costumava se lembrar das coisas. Eu costumava ter importância para você.
Eu o ouço bater a mão no volante e dizer um palavrão de cinco letras. Depois de um segundo, ele diz:
— Você ainda é importante para mim.
O silêncio paira entre nós, dentro do carro. Tudo que ouço somos nós dois respirando e meu coração se partindo.
— Muitos pais se divorciam — diz ele como se isso fosse justificativa. — Pais e filhas no mundo todo continuam se dando bem. Por que nós não podemos?
A pergunta paira no ar e a resposta surge dentro de mim como o vulcão que ele e eu construímos para o meu projeto de ciências, na quinta série.
— Acho que a mãe delas não teve câncer! — Minha voz soa estridente. — O pai delas não as deixou cuidando de tudo. Tendo que lidar com a mãe vomitando por semanas a fio, enfrentando o pensamento de que a mãe estava morrendo!
As palavras jorram da minha boca. Não consigo contê-las. Estou quebrando todos os ovos. Não me importo. Parece que, se eu não disser tudo isso, algo dentro de mim vai explodir.
— Mamãe teve câncer! Mas é como se eu também tivesse tido. Fui eu quem preparou sopa de tomate e sanduíches de queijo grelhado para ela, porque ela não conseguia comer outra coisa. Fui eu quem se sentou no chão do banheiro com ela chorando, porque o cabelo estava caindo. Fui eu quem teve de ser forte quando não me sentia forte. Eu, pai! — Bato no peito. — Eu! Droga! Ela precisava de você. Eu precisava de você! Mas você estava muito ocupado para se importar... tingindo o cabelo, comprando um novo guarda-roupa e transando com a Darlene!
Meu pai segura o volante e desvia os olhos de mim. Respira fundo. Segura o ar. Segura mais um pouco. Então olha para mim, novamente. Eu vejo tudo nos olhos dele. Culpa. Dor. Até amor. E isso é o que mais dói.
— Eu... Eu sinto muito. Eu não... Eu fiz tudo errado. Fiz mesmo, querida.
Eu respiro com dificuldade. Estou instável. Todo meu mundo está instável.
Meu pai liga o carro e acelera. Meu colo está quente por causa das caixas na sacola. O cheiro impregna o carro. Quero jogar tudo pela janela. Nunca mais vou comer comida indiana outra vez.
Ele dirige em direção à minha casa. Entra no meu bairro. Mas não vira na minha rua.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Não sei. Mas não posso deixar você sair deste carro até...
— O quê? — pergunto.
Eu o ouço engolir em seco.
— Até que... me perdoe. — A voz dele falha.
— Então vamos ficar neste carro por muito tempo! — Digo a mim mesma para não me sentir mal por ele estar sofrendo.
Ele vai para o parque. O mesmo ao qual Cash e eu fomos quando ele me contou sobre Emily.
Estaciona sob um poste de luz.
— Chloe, eu não sei o que eu estava pensando. Na verdade, eu não estava pensando. Você estava crescendo, sonhando com a faculdade e com garotos. Sua mãe só pensava em escrever, sonhando com uma nova carreira. E eu... Eu não tinha sonhos. Eu me sentia velho e cansado. — Ele respira fundo. — Então conheci Darlene e... — Ele para de falar.
— E você a amou mais do que amava mamãe e a mim?
Ele respira.
— Não. Mas não há desculpa para o que eu fiz. Eu vejo isso agora. É tão assustadoramente claro. Eu fui um idiota. Não mereço o seu amor. Não mereço o seu perdão. Mas não posso perder a minha garotinha. Por favor... me perdoe.
A dor dele é tão real que eu a sinto. Fico sem falar por quase um minuto, porque não sei o que dizer, mas depois as palavras jorram da minha boca.
— Eu não me recusei a ver você. Mas perdoar não é nada fácil. — Eu engulo. — Ainda te amo, mas às vezes preferia não amar.
Ele balança a cabeça, como se entendesse.
— O que posso fazer para ajudar? Faço qualquer coisa. Me diga. Sua mãe precisa de dinheiro?
— Eu... acho que não. Mas ela me disse para perguntar por que o seguro do meu carro não está pago.
— Não está pago? — ele pergunta.
— Ela disse que não.
— Mas Darlene disse... Vou averiguar. O que mais posso fazer?
— Nada. — Ouvir o nome de Darlene me deixa com raiva de novo.
Meu celular toca com a chegada de outra mensagem. Eu não olho. Deve ser Cash.
Ficamos sentados em silêncio, no carro, sentindo o calor.
— Trouxemos você aqui no dia em que a buscamos — meu pai diz.
Eu olho para ele, sem entender. Ele continua:
— Quando pegamos você na agência, fomos ver seus avós e depois viemos aqui. Eu coloquei você no balanço. Lembro-me de pensar em como você era delicada. Tão pequena, mesmo não sendo mais um bebê. Eu estava com medo, sabendo que, a partir daquele momento eu era responsável por cuidar de você. Coloquei você no balanço, mas estava com medo de empurrar com força demais e você cair. Você parecia assustada. Eu queria fazer alguma coisa, qualquer coisa para provar a você que eu era um cara legal. — Ouço a voz dele ficar embargada. — Eu me apaixonei por você logo de cara. Jurei que nunca deixaria ninguém machucá-la e agora eu sou o idiota que está te machucando. Eu me odeio por isso.
Eu não digo nada.
— Sei que vai levar um tempo para você me perdoar, mas não vou desaparecer da sua vida. Eu amo você — ele diz.
Sei que parece loucura, mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu, nunca duvidei que meu pai não me amasse. Eu simplesmente não consigo entender como ele pode ter me amado e feito o que fez.
Sei que ele espera que eu responda. Que eu diga que o amo. Mas eu já disse isso uma vez. É tudo o que posso fazer.
18
— Chloe? — Meu pai pega a minha mão. O toque me provoca um choque de dor. Eu quase me afasto, mas não faço isso porque sei que vou magoá-lo.
Nós ficamos sentados ali. Lembro-me do que eu queria perguntar a ele esta noite.
— Qual era o nome da agência de adoção?
— O quê?
Tiro a minha mão da dele.
— O nome da agência de adoção. Era em Fort Landing, não era?
— Sim. Acho que era... New Hope ou algo assim. Por quê?
Dou de ombros.
— Só curiosidade.
— Você está querendo...
— Não — me apresso a dizer. — E não diga nada à mamãe. Tenho medo que ela fique chateada.
— Não vou dizer nada.
Depois de outros segundos de silêncio, ele abre a porta do carro.
— Vamos lá? — diz ele.
— Onde?
— No balanço? Você costumava querer que eu te balançasse o tempo todo.
— Não — eu digo.
— Me deixe fazer isso... Você me disse uma vez que balançar era tão bom quanto voar.
Quase volto a recusar o convite, mas me lembro de quanto ele parecia chateado alguns minutos atrás, então resolvo sair do carro. Está escuro, mas a lua está cheia e brilhante. A noite está tão silenciosa que ouço nossos passos na calçada. Caminhamos até os balanços mais altos. Cada um se senta em um, deixando um espaço entre nós. Ele parece grande demais para estar num balanço. Eu me sinto muito grande. Mas a mágoa entre nós, de alguma forma, parece menor.
Eu balanço. Pernas para trás. Pernas para a frente. Contemplo a grande bola prateada no céu, as estrelas brilhantes. O movimento, o vaivém, parece de alguma forma catártico. A sensação é de que estamos voando.
Uma lufada de ar passa por mim quando meu pai pega impulso. Enquanto ele avança, eu recuo. Não estamos no mesmo ritmo. Percebo que pode demorar um pouco até que a minha relação com meu pai volte a ser como antes.
Eu não sei quando conseguirei perdoá-lo, mas essa é a primeira vez que sinto o arrependimento dele. Isso não resolve nada. Mas é um começo. Talvez nunca mais seja como antes, mas espero que encontremos um novo ritmo, um novo relacionamento entre pai e filha que não cause mágoas.
Acho que quebrar ovos pode ter suas vantagens.
Quando entro em casa, não sinto cheiro de comida vindo da cozinha. Minha mãe não preparou o jantar. Vou até o quarto, esperando que ela esteja acordada.
Ela está. Deitada no sofá, lendo. Não está escrevendo. Eu fico ali, lembrando-me de como me senti quando vi a sra. Fuller, como se tivessem me roubado alguma coisa — o amor da minha mãe. No entanto, eu tenho uma mãe. E por mais relapsa que tenha sido neste último ano, ela me ama. Eu sei disso. E eu a amo.
Ela ergue os olhos e de repente me sinto culpada. Culpada por ter sentido que ela não bastava, culpada por ter me queixado ao meu pai por ter de cuidar dela. Sim, eu sou uma cretina. Foi horrível para mim, mas não tanto quanto foi para ela. E, se fosse eu que tivesse adoecido, ela faria a mesma coisa por mim. Só que ela nunca teria reclamado. Meu peito se aperta.
Pego o meu celular.
— Você quer de quê?
— O quê?
— Estou pedindo uma pizza para nós.
— Pensei que você tinha saído com seu pai para jantar...
— Eu não comi nada — digo.
— Por quê? — ela pergunta.
— Estava sem apetite.
— Vocês discutiram? — Ela se endireita no sofá, como se estivesse se preparando para ficar com raiva.
— Quero a de lombo canadense com abacaxi — minto, porque sei que ela adora. — Um pouquinho doce e um pouquinho salgada. Está bom para você?
— Sim. Sobre o que foi a discussão?
— Você quer salada?
— Você não vai me contar?
— Você sabe o que acho que devemos fazer? — pergunto.
— O quê? — ela diz parecendo um pouco frustrada.
— Encomendar a pizza e depois dar outra chance para aquele filme que você queria assistir.
Ela faz uma careta.
— Era um pouco forte...
— Talvez. Mas o humor às vezes é um pouco forte. E nós duas precisamos rir.
— Você já viu?
— Sim. Mas quero ver de novo.
— Com quem? Com quem você viu aquele filme?
Eu franzo a testa.
— Promete que não vai ficar brava?
— Alex? — Como eu não nego, ela parece chocada, mas não muito brava.
— Sim. E nós dois rimos muito. E você está precisando rir também. Então vamos comer a pizza e assistir ao filme. E vamos rir das piadas de camisinha. Ok?
Ela parece surpresa com o meu jeito de falar, meio autoritário.
— Acho que não tenho escolha.
Lembro-me de Cash dizendo: Você sempre tem escolha. Mas, para minha mãe, essa é a escolha certa. E fico feliz que ela não esteja discutindo comigo. Já discuti o suficiente esta noite.
Quando Cash e os Fuller chegaram em casa, ele queria ir direto para o quarto.
— Acho que vou ler um pouco — disse a sra. Fuller, subindo as escadas, rumo à suíte principal.
Quando Cash começou a subir para o andar de cima, ouviu o sr. Fuller dizer:
— Cash, pegue duas cervejas na geladeira e vamos conversar aqui fora.
O quê?
— Cerveja?
— Sei que você já ficou bêbado antes.
— Eu não bebo tanto assim. — Ele já tinha visto o pai biológico beber demais e não tinha nenhuma vontade de fazer o mesmo.
— Eu não iria oferecer uma a você se achasse que bebe demais. Vou esperar aqui fora.
Cash pegou duas Bud Lights.
— O que eu fiz? — perguntou, com o palpite de que aquela pergunta tinha a ver com o comentário mal-humorado que soltara como resposta à sugestão de ser adotado.
— Obrigado por ir jantar conosco. Susan estava com receio de que você não fosse.
O sr. Fuller torceu a tampa da cerveja. Cash fez o mesmo.
— Ela te ama. — O sr. Fuller levantou a cerveja e deu uma golada.
— Ama até demais... — Cash tomou um gole.
— Ninguém pode amar demais — disse o sr. Fuller.
Cash discordava.
— Esta conversa é porque ela me disse que queria me adotar, não é?
O sr. Fuller baixou a cerveja.
— Nós não entendemos. Por que você não quer?
— Vou fazer 18 anos daqui a seis semanas. Não preciso de ninguém cuidando de mim.
— Todo mundo precisa de uma família, Cash.
Não, não é verdade.
— Olha, não é que eu não seja grato ao que vocês fazem por mim.
— Nós sabemos disso, Cash. É por isso mesmo. Você é grato. Nós temos certeza. E, tirando as briguinhas por aí, você é um bom garoto. Até suporta as regras de Susan... e algumas são ridículas! E eu sei que é porque você gosta dela. É por isso que não entendo por que você não quer a adoção.
Cash encolheu os ombros.
— Eu não sei o que dizer. Só não acho necessário.
O sr. Fuller tomou outro gole de cerveja.
— Você sabe do que ela tem medo?
— Não. — Cash girou a garrafa gelada nas mãos.
— Que, depois do seu aniversário, você arrume suas coisas e vá embora e nós nunca mais vejamos você. E... Caramba! Ela ainda sofre porque perdeu a filha. Não pode perder o filho.
A dor apertou o peito de Cash. Por isso ele esperava que Chloe fosse Emily.
— Não pretendo me mudar antes de me formar.
— E depois? — perguntou o sr. Fuller.
— Eu preciso ser eu mesmo.
— E quando tentamos fazê-lo ser algo que você não é?
— O tempo todo — disse ele, num tom firme. Você quer que eu seja seu filho. — Você ficou chateado quando me inscrevi em Tecnologia Automotiva. Você quer que eu vá para uma faculdade chique. E a sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina. O que eu não vou fazer.
— É errado da nossa parte querer que você vá para uma faculdade melhor? Você é tão inteligente, Cash! Você tem notas mais altas do que eu e Susan tínhamos. Você pode ser o que quiser. Por que quer ser mecânico?
— Não há nada de errado em ser mecânico. E eu vou para a faculdade, só não vou fazer o que você quer.
— Mas nós temos dinheiro...
— Eu consegui uma bolsa! — Cash se levantou.
— Cash, filho, por favor, sente-se.
Eu não sou seu filho.
Ao ver que Cash não faria isso, o sr. Fuller continuou:
— Estou implorando a você, não a magoe mais do que ela já foi magoada.
— Estou tentando não fazer isso. — Cash disparou para o andar de cima, procurando não bater a porta do quarto com muita força.
No quarto, o celular tocou. Uma mensagem de Chloe. Ele tinha enviado uma mensagem para ela mais cedo e perguntado se poderiam conversar.
A resposta dela: Esta noite não posso. Vamos conversar amanhã.
— Merda! — Cash jogou o aparelho na cama. Ele bem que precisava de uma distração. Precisava rir um pouco. Precisava ouvir a voz suave dela. Queria provocá-la mais sobre a leitura de Cinquenta Tons de Cinza e contar sobre o livro que comprara.
Ele queria...
Ele queria...
Ele queria...
Eram onze horas quando fui dormir. Minha mãe e eu rimos muito com o filme. Acho que foi um bom filme, mas na verdade ri mais de minha mãe do que de qualquer outra coisa. Agora não consigo dormir. Nada mais parece tão engraçado. Continuo vendo os Fuller na minha frente. O rosto dela no restaurante. O rosto dele. Os olhos dele. O homem que poderia ser meu pai.
Fico me perguntando se sou Emily. E se eu sou, o que seria da minha vida se eu não tivesse sido sequestrada e levada para longe da minha verdadeira família? Na outra vida, eu ainda seria eu? Como eles ainda são casados, eu teria sido poupada da tristeza causada pelo divórcio dos meus pais? Da angústia causada pelo câncer da minha mãe? Eu teria ido para uma escola particular e agora estaria planejando ingressar em uma das melhores faculdades do país? Quem eu seria se não tivesse crescido achando... achando que fui abandonada? Que fiz algo de errado. Até que ponto minha vida teria sido melhor?
Isso faz com que eu me sinta culpada novamente. Como se querer respostas, querer saber se meus verdadeiros pais me amavam, fizesse de mim uma filha ingrata aos olhos dos pais que me adotaram.
Afastando esse pensamento, começo a recapitular todas as coisas que eu disse para o meu pai. Tudo que eu disse é verdade, mas eu me lembro das lágrimas nos olhos dele, da dor que minhas palavras lhe causaram. Mesmo sabendo que ele mereceu, não me parece certo fazê-lo sofrer.
O pensamento mais absurdo me ocorre. E se o meu pai sofresse um acidente a caminho de casa? E se eu o perdesse! Lembro-me dele dizendo que me ama, enquanto estávamos sentados no carro. Ele precisava ouvir que eu também o amo, mas eu não disse nada. E se aquela foi a última chance que tive de dizer isso?
Eu sei, não devia pensar em tragédias como essa, mas penso assim mesmo, e essa bola de emoção — de tristeza e de uma culpa que eu não deveria sentir — fica represada no meu peito, como um grande elefante cor-de-rosa.
Pego o celular para mandar uma mensagem para o meu pai. Então percebo que ele não está na casa dele, percebo que a casa dele era minha e agora é a casa de Darlene. Jogo o celular longe e fecho as mãos em punho.
Penso em escrever uma mensagem para Lindsey, mas tenho certeza de que ela ainda está fora com David.
À meia-noite, pego o celular para mandar uma mensagem para Cash. Quero contar a ele que descobri o nome da agência de adoção. Quero alguém para me dizer que eu não deveria me sentir desleal por precisar de respostas. Ou talvez eu só queira conversar. Com ele. Ontem à noite, nossa conversa foi divertida. Me fez esquecer como a minha vida está bagunçada.
Não importa que ele esteja ajudando a descobrir se sou uma criança sequestrada. Não importa, por causa da provocação, do flerte, do desejo de saber mais sobre ele. Isso é divertido. É normal.
Eu preciso de mais coisas normais.
Começo a mandar uma mensagem para ele, mas o imagino dormindo em sua cama. Até imagino-o sem camisa. Nunca o vi sem camisa, mas posso imaginar como seria bom.
Nesse momento, meu celular toca, avisando sobre a chegada de uma mensagem. Levanto da cama num salto e pego o celular.
É dele. Está acordada?
Eu: Sim. Quer conversar?
Ele: Não.
Eu: Não...?
Ele: Quero ver você. Estou aqui fora, em frente à sua casa.
Eu: Em frente à minha casa? Agora?
Eu corro para a janela. Meu coração dispara.
Eu vejo o jipe dele. E mais do que tudo, quero ver Cash.
19
Eu me viro para ir até a porta, mas ouço o velho assoalho de madeira rangendo embaixo dos meus pés descalços. Paro e percebo que estou vestindo apenas shorts e uma camiseta combinando.
Estou decente?
Sim. Embora esteja sem sutiã, a blusa não é justa.
Meu próximo pensamento é se minha mãe está me ouvindo.
Corro de volta para a janela.
Não tem tela. Estou prestes a destrancá-la quando meu celular tocar novamente.
Ele: Isso significa que você não quer me ver?
Eu: Estou abrindo a janela.
Ouço a porta do jipe abrir e fechar, e vejo Cash. O peso no meu peito diminui como neblina se dissipando.
Ele parece tão lindo, caminhando em direção à minha janela... Em direção a mim.
— Tenho medo de acordar minha mãe, se abrir a porta da frente — sussurro.
Ele olha para cima.
— Você quer que eu entre?
— Não, eu vou sair. — Olho para baixo. É apenas uma queda de um metro de altura. Considerando que tenho um metro e setenta de altura, não é nada. Coloco o tronco para fora da janela, monto no parapeito, depois me viro e coloco a outra perna para fora. Estou inclinada para a frente, sentada na janela. Tudo que preciso fazer é saltar.
— Eu pego você. — As palavras dele soam tão doces. Eu quero que ele me pegue.
Cash estica a mão e eu salto. As mãos deslizam para baixo da minha blusa de pijama. Sinto o toque dele na minha cintura nua, e é tão bom, tão quente, tão doce. Eu instantaneamente sinto borboletas no estômago.
Quando coloco os pés no chão, recupero o fôlego, não por causa do salto, e sim em razão do toque de Cash. Ele me puxou para mais perto ou eu é que me aproximei?
Nós nos beijamos. Os lábios macios de Cash deslizam sobre os meus. As mãos dele descansam na minha cintura, e seus polegares fazem pequenos círculos nas minhas costas, logo acima da minha cintura. Minhas mãos se movem para a cintura dele.
Eu me inclino mais para perto. Meus seios, sem sutiã, estão comprimidos contra o peito sólido dele. Uma emoção, um doce formigamento, toma conta de mim.
— Uau. — Ele se afasta.
— Sim. — Eu sorrio. — Eu queria mandar uma mensagem para você.
— Por que não mandou?
— Achei que estivesse dormindo.
— Não consegui dormir — ele diz.
— Nem eu.
— Noite ruim? — ele pergunta.
— Sim. E você?
— Sim. Mas está melhor agora. — Ele se aproxima e me beija novamente. Desta vez, a língua dele desliza entre os meus lábios; sua boca tem gosto de menta, como se ele tivesse tomado um refresco.
Quando o beijo termina, estamos ambos sem fôlego.
— Você quer ir a algum lugar?
Eu reviro os olhos.
— Estou de pijama e descalça.
Seus olhos se desviam para os meus pés.
— Que fofura...
Enfio os dedos na grama quente.
— Meus pés?
— Você inteira! — diz ele. — Quer se sentar na varanda?
Eu ouço um miado. Félix pula no peitoril da janela do meu quarto.
— Não! — digo a ele, e Félix volta para o meu quarto. Cash fecha a janela.
— Talvez no seu carro — eu digo, sem querer que ninguém me veja de pijama, beijando um cara na minha varanda da frente.
— Tudo bem. — Ele tira a mão da minha cintura e segura a minha mão enquanto caminhamos para o carro dele. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
— O que aconteceu? — pergunto, lembrando-me do comentário sobre a noite ruim. — Eles não me viram, não é?
— Não. Só um pouco mais da mesma ladainha.
— Você quer dizer deixar o emprego e ir para uma faculdade melhor?
— Sim — diz ele.
— Lamento por você.
Chegamos ao jipe de Cash.
— Você quer sentar no banco de trás?
Lembro-me do comentário de Lindsey sobre não querer que David pensasse que ela queria se sentar no banco de trás.
— Só para conversar — diz Cash, como se estivesse lendo meus pensamentos. — E beijar. — Ele parece envergonhado. — Não é para... você sabe.
— Sei. — Eu sorrio porque acredito nele. Cash não está ali para tentar algo para o qual eu não esteja pronta.
Fico na ponta dos pés e beijo a bochecha dele.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por vir aqui.
Cash abre a porta de trás e entra no jipe depois de mim. O console entre os assentos está abaixado. Deslizo apenas até a metade do banco e fico perto dele. Cash se acomoda ao meu lado e fecha a porta.
— Ovelhas — diz ele.
— O quê? — pergunto.
— Você tem ovelhas nos shorts e na blusa.
Eu olho para baixo.
— Estou de pijama.
— Eu sei. — Sorrindo, ele tira meu cabelo da bochecha. — Ah, tome.
Ele tira algo do bolso. É um saquinho.
Eu sorrio ao ver o que é.
— Skittles vermelhos. Obrigada. — Coloco um na boca.
Então coloco um na boca dele.
— O que fez a sua noite ficar ruim? Encontrar os Fuller no restaurante?
— Em parte. E eu sou uma quebradora de ovos agora.
— O quê?
— Lembra que eu acusei você de ser um quebrador de ovos enquanto eu sou alguém que gosta de pôr panos quentes?
— Sim. O que você fez?
— Fiquei com muita raiva. Disse ao meu pai o que eu pensava dele por ter saído de casa e me deixado sozinha para cuidar da minha mãe doente.
— Muito bem. — Seu tom carinhoso me atinge em cheio no coração. — O que ele disse?
— Acho que meu pai finalmente percebeu o idiota que ele foi.
— Isso foi bom? — pergunta Cash.
— Não. Na verdade, não. Eu o magoei. — Mordo o lábio. — Ele chorou. Implorou para que eu o perdoasse.
— E você o perdoou — ele diz quase como se fosse uma coisa ruim.
— Não. Eu disse a ele que não era fácil. Mas eu falei que ainda o amo.
— Você é uma pessoa melhor do que eu — Cash diz.
Eu vejo algo nos olhos dele.
— Quem você precisa perdoar?
— Muitas pessoas.
Ele me beija novamente. Eu me perco na sensação da sua boca contra a minha.
Em alguns minutos, estamos deitados no assento, um de frente para o outro. Nós nos beijamos, nos beijamos e nos beijamos. As minhas mãos estão em seu peito; as dele, ainda na minha cintura. Ele sobe a minha blusa nas costas e suas mãos começam a vir para a frente. Para os meus seios.
Então ele tira as mãos das minhas costas e enterra o rosto no meu pescoço. Sinto sua respiração contra minha bochecha. Eu abro os olhos.
As janelas do carro estão embaçadas. Ele levanta a cabeça e eu vejo seus olhos. As pupilas estão dilatadas. Eu sei que ele parou para cumprir sua promessa. E eu quase gostaria que ele não tivesse prometido nada.
Cash sorri. Eu sorrio de volta.
— Eu precisava disso — ele diz. — Você me faz... esquecer as coisas ruins.
— Sim. — Eu o beijo outra vez, mas termino rapidamente. Lá no fundo, sei que precisamos desacelerar. Sei o que vem a seguir. E, embora pareça ótimo, não estou realmente pronta para o próximo passo.
Eu toco os lábios dele.
— Você faz eu me sentir tão... normal.
— Normal? — Ele sorri contra os meus dedos. — Para uma garota que lê histórias de amor, acho que você pode fazer melhor do que isso.
Eu solto uma risada.
— Não, quero dizer, não sou Chloe, cuja mãe tem câncer ou está depressiva. Ou Chloe, cujo pai é um cafajeste. Ou Chloe que pode ser uma garota sequestrada. Sou apenas uma garota normal, sentindo coisas incríveis enquanto beija um cara muito gato.
— Gosto da parte do “cara muito gato” — diz ele.
— Eu gosto do cara muito gato.
— Você é incrível. — Cash corre um dedo pela minha bochecha.
Lembro-me do que eu queria dizer a ele.
— Você estava certo. Meus pais usaram a Agência de Adoção New Hope.
— Como você sabe?
— Perguntei ao meu pai.
— Você contou a ele...?
— Não, eu disse que estava curiosa e pedi que não comentasse nada com a minha mãe.
Cash assente.
— Deveríamos ir até essa agência. Pedir para ver a sua documentação.
— Eles me deixariam ver? — Sento-me.
— Você não tem 18 anos ainda, mas logo terá, então quem sabe? Talvez deem algum papel para seus pais assinarem.
A mágica do beijo começa a desaparecer e eu me lembro do que estou enfrentando.
— Eu quero fazer isso. Vou fazer, mas... — Eu me lembro de ouvir minha mãe rindo aquela noite. — Não posso pedir para a minha mãe assinar nada. Isso pode deixá-la ainda mais deprimida.
— Eu poderia forjar a assinatura dela.
— Isso é ilegal.
— Não tão ilegal quanto sequestrar uma criança.
Sim, a mágica se foi.
— Meus pais não me sequestraram. Eles me adotaram.
— Eu não quis dizer... — Cash hesita. — Antes de irmos, precisamos saber tudo que for possível. Vou tentar dar uma olhada no arquivo. Podemos ir à agência na segunda-feira.
Concordo.
Os olhos verdes encontram os meus com cautela.
— Quando perguntei se você se lembrou de algo de antes da adoção, você disse “mais ou menos”. Do que você se lembra?
— Nem chega a ser uma lembrança completa. Estou sentada num sofá, ele é marrom-claro e manchado. Estou chorando, assustada. Calço sapatos pretos de verniz, com fivelas. O tapete é sujo. E estou usando um vestido de princesa e segurando uma tiara.
— Havia alguém com você?
— Não sei. Tudo o que sei é que estou com medo.
— Como se você tivesse sido sequestrada?
— Não sei, mas esse sentimento, esse mesmo medo, às vezes eu sinto do nada. — Minha garganta dá um nó. — Ou talvez seja do dia em que a minha mãe me deixou na agência de adoção. E se estivermos errados? E se tudo isso for uma coincidência? E meus verdadeiros pais simplesmente não me queriam?
Ele franze a testa.
— São muitas coincidências. Sua vida aqui. O nome do seu gato. A data em que Emily foi sequestrada e que você foi adotada. A sua boneca.
— Sim, mas ainda assim podem ser simples coincidências.
O ombro dele se aproxima do meu.
— Vamos descobrir.
Fecho os olhos e me lembro de quase ouvir alguém me dizendo que minha mãe e meu pai não me queriam mais. Isso aconteceu ou foi só uma impressão que eu tive? E o machucado no rosto...?
— Você acha que, se os Fuller tivessem me visto, eles me reconheceriam?
— Sim. Você está como naquela foto.
Eu me inclino contra ele.
— Isso é tão difícil...
— Eu sei — diz Cash.
Nesse momento, um carro para em frente à casa de Lindsey. Vejo quando os faróis se apagam.
— É Lindsey voltando para casa, depois do encontro com David. — Eu me abaixo no assento e o puxo para baixo. Ele volta a se levantar.
— Opa! Eles estão na varanda. Vão se beijar.
— Pare de bisbilhotar. — Mas então eu me levanto e vejo David beijar Lindsey.
— Que bom! — digo, esperando que Lindsey não esteja pensando em Jonathon.
— Isso é mais que bom. — Cash me puxa para baixo e me beija. E ele está certo. É mais do que bom.
Nos beijamos até ouvirmos o carro de David se afastar. Então eu digo:
— Já é tarde.
— Tem razão. — Ele me leva de volta até a janela e a abre.
Eu calculo a altura.
— Entrar vai ser mais difícil do que foi para sair.
— Salte e eu te dou impulso. — Ele pega os Skittles da minha mão e os coloca no bolso.
Apoio as mãos no parapeito da janela e pulo. As mãos dele empurram meu traseiro e Cash me dá impulso para cima. Metade do meu corpo já está do lado de dentro. De repente, acho engraçado. Dou risada e olho para trás.
— Já pode tirar as mãos da minha bunda agora.
— Eu estava apenas ajudando — diz ele, e sorri.
Acabo de escalar a janela, depois me viro e olho para Cash.
Ele me entrega as balas e depois dá um salto se apoiando no parapeito. Seus ombros enchem o espaço da janela, os bíceps musculosos enrijecendo, os olhos verdes nos meus.
Ele me dá um breve beijo de despedida.
— Bons sonhos.
— Você também.
Eu o vejo voltar para o carro. Corro a língua pelos lábios para saborear o gosto do beijo dele. Mesmo com todos os problemas, pela primeira vez estou começando a gostar de morar em Joyful.
C O N T I N U A
— O que está fazendo? — pergunto quando meu pai entra no estacionamento de uma loja de conveniência, a pouco mais de um quilômetro de onde minha mãe e eu estamos morando agora. Minha voz soa meio desafinada depois de passar cinco horas de viagem sem falar. Eu estava com medo de que, se dissesse alguma coisa, tudo dentro de mim transbordaria. Minha raiva. Minha mágoa. Minha decepção com o homem que costumava ser meu super-herói.
— Preciso abastecer o carro e ir ao banheiro — diz ele.
— Ir ao banheiro? Quer dizer que você não pode nem entrar para ver minha mãe quando me deixar em casa? — Sinto o coração apertado como se uma mão gigante o esmagasse.
Ele me olha nos olhos, ignora minhas perguntas e diz apenas:
— Você quer alguma coisa?
— Sim, minha vida de volta! — Saio do carro e bato a porta com tanta força que o barulho de metal contra metal reverbera no ar abafado do Texas. Arrasto os pés pelo estacionamento, enquanto fito minhas sandálias brancas devorando a calçada e tento esconder o brilho das lágrimas nos meus olhos.
— Chloe! — meu pai me chama. Eu ando mais rápido.
Com os olhos ainda colados no chão, abro a porta, entro com tudo dentro da loja e dou um encontrão em alguém, esmagando meus peitos contra o peito da pessoa.
— Merda! — rosna uma voz grave.
Um copo de isopor bate no chão e uma bebida vermelho-sangue explode nas minhas sandálias brancas. O copo vira, provocando uma hemorragia no piso de ladrilhos brancos.
Engulo o nó na garganta e dou um passo para trás, afastando meu sutiã tamanho P do tórax de um sujeito.
— Desculpe — ele murmura, embora a culpa seja minha.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ARRANCADA_DO_MEU_MUNDO.jpg
Eu me forço a olhar para ele e vejo primeiro o peito largo, depois os olhos verdes e em seguida o cabelo preto-azeviche caído na testa. Ah, droga! Eu não podia ter trombado com algum velhinho de bengala?
Volto a fitar os olhos brilhantes do desconhecido e vejo uma mudança neles. Não estão mais com uma expressão de quem se desculpa. Agora parecem chocados e então... zangados.
Eu deveria dizer algo do tipo, Eu é que tenho que me desculpar, mas o nó na minha garganta volta com força total.
— Merda. — A palavra volta a escapar, agora com uma cara feia.
Concordo, tudo isso é uma merda!
Ouço meu pai chamar meu nome novamente, do lado de fora da loja.
Minha garganta fica mais apertada e as lágrimas ardem nos meus olhos. Com vergonha de chorar na frente de um estranho, arranco minhas sandálias e disparo na direção de uma geladeira cheia de refrigerantes.
Abro a porta de vidro e estico o pescoço para sentir o ar frio, precisando muito esfriar a cabeça. Enxugo algumas lágrimas rebeldes nas bochechas, depois sinto alguém ao meu lado. Meu pai não vai deixar isso passar em branco.
— Apenas admita que você estragou tudo! — eu digo, depois olho para o lado e sou engolida por aqueles mesmos olhos verde-claros zangados de um minuto atrás. — Pensei que você fosse... Foi mal... — balbucio, sabendo que é tarde para um pedido de desculpas. O olhar dele é inquietante.
O garoto continua a me encarar. Um olhar que não faz a mínima questão de esconder a antipatia. Como se a irritação dele não fosse apenas pela raspadinha derramada.
— Eu pago a sua bebida. — Ele nem pisca, então acrescento: — Me desculpe.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta fica sem resposta.
— O quê? Eu conheço você? — Sei que fui rude, mas, gato ou não, o cara está me deixando assustada.
Os olhos dele brilham de raiva.
— O que você quer? — Não entendo por que há um tom de acusação na voz dele.
— Como assim?
— Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Ele ainda está me encarando. Percebo que estou me sentindo intimidada com aquele olhar.
— Eu não sou... Você deve estar me confundindo com outra pessoa. — Balanço a cabeça, sem saber se o cara é tão louco quanto sexy. — Não sei do que você está falando. Mas já me desculpei. — Pego uma lata de bebida e, descalça, com as sandálias gosmentas na mão, ando rápido para a entrada da loja.
Meu pai entra, carrancudo.
— Cuidado! — diz a moça do caixa ao meu pai, enquanto limpa o chão sujo de raspadinha em frente à porta.
— Desculpe — murmuro para a moça e aponto para o meu pai. — Ele vai pagar meu refrigerante! E essa raspadinha aí no chão.
Disparo até o carro, entro e seguro a lata fria de refrigerante contra a testa. Os fios de cabelo na minha nuca começam a ficar arrepiados. Olho em volta e o gato esquisitão está do lado de fora da loja, me encarando novamente.
Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
É isso aí, o cara não bate bem. Desvio o olhar para fugir da vigilância dele. Meu pai volta para o carro. Ele não dá partida, fica ali parado, só me olhando.
— Você sabe que isso não é fácil para mim também.
— Ok. — Então, por que você saiu de casa?
Ele liga o carro, mas, antes de partirmos, olho em volta novamente e vejo o garoto de cabelos pretos parado no estacionamento, escrevendo algo na palma da mão.
Engano meu ou ele está anotando o número da placa do meu pai? Esse cara é muito doido! Eu quase digo algo para o meu pai, mas me lembro de que estou chateada com ele.
Meu pai acelera. Fico atenta ao espelho retrovisor. O cara gostosão fica ali, com os olhos colados no carro do meu pai, e eu também não tiro os olhos dele até que não passe de um pontinho preto no retrovisor.
— Sei que é difícil — diz meu pai. — Penso em você todo dia.
Eu balanço a cabeça, como se entendesse, mas não falo nada.
Minutos depois, meu pai encosta o carro na frente da nossa casa. Ou melhor, da casa onde moramos minha mãe e eu. Meu pai não mora mais conosco.
— Eu te ligo amanhã para ver como foi o seu primeiro dia de aula.
Meu estômago se contrai como um tatu-bola com o lembrete de que vou começar meu último ano do ensino médio numa escola nova. Olho para a casa velha no bairro antigo. A casa que um dia pertenceu à minha avó materna e que minha mãe alugou para um casal de idosos nos últimos anos. Agora moramos nela. Uma casa que cheira a gente velha... e a tristeza.
— Ela está em casa? — pergunta meu pai.
À luz do entardecer, nossa casa está às escuras. Uma luz dourada se infiltra por debaixo da porta da casa ao lado, onde mora Lindsey; ela foi a primeira pessoa da minha idade que conheci na cidade.
— Mamãe provavelmente está descansando — respondo.
Ficamos calados por um momento.
— Como ela está?
Achei que não ia perguntar... Olho para eu pai, enquanto ele segura o volante com força e analisa a casa.
— Bem. — Abro a porta do carro, sem querer me despedir. Dói demais.
— Ei! — ele sorri. — Pode me dar pelo menos um abraço?
Eu não quero dar, mas por algum motivo (porque sob toda aquela raiva, eu ainda o amo) eu me inclino sobre o console entre os bancos e o abraço. Ele não tem mais nem o cheiro do meu pai. Está usando uma colônia que Darlene provavelmente comprou para ele. Lágrimas ardem nos meus olhos.
— Tchau. — Tiro do carro um pé melado de raspadinha.
Antes de eu levantar o traseiro do banco, ele diz:
— Ela vai voltar logo a trabalhar?
Eu me viro para ele.
— Foi por isso que você perguntou como ela está? Por causa do dinheiro?
— Não. — Mas a mentira é tão clara na voz dele que fica pairando no ar.
Quem é esse homem? Ele tinge os fios grisalhos nas têmporas. Agora usa o cabelo espetado e está vestindo uma camiseta com o nome de uma banda que ele nem sabia que existia até Darlene aparecer na vida dele.
Antes que eu possa me conter, as palavras se derramam da minha boca:
— Por quê? Sua namorada está precisando de mais um par de sapatos de grife?
— Não, Chloe — ele diz num tom severo. — Você está falando como a sua mãe.
A mágoa agora aperta a minha garganta.
— Ah, pelo amor de Deus... Se eu falasse como a minha mãe, diria: “A putinha está precisando de mais um par de sapatos de grife?”. — Eu me viro outra vez para a porta do carro.
Ele pega meu braço.
— Olhe aqui, mocinha, não posso esperar que você goste dela assim como eu, mas gostaria que pelo menos a tratasse com respeito.
— Respeito? A pessoa precisa merecer respeito, pai! Se eu usasse as roupas que ela veste, você me mataria. Na verdade, nem você eu respeito mais! Você arruinou a minha vida. Você ferrou a vida da mamãe. E agora está transando com alguém dezoito anos mais jovem que você. — Saio do carro e, a meio caminho da soleira de casa, ouço a porta do carro se abrir e bater.
— Chloe. Suas coisas. — Ele parece zangado, mas não mais do que eu, porque, além de raiva, sinto mágoa.
Se eu não estivesse com receio de que ele me seguisse até em casa, todo ofendido, e começasse uma discussão com a minha mãe, eu não voltaria para pegar nada. Mas não quero mais ouvi-los discutindo. E não sei se minha mãe também iria aguentar. Não tenho opção a não ser fazer a coisa certa. É péssimo quando você é a única pessoa na família que se comporta como um adulto.
Eu me viro, seco as lágrimas bruscamente e me volto para o meio-fio.
Meu pai está de pé ao lado do carro, com uma mão segura a minha mochila e, com a outra, uma enorme sacola com as roupas novas que comprou para eu usar na escola. Ótimo. Agora me sinto a filha desalmada e ingrata.
Quando me aproximo, murmuro:
— Obrigada pelas roupas.
— Por que está tão brava comigo? — ele pergunta.
Tantas razões... Qual delas eu escolho?
— Você deixou Darlene transformar meu quarto numa academia de ginástica.
Ele balança a cabeça.
— Nós tiramos suas coisas e colocamos no outro quarto.
— Mas aquele quarto era meu, pai.
— É por isso que você está tão brava ou será porque... ? — Ele faz uma pausa. — Não é culpa minha que sua mãe tenha ficado...
— Continue pensando assim — eu digo. — Um dia desses, você pode até começar a acreditar!
Com as mãos ocupadas e o peito pesado, deixo meu super-herói e meu coração partido abandonados na calçada. Minhas lágrimas estão caindo rápidas e quentes quando fecho a porta da frente atrás de mim.
Docinho, um vira-lata amarelo de porte médio, me cumprimenta com um ganido e o rabo abanando. Eu o ignoro. Largo a mochila, a sacola de compras e vou para o banheiro. Félix, meu gato amarelo tigrado, vem correndo e entra comigo.
Tento fechar a porta de um jeito normal, em vez de batê-la com raiva. Se minha mãe me vir assim, vai ficar chateada. Pior ainda, isso alimentará sua raiva.
— Chloe? — minha mãe chama. — É você?
— Sim. Estou no banheiro. — Espero que minha voz não revele quanto me sinto arrasada.
Eu me sento no vaso sanitário, pressiono as costas das mãos contra a testa e tento respirar.
Os passos da minha mãe fazem o velho assoalho de madeira ranger. A voz dela soa atrás da porta.
— Está tudo bem, querida?
Félix está ronronando e se esfregando na minha perna.
— Sim. Mas meu estômago nem tanto... Acho que o bolo de carne que comi na casa do papai não caiu bem.
— Darlene é quem estava cozinhando? — O tom de voz dela denuncia o ódio reprimido.
Eu cerro os dentes.
— Sim.
— Por favor, diga que seu pai repetiu o prato.
Fecho os olhos, quando o que realmente quero fazer é gritar: Pare com isso! Eu entendo por que minha mãe está tão furiosa. Entendo que meu pai é um filho da mãe. Entendo que ele se recusa a assumir a culpa e que isso só piora as coisas. Entendo o que ela passou. Entendo tudo isso. Mas ela tem ideia do quanto me dói ouvi-la falar tão mal de alguém que eu ainda amo?
— Vou me sentar um pouco lá fora, no quintal — diz ela. — Quando sair daí, vá se sentar lá comigo.
— Ok — respondo.
Os passos da minha mãe se afastam.
Fico sentada no vaso e tento não pensar em tudo que me magoa. Em vez disso, faço carinho em Félix. Seus olhos, tão verdes, me levam de volta ao garoto da loja. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Que diabos ele quis dizer com isso?
Saio do banheiro, mas, antes de abrir a porta dos fundos, olho pela janela e vejo minha mãe no gramado, reclinada numa cadeira de armar. O sol está se pondo e ela está banhada numa luz dourada. Os olhos estão fechados e o peito se move para cima e para baixo, respirando lentamente. Está tão magra... magra demais.
O lenço azul desbotado escorregou da cabeça dela. Tudo que eu vejo é sua cabeça sem cabelos. E — pronto! Estou com raiva do meu pai outra vez.
Talvez ele esteja certo. Talvez eu o culpe pelo câncer da minha mãe.
Não adianta nem eu me lembrar de que, três semanas atrás, o médico a considerou curada. De fato, o câncer de mama foi detectado tão cedo que os médicos insistiram em dizer que deveríamos considerá-lo só um pequeno obstáculo no caminho.
Mas eu odeio os solavancos que os obstáculos podem provocar...
Meu olhar é atraído para a cabeça dela novamente. O médico afirmou que as breves sessões de quimioterapia eram só para ter certeza de que não restaria nenhuma célula cancerígena. Mas até eu ver o cabelo da minha mãe voltando a crescer e as costelas protuberantes sumindo, não vou parar de ter medo de perdê-la.
Quando ela foi diagnosticada, pensei que meu pai voltaria, que ele perceberia que ainda a amava. O mais triste é que acho que minha mãe pensou o mesmo. Mas isso não aconteceu.
Minha mãe abre os olhos, ajusta o lenço na cabeça e fica de pé com os braços abertos.
— Venha cá. Senti sua falta.
— Só fiquei três dias fora — digo. Mas é a primeira vez que durmo fora de casa desde que minha mãe adoeceu. E senti falta dela também.
Caímos nos braços uma da outra. Os abraços dela começaram a ficar mais longos desde que se separou do meu pai. Os meus ficaram mais apertados desde que a temida doença de minha mãe marcou nossas vidas.
Eu retribuo o abraço dela. Docinho está aos meus pés, a cauda abanando e batendo na minha perna.
— Ela redecorou a casa? — O tom de voz dela é casual, mas ainda carregado de animosidade.
Apenas o meu quarto. Mudando de assunto, eu pergunto:
— O que você fez enquanto estive fora?
— Li dois livros. — Ela sorri.
— Você não pegou seu manuscrito e tentou escrever?
Antes da separação, minha mãe passava todo o seu tempo livre trabalhando em seu livro. Ela chamava esse hobbie de “minha paixão”. Suponho que meu pai tenha exterminado essa paixão também.
— Não. Não tive vontade — ela diz. — Ah, olhe! — Ela tira a bandana. — Já está nascendo uma leve penugem na minha cabeça. Ouvi dizer que algumas mulheres gastam uma fortuna para ficar com esse visual.
Eu solto uma risada, não porque seja engraçado, mas porque ela está rindo. Eu não me lembro da última vez que minha mãe riu. Será que as coisas estão melhorando?
Ela vai até a cadeira de balanço dupla e se senta.
— Sente-se.
A cadeira afunda sob o nosso peso. O ombro de minha mãe esbarra no meu e ela olha fixamente para mim. Será que percebeu que meus olhos estão inchados de tanto chorar?
— O que há de errado, querida?
A preocupação em sua voz, o amor em seus olhos, tudo isso me faz lembrar de quando eu podia contar com ela para desabafar meus problemas. Quando eu não pesava cada palavra para garantir que não iria magoá-la. Porque ela já está sofrendo demais.
— Nada — eu digo.
Ela contrai os lábios.
— Seu pai deixou você chateada?
— Não — minto.
O olhar dela se demora em mim como se ela soubesse que não estou sendo sincera. Eu invento alguma coisa:
— É Alex.
— Você o viu enquanto estava na casa do seu pai?
Outro nó se forma na minha garganta. Acho que esse assunto também é delicado.
— Ele veio me ver e conversamos no carro.
— E então...?
— Não aconteceu nada. — Guardo essa dor para outra hora. — Eu disse a você que ele está saindo com outra pessoa.
— Sinto muito, querida. Você me odeia por tê-la feito se mudar de cidade?
Gente, não dá para odiar alguém que tem câncer! Mas e agora que o câncer está curado...? É tentador, mas não posso. Assim como não posso odiar meu pai.
— Eu não te odeio, mãe.
— Mas você odeia morar aqui? — A culpa acrescenta uma nota triste à voz dela. É a primeira vez que ela considera meus sentimentos sobre isso. Eu tentei ao máximo convencê-la a não se mudar, cheguei a implorar, mas ela não fez concessões. Então eu fiz. Fiz um monte de concessões.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Só é difícil.
Meu celular toca, indicando a chegada de uma mensagem. Não quero olhar agora, porque acho que é meu pai mandando uma mensagem para pedir desculpas e minha mãe pode ver, então vou ter que explicar. Ele está arrependido, não está? Quero acreditar que ele tenha percebido que dar meu quarto a Darlene foi um erro.
— Quem é? — pergunta minha mãe.
— Não sei. — O celular permanece no meu bolso.
Ele toca novamente. Merda!
— Você pode olhar para ver quem é... — diz minha mãe.
Eu tiro o celular do bolso e verifico as mensagens. Não é meu pai. E isso também me magoa.
— É Lindsey. — Eu leio a mensagem dela. Apareça quando puder.
— Ela ligou antes para ver se você estava em casa. Por que não vai vê-la? Vou preparar o jantar.
— Vou apenas mandar uma mensagem para ela — digo, sabendo que Lindsey vai perguntar sobre a minha viagem e eu não a conheço bem o suficiente para despejar tudo em cima dela.
— Ok. — Minha mãe dá um tapinha no meu braço. — O que você quer jantar?
— Pizza. — Estou morrendo de fome. Eu mal toquei no almoço na casa do meu pai.
— Pizza? Com o estômago revirado desse jeito? — diz minha mãe. — Que tal sopa de tomate e queijo grelhado?
Eu odeio sopa de tomate. É comida de hospital. Comida de quem tem câncer. Nós comemos isso quase todas as noites durante a quimioterapia. Então, mais uma vez, suponho que seja isso que eu ganhe por mentir.
— Claro!
Depois de um prato de sopa, um sanduíche e dois episódios de uma série, dou um abraço de boa-noite na minha mãe e vou para a cama. Docinho e Félix me seguem quando entro no meu quarto. Ou melhor, o quarto em que durmo. Meu quarto não existe mais.
Pego o celular para ver se alguma das minhas antigas amigas, ou talvez Alex, me mandou uma mensagem. Nada exceto outra mensagem de Lindsey, me lembrando de avisá-la quando estiver saindo para a escola na manhã seguinte.
Eu desabo na minha cama. Félix salta para cima do colchão, se aconchega ao meu lado e começa a ronronar. Docinho faz o mesmo e fica aos meus pés. Com o celular ainda na mão, deslizo a tela para as selfies que tirei de mim, Kara e Sandy neste final de semana. Nós estamos sorrindo, mas não é um sorriso sincero, natural. Parece que nós três estamos só fazendo pose. Como se estivéssemos fingindo alguma coisa. Fingindo um sorriso. Fingindo amizade.
Continuo passando as fotos com o dedo até chegar às mais antigas, com Kara e Sandy. Nós não estamos posando ou fingindo. Estamos nos divertindo. Isso está claro na nossa expressão, nos nossos sorrisos verdadeiros.
Eu continuo olhando as fotos até encontrar uma só minha e de Alex. Ele está beijando minha bochecha. Seus olhos azuis não aparecem na foto, e eu posso dizer que ele está rindo. Lembro-me de quando foi tirada. Na primeira noite em que dormimos juntos. Lágrimas enchem meus olhos e meu dedo desliza mais rapidamente. Imagens, instantâneos da minha vida agora não passam de borrões coloridos voando pela tela do meu celular.
Será que, na realidade, é apenas disso que se trata a vida? Borrões coloridos? Uma colagem de momentos efêmeros, em diferentes tons e matizes de emoção? Momentos em que você está feliz, triste, com raiva, com medo, e aqueles em que você está apenas fingindo.
Jogo o celular nos pés da cama e olho para o ventilador de teto girando, enquanto minhas emoções parecem fazer o mesmo. Meus olhos ficam pesados e então — pronto! — não estou mais olhando para o ventilador. Estou presa numa lembrança quase tão antiga quanto eu.
Estou sentada num sofá marrom. Meus pés, dentro de sapatos pretos de fivela, balançando bem acima de um tapete sujo. Estou usando um vestido de princesa com babados rosa, mas não sou uma princesa feliz. Soluços profundos e sinceros, meus soluços, ecoam ao meu redor. Eu me sinto um peixe fora d’água. Não consigo respirar.
Sento-me tão rápido que Félix pula da cama.
É a única lembrança que tenho antes de me tornar Chloe Holden. Alguns meses antes do meu terceiro aniversário. Antes de eu ser adotada.
Ultimamente, essa lembrança tem me ocorrido. Me assombrando, de certa forma. Mas eu sei por quê. É a sensação. A sensação de ser arrancada do meu mundo e colocada em outro lugar.
Não que isso não tenha sido bom. Naquela época, tive muita sorte em ser adotada, e por pais perfeitos. Ganhei uma mãe, um pai, tenho um gato chamado Félix e, ainda por cima, adotamos um cachorro chamado Docinho. Morávamos numa casa de tijolinhos brancos de três quartos, onde sempre havia risadas. E amor. Eu tinha amigos com quem cresci. Um namorado a quem entreguei a minha virgindade.
Eu tinha uma vida. Eu era feliz. Meus sorrisos eram de verdade nas fotos.
Aí meu pai passou a trabalhar até tarde.
Começaram as brigas dos meus pais.
O caso do meu pai.
A depressão da minha mãe.
O divórcio.
O câncer.
E depois a mudança da cidade de El Paso para Joyful, no Texas. Que, a propósito, de alegre não tem nada... [-11
E aqui estou eu. Arrancada do meu mundo outra vez. Arrancada brutalmente.
Mas, desta vez, não estou me sentindo tão sortuda assim.
2
Tentando me convencer de que este primeiro dia de aula não vai ser tão ruim quanto imagino, corro os dedos pelo meu cabelo grosso e escuro, que passei meia hora alisando. Depois de dar uma última olhada no espelho da penteadeira, envio uma mensagem para Lindsey e saio do quarto apressada.
Minha mãe, sumindo dentro de um roupão cor-de-rosa grande demais para ela, está sentada na mesa da cozinha, olhando para mim.
— Gosto mais da blusa vermelha.
— Eu sei. Mas prefiro esta hoje.
Dou um abraço nela. Sei que fico bem de vermelho, mas vou aparecer demais, tipo, Olhem para mim, eu sou a garota nova da escola! Então preferi usar uma blusa bege em vez disso.
— Me deseje sorte — diz ela.
— Por quê? O que você vai fazer? Vai começar a escrever de novo?
— Não. Estou procurando emprego.
Meu primeiro pensamento é que minha mãe deve esperar até o cabelo dela crescer.
— Você sente vontade de trabalhar?
— Sim. Estou cansada de não fazer nada.
— Então boa sorte. — Pego a mochila, faço um carinho rápido em Félix e em Docinho e saio, tentando não pensar em meu pai perguntando se minha mãe está trabalhando. Tentando não pensar que nunca recebi um pedido de desculpas dele.
Lindsey, vestindo jeans preto, blusa preta, unhas esmaltadas de preto e batom vermelho, está esperando ao lado da garagem. Seus cabelos loiro-claros com reflexos caem em cascata sobre os ombros. Ela parece saída de uma capa de revista.
— Caprichou no visual, hein? — eu digo.
Ela sorri.
— Meu plano é fazer Jonathon morrer de arrependimento.
Eu já ouvi tudo sobre Jonathon. A quem ela, na maioria das vezes, chama de “aquele cão sarnento traidor”. Eu o vi uma ou duas vezes quando nos mudamos. Foi só quando eles romperam o namoro que Lindsey e eu começamos a conversar. E só recentemente contei a ela sobre Alex, mas nós ainda não arranjamos um apelido perfeito para o meu ex-namorado.
Se a minha mãe não tivesse me arrastado para outra cidade do Texas, Alex e eu ainda estaríamos juntos. Não tenho certeza se poderia chamar de amor o que sentíamos, mas acho que estávamos perto disso. Quando fui embora, concordamos que iríamos manter um relacionamento a distância.
Só durou quatro semanas.
— Como foi a visita à casa do seu pai e do brinquedinho sexual dele? — ela pergunta enquanto caminhamos para o meu carro.
— Um verdadeiro inferno — digo, depois mudo de assunto. — Você já escolheu seu novo crush? — Entramos no meu Chevy Cruze branco.
— Sim, David Drake. Ele me convidou para sair no ano passado, logo depois que comecei a namorar Jonathon. Ele é engraçado, fofo e educado.
No trajeto, Lindsey fala sobre o horário das suas aulas e conta que tem três aulas com Jamie. Jamie é sua melhor amiga, que esteve fora durante o verão. Eu fico preocupada, achando que agora que a melhor amiga está de volta, Lindsey vai me deixar de lado quando mais preciso.
— Espero que a gente tenha aulas juntas — digo a Lindsey.
Quase todo mundo recebeu o horário das aulas por e-mail. Vou pegar o meu depois com a conselheira. Mas como Lindsey não faz as aulas mais puxadas, como eu, de conteúdo mais completo e aprofundado, duvido que tenhamos aulas nas mesmas classes.
Entro no estacionamento da escola e penduro no espelho retrovisor a autorização para estacionar ali. Minha mãe obrigou meu pai a pagar o plano mensal do estacionamento. Meu estômago começa a revirar ao ver pessoas que não conheço. Eu olho para Lindsey.
Ela está me olhando de um jeito estranho.
— Cara, você está nervosa mesmo!
— Um pouco, por quê?
Ela faz uma cara engraçada.
— Não sei. Achei que fosse mais peituda.
— Eu? Por quê?
— Sua mãe tem câncer. Você precisou se mudar no último ano do ensino médio e está, tipo, numa boa com tudo isso. Eu estaria surtando.
Eu digo a verdade.
— Eu estou surtando. Apenas finjo que não. — Saltamos do carro e pegamos nossas mochilas no banco de trás.
A poucos metros do meu carro, sinto pessoas olhando para mim e acenando para Lindsey. Levanto o queixo e finjo que não estou nem aí. Lindsey começa a falar sobre onde vamos nos encontrar depois das aulas e me diz para mandar uma mensagem quando eu souber os meus horários.
Estamos quase saindo do estacionamento quando ouço gritos. Paramos.
Um cara grandalhão, de cabelo castanho-claro, está rindo de outro, mais novo, com cara de ser do segundo ano. O valentão está segurando uma mochila e fazendo algumas piadas sobre a estatura do mais baixinho.
O rosto do garoto está vermelho, como se ele estivesse envergonhado e com muita raiva. Meu coração se compadece do aluno do segundo ano, que parece tão desconfortável quanto eu ali. Estou pensando em fazer alguma coisa quando outra pessoa faz. Alguém com cabelo preto- azeviche e ombros com um quilômetro de largura. Eu acho que ele é professor; então — droga! — eu o reconheço! É o cara paranoico com quem trombei na loja de conveniência.
— Pare de ser idiota! — O psicopata da loja tira a mochila da mão do garoto babaca e a joga para o garoto mais novo, que a agarra e sai correndo.
— Olha como ele corre! — diz o valentão, rindo. Mas, caramba, eu odeio valentões!
O cara estranho fala algo que não consigo ouvir. Eu chego mais perto. Lindsey se aproxima junto comigo.
O idiota explode:
— Quem diabos você pensa que é?
Lindsey se inclina.
— Isso está ficando interessante.
Eu não olho para ela. Meus olhos estão presos na cena.
— Paul é o cara que pegou a mochila do garoto — Lindsey continua, baixinho. — Ele é jogador de futebol. O outro cara é o Cash. Ele começou a estudar aqui na metade do último ano escolar. Costumava frequentar a Westwood Academy, uma escola particular para onde vão as crianças ricas. Mas há boatos de que cresceu num orfanato e é mau elemento.
— Paul é quem está agindo como um mau elemento. — Eu tento ligar o cara que está defendendo o garoto mais novo com o lunático que conheci ontem.
— Verdade. Paul é que vive praticando bullying — Lindsey admite.
Paul se aproxima de Cash. Apesar do encontro de ontem, estou torcendo por Cash. Não gosto de psicopatas, mas gosto menos ainda de valentões.
Cash não se move, mas seus ombros se alargam. Paul não parece assustado, mas ele deveria estar. Cash é uns cinco centímetros mais alto do que Paul. Mas não é a altura que o torna tão intimidador. É a linguagem corporal dele. Ele parece durão. Ainda mais durão agora do que ontem.
— Eu fiz uma pergunta! — Paul grita. — Quem você acha que é, garoto adotado?
Os ombros de Cash se alargam ainda mais.
— Sou o único aqui que não tem que pegar alguém menor do que eu para me sentir importante.
Paul se aproxima e cola o rosto no de Cash.
Cash fala alto:
— Vá embora enquanto pode. — Seu tom é ameaçador.
— Você é que vai embora! — rebate Paul.
Acho que Cash está prestes a recuar o punho para dar um soco no outro, mas ele me surpreende e diz:
— Você não vale o aborrecimento.
Ele se vira para ir embora.
Não sei se estou decepcionada por Cash não dar uma lição em Paul ou se ele tomou a atitude certa.
Cash se afasta alguns passos quando Paul avança e o empurra pelo ombro. Cash se desequilibra.
— Covarde! — Paul o acusa.
— Você é que é covarde por esperar eu virar as costas.
— Bem, agora estou na sua frente. — Paul desfere um soco.
Cash desvia para a esquerda. O punho de Paul golpeia o ar.
Todo mundo ri. Isso alimenta a fúria de Paul. Ele levanta os punhos na frente do rosto e começa a transferir o peso de um pé para o outro, como se fosse um boxeador profissional.
Cash leva os punhos até o queixo. Todos começam a gritar.
— Acaba com esse imbecil! Dá uma lição nele!
De alguma forma, sei que eles não estão torcendo por Cash. Eu não vou gostar dessa escola.
Estou achando que devemos ir embora, mas, assim como Lindsey, não consigo tirar os olhos da cena. Os dois caras se movem em círculo. Paul desfere outro soco, Cash se abaixa. Paul solta um rosnado.
Espero Cash fazer algum comentário irônico, mas ele não fala nada.
Tenho a sensação de que não quer lutar.
De repente, eles se posicionam de modo que Cash fica de frente para mim.
Aqueles olhos verdes líquidos olham para a frente e encontram os meus, castanhos. Ele congela.
É quando Paul desfere outro soco e seu punho atinge o olho de Cash. Ele quase cai, mas, com fúria, golpeia Paul — primeiro na barriga, depois no nariz. Paul cai, ofegante, e coloca a mão sobre o nariz. Sangue escorre entre os dedos dele.
— Parem! — alguém grita. Um homem corre na direção do grupo. Dessa vez é um professor de fato. A aglomeração começa a se dispersar.
— Vamos dar no pé. — Lindsey me puxa. Logo antes de eu me virar, o olhar de Cash me encontra novamente. Seu olho esquerdo já está inchando. Eu me viro e sigo Lindsey.
— Isso foi bem estranho... — Lindsey se apressa em direção à entrada da escola.
— A briga? — pergunto.
— Não. Cash olhando para você. Você o conhece?
— Não — eu digo, mas não explico mais nada.
— Bem, algo em você chamou a atenção dele.
— Eu provavelmente pareço alguém que ele conhece. — Me lembro de dizer o mesmo para ele na loja.
— Ou ele gosta de você. Todas as garotas da escola já tentaram chamar a atenção dele e não conseguiram. Você chega aqui e ele leva um soco enquanto olha para você.
— Talvez não estivesse olhando para mim — digo, sem muita convicção.
— Sei. — Lindsey revira os olhos.
Olho para a escola que aparece diante de mim e tudo que eu quero é dar meia-volta e voltar para casa.
Estou esperando na secretaria para pegar meus horários com a conselheira, a srta. Anderson, quando ouço uma voz zangada atrás de mim.
— Você quebrou o nariz dele.
Estou quase certa de que é a voz do professor que interrompeu a briga. Não viro a cabeça para ver quem é. Fico olhando para a frente, enquanto passam por mim. O professor empurra a porta giratória que leva à parte de trás da secretaria. Cash o segue.
Ele está quase passando pela porta quando se vira para trás. Seus olhos, ou melhor, “seu olho” me encontra — o outro está tão inchado que nem abre mais. O ar de acusação é evidente em sua expressão. Parece até que sou eu a responsável pelo olho roxo. Ouço o professor dizer algo e Cash se vira para a frente e o segue.
Incomodada com aquele olhar, vejo a recepcionista acenando para que eu me aproxime. Ela abre a porta e eu a sigo por um corredor, até os fundos. Viramos uma esquina e vejo o professor que interrompeu a briga. Parecendo chateado, ele conversa com uma mulher de cabelos pretos.
A recepcionista limpa a garganta.
O professor e a mulher olham para ela.
— Chloe Holden. — A recepcionista faz um gesto na minha direção.
— Leve-a até o meu escritório. — A recepcionista concorda com um ar contrariado. — Eu já estou indo.
Sou conduzida até outra sala e eu me sento na cadeira mais próxima da porta, enquanto a recepcionista dá meia-volta e sai. Posso ouvir ao longe a conversa entre o professor e a conselheira. Eu me reclino na cadeira.
— Não — diz a conselheira. — Estou dizendo para averiguar os fatos antes de fazer suposições.
— Eu já averiguei — respondeu o homem. — Paul Cane me disse o que aconteceu e três alunos confirmaram a história.
— Três amigos de Paul, posso apostar — diz a srta. Anderson. — Vou atender essa nova aluna e depois falo com ele.
— Vai perder o seu tempo — diz o professor.
— Bem, é o meu tempo que vou perder — responde a conselheira com rispidez.
Ouço passos vindo na minha direção. Sento-me mais ereta na cadeira e finjo que não estava prestando atenção na conversa.
— Sinto muito fazer você esperar. — Ela me oferece a mão, mas ainda está com a testa franzida. — Sou a srta. Anderson.
Aperto a mão dela. Pode parecer estranho, mas já gosto dela por defender sua opinião, apesar da oposição do professor.
— Eu sou Chloe Holden.
Ela se senta atrás da mesa e, em seguida, puxa um arquivo de uma pilha de papéis.
— Pedi seu histórico escolar para o Lionsgate High. Vi suas notas. São impressionantes. Com toda essa dedicação, você vai longe.
Eu ouço muito isso. Sou inteligente, mas não me dedico tanto assim aos estudos. As coisas, na escola, são fáceis para mim. Na realidade, na minha antiga escola, eu normalmente errava de propósito uma ou duas perguntas nas provas, para que minhas amigas não me odiassem. Ser inteligente demais não é legal.
— Você está planejando ir para a faculdade, certo?
— Estou, sim — digo. — Meus pais frequentaram a Universidade de Houston, então pretendo ir para lá também.
— Com essas notas, você pode ir para a universidade que quiser. Já solicitou uma bolsa?
Eu confirmo com a cabeça. Pelo menos meu pai vai ter uma folga nas mensalidades quando eu for para a faculdade.
— Bem, coloquei você nas turmas em que o conteúdo das matérias é visto com mais profundidade. Assim, acho que não vai ficar entediada.
Assinto com a cabeça outra vez, meus pensamentos ainda no que a ouvi dizendo para o professor no corredor.
— Sua mãe mencionou que está fazendo quimioterapia. E que se divorciou recentemente.
Por que mamãe contou isso a ela? Eu congelo na cadeira.
— Se você precisar conversar, saiba que estou à disposição.
— Obrigada — digo. — Eu estou bem. Minha mãe também. Ela está curada do câncer agora.
— Ótimo! — Ela olha para o computador. — Estou imprimindo os seus horários e vou pedir a alguém que a acompanhe por alguns dias até que você aprenda a se localizar dentro da escola.
Quero recusar a escolta, mas também não quero correr o risco de me perder dentro do prédio e chamar ainda mais atenção.
Ela faz uma ligação rápida e me entrega meus horários, depois de tirá-los da impressora.
— Sandra vai encontrar você no escritório principal.
Concordo novamente, pego minha mochila, dou dois passos em direção à porta e depois me viro.
— Ah, sobre o que aconteceu no estacionamento...
— O quê?
— A briga — eu digo.
— Você estava lá? — Ela se inclina para a frente. Eu tenho a sensação de que gosta de Cash ou talvez saiba que Paul pratica bullying.
— Sim, o cara com cabelos mais claros, acho que alguém o chamou de Paul, ele estava provocando um garoto mais novo. Pegou a mochila dele e não queria devolver. O outro cara, Cash, devolveu a mochila para o garoto. Paul começou a briga. Cash tentou até se afastar dele.
Os olhos da srta. Anderson se arregalam com um sorriso.
— Você conhece algum dos dois?
— Não, não conheço. Só vi a briga. E... alguém me disse o nome deles.
— Obrigada. — Ela parece aliviada.
Eu saio e paro, quase colidindo com o peito de Cash outra vez. Nossos olhares se encontram. Ou o meu olhar e o “meio olhar” dele. Seu olho está inchado agora. Mas juro que o outro está me acusando de alguma coisa.
As palavras “Desculpe por defender você” estão na ponta da língua. Eu não as digo.
Passo por ele com pressa.
Sinto seu olhar sobre mim. Como senti ontem. Calafrios percorrem minha espinha.
O que há com esse cara?
3
Trinta minutos depois, Cash Colton entrou no jipe. Por que ela me defendeu? Então tudo se encaixou e ele soube no mesmo instante: Porque eu estava certo.
Esbarrar nele tinha sido a estratégia perfeita. Sempre faça repararem em você. Não se aproxime. Faça com que suspeitem.
Foi tudo uma estratégia.
Bem, nem tudo. A briga não poderia ter sido. Ninguém poderia adivinhar que ele sairia em defesa do garoto. Cash não sabia nem por que tinha feito aquilo. Exceto... pelo fato de que aquele garotinho assustado costumava ser ele...
Defendê-lo, no entanto, tinha que fazer parte do jogo dela. Fazer com que confiassem nela. Acreditassem que ela é uma pessoa amigável.
Ela ia precisar de sorte. Cash não confiava em ninguém. Nem mesmo em alguém com seios bonitos.
Ninguém pode trapacear um trapaceiro — não quando ele sabe todos os tipos de truque. Foi treinado pelo melhor de todos: seu pai malandrão, agora já falecido.
Ele saiu do estacionamento da escola cantando pneu. Depois de inocentá-lo da briga, a srta. Anderson havia chamado sua mãe adotiva, a sra. Susan Fuller. Por ser médica e uma pessoa amorosa, ela insistiu em vê-lo antes de decidir se ele precisava ir ao pronto-socorro ou não. Ele deveria esperar que ela viesse examiná-lo antes de voltar às aulas.
A um quarteirão da escola, ele ligou para a sra. Fuller.
Ela atendeu:
— Estou a caminho. Você está bem?
— Estou. Não precisa vir. Estou indo para casa agora tomar uma aspirina.
— Cash, a srta. Anderson, queria que você ficasse na escola. Você não deveria ter...
— Ah, é? Eu não sabia. — Na verdade, ele tinha ouvido toda a conversa atrás da porta e saído furtivamente antes que alguém pudesse detê-lo. — Pensei que eu estava livre para ir embora, depois que ela falou com você.
— Não, querido, você não deveria estar dirigindo. Pode ter sofrido uma concussão. A que distância está de casa?
— Praticamente lá — ele mentiu de novo e sentiu um aperto no estômago.
— Você não está com tontura, está?
— Não.
— Ok, então siga em frente e volte para casa. Vou ligar para avisar a srta. Anderson. Estarei em casa em vinte minutos.
— Mas não é preciso. Estou bem. — Ele olhou para o relógio no painel. Oito e quarenta.
— Foi isso que você disse dois anos atrás, quando seu apêndice supurou — ela disse.
— E eu ainda estou vivo. Então eu estava bem, não estava?
— Depois de oito dias no hospital. — Ela suspirou. Cash ouvia muitos suspiros da mãe adotiva. Desapontá-la era a última coisa que ele queria. E, por mais que tentasse evitar, sempre a decepcionava. O passado de Cash o seguia por toda parte.
Os Fuller complicaram a vida deles quando optaram por adotá-lo [2]. Não que fossem sofrer por muito mais tempo. Em dois meses, ele já teria idade para deixar o lar adotivo. Ele não poderia fazer isso antes de terminar o ensino médio...
— Pare o carro e me ligue se sentir tontura.
— Entendido. — Ele desligou. Consultando o relógio novamente, ele passou a entrada para o bairro de Stallion, onde os Fuller moravam — ou melhor, onde ele ocupava um dos quartos da casa deles — e foi direto para o Walmart. O olho latejava.
Estacionou o jipe, entrou na loja e seguiu até o quadro de avisos.
Cada vez que ia ao supermercado, ele examinava aquele quadro. A primeira vez que tinha se deparado com ele, a vontade que teve foi de rasgá-lo, com receio de que os Fuller o vissem e ficassem tristes. Mais tarde, ele descobriu que os próprios pais é que tinham colocado o folheto ali.
E ali estava ela. Na foto, olhando para Cash.
O mesmo formato de olhos. A mesma mandíbula. Os mesmos lábios.
— Merda!
Isso não significava que fosse ela. A imagem que simulava a aparência dela com a idade que teria hoje poderia não ser exata. As fotos às vezes mentiam. Ele sabia disso por experiência própria. Mas, caramba, aquela garota parecia mais com ela em pessoa do que a foto que um filho da mãe dera à sra. Fuller um ano atrás. E depois que a sra. Fuller entregou a ele 3 mil dólares para encontrar a tal garota, ele convenientemente desapareceu. E levou uma parte do coração da mãe adotiva também. Só agora ela estava voltando ao normal.
Se ao menos a sra. Fuller tivesse contado a Cash, ele teria explicado a ela como funciona esse tipo de falcatrua.
Seria o mesmo vigarista voltando para conseguir mais dinheiro? Provavelmente. Mas, desta vez, havia se tornado seu jogo mais sofisticado. Só que agora Cash sabia o que estava acontecendo. E iria detê-lo.
Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Quando estendeu a mão para tirar a foto do quadro, ouviu uma porta se abrir atrás dele. Cash se afastou e fingiu que verificava um cupom de ração para cachorro.
Enfiou as mãos nos bolsos, esperando a pessoa empurrar o carrinho pela porta. Quando não ouviu mais nenhum passo, concentrou-se novamente no panfleto.
Havia uma cópia do folheto na casa dele, também. Guardada num arquivo. Mas vasculhar a escrivaninha do sr. Fuller não parecia certo. Especialmente depois de Cash já ter sido pego fazendo isso uma vez. Ele estava com os Fuller havia apenas alguns meses, algumas semanas antes do seu aniversário de 15 anos, quando viu a sra. Fuller, com lágrimas nos olhos, olhando para o arquivo aberto. Mais tarde, quando ela já confiava nele a ponto de deixá-lo sozinho em casa, Cash descobriu o que a fizera chorar.
Ele não tinha ouvido a sra. Fuller entrar em casa aquele dia. No segundo em que ela o viu, Cash teve certeza de que ela ia gritar, depois ligar para dizer aos assistentes sociais que viessem buscá-lo. Outras três famílias já o tinham devolvido. Mas a sra. Fuller puxou uma cadeira e colocou-a ao lado dele, próximo à escrivaninha do marido, e perguntou o que ele estava fazendo.
Cash foi sincero:
— Eu queria saber o que a fez chorar.
Ela suspirou, um suspiro que era um gemido baixo misturado com uma expiração longa, e ele logo descobriu que aquele suspiro era a marca registrada da sra. Fuller, nos momentos em que estava infeliz. Depois ela contou a história toda. E chorou também enquanto a contava.
A porta do Walmart se fechou. Ele pegou o papel pregado no quadro, dobrou-o, guardou no bolso e saiu de lá. De volta ao carro, ligou o motor e verificou as horas. Droga. Ele tinha cinco minutos para chegar em casa antes da sra. Fuller.
E se ela chegasse lá antes dele, ficaria chateada.
Embora Cash não pudesse ser a pessoa que os pais adotivos queriam que fosse, ele se esforçava para não decepcioná-los. Dirigiu como se fugisse do próprio diabo. Sentado ereto, tomava ainda mais cuidado porque estava enxergando apenas com um olho. Mas ele provavelmente conseguiria dirigir até com os olhos vendados. Tinha muita prática.
Outra coisa que seu pai havia lhe ensinado. Com apenas 9 anos, ele era o motorista de fuga quando o pai roubava lojas de conveniência. Você tem que ganhar seu próprio sustento, garoto. Fazia sete anos que ele não via o rosto do homem, mas a voz dele ainda ecoava em sua cabeça.
Cash estacionou na garagem, destrancou a porta da frente e digitou o código de segurança. Correu pelas escadas, saltando dois degraus por vez, entrou no quarto e escondeu o folheto em sua escrivaninha. Depois correu de volta até o andar de baixo, pegou duas aspirinas, mastigou-as e se deixou cair no sofá. Félix, o velho gato malhado amarelo, miava para que ele o pegasse no colo. O pobrezinho já estava cego como um morcego. Ele pegou o bichano e lhe deu umas palmadinhas de leve. Mal tinha se reclinado no sofá quando a porta se abriu.
— Cash? — Era a voz da sra. Fuller, quase melodiosa, chamando-o.
— Estou aqui, na sala de estar — gritou ele.
Ela entrou e ele a viu franzir a testa.
— Ai, meu Deus!
Ela se aproximou e levantou o queixo dele com dois dedos. Cash tentou não se encolher. Não que tivesse aflição que o tocassem. A sra. Fuller tinha carta branca. Mas é que ele sentia dor quando ela o tocava. Não uma dor física, uma dor emocional...
— Acho que você precisa de um raio X. Só para...
— Não. — Ele se afastou. — É só um olho roxo. Já estou acostumado.
Lá veio o suspiro.
— Você pôs gelo?
— Por alguns minutos na escola.
Ela correu para a cozinha e voltou com um saco de ervilhas congeladas. Sua expressão era determinada. Ele suspeitou que a história do raio X não seria esquecida.
— Eu não vou ao hospital. — Ele pegou as ervilhas.
Um suspiro triste saiu dos lábios dela novamente e ela se sentou na cadeira em frente ao sofá. Eles se olharam nos olhos. Cash a comparou com a garota nova da escola. Havia muitas semelhanças. Mas não a cor dos olhos. Os olhos da sra. Fuller eram azuis. A garota tinha olhos castanhos com manchas verdes e douradas.
A sra. Fuller deu uma palmadinha nos joelhos e se balançou na cadeira algumas vezes. Isso geralmente significava que ela tinha algo na cabeça e queria conversar. Alguma coisa séria.
Ele esperou.
— A srta. Anderson me disse o que você fez. Defendeu aquele garoto.
Ele assentiu e continuou esperando. Não devia ser só isso.
— Estou orgulhosa de você, mas preferia que o tivesse defendido sem brigar. Você já sabe fazer melhor do que isso. — A decepção brilhava nos olhos dela. Cash se encolheu.
Quando apanhava do pai não doía tanto. Ele detestava — odiava — decepcionar a sra. Fuller
Cash tinha dezenas de justificativas na ponta da língua. Eu tentei ir embora. Ele bateu primeiro. Mas já fazia muito tempo que ele tinha aprendido que não adiantava se defender. As pessoas pensavam o que queriam.
— Desculpe — ele balbuciou.
— Você não pode ser expulso de outra escola.
E isso não foi culpa minha também. Cash levantou o queixo.
— Eles disseram que vão me expulsar?
— Não. Quando liguei de volta, a srta. Anderson deu a entender que você não vai ser punido. Vários alunos se manifestaram e defenderam você.
— Vários? — Ele tinha ficado chocado ao saber que um aluno o defendera. Então se lembrou de ter visto Jack quando o treinador interrompeu a briga. Ele e Jack não eram grandes amigos, mas no ano anterior tinham feito um projeto de ciências juntos e realmente haviam se dado bem.
— Foi isso que ela disse. Mas, se acontecer de novo, eles não vão facilitar para você.
Ele assentiu novamente.
— Pode voltar ao trabalho. Estou bem.
— Tudo bem. Minha assistente vai atender meus pacientes de hoje.
Mas não estava tudo bem. Os Fuller não mereciam ter que resolver as encrencas em que ele se metia. Perder a filha já era um fardo pesado demais. O que eles mereciam era ter a filha de verdade de volta. Mas qual era a probabilidade de Emily Fuller não estar sob sete palmos de terra?
Isso não impediria vigaristas de quererem tirar vantagem dos Fuller. Ele sabia. Havia convivido com um deles. Tinha sido um deles. Ele e o pai haviam cometido uma fraude semelhante certa vez, depois que o pai vira a foto de uma criança parecida com Cash num quadro de pessoas desaparecidas. O pai tinha feito uma breve pesquisa. A pobre mulher que havia colocado a foto no quadro estava sempre almoçando no parque perto do trabalho dele. Eles foram até lá todos os dias durante uma semana. O trabalho de Cash era encará-la. Chamar a atenção dela. Fazê-la morder a isca.
A mulher finalmente mordeu. Aproximou-se deles.
O pai dele era bom. Desempenhou bem seu papel. Contou a triste história de que não sabia o sobrenome de Cash. Que o garoto era o filho da irmã que ele perdera havia muito tempo — embora ele nunca soubera que ela havia tido um filho. Ela falecera e deixara o garoto para ele criar.
Demorou mais um dia para a mulher compartilhar sua própria história triste com eles. Só que a dela era verdadeira. Ela havia dado à luz um menino, que tinha desaparecido aos 4 anos de idade. Cash se parecia muito com ele.
— Venha cá — a mulher pedira a ele. Ela tinha lágrimas nos olhos. Com as mãos trêmulas, tocou no rosto de Cash. Ele se lembrava de ter se retraído um pouco. — Você é David? Você se lembra de mim? É por isso que você estava me encarando?
— Eu não sei — ele mentiu. Mentiu como o pai o obrigara a fazer. Então o pai o cutucou no ombro para lembrá-lo de terminar de falar o que haviam combinado. Tinha 6 anos de idade e já tinha que ganhar seu sustento. — Você tinha um cachorro preto com uma mancha branca no focinho?
A lembrança de como aquela mulher estava desesperada ainda assombrava Cash às vezes. Ela não hesitara: dera ao pai dele o dinheiro para que fizessem o teste do DNA de Cash. Claro que nunca fizeram. Naquela noite, eles fugiram de carro da cidade de Little Rock, em Arkansas, com 5 mil dólares no bolso. Provavelmente, o dinheiro que a mulher economizara a vida toda.
— Aquilo foi errado! Eu nunca vou fazer isso de novo — Cash disse ao pai. Aquele havia sido seu primeiro olho roxo. Tinha doído. Mas ele estava certo de que tinha doído ainda mais na mulher.
Cash nunca deixaria que isso acontecesse aos Fuller.
Ele precisava encontrar respostas.
— Oi, querida. Como foi na escola?
Minha mãe está me esperando quando entro em casa aquela tarde. Achei que ela ainda estaria procurando emprego. Não estou a fim de ser interrogada.
— Foi tudo bem — digo.
— Lindsey apresentou você para todo mundo?
— Sim. Conheci Jamie, a melhor amiga dela. Ela é legal. — E ela era mesmo, mas notei que não parou de me contar histórias sobre Lindsey e ela, como se tentasse provar alguma coisa. Como se quisesse deixar claro que eu sou a garota nova e Lindsey é a melhor amiga dela.
Não me importo com isso. Faltam apenas nove meses para eu me formar.
Percebo que minha mãe está esperando que eu conte mais.
— Lindsey quer que eu saia com elas mais tarde. Jamie vai à casa dela. — Se eu estivesse em El Paso, estaria com Sandy e Kara. Estaríamos comparando as nossas experiências na escola, nossos professores, os caras que parecem mais gatos este ano do que no ano passado.
Mas não estou em El Paso. Estou aqui. E por isso não vou dar uma de idiota; vou me contentar em ser a segunda melhor amiga de Lindsey e agradecer por isso.
— Como foi seu dia? — pergunto. — Encontrou um emprego?
O sorriso dela se amplia e é muito bom vê-la sorrir.
— Encontrou?
— Sim, fui ao consultório do meu médico, o dr. James, meu oncologista. Há dois médicos no consultório. Eu disse a ele que tinha diploma de enfermagem e ele praticamente me ofereceu um emprego. Eles têm que checar meus antecedentes e preciso ser entrevistada por outro médico, mas parece que consegui a vaga.
Ela está sorrindo, feliz. Eu a abraço.
Quando nos separamos, ainda está sorrindo.
— Vai dar certo. — Ela segura minhas bochechas como fazia desde que eu era uma garotinha. — Nós aqui. Vai dar certo.
Concordo, querendo acreditar. E vendo-a feliz, quase acredito.
No dia seguinte, eu me recuso a andar pela escola com uma escolta. Tenho certeza de que já sei me localizar. Ledo engano. Me perdi e chego atrasada para a segunda aula, de Literatura Americana, sentindo como se tivesse uma placa de neon piscando nas minhas costas com a inscrição ALUNA NOVA.
Infelizmente, aquela sensação de ser observada nunca desaparece. E eu vejo quem está olhando: Cash. Ele está começando a me assustar. Conto os minutos para a aula terminar.
No intervalo entre as aulas, vou ao meu armário para trocar de livros. Estou com os dois braços ocupados quando sinto alguém ao meu lado. Meu coração vai parar na garganta. Acho que é Cash.
Errado.
Olho para cima e encontro um par de olhos azul-claros sedutores, que pertencem ao garoto bonito que notei na aula de Literatura Americana.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? Precisa de um encontro na sexta à noite?
Eu retribuo o sorriso. Meu coração bate de emoção.
— Sou David Drake.
— Eu sou... — Meu nome gruda na língua enquanto tento descobrir onde ouvi o nome dele antes. Então — pronto! —, eu me lembro. E não é nada bom.
David Drake é o novo crush de Lindsey. Merda.
— Eu... não estou interessada. — Eu me afasto para recuperar meu espaço e me concentro no meu armário.
— Pensei que seu nome era Chloe.
— É sério. — Olho para ele outra vez, desta vez sem sorrir.
O sorriso do garoto continua intacto.
— Quem sabe você comece a se interessar com o tempo...
— Sou comprometida.
— Deixou um namorado na cidade de onde veio?
— Sim — minto, jogando o cabelo para trás. — Estamos praticamente noivos.
Ele coloca a mão direita contra o peito.
— Como assim? Você acabou de partir meu coração.
Balanço a cabeça e tenho uma ideia. Antes que eu possa concluir se a ideia é boa ou ruim, conto a ele.
— Sabe, ouvi falar de uma garota que gosta de você.
— Quem?
— Não posso dizer, mas... uma dica é que você a convidou para sair no ano passado.
Ele franze a testa.
— Sara?
Eu não respondo.
— Lisa?
Eu franzo a testa.
— Katie? Paula? Anna? Lacy? Carol? Jackie? Hannah?
Não estou acreditando...
— Estou brincando — diz ele. — Como só convidei duas garotas para sair e uma delas vem à escola com você, eu sei quem é. Mas achei que ela estivesse com Jonathon.
Eu me preocupo, achando que deveria ter ficado de boca fechada, então só encolho os ombros e me viro para me afastar. Por que sempre quero consertar as coisas?
Dou apenas alguns passos quando vejo Cash novamente, dois armários depois do meu. Ele não está olhando para mim, mas aposto o meu melhor sutiã que ele estava ouvindo a minha conversa com David.
Então vejo Jamie do outro lado do corredor. Ela desvia o olhar rápido e vai embora. Eu sei que ela viu David falando comigo.
Droga! Provavelmente está indo contar para Lindsey agora mesmo.
Cash esperou até o sr. Alieda deixar a sala de aula, para dar uma rápida corrida ao banheiro e entrar no laboratório de ciências. Correu para os dois terrários encostados à parede. Os alunos começariam a chegar a qualquer momento. Um tanque continha uma jiboia, o outro tinha comida viva para a cobra. Abrindo a mochila vazia, ele tirou dali uma luva.
O camundongo ficou de pé nas patas traseiras e olhou para Cash, mexendo os bigodes.
— Vamos fazer um acordo? Eu ajudo você e você me ajuda. Você tem uma chance de conquistar a liberdade. E eu consigo... respostas. Talvez.
Cash pegou o camundongo com delicadeza e colocou-o na mochila vazia. Depois de recolocar a tampa no terrário, ele foi para a secretaria.
Não era o melhor plano que ele já tinha engendrado, mas era um plano.
Naquela manhã, ao agendar uma reunião com a srta. Anderson, ele tinha ficado em dúvida quanto ao melhor horário até descobrir que ela almoçava entre onze e onze e meia. Perfeito. Era naquele horário que ele almoçava também.
Tudo o que ele precisava era de três minutos no escritório dela. Três.
Ele poderia esperar e voltar à noite, mas e se fosse pego...? Invasão dava cadeia. Liberar um camundongo indefeso era uma ofensa perdoável.
Ao entrar na secretaria, ele viu três garotas esperando para falar com a funcionária da recepção. Aquilo podia funcionar.
Ele ficou atrás das meninas, abriu a mochila e colocou o camundongo no chão. O bichinho demorou cerca de quatro segundos para correr em busca da liberdade.
Voltando a fechar a mochila, ele disse:
— Isso é um camundongo?
Assim como ele tinha planejado, reinou o caos. O camundongo correu para baixo do balcão.
A recepcionista gritou e correu para fora da secretaria. Enquanto as meninas continuavam gritando, Cash entrou na secretaria, olhando para o chão como se procurasse o roedor.
Uma vez no corredor, ele correu para a porta da srta. Anderson e pegou, no bolso, seu clipe de papel. Mas encontrou a porta aberta. Ótimo. Entrou no escritório, fechou a porta e foi direto para a mesa onde tinha visto o arquivo de Chloe Holden.
Com os ouvidos atentos para ouvir qualquer movimento do lado de fora, ele abriu a pasta. Não a leu. Faria isso mais tarde.
Tirou a primeira foto, virou o papel e tirou a segunda. Mais uma página virada e fechou o arquivo, devolveu-o ao topo da pilha e virou-se para sair. Abriu a porta para ouvir se vinha alguém.
Vozes soaram. Ele reconheceu a voz da srta. Anderson.
Então ouviu o salto alto das mulheres batendo no assoalho do corredor.
Merda. Ele tinha sido pego.
4
Cash! — ela exclamou, parando de repente ao entrar na sala.
— Olá. — Ele se sentou na cadeira em frente à mesa dela e se forçou a relaxar. Pareça inocente. Às vezes o único jeito é fingir até parecer que é verdade.
— O que... você está fazendo aqui? — a srta. Anderson perguntou.
Ele se virou e olhou para ela.
— Tenho horário marcado.
Ele manteve a expressão sob controle, mesmo quando o pânico deixava as palmas de suas mãos suadas. Sinceramente, se aquilo poupasse os Fuller da decepção, não se importava de ser pego.
Ela olhou para o relógio na parede.
— Isso é daqui vinte minutos.
— Não foi o que me disseram na secretaria hoje de manhã.
Ele fez uma cara de quem demonstrava confusão. Eles podem não acreditar no que você diz, mas vão quase sempre acreditar no que veem.
— Sinto muito. — Ele se levantou. — Volto depois. Eu só... quando entrei, eu estava alguns minutos atrasado e não havia ninguém no balcão da frente... Não queria deixá-la esperando. Então vim para cá. Achei que a senhora pudesse estar no... banheiro ou algo assim. — Ele baixou os olhos como se estivesse envergonhado.
— Não. Eu fui... à sala dos professores. — Os ombros dela relaxaram. Ela estava acreditando. Seus batimentos cardíacos se normalizaram. Cash não queria ter que ouvir a sra. Fuller suspirar hoje.
Ele deu um passo em direção à porta.
— Ok, vou embora e...
— Não. Tudo bem. Eles devem ter informado o horário errado. Esse é o meu horário de almoço.
— Bem... — Ele não via a hora de ler o arquivo. — Não quero atrapalhar o seu almoço...
— Não, fique. Já almocei.
Cash se sentou novamente. A srta. Anderson se acomodou atrás da escrivaninha. Quando notou o jeito como ela estava olhando para ele, o pânico aumentou novamente. Não estava olhando como se ela soubesse que ele estava mentindo. Ou como se tivesse uma ideia do que Cash estava fazendo. Mas como se quisesse corrigi-lo.
Quantas vezes ele já havia se sentado diante de um conselheiro ou psicólogo e eles tinham tentado entrar em sua cabeça? Como se pensassem que, convencendo-o a se abrir, poderiam torná-lo uma pessoa melhor. Eles não podiam.
Ninguém poderia mudar seu passado. Ninguém poderia mudar o que já tinha acontecido. Ou as coisas terríveis que ele já tinha feito. Falar sobre isso só piorava.
— Você sabe por que eu queria falar com você?
— Imagino que seja por causa da briga — Cash disse.
— Bem, sim, mas eu também queria só... ver se você está bem. — Ela se concentrou no rosto machucado dele. — E conversar.
Bem, já ia começar o sermão. Ele respirou fundo.
— Srta. Anderson, não quero parecer desrespeitoso. E se quiser falar comigo, me dar uma punição pela briga, vou ficar sentado aqui e ouvir. Mas, na verdade, não quero falar sobre outras coisas.
Ela olhou para baixo como se quisesse organizar os pensamentos.
— Ok — a srta. Anderson disse, mas levou alguns segundos para falar outra vez. — Me contaram o que realmente aconteceu naquela briga. Eu sinto muito.
— Eu também — disse ele.
— Praticar bullying é proibido e ponto final. O que Paul fez é inaceitável. Me disseram que você tentou ir embora.
Ele deu de ombros como se não fosse importante, mas se sentiu compreendido. Não se sentia assim com muita frequência.
— Mas não acho que você saiba quanto é forte. Tenho certeza de que não pretendia bater nele com tanta força.
Sim, eu pretendia. O cretino tinha dado um soco em seu olho. Cash queria machucar aquele filho da puta. Mas não disse isso.
A srta. Anderson se remexeu na cadeira.
— Graças a Deus, o nariz de Paul não estava quebrado.
Ele teve que se esforçar para esconder a decepção.
— A questão é que eu sei como são os adolescentes. E eu sei que ele bateu primeiro. Mas precisamos garantir que isso não aconteça novamente.
— Eu não vou dar mais na cara dele — disse Cash.
— Mas e se ele der na sua?
Cash não respondeu. Não podia. Dizer que ele não se defenderia seria mentir. E as pessoas podiam não acreditar, mas ele não gostava de mentir.
— Veja. Em dois meses, você fará 18 anos e Paul ainda vai ter 17. Se acontecer outra briga, isso pode acarretar graves consequências para você.
Com o ar preso nos pulmões, Cash perguntou:
— Então você quer que eu saia da escola? — Isso era exatamente o que os Fuller não queriam. O objetivo deles era que Cash se formasse no ensino médio.
Os olhos dela se arregalaram.
— Não! Só quero que você esteja ciente disso, para que assim possa evitar qualquer complicação com a Justiça.
Ele assentiu.
— Vou me lembrar disso. Posso ir agora?
Se a expressão dela indicava alguma coisa, a srta. Anderson tinha percebido a emoção no tom de voz dele.
— Só mais uma coisa.
Cash se preparou para ouvir.
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha 11 anos, por causa de um motorista embriagado. Meus pais é que estavam bêbados. Minha avó não achou que pudesse me criar. Cresci num lar temporário.
Isso não era o que ele esperava ouvir.
— Eu sinto muito.
Cash estava sendo sincero, mas ainda não queria se abrir com ela. Também não queria saber a história dela. Não queria chegar perto de se preocupar com mais ninguém. Preocupar-se com os Fuller já era ruim o suficiente.
— Eu também — disse a srta. Anderson. — O que estou tentando dizer é que sei o que é crescer no meio do caos. Se você quiser conversar, sabe onde me encontrar.
Sim, farei isso quando o diabo começar a servir bolo de sorvete no inferno.
— Vou me lembrar disso. — Ele se levantou e saiu da sala.
Entro no refeitório. Os cheiros, a multidão de estranhos e o burburinho me fazem querer sumir dali.
Olho em volta e todo mundo está batendo papo. Eles não percebem todo o barulho, porque fazem parte dele. Eles não veem estranhos; veem amigos.
Cinco minutos depois, estou me sentindo sozinha e deslocada enquanto como uma pizza que parece feita de papelão.
É nesse momento que alguém se senta ao meu lado. Lindsey. Ela está de braços cruzados. Parece aborrecida. Comigo.
No mesmo instante, eu sei por quê. Ela ouviu falar da visitinha de David ao meu armário.
— Não gostei dele — já fui dizendo.
— Tem certeza?
— Tenho. Gosto de garotos de cabelos pretos e que fazem o tipo mais caladão. — Se eu pudesse excluir a última parte, faria isso, porque minha descrição pareceu demais com a do cara de olho inchado que anda me causando arrepios ultimamente.
Ela olha para mim.
— Mas não importa. David gostou de você.
— Não. Ele nem me conhece. Sou apenas a aluna nova e isso, para os caras, significa apenas “carne fresca”. Ou, como minha mãe costuma dizer, sou a “vaca nova no pasto”. Os touros veem uma vaca nova no pasto e logo vão atrás dela. Começam a bufar, remexer a terra e babar.
Lindsey se acomoda na cadeira, parecendo mais conformada.
— Eu não quero um touro que fica atrás das vacas novas. Já fiz isso antes.
Eu não pretendia desmotivá-la.
— Você não pode julgar David. Ele não é o seu touro ainda. Depois que você pegá-lo pelos chifres, marcar seu nome no traseiro dele e ver que ele começa a atender quando você o chama, aí sim você vai poder levá-lo para o matadouro caso ele persiga uma vaca nova. Pode vendê-lo como comida de cachorro e fazer picadinho com os testículos dele.
Lindsey solta uma risada.
— Picadinho com os testículos dele já é demais.
— Ei, esse é o sonho da minha mãe. Ver os cojones do meu pai flutuando no formol e meu cachorro dando uma mordida no traseiro dele.
Nós duas rimos, mas logo o sorriso de Lindsey se dissipa.
— Então por que fazemos isso? Por que nos apaixonamos se todos os caras são touros babões perseguindo as vacas novas?
— Porque talvez exista um ou dois que não sejam assim — digo, sentindo a mágoa de ser filha de um homem com uma queda por vacas novas aumentar no meu peito, mas Lindsey e eu só compartilhamos um sorriso triste.
E nesse instante algo me ocorre. Numa questão de minutos, deixei de ser uma alienígena num mundo estranho para fazer parte dele. Estou criando raízes.
Minha amizade com Lindsey está passando do estágio em que estamos nos conhecendo e indo para a parte onde nos tornamos aliadas, rindo de coisas que não são realmente engraçadas para ajudar uma à outra.
Parece bom, mas há uma parte de mim que quer tirar os pés da terra e cortar as raízes, porque sei que vou sofrer quando tiver que deixar esta vida e ir para a faculdade. Vai doer assim como doeu quando fui arrancada de El Paso.
Paro de rir e Lindsey segue o exemplo. Solto um suspiro. Lindsey olha para mim.
— A sua mãe realmente disse que quer fazer picadinho com os testículos do seu pai? — Ela não está mais dizendo isso como se fosse engraçado. Ela está dizendo como se soubesse que isso me machuca.
Eu faço que sim com a cabeça.
— A sua mãe não costuma brigar com seu pai?
Ela pensa um pouco.
— Às vezes, mas... Eles se divorciaram há quinze anos. Provavelmente brigavam muito, mas eu não me lembro.
Sei que ela está dizendo isso apenas para que eu me sinta melhor.
— Merda... — diz Lindsey.
— O que foi? — pergunto.
— É Jonathon. De camiseta preta. Paquerando a garota ali.
Lembro-me de tê-lo visto algumas vezes naquele verão.
Ele tem cabelos castanhos e é bonito, mas na verdade... nem tanto.
— David é mais gato.
Cash conseguiu permissão para visitar a biblioteca durante o horário de estudos. Os celulares eram proibidos ali, mas, no ano anterior, a bibliotecária não dava muita atenção a isso. Se o aluno fizesse silêncio e não tumultuasse o ambiente, ela o deixava em paz. Conhecer as regras antes de quebrá-las era outra lição que Cash aprendera com o pai.
Ele pegou as fotos do arquivo em seu celular e aumentou o zoom para que pudesse ler sobre Chloe Holden.
A primeira informação que coletou foi o aniversário dela: 18 de novembro. Emily tinha nascido em 6 de novembro. Mas, se a pessoa é sequestrada, é claro que vão mudar a data de nascimento dela. Segunda informação: ela era inteligente. Suas notas eram bem mais altas do que as dele. Mas, se ela estivesse aplicando um golpe, teria mesmo que ser alguém bem esperto.
Então ele descobriu que os pais dela tinham se divorciado recentemente. E se eles fossem de fato os pais dela?
Ele leu uma anotação da srta. Anderson. Mãe, JoAnne Holden, tem câncer. Bem, isso é o que diziam. Cash “também tinha câncer”. O pai dele raspava a cabeça e as sobrancelhas do filho e postava fotos dele numa página do GoFundMe, em que as pessoas levantavam fundos para realizar seus sonhos ou pagar seus tratamentos de saúde, entre outras coisas.
No que dizia respeito a seu pai, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para ganhar uma grana ilícita. Cash tinha até obrigado Cash a seguir uma dieta rigorosa no mês anterior ao golpe, para parecer doente.
Cash leu algumas anotações da escola antiga de Chloe. Ela jogava futebol.
Essa era a isca de que ele precisava. Cash abriu o Google para encontrar o nome do time de futebol da antiga escola dela. Encontrou e foi pesquisar as imagens.
Só precisou de cinco minutos para clicar nos links e encontrá-la. Ele ficou ali, contemplando as fotos. Das três garotas na imagem, Chloe — se é que esse era o nome verdadeiro dela — era a que mais se destacava. Ela era a mais alta, a mais curvilínea e a mais gata.
Não que ele já não tivesse notado. Droga, ainda se lembrava de como era a sensação do corpo dela contra o dele. Mas Cash podia apreciar uma imagem com mais atenção do que pessoalmente. Ou de um jeito que ele não ousaria fazer ao vivo.
Muitas vezes, Chloe o pegara olhando para ela. Nem todas as vezes ele estava olhando com cara de quem olha uma garota. Às vezes, Cash a comparava com a sra. Fuller. E, caramba, ele via ainda mais semelhanças observando aquelas fotos!
Clicando na imagem, ele procurou pela conta de Chloe no Instagram.
Encontrou uma, mas ela não postava nada fazia três meses.
Se aquilo era um golpe, ela teria mantido as postagens, não teria? Ou talvez não.
As imagens e postagens que ele podia ver pareciam reais. Ele verificou as fotos. Havia várias dela com um cara, Alex. Eles se abraçando. Se beijando. Parecendo felizes. Numa delas, Chloe estava sentada no colo dele.
Cara sortudo...
Ele se lembrou do que ela tinha falado a David Drake sobre o namorado: estamos praticamente noivos. A mentira transpareceu na voz dela e na linguagem corporal.
Ele viu que Alex tinha deixado comentários numa das fotos: “Você está linda, mozão”. Ele clicou no link do perfil dele, esperando que as fotos não fossem privadas. Não eram. E... Ha, ha! Ali estava. A verdade. Uma foto do cara com outra garota. Postada na semana anterior. Ele voltou a olhar as fotos antigas e encontrou uma com Chloe no treino de futebol. Então, parecia que ela realmente era de El Paso. Isso não descartava um golpe. Ele tinha só arranhado a superfície.
5
O sinal tocou, na segunda-feira. Agora já completei uma semana na nova escola. Eu ainda não gosto dela, mas odeio menos. Ou talvez esteja apenas me acostumando. Me acostumando a ser a aluna nova. Me acostumando a ver Cash Colton me encarando como se eu tivesse comido o último biscoito do pacote.
Me acostumando a não ter pai. Porque ele nem me telefonou.
Estou quase na porta da escola quando percebo que esqueci meu livro de História no armário. Volto para pegá-lo e encontro Lindsey.
— O que houve? — pergunto.
Lindsey morde o lábio inferior.
— Eu vou... Vou para casa com Jamie. Ela quer conversar sobre o ex-namorado.
Eu sabia que o plano de Lindsey para que nos tornássemos as três mosqueteiras estava condenado quando os planos que tínhamos para o fim de semana caíram por terra. É por isso que começar a estudar numa escola nova na última série do ensino médio é uma droga. Você não pode simplesmente se tornar amiga de alguém. Você precisa ser aprovada pelas amigas dessa pessoa.
— Vejo você mais tarde. — Eu até sorrio.
— Sim. — Ela se vira, depois volta a olhar para mim. — Foi mal. Eu cheguei a perguntar se você podia ir...
— Tudo bem. Vocês duas têm aula de História e ficaram todo o verão sem se ver. Entendo. De verdade.
Ela se afasta, ainda parecendo culpada. Me sinto mal por fazê-la se sentir assim.
Quando pego meu livro e saio novamente, o estacionamento está vazio. A maioria dos carros já faz fila na saída para deixar o pátio. Buzinas soam. As risadas vazam pelas janelas e fazem com que eu me sinta ainda mais sozinha.
Pego as chaves do carro na mochila e clico o botão de abrir as portas. Quando me sento atrás do volante, percebo que meu carro está diferente. Algo parece estranho, fora de prumo. A mesma sensação que eu tenho dentro de mim.
Eu saio do carro e meu olhar vai direto para o pneu traseiro. Está murcho.
— Merda!
Pego o celular para ligar para o meu pai. Então paro. Meu pai não está mais disponível para me ajudar com essas coisas. E — pronto! — eu me lembro de que, logo depois que tirei minha carteira de motorista e antes do caso do meu pai, ele me ensinou a trocar pneu. Ele fez de conta que era um jogo e cronometramos para ver quem conseguia trocar mais rápido. Eu venci e ganhei dez dólares. Na verdade, venci três vezes. Acabei ganhando trinta dólares.
Agora aquela lembrança já não parece mais tão boa, porque eu me pergunto se meu pai já sabia que estava indo embora de casa. Sabia que eu não poderia mais contar com ele.
Evitando sentir pena de mim mesma, concentro-me no lado positivo: pelo menos eu sei trocar meu próprio pneu. Largando a mochila no banco, abro o porta-malas.
— Precisa de uma mãozinha?
Eu prendo a respiração. Cash está encostado num jipe estacionado ao meu lado, como se já estivesse há algum tempo parado lá. Como eu não o vi?
— Posso ajudar. — Nenhuma acusação em seus olhos ou no seu tom de voz agora. Pelo menos acho que não. Nunca tive tanta dificuldade para interpretar uma pessoa... — ou será que nunca encontrei alguém tão bom em camuflar emoções?
— Não. Posso fazer isso sozinha. Obrigada. — Esse cara me deixa nervosa, por várias razões.
— Eu tenho uma coisa para consertar pneus instantaneamente. Só vai demorar um segundo.
— Que coisa? — pergunto.
— Chama Fix-a-Flat. Infla o pneu e sela qualquer vazamento. Você vai poder dirigir até um borracheiro.
— Não esquenta. Tenho um estepe.
Ele se aproxima. Borboletas voam no meu estômago.
— Você sabe trocar pneu? — Ele enfia a mão direita no bolso do jeans.
Eu levanto o queixo.
— Você não acha que as garotas conseguem trocar um pneu?
Ele parece pensar na minha pergunta.
— Acho que a maioria das garotas não quer trocar pneus.
— Bem, esta garota aqui não se importa.
Inclino-me no meu porta-malas e afrouxo a porca para pegar o estepe.
Não o ouço se mexer. Será que ele está pensando em me observar? Irritante. Mas tudo bem. Talvez eu tenha coragem de fazer a ele algumas perguntinhas.
— Você é nova aqui? — Cash diz.
— Sim. — Pego o pneu e o deixo cair no chão. Então tiro o macaco do carro.
— De onde você é? — ele pergunta.
Coloco o macaco no chão e pego a chave de roda. Só então olho para ele e reúno coragem.
— O que você quis dizer no posto de gasolina, sobre eu querer fazer alguma coisa?
Ele não parece chocado com a pergunta.
— Você tinha razão. Você parece alguém que eu conhecia.
— Mas, obviamente, você descobriu que não sou essa pessoa, então por que ainda continuou me encarando?
Os olhos verdes dele se estreitam e seus lábios se abrem num sorriso incrível.
— Por que os caras geralmente encaram as garotas?
— Porque são uns pervertidos? — pergunto, me lembrando do bate- papo com Lindsay sobre touros e vacas.
Ele ri.
Eu sou pega de surpresa pelo som da risada dele e, por incrível que pareça, ele parece surpreso também. Como se não costumasse rir muito.
Ficamos em silêncio e olhamos um para o outro.
— Com quem? — pergunto.
— O quê?
— Com quem eu me pareço? — Eu me ajoelho para colocar o macaco no lugar.
— Ela já morreu. — Sua voz parece solene.
Eu olho para ele.
— Sinto muito.
— Eu também.
Cash se ajoelha ao meu lado para ver onde eu encaixei o macaco, como se pensasse que fiz tudo errado. A perna dele roça na minha. É um gesto inocente, mas parece íntimo. Seu cheiro, que lembra grama recém-cortada, enche meu nariz e se sobrepõe ao cheiro dos pneus oleosos.
— Então, o que trouxe você aqui? — ele pergunta.
Minha mente está ocupada apreciando o perfume dele, por isso demoro um segundo para responder.
— O que trouxe você aqui? — rebato, tentando não pensar no formigamento na minha perna, provocado pela sua coxa musculosa, coberta pelo jeans.
A sobrancelha esquerda sobre o olho roxo se levanta e ele cerra a mandíbula.
— Você não gosta muito de responder perguntas, não é? — Agora o tom é de acusação.
— Obviamente, você também não. — Encaixo a chave de roda na porca e a viro. Não vai ceder. Merda.
— Quer ajuda? — Ele se aproxima.
— Eu consigo. — Reajusto a chave e jogo todo o meu peso sobre ela, lembrando do que meu pai me ensinou. Meu peso não é suficiente. Droga. Quem quer que tenha colocado esse pneu usou toda a sua força.
— E agora? — Cash se aproxima ainda mais.
— Quê? — A minha frustração é evidente mesmo respondendo com uma única palavra.
— Quer ajuda agora? — Ele está sorrindo novamente. — Prometo não subestimar você por causa disso.
— Não tem graça — eu digo.
— Foi mal. — Os lábios dele não estão mais sorrindo, mas seus olhos estão.
Eu cedo e dou mais espaço a ele.
— Esses pneus são novinhos em folha. Não deveriam ter murchado.
Cash pega a chave de roda e, com uma volta do pulso, o músculo do bíceps se contrai sob a manga da camiseta cinza e a porca se solta.
Ele olha para mim. Mesmo com o olho roxo, seu sorriso dispara um alarme na minha cabeça. Um daqueles sorrisos tortos que saem da boca, vão direto para o meu estômago e acordam mais borboletas. O tipo de sorriso que Alex costumava me dar.
— Você já tinha afrouxado pra mim. — Ele passa para a segunda porca. Volto a assistir seus músculos se contraírem novamente. As borboletas voam como loucas.
Depois de vários segundos de silêncio, Cash me olha.
— Não consegui me entrosar muito na minha última escola.
— Ah... — Porque ele se abriu, eu faço o mesmo. — Meus pais se divorciaram.
— E Joyful pareceu o lugar ideal para morarem? — Ele continua trocando o pneu.
— Não. Minha avó morava aqui. Ela faleceu, minha mãe herdou a casa.
— Então você já morou aqui? — A pergunta parece importante para Cash, mas estou muito ocupada observando os músculos dele para pensar nisso.
— Não. — Então percebo que é mentira. Morei aqui por algumas semanas depois de ser adotada. — Quer dizer, sim, mas não me lembro.
— Como não se lembra?
— É que eu não tinha nem 3 anos de idade quando nos mudamos.
Ele para de trocar o pneu e me lança um longo olhar.
— Ok.
— Ok o quê? — Meu tom é curto e grosso.
— Ok, acredito em você.
— Mas por que acha que eu mentiria? O que há com...?
— Todo mundo conta uma mentira de vez em quando.
— Eu não!
Ele levanta a sobrancelha do olho roxo novamente.
— Você mentiu para David sobre ainda estar com Alex.
— Você estava escutando a nossa conversa?
— Confesso que sim. — O olhar dele colide com o meu.
Pressiono as mãos no asfalto.
— Como sabe que o nome do meu namorado é Alex? Não contei a David.
Ele continua removendo as porcas. A calma que demonstra me assusta. Ninguém solta uma bomba assim e volta a trocar um pneu!
— Responda! — Eu bato na perna dele com o pé.
Ele continua trabalhando.
— Dei uma olhada no seu Instagram. Suas fotos estão visíveis para o público. Você devia ter mais cuidado com isso. — Cash olha para mim, a expressão dele é insondável.
Eu franzo a testa.
— Mas como sabe que terminamos?
— Porque há uma foto no Instagram dele com outra garota. E eu não acho que você seja do tipo que aceita esse tipo de coisa.
Não sei bem como reagir a isso. Tudo está confuso na minha cabeça.
— O que você é? Algum tipo de investigador de crimes digitais? Ou um stalker?
Ele volta a se concentrar no meu pneu.
— Estou mais para investigador...
— Por que está investigando a minha vida?
— Achei que já tínhamos esclarecido isso antes.
— Porque pareço alguém que você conhece?
Cash confirma com a cabeça.
— Mas se a pessoa com quem pareço já morreu, por que você precisaria...?
— Ela tem uma irmã.
O tom com que ele fala é de alguma forma diferente. Será que está mentindo agora? Os olhos dele encontram os meus.
— Achei que ela poderia tentar prejudicar alguém que é importante para mim.
Há tanta honestidade naquelas palavras, em seu olhar, que acredito nele. Ou acho que acredito.
— Por que acredito em você às vezes e outras vezes, não?
Ele começa a desparafusar a última porca.
— Sei lá. Talvez porque tenha dificuldade para confiar nas pessoas. — Cash tira o pneu e coloca na calçada.
O tom é provocador, no entanto... Ele coloca o estepe no lugar e aperta as porcas. Abaixa o macaco e depois o retira de onde está encaixado.
Ele tem razão. Tenho dificuldade para confiar nas pessoas. É o que acontece quando a sua família entrega você para adoção e depois o pai que a adotou abandona sua mãe e decide morar com uma piranha mais nova.
— Você é difícil de entender — eu digo.
— Você também. — Cash estende a mão para me ajudar a levantar.
Eu quase a pego, mas depois me arrependo.
— Nós poderíamos resolver isso já — diz ele. — Há um lugar mais para cima, nesta rua, que serve café, chai ou qualquer outra coisa de que você goste.
Levanto-me, sem a ajuda dele, e limpo o pó das minhas mãos, passando-as no meu traseiro.
— O que acha? — ele pergunta.
Olho para Cash, minha cabeça girando.
— Não sei ainda...
6
O truque do pneu funcionou à perfeição, mas teria sido mais fácil se ela tivesse me deixado usar o Fix-a-Flat.
Ele saiu do estacionamento em seu carro e a viu fazer o mesmo. O celular dela tocou. Levantando um dedo para pedir que ele esperasse, ela atendeu.
— Não sei. Mas coloquei o estepe. Sim, apenas alguns minutos — Chloe disse. — Tudo bem. — Ela desligou e guardou o celular na mochila. — Minha mãe.
Ele quase perguntou como estava a mãe dela, mas parou a tempo.
— Você mora perto da escola? — Cash perguntou, embora tivesse conseguido o endereço dela no arquivo.
— A uns dois quilômetros. Em Oak Tree Park. E você?
— Um pouco mais longe — disse ele. — Em Stallion.
— Aquele condomínio com a estátua do cavalo e um lago na entrada? — ela perguntou.
Cash assentiu e se perguntou se ela o discriminaria por morar num bairro de classe alta. Alguns colegas de escola tinham jogado isso na cara dele no ano anterior.
Depois de entrarem na cafeteria, Chloe consultou o cardápio diante do balcão e pediu um chá de pêssego. Ele pediu uma Coca-Cola. Quando tentou pagar pelo pedido dela, ela recusou e entregou um cartão de crédito ao rapaz do caixa. Bebidas na mão, ele a conduziu até uma mesa nos fundos.
— É um lugar agradável — disse ela.
— Sim. Eu costumava lavar louça aqui aos 15, para ganhar uns trocados.
— E agora?
— Trabalho meio período numa oficina. Troco pneus e coisas assim.
— Ele sorriu. — Então, você gosta de Joyful?
— É legal. — Aquilo soou como uma mentira.
— De onde você veio?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Você não encontrou essa informação quando estava me investigando?
Ele se recostou na cadeira.
— Ok. El Paso. Você sente falta de lá?
Ela contou como as duas cidades eram diferentes. Foi uma conversa sobre banalidades, mas Cash prestou atenção em cada palavra. Depois, Chloe tomou um gole do chá e olhou para ele por cima do copo de papel.
— Agora é a minha vez.
— Sua vez?
— Você desenterrou informações sobre mim pelas minhas costas. Eu vou fazer da maneira correta e perguntar.
— Então você gosta de fazer tudo da maneira certa, hein? — ele disse, tentando parecer casual e mudar de assunto.
Ela não respondeu. E ele teve a sensação de que Chloe ainda estava refletindo sobre a coisa toda do Instagram.
Cash odiava perguntas, mas conhecia bem esse jogo, e se não dissesse alguma coisa, ela não abriria mais a boca.
— Ok. O que você quer saber?
Ela olhou para o chá como se estivesse elaborando uma lista de perguntas mentalmente.
Cash se perguntou o que ela já sabia sobre ele. Muitas questões da vida particular dele já eram do conhecimento de todos.
Cash se lembrou de Paul chamando-o de garoto adotado, como se fosse alguma coisa de que devesse se envergonhar. Mal sabia Paul que ele tinha muito mais vergonha da vida que levava antes de entrar para o programa de adoção do governo.
— Por que você não se entrosou na antiga escola?
Ele encolheu os ombros.
— Os alunos eram filhinhos de papai. Achavam que não podiam ser responsabilizados pelas suas ações. E a direção da escola parecia pensar o mesmo.
Ela correu um dedo pelo copo.
— Então, o que o fez sair? — Ela olhou bem nos olhos dele, como se procurasse a verdade.
Sim. Ele conhecia muito bem esse jogo. Diga algo pessoal. Vão achar que te conhecem e responder às perguntas sem criar caso. Normalmente, era a essa altura que ele inventava alguma coisa. Mas, por algum motivo, não sentia vontade de fingir.
Os ombros dele ficaram rígidos.
— Não saí da escola. Fui expulso.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você fez?
Ele já devia estar preparado para essa reação, mas isso ainda lhe dava nos nervos.
— Por que você já concluiu que eu fiz alguma coisa errada?
Ela franziu a testa.
— Porque você disse que foi expulso. Ninguém é expulso por nada.
— Certo. Mas você supôs que a culpa foi minha.
Ela olhou para Cash. Seus instintos lhe diziam que ele estava revelando muito mais do que pretendia.
— Não estou supondo nada. Estou perguntando.
Ele hesitou, contrariado por não estar mentindo, mas sem poder voltar atrás agora.
— Você quer a verdade? Ou quer que eu ofereça uma versão mais bonita?
— A verdade. — No entanto, a maneira como ela se afastou na cadeira revelou que preferia a versão mais bonita.
Cash deu a ela o meio-termo:
— Três jogadores de futebol da minha antiga escola estavam tirando vantagem de uma garota. Eu dei um fim à brincadeira deles. Quando terminei, um cara estava com o maxilar quebrado.
Chloe perdeu o fôlego.
— Era sua namorada?
— Não. A garota não dava a mínima para mim. O que deveria significar que eu não dava a mínima para ela. Mas... não era esse o caso. E os caras mentiram e disseram que eu apareci do nada, querendo briga.
— Mas e a garota? Com certeza, ela...
— Negou tudo à polícia.
— Mas como pôde...? Por quê?
— Ficou com vergonha. E, além disso, queria ser líder de torcida e achou que, se dissesse alguma coisa contra eles, poderia não conseguir fazer parte da equipe. Ela só lamentou que eu tivesse arranjado problemas por querer ajudá-la. Ele suspirou. — Mas sei que isso vive acontecendo. As vítimas normalmente preferem não dizer nada.
— Sim, mas... — Chloe colocou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
Ela parecia zangada. Isso deveria ser bom, mas não era. Ele se sentia exposto.
— Ainda assim, isso causou um belo estrago. — Os lábios de Chloe se contraíram.
— Sim, é verdade. — Cash se sentiu um pouco melhor.
Ambos se recostaram na cadeira em silêncio, como se precisassem de um tempo para pensar. Ele sabia que precisava.
Quando ela olhou para Cash, ele falou primeiro.
— Agora é a minha vez?
Ela piscou.
— Acho que sim.
Você está tentando enganar os Fuller?
Ele não podia perguntar isso.
— Por que você estava tão chateada na loja de conveniência?
Ela pareceu surpresa, mas depois suspirou.
— Você quer a verdade? Ou quer a versão mais bonita?
Ele sorriu, gostando de saber que ela realmente tinha ouvido.
— A verdade.
— Eu estava chateada com o meu pai.
— Por quê?
— Você está com tempo? — Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Tenho o dia todo — ele respondeu, e era verdade. Cash precisava descobrir quem ela era. Mas uma voz dentro dele dizia que não era só isso.
Ele gostava de ouvi-la falar, de contemplar suas expressões e o jeito como mexia as mãos.
Gostava de ouvir a voz de Chloe, embora ele preferisse não ver o brilho de tristeza nos olhos castanhos.
— Até um ano atrás, ele era tipo... o melhor pai do mundo. O pai que me levava com as minhas amigas aos bailes da escola. Quando ele ia nos buscar, nos levava para comer hambúrgueres às duas da manhã. Mas depois... — Ela fez uma pausa. — Depois ele traiu minha mãe com uma mulher apenas sete anos mais velha do que eu. Agora ela está morando com ele. Meu pai está fazendo papel de palhaço, tentando agir como se fosse mais jovem, tingindo o cabelo, usando gel... Ah, e deixou que ela transformasse meu quarto numa academia. Ela colocou lá um aparelho para endurecer os glúteos e outros aparelhos estranhos onde costumava ficar a minha cama.
A voz dela tornou-se mais aguda.
— Ela usa microssaias! E um decote até aqui. — Ela colocou a mão na metade dos seios. O olhar dele foi atraído para lá, mas ele não deixou que se demorasse ali por muito tempo, mesmo querendo muito. — Ah, e ele me disse que me ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Porque está muito ocupado descabelando o palhaço com a srta. Bunda Durinha.
Cash riu, mas quando viu a expressão de dor no rosto dela, reprimiu o sorriso.
— Lamento. Isso é uma droga.
— Sim. Uma droga. — Ela afastou a bebida e suspirou. Suspirou como a sra. Fuller, quando ficava decepcionada.
Um som profundo e triste que ele não gostava de ouvir. Um som que o fazia querer acreditar nela.
Chloe ergueu os olhos e Cash viu que ela reprimia as lágrimas.
— Desculpe eu ter descarregado tudo em você. Não foi legal.
— Ei, eu que perguntei...
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se abruptamente. Num instante já estava cruzando a porta num flash.
Ainda imaginando o que havia acontecido, ele a observou pela janela enquanto o carro partia. Quando olhou para baixo, viu que o cartão de crédito dela ainda estava em cima da mesa.
Uma hora depois, ele já tinha terminado sua lição de casa na cafeteria e decidido enrolar um pouco antes de ir à casa de Chloe, para lhe devolver o cartão.
Digitou no celular o número da residência dos Fuller e ficou surpreso quando o pai adotivo atendeu.
— Ei, eu já ia ligar para você. Está tudo bem?
— Sim — respondeu Cash. — Parei na casa de um amigo para fazer o dever de casa. Tudo bem se eu chegar por volta das seis?
— Claro. Somos apenas você e eu hoje à noite. Susan teve uma emergência no hospital. Pensei em sairmos e comprarmos algo para ela comer. Talvez pegar um sorvete também.
— Aquele tipo de emergência? — O peito de Cash se apertou.
Susan Fuller era oncologista e não tinha que atender muitas emergências. As crises dela significavam que tinha perdido um paciente ou estava prestes a perder. Ela sempre tinha dificuldade para lidar com isso.
— Receio que sim — ele respondeu.
Cash não era tão próximo do sr. Fuller quanto era da mãe adotiva, mas não podia negar que o homem amava a esposa. Só por isso, Cash o respeitava.
Parte da distância entre eles era por culpa do próprio Cash. Depois de onze anos com seu pai e alguns lares temporários não tão bons, ele resistia à figura paterna. O sr. Fuller se esforçava, no entanto. No ano anterior, depois que Cash tinha passado a frequentar algumas aulas numa faculdade e começado a namorar garotas mais velhas, o sr. Fuller tivera com ele uma conversa sobre sexo e lhe dera um pacote de preservativos.
— Você prefere churrasco ou pizza? — perguntou o sr. Fuller.
— Acho que ela gosta mais de churrasco.
— Concordo. Não chegue muito depois das seis. Quero voltar antes que ela chegue em casa.
— Não posso encontrar você no restaurante?
Quando Cash desligou, pensou em como toda aquela história em torno de Chloe afetaria a mãe adotiva. Se ele procurasse os pais agora para contar tudo e depois descobrisse que Chloe não era Emily Fuller, aquilo poderia trazer de volta toda a dor de perdê-la pela primeira vez, como na época em que aquele vigarista os tinha enganado no ano anterior. Cash não podia dizer nada antes de ter certeza.
Minha mãe e eu estamos esperando consertarem o meu pneu. Na televisão da sala de espera da loja está passando um programa político. Estamos folheando revistas. Lembro-me de quando minha mãe costumava comprá-las para encontrar personagens para seus livros. É triste saber que ela parou de escrever.
Olho para o lado e ela está lendo uma revista, a cabeça coberta com a bandana desbotada. Normalmente, ela usa uma peruca quando saímos.
Hoje não. Mal posso esperar para ver o cabelo dela voltar a crescer. Para vê-la ganhar peso. Estou cansada de vê-la com a aparência de um zumbi.
— Você almoçou hoje? — pergunto ao virar a página da revista.
Ela ergue os olhos.
— Sim.
— O que você comeu?
— Um sanduíche, acho.
— Com batatas fritas?
— Não.
— Você deveria ter comido batatas fritas.
Ela sorri.
— Você é nutricionista?
— Não. Sou sua filha que acha que você está muito magra. Sério, você precisa comer mais. Podemos sair para jantar. Comer algo cheio de calorias.
— Pizza? — Ela sorri.
— Com recheio extra.
— Combinado.
— E você toma uma cerveja.
Ela ri.
— Não posso beber por causa dos remédios.
— Que remédios?
— O comprimido que tenho de tomar por três anos para evitar que o câncer volte.
Sento-me ereta, com uma dor se instalando no meu peito.
— Os médicos acham que pode voltar?
— Não. — Ela bate o ombro no meu. — O remédio é para garantir que não volte.
Eu olho para ela, de repente cheia de preocupação.
— Holden? — Um homem vestindo macacão entra na sala, vindo da oficina.
— Sou eu. — Minha mãe fica em pé.
— Boas notícias. Não há nada de errado com o seu pneu.
— Mas estava murcho! — eu digo.
— Bem, às vezes o pneu pode ficar mais baixo devido à mudança de temperatura, mas, como isso não aconteceu, eu diria que alguém o murchou de propósito.
— Por que alguém faria isso? — Minha mãe me pergunta.
— Sei lá. — Então me lembro de Cash parado ao lado do meu carro. Ele não faria isso, faria?
— Poderia ser pior — diz o mecânico. — Poderiam ter cortado os pneus.
Às quatro e meia, Chloe ainda não estava em casa. Nem mesmo às cinco. Por fim, às cinco e meia, Cash viu o carro dela e estacionou em frente à casa.
Ele pegou o cartão de crédito e o colocou no bolso da frente do jeans. Subindo na varanda, viu uma grande janela com as cortinas abertas. Espiou lá dentro. Uma mulher estava sentada à mesa de jantar. Ela estava usando uma bandana, mas por baixo ele viu que não havia nem um fio de cabelo. As maçãs do rosto estavam salientes. Os olhos, fundos.
A visão o levou à época em que o pai raspava a cabeça e as sobrancelhas de Cash para tirar foto. Ele perdeu vários quilos, após passar fome por quase um mês; depois o pai passou sombra preta sob seus olhos para fazê-lo parecer ainda mais doente. Funcionou. O pai se orgulhava do dinheiro que as pessoas tinham doado para salvar o menino com câncer.
Mas essa mulher não estava usando maquiagem. O peito dele doía por Chloe. Será que a mãe dela ia morrer? Ele sofria até pela mãe adotiva. A mãe de Chloe era o tipo de paciente que a sra. Fuller tratava. O tipo que morria nas mãos dela, não importava quanto se esforçava para tentar salvar.
Suspirando, resignado, ele tocou a campainha. Os olhos da mulher encontraram os dele através da janela.
Quando ela se levantou, pareceu ainda mais magra.
A porta da frente se abriu e ele se apresentou.
— Oi. Meu nome é Cash. Estudo na escola de Chloe. Ela está em casa?
A mulher sorriu.
— Entre. Sou JoAnne Holden, mãe de Chloe. Ela está no quarto. — Então chamou: — Chloe?
Ele entrou. Um gato tigrado amarelo, igual a Félix, pulou de uma cadeira.
— Você gostaria de beber alguma coisa?
— Não, obrigado. — As mãos dele estavam suadas. Será que ele estava nervoso só porque estava conhecendo a mãe de Chloe? Ou seria porque essa mulher poderia ser a sequestradora de Emily Fuller?
Chloe entrou. A postura dela era rígida, os olhos acusadores. Já não tinham passado dessa fase?
— Vamos para o quintal. — Ela passou por ele sem cumprimentá-lo.
Cash agradeceu a mãe dela com a cabeça e seguiu Chloe, passaram pela sala até chegar a um quintal nos fundos.
Ela se virou para trás.
— Feche a porta.
Cash fechou, mas a expressão nos olhos dela dizia que seria melhor se ele encontrasse uma rota de fuga.
— Como você sabia onde eu morava?
A pergunta dela fez Cash suspirar de alívio. Ele sabia o que dizer.
— Você me disse que morava em Oak Tree. Dei uma volta pelo bairro até ver seu carro. Trouxe isso para você.
Ele tirou o cartão de crédito dela do bolso.
— Você esqueceu na cafeteria.
Chloe pegou o cartão, a suspeita ainda em seus olhos.
— Você murchou o meu pneu?
A pergunta saiu enérgica e foi como um soco no estômago. Ele sabia que aquela suspeita poderia surgir e o plano dele era negar. Esse ainda era seu plano, mas agora parecia muito ruim.
— Seu pneu não estava furado? — Aquilo tinha soado convincente? Merda, claro que não. Ele deveria ter cortado o pneu, mas isso teria custado o dinheiro dela.
— Não. — A mão dela pousou no quadril. — Foi você quem o murchou?
— Por que eu faria isso? — Responda a uma pergunta com outra pergunta. Isso confunde as pessoas.
— Não sei. Mas alguém fez isso. E você estava lá.
Ela não se deixava enganar com facilidade.
— E eu o troquei para você. Não gosto tanto assim de trocar pneus. Uau, você realmente tem dificuldade para confiar nas pessoas, hein?
Pela expressão dela, Cash percebeu que tinha dito a coisa errada.
— Sim, eu tenho. E, neste momento, não confio em você.
— Bem. Sugiro que verifique se não usei o seu cartão.
Então saiu pelo portão externo.
O que o deixou mais surpreso foi o fato de se sentir magoado por Chloe não acreditar nele, mesmo que ela estivesse certa em não querer acreditar.
7
Eram onze horas da noite quando o estômago de Cash começou a reclamar de fome. Ele tinha perdido o apetite depois de sair da casa de Chloe e passara a maior parte da noite em seu quarto, depois de encontrar o sr. Fuller para comprar o jantar.
Quando desceu as escadas sem fazer barulho e abriu a geladeira, viu a mãe adotiva sentada na sala de jantar — no escuro. Félix, seu gato, estava estendido sobre a mesa e ela acariciava lentamente o pelo dele. Ela estava de costas para a porta, mas o ouvira entrar.
Ele se aproximou e ficou ao lado dela. A mãe adotiva colocou Félix no chão e enxugou as lágrimas antes de olhar para Cash.
— Sinto muito — disse ele.
Ela assentiu.
— Também sinto.
Cash se sentou ao lado dela.
— Você salva muito mais pessoas do que perde.
A sra. Fuller ofereceu a ele um sorriso triste.
— Ela era apenas alguns anos mais velha que você — ela disse. — Alguns anos mais velha que Emily. Eu queria salvá-la. — Ela respirou fundo. — É difícil perder um paciente, mas quando eles são jovens... Acho que, se eu pudesse salvá-los, isso poderia compensar... — Ela colocou os dedos sobre os lábios trêmulos.
— Compensar o quê?
Ela balançou a cabeça.
— Foi culpa minha. Eu estava tão ocupada com a faculdade... Era meu dia de cuidar da Emily, mas liguei para a babá e pedi para que ela a levasse para passear.
— Não foi culpa sua — Cash disse bruscamente.
— Eu sei. Só estou com pena de mim mesma. E amanhã é... Vai fazer quinze anos que Emily desapareceu. — Ela fez uma pausa. — Odeio não ter conseguido salvá-la.
Quinze anos. Ele não sabia nem mesmo de quem ela estava falando ao dizer que não tinha conseguido salvar. A garota com câncer ou a filha dela?
A sra. Fuller esfregou os olhos e olhou para ele. De perto, ele viu a expressão dela, tão cheia de dor.
Ele colocou a mão no braço da mãe adotiva. De onde vinham as palavras, Cash não sabia, mas elas deixaram seus lábios:
— Você me salvou.
— Eu salvei? — A voz dela tremia. — Às vezes eu me preocupo quando vejo que você não deixa que a gente se aproxime muito de você...
— Você está mais próxima de mim do que qualquer outra pessoa jamais esteve. — E aquela era a mais pura verdade.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Obrigada. É demais pedir um abraço?
Ele balançou a cabeça, mesmo que preferisse evitar abraços.
Eles ficaram de pé e os braços dela o envolveram. Cash não se moveu, a dor que sentia no peito era profunda. A garganta apertou.
Ela o soltou rapidamente, como se sentisse quanto era difícil para ele.
— Nós amamos você como um filho.
Vocês não deveriam.
— Eu sei. — Mas eles mereciam ter a filha de volta e, se ele pudesse, se fosse possível, iria devolvê-la aos Fuller.
Estou me arrumando para ir à escola na manhã seguinte, quando meu celular toca. Tenho certeza que é Lindsey, por isso atendo. Me enganei.
— Como está a filhinha do papai? — É o homem que me deve um pedido de desculpas. De repente, quero que ele saiba que me magoou. Parece que não resta mais nada nele do pai que eu conhecia. O cara que costumava me levar para comer comida indiana porque minha mãe não gostava. O cara que costumava me abraçar forte, que me ensinou a trocar pneu. Ele se foi. Já era.
— Como está minha garota? — ele pergunta novamente.
— Bem.
— Como está indo na escola?
— Muito engraçado... — Mas não estou rindo.
— O que é engraçado?
— Pensei que você fosse me ligar no primeiro dia de aula para saber como foi.
— Ah... — A culpa está estampada nessa única palavra. — Sinto muito, querida. Foi uma semana agitada.
Este é o momento em que deveria dizer que está tudo bem e deixá-lo falar quanto sente a minha falta. Mas não consigo.
— É bom saber que não estou na sua lista de prioridades.
— Chloe! Não diga isso.
— Por quê? É verdade. Você deu a Darlene meu quarto. Diz que vai ligar, mas não liga. O que mais? Agora vai se negar a pagar a pensão também?
— Por quê? Sua mãe está falando mal de mim?
— Sim, mas ela já faz isso há muito tempo. Mas agora finalmente estou percebendo que o que ela diz é verdade.
Desligo e começo a chorar. Mas, por outro lado, me sinto bem. Ele merecia isso.
Ao consultar o relógio, vejo que tenho que me apressar. Passo rápido pela minha mãe, para ela não ver que eu estava chorando.
Quando saio, Lindsey está esperando ao lado do meu carro.
— Algo errado?
— Tudo.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— Isso pode parecer terrível, mas agora você não está mais fingindo tão bem e eu gosto mais de você assim.
Eu olho para ela como quem diz “Do que você está falando?”.
— Antes, você agia como se fosse a Mulher-Maravilha. Eu me sentia mal quando te contava meus problemas, porque você podia me achar meio patética. — Ela dá a volta para entrar no carro.
— De que problemas você está falando? — pergunto, para não parecer mais patética ainda. Eu me sento atrás do volante. — Além do cão sarnento traidor?
Ela se acomoda no banco do passageiro e parece hesitante.
— Não vou aborrecer você com detalhes, mas... — Ela faz uma cara assustada e fica séria. — Minha mãe é gay.
Eu olho para ela.
— Eu já sabia.
Ela me olha perplexa.
— É tão óbvio assim?
— Sim. A namorada da sua mãe está sempre na sua casa e, quando assistem TV, ficam de mãos dadas. Por que isso...?
— É um problema? — Ela termina a minha frase. — Não é. Estou feliz que ela tenha se encontrado e encontrado Lola. Uns dois anos atrás, ela teve depressão. Até sete meses atrás, estava tomando antidepressivos, solitária e infeliz. Ela é muito mais feliz agora. E para mim tudo bem... Mas... nem todo mundo aceita. E tenho medo que...
— Você não deveria se importar com o que as pessoas pensam. Quem a sua mãe ama não é da conta de ninguém. Você tem uma mãe que é gay. Ponto final. Isso não é nada de mais.
Os olhos dela se estreitam.
— Você não entende. Não é que eu me importe com o que pensam. Eu tenho medo de que, da próxima vez que alguém disser alguma coisa sobre ela, eu pule na garganta da criatura. É a minha mãe! Odeio que o mundo a julgue.
Eu sorrio.
— Ótimo. Quem disse algo sobre ela?
— Clare, uma das primas de Jamie. Foi logo antes de Jamie viajar para o acampamento. Eu não sabia que Jamie tinha contado a ela sobre a minha mãe até ela começar a dizer quanto aquilo devia ser estranho para mim. Eu simplesmente fui embora. Nem me despedi de Jamie. Mais tarde, fiquei tão brava comigo mesma por não defender minha mãe que agora não vejo a hora de outra pessoa dizer alguma coisa.
Eu olho para ela.
— É o seguinte. Quando alguém disser alguma coisa, venha me chamar e vou ajudar você a dar uma lição nessa pessoa. Estou ficando boa nisso.
Lindsey suspira.
— Estou tão feliz que você tenha se mudado para a casa ao lado da minha!
Eu não posso dizer o mesmo, porque ainda sinto muita falta da minha outra vida, mas sorrio. Naquele momento, sei que não sou apenas colega de Lindsey. Gostando ou não da cidade, consegui uma boa amiga. Então decido confiar nela e contar sobre Cash e o pneu murcho.
— E se ele fez isso apenas para ter um motivo para falar com você? — ela pergunta.
— Se ele quisesse falar comigo, poderia ter simplesmente se aproximado e falado comigo. Ele não é tímido.
— Você não sabe. Ele talvez não seja tão confiante quanto parece.
Será que exagerei, por causa das minhas próprias inseguranças? Porque não acredito que ele possa estar interessado em alguém como eu?
Será que cheguei automaticamente à conclusão errada, como todas as outras pessoas? Ao me lembrar da história sobre como ele foi expulso da sua última escola, porque as pessoas preferiram acreditar no pior com relação a ele, começo a me sentir culpada.
— Sou uma cretina — murmuro e Lindsey ri.
Cash decidiu se desculpar. Ele faria qualquer coisa para voltar a ter a confiança de Chloe. Precisava de respostas e a única maneira de consegui-las era se aproximar dela. Ele tinha que descobrir se ela era Emily Fuller.
Ele não sabia exatamente o que precisava para provar ou refutar sua suspeita. Mas seus instintos lhe diziam que ele saberia quando ouvisse. E não ouviria nada se ela se afastasse dele.
Ele viu Chloe perto do armário, mas, antes que pudesse se aproximar, ela desapareceu no corredor, entre os outros alunos. No caminho para a aula de Literatura Americana, que eles tinham juntos, ele olhou para a esquerda e para a direita, esperando encontrá-la. Quando se aproximou da porta da sala de aula, ele a viu parada ali, esperando.
Seus olhares se encontraram e ela começou a andar na direção dele. Ele não estava perto o suficiente para decifrar a expressão nos olhos dela. Mas a tensão fez com que seu estômago se contraísse.
Chloe parou na frente dele, então fez um gesto para que se afastassem da porta.
— Oi. Eu...
— Olha, eu...
— Pode falar — disse Cash. Sempre deixe a outra pessoa falar primeiro. Seu plano de jogo talvez mude.
Ela mordeu o lábio.
— Sinto muito. Não deveria ter acusado você. Fui rude. — Chloe olhou para ele. O pedido de desculpas iluminou os olhos castanhos dela. Ele viu as manchas verdes e douradas. Seus olhos seriam da mesma cor que os do sr. Fuller?
Seu próprio pedido de desculpas estava na ponta da língua. Quando falar com uma garota tinha ficado tão difícil?
Em vez disso, ele sorriu.
— Tudo bem.
— Não, não está tudo bem.
Ela fez uma pausa como se fosse a vez dele de dizer alguma coisa, mas Cash estava muito ocupado se recriminando, porque ele era o culpado e deveria ser o único a pedir desculpas. Ela se virou para entrar na sala de aula.
— Espere. — Ele pegou o braço dela e sentiu o mesmo choque. Como tocar num fio desencapado. Mas a sensação logo desapareceu e tudo o que restou foi a sensação de como a pele dela era macia. — Podemos falar sobre isso mais tarde?
— Sim. — Ela sorriu e não saiu do lugar.
Demorou um segundo para Cash perceber que ainda segurava o braço dela. E estava acariciando a pele dela com o polegar. Mas, caramba, ele gostava da sensação de estar tocando Chloe...
Com relutância ele a soltou e deixou-a ir para a aula. O toque podia ter vindo com uma centelha de dor, mas o que viera a seguir — a pele quente, suave e feminina — fizera tudo valer a pena.
8
Depois da escola, Cash dirigiu até a casa de Chloe, mas estacionou algumas casas à frente. Enquanto esperava, sentiu certo nervosismo. Estava pensando em sugerir que se encontrassem na cafeteria. Algo sobre a mãe de Chloe o deixava apreensivo. Vê-la tão doente e questionar se ela tinha sequestrado Chloe tornava tudo mais difícil.
Ele se perguntou quão difícil não seria para Chloe ver a mãe dela tão magra. E ele só contribuiria para aumentar os problemas da garota se dissesse que ela podia ser Emily Fuller. Ocorreu-lhe que seria mais fácil se ela não fosse a filha dos Fuller.
Ele não teria que mentir para ela.
O carro de Chloe entrou na garagem da casa.
Cash viu pelo espelho retrovisor a amiga dela colocando a mochila no ombro. Ele tinha reparado nela no ano anterior. Não estava na sua lista de garotas insuportáveis.
Chloe saiu do carro. Cash gostava de observá-la, especialmente quando ela não sabia que estava sendo observada. Ela parecia de alguma forma... diferente das outras garotas. Quando cruzava com outras pessoas no corredor, pedia licença. A maioria não fazia isso. Ela sorria para os outros alunos — não apenas para os mais populares, como algumas garotas faziam.
Cash também via os garotos olhando para ela. Não podia culpá-los. Ele olhava também. Só que alguns caras eram uns cretinos.
Só quando Chloe viu o carro dele é que Cash saiu.
— Vamos entrar. — O cabelo dela balançava em volta dos ombros e a camisa vermelha se ajustava aos seios.
Ele a seguiu para dentro da casa.
— Mãe? — Chloe chamou. — Cash está aqui. Vamos nos sentar lá fora, no quintal. — Cash ouviu a mãe dela responder algo do quarto.
Chloe largou a mochila numa cadeira da sala de jantar.
— Aposto que a sua casa é muito melhor que a minha.
— Na verdade, não — Cash mentiu, porque seria rude da parte dele se concordasse com ela. Mas com exceção da casa dos Fuller, a casa de Chloe era melhor do que qualquer outra em que ele já tinha morado. Durante seis meses, ele e o pai haviam morado numa cabana na floresta sem água corrente, eletricidade ou banheiro.
Ele a seguiu pela casa e viu alguns porta-retratos na mesinha ao lado do sofá. Ali havia várias fotos de Chloe quando era pequena. Uma delas chamou a atenção dele, como se ele já a tivesse visto antes. Era Chloe segurando um gato tigrado amarelo. Ele pegou o porta-retratos. Estava imaginando coisas ou era a mesma foto que a Susan Fuller tinha num dos quartos vazios? Se pudesse, fotografaria a foto para poder compará-las.
Cash levantou os olhos e percebeu que Chloe estava olhando para ele.
— Você era uma gracinha.
— Obrigada. — Ela fez sinal para ele acompanhá-la até o quintal. Lembrou-se da última vez em que estivera ali, quando ela o acusara de ter murchado seu pneu. Esperava que desta vez não houvesse acusações.
Quando saíram no quintal, um cachorro amarelo, de tamanho médio e raça indefinida, veio correndo para cima dele, latindo. Não era um latido ameaçador, mas brincalhão. Cash acariciou o animal.
— Não, não pule, Docinho! — Chloe foi se sentar no balanço. Cash teve a sensação de que ela esperava que ele fizesse o mesmo. Então se sentou, deixando de propósito um espaço entre eles. Mas, mesmo assim, estavam muito próximos. Ele podia sentir o aroma que exalava dela. Um perfume de frutas e flores. Não um perfume, mas uma colônia, e talvez um brilho labial também, porque ele notou que os lábios dela estavam brilhantes.
O cachorro colocou a pata na perna de Cash.
— Ela é bonita.
— Ele — disse Chloe.
— Você deu o nome de Docinho para um macho?
— Ele era muito bonzinho. E eu tinha 7 anos.
Cash soltou uma risadinha.
— Você provavelmente o castrou também, para tirar dele qualquer resquício de masculinidade...
Ela levantou uma sobrancelha e acariciou o cachorro.
— Só depois que ele cruzou com a cachorra do vizinho e ela teve vários filhotes. E foi na festa do meu aniversário. Na frente de todos os amigos da minha classe. Minha festa teve cama elástica, um palhaço e uma aula de educação sexual.
Ele riu e percebeu que fazia muito isso quando Chloe estava presente. Então pensou no que ela tinha dito. Cash não tinha realmente refletido sobre como tinha sido a infância dela, mas não parecia ruim. Será que pessoas que organizam festas de aniversário bem elaboradas para os filhos sequestram crianças?
Ele nunca tivera uma festa de aniversário. Teve apenas um bolo de aniversário antes da chegada dos Fuller. Agora os aniversários nunca passavam em branco. Sempre havia bolo e presentes. E a mãe adotiva sempre tirava o dia de folga e cozinhava o que ele queria. Se Cash não dissesse o que queria, ela fazia os pratos que sabia que ele gostava. Será que era isso que Chloe também tinha?
Percebendo que o silêncio estava ficando pesado, ele disse:
— Parece que foi uma ótima festa de aniversário.
— Foi inesquecível.
— Eu não estou nem aí! — A voz em tom elevado da mãe de Chloe vazou por trás da porta dos fundos, mesmo fechada.
Chloe franziu a testa.
— Bem, eu só disse a verdade! — A voz da mãe soou irritada novamente.
— Merda. — Chloe saiu do balanço. — Já volto.
Ela disparou para dentro. O cachorro sentado ao lado dele choramingou. Quando a porta se fechou, ele ouviu Chloe dizer:
— Mãe! Cash está aqui.
A voz da mãe dela explodiu novamente.
— Talvez você devesse ter pensado nisso antes de começar a transar com alguém que poderia ser irmã dela! Sim, eu disse isso. Você é um merda. E ela é uma vadia!
— Mamãe! Pare! — A voz de Chloe soou mais alto.
— Passe bem! — A mãe gritou, e então... — Você disse ao seu pai que eu estava falando mal dele?
Cash abaixou os pés para interromper o movimento estridente do balanço e ouvir o que ela diria em seguida.
— Eu... Nós podemos conversar sobre isso mais tarde? Cash está aqui.
— Por que você conta a ele tudo o que eu digo? — A mãe dela gritou.
A voz de Chloe soou em seguida.
— Eu não tinha intenção... — A dor era evidente na voz dela. O mesmo tipo de dor que ele tinha ouvido no dia anterior, quando contou a ele sobre o pai.
— Aquele homem não tem vergonha na cara! E pode dizer a ele que eu disse isso!
Uma porta bateu lá dentro. Cash passou as mãos no jeans e se perguntou se deveria ir embora.
Chloe voltou para o quintal.
O rosto dela estava vermelho. Estava de braços cruzados, como se estivesse zangada ou envergonhada. Talvez as duas coisas.
Ela encontrou os olhos dele.
— Olha, eu vou te dar um conselho: vá embora e me esqueça. Você não tem que ouvir os melodramas dessa minha família maluca.
Ele não saiu do lugar. Só queria ter algo para dizer que a fizesse se sentir melhor.
— Tive uma família muito pior. São apenas os problemas do divórcio.
Ela se aproximou e deixou-se cair no balanço.
— Foi mal...
Quando ela virou o rosto para cima, ele viu lágrimas nos cílios longos e escuros.
— Sério, está tudo bem.
— Minha vida é uma zona. Você não vai querer... — Chloe mordeu o lábio.
— Não. A vida dos seus pais é uma zona. Você é apenas uma vítima inocente.
Cash não podia acreditar que estava reciclando alguns dos velhos clichês que os psicólogos costumavam repetir para ele enquanto estava no hospital, depois de ter sido baleado. A psicóloga estava lá quando ele acordara. Cash tinha se lembrado de perguntar a ela:
— Eu vou para a cadeia?
Ela tentou consolá-lo.
— Não. Você não fez nada de errado.
Ele se lembrou de levantar o queixo, disposto a aceitar sua punição.
— Sim, eu fiz.
— Você não é má pessoa. Foi seu pai quem fez coisas ruins. Você é jovem, fez o que tinha que fazer para sobreviver.
Ao lado dele, Chloe balançou a cabeça.
— Não. Eu não sou inocente desta vez. — Mais uma vez, ela mordeu o lábio. — Meu pai ligou esta manhã e eu disse algo que não deveria ter dito. Eu queria magoar meu pai, não a minha mãe.
Ele não sabia direito o que o levou a fazer aquilo, mas colocou o braço sobre os ombros de Chloe. Um choque de prazer percorreu o corpo dele, acompanhado de dor. Mas então a dor se foi.
Ela soltou aquele som triste novamente — um suspiro muito parecido com o da sra. Fuller, o que o fez lembrar por que ele estava ali. Antes que Cash pudesse mover o braço, Chloe se inclinou contra ele.
Ele tentou não recuar.
— Ainda tem a ver com eles. Não com você.
Ela olhou para ele. Estavam tão perto que Cash poderia contar os cílios dela. E isso deu a ele uma visão panorâmica da dor nos olhos castanhos dela.
— Você é muito bom nisso — Chloe sussurrou.
— No quê?
— Em saber dizer a coisa certa.
— Que estranho... Eu geralmente sou péssimo nisso. — Cash forçou um sorriso, sentindo cada centímetro do corpo dela contra o dele. Sentindo quanto aquilo parecia certo e errado ao mesmo tempo.
— Seus pais se divorciaram? — perguntou ela.
Ele sentiu o ar preso na garganta. A última coisa que queria era falar sobre o passado.
— Não. Eles morreram.
— O que aconteceu? Desculpe, eu não deveria...
Docinho bateu contra o joelho dele, com uma bola de tênis amarela na boca. Com o braço livre, Cash jogou a bola longe para o cachorro pegar.
— Sua mãe parecia furiosa.
— Ela não está apenas furiosa. Ela está amargurada.
Chloe olhou para a porta e sua expressão era de tristeza novamente.
— Não posso culpá-la, só que... dói ouvi-la xingar meu pai o tempo todo. Eu sei que ele merece. Mas... — Ela cobriu o rosto com as mãos. — Droga. Estou fazendo de novo.
— Fazendo o quê?
— Despejando os meus problemas em cima de você.
Cash sorriu.
— Eu aguento.
Ela riu e recostou-se nele. Estavam ainda mais perto agora.
Ele inspirou o perfume dela.
— É câncer que ela tem?
— Sim.
— Ela vai ficar bem?
A raiva nos olhos dela se transformou em tristeza.
— O médico disse que ela está curada. Mas acabei de descobrir... que o câncer pode voltar. — Chloe fez uma pausa. — Mal posso esperar o dia em que ela deixar de parecer... que está morrendo.
— Sinto muito. — Cash quase disse que a mãe adotiva era oncologista, mas falar sobre a mulher que ele achava que podia ser a mãe dela parecia errado.
Os olhos deles se encontraram. E ali ficaram. Os lábios dela vieram ao encontro dos dele.
Cash recuou.
Ela se encolheu.
— Foi mal...
— Não. Eu só... Eu não estava... — Ele não conseguia desviar os olhos dos lábios dela. Então ele se inclinou. Seus sentidos continuavam hiperalertas.
Ele sentiu tudo intensamente. O sabor dos lábios dela. Um pouco salgados, por causa das lágrimas. A textura deles. Macios, quentes. Úmidos. O modo como ela chegou um pouco mais perto e seus seios pressionaram suavemente as costelas dele. Cash a queria mais perto, para que pudesse envolver sua cintura, deslizar as mãos sob a camisa vermelha, para sentir a pele nos lugares que não tinha conseguido ver.
Percebendo que não deveria estar pensando aquilo, ele pôs fim ao beijo, mas conseguiu fazer isso bem devagar.
Chloe sorriu.
— Isso foi bom.
— Sim. Foi mesmo...
Mas, que droga, ele estava indo longe demais! Aquilo podia acabar muito mal.
Cash estacionou na garagem, entrou em casa e digitou o código para desligar o alarme. Ele tinha ido embora depois que os dois haviam se beijado pela quinta vez. Cinco beijos. Ele ficou dizendo a si mesmo que precisava parar, mas não conseguia. Não quando ela se sentou tão perto e parecia tão disposta, olhando para ele com desejo misturado com tristeza. Chloe precisava ser beijada e ele precisava beijá-la.
Ele subiu os degraus de madeira e cruzou o corredor até o quarto onde a sra. Fuller guardava todas as recordações da filha que havia perdido. Fotografias, bichinhos de pelúcia com que a criança brincava, livros que ele imaginava que a mãe lia para ela. Na cômoda ainda havia algumas roupas. Era como um museu dedicado à filha.
Quando acendeu a luz, ele descobriu que a cama estava desarrumada. Ele apostava que ela tinha dormido ali na noite anterior. Sempre fazia isso quando estava com algum problema.
Cash foi até as prateleiras que continham livros e porta-retratos. E encontrou. A foto de Emily Fuller segurando um gatinho. Não apenas qualquer gatinho, mas Félix. O gato malhado amarelo quase idêntico ao da fotografia na casa de Chloe. Igualmente idêntica era a garota.
Ele pegou a foto.
A mãe adotiva tinha lhe contado muitas vezes como Emily amava Félix. Eles haviam encontrado o gatinho abandonado na rua. Era por isso que a mãe adotiva amava tanto aquele gato. Aquela seria uma peça do quebra-cabeça? Ou todos os pais decentes tinham fotos dos filhos com seus animais de estimação? Mas como essas duas garotas poderiam se parecer tanto? E seria coincidência que os gatinhos se parecessem também?
Ele pegou o celular para fotografar o porta-retratos.
9
Atenta a cada barulhinho vindo do quarto da minha mãe, eu coloco o que restou de uma pizza no forno, esperando que o cheiro apetitoso a atraia para a cozinha. Cash saiu faz uma hora, mas minha mãe não apareceu ainda. Será que ela está chorando? Está deprimida? Irritada?
Parte de mim gostaria de obrigá-la a sair do quarto. Ela está agindo como uma criança birrenta.
Quando é que assumi o papel da mãe nesta casa?
Ah, sim, quando ela teve câncer. Ou talvez quando meu pai a abandonou.
Desconto minha frustração na alface, no tomate e nas cenouras que estou picando. Félix mia e circula entre os meus tornozelos.
Com as mãos no piloto automático, minha mente divaga. Estou angustiada com a minha mãe e ao mesmo tempo nas nuvens por ter sido beijada por Cash. Beijada cinco vezes. Eu tomei a iniciativa. Quero dizer, os lábios dele estavam tão perto que eu simplesmente o beijei. Mas os outros quatro beijos foram iniciativa dele.
Eu posso fechar os olhos e ainda sentir seus lábios contra os meus. Saboreio a lembrança e... os sentimentos novos que brotam no meu peito. Esperança. Empolgação. Antecipação.
Desde que meus pais começaram a se desentender, sinto como se alguém tivesse roubado a minha alegria. Mas talvez ela não tenha sido roubada, apenas reprimida. Talvez...
A porta do quarto da minha mãe se abre. Ela entra na cozinha em meio a uma aura de depressão.
— Estou esquentando a pizza — digo.
— Não estou com fome.
— Você tem que comer. — Sim, eu sou a mãe aqui.
Nossos olhares se encontram. Eu vejo a mágoa nos olhos fundos dela. Toda a alegria que eu sinto no peito murcha como uma flor deixada num vaso sem água. Sou tomada por um sentimento de culpa.
— Eu não fico falando de você para o papai. Ele ligou esta manhã e fiquei com raiva.
— Por quê?
— Ele me disse que ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Quando reclamei, ele perguntou se você estava falando mal dele e se era por isso que eu estava sendo agressiva. Eu disse que, sim, que você estava falando mal dele, mas que não era esse o problema. O problema era que agora eu estava percebendo que tudo que você dizia era verdade. Eu não quis...
Ela se senta.
— Então ele disse que ligaria e não ligou?
Isso não está ajudando. Agora ela vai ficar brava de novo. Eu me deixo contagiar por essa raiva.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não fique com raiva.
— Como posso não ficar com raiva? Olha o que ele fez comigo! — Ela arranca a bandana.
— O que aconteceu com aquela minha mãe que estava feliz outro dia? Que disse que tudo ia ficar bem?
— Seu pai aconteceu! — Lágrimas enchem os olhos dela.
Lágrimas enchem meus olhos também. Sento-me ao lado dela.
— Mãe, você precisa de ajuda. Precisa de terapia ou algo assim. Você pode sobreviver ao câncer, mas essa amargura vai te matar.
Sem mais uma palavra, ela volta para o quarto.
Eu desligo o forno, vou para o meu quarto e bato a porta.
Nenhuma de nós janta.
Na manhã seguinte, quando saio do meu quarto para fazer xixi, minha mãe me chama. Ela está sentada na cozinha, vestida com o roupão cor- de-rosa, que parece engolir seu corpo inteiro.
— Podemos conversar?
Tento decifrar o humor em que ela está. Ainda está furiosa? Ainda está deprimida? Quando me aproximo, sinto outra coisa. Culpa.
— Sente-se. — Ela faz um gesto indicando a mesa.
Eu me sento na frente da minha mãe. As olheiras sob os olhos dela estão mais escuras. Ela não anda dormindo.
— Sinto muito — diz minha mãe. Lágrimas caem dos seus olhos verdes. — Eu tive um dia ruim ontem. Ficaram de me ligar ontem para falar sobre a vaga de emprego no consultório, mas ninguém ligou. Estou achando que podem ter mudado de ideia. E o remédio que estou tomando causa sintomas de gripe. Comecei a sentir pena de mim mesma, então o seu pai me ligou e eu perdi a cabeça. — Ela pega minha mão. — Me desculpe por ter surtado na frente do seu amigo.
Embora eu quisesse acreditar que tudo está bem agora, não posso. Não é o primeiro pedido de desculpas que ouço dela.
— Amo você, mãe — digo. — E eu te perdoo. Mas você precisa fazer terapia.
— Foi só um dia ruim.
Eu enrijeço os ombros e digo a mim mesma que não sou a mãe dela.
— É mais do que isso. Você parou de escrever. Parou de viver. Parou de comer. Não foi só um dia ruim. Você teve um ano ruim. Vejo anúncios na TV dizendo que hoje existe todo tipo de remédio para a depressão.
— Querida, eu não preciso...
— Você precisa, mãe. — Eu a olho bem nos olhos.
Ela hesita e diz com relutância:
— Vou ver se o nosso seguro-saúde cobre.
Não era um sim, mas também não era um não.
Termino de me arrumar, abraço minha mãe e a lembro de ligar para o seguro-saúde. Quando saio, Lindsey está ao lado do meu carro. Ela havia me mandado uma mensagem ontem à noite, cerca de uma hora depois que me tranquei no meu quarto, implorando para eu ir à casa dela, mas eu só liguei. Não contei sobre a minha mãe, não estava pronta para conversar sobre isso, mas contei sobre Cash. Sobre nós nos beijando.
Quando ela me vê, sorri.
— Ainda caminhando nas nuvens?
— Mais ou menos... — Entro no meu carro.
Lindsey se senta no banco do passageiro.
— Eu mal posso acreditar que você está namorando Cash Colton. Ele é o cara mais gato da escola!
— Calma aí! Não estou namorando Cash. Ainda não.
Quando dou partida no carro, vejo minha mãe olhando pela janela.
Despenco das nuvens um pouco mais.
— Ok, deixe-me reformular — diz Lindsey. — Mal posso acreditar que você está dando uns amassos no cara mais gato da escola.
— Não dei uns amassos... Foram só cinco beijos...
— Hmm... — diz Lindsey. — Acho que foram amassos, sim. Vamos ver o que o Google diz. — Ela pega o celular e, em alguns segundos, está lendo e rindo.
— O que foi? — pergunto.
— Bem, de acordo com o Google, são vários os significados de “dar uns amassos”. Só beijar é um deles. Beijar com a língua é outro. — Ela olha para mim. — Você deu um beijo de língua no Cash?
— Digamos que sim...
— Ah, olha só... — Ela se concentra no celular. — Aqui está outro significado: “Trocar carícias, esfregar-se um no outro ou remover peças de roupa”.
— Nós não removemos nenhuma peça de roupa! — Eu solto uma risada.
Ela continua.
— Ouça esta aqui: “Qualquer coisa que não incluir penetração”. Penetração? Isso parece tão pervertido...
O comentário me faz bufar e depois pergunto:
— E quando você vai falar com David?
— Não vou. Se gosta de mim, ele é que vai falar comigo. — Lindsey afivela o cinto de segurança. — Adivinha quem mandou uma mensagem ontem à noite?
— Quem?
— Jonathon.
— O cachorro sarnento traidor? — Começo a dirigir.
Ela confirma.
Piso repentinamente no freio quando vejo o farol vermelho. O carro dá um solavanco.
— Não... — digo com firmeza.
— Não o quê?
— Não, você não vai voltar com ele! Ele te tratou como lixo.
— Mas...
— Sem desculpas! Não seria sua amiga se deixasse você voltar com ele.
Ela baixa a cabeça.
— Tem razão.
— Fale com David hoje!
— Talvez — Lindsey responde.
— Nada de talvez! Faça isso. E nem estou dizendo para sair com ele, apenas...
— Apenas o quê?
— Sinta que é possível. Descubra o poder que existe dentro de toda garota e pare de pensar que precisa de Jonathon para ser feliz. Às vezes acho que precisamos saber que outro cara gosta de nós para nos sentirmos bem com a gente mesmo. Às vezes só precisamos saber que conseguimos fazer um cara perceber que talvez a gente não precise de cara nenhum.
— É isso que você está fazendo com Cash? Encontrando o poder que existe dentro de toda garota?
A pergunta rola na minha cabeça.
— Talvez. Não sei ainda. — Mas quando penso nele, sinto que é mais do que isso.
Cash chegou cedo na escola, mas disse a si mesmo que sua pressa para chegar não tinha nada a ver com Chloe.
Na noite anterior, ele só conseguia pensar nela. Ficou se perguntando se ela seria Emily. Se havia gostado tanto de beijá-lo quanto ele gostara de beijá-la. Se ela iria odiá-lo quando ele contasse sobre as suas suspeitas.
Quando virou no corredor, ele a viu. Diminuiu o passo e a observou. Prestou atenção na maneira como o cabelo dela caía nas costas, enquanto ela guardava a mochila no armário.
Então ele se aproximou até parar ao lado dela.
— Olá.
Chloe se virou e sorriu.
— Oi.
— Oi. — O olhar de Cash foi direto para os lábios dela e ele quis beijá-la. Nunca fora de demonstrar afeto em público, mas poderia dizer que seria fácil mudar de ideia.
Percebendo que ficar olhando para os lábios de Chloe era estranho, ele desviou o olhar para o livro de matemática que ela segurava contra os seios. Mas deixar que o olhar se demorasse ali seria ainda mais estranho, então Cash falou sem pensar:
— Indo para a aula de Cálculo? Você tem aula com o sr. Williams? Eu tenho aula com ele mais tarde.
Desde a noite anterior, ele sabia que ela tinha aula com o sr. Williams, pois tinha lido e relido o arquivo que fotografara no escritório da srta. Anderson.
— Sim — ela respondeu. — Ele parece legal. Qual é a sua primeira aula?
— História. — O alarme tocou.
— Preciso ir — disse ela. — Vejo você na aula de Literatura Americana.
— Até mais tarde. — Ele se inclinou na direção dela. — Gostei de ontem.
Ela sorriu e aqueles suaves olhos castanhos o fitaram através dos cílios.
— Eu também.
Ela se afastou. Ele a viu cruzar o corredor em meio à multidão. O jeans preto que ela usava se ajustava quase tão bem quanto o jeans azul que vestira no dia anterior.
Ele ficou ali parado até a visão dela ser obstruída por outros alunos.
Considerando que Cash fazia parte de quase todas as aulas de conteúdo mais aprofundado, era estranho que só tivessem uma aula juntos aquele dia. Apenas azar. Ou talvez fosse porque ele tinha escolhido estudar Tecnologia Automotiva.
No ano anterior, quando montava sua grade de aula, a srta. Anderson tinha tentado convencê-lo a não fazer isso.
— Mas eu não posso mantê-lo em todas as aulas mais avançadas se estiver estudando Tecnologia Automotiva. Você poderia escolher outra aula de matemática para se preparar melhor para os cursos universitários.
Ele explicou que havia planejado cursar aulas de matemática numa faculdade antes de se formar. E ele já estava fazendo isso. Aquela noite era sua primeira aula.
— Então você planeja ir para a faculdade? — ela perguntou como se não esperasse que ele tivesse esses planos. Agora que sabia que a srta. Andreson era adotada, ele estava meio desapontado ao ver que ela tinha automaticamente pensado o pior dele. Pessoas comuns faziam aquilo, não pessoas que entendiam o que era uma adoção.
Ou talvez ela tivesse entendido até bem demais. A maioria das crianças adotadas por meio do programa do governo acabava na prisão. Quando Cash leu essa estatística, ficou chateado. Pensou nas poucas crianças adotadas de que ele realmente gostava. Não que tivesse mantido contato com elas. Isso era quase impossível em razão do número de vezes que mudara de lar temporário.
Enquanto caminhava para a aula de História, lembrou-se da pergunta seguinte da srta. Anderson. Ela quis saber:
— Então por que fazer Tecnologia Automotiva?
Cash disse a ela:
— Porque eu gosto.
E ele gostava mesmo. Mas a verdade era que, quando terminasse o ensino médio, não planejava receber uma mesada dos pais adotivos. Se algo acontecesse com o carro dele, era melhor que ele estivesse preparado para consertar.
Além disso, a oficina estava lhe atribuindo serviços cada vez maiores, agora que sabiam que ele estava cursando Tecnologia Automotiva, e ele esperava trabalhar numa grande oficina mecânica enquanto fazia faculdade.
Incomodava-o o fato de os Fuller terem comprado um jipe para ele. Eles o tinham convencido a aceitá-lo. Mas Cash se arrependera. E estava determinado a reembolsá-los.
Depois do almoço, vou ao meu armário buscar meus livros. Com o armário aberto, pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem para minha mãe. Você ligou para o seguro-saúde?
Ela precisava saber que eu não tinha me esquecido.
Estou esperando para ver se ela vai responder quando sinto alguém de pé ao meu lado. Abro um sorriso, pensando que é Cash. Mas, quando olho, vejo o rosto de um valentão com um nariz muito machucado. O nariz que Cash socou.
— Oi — ele diz. — Sou Paul Cane. Quarterback do time de futebol.
Eu olho para o meu celular novamente, esperando que ele vá embora. Ele obviamente acha que eu deveria ficar impressionada com a posição dele no futebol.
— Pois não?
— Chloe, certo? — ele pergunta.
— Sim.
— Pensei em fazer um favor a você.
Isso me faz levantar o olhar.
— Vi você saindo com aquele cara, Cash. Você provavelmente não sabe, mas ele é adotado.
Para mim isso é como derramar suco de limão num corte profundo.
— E daí? — percebo o tom frio da minha voz e espero que ele também tenha percebido.
Ele deve ter percebido, porque parece decepcionado.
— Conheço alguns alunos que frequentam a antiga escola de Cash, e há boatos de que ele é mau elemento.
Eu lanço um dos meus sorrisos mais amarelos e falsos.
— O bom é que não desperdiço meu tempo com boatos.
Os olhos cinzentos dele escurecem.
— Dizem que ele matou o pai. Um tiro bem no coração.
Isso me deixa atordoada, mas não demonstro.
— Como eu disse, não dou a mínima atenção para boatos.
Começo a andar, mas ele pega meu braço.
— Você deveria dar. — O tom da voz dele é tão arrogante quanto no dia em que praticou o bullying. Como se ele fosse mais esperto que todo mundo, superior. Mas eu o vejo simplesmente pelo que ele é: um babaca.
Eu olho para a mão dele e afasto o meu braço.
Ombros tensos, bato a porta do meu armário com um pouco de força demais. O barulho ecoa no corredor. Pessoas se viram para olhar.
Quando começo a andar, minha mente começa a dar voltas. Será que Cash de fato matou o próprio pai?
10
Quando toca o último sinal do dia, Lindsey me encontra em frente ao meu armário e vamos juntas ao estacionamento. Estou decepcionada que Cash não veio falar comigo. Durante todo o dia pensei no que Paul me disse. Não que eu acredite nele.
Sei que Paul é um idiota que diria qualquer coisa para prejudicar Cash. E se Cash soubesse o que ele disse, ficaria chateado. E é por isso que não vou dizer nada a ele.
Quando Lindsey e eu nos aproximamos do meu carro, eu o vejo encostado contra a lataria. Lembro com clareza como foi beijá-lo. Um sorriso aparece nos meus lábios e depois nos meus olhos.
Não. Ele não é um assassino.
— Você quer que eu deixe vocês dois sozinhos? — Lindsey pergunta.
— Não — eu digo.
Nós continuamos andando e tudo que eu posso ver é Cash. Em como seus olhos verdes brilham enquanto me olham. Na expressão dele, quase sorrindo.
— Esta é Lindsey.
Cash é educado e diz:
— Olá. Conheço você de vista desde o ano passado.
— Oi. — Ela pega o celular. — Eu preciso mandar uma mensagem... para uma pessoa. — Ela vai para o outro lado do carro. Sei que está apenas nos dando um pouco de privacidade e lhe sou grata por isso. Me aproximo dele.
— Espero que goste da sua aula de hoje à noite.
— Eu só queria me despedir.
Olho para ele. Seu olho roxo está melhor. Uma rajada de vento tira o cabelo preto da testa. Eu me pergunto se ele quer me beijar de novo. Sei que quero beijá-lo, mas usei toda a minha coragem quando o beijei primeiro ontem.
— Tudo bem se eu te mandar uma mensagem ou te ligar mais tarde? — ele pergunta.
— Tudo bem. — Nós trocamos números de telefone.
— Você pode me ligar também. — Cash passa a mão no meu braço. Sei que ele não está planejando me beijar. Mas o toque de alguma forma me tira o fôlego tanto quanto o beijo.
Fico ali parada, vendo-o se afastar. Ele se vira uma vez e abre um sorriso. Isso é tão bom...
— Sem beijo? — Lindsey pergunta depois que entramos no carro.
— Sem beijo. — Eu ofereço a ela um sorriso e quase digo quanto me sinto bem.
Ela suspira.
— Você sabe que isso tudo é muito louco? Sério, as garotas ficavam, tipo, se jogando em cima dele, e ele ignorava todas elas.
— Também acho muito louco... — comento, e a insegurança me atinge em cheio. Sei que ele disse que eu me pareço com alguém e foi por isso que tudo começou, mas, se Cash pode ter qualquer garota que quiser, o que está fazendo comigo?
Afasto esse pensamento e olho para Lindsey.
— Você falou com David hoje?
Ela sorri.
— Falei.
— E como foi?
— Usei o poder que toda garota tem! — diz ela. — E se ele me convidar para sair, eu vou. Eu não sei se ele gosta de mim, mas eu gosto dele. Ele é... revigorante.
— Ótimo! — Enquanto esperamos na fila para sair do estacionamento, ouço uma batida na janela da frente, do lado do passageiro.
É Jamie.
Lindsey abaixa o vidro.
— Oi — Jamie diz para Lindsey, sem nem me cumprimentar com um aceno de cabeça.
— Quer ir para casa comigo? A gente faz o dever de casa juntas...
— Hã... — Lindsey olha para mim como se estivesse constrangida.
— Pode ir — eu digo.
— Ok, então — diz Lindsey.
Eu fico olhando enquanto Lindsey salta do carro e se afasta com Jamie, dizendo a mim mesma que não estou com ciúme. O carro na minha frente anda um pouco mais. Eu faço o mesmo. Olho pelo retrovisor e as vejo dando risada. Não estou com ciúme, repito, mas machuca um pouco de qualquer forma.
Cash deixou Chloe, pensando se não deveria tê-la beijado. Ele andou na direção do jipe. Parecia que ela queria ser beijada. Talvez devesse mandar uma mensagem para dizer que ele queria também. Faria isso. Então se perguntou novamente se aquilo era sensato. Como ela iria reagir quando ele contasse sobre Emily? Cash preferia que ela não tivesse relação nenhuma com aquela história. Ele não tinha planejado gostar dela.
Claro que Chloe compreenderia.
Mas ele precisava contar em breve. Muito em breve. Ele não sabia o que estava esperando. Mais provas?
Quando se aproximou do jipe, viu algo estranho na porta do motorista. A raiva ferveu dentro dele enquanto fitava o risco fino na lateral do carro. Algum idiota havia riscado seu jipe. E ele apostava que o idiota tinha um nariz inchado também.
Cash ficou ali, cerrando e abrindo os punhos. Queria encontrar aquele cretino e lhe dar uma lição. Então se lembrou do suspiro triste da mãe adotiva.
Embora soubesse que Paul tinha feito aquilo, ele não tinha provas. Assim como não tinha provas do estupro. Quem acreditaria nele? Ninguém. Se ele fosse atrás de Paul agora, seria acusado de começar a briga. E teria problemas. Poderia ser expulso da escola novamente.
— Merda! — Cash se forçou a entrar no jipe. Ficou sentado ali, segurando o volante com tanta força que seus punhos doeram. De alguma forma, de algum jeito, tinha que dar uma lição em Paul, mas sem arranjar problemas.
Paro na calçada e fico olhando para a casa antiga. Tenho medo de entrar. Medo de ver minha mãe fazendo drama. Estou cansada de drama.
Ela me contou que esse foi o primeiro lugar onde vieram depois da adoção. Ela estava tão animada para me mostrar aos pais... Por que não me lembro disso? Minha única lembrança é a de olhar para aquele tapete sujo e para meus sapatos pretos de fivela. Triste, sozinha. Assustada. Eu me pergunto se estava sentindo falta dos meus verdadeiros pais naquele dia. Eu me pergunto por que eles não me quiseram mais.
Me pergunto por que diabos desperdiço tempo pensando nisso. Sempre acabo sentindo dó de mim mesma. Sentindo-me patética. E não quero ser essa garota que tem pena de si mesma.
Pego minha mochila e saio do carro.
Ao entrar em casa, eu me preparo para outra discussão com minha mãe. Ela não respondeu à minha mensagem perguntando se havia ligado para o seguro-saúde.
Ela está na cozinha. Arrumada. Isso é um bom sinal. Mas vestindo roupas dois números maiores, ela me lembra um pouco um manequim vestido com trajes largos demais.
Ao entrar na cozinha, coloco a mochila sobre a mesa. Ela está sorrindo e eu não consigo não me perguntar se não está apenas fingindo.
— Como foi seu dia?
— Ótimo! — ela diz.
— Você começou a escrever de novo? — Ela costumava ficar realmente feliz quando conseguia escrever várias páginas do seu livro.
— Não. Recebi uma ligação do consultório médico. Eu tenho uma entrevista amanhã para me encontrar com o outro médico. Surtei por nada.
— Isso é ótimo, mamãe!
Odeio ser estraga-prazer, mas tenho que perguntar.
— Você ligou para o seguro-saúde?
O sorriso dela diminui.
— Liguei. Eles vão me enviar um e-mail com uma lista de terapeutas.
— Eles não têm simplesmente um site que você possa acessar?
— Sim, mas está em manutenção, por isso a funcionária vai me enviar uma lista atualizada.
Eu não sei se isso é só uma tática para adiar a terapia, mas não sei como argumentar.
— Ótimo. Eu só quero...
— Preciso ir às compras — ela interrompe. — Usei a minha única roupa apresentável na primeira entrevista. E como hoje é 4 de setembro... — Ela me manda um beijo. — Achei que poderíamos sair para comemorar. Aproveito e compro uma roupa para você também.
Eu me esqueci da data.
Quando eu era mais nova, 4 de setembro era como um segundo aniversário para mim. Presentes e bolo. É o dia em que eles me adotaram. Nós sempre comemorávamos. No ano passado, depois que meu pai foi embora, ele enviou flores.
Passo os olhos pelo balcão da cozinha só para dar uma checada rápida. Nada de flores. Talvez elas cheguem mais tarde. Ou talvez meu pai também tenha esquecido.
Minha mãe ainda está sorrindo.
— Onde você gostaria de comer?
Eu me forço a parecer interessada. Acho que ainda estou chateada com ela por me envergonhar na frente de Cash, mas faço a coisa certa.
— Naquele restaurante italiano, na avenida principal.
Às oito da noite, já em casa, abraço minha mãe, digo a ela que me diverti ajudando-a a escolher uma roupa e agradeço pela blusa. Não deixei que ela comprasse outra calça jeans, porque sei que ela não tem muito dinheiro.
Na verdade, eu me diverti bastante. Minha mãe estava... quase normal. Nós não falamos sobre meu pai, nem a respeito do telefonema ou do seguro-saúde. Comemos frango marsala e tiramisu, e ela contou como foi a infância dela nesta cidade. Até falou um pouco sobre algumas das suas antigas amigas e sugeri que ela tentasse entrar em contato com elas.
No caminho para casa, ela perguntou sobre Cash. Ele é seu namorado? O que você sabe sobre ele? Minhas respostas — evasivas — foram propositalmente curtas para não prolongar o assunto. Desde que Lindsey mencionou que todas as garotas praticamente se jogavam em cima de Cash, tenho questionado o interesse dele por mim. Além disso, cinco beijos não fazem de ninguém um namorado, e eu não vou entrar naquele assunto sobre ele ser adotado. Mas a pergunta da minha mãe me faz pensar em como sei pouco sobre ele.
Depois de pegar uma garrafinha de água, vou para o meu quarto fazer a lição de casa e penso no que vou escrever para Cash. Ou na razão por que ele não me mandou nenhuma mensagem.
Odeio me sentir assim. Por que não posso simplesmente mandar uma mensagem para ele? Tenho receio de dizer algo idiota e ele parar de gostar de mim. Tenho medo de que ele não me mande nenhuma mensagem porque encontrou uma universitária muito mais bonita do que eu.
Sim, eu sou uma boba insegura. Sempre culpo a adoção. O fato de saber que meus verdadeiros pais não me quiseram. Às vezes quero encontrá-los e perguntar por quê.
Eu desabo na minha cama e Félix se deita sobre meu peito. Ouço seu ronronar e esse som me acalma. Abro meu aplicativo de fotos e tiro uma foto dele. Só sai metade de sua carinha, mas a foto fica bonita.
Eu finalmente o empurro para sair de cima de mim, fico de bruços e escrevo: Como foi a aula?
Imediatamente, vejo que ele leu a minha mensagem. Sorrio e me pergunto se ele estava prestes a me escrever também.
Cash: Entediante. Professor estava atrasado.
Eu: Que pena. Você ainda está na faculdade?
Ele: Não. O que você fez hoje à noite?
Eu: Saí para jantar em um restaurante italiano com a minha mãe.
Ele: Ela está de bom humor?
Eu: Não surtou mais. ©
Ele: Que bom.
Félix se deita sobre as minhas costas e fica afofando meus ombros.
Faço uma pausa e olho outra vez o celular. Devo me despedir agora?
Ele: Eu gostaria de ter beijado você no estacionamento.
Dou risada e solto um gritinho.
Eu: Eu também.
Ele: Posso te ver amanhã à tarde?
Eu não quero trazê-lo em casa novamente.
Eu: Que tal se a gente se encontrar naquela cafeteria depois de eu deixar Lindsey em casa?
Ele: Boa ideia.
Eu: Preciso fazer a lição de casa, mas o meu gato não me deixa em paz.
Ele: O gato dos Fuller também é assim.
Tenho a triste sensação de que ele não pensa no gato como se fosse dele e não se refere à casa dos Fuller como se fosse a casa dele. Eu me pergunto se as coisas são ruins lá. Quero perguntar, mas não sei como. Em vez disso, anexo a foto que acabei de tirar de Félix e uma legenda.
Eu: Olha o Félix.
Deitado na cama, Cash leu a mensagem. Ele se levantou na hora. Caramba! O nome do gato dela é Félix? Ele tentou se lembrar se havia contado a ela qual era o nome do gato dos Fuller. Ele não havia contado. Não tinha nem falado do gato ainda. Certo?
Ele: O nome do seu gato é Félix?
Ela: Sim.
Ele: Quem deu esse nome a ele?
Ela: Eu. Era pequena. Tinha 3 ou 4 anos. Por quê?
Merda! Ele saltou da cama e começou a andar pelo quarto.
Mas, puxa, se isso fosse um golpe, seria a maneira perfeita de aplicá-lo! Continuar dando dicas até... mas não era um golpe.
Ele ficou ali, o dedo posicionado acima do celular, sem saber o que digitar. O que dizer. Finalmente digitou:
Ele: O gato dos Fuller se chama Félix.
Ela: Mentes brilhantes pensam de maneira parecida.
Ele: Sim.
Ela: Foi você quem deu esse nome a ele?
Cash se sentou outra vez enquanto suas emoções desciam por uma tirolesa, abalando seus nervos. Digitou: Não. Ele é velho.
Ele tinha que contar a ela. No dia seguinte. Mostraria a foto em que tinham feito a progressão da idade dela. Chloe ficaria com raiva? Iria descontar a raiva nele? Ficaria chateada por ele ter escondido isso dela? Seria o final do relacionamento entre eles?
— Provavelmente — Cash respondeu em voz alta. Mas ele não tinha escolha.
11
— O que você está fazendo?
Merda. Cash olhou através do para-brisa. Eram cinco da manhã e ele achava que poderia fazer aquilo sem que ninguém soubesse.
A sra. Fuller, ainda de roupão, estava parada na porta da garagem. Que horas ela acordava?
Ele não tinha contado aos Fuller que o carro dele fora riscado. Agora, como explicar por que ele estava instalando uma câmera em seu carro? Ele tinha cerca de um segundo para decidir se deveria dizer a verdade ou mentir. Mentir não parecia justo.
Ele saiu do jipe.
— Estou instalando uma câmera.
— Uma câmera? Por quê?
— Ontem alguém riscou a minha porta.
— O quê? — Franzindo a testa, ela se aproximou e olhou a lateral do jipe. — Por que alguém faria isto?
— Estou achando que é o cara com quem briguei. Mas não posso provar. Então, achei que, se o pegasse no flagra, poderia ter certeza. — O que ele faria se esse plano funcionasse? Ah, já tinha algumas ideias. A maioria delas incluía socos e todas o deixariam em maus lençóis.
Mas aquilo era algo em que ele pensaria mais tarde.
— Você denunciou?
— Não.
Ela apertou os lábios.
— Por quê? A escola precisa saber.
Ele sentiu um nó no estômago.
— Por favor, me deixe resolver do meu jeito.
Ela ficou rígida.
— E se envolver em outra briga com ele?
— Eu não vou brigar — Cash disse, sabendo que estava fazendo uma promessa que dificilmente conseguiria cumprir. — Não tenho certeza se foi ele quem fez isso. Isso pode até ter acontecido na faculdade. — Era mentira. — Não quero acusar ninguém sem provas. Se riscarem meu carro de novo, vou saber quem foi.
— E o que vai fazer quando souber?
— Não vou começar uma briga. Prometo.
A sra. Fuller soltou aquele suspiro triste e ele sentiu um aperto no peito, sabendo que a estava decepcionando novamente.
— Precisamos acionar o seguro do carro. Tenho certeza de que o conserto está coberto.
— Tudo bem. Vou dar um jeito. — Não importava que fosse importante para ele.
— Você não deveria resolver isso sozinho. Vou avisar Tony e você e ele podem decidir como solucionar isso.
Droga! Ele deveria ter mentido.
— Onde você conseguiu a câmera? — ela perguntou.
— Numa loja de peças automotivas. Paguei com o meu próprio dinheiro.
A sra. Fuller soltou outro longo suspiro.
— Você tem o nosso cartão de crédito. Poderia ter usado.
Sim, ele tinha e nunca usara. Nunca faria isso. Nunca tirava vantagem dos Fuller nem pedia a eles mais do que precisava.
— Já que está acordado, venha tomar café da manhã comigo. Estou fazendo ovos com torradas.
Ele queria recusar, mas sabia que ela ficaria chateada.
— Está bem.
— Fica pronto em cinco minutos — disse ela.
Ele instalou a câmera em três minutos e entrou.
— O sr. Fuller não acordou ainda? — perguntou Cash.
— Ele só tem paciente às nove, por isso está dormindo — disse ela.
— Você quer suco? — Cash perguntou.
— Por favor.
Quando ele se aproximou do balcão, viu algo ali, ao lado da bolsa da sra. Fuller. Sua respiração ficou presa.
— O que você está fazendo com isso? — Ele olhou para a foto de Emily com a progressão da idade.
— Alguém pegou a que estava no Walmart. Eu imprimi outra.
Cash olhou para a sra. Fuller enquanto ela fritava os ovos.
— Não fale nada. Tony já disse. — Ela tirou a frigideira do fogão. — Sei que as chances de encontrá-la são praticamente nulas. Sei que a foto que aquele homem me mostrou é provavelmente uma farsa. Mas que mal faz afixar esta naquele quadro?
Ela cruzou os braços.
— Adoraria saber quem a tirou de lá.
A culpa apertou o peito de Cash.
A sra. Fuller tirou a torrada da torradeira e a colocou num prato.
— Será que acharam que ela se parecia com alguém? Não consigo parar de pensar. E se for a pessoa que a levou? Todos pensam que ela está morta. Eu entendo. — Ela colocou a torrada na mesa. — Mas e se não estiver? — A sra. Fuller olhou para ele. — Eu não estou obcecada com isso. Eu só.... Que mal faria deixar uma foto naquele quadro?
Cash viu a dor nos olhos dela e se perguntou se ela e o sr. Fuller teriam discutido sobre isso. Cash os ouvira brigando depois que foram enganados. O marido queria que ela esquecesse. Ela o acusara de esquecer a filha.
— Sinto muito.
A sra. Fuller franziu as sobrancelhas.
— Eu sei. Não faça tempestade em corpo d’água, assim como Tony. Estou bem.
Ela não estava bem, pensou Cash. Tinha perdido a filha. Por que, depois de quinze anos, sua mãe adotiva ainda ansiava pela filha, enquanto a mãe dele tinha acordado uma manhã e ido embora?
Cash ouviu as palavras do pai: Ela não estava nem aí pra você.
O alarme toca e eu tropeço a caminho do banheiro, ainda meio dormindo. As luzes estão acesas na sala de estar. O aroma de café perfuma o ar. Eu diminuo os passos para espiar a minha mãe, sem a bandana, sentada no sofá. Está usando o roupão muito grande para ela e folheia um álbum de fotos. Ela vira uma página. Algo na lentidão do gesto demonstra o humor em que ela está.
E não é bom.
Esperando que eu esteja errada, vou fazer xixi. Então saio do banheiro e entro na sala de estar, imprimindo de propósito mais alegria à minha voz.
— Bom dia!
Ela ergue os olhos. Eu desanimo ao ver as lágrimas nos olhos dela. Espero que o e-mail do seguro-saúde com a lista de terapeutas chegue hoje.
Ao me aproximar, sinto como se estivesse entrando numa bolha de tristeza. Meu olhar se desvia para o álbum. Espero ver uma foto do meu pai, mesmo achando que eu tenha confiscado e escondido todas as fotos dele quando a encontrei arrancando-as do álbum e rasgando-as. Mas não é a foto do papai que ela está olhando.
É da minha avó, quando era mais nova. Eu me lembro dela.
Minha mãe enxuga uma lágrima da bochecha.
— Sonhei com ela.
Quando me sento ao lado da minha mãe, o sofá solta um assovio. Contemplo a imagem de uma mulher de cabelos castanho-claros, olhos verde-claros e um sorriso radiante. Pela primeira vez, percebo quanto minha mãe se parece com ela. No entanto, não a vejo abrir um sorriso tão grande faz muito tempo.
Ela vira a página. Há uma foto dos meus avós. Minha mãe era filha única e nasceu quando eles já tinham certa idade. O pai dela morreu logo depois que fui adotada.
Vovó morreu quando eu tinha 7 anos. Ela sempre vinha ficar conosco no Natal e nas férias de verão. Naquela época, minha mãe trabalhava em período integral no hospital e minha avó ficava cuidando de mim. Lembro-me dela sempre comendo e me oferecendo tangerinas; ela até cheirava a tangerina. Sempre lia para mim à noite e seus abraços eram bem apertados. Ela me chamava de Mosquitinho. Eu odiava insetos, mas sabia que era um apelido carinhoso.
Também me lembro de acordar uma manhã e encontrar minha mãe chorando na cozinha. Meu pai estava abraçado a ela. Ele então se afastou de minha mãe e me puxou para o lado e explicou que vovó tinha ido para o céu, por isso minha mãe estava triste. Eu me lembro de chorar naquele dia também. Eu amava minha avó. Iria sentir falta dos abraços de tangerina e das caras engraçadas que ela fazia quando lia para mim.
Agora, depois que quase perdi minha mãe, quero chorar de novo — mas pela minha mãe desta vez. Posso imaginar muito bem como é perder um pai ou uma mãe.
— Foi um sonho bom? — pergunto.
— Sim. Estávamos cozinhando. Descascando batatas e rindo. Eu ainda sinto falta dela.
— Aposto que sente. — Meu coração fica apertado. Eu toco a cabeça dela.
— Ei, está nascendo cabelo! Cabelo de verdade, não só uma penugem.
— Sim, eu também notei. — Ela sorri, mas seus olhos parecem cansados.
— A que horas você acordou?
— Estou acordada desde as três da manhã.
— Volte para a cama — eu digo.
— Não. Preciso me preparar emocionalmente para a minha entrevista.
— Ah, claro. — Aperto a mão dela. — Boa sorte.
— Minha entrevista é só às quatro e meia. Te vejo antes de sair. Vou precisar que você me lembre de que não tenho com que me preocupar.
Não, não vai dar! Vou me encontrar com Cash. As palavras estão na ponta da língua, mas não consigo empurrá-las para fora.
— Claro.
Droga. Droga. Droga. Estou murmurando baixinho vinte minutos depois, enquanto passo um pouco de brilho nos lábios. Por que não consigo apenas dizer boa sorte para ela agora? Minha mãe precisa viver a vida dela e, até que faça isso, vai ser difícil eu conseguir viver a minha. O pensamento de ir para a faculdade parece impossível. Vejo a imagem na minha cabeça: eu envelhecendo ao lado da minha mãe.
Olho para o meu rosto no espelho do banheiro e me pergunto se depressão é algo contagioso.
A verdade é que eu provavelmente estava deprimida antes do início das aulas. Mas ter um lugar para onde ir todo dia e talvez a emoção de encontrar Cash e, quem sabe, até me tornar a melhor amiga de Lindsey fizeram minha vida parecer mais divertida. Melhor. Menos amarga.
Isso me dá a esperança de que minha mãe sinta o mesmo com relação ao trabalho dela. Com o novo emprego e a terapia, talvez eu consiga minha mãe de volta.
Eu ouço Docinho choramingando na porta do banheiro. Abro e ele está ali, com a guia na boca.
— Desculpa, amigão. Tenho que ir para a escola. Talvez esta tarde.
Então percebo que, embora eu não consiga encontrar Cash logo após a escola, a entrevista da minha mãe vai durar tempo suficiente para eu vê-lo enquanto ela estiver fora.
— Você gostou de Cash, não gostou? Tudo bem se ele for conosco no nosso passeio, certo? — Docinho abana o rabo. Ah, eu podia ter esperança, no final das contas.
Era cedo quando Cash chegou à casa de Chloe. Ela tinha pedido que ele chegasse às quatro e meia, então ele estacionou quatro casas abaixo e esperou. Ele estava uma pilha de nervos e seus ombros estavam, rígidos.
Ele tocou no bolso da frente, onde estava a foto com a progressão da idade.
Como ele iria explicar aquilo? Chloe ficaria chateada? Será que o fato de descobrir sobre a foto a levaria a desvendar todas as outras mentiras dele? O pneu? O arquivo da escola? Cash continuava dizendo a si mesmo que na hora decidiria o que fazer. Mas não estava a fim de improvisar.
Precisando de algo com que se ocupar, começou a excluir alguns vídeos gravados do cartão de memória da câmera do carro. Não tinha conseguido nada ainda. Mas podia demorar um pouco até que os agressores ficassem decepcionados pela falta de reação dele e tentassem novamente. Isso é o que eles queriam. Uma reação. Paul queria que ele começasse uma briga. Então, ele poderia dizer: Veja, Cash começou essa briga e a anterior também.
Cash não ia dar a Paul o que ele queria. Na verdade, hoje ele havia se desviado do seu caminho habitual só para passar ao lado de Paul e seus amigos, e sorrira o tempo todo.
Ele sabia que isso irritava Paul.
Paciência é a chave. Espere as pessoas fazerem alguma coisa. Elas vão fazer alguma besteira. Sempre fazem.
De onde estava estacionado, ele viu Chloe andando com a mãe até o carro. Antes de a mãe entrar, Chloe a abraçou. Ele lembrou que a mãe dela tinha uma entrevista de emprego naquele dia.
A cena lhe pareceu estranha. Como se Chloe fosse a mãe, não a filha.
Mais uma razão para Cash se preocupar com a história toda de Emily. O tiro poderia sair pela culatra. A primeira reação de Chloe poderia ser defender a mãe. Não, ele não acusaria os pais dela de serem os sequestradores, mas isso estava implícito.
Seus instintos lhe diziam para adiar a revelação, mas haveria um momento melhor para contar tudo a ela?
Chloe observou a mãe ir embora. Quando ela se virou para voltar para dentro de casa, seu olhar se desviou para a rua. Ela colocou a mão na testa para bloquear o sol e olhou na direção do carro dele. Droga. Ela o viu.
Cash ligou o motor e parou na frente da casa de Chloe.
Sentindo-se culpado por espioná-la, ele saiu do carro com a cabeça baixa, ensaiando o que dizer.
— Eu cheguei cedo e não quis incomodá-la.
— Você não precisava esperar no carro. — Ela não parecia chateada. Cash percebeu que havia reconquistado a confiança dela. E agora estava prestes a destruir essa confiança.
Um sorriso iluminou o rosto dela. Uma brisa agitou seus cabelos. Era o clima perfeito para ir ao parque.
— Entre — Chloe disse. — Vou pegar Docinho.
Ele a seguiu para dentro. Ela se virou e olhou para ele. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos desde que tinham se beijado. Será que ela esperava que ele a beijasse agora? Ele queria. Tinha pensado tanto naqueles beijos... A lembrança estava tatuada em sua mente. Mas não parecia certo beijá-la novamente enquanto ele estava mantendo aquele grande segredo.
Ela chamou o cachorro. Um latido veio do quintal e ela deixou o cão entrar.
— Quer ir passear, amigão?
Ela pegou a guia e a prendeu à coleira do cachorro, então parou.
— Vou correr até lá em cima e pegar um cobertor para a gente se sentar.
Enquanto Chloe disparava para o quarto, ele foi dar uma olhada nas fotos de família, na mesa ao lado do sofá. Encontrou aquela com uma Chloe pequena segurando o gato. Ele percebeu outra coincidência. Tanto Chloe quanto Emily estavam com um vestido cor-de-rosa. Ele pegou o celular no bolso para tirar uma foto, mas ouviu passos e guardou o aparelho.
Um gato tigrado amarelo a seguia. Ele olhou para o animal se esfregando nos tornozelos dela. Os dois Félix eram idênticos. Seria por isso que a jovem Chloe tinha dado a eles o mesmo nome?
— Félix? — ele perguntou.
— Sim. Ele é um amor. — Ela largou o cobertor numa cadeira próxima e agachou-se para acariciar o felino. A camiseta que ela usava tinha um decote que lhe dava uma visão de parte dos seios. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.
— Félix, este é Cash — apresentou ela.
Chloe se levantou e ele mal conseguiu desviar os olhos para o gato. Ele pegou o cobertor e, enquanto saíam da casa, ela se inclinou para mais perto dele. O choque de prazer e de dor acertou-o em cheio. Apesar do desconforto gerado pela culpa, ele adorava tocá-la.
Quando chegaram ao parque, Docinho começou a saltitar. Cash pegou a guia e Chloe ficou com o cobertor. O parque estava quase vazio. Eles encontraram um local sob a sombra de uma árvore e ela estendeu o cobertor na grama.
— Posso tirar a guia dele? — Cash perguntou.
— Sim. Ele fica por perto.
Cash se sentou ao lado de Chloe e soltou o cachorro, que congelou no lugar como se estivesse hipnotizado pela bola nas mãos dela.
Ela jogou a bola e Docinho correu. Chloe sorriu.
— Já vou pedindo desculpas. Ele não vai dar sossego por causa dessa bola. Tem obsessão por ela.
— Tudo bem — disse Cash. — Estou começando a ter obsessão por Chloe, então posso entender.
Ela riu.
— Acho que estou começando a ter obsessão por Cash também.
— Ótimo! — ele disse.
Sorrindo, ela olhou para o céu.
— É um belo dia.
Cash seguiu o olhar dela até o céu azul salpicado de nuvens brancas e fofas.
— Sim.
Chloe se recostou no cobertor. O decote dela subiu o suficiente para que ele pudesse olhá-la sem ficar babando. Os cabelos longos e castanhos estavam espalhados ao redor dos ombros e o sol suave do entardecer iluminava o rosto dela.
Ele queria beijá-la e deixar a conversa para depois.
Os olhos castanhos dela encontraram os dele.
— Você ficava tentando encontrar figuras nas nuvens, quando criança?
— Encontrar o quê? — Cash perguntou, estava tão ocupado olhando para ela que não prestara atenção ao que Chloe dissera.
— Você sabe, tipo elefantes ou dragões. No céu. Agora mesmo vejo um cavalo.
Ela apontou para cima.
Ele tentou seguir o dedo dela.
— Tudo o que vejo são nuvens.
Chloe riu.
— Use a imaginação. Não vê a cabeça, as patas e a cauda atrás?
Ele tentou.
— Lamento, mas...
— Minha mãe e eu costumávamos ir para o quintal e ficar olhando o céu por horas, tentando encontrar coisas. Ela sempre levava um saquinho de Skittles. E, sempre que uma de nós encontrava algo, ganhávamos um vermelho. — Ela sorriu.
— Por que vermelho?
— Porque os vermelhos são os melhores. São doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Cash forçou um sorriso e novamente tentou ligar alguém que procurava formas em nuvens na companhia da filha com a imagem de uma sequestradora. Algo parecia errado.
— Você se lembra dos seus pais? — ela perguntou.
A pergunta o pegou desprevenido. Docinho veio correndo com a bola na boca. Cash pegou a bola, grato pela pequena interrupção, e jogou-a novamente.
— Da minha mãe, não. Do meu pai, sim.
— Como ele era?
Ele voltou a olhar para o céu. Um cretino.
— Acho que vi o cavalo.
Quando Cash olhou para Chloe, ela estava franzindo a testa.
— Você faz muito isso.
— O quê?
— Mudar de assunto. — Ela mordeu o lábio. — Você não gosta de falar sobre eles, não é?
— Na verdade, não.
Ele respirou fundo.
— Chloe, eu preciso...
— Eu sinto que você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre você.
— Eu não sei tudo sobre você — disse ele, tentando escapar da conversa.
— Você sabe que meu pai é um idiota que vive me enganando. Você sabe que meu namorado se chamava Alex e que minha mãe teve câncer.
— Que tipo de câncer? — Cash perguntou e, para seu crédito, ele queria mesmo saber. Tinha ouvido a sra. Fuller falar sobre cânceres que eram mais difíceis de curar.
Chloe sentou-se.
— Câncer de mama. — Ela puxou um joelho e o abraçou. Dava para perceber que era difícil para ela falar sobre a doença da mãe.
— Mas ela está livre do câncer agora, certo?
— Sim. Foi diagnosticado cedo. Minha avó teve câncer de mama, então minha mãe fazia mamografias anuais. Ela estava com medo de ter o gene do câncer.
— Gene do câncer? — Cash perguntou.
— Há um gene de câncer de mama hereditário. Ela fez o teste e foi comprovado que não o tem.
— Tenho certeza de que você ficou aliviada — ele disse, sem saber o que dizer.
— Bem, como ela não é minha mãe biológica, isso não me afetou.
As palavras de Chloe ficaram dando voltas na cabeça dele. Não é minha mãe biológica. Docinho veio correndo e deixou cair a bola ao lado de Cash. Ele o ignorou.
— Ela... não é sua mãe de verdade?
— Não. Eu sou adotada. — Ela puxou a outra perna para cima. — E lá vou eu de novo, falar de mim a você. Já que você conhece Alex, conte-me sobre sua ex-namorada.
Chloe é adotada? Isso significa...?
— Adotada?
— Não mude de assunto. Conte-me sobre sua antiga namorada.
Cash teve que se concentrar para responder.
— Eu namorei uma garota por alguns meses quando tinha 16 anos.
— Da escola particular?
— Não, ela morava em Langly.
— Como você a conheceu?
— Os pais dela têm uma casa no lago ao lado da casa de veraneio dos Fuller, mas...
Não é minha mãe biológica.
— O que aconteceu? — Chloe perguntou.
— Ela conheceu outra pessoa.
Ele precisava dizer a Chloe agora.
Antes que Cash pudesse dizer mais uma palavra, ela continuou.
— Você gostava dela?
— Não. Um pouco. Só namoramos por uns dois meses.
— E essa foi a única namorada que você teve? — O tom de voz de Chloe dizia que ela não iria desistir.
— Neste verão, saí com algumas universitárias.
— Garotas mais velhas? — As sobrancelhas dela se levantaram, como se aquilo fosse uma coisa ruim.
— Apenas um ano ou um pouco mais do que isso.
— Você ainda está saindo com elas?
— Não. Chloe, eu preciso...
— Há quanto tempo você mora com os Fuller?
Docinho bateu com a bola na perna dele. Cash a jogou novamente.
— Faz três anos.
Ela descansou a mão no braço dele. Seu toque enviou uma faísca de dor direto para o peito de Cash. Mas então, com a mesma rapidez, a centelha lhe deu prazer.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele colocou um dedo nos lábios dela.
— Pare de fazer perguntas. — O tom foi mais agudo do que ele pretendia. — Estou tentando te dizer uma coisa.
Ela fez uma careta.
— Ok.
Ótimo. Cash já a irritara e nem tinha começado a falar ainda. Ele passou a mão pelos cabelos.
— Eu só vou mostrar a você.
— Me mostrar o quê? — Ela inclinou a cabeça para o lado como um filhote de cachorro curioso.
Ele tirou do bolso a foto com a progressão da idade e entregou a Chloe. Ela desdobrou a foto. Examinou-a e depois olhou para ele.
— O que é isso?
Cash não viu o reconhecimento que ele esperava nos olhos dela.
O coração dele acelerou no peito.
— É uma foto de Emily Fuller com a idade que ela teria hoje.
— Emily Fuller, o mesmo sobrenome dos seus pais adotivos?
Cash assentiu.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Eu ainda não entendi por que você está me mostrando isso.
— É você. Não vê?
Chloe olhou para a foto novamente, os olhos arregalados.
— Não sou eu.
— Parece você.
— Não. Quero dizer, talvez um pouco, mas não... parece de fato.
Ela examinou a foto novamente.
Cash viu um vinco aparecer entre as sobrancelhas dela. Chloe estaria se reconhecendo agora?
Agora ela parecia preocupada.
— Os Fuller... deram o bebê deles para adoção?
12
— Não — diz Cash.
Estou tentando entender o que ele está dizendo. Olho para a foto. Não, não é uma foto, mas um desenho. Ou um desenho feito no computador. Um daqueles mostrados nas séries policiais da TV. Eu vejo uma semelhança, mas não é tão grande assim. Ou será que é?
— Então, não sou eu. Fui adotada.
Ele me olha como se pedisse desculpas.
— Ela foi sequestrada.
As palavras de Cash ecoam nos meus ouvidos e minha resposta vem imediatamente.
— Eu não fui.
— Quantos anos você tinha quando foi adotada?
— Espere. Você acha que...? Isso é loucura.
— Eu sei que é, mas apenas me responda. Quantos anos você tinha?
— Quase 3.
Os olhos dele se apertam como se isso provasse alguma coisa.
— Você se lembra dos seus pais de verdade?
— Não. Mas você não está escutando. Eu fui adotada.
— Chloe, Emily Fuller desapareceu dois meses antes de fazer 3 anos de idade.
Um sentimento desconfortável brota no meu peito.
— Eu fui adotada. Não sequestrada.
— Tem mais uma coisa. — Ele pega o celular, encontra algo e passa o aparelho para mim.
— Veja.
Com uma mão estou segurando a foto, com a outra, o celular dele. De repente, as duas coisas parecem pesadas.
Eu quase não olho para a tela, mas então crio coragem. É uma foto emoldurada minha quando criança, com Félix no colo.
— Por que você tirou uma foto disso?
— Chloe, essa é Emily Fuller. Tirei essa foto na casa dos Fuller.
— Não, esta é a foto que está na minha casa.
Eu olho para a imagem e percebo que estou enganada. Na foto que há em casa, estou de pé ao lado de um balanço.
— Ok, eu pareço com ela, mas isso não...
— O nome do gato é Félix.
— Hã?
— Você disse que deu ao seu gato o nome de Félix. O gato dos Fuller se chama Félix.
O ar fica preso no meu peito, uma grande bolha que pressiona meus órgãos.
— Muitos gatos se chamam Félix. Havia um desenho animado...
— Seus pais se mudaram para longe logo após dizerem que adotaram você.
Dizerem? A bolha torna-se dolorosa.
— Você acha que meus pais me sequestraram? Você está maluco.
Olho a foto novamente e meu polegar acidentalmente passa o dedo na tela. A imagem muda. Eu pisco e olho. É um formulário. Mas tem o meu nome.
— O que é isso? — Eu mostro para ele o celular.
Culpa transparece nos olhos de Cash.
— Seus arquivos escolares. Eu precisava descobrir se...
— Descobrir o quê? — Minha coluna vertebral se enrijece.
— Achei que você poderia estar tentando enganar os Fuller.
— Enganá-los? O que você quer dizer?
— Se você parecia com Emily, então talvez estivesse tentando extorquir dinheiro deles.
Eu inspiro uma lufada de ar, aumentando a bolha. Balanço a cabeça. Nada faz sentido. Fico sentada ali, sentindo o sol na minha pele e a acusação de Cash na minha cabeça.
— Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso? — Então me lembro do que Cash me disse naquele dia na loja de conveniência. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
— As pessoas fazem coisas assim. — A expressão dele é quase de irritação.
Mas ele não tem o direito de ficar com raiva. Eu tenho.
— Então é disso — gesticulo indicando o espaço entre nós — que se trata o nosso relacionamento? — Olho para a foto do formulário. Tem o meu endereço nele. — Você não estava dirigindo pelo meu bairro procurando o meu carro aquele dia. Você sabia onde eu morava.
Cash não responde. Não precisa. A expressão dele deixa transparecer a verdade.
— Você... Foi você quem murchou o meu pneu!
— Eu precisava me aproximar de você para descobrir.
— Nada disso é real! — A raiva cresce por dentro, eu não consigo me conter. Jogo o celular para ele e me levanto. — Você é um sem-noção.
Cash também se levanta.
Cubro os olhos com as mãos, vejo tudo escuro, depois lampejos de luz.
— Ah, Deus. Eu te beijei. Tiro as mãos do rosto e olho para ele. — Você... Você nem gosta de mim.
— Isso não é verdade. Eu te beijei também e depois te beijei mais quatro vezes. Eu não pretendia... me apaixonar por você, mas me apaixonei.
Pego a guia de Docinho.
— Vou para casa.
— Chloe, não. Vamos conversar.
— Não. — Eu levanto a mão. Chamo Docinho. Quando ele vem, coloco a guia nele.
Dou um passo. Cash pega meu braço.
— Vou te levar.
Eu puxo o braço.
— Não. Vou andando. — Preciso ficar sozinha. Eu preciso... — Eu não sei do que preciso, exceto que tenho que ficar longe dele. Longe das acusações absurdas.
Eu o ouço chamar meu nome, mas continuo colocando um pé na frente do outro. Eu fui adotada. Não... Não. Não é verdade. Não pode ser. Eu não acredito. Então me recordo da minha única lembrança: eu, sentada num sofá, olhando para um tapete sujo. Eu me lembro de me sentir tão perdida. Tão abandonada. Tão assustada.
Continuo andando. Meus joelhos estão tremendo, ou será que é o chão embaixo de mim que está estremecendo? Todo o meu mundo está estremecendo. Isso não pode ser verdade.
Eu caminho rápido. Docinho continua andando ao meu lado. O ruído de suas patas batendo na calçada enche minha cabeça. Cada vez que ouço um carro se aproximando, fico com medo de que seja Cash.
Meu celular toca. Eu ignoro. Ao me aproximar de casa, vejo o carro de Jamie estacionado em frente à casa de Lindsey. As duas estão nos degraus da varanda de Lindsey. Eu não quero falar com elas.
Sei que ainda estou segurando a foto que Cash me mostrou. Eu amasso a foto, vou jogá-la fora, mas mudo de ideia e a guardo no bolso. Saio da calçada quando estou em frente à minha casa.
— Chloe? — Alguém me chama da casa ao lado.
Eu ignoro e continuo andando. Procuro no meu bolso a chave da porta, ando até a varanda e rezo para que elas desistam.
Elas não desistem.
Eu as ouço subindo os degraus atrás de mim. Por favor, vão embora. Eu percebo que estou chorando.
— O que foi? — É a voz de Lindsey, mas ouço os passos de outra pessoa, então sei que Jamie está com ela. Jamie nem gosta de mim. Eu não quero que ela me veja chorando como um bebê.
— Eu não posso falar agora. — Abro a porta, coloco Docinho para dentro, fecho a porta na cara delas e corro para o meu quarto. Eu me jogo na cama e abraço um travesseiro com força suficiente para fazê-lo explodir. Félix pula no colchão, tentando se aconchegar a mim.
Eu não acredito, digo a mim mesma. Então, por que estou tão arrasada?
Digo a mim mesma que é porque fiz papel de idiota quando beijei Cash.
Meu celular toca. Ignoro.
Cinco minutos depois, ele toca novamente.
E de novo.
E de novo.
Arranco-o do bolso para desligá-lo, mas vejo que há uma mensagem da minha mãe.
Ah, ótimo! Verifico para ver o que ela diz, sabendo que não posso estar chorando quando ela chegar em casa.
Consegui o emprego! Preenchendo a papelada. Comprando comida chinesa para o jantar. Vejo você em uma hora.
Ouço uma batida na porta da frente. Merda! É Cash?
Olho pela minha janela, onde posso ver a rua. O carro dele não está em frente, mas não consigo ver quem está na varanda.
Meu celular apita novamente. É Lindsey.
Preocupada. Você está bem?
Eu mando uma mensagem de volta.
É você quem está na porta?
Sim.
Sozinha?
Simmm.
Eu enxugo o rosto, me obrigo a me levantar e vou até a porta da frente.
— O que há de errado? — Lindsey pergunta assim que eu abro a porta. Ela não aguarda um convite; simplesmente entra.
— É uma maluquice — eu digo.
— O que é uma maluquice? Cash fez alguma coisa?
Pego a foto amassada do bolso e a aliso para desamassá-la.
— Essa garota não se parece comigo, não é?
Lindsey pega o papel amassado, olha para ele e depois olha para mim.
— Parece, sim. O que é isso?
Meu peito aperta. Vou para a sala e me largo no sofá. Meu corpo parece mais pesado ainda.
— Você deveria dizer que não.
Ela se senta ao meu lado.
— Desculpa. Você deveria ter me dito isso antes de perguntar.
Eu respiro fundo. Ainda quero chorar, mas me seguro. Olho para Lindsey.
— Você não pode contar a ninguém.
— Eu não vou contar.
— Cash pensa... Ele acha que eu sou a filha desaparecida dos pais adotivos dele.
Ela olha para mim como se eu não estivesse falando coisa com coisa, o que me dá um pouco de esperança. Porque nada daquilo faz sentido. Não pode ser verdade.
— O quê?
— Ela foi sequestrada.
Os olhos de Lindsey se arregalam.
— Ele acha que você foi sequestrada?
Lindsey faz um som de bufar que é meio risada, meio descrença.
— Sim. É loucura. Eu acho que ele nem gosta de mim. Cash pensou que eu estava tentando enganar os pais adotivos dele, tentando extorquir dinheiro deles. Ah, e imagine só! Ele murchou meu pneu.
— O quê? — Lindsey repete. Então ela olha novamente para a foto.
— Ok, parece com você, mas... Isso é loucura.
— Eu sei. Quero dizer, sim, fui adotada, mas...
— Espera aí. — Ela se inclina para mais perto. — Você foi adotada?
— Sim.
Lindsey arregala os olhos.
— Ok, mas quando você foi adotada e quando essa garota desapareceu?
Eu franzo a testa.
— Na mesma época.
Ela olha para a foto novamente.
— Merda. — Quando Lindsey olha para mim, posso ver em seus olhos que ela está começando a acreditar.
— Não pode ser verdade. Meus pais não são sequestradores!
Ela faz uma careta e devolve a foto para mim.
— Você já procurou na internet?
— Procurou o quê?
— O sequestro?
— Não. — Eu me levanto. — Mas agora vou procurar. — Corro para o meu quarto, onde meu laptop está ligado.
— Você sabe o nome da garota? — Lindsey pergunta, me seguindo.
— Sim. — Sento-me na minha escrivaninha e coloco a foto de lado. Meu celular toca. Provavelmente é Cash. Eu o ignoro e digito na barra de pesquisa do Google: criança desaparecida Emily Fuller. Ao digitar o nome, sinto calafrios, como se isso significasse algo para mim. Mas não pode significar nada. Então ouço o nome na minha cabeça. Emily. Emily. Emily. Há uma familiaridade nele que eu odeio, mas não compreendo.
Clico no primeiro link, mas existe, tipo, uma dezena deles. O link se abre. Vejo a foto de uma garotinha. Uma garotinha que se parece muito comigo quando eu era pequena. Eu começo a ler. “Desaparecida em 3 de setembro de 2004.” Minha respiração fica presa na garganta. Eu fui adotada em 4 de setembro.
Lindsey está lendo por cima do meu ombro.
— Você só foi adotada quando tinha 3 anos de idade?
— Quase 3 — respondo.
— Isso é muito estranho... — A voz dela ecoa.
Eu olho para Lindsey.
— Não sou eu. Não pode ser.
Meu celular toca novamente.
— Merda. — Eu o pego, vejo o nome de Cash e desligo.
Nesse momento, a campainha toca.
Lindsey se vira como se planejasse atender.
Eu agarro o braço dela.
— Não. Não quero vê-lo.
— Cash? — ela pergunta, e vai até a janela.
— Não vejo jipe nenhum lá fora. É uma van com o logotipo de uma floricultura.
A campainha toca novamente. Vou até a porta da frente e abro. Um homem está ali, com flores nas mãos.
— Chloe Holden? — ele pergunta.
É uma dessas perguntas que eu não deveria ter que pensar para responder, mas agora penso. Na verdade, pensei muito nisso durante toda a minha vida. Em quem realmente sou. Em quem meus pais realmente são.
Em que eu poderia ter feito de errado, tão pequena, para que meus pais me dessem para adoção.
De repente, sei quem enviou as flores. E começo a chorar novamente.
Uma hora depois, minha mãe está falando sem parar. Estamos sentadas na cozinha. Eu dou uma mordida no frango xadrez que ela trouxe para casa.
— Eles me adoraram! — Ela está animada. Feliz. Por isso escondi as flores no meu quarto. Eu quase as joguei fora. Eu já tinha tirado o buquê do vaso e segurado as flores acima da lata de lixo, mas não consegui.
Ele é meu pai. E... ele não é meu sequestrador. Essa coisa toda é um erro.
Então por que não conto à minha mãe?
Abro a boca para contar, mas nada sai. Porque isso poderia perturbá-la? Porque talvez eu não esteja convencida de que não é nada? As datas. O gato chamado Félix. A foto. Droga.
— Ele me disse que, por ter tido câncer, eu poderia oferecer mais apoio aos pacientes.
Estou tentando ouvir, mas ela já está se repetindo. Estou olhando para cima, depois para baixo, com o garfo na mão, enquanto persigo uma castanha-de-caju pelo prato.
— É o trabalho perfeito para você. — Pego a castanha e coloco na boca. Mastigo. Engulo. Não consigo sentir o gosto.
Minha mãe deixa cair o garfo.
— Não coma demais. Comprei sorvete de chocolate.
— Hmm... — Empurro meu prato e falsifico outro sorriso.
— Eu só começo quando a outra enfermeira sair. O que pode demorar duas ou três semanas. Eu gostaria que fosse agora. Ela estende o braço para pedir o meu prato. — Eu já contei que comprei umas bebidas que servem como suplemento alimentar? Eu me pesei esta manhã. Perdi mais alguns gramas.
Sim, porque você não come quando está chateada e você está quase sempre chateada.
— Você deveria beber, tipo, três por dia.
— Duas.
Olho para ela e tenho medo de perguntar, mas preciso. Porque, mesmo que ela esteja feliz agora, tenho medo de que algo pequeno, como o vaso de flores escondido no meu quarto, possa mudar isso.
— Você já recebeu os nomes dos terapeutas?
— Sim. E marquei uma consulta também.
Estou chocada.
— Sério?
— Sim. E é amanhã. — Ela aponta o garfo para mim. — Alguém cancelou a consulta.
— Ótimo!
Ela olha para mim, toda maternal.
— Você está se sentindo bem?
— Sim.
— Seus olhos parecem inchados.
Meu estômago aperta.
— Estou bem. Levei Docinho para passear. Eu acho que é alergia.
Ela continua a olhar.
— Seu pai ligou de novo?
— Não. — Merda. Ela sabe que andei chorando. E eu posso ver que a felicidade escorre dos olhos dela à simples menção do meu pai.
Ela continua me olhando.
— Tem certeza?
— Eu não tenho falado com meu pai. — Essa confissão me provoca um pouco de culpa. Eu deveria ter ligado para ele depois que as flores chegaram.
Não liguei.
— O que a deixou chateada?
— Nada. Estou bem, mãe.
— O que o deixou tão chateado?
Cash olhou para a sra. Fuller, parada à porta da cozinha. Quinta-feira era o dia de o sr. Fuller acordar mais tarde, então estavam apenas os dois acordados. E como ele não quisera jantar na noite anterior, ela tinha certeza de que havia algo errado. E havia mesmo.
Cash queria ir para o quarto e terminar a lição de casa, mas eles tinham uma regra tácita: se ela estivesse em casa, ele só tinha permissão para ir para o quarto depois das oito. Mesmo se Cash tivesse dever de casa, esperavam que ele o fizesse na cozinha.
A sra. Fuller achava que era isso que havia de errado com os adolescentes de hoje em dia. Os filhos passavam muito tempo no quarto e não conviviam o suficiente com a família.
Não importava que ela não fosse da família de Cash.
Era uma regra idiota.
— Não estou chateado. Eu já disse a você que comi um hambúrguer.
Ela fez uma careta.
— Isso explica por que você não jantou. Mas por que parece tão desanimado?
Porque magoei Chloe. Cash deveria ter pensado melhor antes de falar com ela. Ele deveria ter...
— É a lição de casa. Eu odeio resolver problemas de matemática.
A sra. Fuller se sentou.
— Eu posso ajudar. Não sou tão boa quanto Tony, mas...
— Não. — Ele olhou para o livro.
Cash a sentiu olhando para ele.
— Algo está aborrecendo você, Cash.
— Eu só preciso terminar isso.
Ela estendeu a mão e ergueu o queixo dele e o olhou direto nos olhos. O toque dela doía, como o de Chloe havia doído aquele dia mais cedo.
— Eu me preocupo com você. — Ela o olhou como se estivesse tentando ler a alma dele.
Cash não queria ninguém vendo o que havia na sua alma.
— Pare de tentar me psicanalisar.
Ela deixou cair a mão.
— Na outra noite, quando você veio à sala de jantar, eu estava sofrendo e você me ajudou. Não acho que me lembrei de dizer obrigada.
— Não há de quê — Cash disse, sem saber por que ela estava fazendo aquilo.
— Eu quero fazer o mesmo por você. — O suspiro dela encheu o cômodo. — Mas você não nos conta os seus problemas. Você nos afasta. Eu quero fazer as coisas direito.
Você não pode fazer direito.
— Eu já disse que estou bem. — Um dia ele teria que contar aos Fuller sobre toda aquela história de Chloe/Emily, mas não enquanto Chloe estivesse chateada. E não até que Cash tivesse certeza absoluta de que estava certo. No caminho para casa, ele tinha pensado nas palavras de Chloe. Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso?
O tipo dele. Cash fez isso. Ele se lembrou da dor profunda que viu nos olhos da mulher quando ele mentiu sobre ser o filho dela.
Cash tinha que ter certeza de que estava certo sobre Chloe ser Emily antes de contar aos Fuller.
Ele tinha que acabar com aquela raiva de Chloe para que pudessem descobrir a verdade. Mas como, se ela não estava nem mesmo respondendo às suas mensagens?
— Você não está bem — disse a sra. Fuller. — É como se achasse que não nos importamos. Nós te amamos.
Ele deixou cair o lápis.
— Pare. — A mesma frustração que Cash tinha sentido com Chloe brotou dentro dele.
— Parar o quê?
— Isso que está fazendo. Me desculpe, não posso ser o que você quer que eu seja. — Ele fechou o livro com força.
Os ombros da sra. Fuller afundaram.
— O que você acha que eu quero que você seja, Cash?
A resposta saiu sem que ele pudesse detê-la.
— Seu filho! Eu não sou seu filho!
A dor ficou estampada na expressão dela e ele quis dar um chute em si mesmo.
Cash olhou para o relógio do forno.
— São cinco para as oito. Posso ir para o meu quarto?
Ela assentiu.
Ele saiu da cozinha, mas não rápido o suficiente para não ouvir o suspiro de decepção da mãe adotiva.
Droga! Ele nunca fazia nada certo.
13
Eu estaciono na escola na manhã seguinte. Lindsey falou o caminho todo até aqui. Fazendo perguntas que não sei responder. Mas não fico irritada, porque são perguntas que eu preciso fazer a mim mesma. Emily Fuller tinha alguma marca de nascença? Havia algum suspeito? Havia descrições dos suspeitos?
Eu não voltei ao computador ontem à noite. Não consegui. Em vez disso, li um livro. Fiquei acordada e li um romance inteiro sobre vampiros e metamorfos, porque a história era muito distante da minha própria realidade. Eu queria ser transportada para longe da minha vida. Porque a minha vida é uma insana caixa de Pandora e, se eu abri-la, tenho medo do que vou encontrar.
Eu acabo de estacionar e olho para os prédios da escola. Estou cansada. Acho que dormi uma hora, talvez. Graças a Deus é sexta-feira. Pego minha bolsa e a mochila e percebo que não vou conseguir enfrentar isso também. Não vou conseguir passar o dia fingindo que está tudo bem. Não vou conseguir enfrentar Cash. Eu não tive nem coragem de ler as mensagens dele ainda.
— É isso, não vou para a escola — deixo escapar.
— Sério? — Lindsey pergunta.
— Quero pesquisar sobre Emily Fuller. — Por que toda vez que digo esse nome, sinto um déjà-vu? Emily. Emily. Emily.
— Eu tenho prova — diz Lindsey —, mas...
— Não — eu digo. — Preciso ficar sozinha. — Fui rude com ela? — Não é nada com você. Eu é que tenho que digerir essa coisa toda. Preciso ler todos aqueles artigos.
— Sua mãe não está em casa? — ela pergunta.
— Eu vou à biblioteca.
Ela parece preocupada.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Eu confirmo com a cabeça.
— Venho buscá-la depois das aulas.
— Não. Vou pedir para Jamie me levar para casa. — Ela me abraça. — Vai ficar tudo bem.
Como?, quero perguntar. Só vai ficar tudo bem se eu descobrir que nada daquilo é verdade. E mesmo assim, não vai ficar assim tão bem. Minha vida está uma bagunça.
O sr. Fuller tinha, por fim, ido falar com Cash sobre o fato de o jipe ter sido riscado. A conversa quase atrasou Cash para a escola. Ele mentiu sobre não saber onde o vandalismo tinha acontecido. O sr. Fuller insistiu em denunciar o estrago ao seguro, mas não estava obrigando Cash a fazer denúncia na escola. No entanto, ele teve que fazer ao pai adotivo a mesma promessa que fizera à mãe. Que, se ele flagrasse algo na câmera, resolveria o problema sem brigas. Manter essa promessa não seria fácil, mas Cash pretendia tentar.
O sr. Fuller não havia mencionado nada sobre o comportamento rude de Cash com a sra. Fuller. A mãe talvez não tivesse contado ao marido. Provavelmente porque temia que o sr. Fuller expulsaria Cash de casa. Será que ela sabia que os dois estariam melhor sem Cash? Ele se sentia um mau caráter por magoá-la. Por que tinha se transformado naquele cretino?
Estresse. Preocupação com Chloe. O fato de estar chateado com o vandalismo que Paul fizera no jipe que os Fuller lhe haviam dado. O jipe que ele não merecia. O jipe que era a única coisa nova e perfeita que ele já tivera na vida.
Cash não via a hora de a primeira aula acabar, pois estava desesperado para ver Chloe. Esperou até Literatura Americana para encontrá-la antes que ela entrasse na segunda aula — na esperança de que ela falasse com ele. Chloe não apareceu.
Antes que o sinal tocasse, ele foi para a ala leste da escola, onde ficava o armário de Lindsey.
— Ei — ele chamou quando a viu.
Surpresa, ela apertou os olhos.
— Oi.
— Você sabe onde Chloe está? — ele perguntou.
Lindsey franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Espero que você não esteja brincando com ela.
Agora era a vez dele de se surpreender.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer! A vida dela já não está fácil. A perda do namorado, o divórcio dos pais e o câncer da mãe, e agora você despeja em cima dela aquela história de ela ter sido sequestrada.
Ele não tinha dito a Chloe para não contar a ninguém, mas ficou chocado ao descobrir que ela havia contado.
— Eu preciso falar com ela. Onde ela está?
— Ela não veio à escola. Disse que precisava pesquisar tudo que pudesse encontrar sobre o sequestro.
— Ela trouxe o laptop? — Cash perguntou.
Lindsey franziu a testa de novo.
— Hã?
— Ela está com o laptop?
— Por quê...?
— A mãe dela provavelmente está em casa, então Chloe não iria querer fazer essa pesquisa lá. Se não está com o laptop, isso significa que está na biblioteca.
A expressão de Lindsey confirmou seu raciocínio.
— Não fui eu que disse. — As palavras dela o perseguiram pelo corredor enquanto Cash desaparecia em meio à multidão.
É como se o silêncio da biblioteca estivesse pesando sobre mim. A cada dois minutos, olho por cima do ombro, com medo de que alguém esteja observando o que estou lendo, vendo as imagens, me vendo. Por razões que não posso entender, estou com medo. E não apenas da verdade. É o tipo de medo que sentimos quando imaginamos um monstro embaixo da cama.
Eu tento afastar isso. Olhando para o computador, não consigo acreditar que existam tantos artigos sobre o sequestro de Emily Fuller.
Mesmo que seja coincidência, não consigo deixar de me perguntar como meus pais não viram as fotos ou as reportagens e não acharam que eu parecia com Emily.
Termino o oitavo artigo. Meu coração está apertado e meus nervos, à flor da pele. Quando respiro, meu coração bate na garganta. Me esforço para não chorar. Clico num vídeo e coloco os fones de ouvido que estão ao lado do computador. Antes de apertar o botão, olho para o rosto de uma mulher na tela. Seus cabelos escuros, olhos azuis e feições me hipnotizam. Eu não quero ver, mas não consigo desviar o olhar. Eu me pareço com ela.
Minha respiração fica presa na garganta. Durante toda a minha vida, tentei não me perguntar como seria a minha mãe biológica. Eu tentei não ficar ressentida, porque tenho uma mãe, uma mãe que me ama. Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe biológica não me amar. De ela simplesmente me entregar para alguma agência de adoção. E nessa única lembrança que tenho de mim mesma, chorando, sei que estou sentindo falta dela.
Eu sempre disse a mim mesma que não importava que ela tivesse desistido de mim, mas o abandono sempre esteve ali, me assombrando, roubando a felicidade do meu coração. Sempre me fazendo me perguntar o que havia de errado comigo.
Mas e se ela não tivesse me dado para adoção? E se, no final das contas, ela me quisesse?
Na minha cabeça, vejo a imagem da minha mãe adotiva, quase careca e magra demais, num roupão cor-de-rosa folgado. Por que sinto como se a estivesse traindo? Um nó se forma na minha garganta. Eu aperto o play.
“Por favor, por favor, não machuquem o meu bebê.” A voz dela soa na minha cabeça como música. É familiar ou minha mente está me iludindo? “Ela é uma boa menina", continua a mulher. “Ela é feliz, meiga e inteligente.” Há tanta dor na voz dessa mulher que ela vaza do computador e penetra a minha pele, o meu peito e se enrodilha como uma bola de elásticos prestes a se desenrolar. “Por favor, não machuquem meu bebê. Por favor, devolvam a minha filha. Eu não consigo nem respirar sem ela.”
Lágrimas escorrem pelas bochechas dela. Lágrimas estão escorrendo pelas minhas bochechas. Eu não me preocupo em enxugá-las. Isso dói. Dói tanto...
Como é possível? Isso é uma loucura. É um absurdo. Tem que ser um engano.
Alguém se senta ao meu lado. O medo me domina. Um grito sobe até a minha garganta. Eu me sobressalto, depois vejo Cash através das lágrimas.
Arranco os fones de ouvido.
— Chloe, por favor, vamos conversar.
Pego minha bolsa e minhas anotações e saio correndo da biblioteca. É apenas Cash, mas o medo paira sobre mim. O monstro embaixo da cama está lá fora.
Calafrios percorrem minha coluna como aranhas.
Escuto passos atrás de mim. É apenas Cash, mas percebo o meu coração batendo na garganta, enquanto ouço a voz dele implorando. Há um zunido nos meus ouvidos. Lágrimas deslizam por minhas bochechas. Um medo infundado, inexplicável, me envolve.
Chego ao meu carro e percebo que tenho que procurar as chaves. Antes que eu possa colocar a mão na bolsa, Cash está parado na minha frente.
— Precisamos conversar!
A bola de elásticos no meu peito começa a se soltar. Um. Dois. Três. Pop, pop, pop. Eles machucam minha pele.
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto.
— Você não estava na escola.
Eu pisco.
— Você foi à minha casa? Se você tiver dito algo sobre isso à minha mãe... — Coloco o dedo no peito dele. — Se você tiver feito isso...!
— Eu não fiz nada.
— Ela já está sofrendo demais. Você não vai contar...
— Não vou. Pode acreditar.
Eu balanço a cabeça.
— Claro, como se você nunca tivesse mentido para mim nem nada.
Cash segura as minhas mãos.
— Você está certa. Eu menti. Meti o pé pelas mãos. Não sabia como dizer a você. Desculpe.
Começo a vasculhar a bolsa, procurando as chaves.
— Mas, Chloe, eu sei que você tem perguntas e eu posso responder muitas delas.
Balanço a cabeça mais uma vez.
— É um equívoco — eu digo e gostaria de acreditar nisso. Gostaria que o nome Emily não fosse tão familiar para mim. Queria que a voz da mulher no vídeo não continuasse ecoando no meu ouvido. Gostaria que esse medo louco desaparecesse. — Tem que ser um equívoco.
— Sei que é difícil. E talvez seja um equívoco. Mas vamos descobrir.
— Como? — pergunto a ele, em um tom de voz muito alto. — O que você quer que eu faça? Vá até a minha mãe e pergunte: “Ei, você me sequestrou?” — Eu fecho as mãos em punhos apertados. — Você não viu como a minha mãe está? Ela não está nem comendo direito, porque está deprimida. Isso a mataria!
Volto a vasculhar minha bolsa.
— Onde estão minhas malditas chaves? — Meu coração está batendo tão rápido que o meu peito vibra.
Vou até o capô do carro e despejo o conteúdo da bolsa em cima dele. Minha carteira, meu celular, pó compacto, um absorvente interno e algumas moedas soltas caem da bolsa e deslizam pelo capô. Eu olho minhas coisas, nada. Não acho minhas chaves. Devo ter deixado na biblioteca.
Pego minha carteira, a única coisa sem a qual não posso viver, e começo a voltar para a biblioteca.
Ele caminha ao meu lado.
— Chloe, por favor. Venha se sentar no meu jipe e vamos conversar. Podemos investigar isso juntos.
Eu o encaro.
— Talvez eu não queira descobrir a verdade.
Os olhos verdes dele se fixam em mim.
— Você está chateada. Está chorando e, se for à biblioteca, vão achar que algo está errado. Venha se sentar no meu jipe. Eu vou encontrar as suas chaves.
Seu tom de voz tranquilizador me contagia. Passo a mão no rosto.
— Ele está logo atrás de você. — Cash enfia a mão no bolso e eu ouço um sinal sonoro quando a porta do jipe se abre. — Entre. Vou encontrar suas chaves, ok?
Eu obedeço. Não sei por que, mas eu me viro e entro no jipe. Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos. Mas então abro os olhos com a sensação de que alguém está do lado de fora, me olhando pela janela. Mas não há ninguém ali.
Fico sentada no carro, respirando. Só respirando. Em alguns minutos, ouço Cash voltar para o jipe.
Levanto a cabeça.
— Encontrou?
— Sim — ele diz, mas não vejo nada nas mãos dele. — Podemos conversar? Por favor.
Quero insistir para que ele entregue as chaves, mas a lógica intervém.
— Eu não sei o que dizer.
— Então deixe-me dizer outra vez que sinto muito. — Ele parece tão sincero. — Não sei como poderia ter lidado com isso de forma diferente, mas obviamente meti os pés pelas mãos.
— Não brinca, Sherlock!
Ele sorri, depois volta a ficar sério e parece culpado.
O som dos carros passando e da vida acontecendo ecoa do lado de fora do jipe, mas, ali dentro, tudo está silencioso. Eu respiro outra vez e tento afastar o pânico que cresce dentro de mim.
— Sério, como você me encontrou aqui?
— Quando vi que você não estava na escola, perguntei a Lindsey. Ela disse que você queria pesquisar sobre o sequestro. Com sua mãe em casa, imaginei que o único lugar para fazer isso era a biblioteca.
Eu balanço a cabeça confirmando, depois puxo o quebra-sol do carro para baixo e me olho no espelho. Ele tem razão. Eu pareço chateada. Esfrego os dedos no rosto e limpo pelo menos parte da maquiagem borrada. Então olho para as minhas feições e me lembro do rosto no vídeo. Do rosto dela. Minha mente recapitula o que acabei de ler. Lágrimas enchem meus olhos.
Eu me reclino no assento.
— Meus pais nunca teriam me sequestrado. — Olho para ele.
Eu posso ver que Cash tem dúvidas. Mas como posso ficar chateada com ele quando existe uma pequena parte de mim que...
— Então vamos investigar a adoção. Você sabe o nome da agência?
— Não — eu digo.
— Você sabe se eles são da região, de algum lugar próximo daqui?
— Acho que sim.
— Existe alguma maneira de você encontrar o nome da agência? Sua mãe tem documentos ou algo assim?
Lembro-me vagamente de um dia em que minha mãe encontrou esses documentos quando estava procurando a apólice de seguro da minha avó. Mas isso foi há muito tempo.
— Sim, mas não sei se ela não os deixou na casa do meu pai.
Ele balança a cabeça. Mais dúvidas.
— Talvez você possa dar uma olhada na sua casa.
— Sim.
— E a sua certidão de nascimento?
— Isso ela tem. Usou para me matricular na escola. Mas eu já vi. Lá está escrito que sou Chloe Holden e que meus pais adotivos são meus pais. E que nasci em 18 de novembro.
— Em que lugar você nasceu?
— Eu não sei. — Algo me ocorre. — Você não contou... a eles, para os Fuller, não é?
— Não. Acho que precisamos ter certeza antes de contar. Se eles pensarem que você é Emily e depois... você descobrir que não é, isso os fará sofrer muito.
Eu fecho os olhos por um segundo. Fico curiosa.
— Como eles são?
Cash olha para mim e vejo compaixão nos olhos dele.
— Eles são... legais. Muito bondosos. Rigorosos. Muito rigorosos. — Ele suspira. — São melhores que a maioria das pessoas. Muito melhores.
Ao ouvir a resposta de Cash, compreendo muito do que ele sente. Amor, respeito e algo mais que não consigo definir, mas estou muito sobrecarregada para perguntar agora. A verdade é que tenho tantas outras perguntas... Um dos artigos dizia que ambos estavam na faculdade de medicina quando a filha foi levada. Eu quero saber qual é a especialidade deles. Se os Fuller já disseram a Cash alguma coisa sobre Emily. Eles ainda sentem falta dela? Tenho algum trejeito da filha deles? Mas tenho medo de desmoronar se perguntar. Então não faço isso.
— Você não se lembra de nada antes de ser adotada? — Cash pergunta.
Eu quase lhe conto sobre a lembrança que tenho, mas estou muito perturbada para falar sobre isso.
— Quase nada.
— Você estava assistindo ao vídeo. A sra. Fuller lhe parece familiar?
— A voz... — Um nó de emoção se forma na minha garganta. — Eu não posso acreditar. Tem que haver um engano.
— Então vamos provar que há um engano.
— Como? — Fecho a mão num punho apertado.
— Há um arquivo na mesa do sr. Fuller, onde eles guardam uma cópia de todos os artigos. Vou tentar encontrá-lo e tirar fotos para termos cópias de tudo. Isso pode ajudar. Você procura os documentos da adoção.
— E se eu não conseguir? Não vou perguntar...
— Vamos descobrir.
— Você acredita que eles me sequestraram, não acredita? — A dor dentro de mim duplica de tamanho.
— Eu não sei no que eu acredito — ele diz. — Mas, juntos, podemos encontrar a verdade.
Meu punho aperta mais forte.
— Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.
— Chloe, se você for Emily e seus pais a tiverem sequestrado, eles merecem...
— Eles não me sequestraram!
— Então por que não é uma boa ideia? Você quer respostas, não quer?
Eu quero. Acho que quero.
— Talvez eu não queira.
— Como você pode não querer saber a verdade?
— Minha vida já está de ponta-cabeça. — Mais lágrimas se acumulam nos meus olhos. — Eu tenho que ir. — Saio do jipe, olho para o meu carro estacionado perto e então me lembro de que ele está com as minhas chaves. Eu só fico parada ali.
Ouço quando Cash sai do jipe. Ele anda até ficar na minha frente.
— Quando você quiser conversar, me ligue, ok? — Cash parece preocupado e parte de mim quer abraçá-lo e chorar no ombro dele.
Em vez disso, só balanço a cabeça.
— Trabalho hoje à noite na oficina, mas saio por volta das oito. Poderíamos comer uma pizza.
— Não — eu digo.
Ele me entrega as minhas chaves.
Elas estão pesadas. Meu coração está pesado com a possibilidade de que eu seja Emily Fuller. Que meus pais nunca tenham desistido de mim. Que aquele monstro, o monstro embaixo da cama, tenha me tirado deles.
Entro no meu carro e saio do estacionamento. Não sei para onde estou indo, mas dirijo assim mesmo.
14
Cash observou enquanto Chloe se afastava. Aquilo ia de mal a pior! O que ele está fazendo de errado? Como ela poderia não querer respostas?
Então se lembrou do teste de DNA que ele nunca tinha olhado. Os Fuller haviam feito para ele no ano anterior, caso ele quisesse procurar a mãe biológica. O pai dele sempre dissera que a mãe tinha simplesmente acordado um dia e ido embora, abandonando-o. A sra. Fuller questionou essa história:
— Você não sabe, seu pai pode ter tirado você dela, como a pessoa que levou Emily.
A mãe adotiva tinha razão, mas Cash ainda não havia se convencido disso. Ele tinha medo de saber a verdade. Medo de como se sentiria ao descobrir a verdade. Era isso que Chloe estava sentindo? Às vezes o que você não sabe é mais assustador do que aquilo que você sabe. Mesmo que aquilo que você saiba já seja bastante assustador...
Ele ficou no estacionamento por uns bons trinta minutos, apenas remoendo as coisas. Sem saber se deveria voltar para a escola ou simplesmente ir para casa.
Quando resolveu ir para casa, sentiu um buraco no estômago. Ele não havia jantado na noite anterior nem tomado café da manhã, e estava morrendo de fome. Então parou numa loja de conveniência onde havia um McDonald’s. Enquanto andava pelo corredor de doces da loja, viu sacos vermelhos brilhantes de Skittles e lembrou de Chloe falando sobre os Skittles vermelhos. Eles são doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Ele pegou quatro pacotes.
Passei o resto do dia encolhida num banco do Whataburger. As cores brilhantes da hamburgueria e os fregueses alegres afugentam o medo infundado de antes. Lutando para ficar acordada, começo a navegar pelas páginas do Facebook dos meus antigos amigos e constato que todas as pessoas da minha antiga vida estão ótimas enquanto a minha vida fica cada vez mais insana. Visito a página de Alex. Ele adicionou várias fotos dele e de Cassie.
Depois procuro alguns dos meus autores favoritos e compro outro livro de vampiros para quando eu não conseguir dormir. Em seguida, leio alguns artigos on-line sobre como descobrir se um cara está saindo com você só porque quer sexo.
Eu queria que existisse um artigo que explicasse se um cara está saindo com você só porque acha que você é a filha dos pais adotivos dele. Que raiva! Então, quando penso em Cash, resolvo checar as mensagens não lidas que ele me enviou ontem.
São catorze.
Uma delas queria me lembrar de que a culpa não era dele.
Duas eram pedidos de desculpa, uma delas por ter enviado a mensagem de que a culpa não era dele.
Três eram para me avisar de que esqueci meu cobertor com ele. Duas eram para perguntar se ele podia me entregar.
Sete eram variações de Me ligue.
E uma mensagem muito longa era para dizer que eu tinha entendido tudo errado. Ela dizia: Você está errada em pensar que não gosto de você. Achei você linda desde o instante em que trombou comigo e derramou toda a minha raspadinha. E você chamou minha atenção no ato. Então vi quem você era e tentei não pensar que você era linda. Mas não consegui. Então comecei a conversar com você e vi que, além de linda, você é engraçada e inteligente, e não consegui deixar de gostar de você. A única razão pela qual não beijei você primeiro foi porque eu estava com medo de que pudesse interferir no que eu estava prestes a te contar. E isso de fato aconteceu. Mas ainda gosto de você. E quero te beijar novamente. E de novo.
Essa mensagem me tocou. Droga. Gosto dele também. E se a minha vida não fosse um caos, eu estaria pulando de alegria, porque também gosto muito de Cash.
Meu celular toca e chega uma figurinha da palavra “Olá” escrita em vermelho, com a mesma fonte usada no pacote de Skittles. A próxima mensagem diz para ligar para ele quando eu tiver vontade de conversar. E depois: Eu sei que isso é difícil.
A emoção forma um nó na minha garganta. Pego minhas batatas fritas frias, escrevo com elas a palavra “Oi”, tiro uma foto e escrevo que vou entrar em contato à noite.
A resposta é outra foto: um Skittles com um rosto sorridente.
Sim. Eu realmente gosto de Cash.
No mesmo horário em que as aulas acabaram, fui para casa com um humor muito melhor do que quando saí, mas no momento em que entro em casa e vejo minha mãe, com lágrimas nos olhos, sentada na mesa da cozinha com as flores que escondi no meu quarto, meu humor despenca.
— Por que você mentiu para mim?
— Não menti — digo.
— Você não me disse que recebeu essas flores.
— Isso não é mentir.
— Bem, você me fez mentir! Liguei para o seu pai e dei uma bronca nele por se esquecer de lhe enviar alguma coisa. Ele jurou que enviou. Então eu encontrei as flores. Por que não me disse?
— Porque eu estava com medo de chatear você. Justamente o que está acontecendo. — Meu coração está batendo na boca e eu não preciso disso agora. Quando poderei levantar as mãos no ar e gritar “Chega!”?
— Você não pode esconder as coisas de mim! — ela retruca.
— Eu não estava...
— Seu pai está bravo por você não ter ligado para ele. Me acusou de fazê-la ficar contra ele. Vem vê-la amanhã. Mas eu não quero colocar os olhos nele novamente! Ele é um cretino. — Então vai para o quarto, batendo a porta.
Largo a bolsa e a mochila na mesa da cozinha e me jogo na cadeira. Chego à conclusão de que a sessão de terapia não adiantou muito.
Meu peito aperta, um nó se forma na minha garganta e estou chorando. Fico apenas sentada ali e tento não seguir minha mãe até o fundo do poço, onde tudo que existe é a depressão.
Nessa noite, troco mensagens com Lindsey. Ela quer que eu vá à casa dela, mas eu não tenho condições.
Estou prestes a ligar para Cash quando minha mãe bate na minha porta. Ela enfia a cabeça pelo vão. Vejo um pedido de desculpas em seus olhos.
— Posso entrar?
Eu deixo.
Ela se aproxima e se senta na beira da minha cama.
— Sinto muito. Novamente.
Eu assinto. O que devo falar? Eu não perdoo você? Estou cansada de tudo isso? Você me sequestrou? A última pergunta, que dá voltas na minha cabeça, bate fundo no meu peito.
— Obrigada pelo macarrão com queijo — diz ela.
Eu havia preparado o macarrão e deixado um prato sobre o fogão.
— Você tomou uma daquelas garrafinhas que fazem bem à sua saúde?
— Não, mas vou tomar.
Ela toca a minha mão.
— Sou uma péssima mãe.
No momento, isso é verdade. Mas, antes que meu pai a abandonasse, antes do câncer, ela era incrível. Então balancei a cabeça, dizendo que não. De todos os meus amigos, eu sempre soube que eu era a que tinha mais sorte quando se tratava de pais. Eu me sentiria tão amada se eles fossem sequestradores de crianças? Acho que não.
Percebo que minha mãe está me olhando.
— Como foi a terapia?
— Difícil. A terapeuta disse que tenho muita raiva.
— Você tem.
— Vou começar a ir uma vez por semana. Vou melhorar.
— E os remédios? — pergunto.
— Vamos tentar sem eles a princípio. Vou começar a fazer caminhadas todos os dias.
Eu tento não ser pessimista, mas quero gritar, Caminhadas não vão resolver!
— O terapeuta também acha que vou melhorar quando começar a trabalhar. Você sabe, sair de casa e ter algo em que pensar, além do câncer e do cretino do seu pai.
O comentário sobre o meu pai me incomoda, mas pelo menos ela está fazendo terapia e falando sobre isso.
— E se você não quiser ver seu pai, não precisa fazer isso.
Minha mente dispara. Eu não estou com vontade de vê-lo, mas não quero que a minha mãe sinta que tem o poder, consciente ou subconsciente, de determinar se quero vê-lo ou não.
— Eu vou vê-lo.
Decepção transparece nos olhos dela. Mas minha mãe assente.
— Encontrei um bom filme. Uma comédia. O terapeuta sugeriu que eu comece a rir mais. Quer assistir comigo?
— Sim. Só preciso fazer uma ligação primeiro.
Seu tom de voz fica mais agudo.
— Para o seu pai?
— Não. Cash. — Vou falar com meu pai quando ele vier, mas só de pensar nisso, já me encho de pavor.
— Você gosta dele, não gosta?
— Sim. — Admitir é difícil.
— Apenas tenha cuidado. Os homens podem apunhalá-la pelas costas. — Depois de falar isso, ela sai do meu quarto.
Que conselho maternal mais doce e acolhedor... Eu volto para a cama. Penso em Cash e lembro como doeu quando meu pai foi embora. Lembro como doeu me afastar de Alex. Lembro que preciso ir para a faculdade no próximo ano. Lembro de minha única memória de quando eu era pequena, de ser arrancada da minha vida. Odeio esse sentimento e, se eu chegar perto de Cash, vou me sentir assim novamente. Já vou me sentir assim com Lindsey.
Tenho muitas razões para proteger meu coração, para não me deixar me apaixonar por Cash. Razões que nem incluem a suspeita dele de que eu seja Emily Fuller.
Volto a ouvir a pergunta que ele me fez antes.
Como você pode não querer saber a verdade?
Meu celular toca. Pensando que é Cash, meu coração dá um salto. Não é ele.
Antes de atender, verifico se minha mãe fechou a porta.
— Oi, pai.
— Como foi o seu dia? — a sra. Fuller perguntou quando Cash chegou em casa do trabalho e entrou na cozinha. O plano dele era subir as escadas e ir para o quarto, começar a lição de casa e decidir se iria tomar a iniciativa e ligar para Chloe ou esperar e deixar que ela fizesse isso.
— Ok — Cash respondeu, lembrando que ele e a mãe não tinham terminado a conversa de um jeito muito amigável na noite anterior.
— Posso fazer um sanduíche?
Ela franziu a testa e ele sabia por quê.
— Eu quis dizer, vou fazer um sanduíche. — A sra. Fuller odiava quando ele perguntava se podia fazer alguma coisa. Ela dizia que era um sinal de que ele não se sentia em casa. Ela estava certa. Cash não se sentia mesmo. Sim, ele gostava muito dos Fuller, mas não podia deixar de se perguntar se os dois não mudariam de ideia sobre ele se soubessem de todas as coisas que tinha feito ao lado do pai biológico. Eles não percebiam que Cash não era digno de generosidade?
— Melhor assim — disse ela. — Mas se estiver interessado, pode comer a pizza que guardei no forno para você.
— Muito interessado. — Ele tirou a caixa do forno e colocou no balcão. — Obrigado. — Cash pegou uma fatia e afundou os dentes no recheio macio e morno de muçarela e calabresa.
— De nada. — Ela sorriu. A sra. Fuller gostava de agradá-lo, tanto que às vezes o incomodava. — Tem salada na geladeira. Posso pegar para você.
— Não, apenas pizza, obrigado — ele agradeceu, mastigando com gosto.
Ela pegou um prato no armário e acenou para ele se sentar.
— Sente-se e coma. Vamos conversar um pouco antes de você subir e se trancar no seu quarto.
Cash se perguntou se isso era uma queixa com relação à noite anterior. De qualquer maneira, ele pegou a caixa e foi para a mesa.
— Onde está o sr. Fuller? — perguntou antes dar a segunda mordida.
— Foi nadar. — Ela apontou para fora, onde as luzes da piscina iluminavam o quintal. — Ele comeu cinco pedaços de pizza.
Ela pegou a tigela de Skittles que Cash havia deixado na mesa enquanto mandava uma mensagem para Chloe.
— Foi você quem comprou esses Skittles ou foi Tony? — ela perguntou.
— Fui eu.
Ela balançou a tigela por um segundo.
— Onde estão os vermelhos? São os melhores.
Cash engoliu a pizza.
— Eu comi. — Era mentira. Eles estavam num saquinho em seu quarto.
A sra. Fuller colocou a tigela na mesa.
— Você não me contou como são as suas aulas na faculdade.
— São boas. O professor é chato, mas não vejo problema. — Ele terminou sua primeira fatia e pegou outra. Ela lhe entregou um guardanapo. Cash colocou a pizza no prato e limpou a boca. — Como foi o seu dia?
— Foi ok.
— Salvou a vida de alguém?
— Estou trabalhando nisso. — Ela olhou para a tigela de Skittles, tirou uma balinha laranja e colocou na boca. — Você sabe, Tony e eu conversamos e você pode parar de trabalhar se quiser se dedicar mais à escola e terminar o ensino médio.
— Não, estou bem assim. Só tenho aula na faculdade às quartas-feiras. — Ele saboreava o segundo pedaço. A sra. Fuller assistiu Cash acabar de mastigar. Ele pegou o terceiro.
Ela franziu a testa.
— Não que a gente ache que você não dê conta. Achamos que você é muito capaz. É que... pense em como seria mais fácil se você apenas se concentrasse nos estudos.
— Eu gosto de trabalhar. — Cash deu outra mordida. — Essa pizza é muito boa — ele acrescentou, esperando mudar de assunto.
— Você está indo muito bem, mas poderia tirar notas melhores e entrar numa...
— Eu estou bem assim. — Seu plano era fazer um curso técnico depois do ensino médio e mais tarde ingressar na Universidade de Houston, que seria custeada por um programa do governo para pessoas como ele, que moravam em lares temporários. Mas Cash não queria falar sobre faculdades esta noite. Eles já haviam discutido quando ele disse que iria pleitear uma bolsa do governo que o programa de adoção oferecia. Cash já lhes devia o jipe. Não queria que pagassem também a faculdade.
— Você pode estudar onde quiser.
— Está tarde. Eu queria fazer a lição de casa. — Ele pegou o prato e o colocou na máquina de lavar louça. — Obrigado pela pizza. — Enquanto ele passava pela mesa, pegou outra fatia.
— Cash — ela chamou, parecendo um pouco impaciente.
Dando outra mordida, ele se virou, esperando que a sra. Fuller começasse a listar as universidades. Boas universidades, universidades caras. Ele começou a falar com o pedaço de pizza na boca.
— Olha, eu preciso...
— Queremos adotá-lo.
Ele ouviu as palavras, mas não as assimilou. O bocado de pizza, já no meio da garganta, bateu contra seu pomo de adão. Sua mente disparou. O coração doía. Ele se lembrou de quando disse que não era filho dela.
Era por isso que a sra. Fuller estava fazendo aquilo? Achava que ele queria ser filho dela?
Era a última coisa que Cash queria. Seu objetivo sempre fora pagá-los pelo jipe e sair da vida deles para que seus problemas não continuassem a afetá-los.
— Não. Péssima ideia. — Ele subiu as escadas correndo.
— Por quê? — ela perguntou, enquanto Cash subia. — Por que é uma péssima ideia? — Ele não respondeu.
15
Dez minutos depois do começo do filme e da segunda piada sobre preservativo, minha mãe decide que ele não é engraçado nem apropriado. Na verdade, é engraçado, pelo menos foi quando assisti com Alex um ano atrás. Lembro-me de todas as vezes que íamos à casa dele, deitávamos na cama e assistíamos a filmes. E fazíamos outras coisas.
Os pais dele tinham uma imobiliária e trabalhavam até tarde. Nós tínhamos a casa inteira para nós até por volta das oito. Eu, sinceramente, acho que, se os pais dele tivessem um horário de trabalho normal, nós não teríamos uma vida sexual.
Minha mãe tira o filme e assistimos à série Law & Order. Eu quase a lembro de que deveríamos assistir algo engraçado, mas tenho medo de que ela desligue a TV. Então fico de boca fechada. É uma reprise. Eu já vi esse episódio. Mas não quero que minha mãe se sinta abandonada, então fico e finjo assistir. O que estou realmente fazendo é repassando mentalmente o telefonema do meu pai.
Ele não fez rodeios. Pediu desculpas por não me ligar no primeiro dia de aula, alegando que tivera uma semana ruim. Eu queria perguntar se tinha algo a ver com a nova namorada.
Ele não disse nada sobre ter dado o meu quarto a Darlene, mas me falou que me amava e que sabia que não era perfeito.
Não pude discordar. Mas por mais triste que seja, acho que isso fazia parte do problema. Antes, ele era perfeito. Então Darlene apareceu. E sugou tudo o que ele tinha de perfeito. Ele me lembrou de que eu era filha dele e que a minha mãe não deveria tentar me colocar contra ele. Não pude discordar disso também.
Ele disse que precisava me ver e que sentia a minha falta. E eu gostasse ou não, ele era meu pai e não ia deixar minha mãe ficar entre nós. Eu quase perguntei: E Darlene? Você vai deixar que ela fique entre nós?
Consegui ficar quieta e concordei em jantar com ele amanhã à noite. Mas só depois que me certifiquei de que seríamos apenas nós dois. Eu notei o tom contrariado na voz dele quando perguntei. Eu não sabia se ele planejava trazer Darlene, mas ele concordou em vir sozinho. Ainda assim, estou esperando o nosso jantar com o mesmo entusiasmo com que espero minha menstruação.
Pego o álbum de fotos que minha mãe deixou sobre a mesa do escritório. Vou virando as páginas. Não acho que já tenha visto esse. Aposto que era de uma das minhas avós. Até nos mudarmos para cá, a maior parte das coisas da minha avó estava encaixotada no sótão.
Eu observo as imagens em preto e branco dos meus avós e da minha mãe quando era pequena.
Fotos dela quando criança, parecendo feliz. Viro a página e encontro fotos minhas.
Eu bem pequena. Eu segurando um presente com um grande laço.
Eu não parecendo feliz, apesar de estar segurando um presente.
Ali estão duas fotos que foram editadas, o que significa que minha mãe cortou a imagem do meu pai com a tesoura.
Minha mãe me vê olhando o álbum. Ela aponta para uma foto em que aparecem meus avós e eu.
— Essa foi tirada quando você os conheceu.
Eu observo a imagem. Meu eu mais jovem está olhando para a câmera como se estivesse implorando para alguém me salvar. O olhar no meu rosto me lembra o olhar dos animais que a gente vê naqueles anúncios comoventes para arrecadar dinheiro, promovidos pelas ONGs que cuidam de animais abandonados. O medo que eu tinha empurrado para longe me domina novamente.
Então vejo uma contusão na minha bochecha. Como eu teria me machucado?
— Tínhamos acabado de buscar você e viemos direto para cá, da agência de adoção.
Sinto meu coração acelerar.
— Como eu ganhei esse machucado?
Minha mãe olha para a foto.
— Eles disseram que você caiu no parquinho. Por quê?
Eu não sei, realmente não sei, mas o medo deixa os pelos da minha nuca arrepiados. Então percebo que essa é a minha chance de fazer perguntas.
— Então você me adotou numa agência daqui?
Eu folheio o álbum, não querendo que ela me veja esperando sua resposta com respiração suspensa.
— Em Fort Landing. Duas cidades mais para a frente. Eu lembro que a coloquei na cadeirinha do carro e voltei com você.
Eu olho para minha mãe. Ela ostenta um sorriso enquanto fala sobre mim quando eu era pequena. Um sorriso de amor. Não é o olhar de alguém que se lembra de ter sequestrado uma criança.
Eu não sei se posso chamar de alívio, mas meu peito fica mais leve. É como se isso confirmasse o que eu acredito que seja verdade. Meus pais não me sequestraram. Eu sei disso. Eu apostaria minha vida nisso.
— Quanto tempo levou a adoção?
— Oito meses. Os oito meses mais longos da minha vida.
Eu volto a olhar a foto do meu eu mais jovem. Tenho cabelos castanho-escuros encaracolados e meus olhos parecem grandes demais para o meu rosto.
— Eu pareço assustada.
— Você era nervosa. Confusa. Morou num lar temporário por um mês. Ficou apegada a eles.
Meu coração dá outro salto. Se isso é verdade, se morei num lar temporário, então não sou Emily Fuller, porque ela foi sequestrada no dia anterior à minha adoção.
— Eles disseram que demoraria um tempo para você se ajustar.
Eu engulo em seco.
— E demorou?
— Sim. Dormi com você por quase um mês, porque você chorava à noite. Eu te abraçava e cantava para você.
Eu acho que me lembro dela cantando. Meu peito dói quase como se estivesse sentindo o que senti na época. O que senti na única lembrança que me assombra. Confusa. Assustada. Insegura. Abandonada. Mal-amada.
— Eu falava alguma coisa sobre isso?
— Só que você queria sua mãe e seu pai. Partia meu coração. Eu ficava te dizendo que éramos sua mamãe e seu papai a partir daquele dia. Não demorou para você começar a sorrir.
Uma pergunta não sai da minha cabeça. Algo que eu secretamente sempre me perguntava.
— A agência lhe informou por que fui para a adoção?
Minha mãe parece surpresa. E também estou surpresa. Surpresa por nunca ter perguntado antes. Então, de repente, sei por que nunca perguntei. Parecia mais seguro não saber.
— Eles disseram que sua mãe era muito jovem e não era casada. Ela queria ficar com você, mas era difícil demais do ponto de vista financeiro. Nós temos muita sorte em ter você. Você é uma bênção. Tentei engravidar por muitos anos. Seu avô conheceu um casal que indicou essa agência. Não era muito caro. Eles conseguiam pais adotivos para muitas crianças mestiças um pouco mais velhas, cuja adoção é mais difícil.
Eles me disseram que eu sou, em parte, descendente de hispânicos, o que explica a coloração castanho-esverdeada dos meus olhos.
— Minha mãe é hispânica ou meu pai?
— Eu não sei.
Viro a página. Há uma foto minha com uma boneca. Uma daquelas que se parece com a criança que a ganha. Estamos com um vestido igual. Temos cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos castanho-esverdeados. A boneca está sorrindo e, nessa foto, eu também. Eu me pergunto quanto tempo já tinha se passado desde a adoção.
Minha mãe sorri.
— Você adorava essa boneca. Fomos a uma loja onde tivemos que assinar um termo de adoção depois de comprar a boneca. Você a carregava para todo lugar.
— Eu não me lembro — digo. Recordo-me da caixa de brinquedos que vi no sótão da casa do meu pai quando estávamos nos mudando. — Eu ainda a tenho?
— Não. Nós a esquecemos num parque alguns meses depois que você a ganhou. Nós voltamos, mas alguém já tinha levado a boneca. Você chorou por semanas, querendo Emily de volta.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Emily?
— Sim, foi o nome que você deu a ela.
Eram dez horas da noite quando o celular de Cash tocou. Ele saltou da sua escrivaninha, onde fazia o dever de casa distraidamente, enquanto pensava no que a mãe adotiva tinha dito e torcia para que ela não decidisse tentar terminar a conversa. Porque ele não sabia como terminá-la.
Por que é uma péssima ideia?
A única resposta de Cash seria perguntar por que ela achava que seria uma boa ideia. Os Fuller já tinham feito muito mais do que se esperava deles. Não sabiam como era difícil corresponder às expectativas deles? A sra. Fuller não se lembrava de como tinha ficado decepcionada quando o expulsaram da Westwood Academy? Ou, um ano antes, quando o acusaram de roubar um carro no bairro só porque ele fazia parte de um programa de adoção do governo?
Ou mesmo quando ele se envolveu na briga com Paul? Cash nunca conseguiria apagar seu passado. Droga, eles não conheciam metade do seu passado! Cash costumava furtar a aposentadoria do bolso de idosos. Roubava carros. Uma vez, quando o pai trabalhava na casa de um casal idoso, Cash havia entrado e furtado os cartões do banco e um colar valioso da mulher, uma joia que o marido acabara de comprar para presentear a esposa nas bodas de ouro.
Ele viu o número de Chloe na tela.
— Oi.
— Desculpe ligar tão tarde. Foi uma noite insana.
— Sua mãe não descobriu que você faltou às aulas hoje, não é?
— Não. Você contou para alguém?
— Não.
Ela ficou quieta e depois falou:
— Olha, eu tenho certeza de que minha mãe e meu pai não me sequestraram, mas... Estou achando que alguém fez isso. E você tem razão. Eu quero respostas.
— Ótimo. — Pausa. — Aconteceu alguma coisa para você mudar de ideia?
Chloe contou o que havia descoberto sobre a agência de adoção e o lar temporário em que tinha ficado durante um mês e sobre a boneca que se chamava Emily.
Ele odiava perceber a dor na voz dela.
— Vamos descobrir a verdade.
— Como?
— Acho que precisamos conversar com a sua babá. — Cash se sentou na cama.
— Babá?
— Emily estava com a babá quando desapareceu.
— Como você sabe?
— A sra. Fuller comentou um dia. E, desde que você chegou aqui, estou pesquisando na internet. Também li alguma coisa, alguns anos atrás, num arquivo que eles têm. E há outras coisas nesse arquivo. Tipo relatórios policiais e outras coisas. Vou tentar ver o arquivo novamente. Mas tenho que esperar quando eles não estiverem em casa. Mas, assim que eu desligar, vou ver quantas agências de adoção existem em Fort Landing. É uma cidade maior que Joyful. Pode existir mais de uma.
— São três — Chloe disse. — Eu chequei. Mas apenas uma estava aberta na época em que fui adotada, a Agência de Adoção New Hope, mas isso não significa que seja essa.
— Tem razão. — Ele encostou na cabeceira da cama. — Vou começar tentando encontrar a babá.
— Como?
— Internet.
— Encontrei minha certidão de nascimento. Ela diz que nasci aqui. — Cash a ouviu suspirar e o suspiro se parecia muito com o da sra. Fuller que o tocava tanto.
— Vamos descobrir.
— Você diz isso como se acreditasse que vamos mesmo descobrir.
— Eu acredito. Sou bom em descobrir coisas. Resolver quebra-cabeças. — Cada golpe é como um quebra-cabeça. Você só tem que descobrir quais peças juntar. Ele fez uma pausa. — Trabalho amanhã, mas saio às cinco. Você quer me encontrar? Podemos comer alguma coisa e conversar.
— Eu não posso. Meu pai está vindo para a cidade.
Será que ela só está dizendo isso porque não quer me ver?
— E domingo? — Ele apertou mais o celular na mão.
A linha ficou muda.
— Preciso pedir à minha mãe, mas não deve ser problema.
Ele se lembrou do que Chloe havia dito sobre o pai.
— Você vai ver seu pai numa boa?
— Não. Mas não importa... Não tenho escolha.
— Você sempre tem escolha — disse Cash. Até ele tinha escolha quando estava com o pai.
— Nenhuma que não causaria problemas.
— Já ouviu dizer que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos?
— Então você é aquele que quebra ovos enquanto eu sou uma pessoa que põe panos quentes. Não tenho certeza se somos compatíveis.
Ele riu.
— Eu só quebro ovos quando não há outro jeito.
— Quando não houve outro jeito? — Chloe perguntou.
— O que você quer dizer?
— Quando foi a última vez que você teve que se defender? Além daquele dia em que brigou para defender o garoto, no primeiro dia de aula.
— Esta noite — ele disse, depois se arrependeu.
— O que aconteceu?
Cash concluiu que poderia contar parte do que havia acontecido.
— A sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina.
— Por quê?
— Ela acha que me sobrecarrega por causa das aulas na faculdade e o ensino médio.
— Você está tendo aulas numa faculdade?
— Sim. Nas quartas-feiras à noite. Só para ajudar.
— Isso parece muita coisa mesmo — ela diz.
— Eu dou conta. Além disso, não é só por causa do tempo. Ela tem receio que eu mude de ideia e decida trabalhar na oficina e não ir para a faculdade.
— Mas, se você já está fazendo aula numa faculdade, por que ela tem esse receio?
— Porque também estou cursando Tecnologia Automotiva e não estou me candidatando para uma faculdade chique.
— Para que faculdade ela quer que você vá?
— Rice ou Harvard, pelo que sei.
— E por que você não quer ir para uma boa faculdade?
— Porque tem que ser uma faculdade estadual que a minha bolsa cubra.
No momento em que ele disse isso, desejou ter ficado quieto. Era como se a bolsa fosse uma esmola.
— Você tem uma bolsa do governo?
Cash hesitou.
— Por causa do programa de adoção.
— Isso é bom — disse Chloe.
— Sim — ele mentiu. E continuava dizendo a si mesmo que, quando concluísse a faculdade, reembolsaria o Estado também. Durante toda a vida, o pai dele não tinha feito nada a não ser lesar as pessoas. Cash tinha lesado muitas pessoas. Ele queria compensar isso.
— Você tem planos para a faculdade? — Cash perguntou para mudar de assunto.
— Universidade de Houston, provavelmente.
— Estou pensando nessa também. Mas por que “provavelmente”?
— No momento não posso deixar minha mãe do jeito que está.
— Mas ela já superou o câncer.
— Ela não superou o divórcio.
Ele se lembrou de Chloe dizendo que a mãe estava deprimida.
— Ela está muito mal?
— Depende de quando você pergunta. Hoje mais cedo, eu diria que ela estava realmente muito mal. Esta noite, estava melhor. Pelo menos está recebendo ajuda agora.
— Terapia?
— Sim. Hoje foi a primeira vez que ela foi. Espero que ajude.
— Sim. — Cash não colocava muita fé em terapeutas ou psiquiatras. Ele tinha sido forçado a fazer terapia por um ano, quando foi para um lar temporário. A única diferença era que havia aprendido a esconder melhor suas emoções.
A terapeuta não cansava de dizer: Nada do que você fez foi culpa sua. Mas era, sim. Ele sabia que estava errado quando fazia.
— Ela conseguiu um emprego, então espero que também ajude. Mas só começa daqui a algumas semanas.
— Que tipo de trabalho ela faz?
— Enfermagem.
— É isso que você vai cursar na faculdade? Medicina? — E se ela fosse a filha dos Fuller, não seria apropriado?
— Não. Estou pensando em Jornalismo. Ou Literatura Inglesa.
— Você quer ser escritora?
— Não. Minha mãe costumava escrever. Ela escreveu vários livros. Teve um editor numa grande editora de Nova York que pediu para ela fazer uma revisão no último que escreveu, mas então meu pai resolveu se separar e ela parou. Graças a Deus, ela não parou de ler livros.
— Você gosta de ler? — ele perguntou.
— Sim.
— O que você lê? Histórias de amor? — Cash perguntou para provocar.
— Claro! — Chloe riu. — Estou lendo um de ficção fantástica no momento. E você, lê?
— Eu costumava ler mais quando não estava trabalhando. Mas, gosto, sim.
— O que você leu nestes últimos tempos?
— Eu li Outsiders — Vidas sem Rumo e alguns do Stephen King durante o verão. Tentei ler Cinquenta Tons de Cinza, mas...
— Você leu Cinquenta Tons de Cinza? — Ela riu um pouco mais. — E você me recrimina por ler histórias de amor?
16
A risada dela fez o peito de Cash instantaneamente parecer mais leve.
— Eu disse que tentei ler. Não consegui terminar o primeiro capítulo.
— Não consigo nem imaginar você comprando ou pegando esse livro emprestado na biblioteca.
— Não fiz nada disso — ele disse. — A sra. Fuller leu e um dia eu entrei na biblioteca deles e peguei. Você não leu?
— Não. — O tom dela era agudo, denunciando uma mentira.
— Mentira. Você leu, sim.
Ela riu com culpa.
— Ok, eu e minhas amigas estávamos curiosas.
— E o que você achou? — Cash reajustou o travesseiro atrás das costas.
— Eu sei por que você não passou do primeiro capítulo. O que você planeja fazer na faculdade?
Cash notou que ela tinha mudado de assunto.
— Provavelmente algo ligado à área de negócios. Ainda estou indeciso também. Ele fez uma pausa. — Então, o que mais você faz além de ler livros eróticos?
Chloe riu de novo.
— Não sei.
— Você gosta de correr ou algo assim?
— Só se alguém estiver me perseguindo.
Agora foi ele quem riu.
— Quero dizer, para manter a forma.
— Eu sei. Eu costumava jogar futebol.
— E você era a mais bonita do time. — Ele lembrou da foto de Chloe e de várias colegas jogando futebol de shorts e a parte de cima de um biquíni. Ela parecia incrível.
— Como sabe? Ah, sim, você me stalkeou na internet.
— Eu não stalkeei você. Pesquisei sobre você.
— Você tem perfil no Facebook? — Ele a ouviu digitar algo no computador.
— Não. Pelo menos não com a minha verdadeira identidade.
— Você tem uma conta falsa no Facebook? Mas não tem uma com a sua verdadeira identidade...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Porque... gosto de stalkear as pessoas na internet. — Era uma piada. Chloe não riu.
— Sério?
— Na outra escola, ouvi dizer que alguns alunos estavam falando sobre mim no Facebook. Eu quis ver se era verdade... anonimamente.
Ela não disse nada por alguns segundos, então:
— Você costuma correr?
— Eu tento. Mas, neste verão, nadei mais.
— Você faz parte de uma equipe de natação? — ela perguntou.
— Não. Os Fuller têm piscina. E eu vou muito à casa de veraneio deles, no lago.
— Você não pratica esportes?
— Gosto de assistir. Mas nunca joguei.
— Sério? Com o seu tamanho, acho que algum treinador já devia ter feito você jogar futebol americano há muitos anos.
— Eles preferem evitar estudantes que moram em lares temporários. Nós nos mudamos muito.
— Você também?
— O quê? — ele perguntou.
— Mudou-se muito, antes de morar com os Fuller?
Ele passou a mão no rosto. Por que ele havia mencionado o programa de adoção?
— Eles são a minha quarta casa.
— Foi ruim?
Não tão ruim quanto viver com meu pai.
— Na verdade, não.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele queria mudar de assunto, mas Chloe o acusara de fazer isso no parque.
— Tinha 11.
— Como... como o seu pai morreu?
Merda. Essa era a desvantagem de se aproximar de uma garota. Ela queria saber a história da sua vida.
A linha ficou muda.
— Você não precisa contar, se não quiser.
Ele quase disse “ótimo”, mas optou por:
— É uma longa história, e já está tarde.
— Sim. Melhor a gente desligar.
Cash a sentiu se afastando. Quando ele queria que Chloe se aproximasse.
— Ele morreu num acidente de carro. — Era verdade. Cash tinha batido o carro, mas a bala no peito do pai é que o matara.
— Você estava no carro com ele?
— Não.
— Sinto muito. — A emoção veio acompanhada de um pedido de desculpas. — Quando minha mãe teve câncer, eu estava com tanto medo de perdê-la... Não sei se conseguiria superar algo assim. Isso deve ter sido muito difícil pra você.
Cash odiava a compaixão que sentia na voz dela. Ele não merecia. E nem o vigarista do pai.
É sábado à tarde e estou na casa de Lindsey, ajudando-a a decidir o que vestir no seu encontro com David. Estou empolgada com a notícia de que estão saindo. E estou me esforçando para irradiar boas vibrações. Minha mãe ficou deitada o dia todo. Eu mal consegui tirá-la do quarto para comer.
Vê-la deprimida faz com que eu me sinta culpada por ter concordado em ver meu pai. Ah, sei que não é justo que ela me faça sentir dessa forma e, sinceramente, não acho que minha mãe queira que eu me sinta assim. Mas ela faz isso e eu me sinto culpada. Adicione a tudo isso o fato de que não estou ansiosa para ver meu pai e é compreensível que meu humor não esteja muito melhor do que o da minha mãe.
— Eu gosto mais dessa blusa azul — digo a Lindsey.
— Não é muito sem graça?
— Não, realça seus seios.
— Não mostra demais, não é? Não quero que ele pense que estou tentando levá-lo para o banco de trás do carro no primeiro encontro.
Eu solto uma risada.
— Essa blusa não diz “vamos saltar para o banco de trás?”. Ela diz “olhe pra mim”.
— E olhar para mim é bom, certo? — Ela franze a testa. — Não sei se estou pronta para isso.
— Você está pronta — eu garanto.
Ela me olha pelo espelho.
— Eu preferia que fosse um encontro duplo. Você não pode ligar para Cash e ver se vocês podem ir conosco? — Ela se vira.
— Eu não posso. Vou ver meu pai hoje à noite, esqueceu?
— Ah, que pena. — Ela franze a testa. — Foi mal.
— Eu também lamento... — Desabo na cama dela e juro que não vou começar a me queixar da minha vida. Já fiz isso o suficiente ontem à noite, quando conversamos depois do telefonema de Cash. Sandy, uma das minhas amigas antigas, só reclamava. — Além disso, eu ainda não estou saindo com Cash.
— Vocês vão sair no domingo. Além disso, você ficou com ele no balanço da varanda.
— É verdade. — Eu sorrio, ao me lembrar e, se eu pudesse só pensar nisso, em vez de em outras coisas, ficaria mais feliz. — Mas não sei se é um encontro de fato ou só uma reunião para descobrir se sou Emily Fuller.
Ela revira os olhos.
— Depois daquela mensagem que ele enviou sobre querer beijar você?
Sim, eu mostrei a ela a mensagem de Cash.
— Tem razão. Acho que você não é a única que está nervosa.
— Apenas rezo para que, se ele tentar me beijar, eu não pense em Jonathon. Ele me enviou um e-mail esta manhã. Me perguntou o que eu ia fazer no final de semana.
— Você não respondeu o e-mail, não é?
— Respondi, mas apenas para dizer que estava ocupada. Tive que deixar claro que não estou em casa chorando por causa dele.
— Ele perguntou o que você andava fazendo?
— Perguntou. Eu não respondi. — Ela sorri.
— Esqueça esse cara — eu digo. — Esta noite vai ser divertida.
Lindsey se deixa cair na cama.
— Será que devo contar a David meu segredo mais profundo e sombrio?
— Qual segredo?
— Que minha mãe é lésbica. Ou isso não é algo que se diga no primeiro encontro?
— Por que você precisaria contar a ele?
— Porque se Lola estiver aqui, ele pode descobrir como você descobriu.
— Você não sentiria essa necessidade de contar a ele se sua mãe fosse heterossexual. Então, por que contar só porque ela é homossexual?
— Porque nem todo mundo acha que isso é normal como você.
— Não acho que você precise fazer alarde sobre isso.
Ela sorri.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo. Por dizer todas as coisas certas. Pedi a Jamie para fazer isso e ela disse que ela e a prima iam à manicure.
— Não esquenta. — Não sei se Lindsey percebeu que ela acabou de me dizer que sou sua segunda opção. É uma droga ser a segunda opção de alguém. Mas, ei, é melhor do que não ser opção nenhuma.
— Você vai perguntar ao seu pai o nome da agência de adoção?
— Se eu conseguir encontrar uma maneira de abordar esse assunto na conversa...
— Por que simplesmente não pergunta?
— Porque não sinto vontade de explicar que eu posso ser uma criança sequestrada!
Lindsey passa a escova nos cabelos.
— Você realmente não se lembra de nada da sua vida de antes?
Eu conto a ela sobre a minha única lembrança com o vestido de princesa.
— E o sequestro? Quero dizer, deve ter sido traumático e você se lembraria dele.
— Eu não me lembro.
O medo toma conta de mim. Conto a ela sobre a foto com o machucado no rosto. Do medo inexplicável que sinto.
— Ok, isso é de arrepiar — diz ela.
— Sim.
— Você não precisa contar ao seu pai sobre a história do sequestro. Apenas diga que esteve pensando sobre a adoção.
— Sim. — Mas como eu disse a Cash, sou de pôr panos quentes, não de quebrar ovos. Por outro lado, nas últimas vezes em que conversei ou estive com meu pai, eu estava surtando. Mas a coisa toda do sequestro é diferente. É muito maior. E se eu descobrir que sou realmente Emily Fuller, não vai haver uma tigela grande o suficiente para recolher todos os ovos que vou quebrar.
Meu celular avisa sobre a chegada de uma mensagem. Achando que é de Cash, sinto uma emoção brotar no meu peito. Não é de Cash.
É da minha mãe.
Avise seu pai que não deve entrar em casa. Eu não quero vê-lo! E pergunte a ele por que não pagou o seguro do seu carro ainda.
Um pensamento insano me ocorre. Não sobre minha mãe, mas sobre meu pai. Sobre perdoar papai.
Talvez eu não seja capaz de perdoá-lo até que minha mãe esteja bem. Talvez eu não seja capaz de perdoar meu pai até que minha mãe o perdoe.
O que pode ser, tipo... nunca.
Isso parece errado, mas pode ser verdade.
Eu me reclino na cama de Lindsey.
— Odeio a minha vida.
Cash trabalhou até um pouco mais tarde e já eram seis horas quando foi trocar de roupa. O celular tocou e, esperando que fosse uma mensagem de Chloe, ele pegou o aparelho. Não havia mandado uma mensagem para ela ainda, com receio de que ela fizesse perguntas sobre seu pai novamente, mas decidiu que mandaria uma mensagem mais tarde.
Cash esperava que ela estivesse acordada quando ele fizesse outra ligação tarde da noite. Se não fosse para falar sobre o passado, ele gostava de conversar com Chloe. Ele sorriu ao se lembrar da conversa sobre Cinquenta Tons de Cinza.
Olhou para a tela do celular. Não era uma mensagem de Chloe. Era da sra. Fuller. Ele se encheu de pavor. Tinha saído de casa aquela manhã sem vê-la. Cash não tinha ideia de como ela reagiria ao seu comentário de que seria uma “péssima ideia” adotá-lo.
Ele leu a mensagem.
Tony e eu estamos com vontade de comer comida indiana. Quer se juntar a nós no Kiran's Café?
Ele queria recusar o convite, mas talvez ir jantar fora fosse mais fácil do que enfrentá-la em casa.
Ele mandou uma mensagem. Que horas?
Sete?
Certo.
Ela enviou o emoji de uma carinha sorridente. A sra. Fuller sempre mandava mensagens com muitas carinhas sorridentes. Cash sabia que era um sinal de que ela se importava com ele. Ele também gostava de recebê-las.
Como ainda faltava uma hora, decidiu dar uma corrida até a livraria. Conversar com Chloe sobre livros o deixara com vontade de ler um. Talvez ele encontrasse um livro de ficção fantástica sobre o qual pudessem conversar.
Quando saio do banheiro, depois de me arrumar para me encontrar com meu pai, minha mãe está enrodilhada no sofá, com um livro e Félix no colo.
Ela olha para mim.
— Você está bonita.
— Obrigada. — Tudo o que fiz foi pentear o cabelo e colocar rímel e brilho labial, mas eu sei que essa é minha mãe fingindo que está tudo bem, e eu agradeço. Consulto as horas e vejo que são quase seis e meia.
Inclinando-me, acaricio Docinho, que está abanando o rabo como se achasse que vamos sair para dar um passeio.
— Você quer que eu traga algo para você comer? — pergunto à minha mãe.
— Não! Não quero comer nada que seu pai tenha comprado. — Ela já não está fingindo que está tudo bem.
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Por que você não escreve? — sugiro.
— Talvez.
Aposto que ela não vai nem tentar. E provavelmente não vai comer também. Eu verifiquei e, até hoje, ela só tomou duas das suas bebidas nutritivas, no total. E a promessa de beber duas por dia? Juro, minha mãe parece ainda mais magra agora.
— Até mais tarde.
Pego a bolsa e saio, me sentindo culpada por deixá-la sozinha.
Sentada nos degraus da varanda, vejo uma picape parar em frente à casa ao lado. Então Jonathon, o cão sarnento traidor, sai do carro. Ele me vê e me cumprimenta com a cabeça. Aceno de volta, mas não de uma maneira amigável. Sei que Lindsey já saiu há trinta minutos.
Eu o ouço bater na porta e perguntar por Lindsey. Escuto a mãe dela responder.
— Ela saiu.
— Pode dizer a ela...?
A porta se fecha. Eu sorrio. A mãe de Lindsey também não gosta do cão sarnento traidor.
Ainda estou sorrindo quando ouço passos. Ah, merda!
Olho para a rua, rezando para ver o carro do meu pai chegando. Mas não.
Quando vejo, Jonathon está na minha frente.
— Você é a garota nova da escola, não é? Chelsea?
— Chloe — corrijo-o.
— Você e Lindsey não vão juntas para a escola?
— Sim. — Cadê você, pai?
— Você sabe onde ela está?
O que eu digo? O que eu digo?! Eu poderia dizer que ela saiu com um cara muito gato. Ou eu poderia...
— Não.
— Sabe com quem ela está?
O que eu digo agora? Vou optar pela verdade outra vez.
— Sim.
Ele faz uma careta.
— Mas não vai me dizer, certo?
— Não sou eu que tenho que dizer.
— Sabe, não sou um cara tão ruim quanto ela disse que sou.
Sei. Quer dizer, então, que você não pôs chifres nela?, eu penso, mas não pergunto.
Ele se inclina contra a cerca da varanda.
— De que cidade você veio?
— El Paso — digo, desejando que ele vá embora.
— Você gosta daqui?
— Não. — Quando olho para cima, ele está olhando para os meus peitos. Como se esse cara tivesse alguma chance comigo.
Ele esfrega a sola do sapato no degrau.
— Bem, já que não estou fazendo nada e você não está fazendo nada, quem sabe a gente possa...?
— Não. — O carro do meu pai para em frente à minha casa. Eu me levanto. — Tchau!
Quando entro no carro, a cabeça do meu pai está virada na direção de Jonathon, que fica nos encarando enquanto volta para a sua picape. Considerando que meu pai está dirigindo um conversível vermelho e tem cabelos espetados, Jonathon provavelmente acha que meu pai é meu namorado. Ai, credo!
— Quem é esse? — meu pai pergunta.
— Ninguém. — Esqueço minha antipatia por Jonathon e me defronto com a minha decepção em relação a meu pai. Ele precisa desistir desse cabelo espetado.
— Você já está namorando?
— Não. — Então eu me lembro de Cash. — Talvez.
— Não acha que é um pouco cedo?
Balanço a cabeça, discordando.
— Por que não nos apresenta? — Ele fala como um pai zeloso. Por que isso me irrita? Então percebo por quê. Meu pai perdeu o direito de falar comigo sobre garotos ou sobre sexo quando começou a transar com Darlene.
— Primeiro porque aquele cara não é meu namorado. Segundo, porque... deixa quieto. — Calo a boca. Eu não quero discutir.
Meu pai olha para mim e, pela expressão dele, posso ver que está pensando o mesmo que eu.
— É bom ver você. — Ele estende a mão e aperta a minha. — Faz muito tempo que não saímos juntos, só nós dois.
Se sentiu tanto a minha falta, por que não enviou flores na data certa ou não me ligou quando disse que ligaria? Eu engulo a pergunta. Hoje não vou quebrar ovos. Mas penso no comentário de Lindsey sobre fazer ao meu pai algumas perguntas “vagas” sobre a agência de adoção. Isso eu posso fazer.
Meu pai começa a falar.
— Procurei no Google restaurantes indianos em Joyful. Achei um, o Kiran’s Café. Que tal um frango na manteiga?
17
A caminho do restaurante, conversamos sobre assuntos neutros. O clima. O último livro que li. Ele está tentando conversar, mas os assuntos acabam tão rápido que tenho receio de que logo não tenhamos mais sobre o que conversar.
— Como estão Brandon e Patrick? — pergunto, me referindo ao primo do meu pai e o marido dele. Acho que esse é um assunto seguro.
— Não sei. Faz muito tempo que não vejo os dois.
— Por quê? — Eles costumavam ir em casa pelo menos uma vez por mês, além de passar os feriados conosco. Brandon, que é chef de cozinha, sempre se encarregava das refeições.
— Nós vivemos ocupados.
Quando diz “nós”, meu pai se refere a ele e a Darlene. Antes que eu possa me conter, meu próximo pensamento sai pela minha boca:
— Eles não gostam de Darlene? — Isso não deveria me deixar feliz, mas deixa. — Ou ela não gosta deles?
Essa possibilidade aumenta a minha angústia com relação ao meu pai. Como meus avós paternos morreram em um acidente de carro logo depois que meus pais se casaram, Brandon é o único parente que meu pai tem.
— Você não devia deixar Darlene acabar com a sua família. — Quer dizer que, mais uma vez, ele deixou que ela separasse a nossa família.
A expressão do meu pai muda.
— Não é bem assim. — A mentira fica evidente na voz dele.
Em alguns minutos, meu pai estaciona e entramos no restaurante impregnado com um aroma intenso de curry, cominho e açafrão. Meu estômago se contrai de fome, mas meu coração se contrai de dor. Sou transportada de volta a todas as vezes em que saí com meu pai no passado. Volto à época em que sair com ele era um dos meus programas favoritos. Nós ríamos. Falávamos de futebol. Discutíamos filmes. Ele perguntava sobre a escola, os meus amigos, a minha vida. Não como se estivesse checando o que eu andava fazendo, mas como se quisesse saber tudo sobre mim porque eu o interessava. Porque eu era importante para ele.
Sinto falta disso. Sinto falta dele. Do meu antigo pai. De como éramos antes. Um nó se forma na minha garganta.
Estamos sentados a uma mesa perto da porta. O garçom, um homem alto, mais velho e de ascendência indiana, nos entrega os cardápios. Noto que meu pai está olhando em volta como se estivesse confuso. Ele pega o cardápio, mas olha para o garçom.
— Este lugar não costumava ser a Pauline Pizzaria?
— Sim — diz o garçom. — Meu irmão comprou o ponto sete anos atrás.
— Foi o que pensei.
O garçom anota nossas bebidas e se afasta.
Meu pai olha para mim.
— Sua mãe trabalhava aqui. Eu costumava comer pizza aqui toda sexta-feira à noite, porque um funcionário que trabalhava às sextas-feiras gostava dela. — Há uma expressão suave no rosto dele, como se a lembrança fosse boa; então, de repente, ele pisca e o ar de felicidade desaparece. Meu pai abre o cardápio, como se quisesse se esconder atrás dele. É só uma suposição, mas juro que ele parece sofrer ao se lembrar da minha mãe. Ou talvez ao se lembrar do quanto a está fazendo sofrer.
Por outro lado, posso jurar que meu pai não sabe quanto ele magoou minha mãe. Ou quanto me magoou.
É muito egoísmo da minha parte querer que ele sofra também? Talvez seja normal, mas parece errado. Tudo parece errado. Estar aqui com ele parece errado.
Ele baixa o cardápio.
— Você quer pedir o de sempre? Frango na manteiga e cordeiro vindaloo, e dividimos os pratos?
— Tudo bem — eu digo.
— Quer mais alguma coisa?
— Talvez — eu digo, pensando que, quanto mais comida tivermos para comer, menos tempo teremos para conversar.
O garçom traz nossas bebidas.
— Prontos para pedir?
Meu pai olha para mim.
— Vamos pedir esses dois pratos primeiro e, depois, se você quiser mais alguma coisa, pedimos também, ok?
Eu concordo. Meu pai faz o pedido.
Quando o garçom se afasta, voltamos a olhar um para o outro.
— Na escola, vai tudo bem? — ele pergunta.
Acho que meu pai quer que eu diga que vai tudo bem, assim pode se sentir menos culpado.
Estou sobrevivendo. Aos trancos e barrancos.
Não vou amenizar a culpa dele.
Ele me fala que encontrou Kara e Sandy na loja de CDs. Como meu pai só entrava na loja de CDs se eu implorasse, acho que ele estava com Darlene. Imagino o choque das minhas antigas amigas ao ver Darlene. Eu me pergunto por que nenhuma das duas me mandou uma mensagem falando sobre isso. Elas provavelmente acharam que isso ia me deixar chateada. Constrangida. Elas têm razão.
— Estou com fome — diz meu pai quando um garçom diferente passa por nós com dois pratos de comida.
— Eu também — minto. Não sei se vou conseguir comer. Todos aqueles aromas que antes me inspiravam sentimentos de amor agora me provocam náuseas.
Ficamos em silêncio outra vez. O telefone do meu pai toca avisando da chegada de uma mensagem. Ele lê. Eu me pergunto se é Darlene. Não. Ainda não tenho fome. O barulho do restaurante aumenta. Garfos batendo nos pratos. Ruídos de refeições sendo preparadas na cozinha. O burburinho das conversas. Ouço a recepcionista perguntando para quantos é a mesa.
— Três. Obrigado — responde o cliente. A voz me parece familiar.
Olho na direção da porta. Perco o fôlego. Cash está entrando com um homem e uma mulher.
A mulher do vídeo, só que mais velha. O homem tem cabelos escuros. E olhos castanhos. O mesmo tom castanho dos meus olhos.
Analiso o rosto dele.
Depois o rosto dela.
Eles são meus pais? Tenho o DNA deles? Fui arrancada da minha família?
Parte de mim quer correr até eles, outra parte quer fugir.
Cash deve ter sentido o meu olhar, porque olha na minha direção e arregala os olhos, como quem diz, “Ah, merda".
Abro o cardápio para cobrir meu rosto.
— Por aqui — ouço a recepcionista dizer. Os passos se distanciam. Meu coração bate forte no peito. Ouço o sangue fluindo nos meus ouvidos.
Abaixo o menu e vejo Cash tentando fazer os Fuller se sentarem de costas para mim.
O pânico sobe até o meu peito como um líquido quente. Meus pulmões recusam o oxigênio.
— Você encontrou outra coisa que queira pedir? — meu pai pergunta.
Eu desvio os olhos para a mesa de Cash e depois para a porta.
— Não vai dar... — digo, sem querer, em voz alta.
— O que não vai dar? — ele pergunta.
Eu me levanto, não tão rápido a ponto de chamar atenção, e sigo na direção da porta.
— Chloe? — meu pai me chama. Não olho para trás.
Abro a porta. O ar quente me envolve. Ainda não consigo respirar.
— Merda!
Vou até o carro do meu pai e me encosto no capô. Meu coração está batendo na garganta. E então a ficha cai. Eu tenho que saber. Tenho que saber se eles são meus pais. Tenho que saber se não fui simplesmente abandonada, como se não fosse importante. Como se não fosse amada. Aperto os punhos.
Então ouço passos. O medo dá um nó no meu estômago. Será que eles me viram? Será que tudo vai acontecer agora? Por mais que eu queira conhecê-los, estou com medo. Ergo os olhos. É meu pai.
Seus passos devoram a calçada, na minha direção. Ele me olha com a testa franzida.
— Que diabos aconteceu? — ele me pergunta. Seus ombros estão tensos, sua expressão é carregada; a frustração é uma nuvem ao redor dele.
A raiva dele desperta a minha. Minha mente dispara e a única coisa em que consigo pensar é repetir o que eu já disse.
— Não vai dar.
— Não vai dar para fazer o quê?
— Ter um encontro de pai e filha como se tudo estivesse bem quando não está. — No segundo em que a desculpa sai da minha boca, não é mais uma desculpa. É a mais pura verdade. — Você me abandonou. Você não está nem aí comigo. — Sinto-me abandonada, como na época em que tinha 3 anos. Então, do nada, ouço uma voz, “Seu pai e sua mãe não querem mais você". De onde, diabos, vem essa voz? Lágrimas enchem meus olhos. — Você pode abrir o carro? Por favor!
A expressão do meu pai endurece.
— Eu me divorciei da sua mãe, não de você!
— Não é o que parece — rebato.
Ele fica ali, ainda com raiva, ainda frustrado e ainda o homem que culpo por me causar tanta dor. Como ele pode não se envergonhar de si mesmo?
— Vou lá pagar o jantar. — Ele abre o carro.
Deslizo para o banco do passageiro e me encolho para que ninguém me veja caso saia do restaurante. É muito estranho que eu esteja aqui fora discutindo com meu pai enquanto meu pai e minha mãe de verdade podem, muito bem, estar dentro do restaurante.
Começo a suar, mas não me importo. Fico sentada ali, com as janelas fechadas e sentindo calor. Então sinto novamente. O medo. Quero fugir. Estou com medo.
Fecho os olhos, pressiono a cabeça contra o encosto do banco e tento respirar. O tempo passa. Um minuto. Dois. Três.
Cinco.
Oito.
Que diabos meu pai está fazendo? Ah, Deus. Será que os Fuller me viram e foram confrontar meu pai?
Meu celular toca e chega uma mensagem. Pego o aparelho. É Cash.
Ele: Está tudo bem?
Eu: Não. O que está acontecendo?
Ele: Seu pai está pegando a comida para viagem.
Eu: Eles me viram?
Ele: Não.
Ouço a porta do carro se abrindo. Sinto outra onda de medo. Eu a reprimo. Meu pai, parecendo chateado, me entrega uma grande sacola branca.
Ele se senta atrás do volante, mas não liga o carro.
— Você é minha filha. Minha garotinha. Não posso perder você, Chloe!
Lágrimas enchem meus olhos e eu me viro para a janela. O aroma de comida indiana invade o carro, o cheiro dos meus encontros com meu pai. De repente, passo a não gostar mais daquele cheiro.
Ele começa a falar novamente.
— Sei que eu deveria ter ligado e estraguei tudo. E, sim, eu só me lembrei tarde demais que era a data da sua adoção. Por isso suas flores não chegaram até você a tempo. Eu sou humano. Não sou perfeito, Chloe.
Meu peito queima de raiva, mágoa, desespero. Um pouco por causa de hoje. Um pouco por causa do passado. Ainda não consigo olhar para ele, mas digo:
— Você costumava ser perfeito. Você costumava se lembrar das coisas. Eu costumava ter importância para você.
Eu o ouço bater a mão no volante e dizer um palavrão de cinco letras. Depois de um segundo, ele diz:
— Você ainda é importante para mim.
O silêncio paira entre nós, dentro do carro. Tudo que ouço somos nós dois respirando e meu coração se partindo.
— Muitos pais se divorciam — diz ele como se isso fosse justificativa. — Pais e filhas no mundo todo continuam se dando bem. Por que nós não podemos?
A pergunta paira no ar e a resposta surge dentro de mim como o vulcão que ele e eu construímos para o meu projeto de ciências, na quinta série.
— Acho que a mãe delas não teve câncer! — Minha voz soa estridente. — O pai delas não as deixou cuidando de tudo. Tendo que lidar com a mãe vomitando por semanas a fio, enfrentando o pensamento de que a mãe estava morrendo!
As palavras jorram da minha boca. Não consigo contê-las. Estou quebrando todos os ovos. Não me importo. Parece que, se eu não disser tudo isso, algo dentro de mim vai explodir.
— Mamãe teve câncer! Mas é como se eu também tivesse tido. Fui eu quem preparou sopa de tomate e sanduíches de queijo grelhado para ela, porque ela não conseguia comer outra coisa. Fui eu quem se sentou no chão do banheiro com ela chorando, porque o cabelo estava caindo. Fui eu quem teve de ser forte quando não me sentia forte. Eu, pai! — Bato no peito. — Eu! Droga! Ela precisava de você. Eu precisava de você! Mas você estava muito ocupado para se importar... tingindo o cabelo, comprando um novo guarda-roupa e transando com a Darlene!
Meu pai segura o volante e desvia os olhos de mim. Respira fundo. Segura o ar. Segura mais um pouco. Então olha para mim, novamente. Eu vejo tudo nos olhos dele. Culpa. Dor. Até amor. E isso é o que mais dói.
— Eu... Eu sinto muito. Eu não... Eu fiz tudo errado. Fiz mesmo, querida.
Eu respiro com dificuldade. Estou instável. Todo meu mundo está instável.
Meu pai liga o carro e acelera. Meu colo está quente por causa das caixas na sacola. O cheiro impregna o carro. Quero jogar tudo pela janela. Nunca mais vou comer comida indiana outra vez.
Ele dirige em direção à minha casa. Entra no meu bairro. Mas não vira na minha rua.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Não sei. Mas não posso deixar você sair deste carro até...
— O quê? — pergunto.
Eu o ouço engolir em seco.
— Até que... me perdoe. — A voz dele falha.
— Então vamos ficar neste carro por muito tempo! — Digo a mim mesma para não me sentir mal por ele estar sofrendo.
Ele vai para o parque. O mesmo ao qual Cash e eu fomos quando ele me contou sobre Emily.
Estaciona sob um poste de luz.
— Chloe, eu não sei o que eu estava pensando. Na verdade, eu não estava pensando. Você estava crescendo, sonhando com a faculdade e com garotos. Sua mãe só pensava em escrever, sonhando com uma nova carreira. E eu... Eu não tinha sonhos. Eu me sentia velho e cansado. — Ele respira fundo. — Então conheci Darlene e... — Ele para de falar.
— E você a amou mais do que amava mamãe e a mim?
Ele respira.
— Não. Mas não há desculpa para o que eu fiz. Eu vejo isso agora. É tão assustadoramente claro. Eu fui um idiota. Não mereço o seu amor. Não mereço o seu perdão. Mas não posso perder a minha garotinha. Por favor... me perdoe.
A dor dele é tão real que eu a sinto. Fico sem falar por quase um minuto, porque não sei o que dizer, mas depois as palavras jorram da minha boca.
— Eu não me recusei a ver você. Mas perdoar não é nada fácil. — Eu engulo. — Ainda te amo, mas às vezes preferia não amar.
Ele balança a cabeça, como se entendesse.
— O que posso fazer para ajudar? Faço qualquer coisa. Me diga. Sua mãe precisa de dinheiro?
— Eu... acho que não. Mas ela me disse para perguntar por que o seguro do meu carro não está pago.
— Não está pago? — ele pergunta.
— Ela disse que não.
— Mas Darlene disse... Vou averiguar. O que mais posso fazer?
— Nada. — Ouvir o nome de Darlene me deixa com raiva de novo.
Meu celular toca com a chegada de outra mensagem. Eu não olho. Deve ser Cash.
Ficamos sentados em silêncio, no carro, sentindo o calor.
— Trouxemos você aqui no dia em que a buscamos — meu pai diz.
Eu olho para ele, sem entender. Ele continua:
— Quando pegamos você na agência, fomos ver seus avós e depois viemos aqui. Eu coloquei você no balanço. Lembro-me de pensar em como você era delicada. Tão pequena, mesmo não sendo mais um bebê. Eu estava com medo, sabendo que, a partir daquele momento eu era responsável por cuidar de você. Coloquei você no balanço, mas estava com medo de empurrar com força demais e você cair. Você parecia assustada. Eu queria fazer alguma coisa, qualquer coisa para provar a você que eu era um cara legal. — Ouço a voz dele ficar embargada. — Eu me apaixonei por você logo de cara. Jurei que nunca deixaria ninguém machucá-la e agora eu sou o idiota que está te machucando. Eu me odeio por isso.
Eu não digo nada.
— Sei que vai levar um tempo para você me perdoar, mas não vou desaparecer da sua vida. Eu amo você — ele diz.
Sei que parece loucura, mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu, nunca duvidei que meu pai não me amasse. Eu simplesmente não consigo entender como ele pode ter me amado e feito o que fez.
Sei que ele espera que eu responda. Que eu diga que o amo. Mas eu já disse isso uma vez. É tudo o que posso fazer.
18
— Chloe? — Meu pai pega a minha mão. O toque me provoca um choque de dor. Eu quase me afasto, mas não faço isso porque sei que vou magoá-lo.
Nós ficamos sentados ali. Lembro-me do que eu queria perguntar a ele esta noite.
— Qual era o nome da agência de adoção?
— O quê?
Tiro a minha mão da dele.
— O nome da agência de adoção. Era em Fort Landing, não era?
— Sim. Acho que era... New Hope ou algo assim. Por quê?
Dou de ombros.
— Só curiosidade.
— Você está querendo...
— Não — me apresso a dizer. — E não diga nada à mamãe. Tenho medo que ela fique chateada.
— Não vou dizer nada.
Depois de outros segundos de silêncio, ele abre a porta do carro.
— Vamos lá? — diz ele.
— Onde?
— No balanço? Você costumava querer que eu te balançasse o tempo todo.
— Não — eu digo.
— Me deixe fazer isso... Você me disse uma vez que balançar era tão bom quanto voar.
Quase volto a recusar o convite, mas me lembro de quanto ele parecia chateado alguns minutos atrás, então resolvo sair do carro. Está escuro, mas a lua está cheia e brilhante. A noite está tão silenciosa que ouço nossos passos na calçada. Caminhamos até os balanços mais altos. Cada um se senta em um, deixando um espaço entre nós. Ele parece grande demais para estar num balanço. Eu me sinto muito grande. Mas a mágoa entre nós, de alguma forma, parece menor.
Eu balanço. Pernas para trás. Pernas para a frente. Contemplo a grande bola prateada no céu, as estrelas brilhantes. O movimento, o vaivém, parece de alguma forma catártico. A sensação é de que estamos voando.
Uma lufada de ar passa por mim quando meu pai pega impulso. Enquanto ele avança, eu recuo. Não estamos no mesmo ritmo. Percebo que pode demorar um pouco até que a minha relação com meu pai volte a ser como antes.
Eu não sei quando conseguirei perdoá-lo, mas essa é a primeira vez que sinto o arrependimento dele. Isso não resolve nada. Mas é um começo. Talvez nunca mais seja como antes, mas espero que encontremos um novo ritmo, um novo relacionamento entre pai e filha que não cause mágoas.
Acho que quebrar ovos pode ter suas vantagens.
Quando entro em casa, não sinto cheiro de comida vindo da cozinha. Minha mãe não preparou o jantar. Vou até o quarto, esperando que ela esteja acordada.
Ela está. Deitada no sofá, lendo. Não está escrevendo. Eu fico ali, lembrando-me de como me senti quando vi a sra. Fuller, como se tivessem me roubado alguma coisa — o amor da minha mãe. No entanto, eu tenho uma mãe. E por mais relapsa que tenha sido neste último ano, ela me ama. Eu sei disso. E eu a amo.
Ela ergue os olhos e de repente me sinto culpada. Culpada por ter sentido que ela não bastava, culpada por ter me queixado ao meu pai por ter de cuidar dela. Sim, eu sou uma cretina. Foi horrível para mim, mas não tanto quanto foi para ela. E, se fosse eu que tivesse adoecido, ela faria a mesma coisa por mim. Só que ela nunca teria reclamado. Meu peito se aperta.
Pego o meu celular.
— Você quer de quê?
— O quê?
— Estou pedindo uma pizza para nós.
— Pensei que você tinha saído com seu pai para jantar...
— Eu não comi nada — digo.
— Por quê? — ela pergunta.
— Estava sem apetite.
— Vocês discutiram? — Ela se endireita no sofá, como se estivesse se preparando para ficar com raiva.
— Quero a de lombo canadense com abacaxi — minto, porque sei que ela adora. — Um pouquinho doce e um pouquinho salgada. Está bom para você?
— Sim. Sobre o que foi a discussão?
— Você quer salada?
— Você não vai me contar?
— Você sabe o que acho que devemos fazer? — pergunto.
— O quê? — ela diz parecendo um pouco frustrada.
— Encomendar a pizza e depois dar outra chance para aquele filme que você queria assistir.
Ela faz uma careta.
— Era um pouco forte...
— Talvez. Mas o humor às vezes é um pouco forte. E nós duas precisamos rir.
— Você já viu?
— Sim. Mas quero ver de novo.
— Com quem? Com quem você viu aquele filme?
Eu franzo a testa.
— Promete que não vai ficar brava?
— Alex? — Como eu não nego, ela parece chocada, mas não muito brava.
— Sim. E nós dois rimos muito. E você está precisando rir também. Então vamos comer a pizza e assistir ao filme. E vamos rir das piadas de camisinha. Ok?
Ela parece surpresa com o meu jeito de falar, meio autoritário.
— Acho que não tenho escolha.
Lembro-me de Cash dizendo: Você sempre tem escolha. Mas, para minha mãe, essa é a escolha certa. E fico feliz que ela não esteja discutindo comigo. Já discuti o suficiente esta noite.
Quando Cash e os Fuller chegaram em casa, ele queria ir direto para o quarto.
— Acho que vou ler um pouco — disse a sra. Fuller, subindo as escadas, rumo à suíte principal.
Quando Cash começou a subir para o andar de cima, ouviu o sr. Fuller dizer:
— Cash, pegue duas cervejas na geladeira e vamos conversar aqui fora.
O quê?
— Cerveja?
— Sei que você já ficou bêbado antes.
— Eu não bebo tanto assim. — Ele já tinha visto o pai biológico beber demais e não tinha nenhuma vontade de fazer o mesmo.
— Eu não iria oferecer uma a você se achasse que bebe demais. Vou esperar aqui fora.
Cash pegou duas Bud Lights.
— O que eu fiz? — perguntou, com o palpite de que aquela pergunta tinha a ver com o comentário mal-humorado que soltara como resposta à sugestão de ser adotado.
— Obrigado por ir jantar conosco. Susan estava com receio de que você não fosse.
O sr. Fuller torceu a tampa da cerveja. Cash fez o mesmo.
— Ela te ama. — O sr. Fuller levantou a cerveja e deu uma golada.
— Ama até demais... — Cash tomou um gole.
— Ninguém pode amar demais — disse o sr. Fuller.
Cash discordava.
— Esta conversa é porque ela me disse que queria me adotar, não é?
O sr. Fuller baixou a cerveja.
— Nós não entendemos. Por que você não quer?
— Vou fazer 18 anos daqui a seis semanas. Não preciso de ninguém cuidando de mim.
— Todo mundo precisa de uma família, Cash.
Não, não é verdade.
— Olha, não é que eu não seja grato ao que vocês fazem por mim.
— Nós sabemos disso, Cash. É por isso mesmo. Você é grato. Nós temos certeza. E, tirando as briguinhas por aí, você é um bom garoto. Até suporta as regras de Susan... e algumas são ridículas! E eu sei que é porque você gosta dela. É por isso que não entendo por que você não quer a adoção.
Cash encolheu os ombros.
— Eu não sei o que dizer. Só não acho necessário.
O sr. Fuller tomou outro gole de cerveja.
— Você sabe do que ela tem medo?
— Não. — Cash girou a garrafa gelada nas mãos.
— Que, depois do seu aniversário, você arrume suas coisas e vá embora e nós nunca mais vejamos você. E... Caramba! Ela ainda sofre porque perdeu a filha. Não pode perder o filho.
A dor apertou o peito de Cash. Por isso ele esperava que Chloe fosse Emily.
— Não pretendo me mudar antes de me formar.
— E depois? — perguntou o sr. Fuller.
— Eu preciso ser eu mesmo.
— E quando tentamos fazê-lo ser algo que você não é?
— O tempo todo — disse ele, num tom firme. Você quer que eu seja seu filho. — Você ficou chateado quando me inscrevi em Tecnologia Automotiva. Você quer que eu vá para uma faculdade chique. E a sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina. O que eu não vou fazer.
— É errado da nossa parte querer que você vá para uma faculdade melhor? Você é tão inteligente, Cash! Você tem notas mais altas do que eu e Susan tínhamos. Você pode ser o que quiser. Por que quer ser mecânico?
— Não há nada de errado em ser mecânico. E eu vou para a faculdade, só não vou fazer o que você quer.
— Mas nós temos dinheiro...
— Eu consegui uma bolsa! — Cash se levantou.
— Cash, filho, por favor, sente-se.
Eu não sou seu filho.
Ao ver que Cash não faria isso, o sr. Fuller continuou:
— Estou implorando a você, não a magoe mais do que ela já foi magoada.
— Estou tentando não fazer isso. — Cash disparou para o andar de cima, procurando não bater a porta do quarto com muita força.
No quarto, o celular tocou. Uma mensagem de Chloe. Ele tinha enviado uma mensagem para ela mais cedo e perguntado se poderiam conversar.
A resposta dela: Esta noite não posso. Vamos conversar amanhã.
— Merda! — Cash jogou o aparelho na cama. Ele bem que precisava de uma distração. Precisava rir um pouco. Precisava ouvir a voz suave dela. Queria provocá-la mais sobre a leitura de Cinquenta Tons de Cinza e contar sobre o livro que comprara.
Ele queria...
Ele queria...
Ele queria...
Eram onze horas quando fui dormir. Minha mãe e eu rimos muito com o filme. Acho que foi um bom filme, mas na verdade ri mais de minha mãe do que de qualquer outra coisa. Agora não consigo dormir. Nada mais parece tão engraçado. Continuo vendo os Fuller na minha frente. O rosto dela no restaurante. O rosto dele. Os olhos dele. O homem que poderia ser meu pai.
Fico me perguntando se sou Emily. E se eu sou, o que seria da minha vida se eu não tivesse sido sequestrada e levada para longe da minha verdadeira família? Na outra vida, eu ainda seria eu? Como eles ainda são casados, eu teria sido poupada da tristeza causada pelo divórcio dos meus pais? Da angústia causada pelo câncer da minha mãe? Eu teria ido para uma escola particular e agora estaria planejando ingressar em uma das melhores faculdades do país? Quem eu seria se não tivesse crescido achando... achando que fui abandonada? Que fiz algo de errado. Até que ponto minha vida teria sido melhor?
Isso faz com que eu me sinta culpada novamente. Como se querer respostas, querer saber se meus verdadeiros pais me amavam, fizesse de mim uma filha ingrata aos olhos dos pais que me adotaram.
Afastando esse pensamento, começo a recapitular todas as coisas que eu disse para o meu pai. Tudo que eu disse é verdade, mas eu me lembro das lágrimas nos olhos dele, da dor que minhas palavras lhe causaram. Mesmo sabendo que ele mereceu, não me parece certo fazê-lo sofrer.
O pensamento mais absurdo me ocorre. E se o meu pai sofresse um acidente a caminho de casa? E se eu o perdesse! Lembro-me dele dizendo que me ama, enquanto estávamos sentados no carro. Ele precisava ouvir que eu também o amo, mas eu não disse nada. E se aquela foi a última chance que tive de dizer isso?
Eu sei, não devia pensar em tragédias como essa, mas penso assim mesmo, e essa bola de emoção — de tristeza e de uma culpa que eu não deveria sentir — fica represada no meu peito, como um grande elefante cor-de-rosa.
Pego o celular para mandar uma mensagem para o meu pai. Então percebo que ele não está na casa dele, percebo que a casa dele era minha e agora é a casa de Darlene. Jogo o celular longe e fecho as mãos em punho.
Penso em escrever uma mensagem para Lindsey, mas tenho certeza de que ela ainda está fora com David.
À meia-noite, pego o celular para mandar uma mensagem para Cash. Quero contar a ele que descobri o nome da agência de adoção. Quero alguém para me dizer que eu não deveria me sentir desleal por precisar de respostas. Ou talvez eu só queira conversar. Com ele. Ontem à noite, nossa conversa foi divertida. Me fez esquecer como a minha vida está bagunçada.
Não importa que ele esteja ajudando a descobrir se sou uma criança sequestrada. Não importa, por causa da provocação, do flerte, do desejo de saber mais sobre ele. Isso é divertido. É normal.
Eu preciso de mais coisas normais.
Começo a mandar uma mensagem para ele, mas o imagino dormindo em sua cama. Até imagino-o sem camisa. Nunca o vi sem camisa, mas posso imaginar como seria bom.
Nesse momento, meu celular toca, avisando sobre a chegada de uma mensagem. Levanto da cama num salto e pego o celular.
É dele. Está acordada?
Eu: Sim. Quer conversar?
Ele: Não.
Eu: Não...?
Ele: Quero ver você. Estou aqui fora, em frente à sua casa.
Eu: Em frente à minha casa? Agora?
Eu corro para a janela. Meu coração dispara.
Eu vejo o jipe dele. E mais do que tudo, quero ver Cash.
19
Eu me viro para ir até a porta, mas ouço o velho assoalho de madeira rangendo embaixo dos meus pés descalços. Paro e percebo que estou vestindo apenas shorts e uma camiseta combinando.
Estou decente?
Sim. Embora esteja sem sutiã, a blusa não é justa.
Meu próximo pensamento é se minha mãe está me ouvindo.
Corro de volta para a janela.
Não tem tela. Estou prestes a destrancá-la quando meu celular tocar novamente.
Ele: Isso significa que você não quer me ver?
Eu: Estou abrindo a janela.
Ouço a porta do jipe abrir e fechar, e vejo Cash. O peso no meu peito diminui como neblina se dissipando.
Ele parece tão lindo, caminhando em direção à minha janela... Em direção a mim.
— Tenho medo de acordar minha mãe, se abrir a porta da frente — sussurro.
Ele olha para cima.
— Você quer que eu entre?
— Não, eu vou sair. — Olho para baixo. É apenas uma queda de um metro de altura. Considerando que tenho um metro e setenta de altura, não é nada. Coloco o tronco para fora da janela, monto no parapeito, depois me viro e coloco a outra perna para fora. Estou inclinada para a frente, sentada na janela. Tudo que preciso fazer é saltar.
— Eu pego você. — As palavras dele soam tão doces. Eu quero que ele me pegue.
Cash estica a mão e eu salto. As mãos deslizam para baixo da minha blusa de pijama. Sinto o toque dele na minha cintura nua, e é tão bom, tão quente, tão doce. Eu instantaneamente sinto borboletas no estômago.
Quando coloco os pés no chão, recupero o fôlego, não por causa do salto, e sim em razão do toque de Cash. Ele me puxou para mais perto ou eu é que me aproximei?
Nós nos beijamos. Os lábios macios de Cash deslizam sobre os meus. As mãos dele descansam na minha cintura, e seus polegares fazem pequenos círculos nas minhas costas, logo acima da minha cintura. Minhas mãos se movem para a cintura dele.
Eu me inclino mais para perto. Meus seios, sem sutiã, estão comprimidos contra o peito sólido dele. Uma emoção, um doce formigamento, toma conta de mim.
— Uau. — Ele se afasta.
— Sim. — Eu sorrio. — Eu queria mandar uma mensagem para você.
— Por que não mandou?
— Achei que estivesse dormindo.
— Não consegui dormir — ele diz.
— Nem eu.
— Noite ruim? — ele pergunta.
— Sim. E você?
— Sim. Mas está melhor agora. — Ele se aproxima e me beija novamente. Desta vez, a língua dele desliza entre os meus lábios; sua boca tem gosto de menta, como se ele tivesse tomado um refresco.
Quando o beijo termina, estamos ambos sem fôlego.
— Você quer ir a algum lugar?
Eu reviro os olhos.
— Estou de pijama e descalça.
Seus olhos se desviam para os meus pés.
— Que fofura...
Enfio os dedos na grama quente.
— Meus pés?
— Você inteira! — diz ele. — Quer se sentar na varanda?
Eu ouço um miado. Félix pula no peitoril da janela do meu quarto.
— Não! — digo a ele, e Félix volta para o meu quarto. Cash fecha a janela.
— Talvez no seu carro — eu digo, sem querer que ninguém me veja de pijama, beijando um cara na minha varanda da frente.
— Tudo bem. — Ele tira a mão da minha cintura e segura a minha mão enquanto caminhamos para o carro dele. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
— O que aconteceu? — pergunto, lembrando-me do comentário sobre a noite ruim. — Eles não me viram, não é?
— Não. Só um pouco mais da mesma ladainha.
— Você quer dizer deixar o emprego e ir para uma faculdade melhor?
— Sim — diz ele.
— Lamento por você.
Chegamos ao jipe de Cash.
— Você quer sentar no banco de trás?
Lembro-me do comentário de Lindsey sobre não querer que David pensasse que ela queria se sentar no banco de trás.
— Só para conversar — diz Cash, como se estivesse lendo meus pensamentos. — E beijar. — Ele parece envergonhado. — Não é para... você sabe.
— Sei. — Eu sorrio porque acredito nele. Cash não está ali para tentar algo para o qual eu não esteja pronta.
Fico na ponta dos pés e beijo a bochecha dele.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por vir aqui.
Cash abre a porta de trás e entra no jipe depois de mim. O console entre os assentos está abaixado. Deslizo apenas até a metade do banco e fico perto dele. Cash se acomoda ao meu lado e fecha a porta.
— Ovelhas — diz ele.
— O quê? — pergunto.
— Você tem ovelhas nos shorts e na blusa.
Eu olho para baixo.
— Estou de pijama.
— Eu sei. — Sorrindo, ele tira meu cabelo da bochecha. — Ah, tome.
Ele tira algo do bolso. É um saquinho.
Eu sorrio ao ver o que é.
— Skittles vermelhos. Obrigada. — Coloco um na boca.
Então coloco um na boca dele.
— O que fez a sua noite ficar ruim? Encontrar os Fuller no restaurante?
— Em parte. E eu sou uma quebradora de ovos agora.
— O quê?
— Lembra que eu acusei você de ser um quebrador de ovos enquanto eu sou alguém que gosta de pôr panos quentes?
— Sim. O que você fez?
— Fiquei com muita raiva. Disse ao meu pai o que eu pensava dele por ter saído de casa e me deixado sozinha para cuidar da minha mãe doente.
— Muito bem. — Seu tom carinhoso me atinge em cheio no coração. — O que ele disse?
— Acho que meu pai finalmente percebeu o idiota que ele foi.
— Isso foi bom? — pergunta Cash.
— Não. Na verdade, não. Eu o magoei. — Mordo o lábio. — Ele chorou. Implorou para que eu o perdoasse.
— E você o perdoou — ele diz quase como se fosse uma coisa ruim.
— Não. Eu disse a ele que não era fácil. Mas eu falei que ainda o amo.
— Você é uma pessoa melhor do que eu — Cash diz.
Eu vejo algo nos olhos dele.
— Quem você precisa perdoar?
— Muitas pessoas.
Ele me beija novamente. Eu me perco na sensação da sua boca contra a minha.
Em alguns minutos, estamos deitados no assento, um de frente para o outro. Nós nos beijamos, nos beijamos e nos beijamos. As minhas mãos estão em seu peito; as dele, ainda na minha cintura. Ele sobe a minha blusa nas costas e suas mãos começam a vir para a frente. Para os meus seios.
Então ele tira as mãos das minhas costas e enterra o rosto no meu pescoço. Sinto sua respiração contra minha bochecha. Eu abro os olhos.
As janelas do carro estão embaçadas. Ele levanta a cabeça e eu vejo seus olhos. As pupilas estão dilatadas. Eu sei que ele parou para cumprir sua promessa. E eu quase gostaria que ele não tivesse prometido nada.
Cash sorri. Eu sorrio de volta.
— Eu precisava disso — ele diz. — Você me faz... esquecer as coisas ruins.
— Sim. — Eu o beijo outra vez, mas termino rapidamente. Lá no fundo, sei que precisamos desacelerar. Sei o que vem a seguir. E, embora pareça ótimo, não estou realmente pronta para o próximo passo.
Eu toco os lábios dele.
— Você faz eu me sentir tão... normal.
— Normal? — Ele sorri contra os meus dedos. — Para uma garota que lê histórias de amor, acho que você pode fazer melhor do que isso.
Eu solto uma risada.
— Não, quero dizer, não sou Chloe, cuja mãe tem câncer ou está depressiva. Ou Chloe, cujo pai é um cafajeste. Ou Chloe que pode ser uma garota sequestrada. Sou apenas uma garota normal, sentindo coisas incríveis enquanto beija um cara muito gato.
— Gosto da parte do “cara muito gato” — diz ele.
— Eu gosto do cara muito gato.
— Você é incrível. — Cash corre um dedo pela minha bochecha.
Lembro-me do que eu queria dizer a ele.
— Você estava certo. Meus pais usaram a Agência de Adoção New Hope.
— Como você sabe?
— Perguntei ao meu pai.
— Você contou a ele...?
— Não, eu disse que estava curiosa e pedi que não comentasse nada com a minha mãe.
Cash assente.
— Deveríamos ir até essa agência. Pedir para ver a sua documentação.
— Eles me deixariam ver? — Sento-me.
— Você não tem 18 anos ainda, mas logo terá, então quem sabe? Talvez deem algum papel para seus pais assinarem.
A mágica do beijo começa a desaparecer e eu me lembro do que estou enfrentando.
— Eu quero fazer isso. Vou fazer, mas... — Eu me lembro de ouvir minha mãe rindo aquela noite. — Não posso pedir para a minha mãe assinar nada. Isso pode deixá-la ainda mais deprimida.
— Eu poderia forjar a assinatura dela.
— Isso é ilegal.
— Não tão ilegal quanto sequestrar uma criança.
Sim, a mágica se foi.
— Meus pais não me sequestraram. Eles me adotaram.
— Eu não quis dizer... — Cash hesita. — Antes de irmos, precisamos saber tudo que for possível. Vou tentar dar uma olhada no arquivo. Podemos ir à agência na segunda-feira.
Concordo.
Os olhos verdes encontram os meus com cautela.
— Quando perguntei se você se lembrou de algo de antes da adoção, você disse “mais ou menos”. Do que você se lembra?
— Nem chega a ser uma lembrança completa. Estou sentada num sofá, ele é marrom-claro e manchado. Estou chorando, assustada. Calço sapatos pretos de verniz, com fivelas. O tapete é sujo. E estou usando um vestido de princesa e segurando uma tiara.
— Havia alguém com você?
— Não sei. Tudo o que sei é que estou com medo.
— Como se você tivesse sido sequestrada?
— Não sei, mas esse sentimento, esse mesmo medo, às vezes eu sinto do nada. — Minha garganta dá um nó. — Ou talvez seja do dia em que a minha mãe me deixou na agência de adoção. E se estivermos errados? E se tudo isso for uma coincidência? E meus verdadeiros pais simplesmente não me queriam?
Ele franze a testa.
— São muitas coincidências. Sua vida aqui. O nome do seu gato. A data em que Emily foi sequestrada e que você foi adotada. A sua boneca.
— Sim, mas ainda assim podem ser simples coincidências.
O ombro dele se aproxima do meu.
— Vamos descobrir.
Fecho os olhos e me lembro de quase ouvir alguém me dizendo que minha mãe e meu pai não me queriam mais. Isso aconteceu ou foi só uma impressão que eu tive? E o machucado no rosto...?
— Você acha que, se os Fuller tivessem me visto, eles me reconheceriam?
— Sim. Você está como naquela foto.
Eu me inclino contra ele.
— Isso é tão difícil...
— Eu sei — diz Cash.
Nesse momento, um carro para em frente à casa de Lindsey. Vejo quando os faróis se apagam.
— É Lindsey voltando para casa, depois do encontro com David. — Eu me abaixo no assento e o puxo para baixo. Ele volta a se levantar.
— Opa! Eles estão na varanda. Vão se beijar.
— Pare de bisbilhotar. — Mas então eu me levanto e vejo David beijar Lindsey.
— Que bom! — digo, esperando que Lindsey não esteja pensando em Jonathon.
— Isso é mais que bom. — Cash me puxa para baixo e me beija. E ele está certo. É mais do que bom.
Nos beijamos até ouvirmos o carro de David se afastar. Então eu digo:
— Já é tarde.
— Tem razão. — Ele me leva de volta até a janela e a abre.
Eu calculo a altura.
— Entrar vai ser mais difícil do que foi para sair.
— Salte e eu te dou impulso. — Ele pega os Skittles da minha mão e os coloca no bolso.
Apoio as mãos no parapeito da janela e pulo. As mãos dele empurram meu traseiro e Cash me dá impulso para cima. Metade do meu corpo já está do lado de dentro. De repente, acho engraçado. Dou risada e olho para trás.
— Já pode tirar as mãos da minha bunda agora.
— Eu estava apenas ajudando — diz ele, e sorri.
Acabo de escalar a janela, depois me viro e olho para Cash.
Ele me entrega as balas e depois dá um salto se apoiando no parapeito. Seus ombros enchem o espaço da janela, os bíceps musculosos enrijecendo, os olhos verdes nos meus.
Ele me dá um breve beijo de despedida.
— Bons sonhos.
— Você também.
Eu o vejo voltar para o carro. Corro a língua pelos lábios para saborear o gosto do beijo dele. Mesmo com todos os problemas, pela primeira vez estou começando a gostar de morar em Joyful.
C O N T I N U A
— O que está fazendo? — pergunto quando meu pai entra no estacionamento de uma loja de conveniência, a pouco mais de um quilômetro de onde minha mãe e eu estamos morando agora. Minha voz soa meio desafinada depois de passar cinco horas de viagem sem falar. Eu estava com medo de que, se dissesse alguma coisa, tudo dentro de mim transbordaria. Minha raiva. Minha mágoa. Minha decepção com o homem que costumava ser meu super-herói.
— Preciso abastecer o carro e ir ao banheiro — diz ele.
— Ir ao banheiro? Quer dizer que você não pode nem entrar para ver minha mãe quando me deixar em casa? — Sinto o coração apertado como se uma mão gigante o esmagasse.
Ele me olha nos olhos, ignora minhas perguntas e diz apenas:
— Você quer alguma coisa?
— Sim, minha vida de volta! — Saio do carro e bato a porta com tanta força que o barulho de metal contra metal reverbera no ar abafado do Texas. Arrasto os pés pelo estacionamento, enquanto fito minhas sandálias brancas devorando a calçada e tento esconder o brilho das lágrimas nos meus olhos.
— Chloe! — meu pai me chama. Eu ando mais rápido.
Com os olhos ainda colados no chão, abro a porta, entro com tudo dentro da loja e dou um encontrão em alguém, esmagando meus peitos contra o peito da pessoa.
— Merda! — rosna uma voz grave.
Um copo de isopor bate no chão e uma bebida vermelho-sangue explode nas minhas sandálias brancas. O copo vira, provocando uma hemorragia no piso de ladrilhos brancos.
Engulo o nó na garganta e dou um passo para trás, afastando meu sutiã tamanho P do tórax de um sujeito.
— Desculpe — ele murmura, embora a culpa seja minha.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ARRANCADA_DO_MEU_MUNDO.jpg
Eu me forço a olhar para ele e vejo primeiro o peito largo, depois os olhos verdes e em seguida o cabelo preto-azeviche caído na testa. Ah, droga! Eu não podia ter trombado com algum velhinho de bengala?
Volto a fitar os olhos brilhantes do desconhecido e vejo uma mudança neles. Não estão mais com uma expressão de quem se desculpa. Agora parecem chocados e então... zangados.
Eu deveria dizer algo do tipo, Eu é que tenho que me desculpar, mas o nó na minha garganta volta com força total.
— Merda. — A palavra volta a escapar, agora com uma cara feia.
Concordo, tudo isso é uma merda!
Ouço meu pai chamar meu nome novamente, do lado de fora da loja.
Minha garganta fica mais apertada e as lágrimas ardem nos meus olhos. Com vergonha de chorar na frente de um estranho, arranco minhas sandálias e disparo na direção de uma geladeira cheia de refrigerantes.
Abro a porta de vidro e estico o pescoço para sentir o ar frio, precisando muito esfriar a cabeça. Enxugo algumas lágrimas rebeldes nas bochechas, depois sinto alguém ao meu lado. Meu pai não vai deixar isso passar em branco.
— Apenas admita que você estragou tudo! — eu digo, depois olho para o lado e sou engolida por aqueles mesmos olhos verde-claros zangados de um minuto atrás. — Pensei que você fosse... Foi mal... — balbucio, sabendo que é tarde para um pedido de desculpas. O olhar dele é inquietante.
O garoto continua a me encarar. Um olhar que não faz a mínima questão de esconder a antipatia. Como se a irritação dele não fosse apenas pela raspadinha derramada.
— Eu pago a sua bebida. — Ele nem pisca, então acrescento: — Me desculpe.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta fica sem resposta.
— O quê? Eu conheço você? — Sei que fui rude, mas, gato ou não, o cara está me deixando assustada.
Os olhos dele brilham de raiva.
— O que você quer? — Não entendo por que há um tom de acusação na voz dele.
— Como assim?
— Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Ele ainda está me encarando. Percebo que estou me sentindo intimidada com aquele olhar.
— Eu não sou... Você deve estar me confundindo com outra pessoa. — Balanço a cabeça, sem saber se o cara é tão louco quanto sexy. — Não sei do que você está falando. Mas já me desculpei. — Pego uma lata de bebida e, descalça, com as sandálias gosmentas na mão, ando rápido para a entrada da loja.
Meu pai entra, carrancudo.
— Cuidado! — diz a moça do caixa ao meu pai, enquanto limpa o chão sujo de raspadinha em frente à porta.
— Desculpe — murmuro para a moça e aponto para o meu pai. — Ele vai pagar meu refrigerante! E essa raspadinha aí no chão.
Disparo até o carro, entro e seguro a lata fria de refrigerante contra a testa. Os fios de cabelo na minha nuca começam a ficar arrepiados. Olho em volta e o gato esquisitão está do lado de fora da loja, me encarando novamente.
Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
É isso aí, o cara não bate bem. Desvio o olhar para fugir da vigilância dele. Meu pai volta para o carro. Ele não dá partida, fica ali parado, só me olhando.
— Você sabe que isso não é fácil para mim também.
— Ok. — Então, por que você saiu de casa?
Ele liga o carro, mas, antes de partirmos, olho em volta novamente e vejo o garoto de cabelos pretos parado no estacionamento, escrevendo algo na palma da mão.
Engano meu ou ele está anotando o número da placa do meu pai? Esse cara é muito doido! Eu quase digo algo para o meu pai, mas me lembro de que estou chateada com ele.
Meu pai acelera. Fico atenta ao espelho retrovisor. O cara gostosão fica ali, com os olhos colados no carro do meu pai, e eu também não tiro os olhos dele até que não passe de um pontinho preto no retrovisor.
— Sei que é difícil — diz meu pai. — Penso em você todo dia.
Eu balanço a cabeça, como se entendesse, mas não falo nada.
Minutos depois, meu pai encosta o carro na frente da nossa casa. Ou melhor, da casa onde moramos minha mãe e eu. Meu pai não mora mais conosco.
— Eu te ligo amanhã para ver como foi o seu primeiro dia de aula.
Meu estômago se contrai como um tatu-bola com o lembrete de que vou começar meu último ano do ensino médio numa escola nova. Olho para a casa velha no bairro antigo. A casa que um dia pertenceu à minha avó materna e que minha mãe alugou para um casal de idosos nos últimos anos. Agora moramos nela. Uma casa que cheira a gente velha... e a tristeza.
— Ela está em casa? — pergunta meu pai.
À luz do entardecer, nossa casa está às escuras. Uma luz dourada se infiltra por debaixo da porta da casa ao lado, onde mora Lindsey; ela foi a primeira pessoa da minha idade que conheci na cidade.
— Mamãe provavelmente está descansando — respondo.
Ficamos calados por um momento.
— Como ela está?
Achei que não ia perguntar... Olho para eu pai, enquanto ele segura o volante com força e analisa a casa.
— Bem. — Abro a porta do carro, sem querer me despedir. Dói demais.
— Ei! — ele sorri. — Pode me dar pelo menos um abraço?
Eu não quero dar, mas por algum motivo (porque sob toda aquela raiva, eu ainda o amo) eu me inclino sobre o console entre os bancos e o abraço. Ele não tem mais nem o cheiro do meu pai. Está usando uma colônia que Darlene provavelmente comprou para ele. Lágrimas ardem nos meus olhos.
— Tchau. — Tiro do carro um pé melado de raspadinha.
Antes de eu levantar o traseiro do banco, ele diz:
— Ela vai voltar logo a trabalhar?
Eu me viro para ele.
— Foi por isso que você perguntou como ela está? Por causa do dinheiro?
— Não. — Mas a mentira é tão clara na voz dele que fica pairando no ar.
Quem é esse homem? Ele tinge os fios grisalhos nas têmporas. Agora usa o cabelo espetado e está vestindo uma camiseta com o nome de uma banda que ele nem sabia que existia até Darlene aparecer na vida dele.
Antes que eu possa me conter, as palavras se derramam da minha boca:
— Por quê? Sua namorada está precisando de mais um par de sapatos de grife?
— Não, Chloe — ele diz num tom severo. — Você está falando como a sua mãe.
A mágoa agora aperta a minha garganta.
— Ah, pelo amor de Deus... Se eu falasse como a minha mãe, diria: “A putinha está precisando de mais um par de sapatos de grife?”. — Eu me viro outra vez para a porta do carro.
Ele pega meu braço.
— Olhe aqui, mocinha, não posso esperar que você goste dela assim como eu, mas gostaria que pelo menos a tratasse com respeito.
— Respeito? A pessoa precisa merecer respeito, pai! Se eu usasse as roupas que ela veste, você me mataria. Na verdade, nem você eu respeito mais! Você arruinou a minha vida. Você ferrou a vida da mamãe. E agora está transando com alguém dezoito anos mais jovem que você. — Saio do carro e, a meio caminho da soleira de casa, ouço a porta do carro se abrir e bater.
— Chloe. Suas coisas. — Ele parece zangado, mas não mais do que eu, porque, além de raiva, sinto mágoa.
Se eu não estivesse com receio de que ele me seguisse até em casa, todo ofendido, e começasse uma discussão com a minha mãe, eu não voltaria para pegar nada. Mas não quero mais ouvi-los discutindo. E não sei se minha mãe também iria aguentar. Não tenho opção a não ser fazer a coisa certa. É péssimo quando você é a única pessoa na família que se comporta como um adulto.
Eu me viro, seco as lágrimas bruscamente e me volto para o meio-fio.
Meu pai está de pé ao lado do carro, com uma mão segura a minha mochila e, com a outra, uma enorme sacola com as roupas novas que comprou para eu usar na escola. Ótimo. Agora me sinto a filha desalmada e ingrata.
Quando me aproximo, murmuro:
— Obrigada pelas roupas.
— Por que está tão brava comigo? — ele pergunta.
Tantas razões... Qual delas eu escolho?
— Você deixou Darlene transformar meu quarto numa academia de ginástica.
Ele balança a cabeça.
— Nós tiramos suas coisas e colocamos no outro quarto.
— Mas aquele quarto era meu, pai.
— É por isso que você está tão brava ou será porque... ? — Ele faz uma pausa. — Não é culpa minha que sua mãe tenha ficado...
— Continue pensando assim — eu digo. — Um dia desses, você pode até começar a acreditar!
Com as mãos ocupadas e o peito pesado, deixo meu super-herói e meu coração partido abandonados na calçada. Minhas lágrimas estão caindo rápidas e quentes quando fecho a porta da frente atrás de mim.
Docinho, um vira-lata amarelo de porte médio, me cumprimenta com um ganido e o rabo abanando. Eu o ignoro. Largo a mochila, a sacola de compras e vou para o banheiro. Félix, meu gato amarelo tigrado, vem correndo e entra comigo.
Tento fechar a porta de um jeito normal, em vez de batê-la com raiva. Se minha mãe me vir assim, vai ficar chateada. Pior ainda, isso alimentará sua raiva.
— Chloe? — minha mãe chama. — É você?
— Sim. Estou no banheiro. — Espero que minha voz não revele quanto me sinto arrasada.
Eu me sento no vaso sanitário, pressiono as costas das mãos contra a testa e tento respirar.
Os passos da minha mãe fazem o velho assoalho de madeira ranger. A voz dela soa atrás da porta.
— Está tudo bem, querida?
Félix está ronronando e se esfregando na minha perna.
— Sim. Mas meu estômago nem tanto... Acho que o bolo de carne que comi na casa do papai não caiu bem.
— Darlene é quem estava cozinhando? — O tom de voz dela denuncia o ódio reprimido.
Eu cerro os dentes.
— Sim.
— Por favor, diga que seu pai repetiu o prato.
Fecho os olhos, quando o que realmente quero fazer é gritar: Pare com isso! Eu entendo por que minha mãe está tão furiosa. Entendo que meu pai é um filho da mãe. Entendo que ele se recusa a assumir a culpa e que isso só piora as coisas. Entendo o que ela passou. Entendo tudo isso. Mas ela tem ideia do quanto me dói ouvi-la falar tão mal de alguém que eu ainda amo?
— Vou me sentar um pouco lá fora, no quintal — diz ela. — Quando sair daí, vá se sentar lá comigo.
— Ok — respondo.
Os passos da minha mãe se afastam.
Fico sentada no vaso e tento não pensar em tudo que me magoa. Em vez disso, faço carinho em Félix. Seus olhos, tão verdes, me levam de volta ao garoto da loja. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Que diabos ele quis dizer com isso?
Saio do banheiro, mas, antes de abrir a porta dos fundos, olho pela janela e vejo minha mãe no gramado, reclinada numa cadeira de armar. O sol está se pondo e ela está banhada numa luz dourada. Os olhos estão fechados e o peito se move para cima e para baixo, respirando lentamente. Está tão magra... magra demais.
O lenço azul desbotado escorregou da cabeça dela. Tudo que eu vejo é sua cabeça sem cabelos. E — pronto! Estou com raiva do meu pai outra vez.
Talvez ele esteja certo. Talvez eu o culpe pelo câncer da minha mãe.
Não adianta nem eu me lembrar de que, três semanas atrás, o médico a considerou curada. De fato, o câncer de mama foi detectado tão cedo que os médicos insistiram em dizer que deveríamos considerá-lo só um pequeno obstáculo no caminho.
Mas eu odeio os solavancos que os obstáculos podem provocar...
Meu olhar é atraído para a cabeça dela novamente. O médico afirmou que as breves sessões de quimioterapia eram só para ter certeza de que não restaria nenhuma célula cancerígena. Mas até eu ver o cabelo da minha mãe voltando a crescer e as costelas protuberantes sumindo, não vou parar de ter medo de perdê-la.
Quando ela foi diagnosticada, pensei que meu pai voltaria, que ele perceberia que ainda a amava. O mais triste é que acho que minha mãe pensou o mesmo. Mas isso não aconteceu.
Minha mãe abre os olhos, ajusta o lenço na cabeça e fica de pé com os braços abertos.
— Venha cá. Senti sua falta.
— Só fiquei três dias fora — digo. Mas é a primeira vez que durmo fora de casa desde que minha mãe adoeceu. E senti falta dela também.
Caímos nos braços uma da outra. Os abraços dela começaram a ficar mais longos desde que se separou do meu pai. Os meus ficaram mais apertados desde que a temida doença de minha mãe marcou nossas vidas.
Eu retribuo o abraço dela. Docinho está aos meus pés, a cauda abanando e batendo na minha perna.
— Ela redecorou a casa? — O tom de voz dela é casual, mas ainda carregado de animosidade.
Apenas o meu quarto. Mudando de assunto, eu pergunto:
— O que você fez enquanto estive fora?
— Li dois livros. — Ela sorri.
— Você não pegou seu manuscrito e tentou escrever?
Antes da separação, minha mãe passava todo o seu tempo livre trabalhando em seu livro. Ela chamava esse hobbie de “minha paixão”. Suponho que meu pai tenha exterminado essa paixão também.
— Não. Não tive vontade — ela diz. — Ah, olhe! — Ela tira a bandana. — Já está nascendo uma leve penugem na minha cabeça. Ouvi dizer que algumas mulheres gastam uma fortuna para ficar com esse visual.
Eu solto uma risada, não porque seja engraçado, mas porque ela está rindo. Eu não me lembro da última vez que minha mãe riu. Será que as coisas estão melhorando?
Ela vai até a cadeira de balanço dupla e se senta.
— Sente-se.
A cadeira afunda sob o nosso peso. O ombro de minha mãe esbarra no meu e ela olha fixamente para mim. Será que percebeu que meus olhos estão inchados de tanto chorar?
— O que há de errado, querida?
A preocupação em sua voz, o amor em seus olhos, tudo isso me faz lembrar de quando eu podia contar com ela para desabafar meus problemas. Quando eu não pesava cada palavra para garantir que não iria magoá-la. Porque ela já está sofrendo demais.
— Nada — eu digo.
Ela contrai os lábios.
— Seu pai deixou você chateada?
— Não — minto.
O olhar dela se demora em mim como se ela soubesse que não estou sendo sincera. Eu invento alguma coisa:
— É Alex.
— Você o viu enquanto estava na casa do seu pai?
Outro nó se forma na minha garganta. Acho que esse assunto também é delicado.
— Ele veio me ver e conversamos no carro.
— E então...?
— Não aconteceu nada. — Guardo essa dor para outra hora. — Eu disse a você que ele está saindo com outra pessoa.
— Sinto muito, querida. Você me odeia por tê-la feito se mudar de cidade?
Gente, não dá para odiar alguém que tem câncer! Mas e agora que o câncer está curado...? É tentador, mas não posso. Assim como não posso odiar meu pai.
— Eu não te odeio, mãe.
— Mas você odeia morar aqui? — A culpa acrescenta uma nota triste à voz dela. É a primeira vez que ela considera meus sentimentos sobre isso. Eu tentei ao máximo convencê-la a não se mudar, cheguei a implorar, mas ela não fez concessões. Então eu fiz. Fiz um monte de concessões.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Só é difícil.
Meu celular toca, indicando a chegada de uma mensagem. Não quero olhar agora, porque acho que é meu pai mandando uma mensagem para pedir desculpas e minha mãe pode ver, então vou ter que explicar. Ele está arrependido, não está? Quero acreditar que ele tenha percebido que dar meu quarto a Darlene foi um erro.
— Quem é? — pergunta minha mãe.
— Não sei. — O celular permanece no meu bolso.
Ele toca novamente. Merda!
— Você pode olhar para ver quem é... — diz minha mãe.
Eu tiro o celular do bolso e verifico as mensagens. Não é meu pai. E isso também me magoa.
— É Lindsey. — Eu leio a mensagem dela. Apareça quando puder.
— Ela ligou antes para ver se você estava em casa. Por que não vai vê-la? Vou preparar o jantar.
— Vou apenas mandar uma mensagem para ela — digo, sabendo que Lindsey vai perguntar sobre a minha viagem e eu não a conheço bem o suficiente para despejar tudo em cima dela.
— Ok. — Minha mãe dá um tapinha no meu braço. — O que você quer jantar?
— Pizza. — Estou morrendo de fome. Eu mal toquei no almoço na casa do meu pai.
— Pizza? Com o estômago revirado desse jeito? — diz minha mãe. — Que tal sopa de tomate e queijo grelhado?
Eu odeio sopa de tomate. É comida de hospital. Comida de quem tem câncer. Nós comemos isso quase todas as noites durante a quimioterapia. Então, mais uma vez, suponho que seja isso que eu ganhe por mentir.
— Claro!
Depois de um prato de sopa, um sanduíche e dois episódios de uma série, dou um abraço de boa-noite na minha mãe e vou para a cama. Docinho e Félix me seguem quando entro no meu quarto. Ou melhor, o quarto em que durmo. Meu quarto não existe mais.
Pego o celular para ver se alguma das minhas antigas amigas, ou talvez Alex, me mandou uma mensagem. Nada exceto outra mensagem de Lindsey, me lembrando de avisá-la quando estiver saindo para a escola na manhã seguinte.
Eu desabo na minha cama. Félix salta para cima do colchão, se aconchega ao meu lado e começa a ronronar. Docinho faz o mesmo e fica aos meus pés. Com o celular ainda na mão, deslizo a tela para as selfies que tirei de mim, Kara e Sandy neste final de semana. Nós estamos sorrindo, mas não é um sorriso sincero, natural. Parece que nós três estamos só fazendo pose. Como se estivéssemos fingindo alguma coisa. Fingindo um sorriso. Fingindo amizade.
Continuo passando as fotos com o dedo até chegar às mais antigas, com Kara e Sandy. Nós não estamos posando ou fingindo. Estamos nos divertindo. Isso está claro na nossa expressão, nos nossos sorrisos verdadeiros.
Eu continuo olhando as fotos até encontrar uma só minha e de Alex. Ele está beijando minha bochecha. Seus olhos azuis não aparecem na foto, e eu posso dizer que ele está rindo. Lembro-me de quando foi tirada. Na primeira noite em que dormimos juntos. Lágrimas enchem meus olhos e meu dedo desliza mais rapidamente. Imagens, instantâneos da minha vida agora não passam de borrões coloridos voando pela tela do meu celular.
Será que, na realidade, é apenas disso que se trata a vida? Borrões coloridos? Uma colagem de momentos efêmeros, em diferentes tons e matizes de emoção? Momentos em que você está feliz, triste, com raiva, com medo, e aqueles em que você está apenas fingindo.
Jogo o celular nos pés da cama e olho para o ventilador de teto girando, enquanto minhas emoções parecem fazer o mesmo. Meus olhos ficam pesados e então — pronto! — não estou mais olhando para o ventilador. Estou presa numa lembrança quase tão antiga quanto eu.
Estou sentada num sofá marrom. Meus pés, dentro de sapatos pretos de fivela, balançando bem acima de um tapete sujo. Estou usando um vestido de princesa com babados rosa, mas não sou uma princesa feliz. Soluços profundos e sinceros, meus soluços, ecoam ao meu redor. Eu me sinto um peixe fora d’água. Não consigo respirar.
Sento-me tão rápido que Félix pula da cama.
É a única lembrança que tenho antes de me tornar Chloe Holden. Alguns meses antes do meu terceiro aniversário. Antes de eu ser adotada.
Ultimamente, essa lembrança tem me ocorrido. Me assombrando, de certa forma. Mas eu sei por quê. É a sensação. A sensação de ser arrancada do meu mundo e colocada em outro lugar.
Não que isso não tenha sido bom. Naquela época, tive muita sorte em ser adotada, e por pais perfeitos. Ganhei uma mãe, um pai, tenho um gato chamado Félix e, ainda por cima, adotamos um cachorro chamado Docinho. Morávamos numa casa de tijolinhos brancos de três quartos, onde sempre havia risadas. E amor. Eu tinha amigos com quem cresci. Um namorado a quem entreguei a minha virgindade.
Eu tinha uma vida. Eu era feliz. Meus sorrisos eram de verdade nas fotos.
Aí meu pai passou a trabalhar até tarde.
Começaram as brigas dos meus pais.
O caso do meu pai.
A depressão da minha mãe.
O divórcio.
O câncer.
E depois a mudança da cidade de El Paso para Joyful, no Texas. Que, a propósito, de alegre não tem nada... [-11
E aqui estou eu. Arrancada do meu mundo outra vez. Arrancada brutalmente.
Mas, desta vez, não estou me sentindo tão sortuda assim.
2
Tentando me convencer de que este primeiro dia de aula não vai ser tão ruim quanto imagino, corro os dedos pelo meu cabelo grosso e escuro, que passei meia hora alisando. Depois de dar uma última olhada no espelho da penteadeira, envio uma mensagem para Lindsey e saio do quarto apressada.
Minha mãe, sumindo dentro de um roupão cor-de-rosa grande demais para ela, está sentada na mesa da cozinha, olhando para mim.
— Gosto mais da blusa vermelha.
— Eu sei. Mas prefiro esta hoje.
Dou um abraço nela. Sei que fico bem de vermelho, mas vou aparecer demais, tipo, Olhem para mim, eu sou a garota nova da escola! Então preferi usar uma blusa bege em vez disso.
— Me deseje sorte — diz ela.
— Por quê? O que você vai fazer? Vai começar a escrever de novo?
— Não. Estou procurando emprego.
Meu primeiro pensamento é que minha mãe deve esperar até o cabelo dela crescer.
— Você sente vontade de trabalhar?
— Sim. Estou cansada de não fazer nada.
— Então boa sorte. — Pego a mochila, faço um carinho rápido em Félix e em Docinho e saio, tentando não pensar em meu pai perguntando se minha mãe está trabalhando. Tentando não pensar que nunca recebi um pedido de desculpas dele.
Lindsey, vestindo jeans preto, blusa preta, unhas esmaltadas de preto e batom vermelho, está esperando ao lado da garagem. Seus cabelos loiro-claros com reflexos caem em cascata sobre os ombros. Ela parece saída de uma capa de revista.
— Caprichou no visual, hein? — eu digo.
Ela sorri.
— Meu plano é fazer Jonathon morrer de arrependimento.
Eu já ouvi tudo sobre Jonathon. A quem ela, na maioria das vezes, chama de “aquele cão sarnento traidor”. Eu o vi uma ou duas vezes quando nos mudamos. Foi só quando eles romperam o namoro que Lindsey e eu começamos a conversar. E só recentemente contei a ela sobre Alex, mas nós ainda não arranjamos um apelido perfeito para o meu ex-namorado.
Se a minha mãe não tivesse me arrastado para outra cidade do Texas, Alex e eu ainda estaríamos juntos. Não tenho certeza se poderia chamar de amor o que sentíamos, mas acho que estávamos perto disso. Quando fui embora, concordamos que iríamos manter um relacionamento a distância.
Só durou quatro semanas.
— Como foi a visita à casa do seu pai e do brinquedinho sexual dele? — ela pergunta enquanto caminhamos para o meu carro.
— Um verdadeiro inferno — digo, depois mudo de assunto. — Você já escolheu seu novo crush? — Entramos no meu Chevy Cruze branco.
— Sim, David Drake. Ele me convidou para sair no ano passado, logo depois que comecei a namorar Jonathon. Ele é engraçado, fofo e educado.
No trajeto, Lindsey fala sobre o horário das suas aulas e conta que tem três aulas com Jamie. Jamie é sua melhor amiga, que esteve fora durante o verão. Eu fico preocupada, achando que agora que a melhor amiga está de volta, Lindsey vai me deixar de lado quando mais preciso.
— Espero que a gente tenha aulas juntas — digo a Lindsey.
Quase todo mundo recebeu o horário das aulas por e-mail. Vou pegar o meu depois com a conselheira. Mas como Lindsey não faz as aulas mais puxadas, como eu, de conteúdo mais completo e aprofundado, duvido que tenhamos aulas nas mesmas classes.
Entro no estacionamento da escola e penduro no espelho retrovisor a autorização para estacionar ali. Minha mãe obrigou meu pai a pagar o plano mensal do estacionamento. Meu estômago começa a revirar ao ver pessoas que não conheço. Eu olho para Lindsey.
Ela está me olhando de um jeito estranho.
— Cara, você está nervosa mesmo!
— Um pouco, por quê?
Ela faz uma cara engraçada.
— Não sei. Achei que fosse mais peituda.
— Eu? Por quê?
— Sua mãe tem câncer. Você precisou se mudar no último ano do ensino médio e está, tipo, numa boa com tudo isso. Eu estaria surtando.
Eu digo a verdade.
— Eu estou surtando. Apenas finjo que não. — Saltamos do carro e pegamos nossas mochilas no banco de trás.
A poucos metros do meu carro, sinto pessoas olhando para mim e acenando para Lindsey. Levanto o queixo e finjo que não estou nem aí. Lindsey começa a falar sobre onde vamos nos encontrar depois das aulas e me diz para mandar uma mensagem quando eu souber os meus horários.
Estamos quase saindo do estacionamento quando ouço gritos. Paramos.
Um cara grandalhão, de cabelo castanho-claro, está rindo de outro, mais novo, com cara de ser do segundo ano. O valentão está segurando uma mochila e fazendo algumas piadas sobre a estatura do mais baixinho.
O rosto do garoto está vermelho, como se ele estivesse envergonhado e com muita raiva. Meu coração se compadece do aluno do segundo ano, que parece tão desconfortável quanto eu ali. Estou pensando em fazer alguma coisa quando outra pessoa faz. Alguém com cabelo preto- azeviche e ombros com um quilômetro de largura. Eu acho que ele é professor; então — droga! — eu o reconheço! É o cara paranoico com quem trombei na loja de conveniência.
— Pare de ser idiota! — O psicopata da loja tira a mochila da mão do garoto babaca e a joga para o garoto mais novo, que a agarra e sai correndo.
— Olha como ele corre! — diz o valentão, rindo. Mas, caramba, eu odeio valentões!
O cara estranho fala algo que não consigo ouvir. Eu chego mais perto. Lindsey se aproxima junto comigo.
O idiota explode:
— Quem diabos você pensa que é?
Lindsey se inclina.
— Isso está ficando interessante.
Eu não olho para ela. Meus olhos estão presos na cena.
— Paul é o cara que pegou a mochila do garoto — Lindsey continua, baixinho. — Ele é jogador de futebol. O outro cara é o Cash. Ele começou a estudar aqui na metade do último ano escolar. Costumava frequentar a Westwood Academy, uma escola particular para onde vão as crianças ricas. Mas há boatos de que cresceu num orfanato e é mau elemento.
— Paul é quem está agindo como um mau elemento. — Eu tento ligar o cara que está defendendo o garoto mais novo com o lunático que conheci ontem.
— Verdade. Paul é que vive praticando bullying — Lindsey admite.
Paul se aproxima de Cash. Apesar do encontro de ontem, estou torcendo por Cash. Não gosto de psicopatas, mas gosto menos ainda de valentões.
Cash não se move, mas seus ombros se alargam. Paul não parece assustado, mas ele deveria estar. Cash é uns cinco centímetros mais alto do que Paul. Mas não é a altura que o torna tão intimidador. É a linguagem corporal dele. Ele parece durão. Ainda mais durão agora do que ontem.
— Eu fiz uma pergunta! — Paul grita. — Quem você acha que é, garoto adotado?
Os ombros de Cash se alargam ainda mais.
— Sou o único aqui que não tem que pegar alguém menor do que eu para me sentir importante.
Paul se aproxima e cola o rosto no de Cash.
Cash fala alto:
— Vá embora enquanto pode. — Seu tom é ameaçador.
— Você é que vai embora! — rebate Paul.
Acho que Cash está prestes a recuar o punho para dar um soco no outro, mas ele me surpreende e diz:
— Você não vale o aborrecimento.
Ele se vira para ir embora.
Não sei se estou decepcionada por Cash não dar uma lição em Paul ou se ele tomou a atitude certa.
Cash se afasta alguns passos quando Paul avança e o empurra pelo ombro. Cash se desequilibra.
— Covarde! — Paul o acusa.
— Você é que é covarde por esperar eu virar as costas.
— Bem, agora estou na sua frente. — Paul desfere um soco.
Cash desvia para a esquerda. O punho de Paul golpeia o ar.
Todo mundo ri. Isso alimenta a fúria de Paul. Ele levanta os punhos na frente do rosto e começa a transferir o peso de um pé para o outro, como se fosse um boxeador profissional.
Cash leva os punhos até o queixo. Todos começam a gritar.
— Acaba com esse imbecil! Dá uma lição nele!
De alguma forma, sei que eles não estão torcendo por Cash. Eu não vou gostar dessa escola.
Estou achando que devemos ir embora, mas, assim como Lindsey, não consigo tirar os olhos da cena. Os dois caras se movem em círculo. Paul desfere outro soco, Cash se abaixa. Paul solta um rosnado.
Espero Cash fazer algum comentário irônico, mas ele não fala nada.
Tenho a sensação de que não quer lutar.
De repente, eles se posicionam de modo que Cash fica de frente para mim.
Aqueles olhos verdes líquidos olham para a frente e encontram os meus, castanhos. Ele congela.
É quando Paul desfere outro soco e seu punho atinge o olho de Cash. Ele quase cai, mas, com fúria, golpeia Paul — primeiro na barriga, depois no nariz. Paul cai, ofegante, e coloca a mão sobre o nariz. Sangue escorre entre os dedos dele.
— Parem! — alguém grita. Um homem corre na direção do grupo. Dessa vez é um professor de fato. A aglomeração começa a se dispersar.
— Vamos dar no pé. — Lindsey me puxa. Logo antes de eu me virar, o olhar de Cash me encontra novamente. Seu olho esquerdo já está inchando. Eu me viro e sigo Lindsey.
— Isso foi bem estranho... — Lindsey se apressa em direção à entrada da escola.
— A briga? — pergunto.
— Não. Cash olhando para você. Você o conhece?
— Não — eu digo, mas não explico mais nada.
— Bem, algo em você chamou a atenção dele.
— Eu provavelmente pareço alguém que ele conhece. — Me lembro de dizer o mesmo para ele na loja.
— Ou ele gosta de você. Todas as garotas da escola já tentaram chamar a atenção dele e não conseguiram. Você chega aqui e ele leva um soco enquanto olha para você.
— Talvez não estivesse olhando para mim — digo, sem muita convicção.
— Sei. — Lindsey revira os olhos.
Olho para a escola que aparece diante de mim e tudo que eu quero é dar meia-volta e voltar para casa.
Estou esperando na secretaria para pegar meus horários com a conselheira, a srta. Anderson, quando ouço uma voz zangada atrás de mim.
— Você quebrou o nariz dele.
Estou quase certa de que é a voz do professor que interrompeu a briga. Não viro a cabeça para ver quem é. Fico olhando para a frente, enquanto passam por mim. O professor empurra a porta giratória que leva à parte de trás da secretaria. Cash o segue.
Ele está quase passando pela porta quando se vira para trás. Seus olhos, ou melhor, “seu olho” me encontra — o outro está tão inchado que nem abre mais. O ar de acusação é evidente em sua expressão. Parece até que sou eu a responsável pelo olho roxo. Ouço o professor dizer algo e Cash se vira para a frente e o segue.
Incomodada com aquele olhar, vejo a recepcionista acenando para que eu me aproxime. Ela abre a porta e eu a sigo por um corredor, até os fundos. Viramos uma esquina e vejo o professor que interrompeu a briga. Parecendo chateado, ele conversa com uma mulher de cabelos pretos.
A recepcionista limpa a garganta.
O professor e a mulher olham para ela.
— Chloe Holden. — A recepcionista faz um gesto na minha direção.
— Leve-a até o meu escritório. — A recepcionista concorda com um ar contrariado. — Eu já estou indo.
Sou conduzida até outra sala e eu me sento na cadeira mais próxima da porta, enquanto a recepcionista dá meia-volta e sai. Posso ouvir ao longe a conversa entre o professor e a conselheira. Eu me reclino na cadeira.
— Não — diz a conselheira. — Estou dizendo para averiguar os fatos antes de fazer suposições.
— Eu já averiguei — respondeu o homem. — Paul Cane me disse o que aconteceu e três alunos confirmaram a história.
— Três amigos de Paul, posso apostar — diz a srta. Anderson. — Vou atender essa nova aluna e depois falo com ele.
— Vai perder o seu tempo — diz o professor.
— Bem, é o meu tempo que vou perder — responde a conselheira com rispidez.
Ouço passos vindo na minha direção. Sento-me mais ereta na cadeira e finjo que não estava prestando atenção na conversa.
— Sinto muito fazer você esperar. — Ela me oferece a mão, mas ainda está com a testa franzida. — Sou a srta. Anderson.
Aperto a mão dela. Pode parecer estranho, mas já gosto dela por defender sua opinião, apesar da oposição do professor.
— Eu sou Chloe Holden.
Ela se senta atrás da mesa e, em seguida, puxa um arquivo de uma pilha de papéis.
— Pedi seu histórico escolar para o Lionsgate High. Vi suas notas. São impressionantes. Com toda essa dedicação, você vai longe.
Eu ouço muito isso. Sou inteligente, mas não me dedico tanto assim aos estudos. As coisas, na escola, são fáceis para mim. Na realidade, na minha antiga escola, eu normalmente errava de propósito uma ou duas perguntas nas provas, para que minhas amigas não me odiassem. Ser inteligente demais não é legal.
— Você está planejando ir para a faculdade, certo?
— Estou, sim — digo. — Meus pais frequentaram a Universidade de Houston, então pretendo ir para lá também.
— Com essas notas, você pode ir para a universidade que quiser. Já solicitou uma bolsa?
Eu confirmo com a cabeça. Pelo menos meu pai vai ter uma folga nas mensalidades quando eu for para a faculdade.
— Bem, coloquei você nas turmas em que o conteúdo das matérias é visto com mais profundidade. Assim, acho que não vai ficar entediada.
Assinto com a cabeça outra vez, meus pensamentos ainda no que a ouvi dizendo para o professor no corredor.
— Sua mãe mencionou que está fazendo quimioterapia. E que se divorciou recentemente.
Por que mamãe contou isso a ela? Eu congelo na cadeira.
— Se você precisar conversar, saiba que estou à disposição.
— Obrigada — digo. — Eu estou bem. Minha mãe também. Ela está curada do câncer agora.
— Ótimo! — Ela olha para o computador. — Estou imprimindo os seus horários e vou pedir a alguém que a acompanhe por alguns dias até que você aprenda a se localizar dentro da escola.
Quero recusar a escolta, mas também não quero correr o risco de me perder dentro do prédio e chamar ainda mais atenção.
Ela faz uma ligação rápida e me entrega meus horários, depois de tirá-los da impressora.
— Sandra vai encontrar você no escritório principal.
Concordo novamente, pego minha mochila, dou dois passos em direção à porta e depois me viro.
— Ah, sobre o que aconteceu no estacionamento...
— O quê?
— A briga — eu digo.
— Você estava lá? — Ela se inclina para a frente. Eu tenho a sensação de que gosta de Cash ou talvez saiba que Paul pratica bullying.
— Sim, o cara com cabelos mais claros, acho que alguém o chamou de Paul, ele estava provocando um garoto mais novo. Pegou a mochila dele e não queria devolver. O outro cara, Cash, devolveu a mochila para o garoto. Paul começou a briga. Cash tentou até se afastar dele.
Os olhos da srta. Anderson se arregalam com um sorriso.
— Você conhece algum dos dois?
— Não, não conheço. Só vi a briga. E... alguém me disse o nome deles.
— Obrigada. — Ela parece aliviada.
Eu saio e paro, quase colidindo com o peito de Cash outra vez. Nossos olhares se encontram. Ou o meu olhar e o “meio olhar” dele. Seu olho está inchado agora. Mas juro que o outro está me acusando de alguma coisa.
As palavras “Desculpe por defender você” estão na ponta da língua. Eu não as digo.
Passo por ele com pressa.
Sinto seu olhar sobre mim. Como senti ontem. Calafrios percorrem minha espinha.
O que há com esse cara?
3
Trinta minutos depois, Cash Colton entrou no jipe. Por que ela me defendeu? Então tudo se encaixou e ele soube no mesmo instante: Porque eu estava certo.
Esbarrar nele tinha sido a estratégia perfeita. Sempre faça repararem em você. Não se aproxime. Faça com que suspeitem.
Foi tudo uma estratégia.
Bem, nem tudo. A briga não poderia ter sido. Ninguém poderia adivinhar que ele sairia em defesa do garoto. Cash não sabia nem por que tinha feito aquilo. Exceto... pelo fato de que aquele garotinho assustado costumava ser ele...
Defendê-lo, no entanto, tinha que fazer parte do jogo dela. Fazer com que confiassem nela. Acreditassem que ela é uma pessoa amigável.
Ela ia precisar de sorte. Cash não confiava em ninguém. Nem mesmo em alguém com seios bonitos.
Ninguém pode trapacear um trapaceiro — não quando ele sabe todos os tipos de truque. Foi treinado pelo melhor de todos: seu pai malandrão, agora já falecido.
Ele saiu do estacionamento da escola cantando pneu. Depois de inocentá-lo da briga, a srta. Anderson havia chamado sua mãe adotiva, a sra. Susan Fuller. Por ser médica e uma pessoa amorosa, ela insistiu em vê-lo antes de decidir se ele precisava ir ao pronto-socorro ou não. Ele deveria esperar que ela viesse examiná-lo antes de voltar às aulas.
A um quarteirão da escola, ele ligou para a sra. Fuller.
Ela atendeu:
— Estou a caminho. Você está bem?
— Estou. Não precisa vir. Estou indo para casa agora tomar uma aspirina.
— Cash, a srta. Anderson, queria que você ficasse na escola. Você não deveria ter...
— Ah, é? Eu não sabia. — Na verdade, ele tinha ouvido toda a conversa atrás da porta e saído furtivamente antes que alguém pudesse detê-lo. — Pensei que eu estava livre para ir embora, depois que ela falou com você.
— Não, querido, você não deveria estar dirigindo. Pode ter sofrido uma concussão. A que distância está de casa?
— Praticamente lá — ele mentiu de novo e sentiu um aperto no estômago.
— Você não está com tontura, está?
— Não.
— Ok, então siga em frente e volte para casa. Vou ligar para avisar a srta. Anderson. Estarei em casa em vinte minutos.
— Mas não é preciso. Estou bem. — Ele olhou para o relógio no painel. Oito e quarenta.
— Foi isso que você disse dois anos atrás, quando seu apêndice supurou — ela disse.
— E eu ainda estou vivo. Então eu estava bem, não estava?
— Depois de oito dias no hospital. — Ela suspirou. Cash ouvia muitos suspiros da mãe adotiva. Desapontá-la era a última coisa que ele queria. E, por mais que tentasse evitar, sempre a decepcionava. O passado de Cash o seguia por toda parte.
Os Fuller complicaram a vida deles quando optaram por adotá-lo [2]. Não que fossem sofrer por muito mais tempo. Em dois meses, ele já teria idade para deixar o lar adotivo. Ele não poderia fazer isso antes de terminar o ensino médio...
— Pare o carro e me ligue se sentir tontura.
— Entendido. — Ele desligou. Consultando o relógio novamente, ele passou a entrada para o bairro de Stallion, onde os Fuller moravam — ou melhor, onde ele ocupava um dos quartos da casa deles — e foi direto para o Walmart. O olho latejava.
Estacionou o jipe, entrou na loja e seguiu até o quadro de avisos.
Cada vez que ia ao supermercado, ele examinava aquele quadro. A primeira vez que tinha se deparado com ele, a vontade que teve foi de rasgá-lo, com receio de que os Fuller o vissem e ficassem tristes. Mais tarde, ele descobriu que os próprios pais é que tinham colocado o folheto ali.
E ali estava ela. Na foto, olhando para Cash.
O mesmo formato de olhos. A mesma mandíbula. Os mesmos lábios.
— Merda!
Isso não significava que fosse ela. A imagem que simulava a aparência dela com a idade que teria hoje poderia não ser exata. As fotos às vezes mentiam. Ele sabia disso por experiência própria. Mas, caramba, aquela garota parecia mais com ela em pessoa do que a foto que um filho da mãe dera à sra. Fuller um ano atrás. E depois que a sra. Fuller entregou a ele 3 mil dólares para encontrar a tal garota, ele convenientemente desapareceu. E levou uma parte do coração da mãe adotiva também. Só agora ela estava voltando ao normal.
Se ao menos a sra. Fuller tivesse contado a Cash, ele teria explicado a ela como funciona esse tipo de falcatrua.
Seria o mesmo vigarista voltando para conseguir mais dinheiro? Provavelmente. Mas, desta vez, havia se tornado seu jogo mais sofisticado. Só que agora Cash sabia o que estava acontecendo. E iria detê-lo.
Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Quando estendeu a mão para tirar a foto do quadro, ouviu uma porta se abrir atrás dele. Cash se afastou e fingiu que verificava um cupom de ração para cachorro.
Enfiou as mãos nos bolsos, esperando a pessoa empurrar o carrinho pela porta. Quando não ouviu mais nenhum passo, concentrou-se novamente no panfleto.
Havia uma cópia do folheto na casa dele, também. Guardada num arquivo. Mas vasculhar a escrivaninha do sr. Fuller não parecia certo. Especialmente depois de Cash já ter sido pego fazendo isso uma vez. Ele estava com os Fuller havia apenas alguns meses, algumas semanas antes do seu aniversário de 15 anos, quando viu a sra. Fuller, com lágrimas nos olhos, olhando para o arquivo aberto. Mais tarde, quando ela já confiava nele a ponto de deixá-lo sozinho em casa, Cash descobriu o que a fizera chorar.
Ele não tinha ouvido a sra. Fuller entrar em casa aquele dia. No segundo em que ela o viu, Cash teve certeza de que ela ia gritar, depois ligar para dizer aos assistentes sociais que viessem buscá-lo. Outras três famílias já o tinham devolvido. Mas a sra. Fuller puxou uma cadeira e colocou-a ao lado dele, próximo à escrivaninha do marido, e perguntou o que ele estava fazendo.
Cash foi sincero:
— Eu queria saber o que a fez chorar.
Ela suspirou, um suspiro que era um gemido baixo misturado com uma expiração longa, e ele logo descobriu que aquele suspiro era a marca registrada da sra. Fuller, nos momentos em que estava infeliz. Depois ela contou a história toda. E chorou também enquanto a contava.
A porta do Walmart se fechou. Ele pegou o papel pregado no quadro, dobrou-o, guardou no bolso e saiu de lá. De volta ao carro, ligou o motor e verificou as horas. Droga. Ele tinha cinco minutos para chegar em casa antes da sra. Fuller.
E se ela chegasse lá antes dele, ficaria chateada.
Embora Cash não pudesse ser a pessoa que os pais adotivos queriam que fosse, ele se esforçava para não decepcioná-los. Dirigiu como se fugisse do próprio diabo. Sentado ereto, tomava ainda mais cuidado porque estava enxergando apenas com um olho. Mas ele provavelmente conseguiria dirigir até com os olhos vendados. Tinha muita prática.
Outra coisa que seu pai havia lhe ensinado. Com apenas 9 anos, ele era o motorista de fuga quando o pai roubava lojas de conveniência. Você tem que ganhar seu próprio sustento, garoto. Fazia sete anos que ele não via o rosto do homem, mas a voz dele ainda ecoava em sua cabeça.
Cash estacionou na garagem, destrancou a porta da frente e digitou o código de segurança. Correu pelas escadas, saltando dois degraus por vez, entrou no quarto e escondeu o folheto em sua escrivaninha. Depois correu de volta até o andar de baixo, pegou duas aspirinas, mastigou-as e se deixou cair no sofá. Félix, o velho gato malhado amarelo, miava para que ele o pegasse no colo. O pobrezinho já estava cego como um morcego. Ele pegou o bichano e lhe deu umas palmadinhas de leve. Mal tinha se reclinado no sofá quando a porta se abriu.
— Cash? — Era a voz da sra. Fuller, quase melodiosa, chamando-o.
— Estou aqui, na sala de estar — gritou ele.
Ela entrou e ele a viu franzir a testa.
— Ai, meu Deus!
Ela se aproximou e levantou o queixo dele com dois dedos. Cash tentou não se encolher. Não que tivesse aflição que o tocassem. A sra. Fuller tinha carta branca. Mas é que ele sentia dor quando ela o tocava. Não uma dor física, uma dor emocional...
— Acho que você precisa de um raio X. Só para...
— Não. — Ele se afastou. — É só um olho roxo. Já estou acostumado.
Lá veio o suspiro.
— Você pôs gelo?
— Por alguns minutos na escola.
Ela correu para a cozinha e voltou com um saco de ervilhas congeladas. Sua expressão era determinada. Ele suspeitou que a história do raio X não seria esquecida.
— Eu não vou ao hospital. — Ele pegou as ervilhas.
Um suspiro triste saiu dos lábios dela novamente e ela se sentou na cadeira em frente ao sofá. Eles se olharam nos olhos. Cash a comparou com a garota nova da escola. Havia muitas semelhanças. Mas não a cor dos olhos. Os olhos da sra. Fuller eram azuis. A garota tinha olhos castanhos com manchas verdes e douradas.
A sra. Fuller deu uma palmadinha nos joelhos e se balançou na cadeira algumas vezes. Isso geralmente significava que ela tinha algo na cabeça e queria conversar. Alguma coisa séria.
Ele esperou.
— A srta. Anderson me disse o que você fez. Defendeu aquele garoto.
Ele assentiu e continuou esperando. Não devia ser só isso.
— Estou orgulhosa de você, mas preferia que o tivesse defendido sem brigar. Você já sabe fazer melhor do que isso. — A decepção brilhava nos olhos dela. Cash se encolheu.
Quando apanhava do pai não doía tanto. Ele detestava — odiava — decepcionar a sra. Fuller
Cash tinha dezenas de justificativas na ponta da língua. Eu tentei ir embora. Ele bateu primeiro. Mas já fazia muito tempo que ele tinha aprendido que não adiantava se defender. As pessoas pensavam o que queriam.
— Desculpe — ele balbuciou.
— Você não pode ser expulso de outra escola.
E isso não foi culpa minha também. Cash levantou o queixo.
— Eles disseram que vão me expulsar?
— Não. Quando liguei de volta, a srta. Anderson deu a entender que você não vai ser punido. Vários alunos se manifestaram e defenderam você.
— Vários? — Ele tinha ficado chocado ao saber que um aluno o defendera. Então se lembrou de ter visto Jack quando o treinador interrompeu a briga. Ele e Jack não eram grandes amigos, mas no ano anterior tinham feito um projeto de ciências juntos e realmente haviam se dado bem.
— Foi isso que ela disse. Mas, se acontecer de novo, eles não vão facilitar para você.
Ele assentiu novamente.
— Pode voltar ao trabalho. Estou bem.
— Tudo bem. Minha assistente vai atender meus pacientes de hoje.
Mas não estava tudo bem. Os Fuller não mereciam ter que resolver as encrencas em que ele se metia. Perder a filha já era um fardo pesado demais. O que eles mereciam era ter a filha de verdade de volta. Mas qual era a probabilidade de Emily Fuller não estar sob sete palmos de terra?
Isso não impediria vigaristas de quererem tirar vantagem dos Fuller. Ele sabia. Havia convivido com um deles. Tinha sido um deles. Ele e o pai haviam cometido uma fraude semelhante certa vez, depois que o pai vira a foto de uma criança parecida com Cash num quadro de pessoas desaparecidas. O pai tinha feito uma breve pesquisa. A pobre mulher que havia colocado a foto no quadro estava sempre almoçando no parque perto do trabalho dele. Eles foram até lá todos os dias durante uma semana. O trabalho de Cash era encará-la. Chamar a atenção dela. Fazê-la morder a isca.
A mulher finalmente mordeu. Aproximou-se deles.
O pai dele era bom. Desempenhou bem seu papel. Contou a triste história de que não sabia o sobrenome de Cash. Que o garoto era o filho da irmã que ele perdera havia muito tempo — embora ele nunca soubera que ela havia tido um filho. Ela falecera e deixara o garoto para ele criar.
Demorou mais um dia para a mulher compartilhar sua própria história triste com eles. Só que a dela era verdadeira. Ela havia dado à luz um menino, que tinha desaparecido aos 4 anos de idade. Cash se parecia muito com ele.
— Venha cá — a mulher pedira a ele. Ela tinha lágrimas nos olhos. Com as mãos trêmulas, tocou no rosto de Cash. Ele se lembrava de ter se retraído um pouco. — Você é David? Você se lembra de mim? É por isso que você estava me encarando?
— Eu não sei — ele mentiu. Mentiu como o pai o obrigara a fazer. Então o pai o cutucou no ombro para lembrá-lo de terminar de falar o que haviam combinado. Tinha 6 anos de idade e já tinha que ganhar seu sustento. — Você tinha um cachorro preto com uma mancha branca no focinho?
A lembrança de como aquela mulher estava desesperada ainda assombrava Cash às vezes. Ela não hesitara: dera ao pai dele o dinheiro para que fizessem o teste do DNA de Cash. Claro que nunca fizeram. Naquela noite, eles fugiram de carro da cidade de Little Rock, em Arkansas, com 5 mil dólares no bolso. Provavelmente, o dinheiro que a mulher economizara a vida toda.
— Aquilo foi errado! Eu nunca vou fazer isso de novo — Cash disse ao pai. Aquele havia sido seu primeiro olho roxo. Tinha doído. Mas ele estava certo de que tinha doído ainda mais na mulher.
Cash nunca deixaria que isso acontecesse aos Fuller.
Ele precisava encontrar respostas.
— Oi, querida. Como foi na escola?
Minha mãe está me esperando quando entro em casa aquela tarde. Achei que ela ainda estaria procurando emprego. Não estou a fim de ser interrogada.
— Foi tudo bem — digo.
— Lindsey apresentou você para todo mundo?
— Sim. Conheci Jamie, a melhor amiga dela. Ela é legal. — E ela era mesmo, mas notei que não parou de me contar histórias sobre Lindsey e ela, como se tentasse provar alguma coisa. Como se quisesse deixar claro que eu sou a garota nova e Lindsey é a melhor amiga dela.
Não me importo com isso. Faltam apenas nove meses para eu me formar.
Percebo que minha mãe está esperando que eu conte mais.
— Lindsey quer que eu saia com elas mais tarde. Jamie vai à casa dela. — Se eu estivesse em El Paso, estaria com Sandy e Kara. Estaríamos comparando as nossas experiências na escola, nossos professores, os caras que parecem mais gatos este ano do que no ano passado.
Mas não estou em El Paso. Estou aqui. E por isso não vou dar uma de idiota; vou me contentar em ser a segunda melhor amiga de Lindsey e agradecer por isso.
— Como foi seu dia? — pergunto. — Encontrou um emprego?
O sorriso dela se amplia e é muito bom vê-la sorrir.
— Encontrou?
— Sim, fui ao consultório do meu médico, o dr. James, meu oncologista. Há dois médicos no consultório. Eu disse a ele que tinha diploma de enfermagem e ele praticamente me ofereceu um emprego. Eles têm que checar meus antecedentes e preciso ser entrevistada por outro médico, mas parece que consegui a vaga.
Ela está sorrindo, feliz. Eu a abraço.
Quando nos separamos, ainda está sorrindo.
— Vai dar certo. — Ela segura minhas bochechas como fazia desde que eu era uma garotinha. — Nós aqui. Vai dar certo.
Concordo, querendo acreditar. E vendo-a feliz, quase acredito.
No dia seguinte, eu me recuso a andar pela escola com uma escolta. Tenho certeza de que já sei me localizar. Ledo engano. Me perdi e chego atrasada para a segunda aula, de Literatura Americana, sentindo como se tivesse uma placa de neon piscando nas minhas costas com a inscrição ALUNA NOVA.
Infelizmente, aquela sensação de ser observada nunca desaparece. E eu vejo quem está olhando: Cash. Ele está começando a me assustar. Conto os minutos para a aula terminar.
No intervalo entre as aulas, vou ao meu armário para trocar de livros. Estou com os dois braços ocupados quando sinto alguém ao meu lado. Meu coração vai parar na garganta. Acho que é Cash.
Errado.
Olho para cima e encontro um par de olhos azul-claros sedutores, que pertencem ao garoto bonito que notei na aula de Literatura Americana.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? Precisa de um encontro na sexta à noite?
Eu retribuo o sorriso. Meu coração bate de emoção.
— Sou David Drake.
— Eu sou... — Meu nome gruda na língua enquanto tento descobrir onde ouvi o nome dele antes. Então — pronto! —, eu me lembro. E não é nada bom.
David Drake é o novo crush de Lindsey. Merda.
— Eu... não estou interessada. — Eu me afasto para recuperar meu espaço e me concentro no meu armário.
— Pensei que seu nome era Chloe.
— É sério. — Olho para ele outra vez, desta vez sem sorrir.
O sorriso do garoto continua intacto.
— Quem sabe você comece a se interessar com o tempo...
— Sou comprometida.
— Deixou um namorado na cidade de onde veio?
— Sim — minto, jogando o cabelo para trás. — Estamos praticamente noivos.
Ele coloca a mão direita contra o peito.
— Como assim? Você acabou de partir meu coração.
Balanço a cabeça e tenho uma ideia. Antes que eu possa concluir se a ideia é boa ou ruim, conto a ele.
— Sabe, ouvi falar de uma garota que gosta de você.
— Quem?
— Não posso dizer, mas... uma dica é que você a convidou para sair no ano passado.
Ele franze a testa.
— Sara?
Eu não respondo.
— Lisa?
Eu franzo a testa.
— Katie? Paula? Anna? Lacy? Carol? Jackie? Hannah?
Não estou acreditando...
— Estou brincando — diz ele. — Como só convidei duas garotas para sair e uma delas vem à escola com você, eu sei quem é. Mas achei que ela estivesse com Jonathon.
Eu me preocupo, achando que deveria ter ficado de boca fechada, então só encolho os ombros e me viro para me afastar. Por que sempre quero consertar as coisas?
Dou apenas alguns passos quando vejo Cash novamente, dois armários depois do meu. Ele não está olhando para mim, mas aposto o meu melhor sutiã que ele estava ouvindo a minha conversa com David.
Então vejo Jamie do outro lado do corredor. Ela desvia o olhar rápido e vai embora. Eu sei que ela viu David falando comigo.
Droga! Provavelmente está indo contar para Lindsey agora mesmo.
Cash esperou até o sr. Alieda deixar a sala de aula, para dar uma rápida corrida ao banheiro e entrar no laboratório de ciências. Correu para os dois terrários encostados à parede. Os alunos começariam a chegar a qualquer momento. Um tanque continha uma jiboia, o outro tinha comida viva para a cobra. Abrindo a mochila vazia, ele tirou dali uma luva.
O camundongo ficou de pé nas patas traseiras e olhou para Cash, mexendo os bigodes.
— Vamos fazer um acordo? Eu ajudo você e você me ajuda. Você tem uma chance de conquistar a liberdade. E eu consigo... respostas. Talvez.
Cash pegou o camundongo com delicadeza e colocou-o na mochila vazia. Depois de recolocar a tampa no terrário, ele foi para a secretaria.
Não era o melhor plano que ele já tinha engendrado, mas era um plano.
Naquela manhã, ao agendar uma reunião com a srta. Anderson, ele tinha ficado em dúvida quanto ao melhor horário até descobrir que ela almoçava entre onze e onze e meia. Perfeito. Era naquele horário que ele almoçava também.
Tudo o que ele precisava era de três minutos no escritório dela. Três.
Ele poderia esperar e voltar à noite, mas e se fosse pego...? Invasão dava cadeia. Liberar um camundongo indefeso era uma ofensa perdoável.
Ao entrar na secretaria, ele viu três garotas esperando para falar com a funcionária da recepção. Aquilo podia funcionar.
Ele ficou atrás das meninas, abriu a mochila e colocou o camundongo no chão. O bichinho demorou cerca de quatro segundos para correr em busca da liberdade.
Voltando a fechar a mochila, ele disse:
— Isso é um camundongo?
Assim como ele tinha planejado, reinou o caos. O camundongo correu para baixo do balcão.
A recepcionista gritou e correu para fora da secretaria. Enquanto as meninas continuavam gritando, Cash entrou na secretaria, olhando para o chão como se procurasse o roedor.
Uma vez no corredor, ele correu para a porta da srta. Anderson e pegou, no bolso, seu clipe de papel. Mas encontrou a porta aberta. Ótimo. Entrou no escritório, fechou a porta e foi direto para a mesa onde tinha visto o arquivo de Chloe Holden.
Com os ouvidos atentos para ouvir qualquer movimento do lado de fora, ele abriu a pasta. Não a leu. Faria isso mais tarde.
Tirou a primeira foto, virou o papel e tirou a segunda. Mais uma página virada e fechou o arquivo, devolveu-o ao topo da pilha e virou-se para sair. Abriu a porta para ouvir se vinha alguém.
Vozes soaram. Ele reconheceu a voz da srta. Anderson.
Então ouviu o salto alto das mulheres batendo no assoalho do corredor.
Merda. Ele tinha sido pego.
4
Cash! — ela exclamou, parando de repente ao entrar na sala.
— Olá. — Ele se sentou na cadeira em frente à mesa dela e se forçou a relaxar. Pareça inocente. Às vezes o único jeito é fingir até parecer que é verdade.
— O que... você está fazendo aqui? — a srta. Anderson perguntou.
Ele se virou e olhou para ela.
— Tenho horário marcado.
Ele manteve a expressão sob controle, mesmo quando o pânico deixava as palmas de suas mãos suadas. Sinceramente, se aquilo poupasse os Fuller da decepção, não se importava de ser pego.
Ela olhou para o relógio na parede.
— Isso é daqui vinte minutos.
— Não foi o que me disseram na secretaria hoje de manhã.
Ele fez uma cara de quem demonstrava confusão. Eles podem não acreditar no que você diz, mas vão quase sempre acreditar no que veem.
— Sinto muito. — Ele se levantou. — Volto depois. Eu só... quando entrei, eu estava alguns minutos atrasado e não havia ninguém no balcão da frente... Não queria deixá-la esperando. Então vim para cá. Achei que a senhora pudesse estar no... banheiro ou algo assim. — Ele baixou os olhos como se estivesse envergonhado.
— Não. Eu fui... à sala dos professores. — Os ombros dela relaxaram. Ela estava acreditando. Seus batimentos cardíacos se normalizaram. Cash não queria ter que ouvir a sra. Fuller suspirar hoje.
Ele deu um passo em direção à porta.
— Ok, vou embora e...
— Não. Tudo bem. Eles devem ter informado o horário errado. Esse é o meu horário de almoço.
— Bem... — Ele não via a hora de ler o arquivo. — Não quero atrapalhar o seu almoço...
— Não, fique. Já almocei.
Cash se sentou novamente. A srta. Anderson se acomodou atrás da escrivaninha. Quando notou o jeito como ela estava olhando para ele, o pânico aumentou novamente. Não estava olhando como se ela soubesse que ele estava mentindo. Ou como se tivesse uma ideia do que Cash estava fazendo. Mas como se quisesse corrigi-lo.
Quantas vezes ele já havia se sentado diante de um conselheiro ou psicólogo e eles tinham tentado entrar em sua cabeça? Como se pensassem que, convencendo-o a se abrir, poderiam torná-lo uma pessoa melhor. Eles não podiam.
Ninguém poderia mudar seu passado. Ninguém poderia mudar o que já tinha acontecido. Ou as coisas terríveis que ele já tinha feito. Falar sobre isso só piorava.
— Você sabe por que eu queria falar com você?
— Imagino que seja por causa da briga — Cash disse.
— Bem, sim, mas eu também queria só... ver se você está bem. — Ela se concentrou no rosto machucado dele. — E conversar.
Bem, já ia começar o sermão. Ele respirou fundo.
— Srta. Anderson, não quero parecer desrespeitoso. E se quiser falar comigo, me dar uma punição pela briga, vou ficar sentado aqui e ouvir. Mas, na verdade, não quero falar sobre outras coisas.
Ela olhou para baixo como se quisesse organizar os pensamentos.
— Ok — a srta. Anderson disse, mas levou alguns segundos para falar outra vez. — Me contaram o que realmente aconteceu naquela briga. Eu sinto muito.
— Eu também — disse ele.
— Praticar bullying é proibido e ponto final. O que Paul fez é inaceitável. Me disseram que você tentou ir embora.
Ele deu de ombros como se não fosse importante, mas se sentiu compreendido. Não se sentia assim com muita frequência.
— Mas não acho que você saiba quanto é forte. Tenho certeza de que não pretendia bater nele com tanta força.
Sim, eu pretendia. O cretino tinha dado um soco em seu olho. Cash queria machucar aquele filho da puta. Mas não disse isso.
A srta. Anderson se remexeu na cadeira.
— Graças a Deus, o nariz de Paul não estava quebrado.
Ele teve que se esforçar para esconder a decepção.
— A questão é que eu sei como são os adolescentes. E eu sei que ele bateu primeiro. Mas precisamos garantir que isso não aconteça novamente.
— Eu não vou dar mais na cara dele — disse Cash.
— Mas e se ele der na sua?
Cash não respondeu. Não podia. Dizer que ele não se defenderia seria mentir. E as pessoas podiam não acreditar, mas ele não gostava de mentir.
— Veja. Em dois meses, você fará 18 anos e Paul ainda vai ter 17. Se acontecer outra briga, isso pode acarretar graves consequências para você.
Com o ar preso nos pulmões, Cash perguntou:
— Então você quer que eu saia da escola? — Isso era exatamente o que os Fuller não queriam. O objetivo deles era que Cash se formasse no ensino médio.
Os olhos dela se arregalaram.
— Não! Só quero que você esteja ciente disso, para que assim possa evitar qualquer complicação com a Justiça.
Ele assentiu.
— Vou me lembrar disso. Posso ir agora?
Se a expressão dela indicava alguma coisa, a srta. Anderson tinha percebido a emoção no tom de voz dele.
— Só mais uma coisa.
Cash se preparou para ouvir.
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha 11 anos, por causa de um motorista embriagado. Meus pais é que estavam bêbados. Minha avó não achou que pudesse me criar. Cresci num lar temporário.
Isso não era o que ele esperava ouvir.
— Eu sinto muito.
Cash estava sendo sincero, mas ainda não queria se abrir com ela. Também não queria saber a história dela. Não queria chegar perto de se preocupar com mais ninguém. Preocupar-se com os Fuller já era ruim o suficiente.
— Eu também — disse a srta. Anderson. — O que estou tentando dizer é que sei o que é crescer no meio do caos. Se você quiser conversar, sabe onde me encontrar.
Sim, farei isso quando o diabo começar a servir bolo de sorvete no inferno.
— Vou me lembrar disso. — Ele se levantou e saiu da sala.
Entro no refeitório. Os cheiros, a multidão de estranhos e o burburinho me fazem querer sumir dali.
Olho em volta e todo mundo está batendo papo. Eles não percebem todo o barulho, porque fazem parte dele. Eles não veem estranhos; veem amigos.
Cinco minutos depois, estou me sentindo sozinha e deslocada enquanto como uma pizza que parece feita de papelão.
É nesse momento que alguém se senta ao meu lado. Lindsey. Ela está de braços cruzados. Parece aborrecida. Comigo.
No mesmo instante, eu sei por quê. Ela ouviu falar da visitinha de David ao meu armário.
— Não gostei dele — já fui dizendo.
— Tem certeza?
— Tenho. Gosto de garotos de cabelos pretos e que fazem o tipo mais caladão. — Se eu pudesse excluir a última parte, faria isso, porque minha descrição pareceu demais com a do cara de olho inchado que anda me causando arrepios ultimamente.
Ela olha para mim.
— Mas não importa. David gostou de você.
— Não. Ele nem me conhece. Sou apenas a aluna nova e isso, para os caras, significa apenas “carne fresca”. Ou, como minha mãe costuma dizer, sou a “vaca nova no pasto”. Os touros veem uma vaca nova no pasto e logo vão atrás dela. Começam a bufar, remexer a terra e babar.
Lindsey se acomoda na cadeira, parecendo mais conformada.
— Eu não quero um touro que fica atrás das vacas novas. Já fiz isso antes.
Eu não pretendia desmotivá-la.
— Você não pode julgar David. Ele não é o seu touro ainda. Depois que você pegá-lo pelos chifres, marcar seu nome no traseiro dele e ver que ele começa a atender quando você o chama, aí sim você vai poder levá-lo para o matadouro caso ele persiga uma vaca nova. Pode vendê-lo como comida de cachorro e fazer picadinho com os testículos dele.
Lindsey solta uma risada.
— Picadinho com os testículos dele já é demais.
— Ei, esse é o sonho da minha mãe. Ver os cojones do meu pai flutuando no formol e meu cachorro dando uma mordida no traseiro dele.
Nós duas rimos, mas logo o sorriso de Lindsey se dissipa.
— Então por que fazemos isso? Por que nos apaixonamos se todos os caras são touros babões perseguindo as vacas novas?
— Porque talvez exista um ou dois que não sejam assim — digo, sentindo a mágoa de ser filha de um homem com uma queda por vacas novas aumentar no meu peito, mas Lindsey e eu só compartilhamos um sorriso triste.
E nesse instante algo me ocorre. Numa questão de minutos, deixei de ser uma alienígena num mundo estranho para fazer parte dele. Estou criando raízes.
Minha amizade com Lindsey está passando do estágio em que estamos nos conhecendo e indo para a parte onde nos tornamos aliadas, rindo de coisas que não são realmente engraçadas para ajudar uma à outra.
Parece bom, mas há uma parte de mim que quer tirar os pés da terra e cortar as raízes, porque sei que vou sofrer quando tiver que deixar esta vida e ir para a faculdade. Vai doer assim como doeu quando fui arrancada de El Paso.
Paro de rir e Lindsey segue o exemplo. Solto um suspiro. Lindsey olha para mim.
— A sua mãe realmente disse que quer fazer picadinho com os testículos do seu pai? — Ela não está mais dizendo isso como se fosse engraçado. Ela está dizendo como se soubesse que isso me machuca.
Eu faço que sim com a cabeça.
— A sua mãe não costuma brigar com seu pai?
Ela pensa um pouco.
— Às vezes, mas... Eles se divorciaram há quinze anos. Provavelmente brigavam muito, mas eu não me lembro.
Sei que ela está dizendo isso apenas para que eu me sinta melhor.
— Merda... — diz Lindsey.
— O que foi? — pergunto.
— É Jonathon. De camiseta preta. Paquerando a garota ali.
Lembro-me de tê-lo visto algumas vezes naquele verão.
Ele tem cabelos castanhos e é bonito, mas na verdade... nem tanto.
— David é mais gato.
Cash conseguiu permissão para visitar a biblioteca durante o horário de estudos. Os celulares eram proibidos ali, mas, no ano anterior, a bibliotecária não dava muita atenção a isso. Se o aluno fizesse silêncio e não tumultuasse o ambiente, ela o deixava em paz. Conhecer as regras antes de quebrá-las era outra lição que Cash aprendera com o pai.
Ele pegou as fotos do arquivo em seu celular e aumentou o zoom para que pudesse ler sobre Chloe Holden.
A primeira informação que coletou foi o aniversário dela: 18 de novembro. Emily tinha nascido em 6 de novembro. Mas, se a pessoa é sequestrada, é claro que vão mudar a data de nascimento dela. Segunda informação: ela era inteligente. Suas notas eram bem mais altas do que as dele. Mas, se ela estivesse aplicando um golpe, teria mesmo que ser alguém bem esperto.
Então ele descobriu que os pais dela tinham se divorciado recentemente. E se eles fossem de fato os pais dela?
Ele leu uma anotação da srta. Anderson. Mãe, JoAnne Holden, tem câncer. Bem, isso é o que diziam. Cash “também tinha câncer”. O pai dele raspava a cabeça e as sobrancelhas do filho e postava fotos dele numa página do GoFundMe, em que as pessoas levantavam fundos para realizar seus sonhos ou pagar seus tratamentos de saúde, entre outras coisas.
No que dizia respeito a seu pai, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para ganhar uma grana ilícita. Cash tinha até obrigado Cash a seguir uma dieta rigorosa no mês anterior ao golpe, para parecer doente.
Cash leu algumas anotações da escola antiga de Chloe. Ela jogava futebol.
Essa era a isca de que ele precisava. Cash abriu o Google para encontrar o nome do time de futebol da antiga escola dela. Encontrou e foi pesquisar as imagens.
Só precisou de cinco minutos para clicar nos links e encontrá-la. Ele ficou ali, contemplando as fotos. Das três garotas na imagem, Chloe — se é que esse era o nome verdadeiro dela — era a que mais se destacava. Ela era a mais alta, a mais curvilínea e a mais gata.
Não que ele já não tivesse notado. Droga, ainda se lembrava de como era a sensação do corpo dela contra o dele. Mas Cash podia apreciar uma imagem com mais atenção do que pessoalmente. Ou de um jeito que ele não ousaria fazer ao vivo.
Muitas vezes, Chloe o pegara olhando para ela. Nem todas as vezes ele estava olhando com cara de quem olha uma garota. Às vezes, Cash a comparava com a sra. Fuller. E, caramba, ele via ainda mais semelhanças observando aquelas fotos!
Clicando na imagem, ele procurou pela conta de Chloe no Instagram.
Encontrou uma, mas ela não postava nada fazia três meses.
Se aquilo era um golpe, ela teria mantido as postagens, não teria? Ou talvez não.
As imagens e postagens que ele podia ver pareciam reais. Ele verificou as fotos. Havia várias dela com um cara, Alex. Eles se abraçando. Se beijando. Parecendo felizes. Numa delas, Chloe estava sentada no colo dele.
Cara sortudo...
Ele se lembrou do que ela tinha falado a David Drake sobre o namorado: estamos praticamente noivos. A mentira transpareceu na voz dela e na linguagem corporal.
Ele viu que Alex tinha deixado comentários numa das fotos: “Você está linda, mozão”. Ele clicou no link do perfil dele, esperando que as fotos não fossem privadas. Não eram. E... Ha, ha! Ali estava. A verdade. Uma foto do cara com outra garota. Postada na semana anterior. Ele voltou a olhar as fotos antigas e encontrou uma com Chloe no treino de futebol. Então, parecia que ela realmente era de El Paso. Isso não descartava um golpe. Ele tinha só arranhado a superfície.
5
O sinal tocou, na segunda-feira. Agora já completei uma semana na nova escola. Eu ainda não gosto dela, mas odeio menos. Ou talvez esteja apenas me acostumando. Me acostumando a ser a aluna nova. Me acostumando a ver Cash Colton me encarando como se eu tivesse comido o último biscoito do pacote.
Me acostumando a não ter pai. Porque ele nem me telefonou.
Estou quase na porta da escola quando percebo que esqueci meu livro de História no armário. Volto para pegá-lo e encontro Lindsey.
— O que houve? — pergunto.
Lindsey morde o lábio inferior.
— Eu vou... Vou para casa com Jamie. Ela quer conversar sobre o ex-namorado.
Eu sabia que o plano de Lindsey para que nos tornássemos as três mosqueteiras estava condenado quando os planos que tínhamos para o fim de semana caíram por terra. É por isso que começar a estudar numa escola nova na última série do ensino médio é uma droga. Você não pode simplesmente se tornar amiga de alguém. Você precisa ser aprovada pelas amigas dessa pessoa.
— Vejo você mais tarde. — Eu até sorrio.
— Sim. — Ela se vira, depois volta a olhar para mim. — Foi mal. Eu cheguei a perguntar se você podia ir...
— Tudo bem. Vocês duas têm aula de História e ficaram todo o verão sem se ver. Entendo. De verdade.
Ela se afasta, ainda parecendo culpada. Me sinto mal por fazê-la se sentir assim.
Quando pego meu livro e saio novamente, o estacionamento está vazio. A maioria dos carros já faz fila na saída para deixar o pátio. Buzinas soam. As risadas vazam pelas janelas e fazem com que eu me sinta ainda mais sozinha.
Pego as chaves do carro na mochila e clico o botão de abrir as portas. Quando me sento atrás do volante, percebo que meu carro está diferente. Algo parece estranho, fora de prumo. A mesma sensação que eu tenho dentro de mim.
Eu saio do carro e meu olhar vai direto para o pneu traseiro. Está murcho.
— Merda!
Pego o celular para ligar para o meu pai. Então paro. Meu pai não está mais disponível para me ajudar com essas coisas. E — pronto! — eu me lembro de que, logo depois que tirei minha carteira de motorista e antes do caso do meu pai, ele me ensinou a trocar pneu. Ele fez de conta que era um jogo e cronometramos para ver quem conseguia trocar mais rápido. Eu venci e ganhei dez dólares. Na verdade, venci três vezes. Acabei ganhando trinta dólares.
Agora aquela lembrança já não parece mais tão boa, porque eu me pergunto se meu pai já sabia que estava indo embora de casa. Sabia que eu não poderia mais contar com ele.
Evitando sentir pena de mim mesma, concentro-me no lado positivo: pelo menos eu sei trocar meu próprio pneu. Largando a mochila no banco, abro o porta-malas.
— Precisa de uma mãozinha?
Eu prendo a respiração. Cash está encostado num jipe estacionado ao meu lado, como se já estivesse há algum tempo parado lá. Como eu não o vi?
— Posso ajudar. — Nenhuma acusação em seus olhos ou no seu tom de voz agora. Pelo menos acho que não. Nunca tive tanta dificuldade para interpretar uma pessoa... — ou será que nunca encontrei alguém tão bom em camuflar emoções?
— Não. Posso fazer isso sozinha. Obrigada. — Esse cara me deixa nervosa, por várias razões.
— Eu tenho uma coisa para consertar pneus instantaneamente. Só vai demorar um segundo.
— Que coisa? — pergunto.
— Chama Fix-a-Flat. Infla o pneu e sela qualquer vazamento. Você vai poder dirigir até um borracheiro.
— Não esquenta. Tenho um estepe.
Ele se aproxima. Borboletas voam no meu estômago.
— Você sabe trocar pneu? — Ele enfia a mão direita no bolso do jeans.
Eu levanto o queixo.
— Você não acha que as garotas conseguem trocar um pneu?
Ele parece pensar na minha pergunta.
— Acho que a maioria das garotas não quer trocar pneus.
— Bem, esta garota aqui não se importa.
Inclino-me no meu porta-malas e afrouxo a porca para pegar o estepe.
Não o ouço se mexer. Será que ele está pensando em me observar? Irritante. Mas tudo bem. Talvez eu tenha coragem de fazer a ele algumas perguntinhas.
— Você é nova aqui? — Cash diz.
— Sim. — Pego o pneu e o deixo cair no chão. Então tiro o macaco do carro.
— De onde você é? — ele pergunta.
Coloco o macaco no chão e pego a chave de roda. Só então olho para ele e reúno coragem.
— O que você quis dizer no posto de gasolina, sobre eu querer fazer alguma coisa?
Ele não parece chocado com a pergunta.
— Você tinha razão. Você parece alguém que eu conhecia.
— Mas, obviamente, você descobriu que não sou essa pessoa, então por que ainda continuou me encarando?
Os olhos verdes dele se estreitam e seus lábios se abrem num sorriso incrível.
— Por que os caras geralmente encaram as garotas?
— Porque são uns pervertidos? — pergunto, me lembrando do bate- papo com Lindsay sobre touros e vacas.
Ele ri.
Eu sou pega de surpresa pelo som da risada dele e, por incrível que pareça, ele parece surpreso também. Como se não costumasse rir muito.
Ficamos em silêncio e olhamos um para o outro.
— Com quem? — pergunto.
— O quê?
— Com quem eu me pareço? — Eu me ajoelho para colocar o macaco no lugar.
— Ela já morreu. — Sua voz parece solene.
Eu olho para ele.
— Sinto muito.
— Eu também.
Cash se ajoelha ao meu lado para ver onde eu encaixei o macaco, como se pensasse que fiz tudo errado. A perna dele roça na minha. É um gesto inocente, mas parece íntimo. Seu cheiro, que lembra grama recém-cortada, enche meu nariz e se sobrepõe ao cheiro dos pneus oleosos.
— Então, o que trouxe você aqui? — ele pergunta.
Minha mente está ocupada apreciando o perfume dele, por isso demoro um segundo para responder.
— O que trouxe você aqui? — rebato, tentando não pensar no formigamento na minha perna, provocado pela sua coxa musculosa, coberta pelo jeans.
A sobrancelha esquerda sobre o olho roxo se levanta e ele cerra a mandíbula.
— Você não gosta muito de responder perguntas, não é? — Agora o tom é de acusação.
— Obviamente, você também não. — Encaixo a chave de roda na porca e a viro. Não vai ceder. Merda.
— Quer ajuda? — Ele se aproxima.
— Eu consigo. — Reajusto a chave e jogo todo o meu peso sobre ela, lembrando do que meu pai me ensinou. Meu peso não é suficiente. Droga. Quem quer que tenha colocado esse pneu usou toda a sua força.
— E agora? — Cash se aproxima ainda mais.
— Quê? — A minha frustração é evidente mesmo respondendo com uma única palavra.
— Quer ajuda agora? — Ele está sorrindo novamente. — Prometo não subestimar você por causa disso.
— Não tem graça — eu digo.
— Foi mal. — Os lábios dele não estão mais sorrindo, mas seus olhos estão.
Eu cedo e dou mais espaço a ele.
— Esses pneus são novinhos em folha. Não deveriam ter murchado.
Cash pega a chave de roda e, com uma volta do pulso, o músculo do bíceps se contrai sob a manga da camiseta cinza e a porca se solta.
Ele olha para mim. Mesmo com o olho roxo, seu sorriso dispara um alarme na minha cabeça. Um daqueles sorrisos tortos que saem da boca, vão direto para o meu estômago e acordam mais borboletas. O tipo de sorriso que Alex costumava me dar.
— Você já tinha afrouxado pra mim. — Ele passa para a segunda porca. Volto a assistir seus músculos se contraírem novamente. As borboletas voam como loucas.
Depois de vários segundos de silêncio, Cash me olha.
— Não consegui me entrosar muito na minha última escola.
— Ah... — Porque ele se abriu, eu faço o mesmo. — Meus pais se divorciaram.
— E Joyful pareceu o lugar ideal para morarem? — Ele continua trocando o pneu.
— Não. Minha avó morava aqui. Ela faleceu, minha mãe herdou a casa.
— Então você já morou aqui? — A pergunta parece importante para Cash, mas estou muito ocupada observando os músculos dele para pensar nisso.
— Não. — Então percebo que é mentira. Morei aqui por algumas semanas depois de ser adotada. — Quer dizer, sim, mas não me lembro.
— Como não se lembra?
— É que eu não tinha nem 3 anos de idade quando nos mudamos.
Ele para de trocar o pneu e me lança um longo olhar.
— Ok.
— Ok o quê? — Meu tom é curto e grosso.
— Ok, acredito em você.
— Mas por que acha que eu mentiria? O que há com...?
— Todo mundo conta uma mentira de vez em quando.
— Eu não!
Ele levanta a sobrancelha do olho roxo novamente.
— Você mentiu para David sobre ainda estar com Alex.
— Você estava escutando a nossa conversa?
— Confesso que sim. — O olhar dele colide com o meu.
Pressiono as mãos no asfalto.
— Como sabe que o nome do meu namorado é Alex? Não contei a David.
Ele continua removendo as porcas. A calma que demonstra me assusta. Ninguém solta uma bomba assim e volta a trocar um pneu!
— Responda! — Eu bato na perna dele com o pé.
Ele continua trabalhando.
— Dei uma olhada no seu Instagram. Suas fotos estão visíveis para o público. Você devia ter mais cuidado com isso. — Cash olha para mim, a expressão dele é insondável.
Eu franzo a testa.
— Mas como sabe que terminamos?
— Porque há uma foto no Instagram dele com outra garota. E eu não acho que você seja do tipo que aceita esse tipo de coisa.
Não sei bem como reagir a isso. Tudo está confuso na minha cabeça.
— O que você é? Algum tipo de investigador de crimes digitais? Ou um stalker?
Ele volta a se concentrar no meu pneu.
— Estou mais para investigador...
— Por que está investigando a minha vida?
— Achei que já tínhamos esclarecido isso antes.
— Porque pareço alguém que você conhece?
Cash confirma com a cabeça.
— Mas se a pessoa com quem pareço já morreu, por que você precisaria...?
— Ela tem uma irmã.
O tom com que ele fala é de alguma forma diferente. Será que está mentindo agora? Os olhos dele encontram os meus.
— Achei que ela poderia tentar prejudicar alguém que é importante para mim.
Há tanta honestidade naquelas palavras, em seu olhar, que acredito nele. Ou acho que acredito.
— Por que acredito em você às vezes e outras vezes, não?
Ele começa a desparafusar a última porca.
— Sei lá. Talvez porque tenha dificuldade para confiar nas pessoas. — Cash tira o pneu e coloca na calçada.
O tom é provocador, no entanto... Ele coloca o estepe no lugar e aperta as porcas. Abaixa o macaco e depois o retira de onde está encaixado.
Ele tem razão. Tenho dificuldade para confiar nas pessoas. É o que acontece quando a sua família entrega você para adoção e depois o pai que a adotou abandona sua mãe e decide morar com uma piranha mais nova.
— Você é difícil de entender — eu digo.
— Você também. — Cash estende a mão para me ajudar a levantar.
Eu quase a pego, mas depois me arrependo.
— Nós poderíamos resolver isso já — diz ele. — Há um lugar mais para cima, nesta rua, que serve café, chai ou qualquer outra coisa de que você goste.
Levanto-me, sem a ajuda dele, e limpo o pó das minhas mãos, passando-as no meu traseiro.
— O que acha? — ele pergunta.
Olho para Cash, minha cabeça girando.
— Não sei ainda...
6
O truque do pneu funcionou à perfeição, mas teria sido mais fácil se ela tivesse me deixado usar o Fix-a-Flat.
Ele saiu do estacionamento em seu carro e a viu fazer o mesmo. O celular dela tocou. Levantando um dedo para pedir que ele esperasse, ela atendeu.
— Não sei. Mas coloquei o estepe. Sim, apenas alguns minutos — Chloe disse. — Tudo bem. — Ela desligou e guardou o celular na mochila. — Minha mãe.
Ele quase perguntou como estava a mãe dela, mas parou a tempo.
— Você mora perto da escola? — Cash perguntou, embora tivesse conseguido o endereço dela no arquivo.
— A uns dois quilômetros. Em Oak Tree Park. E você?
— Um pouco mais longe — disse ele. — Em Stallion.
— Aquele condomínio com a estátua do cavalo e um lago na entrada? — ela perguntou.
Cash assentiu e se perguntou se ela o discriminaria por morar num bairro de classe alta. Alguns colegas de escola tinham jogado isso na cara dele no ano anterior.
Depois de entrarem na cafeteria, Chloe consultou o cardápio diante do balcão e pediu um chá de pêssego. Ele pediu uma Coca-Cola. Quando tentou pagar pelo pedido dela, ela recusou e entregou um cartão de crédito ao rapaz do caixa. Bebidas na mão, ele a conduziu até uma mesa nos fundos.
— É um lugar agradável — disse ela.
— Sim. Eu costumava lavar louça aqui aos 15, para ganhar uns trocados.
— E agora?
— Trabalho meio período numa oficina. Troco pneus e coisas assim.
— Ele sorriu. — Então, você gosta de Joyful?
— É legal. — Aquilo soou como uma mentira.
— De onde você veio?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Você não encontrou essa informação quando estava me investigando?
Ele se recostou na cadeira.
— Ok. El Paso. Você sente falta de lá?
Ela contou como as duas cidades eram diferentes. Foi uma conversa sobre banalidades, mas Cash prestou atenção em cada palavra. Depois, Chloe tomou um gole do chá e olhou para ele por cima do copo de papel.
— Agora é a minha vez.
— Sua vez?
— Você desenterrou informações sobre mim pelas minhas costas. Eu vou fazer da maneira correta e perguntar.
— Então você gosta de fazer tudo da maneira certa, hein? — ele disse, tentando parecer casual e mudar de assunto.
Ela não respondeu. E ele teve a sensação de que Chloe ainda estava refletindo sobre a coisa toda do Instagram.
Cash odiava perguntas, mas conhecia bem esse jogo, e se não dissesse alguma coisa, ela não abriria mais a boca.
— Ok. O que você quer saber?
Ela olhou para o chá como se estivesse elaborando uma lista de perguntas mentalmente.
Cash se perguntou o que ela já sabia sobre ele. Muitas questões da vida particular dele já eram do conhecimento de todos.
Cash se lembrou de Paul chamando-o de garoto adotado, como se fosse alguma coisa de que devesse se envergonhar. Mal sabia Paul que ele tinha muito mais vergonha da vida que levava antes de entrar para o programa de adoção do governo.
— Por que você não se entrosou na antiga escola?
Ele encolheu os ombros.
— Os alunos eram filhinhos de papai. Achavam que não podiam ser responsabilizados pelas suas ações. E a direção da escola parecia pensar o mesmo.
Ela correu um dedo pelo copo.
— Então, o que o fez sair? — Ela olhou bem nos olhos dele, como se procurasse a verdade.
Sim. Ele conhecia muito bem esse jogo. Diga algo pessoal. Vão achar que te conhecem e responder às perguntas sem criar caso. Normalmente, era a essa altura que ele inventava alguma coisa. Mas, por algum motivo, não sentia vontade de fingir.
Os ombros dele ficaram rígidos.
— Não saí da escola. Fui expulso.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você fez?
Ele já devia estar preparado para essa reação, mas isso ainda lhe dava nos nervos.
— Por que você já concluiu que eu fiz alguma coisa errada?
Ela franziu a testa.
— Porque você disse que foi expulso. Ninguém é expulso por nada.
— Certo. Mas você supôs que a culpa foi minha.
Ela olhou para Cash. Seus instintos lhe diziam que ele estava revelando muito mais do que pretendia.
— Não estou supondo nada. Estou perguntando.
Ele hesitou, contrariado por não estar mentindo, mas sem poder voltar atrás agora.
— Você quer a verdade? Ou quer que eu ofereça uma versão mais bonita?
— A verdade. — No entanto, a maneira como ela se afastou na cadeira revelou que preferia a versão mais bonita.
Cash deu a ela o meio-termo:
— Três jogadores de futebol da minha antiga escola estavam tirando vantagem de uma garota. Eu dei um fim à brincadeira deles. Quando terminei, um cara estava com o maxilar quebrado.
Chloe perdeu o fôlego.
— Era sua namorada?
— Não. A garota não dava a mínima para mim. O que deveria significar que eu não dava a mínima para ela. Mas... não era esse o caso. E os caras mentiram e disseram que eu apareci do nada, querendo briga.
— Mas e a garota? Com certeza, ela...
— Negou tudo à polícia.
— Mas como pôde...? Por quê?
— Ficou com vergonha. E, além disso, queria ser líder de torcida e achou que, se dissesse alguma coisa contra eles, poderia não conseguir fazer parte da equipe. Ela só lamentou que eu tivesse arranjado problemas por querer ajudá-la. Ele suspirou. — Mas sei que isso vive acontecendo. As vítimas normalmente preferem não dizer nada.
— Sim, mas... — Chloe colocou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
Ela parecia zangada. Isso deveria ser bom, mas não era. Ele se sentia exposto.
— Ainda assim, isso causou um belo estrago. — Os lábios de Chloe se contraíram.
— Sim, é verdade. — Cash se sentiu um pouco melhor.
Ambos se recostaram na cadeira em silêncio, como se precisassem de um tempo para pensar. Ele sabia que precisava.
Quando ela olhou para Cash, ele falou primeiro.
— Agora é a minha vez?
Ela piscou.
— Acho que sim.
Você está tentando enganar os Fuller?
Ele não podia perguntar isso.
— Por que você estava tão chateada na loja de conveniência?
Ela pareceu surpresa, mas depois suspirou.
— Você quer a verdade? Ou quer a versão mais bonita?
Ele sorriu, gostando de saber que ela realmente tinha ouvido.
— A verdade.
— Eu estava chateada com o meu pai.
— Por quê?
— Você está com tempo? — Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Tenho o dia todo — ele respondeu, e era verdade. Cash precisava descobrir quem ela era. Mas uma voz dentro dele dizia que não era só isso.
Ele gostava de ouvi-la falar, de contemplar suas expressões e o jeito como mexia as mãos.
Gostava de ouvir a voz de Chloe, embora ele preferisse não ver o brilho de tristeza nos olhos castanhos.
— Até um ano atrás, ele era tipo... o melhor pai do mundo. O pai que me levava com as minhas amigas aos bailes da escola. Quando ele ia nos buscar, nos levava para comer hambúrgueres às duas da manhã. Mas depois... — Ela fez uma pausa. — Depois ele traiu minha mãe com uma mulher apenas sete anos mais velha do que eu. Agora ela está morando com ele. Meu pai está fazendo papel de palhaço, tentando agir como se fosse mais jovem, tingindo o cabelo, usando gel... Ah, e deixou que ela transformasse meu quarto numa academia. Ela colocou lá um aparelho para endurecer os glúteos e outros aparelhos estranhos onde costumava ficar a minha cama.
A voz dela tornou-se mais aguda.
— Ela usa microssaias! E um decote até aqui. — Ela colocou a mão na metade dos seios. O olhar dele foi atraído para lá, mas ele não deixou que se demorasse ali por muito tempo, mesmo querendo muito. — Ah, e ele me disse que me ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Porque está muito ocupado descabelando o palhaço com a srta. Bunda Durinha.
Cash riu, mas quando viu a expressão de dor no rosto dela, reprimiu o sorriso.
— Lamento. Isso é uma droga.
— Sim. Uma droga. — Ela afastou a bebida e suspirou. Suspirou como a sra. Fuller, quando ficava decepcionada.
Um som profundo e triste que ele não gostava de ouvir. Um som que o fazia querer acreditar nela.
Chloe ergueu os olhos e Cash viu que ela reprimia as lágrimas.
— Desculpe eu ter descarregado tudo em você. Não foi legal.
— Ei, eu que perguntei...
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se abruptamente. Num instante já estava cruzando a porta num flash.
Ainda imaginando o que havia acontecido, ele a observou pela janela enquanto o carro partia. Quando olhou para baixo, viu que o cartão de crédito dela ainda estava em cima da mesa.
Uma hora depois, ele já tinha terminado sua lição de casa na cafeteria e decidido enrolar um pouco antes de ir à casa de Chloe, para lhe devolver o cartão.
Digitou no celular o número da residência dos Fuller e ficou surpreso quando o pai adotivo atendeu.
— Ei, eu já ia ligar para você. Está tudo bem?
— Sim — respondeu Cash. — Parei na casa de um amigo para fazer o dever de casa. Tudo bem se eu chegar por volta das seis?
— Claro. Somos apenas você e eu hoje à noite. Susan teve uma emergência no hospital. Pensei em sairmos e comprarmos algo para ela comer. Talvez pegar um sorvete também.
— Aquele tipo de emergência? — O peito de Cash se apertou.
Susan Fuller era oncologista e não tinha que atender muitas emergências. As crises dela significavam que tinha perdido um paciente ou estava prestes a perder. Ela sempre tinha dificuldade para lidar com isso.
— Receio que sim — ele respondeu.
Cash não era tão próximo do sr. Fuller quanto era da mãe adotiva, mas não podia negar que o homem amava a esposa. Só por isso, Cash o respeitava.
Parte da distância entre eles era por culpa do próprio Cash. Depois de onze anos com seu pai e alguns lares temporários não tão bons, ele resistia à figura paterna. O sr. Fuller se esforçava, no entanto. No ano anterior, depois que Cash tinha passado a frequentar algumas aulas numa faculdade e começado a namorar garotas mais velhas, o sr. Fuller tivera com ele uma conversa sobre sexo e lhe dera um pacote de preservativos.
— Você prefere churrasco ou pizza? — perguntou o sr. Fuller.
— Acho que ela gosta mais de churrasco.
— Concordo. Não chegue muito depois das seis. Quero voltar antes que ela chegue em casa.
— Não posso encontrar você no restaurante?
Quando Cash desligou, pensou em como toda aquela história em torno de Chloe afetaria a mãe adotiva. Se ele procurasse os pais agora para contar tudo e depois descobrisse que Chloe não era Emily Fuller, aquilo poderia trazer de volta toda a dor de perdê-la pela primeira vez, como na época em que aquele vigarista os tinha enganado no ano anterior. Cash não podia dizer nada antes de ter certeza.
Minha mãe e eu estamos esperando consertarem o meu pneu. Na televisão da sala de espera da loja está passando um programa político. Estamos folheando revistas. Lembro-me de quando minha mãe costumava comprá-las para encontrar personagens para seus livros. É triste saber que ela parou de escrever.
Olho para o lado e ela está lendo uma revista, a cabeça coberta com a bandana desbotada. Normalmente, ela usa uma peruca quando saímos.
Hoje não. Mal posso esperar para ver o cabelo dela voltar a crescer. Para vê-la ganhar peso. Estou cansada de vê-la com a aparência de um zumbi.
— Você almoçou hoje? — pergunto ao virar a página da revista.
Ela ergue os olhos.
— Sim.
— O que você comeu?
— Um sanduíche, acho.
— Com batatas fritas?
— Não.
— Você deveria ter comido batatas fritas.
Ela sorri.
— Você é nutricionista?
— Não. Sou sua filha que acha que você está muito magra. Sério, você precisa comer mais. Podemos sair para jantar. Comer algo cheio de calorias.
— Pizza? — Ela sorri.
— Com recheio extra.
— Combinado.
— E você toma uma cerveja.
Ela ri.
— Não posso beber por causa dos remédios.
— Que remédios?
— O comprimido que tenho de tomar por três anos para evitar que o câncer volte.
Sento-me ereta, com uma dor se instalando no meu peito.
— Os médicos acham que pode voltar?
— Não. — Ela bate o ombro no meu. — O remédio é para garantir que não volte.
Eu olho para ela, de repente cheia de preocupação.
— Holden? — Um homem vestindo macacão entra na sala, vindo da oficina.
— Sou eu. — Minha mãe fica em pé.
— Boas notícias. Não há nada de errado com o seu pneu.
— Mas estava murcho! — eu digo.
— Bem, às vezes o pneu pode ficar mais baixo devido à mudança de temperatura, mas, como isso não aconteceu, eu diria que alguém o murchou de propósito.
— Por que alguém faria isso? — Minha mãe me pergunta.
— Sei lá. — Então me lembro de Cash parado ao lado do meu carro. Ele não faria isso, faria?
— Poderia ser pior — diz o mecânico. — Poderiam ter cortado os pneus.
Às quatro e meia, Chloe ainda não estava em casa. Nem mesmo às cinco. Por fim, às cinco e meia, Cash viu o carro dela e estacionou em frente à casa.
Ele pegou o cartão de crédito e o colocou no bolso da frente do jeans. Subindo na varanda, viu uma grande janela com as cortinas abertas. Espiou lá dentro. Uma mulher estava sentada à mesa de jantar. Ela estava usando uma bandana, mas por baixo ele viu que não havia nem um fio de cabelo. As maçãs do rosto estavam salientes. Os olhos, fundos.
A visão o levou à época em que o pai raspava a cabeça e as sobrancelhas de Cash para tirar foto. Ele perdeu vários quilos, após passar fome por quase um mês; depois o pai passou sombra preta sob seus olhos para fazê-lo parecer ainda mais doente. Funcionou. O pai se orgulhava do dinheiro que as pessoas tinham doado para salvar o menino com câncer.
Mas essa mulher não estava usando maquiagem. O peito dele doía por Chloe. Será que a mãe dela ia morrer? Ele sofria até pela mãe adotiva. A mãe de Chloe era o tipo de paciente que a sra. Fuller tratava. O tipo que morria nas mãos dela, não importava quanto se esforçava para tentar salvar.
Suspirando, resignado, ele tocou a campainha. Os olhos da mulher encontraram os dele através da janela.
Quando ela se levantou, pareceu ainda mais magra.
A porta da frente se abriu e ele se apresentou.
— Oi. Meu nome é Cash. Estudo na escola de Chloe. Ela está em casa?
A mulher sorriu.
— Entre. Sou JoAnne Holden, mãe de Chloe. Ela está no quarto. — Então chamou: — Chloe?
Ele entrou. Um gato tigrado amarelo, igual a Félix, pulou de uma cadeira.
— Você gostaria de beber alguma coisa?
— Não, obrigado. — As mãos dele estavam suadas. Será que ele estava nervoso só porque estava conhecendo a mãe de Chloe? Ou seria porque essa mulher poderia ser a sequestradora de Emily Fuller?
Chloe entrou. A postura dela era rígida, os olhos acusadores. Já não tinham passado dessa fase?
— Vamos para o quintal. — Ela passou por ele sem cumprimentá-lo.
Cash agradeceu a mãe dela com a cabeça e seguiu Chloe, passaram pela sala até chegar a um quintal nos fundos.
Ela se virou para trás.
— Feche a porta.
Cash fechou, mas a expressão nos olhos dela dizia que seria melhor se ele encontrasse uma rota de fuga.
— Como você sabia onde eu morava?
A pergunta dela fez Cash suspirar de alívio. Ele sabia o que dizer.
— Você me disse que morava em Oak Tree. Dei uma volta pelo bairro até ver seu carro. Trouxe isso para você.
Ele tirou o cartão de crédito dela do bolso.
— Você esqueceu na cafeteria.
Chloe pegou o cartão, a suspeita ainda em seus olhos.
— Você murchou o meu pneu?
A pergunta saiu enérgica e foi como um soco no estômago. Ele sabia que aquela suspeita poderia surgir e o plano dele era negar. Esse ainda era seu plano, mas agora parecia muito ruim.
— Seu pneu não estava furado? — Aquilo tinha soado convincente? Merda, claro que não. Ele deveria ter cortado o pneu, mas isso teria custado o dinheiro dela.
— Não. — A mão dela pousou no quadril. — Foi você quem o murchou?
— Por que eu faria isso? — Responda a uma pergunta com outra pergunta. Isso confunde as pessoas.
— Não sei. Mas alguém fez isso. E você estava lá.
Ela não se deixava enganar com facilidade.
— E eu o troquei para você. Não gosto tanto assim de trocar pneus. Uau, você realmente tem dificuldade para confiar nas pessoas, hein?
Pela expressão dela, Cash percebeu que tinha dito a coisa errada.
— Sim, eu tenho. E, neste momento, não confio em você.
— Bem. Sugiro que verifique se não usei o seu cartão.
Então saiu pelo portão externo.
O que o deixou mais surpreso foi o fato de se sentir magoado por Chloe não acreditar nele, mesmo que ela estivesse certa em não querer acreditar.
7
Eram onze horas da noite quando o estômago de Cash começou a reclamar de fome. Ele tinha perdido o apetite depois de sair da casa de Chloe e passara a maior parte da noite em seu quarto, depois de encontrar o sr. Fuller para comprar o jantar.
Quando desceu as escadas sem fazer barulho e abriu a geladeira, viu a mãe adotiva sentada na sala de jantar — no escuro. Félix, seu gato, estava estendido sobre a mesa e ela acariciava lentamente o pelo dele. Ela estava de costas para a porta, mas o ouvira entrar.
Ele se aproximou e ficou ao lado dela. A mãe adotiva colocou Félix no chão e enxugou as lágrimas antes de olhar para Cash.
— Sinto muito — disse ele.
Ela assentiu.
— Também sinto.
Cash se sentou ao lado dela.
— Você salva muito mais pessoas do que perde.
A sra. Fuller ofereceu a ele um sorriso triste.
— Ela era apenas alguns anos mais velha que você — ela disse. — Alguns anos mais velha que Emily. Eu queria salvá-la. — Ela respirou fundo. — É difícil perder um paciente, mas quando eles são jovens... Acho que, se eu pudesse salvá-los, isso poderia compensar... — Ela colocou os dedos sobre os lábios trêmulos.
— Compensar o quê?
Ela balançou a cabeça.
— Foi culpa minha. Eu estava tão ocupada com a faculdade... Era meu dia de cuidar da Emily, mas liguei para a babá e pedi para que ela a levasse para passear.
— Não foi culpa sua — Cash disse bruscamente.
— Eu sei. Só estou com pena de mim mesma. E amanhã é... Vai fazer quinze anos que Emily desapareceu. — Ela fez uma pausa. — Odeio não ter conseguido salvá-la.
Quinze anos. Ele não sabia nem mesmo de quem ela estava falando ao dizer que não tinha conseguido salvar. A garota com câncer ou a filha dela?
A sra. Fuller esfregou os olhos e olhou para ele. De perto, ele viu a expressão dela, tão cheia de dor.
Ele colocou a mão no braço da mãe adotiva. De onde vinham as palavras, Cash não sabia, mas elas deixaram seus lábios:
— Você me salvou.
— Eu salvei? — A voz dela tremia. — Às vezes eu me preocupo quando vejo que você não deixa que a gente se aproxime muito de você...
— Você está mais próxima de mim do que qualquer outra pessoa jamais esteve. — E aquela era a mais pura verdade.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Obrigada. É demais pedir um abraço?
Ele balançou a cabeça, mesmo que preferisse evitar abraços.
Eles ficaram de pé e os braços dela o envolveram. Cash não se moveu, a dor que sentia no peito era profunda. A garganta apertou.
Ela o soltou rapidamente, como se sentisse quanto era difícil para ele.
— Nós amamos você como um filho.
Vocês não deveriam.
— Eu sei. — Mas eles mereciam ter a filha de volta e, se ele pudesse, se fosse possível, iria devolvê-la aos Fuller.
Estou me arrumando para ir à escola na manhã seguinte, quando meu celular toca. Tenho certeza que é Lindsey, por isso atendo. Me enganei.
— Como está a filhinha do papai? — É o homem que me deve um pedido de desculpas. De repente, quero que ele saiba que me magoou. Parece que não resta mais nada nele do pai que eu conhecia. O cara que costumava me levar para comer comida indiana porque minha mãe não gostava. O cara que costumava me abraçar forte, que me ensinou a trocar pneu. Ele se foi. Já era.
— Como está minha garota? — ele pergunta novamente.
— Bem.
— Como está indo na escola?
— Muito engraçado... — Mas não estou rindo.
— O que é engraçado?
— Pensei que você fosse me ligar no primeiro dia de aula para saber como foi.
— Ah... — A culpa está estampada nessa única palavra. — Sinto muito, querida. Foi uma semana agitada.
Este é o momento em que deveria dizer que está tudo bem e deixá-lo falar quanto sente a minha falta. Mas não consigo.
— É bom saber que não estou na sua lista de prioridades.
— Chloe! Não diga isso.
— Por quê? É verdade. Você deu a Darlene meu quarto. Diz que vai ligar, mas não liga. O que mais? Agora vai se negar a pagar a pensão também?
— Por quê? Sua mãe está falando mal de mim?
— Sim, mas ela já faz isso há muito tempo. Mas agora finalmente estou percebendo que o que ela diz é verdade.
Desligo e começo a chorar. Mas, por outro lado, me sinto bem. Ele merecia isso.
Ao consultar o relógio, vejo que tenho que me apressar. Passo rápido pela minha mãe, para ela não ver que eu estava chorando.
Quando saio, Lindsey está esperando ao lado do meu carro.
— Algo errado?
— Tudo.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— Isso pode parecer terrível, mas agora você não está mais fingindo tão bem e eu gosto mais de você assim.
Eu olho para ela como quem diz “Do que você está falando?”.
— Antes, você agia como se fosse a Mulher-Maravilha. Eu me sentia mal quando te contava meus problemas, porque você podia me achar meio patética. — Ela dá a volta para entrar no carro.
— De que problemas você está falando? — pergunto, para não parecer mais patética ainda. Eu me sento atrás do volante. — Além do cão sarnento traidor?
Ela se acomoda no banco do passageiro e parece hesitante.
— Não vou aborrecer você com detalhes, mas... — Ela faz uma cara assustada e fica séria. — Minha mãe é gay.
Eu olho para ela.
— Eu já sabia.
Ela me olha perplexa.
— É tão óbvio assim?
— Sim. A namorada da sua mãe está sempre na sua casa e, quando assistem TV, ficam de mãos dadas. Por que isso...?
— É um problema? — Ela termina a minha frase. — Não é. Estou feliz que ela tenha se encontrado e encontrado Lola. Uns dois anos atrás, ela teve depressão. Até sete meses atrás, estava tomando antidepressivos, solitária e infeliz. Ela é muito mais feliz agora. E para mim tudo bem... Mas... nem todo mundo aceita. E tenho medo que...
— Você não deveria se importar com o que as pessoas pensam. Quem a sua mãe ama não é da conta de ninguém. Você tem uma mãe que é gay. Ponto final. Isso não é nada de mais.
Os olhos dela se estreitam.
— Você não entende. Não é que eu me importe com o que pensam. Eu tenho medo de que, da próxima vez que alguém disser alguma coisa sobre ela, eu pule na garganta da criatura. É a minha mãe! Odeio que o mundo a julgue.
Eu sorrio.
— Ótimo. Quem disse algo sobre ela?
— Clare, uma das primas de Jamie. Foi logo antes de Jamie viajar para o acampamento. Eu não sabia que Jamie tinha contado a ela sobre a minha mãe até ela começar a dizer quanto aquilo devia ser estranho para mim. Eu simplesmente fui embora. Nem me despedi de Jamie. Mais tarde, fiquei tão brava comigo mesma por não defender minha mãe que agora não vejo a hora de outra pessoa dizer alguma coisa.
Eu olho para ela.
— É o seguinte. Quando alguém disser alguma coisa, venha me chamar e vou ajudar você a dar uma lição nessa pessoa. Estou ficando boa nisso.
Lindsey suspira.
— Estou tão feliz que você tenha se mudado para a casa ao lado da minha!
Eu não posso dizer o mesmo, porque ainda sinto muita falta da minha outra vida, mas sorrio. Naquele momento, sei que não sou apenas colega de Lindsey. Gostando ou não da cidade, consegui uma boa amiga. Então decido confiar nela e contar sobre Cash e o pneu murcho.
— E se ele fez isso apenas para ter um motivo para falar com você? — ela pergunta.
— Se ele quisesse falar comigo, poderia ter simplesmente se aproximado e falado comigo. Ele não é tímido.
— Você não sabe. Ele talvez não seja tão confiante quanto parece.
Será que exagerei, por causa das minhas próprias inseguranças? Porque não acredito que ele possa estar interessado em alguém como eu?
Será que cheguei automaticamente à conclusão errada, como todas as outras pessoas? Ao me lembrar da história sobre como ele foi expulso da sua última escola, porque as pessoas preferiram acreditar no pior com relação a ele, começo a me sentir culpada.
— Sou uma cretina — murmuro e Lindsey ri.
Cash decidiu se desculpar. Ele faria qualquer coisa para voltar a ter a confiança de Chloe. Precisava de respostas e a única maneira de consegui-las era se aproximar dela. Ele tinha que descobrir se ela era Emily Fuller.
Ele não sabia exatamente o que precisava para provar ou refutar sua suspeita. Mas seus instintos lhe diziam que ele saberia quando ouvisse. E não ouviria nada se ela se afastasse dele.
Ele viu Chloe perto do armário, mas, antes que pudesse se aproximar, ela desapareceu no corredor, entre os outros alunos. No caminho para a aula de Literatura Americana, que eles tinham juntos, ele olhou para a esquerda e para a direita, esperando encontrá-la. Quando se aproximou da porta da sala de aula, ele a viu parada ali, esperando.
Seus olhares se encontraram e ela começou a andar na direção dele. Ele não estava perto o suficiente para decifrar a expressão nos olhos dela. Mas a tensão fez com que seu estômago se contraísse.
Chloe parou na frente dele, então fez um gesto para que se afastassem da porta.
— Oi. Eu...
— Olha, eu...
— Pode falar — disse Cash. Sempre deixe a outra pessoa falar primeiro. Seu plano de jogo talvez mude.
Ela mordeu o lábio.
— Sinto muito. Não deveria ter acusado você. Fui rude. — Chloe olhou para ele. O pedido de desculpas iluminou os olhos castanhos dela. Ele viu as manchas verdes e douradas. Seus olhos seriam da mesma cor que os do sr. Fuller?
Seu próprio pedido de desculpas estava na ponta da língua. Quando falar com uma garota tinha ficado tão difícil?
Em vez disso, ele sorriu.
— Tudo bem.
— Não, não está tudo bem.
Ela fez uma pausa como se fosse a vez dele de dizer alguma coisa, mas Cash estava muito ocupado se recriminando, porque ele era o culpado e deveria ser o único a pedir desculpas. Ela se virou para entrar na sala de aula.
— Espere. — Ele pegou o braço dela e sentiu o mesmo choque. Como tocar num fio desencapado. Mas a sensação logo desapareceu e tudo o que restou foi a sensação de como a pele dela era macia. — Podemos falar sobre isso mais tarde?
— Sim. — Ela sorriu e não saiu do lugar.
Demorou um segundo para Cash perceber que ainda segurava o braço dela. E estava acariciando a pele dela com o polegar. Mas, caramba, ele gostava da sensação de estar tocando Chloe...
Com relutância ele a soltou e deixou-a ir para a aula. O toque podia ter vindo com uma centelha de dor, mas o que viera a seguir — a pele quente, suave e feminina — fizera tudo valer a pena.
8
Depois da escola, Cash dirigiu até a casa de Chloe, mas estacionou algumas casas à frente. Enquanto esperava, sentiu certo nervosismo. Estava pensando em sugerir que se encontrassem na cafeteria. Algo sobre a mãe de Chloe o deixava apreensivo. Vê-la tão doente e questionar se ela tinha sequestrado Chloe tornava tudo mais difícil.
Ele se perguntou quão difícil não seria para Chloe ver a mãe dela tão magra. E ele só contribuiria para aumentar os problemas da garota se dissesse que ela podia ser Emily Fuller. Ocorreu-lhe que seria mais fácil se ela não fosse a filha dos Fuller.
Ele não teria que mentir para ela.
O carro de Chloe entrou na garagem da casa.
Cash viu pelo espelho retrovisor a amiga dela colocando a mochila no ombro. Ele tinha reparado nela no ano anterior. Não estava na sua lista de garotas insuportáveis.
Chloe saiu do carro. Cash gostava de observá-la, especialmente quando ela não sabia que estava sendo observada. Ela parecia de alguma forma... diferente das outras garotas. Quando cruzava com outras pessoas no corredor, pedia licença. A maioria não fazia isso. Ela sorria para os outros alunos — não apenas para os mais populares, como algumas garotas faziam.
Cash também via os garotos olhando para ela. Não podia culpá-los. Ele olhava também. Só que alguns caras eram uns cretinos.
Só quando Chloe viu o carro dele é que Cash saiu.
— Vamos entrar. — O cabelo dela balançava em volta dos ombros e a camisa vermelha se ajustava aos seios.
Ele a seguiu para dentro da casa.
— Mãe? — Chloe chamou. — Cash está aqui. Vamos nos sentar lá fora, no quintal. — Cash ouviu a mãe dela responder algo do quarto.
Chloe largou a mochila numa cadeira da sala de jantar.
— Aposto que a sua casa é muito melhor que a minha.
— Na verdade, não — Cash mentiu, porque seria rude da parte dele se concordasse com ela. Mas com exceção da casa dos Fuller, a casa de Chloe era melhor do que qualquer outra em que ele já tinha morado. Durante seis meses, ele e o pai haviam morado numa cabana na floresta sem água corrente, eletricidade ou banheiro.
Ele a seguiu pela casa e viu alguns porta-retratos na mesinha ao lado do sofá. Ali havia várias fotos de Chloe quando era pequena. Uma delas chamou a atenção dele, como se ele já a tivesse visto antes. Era Chloe segurando um gato tigrado amarelo. Ele pegou o porta-retratos. Estava imaginando coisas ou era a mesma foto que a Susan Fuller tinha num dos quartos vazios? Se pudesse, fotografaria a foto para poder compará-las.
Cash levantou os olhos e percebeu que Chloe estava olhando para ele.
— Você era uma gracinha.
— Obrigada. — Ela fez sinal para ele acompanhá-la até o quintal. Lembrou-se da última vez em que estivera ali, quando ela o acusara de ter murchado seu pneu. Esperava que desta vez não houvesse acusações.
Quando saíram no quintal, um cachorro amarelo, de tamanho médio e raça indefinida, veio correndo para cima dele, latindo. Não era um latido ameaçador, mas brincalhão. Cash acariciou o animal.
— Não, não pule, Docinho! — Chloe foi se sentar no balanço. Cash teve a sensação de que ela esperava que ele fizesse o mesmo. Então se sentou, deixando de propósito um espaço entre eles. Mas, mesmo assim, estavam muito próximos. Ele podia sentir o aroma que exalava dela. Um perfume de frutas e flores. Não um perfume, mas uma colônia, e talvez um brilho labial também, porque ele notou que os lábios dela estavam brilhantes.
O cachorro colocou a pata na perna de Cash.
— Ela é bonita.
— Ele — disse Chloe.
— Você deu o nome de Docinho para um macho?
— Ele era muito bonzinho. E eu tinha 7 anos.
Cash soltou uma risadinha.
— Você provavelmente o castrou também, para tirar dele qualquer resquício de masculinidade...
Ela levantou uma sobrancelha e acariciou o cachorro.
— Só depois que ele cruzou com a cachorra do vizinho e ela teve vários filhotes. E foi na festa do meu aniversário. Na frente de todos os amigos da minha classe. Minha festa teve cama elástica, um palhaço e uma aula de educação sexual.
Ele riu e percebeu que fazia muito isso quando Chloe estava presente. Então pensou no que ela tinha dito. Cash não tinha realmente refletido sobre como tinha sido a infância dela, mas não parecia ruim. Será que pessoas que organizam festas de aniversário bem elaboradas para os filhos sequestram crianças?
Ele nunca tivera uma festa de aniversário. Teve apenas um bolo de aniversário antes da chegada dos Fuller. Agora os aniversários nunca passavam em branco. Sempre havia bolo e presentes. E a mãe adotiva sempre tirava o dia de folga e cozinhava o que ele queria. Se Cash não dissesse o que queria, ela fazia os pratos que sabia que ele gostava. Será que era isso que Chloe também tinha?
Percebendo que o silêncio estava ficando pesado, ele disse:
— Parece que foi uma ótima festa de aniversário.
— Foi inesquecível.
— Eu não estou nem aí! — A voz em tom elevado da mãe de Chloe vazou por trás da porta dos fundos, mesmo fechada.
Chloe franziu a testa.
— Bem, eu só disse a verdade! — A voz da mãe soou irritada novamente.
— Merda. — Chloe saiu do balanço. — Já volto.
Ela disparou para dentro. O cachorro sentado ao lado dele choramingou. Quando a porta se fechou, ele ouviu Chloe dizer:
— Mãe! Cash está aqui.
A voz da mãe dela explodiu novamente.
— Talvez você devesse ter pensado nisso antes de começar a transar com alguém que poderia ser irmã dela! Sim, eu disse isso. Você é um merda. E ela é uma vadia!
— Mamãe! Pare! — A voz de Chloe soou mais alto.
— Passe bem! — A mãe gritou, e então... — Você disse ao seu pai que eu estava falando mal dele?
Cash abaixou os pés para interromper o movimento estridente do balanço e ouvir o que ela diria em seguida.
— Eu... Nós podemos conversar sobre isso mais tarde? Cash está aqui.
— Por que você conta a ele tudo o que eu digo? — A mãe dela gritou.
A voz de Chloe soou em seguida.
— Eu não tinha intenção... — A dor era evidente na voz dela. O mesmo tipo de dor que ele tinha ouvido no dia anterior, quando contou a ele sobre o pai.
— Aquele homem não tem vergonha na cara! E pode dizer a ele que eu disse isso!
Uma porta bateu lá dentro. Cash passou as mãos no jeans e se perguntou se deveria ir embora.
Chloe voltou para o quintal.
O rosto dela estava vermelho. Estava de braços cruzados, como se estivesse zangada ou envergonhada. Talvez as duas coisas.
Ela encontrou os olhos dele.
— Olha, eu vou te dar um conselho: vá embora e me esqueça. Você não tem que ouvir os melodramas dessa minha família maluca.
Ele não saiu do lugar. Só queria ter algo para dizer que a fizesse se sentir melhor.
— Tive uma família muito pior. São apenas os problemas do divórcio.
Ela se aproximou e deixou-se cair no balanço.
— Foi mal...
Quando ela virou o rosto para cima, ele viu lágrimas nos cílios longos e escuros.
— Sério, está tudo bem.
— Minha vida é uma zona. Você não vai querer... — Chloe mordeu o lábio.
— Não. A vida dos seus pais é uma zona. Você é apenas uma vítima inocente.
Cash não podia acreditar que estava reciclando alguns dos velhos clichês que os psicólogos costumavam repetir para ele enquanto estava no hospital, depois de ter sido baleado. A psicóloga estava lá quando ele acordara. Cash tinha se lembrado de perguntar a ela:
— Eu vou para a cadeia?
Ela tentou consolá-lo.
— Não. Você não fez nada de errado.
Ele se lembrou de levantar o queixo, disposto a aceitar sua punição.
— Sim, eu fiz.
— Você não é má pessoa. Foi seu pai quem fez coisas ruins. Você é jovem, fez o que tinha que fazer para sobreviver.
Ao lado dele, Chloe balançou a cabeça.
— Não. Eu não sou inocente desta vez. — Mais uma vez, ela mordeu o lábio. — Meu pai ligou esta manhã e eu disse algo que não deveria ter dito. Eu queria magoar meu pai, não a minha mãe.
Ele não sabia direito o que o levou a fazer aquilo, mas colocou o braço sobre os ombros de Chloe. Um choque de prazer percorreu o corpo dele, acompanhado de dor. Mas então a dor se foi.
Ela soltou aquele som triste novamente — um suspiro muito parecido com o da sra. Fuller, o que o fez lembrar por que ele estava ali. Antes que Cash pudesse mover o braço, Chloe se inclinou contra ele.
Ele tentou não recuar.
— Ainda tem a ver com eles. Não com você.
Ela olhou para ele. Estavam tão perto que Cash poderia contar os cílios dela. E isso deu a ele uma visão panorâmica da dor nos olhos castanhos dela.
— Você é muito bom nisso — Chloe sussurrou.
— No quê?
— Em saber dizer a coisa certa.
— Que estranho... Eu geralmente sou péssimo nisso. — Cash forçou um sorriso, sentindo cada centímetro do corpo dela contra o dele. Sentindo quanto aquilo parecia certo e errado ao mesmo tempo.
— Seus pais se divorciaram? — perguntou ela.
Ele sentiu o ar preso na garganta. A última coisa que queria era falar sobre o passado.
— Não. Eles morreram.
— O que aconteceu? Desculpe, eu não deveria...
Docinho bateu contra o joelho dele, com uma bola de tênis amarela na boca. Com o braço livre, Cash jogou a bola longe para o cachorro pegar.
— Sua mãe parecia furiosa.
— Ela não está apenas furiosa. Ela está amargurada.
Chloe olhou para a porta e sua expressão era de tristeza novamente.
— Não posso culpá-la, só que... dói ouvi-la xingar meu pai o tempo todo. Eu sei que ele merece. Mas... — Ela cobriu o rosto com as mãos. — Droga. Estou fazendo de novo.
— Fazendo o quê?
— Despejando os meus problemas em cima de você.
Cash sorriu.
— Eu aguento.
Ela riu e recostou-se nele. Estavam ainda mais perto agora.
Ele inspirou o perfume dela.
— É câncer que ela tem?
— Sim.
— Ela vai ficar bem?
A raiva nos olhos dela se transformou em tristeza.
— O médico disse que ela está curada. Mas acabei de descobrir... que o câncer pode voltar. — Chloe fez uma pausa. — Mal posso esperar o dia em que ela deixar de parecer... que está morrendo.
— Sinto muito. — Cash quase disse que a mãe adotiva era oncologista, mas falar sobre a mulher que ele achava que podia ser a mãe dela parecia errado.
Os olhos deles se encontraram. E ali ficaram. Os lábios dela vieram ao encontro dos dele.
Cash recuou.
Ela se encolheu.
— Foi mal...
— Não. Eu só... Eu não estava... — Ele não conseguia desviar os olhos dos lábios dela. Então ele se inclinou. Seus sentidos continuavam hiperalertas.
Ele sentiu tudo intensamente. O sabor dos lábios dela. Um pouco salgados, por causa das lágrimas. A textura deles. Macios, quentes. Úmidos. O modo como ela chegou um pouco mais perto e seus seios pressionaram suavemente as costelas dele. Cash a queria mais perto, para que pudesse envolver sua cintura, deslizar as mãos sob a camisa vermelha, para sentir a pele nos lugares que não tinha conseguido ver.
Percebendo que não deveria estar pensando aquilo, ele pôs fim ao beijo, mas conseguiu fazer isso bem devagar.
Chloe sorriu.
— Isso foi bom.
— Sim. Foi mesmo...
Mas, que droga, ele estava indo longe demais! Aquilo podia acabar muito mal.
Cash estacionou na garagem, entrou em casa e digitou o código para desligar o alarme. Ele tinha ido embora depois que os dois haviam se beijado pela quinta vez. Cinco beijos. Ele ficou dizendo a si mesmo que precisava parar, mas não conseguia. Não quando ela se sentou tão perto e parecia tão disposta, olhando para ele com desejo misturado com tristeza. Chloe precisava ser beijada e ele precisava beijá-la.
Ele subiu os degraus de madeira e cruzou o corredor até o quarto onde a sra. Fuller guardava todas as recordações da filha que havia perdido. Fotografias, bichinhos de pelúcia com que a criança brincava, livros que ele imaginava que a mãe lia para ela. Na cômoda ainda havia algumas roupas. Era como um museu dedicado à filha.
Quando acendeu a luz, ele descobriu que a cama estava desarrumada. Ele apostava que ela tinha dormido ali na noite anterior. Sempre fazia isso quando estava com algum problema.
Cash foi até as prateleiras que continham livros e porta-retratos. E encontrou. A foto de Emily Fuller segurando um gatinho. Não apenas qualquer gatinho, mas Félix. O gato malhado amarelo quase idêntico ao da fotografia na casa de Chloe. Igualmente idêntica era a garota.
Ele pegou a foto.
A mãe adotiva tinha lhe contado muitas vezes como Emily amava Félix. Eles haviam encontrado o gatinho abandonado na rua. Era por isso que a mãe adotiva amava tanto aquele gato. Aquela seria uma peça do quebra-cabeça? Ou todos os pais decentes tinham fotos dos filhos com seus animais de estimação? Mas como essas duas garotas poderiam se parecer tanto? E seria coincidência que os gatinhos se parecessem também?
Ele pegou o celular para fotografar o porta-retratos.
9
Atenta a cada barulhinho vindo do quarto da minha mãe, eu coloco o que restou de uma pizza no forno, esperando que o cheiro apetitoso a atraia para a cozinha. Cash saiu faz uma hora, mas minha mãe não apareceu ainda. Será que ela está chorando? Está deprimida? Irritada?
Parte de mim gostaria de obrigá-la a sair do quarto. Ela está agindo como uma criança birrenta.
Quando é que assumi o papel da mãe nesta casa?
Ah, sim, quando ela teve câncer. Ou talvez quando meu pai a abandonou.
Desconto minha frustração na alface, no tomate e nas cenouras que estou picando. Félix mia e circula entre os meus tornozelos.
Com as mãos no piloto automático, minha mente divaga. Estou angustiada com a minha mãe e ao mesmo tempo nas nuvens por ter sido beijada por Cash. Beijada cinco vezes. Eu tomei a iniciativa. Quero dizer, os lábios dele estavam tão perto que eu simplesmente o beijei. Mas os outros quatro beijos foram iniciativa dele.
Eu posso fechar os olhos e ainda sentir seus lábios contra os meus. Saboreio a lembrança e... os sentimentos novos que brotam no meu peito. Esperança. Empolgação. Antecipação.
Desde que meus pais começaram a se desentender, sinto como se alguém tivesse roubado a minha alegria. Mas talvez ela não tenha sido roubada, apenas reprimida. Talvez...
A porta do quarto da minha mãe se abre. Ela entra na cozinha em meio a uma aura de depressão.
— Estou esquentando a pizza — digo.
— Não estou com fome.
— Você tem que comer. — Sim, eu sou a mãe aqui.
Nossos olhares se encontram. Eu vejo a mágoa nos olhos fundos dela. Toda a alegria que eu sinto no peito murcha como uma flor deixada num vaso sem água. Sou tomada por um sentimento de culpa.
— Eu não fico falando de você para o papai. Ele ligou esta manhã e fiquei com raiva.
— Por quê?
— Ele me disse que ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Quando reclamei, ele perguntou se você estava falando mal dele e se era por isso que eu estava sendo agressiva. Eu disse que, sim, que você estava falando mal dele, mas que não era esse o problema. O problema era que agora eu estava percebendo que tudo que você dizia era verdade. Eu não quis...
Ela se senta.
— Então ele disse que ligaria e não ligou?
Isso não está ajudando. Agora ela vai ficar brava de novo. Eu me deixo contagiar por essa raiva.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não fique com raiva.
— Como posso não ficar com raiva? Olha o que ele fez comigo! — Ela arranca a bandana.
— O que aconteceu com aquela minha mãe que estava feliz outro dia? Que disse que tudo ia ficar bem?
— Seu pai aconteceu! — Lágrimas enchem os olhos dela.
Lágrimas enchem meus olhos também. Sento-me ao lado dela.
— Mãe, você precisa de ajuda. Precisa de terapia ou algo assim. Você pode sobreviver ao câncer, mas essa amargura vai te matar.
Sem mais uma palavra, ela volta para o quarto.
Eu desligo o forno, vou para o meu quarto e bato a porta.
Nenhuma de nós janta.
Na manhã seguinte, quando saio do meu quarto para fazer xixi, minha mãe me chama. Ela está sentada na cozinha, vestida com o roupão cor- de-rosa, que parece engolir seu corpo inteiro.
— Podemos conversar?
Tento decifrar o humor em que ela está. Ainda está furiosa? Ainda está deprimida? Quando me aproximo, sinto outra coisa. Culpa.
— Sente-se. — Ela faz um gesto indicando a mesa.
Eu me sento na frente da minha mãe. As olheiras sob os olhos dela estão mais escuras. Ela não anda dormindo.
— Sinto muito — diz minha mãe. Lágrimas caem dos seus olhos verdes. — Eu tive um dia ruim ontem. Ficaram de me ligar ontem para falar sobre a vaga de emprego no consultório, mas ninguém ligou. Estou achando que podem ter mudado de ideia. E o remédio que estou tomando causa sintomas de gripe. Comecei a sentir pena de mim mesma, então o seu pai me ligou e eu perdi a cabeça. — Ela pega minha mão. — Me desculpe por ter surtado na frente do seu amigo.
Embora eu quisesse acreditar que tudo está bem agora, não posso. Não é o primeiro pedido de desculpas que ouço dela.
— Amo você, mãe — digo. — E eu te perdoo. Mas você precisa fazer terapia.
— Foi só um dia ruim.
Eu enrijeço os ombros e digo a mim mesma que não sou a mãe dela.
— É mais do que isso. Você parou de escrever. Parou de viver. Parou de comer. Não foi só um dia ruim. Você teve um ano ruim. Vejo anúncios na TV dizendo que hoje existe todo tipo de remédio para a depressão.
— Querida, eu não preciso...
— Você precisa, mãe. — Eu a olho bem nos olhos.
Ela hesita e diz com relutância:
— Vou ver se o nosso seguro-saúde cobre.
Não era um sim, mas também não era um não.
Termino de me arrumar, abraço minha mãe e a lembro de ligar para o seguro-saúde. Quando saio, Lindsey está ao lado do meu carro. Ela havia me mandado uma mensagem ontem à noite, cerca de uma hora depois que me tranquei no meu quarto, implorando para eu ir à casa dela, mas eu só liguei. Não contei sobre a minha mãe, não estava pronta para conversar sobre isso, mas contei sobre Cash. Sobre nós nos beijando.
Quando ela me vê, sorri.
— Ainda caminhando nas nuvens?
— Mais ou menos... — Entro no meu carro.
Lindsey se senta no banco do passageiro.
— Eu mal posso acreditar que você está namorando Cash Colton. Ele é o cara mais gato da escola!
— Calma aí! Não estou namorando Cash. Ainda não.
Quando dou partida no carro, vejo minha mãe olhando pela janela.
Despenco das nuvens um pouco mais.
— Ok, deixe-me reformular — diz Lindsey. — Mal posso acreditar que você está dando uns amassos no cara mais gato da escola.
— Não dei uns amassos... Foram só cinco beijos...
— Hmm... — diz Lindsey. — Acho que foram amassos, sim. Vamos ver o que o Google diz. — Ela pega o celular e, em alguns segundos, está lendo e rindo.
— O que foi? — pergunto.
— Bem, de acordo com o Google, são vários os significados de “dar uns amassos”. Só beijar é um deles. Beijar com a língua é outro. — Ela olha para mim. — Você deu um beijo de língua no Cash?
— Digamos que sim...
— Ah, olha só... — Ela se concentra no celular. — Aqui está outro significado: “Trocar carícias, esfregar-se um no outro ou remover peças de roupa”.
— Nós não removemos nenhuma peça de roupa! — Eu solto uma risada.
Ela continua.
— Ouça esta aqui: “Qualquer coisa que não incluir penetração”. Penetração? Isso parece tão pervertido...
O comentário me faz bufar e depois pergunto:
— E quando você vai falar com David?
— Não vou. Se gosta de mim, ele é que vai falar comigo. — Lindsey afivela o cinto de segurança. — Adivinha quem mandou uma mensagem ontem à noite?
— Quem?
— Jonathon.
— O cachorro sarnento traidor? — Começo a dirigir.
Ela confirma.
Piso repentinamente no freio quando vejo o farol vermelho. O carro dá um solavanco.
— Não... — digo com firmeza.
— Não o quê?
— Não, você não vai voltar com ele! Ele te tratou como lixo.
— Mas...
— Sem desculpas! Não seria sua amiga se deixasse você voltar com ele.
Ela baixa a cabeça.
— Tem razão.
— Fale com David hoje!
— Talvez — Lindsey responde.
— Nada de talvez! Faça isso. E nem estou dizendo para sair com ele, apenas...
— Apenas o quê?
— Sinta que é possível. Descubra o poder que existe dentro de toda garota e pare de pensar que precisa de Jonathon para ser feliz. Às vezes acho que precisamos saber que outro cara gosta de nós para nos sentirmos bem com a gente mesmo. Às vezes só precisamos saber que conseguimos fazer um cara perceber que talvez a gente não precise de cara nenhum.
— É isso que você está fazendo com Cash? Encontrando o poder que existe dentro de toda garota?
A pergunta rola na minha cabeça.
— Talvez. Não sei ainda. — Mas quando penso nele, sinto que é mais do que isso.
Cash chegou cedo na escola, mas disse a si mesmo que sua pressa para chegar não tinha nada a ver com Chloe.
Na noite anterior, ele só conseguia pensar nela. Ficou se perguntando se ela seria Emily. Se havia gostado tanto de beijá-lo quanto ele gostara de beijá-la. Se ela iria odiá-lo quando ele contasse sobre as suas suspeitas.
Quando virou no corredor, ele a viu. Diminuiu o passo e a observou. Prestou atenção na maneira como o cabelo dela caía nas costas, enquanto ela guardava a mochila no armário.
Então ele se aproximou até parar ao lado dela.
— Olá.
Chloe se virou e sorriu.
— Oi.
— Oi. — O olhar de Cash foi direto para os lábios dela e ele quis beijá-la. Nunca fora de demonstrar afeto em público, mas poderia dizer que seria fácil mudar de ideia.
Percebendo que ficar olhando para os lábios de Chloe era estranho, ele desviou o olhar para o livro de matemática que ela segurava contra os seios. Mas deixar que o olhar se demorasse ali seria ainda mais estranho, então Cash falou sem pensar:
— Indo para a aula de Cálculo? Você tem aula com o sr. Williams? Eu tenho aula com ele mais tarde.
Desde a noite anterior, ele sabia que ela tinha aula com o sr. Williams, pois tinha lido e relido o arquivo que fotografara no escritório da srta. Anderson.
— Sim — ela respondeu. — Ele parece legal. Qual é a sua primeira aula?
— História. — O alarme tocou.
— Preciso ir — disse ela. — Vejo você na aula de Literatura Americana.
— Até mais tarde. — Ele se inclinou na direção dela. — Gostei de ontem.
Ela sorriu e aqueles suaves olhos castanhos o fitaram através dos cílios.
— Eu também.
Ela se afastou. Ele a viu cruzar o corredor em meio à multidão. O jeans preto que ela usava se ajustava quase tão bem quanto o jeans azul que vestira no dia anterior.
Ele ficou ali parado até a visão dela ser obstruída por outros alunos.
Considerando que Cash fazia parte de quase todas as aulas de conteúdo mais aprofundado, era estranho que só tivessem uma aula juntos aquele dia. Apenas azar. Ou talvez fosse porque ele tinha escolhido estudar Tecnologia Automotiva.
No ano anterior, quando montava sua grade de aula, a srta. Anderson tinha tentado convencê-lo a não fazer isso.
— Mas eu não posso mantê-lo em todas as aulas mais avançadas se estiver estudando Tecnologia Automotiva. Você poderia escolher outra aula de matemática para se preparar melhor para os cursos universitários.
Ele explicou que havia planejado cursar aulas de matemática numa faculdade antes de se formar. E ele já estava fazendo isso. Aquela noite era sua primeira aula.
— Então você planeja ir para a faculdade? — ela perguntou como se não esperasse que ele tivesse esses planos. Agora que sabia que a srta. Andreson era adotada, ele estava meio desapontado ao ver que ela tinha automaticamente pensado o pior dele. Pessoas comuns faziam aquilo, não pessoas que entendiam o que era uma adoção.
Ou talvez ela tivesse entendido até bem demais. A maioria das crianças adotadas por meio do programa do governo acabava na prisão. Quando Cash leu essa estatística, ficou chateado. Pensou nas poucas crianças adotadas de que ele realmente gostava. Não que tivesse mantido contato com elas. Isso era quase impossível em razão do número de vezes que mudara de lar temporário.
Enquanto caminhava para a aula de História, lembrou-se da pergunta seguinte da srta. Anderson. Ela quis saber:
— Então por que fazer Tecnologia Automotiva?
Cash disse a ela:
— Porque eu gosto.
E ele gostava mesmo. Mas a verdade era que, quando terminasse o ensino médio, não planejava receber uma mesada dos pais adotivos. Se algo acontecesse com o carro dele, era melhor que ele estivesse preparado para consertar.
Além disso, a oficina estava lhe atribuindo serviços cada vez maiores, agora que sabiam que ele estava cursando Tecnologia Automotiva, e ele esperava trabalhar numa grande oficina mecânica enquanto fazia faculdade.
Incomodava-o o fato de os Fuller terem comprado um jipe para ele. Eles o tinham convencido a aceitá-lo. Mas Cash se arrependera. E estava determinado a reembolsá-los.
Depois do almoço, vou ao meu armário buscar meus livros. Com o armário aberto, pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem para minha mãe. Você ligou para o seguro-saúde?
Ela precisava saber que eu não tinha me esquecido.
Estou esperando para ver se ela vai responder quando sinto alguém de pé ao meu lado. Abro um sorriso, pensando que é Cash. Mas, quando olho, vejo o rosto de um valentão com um nariz muito machucado. O nariz que Cash socou.
— Oi — ele diz. — Sou Paul Cane. Quarterback do time de futebol.
Eu olho para o meu celular novamente, esperando que ele vá embora. Ele obviamente acha que eu deveria ficar impressionada com a posição dele no futebol.
— Pois não?
— Chloe, certo? — ele pergunta.
— Sim.
— Pensei em fazer um favor a você.
Isso me faz levantar o olhar.
— Vi você saindo com aquele cara, Cash. Você provavelmente não sabe, mas ele é adotado.
Para mim isso é como derramar suco de limão num corte profundo.
— E daí? — percebo o tom frio da minha voz e espero que ele também tenha percebido.
Ele deve ter percebido, porque parece decepcionado.
— Conheço alguns alunos que frequentam a antiga escola de Cash, e há boatos de que ele é mau elemento.
Eu lanço um dos meus sorrisos mais amarelos e falsos.
— O bom é que não desperdiço meu tempo com boatos.
Os olhos cinzentos dele escurecem.
— Dizem que ele matou o pai. Um tiro bem no coração.
Isso me deixa atordoada, mas não demonstro.
— Como eu disse, não dou a mínima atenção para boatos.
Começo a andar, mas ele pega meu braço.
— Você deveria dar. — O tom da voz dele é tão arrogante quanto no dia em que praticou o bullying. Como se ele fosse mais esperto que todo mundo, superior. Mas eu o vejo simplesmente pelo que ele é: um babaca.
Eu olho para a mão dele e afasto o meu braço.
Ombros tensos, bato a porta do meu armário com um pouco de força demais. O barulho ecoa no corredor. Pessoas se viram para olhar.
Quando começo a andar, minha mente começa a dar voltas. Será que Cash de fato matou o próprio pai?
10
Quando toca o último sinal do dia, Lindsey me encontra em frente ao meu armário e vamos juntas ao estacionamento. Estou decepcionada que Cash não veio falar comigo. Durante todo o dia pensei no que Paul me disse. Não que eu acredite nele.
Sei que Paul é um idiota que diria qualquer coisa para prejudicar Cash. E se Cash soubesse o que ele disse, ficaria chateado. E é por isso que não vou dizer nada a ele.
Quando Lindsey e eu nos aproximamos do meu carro, eu o vejo encostado contra a lataria. Lembro com clareza como foi beijá-lo. Um sorriso aparece nos meus lábios e depois nos meus olhos.
Não. Ele não é um assassino.
— Você quer que eu deixe vocês dois sozinhos? — Lindsey pergunta.
— Não — eu digo.
Nós continuamos andando e tudo que eu posso ver é Cash. Em como seus olhos verdes brilham enquanto me olham. Na expressão dele, quase sorrindo.
— Esta é Lindsey.
Cash é educado e diz:
— Olá. Conheço você de vista desde o ano passado.
— Oi. — Ela pega o celular. — Eu preciso mandar uma mensagem... para uma pessoa. — Ela vai para o outro lado do carro. Sei que está apenas nos dando um pouco de privacidade e lhe sou grata por isso. Me aproximo dele.
— Espero que goste da sua aula de hoje à noite.
— Eu só queria me despedir.
Olho para ele. Seu olho roxo está melhor. Uma rajada de vento tira o cabelo preto da testa. Eu me pergunto se ele quer me beijar de novo. Sei que quero beijá-lo, mas usei toda a minha coragem quando o beijei primeiro ontem.
— Tudo bem se eu te mandar uma mensagem ou te ligar mais tarde? — ele pergunta.
— Tudo bem. — Nós trocamos números de telefone.
— Você pode me ligar também. — Cash passa a mão no meu braço. Sei que ele não está planejando me beijar. Mas o toque de alguma forma me tira o fôlego tanto quanto o beijo.
Fico ali parada, vendo-o se afastar. Ele se vira uma vez e abre um sorriso. Isso é tão bom...
— Sem beijo? — Lindsey pergunta depois que entramos no carro.
— Sem beijo. — Eu ofereço a ela um sorriso e quase digo quanto me sinto bem.
Ela suspira.
— Você sabe que isso tudo é muito louco? Sério, as garotas ficavam, tipo, se jogando em cima dele, e ele ignorava todas elas.
— Também acho muito louco... — comento, e a insegurança me atinge em cheio. Sei que ele disse que eu me pareço com alguém e foi por isso que tudo começou, mas, se Cash pode ter qualquer garota que quiser, o que está fazendo comigo?
Afasto esse pensamento e olho para Lindsey.
— Você falou com David hoje?
Ela sorri.
— Falei.
— E como foi?
— Usei o poder que toda garota tem! — diz ela. — E se ele me convidar para sair, eu vou. Eu não sei se ele gosta de mim, mas eu gosto dele. Ele é... revigorante.
— Ótimo! — Enquanto esperamos na fila para sair do estacionamento, ouço uma batida na janela da frente, do lado do passageiro.
É Jamie.
Lindsey abaixa o vidro.
— Oi — Jamie diz para Lindsey, sem nem me cumprimentar com um aceno de cabeça.
— Quer ir para casa comigo? A gente faz o dever de casa juntas...
— Hã... — Lindsey olha para mim como se estivesse constrangida.
— Pode ir — eu digo.
— Ok, então — diz Lindsey.
Eu fico olhando enquanto Lindsey salta do carro e se afasta com Jamie, dizendo a mim mesma que não estou com ciúme. O carro na minha frente anda um pouco mais. Eu faço o mesmo. Olho pelo retrovisor e as vejo dando risada. Não estou com ciúme, repito, mas machuca um pouco de qualquer forma.
Cash deixou Chloe, pensando se não deveria tê-la beijado. Ele andou na direção do jipe. Parecia que ela queria ser beijada. Talvez devesse mandar uma mensagem para dizer que ele queria também. Faria isso. Então se perguntou novamente se aquilo era sensato. Como ela iria reagir quando ele contasse sobre Emily? Cash preferia que ela não tivesse relação nenhuma com aquela história. Ele não tinha planejado gostar dela.
Claro que Chloe compreenderia.
Mas ele precisava contar em breve. Muito em breve. Ele não sabia o que estava esperando. Mais provas?
Quando se aproximou do jipe, viu algo estranho na porta do motorista. A raiva ferveu dentro dele enquanto fitava o risco fino na lateral do carro. Algum idiota havia riscado seu jipe. E ele apostava que o idiota tinha um nariz inchado também.
Cash ficou ali, cerrando e abrindo os punhos. Queria encontrar aquele cretino e lhe dar uma lição. Então se lembrou do suspiro triste da mãe adotiva.
Embora soubesse que Paul tinha feito aquilo, ele não tinha provas. Assim como não tinha provas do estupro. Quem acreditaria nele? Ninguém. Se ele fosse atrás de Paul agora, seria acusado de começar a briga. E teria problemas. Poderia ser expulso da escola novamente.
— Merda! — Cash se forçou a entrar no jipe. Ficou sentado ali, segurando o volante com tanta força que seus punhos doeram. De alguma forma, de algum jeito, tinha que dar uma lição em Paul, mas sem arranjar problemas.
Paro na calçada e fico olhando para a casa antiga. Tenho medo de entrar. Medo de ver minha mãe fazendo drama. Estou cansada de drama.
Ela me contou que esse foi o primeiro lugar onde vieram depois da adoção. Ela estava tão animada para me mostrar aos pais... Por que não me lembro disso? Minha única lembrança é a de olhar para aquele tapete sujo e para meus sapatos pretos de fivela. Triste, sozinha. Assustada. Eu me pergunto se estava sentindo falta dos meus verdadeiros pais naquele dia. Eu me pergunto por que eles não me quiseram mais.
Me pergunto por que diabos desperdiço tempo pensando nisso. Sempre acabo sentindo dó de mim mesma. Sentindo-me patética. E não quero ser essa garota que tem pena de si mesma.
Pego minha mochila e saio do carro.
Ao entrar em casa, eu me preparo para outra discussão com minha mãe. Ela não respondeu à minha mensagem perguntando se havia ligado para o seguro-saúde.
Ela está na cozinha. Arrumada. Isso é um bom sinal. Mas vestindo roupas dois números maiores, ela me lembra um pouco um manequim vestido com trajes largos demais.
Ao entrar na cozinha, coloco a mochila sobre a mesa. Ela está sorrindo e eu não consigo não me perguntar se não está apenas fingindo.
— Como foi seu dia?
— Ótimo! — ela diz.
— Você começou a escrever de novo? — Ela costumava ficar realmente feliz quando conseguia escrever várias páginas do seu livro.
— Não. Recebi uma ligação do consultório médico. Eu tenho uma entrevista amanhã para me encontrar com o outro médico. Surtei por nada.
— Isso é ótimo, mamãe!
Odeio ser estraga-prazer, mas tenho que perguntar.
— Você ligou para o seguro-saúde?
O sorriso dela diminui.
— Liguei. Eles vão me enviar um e-mail com uma lista de terapeutas.
— Eles não têm simplesmente um site que você possa acessar?
— Sim, mas está em manutenção, por isso a funcionária vai me enviar uma lista atualizada.
Eu não sei se isso é só uma tática para adiar a terapia, mas não sei como argumentar.
— Ótimo. Eu só quero...
— Preciso ir às compras — ela interrompe. — Usei a minha única roupa apresentável na primeira entrevista. E como hoje é 4 de setembro... — Ela me manda um beijo. — Achei que poderíamos sair para comemorar. Aproveito e compro uma roupa para você também.
Eu me esqueci da data.
Quando eu era mais nova, 4 de setembro era como um segundo aniversário para mim. Presentes e bolo. É o dia em que eles me adotaram. Nós sempre comemorávamos. No ano passado, depois que meu pai foi embora, ele enviou flores.
Passo os olhos pelo balcão da cozinha só para dar uma checada rápida. Nada de flores. Talvez elas cheguem mais tarde. Ou talvez meu pai também tenha esquecido.
Minha mãe ainda está sorrindo.
— Onde você gostaria de comer?
Eu me forço a parecer interessada. Acho que ainda estou chateada com ela por me envergonhar na frente de Cash, mas faço a coisa certa.
— Naquele restaurante italiano, na avenida principal.
Às oito da noite, já em casa, abraço minha mãe, digo a ela que me diverti ajudando-a a escolher uma roupa e agradeço pela blusa. Não deixei que ela comprasse outra calça jeans, porque sei que ela não tem muito dinheiro.
Na verdade, eu me diverti bastante. Minha mãe estava... quase normal. Nós não falamos sobre meu pai, nem a respeito do telefonema ou do seguro-saúde. Comemos frango marsala e tiramisu, e ela contou como foi a infância dela nesta cidade. Até falou um pouco sobre algumas das suas antigas amigas e sugeri que ela tentasse entrar em contato com elas.
No caminho para casa, ela perguntou sobre Cash. Ele é seu namorado? O que você sabe sobre ele? Minhas respostas — evasivas — foram propositalmente curtas para não prolongar o assunto. Desde que Lindsey mencionou que todas as garotas praticamente se jogavam em cima de Cash, tenho questionado o interesse dele por mim. Além disso, cinco beijos não fazem de ninguém um namorado, e eu não vou entrar naquele assunto sobre ele ser adotado. Mas a pergunta da minha mãe me faz pensar em como sei pouco sobre ele.
Depois de pegar uma garrafinha de água, vou para o meu quarto fazer a lição de casa e penso no que vou escrever para Cash. Ou na razão por que ele não me mandou nenhuma mensagem.
Odeio me sentir assim. Por que não posso simplesmente mandar uma mensagem para ele? Tenho receio de dizer algo idiota e ele parar de gostar de mim. Tenho medo de que ele não me mande nenhuma mensagem porque encontrou uma universitária muito mais bonita do que eu.
Sim, eu sou uma boba insegura. Sempre culpo a adoção. O fato de saber que meus verdadeiros pais não me quiseram. Às vezes quero encontrá-los e perguntar por quê.
Eu desabo na minha cama e Félix se deita sobre meu peito. Ouço seu ronronar e esse som me acalma. Abro meu aplicativo de fotos e tiro uma foto dele. Só sai metade de sua carinha, mas a foto fica bonita.
Eu finalmente o empurro para sair de cima de mim, fico de bruços e escrevo: Como foi a aula?
Imediatamente, vejo que ele leu a minha mensagem. Sorrio e me pergunto se ele estava prestes a me escrever também.
Cash: Entediante. Professor estava atrasado.
Eu: Que pena. Você ainda está na faculdade?
Ele: Não. O que você fez hoje à noite?
Eu: Saí para jantar em um restaurante italiano com a minha mãe.
Ele: Ela está de bom humor?
Eu: Não surtou mais. ©
Ele: Que bom.
Félix se deita sobre as minhas costas e fica afofando meus ombros.
Faço uma pausa e olho outra vez o celular. Devo me despedir agora?
Ele: Eu gostaria de ter beijado você no estacionamento.
Dou risada e solto um gritinho.
Eu: Eu também.
Ele: Posso te ver amanhã à tarde?
Eu não quero trazê-lo em casa novamente.
Eu: Que tal se a gente se encontrar naquela cafeteria depois de eu deixar Lindsey em casa?
Ele: Boa ideia.
Eu: Preciso fazer a lição de casa, mas o meu gato não me deixa em paz.
Ele: O gato dos Fuller também é assim.
Tenho a triste sensação de que ele não pensa no gato como se fosse dele e não se refere à casa dos Fuller como se fosse a casa dele. Eu me pergunto se as coisas são ruins lá. Quero perguntar, mas não sei como. Em vez disso, anexo a foto que acabei de tirar de Félix e uma legenda.
Eu: Olha o Félix.
Deitado na cama, Cash leu a mensagem. Ele se levantou na hora. Caramba! O nome do gato dela é Félix? Ele tentou se lembrar se havia contado a ela qual era o nome do gato dos Fuller. Ele não havia contado. Não tinha nem falado do gato ainda. Certo?
Ele: O nome do seu gato é Félix?
Ela: Sim.
Ele: Quem deu esse nome a ele?
Ela: Eu. Era pequena. Tinha 3 ou 4 anos. Por quê?
Merda! Ele saltou da cama e começou a andar pelo quarto.
Mas, puxa, se isso fosse um golpe, seria a maneira perfeita de aplicá-lo! Continuar dando dicas até... mas não era um golpe.
Ele ficou ali, o dedo posicionado acima do celular, sem saber o que digitar. O que dizer. Finalmente digitou:
Ele: O gato dos Fuller se chama Félix.
Ela: Mentes brilhantes pensam de maneira parecida.
Ele: Sim.
Ela: Foi você quem deu esse nome a ele?
Cash se sentou outra vez enquanto suas emoções desciam por uma tirolesa, abalando seus nervos. Digitou: Não. Ele é velho.
Ele tinha que contar a ela. No dia seguinte. Mostraria a foto em que tinham feito a progressão da idade dela. Chloe ficaria com raiva? Iria descontar a raiva nele? Ficaria chateada por ele ter escondido isso dela? Seria o final do relacionamento entre eles?
— Provavelmente — Cash respondeu em voz alta. Mas ele não tinha escolha.
11
— O que você está fazendo?
Merda. Cash olhou através do para-brisa. Eram cinco da manhã e ele achava que poderia fazer aquilo sem que ninguém soubesse.
A sra. Fuller, ainda de roupão, estava parada na porta da garagem. Que horas ela acordava?
Ele não tinha contado aos Fuller que o carro dele fora riscado. Agora, como explicar por que ele estava instalando uma câmera em seu carro? Ele tinha cerca de um segundo para decidir se deveria dizer a verdade ou mentir. Mentir não parecia justo.
Ele saiu do jipe.
— Estou instalando uma câmera.
— Uma câmera? Por quê?
— Ontem alguém riscou a minha porta.
— O quê? — Franzindo a testa, ela se aproximou e olhou a lateral do jipe. — Por que alguém faria isto?
— Estou achando que é o cara com quem briguei. Mas não posso provar. Então, achei que, se o pegasse no flagra, poderia ter certeza. — O que ele faria se esse plano funcionasse? Ah, já tinha algumas ideias. A maioria delas incluía socos e todas o deixariam em maus lençóis.
Mas aquilo era algo em que ele pensaria mais tarde.
— Você denunciou?
— Não.
Ela apertou os lábios.
— Por quê? A escola precisa saber.
Ele sentiu um nó no estômago.
— Por favor, me deixe resolver do meu jeito.
Ela ficou rígida.
— E se envolver em outra briga com ele?
— Eu não vou brigar — Cash disse, sabendo que estava fazendo uma promessa que dificilmente conseguiria cumprir. — Não tenho certeza se foi ele quem fez isso. Isso pode até ter acontecido na faculdade. — Era mentira. — Não quero acusar ninguém sem provas. Se riscarem meu carro de novo, vou saber quem foi.
— E o que vai fazer quando souber?
— Não vou começar uma briga. Prometo.
A sra. Fuller soltou aquele suspiro triste e ele sentiu um aperto no peito, sabendo que a estava decepcionando novamente.
— Precisamos acionar o seguro do carro. Tenho certeza de que o conserto está coberto.
— Tudo bem. Vou dar um jeito. — Não importava que fosse importante para ele.
— Você não deveria resolver isso sozinho. Vou avisar Tony e você e ele podem decidir como solucionar isso.
Droga! Ele deveria ter mentido.
— Onde você conseguiu a câmera? — ela perguntou.
— Numa loja de peças automotivas. Paguei com o meu próprio dinheiro.
A sra. Fuller soltou outro longo suspiro.
— Você tem o nosso cartão de crédito. Poderia ter usado.
Sim, ele tinha e nunca usara. Nunca faria isso. Nunca tirava vantagem dos Fuller nem pedia a eles mais do que precisava.
— Já que está acordado, venha tomar café da manhã comigo. Estou fazendo ovos com torradas.
Ele queria recusar, mas sabia que ela ficaria chateada.
— Está bem.
— Fica pronto em cinco minutos — disse ela.
Ele instalou a câmera em três minutos e entrou.
— O sr. Fuller não acordou ainda? — perguntou Cash.
— Ele só tem paciente às nove, por isso está dormindo — disse ela.
— Você quer suco? — Cash perguntou.
— Por favor.
Quando ele se aproximou do balcão, viu algo ali, ao lado da bolsa da sra. Fuller. Sua respiração ficou presa.
— O que você está fazendo com isso? — Ele olhou para a foto de Emily com a progressão da idade.
— Alguém pegou a que estava no Walmart. Eu imprimi outra.
Cash olhou para a sra. Fuller enquanto ela fritava os ovos.
— Não fale nada. Tony já disse. — Ela tirou a frigideira do fogão. — Sei que as chances de encontrá-la são praticamente nulas. Sei que a foto que aquele homem me mostrou é provavelmente uma farsa. Mas que mal faz afixar esta naquele quadro?
Ela cruzou os braços.
— Adoraria saber quem a tirou de lá.
A culpa apertou o peito de Cash.
A sra. Fuller tirou a torrada da torradeira e a colocou num prato.
— Será que acharam que ela se parecia com alguém? Não consigo parar de pensar. E se for a pessoa que a levou? Todos pensam que ela está morta. Eu entendo. — Ela colocou a torrada na mesa. — Mas e se não estiver? — A sra. Fuller olhou para ele. — Eu não estou obcecada com isso. Eu só.... Que mal faria deixar uma foto naquele quadro?
Cash viu a dor nos olhos dela e se perguntou se ela e o sr. Fuller teriam discutido sobre isso. Cash os ouvira brigando depois que foram enganados. O marido queria que ela esquecesse. Ela o acusara de esquecer a filha.
— Sinto muito.
A sra. Fuller franziu as sobrancelhas.
— Eu sei. Não faça tempestade em corpo d’água, assim como Tony. Estou bem.
Ela não estava bem, pensou Cash. Tinha perdido a filha. Por que, depois de quinze anos, sua mãe adotiva ainda ansiava pela filha, enquanto a mãe dele tinha acordado uma manhã e ido embora?
Cash ouviu as palavras do pai: Ela não estava nem aí pra você.
O alarme toca e eu tropeço a caminho do banheiro, ainda meio dormindo. As luzes estão acesas na sala de estar. O aroma de café perfuma o ar. Eu diminuo os passos para espiar a minha mãe, sem a bandana, sentada no sofá. Está usando o roupão muito grande para ela e folheia um álbum de fotos. Ela vira uma página. Algo na lentidão do gesto demonstra o humor em que ela está.
E não é bom.
Esperando que eu esteja errada, vou fazer xixi. Então saio do banheiro e entro na sala de estar, imprimindo de propósito mais alegria à minha voz.
— Bom dia!
Ela ergue os olhos. Eu desanimo ao ver as lágrimas nos olhos dela. Espero que o e-mail do seguro-saúde com a lista de terapeutas chegue hoje.
Ao me aproximar, sinto como se estivesse entrando numa bolha de tristeza. Meu olhar se desvia para o álbum. Espero ver uma foto do meu pai, mesmo achando que eu tenha confiscado e escondido todas as fotos dele quando a encontrei arrancando-as do álbum e rasgando-as. Mas não é a foto do papai que ela está olhando.
É da minha avó, quando era mais nova. Eu me lembro dela.
Minha mãe enxuga uma lágrima da bochecha.
— Sonhei com ela.
Quando me sento ao lado da minha mãe, o sofá solta um assovio. Contemplo a imagem de uma mulher de cabelos castanho-claros, olhos verde-claros e um sorriso radiante. Pela primeira vez, percebo quanto minha mãe se parece com ela. No entanto, não a vejo abrir um sorriso tão grande faz muito tempo.
Ela vira a página. Há uma foto dos meus avós. Minha mãe era filha única e nasceu quando eles já tinham certa idade. O pai dela morreu logo depois que fui adotada.
Vovó morreu quando eu tinha 7 anos. Ela sempre vinha ficar conosco no Natal e nas férias de verão. Naquela época, minha mãe trabalhava em período integral no hospital e minha avó ficava cuidando de mim. Lembro-me dela sempre comendo e me oferecendo tangerinas; ela até cheirava a tangerina. Sempre lia para mim à noite e seus abraços eram bem apertados. Ela me chamava de Mosquitinho. Eu odiava insetos, mas sabia que era um apelido carinhoso.
Também me lembro de acordar uma manhã e encontrar minha mãe chorando na cozinha. Meu pai estava abraçado a ela. Ele então se afastou de minha mãe e me puxou para o lado e explicou que vovó tinha ido para o céu, por isso minha mãe estava triste. Eu me lembro de chorar naquele dia também. Eu amava minha avó. Iria sentir falta dos abraços de tangerina e das caras engraçadas que ela fazia quando lia para mim.
Agora, depois que quase perdi minha mãe, quero chorar de novo — mas pela minha mãe desta vez. Posso imaginar muito bem como é perder um pai ou uma mãe.
— Foi um sonho bom? — pergunto.
— Sim. Estávamos cozinhando. Descascando batatas e rindo. Eu ainda sinto falta dela.
— Aposto que sente. — Meu coração fica apertado. Eu toco a cabeça dela.
— Ei, está nascendo cabelo! Cabelo de verdade, não só uma penugem.
— Sim, eu também notei. — Ela sorri, mas seus olhos parecem cansados.
— A que horas você acordou?
— Estou acordada desde as três da manhã.
— Volte para a cama — eu digo.
— Não. Preciso me preparar emocionalmente para a minha entrevista.
— Ah, claro. — Aperto a mão dela. — Boa sorte.
— Minha entrevista é só às quatro e meia. Te vejo antes de sair. Vou precisar que você me lembre de que não tenho com que me preocupar.
Não, não vai dar! Vou me encontrar com Cash. As palavras estão na ponta da língua, mas não consigo empurrá-las para fora.
— Claro.
Droga. Droga. Droga. Estou murmurando baixinho vinte minutos depois, enquanto passo um pouco de brilho nos lábios. Por que não consigo apenas dizer boa sorte para ela agora? Minha mãe precisa viver a vida dela e, até que faça isso, vai ser difícil eu conseguir viver a minha. O pensamento de ir para a faculdade parece impossível. Vejo a imagem na minha cabeça: eu envelhecendo ao lado da minha mãe.
Olho para o meu rosto no espelho do banheiro e me pergunto se depressão é algo contagioso.
A verdade é que eu provavelmente estava deprimida antes do início das aulas. Mas ter um lugar para onde ir todo dia e talvez a emoção de encontrar Cash e, quem sabe, até me tornar a melhor amiga de Lindsey fizeram minha vida parecer mais divertida. Melhor. Menos amarga.
Isso me dá a esperança de que minha mãe sinta o mesmo com relação ao trabalho dela. Com o novo emprego e a terapia, talvez eu consiga minha mãe de volta.
Eu ouço Docinho choramingando na porta do banheiro. Abro e ele está ali, com a guia na boca.
— Desculpa, amigão. Tenho que ir para a escola. Talvez esta tarde.
Então percebo que, embora eu não consiga encontrar Cash logo após a escola, a entrevista da minha mãe vai durar tempo suficiente para eu vê-lo enquanto ela estiver fora.
— Você gostou de Cash, não gostou? Tudo bem se ele for conosco no nosso passeio, certo? — Docinho abana o rabo. Ah, eu podia ter esperança, no final das contas.
Era cedo quando Cash chegou à casa de Chloe. Ela tinha pedido que ele chegasse às quatro e meia, então ele estacionou quatro casas abaixo e esperou. Ele estava uma pilha de nervos e seus ombros estavam, rígidos.
Ele tocou no bolso da frente, onde estava a foto com a progressão da idade.
Como ele iria explicar aquilo? Chloe ficaria chateada? Será que o fato de descobrir sobre a foto a levaria a desvendar todas as outras mentiras dele? O pneu? O arquivo da escola? Cash continuava dizendo a si mesmo que na hora decidiria o que fazer. Mas não estava a fim de improvisar.
Precisando de algo com que se ocupar, começou a excluir alguns vídeos gravados do cartão de memória da câmera do carro. Não tinha conseguido nada ainda. Mas podia demorar um pouco até que os agressores ficassem decepcionados pela falta de reação dele e tentassem novamente. Isso é o que eles queriam. Uma reação. Paul queria que ele começasse uma briga. Então, ele poderia dizer: Veja, Cash começou essa briga e a anterior também.
Cash não ia dar a Paul o que ele queria. Na verdade, hoje ele havia se desviado do seu caminho habitual só para passar ao lado de Paul e seus amigos, e sorrira o tempo todo.
Ele sabia que isso irritava Paul.
Paciência é a chave. Espere as pessoas fazerem alguma coisa. Elas vão fazer alguma besteira. Sempre fazem.
De onde estava estacionado, ele viu Chloe andando com a mãe até o carro. Antes de a mãe entrar, Chloe a abraçou. Ele lembrou que a mãe dela tinha uma entrevista de emprego naquele dia.
A cena lhe pareceu estranha. Como se Chloe fosse a mãe, não a filha.
Mais uma razão para Cash se preocupar com a história toda de Emily. O tiro poderia sair pela culatra. A primeira reação de Chloe poderia ser defender a mãe. Não, ele não acusaria os pais dela de serem os sequestradores, mas isso estava implícito.
Seus instintos lhe diziam para adiar a revelação, mas haveria um momento melhor para contar tudo a ela?
Chloe observou a mãe ir embora. Quando ela se virou para voltar para dentro de casa, seu olhar se desviou para a rua. Ela colocou a mão na testa para bloquear o sol e olhou na direção do carro dele. Droga. Ela o viu.
Cash ligou o motor e parou na frente da casa de Chloe.
Sentindo-se culpado por espioná-la, ele saiu do carro com a cabeça baixa, ensaiando o que dizer.
— Eu cheguei cedo e não quis incomodá-la.
— Você não precisava esperar no carro. — Ela não parecia chateada. Cash percebeu que havia reconquistado a confiança dela. E agora estava prestes a destruir essa confiança.
Um sorriso iluminou o rosto dela. Uma brisa agitou seus cabelos. Era o clima perfeito para ir ao parque.
— Entre — Chloe disse. — Vou pegar Docinho.
Ele a seguiu para dentro. Ela se virou e olhou para ele. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos desde que tinham se beijado. Será que ela esperava que ele a beijasse agora? Ele queria. Tinha pensado tanto naqueles beijos... A lembrança estava tatuada em sua mente. Mas não parecia certo beijá-la novamente enquanto ele estava mantendo aquele grande segredo.
Ela chamou o cachorro. Um latido veio do quintal e ela deixou o cão entrar.
— Quer ir passear, amigão?
Ela pegou a guia e a prendeu à coleira do cachorro, então parou.
— Vou correr até lá em cima e pegar um cobertor para a gente se sentar.
Enquanto Chloe disparava para o quarto, ele foi dar uma olhada nas fotos de família, na mesa ao lado do sofá. Encontrou aquela com uma Chloe pequena segurando o gato. Ele percebeu outra coincidência. Tanto Chloe quanto Emily estavam com um vestido cor-de-rosa. Ele pegou o celular no bolso para tirar uma foto, mas ouviu passos e guardou o aparelho.
Um gato tigrado amarelo a seguia. Ele olhou para o animal se esfregando nos tornozelos dela. Os dois Félix eram idênticos. Seria por isso que a jovem Chloe tinha dado a eles o mesmo nome?
— Félix? — ele perguntou.
— Sim. Ele é um amor. — Ela largou o cobertor numa cadeira próxima e agachou-se para acariciar o felino. A camiseta que ela usava tinha um decote que lhe dava uma visão de parte dos seios. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.
— Félix, este é Cash — apresentou ela.
Chloe se levantou e ele mal conseguiu desviar os olhos para o gato. Ele pegou o cobertor e, enquanto saíam da casa, ela se inclinou para mais perto dele. O choque de prazer e de dor acertou-o em cheio. Apesar do desconforto gerado pela culpa, ele adorava tocá-la.
Quando chegaram ao parque, Docinho começou a saltitar. Cash pegou a guia e Chloe ficou com o cobertor. O parque estava quase vazio. Eles encontraram um local sob a sombra de uma árvore e ela estendeu o cobertor na grama.
— Posso tirar a guia dele? — Cash perguntou.
— Sim. Ele fica por perto.
Cash se sentou ao lado de Chloe e soltou o cachorro, que congelou no lugar como se estivesse hipnotizado pela bola nas mãos dela.
Ela jogou a bola e Docinho correu. Chloe sorriu.
— Já vou pedindo desculpas. Ele não vai dar sossego por causa dessa bola. Tem obsessão por ela.
— Tudo bem — disse Cash. — Estou começando a ter obsessão por Chloe, então posso entender.
Ela riu.
— Acho que estou começando a ter obsessão por Cash também.
— Ótimo! — ele disse.
Sorrindo, ela olhou para o céu.
— É um belo dia.
Cash seguiu o olhar dela até o céu azul salpicado de nuvens brancas e fofas.
— Sim.
Chloe se recostou no cobertor. O decote dela subiu o suficiente para que ele pudesse olhá-la sem ficar babando. Os cabelos longos e castanhos estavam espalhados ao redor dos ombros e o sol suave do entardecer iluminava o rosto dela.
Ele queria beijá-la e deixar a conversa para depois.
Os olhos castanhos dela encontraram os dele.
— Você ficava tentando encontrar figuras nas nuvens, quando criança?
— Encontrar o quê? — Cash perguntou, estava tão ocupado olhando para ela que não prestara atenção ao que Chloe dissera.
— Você sabe, tipo elefantes ou dragões. No céu. Agora mesmo vejo um cavalo.
Ela apontou para cima.
Ele tentou seguir o dedo dela.
— Tudo o que vejo são nuvens.
Chloe riu.
— Use a imaginação. Não vê a cabeça, as patas e a cauda atrás?
Ele tentou.
— Lamento, mas...
— Minha mãe e eu costumávamos ir para o quintal e ficar olhando o céu por horas, tentando encontrar coisas. Ela sempre levava um saquinho de Skittles. E, sempre que uma de nós encontrava algo, ganhávamos um vermelho. — Ela sorriu.
— Por que vermelho?
— Porque os vermelhos são os melhores. São doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Cash forçou um sorriso e novamente tentou ligar alguém que procurava formas em nuvens na companhia da filha com a imagem de uma sequestradora. Algo parecia errado.
— Você se lembra dos seus pais? — ela perguntou.
A pergunta o pegou desprevenido. Docinho veio correndo com a bola na boca. Cash pegou a bola, grato pela pequena interrupção, e jogou-a novamente.
— Da minha mãe, não. Do meu pai, sim.
— Como ele era?
Ele voltou a olhar para o céu. Um cretino.
— Acho que vi o cavalo.
Quando Cash olhou para Chloe, ela estava franzindo a testa.
— Você faz muito isso.
— O quê?
— Mudar de assunto. — Ela mordeu o lábio. — Você não gosta de falar sobre eles, não é?
— Na verdade, não.
Ele respirou fundo.
— Chloe, eu preciso...
— Eu sinto que você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre você.
— Eu não sei tudo sobre você — disse ele, tentando escapar da conversa.
— Você sabe que meu pai é um idiota que vive me enganando. Você sabe que meu namorado se chamava Alex e que minha mãe teve câncer.
— Que tipo de câncer? — Cash perguntou e, para seu crédito, ele queria mesmo saber. Tinha ouvido a sra. Fuller falar sobre cânceres que eram mais difíceis de curar.
Chloe sentou-se.
— Câncer de mama. — Ela puxou um joelho e o abraçou. Dava para perceber que era difícil para ela falar sobre a doença da mãe.
— Mas ela está livre do câncer agora, certo?
— Sim. Foi diagnosticado cedo. Minha avó teve câncer de mama, então minha mãe fazia mamografias anuais. Ela estava com medo de ter o gene do câncer.
— Gene do câncer? — Cash perguntou.
— Há um gene de câncer de mama hereditário. Ela fez o teste e foi comprovado que não o tem.
— Tenho certeza de que você ficou aliviada — ele disse, sem saber o que dizer.
— Bem, como ela não é minha mãe biológica, isso não me afetou.
As palavras de Chloe ficaram dando voltas na cabeça dele. Não é minha mãe biológica. Docinho veio correndo e deixou cair a bola ao lado de Cash. Ele o ignorou.
— Ela... não é sua mãe de verdade?
— Não. Eu sou adotada. — Ela puxou a outra perna para cima. — E lá vou eu de novo, falar de mim a você. Já que você conhece Alex, conte-me sobre sua ex-namorada.
Chloe é adotada? Isso significa...?
— Adotada?
— Não mude de assunto. Conte-me sobre sua antiga namorada.
Cash teve que se concentrar para responder.
— Eu namorei uma garota por alguns meses quando tinha 16 anos.
— Da escola particular?
— Não, ela morava em Langly.
— Como você a conheceu?
— Os pais dela têm uma casa no lago ao lado da casa de veraneio dos Fuller, mas...
Não é minha mãe biológica.
— O que aconteceu? — Chloe perguntou.
— Ela conheceu outra pessoa.
Ele precisava dizer a Chloe agora.
Antes que Cash pudesse dizer mais uma palavra, ela continuou.
— Você gostava dela?
— Não. Um pouco. Só namoramos por uns dois meses.
— E essa foi a única namorada que você teve? — O tom de voz de Chloe dizia que ela não iria desistir.
— Neste verão, saí com algumas universitárias.
— Garotas mais velhas? — As sobrancelhas dela se levantaram, como se aquilo fosse uma coisa ruim.
— Apenas um ano ou um pouco mais do que isso.
— Você ainda está saindo com elas?
— Não. Chloe, eu preciso...
— Há quanto tempo você mora com os Fuller?
Docinho bateu com a bola na perna dele. Cash a jogou novamente.
— Faz três anos.
Ela descansou a mão no braço dele. Seu toque enviou uma faísca de dor direto para o peito de Cash. Mas então, com a mesma rapidez, a centelha lhe deu prazer.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele colocou um dedo nos lábios dela.
— Pare de fazer perguntas. — O tom foi mais agudo do que ele pretendia. — Estou tentando te dizer uma coisa.
Ela fez uma careta.
— Ok.
Ótimo. Cash já a irritara e nem tinha começado a falar ainda. Ele passou a mão pelos cabelos.
— Eu só vou mostrar a você.
— Me mostrar o quê? — Ela inclinou a cabeça para o lado como um filhote de cachorro curioso.
Ele tirou do bolso a foto com a progressão da idade e entregou a Chloe. Ela desdobrou a foto. Examinou-a e depois olhou para ele.
— O que é isso?
Cash não viu o reconhecimento que ele esperava nos olhos dela.
O coração dele acelerou no peito.
— É uma foto de Emily Fuller com a idade que ela teria hoje.
— Emily Fuller, o mesmo sobrenome dos seus pais adotivos?
Cash assentiu.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Eu ainda não entendi por que você está me mostrando isso.
— É você. Não vê?
Chloe olhou para a foto novamente, os olhos arregalados.
— Não sou eu.
— Parece você.
— Não. Quero dizer, talvez um pouco, mas não... parece de fato.
Ela examinou a foto novamente.
Cash viu um vinco aparecer entre as sobrancelhas dela. Chloe estaria se reconhecendo agora?
Agora ela parecia preocupada.
— Os Fuller... deram o bebê deles para adoção?
12
— Não — diz Cash.
Estou tentando entender o que ele está dizendo. Olho para a foto. Não, não é uma foto, mas um desenho. Ou um desenho feito no computador. Um daqueles mostrados nas séries policiais da TV. Eu vejo uma semelhança, mas não é tão grande assim. Ou será que é?
— Então, não sou eu. Fui adotada.
Ele me olha como se pedisse desculpas.
— Ela foi sequestrada.
As palavras de Cash ecoam nos meus ouvidos e minha resposta vem imediatamente.
— Eu não fui.
— Quantos anos você tinha quando foi adotada?
— Espere. Você acha que...? Isso é loucura.
— Eu sei que é, mas apenas me responda. Quantos anos você tinha?
— Quase 3.
Os olhos dele se apertam como se isso provasse alguma coisa.
— Você se lembra dos seus pais de verdade?
— Não. Mas você não está escutando. Eu fui adotada.
— Chloe, Emily Fuller desapareceu dois meses antes de fazer 3 anos de idade.
Um sentimento desconfortável brota no meu peito.
— Eu fui adotada. Não sequestrada.
— Tem mais uma coisa. — Ele pega o celular, encontra algo e passa o aparelho para mim.
— Veja.
Com uma mão estou segurando a foto, com a outra, o celular dele. De repente, as duas coisas parecem pesadas.
Eu quase não olho para a tela, mas então crio coragem. É uma foto emoldurada minha quando criança, com Félix no colo.
— Por que você tirou uma foto disso?
— Chloe, essa é Emily Fuller. Tirei essa foto na casa dos Fuller.
— Não, esta é a foto que está na minha casa.
Eu olho para a imagem e percebo que estou enganada. Na foto que há em casa, estou de pé ao lado de um balanço.
— Ok, eu pareço com ela, mas isso não...
— O nome do gato é Félix.
— Hã?
— Você disse que deu ao seu gato o nome de Félix. O gato dos Fuller se chama Félix.
O ar fica preso no meu peito, uma grande bolha que pressiona meus órgãos.
— Muitos gatos se chamam Félix. Havia um desenho animado...
— Seus pais se mudaram para longe logo após dizerem que adotaram você.
Dizerem? A bolha torna-se dolorosa.
— Você acha que meus pais me sequestraram? Você está maluco.
Olho a foto novamente e meu polegar acidentalmente passa o dedo na tela. A imagem muda. Eu pisco e olho. É um formulário. Mas tem o meu nome.
— O que é isso? — Eu mostro para ele o celular.
Culpa transparece nos olhos de Cash.
— Seus arquivos escolares. Eu precisava descobrir se...
— Descobrir o quê? — Minha coluna vertebral se enrijece.
— Achei que você poderia estar tentando enganar os Fuller.
— Enganá-los? O que você quer dizer?
— Se você parecia com Emily, então talvez estivesse tentando extorquir dinheiro deles.
Eu inspiro uma lufada de ar, aumentando a bolha. Balanço a cabeça. Nada faz sentido. Fico sentada ali, sentindo o sol na minha pele e a acusação de Cash na minha cabeça.
— Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso? — Então me lembro do que Cash me disse naquele dia na loja de conveniência. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
— As pessoas fazem coisas assim. — A expressão dele é quase de irritação.
Mas ele não tem o direito de ficar com raiva. Eu tenho.
— Então é disso — gesticulo indicando o espaço entre nós — que se trata o nosso relacionamento? — Olho para a foto do formulário. Tem o meu endereço nele. — Você não estava dirigindo pelo meu bairro procurando o meu carro aquele dia. Você sabia onde eu morava.
Cash não responde. Não precisa. A expressão dele deixa transparecer a verdade.
— Você... Foi você quem murchou o meu pneu!
— Eu precisava me aproximar de você para descobrir.
— Nada disso é real! — A raiva cresce por dentro, eu não consigo me conter. Jogo o celular para ele e me levanto. — Você é um sem-noção.
Cash também se levanta.
Cubro os olhos com as mãos, vejo tudo escuro, depois lampejos de luz.
— Ah, Deus. Eu te beijei. Tiro as mãos do rosto e olho para ele. — Você... Você nem gosta de mim.
— Isso não é verdade. Eu te beijei também e depois te beijei mais quatro vezes. Eu não pretendia... me apaixonar por você, mas me apaixonei.
Pego a guia de Docinho.
— Vou para casa.
— Chloe, não. Vamos conversar.
— Não. — Eu levanto a mão. Chamo Docinho. Quando ele vem, coloco a guia nele.
Dou um passo. Cash pega meu braço.
— Vou te levar.
Eu puxo o braço.
— Não. Vou andando. — Preciso ficar sozinha. Eu preciso... — Eu não sei do que preciso, exceto que tenho que ficar longe dele. Longe das acusações absurdas.
Eu o ouço chamar meu nome, mas continuo colocando um pé na frente do outro. Eu fui adotada. Não... Não. Não é verdade. Não pode ser. Eu não acredito. Então me recordo da minha única lembrança: eu, sentada num sofá, olhando para um tapete sujo. Eu me lembro de me sentir tão perdida. Tão abandonada. Tão assustada.
Continuo andando. Meus joelhos estão tremendo, ou será que é o chão embaixo de mim que está estremecendo? Todo o meu mundo está estremecendo. Isso não pode ser verdade.
Eu caminho rápido. Docinho continua andando ao meu lado. O ruído de suas patas batendo na calçada enche minha cabeça. Cada vez que ouço um carro se aproximando, fico com medo de que seja Cash.
Meu celular toca. Eu ignoro. Ao me aproximar de casa, vejo o carro de Jamie estacionado em frente à casa de Lindsey. As duas estão nos degraus da varanda de Lindsey. Eu não quero falar com elas.
Sei que ainda estou segurando a foto que Cash me mostrou. Eu amasso a foto, vou jogá-la fora, mas mudo de ideia e a guardo no bolso. Saio da calçada quando estou em frente à minha casa.
— Chloe? — Alguém me chama da casa ao lado.
Eu ignoro e continuo andando. Procuro no meu bolso a chave da porta, ando até a varanda e rezo para que elas desistam.
Elas não desistem.
Eu as ouço subindo os degraus atrás de mim. Por favor, vão embora. Eu percebo que estou chorando.
— O que foi? — É a voz de Lindsey, mas ouço os passos de outra pessoa, então sei que Jamie está com ela. Jamie nem gosta de mim. Eu não quero que ela me veja chorando como um bebê.
— Eu não posso falar agora. — Abro a porta, coloco Docinho para dentro, fecho a porta na cara delas e corro para o meu quarto. Eu me jogo na cama e abraço um travesseiro com força suficiente para fazê-lo explodir. Félix pula no colchão, tentando se aconchegar a mim.
Eu não acredito, digo a mim mesma. Então, por que estou tão arrasada?
Digo a mim mesma que é porque fiz papel de idiota quando beijei Cash.
Meu celular toca. Ignoro.
Cinco minutos depois, ele toca novamente.
E de novo.
E de novo.
Arranco-o do bolso para desligá-lo, mas vejo que há uma mensagem da minha mãe.
Ah, ótimo! Verifico para ver o que ela diz, sabendo que não posso estar chorando quando ela chegar em casa.
Consegui o emprego! Preenchendo a papelada. Comprando comida chinesa para o jantar. Vejo você em uma hora.
Ouço uma batida na porta da frente. Merda! É Cash?
Olho pela minha janela, onde posso ver a rua. O carro dele não está em frente, mas não consigo ver quem está na varanda.
Meu celular apita novamente. É Lindsey.
Preocupada. Você está bem?
Eu mando uma mensagem de volta.
É você quem está na porta?
Sim.
Sozinha?
Simmm.
Eu enxugo o rosto, me obrigo a me levantar e vou até a porta da frente.
— O que há de errado? — Lindsey pergunta assim que eu abro a porta. Ela não aguarda um convite; simplesmente entra.
— É uma maluquice — eu digo.
— O que é uma maluquice? Cash fez alguma coisa?
Pego a foto amassada do bolso e a aliso para desamassá-la.
— Essa garota não se parece comigo, não é?
Lindsey pega o papel amassado, olha para ele e depois olha para mim.
— Parece, sim. O que é isso?
Meu peito aperta. Vou para a sala e me largo no sofá. Meu corpo parece mais pesado ainda.
— Você deveria dizer que não.
Ela se senta ao meu lado.
— Desculpa. Você deveria ter me dito isso antes de perguntar.
Eu respiro fundo. Ainda quero chorar, mas me seguro. Olho para Lindsey.
— Você não pode contar a ninguém.
— Eu não vou contar.
— Cash pensa... Ele acha que eu sou a filha desaparecida dos pais adotivos dele.
Ela olha para mim como se eu não estivesse falando coisa com coisa, o que me dá um pouco de esperança. Porque nada daquilo faz sentido. Não pode ser verdade.
— O quê?
— Ela foi sequestrada.
Os olhos de Lindsey se arregalam.
— Ele acha que você foi sequestrada?
Lindsey faz um som de bufar que é meio risada, meio descrença.
— Sim. É loucura. Eu acho que ele nem gosta de mim. Cash pensou que eu estava tentando enganar os pais adotivos dele, tentando extorquir dinheiro deles. Ah, e imagine só! Ele murchou meu pneu.
— O quê? — Lindsey repete. Então ela olha novamente para a foto.
— Ok, parece com você, mas... Isso é loucura.
— Eu sei. Quero dizer, sim, fui adotada, mas...
— Espera aí. — Ela se inclina para mais perto. — Você foi adotada?
— Sim.
Lindsey arregala os olhos.
— Ok, mas quando você foi adotada e quando essa garota desapareceu?
Eu franzo a testa.
— Na mesma época.
Ela olha para a foto novamente.
— Merda. — Quando Lindsey olha para mim, posso ver em seus olhos que ela está começando a acreditar.
— Não pode ser verdade. Meus pais não são sequestradores!
Ela faz uma careta e devolve a foto para mim.
— Você já procurou na internet?
— Procurou o quê?
— O sequestro?
— Não. — Eu me levanto. — Mas agora vou procurar. — Corro para o meu quarto, onde meu laptop está ligado.
— Você sabe o nome da garota? — Lindsey pergunta, me seguindo.
— Sim. — Sento-me na minha escrivaninha e coloco a foto de lado. Meu celular toca. Provavelmente é Cash. Eu o ignoro e digito na barra de pesquisa do Google: criança desaparecida Emily Fuller. Ao digitar o nome, sinto calafrios, como se isso significasse algo para mim. Mas não pode significar nada. Então ouço o nome na minha cabeça. Emily. Emily. Emily. Há uma familiaridade nele que eu odeio, mas não compreendo.
Clico no primeiro link, mas existe, tipo, uma dezena deles. O link se abre. Vejo a foto de uma garotinha. Uma garotinha que se parece muito comigo quando eu era pequena. Eu começo a ler. “Desaparecida em 3 de setembro de 2004.” Minha respiração fica presa na garganta. Eu fui adotada em 4 de setembro.
Lindsey está lendo por cima do meu ombro.
— Você só foi adotada quando tinha 3 anos de idade?
— Quase 3 — respondo.
— Isso é muito estranho... — A voz dela ecoa.
Eu olho para Lindsey.
— Não sou eu. Não pode ser.
Meu celular toca novamente.
— Merda. — Eu o pego, vejo o nome de Cash e desligo.
Nesse momento, a campainha toca.
Lindsey se vira como se planejasse atender.
Eu agarro o braço dela.
— Não. Não quero vê-lo.
— Cash? — ela pergunta, e vai até a janela.
— Não vejo jipe nenhum lá fora. É uma van com o logotipo de uma floricultura.
A campainha toca novamente. Vou até a porta da frente e abro. Um homem está ali, com flores nas mãos.
— Chloe Holden? — ele pergunta.
É uma dessas perguntas que eu não deveria ter que pensar para responder, mas agora penso. Na verdade, pensei muito nisso durante toda a minha vida. Em quem realmente sou. Em quem meus pais realmente são.
Em que eu poderia ter feito de errado, tão pequena, para que meus pais me dessem para adoção.
De repente, sei quem enviou as flores. E começo a chorar novamente.
Uma hora depois, minha mãe está falando sem parar. Estamos sentadas na cozinha. Eu dou uma mordida no frango xadrez que ela trouxe para casa.
— Eles me adoraram! — Ela está animada. Feliz. Por isso escondi as flores no meu quarto. Eu quase as joguei fora. Eu já tinha tirado o buquê do vaso e segurado as flores acima da lata de lixo, mas não consegui.
Ele é meu pai. E... ele não é meu sequestrador. Essa coisa toda é um erro.
Então por que não conto à minha mãe?
Abro a boca para contar, mas nada sai. Porque isso poderia perturbá-la? Porque talvez eu não esteja convencida de que não é nada? As datas. O gato chamado Félix. A foto. Droga.
— Ele me disse que, por ter tido câncer, eu poderia oferecer mais apoio aos pacientes.
Estou tentando ouvir, mas ela já está se repetindo. Estou olhando para cima, depois para baixo, com o garfo na mão, enquanto persigo uma castanha-de-caju pelo prato.
— É o trabalho perfeito para você. — Pego a castanha e coloco na boca. Mastigo. Engulo. Não consigo sentir o gosto.
Minha mãe deixa cair o garfo.
— Não coma demais. Comprei sorvete de chocolate.
— Hmm... — Empurro meu prato e falsifico outro sorriso.
— Eu só começo quando a outra enfermeira sair. O que pode demorar duas ou três semanas. Eu gostaria que fosse agora. Ela estende o braço para pedir o meu prato. — Eu já contei que comprei umas bebidas que servem como suplemento alimentar? Eu me pesei esta manhã. Perdi mais alguns gramas.
Sim, porque você não come quando está chateada e você está quase sempre chateada.
— Você deveria beber, tipo, três por dia.
— Duas.
Olho para ela e tenho medo de perguntar, mas preciso. Porque, mesmo que ela esteja feliz agora, tenho medo de que algo pequeno, como o vaso de flores escondido no meu quarto, possa mudar isso.
— Você já recebeu os nomes dos terapeutas?
— Sim. E marquei uma consulta também.
Estou chocada.
— Sério?
— Sim. E é amanhã. — Ela aponta o garfo para mim. — Alguém cancelou a consulta.
— Ótimo!
Ela olha para mim, toda maternal.
— Você está se sentindo bem?
— Sim.
— Seus olhos parecem inchados.
Meu estômago aperta.
— Estou bem. Levei Docinho para passear. Eu acho que é alergia.
Ela continua a olhar.
— Seu pai ligou de novo?
— Não. — Merda. Ela sabe que andei chorando. E eu posso ver que a felicidade escorre dos olhos dela à simples menção do meu pai.
Ela continua me olhando.
— Tem certeza?
— Eu não tenho falado com meu pai. — Essa confissão me provoca um pouco de culpa. Eu deveria ter ligado para ele depois que as flores chegaram.
Não liguei.
— O que a deixou chateada?
— Nada. Estou bem, mãe.
— O que o deixou tão chateado?
Cash olhou para a sra. Fuller, parada à porta da cozinha. Quinta-feira era o dia de o sr. Fuller acordar mais tarde, então estavam apenas os dois acordados. E como ele não quisera jantar na noite anterior, ela tinha certeza de que havia algo errado. E havia mesmo.
Cash queria ir para o quarto e terminar a lição de casa, mas eles tinham uma regra tácita: se ela estivesse em casa, ele só tinha permissão para ir para o quarto depois das oito. Mesmo se Cash tivesse dever de casa, esperavam que ele o fizesse na cozinha.
A sra. Fuller achava que era isso que havia de errado com os adolescentes de hoje em dia. Os filhos passavam muito tempo no quarto e não conviviam o suficiente com a família.
Não importava que ela não fosse da família de Cash.
Era uma regra idiota.
— Não estou chateado. Eu já disse a você que comi um hambúrguer.
Ela fez uma careta.
— Isso explica por que você não jantou. Mas por que parece tão desanimado?
Porque magoei Chloe. Cash deveria ter pensado melhor antes de falar com ela. Ele deveria ter...
— É a lição de casa. Eu odeio resolver problemas de matemática.
A sra. Fuller se sentou.
— Eu posso ajudar. Não sou tão boa quanto Tony, mas...
— Não. — Ele olhou para o livro.
Cash a sentiu olhando para ele.
— Algo está aborrecendo você, Cash.
— Eu só preciso terminar isso.
Ela estendeu a mão e ergueu o queixo dele e o olhou direto nos olhos. O toque dela doía, como o de Chloe havia doído aquele dia mais cedo.
— Eu me preocupo com você. — Ela o olhou como se estivesse tentando ler a alma dele.
Cash não queria ninguém vendo o que havia na sua alma.
— Pare de tentar me psicanalisar.
Ela deixou cair a mão.
— Na outra noite, quando você veio à sala de jantar, eu estava sofrendo e você me ajudou. Não acho que me lembrei de dizer obrigada.
— Não há de quê — Cash disse, sem saber por que ela estava fazendo aquilo.
— Eu quero fazer o mesmo por você. — O suspiro dela encheu o cômodo. — Mas você não nos conta os seus problemas. Você nos afasta. Eu quero fazer as coisas direito.
Você não pode fazer direito.
— Eu já disse que estou bem. — Um dia ele teria que contar aos Fuller sobre toda aquela história de Chloe/Emily, mas não enquanto Chloe estivesse chateada. E não até que Cash tivesse certeza absoluta de que estava certo. No caminho para casa, ele tinha pensado nas palavras de Chloe. Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso?
O tipo dele. Cash fez isso. Ele se lembrou da dor profunda que viu nos olhos da mulher quando ele mentiu sobre ser o filho dela.
Cash tinha que ter certeza de que estava certo sobre Chloe ser Emily antes de contar aos Fuller.
Ele tinha que acabar com aquela raiva de Chloe para que pudessem descobrir a verdade. Mas como, se ela não estava nem mesmo respondendo às suas mensagens?
— Você não está bem — disse a sra. Fuller. — É como se achasse que não nos importamos. Nós te amamos.
Ele deixou cair o lápis.
— Pare. — A mesma frustração que Cash tinha sentido com Chloe brotou dentro dele.
— Parar o quê?
— Isso que está fazendo. Me desculpe, não posso ser o que você quer que eu seja. — Ele fechou o livro com força.
Os ombros da sra. Fuller afundaram.
— O que você acha que eu quero que você seja, Cash?
A resposta saiu sem que ele pudesse detê-la.
— Seu filho! Eu não sou seu filho!
A dor ficou estampada na expressão dela e ele quis dar um chute em si mesmo.
Cash olhou para o relógio do forno.
— São cinco para as oito. Posso ir para o meu quarto?
Ela assentiu.
Ele saiu da cozinha, mas não rápido o suficiente para não ouvir o suspiro de decepção da mãe adotiva.
Droga! Ele nunca fazia nada certo.
13
Eu estaciono na escola na manhã seguinte. Lindsey falou o caminho todo até aqui. Fazendo perguntas que não sei responder. Mas não fico irritada, porque são perguntas que eu preciso fazer a mim mesma. Emily Fuller tinha alguma marca de nascença? Havia algum suspeito? Havia descrições dos suspeitos?
Eu não voltei ao computador ontem à noite. Não consegui. Em vez disso, li um livro. Fiquei acordada e li um romance inteiro sobre vampiros e metamorfos, porque a história era muito distante da minha própria realidade. Eu queria ser transportada para longe da minha vida. Porque a minha vida é uma insana caixa de Pandora e, se eu abri-la, tenho medo do que vou encontrar.
Eu acabo de estacionar e olho para os prédios da escola. Estou cansada. Acho que dormi uma hora, talvez. Graças a Deus é sexta-feira. Pego minha bolsa e a mochila e percebo que não vou conseguir enfrentar isso também. Não vou conseguir passar o dia fingindo que está tudo bem. Não vou conseguir enfrentar Cash. Eu não tive nem coragem de ler as mensagens dele ainda.
— É isso, não vou para a escola — deixo escapar.
— Sério? — Lindsey pergunta.
— Quero pesquisar sobre Emily Fuller. — Por que toda vez que digo esse nome, sinto um déjà-vu? Emily. Emily. Emily.
— Eu tenho prova — diz Lindsey —, mas...
— Não — eu digo. — Preciso ficar sozinha. — Fui rude com ela? — Não é nada com você. Eu é que tenho que digerir essa coisa toda. Preciso ler todos aqueles artigos.
— Sua mãe não está em casa? — ela pergunta.
— Eu vou à biblioteca.
Ela parece preocupada.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Eu confirmo com a cabeça.
— Venho buscá-la depois das aulas.
— Não. Vou pedir para Jamie me levar para casa. — Ela me abraça. — Vai ficar tudo bem.
Como?, quero perguntar. Só vai ficar tudo bem se eu descobrir que nada daquilo é verdade. E mesmo assim, não vai ficar assim tão bem. Minha vida está uma bagunça.
O sr. Fuller tinha, por fim, ido falar com Cash sobre o fato de o jipe ter sido riscado. A conversa quase atrasou Cash para a escola. Ele mentiu sobre não saber onde o vandalismo tinha acontecido. O sr. Fuller insistiu em denunciar o estrago ao seguro, mas não estava obrigando Cash a fazer denúncia na escola. No entanto, ele teve que fazer ao pai adotivo a mesma promessa que fizera à mãe. Que, se ele flagrasse algo na câmera, resolveria o problema sem brigas. Manter essa promessa não seria fácil, mas Cash pretendia tentar.
O sr. Fuller não havia mencionado nada sobre o comportamento rude de Cash com a sra. Fuller. A mãe talvez não tivesse contado ao marido. Provavelmente porque temia que o sr. Fuller expulsaria Cash de casa. Será que ela sabia que os dois estariam melhor sem Cash? Ele se sentia um mau caráter por magoá-la. Por que tinha se transformado naquele cretino?
Estresse. Preocupação com Chloe. O fato de estar chateado com o vandalismo que Paul fizera no jipe que os Fuller lhe haviam dado. O jipe que ele não merecia. O jipe que era a única coisa nova e perfeita que ele já tivera na vida.
Cash não via a hora de a primeira aula acabar, pois estava desesperado para ver Chloe. Esperou até Literatura Americana para encontrá-la antes que ela entrasse na segunda aula — na esperança de que ela falasse com ele. Chloe não apareceu.
Antes que o sinal tocasse, ele foi para a ala leste da escola, onde ficava o armário de Lindsey.
— Ei — ele chamou quando a viu.
Surpresa, ela apertou os olhos.
— Oi.
— Você sabe onde Chloe está? — ele perguntou.
Lindsey franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Espero que você não esteja brincando com ela.
Agora era a vez dele de se surpreender.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer! A vida dela já não está fácil. A perda do namorado, o divórcio dos pais e o câncer da mãe, e agora você despeja em cima dela aquela história de ela ter sido sequestrada.
Ele não tinha dito a Chloe para não contar a ninguém, mas ficou chocado ao descobrir que ela havia contado.
— Eu preciso falar com ela. Onde ela está?
— Ela não veio à escola. Disse que precisava pesquisar tudo que pudesse encontrar sobre o sequestro.
— Ela trouxe o laptop? — Cash perguntou.
Lindsey franziu a testa de novo.
— Hã?
— Ela está com o laptop?
— Por quê...?
— A mãe dela provavelmente está em casa, então Chloe não iria querer fazer essa pesquisa lá. Se não está com o laptop, isso significa que está na biblioteca.
A expressão de Lindsey confirmou seu raciocínio.
— Não fui eu que disse. — As palavras dela o perseguiram pelo corredor enquanto Cash desaparecia em meio à multidão.
É como se o silêncio da biblioteca estivesse pesando sobre mim. A cada dois minutos, olho por cima do ombro, com medo de que alguém esteja observando o que estou lendo, vendo as imagens, me vendo. Por razões que não posso entender, estou com medo. E não apenas da verdade. É o tipo de medo que sentimos quando imaginamos um monstro embaixo da cama.
Eu tento afastar isso. Olhando para o computador, não consigo acreditar que existam tantos artigos sobre o sequestro de Emily Fuller.
Mesmo que seja coincidência, não consigo deixar de me perguntar como meus pais não viram as fotos ou as reportagens e não acharam que eu parecia com Emily.
Termino o oitavo artigo. Meu coração está apertado e meus nervos, à flor da pele. Quando respiro, meu coração bate na garganta. Me esforço para não chorar. Clico num vídeo e coloco os fones de ouvido que estão ao lado do computador. Antes de apertar o botão, olho para o rosto de uma mulher na tela. Seus cabelos escuros, olhos azuis e feições me hipnotizam. Eu não quero ver, mas não consigo desviar o olhar. Eu me pareço com ela.
Minha respiração fica presa na garganta. Durante toda a minha vida, tentei não me perguntar como seria a minha mãe biológica. Eu tentei não ficar ressentida, porque tenho uma mãe, uma mãe que me ama. Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe biológica não me amar. De ela simplesmente me entregar para alguma agência de adoção. E nessa única lembrança que tenho de mim mesma, chorando, sei que estou sentindo falta dela.
Eu sempre disse a mim mesma que não importava que ela tivesse desistido de mim, mas o abandono sempre esteve ali, me assombrando, roubando a felicidade do meu coração. Sempre me fazendo me perguntar o que havia de errado comigo.
Mas e se ela não tivesse me dado para adoção? E se, no final das contas, ela me quisesse?
Na minha cabeça, vejo a imagem da minha mãe adotiva, quase careca e magra demais, num roupão cor-de-rosa folgado. Por que sinto como se a estivesse traindo? Um nó se forma na minha garganta. Eu aperto o play.
“Por favor, por favor, não machuquem o meu bebê.” A voz dela soa na minha cabeça como música. É familiar ou minha mente está me iludindo? “Ela é uma boa menina", continua a mulher. “Ela é feliz, meiga e inteligente.” Há tanta dor na voz dessa mulher que ela vaza do computador e penetra a minha pele, o meu peito e se enrodilha como uma bola de elásticos prestes a se desenrolar. “Por favor, não machuquem meu bebê. Por favor, devolvam a minha filha. Eu não consigo nem respirar sem ela.”
Lágrimas escorrem pelas bochechas dela. Lágrimas estão escorrendo pelas minhas bochechas. Eu não me preocupo em enxugá-las. Isso dói. Dói tanto...
Como é possível? Isso é uma loucura. É um absurdo. Tem que ser um engano.
Alguém se senta ao meu lado. O medo me domina. Um grito sobe até a minha garganta. Eu me sobressalto, depois vejo Cash através das lágrimas.
Arranco os fones de ouvido.
— Chloe, por favor, vamos conversar.
Pego minha bolsa e minhas anotações e saio correndo da biblioteca. É apenas Cash, mas o medo paira sobre mim. O monstro embaixo da cama está lá fora.
Calafrios percorrem minha coluna como aranhas.
Escuto passos atrás de mim. É apenas Cash, mas percebo o meu coração batendo na garganta, enquanto ouço a voz dele implorando. Há um zunido nos meus ouvidos. Lágrimas deslizam por minhas bochechas. Um medo infundado, inexplicável, me envolve.
Chego ao meu carro e percebo que tenho que procurar as chaves. Antes que eu possa colocar a mão na bolsa, Cash está parado na minha frente.
— Precisamos conversar!
A bola de elásticos no meu peito começa a se soltar. Um. Dois. Três. Pop, pop, pop. Eles machucam minha pele.
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto.
— Você não estava na escola.
Eu pisco.
— Você foi à minha casa? Se você tiver dito algo sobre isso à minha mãe... — Coloco o dedo no peito dele. — Se você tiver feito isso...!
— Eu não fiz nada.
— Ela já está sofrendo demais. Você não vai contar...
— Não vou. Pode acreditar.
Eu balanço a cabeça.
— Claro, como se você nunca tivesse mentido para mim nem nada.
Cash segura as minhas mãos.
— Você está certa. Eu menti. Meti o pé pelas mãos. Não sabia como dizer a você. Desculpe.
Começo a vasculhar a bolsa, procurando as chaves.
— Mas, Chloe, eu sei que você tem perguntas e eu posso responder muitas delas.
Balanço a cabeça mais uma vez.
— É um equívoco — eu digo e gostaria de acreditar nisso. Gostaria que o nome Emily não fosse tão familiar para mim. Queria que a voz da mulher no vídeo não continuasse ecoando no meu ouvido. Gostaria que esse medo louco desaparecesse. — Tem que ser um equívoco.
— Sei que é difícil. E talvez seja um equívoco. Mas vamos descobrir.
— Como? — pergunto a ele, em um tom de voz muito alto. — O que você quer que eu faça? Vá até a minha mãe e pergunte: “Ei, você me sequestrou?” — Eu fecho as mãos em punhos apertados. — Você não viu como a minha mãe está? Ela não está nem comendo direito, porque está deprimida. Isso a mataria!
Volto a vasculhar minha bolsa.
— Onde estão minhas malditas chaves? — Meu coração está batendo tão rápido que o meu peito vibra.
Vou até o capô do carro e despejo o conteúdo da bolsa em cima dele. Minha carteira, meu celular, pó compacto, um absorvente interno e algumas moedas soltas caem da bolsa e deslizam pelo capô. Eu olho minhas coisas, nada. Não acho minhas chaves. Devo ter deixado na biblioteca.
Pego minha carteira, a única coisa sem a qual não posso viver, e começo a voltar para a biblioteca.
Ele caminha ao meu lado.
— Chloe, por favor. Venha se sentar no meu jipe e vamos conversar. Podemos investigar isso juntos.
Eu o encaro.
— Talvez eu não queira descobrir a verdade.
Os olhos verdes dele se fixam em mim.
— Você está chateada. Está chorando e, se for à biblioteca, vão achar que algo está errado. Venha se sentar no meu jipe. Eu vou encontrar as suas chaves.
Seu tom de voz tranquilizador me contagia. Passo a mão no rosto.
— Ele está logo atrás de você. — Cash enfia a mão no bolso e eu ouço um sinal sonoro quando a porta do jipe se abre. — Entre. Vou encontrar suas chaves, ok?
Eu obedeço. Não sei por que, mas eu me viro e entro no jipe. Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos. Mas então abro os olhos com a sensação de que alguém está do lado de fora, me olhando pela janela. Mas não há ninguém ali.
Fico sentada no carro, respirando. Só respirando. Em alguns minutos, ouço Cash voltar para o jipe.
Levanto a cabeça.
— Encontrou?
— Sim — ele diz, mas não vejo nada nas mãos dele. — Podemos conversar? Por favor.
Quero insistir para que ele entregue as chaves, mas a lógica intervém.
— Eu não sei o que dizer.
— Então deixe-me dizer outra vez que sinto muito. — Ele parece tão sincero. — Não sei como poderia ter lidado com isso de forma diferente, mas obviamente meti os pés pelas mãos.
— Não brinca, Sherlock!
Ele sorri, depois volta a ficar sério e parece culpado.
O som dos carros passando e da vida acontecendo ecoa do lado de fora do jipe, mas, ali dentro, tudo está silencioso. Eu respiro outra vez e tento afastar o pânico que cresce dentro de mim.
— Sério, como você me encontrou aqui?
— Quando vi que você não estava na escola, perguntei a Lindsey. Ela disse que você queria pesquisar sobre o sequestro. Com sua mãe em casa, imaginei que o único lugar para fazer isso era a biblioteca.
Eu balanço a cabeça confirmando, depois puxo o quebra-sol do carro para baixo e me olho no espelho. Ele tem razão. Eu pareço chateada. Esfrego os dedos no rosto e limpo pelo menos parte da maquiagem borrada. Então olho para as minhas feições e me lembro do rosto no vídeo. Do rosto dela. Minha mente recapitula o que acabei de ler. Lágrimas enchem meus olhos.
Eu me reclino no assento.
— Meus pais nunca teriam me sequestrado. — Olho para ele.
Eu posso ver que Cash tem dúvidas. Mas como posso ficar chateada com ele quando existe uma pequena parte de mim que...
— Então vamos investigar a adoção. Você sabe o nome da agência?
— Não — eu digo.
— Você sabe se eles são da região, de algum lugar próximo daqui?
— Acho que sim.
— Existe alguma maneira de você encontrar o nome da agência? Sua mãe tem documentos ou algo assim?
Lembro-me vagamente de um dia em que minha mãe encontrou esses documentos quando estava procurando a apólice de seguro da minha avó. Mas isso foi há muito tempo.
— Sim, mas não sei se ela não os deixou na casa do meu pai.
Ele balança a cabeça. Mais dúvidas.
— Talvez você possa dar uma olhada na sua casa.
— Sim.
— E a sua certidão de nascimento?
— Isso ela tem. Usou para me matricular na escola. Mas eu já vi. Lá está escrito que sou Chloe Holden e que meus pais adotivos são meus pais. E que nasci em 18 de novembro.
— Em que lugar você nasceu?
— Eu não sei. — Algo me ocorre. — Você não contou... a eles, para os Fuller, não é?
— Não. Acho que precisamos ter certeza antes de contar. Se eles pensarem que você é Emily e depois... você descobrir que não é, isso os fará sofrer muito.
Eu fecho os olhos por um segundo. Fico curiosa.
— Como eles são?
Cash olha para mim e vejo compaixão nos olhos dele.
— Eles são... legais. Muito bondosos. Rigorosos. Muito rigorosos. — Ele suspira. — São melhores que a maioria das pessoas. Muito melhores.
Ao ouvir a resposta de Cash, compreendo muito do que ele sente. Amor, respeito e algo mais que não consigo definir, mas estou muito sobrecarregada para perguntar agora. A verdade é que tenho tantas outras perguntas... Um dos artigos dizia que ambos estavam na faculdade de medicina quando a filha foi levada. Eu quero saber qual é a especialidade deles. Se os Fuller já disseram a Cash alguma coisa sobre Emily. Eles ainda sentem falta dela? Tenho algum trejeito da filha deles? Mas tenho medo de desmoronar se perguntar. Então não faço isso.
— Você não se lembra de nada antes de ser adotada? — Cash pergunta.
Eu quase lhe conto sobre a lembrança que tenho, mas estou muito perturbada para falar sobre isso.
— Quase nada.
— Você estava assistindo ao vídeo. A sra. Fuller lhe parece familiar?
— A voz... — Um nó de emoção se forma na minha garganta. — Eu não posso acreditar. Tem que haver um engano.
— Então vamos provar que há um engano.
— Como? — Fecho a mão num punho apertado.
— Há um arquivo na mesa do sr. Fuller, onde eles guardam uma cópia de todos os artigos. Vou tentar encontrá-lo e tirar fotos para termos cópias de tudo. Isso pode ajudar. Você procura os documentos da adoção.
— E se eu não conseguir? Não vou perguntar...
— Vamos descobrir.
— Você acredita que eles me sequestraram, não acredita? — A dor dentro de mim duplica de tamanho.
— Eu não sei no que eu acredito — ele diz. — Mas, juntos, podemos encontrar a verdade.
Meu punho aperta mais forte.
— Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.
— Chloe, se você for Emily e seus pais a tiverem sequestrado, eles merecem...
— Eles não me sequestraram!
— Então por que não é uma boa ideia? Você quer respostas, não quer?
Eu quero. Acho que quero.
— Talvez eu não queira.
— Como você pode não querer saber a verdade?
— Minha vida já está de ponta-cabeça. — Mais lágrimas se acumulam nos meus olhos. — Eu tenho que ir. — Saio do jipe, olho para o meu carro estacionado perto e então me lembro de que ele está com as minhas chaves. Eu só fico parada ali.
Ouço quando Cash sai do jipe. Ele anda até ficar na minha frente.
— Quando você quiser conversar, me ligue, ok? — Cash parece preocupado e parte de mim quer abraçá-lo e chorar no ombro dele.
Em vez disso, só balanço a cabeça.
— Trabalho hoje à noite na oficina, mas saio por volta das oito. Poderíamos comer uma pizza.
— Não — eu digo.
Ele me entrega as minhas chaves.
Elas estão pesadas. Meu coração está pesado com a possibilidade de que eu seja Emily Fuller. Que meus pais nunca tenham desistido de mim. Que aquele monstro, o monstro embaixo da cama, tenha me tirado deles.
Entro no meu carro e saio do estacionamento. Não sei para onde estou indo, mas dirijo assim mesmo.
14
Cash observou enquanto Chloe se afastava. Aquilo ia de mal a pior! O que ele está fazendo de errado? Como ela poderia não querer respostas?
Então se lembrou do teste de DNA que ele nunca tinha olhado. Os Fuller haviam feito para ele no ano anterior, caso ele quisesse procurar a mãe biológica. O pai dele sempre dissera que a mãe tinha simplesmente acordado um dia e ido embora, abandonando-o. A sra. Fuller questionou essa história:
— Você não sabe, seu pai pode ter tirado você dela, como a pessoa que levou Emily.
A mãe adotiva tinha razão, mas Cash ainda não havia se convencido disso. Ele tinha medo de saber a verdade. Medo de como se sentiria ao descobrir a verdade. Era isso que Chloe estava sentindo? Às vezes o que você não sabe é mais assustador do que aquilo que você sabe. Mesmo que aquilo que você saiba já seja bastante assustador...
Ele ficou no estacionamento por uns bons trinta minutos, apenas remoendo as coisas. Sem saber se deveria voltar para a escola ou simplesmente ir para casa.
Quando resolveu ir para casa, sentiu um buraco no estômago. Ele não havia jantado na noite anterior nem tomado café da manhã, e estava morrendo de fome. Então parou numa loja de conveniência onde havia um McDonald’s. Enquanto andava pelo corredor de doces da loja, viu sacos vermelhos brilhantes de Skittles e lembrou de Chloe falando sobre os Skittles vermelhos. Eles são doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Ele pegou quatro pacotes.
Passei o resto do dia encolhida num banco do Whataburger. As cores brilhantes da hamburgueria e os fregueses alegres afugentam o medo infundado de antes. Lutando para ficar acordada, começo a navegar pelas páginas do Facebook dos meus antigos amigos e constato que todas as pessoas da minha antiga vida estão ótimas enquanto a minha vida fica cada vez mais insana. Visito a página de Alex. Ele adicionou várias fotos dele e de Cassie.
Depois procuro alguns dos meus autores favoritos e compro outro livro de vampiros para quando eu não conseguir dormir. Em seguida, leio alguns artigos on-line sobre como descobrir se um cara está saindo com você só porque quer sexo.
Eu queria que existisse um artigo que explicasse se um cara está saindo com você só porque acha que você é a filha dos pais adotivos dele. Que raiva! Então, quando penso em Cash, resolvo checar as mensagens não lidas que ele me enviou ontem.
São catorze.
Uma delas queria me lembrar de que a culpa não era dele.
Duas eram pedidos de desculpa, uma delas por ter enviado a mensagem de que a culpa não era dele.
Três eram para me avisar de que esqueci meu cobertor com ele. Duas eram para perguntar se ele podia me entregar.
Sete eram variações de Me ligue.
E uma mensagem muito longa era para dizer que eu tinha entendido tudo errado. Ela dizia: Você está errada em pensar que não gosto de você. Achei você linda desde o instante em que trombou comigo e derramou toda a minha raspadinha. E você chamou minha atenção no ato. Então vi quem você era e tentei não pensar que você era linda. Mas não consegui. Então comecei a conversar com você e vi que, além de linda, você é engraçada e inteligente, e não consegui deixar de gostar de você. A única razão pela qual não beijei você primeiro foi porque eu estava com medo de que pudesse interferir no que eu estava prestes a te contar. E isso de fato aconteceu. Mas ainda gosto de você. E quero te beijar novamente. E de novo.
Essa mensagem me tocou. Droga. Gosto dele também. E se a minha vida não fosse um caos, eu estaria pulando de alegria, porque também gosto muito de Cash.
Meu celular toca e chega uma figurinha da palavra “Olá” escrita em vermelho, com a mesma fonte usada no pacote de Skittles. A próxima mensagem diz para ligar para ele quando eu tiver vontade de conversar. E depois: Eu sei que isso é difícil.
A emoção forma um nó na minha garganta. Pego minhas batatas fritas frias, escrevo com elas a palavra “Oi”, tiro uma foto e escrevo que vou entrar em contato à noite.
A resposta é outra foto: um Skittles com um rosto sorridente.
Sim. Eu realmente gosto de Cash.
No mesmo horário em que as aulas acabaram, fui para casa com um humor muito melhor do que quando saí, mas no momento em que entro em casa e vejo minha mãe, com lágrimas nos olhos, sentada na mesa da cozinha com as flores que escondi no meu quarto, meu humor despenca.
— Por que você mentiu para mim?
— Não menti — digo.
— Você não me disse que recebeu essas flores.
— Isso não é mentir.
— Bem, você me fez mentir! Liguei para o seu pai e dei uma bronca nele por se esquecer de lhe enviar alguma coisa. Ele jurou que enviou. Então eu encontrei as flores. Por que não me disse?
— Porque eu estava com medo de chatear você. Justamente o que está acontecendo. — Meu coração está batendo na boca e eu não preciso disso agora. Quando poderei levantar as mãos no ar e gritar “Chega!”?
— Você não pode esconder as coisas de mim! — ela retruca.
— Eu não estava...
— Seu pai está bravo por você não ter ligado para ele. Me acusou de fazê-la ficar contra ele. Vem vê-la amanhã. Mas eu não quero colocar os olhos nele novamente! Ele é um cretino. — Então vai para o quarto, batendo a porta.
Largo a bolsa e a mochila na mesa da cozinha e me jogo na cadeira. Chego à conclusão de que a sessão de terapia não adiantou muito.
Meu peito aperta, um nó se forma na minha garganta e estou chorando. Fico apenas sentada ali e tento não seguir minha mãe até o fundo do poço, onde tudo que existe é a depressão.
Nessa noite, troco mensagens com Lindsey. Ela quer que eu vá à casa dela, mas eu não tenho condições.
Estou prestes a ligar para Cash quando minha mãe bate na minha porta. Ela enfia a cabeça pelo vão. Vejo um pedido de desculpas em seus olhos.
— Posso entrar?
Eu deixo.
Ela se aproxima e se senta na beira da minha cama.
— Sinto muito. Novamente.
Eu assinto. O que devo falar? Eu não perdoo você? Estou cansada de tudo isso? Você me sequestrou? A última pergunta, que dá voltas na minha cabeça, bate fundo no meu peito.
— Obrigada pelo macarrão com queijo — diz ela.
Eu havia preparado o macarrão e deixado um prato sobre o fogão.
— Você tomou uma daquelas garrafinhas que fazem bem à sua saúde?
— Não, mas vou tomar.
Ela toca a minha mão.
— Sou uma péssima mãe.
No momento, isso é verdade. Mas, antes que meu pai a abandonasse, antes do câncer, ela era incrível. Então balancei a cabeça, dizendo que não. De todos os meus amigos, eu sempre soube que eu era a que tinha mais sorte quando se tratava de pais. Eu me sentiria tão amada se eles fossem sequestradores de crianças? Acho que não.
Percebo que minha mãe está me olhando.
— Como foi a terapia?
— Difícil. A terapeuta disse que tenho muita raiva.
— Você tem.
— Vou começar a ir uma vez por semana. Vou melhorar.
— E os remédios? — pergunto.
— Vamos tentar sem eles a princípio. Vou começar a fazer caminhadas todos os dias.
Eu tento não ser pessimista, mas quero gritar, Caminhadas não vão resolver!
— O terapeuta também acha que vou melhorar quando começar a trabalhar. Você sabe, sair de casa e ter algo em que pensar, além do câncer e do cretino do seu pai.
O comentário sobre o meu pai me incomoda, mas pelo menos ela está fazendo terapia e falando sobre isso.
— E se você não quiser ver seu pai, não precisa fazer isso.
Minha mente dispara. Eu não estou com vontade de vê-lo, mas não quero que a minha mãe sinta que tem o poder, consciente ou subconsciente, de determinar se quero vê-lo ou não.
— Eu vou vê-lo.
Decepção transparece nos olhos dela. Mas minha mãe assente.
— Encontrei um bom filme. Uma comédia. O terapeuta sugeriu que eu comece a rir mais. Quer assistir comigo?
— Sim. Só preciso fazer uma ligação primeiro.
Seu tom de voz fica mais agudo.
— Para o seu pai?
— Não. Cash. — Vou falar com meu pai quando ele vier, mas só de pensar nisso, já me encho de pavor.
— Você gosta dele, não gosta?
— Sim. — Admitir é difícil.
— Apenas tenha cuidado. Os homens podem apunhalá-la pelas costas. — Depois de falar isso, ela sai do meu quarto.
Que conselho maternal mais doce e acolhedor... Eu volto para a cama. Penso em Cash e lembro como doeu quando meu pai foi embora. Lembro como doeu me afastar de Alex. Lembro que preciso ir para a faculdade no próximo ano. Lembro de minha única memória de quando eu era pequena, de ser arrancada da minha vida. Odeio esse sentimento e, se eu chegar perto de Cash, vou me sentir assim novamente. Já vou me sentir assim com Lindsey.
Tenho muitas razões para proteger meu coração, para não me deixar me apaixonar por Cash. Razões que nem incluem a suspeita dele de que eu seja Emily Fuller.
Volto a ouvir a pergunta que ele me fez antes.
Como você pode não querer saber a verdade?
Meu celular toca. Pensando que é Cash, meu coração dá um salto. Não é ele.
Antes de atender, verifico se minha mãe fechou a porta.
— Oi, pai.
— Como foi o seu dia? — a sra. Fuller perguntou quando Cash chegou em casa do trabalho e entrou na cozinha. O plano dele era subir as escadas e ir para o quarto, começar a lição de casa e decidir se iria tomar a iniciativa e ligar para Chloe ou esperar e deixar que ela fizesse isso.
— Ok — Cash respondeu, lembrando que ele e a mãe não tinham terminado a conversa de um jeito muito amigável na noite anterior.
— Posso fazer um sanduíche?
Ela franziu a testa e ele sabia por quê.
— Eu quis dizer, vou fazer um sanduíche. — A sra. Fuller odiava quando ele perguntava se podia fazer alguma coisa. Ela dizia que era um sinal de que ele não se sentia em casa. Ela estava certa. Cash não se sentia mesmo. Sim, ele gostava muito dos Fuller, mas não podia deixar de se perguntar se os dois não mudariam de ideia sobre ele se soubessem de todas as coisas que tinha feito ao lado do pai biológico. Eles não percebiam que Cash não era digno de generosidade?
— Melhor assim — disse ela. — Mas se estiver interessado, pode comer a pizza que guardei no forno para você.
— Muito interessado. — Ele tirou a caixa do forno e colocou no balcão. — Obrigado. — Cash pegou uma fatia e afundou os dentes no recheio macio e morno de muçarela e calabresa.
— De nada. — Ela sorriu. A sra. Fuller gostava de agradá-lo, tanto que às vezes o incomodava. — Tem salada na geladeira. Posso pegar para você.
— Não, apenas pizza, obrigado — ele agradeceu, mastigando com gosto.
Ela pegou um prato no armário e acenou para ele se sentar.
— Sente-se e coma. Vamos conversar um pouco antes de você subir e se trancar no seu quarto.
Cash se perguntou se isso era uma queixa com relação à noite anterior. De qualquer maneira, ele pegou a caixa e foi para a mesa.
— Onde está o sr. Fuller? — perguntou antes dar a segunda mordida.
— Foi nadar. — Ela apontou para fora, onde as luzes da piscina iluminavam o quintal. — Ele comeu cinco pedaços de pizza.
Ela pegou a tigela de Skittles que Cash havia deixado na mesa enquanto mandava uma mensagem para Chloe.
— Foi você quem comprou esses Skittles ou foi Tony? — ela perguntou.
— Fui eu.
Ela balançou a tigela por um segundo.
— Onde estão os vermelhos? São os melhores.
Cash engoliu a pizza.
— Eu comi. — Era mentira. Eles estavam num saquinho em seu quarto.
A sra. Fuller colocou a tigela na mesa.
— Você não me contou como são as suas aulas na faculdade.
— São boas. O professor é chato, mas não vejo problema. — Ele terminou sua primeira fatia e pegou outra. Ela lhe entregou um guardanapo. Cash colocou a pizza no prato e limpou a boca. — Como foi o seu dia?
— Foi ok.
— Salvou a vida de alguém?
— Estou trabalhando nisso. — Ela olhou para a tigela de Skittles, tirou uma balinha laranja e colocou na boca. — Você sabe, Tony e eu conversamos e você pode parar de trabalhar se quiser se dedicar mais à escola e terminar o ensino médio.
— Não, estou bem assim. Só tenho aula na faculdade às quartas-feiras. — Ele saboreava o segundo pedaço. A sra. Fuller assistiu Cash acabar de mastigar. Ele pegou o terceiro.
Ela franziu a testa.
— Não que a gente ache que você não dê conta. Achamos que você é muito capaz. É que... pense em como seria mais fácil se você apenas se concentrasse nos estudos.
— Eu gosto de trabalhar. — Cash deu outra mordida. — Essa pizza é muito boa — ele acrescentou, esperando mudar de assunto.
— Você está indo muito bem, mas poderia tirar notas melhores e entrar numa...
— Eu estou bem assim. — Seu plano era fazer um curso técnico depois do ensino médio e mais tarde ingressar na Universidade de Houston, que seria custeada por um programa do governo para pessoas como ele, que moravam em lares temporários. Mas Cash não queria falar sobre faculdades esta noite. Eles já haviam discutido quando ele disse que iria pleitear uma bolsa do governo que o programa de adoção oferecia. Cash já lhes devia o jipe. Não queria que pagassem também a faculdade.
— Você pode estudar onde quiser.
— Está tarde. Eu queria fazer a lição de casa. — Ele pegou o prato e o colocou na máquina de lavar louça. — Obrigado pela pizza. — Enquanto ele passava pela mesa, pegou outra fatia.
— Cash — ela chamou, parecendo um pouco impaciente.
Dando outra mordida, ele se virou, esperando que a sra. Fuller começasse a listar as universidades. Boas universidades, universidades caras. Ele começou a falar com o pedaço de pizza na boca.
— Olha, eu preciso...
— Queremos adotá-lo.
Ele ouviu as palavras, mas não as assimilou. O bocado de pizza, já no meio da garganta, bateu contra seu pomo de adão. Sua mente disparou. O coração doía. Ele se lembrou de quando disse que não era filho dela.
Era por isso que a sra. Fuller estava fazendo aquilo? Achava que ele queria ser filho dela?
Era a última coisa que Cash queria. Seu objetivo sempre fora pagá-los pelo jipe e sair da vida deles para que seus problemas não continuassem a afetá-los.
— Não. Péssima ideia. — Ele subiu as escadas correndo.
— Por quê? — ela perguntou, enquanto Cash subia. — Por que é uma péssima ideia? — Ele não respondeu.
15
Dez minutos depois do começo do filme e da segunda piada sobre preservativo, minha mãe decide que ele não é engraçado nem apropriado. Na verdade, é engraçado, pelo menos foi quando assisti com Alex um ano atrás. Lembro-me de todas as vezes que íamos à casa dele, deitávamos na cama e assistíamos a filmes. E fazíamos outras coisas.
Os pais dele tinham uma imobiliária e trabalhavam até tarde. Nós tínhamos a casa inteira para nós até por volta das oito. Eu, sinceramente, acho que, se os pais dele tivessem um horário de trabalho normal, nós não teríamos uma vida sexual.
Minha mãe tira o filme e assistimos à série Law & Order. Eu quase a lembro de que deveríamos assistir algo engraçado, mas tenho medo de que ela desligue a TV. Então fico de boca fechada. É uma reprise. Eu já vi esse episódio. Mas não quero que minha mãe se sinta abandonada, então fico e finjo assistir. O que estou realmente fazendo é repassando mentalmente o telefonema do meu pai.
Ele não fez rodeios. Pediu desculpas por não me ligar no primeiro dia de aula, alegando que tivera uma semana ruim. Eu queria perguntar se tinha algo a ver com a nova namorada.
Ele não disse nada sobre ter dado o meu quarto a Darlene, mas me falou que me amava e que sabia que não era perfeito.
Não pude discordar. Mas por mais triste que seja, acho que isso fazia parte do problema. Antes, ele era perfeito. Então Darlene apareceu. E sugou tudo o que ele tinha de perfeito. Ele me lembrou de que eu era filha dele e que a minha mãe não deveria tentar me colocar contra ele. Não pude discordar disso também.
Ele disse que precisava me ver e que sentia a minha falta. E eu gostasse ou não, ele era meu pai e não ia deixar minha mãe ficar entre nós. Eu quase perguntei: E Darlene? Você vai deixar que ela fique entre nós?
Consegui ficar quieta e concordei em jantar com ele amanhã à noite. Mas só depois que me certifiquei de que seríamos apenas nós dois. Eu notei o tom contrariado na voz dele quando perguntei. Eu não sabia se ele planejava trazer Darlene, mas ele concordou em vir sozinho. Ainda assim, estou esperando o nosso jantar com o mesmo entusiasmo com que espero minha menstruação.
Pego o álbum de fotos que minha mãe deixou sobre a mesa do escritório. Vou virando as páginas. Não acho que já tenha visto esse. Aposto que era de uma das minhas avós. Até nos mudarmos para cá, a maior parte das coisas da minha avó estava encaixotada no sótão.
Eu observo as imagens em preto e branco dos meus avós e da minha mãe quando era pequena.
Fotos dela quando criança, parecendo feliz. Viro a página e encontro fotos minhas.
Eu bem pequena. Eu segurando um presente com um grande laço.
Eu não parecendo feliz, apesar de estar segurando um presente.
Ali estão duas fotos que foram editadas, o que significa que minha mãe cortou a imagem do meu pai com a tesoura.
Minha mãe me vê olhando o álbum. Ela aponta para uma foto em que aparecem meus avós e eu.
— Essa foi tirada quando você os conheceu.
Eu observo a imagem. Meu eu mais jovem está olhando para a câmera como se estivesse implorando para alguém me salvar. O olhar no meu rosto me lembra o olhar dos animais que a gente vê naqueles anúncios comoventes para arrecadar dinheiro, promovidos pelas ONGs que cuidam de animais abandonados. O medo que eu tinha empurrado para longe me domina novamente.
Então vejo uma contusão na minha bochecha. Como eu teria me machucado?
— Tínhamos acabado de buscar você e viemos direto para cá, da agência de adoção.
Sinto meu coração acelerar.
— Como eu ganhei esse machucado?
Minha mãe olha para a foto.
— Eles disseram que você caiu no parquinho. Por quê?
Eu não sei, realmente não sei, mas o medo deixa os pelos da minha nuca arrepiados. Então percebo que essa é a minha chance de fazer perguntas.
— Então você me adotou numa agência daqui?
Eu folheio o álbum, não querendo que ela me veja esperando sua resposta com respiração suspensa.
— Em Fort Landing. Duas cidades mais para a frente. Eu lembro que a coloquei na cadeirinha do carro e voltei com você.
Eu olho para minha mãe. Ela ostenta um sorriso enquanto fala sobre mim quando eu era pequena. Um sorriso de amor. Não é o olhar de alguém que se lembra de ter sequestrado uma criança.
Eu não sei se posso chamar de alívio, mas meu peito fica mais leve. É como se isso confirmasse o que eu acredito que seja verdade. Meus pais não me sequestraram. Eu sei disso. Eu apostaria minha vida nisso.
— Quanto tempo levou a adoção?
— Oito meses. Os oito meses mais longos da minha vida.
Eu volto a olhar a foto do meu eu mais jovem. Tenho cabelos castanho-escuros encaracolados e meus olhos parecem grandes demais para o meu rosto.
— Eu pareço assustada.
— Você era nervosa. Confusa. Morou num lar temporário por um mês. Ficou apegada a eles.
Meu coração dá outro salto. Se isso é verdade, se morei num lar temporário, então não sou Emily Fuller, porque ela foi sequestrada no dia anterior à minha adoção.
— Eles disseram que demoraria um tempo para você se ajustar.
Eu engulo em seco.
— E demorou?
— Sim. Dormi com você por quase um mês, porque você chorava à noite. Eu te abraçava e cantava para você.
Eu acho que me lembro dela cantando. Meu peito dói quase como se estivesse sentindo o que senti na época. O que senti na única lembrança que me assombra. Confusa. Assustada. Insegura. Abandonada. Mal-amada.
— Eu falava alguma coisa sobre isso?
— Só que você queria sua mãe e seu pai. Partia meu coração. Eu ficava te dizendo que éramos sua mamãe e seu papai a partir daquele dia. Não demorou para você começar a sorrir.
Uma pergunta não sai da minha cabeça. Algo que eu secretamente sempre me perguntava.
— A agência lhe informou por que fui para a adoção?
Minha mãe parece surpresa. E também estou surpresa. Surpresa por nunca ter perguntado antes. Então, de repente, sei por que nunca perguntei. Parecia mais seguro não saber.
— Eles disseram que sua mãe era muito jovem e não era casada. Ela queria ficar com você, mas era difícil demais do ponto de vista financeiro. Nós temos muita sorte em ter você. Você é uma bênção. Tentei engravidar por muitos anos. Seu avô conheceu um casal que indicou essa agência. Não era muito caro. Eles conseguiam pais adotivos para muitas crianças mestiças um pouco mais velhas, cuja adoção é mais difícil.
Eles me disseram que eu sou, em parte, descendente de hispânicos, o que explica a coloração castanho-esverdeada dos meus olhos.
— Minha mãe é hispânica ou meu pai?
— Eu não sei.
Viro a página. Há uma foto minha com uma boneca. Uma daquelas que se parece com a criança que a ganha. Estamos com um vestido igual. Temos cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos castanho-esverdeados. A boneca está sorrindo e, nessa foto, eu também. Eu me pergunto quanto tempo já tinha se passado desde a adoção.
Minha mãe sorri.
— Você adorava essa boneca. Fomos a uma loja onde tivemos que assinar um termo de adoção depois de comprar a boneca. Você a carregava para todo lugar.
— Eu não me lembro — digo. Recordo-me da caixa de brinquedos que vi no sótão da casa do meu pai quando estávamos nos mudando. — Eu ainda a tenho?
— Não. Nós a esquecemos num parque alguns meses depois que você a ganhou. Nós voltamos, mas alguém já tinha levado a boneca. Você chorou por semanas, querendo Emily de volta.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Emily?
— Sim, foi o nome que você deu a ela.
Eram dez horas da noite quando o celular de Cash tocou. Ele saltou da sua escrivaninha, onde fazia o dever de casa distraidamente, enquanto pensava no que a mãe adotiva tinha dito e torcia para que ela não decidisse tentar terminar a conversa. Porque ele não sabia como terminá-la.
Por que é uma péssima ideia?
A única resposta de Cash seria perguntar por que ela achava que seria uma boa ideia. Os Fuller já tinham feito muito mais do que se esperava deles. Não sabiam como era difícil corresponder às expectativas deles? A sra. Fuller não se lembrava de como tinha ficado decepcionada quando o expulsaram da Westwood Academy? Ou, um ano antes, quando o acusaram de roubar um carro no bairro só porque ele fazia parte de um programa de adoção do governo?
Ou mesmo quando ele se envolveu na briga com Paul? Cash nunca conseguiria apagar seu passado. Droga, eles não conheciam metade do seu passado! Cash costumava furtar a aposentadoria do bolso de idosos. Roubava carros. Uma vez, quando o pai trabalhava na casa de um casal idoso, Cash havia entrado e furtado os cartões do banco e um colar valioso da mulher, uma joia que o marido acabara de comprar para presentear a esposa nas bodas de ouro.
Ele viu o número de Chloe na tela.
— Oi.
— Desculpe ligar tão tarde. Foi uma noite insana.
— Sua mãe não descobriu que você faltou às aulas hoje, não é?
— Não. Você contou para alguém?
— Não.
Ela ficou quieta e depois falou:
— Olha, eu tenho certeza de que minha mãe e meu pai não me sequestraram, mas... Estou achando que alguém fez isso. E você tem razão. Eu quero respostas.
— Ótimo. — Pausa. — Aconteceu alguma coisa para você mudar de ideia?
Chloe contou o que havia descoberto sobre a agência de adoção e o lar temporário em que tinha ficado durante um mês e sobre a boneca que se chamava Emily.
Ele odiava perceber a dor na voz dela.
— Vamos descobrir a verdade.
— Como?
— Acho que precisamos conversar com a sua babá. — Cash se sentou na cama.
— Babá?
— Emily estava com a babá quando desapareceu.
— Como você sabe?
— A sra. Fuller comentou um dia. E, desde que você chegou aqui, estou pesquisando na internet. Também li alguma coisa, alguns anos atrás, num arquivo que eles têm. E há outras coisas nesse arquivo. Tipo relatórios policiais e outras coisas. Vou tentar ver o arquivo novamente. Mas tenho que esperar quando eles não estiverem em casa. Mas, assim que eu desligar, vou ver quantas agências de adoção existem em Fort Landing. É uma cidade maior que Joyful. Pode existir mais de uma.
— São três — Chloe disse. — Eu chequei. Mas apenas uma estava aberta na época em que fui adotada, a Agência de Adoção New Hope, mas isso não significa que seja essa.
— Tem razão. — Ele encostou na cabeceira da cama. — Vou começar tentando encontrar a babá.
— Como?
— Internet.
— Encontrei minha certidão de nascimento. Ela diz que nasci aqui. — Cash a ouviu suspirar e o suspiro se parecia muito com o da sra. Fuller que o tocava tanto.
— Vamos descobrir.
— Você diz isso como se acreditasse que vamos mesmo descobrir.
— Eu acredito. Sou bom em descobrir coisas. Resolver quebra-cabeças. — Cada golpe é como um quebra-cabeça. Você só tem que descobrir quais peças juntar. Ele fez uma pausa. — Trabalho amanhã, mas saio às cinco. Você quer me encontrar? Podemos comer alguma coisa e conversar.
— Eu não posso. Meu pai está vindo para a cidade.
Será que ela só está dizendo isso porque não quer me ver?
— E domingo? — Ele apertou mais o celular na mão.
A linha ficou muda.
— Preciso pedir à minha mãe, mas não deve ser problema.
Ele se lembrou do que Chloe havia dito sobre o pai.
— Você vai ver seu pai numa boa?
— Não. Mas não importa... Não tenho escolha.
— Você sempre tem escolha — disse Cash. Até ele tinha escolha quando estava com o pai.
— Nenhuma que não causaria problemas.
— Já ouviu dizer que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos?
— Então você é aquele que quebra ovos enquanto eu sou uma pessoa que põe panos quentes. Não tenho certeza se somos compatíveis.
Ele riu.
— Eu só quebro ovos quando não há outro jeito.
— Quando não houve outro jeito? — Chloe perguntou.
— O que você quer dizer?
— Quando foi a última vez que você teve que se defender? Além daquele dia em que brigou para defender o garoto, no primeiro dia de aula.
— Esta noite — ele disse, depois se arrependeu.
— O que aconteceu?
Cash concluiu que poderia contar parte do que havia acontecido.
— A sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina.
— Por quê?
— Ela acha que me sobrecarrega por causa das aulas na faculdade e o ensino médio.
— Você está tendo aulas numa faculdade?
— Sim. Nas quartas-feiras à noite. Só para ajudar.
— Isso parece muita coisa mesmo — ela diz.
— Eu dou conta. Além disso, não é só por causa do tempo. Ela tem receio que eu mude de ideia e decida trabalhar na oficina e não ir para a faculdade.
— Mas, se você já está fazendo aula numa faculdade, por que ela tem esse receio?
— Porque também estou cursando Tecnologia Automotiva e não estou me candidatando para uma faculdade chique.
— Para que faculdade ela quer que você vá?
— Rice ou Harvard, pelo que sei.
— E por que você não quer ir para uma boa faculdade?
— Porque tem que ser uma faculdade estadual que a minha bolsa cubra.
No momento em que ele disse isso, desejou ter ficado quieto. Era como se a bolsa fosse uma esmola.
— Você tem uma bolsa do governo?
Cash hesitou.
— Por causa do programa de adoção.
— Isso é bom — disse Chloe.
— Sim — ele mentiu. E continuava dizendo a si mesmo que, quando concluísse a faculdade, reembolsaria o Estado também. Durante toda a vida, o pai dele não tinha feito nada a não ser lesar as pessoas. Cash tinha lesado muitas pessoas. Ele queria compensar isso.
— Você tem planos para a faculdade? — Cash perguntou para mudar de assunto.
— Universidade de Houston, provavelmente.
— Estou pensando nessa também. Mas por que “provavelmente”?
— No momento não posso deixar minha mãe do jeito que está.
— Mas ela já superou o câncer.
— Ela não superou o divórcio.
Ele se lembrou de Chloe dizendo que a mãe estava deprimida.
— Ela está muito mal?
— Depende de quando você pergunta. Hoje mais cedo, eu diria que ela estava realmente muito mal. Esta noite, estava melhor. Pelo menos está recebendo ajuda agora.
— Terapia?
— Sim. Hoje foi a primeira vez que ela foi. Espero que ajude.
— Sim. — Cash não colocava muita fé em terapeutas ou psiquiatras. Ele tinha sido forçado a fazer terapia por um ano, quando foi para um lar temporário. A única diferença era que havia aprendido a esconder melhor suas emoções.
A terapeuta não cansava de dizer: Nada do que você fez foi culpa sua. Mas era, sim. Ele sabia que estava errado quando fazia.
— Ela conseguiu um emprego, então espero que também ajude. Mas só começa daqui a algumas semanas.
— Que tipo de trabalho ela faz?
— Enfermagem.
— É isso que você vai cursar na faculdade? Medicina? — E se ela fosse a filha dos Fuller, não seria apropriado?
— Não. Estou pensando em Jornalismo. Ou Literatura Inglesa.
— Você quer ser escritora?
— Não. Minha mãe costumava escrever. Ela escreveu vários livros. Teve um editor numa grande editora de Nova York que pediu para ela fazer uma revisão no último que escreveu, mas então meu pai resolveu se separar e ela parou. Graças a Deus, ela não parou de ler livros.
— Você gosta de ler? — ele perguntou.
— Sim.
— O que você lê? Histórias de amor? — Cash perguntou para provocar.
— Claro! — Chloe riu. — Estou lendo um de ficção fantástica no momento. E você, lê?
— Eu costumava ler mais quando não estava trabalhando. Mas, gosto, sim.
— O que você leu nestes últimos tempos?
— Eu li Outsiders — Vidas sem Rumo e alguns do Stephen King durante o verão. Tentei ler Cinquenta Tons de Cinza, mas...
— Você leu Cinquenta Tons de Cinza? — Ela riu um pouco mais. — E você me recrimina por ler histórias de amor?
16
A risada dela fez o peito de Cash instantaneamente parecer mais leve.
— Eu disse que tentei ler. Não consegui terminar o primeiro capítulo.
— Não consigo nem imaginar você comprando ou pegando esse livro emprestado na biblioteca.
— Não fiz nada disso — ele disse. — A sra. Fuller leu e um dia eu entrei na biblioteca deles e peguei. Você não leu?
— Não. — O tom dela era agudo, denunciando uma mentira.
— Mentira. Você leu, sim.
Ela riu com culpa.
— Ok, eu e minhas amigas estávamos curiosas.
— E o que você achou? — Cash reajustou o travesseiro atrás das costas.
— Eu sei por que você não passou do primeiro capítulo. O que você planeja fazer na faculdade?
Cash notou que ela tinha mudado de assunto.
— Provavelmente algo ligado à área de negócios. Ainda estou indeciso também. Ele fez uma pausa. — Então, o que mais você faz além de ler livros eróticos?
Chloe riu de novo.
— Não sei.
— Você gosta de correr ou algo assim?
— Só se alguém estiver me perseguindo.
Agora foi ele quem riu.
— Quero dizer, para manter a forma.
— Eu sei. Eu costumava jogar futebol.
— E você era a mais bonita do time. — Ele lembrou da foto de Chloe e de várias colegas jogando futebol de shorts e a parte de cima de um biquíni. Ela parecia incrível.
— Como sabe? Ah, sim, você me stalkeou na internet.
— Eu não stalkeei você. Pesquisei sobre você.
— Você tem perfil no Facebook? — Ele a ouviu digitar algo no computador.
— Não. Pelo menos não com a minha verdadeira identidade.
— Você tem uma conta falsa no Facebook? Mas não tem uma com a sua verdadeira identidade...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Porque... gosto de stalkear as pessoas na internet. — Era uma piada. Chloe não riu.
— Sério?
— Na outra escola, ouvi dizer que alguns alunos estavam falando sobre mim no Facebook. Eu quis ver se era verdade... anonimamente.
Ela não disse nada por alguns segundos, então:
— Você costuma correr?
— Eu tento. Mas, neste verão, nadei mais.
— Você faz parte de uma equipe de natação? — ela perguntou.
— Não. Os Fuller têm piscina. E eu vou muito à casa de veraneio deles, no lago.
— Você não pratica esportes?
— Gosto de assistir. Mas nunca joguei.
— Sério? Com o seu tamanho, acho que algum treinador já devia ter feito você jogar futebol americano há muitos anos.
— Eles preferem evitar estudantes que moram em lares temporários. Nós nos mudamos muito.
— Você também?
— O quê? — ele perguntou.
— Mudou-se muito, antes de morar com os Fuller?
Ele passou a mão no rosto. Por que ele havia mencionado o programa de adoção?
— Eles são a minha quarta casa.
— Foi ruim?
Não tão ruim quanto viver com meu pai.
— Na verdade, não.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele queria mudar de assunto, mas Chloe o acusara de fazer isso no parque.
— Tinha 11.
— Como... como o seu pai morreu?
Merda. Essa era a desvantagem de se aproximar de uma garota. Ela queria saber a história da sua vida.
A linha ficou muda.
— Você não precisa contar, se não quiser.
Ele quase disse “ótimo”, mas optou por:
— É uma longa história, e já está tarde.
— Sim. Melhor a gente desligar.
Cash a sentiu se afastando. Quando ele queria que Chloe se aproximasse.
— Ele morreu num acidente de carro. — Era verdade. Cash tinha batido o carro, mas a bala no peito do pai é que o matara.
— Você estava no carro com ele?
— Não.
— Sinto muito. — A emoção veio acompanhada de um pedido de desculpas. — Quando minha mãe teve câncer, eu estava com tanto medo de perdê-la... Não sei se conseguiria superar algo assim. Isso deve ter sido muito difícil pra você.
Cash odiava a compaixão que sentia na voz dela. Ele não merecia. E nem o vigarista do pai.
É sábado à tarde e estou na casa de Lindsey, ajudando-a a decidir o que vestir no seu encontro com David. Estou empolgada com a notícia de que estão saindo. E estou me esforçando para irradiar boas vibrações. Minha mãe ficou deitada o dia todo. Eu mal consegui tirá-la do quarto para comer.
Vê-la deprimida faz com que eu me sinta culpada por ter concordado em ver meu pai. Ah, sei que não é justo que ela me faça sentir dessa forma e, sinceramente, não acho que minha mãe queira que eu me sinta assim. Mas ela faz isso e eu me sinto culpada. Adicione a tudo isso o fato de que não estou ansiosa para ver meu pai e é compreensível que meu humor não esteja muito melhor do que o da minha mãe.
— Eu gosto mais dessa blusa azul — digo a Lindsey.
— Não é muito sem graça?
— Não, realça seus seios.
— Não mostra demais, não é? Não quero que ele pense que estou tentando levá-lo para o banco de trás do carro no primeiro encontro.
Eu solto uma risada.
— Essa blusa não diz “vamos saltar para o banco de trás?”. Ela diz “olhe pra mim”.
— E olhar para mim é bom, certo? — Ela franze a testa. — Não sei se estou pronta para isso.
— Você está pronta — eu garanto.
Ela me olha pelo espelho.
— Eu preferia que fosse um encontro duplo. Você não pode ligar para Cash e ver se vocês podem ir conosco? — Ela se vira.
— Eu não posso. Vou ver meu pai hoje à noite, esqueceu?
— Ah, que pena. — Ela franze a testa. — Foi mal.
— Eu também lamento... — Desabo na cama dela e juro que não vou começar a me queixar da minha vida. Já fiz isso o suficiente ontem à noite, quando conversamos depois do telefonema de Cash. Sandy, uma das minhas amigas antigas, só reclamava. — Além disso, eu ainda não estou saindo com Cash.
— Vocês vão sair no domingo. Além disso, você ficou com ele no balanço da varanda.
— É verdade. — Eu sorrio, ao me lembrar e, se eu pudesse só pensar nisso, em vez de em outras coisas, ficaria mais feliz. — Mas não sei se é um encontro de fato ou só uma reunião para descobrir se sou Emily Fuller.
Ela revira os olhos.
— Depois daquela mensagem que ele enviou sobre querer beijar você?
Sim, eu mostrei a ela a mensagem de Cash.
— Tem razão. Acho que você não é a única que está nervosa.
— Apenas rezo para que, se ele tentar me beijar, eu não pense em Jonathon. Ele me enviou um e-mail esta manhã. Me perguntou o que eu ia fazer no final de semana.
— Você não respondeu o e-mail, não é?
— Respondi, mas apenas para dizer que estava ocupada. Tive que deixar claro que não estou em casa chorando por causa dele.
— Ele perguntou o que você andava fazendo?
— Perguntou. Eu não respondi. — Ela sorri.
— Esqueça esse cara — eu digo. — Esta noite vai ser divertida.
Lindsey se deixa cair na cama.
— Será que devo contar a David meu segredo mais profundo e sombrio?
— Qual segredo?
— Que minha mãe é lésbica. Ou isso não é algo que se diga no primeiro encontro?
— Por que você precisaria contar a ele?
— Porque se Lola estiver aqui, ele pode descobrir como você descobriu.
— Você não sentiria essa necessidade de contar a ele se sua mãe fosse heterossexual. Então, por que contar só porque ela é homossexual?
— Porque nem todo mundo acha que isso é normal como você.
— Não acho que você precise fazer alarde sobre isso.
Ela sorri.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo. Por dizer todas as coisas certas. Pedi a Jamie para fazer isso e ela disse que ela e a prima iam à manicure.
— Não esquenta. — Não sei se Lindsey percebeu que ela acabou de me dizer que sou sua segunda opção. É uma droga ser a segunda opção de alguém. Mas, ei, é melhor do que não ser opção nenhuma.
— Você vai perguntar ao seu pai o nome da agência de adoção?
— Se eu conseguir encontrar uma maneira de abordar esse assunto na conversa...
— Por que simplesmente não pergunta?
— Porque não sinto vontade de explicar que eu posso ser uma criança sequestrada!
Lindsey passa a escova nos cabelos.
— Você realmente não se lembra de nada da sua vida de antes?
Eu conto a ela sobre a minha única lembrança com o vestido de princesa.
— E o sequestro? Quero dizer, deve ter sido traumático e você se lembraria dele.
— Eu não me lembro.
O medo toma conta de mim. Conto a ela sobre a foto com o machucado no rosto. Do medo inexplicável que sinto.
— Ok, isso é de arrepiar — diz ela.
— Sim.
— Você não precisa contar ao seu pai sobre a história do sequestro. Apenas diga que esteve pensando sobre a adoção.
— Sim. — Mas como eu disse a Cash, sou de pôr panos quentes, não de quebrar ovos. Por outro lado, nas últimas vezes em que conversei ou estive com meu pai, eu estava surtando. Mas a coisa toda do sequestro é diferente. É muito maior. E se eu descobrir que sou realmente Emily Fuller, não vai haver uma tigela grande o suficiente para recolher todos os ovos que vou quebrar.
Meu celular avisa sobre a chegada de uma mensagem. Achando que é de Cash, sinto uma emoção brotar no meu peito. Não é de Cash.
É da minha mãe.
Avise seu pai que não deve entrar em casa. Eu não quero vê-lo! E pergunte a ele por que não pagou o seguro do seu carro ainda.
Um pensamento insano me ocorre. Não sobre minha mãe, mas sobre meu pai. Sobre perdoar papai.
Talvez eu não seja capaz de perdoá-lo até que minha mãe esteja bem. Talvez eu não seja capaz de perdoar meu pai até que minha mãe o perdoe.
O que pode ser, tipo... nunca.
Isso parece errado, mas pode ser verdade.
Eu me reclino na cama de Lindsey.
— Odeio a minha vida.
Cash trabalhou até um pouco mais tarde e já eram seis horas quando foi trocar de roupa. O celular tocou e, esperando que fosse uma mensagem de Chloe, ele pegou o aparelho. Não havia mandado uma mensagem para ela ainda, com receio de que ela fizesse perguntas sobre seu pai novamente, mas decidiu que mandaria uma mensagem mais tarde.
Cash esperava que ela estivesse acordada quando ele fizesse outra ligação tarde da noite. Se não fosse para falar sobre o passado, ele gostava de conversar com Chloe. Ele sorriu ao se lembrar da conversa sobre Cinquenta Tons de Cinza.
Olhou para a tela do celular. Não era uma mensagem de Chloe. Era da sra. Fuller. Ele se encheu de pavor. Tinha saído de casa aquela manhã sem vê-la. Cash não tinha ideia de como ela reagiria ao seu comentário de que seria uma “péssima ideia” adotá-lo.
Ele leu a mensagem.
Tony e eu estamos com vontade de comer comida indiana. Quer se juntar a nós no Kiran's Café?
Ele queria recusar o convite, mas talvez ir jantar fora fosse mais fácil do que enfrentá-la em casa.
Ele mandou uma mensagem. Que horas?
Sete?
Certo.
Ela enviou o emoji de uma carinha sorridente. A sra. Fuller sempre mandava mensagens com muitas carinhas sorridentes. Cash sabia que era um sinal de que ela se importava com ele. Ele também gostava de recebê-las.
Como ainda faltava uma hora, decidiu dar uma corrida até a livraria. Conversar com Chloe sobre livros o deixara com vontade de ler um. Talvez ele encontrasse um livro de ficção fantástica sobre o qual pudessem conversar.
Quando saio do banheiro, depois de me arrumar para me encontrar com meu pai, minha mãe está enrodilhada no sofá, com um livro e Félix no colo.
Ela olha para mim.
— Você está bonita.
— Obrigada. — Tudo o que fiz foi pentear o cabelo e colocar rímel e brilho labial, mas eu sei que essa é minha mãe fingindo que está tudo bem, e eu agradeço. Consulto as horas e vejo que são quase seis e meia.
Inclinando-me, acaricio Docinho, que está abanando o rabo como se achasse que vamos sair para dar um passeio.
— Você quer que eu traga algo para você comer? — pergunto à minha mãe.
— Não! Não quero comer nada que seu pai tenha comprado. — Ela já não está fingindo que está tudo bem.
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Por que você não escreve? — sugiro.
— Talvez.
Aposto que ela não vai nem tentar. E provavelmente não vai comer também. Eu verifiquei e, até hoje, ela só tomou duas das suas bebidas nutritivas, no total. E a promessa de beber duas por dia? Juro, minha mãe parece ainda mais magra agora.
— Até mais tarde.
Pego a bolsa e saio, me sentindo culpada por deixá-la sozinha.
Sentada nos degraus da varanda, vejo uma picape parar em frente à casa ao lado. Então Jonathon, o cão sarnento traidor, sai do carro. Ele me vê e me cumprimenta com a cabeça. Aceno de volta, mas não de uma maneira amigável. Sei que Lindsey já saiu há trinta minutos.
Eu o ouço bater na porta e perguntar por Lindsey. Escuto a mãe dela responder.
— Ela saiu.
— Pode dizer a ela...?
A porta se fecha. Eu sorrio. A mãe de Lindsey também não gosta do cão sarnento traidor.
Ainda estou sorrindo quando ouço passos. Ah, merda!
Olho para a rua, rezando para ver o carro do meu pai chegando. Mas não.
Quando vejo, Jonathon está na minha frente.
— Você é a garota nova da escola, não é? Chelsea?
— Chloe — corrijo-o.
— Você e Lindsey não vão juntas para a escola?
— Sim. — Cadê você, pai?
— Você sabe onde ela está?
O que eu digo? O que eu digo?! Eu poderia dizer que ela saiu com um cara muito gato. Ou eu poderia...
— Não.
— Sabe com quem ela está?
O que eu digo agora? Vou optar pela verdade outra vez.
— Sim.
Ele faz uma careta.
— Mas não vai me dizer, certo?
— Não sou eu que tenho que dizer.
— Sabe, não sou um cara tão ruim quanto ela disse que sou.
Sei. Quer dizer, então, que você não pôs chifres nela?, eu penso, mas não pergunto.
Ele se inclina contra a cerca da varanda.
— De que cidade você veio?
— El Paso — digo, desejando que ele vá embora.
— Você gosta daqui?
— Não. — Quando olho para cima, ele está olhando para os meus peitos. Como se esse cara tivesse alguma chance comigo.
Ele esfrega a sola do sapato no degrau.
— Bem, já que não estou fazendo nada e você não está fazendo nada, quem sabe a gente possa...?
— Não. — O carro do meu pai para em frente à minha casa. Eu me levanto. — Tchau!
Quando entro no carro, a cabeça do meu pai está virada na direção de Jonathon, que fica nos encarando enquanto volta para a sua picape. Considerando que meu pai está dirigindo um conversível vermelho e tem cabelos espetados, Jonathon provavelmente acha que meu pai é meu namorado. Ai, credo!
— Quem é esse? — meu pai pergunta.
— Ninguém. — Esqueço minha antipatia por Jonathon e me defronto com a minha decepção em relação a meu pai. Ele precisa desistir desse cabelo espetado.
— Você já está namorando?
— Não. — Então eu me lembro de Cash. — Talvez.
— Não acha que é um pouco cedo?
Balanço a cabeça, discordando.
— Por que não nos apresenta? — Ele fala como um pai zeloso. Por que isso me irrita? Então percebo por quê. Meu pai perdeu o direito de falar comigo sobre garotos ou sobre sexo quando começou a transar com Darlene.
— Primeiro porque aquele cara não é meu namorado. Segundo, porque... deixa quieto. — Calo a boca. Eu não quero discutir.
Meu pai olha para mim e, pela expressão dele, posso ver que está pensando o mesmo que eu.
— É bom ver você. — Ele estende a mão e aperta a minha. — Faz muito tempo que não saímos juntos, só nós dois.
Se sentiu tanto a minha falta, por que não enviou flores na data certa ou não me ligou quando disse que ligaria? Eu engulo a pergunta. Hoje não vou quebrar ovos. Mas penso no comentário de Lindsey sobre fazer ao meu pai algumas perguntas “vagas” sobre a agência de adoção. Isso eu posso fazer.
Meu pai começa a falar.
— Procurei no Google restaurantes indianos em Joyful. Achei um, o Kiran’s Café. Que tal um frango na manteiga?
17
A caminho do restaurante, conversamos sobre assuntos neutros. O clima. O último livro que li. Ele está tentando conversar, mas os assuntos acabam tão rápido que tenho receio de que logo não tenhamos mais sobre o que conversar.
— Como estão Brandon e Patrick? — pergunto, me referindo ao primo do meu pai e o marido dele. Acho que esse é um assunto seguro.
— Não sei. Faz muito tempo que não vejo os dois.
— Por quê? — Eles costumavam ir em casa pelo menos uma vez por mês, além de passar os feriados conosco. Brandon, que é chef de cozinha, sempre se encarregava das refeições.
— Nós vivemos ocupados.
Quando diz “nós”, meu pai se refere a ele e a Darlene. Antes que eu possa me conter, meu próximo pensamento sai pela minha boca:
— Eles não gostam de Darlene? — Isso não deveria me deixar feliz, mas deixa. — Ou ela não gosta deles?
Essa possibilidade aumenta a minha angústia com relação ao meu pai. Como meus avós paternos morreram em um acidente de carro logo depois que meus pais se casaram, Brandon é o único parente que meu pai tem.
— Você não devia deixar Darlene acabar com a sua família. — Quer dizer que, mais uma vez, ele deixou que ela separasse a nossa família.
A expressão do meu pai muda.
— Não é bem assim. — A mentira fica evidente na voz dele.
Em alguns minutos, meu pai estaciona e entramos no restaurante impregnado com um aroma intenso de curry, cominho e açafrão. Meu estômago se contrai de fome, mas meu coração se contrai de dor. Sou transportada de volta a todas as vezes em que saí com meu pai no passado. Volto à época em que sair com ele era um dos meus programas favoritos. Nós ríamos. Falávamos de futebol. Discutíamos filmes. Ele perguntava sobre a escola, os meus amigos, a minha vida. Não como se estivesse checando o que eu andava fazendo, mas como se quisesse saber tudo sobre mim porque eu o interessava. Porque eu era importante para ele.
Sinto falta disso. Sinto falta dele. Do meu antigo pai. De como éramos antes. Um nó se forma na minha garganta.
Estamos sentados a uma mesa perto da porta. O garçom, um homem alto, mais velho e de ascendência indiana, nos entrega os cardápios. Noto que meu pai está olhando em volta como se estivesse confuso. Ele pega o cardápio, mas olha para o garçom.
— Este lugar não costumava ser a Pauline Pizzaria?
— Sim — diz o garçom. — Meu irmão comprou o ponto sete anos atrás.
— Foi o que pensei.
O garçom anota nossas bebidas e se afasta.
Meu pai olha para mim.
— Sua mãe trabalhava aqui. Eu costumava comer pizza aqui toda sexta-feira à noite, porque um funcionário que trabalhava às sextas-feiras gostava dela. — Há uma expressão suave no rosto dele, como se a lembrança fosse boa; então, de repente, ele pisca e o ar de felicidade desaparece. Meu pai abre o cardápio, como se quisesse se esconder atrás dele. É só uma suposição, mas juro que ele parece sofrer ao se lembrar da minha mãe. Ou talvez ao se lembrar do quanto a está fazendo sofrer.
Por outro lado, posso jurar que meu pai não sabe quanto ele magoou minha mãe. Ou quanto me magoou.
É muito egoísmo da minha parte querer que ele sofra também? Talvez seja normal, mas parece errado. Tudo parece errado. Estar aqui com ele parece errado.
Ele baixa o cardápio.
— Você quer pedir o de sempre? Frango na manteiga e cordeiro vindaloo, e dividimos os pratos?
— Tudo bem — eu digo.
— Quer mais alguma coisa?
— Talvez — eu digo, pensando que, quanto mais comida tivermos para comer, menos tempo teremos para conversar.
O garçom traz nossas bebidas.
— Prontos para pedir?
Meu pai olha para mim.
— Vamos pedir esses dois pratos primeiro e, depois, se você quiser mais alguma coisa, pedimos também, ok?
Eu concordo. Meu pai faz o pedido.
Quando o garçom se afasta, voltamos a olhar um para o outro.
— Na escola, vai tudo bem? — ele pergunta.
Acho que meu pai quer que eu diga que vai tudo bem, assim pode se sentir menos culpado.
Estou sobrevivendo. Aos trancos e barrancos.
Não vou amenizar a culpa dele.
Ele me fala que encontrou Kara e Sandy na loja de CDs. Como meu pai só entrava na loja de CDs se eu implorasse, acho que ele estava com Darlene. Imagino o choque das minhas antigas amigas ao ver Darlene. Eu me pergunto por que nenhuma das duas me mandou uma mensagem falando sobre isso. Elas provavelmente acharam que isso ia me deixar chateada. Constrangida. Elas têm razão.
— Estou com fome — diz meu pai quando um garçom diferente passa por nós com dois pratos de comida.
— Eu também — minto. Não sei se vou conseguir comer. Todos aqueles aromas que antes me inspiravam sentimentos de amor agora me provocam náuseas.
Ficamos em silêncio outra vez. O telefone do meu pai toca avisando da chegada de uma mensagem. Ele lê. Eu me pergunto se é Darlene. Não. Ainda não tenho fome. O barulho do restaurante aumenta. Garfos batendo nos pratos. Ruídos de refeições sendo preparadas na cozinha. O burburinho das conversas. Ouço a recepcionista perguntando para quantos é a mesa.
— Três. Obrigado — responde o cliente. A voz me parece familiar.
Olho na direção da porta. Perco o fôlego. Cash está entrando com um homem e uma mulher.
A mulher do vídeo, só que mais velha. O homem tem cabelos escuros. E olhos castanhos. O mesmo tom castanho dos meus olhos.
Analiso o rosto dele.
Depois o rosto dela.
Eles são meus pais? Tenho o DNA deles? Fui arrancada da minha família?
Parte de mim quer correr até eles, outra parte quer fugir.
Cash deve ter sentido o meu olhar, porque olha na minha direção e arregala os olhos, como quem diz, “Ah, merda".
Abro o cardápio para cobrir meu rosto.
— Por aqui — ouço a recepcionista dizer. Os passos se distanciam. Meu coração bate forte no peito. Ouço o sangue fluindo nos meus ouvidos.
Abaixo o menu e vejo Cash tentando fazer os Fuller se sentarem de costas para mim.
O pânico sobe até o meu peito como um líquido quente. Meus pulmões recusam o oxigênio.
— Você encontrou outra coisa que queira pedir? — meu pai pergunta.
Eu desvio os olhos para a mesa de Cash e depois para a porta.
— Não vai dar... — digo, sem querer, em voz alta.
— O que não vai dar? — ele pergunta.
Eu me levanto, não tão rápido a ponto de chamar atenção, e sigo na direção da porta.
— Chloe? — meu pai me chama. Não olho para trás.
Abro a porta. O ar quente me envolve. Ainda não consigo respirar.
— Merda!
Vou até o carro do meu pai e me encosto no capô. Meu coração está batendo na garganta. E então a ficha cai. Eu tenho que saber. Tenho que saber se eles são meus pais. Tenho que saber se não fui simplesmente abandonada, como se não fosse importante. Como se não fosse amada. Aperto os punhos.
Então ouço passos. O medo dá um nó no meu estômago. Será que eles me viram? Será que tudo vai acontecer agora? Por mais que eu queira conhecê-los, estou com medo. Ergo os olhos. É meu pai.
Seus passos devoram a calçada, na minha direção. Ele me olha com a testa franzida.
— Que diabos aconteceu? — ele me pergunta. Seus ombros estão tensos, sua expressão é carregada; a frustração é uma nuvem ao redor dele.
A raiva dele desperta a minha. Minha mente dispara e a única coisa em que consigo pensar é repetir o que eu já disse.
— Não vai dar.
— Não vai dar para fazer o quê?
— Ter um encontro de pai e filha como se tudo estivesse bem quando não está. — No segundo em que a desculpa sai da minha boca, não é mais uma desculpa. É a mais pura verdade. — Você me abandonou. Você não está nem aí comigo. — Sinto-me abandonada, como na época em que tinha 3 anos. Então, do nada, ouço uma voz, “Seu pai e sua mãe não querem mais você". De onde, diabos, vem essa voz? Lágrimas enchem meus olhos. — Você pode abrir o carro? Por favor!
A expressão do meu pai endurece.
— Eu me divorciei da sua mãe, não de você!
— Não é o que parece — rebato.
Ele fica ali, ainda com raiva, ainda frustrado e ainda o homem que culpo por me causar tanta dor. Como ele pode não se envergonhar de si mesmo?
— Vou lá pagar o jantar. — Ele abre o carro.
Deslizo para o banco do passageiro e me encolho para que ninguém me veja caso saia do restaurante. É muito estranho que eu esteja aqui fora discutindo com meu pai enquanto meu pai e minha mãe de verdade podem, muito bem, estar dentro do restaurante.
Começo a suar, mas não me importo. Fico sentada ali, com as janelas fechadas e sentindo calor. Então sinto novamente. O medo. Quero fugir. Estou com medo.
Fecho os olhos, pressiono a cabeça contra o encosto do banco e tento respirar. O tempo passa. Um minuto. Dois. Três.
Cinco.
Oito.
Que diabos meu pai está fazendo? Ah, Deus. Será que os Fuller me viram e foram confrontar meu pai?
Meu celular toca e chega uma mensagem. Pego o aparelho. É Cash.
Ele: Está tudo bem?
Eu: Não. O que está acontecendo?
Ele: Seu pai está pegando a comida para viagem.
Eu: Eles me viram?
Ele: Não.
Ouço a porta do carro se abrindo. Sinto outra onda de medo. Eu a reprimo. Meu pai, parecendo chateado, me entrega uma grande sacola branca.
Ele se senta atrás do volante, mas não liga o carro.
— Você é minha filha. Minha garotinha. Não posso perder você, Chloe!
Lágrimas enchem meus olhos e eu me viro para a janela. O aroma de comida indiana invade o carro, o cheiro dos meus encontros com meu pai. De repente, passo a não gostar mais daquele cheiro.
Ele começa a falar novamente.
— Sei que eu deveria ter ligado e estraguei tudo. E, sim, eu só me lembrei tarde demais que era a data da sua adoção. Por isso suas flores não chegaram até você a tempo. Eu sou humano. Não sou perfeito, Chloe.
Meu peito queima de raiva, mágoa, desespero. Um pouco por causa de hoje. Um pouco por causa do passado. Ainda não consigo olhar para ele, mas digo:
— Você costumava ser perfeito. Você costumava se lembrar das coisas. Eu costumava ter importância para você.
Eu o ouço bater a mão no volante e dizer um palavrão de cinco letras. Depois de um segundo, ele diz:
— Você ainda é importante para mim.
O silêncio paira entre nós, dentro do carro. Tudo que ouço somos nós dois respirando e meu coração se partindo.
— Muitos pais se divorciam — diz ele como se isso fosse justificativa. — Pais e filhas no mundo todo continuam se dando bem. Por que nós não podemos?
A pergunta paira no ar e a resposta surge dentro de mim como o vulcão que ele e eu construímos para o meu projeto de ciências, na quinta série.
— Acho que a mãe delas não teve câncer! — Minha voz soa estridente. — O pai delas não as deixou cuidando de tudo. Tendo que lidar com a mãe vomitando por semanas a fio, enfrentando o pensamento de que a mãe estava morrendo!
As palavras jorram da minha boca. Não consigo contê-las. Estou quebrando todos os ovos. Não me importo. Parece que, se eu não disser tudo isso, algo dentro de mim vai explodir.
— Mamãe teve câncer! Mas é como se eu também tivesse tido. Fui eu quem preparou sopa de tomate e sanduíches de queijo grelhado para ela, porque ela não conseguia comer outra coisa. Fui eu quem se sentou no chão do banheiro com ela chorando, porque o cabelo estava caindo. Fui eu quem teve de ser forte quando não me sentia forte. Eu, pai! — Bato no peito. — Eu! Droga! Ela precisava de você. Eu precisava de você! Mas você estava muito ocupado para se importar... tingindo o cabelo, comprando um novo guarda-roupa e transando com a Darlene!
Meu pai segura o volante e desvia os olhos de mim. Respira fundo. Segura o ar. Segura mais um pouco. Então olha para mim, novamente. Eu vejo tudo nos olhos dele. Culpa. Dor. Até amor. E isso é o que mais dói.
— Eu... Eu sinto muito. Eu não... Eu fiz tudo errado. Fiz mesmo, querida.
Eu respiro com dificuldade. Estou instável. Todo meu mundo está instável.
Meu pai liga o carro e acelera. Meu colo está quente por causa das caixas na sacola. O cheiro impregna o carro. Quero jogar tudo pela janela. Nunca mais vou comer comida indiana outra vez.
Ele dirige em direção à minha casa. Entra no meu bairro. Mas não vira na minha rua.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Não sei. Mas não posso deixar você sair deste carro até...
— O quê? — pergunto.
Eu o ouço engolir em seco.
— Até que... me perdoe. — A voz dele falha.
— Então vamos ficar neste carro por muito tempo! — Digo a mim mesma para não me sentir mal por ele estar sofrendo.
Ele vai para o parque. O mesmo ao qual Cash e eu fomos quando ele me contou sobre Emily.
Estaciona sob um poste de luz.
— Chloe, eu não sei o que eu estava pensando. Na verdade, eu não estava pensando. Você estava crescendo, sonhando com a faculdade e com garotos. Sua mãe só pensava em escrever, sonhando com uma nova carreira. E eu... Eu não tinha sonhos. Eu me sentia velho e cansado. — Ele respira fundo. — Então conheci Darlene e... — Ele para de falar.
— E você a amou mais do que amava mamãe e a mim?
Ele respira.
— Não. Mas não há desculpa para o que eu fiz. Eu vejo isso agora. É tão assustadoramente claro. Eu fui um idiota. Não mereço o seu amor. Não mereço o seu perdão. Mas não posso perder a minha garotinha. Por favor... me perdoe.
A dor dele é tão real que eu a sinto. Fico sem falar por quase um minuto, porque não sei o que dizer, mas depois as palavras jorram da minha boca.
— Eu não me recusei a ver você. Mas perdoar não é nada fácil. — Eu engulo. — Ainda te amo, mas às vezes preferia não amar.
Ele balança a cabeça, como se entendesse.
— O que posso fazer para ajudar? Faço qualquer coisa. Me diga. Sua mãe precisa de dinheiro?
— Eu... acho que não. Mas ela me disse para perguntar por que o seguro do meu carro não está pago.
— Não está pago? — ele pergunta.
— Ela disse que não.
— Mas Darlene disse... Vou averiguar. O que mais posso fazer?
— Nada. — Ouvir o nome de Darlene me deixa com raiva de novo.
Meu celular toca com a chegada de outra mensagem. Eu não olho. Deve ser Cash.
Ficamos sentados em silêncio, no carro, sentindo o calor.
— Trouxemos você aqui no dia em que a buscamos — meu pai diz.
Eu olho para ele, sem entender. Ele continua:
— Quando pegamos você na agência, fomos ver seus avós e depois viemos aqui. Eu coloquei você no balanço. Lembro-me de pensar em como você era delicada. Tão pequena, mesmo não sendo mais um bebê. Eu estava com medo, sabendo que, a partir daquele momento eu era responsável por cuidar de você. Coloquei você no balanço, mas estava com medo de empurrar com força demais e você cair. Você parecia assustada. Eu queria fazer alguma coisa, qualquer coisa para provar a você que eu era um cara legal. — Ouço a voz dele ficar embargada. — Eu me apaixonei por você logo de cara. Jurei que nunca deixaria ninguém machucá-la e agora eu sou o idiota que está te machucando. Eu me odeio por isso.
Eu não digo nada.
— Sei que vai levar um tempo para você me perdoar, mas não vou desaparecer da sua vida. Eu amo você — ele diz.
Sei que parece loucura, mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu, nunca duvidei que meu pai não me amasse. Eu simplesmente não consigo entender como ele pode ter me amado e feito o que fez.
Sei que ele espera que eu responda. Que eu diga que o amo. Mas eu já disse isso uma vez. É tudo o que posso fazer.
18
— Chloe? — Meu pai pega a minha mão. O toque me provoca um choque de dor. Eu quase me afasto, mas não faço isso porque sei que vou magoá-lo.
Nós ficamos sentados ali. Lembro-me do que eu queria perguntar a ele esta noite.
— Qual era o nome da agência de adoção?
— O quê?
Tiro a minha mão da dele.
— O nome da agência de adoção. Era em Fort Landing, não era?
— Sim. Acho que era... New Hope ou algo assim. Por quê?
Dou de ombros.
— Só curiosidade.
— Você está querendo...
— Não — me apresso a dizer. — E não diga nada à mamãe. Tenho medo que ela fique chateada.
— Não vou dizer nada.
Depois de outros segundos de silêncio, ele abre a porta do carro.
— Vamos lá? — diz ele.
— Onde?
— No balanço? Você costumava querer que eu te balançasse o tempo todo.
— Não — eu digo.
— Me deixe fazer isso... Você me disse uma vez que balançar era tão bom quanto voar.
Quase volto a recusar o convite, mas me lembro de quanto ele parecia chateado alguns minutos atrás, então resolvo sair do carro. Está escuro, mas a lua está cheia e brilhante. A noite está tão silenciosa que ouço nossos passos na calçada. Caminhamos até os balanços mais altos. Cada um se senta em um, deixando um espaço entre nós. Ele parece grande demais para estar num balanço. Eu me sinto muito grande. Mas a mágoa entre nós, de alguma forma, parece menor.
Eu balanço. Pernas para trás. Pernas para a frente. Contemplo a grande bola prateada no céu, as estrelas brilhantes. O movimento, o vaivém, parece de alguma forma catártico. A sensação é de que estamos voando.
Uma lufada de ar passa por mim quando meu pai pega impulso. Enquanto ele avança, eu recuo. Não estamos no mesmo ritmo. Percebo que pode demorar um pouco até que a minha relação com meu pai volte a ser como antes.
Eu não sei quando conseguirei perdoá-lo, mas essa é a primeira vez que sinto o arrependimento dele. Isso não resolve nada. Mas é um começo. Talvez nunca mais seja como antes, mas espero que encontremos um novo ritmo, um novo relacionamento entre pai e filha que não cause mágoas.
Acho que quebrar ovos pode ter suas vantagens.
Quando entro em casa, não sinto cheiro de comida vindo da cozinha. Minha mãe não preparou o jantar. Vou até o quarto, esperando que ela esteja acordada.
Ela está. Deitada no sofá, lendo. Não está escrevendo. Eu fico ali, lembrando-me de como me senti quando vi a sra. Fuller, como se tivessem me roubado alguma coisa — o amor da minha mãe. No entanto, eu tenho uma mãe. E por mais relapsa que tenha sido neste último ano, ela me ama. Eu sei disso. E eu a amo.
Ela ergue os olhos e de repente me sinto culpada. Culpada por ter sentido que ela não bastava, culpada por ter me queixado ao meu pai por ter de cuidar dela. Sim, eu sou uma cretina. Foi horrível para mim, mas não tanto quanto foi para ela. E, se fosse eu que tivesse adoecido, ela faria a mesma coisa por mim. Só que ela nunca teria reclamado. Meu peito se aperta.
Pego o meu celular.
— Você quer de quê?
— O quê?
— Estou pedindo uma pizza para nós.
— Pensei que você tinha saído com seu pai para jantar...
— Eu não comi nada — digo.
— Por quê? — ela pergunta.
— Estava sem apetite.
— Vocês discutiram? — Ela se endireita no sofá, como se estivesse se preparando para ficar com raiva.
— Quero a de lombo canadense com abacaxi — minto, porque sei que ela adora. — Um pouquinho doce e um pouquinho salgada. Está bom para você?
— Sim. Sobre o que foi a discussão?
— Você quer salada?
— Você não vai me contar?
— Você sabe o que acho que devemos fazer? — pergunto.
— O quê? — ela diz parecendo um pouco frustrada.
— Encomendar a pizza e depois dar outra chance para aquele filme que você queria assistir.
Ela faz uma careta.
— Era um pouco forte...
— Talvez. Mas o humor às vezes é um pouco forte. E nós duas precisamos rir.
— Você já viu?
— Sim. Mas quero ver de novo.
— Com quem? Com quem você viu aquele filme?
Eu franzo a testa.
— Promete que não vai ficar brava?
— Alex? — Como eu não nego, ela parece chocada, mas não muito brava.
— Sim. E nós dois rimos muito. E você está precisando rir também. Então vamos comer a pizza e assistir ao filme. E vamos rir das piadas de camisinha. Ok?
Ela parece surpresa com o meu jeito de falar, meio autoritário.
— Acho que não tenho escolha.
Lembro-me de Cash dizendo: Você sempre tem escolha. Mas, para minha mãe, essa é a escolha certa. E fico feliz que ela não esteja discutindo comigo. Já discuti o suficiente esta noite.
Quando Cash e os Fuller chegaram em casa, ele queria ir direto para o quarto.
— Acho que vou ler um pouco — disse a sra. Fuller, subindo as escadas, rumo à suíte principal.
Quando Cash começou a subir para o andar de cima, ouviu o sr. Fuller dizer:
— Cash, pegue duas cervejas na geladeira e vamos conversar aqui fora.
O quê?
— Cerveja?
— Sei que você já ficou bêbado antes.
— Eu não bebo tanto assim. — Ele já tinha visto o pai biológico beber demais e não tinha nenhuma vontade de fazer o mesmo.
— Eu não iria oferecer uma a você se achasse que bebe demais. Vou esperar aqui fora.
Cash pegou duas Bud Lights.
— O que eu fiz? — perguntou, com o palpite de que aquela pergunta tinha a ver com o comentário mal-humorado que soltara como resposta à sugestão de ser adotado.
— Obrigado por ir jantar conosco. Susan estava com receio de que você não fosse.
O sr. Fuller torceu a tampa da cerveja. Cash fez o mesmo.
— Ela te ama. — O sr. Fuller levantou a cerveja e deu uma golada.
— Ama até demais... — Cash tomou um gole.
— Ninguém pode amar demais — disse o sr. Fuller.
Cash discordava.
— Esta conversa é porque ela me disse que queria me adotar, não é?
O sr. Fuller baixou a cerveja.
— Nós não entendemos. Por que você não quer?
— Vou fazer 18 anos daqui a seis semanas. Não preciso de ninguém cuidando de mim.
— Todo mundo precisa de uma família, Cash.
Não, não é verdade.
— Olha, não é que eu não seja grato ao que vocês fazem por mim.
— Nós sabemos disso, Cash. É por isso mesmo. Você é grato. Nós temos certeza. E, tirando as briguinhas por aí, você é um bom garoto. Até suporta as regras de Susan... e algumas são ridículas! E eu sei que é porque você gosta dela. É por isso que não entendo por que você não quer a adoção.
Cash encolheu os ombros.
— Eu não sei o que dizer. Só não acho necessário.
O sr. Fuller tomou outro gole de cerveja.
— Você sabe do que ela tem medo?
— Não. — Cash girou a garrafa gelada nas mãos.
— Que, depois do seu aniversário, você arrume suas coisas e vá embora e nós nunca mais vejamos você. E... Caramba! Ela ainda sofre porque perdeu a filha. Não pode perder o filho.
A dor apertou o peito de Cash. Por isso ele esperava que Chloe fosse Emily.
— Não pretendo me mudar antes de me formar.
— E depois? — perguntou o sr. Fuller.
— Eu preciso ser eu mesmo.
— E quando tentamos fazê-lo ser algo que você não é?
— O tempo todo — disse ele, num tom firme. Você quer que eu seja seu filho. — Você ficou chateado quando me inscrevi em Tecnologia Automotiva. Você quer que eu vá para uma faculdade chique. E a sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina. O que eu não vou fazer.
— É errado da nossa parte querer que você vá para uma faculdade melhor? Você é tão inteligente, Cash! Você tem notas mais altas do que eu e Susan tínhamos. Você pode ser o que quiser. Por que quer ser mecânico?
— Não há nada de errado em ser mecânico. E eu vou para a faculdade, só não vou fazer o que você quer.
— Mas nós temos dinheiro...
— Eu consegui uma bolsa! — Cash se levantou.
— Cash, filho, por favor, sente-se.
Eu não sou seu filho.
Ao ver que Cash não faria isso, o sr. Fuller continuou:
— Estou implorando a você, não a magoe mais do que ela já foi magoada.
— Estou tentando não fazer isso. — Cash disparou para o andar de cima, procurando não bater a porta do quarto com muita força.
No quarto, o celular tocou. Uma mensagem de Chloe. Ele tinha enviado uma mensagem para ela mais cedo e perguntado se poderiam conversar.
A resposta dela: Esta noite não posso. Vamos conversar amanhã.
— Merda! — Cash jogou o aparelho na cama. Ele bem que precisava de uma distração. Precisava rir um pouco. Precisava ouvir a voz suave dela. Queria provocá-la mais sobre a leitura de Cinquenta Tons de Cinza e contar sobre o livro que comprara.
Ele queria...
Ele queria...
Ele queria...
Eram onze horas quando fui dormir. Minha mãe e eu rimos muito com o filme. Acho que foi um bom filme, mas na verdade ri mais de minha mãe do que de qualquer outra coisa. Agora não consigo dormir. Nada mais parece tão engraçado. Continuo vendo os Fuller na minha frente. O rosto dela no restaurante. O rosto dele. Os olhos dele. O homem que poderia ser meu pai.
Fico me perguntando se sou Emily. E se eu sou, o que seria da minha vida se eu não tivesse sido sequestrada e levada para longe da minha verdadeira família? Na outra vida, eu ainda seria eu? Como eles ainda são casados, eu teria sido poupada da tristeza causada pelo divórcio dos meus pais? Da angústia causada pelo câncer da minha mãe? Eu teria ido para uma escola particular e agora estaria planejando ingressar em uma das melhores faculdades do país? Quem eu seria se não tivesse crescido achando... achando que fui abandonada? Que fiz algo de errado. Até que ponto minha vida teria sido melhor?
Isso faz com que eu me sinta culpada novamente. Como se querer respostas, querer saber se meus verdadeiros pais me amavam, fizesse de mim uma filha ingrata aos olhos dos pais que me adotaram.
Afastando esse pensamento, começo a recapitular todas as coisas que eu disse para o meu pai. Tudo que eu disse é verdade, mas eu me lembro das lágrimas nos olhos dele, da dor que minhas palavras lhe causaram. Mesmo sabendo que ele mereceu, não me parece certo fazê-lo sofrer.
O pensamento mais absurdo me ocorre. E se o meu pai sofresse um acidente a caminho de casa? E se eu o perdesse! Lembro-me dele dizendo que me ama, enquanto estávamos sentados no carro. Ele precisava ouvir que eu também o amo, mas eu não disse nada. E se aquela foi a última chance que tive de dizer isso?
Eu sei, não devia pensar em tragédias como essa, mas penso assim mesmo, e essa bola de emoção — de tristeza e de uma culpa que eu não deveria sentir — fica represada no meu peito, como um grande elefante cor-de-rosa.
Pego o celular para mandar uma mensagem para o meu pai. Então percebo que ele não está na casa dele, percebo que a casa dele era minha e agora é a casa de Darlene. Jogo o celular longe e fecho as mãos em punho.
Penso em escrever uma mensagem para Lindsey, mas tenho certeza de que ela ainda está fora com David.
À meia-noite, pego o celular para mandar uma mensagem para Cash. Quero contar a ele que descobri o nome da agência de adoção. Quero alguém para me dizer que eu não deveria me sentir desleal por precisar de respostas. Ou talvez eu só queira conversar. Com ele. Ontem à noite, nossa conversa foi divertida. Me fez esquecer como a minha vida está bagunçada.
Não importa que ele esteja ajudando a descobrir se sou uma criança sequestrada. Não importa, por causa da provocação, do flerte, do desejo de saber mais sobre ele. Isso é divertido. É normal.
Eu preciso de mais coisas normais.
Começo a mandar uma mensagem para ele, mas o imagino dormindo em sua cama. Até imagino-o sem camisa. Nunca o vi sem camisa, mas posso imaginar como seria bom.
Nesse momento, meu celular toca, avisando sobre a chegada de uma mensagem. Levanto da cama num salto e pego o celular.
É dele. Está acordada?
Eu: Sim. Quer conversar?
Ele: Não.
Eu: Não...?
Ele: Quero ver você. Estou aqui fora, em frente à sua casa.
Eu: Em frente à minha casa? Agora?
Eu corro para a janela. Meu coração dispara.
Eu vejo o jipe dele. E mais do que tudo, quero ver Cash.
19
Eu me viro para ir até a porta, mas ouço o velho assoalho de madeira rangendo embaixo dos meus pés descalços. Paro e percebo que estou vestindo apenas shorts e uma camiseta combinando.
Estou decente?
Sim. Embora esteja sem sutiã, a blusa não é justa.
Meu próximo pensamento é se minha mãe está me ouvindo.
Corro de volta para a janela.
Não tem tela. Estou prestes a destrancá-la quando meu celular tocar novamente.
Ele: Isso significa que você não quer me ver?
Eu: Estou abrindo a janela.
Ouço a porta do jipe abrir e fechar, e vejo Cash. O peso no meu peito diminui como neblina se dissipando.
Ele parece tão lindo, caminhando em direção à minha janela... Em direção a mim.
— Tenho medo de acordar minha mãe, se abrir a porta da frente — sussurro.
Ele olha para cima.
— Você quer que eu entre?
— Não, eu vou sair. — Olho para baixo. É apenas uma queda de um metro de altura. Considerando que tenho um metro e setenta de altura, não é nada. Coloco o tronco para fora da janela, monto no parapeito, depois me viro e coloco a outra perna para fora. Estou inclinada para a frente, sentada na janela. Tudo que preciso fazer é saltar.
— Eu pego você. — As palavras dele soam tão doces. Eu quero que ele me pegue.
Cash estica a mão e eu salto. As mãos deslizam para baixo da minha blusa de pijama. Sinto o toque dele na minha cintura nua, e é tão bom, tão quente, tão doce. Eu instantaneamente sinto borboletas no estômago.
Quando coloco os pés no chão, recupero o fôlego, não por causa do salto, e sim em razão do toque de Cash. Ele me puxou para mais perto ou eu é que me aproximei?
Nós nos beijamos. Os lábios macios de Cash deslizam sobre os meus. As mãos dele descansam na minha cintura, e seus polegares fazem pequenos círculos nas minhas costas, logo acima da minha cintura. Minhas mãos se movem para a cintura dele.
Eu me inclino mais para perto. Meus seios, sem sutiã, estão comprimidos contra o peito sólido dele. Uma emoção, um doce formigamento, toma conta de mim.
— Uau. — Ele se afasta.
— Sim. — Eu sorrio. — Eu queria mandar uma mensagem para você.
— Por que não mandou?
— Achei que estivesse dormindo.
— Não consegui dormir — ele diz.
— Nem eu.
— Noite ruim? — ele pergunta.
— Sim. E você?
— Sim. Mas está melhor agora. — Ele se aproxima e me beija novamente. Desta vez, a língua dele desliza entre os meus lábios; sua boca tem gosto de menta, como se ele tivesse tomado um refresco.
Quando o beijo termina, estamos ambos sem fôlego.
— Você quer ir a algum lugar?
Eu reviro os olhos.
— Estou de pijama e descalça.
Seus olhos se desviam para os meus pés.
— Que fofura...
Enfio os dedos na grama quente.
— Meus pés?
— Você inteira! — diz ele. — Quer se sentar na varanda?
Eu ouço um miado. Félix pula no peitoril da janela do meu quarto.
— Não! — digo a ele, e Félix volta para o meu quarto. Cash fecha a janela.
— Talvez no seu carro — eu digo, sem querer que ninguém me veja de pijama, beijando um cara na minha varanda da frente.
— Tudo bem. — Ele tira a mão da minha cintura e segura a minha mão enquanto caminhamos para o carro dele. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
— O que aconteceu? — pergunto, lembrando-me do comentário sobre a noite ruim. — Eles não me viram, não é?
— Não. Só um pouco mais da mesma ladainha.
— Você quer dizer deixar o emprego e ir para uma faculdade melhor?
— Sim — diz ele.
— Lamento por você.
Chegamos ao jipe de Cash.
— Você quer sentar no banco de trás?
Lembro-me do comentário de Lindsey sobre não querer que David pensasse que ela queria se sentar no banco de trás.
— Só para conversar — diz Cash, como se estivesse lendo meus pensamentos. — E beijar. — Ele parece envergonhado. — Não é para... você sabe.
— Sei. — Eu sorrio porque acredito nele. Cash não está ali para tentar algo para o qual eu não esteja pronta.
Fico na ponta dos pés e beijo a bochecha dele.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por vir aqui.
Cash abre a porta de trás e entra no jipe depois de mim. O console entre os assentos está abaixado. Deslizo apenas até a metade do banco e fico perto dele. Cash se acomoda ao meu lado e fecha a porta.
— Ovelhas — diz ele.
— O quê? — pergunto.
— Você tem ovelhas nos shorts e na blusa.
Eu olho para baixo.
— Estou de pijama.
— Eu sei. — Sorrindo, ele tira meu cabelo da bochecha. — Ah, tome.
Ele tira algo do bolso. É um saquinho.
Eu sorrio ao ver o que é.
— Skittles vermelhos. Obrigada. — Coloco um na boca.
Então coloco um na boca dele.
— O que fez a sua noite ficar ruim? Encontrar os Fuller no restaurante?
— Em parte. E eu sou uma quebradora de ovos agora.
— O quê?
— Lembra que eu acusei você de ser um quebrador de ovos enquanto eu sou alguém que gosta de pôr panos quentes?
— Sim. O que você fez?
— Fiquei com muita raiva. Disse ao meu pai o que eu pensava dele por ter saído de casa e me deixado sozinha para cuidar da minha mãe doente.
— Muito bem. — Seu tom carinhoso me atinge em cheio no coração. — O que ele disse?
— Acho que meu pai finalmente percebeu o idiota que ele foi.
— Isso foi bom? — pergunta Cash.
— Não. Na verdade, não. Eu o magoei. — Mordo o lábio. — Ele chorou. Implorou para que eu o perdoasse.
— E você o perdoou — ele diz quase como se fosse uma coisa ruim.
— Não. Eu disse a ele que não era fácil. Mas eu falei que ainda o amo.
— Você é uma pessoa melhor do que eu — Cash diz.
Eu vejo algo nos olhos dele.
— Quem você precisa perdoar?
— Muitas pessoas.
Ele me beija novamente. Eu me perco na sensação da sua boca contra a minha.
Em alguns minutos, estamos deitados no assento, um de frente para o outro. Nós nos beijamos, nos beijamos e nos beijamos. As minhas mãos estão em seu peito; as dele, ainda na minha cintura. Ele sobe a minha blusa nas costas e suas mãos começam a vir para a frente. Para os meus seios.
Então ele tira as mãos das minhas costas e enterra o rosto no meu pescoço. Sinto sua respiração contra minha bochecha. Eu abro os olhos.
As janelas do carro estão embaçadas. Ele levanta a cabeça e eu vejo seus olhos. As pupilas estão dilatadas. Eu sei que ele parou para cumprir sua promessa. E eu quase gostaria que ele não tivesse prometido nada.
Cash sorri. Eu sorrio de volta.
— Eu precisava disso — ele diz. — Você me faz... esquecer as coisas ruins.
— Sim. — Eu o beijo outra vez, mas termino rapidamente. Lá no fundo, sei que precisamos desacelerar. Sei o que vem a seguir. E, embora pareça ótimo, não estou realmente pronta para o próximo passo.
Eu toco os lábios dele.
— Você faz eu me sentir tão... normal.
— Normal? — Ele sorri contra os meus dedos. — Para uma garota que lê histórias de amor, acho que você pode fazer melhor do que isso.
Eu solto uma risada.
— Não, quero dizer, não sou Chloe, cuja mãe tem câncer ou está depressiva. Ou Chloe, cujo pai é um cafajeste. Ou Chloe que pode ser uma garota sequestrada. Sou apenas uma garota normal, sentindo coisas incríveis enquanto beija um cara muito gato.
— Gosto da parte do “cara muito gato” — diz ele.
— Eu gosto do cara muito gato.
— Você é incrível. — Cash corre um dedo pela minha bochecha.
Lembro-me do que eu queria dizer a ele.
— Você estava certo. Meus pais usaram a Agência de Adoção New Hope.
— Como você sabe?
— Perguntei ao meu pai.
— Você contou a ele...?
— Não, eu disse que estava curiosa e pedi que não comentasse nada com a minha mãe.
Cash assente.
— Deveríamos ir até essa agência. Pedir para ver a sua documentação.
— Eles me deixariam ver? — Sento-me.
— Você não tem 18 anos ainda, mas logo terá, então quem sabe? Talvez deem algum papel para seus pais assinarem.
A mágica do beijo começa a desaparecer e eu me lembro do que estou enfrentando.
— Eu quero fazer isso. Vou fazer, mas... — Eu me lembro de ouvir minha mãe rindo aquela noite. — Não posso pedir para a minha mãe assinar nada. Isso pode deixá-la ainda mais deprimida.
— Eu poderia forjar a assinatura dela.
— Isso é ilegal.
— Não tão ilegal quanto sequestrar uma criança.
Sim, a mágica se foi.
— Meus pais não me sequestraram. Eles me adotaram.
— Eu não quis dizer... — Cash hesita. — Antes de irmos, precisamos saber tudo que for possível. Vou tentar dar uma olhada no arquivo. Podemos ir à agência na segunda-feira.
Concordo.
Os olhos verdes encontram os meus com cautela.
— Quando perguntei se você se lembrou de algo de antes da adoção, você disse “mais ou menos”. Do que você se lembra?
— Nem chega a ser uma lembrança completa. Estou sentada num sofá, ele é marrom-claro e manchado. Estou chorando, assustada. Calço sapatos pretos de verniz, com fivelas. O tapete é sujo. E estou usando um vestido de princesa e segurando uma tiara.
— Havia alguém com você?
— Não sei. Tudo o que sei é que estou com medo.
— Como se você tivesse sido sequestrada?
— Não sei, mas esse sentimento, esse mesmo medo, às vezes eu sinto do nada. — Minha garganta dá um nó. — Ou talvez seja do dia em que a minha mãe me deixou na agência de adoção. E se estivermos errados? E se tudo isso for uma coincidência? E meus verdadeiros pais simplesmente não me queriam?
Ele franze a testa.
— São muitas coincidências. Sua vida aqui. O nome do seu gato. A data em que Emily foi sequestrada e que você foi adotada. A sua boneca.
— Sim, mas ainda assim podem ser simples coincidências.
O ombro dele se aproxima do meu.
— Vamos descobrir.
Fecho os olhos e me lembro de quase ouvir alguém me dizendo que minha mãe e meu pai não me queriam mais. Isso aconteceu ou foi só uma impressão que eu tive? E o machucado no rosto...?
— Você acha que, se os Fuller tivessem me visto, eles me reconheceriam?
— Sim. Você está como naquela foto.
Eu me inclino contra ele.
— Isso é tão difícil...
— Eu sei — diz Cash.
Nesse momento, um carro para em frente à casa de Lindsey. Vejo quando os faróis se apagam.
— É Lindsey voltando para casa, depois do encontro com David. — Eu me abaixo no assento e o puxo para baixo. Ele volta a se levantar.
— Opa! Eles estão na varanda. Vão se beijar.
— Pare de bisbilhotar. — Mas então eu me levanto e vejo David beijar Lindsey.
— Que bom! — digo, esperando que Lindsey não esteja pensando em Jonathon.
— Isso é mais que bom. — Cash me puxa para baixo e me beija. E ele está certo. É mais do que bom.
Nos beijamos até ouvirmos o carro de David se afastar. Então eu digo:
— Já é tarde.
— Tem razão. — Ele me leva de volta até a janela e a abre.
Eu calculo a altura.
— Entrar vai ser mais difícil do que foi para sair.
— Salte e eu te dou impulso. — Ele pega os Skittles da minha mão e os coloca no bolso.
Apoio as mãos no parapeito da janela e pulo. As mãos dele empurram meu traseiro e Cash me dá impulso para cima. Metade do meu corpo já está do lado de dentro. De repente, acho engraçado. Dou risada e olho para trás.
— Já pode tirar as mãos da minha bunda agora.
— Eu estava apenas ajudando — diz ele, e sorri.
Acabo de escalar a janela, depois me viro e olho para Cash.
Ele me entrega as balas e depois dá um salto se apoiando no parapeito. Seus ombros enchem o espaço da janela, os bíceps musculosos enrijecendo, os olhos verdes nos meus.
Ele me dá um breve beijo de despedida.
— Bons sonhos.
— Você também.
Eu o vejo voltar para o carro. Corro a língua pelos lábios para saborear o gosto do beijo dele. Mesmo com todos os problemas, pela primeira vez estou começando a gostar de morar em Joyful.
C O N T I N U A
— O que está fazendo? — pergunto quando meu pai entra no estacionamento de uma loja de conveniência, a pouco mais de um quilômetro de onde minha mãe e eu estamos morando agora. Minha voz soa meio desafinada depois de passar cinco horas de viagem sem falar. Eu estava com medo de que, se dissesse alguma coisa, tudo dentro de mim transbordaria. Minha raiva. Minha mágoa. Minha decepção com o homem que costumava ser meu super-herói.
— Preciso abastecer o carro e ir ao banheiro — diz ele.
— Ir ao banheiro? Quer dizer que você não pode nem entrar para ver minha mãe quando me deixar em casa? — Sinto o coração apertado como se uma mão gigante o esmagasse.
Ele me olha nos olhos, ignora minhas perguntas e diz apenas:
— Você quer alguma coisa?
— Sim, minha vida de volta! — Saio do carro e bato a porta com tanta força que o barulho de metal contra metal reverbera no ar abafado do Texas. Arrasto os pés pelo estacionamento, enquanto fito minhas sandálias brancas devorando a calçada e tento esconder o brilho das lágrimas nos meus olhos.
— Chloe! — meu pai me chama. Eu ando mais rápido.
Com os olhos ainda colados no chão, abro a porta, entro com tudo dentro da loja e dou um encontrão em alguém, esmagando meus peitos contra o peito da pessoa.
— Merda! — rosna uma voz grave.
Um copo de isopor bate no chão e uma bebida vermelho-sangue explode nas minhas sandálias brancas. O copo vira, provocando uma hemorragia no piso de ladrilhos brancos.
Engulo o nó na garganta e dou um passo para trás, afastando meu sutiã tamanho P do tórax de um sujeito.
— Desculpe — ele murmura, embora a culpa seja minha.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ARRANCADA_DO_MEU_MUNDO.jpg
Eu me forço a olhar para ele e vejo primeiro o peito largo, depois os olhos verdes e em seguida o cabelo preto-azeviche caído na testa. Ah, droga! Eu não podia ter trombado com algum velhinho de bengala?
Volto a fitar os olhos brilhantes do desconhecido e vejo uma mudança neles. Não estão mais com uma expressão de quem se desculpa. Agora parecem chocados e então... zangados.
Eu deveria dizer algo do tipo, Eu é que tenho que me desculpar, mas o nó na minha garganta volta com força total.
— Merda. — A palavra volta a escapar, agora com uma cara feia.
Concordo, tudo isso é uma merda!
Ouço meu pai chamar meu nome novamente, do lado de fora da loja.
Minha garganta fica mais apertada e as lágrimas ardem nos meus olhos. Com vergonha de chorar na frente de um estranho, arranco minhas sandálias e disparo na direção de uma geladeira cheia de refrigerantes.
Abro a porta de vidro e estico o pescoço para sentir o ar frio, precisando muito esfriar a cabeça. Enxugo algumas lágrimas rebeldes nas bochechas, depois sinto alguém ao meu lado. Meu pai não vai deixar isso passar em branco.
— Apenas admita que você estragou tudo! — eu digo, depois olho para o lado e sou engolida por aqueles mesmos olhos verde-claros zangados de um minuto atrás. — Pensei que você fosse... Foi mal... — balbucio, sabendo que é tarde para um pedido de desculpas. O olhar dele é inquietante.
O garoto continua a me encarar. Um olhar que não faz a mínima questão de esconder a antipatia. Como se a irritação dele não fosse apenas pela raspadinha derramada.
— Eu pago a sua bebida. — Ele nem pisca, então acrescento: — Me desculpe.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta fica sem resposta.
— O quê? Eu conheço você? — Sei que fui rude, mas, gato ou não, o cara está me deixando assustada.
Os olhos dele brilham de raiva.
— O que você quer? — Não entendo por que há um tom de acusação na voz dele.
— Como assim?
— Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Ele ainda está me encarando. Percebo que estou me sentindo intimidada com aquele olhar.
— Eu não sou... Você deve estar me confundindo com outra pessoa. — Balanço a cabeça, sem saber se o cara é tão louco quanto sexy. — Não sei do que você está falando. Mas já me desculpei. — Pego uma lata de bebida e, descalça, com as sandálias gosmentas na mão, ando rápido para a entrada da loja.
Meu pai entra, carrancudo.
— Cuidado! — diz a moça do caixa ao meu pai, enquanto limpa o chão sujo de raspadinha em frente à porta.
— Desculpe — murmuro para a moça e aponto para o meu pai. — Ele vai pagar meu refrigerante! E essa raspadinha aí no chão.
Disparo até o carro, entro e seguro a lata fria de refrigerante contra a testa. Os fios de cabelo na minha nuca começam a ficar arrepiados. Olho em volta e o gato esquisitão está do lado de fora da loja, me encarando novamente.
Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
É isso aí, o cara não bate bem. Desvio o olhar para fugir da vigilância dele. Meu pai volta para o carro. Ele não dá partida, fica ali parado, só me olhando.
— Você sabe que isso não é fácil para mim também.
— Ok. — Então, por que você saiu de casa?
Ele liga o carro, mas, antes de partirmos, olho em volta novamente e vejo o garoto de cabelos pretos parado no estacionamento, escrevendo algo na palma da mão.
Engano meu ou ele está anotando o número da placa do meu pai? Esse cara é muito doido! Eu quase digo algo para o meu pai, mas me lembro de que estou chateada com ele.
Meu pai acelera. Fico atenta ao espelho retrovisor. O cara gostosão fica ali, com os olhos colados no carro do meu pai, e eu também não tiro os olhos dele até que não passe de um pontinho preto no retrovisor.
— Sei que é difícil — diz meu pai. — Penso em você todo dia.
Eu balanço a cabeça, como se entendesse, mas não falo nada.
Minutos depois, meu pai encosta o carro na frente da nossa casa. Ou melhor, da casa onde moramos minha mãe e eu. Meu pai não mora mais conosco.
— Eu te ligo amanhã para ver como foi o seu primeiro dia de aula.
Meu estômago se contrai como um tatu-bola com o lembrete de que vou começar meu último ano do ensino médio numa escola nova. Olho para a casa velha no bairro antigo. A casa que um dia pertenceu à minha avó materna e que minha mãe alugou para um casal de idosos nos últimos anos. Agora moramos nela. Uma casa que cheira a gente velha... e a tristeza.
— Ela está em casa? — pergunta meu pai.
À luz do entardecer, nossa casa está às escuras. Uma luz dourada se infiltra por debaixo da porta da casa ao lado, onde mora Lindsey; ela foi a primeira pessoa da minha idade que conheci na cidade.
— Mamãe provavelmente está descansando — respondo.
Ficamos calados por um momento.
— Como ela está?
Achei que não ia perguntar... Olho para eu pai, enquanto ele segura o volante com força e analisa a casa.
— Bem. — Abro a porta do carro, sem querer me despedir. Dói demais.
— Ei! — ele sorri. — Pode me dar pelo menos um abraço?
Eu não quero dar, mas por algum motivo (porque sob toda aquela raiva, eu ainda o amo) eu me inclino sobre o console entre os bancos e o abraço. Ele não tem mais nem o cheiro do meu pai. Está usando uma colônia que Darlene provavelmente comprou para ele. Lágrimas ardem nos meus olhos.
— Tchau. — Tiro do carro um pé melado de raspadinha.
Antes de eu levantar o traseiro do banco, ele diz:
— Ela vai voltar logo a trabalhar?
Eu me viro para ele.
— Foi por isso que você perguntou como ela está? Por causa do dinheiro?
— Não. — Mas a mentira é tão clara na voz dele que fica pairando no ar.
Quem é esse homem? Ele tinge os fios grisalhos nas têmporas. Agora usa o cabelo espetado e está vestindo uma camiseta com o nome de uma banda que ele nem sabia que existia até Darlene aparecer na vida dele.
Antes que eu possa me conter, as palavras se derramam da minha boca:
— Por quê? Sua namorada está precisando de mais um par de sapatos de grife?
— Não, Chloe — ele diz num tom severo. — Você está falando como a sua mãe.
A mágoa agora aperta a minha garganta.
— Ah, pelo amor de Deus... Se eu falasse como a minha mãe, diria: “A putinha está precisando de mais um par de sapatos de grife?”. — Eu me viro outra vez para a porta do carro.
Ele pega meu braço.
— Olhe aqui, mocinha, não posso esperar que você goste dela assim como eu, mas gostaria que pelo menos a tratasse com respeito.
— Respeito? A pessoa precisa merecer respeito, pai! Se eu usasse as roupas que ela veste, você me mataria. Na verdade, nem você eu respeito mais! Você arruinou a minha vida. Você ferrou a vida da mamãe. E agora está transando com alguém dezoito anos mais jovem que você. — Saio do carro e, a meio caminho da soleira de casa, ouço a porta do carro se abrir e bater.
— Chloe. Suas coisas. — Ele parece zangado, mas não mais do que eu, porque, além de raiva, sinto mágoa.
Se eu não estivesse com receio de que ele me seguisse até em casa, todo ofendido, e começasse uma discussão com a minha mãe, eu não voltaria para pegar nada. Mas não quero mais ouvi-los discutindo. E não sei se minha mãe também iria aguentar. Não tenho opção a não ser fazer a coisa certa. É péssimo quando você é a única pessoa na família que se comporta como um adulto.
Eu me viro, seco as lágrimas bruscamente e me volto para o meio-fio.
Meu pai está de pé ao lado do carro, com uma mão segura a minha mochila e, com a outra, uma enorme sacola com as roupas novas que comprou para eu usar na escola. Ótimo. Agora me sinto a filha desalmada e ingrata.
Quando me aproximo, murmuro:
— Obrigada pelas roupas.
— Por que está tão brava comigo? — ele pergunta.
Tantas razões... Qual delas eu escolho?
— Você deixou Darlene transformar meu quarto numa academia de ginástica.
Ele balança a cabeça.
— Nós tiramos suas coisas e colocamos no outro quarto.
— Mas aquele quarto era meu, pai.
— É por isso que você está tão brava ou será porque... ? — Ele faz uma pausa. — Não é culpa minha que sua mãe tenha ficado...
— Continue pensando assim — eu digo. — Um dia desses, você pode até começar a acreditar!
Com as mãos ocupadas e o peito pesado, deixo meu super-herói e meu coração partido abandonados na calçada. Minhas lágrimas estão caindo rápidas e quentes quando fecho a porta da frente atrás de mim.
Docinho, um vira-lata amarelo de porte médio, me cumprimenta com um ganido e o rabo abanando. Eu o ignoro. Largo a mochila, a sacola de compras e vou para o banheiro. Félix, meu gato amarelo tigrado, vem correndo e entra comigo.
Tento fechar a porta de um jeito normal, em vez de batê-la com raiva. Se minha mãe me vir assim, vai ficar chateada. Pior ainda, isso alimentará sua raiva.
— Chloe? — minha mãe chama. — É você?
— Sim. Estou no banheiro. — Espero que minha voz não revele quanto me sinto arrasada.
Eu me sento no vaso sanitário, pressiono as costas das mãos contra a testa e tento respirar.
Os passos da minha mãe fazem o velho assoalho de madeira ranger. A voz dela soa atrás da porta.
— Está tudo bem, querida?
Félix está ronronando e se esfregando na minha perna.
— Sim. Mas meu estômago nem tanto... Acho que o bolo de carne que comi na casa do papai não caiu bem.
— Darlene é quem estava cozinhando? — O tom de voz dela denuncia o ódio reprimido.
Eu cerro os dentes.
— Sim.
— Por favor, diga que seu pai repetiu o prato.
Fecho os olhos, quando o que realmente quero fazer é gritar: Pare com isso! Eu entendo por que minha mãe está tão furiosa. Entendo que meu pai é um filho da mãe. Entendo que ele se recusa a assumir a culpa e que isso só piora as coisas. Entendo o que ela passou. Entendo tudo isso. Mas ela tem ideia do quanto me dói ouvi-la falar tão mal de alguém que eu ainda amo?
— Vou me sentar um pouco lá fora, no quintal — diz ela. — Quando sair daí, vá se sentar lá comigo.
— Ok — respondo.
Os passos da minha mãe se afastam.
Fico sentada no vaso e tento não pensar em tudo que me magoa. Em vez disso, faço carinho em Félix. Seus olhos, tão verdes, me levam de volta ao garoto da loja. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Que diabos ele quis dizer com isso?
Saio do banheiro, mas, antes de abrir a porta dos fundos, olho pela janela e vejo minha mãe no gramado, reclinada numa cadeira de armar. O sol está se pondo e ela está banhada numa luz dourada. Os olhos estão fechados e o peito se move para cima e para baixo, respirando lentamente. Está tão magra... magra demais.
O lenço azul desbotado escorregou da cabeça dela. Tudo que eu vejo é sua cabeça sem cabelos. E — pronto! Estou com raiva do meu pai outra vez.
Talvez ele esteja certo. Talvez eu o culpe pelo câncer da minha mãe.
Não adianta nem eu me lembrar de que, três semanas atrás, o médico a considerou curada. De fato, o câncer de mama foi detectado tão cedo que os médicos insistiram em dizer que deveríamos considerá-lo só um pequeno obstáculo no caminho.
Mas eu odeio os solavancos que os obstáculos podem provocar...
Meu olhar é atraído para a cabeça dela novamente. O médico afirmou que as breves sessões de quimioterapia eram só para ter certeza de que não restaria nenhuma célula cancerígena. Mas até eu ver o cabelo da minha mãe voltando a crescer e as costelas protuberantes sumindo, não vou parar de ter medo de perdê-la.
Quando ela foi diagnosticada, pensei que meu pai voltaria, que ele perceberia que ainda a amava. O mais triste é que acho que minha mãe pensou o mesmo. Mas isso não aconteceu.
Minha mãe abre os olhos, ajusta o lenço na cabeça e fica de pé com os braços abertos.
— Venha cá. Senti sua falta.
— Só fiquei três dias fora — digo. Mas é a primeira vez que durmo fora de casa desde que minha mãe adoeceu. E senti falta dela também.
Caímos nos braços uma da outra. Os abraços dela começaram a ficar mais longos desde que se separou do meu pai. Os meus ficaram mais apertados desde que a temida doença de minha mãe marcou nossas vidas.
Eu retribuo o abraço dela. Docinho está aos meus pés, a cauda abanando e batendo na minha perna.
— Ela redecorou a casa? — O tom de voz dela é casual, mas ainda carregado de animosidade.
Apenas o meu quarto. Mudando de assunto, eu pergunto:
— O que você fez enquanto estive fora?
— Li dois livros. — Ela sorri.
— Você não pegou seu manuscrito e tentou escrever?
Antes da separação, minha mãe passava todo o seu tempo livre trabalhando em seu livro. Ela chamava esse hobbie de “minha paixão”. Suponho que meu pai tenha exterminado essa paixão também.
— Não. Não tive vontade — ela diz. — Ah, olhe! — Ela tira a bandana. — Já está nascendo uma leve penugem na minha cabeça. Ouvi dizer que algumas mulheres gastam uma fortuna para ficar com esse visual.
Eu solto uma risada, não porque seja engraçado, mas porque ela está rindo. Eu não me lembro da última vez que minha mãe riu. Será que as coisas estão melhorando?
Ela vai até a cadeira de balanço dupla e se senta.
— Sente-se.
A cadeira afunda sob o nosso peso. O ombro de minha mãe esbarra no meu e ela olha fixamente para mim. Será que percebeu que meus olhos estão inchados de tanto chorar?
— O que há de errado, querida?
A preocupação em sua voz, o amor em seus olhos, tudo isso me faz lembrar de quando eu podia contar com ela para desabafar meus problemas. Quando eu não pesava cada palavra para garantir que não iria magoá-la. Porque ela já está sofrendo demais.
— Nada — eu digo.
Ela contrai os lábios.
— Seu pai deixou você chateada?
— Não — minto.
O olhar dela se demora em mim como se ela soubesse que não estou sendo sincera. Eu invento alguma coisa:
— É Alex.
— Você o viu enquanto estava na casa do seu pai?
Outro nó se forma na minha garganta. Acho que esse assunto também é delicado.
— Ele veio me ver e conversamos no carro.
— E então...?
— Não aconteceu nada. — Guardo essa dor para outra hora. — Eu disse a você que ele está saindo com outra pessoa.
— Sinto muito, querida. Você me odeia por tê-la feito se mudar de cidade?
Gente, não dá para odiar alguém que tem câncer! Mas e agora que o câncer está curado...? É tentador, mas não posso. Assim como não posso odiar meu pai.
— Eu não te odeio, mãe.
— Mas você odeia morar aqui? — A culpa acrescenta uma nota triste à voz dela. É a primeira vez que ela considera meus sentimentos sobre isso. Eu tentei ao máximo convencê-la a não se mudar, cheguei a implorar, mas ela não fez concessões. Então eu fiz. Fiz um monte de concessões.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Só é difícil.
Meu celular toca, indicando a chegada de uma mensagem. Não quero olhar agora, porque acho que é meu pai mandando uma mensagem para pedir desculpas e minha mãe pode ver, então vou ter que explicar. Ele está arrependido, não está? Quero acreditar que ele tenha percebido que dar meu quarto a Darlene foi um erro.
— Quem é? — pergunta minha mãe.
— Não sei. — O celular permanece no meu bolso.
Ele toca novamente. Merda!
— Você pode olhar para ver quem é... — diz minha mãe.
Eu tiro o celular do bolso e verifico as mensagens. Não é meu pai. E isso também me magoa.
— É Lindsey. — Eu leio a mensagem dela. Apareça quando puder.
— Ela ligou antes para ver se você estava em casa. Por que não vai vê-la? Vou preparar o jantar.
— Vou apenas mandar uma mensagem para ela — digo, sabendo que Lindsey vai perguntar sobre a minha viagem e eu não a conheço bem o suficiente para despejar tudo em cima dela.
— Ok. — Minha mãe dá um tapinha no meu braço. — O que você quer jantar?
— Pizza. — Estou morrendo de fome. Eu mal toquei no almoço na casa do meu pai.
— Pizza? Com o estômago revirado desse jeito? — diz minha mãe. — Que tal sopa de tomate e queijo grelhado?
Eu odeio sopa de tomate. É comida de hospital. Comida de quem tem câncer. Nós comemos isso quase todas as noites durante a quimioterapia. Então, mais uma vez, suponho que seja isso que eu ganhe por mentir.
— Claro!
Depois de um prato de sopa, um sanduíche e dois episódios de uma série, dou um abraço de boa-noite na minha mãe e vou para a cama. Docinho e Félix me seguem quando entro no meu quarto. Ou melhor, o quarto em que durmo. Meu quarto não existe mais.
Pego o celular para ver se alguma das minhas antigas amigas, ou talvez Alex, me mandou uma mensagem. Nada exceto outra mensagem de Lindsey, me lembrando de avisá-la quando estiver saindo para a escola na manhã seguinte.
Eu desabo na minha cama. Félix salta para cima do colchão, se aconchega ao meu lado e começa a ronronar. Docinho faz o mesmo e fica aos meus pés. Com o celular ainda na mão, deslizo a tela para as selfies que tirei de mim, Kara e Sandy neste final de semana. Nós estamos sorrindo, mas não é um sorriso sincero, natural. Parece que nós três estamos só fazendo pose. Como se estivéssemos fingindo alguma coisa. Fingindo um sorriso. Fingindo amizade.
Continuo passando as fotos com o dedo até chegar às mais antigas, com Kara e Sandy. Nós não estamos posando ou fingindo. Estamos nos divertindo. Isso está claro na nossa expressão, nos nossos sorrisos verdadeiros.
Eu continuo olhando as fotos até encontrar uma só minha e de Alex. Ele está beijando minha bochecha. Seus olhos azuis não aparecem na foto, e eu posso dizer que ele está rindo. Lembro-me de quando foi tirada. Na primeira noite em que dormimos juntos. Lágrimas enchem meus olhos e meu dedo desliza mais rapidamente. Imagens, instantâneos da minha vida agora não passam de borrões coloridos voando pela tela do meu celular.
Será que, na realidade, é apenas disso que se trata a vida? Borrões coloridos? Uma colagem de momentos efêmeros, em diferentes tons e matizes de emoção? Momentos em que você está feliz, triste, com raiva, com medo, e aqueles em que você está apenas fingindo.
Jogo o celular nos pés da cama e olho para o ventilador de teto girando, enquanto minhas emoções parecem fazer o mesmo. Meus olhos ficam pesados e então — pronto! — não estou mais olhando para o ventilador. Estou presa numa lembrança quase tão antiga quanto eu.
Estou sentada num sofá marrom. Meus pés, dentro de sapatos pretos de fivela, balançando bem acima de um tapete sujo. Estou usando um vestido de princesa com babados rosa, mas não sou uma princesa feliz. Soluços profundos e sinceros, meus soluços, ecoam ao meu redor. Eu me sinto um peixe fora d’água. Não consigo respirar.
Sento-me tão rápido que Félix pula da cama.
É a única lembrança que tenho antes de me tornar Chloe Holden. Alguns meses antes do meu terceiro aniversário. Antes de eu ser adotada.
Ultimamente, essa lembrança tem me ocorrido. Me assombrando, de certa forma. Mas eu sei por quê. É a sensação. A sensação de ser arrancada do meu mundo e colocada em outro lugar.
Não que isso não tenha sido bom. Naquela época, tive muita sorte em ser adotada, e por pais perfeitos. Ganhei uma mãe, um pai, tenho um gato chamado Félix e, ainda por cima, adotamos um cachorro chamado Docinho. Morávamos numa casa de tijolinhos brancos de três quartos, onde sempre havia risadas. E amor. Eu tinha amigos com quem cresci. Um namorado a quem entreguei a minha virgindade.
Eu tinha uma vida. Eu era feliz. Meus sorrisos eram de verdade nas fotos.
Aí meu pai passou a trabalhar até tarde.
Começaram as brigas dos meus pais.
O caso do meu pai.
A depressão da minha mãe.
O divórcio.
O câncer.
E depois a mudança da cidade de El Paso para Joyful, no Texas. Que, a propósito, de alegre não tem nada... [-11
E aqui estou eu. Arrancada do meu mundo outra vez. Arrancada brutalmente.
Mas, desta vez, não estou me sentindo tão sortuda assim.
2
Tentando me convencer de que este primeiro dia de aula não vai ser tão ruim quanto imagino, corro os dedos pelo meu cabelo grosso e escuro, que passei meia hora alisando. Depois de dar uma última olhada no espelho da penteadeira, envio uma mensagem para Lindsey e saio do quarto apressada.
Minha mãe, sumindo dentro de um roupão cor-de-rosa grande demais para ela, está sentada na mesa da cozinha, olhando para mim.
— Gosto mais da blusa vermelha.
— Eu sei. Mas prefiro esta hoje.
Dou um abraço nela. Sei que fico bem de vermelho, mas vou aparecer demais, tipo, Olhem para mim, eu sou a garota nova da escola! Então preferi usar uma blusa bege em vez disso.
— Me deseje sorte — diz ela.
— Por quê? O que você vai fazer? Vai começar a escrever de novo?
— Não. Estou procurando emprego.
Meu primeiro pensamento é que minha mãe deve esperar até o cabelo dela crescer.
— Você sente vontade de trabalhar?
— Sim. Estou cansada de não fazer nada.
— Então boa sorte. — Pego a mochila, faço um carinho rápido em Félix e em Docinho e saio, tentando não pensar em meu pai perguntando se minha mãe está trabalhando. Tentando não pensar que nunca recebi um pedido de desculpas dele.
Lindsey, vestindo jeans preto, blusa preta, unhas esmaltadas de preto e batom vermelho, está esperando ao lado da garagem. Seus cabelos loiro-claros com reflexos caem em cascata sobre os ombros. Ela parece saída de uma capa de revista.
— Caprichou no visual, hein? — eu digo.
Ela sorri.
— Meu plano é fazer Jonathon morrer de arrependimento.
Eu já ouvi tudo sobre Jonathon. A quem ela, na maioria das vezes, chama de “aquele cão sarnento traidor”. Eu o vi uma ou duas vezes quando nos mudamos. Foi só quando eles romperam o namoro que Lindsey e eu começamos a conversar. E só recentemente contei a ela sobre Alex, mas nós ainda não arranjamos um apelido perfeito para o meu ex-namorado.
Se a minha mãe não tivesse me arrastado para outra cidade do Texas, Alex e eu ainda estaríamos juntos. Não tenho certeza se poderia chamar de amor o que sentíamos, mas acho que estávamos perto disso. Quando fui embora, concordamos que iríamos manter um relacionamento a distância.
Só durou quatro semanas.
— Como foi a visita à casa do seu pai e do brinquedinho sexual dele? — ela pergunta enquanto caminhamos para o meu carro.
— Um verdadeiro inferno — digo, depois mudo de assunto. — Você já escolheu seu novo crush? — Entramos no meu Chevy Cruze branco.
— Sim, David Drake. Ele me convidou para sair no ano passado, logo depois que comecei a namorar Jonathon. Ele é engraçado, fofo e educado.
No trajeto, Lindsey fala sobre o horário das suas aulas e conta que tem três aulas com Jamie. Jamie é sua melhor amiga, que esteve fora durante o verão. Eu fico preocupada, achando que agora que a melhor amiga está de volta, Lindsey vai me deixar de lado quando mais preciso.
— Espero que a gente tenha aulas juntas — digo a Lindsey.
Quase todo mundo recebeu o horário das aulas por e-mail. Vou pegar o meu depois com a conselheira. Mas como Lindsey não faz as aulas mais puxadas, como eu, de conteúdo mais completo e aprofundado, duvido que tenhamos aulas nas mesmas classes.
Entro no estacionamento da escola e penduro no espelho retrovisor a autorização para estacionar ali. Minha mãe obrigou meu pai a pagar o plano mensal do estacionamento. Meu estômago começa a revirar ao ver pessoas que não conheço. Eu olho para Lindsey.
Ela está me olhando de um jeito estranho.
— Cara, você está nervosa mesmo!
— Um pouco, por quê?
Ela faz uma cara engraçada.
— Não sei. Achei que fosse mais peituda.
— Eu? Por quê?
— Sua mãe tem câncer. Você precisou se mudar no último ano do ensino médio e está, tipo, numa boa com tudo isso. Eu estaria surtando.
Eu digo a verdade.
— Eu estou surtando. Apenas finjo que não. — Saltamos do carro e pegamos nossas mochilas no banco de trás.
A poucos metros do meu carro, sinto pessoas olhando para mim e acenando para Lindsey. Levanto o queixo e finjo que não estou nem aí. Lindsey começa a falar sobre onde vamos nos encontrar depois das aulas e me diz para mandar uma mensagem quando eu souber os meus horários.
Estamos quase saindo do estacionamento quando ouço gritos. Paramos.
Um cara grandalhão, de cabelo castanho-claro, está rindo de outro, mais novo, com cara de ser do segundo ano. O valentão está segurando uma mochila e fazendo algumas piadas sobre a estatura do mais baixinho.
O rosto do garoto está vermelho, como se ele estivesse envergonhado e com muita raiva. Meu coração se compadece do aluno do segundo ano, que parece tão desconfortável quanto eu ali. Estou pensando em fazer alguma coisa quando outra pessoa faz. Alguém com cabelo preto- azeviche e ombros com um quilômetro de largura. Eu acho que ele é professor; então — droga! — eu o reconheço! É o cara paranoico com quem trombei na loja de conveniência.
— Pare de ser idiota! — O psicopata da loja tira a mochila da mão do garoto babaca e a joga para o garoto mais novo, que a agarra e sai correndo.
— Olha como ele corre! — diz o valentão, rindo. Mas, caramba, eu odeio valentões!
O cara estranho fala algo que não consigo ouvir. Eu chego mais perto. Lindsey se aproxima junto comigo.
O idiota explode:
— Quem diabos você pensa que é?
Lindsey se inclina.
— Isso está ficando interessante.
Eu não olho para ela. Meus olhos estão presos na cena.
— Paul é o cara que pegou a mochila do garoto — Lindsey continua, baixinho. — Ele é jogador de futebol. O outro cara é o Cash. Ele começou a estudar aqui na metade do último ano escolar. Costumava frequentar a Westwood Academy, uma escola particular para onde vão as crianças ricas. Mas há boatos de que cresceu num orfanato e é mau elemento.
— Paul é quem está agindo como um mau elemento. — Eu tento ligar o cara que está defendendo o garoto mais novo com o lunático que conheci ontem.
— Verdade. Paul é que vive praticando bullying — Lindsey admite.
Paul se aproxima de Cash. Apesar do encontro de ontem, estou torcendo por Cash. Não gosto de psicopatas, mas gosto menos ainda de valentões.
Cash não se move, mas seus ombros se alargam. Paul não parece assustado, mas ele deveria estar. Cash é uns cinco centímetros mais alto do que Paul. Mas não é a altura que o torna tão intimidador. É a linguagem corporal dele. Ele parece durão. Ainda mais durão agora do que ontem.
— Eu fiz uma pergunta! — Paul grita. — Quem você acha que é, garoto adotado?
Os ombros de Cash se alargam ainda mais.
— Sou o único aqui que não tem que pegar alguém menor do que eu para me sentir importante.
Paul se aproxima e cola o rosto no de Cash.
Cash fala alto:
— Vá embora enquanto pode. — Seu tom é ameaçador.
— Você é que vai embora! — rebate Paul.
Acho que Cash está prestes a recuar o punho para dar um soco no outro, mas ele me surpreende e diz:
— Você não vale o aborrecimento.
Ele se vira para ir embora.
Não sei se estou decepcionada por Cash não dar uma lição em Paul ou se ele tomou a atitude certa.
Cash se afasta alguns passos quando Paul avança e o empurra pelo ombro. Cash se desequilibra.
— Covarde! — Paul o acusa.
— Você é que é covarde por esperar eu virar as costas.
— Bem, agora estou na sua frente. — Paul desfere um soco.
Cash desvia para a esquerda. O punho de Paul golpeia o ar.
Todo mundo ri. Isso alimenta a fúria de Paul. Ele levanta os punhos na frente do rosto e começa a transferir o peso de um pé para o outro, como se fosse um boxeador profissional.
Cash leva os punhos até o queixo. Todos começam a gritar.
— Acaba com esse imbecil! Dá uma lição nele!
De alguma forma, sei que eles não estão torcendo por Cash. Eu não vou gostar dessa escola.
Estou achando que devemos ir embora, mas, assim como Lindsey, não consigo tirar os olhos da cena. Os dois caras se movem em círculo. Paul desfere outro soco, Cash se abaixa. Paul solta um rosnado.
Espero Cash fazer algum comentário irônico, mas ele não fala nada.
Tenho a sensação de que não quer lutar.
De repente, eles se posicionam de modo que Cash fica de frente para mim.
Aqueles olhos verdes líquidos olham para a frente e encontram os meus, castanhos. Ele congela.
É quando Paul desfere outro soco e seu punho atinge o olho de Cash. Ele quase cai, mas, com fúria, golpeia Paul — primeiro na barriga, depois no nariz. Paul cai, ofegante, e coloca a mão sobre o nariz. Sangue escorre entre os dedos dele.
— Parem! — alguém grita. Um homem corre na direção do grupo. Dessa vez é um professor de fato. A aglomeração começa a se dispersar.
— Vamos dar no pé. — Lindsey me puxa. Logo antes de eu me virar, o olhar de Cash me encontra novamente. Seu olho esquerdo já está inchando. Eu me viro e sigo Lindsey.
— Isso foi bem estranho... — Lindsey se apressa em direção à entrada da escola.
— A briga? — pergunto.
— Não. Cash olhando para você. Você o conhece?
— Não — eu digo, mas não explico mais nada.
— Bem, algo em você chamou a atenção dele.
— Eu provavelmente pareço alguém que ele conhece. — Me lembro de dizer o mesmo para ele na loja.
— Ou ele gosta de você. Todas as garotas da escola já tentaram chamar a atenção dele e não conseguiram. Você chega aqui e ele leva um soco enquanto olha para você.
— Talvez não estivesse olhando para mim — digo, sem muita convicção.
— Sei. — Lindsey revira os olhos.
Olho para a escola que aparece diante de mim e tudo que eu quero é dar meia-volta e voltar para casa.
Estou esperando na secretaria para pegar meus horários com a conselheira, a srta. Anderson, quando ouço uma voz zangada atrás de mim.
— Você quebrou o nariz dele.
Estou quase certa de que é a voz do professor que interrompeu a briga. Não viro a cabeça para ver quem é. Fico olhando para a frente, enquanto passam por mim. O professor empurra a porta giratória que leva à parte de trás da secretaria. Cash o segue.
Ele está quase passando pela porta quando se vira para trás. Seus olhos, ou melhor, “seu olho” me encontra — o outro está tão inchado que nem abre mais. O ar de acusação é evidente em sua expressão. Parece até que sou eu a responsável pelo olho roxo. Ouço o professor dizer algo e Cash se vira para a frente e o segue.
Incomodada com aquele olhar, vejo a recepcionista acenando para que eu me aproxime. Ela abre a porta e eu a sigo por um corredor, até os fundos. Viramos uma esquina e vejo o professor que interrompeu a briga. Parecendo chateado, ele conversa com uma mulher de cabelos pretos.
A recepcionista limpa a garganta.
O professor e a mulher olham para ela.
— Chloe Holden. — A recepcionista faz um gesto na minha direção.
— Leve-a até o meu escritório. — A recepcionista concorda com um ar contrariado. — Eu já estou indo.
Sou conduzida até outra sala e eu me sento na cadeira mais próxima da porta, enquanto a recepcionista dá meia-volta e sai. Posso ouvir ao longe a conversa entre o professor e a conselheira. Eu me reclino na cadeira.
— Não — diz a conselheira. — Estou dizendo para averiguar os fatos antes de fazer suposições.
— Eu já averiguei — respondeu o homem. — Paul Cane me disse o que aconteceu e três alunos confirmaram a história.
— Três amigos de Paul, posso apostar — diz a srta. Anderson. — Vou atender essa nova aluna e depois falo com ele.
— Vai perder o seu tempo — diz o professor.
— Bem, é o meu tempo que vou perder — responde a conselheira com rispidez.
Ouço passos vindo na minha direção. Sento-me mais ereta na cadeira e finjo que não estava prestando atenção na conversa.
— Sinto muito fazer você esperar. — Ela me oferece a mão, mas ainda está com a testa franzida. — Sou a srta. Anderson.
Aperto a mão dela. Pode parecer estranho, mas já gosto dela por defender sua opinião, apesar da oposição do professor.
— Eu sou Chloe Holden.
Ela se senta atrás da mesa e, em seguida, puxa um arquivo de uma pilha de papéis.
— Pedi seu histórico escolar para o Lionsgate High. Vi suas notas. São impressionantes. Com toda essa dedicação, você vai longe.
Eu ouço muito isso. Sou inteligente, mas não me dedico tanto assim aos estudos. As coisas, na escola, são fáceis para mim. Na realidade, na minha antiga escola, eu normalmente errava de propósito uma ou duas perguntas nas provas, para que minhas amigas não me odiassem. Ser inteligente demais não é legal.
— Você está planejando ir para a faculdade, certo?
— Estou, sim — digo. — Meus pais frequentaram a Universidade de Houston, então pretendo ir para lá também.
— Com essas notas, você pode ir para a universidade que quiser. Já solicitou uma bolsa?
Eu confirmo com a cabeça. Pelo menos meu pai vai ter uma folga nas mensalidades quando eu for para a faculdade.
— Bem, coloquei você nas turmas em que o conteúdo das matérias é visto com mais profundidade. Assim, acho que não vai ficar entediada.
Assinto com a cabeça outra vez, meus pensamentos ainda no que a ouvi dizendo para o professor no corredor.
— Sua mãe mencionou que está fazendo quimioterapia. E que se divorciou recentemente.
Por que mamãe contou isso a ela? Eu congelo na cadeira.
— Se você precisar conversar, saiba que estou à disposição.
— Obrigada — digo. — Eu estou bem. Minha mãe também. Ela está curada do câncer agora.
— Ótimo! — Ela olha para o computador. — Estou imprimindo os seus horários e vou pedir a alguém que a acompanhe por alguns dias até que você aprenda a se localizar dentro da escola.
Quero recusar a escolta, mas também não quero correr o risco de me perder dentro do prédio e chamar ainda mais atenção.
Ela faz uma ligação rápida e me entrega meus horários, depois de tirá-los da impressora.
— Sandra vai encontrar você no escritório principal.
Concordo novamente, pego minha mochila, dou dois passos em direção à porta e depois me viro.
— Ah, sobre o que aconteceu no estacionamento...
— O quê?
— A briga — eu digo.
— Você estava lá? — Ela se inclina para a frente. Eu tenho a sensação de que gosta de Cash ou talvez saiba que Paul pratica bullying.
— Sim, o cara com cabelos mais claros, acho que alguém o chamou de Paul, ele estava provocando um garoto mais novo. Pegou a mochila dele e não queria devolver. O outro cara, Cash, devolveu a mochila para o garoto. Paul começou a briga. Cash tentou até se afastar dele.
Os olhos da srta. Anderson se arregalam com um sorriso.
— Você conhece algum dos dois?
— Não, não conheço. Só vi a briga. E... alguém me disse o nome deles.
— Obrigada. — Ela parece aliviada.
Eu saio e paro, quase colidindo com o peito de Cash outra vez. Nossos olhares se encontram. Ou o meu olhar e o “meio olhar” dele. Seu olho está inchado agora. Mas juro que o outro está me acusando de alguma coisa.
As palavras “Desculpe por defender você” estão na ponta da língua. Eu não as digo.
Passo por ele com pressa.
Sinto seu olhar sobre mim. Como senti ontem. Calafrios percorrem minha espinha.
O que há com esse cara?
3
Trinta minutos depois, Cash Colton entrou no jipe. Por que ela me defendeu? Então tudo se encaixou e ele soube no mesmo instante: Porque eu estava certo.
Esbarrar nele tinha sido a estratégia perfeita. Sempre faça repararem em você. Não se aproxime. Faça com que suspeitem.
Foi tudo uma estratégia.
Bem, nem tudo. A briga não poderia ter sido. Ninguém poderia adivinhar que ele sairia em defesa do garoto. Cash não sabia nem por que tinha feito aquilo. Exceto... pelo fato de que aquele garotinho assustado costumava ser ele...
Defendê-lo, no entanto, tinha que fazer parte do jogo dela. Fazer com que confiassem nela. Acreditassem que ela é uma pessoa amigável.
Ela ia precisar de sorte. Cash não confiava em ninguém. Nem mesmo em alguém com seios bonitos.
Ninguém pode trapacear um trapaceiro — não quando ele sabe todos os tipos de truque. Foi treinado pelo melhor de todos: seu pai malandrão, agora já falecido.
Ele saiu do estacionamento da escola cantando pneu. Depois de inocentá-lo da briga, a srta. Anderson havia chamado sua mãe adotiva, a sra. Susan Fuller. Por ser médica e uma pessoa amorosa, ela insistiu em vê-lo antes de decidir se ele precisava ir ao pronto-socorro ou não. Ele deveria esperar que ela viesse examiná-lo antes de voltar às aulas.
A um quarteirão da escola, ele ligou para a sra. Fuller.
Ela atendeu:
— Estou a caminho. Você está bem?
— Estou. Não precisa vir. Estou indo para casa agora tomar uma aspirina.
— Cash, a srta. Anderson, queria que você ficasse na escola. Você não deveria ter...
— Ah, é? Eu não sabia. — Na verdade, ele tinha ouvido toda a conversa atrás da porta e saído furtivamente antes que alguém pudesse detê-lo. — Pensei que eu estava livre para ir embora, depois que ela falou com você.
— Não, querido, você não deveria estar dirigindo. Pode ter sofrido uma concussão. A que distância está de casa?
— Praticamente lá — ele mentiu de novo e sentiu um aperto no estômago.
— Você não está com tontura, está?
— Não.
— Ok, então siga em frente e volte para casa. Vou ligar para avisar a srta. Anderson. Estarei em casa em vinte minutos.
— Mas não é preciso. Estou bem. — Ele olhou para o relógio no painel. Oito e quarenta.
— Foi isso que você disse dois anos atrás, quando seu apêndice supurou — ela disse.
— E eu ainda estou vivo. Então eu estava bem, não estava?
— Depois de oito dias no hospital. — Ela suspirou. Cash ouvia muitos suspiros da mãe adotiva. Desapontá-la era a última coisa que ele queria. E, por mais que tentasse evitar, sempre a decepcionava. O passado de Cash o seguia por toda parte.
Os Fuller complicaram a vida deles quando optaram por adotá-lo [2]. Não que fossem sofrer por muito mais tempo. Em dois meses, ele já teria idade para deixar o lar adotivo. Ele não poderia fazer isso antes de terminar o ensino médio...
— Pare o carro e me ligue se sentir tontura.
— Entendido. — Ele desligou. Consultando o relógio novamente, ele passou a entrada para o bairro de Stallion, onde os Fuller moravam — ou melhor, onde ele ocupava um dos quartos da casa deles — e foi direto para o Walmart. O olho latejava.
Estacionou o jipe, entrou na loja e seguiu até o quadro de avisos.
Cada vez que ia ao supermercado, ele examinava aquele quadro. A primeira vez que tinha se deparado com ele, a vontade que teve foi de rasgá-lo, com receio de que os Fuller o vissem e ficassem tristes. Mais tarde, ele descobriu que os próprios pais é que tinham colocado o folheto ali.
E ali estava ela. Na foto, olhando para Cash.
O mesmo formato de olhos. A mesma mandíbula. Os mesmos lábios.
— Merda!
Isso não significava que fosse ela. A imagem que simulava a aparência dela com a idade que teria hoje poderia não ser exata. As fotos às vezes mentiam. Ele sabia disso por experiência própria. Mas, caramba, aquela garota parecia mais com ela em pessoa do que a foto que um filho da mãe dera à sra. Fuller um ano atrás. E depois que a sra. Fuller entregou a ele 3 mil dólares para encontrar a tal garota, ele convenientemente desapareceu. E levou uma parte do coração da mãe adotiva também. Só agora ela estava voltando ao normal.
Se ao menos a sra. Fuller tivesse contado a Cash, ele teria explicado a ela como funciona esse tipo de falcatrua.
Seria o mesmo vigarista voltando para conseguir mais dinheiro? Provavelmente. Mas, desta vez, havia se tornado seu jogo mais sofisticado. Só que agora Cash sabia o que estava acontecendo. E iria detê-lo.
Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Quando estendeu a mão para tirar a foto do quadro, ouviu uma porta se abrir atrás dele. Cash se afastou e fingiu que verificava um cupom de ração para cachorro.
Enfiou as mãos nos bolsos, esperando a pessoa empurrar o carrinho pela porta. Quando não ouviu mais nenhum passo, concentrou-se novamente no panfleto.
Havia uma cópia do folheto na casa dele, também. Guardada num arquivo. Mas vasculhar a escrivaninha do sr. Fuller não parecia certo. Especialmente depois de Cash já ter sido pego fazendo isso uma vez. Ele estava com os Fuller havia apenas alguns meses, algumas semanas antes do seu aniversário de 15 anos, quando viu a sra. Fuller, com lágrimas nos olhos, olhando para o arquivo aberto. Mais tarde, quando ela já confiava nele a ponto de deixá-lo sozinho em casa, Cash descobriu o que a fizera chorar.
Ele não tinha ouvido a sra. Fuller entrar em casa aquele dia. No segundo em que ela o viu, Cash teve certeza de que ela ia gritar, depois ligar para dizer aos assistentes sociais que viessem buscá-lo. Outras três famílias já o tinham devolvido. Mas a sra. Fuller puxou uma cadeira e colocou-a ao lado dele, próximo à escrivaninha do marido, e perguntou o que ele estava fazendo.
Cash foi sincero:
— Eu queria saber o que a fez chorar.
Ela suspirou, um suspiro que era um gemido baixo misturado com uma expiração longa, e ele logo descobriu que aquele suspiro era a marca registrada da sra. Fuller, nos momentos em que estava infeliz. Depois ela contou a história toda. E chorou também enquanto a contava.
A porta do Walmart se fechou. Ele pegou o papel pregado no quadro, dobrou-o, guardou no bolso e saiu de lá. De volta ao carro, ligou o motor e verificou as horas. Droga. Ele tinha cinco minutos para chegar em casa antes da sra. Fuller.
E se ela chegasse lá antes dele, ficaria chateada.
Embora Cash não pudesse ser a pessoa que os pais adotivos queriam que fosse, ele se esforçava para não decepcioná-los. Dirigiu como se fugisse do próprio diabo. Sentado ereto, tomava ainda mais cuidado porque estava enxergando apenas com um olho. Mas ele provavelmente conseguiria dirigir até com os olhos vendados. Tinha muita prática.
Outra coisa que seu pai havia lhe ensinado. Com apenas 9 anos, ele era o motorista de fuga quando o pai roubava lojas de conveniência. Você tem que ganhar seu próprio sustento, garoto. Fazia sete anos que ele não via o rosto do homem, mas a voz dele ainda ecoava em sua cabeça.
Cash estacionou na garagem, destrancou a porta da frente e digitou o código de segurança. Correu pelas escadas, saltando dois degraus por vez, entrou no quarto e escondeu o folheto em sua escrivaninha. Depois correu de volta até o andar de baixo, pegou duas aspirinas, mastigou-as e se deixou cair no sofá. Félix, o velho gato malhado amarelo, miava para que ele o pegasse no colo. O pobrezinho já estava cego como um morcego. Ele pegou o bichano e lhe deu umas palmadinhas de leve. Mal tinha se reclinado no sofá quando a porta se abriu.
— Cash? — Era a voz da sra. Fuller, quase melodiosa, chamando-o.
— Estou aqui, na sala de estar — gritou ele.
Ela entrou e ele a viu franzir a testa.
— Ai, meu Deus!
Ela se aproximou e levantou o queixo dele com dois dedos. Cash tentou não se encolher. Não que tivesse aflição que o tocassem. A sra. Fuller tinha carta branca. Mas é que ele sentia dor quando ela o tocava. Não uma dor física, uma dor emocional...
— Acho que você precisa de um raio X. Só para...
— Não. — Ele se afastou. — É só um olho roxo. Já estou acostumado.
Lá veio o suspiro.
— Você pôs gelo?
— Por alguns minutos na escola.
Ela correu para a cozinha e voltou com um saco de ervilhas congeladas. Sua expressão era determinada. Ele suspeitou que a história do raio X não seria esquecida.
— Eu não vou ao hospital. — Ele pegou as ervilhas.
Um suspiro triste saiu dos lábios dela novamente e ela se sentou na cadeira em frente ao sofá. Eles se olharam nos olhos. Cash a comparou com a garota nova da escola. Havia muitas semelhanças. Mas não a cor dos olhos. Os olhos da sra. Fuller eram azuis. A garota tinha olhos castanhos com manchas verdes e douradas.
A sra. Fuller deu uma palmadinha nos joelhos e se balançou na cadeira algumas vezes. Isso geralmente significava que ela tinha algo na cabeça e queria conversar. Alguma coisa séria.
Ele esperou.
— A srta. Anderson me disse o que você fez. Defendeu aquele garoto.
Ele assentiu e continuou esperando. Não devia ser só isso.
— Estou orgulhosa de você, mas preferia que o tivesse defendido sem brigar. Você já sabe fazer melhor do que isso. — A decepção brilhava nos olhos dela. Cash se encolheu.
Quando apanhava do pai não doía tanto. Ele detestava — odiava — decepcionar a sra. Fuller
Cash tinha dezenas de justificativas na ponta da língua. Eu tentei ir embora. Ele bateu primeiro. Mas já fazia muito tempo que ele tinha aprendido que não adiantava se defender. As pessoas pensavam o que queriam.
— Desculpe — ele balbuciou.
— Você não pode ser expulso de outra escola.
E isso não foi culpa minha também. Cash levantou o queixo.
— Eles disseram que vão me expulsar?
— Não. Quando liguei de volta, a srta. Anderson deu a entender que você não vai ser punido. Vários alunos se manifestaram e defenderam você.
— Vários? — Ele tinha ficado chocado ao saber que um aluno o defendera. Então se lembrou de ter visto Jack quando o treinador interrompeu a briga. Ele e Jack não eram grandes amigos, mas no ano anterior tinham feito um projeto de ciências juntos e realmente haviam se dado bem.
— Foi isso que ela disse. Mas, se acontecer de novo, eles não vão facilitar para você.
Ele assentiu novamente.
— Pode voltar ao trabalho. Estou bem.
— Tudo bem. Minha assistente vai atender meus pacientes de hoje.
Mas não estava tudo bem. Os Fuller não mereciam ter que resolver as encrencas em que ele se metia. Perder a filha já era um fardo pesado demais. O que eles mereciam era ter a filha de verdade de volta. Mas qual era a probabilidade de Emily Fuller não estar sob sete palmos de terra?
Isso não impediria vigaristas de quererem tirar vantagem dos Fuller. Ele sabia. Havia convivido com um deles. Tinha sido um deles. Ele e o pai haviam cometido uma fraude semelhante certa vez, depois que o pai vira a foto de uma criança parecida com Cash num quadro de pessoas desaparecidas. O pai tinha feito uma breve pesquisa. A pobre mulher que havia colocado a foto no quadro estava sempre almoçando no parque perto do trabalho dele. Eles foram até lá todos os dias durante uma semana. O trabalho de Cash era encará-la. Chamar a atenção dela. Fazê-la morder a isca.
A mulher finalmente mordeu. Aproximou-se deles.
O pai dele era bom. Desempenhou bem seu papel. Contou a triste história de que não sabia o sobrenome de Cash. Que o garoto era o filho da irmã que ele perdera havia muito tempo — embora ele nunca soubera que ela havia tido um filho. Ela falecera e deixara o garoto para ele criar.
Demorou mais um dia para a mulher compartilhar sua própria história triste com eles. Só que a dela era verdadeira. Ela havia dado à luz um menino, que tinha desaparecido aos 4 anos de idade. Cash se parecia muito com ele.
— Venha cá — a mulher pedira a ele. Ela tinha lágrimas nos olhos. Com as mãos trêmulas, tocou no rosto de Cash. Ele se lembrava de ter se retraído um pouco. — Você é David? Você se lembra de mim? É por isso que você estava me encarando?
— Eu não sei — ele mentiu. Mentiu como o pai o obrigara a fazer. Então o pai o cutucou no ombro para lembrá-lo de terminar de falar o que haviam combinado. Tinha 6 anos de idade e já tinha que ganhar seu sustento. — Você tinha um cachorro preto com uma mancha branca no focinho?
A lembrança de como aquela mulher estava desesperada ainda assombrava Cash às vezes. Ela não hesitara: dera ao pai dele o dinheiro para que fizessem o teste do DNA de Cash. Claro que nunca fizeram. Naquela noite, eles fugiram de carro da cidade de Little Rock, em Arkansas, com 5 mil dólares no bolso. Provavelmente, o dinheiro que a mulher economizara a vida toda.
— Aquilo foi errado! Eu nunca vou fazer isso de novo — Cash disse ao pai. Aquele havia sido seu primeiro olho roxo. Tinha doído. Mas ele estava certo de que tinha doído ainda mais na mulher.
Cash nunca deixaria que isso acontecesse aos Fuller.
Ele precisava encontrar respostas.
— Oi, querida. Como foi na escola?
Minha mãe está me esperando quando entro em casa aquela tarde. Achei que ela ainda estaria procurando emprego. Não estou a fim de ser interrogada.
— Foi tudo bem — digo.
— Lindsey apresentou você para todo mundo?
— Sim. Conheci Jamie, a melhor amiga dela. Ela é legal. — E ela era mesmo, mas notei que não parou de me contar histórias sobre Lindsey e ela, como se tentasse provar alguma coisa. Como se quisesse deixar claro que eu sou a garota nova e Lindsey é a melhor amiga dela.
Não me importo com isso. Faltam apenas nove meses para eu me formar.
Percebo que minha mãe está esperando que eu conte mais.
— Lindsey quer que eu saia com elas mais tarde. Jamie vai à casa dela. — Se eu estivesse em El Paso, estaria com Sandy e Kara. Estaríamos comparando as nossas experiências na escola, nossos professores, os caras que parecem mais gatos este ano do que no ano passado.
Mas não estou em El Paso. Estou aqui. E por isso não vou dar uma de idiota; vou me contentar em ser a segunda melhor amiga de Lindsey e agradecer por isso.
— Como foi seu dia? — pergunto. — Encontrou um emprego?
O sorriso dela se amplia e é muito bom vê-la sorrir.
— Encontrou?
— Sim, fui ao consultório do meu médico, o dr. James, meu oncologista. Há dois médicos no consultório. Eu disse a ele que tinha diploma de enfermagem e ele praticamente me ofereceu um emprego. Eles têm que checar meus antecedentes e preciso ser entrevistada por outro médico, mas parece que consegui a vaga.
Ela está sorrindo, feliz. Eu a abraço.
Quando nos separamos, ainda está sorrindo.
— Vai dar certo. — Ela segura minhas bochechas como fazia desde que eu era uma garotinha. — Nós aqui. Vai dar certo.
Concordo, querendo acreditar. E vendo-a feliz, quase acredito.
No dia seguinte, eu me recuso a andar pela escola com uma escolta. Tenho certeza de que já sei me localizar. Ledo engano. Me perdi e chego atrasada para a segunda aula, de Literatura Americana, sentindo como se tivesse uma placa de neon piscando nas minhas costas com a inscrição ALUNA NOVA.
Infelizmente, aquela sensação de ser observada nunca desaparece. E eu vejo quem está olhando: Cash. Ele está começando a me assustar. Conto os minutos para a aula terminar.
No intervalo entre as aulas, vou ao meu armário para trocar de livros. Estou com os dois braços ocupados quando sinto alguém ao meu lado. Meu coração vai parar na garganta. Acho que é Cash.
Errado.
Olho para cima e encontro um par de olhos azul-claros sedutores, que pertencem ao garoto bonito que notei na aula de Literatura Americana.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? Precisa de um encontro na sexta à noite?
Eu retribuo o sorriso. Meu coração bate de emoção.
— Sou David Drake.
— Eu sou... — Meu nome gruda na língua enquanto tento descobrir onde ouvi o nome dele antes. Então — pronto! —, eu me lembro. E não é nada bom.
David Drake é o novo crush de Lindsey. Merda.
— Eu... não estou interessada. — Eu me afasto para recuperar meu espaço e me concentro no meu armário.
— Pensei que seu nome era Chloe.
— É sério. — Olho para ele outra vez, desta vez sem sorrir.
O sorriso do garoto continua intacto.
— Quem sabe você comece a se interessar com o tempo...
— Sou comprometida.
— Deixou um namorado na cidade de onde veio?
— Sim — minto, jogando o cabelo para trás. — Estamos praticamente noivos.
Ele coloca a mão direita contra o peito.
— Como assim? Você acabou de partir meu coração.
Balanço a cabeça e tenho uma ideia. Antes que eu possa concluir se a ideia é boa ou ruim, conto a ele.
— Sabe, ouvi falar de uma garota que gosta de você.
— Quem?
— Não posso dizer, mas... uma dica é que você a convidou para sair no ano passado.
Ele franze a testa.
— Sara?
Eu não respondo.
— Lisa?
Eu franzo a testa.
— Katie? Paula? Anna? Lacy? Carol? Jackie? Hannah?
Não estou acreditando...
— Estou brincando — diz ele. — Como só convidei duas garotas para sair e uma delas vem à escola com você, eu sei quem é. Mas achei que ela estivesse com Jonathon.
Eu me preocupo, achando que deveria ter ficado de boca fechada, então só encolho os ombros e me viro para me afastar. Por que sempre quero consertar as coisas?
Dou apenas alguns passos quando vejo Cash novamente, dois armários depois do meu. Ele não está olhando para mim, mas aposto o meu melhor sutiã que ele estava ouvindo a minha conversa com David.
Então vejo Jamie do outro lado do corredor. Ela desvia o olhar rápido e vai embora. Eu sei que ela viu David falando comigo.
Droga! Provavelmente está indo contar para Lindsey agora mesmo.
Cash esperou até o sr. Alieda deixar a sala de aula, para dar uma rápida corrida ao banheiro e entrar no laboratório de ciências. Correu para os dois terrários encostados à parede. Os alunos começariam a chegar a qualquer momento. Um tanque continha uma jiboia, o outro tinha comida viva para a cobra. Abrindo a mochila vazia, ele tirou dali uma luva.
O camundongo ficou de pé nas patas traseiras e olhou para Cash, mexendo os bigodes.
— Vamos fazer um acordo? Eu ajudo você e você me ajuda. Você tem uma chance de conquistar a liberdade. E eu consigo... respostas. Talvez.
Cash pegou o camundongo com delicadeza e colocou-o na mochila vazia. Depois de recolocar a tampa no terrário, ele foi para a secretaria.
Não era o melhor plano que ele já tinha engendrado, mas era um plano.
Naquela manhã, ao agendar uma reunião com a srta. Anderson, ele tinha ficado em dúvida quanto ao melhor horário até descobrir que ela almoçava entre onze e onze e meia. Perfeito. Era naquele horário que ele almoçava também.
Tudo o que ele precisava era de três minutos no escritório dela. Três.
Ele poderia esperar e voltar à noite, mas e se fosse pego...? Invasão dava cadeia. Liberar um camundongo indefeso era uma ofensa perdoável.
Ao entrar na secretaria, ele viu três garotas esperando para falar com a funcionária da recepção. Aquilo podia funcionar.
Ele ficou atrás das meninas, abriu a mochila e colocou o camundongo no chão. O bichinho demorou cerca de quatro segundos para correr em busca da liberdade.
Voltando a fechar a mochila, ele disse:
— Isso é um camundongo?
Assim como ele tinha planejado, reinou o caos. O camundongo correu para baixo do balcão.
A recepcionista gritou e correu para fora da secretaria. Enquanto as meninas continuavam gritando, Cash entrou na secretaria, olhando para o chão como se procurasse o roedor.
Uma vez no corredor, ele correu para a porta da srta. Anderson e pegou, no bolso, seu clipe de papel. Mas encontrou a porta aberta. Ótimo. Entrou no escritório, fechou a porta e foi direto para a mesa onde tinha visto o arquivo de Chloe Holden.
Com os ouvidos atentos para ouvir qualquer movimento do lado de fora, ele abriu a pasta. Não a leu. Faria isso mais tarde.
Tirou a primeira foto, virou o papel e tirou a segunda. Mais uma página virada e fechou o arquivo, devolveu-o ao topo da pilha e virou-se para sair. Abriu a porta para ouvir se vinha alguém.
Vozes soaram. Ele reconheceu a voz da srta. Anderson.
Então ouviu o salto alto das mulheres batendo no assoalho do corredor.
Merda. Ele tinha sido pego.
4
Cash! — ela exclamou, parando de repente ao entrar na sala.
— Olá. — Ele se sentou na cadeira em frente à mesa dela e se forçou a relaxar. Pareça inocente. Às vezes o único jeito é fingir até parecer que é verdade.
— O que... você está fazendo aqui? — a srta. Anderson perguntou.
Ele se virou e olhou para ela.
— Tenho horário marcado.
Ele manteve a expressão sob controle, mesmo quando o pânico deixava as palmas de suas mãos suadas. Sinceramente, se aquilo poupasse os Fuller da decepção, não se importava de ser pego.
Ela olhou para o relógio na parede.
— Isso é daqui vinte minutos.
— Não foi o que me disseram na secretaria hoje de manhã.
Ele fez uma cara de quem demonstrava confusão. Eles podem não acreditar no que você diz, mas vão quase sempre acreditar no que veem.
— Sinto muito. — Ele se levantou. — Volto depois. Eu só... quando entrei, eu estava alguns minutos atrasado e não havia ninguém no balcão da frente... Não queria deixá-la esperando. Então vim para cá. Achei que a senhora pudesse estar no... banheiro ou algo assim. — Ele baixou os olhos como se estivesse envergonhado.
— Não. Eu fui... à sala dos professores. — Os ombros dela relaxaram. Ela estava acreditando. Seus batimentos cardíacos se normalizaram. Cash não queria ter que ouvir a sra. Fuller suspirar hoje.
Ele deu um passo em direção à porta.
— Ok, vou embora e...
— Não. Tudo bem. Eles devem ter informado o horário errado. Esse é o meu horário de almoço.
— Bem... — Ele não via a hora de ler o arquivo. — Não quero atrapalhar o seu almoço...
— Não, fique. Já almocei.
Cash se sentou novamente. A srta. Anderson se acomodou atrás da escrivaninha. Quando notou o jeito como ela estava olhando para ele, o pânico aumentou novamente. Não estava olhando como se ela soubesse que ele estava mentindo. Ou como se tivesse uma ideia do que Cash estava fazendo. Mas como se quisesse corrigi-lo.
Quantas vezes ele já havia se sentado diante de um conselheiro ou psicólogo e eles tinham tentado entrar em sua cabeça? Como se pensassem que, convencendo-o a se abrir, poderiam torná-lo uma pessoa melhor. Eles não podiam.
Ninguém poderia mudar seu passado. Ninguém poderia mudar o que já tinha acontecido. Ou as coisas terríveis que ele já tinha feito. Falar sobre isso só piorava.
— Você sabe por que eu queria falar com você?
— Imagino que seja por causa da briga — Cash disse.
— Bem, sim, mas eu também queria só... ver se você está bem. — Ela se concentrou no rosto machucado dele. — E conversar.
Bem, já ia começar o sermão. Ele respirou fundo.
— Srta. Anderson, não quero parecer desrespeitoso. E se quiser falar comigo, me dar uma punição pela briga, vou ficar sentado aqui e ouvir. Mas, na verdade, não quero falar sobre outras coisas.
Ela olhou para baixo como se quisesse organizar os pensamentos.
— Ok — a srta. Anderson disse, mas levou alguns segundos para falar outra vez. — Me contaram o que realmente aconteceu naquela briga. Eu sinto muito.
— Eu também — disse ele.
— Praticar bullying é proibido e ponto final. O que Paul fez é inaceitável. Me disseram que você tentou ir embora.
Ele deu de ombros como se não fosse importante, mas se sentiu compreendido. Não se sentia assim com muita frequência.
— Mas não acho que você saiba quanto é forte. Tenho certeza de que não pretendia bater nele com tanta força.
Sim, eu pretendia. O cretino tinha dado um soco em seu olho. Cash queria machucar aquele filho da puta. Mas não disse isso.
A srta. Anderson se remexeu na cadeira.
— Graças a Deus, o nariz de Paul não estava quebrado.
Ele teve que se esforçar para esconder a decepção.
— A questão é que eu sei como são os adolescentes. E eu sei que ele bateu primeiro. Mas precisamos garantir que isso não aconteça novamente.
— Eu não vou dar mais na cara dele — disse Cash.
— Mas e se ele der na sua?
Cash não respondeu. Não podia. Dizer que ele não se defenderia seria mentir. E as pessoas podiam não acreditar, mas ele não gostava de mentir.
— Veja. Em dois meses, você fará 18 anos e Paul ainda vai ter 17. Se acontecer outra briga, isso pode acarretar graves consequências para você.
Com o ar preso nos pulmões, Cash perguntou:
— Então você quer que eu saia da escola? — Isso era exatamente o que os Fuller não queriam. O objetivo deles era que Cash se formasse no ensino médio.
Os olhos dela se arregalaram.
— Não! Só quero que você esteja ciente disso, para que assim possa evitar qualquer complicação com a Justiça.
Ele assentiu.
— Vou me lembrar disso. Posso ir agora?
Se a expressão dela indicava alguma coisa, a srta. Anderson tinha percebido a emoção no tom de voz dele.
— Só mais uma coisa.
Cash se preparou para ouvir.
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha 11 anos, por causa de um motorista embriagado. Meus pais é que estavam bêbados. Minha avó não achou que pudesse me criar. Cresci num lar temporário.
Isso não era o que ele esperava ouvir.
— Eu sinto muito.
Cash estava sendo sincero, mas ainda não queria se abrir com ela. Também não queria saber a história dela. Não queria chegar perto de se preocupar com mais ninguém. Preocupar-se com os Fuller já era ruim o suficiente.
— Eu também — disse a srta. Anderson. — O que estou tentando dizer é que sei o que é crescer no meio do caos. Se você quiser conversar, sabe onde me encontrar.
Sim, farei isso quando o diabo começar a servir bolo de sorvete no inferno.
— Vou me lembrar disso. — Ele se levantou e saiu da sala.
Entro no refeitório. Os cheiros, a multidão de estranhos e o burburinho me fazem querer sumir dali.
Olho em volta e todo mundo está batendo papo. Eles não percebem todo o barulho, porque fazem parte dele. Eles não veem estranhos; veem amigos.
Cinco minutos depois, estou me sentindo sozinha e deslocada enquanto como uma pizza que parece feita de papelão.
É nesse momento que alguém se senta ao meu lado. Lindsey. Ela está de braços cruzados. Parece aborrecida. Comigo.
No mesmo instante, eu sei por quê. Ela ouviu falar da visitinha de David ao meu armário.
— Não gostei dele — já fui dizendo.
— Tem certeza?
— Tenho. Gosto de garotos de cabelos pretos e que fazem o tipo mais caladão. — Se eu pudesse excluir a última parte, faria isso, porque minha descrição pareceu demais com a do cara de olho inchado que anda me causando arrepios ultimamente.
Ela olha para mim.
— Mas não importa. David gostou de você.
— Não. Ele nem me conhece. Sou apenas a aluna nova e isso, para os caras, significa apenas “carne fresca”. Ou, como minha mãe costuma dizer, sou a “vaca nova no pasto”. Os touros veem uma vaca nova no pasto e logo vão atrás dela. Começam a bufar, remexer a terra e babar.
Lindsey se acomoda na cadeira, parecendo mais conformada.
— Eu não quero um touro que fica atrás das vacas novas. Já fiz isso antes.
Eu não pretendia desmotivá-la.
— Você não pode julgar David. Ele não é o seu touro ainda. Depois que você pegá-lo pelos chifres, marcar seu nome no traseiro dele e ver que ele começa a atender quando você o chama, aí sim você vai poder levá-lo para o matadouro caso ele persiga uma vaca nova. Pode vendê-lo como comida de cachorro e fazer picadinho com os testículos dele.
Lindsey solta uma risada.
— Picadinho com os testículos dele já é demais.
— Ei, esse é o sonho da minha mãe. Ver os cojones do meu pai flutuando no formol e meu cachorro dando uma mordida no traseiro dele.
Nós duas rimos, mas logo o sorriso de Lindsey se dissipa.
— Então por que fazemos isso? Por que nos apaixonamos se todos os caras são touros babões perseguindo as vacas novas?
— Porque talvez exista um ou dois que não sejam assim — digo, sentindo a mágoa de ser filha de um homem com uma queda por vacas novas aumentar no meu peito, mas Lindsey e eu só compartilhamos um sorriso triste.
E nesse instante algo me ocorre. Numa questão de minutos, deixei de ser uma alienígena num mundo estranho para fazer parte dele. Estou criando raízes.
Minha amizade com Lindsey está passando do estágio em que estamos nos conhecendo e indo para a parte onde nos tornamos aliadas, rindo de coisas que não são realmente engraçadas para ajudar uma à outra.
Parece bom, mas há uma parte de mim que quer tirar os pés da terra e cortar as raízes, porque sei que vou sofrer quando tiver que deixar esta vida e ir para a faculdade. Vai doer assim como doeu quando fui arrancada de El Paso.
Paro de rir e Lindsey segue o exemplo. Solto um suspiro. Lindsey olha para mim.
— A sua mãe realmente disse que quer fazer picadinho com os testículos do seu pai? — Ela não está mais dizendo isso como se fosse engraçado. Ela está dizendo como se soubesse que isso me machuca.
Eu faço que sim com a cabeça.
— A sua mãe não costuma brigar com seu pai?
Ela pensa um pouco.
— Às vezes, mas... Eles se divorciaram há quinze anos. Provavelmente brigavam muito, mas eu não me lembro.
Sei que ela está dizendo isso apenas para que eu me sinta melhor.
— Merda... — diz Lindsey.
— O que foi? — pergunto.
— É Jonathon. De camiseta preta. Paquerando a garota ali.
Lembro-me de tê-lo visto algumas vezes naquele verão.
Ele tem cabelos castanhos e é bonito, mas na verdade... nem tanto.
— David é mais gato.
Cash conseguiu permissão para visitar a biblioteca durante o horário de estudos. Os celulares eram proibidos ali, mas, no ano anterior, a bibliotecária não dava muita atenção a isso. Se o aluno fizesse silêncio e não tumultuasse o ambiente, ela o deixava em paz. Conhecer as regras antes de quebrá-las era outra lição que Cash aprendera com o pai.
Ele pegou as fotos do arquivo em seu celular e aumentou o zoom para que pudesse ler sobre Chloe Holden.
A primeira informação que coletou foi o aniversário dela: 18 de novembro. Emily tinha nascido em 6 de novembro. Mas, se a pessoa é sequestrada, é claro que vão mudar a data de nascimento dela. Segunda informação: ela era inteligente. Suas notas eram bem mais altas do que as dele. Mas, se ela estivesse aplicando um golpe, teria mesmo que ser alguém bem esperto.
Então ele descobriu que os pais dela tinham se divorciado recentemente. E se eles fossem de fato os pais dela?
Ele leu uma anotação da srta. Anderson. Mãe, JoAnne Holden, tem câncer. Bem, isso é o que diziam. Cash “também tinha câncer”. O pai dele raspava a cabeça e as sobrancelhas do filho e postava fotos dele numa página do GoFundMe, em que as pessoas levantavam fundos para realizar seus sonhos ou pagar seus tratamentos de saúde, entre outras coisas.
No que dizia respeito a seu pai, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para ganhar uma grana ilícita. Cash tinha até obrigado Cash a seguir uma dieta rigorosa no mês anterior ao golpe, para parecer doente.
Cash leu algumas anotações da escola antiga de Chloe. Ela jogava futebol.
Essa era a isca de que ele precisava. Cash abriu o Google para encontrar o nome do time de futebol da antiga escola dela. Encontrou e foi pesquisar as imagens.
Só precisou de cinco minutos para clicar nos links e encontrá-la. Ele ficou ali, contemplando as fotos. Das três garotas na imagem, Chloe — se é que esse era o nome verdadeiro dela — era a que mais se destacava. Ela era a mais alta, a mais curvilínea e a mais gata.
Não que ele já não tivesse notado. Droga, ainda se lembrava de como era a sensação do corpo dela contra o dele. Mas Cash podia apreciar uma imagem com mais atenção do que pessoalmente. Ou de um jeito que ele não ousaria fazer ao vivo.
Muitas vezes, Chloe o pegara olhando para ela. Nem todas as vezes ele estava olhando com cara de quem olha uma garota. Às vezes, Cash a comparava com a sra. Fuller. E, caramba, ele via ainda mais semelhanças observando aquelas fotos!
Clicando na imagem, ele procurou pela conta de Chloe no Instagram.
Encontrou uma, mas ela não postava nada fazia três meses.
Se aquilo era um golpe, ela teria mantido as postagens, não teria? Ou talvez não.
As imagens e postagens que ele podia ver pareciam reais. Ele verificou as fotos. Havia várias dela com um cara, Alex. Eles se abraçando. Se beijando. Parecendo felizes. Numa delas, Chloe estava sentada no colo dele.
Cara sortudo...
Ele se lembrou do que ela tinha falado a David Drake sobre o namorado: estamos praticamente noivos. A mentira transpareceu na voz dela e na linguagem corporal.
Ele viu que Alex tinha deixado comentários numa das fotos: “Você está linda, mozão”. Ele clicou no link do perfil dele, esperando que as fotos não fossem privadas. Não eram. E... Ha, ha! Ali estava. A verdade. Uma foto do cara com outra garota. Postada na semana anterior. Ele voltou a olhar as fotos antigas e encontrou uma com Chloe no treino de futebol. Então, parecia que ela realmente era de El Paso. Isso não descartava um golpe. Ele tinha só arranhado a superfície.
5
O sinal tocou, na segunda-feira. Agora já completei uma semana na nova escola. Eu ainda não gosto dela, mas odeio menos. Ou talvez esteja apenas me acostumando. Me acostumando a ser a aluna nova. Me acostumando a ver Cash Colton me encarando como se eu tivesse comido o último biscoito do pacote.
Me acostumando a não ter pai. Porque ele nem me telefonou.
Estou quase na porta da escola quando percebo que esqueci meu livro de História no armário. Volto para pegá-lo e encontro Lindsey.
— O que houve? — pergunto.
Lindsey morde o lábio inferior.
— Eu vou... Vou para casa com Jamie. Ela quer conversar sobre o ex-namorado.
Eu sabia que o plano de Lindsey para que nos tornássemos as três mosqueteiras estava condenado quando os planos que tínhamos para o fim de semana caíram por terra. É por isso que começar a estudar numa escola nova na última série do ensino médio é uma droga. Você não pode simplesmente se tornar amiga de alguém. Você precisa ser aprovada pelas amigas dessa pessoa.
— Vejo você mais tarde. — Eu até sorrio.
— Sim. — Ela se vira, depois volta a olhar para mim. — Foi mal. Eu cheguei a perguntar se você podia ir...
— Tudo bem. Vocês duas têm aula de História e ficaram todo o verão sem se ver. Entendo. De verdade.
Ela se afasta, ainda parecendo culpada. Me sinto mal por fazê-la se sentir assim.
Quando pego meu livro e saio novamente, o estacionamento está vazio. A maioria dos carros já faz fila na saída para deixar o pátio. Buzinas soam. As risadas vazam pelas janelas e fazem com que eu me sinta ainda mais sozinha.
Pego as chaves do carro na mochila e clico o botão de abrir as portas. Quando me sento atrás do volante, percebo que meu carro está diferente. Algo parece estranho, fora de prumo. A mesma sensação que eu tenho dentro de mim.
Eu saio do carro e meu olhar vai direto para o pneu traseiro. Está murcho.
— Merda!
Pego o celular para ligar para o meu pai. Então paro. Meu pai não está mais disponível para me ajudar com essas coisas. E — pronto! — eu me lembro de que, logo depois que tirei minha carteira de motorista e antes do caso do meu pai, ele me ensinou a trocar pneu. Ele fez de conta que era um jogo e cronometramos para ver quem conseguia trocar mais rápido. Eu venci e ganhei dez dólares. Na verdade, venci três vezes. Acabei ganhando trinta dólares.
Agora aquela lembrança já não parece mais tão boa, porque eu me pergunto se meu pai já sabia que estava indo embora de casa. Sabia que eu não poderia mais contar com ele.
Evitando sentir pena de mim mesma, concentro-me no lado positivo: pelo menos eu sei trocar meu próprio pneu. Largando a mochila no banco, abro o porta-malas.
— Precisa de uma mãozinha?
Eu prendo a respiração. Cash está encostado num jipe estacionado ao meu lado, como se já estivesse há algum tempo parado lá. Como eu não o vi?
— Posso ajudar. — Nenhuma acusação em seus olhos ou no seu tom de voz agora. Pelo menos acho que não. Nunca tive tanta dificuldade para interpretar uma pessoa... — ou será que nunca encontrei alguém tão bom em camuflar emoções?
— Não. Posso fazer isso sozinha. Obrigada. — Esse cara me deixa nervosa, por várias razões.
— Eu tenho uma coisa para consertar pneus instantaneamente. Só vai demorar um segundo.
— Que coisa? — pergunto.
— Chama Fix-a-Flat. Infla o pneu e sela qualquer vazamento. Você vai poder dirigir até um borracheiro.
— Não esquenta. Tenho um estepe.
Ele se aproxima. Borboletas voam no meu estômago.
— Você sabe trocar pneu? — Ele enfia a mão direita no bolso do jeans.
Eu levanto o queixo.
— Você não acha que as garotas conseguem trocar um pneu?
Ele parece pensar na minha pergunta.
— Acho que a maioria das garotas não quer trocar pneus.
— Bem, esta garota aqui não se importa.
Inclino-me no meu porta-malas e afrouxo a porca para pegar o estepe.
Não o ouço se mexer. Será que ele está pensando em me observar? Irritante. Mas tudo bem. Talvez eu tenha coragem de fazer a ele algumas perguntinhas.
— Você é nova aqui? — Cash diz.
— Sim. — Pego o pneu e o deixo cair no chão. Então tiro o macaco do carro.
— De onde você é? — ele pergunta.
Coloco o macaco no chão e pego a chave de roda. Só então olho para ele e reúno coragem.
— O que você quis dizer no posto de gasolina, sobre eu querer fazer alguma coisa?
Ele não parece chocado com a pergunta.
— Você tinha razão. Você parece alguém que eu conhecia.
— Mas, obviamente, você descobriu que não sou essa pessoa, então por que ainda continuou me encarando?
Os olhos verdes dele se estreitam e seus lábios se abrem num sorriso incrível.
— Por que os caras geralmente encaram as garotas?
— Porque são uns pervertidos? — pergunto, me lembrando do bate- papo com Lindsay sobre touros e vacas.
Ele ri.
Eu sou pega de surpresa pelo som da risada dele e, por incrível que pareça, ele parece surpreso também. Como se não costumasse rir muito.
Ficamos em silêncio e olhamos um para o outro.
— Com quem? — pergunto.
— O quê?
— Com quem eu me pareço? — Eu me ajoelho para colocar o macaco no lugar.
— Ela já morreu. — Sua voz parece solene.
Eu olho para ele.
— Sinto muito.
— Eu também.
Cash se ajoelha ao meu lado para ver onde eu encaixei o macaco, como se pensasse que fiz tudo errado. A perna dele roça na minha. É um gesto inocente, mas parece íntimo. Seu cheiro, que lembra grama recém-cortada, enche meu nariz e se sobrepõe ao cheiro dos pneus oleosos.
— Então, o que trouxe você aqui? — ele pergunta.
Minha mente está ocupada apreciando o perfume dele, por isso demoro um segundo para responder.
— O que trouxe você aqui? — rebato, tentando não pensar no formigamento na minha perna, provocado pela sua coxa musculosa, coberta pelo jeans.
A sobrancelha esquerda sobre o olho roxo se levanta e ele cerra a mandíbula.
— Você não gosta muito de responder perguntas, não é? — Agora o tom é de acusação.
— Obviamente, você também não. — Encaixo a chave de roda na porca e a viro. Não vai ceder. Merda.
— Quer ajuda? — Ele se aproxima.
— Eu consigo. — Reajusto a chave e jogo todo o meu peso sobre ela, lembrando do que meu pai me ensinou. Meu peso não é suficiente. Droga. Quem quer que tenha colocado esse pneu usou toda a sua força.
— E agora? — Cash se aproxima ainda mais.
— Quê? — A minha frustração é evidente mesmo respondendo com uma única palavra.
— Quer ajuda agora? — Ele está sorrindo novamente. — Prometo não subestimar você por causa disso.
— Não tem graça — eu digo.
— Foi mal. — Os lábios dele não estão mais sorrindo, mas seus olhos estão.
Eu cedo e dou mais espaço a ele.
— Esses pneus são novinhos em folha. Não deveriam ter murchado.
Cash pega a chave de roda e, com uma volta do pulso, o músculo do bíceps se contrai sob a manga da camiseta cinza e a porca se solta.
Ele olha para mim. Mesmo com o olho roxo, seu sorriso dispara um alarme na minha cabeça. Um daqueles sorrisos tortos que saem da boca, vão direto para o meu estômago e acordam mais borboletas. O tipo de sorriso que Alex costumava me dar.
— Você já tinha afrouxado pra mim. — Ele passa para a segunda porca. Volto a assistir seus músculos se contraírem novamente. As borboletas voam como loucas.
Depois de vários segundos de silêncio, Cash me olha.
— Não consegui me entrosar muito na minha última escola.
— Ah... — Porque ele se abriu, eu faço o mesmo. — Meus pais se divorciaram.
— E Joyful pareceu o lugar ideal para morarem? — Ele continua trocando o pneu.
— Não. Minha avó morava aqui. Ela faleceu, minha mãe herdou a casa.
— Então você já morou aqui? — A pergunta parece importante para Cash, mas estou muito ocupada observando os músculos dele para pensar nisso.
— Não. — Então percebo que é mentira. Morei aqui por algumas semanas depois de ser adotada. — Quer dizer, sim, mas não me lembro.
— Como não se lembra?
— É que eu não tinha nem 3 anos de idade quando nos mudamos.
Ele para de trocar o pneu e me lança um longo olhar.
— Ok.
— Ok o quê? — Meu tom é curto e grosso.
— Ok, acredito em você.
— Mas por que acha que eu mentiria? O que há com...?
— Todo mundo conta uma mentira de vez em quando.
— Eu não!
Ele levanta a sobrancelha do olho roxo novamente.
— Você mentiu para David sobre ainda estar com Alex.
— Você estava escutando a nossa conversa?
— Confesso que sim. — O olhar dele colide com o meu.
Pressiono as mãos no asfalto.
— Como sabe que o nome do meu namorado é Alex? Não contei a David.
Ele continua removendo as porcas. A calma que demonstra me assusta. Ninguém solta uma bomba assim e volta a trocar um pneu!
— Responda! — Eu bato na perna dele com o pé.
Ele continua trabalhando.
— Dei uma olhada no seu Instagram. Suas fotos estão visíveis para o público. Você devia ter mais cuidado com isso. — Cash olha para mim, a expressão dele é insondável.
Eu franzo a testa.
— Mas como sabe que terminamos?
— Porque há uma foto no Instagram dele com outra garota. E eu não acho que você seja do tipo que aceita esse tipo de coisa.
Não sei bem como reagir a isso. Tudo está confuso na minha cabeça.
— O que você é? Algum tipo de investigador de crimes digitais? Ou um stalker?
Ele volta a se concentrar no meu pneu.
— Estou mais para investigador...
— Por que está investigando a minha vida?
— Achei que já tínhamos esclarecido isso antes.
— Porque pareço alguém que você conhece?
Cash confirma com a cabeça.
— Mas se a pessoa com quem pareço já morreu, por que você precisaria...?
— Ela tem uma irmã.
O tom com que ele fala é de alguma forma diferente. Será que está mentindo agora? Os olhos dele encontram os meus.
— Achei que ela poderia tentar prejudicar alguém que é importante para mim.
Há tanta honestidade naquelas palavras, em seu olhar, que acredito nele. Ou acho que acredito.
— Por que acredito em você às vezes e outras vezes, não?
Ele começa a desparafusar a última porca.
— Sei lá. Talvez porque tenha dificuldade para confiar nas pessoas. — Cash tira o pneu e coloca na calçada.
O tom é provocador, no entanto... Ele coloca o estepe no lugar e aperta as porcas. Abaixa o macaco e depois o retira de onde está encaixado.
Ele tem razão. Tenho dificuldade para confiar nas pessoas. É o que acontece quando a sua família entrega você para adoção e depois o pai que a adotou abandona sua mãe e decide morar com uma piranha mais nova.
— Você é difícil de entender — eu digo.
— Você também. — Cash estende a mão para me ajudar a levantar.
Eu quase a pego, mas depois me arrependo.
— Nós poderíamos resolver isso já — diz ele. — Há um lugar mais para cima, nesta rua, que serve café, chai ou qualquer outra coisa de que você goste.
Levanto-me, sem a ajuda dele, e limpo o pó das minhas mãos, passando-as no meu traseiro.
— O que acha? — ele pergunta.
Olho para Cash, minha cabeça girando.
— Não sei ainda...
6
O truque do pneu funcionou à perfeição, mas teria sido mais fácil se ela tivesse me deixado usar o Fix-a-Flat.
Ele saiu do estacionamento em seu carro e a viu fazer o mesmo. O celular dela tocou. Levantando um dedo para pedir que ele esperasse, ela atendeu.
— Não sei. Mas coloquei o estepe. Sim, apenas alguns minutos — Chloe disse. — Tudo bem. — Ela desligou e guardou o celular na mochila. — Minha mãe.
Ele quase perguntou como estava a mãe dela, mas parou a tempo.
— Você mora perto da escola? — Cash perguntou, embora tivesse conseguido o endereço dela no arquivo.
— A uns dois quilômetros. Em Oak Tree Park. E você?
— Um pouco mais longe — disse ele. — Em Stallion.
— Aquele condomínio com a estátua do cavalo e um lago na entrada? — ela perguntou.
Cash assentiu e se perguntou se ela o discriminaria por morar num bairro de classe alta. Alguns colegas de escola tinham jogado isso na cara dele no ano anterior.
Depois de entrarem na cafeteria, Chloe consultou o cardápio diante do balcão e pediu um chá de pêssego. Ele pediu uma Coca-Cola. Quando tentou pagar pelo pedido dela, ela recusou e entregou um cartão de crédito ao rapaz do caixa. Bebidas na mão, ele a conduziu até uma mesa nos fundos.
— É um lugar agradável — disse ela.
— Sim. Eu costumava lavar louça aqui aos 15, para ganhar uns trocados.
— E agora?
— Trabalho meio período numa oficina. Troco pneus e coisas assim.
— Ele sorriu. — Então, você gosta de Joyful?
— É legal. — Aquilo soou como uma mentira.
— De onde você veio?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Você não encontrou essa informação quando estava me investigando?
Ele se recostou na cadeira.
— Ok. El Paso. Você sente falta de lá?
Ela contou como as duas cidades eram diferentes. Foi uma conversa sobre banalidades, mas Cash prestou atenção em cada palavra. Depois, Chloe tomou um gole do chá e olhou para ele por cima do copo de papel.
— Agora é a minha vez.
— Sua vez?
— Você desenterrou informações sobre mim pelas minhas costas. Eu vou fazer da maneira correta e perguntar.
— Então você gosta de fazer tudo da maneira certa, hein? — ele disse, tentando parecer casual e mudar de assunto.
Ela não respondeu. E ele teve a sensação de que Chloe ainda estava refletindo sobre a coisa toda do Instagram.
Cash odiava perguntas, mas conhecia bem esse jogo, e se não dissesse alguma coisa, ela não abriria mais a boca.
— Ok. O que você quer saber?
Ela olhou para o chá como se estivesse elaborando uma lista de perguntas mentalmente.
Cash se perguntou o que ela já sabia sobre ele. Muitas questões da vida particular dele já eram do conhecimento de todos.
Cash se lembrou de Paul chamando-o de garoto adotado, como se fosse alguma coisa de que devesse se envergonhar. Mal sabia Paul que ele tinha muito mais vergonha da vida que levava antes de entrar para o programa de adoção do governo.
— Por que você não se entrosou na antiga escola?
Ele encolheu os ombros.
— Os alunos eram filhinhos de papai. Achavam que não podiam ser responsabilizados pelas suas ações. E a direção da escola parecia pensar o mesmo.
Ela correu um dedo pelo copo.
— Então, o que o fez sair? — Ela olhou bem nos olhos dele, como se procurasse a verdade.
Sim. Ele conhecia muito bem esse jogo. Diga algo pessoal. Vão achar que te conhecem e responder às perguntas sem criar caso. Normalmente, era a essa altura que ele inventava alguma coisa. Mas, por algum motivo, não sentia vontade de fingir.
Os ombros dele ficaram rígidos.
— Não saí da escola. Fui expulso.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você fez?
Ele já devia estar preparado para essa reação, mas isso ainda lhe dava nos nervos.
— Por que você já concluiu que eu fiz alguma coisa errada?
Ela franziu a testa.
— Porque você disse que foi expulso. Ninguém é expulso por nada.
— Certo. Mas você supôs que a culpa foi minha.
Ela olhou para Cash. Seus instintos lhe diziam que ele estava revelando muito mais do que pretendia.
— Não estou supondo nada. Estou perguntando.
Ele hesitou, contrariado por não estar mentindo, mas sem poder voltar atrás agora.
— Você quer a verdade? Ou quer que eu ofereça uma versão mais bonita?
— A verdade. — No entanto, a maneira como ela se afastou na cadeira revelou que preferia a versão mais bonita.
Cash deu a ela o meio-termo:
— Três jogadores de futebol da minha antiga escola estavam tirando vantagem de uma garota. Eu dei um fim à brincadeira deles. Quando terminei, um cara estava com o maxilar quebrado.
Chloe perdeu o fôlego.
— Era sua namorada?
— Não. A garota não dava a mínima para mim. O que deveria significar que eu não dava a mínima para ela. Mas... não era esse o caso. E os caras mentiram e disseram que eu apareci do nada, querendo briga.
— Mas e a garota? Com certeza, ela...
— Negou tudo à polícia.
— Mas como pôde...? Por quê?
— Ficou com vergonha. E, além disso, queria ser líder de torcida e achou que, se dissesse alguma coisa contra eles, poderia não conseguir fazer parte da equipe. Ela só lamentou que eu tivesse arranjado problemas por querer ajudá-la. Ele suspirou. — Mas sei que isso vive acontecendo. As vítimas normalmente preferem não dizer nada.
— Sim, mas... — Chloe colocou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
Ela parecia zangada. Isso deveria ser bom, mas não era. Ele se sentia exposto.
— Ainda assim, isso causou um belo estrago. — Os lábios de Chloe se contraíram.
— Sim, é verdade. — Cash se sentiu um pouco melhor.
Ambos se recostaram na cadeira em silêncio, como se precisassem de um tempo para pensar. Ele sabia que precisava.
Quando ela olhou para Cash, ele falou primeiro.
— Agora é a minha vez?
Ela piscou.
— Acho que sim.
Você está tentando enganar os Fuller?
Ele não podia perguntar isso.
— Por que você estava tão chateada na loja de conveniência?
Ela pareceu surpresa, mas depois suspirou.
— Você quer a verdade? Ou quer a versão mais bonita?
Ele sorriu, gostando de saber que ela realmente tinha ouvido.
— A verdade.
— Eu estava chateada com o meu pai.
— Por quê?
— Você está com tempo? — Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Tenho o dia todo — ele respondeu, e era verdade. Cash precisava descobrir quem ela era. Mas uma voz dentro dele dizia que não era só isso.
Ele gostava de ouvi-la falar, de contemplar suas expressões e o jeito como mexia as mãos.
Gostava de ouvir a voz de Chloe, embora ele preferisse não ver o brilho de tristeza nos olhos castanhos.
— Até um ano atrás, ele era tipo... o melhor pai do mundo. O pai que me levava com as minhas amigas aos bailes da escola. Quando ele ia nos buscar, nos levava para comer hambúrgueres às duas da manhã. Mas depois... — Ela fez uma pausa. — Depois ele traiu minha mãe com uma mulher apenas sete anos mais velha do que eu. Agora ela está morando com ele. Meu pai está fazendo papel de palhaço, tentando agir como se fosse mais jovem, tingindo o cabelo, usando gel... Ah, e deixou que ela transformasse meu quarto numa academia. Ela colocou lá um aparelho para endurecer os glúteos e outros aparelhos estranhos onde costumava ficar a minha cama.
A voz dela tornou-se mais aguda.
— Ela usa microssaias! E um decote até aqui. — Ela colocou a mão na metade dos seios. O olhar dele foi atraído para lá, mas ele não deixou que se demorasse ali por muito tempo, mesmo querendo muito. — Ah, e ele me disse que me ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Porque está muito ocupado descabelando o palhaço com a srta. Bunda Durinha.
Cash riu, mas quando viu a expressão de dor no rosto dela, reprimiu o sorriso.
— Lamento. Isso é uma droga.
— Sim. Uma droga. — Ela afastou a bebida e suspirou. Suspirou como a sra. Fuller, quando ficava decepcionada.
Um som profundo e triste que ele não gostava de ouvir. Um som que o fazia querer acreditar nela.
Chloe ergueu os olhos e Cash viu que ela reprimia as lágrimas.
— Desculpe eu ter descarregado tudo em você. Não foi legal.
— Ei, eu que perguntei...
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se abruptamente. Num instante já estava cruzando a porta num flash.
Ainda imaginando o que havia acontecido, ele a observou pela janela enquanto o carro partia. Quando olhou para baixo, viu que o cartão de crédito dela ainda estava em cima da mesa.
Uma hora depois, ele já tinha terminado sua lição de casa na cafeteria e decidido enrolar um pouco antes de ir à casa de Chloe, para lhe devolver o cartão.
Digitou no celular o número da residência dos Fuller e ficou surpreso quando o pai adotivo atendeu.
— Ei, eu já ia ligar para você. Está tudo bem?
— Sim — respondeu Cash. — Parei na casa de um amigo para fazer o dever de casa. Tudo bem se eu chegar por volta das seis?
— Claro. Somos apenas você e eu hoje à noite. Susan teve uma emergência no hospital. Pensei em sairmos e comprarmos algo para ela comer. Talvez pegar um sorvete também.
— Aquele tipo de emergência? — O peito de Cash se apertou.
Susan Fuller era oncologista e não tinha que atender muitas emergências. As crises dela significavam que tinha perdido um paciente ou estava prestes a perder. Ela sempre tinha dificuldade para lidar com isso.
— Receio que sim — ele respondeu.
Cash não era tão próximo do sr. Fuller quanto era da mãe adotiva, mas não podia negar que o homem amava a esposa. Só por isso, Cash o respeitava.
Parte da distância entre eles era por culpa do próprio Cash. Depois de onze anos com seu pai e alguns lares temporários não tão bons, ele resistia à figura paterna. O sr. Fuller se esforçava, no entanto. No ano anterior, depois que Cash tinha passado a frequentar algumas aulas numa faculdade e começado a namorar garotas mais velhas, o sr. Fuller tivera com ele uma conversa sobre sexo e lhe dera um pacote de preservativos.
— Você prefere churrasco ou pizza? — perguntou o sr. Fuller.
— Acho que ela gosta mais de churrasco.
— Concordo. Não chegue muito depois das seis. Quero voltar antes que ela chegue em casa.
— Não posso encontrar você no restaurante?
Quando Cash desligou, pensou em como toda aquela história em torno de Chloe afetaria a mãe adotiva. Se ele procurasse os pais agora para contar tudo e depois descobrisse que Chloe não era Emily Fuller, aquilo poderia trazer de volta toda a dor de perdê-la pela primeira vez, como na época em que aquele vigarista os tinha enganado no ano anterior. Cash não podia dizer nada antes de ter certeza.
Minha mãe e eu estamos esperando consertarem o meu pneu. Na televisão da sala de espera da loja está passando um programa político. Estamos folheando revistas. Lembro-me de quando minha mãe costumava comprá-las para encontrar personagens para seus livros. É triste saber que ela parou de escrever.
Olho para o lado e ela está lendo uma revista, a cabeça coberta com a bandana desbotada. Normalmente, ela usa uma peruca quando saímos.
Hoje não. Mal posso esperar para ver o cabelo dela voltar a crescer. Para vê-la ganhar peso. Estou cansada de vê-la com a aparência de um zumbi.
— Você almoçou hoje? — pergunto ao virar a página da revista.
Ela ergue os olhos.
— Sim.
— O que você comeu?
— Um sanduíche, acho.
— Com batatas fritas?
— Não.
— Você deveria ter comido batatas fritas.
Ela sorri.
— Você é nutricionista?
— Não. Sou sua filha que acha que você está muito magra. Sério, você precisa comer mais. Podemos sair para jantar. Comer algo cheio de calorias.
— Pizza? — Ela sorri.
— Com recheio extra.
— Combinado.
— E você toma uma cerveja.
Ela ri.
— Não posso beber por causa dos remédios.
— Que remédios?
— O comprimido que tenho de tomar por três anos para evitar que o câncer volte.
Sento-me ereta, com uma dor se instalando no meu peito.
— Os médicos acham que pode voltar?
— Não. — Ela bate o ombro no meu. — O remédio é para garantir que não volte.
Eu olho para ela, de repente cheia de preocupação.
— Holden? — Um homem vestindo macacão entra na sala, vindo da oficina.
— Sou eu. — Minha mãe fica em pé.
— Boas notícias. Não há nada de errado com o seu pneu.
— Mas estava murcho! — eu digo.
— Bem, às vezes o pneu pode ficar mais baixo devido à mudança de temperatura, mas, como isso não aconteceu, eu diria que alguém o murchou de propósito.
— Por que alguém faria isso? — Minha mãe me pergunta.
— Sei lá. — Então me lembro de Cash parado ao lado do meu carro. Ele não faria isso, faria?
— Poderia ser pior — diz o mecânico. — Poderiam ter cortado os pneus.
Às quatro e meia, Chloe ainda não estava em casa. Nem mesmo às cinco. Por fim, às cinco e meia, Cash viu o carro dela e estacionou em frente à casa.
Ele pegou o cartão de crédito e o colocou no bolso da frente do jeans. Subindo na varanda, viu uma grande janela com as cortinas abertas. Espiou lá dentro. Uma mulher estava sentada à mesa de jantar. Ela estava usando uma bandana, mas por baixo ele viu que não havia nem um fio de cabelo. As maçãs do rosto estavam salientes. Os olhos, fundos.
A visão o levou à época em que o pai raspava a cabeça e as sobrancelhas de Cash para tirar foto. Ele perdeu vários quilos, após passar fome por quase um mês; depois o pai passou sombra preta sob seus olhos para fazê-lo parecer ainda mais doente. Funcionou. O pai se orgulhava do dinheiro que as pessoas tinham doado para salvar o menino com câncer.
Mas essa mulher não estava usando maquiagem. O peito dele doía por Chloe. Será que a mãe dela ia morrer? Ele sofria até pela mãe adotiva. A mãe de Chloe era o tipo de paciente que a sra. Fuller tratava. O tipo que morria nas mãos dela, não importava quanto se esforçava para tentar salvar.
Suspirando, resignado, ele tocou a campainha. Os olhos da mulher encontraram os dele através da janela.
Quando ela se levantou, pareceu ainda mais magra.
A porta da frente se abriu e ele se apresentou.
— Oi. Meu nome é Cash. Estudo na escola de Chloe. Ela está em casa?
A mulher sorriu.
— Entre. Sou JoAnne Holden, mãe de Chloe. Ela está no quarto. — Então chamou: — Chloe?
Ele entrou. Um gato tigrado amarelo, igual a Félix, pulou de uma cadeira.
— Você gostaria de beber alguma coisa?
— Não, obrigado. — As mãos dele estavam suadas. Será que ele estava nervoso só porque estava conhecendo a mãe de Chloe? Ou seria porque essa mulher poderia ser a sequestradora de Emily Fuller?
Chloe entrou. A postura dela era rígida, os olhos acusadores. Já não tinham passado dessa fase?
— Vamos para o quintal. — Ela passou por ele sem cumprimentá-lo.
Cash agradeceu a mãe dela com a cabeça e seguiu Chloe, passaram pela sala até chegar a um quintal nos fundos.
Ela se virou para trás.
— Feche a porta.
Cash fechou, mas a expressão nos olhos dela dizia que seria melhor se ele encontrasse uma rota de fuga.
— Como você sabia onde eu morava?
A pergunta dela fez Cash suspirar de alívio. Ele sabia o que dizer.
— Você me disse que morava em Oak Tree. Dei uma volta pelo bairro até ver seu carro. Trouxe isso para você.
Ele tirou o cartão de crédito dela do bolso.
— Você esqueceu na cafeteria.
Chloe pegou o cartão, a suspeita ainda em seus olhos.
— Você murchou o meu pneu?
A pergunta saiu enérgica e foi como um soco no estômago. Ele sabia que aquela suspeita poderia surgir e o plano dele era negar. Esse ainda era seu plano, mas agora parecia muito ruim.
— Seu pneu não estava furado? — Aquilo tinha soado convincente? Merda, claro que não. Ele deveria ter cortado o pneu, mas isso teria custado o dinheiro dela.
— Não. — A mão dela pousou no quadril. — Foi você quem o murchou?
— Por que eu faria isso? — Responda a uma pergunta com outra pergunta. Isso confunde as pessoas.
— Não sei. Mas alguém fez isso. E você estava lá.
Ela não se deixava enganar com facilidade.
— E eu o troquei para você. Não gosto tanto assim de trocar pneus. Uau, você realmente tem dificuldade para confiar nas pessoas, hein?
Pela expressão dela, Cash percebeu que tinha dito a coisa errada.
— Sim, eu tenho. E, neste momento, não confio em você.
— Bem. Sugiro que verifique se não usei o seu cartão.
Então saiu pelo portão externo.
O que o deixou mais surpreso foi o fato de se sentir magoado por Chloe não acreditar nele, mesmo que ela estivesse certa em não querer acreditar.
7
Eram onze horas da noite quando o estômago de Cash começou a reclamar de fome. Ele tinha perdido o apetite depois de sair da casa de Chloe e passara a maior parte da noite em seu quarto, depois de encontrar o sr. Fuller para comprar o jantar.
Quando desceu as escadas sem fazer barulho e abriu a geladeira, viu a mãe adotiva sentada na sala de jantar — no escuro. Félix, seu gato, estava estendido sobre a mesa e ela acariciava lentamente o pelo dele. Ela estava de costas para a porta, mas o ouvira entrar.
Ele se aproximou e ficou ao lado dela. A mãe adotiva colocou Félix no chão e enxugou as lágrimas antes de olhar para Cash.
— Sinto muito — disse ele.
Ela assentiu.
— Também sinto.
Cash se sentou ao lado dela.
— Você salva muito mais pessoas do que perde.
A sra. Fuller ofereceu a ele um sorriso triste.
— Ela era apenas alguns anos mais velha que você — ela disse. — Alguns anos mais velha que Emily. Eu queria salvá-la. — Ela respirou fundo. — É difícil perder um paciente, mas quando eles são jovens... Acho que, se eu pudesse salvá-los, isso poderia compensar... — Ela colocou os dedos sobre os lábios trêmulos.
— Compensar o quê?
Ela balançou a cabeça.
— Foi culpa minha. Eu estava tão ocupada com a faculdade... Era meu dia de cuidar da Emily, mas liguei para a babá e pedi para que ela a levasse para passear.
— Não foi culpa sua — Cash disse bruscamente.
— Eu sei. Só estou com pena de mim mesma. E amanhã é... Vai fazer quinze anos que Emily desapareceu. — Ela fez uma pausa. — Odeio não ter conseguido salvá-la.
Quinze anos. Ele não sabia nem mesmo de quem ela estava falando ao dizer que não tinha conseguido salvar. A garota com câncer ou a filha dela?
A sra. Fuller esfregou os olhos e olhou para ele. De perto, ele viu a expressão dela, tão cheia de dor.
Ele colocou a mão no braço da mãe adotiva. De onde vinham as palavras, Cash não sabia, mas elas deixaram seus lábios:
— Você me salvou.
— Eu salvei? — A voz dela tremia. — Às vezes eu me preocupo quando vejo que você não deixa que a gente se aproxime muito de você...
— Você está mais próxima de mim do que qualquer outra pessoa jamais esteve. — E aquela era a mais pura verdade.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Obrigada. É demais pedir um abraço?
Ele balançou a cabeça, mesmo que preferisse evitar abraços.
Eles ficaram de pé e os braços dela o envolveram. Cash não se moveu, a dor que sentia no peito era profunda. A garganta apertou.
Ela o soltou rapidamente, como se sentisse quanto era difícil para ele.
— Nós amamos você como um filho.
Vocês não deveriam.
— Eu sei. — Mas eles mereciam ter a filha de volta e, se ele pudesse, se fosse possível, iria devolvê-la aos Fuller.
Estou me arrumando para ir à escola na manhã seguinte, quando meu celular toca. Tenho certeza que é Lindsey, por isso atendo. Me enganei.
— Como está a filhinha do papai? — É o homem que me deve um pedido de desculpas. De repente, quero que ele saiba que me magoou. Parece que não resta mais nada nele do pai que eu conhecia. O cara que costumava me levar para comer comida indiana porque minha mãe não gostava. O cara que costumava me abraçar forte, que me ensinou a trocar pneu. Ele se foi. Já era.
— Como está minha garota? — ele pergunta novamente.
— Bem.
— Como está indo na escola?
— Muito engraçado... — Mas não estou rindo.
— O que é engraçado?
— Pensei que você fosse me ligar no primeiro dia de aula para saber como foi.
— Ah... — A culpa está estampada nessa única palavra. — Sinto muito, querida. Foi uma semana agitada.
Este é o momento em que deveria dizer que está tudo bem e deixá-lo falar quanto sente a minha falta. Mas não consigo.
— É bom saber que não estou na sua lista de prioridades.
— Chloe! Não diga isso.
— Por quê? É verdade. Você deu a Darlene meu quarto. Diz que vai ligar, mas não liga. O que mais? Agora vai se negar a pagar a pensão também?
— Por quê? Sua mãe está falando mal de mim?
— Sim, mas ela já faz isso há muito tempo. Mas agora finalmente estou percebendo que o que ela diz é verdade.
Desligo e começo a chorar. Mas, por outro lado, me sinto bem. Ele merecia isso.
Ao consultar o relógio, vejo que tenho que me apressar. Passo rápido pela minha mãe, para ela não ver que eu estava chorando.
Quando saio, Lindsey está esperando ao lado do meu carro.
— Algo errado?
— Tudo.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— Isso pode parecer terrível, mas agora você não está mais fingindo tão bem e eu gosto mais de você assim.
Eu olho para ela como quem diz “Do que você está falando?”.
— Antes, você agia como se fosse a Mulher-Maravilha. Eu me sentia mal quando te contava meus problemas, porque você podia me achar meio patética. — Ela dá a volta para entrar no carro.
— De que problemas você está falando? — pergunto, para não parecer mais patética ainda. Eu me sento atrás do volante. — Além do cão sarnento traidor?
Ela se acomoda no banco do passageiro e parece hesitante.
— Não vou aborrecer você com detalhes, mas... — Ela faz uma cara assustada e fica séria. — Minha mãe é gay.
Eu olho para ela.
— Eu já sabia.
Ela me olha perplexa.
— É tão óbvio assim?
— Sim. A namorada da sua mãe está sempre na sua casa e, quando assistem TV, ficam de mãos dadas. Por que isso...?
— É um problema? — Ela termina a minha frase. — Não é. Estou feliz que ela tenha se encontrado e encontrado Lola. Uns dois anos atrás, ela teve depressão. Até sete meses atrás, estava tomando antidepressivos, solitária e infeliz. Ela é muito mais feliz agora. E para mim tudo bem... Mas... nem todo mundo aceita. E tenho medo que...
— Você não deveria se importar com o que as pessoas pensam. Quem a sua mãe ama não é da conta de ninguém. Você tem uma mãe que é gay. Ponto final. Isso não é nada de mais.
Os olhos dela se estreitam.
— Você não entende. Não é que eu me importe com o que pensam. Eu tenho medo de que, da próxima vez que alguém disser alguma coisa sobre ela, eu pule na garganta da criatura. É a minha mãe! Odeio que o mundo a julgue.
Eu sorrio.
— Ótimo. Quem disse algo sobre ela?
— Clare, uma das primas de Jamie. Foi logo antes de Jamie viajar para o acampamento. Eu não sabia que Jamie tinha contado a ela sobre a minha mãe até ela começar a dizer quanto aquilo devia ser estranho para mim. Eu simplesmente fui embora. Nem me despedi de Jamie. Mais tarde, fiquei tão brava comigo mesma por não defender minha mãe que agora não vejo a hora de outra pessoa dizer alguma coisa.
Eu olho para ela.
— É o seguinte. Quando alguém disser alguma coisa, venha me chamar e vou ajudar você a dar uma lição nessa pessoa. Estou ficando boa nisso.
Lindsey suspira.
— Estou tão feliz que você tenha se mudado para a casa ao lado da minha!
Eu não posso dizer o mesmo, porque ainda sinto muita falta da minha outra vida, mas sorrio. Naquele momento, sei que não sou apenas colega de Lindsey. Gostando ou não da cidade, consegui uma boa amiga. Então decido confiar nela e contar sobre Cash e o pneu murcho.
— E se ele fez isso apenas para ter um motivo para falar com você? — ela pergunta.
— Se ele quisesse falar comigo, poderia ter simplesmente se aproximado e falado comigo. Ele não é tímido.
— Você não sabe. Ele talvez não seja tão confiante quanto parece.
Será que exagerei, por causa das minhas próprias inseguranças? Porque não acredito que ele possa estar interessado em alguém como eu?
Será que cheguei automaticamente à conclusão errada, como todas as outras pessoas? Ao me lembrar da história sobre como ele foi expulso da sua última escola, porque as pessoas preferiram acreditar no pior com relação a ele, começo a me sentir culpada.
— Sou uma cretina — murmuro e Lindsey ri.
Cash decidiu se desculpar. Ele faria qualquer coisa para voltar a ter a confiança de Chloe. Precisava de respostas e a única maneira de consegui-las era se aproximar dela. Ele tinha que descobrir se ela era Emily Fuller.
Ele não sabia exatamente o que precisava para provar ou refutar sua suspeita. Mas seus instintos lhe diziam que ele saberia quando ouvisse. E não ouviria nada se ela se afastasse dele.
Ele viu Chloe perto do armário, mas, antes que pudesse se aproximar, ela desapareceu no corredor, entre os outros alunos. No caminho para a aula de Literatura Americana, que eles tinham juntos, ele olhou para a esquerda e para a direita, esperando encontrá-la. Quando se aproximou da porta da sala de aula, ele a viu parada ali, esperando.
Seus olhares se encontraram e ela começou a andar na direção dele. Ele não estava perto o suficiente para decifrar a expressão nos olhos dela. Mas a tensão fez com que seu estômago se contraísse.
Chloe parou na frente dele, então fez um gesto para que se afastassem da porta.
— Oi. Eu...
— Olha, eu...
— Pode falar — disse Cash. Sempre deixe a outra pessoa falar primeiro. Seu plano de jogo talvez mude.
Ela mordeu o lábio.
— Sinto muito. Não deveria ter acusado você. Fui rude. — Chloe olhou para ele. O pedido de desculpas iluminou os olhos castanhos dela. Ele viu as manchas verdes e douradas. Seus olhos seriam da mesma cor que os do sr. Fuller?
Seu próprio pedido de desculpas estava na ponta da língua. Quando falar com uma garota tinha ficado tão difícil?
Em vez disso, ele sorriu.
— Tudo bem.
— Não, não está tudo bem.
Ela fez uma pausa como se fosse a vez dele de dizer alguma coisa, mas Cash estava muito ocupado se recriminando, porque ele era o culpado e deveria ser o único a pedir desculpas. Ela se virou para entrar na sala de aula.
— Espere. — Ele pegou o braço dela e sentiu o mesmo choque. Como tocar num fio desencapado. Mas a sensação logo desapareceu e tudo o que restou foi a sensação de como a pele dela era macia. — Podemos falar sobre isso mais tarde?
— Sim. — Ela sorriu e não saiu do lugar.
Demorou um segundo para Cash perceber que ainda segurava o braço dela. E estava acariciando a pele dela com o polegar. Mas, caramba, ele gostava da sensação de estar tocando Chloe...
Com relutância ele a soltou e deixou-a ir para a aula. O toque podia ter vindo com uma centelha de dor, mas o que viera a seguir — a pele quente, suave e feminina — fizera tudo valer a pena.
8
Depois da escola, Cash dirigiu até a casa de Chloe, mas estacionou algumas casas à frente. Enquanto esperava, sentiu certo nervosismo. Estava pensando em sugerir que se encontrassem na cafeteria. Algo sobre a mãe de Chloe o deixava apreensivo. Vê-la tão doente e questionar se ela tinha sequestrado Chloe tornava tudo mais difícil.
Ele se perguntou quão difícil não seria para Chloe ver a mãe dela tão magra. E ele só contribuiria para aumentar os problemas da garota se dissesse que ela podia ser Emily Fuller. Ocorreu-lhe que seria mais fácil se ela não fosse a filha dos Fuller.
Ele não teria que mentir para ela.
O carro de Chloe entrou na garagem da casa.
Cash viu pelo espelho retrovisor a amiga dela colocando a mochila no ombro. Ele tinha reparado nela no ano anterior. Não estava na sua lista de garotas insuportáveis.
Chloe saiu do carro. Cash gostava de observá-la, especialmente quando ela não sabia que estava sendo observada. Ela parecia de alguma forma... diferente das outras garotas. Quando cruzava com outras pessoas no corredor, pedia licença. A maioria não fazia isso. Ela sorria para os outros alunos — não apenas para os mais populares, como algumas garotas faziam.
Cash também via os garotos olhando para ela. Não podia culpá-los. Ele olhava também. Só que alguns caras eram uns cretinos.
Só quando Chloe viu o carro dele é que Cash saiu.
— Vamos entrar. — O cabelo dela balançava em volta dos ombros e a camisa vermelha se ajustava aos seios.
Ele a seguiu para dentro da casa.
— Mãe? — Chloe chamou. — Cash está aqui. Vamos nos sentar lá fora, no quintal. — Cash ouviu a mãe dela responder algo do quarto.
Chloe largou a mochila numa cadeira da sala de jantar.
— Aposto que a sua casa é muito melhor que a minha.
— Na verdade, não — Cash mentiu, porque seria rude da parte dele se concordasse com ela. Mas com exceção da casa dos Fuller, a casa de Chloe era melhor do que qualquer outra em que ele já tinha morado. Durante seis meses, ele e o pai haviam morado numa cabana na floresta sem água corrente, eletricidade ou banheiro.
Ele a seguiu pela casa e viu alguns porta-retratos na mesinha ao lado do sofá. Ali havia várias fotos de Chloe quando era pequena. Uma delas chamou a atenção dele, como se ele já a tivesse visto antes. Era Chloe segurando um gato tigrado amarelo. Ele pegou o porta-retratos. Estava imaginando coisas ou era a mesma foto que a Susan Fuller tinha num dos quartos vazios? Se pudesse, fotografaria a foto para poder compará-las.
Cash levantou os olhos e percebeu que Chloe estava olhando para ele.
— Você era uma gracinha.
— Obrigada. — Ela fez sinal para ele acompanhá-la até o quintal. Lembrou-se da última vez em que estivera ali, quando ela o acusara de ter murchado seu pneu. Esperava que desta vez não houvesse acusações.
Quando saíram no quintal, um cachorro amarelo, de tamanho médio e raça indefinida, veio correndo para cima dele, latindo. Não era um latido ameaçador, mas brincalhão. Cash acariciou o animal.
— Não, não pule, Docinho! — Chloe foi se sentar no balanço. Cash teve a sensação de que ela esperava que ele fizesse o mesmo. Então se sentou, deixando de propósito um espaço entre eles. Mas, mesmo assim, estavam muito próximos. Ele podia sentir o aroma que exalava dela. Um perfume de frutas e flores. Não um perfume, mas uma colônia, e talvez um brilho labial também, porque ele notou que os lábios dela estavam brilhantes.
O cachorro colocou a pata na perna de Cash.
— Ela é bonita.
— Ele — disse Chloe.
— Você deu o nome de Docinho para um macho?
— Ele era muito bonzinho. E eu tinha 7 anos.
Cash soltou uma risadinha.
— Você provavelmente o castrou também, para tirar dele qualquer resquício de masculinidade...
Ela levantou uma sobrancelha e acariciou o cachorro.
— Só depois que ele cruzou com a cachorra do vizinho e ela teve vários filhotes. E foi na festa do meu aniversário. Na frente de todos os amigos da minha classe. Minha festa teve cama elástica, um palhaço e uma aula de educação sexual.
Ele riu e percebeu que fazia muito isso quando Chloe estava presente. Então pensou no que ela tinha dito. Cash não tinha realmente refletido sobre como tinha sido a infância dela, mas não parecia ruim. Será que pessoas que organizam festas de aniversário bem elaboradas para os filhos sequestram crianças?
Ele nunca tivera uma festa de aniversário. Teve apenas um bolo de aniversário antes da chegada dos Fuller. Agora os aniversários nunca passavam em branco. Sempre havia bolo e presentes. E a mãe adotiva sempre tirava o dia de folga e cozinhava o que ele queria. Se Cash não dissesse o que queria, ela fazia os pratos que sabia que ele gostava. Será que era isso que Chloe também tinha?
Percebendo que o silêncio estava ficando pesado, ele disse:
— Parece que foi uma ótima festa de aniversário.
— Foi inesquecível.
— Eu não estou nem aí! — A voz em tom elevado da mãe de Chloe vazou por trás da porta dos fundos, mesmo fechada.
Chloe franziu a testa.
— Bem, eu só disse a verdade! — A voz da mãe soou irritada novamente.
— Merda. — Chloe saiu do balanço. — Já volto.
Ela disparou para dentro. O cachorro sentado ao lado dele choramingou. Quando a porta se fechou, ele ouviu Chloe dizer:
— Mãe! Cash está aqui.
A voz da mãe dela explodiu novamente.
— Talvez você devesse ter pensado nisso antes de começar a transar com alguém que poderia ser irmã dela! Sim, eu disse isso. Você é um merda. E ela é uma vadia!
— Mamãe! Pare! — A voz de Chloe soou mais alto.
— Passe bem! — A mãe gritou, e então... — Você disse ao seu pai que eu estava falando mal dele?
Cash abaixou os pés para interromper o movimento estridente do balanço e ouvir o que ela diria em seguida.
— Eu... Nós podemos conversar sobre isso mais tarde? Cash está aqui.
— Por que você conta a ele tudo o que eu digo? — A mãe dela gritou.
A voz de Chloe soou em seguida.
— Eu não tinha intenção... — A dor era evidente na voz dela. O mesmo tipo de dor que ele tinha ouvido no dia anterior, quando contou a ele sobre o pai.
— Aquele homem não tem vergonha na cara! E pode dizer a ele que eu disse isso!
Uma porta bateu lá dentro. Cash passou as mãos no jeans e se perguntou se deveria ir embora.
Chloe voltou para o quintal.
O rosto dela estava vermelho. Estava de braços cruzados, como se estivesse zangada ou envergonhada. Talvez as duas coisas.
Ela encontrou os olhos dele.
— Olha, eu vou te dar um conselho: vá embora e me esqueça. Você não tem que ouvir os melodramas dessa minha família maluca.
Ele não saiu do lugar. Só queria ter algo para dizer que a fizesse se sentir melhor.
— Tive uma família muito pior. São apenas os problemas do divórcio.
Ela se aproximou e deixou-se cair no balanço.
— Foi mal...
Quando ela virou o rosto para cima, ele viu lágrimas nos cílios longos e escuros.
— Sério, está tudo bem.
— Minha vida é uma zona. Você não vai querer... — Chloe mordeu o lábio.
— Não. A vida dos seus pais é uma zona. Você é apenas uma vítima inocente.
Cash não podia acreditar que estava reciclando alguns dos velhos clichês que os psicólogos costumavam repetir para ele enquanto estava no hospital, depois de ter sido baleado. A psicóloga estava lá quando ele acordara. Cash tinha se lembrado de perguntar a ela:
— Eu vou para a cadeia?
Ela tentou consolá-lo.
— Não. Você não fez nada de errado.
Ele se lembrou de levantar o queixo, disposto a aceitar sua punição.
— Sim, eu fiz.
— Você não é má pessoa. Foi seu pai quem fez coisas ruins. Você é jovem, fez o que tinha que fazer para sobreviver.
Ao lado dele, Chloe balançou a cabeça.
— Não. Eu não sou inocente desta vez. — Mais uma vez, ela mordeu o lábio. — Meu pai ligou esta manhã e eu disse algo que não deveria ter dito. Eu queria magoar meu pai, não a minha mãe.
Ele não sabia direito o que o levou a fazer aquilo, mas colocou o braço sobre os ombros de Chloe. Um choque de prazer percorreu o corpo dele, acompanhado de dor. Mas então a dor se foi.
Ela soltou aquele som triste novamente — um suspiro muito parecido com o da sra. Fuller, o que o fez lembrar por que ele estava ali. Antes que Cash pudesse mover o braço, Chloe se inclinou contra ele.
Ele tentou não recuar.
— Ainda tem a ver com eles. Não com você.
Ela olhou para ele. Estavam tão perto que Cash poderia contar os cílios dela. E isso deu a ele uma visão panorâmica da dor nos olhos castanhos dela.
— Você é muito bom nisso — Chloe sussurrou.
— No quê?
— Em saber dizer a coisa certa.
— Que estranho... Eu geralmente sou péssimo nisso. — Cash forçou um sorriso, sentindo cada centímetro do corpo dela contra o dele. Sentindo quanto aquilo parecia certo e errado ao mesmo tempo.
— Seus pais se divorciaram? — perguntou ela.
Ele sentiu o ar preso na garganta. A última coisa que queria era falar sobre o passado.
— Não. Eles morreram.
— O que aconteceu? Desculpe, eu não deveria...
Docinho bateu contra o joelho dele, com uma bola de tênis amarela na boca. Com o braço livre, Cash jogou a bola longe para o cachorro pegar.
— Sua mãe parecia furiosa.
— Ela não está apenas furiosa. Ela está amargurada.
Chloe olhou para a porta e sua expressão era de tristeza novamente.
— Não posso culpá-la, só que... dói ouvi-la xingar meu pai o tempo todo. Eu sei que ele merece. Mas... — Ela cobriu o rosto com as mãos. — Droga. Estou fazendo de novo.
— Fazendo o quê?
— Despejando os meus problemas em cima de você.
Cash sorriu.
— Eu aguento.
Ela riu e recostou-se nele. Estavam ainda mais perto agora.
Ele inspirou o perfume dela.
— É câncer que ela tem?
— Sim.
— Ela vai ficar bem?
A raiva nos olhos dela se transformou em tristeza.
— O médico disse que ela está curada. Mas acabei de descobrir... que o câncer pode voltar. — Chloe fez uma pausa. — Mal posso esperar o dia em que ela deixar de parecer... que está morrendo.
— Sinto muito. — Cash quase disse que a mãe adotiva era oncologista, mas falar sobre a mulher que ele achava que podia ser a mãe dela parecia errado.
Os olhos deles se encontraram. E ali ficaram. Os lábios dela vieram ao encontro dos dele.
Cash recuou.
Ela se encolheu.
— Foi mal...
— Não. Eu só... Eu não estava... — Ele não conseguia desviar os olhos dos lábios dela. Então ele se inclinou. Seus sentidos continuavam hiperalertas.
Ele sentiu tudo intensamente. O sabor dos lábios dela. Um pouco salgados, por causa das lágrimas. A textura deles. Macios, quentes. Úmidos. O modo como ela chegou um pouco mais perto e seus seios pressionaram suavemente as costelas dele. Cash a queria mais perto, para que pudesse envolver sua cintura, deslizar as mãos sob a camisa vermelha, para sentir a pele nos lugares que não tinha conseguido ver.
Percebendo que não deveria estar pensando aquilo, ele pôs fim ao beijo, mas conseguiu fazer isso bem devagar.
Chloe sorriu.
— Isso foi bom.
— Sim. Foi mesmo...
Mas, que droga, ele estava indo longe demais! Aquilo podia acabar muito mal.
Cash estacionou na garagem, entrou em casa e digitou o código para desligar o alarme. Ele tinha ido embora depois que os dois haviam se beijado pela quinta vez. Cinco beijos. Ele ficou dizendo a si mesmo que precisava parar, mas não conseguia. Não quando ela se sentou tão perto e parecia tão disposta, olhando para ele com desejo misturado com tristeza. Chloe precisava ser beijada e ele precisava beijá-la.
Ele subiu os degraus de madeira e cruzou o corredor até o quarto onde a sra. Fuller guardava todas as recordações da filha que havia perdido. Fotografias, bichinhos de pelúcia com que a criança brincava, livros que ele imaginava que a mãe lia para ela. Na cômoda ainda havia algumas roupas. Era como um museu dedicado à filha.
Quando acendeu a luz, ele descobriu que a cama estava desarrumada. Ele apostava que ela tinha dormido ali na noite anterior. Sempre fazia isso quando estava com algum problema.
Cash foi até as prateleiras que continham livros e porta-retratos. E encontrou. A foto de Emily Fuller segurando um gatinho. Não apenas qualquer gatinho, mas Félix. O gato malhado amarelo quase idêntico ao da fotografia na casa de Chloe. Igualmente idêntica era a garota.
Ele pegou a foto.
A mãe adotiva tinha lhe contado muitas vezes como Emily amava Félix. Eles haviam encontrado o gatinho abandonado na rua. Era por isso que a mãe adotiva amava tanto aquele gato. Aquela seria uma peça do quebra-cabeça? Ou todos os pais decentes tinham fotos dos filhos com seus animais de estimação? Mas como essas duas garotas poderiam se parecer tanto? E seria coincidência que os gatinhos se parecessem também?
Ele pegou o celular para fotografar o porta-retratos.
9
Atenta a cada barulhinho vindo do quarto da minha mãe, eu coloco o que restou de uma pizza no forno, esperando que o cheiro apetitoso a atraia para a cozinha. Cash saiu faz uma hora, mas minha mãe não apareceu ainda. Será que ela está chorando? Está deprimida? Irritada?
Parte de mim gostaria de obrigá-la a sair do quarto. Ela está agindo como uma criança birrenta.
Quando é que assumi o papel da mãe nesta casa?
Ah, sim, quando ela teve câncer. Ou talvez quando meu pai a abandonou.
Desconto minha frustração na alface, no tomate e nas cenouras que estou picando. Félix mia e circula entre os meus tornozelos.
Com as mãos no piloto automático, minha mente divaga. Estou angustiada com a minha mãe e ao mesmo tempo nas nuvens por ter sido beijada por Cash. Beijada cinco vezes. Eu tomei a iniciativa. Quero dizer, os lábios dele estavam tão perto que eu simplesmente o beijei. Mas os outros quatro beijos foram iniciativa dele.
Eu posso fechar os olhos e ainda sentir seus lábios contra os meus. Saboreio a lembrança e... os sentimentos novos que brotam no meu peito. Esperança. Empolgação. Antecipação.
Desde que meus pais começaram a se desentender, sinto como se alguém tivesse roubado a minha alegria. Mas talvez ela não tenha sido roubada, apenas reprimida. Talvez...
A porta do quarto da minha mãe se abre. Ela entra na cozinha em meio a uma aura de depressão.
— Estou esquentando a pizza — digo.
— Não estou com fome.
— Você tem que comer. — Sim, eu sou a mãe aqui.
Nossos olhares se encontram. Eu vejo a mágoa nos olhos fundos dela. Toda a alegria que eu sinto no peito murcha como uma flor deixada num vaso sem água. Sou tomada por um sentimento de culpa.
— Eu não fico falando de você para o papai. Ele ligou esta manhã e fiquei com raiva.
— Por quê?
— Ele me disse que ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Quando reclamei, ele perguntou se você estava falando mal dele e se era por isso que eu estava sendo agressiva. Eu disse que, sim, que você estava falando mal dele, mas que não era esse o problema. O problema era que agora eu estava percebendo que tudo que você dizia era verdade. Eu não quis...
Ela se senta.
— Então ele disse que ligaria e não ligou?
Isso não está ajudando. Agora ela vai ficar brava de novo. Eu me deixo contagiar por essa raiva.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não fique com raiva.
— Como posso não ficar com raiva? Olha o que ele fez comigo! — Ela arranca a bandana.
— O que aconteceu com aquela minha mãe que estava feliz outro dia? Que disse que tudo ia ficar bem?
— Seu pai aconteceu! — Lágrimas enchem os olhos dela.
Lágrimas enchem meus olhos também. Sento-me ao lado dela.
— Mãe, você precisa de ajuda. Precisa de terapia ou algo assim. Você pode sobreviver ao câncer, mas essa amargura vai te matar.
Sem mais uma palavra, ela volta para o quarto.
Eu desligo o forno, vou para o meu quarto e bato a porta.
Nenhuma de nós janta.
Na manhã seguinte, quando saio do meu quarto para fazer xixi, minha mãe me chama. Ela está sentada na cozinha, vestida com o roupão cor- de-rosa, que parece engolir seu corpo inteiro.
— Podemos conversar?
Tento decifrar o humor em que ela está. Ainda está furiosa? Ainda está deprimida? Quando me aproximo, sinto outra coisa. Culpa.
— Sente-se. — Ela faz um gesto indicando a mesa.
Eu me sento na frente da minha mãe. As olheiras sob os olhos dela estão mais escuras. Ela não anda dormindo.
— Sinto muito — diz minha mãe. Lágrimas caem dos seus olhos verdes. — Eu tive um dia ruim ontem. Ficaram de me ligar ontem para falar sobre a vaga de emprego no consultório, mas ninguém ligou. Estou achando que podem ter mudado de ideia. E o remédio que estou tomando causa sintomas de gripe. Comecei a sentir pena de mim mesma, então o seu pai me ligou e eu perdi a cabeça. — Ela pega minha mão. — Me desculpe por ter surtado na frente do seu amigo.
Embora eu quisesse acreditar que tudo está bem agora, não posso. Não é o primeiro pedido de desculpas que ouço dela.
— Amo você, mãe — digo. — E eu te perdoo. Mas você precisa fazer terapia.
— Foi só um dia ruim.
Eu enrijeço os ombros e digo a mim mesma que não sou a mãe dela.
— É mais do que isso. Você parou de escrever. Parou de viver. Parou de comer. Não foi só um dia ruim. Você teve um ano ruim. Vejo anúncios na TV dizendo que hoje existe todo tipo de remédio para a depressão.
— Querida, eu não preciso...
— Você precisa, mãe. — Eu a olho bem nos olhos.
Ela hesita e diz com relutância:
— Vou ver se o nosso seguro-saúde cobre.
Não era um sim, mas também não era um não.
Termino de me arrumar, abraço minha mãe e a lembro de ligar para o seguro-saúde. Quando saio, Lindsey está ao lado do meu carro. Ela havia me mandado uma mensagem ontem à noite, cerca de uma hora depois que me tranquei no meu quarto, implorando para eu ir à casa dela, mas eu só liguei. Não contei sobre a minha mãe, não estava pronta para conversar sobre isso, mas contei sobre Cash. Sobre nós nos beijando.
Quando ela me vê, sorri.
— Ainda caminhando nas nuvens?
— Mais ou menos... — Entro no meu carro.
Lindsey se senta no banco do passageiro.
— Eu mal posso acreditar que você está namorando Cash Colton. Ele é o cara mais gato da escola!
— Calma aí! Não estou namorando Cash. Ainda não.
Quando dou partida no carro, vejo minha mãe olhando pela janela.
Despenco das nuvens um pouco mais.
— Ok, deixe-me reformular — diz Lindsey. — Mal posso acreditar que você está dando uns amassos no cara mais gato da escola.
— Não dei uns amassos... Foram só cinco beijos...
— Hmm... — diz Lindsey. — Acho que foram amassos, sim. Vamos ver o que o Google diz. — Ela pega o celular e, em alguns segundos, está lendo e rindo.
— O que foi? — pergunto.
— Bem, de acordo com o Google, são vários os significados de “dar uns amassos”. Só beijar é um deles. Beijar com a língua é outro. — Ela olha para mim. — Você deu um beijo de língua no Cash?
— Digamos que sim...
— Ah, olha só... — Ela se concentra no celular. — Aqui está outro significado: “Trocar carícias, esfregar-se um no outro ou remover peças de roupa”.
— Nós não removemos nenhuma peça de roupa! — Eu solto uma risada.
Ela continua.
— Ouça esta aqui: “Qualquer coisa que não incluir penetração”. Penetração? Isso parece tão pervertido...
O comentário me faz bufar e depois pergunto:
— E quando você vai falar com David?
— Não vou. Se gosta de mim, ele é que vai falar comigo. — Lindsey afivela o cinto de segurança. — Adivinha quem mandou uma mensagem ontem à noite?
— Quem?
— Jonathon.
— O cachorro sarnento traidor? — Começo a dirigir.
Ela confirma.
Piso repentinamente no freio quando vejo o farol vermelho. O carro dá um solavanco.
— Não... — digo com firmeza.
— Não o quê?
— Não, você não vai voltar com ele! Ele te tratou como lixo.
— Mas...
— Sem desculpas! Não seria sua amiga se deixasse você voltar com ele.
Ela baixa a cabeça.
— Tem razão.
— Fale com David hoje!
— Talvez — Lindsey responde.
— Nada de talvez! Faça isso. E nem estou dizendo para sair com ele, apenas...
— Apenas o quê?
— Sinta que é possível. Descubra o poder que existe dentro de toda garota e pare de pensar que precisa de Jonathon para ser feliz. Às vezes acho que precisamos saber que outro cara gosta de nós para nos sentirmos bem com a gente mesmo. Às vezes só precisamos saber que conseguimos fazer um cara perceber que talvez a gente não precise de cara nenhum.
— É isso que você está fazendo com Cash? Encontrando o poder que existe dentro de toda garota?
A pergunta rola na minha cabeça.
— Talvez. Não sei ainda. — Mas quando penso nele, sinto que é mais do que isso.
Cash chegou cedo na escola, mas disse a si mesmo que sua pressa para chegar não tinha nada a ver com Chloe.
Na noite anterior, ele só conseguia pensar nela. Ficou se perguntando se ela seria Emily. Se havia gostado tanto de beijá-lo quanto ele gostara de beijá-la. Se ela iria odiá-lo quando ele contasse sobre as suas suspeitas.
Quando virou no corredor, ele a viu. Diminuiu o passo e a observou. Prestou atenção na maneira como o cabelo dela caía nas costas, enquanto ela guardava a mochila no armário.
Então ele se aproximou até parar ao lado dela.
— Olá.
Chloe se virou e sorriu.
— Oi.
— Oi. — O olhar de Cash foi direto para os lábios dela e ele quis beijá-la. Nunca fora de demonstrar afeto em público, mas poderia dizer que seria fácil mudar de ideia.
Percebendo que ficar olhando para os lábios de Chloe era estranho, ele desviou o olhar para o livro de matemática que ela segurava contra os seios. Mas deixar que o olhar se demorasse ali seria ainda mais estranho, então Cash falou sem pensar:
— Indo para a aula de Cálculo? Você tem aula com o sr. Williams? Eu tenho aula com ele mais tarde.
Desde a noite anterior, ele sabia que ela tinha aula com o sr. Williams, pois tinha lido e relido o arquivo que fotografara no escritório da srta. Anderson.
— Sim — ela respondeu. — Ele parece legal. Qual é a sua primeira aula?
— História. — O alarme tocou.
— Preciso ir — disse ela. — Vejo você na aula de Literatura Americana.
— Até mais tarde. — Ele se inclinou na direção dela. — Gostei de ontem.
Ela sorriu e aqueles suaves olhos castanhos o fitaram através dos cílios.
— Eu também.
Ela se afastou. Ele a viu cruzar o corredor em meio à multidão. O jeans preto que ela usava se ajustava quase tão bem quanto o jeans azul que vestira no dia anterior.
Ele ficou ali parado até a visão dela ser obstruída por outros alunos.
Considerando que Cash fazia parte de quase todas as aulas de conteúdo mais aprofundado, era estranho que só tivessem uma aula juntos aquele dia. Apenas azar. Ou talvez fosse porque ele tinha escolhido estudar Tecnologia Automotiva.
No ano anterior, quando montava sua grade de aula, a srta. Anderson tinha tentado convencê-lo a não fazer isso.
— Mas eu não posso mantê-lo em todas as aulas mais avançadas se estiver estudando Tecnologia Automotiva. Você poderia escolher outra aula de matemática para se preparar melhor para os cursos universitários.
Ele explicou que havia planejado cursar aulas de matemática numa faculdade antes de se formar. E ele já estava fazendo isso. Aquela noite era sua primeira aula.
— Então você planeja ir para a faculdade? — ela perguntou como se não esperasse que ele tivesse esses planos. Agora que sabia que a srta. Andreson era adotada, ele estava meio desapontado ao ver que ela tinha automaticamente pensado o pior dele. Pessoas comuns faziam aquilo, não pessoas que entendiam o que era uma adoção.
Ou talvez ela tivesse entendido até bem demais. A maioria das crianças adotadas por meio do programa do governo acabava na prisão. Quando Cash leu essa estatística, ficou chateado. Pensou nas poucas crianças adotadas de que ele realmente gostava. Não que tivesse mantido contato com elas. Isso era quase impossível em razão do número de vezes que mudara de lar temporário.
Enquanto caminhava para a aula de História, lembrou-se da pergunta seguinte da srta. Anderson. Ela quis saber:
— Então por que fazer Tecnologia Automotiva?
Cash disse a ela:
— Porque eu gosto.
E ele gostava mesmo. Mas a verdade era que, quando terminasse o ensino médio, não planejava receber uma mesada dos pais adotivos. Se algo acontecesse com o carro dele, era melhor que ele estivesse preparado para consertar.
Além disso, a oficina estava lhe atribuindo serviços cada vez maiores, agora que sabiam que ele estava cursando Tecnologia Automotiva, e ele esperava trabalhar numa grande oficina mecânica enquanto fazia faculdade.
Incomodava-o o fato de os Fuller terem comprado um jipe para ele. Eles o tinham convencido a aceitá-lo. Mas Cash se arrependera. E estava determinado a reembolsá-los.
Depois do almoço, vou ao meu armário buscar meus livros. Com o armário aberto, pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem para minha mãe. Você ligou para o seguro-saúde?
Ela precisava saber que eu não tinha me esquecido.
Estou esperando para ver se ela vai responder quando sinto alguém de pé ao meu lado. Abro um sorriso, pensando que é Cash. Mas, quando olho, vejo o rosto de um valentão com um nariz muito machucado. O nariz que Cash socou.
— Oi — ele diz. — Sou Paul Cane. Quarterback do time de futebol.
Eu olho para o meu celular novamente, esperando que ele vá embora. Ele obviamente acha que eu deveria ficar impressionada com a posição dele no futebol.
— Pois não?
— Chloe, certo? — ele pergunta.
— Sim.
— Pensei em fazer um favor a você.
Isso me faz levantar o olhar.
— Vi você saindo com aquele cara, Cash. Você provavelmente não sabe, mas ele é adotado.
Para mim isso é como derramar suco de limão num corte profundo.
— E daí? — percebo o tom frio da minha voz e espero que ele também tenha percebido.
Ele deve ter percebido, porque parece decepcionado.
— Conheço alguns alunos que frequentam a antiga escola de Cash, e há boatos de que ele é mau elemento.
Eu lanço um dos meus sorrisos mais amarelos e falsos.
— O bom é que não desperdiço meu tempo com boatos.
Os olhos cinzentos dele escurecem.
— Dizem que ele matou o pai. Um tiro bem no coração.
Isso me deixa atordoada, mas não demonstro.
— Como eu disse, não dou a mínima atenção para boatos.
Começo a andar, mas ele pega meu braço.
— Você deveria dar. — O tom da voz dele é tão arrogante quanto no dia em que praticou o bullying. Como se ele fosse mais esperto que todo mundo, superior. Mas eu o vejo simplesmente pelo que ele é: um babaca.
Eu olho para a mão dele e afasto o meu braço.
Ombros tensos, bato a porta do meu armário com um pouco de força demais. O barulho ecoa no corredor. Pessoas se viram para olhar.
Quando começo a andar, minha mente começa a dar voltas. Será que Cash de fato matou o próprio pai?
10
Quando toca o último sinal do dia, Lindsey me encontra em frente ao meu armário e vamos juntas ao estacionamento. Estou decepcionada que Cash não veio falar comigo. Durante todo o dia pensei no que Paul me disse. Não que eu acredite nele.
Sei que Paul é um idiota que diria qualquer coisa para prejudicar Cash. E se Cash soubesse o que ele disse, ficaria chateado. E é por isso que não vou dizer nada a ele.
Quando Lindsey e eu nos aproximamos do meu carro, eu o vejo encostado contra a lataria. Lembro com clareza como foi beijá-lo. Um sorriso aparece nos meus lábios e depois nos meus olhos.
Não. Ele não é um assassino.
— Você quer que eu deixe vocês dois sozinhos? — Lindsey pergunta.
— Não — eu digo.
Nós continuamos andando e tudo que eu posso ver é Cash. Em como seus olhos verdes brilham enquanto me olham. Na expressão dele, quase sorrindo.
— Esta é Lindsey.
Cash é educado e diz:
— Olá. Conheço você de vista desde o ano passado.
— Oi. — Ela pega o celular. — Eu preciso mandar uma mensagem... para uma pessoa. — Ela vai para o outro lado do carro. Sei que está apenas nos dando um pouco de privacidade e lhe sou grata por isso. Me aproximo dele.
— Espero que goste da sua aula de hoje à noite.
— Eu só queria me despedir.
Olho para ele. Seu olho roxo está melhor. Uma rajada de vento tira o cabelo preto da testa. Eu me pergunto se ele quer me beijar de novo. Sei que quero beijá-lo, mas usei toda a minha coragem quando o beijei primeiro ontem.
— Tudo bem se eu te mandar uma mensagem ou te ligar mais tarde? — ele pergunta.
— Tudo bem. — Nós trocamos números de telefone.
— Você pode me ligar também. — Cash passa a mão no meu braço. Sei que ele não está planejando me beijar. Mas o toque de alguma forma me tira o fôlego tanto quanto o beijo.
Fico ali parada, vendo-o se afastar. Ele se vira uma vez e abre um sorriso. Isso é tão bom...
— Sem beijo? — Lindsey pergunta depois que entramos no carro.
— Sem beijo. — Eu ofereço a ela um sorriso e quase digo quanto me sinto bem.
Ela suspira.
— Você sabe que isso tudo é muito louco? Sério, as garotas ficavam, tipo, se jogando em cima dele, e ele ignorava todas elas.
— Também acho muito louco... — comento, e a insegurança me atinge em cheio. Sei que ele disse que eu me pareço com alguém e foi por isso que tudo começou, mas, se Cash pode ter qualquer garota que quiser, o que está fazendo comigo?
Afasto esse pensamento e olho para Lindsey.
— Você falou com David hoje?
Ela sorri.
— Falei.
— E como foi?
— Usei o poder que toda garota tem! — diz ela. — E se ele me convidar para sair, eu vou. Eu não sei se ele gosta de mim, mas eu gosto dele. Ele é... revigorante.
— Ótimo! — Enquanto esperamos na fila para sair do estacionamento, ouço uma batida na janela da frente, do lado do passageiro.
É Jamie.
Lindsey abaixa o vidro.
— Oi — Jamie diz para Lindsey, sem nem me cumprimentar com um aceno de cabeça.
— Quer ir para casa comigo? A gente faz o dever de casa juntas...
— Hã... — Lindsey olha para mim como se estivesse constrangida.
— Pode ir — eu digo.
— Ok, então — diz Lindsey.
Eu fico olhando enquanto Lindsey salta do carro e se afasta com Jamie, dizendo a mim mesma que não estou com ciúme. O carro na minha frente anda um pouco mais. Eu faço o mesmo. Olho pelo retrovisor e as vejo dando risada. Não estou com ciúme, repito, mas machuca um pouco de qualquer forma.
Cash deixou Chloe, pensando se não deveria tê-la beijado. Ele andou na direção do jipe. Parecia que ela queria ser beijada. Talvez devesse mandar uma mensagem para dizer que ele queria também. Faria isso. Então se perguntou novamente se aquilo era sensato. Como ela iria reagir quando ele contasse sobre Emily? Cash preferia que ela não tivesse relação nenhuma com aquela história. Ele não tinha planejado gostar dela.
Claro que Chloe compreenderia.
Mas ele precisava contar em breve. Muito em breve. Ele não sabia o que estava esperando. Mais provas?
Quando se aproximou do jipe, viu algo estranho na porta do motorista. A raiva ferveu dentro dele enquanto fitava o risco fino na lateral do carro. Algum idiota havia riscado seu jipe. E ele apostava que o idiota tinha um nariz inchado também.
Cash ficou ali, cerrando e abrindo os punhos. Queria encontrar aquele cretino e lhe dar uma lição. Então se lembrou do suspiro triste da mãe adotiva.
Embora soubesse que Paul tinha feito aquilo, ele não tinha provas. Assim como não tinha provas do estupro. Quem acreditaria nele? Ninguém. Se ele fosse atrás de Paul agora, seria acusado de começar a briga. E teria problemas. Poderia ser expulso da escola novamente.
— Merda! — Cash se forçou a entrar no jipe. Ficou sentado ali, segurando o volante com tanta força que seus punhos doeram. De alguma forma, de algum jeito, tinha que dar uma lição em Paul, mas sem arranjar problemas.
Paro na calçada e fico olhando para a casa antiga. Tenho medo de entrar. Medo de ver minha mãe fazendo drama. Estou cansada de drama.
Ela me contou que esse foi o primeiro lugar onde vieram depois da adoção. Ela estava tão animada para me mostrar aos pais... Por que não me lembro disso? Minha única lembrança é a de olhar para aquele tapete sujo e para meus sapatos pretos de fivela. Triste, sozinha. Assustada. Eu me pergunto se estava sentindo falta dos meus verdadeiros pais naquele dia. Eu me pergunto por que eles não me quiseram mais.
Me pergunto por que diabos desperdiço tempo pensando nisso. Sempre acabo sentindo dó de mim mesma. Sentindo-me patética. E não quero ser essa garota que tem pena de si mesma.
Pego minha mochila e saio do carro.
Ao entrar em casa, eu me preparo para outra discussão com minha mãe. Ela não respondeu à minha mensagem perguntando se havia ligado para o seguro-saúde.
Ela está na cozinha. Arrumada. Isso é um bom sinal. Mas vestindo roupas dois números maiores, ela me lembra um pouco um manequim vestido com trajes largos demais.
Ao entrar na cozinha, coloco a mochila sobre a mesa. Ela está sorrindo e eu não consigo não me perguntar se não está apenas fingindo.
— Como foi seu dia?
— Ótimo! — ela diz.
— Você começou a escrever de novo? — Ela costumava ficar realmente feliz quando conseguia escrever várias páginas do seu livro.
— Não. Recebi uma ligação do consultório médico. Eu tenho uma entrevista amanhã para me encontrar com o outro médico. Surtei por nada.
— Isso é ótimo, mamãe!
Odeio ser estraga-prazer, mas tenho que perguntar.
— Você ligou para o seguro-saúde?
O sorriso dela diminui.
— Liguei. Eles vão me enviar um e-mail com uma lista de terapeutas.
— Eles não têm simplesmente um site que você possa acessar?
— Sim, mas está em manutenção, por isso a funcionária vai me enviar uma lista atualizada.
Eu não sei se isso é só uma tática para adiar a terapia, mas não sei como argumentar.
— Ótimo. Eu só quero...
— Preciso ir às compras — ela interrompe. — Usei a minha única roupa apresentável na primeira entrevista. E como hoje é 4 de setembro... — Ela me manda um beijo. — Achei que poderíamos sair para comemorar. Aproveito e compro uma roupa para você também.
Eu me esqueci da data.
Quando eu era mais nova, 4 de setembro era como um segundo aniversário para mim. Presentes e bolo. É o dia em que eles me adotaram. Nós sempre comemorávamos. No ano passado, depois que meu pai foi embora, ele enviou flores.
Passo os olhos pelo balcão da cozinha só para dar uma checada rápida. Nada de flores. Talvez elas cheguem mais tarde. Ou talvez meu pai também tenha esquecido.
Minha mãe ainda está sorrindo.
— Onde você gostaria de comer?
Eu me forço a parecer interessada. Acho que ainda estou chateada com ela por me envergonhar na frente de Cash, mas faço a coisa certa.
— Naquele restaurante italiano, na avenida principal.
Às oito da noite, já em casa, abraço minha mãe, digo a ela que me diverti ajudando-a a escolher uma roupa e agradeço pela blusa. Não deixei que ela comprasse outra calça jeans, porque sei que ela não tem muito dinheiro.
Na verdade, eu me diverti bastante. Minha mãe estava... quase normal. Nós não falamos sobre meu pai, nem a respeito do telefonema ou do seguro-saúde. Comemos frango marsala e tiramisu, e ela contou como foi a infância dela nesta cidade. Até falou um pouco sobre algumas das suas antigas amigas e sugeri que ela tentasse entrar em contato com elas.
No caminho para casa, ela perguntou sobre Cash. Ele é seu namorado? O que você sabe sobre ele? Minhas respostas — evasivas — foram propositalmente curtas para não prolongar o assunto. Desde que Lindsey mencionou que todas as garotas praticamente se jogavam em cima de Cash, tenho questionado o interesse dele por mim. Além disso, cinco beijos não fazem de ninguém um namorado, e eu não vou entrar naquele assunto sobre ele ser adotado. Mas a pergunta da minha mãe me faz pensar em como sei pouco sobre ele.
Depois de pegar uma garrafinha de água, vou para o meu quarto fazer a lição de casa e penso no que vou escrever para Cash. Ou na razão por que ele não me mandou nenhuma mensagem.
Odeio me sentir assim. Por que não posso simplesmente mandar uma mensagem para ele? Tenho receio de dizer algo idiota e ele parar de gostar de mim. Tenho medo de que ele não me mande nenhuma mensagem porque encontrou uma universitária muito mais bonita do que eu.
Sim, eu sou uma boba insegura. Sempre culpo a adoção. O fato de saber que meus verdadeiros pais não me quiseram. Às vezes quero encontrá-los e perguntar por quê.
Eu desabo na minha cama e Félix se deita sobre meu peito. Ouço seu ronronar e esse som me acalma. Abro meu aplicativo de fotos e tiro uma foto dele. Só sai metade de sua carinha, mas a foto fica bonita.
Eu finalmente o empurro para sair de cima de mim, fico de bruços e escrevo: Como foi a aula?
Imediatamente, vejo que ele leu a minha mensagem. Sorrio e me pergunto se ele estava prestes a me escrever também.
Cash: Entediante. Professor estava atrasado.
Eu: Que pena. Você ainda está na faculdade?
Ele: Não. O que você fez hoje à noite?
Eu: Saí para jantar em um restaurante italiano com a minha mãe.
Ele: Ela está de bom humor?
Eu: Não surtou mais. ©
Ele: Que bom.
Félix se deita sobre as minhas costas e fica afofando meus ombros.
Faço uma pausa e olho outra vez o celular. Devo me despedir agora?
Ele: Eu gostaria de ter beijado você no estacionamento.
Dou risada e solto um gritinho.
Eu: Eu também.
Ele: Posso te ver amanhã à tarde?
Eu não quero trazê-lo em casa novamente.
Eu: Que tal se a gente se encontrar naquela cafeteria depois de eu deixar Lindsey em casa?
Ele: Boa ideia.
Eu: Preciso fazer a lição de casa, mas o meu gato não me deixa em paz.
Ele: O gato dos Fuller também é assim.
Tenho a triste sensação de que ele não pensa no gato como se fosse dele e não se refere à casa dos Fuller como se fosse a casa dele. Eu me pergunto se as coisas são ruins lá. Quero perguntar, mas não sei como. Em vez disso, anexo a foto que acabei de tirar de Félix e uma legenda.
Eu: Olha o Félix.
Deitado na cama, Cash leu a mensagem. Ele se levantou na hora. Caramba! O nome do gato dela é Félix? Ele tentou se lembrar se havia contado a ela qual era o nome do gato dos Fuller. Ele não havia contado. Não tinha nem falado do gato ainda. Certo?
Ele: O nome do seu gato é Félix?
Ela: Sim.
Ele: Quem deu esse nome a ele?
Ela: Eu. Era pequena. Tinha 3 ou 4 anos. Por quê?
Merda! Ele saltou da cama e começou a andar pelo quarto.
Mas, puxa, se isso fosse um golpe, seria a maneira perfeita de aplicá-lo! Continuar dando dicas até... mas não era um golpe.
Ele ficou ali, o dedo posicionado acima do celular, sem saber o que digitar. O que dizer. Finalmente digitou:
Ele: O gato dos Fuller se chama Félix.
Ela: Mentes brilhantes pensam de maneira parecida.
Ele: Sim.
Ela: Foi você quem deu esse nome a ele?
Cash se sentou outra vez enquanto suas emoções desciam por uma tirolesa, abalando seus nervos. Digitou: Não. Ele é velho.
Ele tinha que contar a ela. No dia seguinte. Mostraria a foto em que tinham feito a progressão da idade dela. Chloe ficaria com raiva? Iria descontar a raiva nele? Ficaria chateada por ele ter escondido isso dela? Seria o final do relacionamento entre eles?
— Provavelmente — Cash respondeu em voz alta. Mas ele não tinha escolha.
11
— O que você está fazendo?
Merda. Cash olhou através do para-brisa. Eram cinco da manhã e ele achava que poderia fazer aquilo sem que ninguém soubesse.
A sra. Fuller, ainda de roupão, estava parada na porta da garagem. Que horas ela acordava?
Ele não tinha contado aos Fuller que o carro dele fora riscado. Agora, como explicar por que ele estava instalando uma câmera em seu carro? Ele tinha cerca de um segundo para decidir se deveria dizer a verdade ou mentir. Mentir não parecia justo.
Ele saiu do jipe.
— Estou instalando uma câmera.
— Uma câmera? Por quê?
— Ontem alguém riscou a minha porta.
— O quê? — Franzindo a testa, ela se aproximou e olhou a lateral do jipe. — Por que alguém faria isto?
— Estou achando que é o cara com quem briguei. Mas não posso provar. Então, achei que, se o pegasse no flagra, poderia ter certeza. — O que ele faria se esse plano funcionasse? Ah, já tinha algumas ideias. A maioria delas incluía socos e todas o deixariam em maus lençóis.
Mas aquilo era algo em que ele pensaria mais tarde.
— Você denunciou?
— Não.
Ela apertou os lábios.
— Por quê? A escola precisa saber.
Ele sentiu um nó no estômago.
— Por favor, me deixe resolver do meu jeito.
Ela ficou rígida.
— E se envolver em outra briga com ele?
— Eu não vou brigar — Cash disse, sabendo que estava fazendo uma promessa que dificilmente conseguiria cumprir. — Não tenho certeza se foi ele quem fez isso. Isso pode até ter acontecido na faculdade. — Era mentira. — Não quero acusar ninguém sem provas. Se riscarem meu carro de novo, vou saber quem foi.
— E o que vai fazer quando souber?
— Não vou começar uma briga. Prometo.
A sra. Fuller soltou aquele suspiro triste e ele sentiu um aperto no peito, sabendo que a estava decepcionando novamente.
— Precisamos acionar o seguro do carro. Tenho certeza de que o conserto está coberto.
— Tudo bem. Vou dar um jeito. — Não importava que fosse importante para ele.
— Você não deveria resolver isso sozinho. Vou avisar Tony e você e ele podem decidir como solucionar isso.
Droga! Ele deveria ter mentido.
— Onde você conseguiu a câmera? — ela perguntou.
— Numa loja de peças automotivas. Paguei com o meu próprio dinheiro.
A sra. Fuller soltou outro longo suspiro.
— Você tem o nosso cartão de crédito. Poderia ter usado.
Sim, ele tinha e nunca usara. Nunca faria isso. Nunca tirava vantagem dos Fuller nem pedia a eles mais do que precisava.
— Já que está acordado, venha tomar café da manhã comigo. Estou fazendo ovos com torradas.
Ele queria recusar, mas sabia que ela ficaria chateada.
— Está bem.
— Fica pronto em cinco minutos — disse ela.
Ele instalou a câmera em três minutos e entrou.
— O sr. Fuller não acordou ainda? — perguntou Cash.
— Ele só tem paciente às nove, por isso está dormindo — disse ela.
— Você quer suco? — Cash perguntou.
— Por favor.
Quando ele se aproximou do balcão, viu algo ali, ao lado da bolsa da sra. Fuller. Sua respiração ficou presa.
— O que você está fazendo com isso? — Ele olhou para a foto de Emily com a progressão da idade.
— Alguém pegou a que estava no Walmart. Eu imprimi outra.
Cash olhou para a sra. Fuller enquanto ela fritava os ovos.
— Não fale nada. Tony já disse. — Ela tirou a frigideira do fogão. — Sei que as chances de encontrá-la são praticamente nulas. Sei que a foto que aquele homem me mostrou é provavelmente uma farsa. Mas que mal faz afixar esta naquele quadro?
Ela cruzou os braços.
— Adoraria saber quem a tirou de lá.
A culpa apertou o peito de Cash.
A sra. Fuller tirou a torrada da torradeira e a colocou num prato.
— Será que acharam que ela se parecia com alguém? Não consigo parar de pensar. E se for a pessoa que a levou? Todos pensam que ela está morta. Eu entendo. — Ela colocou a torrada na mesa. — Mas e se não estiver? — A sra. Fuller olhou para ele. — Eu não estou obcecada com isso. Eu só.... Que mal faria deixar uma foto naquele quadro?
Cash viu a dor nos olhos dela e se perguntou se ela e o sr. Fuller teriam discutido sobre isso. Cash os ouvira brigando depois que foram enganados. O marido queria que ela esquecesse. Ela o acusara de esquecer a filha.
— Sinto muito.
A sra. Fuller franziu as sobrancelhas.
— Eu sei. Não faça tempestade em corpo d’água, assim como Tony. Estou bem.
Ela não estava bem, pensou Cash. Tinha perdido a filha. Por que, depois de quinze anos, sua mãe adotiva ainda ansiava pela filha, enquanto a mãe dele tinha acordado uma manhã e ido embora?
Cash ouviu as palavras do pai: Ela não estava nem aí pra você.
O alarme toca e eu tropeço a caminho do banheiro, ainda meio dormindo. As luzes estão acesas na sala de estar. O aroma de café perfuma o ar. Eu diminuo os passos para espiar a minha mãe, sem a bandana, sentada no sofá. Está usando o roupão muito grande para ela e folheia um álbum de fotos. Ela vira uma página. Algo na lentidão do gesto demonstra o humor em que ela está.
E não é bom.
Esperando que eu esteja errada, vou fazer xixi. Então saio do banheiro e entro na sala de estar, imprimindo de propósito mais alegria à minha voz.
— Bom dia!
Ela ergue os olhos. Eu desanimo ao ver as lágrimas nos olhos dela. Espero que o e-mail do seguro-saúde com a lista de terapeutas chegue hoje.
Ao me aproximar, sinto como se estivesse entrando numa bolha de tristeza. Meu olhar se desvia para o álbum. Espero ver uma foto do meu pai, mesmo achando que eu tenha confiscado e escondido todas as fotos dele quando a encontrei arrancando-as do álbum e rasgando-as. Mas não é a foto do papai que ela está olhando.
É da minha avó, quando era mais nova. Eu me lembro dela.
Minha mãe enxuga uma lágrima da bochecha.
— Sonhei com ela.
Quando me sento ao lado da minha mãe, o sofá solta um assovio. Contemplo a imagem de uma mulher de cabelos castanho-claros, olhos verde-claros e um sorriso radiante. Pela primeira vez, percebo quanto minha mãe se parece com ela. No entanto, não a vejo abrir um sorriso tão grande faz muito tempo.
Ela vira a página. Há uma foto dos meus avós. Minha mãe era filha única e nasceu quando eles já tinham certa idade. O pai dela morreu logo depois que fui adotada.
Vovó morreu quando eu tinha 7 anos. Ela sempre vinha ficar conosco no Natal e nas férias de verão. Naquela época, minha mãe trabalhava em período integral no hospital e minha avó ficava cuidando de mim. Lembro-me dela sempre comendo e me oferecendo tangerinas; ela até cheirava a tangerina. Sempre lia para mim à noite e seus abraços eram bem apertados. Ela me chamava de Mosquitinho. Eu odiava insetos, mas sabia que era um apelido carinhoso.
Também me lembro de acordar uma manhã e encontrar minha mãe chorando na cozinha. Meu pai estava abraçado a ela. Ele então se afastou de minha mãe e me puxou para o lado e explicou que vovó tinha ido para o céu, por isso minha mãe estava triste. Eu me lembro de chorar naquele dia também. Eu amava minha avó. Iria sentir falta dos abraços de tangerina e das caras engraçadas que ela fazia quando lia para mim.
Agora, depois que quase perdi minha mãe, quero chorar de novo — mas pela minha mãe desta vez. Posso imaginar muito bem como é perder um pai ou uma mãe.
— Foi um sonho bom? — pergunto.
— Sim. Estávamos cozinhando. Descascando batatas e rindo. Eu ainda sinto falta dela.
— Aposto que sente. — Meu coração fica apertado. Eu toco a cabeça dela.
— Ei, está nascendo cabelo! Cabelo de verdade, não só uma penugem.
— Sim, eu também notei. — Ela sorri, mas seus olhos parecem cansados.
— A que horas você acordou?
— Estou acordada desde as três da manhã.
— Volte para a cama — eu digo.
— Não. Preciso me preparar emocionalmente para a minha entrevista.
— Ah, claro. — Aperto a mão dela. — Boa sorte.
— Minha entrevista é só às quatro e meia. Te vejo antes de sair. Vou precisar que você me lembre de que não tenho com que me preocupar.
Não, não vai dar! Vou me encontrar com Cash. As palavras estão na ponta da língua, mas não consigo empurrá-las para fora.
— Claro.
Droga. Droga. Droga. Estou murmurando baixinho vinte minutos depois, enquanto passo um pouco de brilho nos lábios. Por que não consigo apenas dizer boa sorte para ela agora? Minha mãe precisa viver a vida dela e, até que faça isso, vai ser difícil eu conseguir viver a minha. O pensamento de ir para a faculdade parece impossível. Vejo a imagem na minha cabeça: eu envelhecendo ao lado da minha mãe.
Olho para o meu rosto no espelho do banheiro e me pergunto se depressão é algo contagioso.
A verdade é que eu provavelmente estava deprimida antes do início das aulas. Mas ter um lugar para onde ir todo dia e talvez a emoção de encontrar Cash e, quem sabe, até me tornar a melhor amiga de Lindsey fizeram minha vida parecer mais divertida. Melhor. Menos amarga.
Isso me dá a esperança de que minha mãe sinta o mesmo com relação ao trabalho dela. Com o novo emprego e a terapia, talvez eu consiga minha mãe de volta.
Eu ouço Docinho choramingando na porta do banheiro. Abro e ele está ali, com a guia na boca.
— Desculpa, amigão. Tenho que ir para a escola. Talvez esta tarde.
Então percebo que, embora eu não consiga encontrar Cash logo após a escola, a entrevista da minha mãe vai durar tempo suficiente para eu vê-lo enquanto ela estiver fora.
— Você gostou de Cash, não gostou? Tudo bem se ele for conosco no nosso passeio, certo? — Docinho abana o rabo. Ah, eu podia ter esperança, no final das contas.
Era cedo quando Cash chegou à casa de Chloe. Ela tinha pedido que ele chegasse às quatro e meia, então ele estacionou quatro casas abaixo e esperou. Ele estava uma pilha de nervos e seus ombros estavam, rígidos.
Ele tocou no bolso da frente, onde estava a foto com a progressão da idade.
Como ele iria explicar aquilo? Chloe ficaria chateada? Será que o fato de descobrir sobre a foto a levaria a desvendar todas as outras mentiras dele? O pneu? O arquivo da escola? Cash continuava dizendo a si mesmo que na hora decidiria o que fazer. Mas não estava a fim de improvisar.
Precisando de algo com que se ocupar, começou a excluir alguns vídeos gravados do cartão de memória da câmera do carro. Não tinha conseguido nada ainda. Mas podia demorar um pouco até que os agressores ficassem decepcionados pela falta de reação dele e tentassem novamente. Isso é o que eles queriam. Uma reação. Paul queria que ele começasse uma briga. Então, ele poderia dizer: Veja, Cash começou essa briga e a anterior também.
Cash não ia dar a Paul o que ele queria. Na verdade, hoje ele havia se desviado do seu caminho habitual só para passar ao lado de Paul e seus amigos, e sorrira o tempo todo.
Ele sabia que isso irritava Paul.
Paciência é a chave. Espere as pessoas fazerem alguma coisa. Elas vão fazer alguma besteira. Sempre fazem.
De onde estava estacionado, ele viu Chloe andando com a mãe até o carro. Antes de a mãe entrar, Chloe a abraçou. Ele lembrou que a mãe dela tinha uma entrevista de emprego naquele dia.
A cena lhe pareceu estranha. Como se Chloe fosse a mãe, não a filha.
Mais uma razão para Cash se preocupar com a história toda de Emily. O tiro poderia sair pela culatra. A primeira reação de Chloe poderia ser defender a mãe. Não, ele não acusaria os pais dela de serem os sequestradores, mas isso estava implícito.
Seus instintos lhe diziam para adiar a revelação, mas haveria um momento melhor para contar tudo a ela?
Chloe observou a mãe ir embora. Quando ela se virou para voltar para dentro de casa, seu olhar se desviou para a rua. Ela colocou a mão na testa para bloquear o sol e olhou na direção do carro dele. Droga. Ela o viu.
Cash ligou o motor e parou na frente da casa de Chloe.
Sentindo-se culpado por espioná-la, ele saiu do carro com a cabeça baixa, ensaiando o que dizer.
— Eu cheguei cedo e não quis incomodá-la.
— Você não precisava esperar no carro. — Ela não parecia chateada. Cash percebeu que havia reconquistado a confiança dela. E agora estava prestes a destruir essa confiança.
Um sorriso iluminou o rosto dela. Uma brisa agitou seus cabelos. Era o clima perfeito para ir ao parque.
— Entre — Chloe disse. — Vou pegar Docinho.
Ele a seguiu para dentro. Ela se virou e olhou para ele. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos desde que tinham se beijado. Será que ela esperava que ele a beijasse agora? Ele queria. Tinha pensado tanto naqueles beijos... A lembrança estava tatuada em sua mente. Mas não parecia certo beijá-la novamente enquanto ele estava mantendo aquele grande segredo.
Ela chamou o cachorro. Um latido veio do quintal e ela deixou o cão entrar.
— Quer ir passear, amigão?
Ela pegou a guia e a prendeu à coleira do cachorro, então parou.
— Vou correr até lá em cima e pegar um cobertor para a gente se sentar.
Enquanto Chloe disparava para o quarto, ele foi dar uma olhada nas fotos de família, na mesa ao lado do sofá. Encontrou aquela com uma Chloe pequena segurando o gato. Ele percebeu outra coincidência. Tanto Chloe quanto Emily estavam com um vestido cor-de-rosa. Ele pegou o celular no bolso para tirar uma foto, mas ouviu passos e guardou o aparelho.
Um gato tigrado amarelo a seguia. Ele olhou para o animal se esfregando nos tornozelos dela. Os dois Félix eram idênticos. Seria por isso que a jovem Chloe tinha dado a eles o mesmo nome?
— Félix? — ele perguntou.
— Sim. Ele é um amor. — Ela largou o cobertor numa cadeira próxima e agachou-se para acariciar o felino. A camiseta que ela usava tinha um decote que lhe dava uma visão de parte dos seios. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.
— Félix, este é Cash — apresentou ela.
Chloe se levantou e ele mal conseguiu desviar os olhos para o gato. Ele pegou o cobertor e, enquanto saíam da casa, ela se inclinou para mais perto dele. O choque de prazer e de dor acertou-o em cheio. Apesar do desconforto gerado pela culpa, ele adorava tocá-la.
Quando chegaram ao parque, Docinho começou a saltitar. Cash pegou a guia e Chloe ficou com o cobertor. O parque estava quase vazio. Eles encontraram um local sob a sombra de uma árvore e ela estendeu o cobertor na grama.
— Posso tirar a guia dele? — Cash perguntou.
— Sim. Ele fica por perto.
Cash se sentou ao lado de Chloe e soltou o cachorro, que congelou no lugar como se estivesse hipnotizado pela bola nas mãos dela.
Ela jogou a bola e Docinho correu. Chloe sorriu.
— Já vou pedindo desculpas. Ele não vai dar sossego por causa dessa bola. Tem obsessão por ela.
— Tudo bem — disse Cash. — Estou começando a ter obsessão por Chloe, então posso entender.
Ela riu.
— Acho que estou começando a ter obsessão por Cash também.
— Ótimo! — ele disse.
Sorrindo, ela olhou para o céu.
— É um belo dia.
Cash seguiu o olhar dela até o céu azul salpicado de nuvens brancas e fofas.
— Sim.
Chloe se recostou no cobertor. O decote dela subiu o suficiente para que ele pudesse olhá-la sem ficar babando. Os cabelos longos e castanhos estavam espalhados ao redor dos ombros e o sol suave do entardecer iluminava o rosto dela.
Ele queria beijá-la e deixar a conversa para depois.
Os olhos castanhos dela encontraram os dele.
— Você ficava tentando encontrar figuras nas nuvens, quando criança?
— Encontrar o quê? — Cash perguntou, estava tão ocupado olhando para ela que não prestara atenção ao que Chloe dissera.
— Você sabe, tipo elefantes ou dragões. No céu. Agora mesmo vejo um cavalo.
Ela apontou para cima.
Ele tentou seguir o dedo dela.
— Tudo o que vejo são nuvens.
Chloe riu.
— Use a imaginação. Não vê a cabeça, as patas e a cauda atrás?
Ele tentou.
— Lamento, mas...
— Minha mãe e eu costumávamos ir para o quintal e ficar olhando o céu por horas, tentando encontrar coisas. Ela sempre levava um saquinho de Skittles. E, sempre que uma de nós encontrava algo, ganhávamos um vermelho. — Ela sorriu.
— Por que vermelho?
— Porque os vermelhos são os melhores. São doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Cash forçou um sorriso e novamente tentou ligar alguém que procurava formas em nuvens na companhia da filha com a imagem de uma sequestradora. Algo parecia errado.
— Você se lembra dos seus pais? — ela perguntou.
A pergunta o pegou desprevenido. Docinho veio correndo com a bola na boca. Cash pegou a bola, grato pela pequena interrupção, e jogou-a novamente.
— Da minha mãe, não. Do meu pai, sim.
— Como ele era?
Ele voltou a olhar para o céu. Um cretino.
— Acho que vi o cavalo.
Quando Cash olhou para Chloe, ela estava franzindo a testa.
— Você faz muito isso.
— O quê?
— Mudar de assunto. — Ela mordeu o lábio. — Você não gosta de falar sobre eles, não é?
— Na verdade, não.
Ele respirou fundo.
— Chloe, eu preciso...
— Eu sinto que você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre você.
— Eu não sei tudo sobre você — disse ele, tentando escapar da conversa.
— Você sabe que meu pai é um idiota que vive me enganando. Você sabe que meu namorado se chamava Alex e que minha mãe teve câncer.
— Que tipo de câncer? — Cash perguntou e, para seu crédito, ele queria mesmo saber. Tinha ouvido a sra. Fuller falar sobre cânceres que eram mais difíceis de curar.
Chloe sentou-se.
— Câncer de mama. — Ela puxou um joelho e o abraçou. Dava para perceber que era difícil para ela falar sobre a doença da mãe.
— Mas ela está livre do câncer agora, certo?
— Sim. Foi diagnosticado cedo. Minha avó teve câncer de mama, então minha mãe fazia mamografias anuais. Ela estava com medo de ter o gene do câncer.
— Gene do câncer? — Cash perguntou.
— Há um gene de câncer de mama hereditário. Ela fez o teste e foi comprovado que não o tem.
— Tenho certeza de que você ficou aliviada — ele disse, sem saber o que dizer.
— Bem, como ela não é minha mãe biológica, isso não me afetou.
As palavras de Chloe ficaram dando voltas na cabeça dele. Não é minha mãe biológica. Docinho veio correndo e deixou cair a bola ao lado de Cash. Ele o ignorou.
— Ela... não é sua mãe de verdade?
— Não. Eu sou adotada. — Ela puxou a outra perna para cima. — E lá vou eu de novo, falar de mim a você. Já que você conhece Alex, conte-me sobre sua ex-namorada.
Chloe é adotada? Isso significa...?
— Adotada?
— Não mude de assunto. Conte-me sobre sua antiga namorada.
Cash teve que se concentrar para responder.
— Eu namorei uma garota por alguns meses quando tinha 16 anos.
— Da escola particular?
— Não, ela morava em Langly.
— Como você a conheceu?
— Os pais dela têm uma casa no lago ao lado da casa de veraneio dos Fuller, mas...
Não é minha mãe biológica.
— O que aconteceu? — Chloe perguntou.
— Ela conheceu outra pessoa.
Ele precisava dizer a Chloe agora.
Antes que Cash pudesse dizer mais uma palavra, ela continuou.
— Você gostava dela?
— Não. Um pouco. Só namoramos por uns dois meses.
— E essa foi a única namorada que você teve? — O tom de voz de Chloe dizia que ela não iria desistir.
— Neste verão, saí com algumas universitárias.
— Garotas mais velhas? — As sobrancelhas dela se levantaram, como se aquilo fosse uma coisa ruim.
— Apenas um ano ou um pouco mais do que isso.
— Você ainda está saindo com elas?
— Não. Chloe, eu preciso...
— Há quanto tempo você mora com os Fuller?
Docinho bateu com a bola na perna dele. Cash a jogou novamente.
— Faz três anos.
Ela descansou a mão no braço dele. Seu toque enviou uma faísca de dor direto para o peito de Cash. Mas então, com a mesma rapidez, a centelha lhe deu prazer.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele colocou um dedo nos lábios dela.
— Pare de fazer perguntas. — O tom foi mais agudo do que ele pretendia. — Estou tentando te dizer uma coisa.
Ela fez uma careta.
— Ok.
Ótimo. Cash já a irritara e nem tinha começado a falar ainda. Ele passou a mão pelos cabelos.
— Eu só vou mostrar a você.
— Me mostrar o quê? — Ela inclinou a cabeça para o lado como um filhote de cachorro curioso.
Ele tirou do bolso a foto com a progressão da idade e entregou a Chloe. Ela desdobrou a foto. Examinou-a e depois olhou para ele.
— O que é isso?
Cash não viu o reconhecimento que ele esperava nos olhos dela.
O coração dele acelerou no peito.
— É uma foto de Emily Fuller com a idade que ela teria hoje.
— Emily Fuller, o mesmo sobrenome dos seus pais adotivos?
Cash assentiu.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Eu ainda não entendi por que você está me mostrando isso.
— É você. Não vê?
Chloe olhou para a foto novamente, os olhos arregalados.
— Não sou eu.
— Parece você.
— Não. Quero dizer, talvez um pouco, mas não... parece de fato.
Ela examinou a foto novamente.
Cash viu um vinco aparecer entre as sobrancelhas dela. Chloe estaria se reconhecendo agora?
Agora ela parecia preocupada.
— Os Fuller... deram o bebê deles para adoção?
12
— Não — diz Cash.
Estou tentando entender o que ele está dizendo. Olho para a foto. Não, não é uma foto, mas um desenho. Ou um desenho feito no computador. Um daqueles mostrados nas séries policiais da TV. Eu vejo uma semelhança, mas não é tão grande assim. Ou será que é?
— Então, não sou eu. Fui adotada.
Ele me olha como se pedisse desculpas.
— Ela foi sequestrada.
As palavras de Cash ecoam nos meus ouvidos e minha resposta vem imediatamente.
— Eu não fui.
— Quantos anos você tinha quando foi adotada?
— Espere. Você acha que...? Isso é loucura.
— Eu sei que é, mas apenas me responda. Quantos anos você tinha?
— Quase 3.
Os olhos dele se apertam como se isso provasse alguma coisa.
— Você se lembra dos seus pais de verdade?
— Não. Mas você não está escutando. Eu fui adotada.
— Chloe, Emily Fuller desapareceu dois meses antes de fazer 3 anos de idade.
Um sentimento desconfortável brota no meu peito.
— Eu fui adotada. Não sequestrada.
— Tem mais uma coisa. — Ele pega o celular, encontra algo e passa o aparelho para mim.
— Veja.
Com uma mão estou segurando a foto, com a outra, o celular dele. De repente, as duas coisas parecem pesadas.
Eu quase não olho para a tela, mas então crio coragem. É uma foto emoldurada minha quando criança, com Félix no colo.
— Por que você tirou uma foto disso?
— Chloe, essa é Emily Fuller. Tirei essa foto na casa dos Fuller.
— Não, esta é a foto que está na minha casa.
Eu olho para a imagem e percebo que estou enganada. Na foto que há em casa, estou de pé ao lado de um balanço.
— Ok, eu pareço com ela, mas isso não...
— O nome do gato é Félix.
— Hã?
— Você disse que deu ao seu gato o nome de Félix. O gato dos Fuller se chama Félix.
O ar fica preso no meu peito, uma grande bolha que pressiona meus órgãos.
— Muitos gatos se chamam Félix. Havia um desenho animado...
— Seus pais se mudaram para longe logo após dizerem que adotaram você.
Dizerem? A bolha torna-se dolorosa.
— Você acha que meus pais me sequestraram? Você está maluco.
Olho a foto novamente e meu polegar acidentalmente passa o dedo na tela. A imagem muda. Eu pisco e olho. É um formulário. Mas tem o meu nome.
— O que é isso? — Eu mostro para ele o celular.
Culpa transparece nos olhos de Cash.
— Seus arquivos escolares. Eu precisava descobrir se...
— Descobrir o quê? — Minha coluna vertebral se enrijece.
— Achei que você poderia estar tentando enganar os Fuller.
— Enganá-los? O que você quer dizer?
— Se você parecia com Emily, então talvez estivesse tentando extorquir dinheiro deles.
Eu inspiro uma lufada de ar, aumentando a bolha. Balanço a cabeça. Nada faz sentido. Fico sentada ali, sentindo o sol na minha pele e a acusação de Cash na minha cabeça.
— Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso? — Então me lembro do que Cash me disse naquele dia na loja de conveniência. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
— As pessoas fazem coisas assim. — A expressão dele é quase de irritação.
Mas ele não tem o direito de ficar com raiva. Eu tenho.
— Então é disso — gesticulo indicando o espaço entre nós — que se trata o nosso relacionamento? — Olho para a foto do formulário. Tem o meu endereço nele. — Você não estava dirigindo pelo meu bairro procurando o meu carro aquele dia. Você sabia onde eu morava.
Cash não responde. Não precisa. A expressão dele deixa transparecer a verdade.
— Você... Foi você quem murchou o meu pneu!
— Eu precisava me aproximar de você para descobrir.
— Nada disso é real! — A raiva cresce por dentro, eu não consigo me conter. Jogo o celular para ele e me levanto. — Você é um sem-noção.
Cash também se levanta.
Cubro os olhos com as mãos, vejo tudo escuro, depois lampejos de luz.
— Ah, Deus. Eu te beijei. Tiro as mãos do rosto e olho para ele. — Você... Você nem gosta de mim.
— Isso não é verdade. Eu te beijei também e depois te beijei mais quatro vezes. Eu não pretendia... me apaixonar por você, mas me apaixonei.
Pego a guia de Docinho.
— Vou para casa.
— Chloe, não. Vamos conversar.
— Não. — Eu levanto a mão. Chamo Docinho. Quando ele vem, coloco a guia nele.
Dou um passo. Cash pega meu braço.
— Vou te levar.
Eu puxo o braço.
— Não. Vou andando. — Preciso ficar sozinha. Eu preciso... — Eu não sei do que preciso, exceto que tenho que ficar longe dele. Longe das acusações absurdas.
Eu o ouço chamar meu nome, mas continuo colocando um pé na frente do outro. Eu fui adotada. Não... Não. Não é verdade. Não pode ser. Eu não acredito. Então me recordo da minha única lembrança: eu, sentada num sofá, olhando para um tapete sujo. Eu me lembro de me sentir tão perdida. Tão abandonada. Tão assustada.
Continuo andando. Meus joelhos estão tremendo, ou será que é o chão embaixo de mim que está estremecendo? Todo o meu mundo está estremecendo. Isso não pode ser verdade.
Eu caminho rápido. Docinho continua andando ao meu lado. O ruído de suas patas batendo na calçada enche minha cabeça. Cada vez que ouço um carro se aproximando, fico com medo de que seja Cash.
Meu celular toca. Eu ignoro. Ao me aproximar de casa, vejo o carro de Jamie estacionado em frente à casa de Lindsey. As duas estão nos degraus da varanda de Lindsey. Eu não quero falar com elas.
Sei que ainda estou segurando a foto que Cash me mostrou. Eu amasso a foto, vou jogá-la fora, mas mudo de ideia e a guardo no bolso. Saio da calçada quando estou em frente à minha casa.
— Chloe? — Alguém me chama da casa ao lado.
Eu ignoro e continuo andando. Procuro no meu bolso a chave da porta, ando até a varanda e rezo para que elas desistam.
Elas não desistem.
Eu as ouço subindo os degraus atrás de mim. Por favor, vão embora. Eu percebo que estou chorando.
— O que foi? — É a voz de Lindsey, mas ouço os passos de outra pessoa, então sei que Jamie está com ela. Jamie nem gosta de mim. Eu não quero que ela me veja chorando como um bebê.
— Eu não posso falar agora. — Abro a porta, coloco Docinho para dentro, fecho a porta na cara delas e corro para o meu quarto. Eu me jogo na cama e abraço um travesseiro com força suficiente para fazê-lo explodir. Félix pula no colchão, tentando se aconchegar a mim.
Eu não acredito, digo a mim mesma. Então, por que estou tão arrasada?
Digo a mim mesma que é porque fiz papel de idiota quando beijei Cash.
Meu celular toca. Ignoro.
Cinco minutos depois, ele toca novamente.
E de novo.
E de novo.
Arranco-o do bolso para desligá-lo, mas vejo que há uma mensagem da minha mãe.
Ah, ótimo! Verifico para ver o que ela diz, sabendo que não posso estar chorando quando ela chegar em casa.
Consegui o emprego! Preenchendo a papelada. Comprando comida chinesa para o jantar. Vejo você em uma hora.
Ouço uma batida na porta da frente. Merda! É Cash?
Olho pela minha janela, onde posso ver a rua. O carro dele não está em frente, mas não consigo ver quem está na varanda.
Meu celular apita novamente. É Lindsey.
Preocupada. Você está bem?
Eu mando uma mensagem de volta.
É você quem está na porta?
Sim.
Sozinha?
Simmm.
Eu enxugo o rosto, me obrigo a me levantar e vou até a porta da frente.
— O que há de errado? — Lindsey pergunta assim que eu abro a porta. Ela não aguarda um convite; simplesmente entra.
— É uma maluquice — eu digo.
— O que é uma maluquice? Cash fez alguma coisa?
Pego a foto amassada do bolso e a aliso para desamassá-la.
— Essa garota não se parece comigo, não é?
Lindsey pega o papel amassado, olha para ele e depois olha para mim.
— Parece, sim. O que é isso?
Meu peito aperta. Vou para a sala e me largo no sofá. Meu corpo parece mais pesado ainda.
— Você deveria dizer que não.
Ela se senta ao meu lado.
— Desculpa. Você deveria ter me dito isso antes de perguntar.
Eu respiro fundo. Ainda quero chorar, mas me seguro. Olho para Lindsey.
— Você não pode contar a ninguém.
— Eu não vou contar.
— Cash pensa... Ele acha que eu sou a filha desaparecida dos pais adotivos dele.
Ela olha para mim como se eu não estivesse falando coisa com coisa, o que me dá um pouco de esperança. Porque nada daquilo faz sentido. Não pode ser verdade.
— O quê?
— Ela foi sequestrada.
Os olhos de Lindsey se arregalam.
— Ele acha que você foi sequestrada?
Lindsey faz um som de bufar que é meio risada, meio descrença.
— Sim. É loucura. Eu acho que ele nem gosta de mim. Cash pensou que eu estava tentando enganar os pais adotivos dele, tentando extorquir dinheiro deles. Ah, e imagine só! Ele murchou meu pneu.
— O quê? — Lindsey repete. Então ela olha novamente para a foto.
— Ok, parece com você, mas... Isso é loucura.
— Eu sei. Quero dizer, sim, fui adotada, mas...
— Espera aí. — Ela se inclina para mais perto. — Você foi adotada?
— Sim.
Lindsey arregala os olhos.
— Ok, mas quando você foi adotada e quando essa garota desapareceu?
Eu franzo a testa.
— Na mesma época.
Ela olha para a foto novamente.
— Merda. — Quando Lindsey olha para mim, posso ver em seus olhos que ela está começando a acreditar.
— Não pode ser verdade. Meus pais não são sequestradores!
Ela faz uma careta e devolve a foto para mim.
— Você já procurou na internet?
— Procurou o quê?
— O sequestro?
— Não. — Eu me levanto. — Mas agora vou procurar. — Corro para o meu quarto, onde meu laptop está ligado.
— Você sabe o nome da garota? — Lindsey pergunta, me seguindo.
— Sim. — Sento-me na minha escrivaninha e coloco a foto de lado. Meu celular toca. Provavelmente é Cash. Eu o ignoro e digito na barra de pesquisa do Google: criança desaparecida Emily Fuller. Ao digitar o nome, sinto calafrios, como se isso significasse algo para mim. Mas não pode significar nada. Então ouço o nome na minha cabeça. Emily. Emily. Emily. Há uma familiaridade nele que eu odeio, mas não compreendo.
Clico no primeiro link, mas existe, tipo, uma dezena deles. O link se abre. Vejo a foto de uma garotinha. Uma garotinha que se parece muito comigo quando eu era pequena. Eu começo a ler. “Desaparecida em 3 de setembro de 2004.” Minha respiração fica presa na garganta. Eu fui adotada em 4 de setembro.
Lindsey está lendo por cima do meu ombro.
— Você só foi adotada quando tinha 3 anos de idade?
— Quase 3 — respondo.
— Isso é muito estranho... — A voz dela ecoa.
Eu olho para Lindsey.
— Não sou eu. Não pode ser.
Meu celular toca novamente.
— Merda. — Eu o pego, vejo o nome de Cash e desligo.
Nesse momento, a campainha toca.
Lindsey se vira como se planejasse atender.
Eu agarro o braço dela.
— Não. Não quero vê-lo.
— Cash? — ela pergunta, e vai até a janela.
— Não vejo jipe nenhum lá fora. É uma van com o logotipo de uma floricultura.
A campainha toca novamente. Vou até a porta da frente e abro. Um homem está ali, com flores nas mãos.
— Chloe Holden? — ele pergunta.
É uma dessas perguntas que eu não deveria ter que pensar para responder, mas agora penso. Na verdade, pensei muito nisso durante toda a minha vida. Em quem realmente sou. Em quem meus pais realmente são.
Em que eu poderia ter feito de errado, tão pequena, para que meus pais me dessem para adoção.
De repente, sei quem enviou as flores. E começo a chorar novamente.
Uma hora depois, minha mãe está falando sem parar. Estamos sentadas na cozinha. Eu dou uma mordida no frango xadrez que ela trouxe para casa.
— Eles me adoraram! — Ela está animada. Feliz. Por isso escondi as flores no meu quarto. Eu quase as joguei fora. Eu já tinha tirado o buquê do vaso e segurado as flores acima da lata de lixo, mas não consegui.
Ele é meu pai. E... ele não é meu sequestrador. Essa coisa toda é um erro.
Então por que não conto à minha mãe?
Abro a boca para contar, mas nada sai. Porque isso poderia perturbá-la? Porque talvez eu não esteja convencida de que não é nada? As datas. O gato chamado Félix. A foto. Droga.
— Ele me disse que, por ter tido câncer, eu poderia oferecer mais apoio aos pacientes.
Estou tentando ouvir, mas ela já está se repetindo. Estou olhando para cima, depois para baixo, com o garfo na mão, enquanto persigo uma castanha-de-caju pelo prato.
— É o trabalho perfeito para você. — Pego a castanha e coloco na boca. Mastigo. Engulo. Não consigo sentir o gosto.
Minha mãe deixa cair o garfo.
— Não coma demais. Comprei sorvete de chocolate.
— Hmm... — Empurro meu prato e falsifico outro sorriso.
— Eu só começo quando a outra enfermeira sair. O que pode demorar duas ou três semanas. Eu gostaria que fosse agora. Ela estende o braço para pedir o meu prato. — Eu já contei que comprei umas bebidas que servem como suplemento alimentar? Eu me pesei esta manhã. Perdi mais alguns gramas.
Sim, porque você não come quando está chateada e você está quase sempre chateada.
— Você deveria beber, tipo, três por dia.
— Duas.
Olho para ela e tenho medo de perguntar, mas preciso. Porque, mesmo que ela esteja feliz agora, tenho medo de que algo pequeno, como o vaso de flores escondido no meu quarto, possa mudar isso.
— Você já recebeu os nomes dos terapeutas?
— Sim. E marquei uma consulta também.
Estou chocada.
— Sério?
— Sim. E é amanhã. — Ela aponta o garfo para mim. — Alguém cancelou a consulta.
— Ótimo!
Ela olha para mim, toda maternal.
— Você está se sentindo bem?
— Sim.
— Seus olhos parecem inchados.
Meu estômago aperta.
— Estou bem. Levei Docinho para passear. Eu acho que é alergia.
Ela continua a olhar.
— Seu pai ligou de novo?
— Não. — Merda. Ela sabe que andei chorando. E eu posso ver que a felicidade escorre dos olhos dela à simples menção do meu pai.
Ela continua me olhando.
— Tem certeza?
— Eu não tenho falado com meu pai. — Essa confissão me provoca um pouco de culpa. Eu deveria ter ligado para ele depois que as flores chegaram.
Não liguei.
— O que a deixou chateada?
— Nada. Estou bem, mãe.
— O que o deixou tão chateado?
Cash olhou para a sra. Fuller, parada à porta da cozinha. Quinta-feira era o dia de o sr. Fuller acordar mais tarde, então estavam apenas os dois acordados. E como ele não quisera jantar na noite anterior, ela tinha certeza de que havia algo errado. E havia mesmo.
Cash queria ir para o quarto e terminar a lição de casa, mas eles tinham uma regra tácita: se ela estivesse em casa, ele só tinha permissão para ir para o quarto depois das oito. Mesmo se Cash tivesse dever de casa, esperavam que ele o fizesse na cozinha.
A sra. Fuller achava que era isso que havia de errado com os adolescentes de hoje em dia. Os filhos passavam muito tempo no quarto e não conviviam o suficiente com a família.
Não importava que ela não fosse da família de Cash.
Era uma regra idiota.
— Não estou chateado. Eu já disse a você que comi um hambúrguer.
Ela fez uma careta.
— Isso explica por que você não jantou. Mas por que parece tão desanimado?
Porque magoei Chloe. Cash deveria ter pensado melhor antes de falar com ela. Ele deveria ter...
— É a lição de casa. Eu odeio resolver problemas de matemática.
A sra. Fuller se sentou.
— Eu posso ajudar. Não sou tão boa quanto Tony, mas...
— Não. — Ele olhou para o livro.
Cash a sentiu olhando para ele.
— Algo está aborrecendo você, Cash.
— Eu só preciso terminar isso.
Ela estendeu a mão e ergueu o queixo dele e o olhou direto nos olhos. O toque dela doía, como o de Chloe havia doído aquele dia mais cedo.
— Eu me preocupo com você. — Ela o olhou como se estivesse tentando ler a alma dele.
Cash não queria ninguém vendo o que havia na sua alma.
— Pare de tentar me psicanalisar.
Ela deixou cair a mão.
— Na outra noite, quando você veio à sala de jantar, eu estava sofrendo e você me ajudou. Não acho que me lembrei de dizer obrigada.
— Não há de quê — Cash disse, sem saber por que ela estava fazendo aquilo.
— Eu quero fazer o mesmo por você. — O suspiro dela encheu o cômodo. — Mas você não nos conta os seus problemas. Você nos afasta. Eu quero fazer as coisas direito.
Você não pode fazer direito.
— Eu já disse que estou bem. — Um dia ele teria que contar aos Fuller sobre toda aquela história de Chloe/Emily, mas não enquanto Chloe estivesse chateada. E não até que Cash tivesse certeza absoluta de que estava certo. No caminho para casa, ele tinha pensado nas palavras de Chloe. Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso?
O tipo dele. Cash fez isso. Ele se lembrou da dor profunda que viu nos olhos da mulher quando ele mentiu sobre ser o filho dela.
Cash tinha que ter certeza de que estava certo sobre Chloe ser Emily antes de contar aos Fuller.
Ele tinha que acabar com aquela raiva de Chloe para que pudessem descobrir a verdade. Mas como, se ela não estava nem mesmo respondendo às suas mensagens?
— Você não está bem — disse a sra. Fuller. — É como se achasse que não nos importamos. Nós te amamos.
Ele deixou cair o lápis.
— Pare. — A mesma frustração que Cash tinha sentido com Chloe brotou dentro dele.
— Parar o quê?
— Isso que está fazendo. Me desculpe, não posso ser o que você quer que eu seja. — Ele fechou o livro com força.
Os ombros da sra. Fuller afundaram.
— O que você acha que eu quero que você seja, Cash?
A resposta saiu sem que ele pudesse detê-la.
— Seu filho! Eu não sou seu filho!
A dor ficou estampada na expressão dela e ele quis dar um chute em si mesmo.
Cash olhou para o relógio do forno.
— São cinco para as oito. Posso ir para o meu quarto?
Ela assentiu.
Ele saiu da cozinha, mas não rápido o suficiente para não ouvir o suspiro de decepção da mãe adotiva.
Droga! Ele nunca fazia nada certo.
13
Eu estaciono na escola na manhã seguinte. Lindsey falou o caminho todo até aqui. Fazendo perguntas que não sei responder. Mas não fico irritada, porque são perguntas que eu preciso fazer a mim mesma. Emily Fuller tinha alguma marca de nascença? Havia algum suspeito? Havia descrições dos suspeitos?
Eu não voltei ao computador ontem à noite. Não consegui. Em vez disso, li um livro. Fiquei acordada e li um romance inteiro sobre vampiros e metamorfos, porque a história era muito distante da minha própria realidade. Eu queria ser transportada para longe da minha vida. Porque a minha vida é uma insana caixa de Pandora e, se eu abri-la, tenho medo do que vou encontrar.
Eu acabo de estacionar e olho para os prédios da escola. Estou cansada. Acho que dormi uma hora, talvez. Graças a Deus é sexta-feira. Pego minha bolsa e a mochila e percebo que não vou conseguir enfrentar isso também. Não vou conseguir passar o dia fingindo que está tudo bem. Não vou conseguir enfrentar Cash. Eu não tive nem coragem de ler as mensagens dele ainda.
— É isso, não vou para a escola — deixo escapar.
— Sério? — Lindsey pergunta.
— Quero pesquisar sobre Emily Fuller. — Por que toda vez que digo esse nome, sinto um déjà-vu? Emily. Emily. Emily.
— Eu tenho prova — diz Lindsey —, mas...
— Não — eu digo. — Preciso ficar sozinha. — Fui rude com ela? — Não é nada com você. Eu é que tenho que digerir essa coisa toda. Preciso ler todos aqueles artigos.
— Sua mãe não está em casa? — ela pergunta.
— Eu vou à biblioteca.
Ela parece preocupada.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Eu confirmo com a cabeça.
— Venho buscá-la depois das aulas.
— Não. Vou pedir para Jamie me levar para casa. — Ela me abraça. — Vai ficar tudo bem.
Como?, quero perguntar. Só vai ficar tudo bem se eu descobrir que nada daquilo é verdade. E mesmo assim, não vai ficar assim tão bem. Minha vida está uma bagunça.
O sr. Fuller tinha, por fim, ido falar com Cash sobre o fato de o jipe ter sido riscado. A conversa quase atrasou Cash para a escola. Ele mentiu sobre não saber onde o vandalismo tinha acontecido. O sr. Fuller insistiu em denunciar o estrago ao seguro, mas não estava obrigando Cash a fazer denúncia na escola. No entanto, ele teve que fazer ao pai adotivo a mesma promessa que fizera à mãe. Que, se ele flagrasse algo na câmera, resolveria o problema sem brigas. Manter essa promessa não seria fácil, mas Cash pretendia tentar.
O sr. Fuller não havia mencionado nada sobre o comportamento rude de Cash com a sra. Fuller. A mãe talvez não tivesse contado ao marido. Provavelmente porque temia que o sr. Fuller expulsaria Cash de casa. Será que ela sabia que os dois estariam melhor sem Cash? Ele se sentia um mau caráter por magoá-la. Por que tinha se transformado naquele cretino?
Estresse. Preocupação com Chloe. O fato de estar chateado com o vandalismo que Paul fizera no jipe que os Fuller lhe haviam dado. O jipe que ele não merecia. O jipe que era a única coisa nova e perfeita que ele já tivera na vida.
Cash não via a hora de a primeira aula acabar, pois estava desesperado para ver Chloe. Esperou até Literatura Americana para encontrá-la antes que ela entrasse na segunda aula — na esperança de que ela falasse com ele. Chloe não apareceu.
Antes que o sinal tocasse, ele foi para a ala leste da escola, onde ficava o armário de Lindsey.
— Ei — ele chamou quando a viu.
Surpresa, ela apertou os olhos.
— Oi.
— Você sabe onde Chloe está? — ele perguntou.
Lindsey franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Espero que você não esteja brincando com ela.
Agora era a vez dele de se surpreender.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer! A vida dela já não está fácil. A perda do namorado, o divórcio dos pais e o câncer da mãe, e agora você despeja em cima dela aquela história de ela ter sido sequestrada.
Ele não tinha dito a Chloe para não contar a ninguém, mas ficou chocado ao descobrir que ela havia contado.
— Eu preciso falar com ela. Onde ela está?
— Ela não veio à escola. Disse que precisava pesquisar tudo que pudesse encontrar sobre o sequestro.
— Ela trouxe o laptop? — Cash perguntou.
Lindsey franziu a testa de novo.
— Hã?
— Ela está com o laptop?
— Por quê...?
— A mãe dela provavelmente está em casa, então Chloe não iria querer fazer essa pesquisa lá. Se não está com o laptop, isso significa que está na biblioteca.
A expressão de Lindsey confirmou seu raciocínio.
— Não fui eu que disse. — As palavras dela o perseguiram pelo corredor enquanto Cash desaparecia em meio à multidão.
É como se o silêncio da biblioteca estivesse pesando sobre mim. A cada dois minutos, olho por cima do ombro, com medo de que alguém esteja observando o que estou lendo, vendo as imagens, me vendo. Por razões que não posso entender, estou com medo. E não apenas da verdade. É o tipo de medo que sentimos quando imaginamos um monstro embaixo da cama.
Eu tento afastar isso. Olhando para o computador, não consigo acreditar que existam tantos artigos sobre o sequestro de Emily Fuller.
Mesmo que seja coincidência, não consigo deixar de me perguntar como meus pais não viram as fotos ou as reportagens e não acharam que eu parecia com Emily.
Termino o oitavo artigo. Meu coração está apertado e meus nervos, à flor da pele. Quando respiro, meu coração bate na garganta. Me esforço para não chorar. Clico num vídeo e coloco os fones de ouvido que estão ao lado do computador. Antes de apertar o botão, olho para o rosto de uma mulher na tela. Seus cabelos escuros, olhos azuis e feições me hipnotizam. Eu não quero ver, mas não consigo desviar o olhar. Eu me pareço com ela.
Minha respiração fica presa na garganta. Durante toda a minha vida, tentei não me perguntar como seria a minha mãe biológica. Eu tentei não ficar ressentida, porque tenho uma mãe, uma mãe que me ama. Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe biológica não me amar. De ela simplesmente me entregar para alguma agência de adoção. E nessa única lembrança que tenho de mim mesma, chorando, sei que estou sentindo falta dela.
Eu sempre disse a mim mesma que não importava que ela tivesse desistido de mim, mas o abandono sempre esteve ali, me assombrando, roubando a felicidade do meu coração. Sempre me fazendo me perguntar o que havia de errado comigo.
Mas e se ela não tivesse me dado para adoção? E se, no final das contas, ela me quisesse?
Na minha cabeça, vejo a imagem da minha mãe adotiva, quase careca e magra demais, num roupão cor-de-rosa folgado. Por que sinto como se a estivesse traindo? Um nó se forma na minha garganta. Eu aperto o play.
“Por favor, por favor, não machuquem o meu bebê.” A voz dela soa na minha cabeça como música. É familiar ou minha mente está me iludindo? “Ela é uma boa menina", continua a mulher. “Ela é feliz, meiga e inteligente.” Há tanta dor na voz dessa mulher que ela vaza do computador e penetra a minha pele, o meu peito e se enrodilha como uma bola de elásticos prestes a se desenrolar. “Por favor, não machuquem meu bebê. Por favor, devolvam a minha filha. Eu não consigo nem respirar sem ela.”
Lágrimas escorrem pelas bochechas dela. Lágrimas estão escorrendo pelas minhas bochechas. Eu não me preocupo em enxugá-las. Isso dói. Dói tanto...
Como é possível? Isso é uma loucura. É um absurdo. Tem que ser um engano.
Alguém se senta ao meu lado. O medo me domina. Um grito sobe até a minha garganta. Eu me sobressalto, depois vejo Cash através das lágrimas.
Arranco os fones de ouvido.
— Chloe, por favor, vamos conversar.
Pego minha bolsa e minhas anotações e saio correndo da biblioteca. É apenas Cash, mas o medo paira sobre mim. O monstro embaixo da cama está lá fora.
Calafrios percorrem minha coluna como aranhas.
Escuto passos atrás de mim. É apenas Cash, mas percebo o meu coração batendo na garganta, enquanto ouço a voz dele implorando. Há um zunido nos meus ouvidos. Lágrimas deslizam por minhas bochechas. Um medo infundado, inexplicável, me envolve.
Chego ao meu carro e percebo que tenho que procurar as chaves. Antes que eu possa colocar a mão na bolsa, Cash está parado na minha frente.
— Precisamos conversar!
A bola de elásticos no meu peito começa a se soltar. Um. Dois. Três. Pop, pop, pop. Eles machucam minha pele.
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto.
— Você não estava na escola.
Eu pisco.
— Você foi à minha casa? Se você tiver dito algo sobre isso à minha mãe... — Coloco o dedo no peito dele. — Se você tiver feito isso...!
— Eu não fiz nada.
— Ela já está sofrendo demais. Você não vai contar...
— Não vou. Pode acreditar.
Eu balanço a cabeça.
— Claro, como se você nunca tivesse mentido para mim nem nada.
Cash segura as minhas mãos.
— Você está certa. Eu menti. Meti o pé pelas mãos. Não sabia como dizer a você. Desculpe.
Começo a vasculhar a bolsa, procurando as chaves.
— Mas, Chloe, eu sei que você tem perguntas e eu posso responder muitas delas.
Balanço a cabeça mais uma vez.
— É um equívoco — eu digo e gostaria de acreditar nisso. Gostaria que o nome Emily não fosse tão familiar para mim. Queria que a voz da mulher no vídeo não continuasse ecoando no meu ouvido. Gostaria que esse medo louco desaparecesse. — Tem que ser um equívoco.
— Sei que é difícil. E talvez seja um equívoco. Mas vamos descobrir.
— Como? — pergunto a ele, em um tom de voz muito alto. — O que você quer que eu faça? Vá até a minha mãe e pergunte: “Ei, você me sequestrou?” — Eu fecho as mãos em punhos apertados. — Você não viu como a minha mãe está? Ela não está nem comendo direito, porque está deprimida. Isso a mataria!
Volto a vasculhar minha bolsa.
— Onde estão minhas malditas chaves? — Meu coração está batendo tão rápido que o meu peito vibra.
Vou até o capô do carro e despejo o conteúdo da bolsa em cima dele. Minha carteira, meu celular, pó compacto, um absorvente interno e algumas moedas soltas caem da bolsa e deslizam pelo capô. Eu olho minhas coisas, nada. Não acho minhas chaves. Devo ter deixado na biblioteca.
Pego minha carteira, a única coisa sem a qual não posso viver, e começo a voltar para a biblioteca.
Ele caminha ao meu lado.
— Chloe, por favor. Venha se sentar no meu jipe e vamos conversar. Podemos investigar isso juntos.
Eu o encaro.
— Talvez eu não queira descobrir a verdade.
Os olhos verdes dele se fixam em mim.
— Você está chateada. Está chorando e, se for à biblioteca, vão achar que algo está errado. Venha se sentar no meu jipe. Eu vou encontrar as suas chaves.
Seu tom de voz tranquilizador me contagia. Passo a mão no rosto.
— Ele está logo atrás de você. — Cash enfia a mão no bolso e eu ouço um sinal sonoro quando a porta do jipe se abre. — Entre. Vou encontrar suas chaves, ok?
Eu obedeço. Não sei por que, mas eu me viro e entro no jipe. Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos. Mas então abro os olhos com a sensação de que alguém está do lado de fora, me olhando pela janela. Mas não há ninguém ali.
Fico sentada no carro, respirando. Só respirando. Em alguns minutos, ouço Cash voltar para o jipe.
Levanto a cabeça.
— Encontrou?
— Sim — ele diz, mas não vejo nada nas mãos dele. — Podemos conversar? Por favor.
Quero insistir para que ele entregue as chaves, mas a lógica intervém.
— Eu não sei o que dizer.
— Então deixe-me dizer outra vez que sinto muito. — Ele parece tão sincero. — Não sei como poderia ter lidado com isso de forma diferente, mas obviamente meti os pés pelas mãos.
— Não brinca, Sherlock!
Ele sorri, depois volta a ficar sério e parece culpado.
O som dos carros passando e da vida acontecendo ecoa do lado de fora do jipe, mas, ali dentro, tudo está silencioso. Eu respiro outra vez e tento afastar o pânico que cresce dentro de mim.
— Sério, como você me encontrou aqui?
— Quando vi que você não estava na escola, perguntei a Lindsey. Ela disse que você queria pesquisar sobre o sequestro. Com sua mãe em casa, imaginei que o único lugar para fazer isso era a biblioteca.
Eu balanço a cabeça confirmando, depois puxo o quebra-sol do carro para baixo e me olho no espelho. Ele tem razão. Eu pareço chateada. Esfrego os dedos no rosto e limpo pelo menos parte da maquiagem borrada. Então olho para as minhas feições e me lembro do rosto no vídeo. Do rosto dela. Minha mente recapitula o que acabei de ler. Lágrimas enchem meus olhos.
Eu me reclino no assento.
— Meus pais nunca teriam me sequestrado. — Olho para ele.
Eu posso ver que Cash tem dúvidas. Mas como posso ficar chateada com ele quando existe uma pequena parte de mim que...
— Então vamos investigar a adoção. Você sabe o nome da agência?
— Não — eu digo.
— Você sabe se eles são da região, de algum lugar próximo daqui?
— Acho que sim.
— Existe alguma maneira de você encontrar o nome da agência? Sua mãe tem documentos ou algo assim?
Lembro-me vagamente de um dia em que minha mãe encontrou esses documentos quando estava procurando a apólice de seguro da minha avó. Mas isso foi há muito tempo.
— Sim, mas não sei se ela não os deixou na casa do meu pai.
Ele balança a cabeça. Mais dúvidas.
— Talvez você possa dar uma olhada na sua casa.
— Sim.
— E a sua certidão de nascimento?
— Isso ela tem. Usou para me matricular na escola. Mas eu já vi. Lá está escrito que sou Chloe Holden e que meus pais adotivos são meus pais. E que nasci em 18 de novembro.
— Em que lugar você nasceu?
— Eu não sei. — Algo me ocorre. — Você não contou... a eles, para os Fuller, não é?
— Não. Acho que precisamos ter certeza antes de contar. Se eles pensarem que você é Emily e depois... você descobrir que não é, isso os fará sofrer muito.
Eu fecho os olhos por um segundo. Fico curiosa.
— Como eles são?
Cash olha para mim e vejo compaixão nos olhos dele.
— Eles são... legais. Muito bondosos. Rigorosos. Muito rigorosos. — Ele suspira. — São melhores que a maioria das pessoas. Muito melhores.
Ao ouvir a resposta de Cash, compreendo muito do que ele sente. Amor, respeito e algo mais que não consigo definir, mas estou muito sobrecarregada para perguntar agora. A verdade é que tenho tantas outras perguntas... Um dos artigos dizia que ambos estavam na faculdade de medicina quando a filha foi levada. Eu quero saber qual é a especialidade deles. Se os Fuller já disseram a Cash alguma coisa sobre Emily. Eles ainda sentem falta dela? Tenho algum trejeito da filha deles? Mas tenho medo de desmoronar se perguntar. Então não faço isso.
— Você não se lembra de nada antes de ser adotada? — Cash pergunta.
Eu quase lhe conto sobre a lembrança que tenho, mas estou muito perturbada para falar sobre isso.
— Quase nada.
— Você estava assistindo ao vídeo. A sra. Fuller lhe parece familiar?
— A voz... — Um nó de emoção se forma na minha garganta. — Eu não posso acreditar. Tem que haver um engano.
— Então vamos provar que há um engano.
— Como? — Fecho a mão num punho apertado.
— Há um arquivo na mesa do sr. Fuller, onde eles guardam uma cópia de todos os artigos. Vou tentar encontrá-lo e tirar fotos para termos cópias de tudo. Isso pode ajudar. Você procura os documentos da adoção.
— E se eu não conseguir? Não vou perguntar...
— Vamos descobrir.
— Você acredita que eles me sequestraram, não acredita? — A dor dentro de mim duplica de tamanho.
— Eu não sei no que eu acredito — ele diz. — Mas, juntos, podemos encontrar a verdade.
Meu punho aperta mais forte.
— Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.
— Chloe, se você for Emily e seus pais a tiverem sequestrado, eles merecem...
— Eles não me sequestraram!
— Então por que não é uma boa ideia? Você quer respostas, não quer?
Eu quero. Acho que quero.
— Talvez eu não queira.
— Como você pode não querer saber a verdade?
— Minha vida já está de ponta-cabeça. — Mais lágrimas se acumulam nos meus olhos. — Eu tenho que ir. — Saio do jipe, olho para o meu carro estacionado perto e então me lembro de que ele está com as minhas chaves. Eu só fico parada ali.
Ouço quando Cash sai do jipe. Ele anda até ficar na minha frente.
— Quando você quiser conversar, me ligue, ok? — Cash parece preocupado e parte de mim quer abraçá-lo e chorar no ombro dele.
Em vez disso, só balanço a cabeça.
— Trabalho hoje à noite na oficina, mas saio por volta das oito. Poderíamos comer uma pizza.
— Não — eu digo.
Ele me entrega as minhas chaves.
Elas estão pesadas. Meu coração está pesado com a possibilidade de que eu seja Emily Fuller. Que meus pais nunca tenham desistido de mim. Que aquele monstro, o monstro embaixo da cama, tenha me tirado deles.
Entro no meu carro e saio do estacionamento. Não sei para onde estou indo, mas dirijo assim mesmo.
14
Cash observou enquanto Chloe se afastava. Aquilo ia de mal a pior! O que ele está fazendo de errado? Como ela poderia não querer respostas?
Então se lembrou do teste de DNA que ele nunca tinha olhado. Os Fuller haviam feito para ele no ano anterior, caso ele quisesse procurar a mãe biológica. O pai dele sempre dissera que a mãe tinha simplesmente acordado um dia e ido embora, abandonando-o. A sra. Fuller questionou essa história:
— Você não sabe, seu pai pode ter tirado você dela, como a pessoa que levou Emily.
A mãe adotiva tinha razão, mas Cash ainda não havia se convencido disso. Ele tinha medo de saber a verdade. Medo de como se sentiria ao descobrir a verdade. Era isso que Chloe estava sentindo? Às vezes o que você não sabe é mais assustador do que aquilo que você sabe. Mesmo que aquilo que você saiba já seja bastante assustador...
Ele ficou no estacionamento por uns bons trinta minutos, apenas remoendo as coisas. Sem saber se deveria voltar para a escola ou simplesmente ir para casa.
Quando resolveu ir para casa, sentiu um buraco no estômago. Ele não havia jantado na noite anterior nem tomado café da manhã, e estava morrendo de fome. Então parou numa loja de conveniência onde havia um McDonald’s. Enquanto andava pelo corredor de doces da loja, viu sacos vermelhos brilhantes de Skittles e lembrou de Chloe falando sobre os Skittles vermelhos. Eles são doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Ele pegou quatro pacotes.
Passei o resto do dia encolhida num banco do Whataburger. As cores brilhantes da hamburgueria e os fregueses alegres afugentam o medo infundado de antes. Lutando para ficar acordada, começo a navegar pelas páginas do Facebook dos meus antigos amigos e constato que todas as pessoas da minha antiga vida estão ótimas enquanto a minha vida fica cada vez mais insana. Visito a página de Alex. Ele adicionou várias fotos dele e de Cassie.
Depois procuro alguns dos meus autores favoritos e compro outro livro de vampiros para quando eu não conseguir dormir. Em seguida, leio alguns artigos on-line sobre como descobrir se um cara está saindo com você só porque quer sexo.
Eu queria que existisse um artigo que explicasse se um cara está saindo com você só porque acha que você é a filha dos pais adotivos dele. Que raiva! Então, quando penso em Cash, resolvo checar as mensagens não lidas que ele me enviou ontem.
São catorze.
Uma delas queria me lembrar de que a culpa não era dele.
Duas eram pedidos de desculpa, uma delas por ter enviado a mensagem de que a culpa não era dele.
Três eram para me avisar de que esqueci meu cobertor com ele. Duas eram para perguntar se ele podia me entregar.
Sete eram variações de Me ligue.
E uma mensagem muito longa era para dizer que eu tinha entendido tudo errado. Ela dizia: Você está errada em pensar que não gosto de você. Achei você linda desde o instante em que trombou comigo e derramou toda a minha raspadinha. E você chamou minha atenção no ato. Então vi quem você era e tentei não pensar que você era linda. Mas não consegui. Então comecei a conversar com você e vi que, além de linda, você é engraçada e inteligente, e não consegui deixar de gostar de você. A única razão pela qual não beijei você primeiro foi porque eu estava com medo de que pudesse interferir no que eu estava prestes a te contar. E isso de fato aconteceu. Mas ainda gosto de você. E quero te beijar novamente. E de novo.
Essa mensagem me tocou. Droga. Gosto dele também. E se a minha vida não fosse um caos, eu estaria pulando de alegria, porque também gosto muito de Cash.
Meu celular toca e chega uma figurinha da palavra “Olá” escrita em vermelho, com a mesma fonte usada no pacote de Skittles. A próxima mensagem diz para ligar para ele quando eu tiver vontade de conversar. E depois: Eu sei que isso é difícil.
A emoção forma um nó na minha garganta. Pego minhas batatas fritas frias, escrevo com elas a palavra “Oi”, tiro uma foto e escrevo que vou entrar em contato à noite.
A resposta é outra foto: um Skittles com um rosto sorridente.
Sim. Eu realmente gosto de Cash.
No mesmo horário em que as aulas acabaram, fui para casa com um humor muito melhor do que quando saí, mas no momento em que entro em casa e vejo minha mãe, com lágrimas nos olhos, sentada na mesa da cozinha com as flores que escondi no meu quarto, meu humor despenca.
— Por que você mentiu para mim?
— Não menti — digo.
— Você não me disse que recebeu essas flores.
— Isso não é mentir.
— Bem, você me fez mentir! Liguei para o seu pai e dei uma bronca nele por se esquecer de lhe enviar alguma coisa. Ele jurou que enviou. Então eu encontrei as flores. Por que não me disse?
— Porque eu estava com medo de chatear você. Justamente o que está acontecendo. — Meu coração está batendo na boca e eu não preciso disso agora. Quando poderei levantar as mãos no ar e gritar “Chega!”?
— Você não pode esconder as coisas de mim! — ela retruca.
— Eu não estava...
— Seu pai está bravo por você não ter ligado para ele. Me acusou de fazê-la ficar contra ele. Vem vê-la amanhã. Mas eu não quero colocar os olhos nele novamente! Ele é um cretino. — Então vai para o quarto, batendo a porta.
Largo a bolsa e a mochila na mesa da cozinha e me jogo na cadeira. Chego à conclusão de que a sessão de terapia não adiantou muito.
Meu peito aperta, um nó se forma na minha garganta e estou chorando. Fico apenas sentada ali e tento não seguir minha mãe até o fundo do poço, onde tudo que existe é a depressão.
Nessa noite, troco mensagens com Lindsey. Ela quer que eu vá à casa dela, mas eu não tenho condições.
Estou prestes a ligar para Cash quando minha mãe bate na minha porta. Ela enfia a cabeça pelo vão. Vejo um pedido de desculpas em seus olhos.
— Posso entrar?
Eu deixo.
Ela se aproxima e se senta na beira da minha cama.
— Sinto muito. Novamente.
Eu assinto. O que devo falar? Eu não perdoo você? Estou cansada de tudo isso? Você me sequestrou? A última pergunta, que dá voltas na minha cabeça, bate fundo no meu peito.
— Obrigada pelo macarrão com queijo — diz ela.
Eu havia preparado o macarrão e deixado um prato sobre o fogão.
— Você tomou uma daquelas garrafinhas que fazem bem à sua saúde?
— Não, mas vou tomar.
Ela toca a minha mão.
— Sou uma péssima mãe.
No momento, isso é verdade. Mas, antes que meu pai a abandonasse, antes do câncer, ela era incrível. Então balancei a cabeça, dizendo que não. De todos os meus amigos, eu sempre soube que eu era a que tinha mais sorte quando se tratava de pais. Eu me sentiria tão amada se eles fossem sequestradores de crianças? Acho que não.
Percebo que minha mãe está me olhando.
— Como foi a terapia?
— Difícil. A terapeuta disse que tenho muita raiva.
— Você tem.
— Vou começar a ir uma vez por semana. Vou melhorar.
— E os remédios? — pergunto.
— Vamos tentar sem eles a princípio. Vou começar a fazer caminhadas todos os dias.
Eu tento não ser pessimista, mas quero gritar, Caminhadas não vão resolver!
— O terapeuta também acha que vou melhorar quando começar a trabalhar. Você sabe, sair de casa e ter algo em que pensar, além do câncer e do cretino do seu pai.
O comentário sobre o meu pai me incomoda, mas pelo menos ela está fazendo terapia e falando sobre isso.
— E se você não quiser ver seu pai, não precisa fazer isso.
Minha mente dispara. Eu não estou com vontade de vê-lo, mas não quero que a minha mãe sinta que tem o poder, consciente ou subconsciente, de determinar se quero vê-lo ou não.
— Eu vou vê-lo.
Decepção transparece nos olhos dela. Mas minha mãe assente.
— Encontrei um bom filme. Uma comédia. O terapeuta sugeriu que eu comece a rir mais. Quer assistir comigo?
— Sim. Só preciso fazer uma ligação primeiro.
Seu tom de voz fica mais agudo.
— Para o seu pai?
— Não. Cash. — Vou falar com meu pai quando ele vier, mas só de pensar nisso, já me encho de pavor.
— Você gosta dele, não gosta?
— Sim. — Admitir é difícil.
— Apenas tenha cuidado. Os homens podem apunhalá-la pelas costas. — Depois de falar isso, ela sai do meu quarto.
Que conselho maternal mais doce e acolhedor... Eu volto para a cama. Penso em Cash e lembro como doeu quando meu pai foi embora. Lembro como doeu me afastar de Alex. Lembro que preciso ir para a faculdade no próximo ano. Lembro de minha única memória de quando eu era pequena, de ser arrancada da minha vida. Odeio esse sentimento e, se eu chegar perto de Cash, vou me sentir assim novamente. Já vou me sentir assim com Lindsey.
Tenho muitas razões para proteger meu coração, para não me deixar me apaixonar por Cash. Razões que nem incluem a suspeita dele de que eu seja Emily Fuller.
Volto a ouvir a pergunta que ele me fez antes.
Como você pode não querer saber a verdade?
Meu celular toca. Pensando que é Cash, meu coração dá um salto. Não é ele.
Antes de atender, verifico se minha mãe fechou a porta.
— Oi, pai.
— Como foi o seu dia? — a sra. Fuller perguntou quando Cash chegou em casa do trabalho e entrou na cozinha. O plano dele era subir as escadas e ir para o quarto, começar a lição de casa e decidir se iria tomar a iniciativa e ligar para Chloe ou esperar e deixar que ela fizesse isso.
— Ok — Cash respondeu, lembrando que ele e a mãe não tinham terminado a conversa de um jeito muito amigável na noite anterior.
— Posso fazer um sanduíche?
Ela franziu a testa e ele sabia por quê.
— Eu quis dizer, vou fazer um sanduíche. — A sra. Fuller odiava quando ele perguntava se podia fazer alguma coisa. Ela dizia que era um sinal de que ele não se sentia em casa. Ela estava certa. Cash não se sentia mesmo. Sim, ele gostava muito dos Fuller, mas não podia deixar de se perguntar se os dois não mudariam de ideia sobre ele se soubessem de todas as coisas que tinha feito ao lado do pai biológico. Eles não percebiam que Cash não era digno de generosidade?
— Melhor assim — disse ela. — Mas se estiver interessado, pode comer a pizza que guardei no forno para você.
— Muito interessado. — Ele tirou a caixa do forno e colocou no balcão. — Obrigado. — Cash pegou uma fatia e afundou os dentes no recheio macio e morno de muçarela e calabresa.
— De nada. — Ela sorriu. A sra. Fuller gostava de agradá-lo, tanto que às vezes o incomodava. — Tem salada na geladeira. Posso pegar para você.
— Não, apenas pizza, obrigado — ele agradeceu, mastigando com gosto.
Ela pegou um prato no armário e acenou para ele se sentar.
— Sente-se e coma. Vamos conversar um pouco antes de você subir e se trancar no seu quarto.
Cash se perguntou se isso era uma queixa com relação à noite anterior. De qualquer maneira, ele pegou a caixa e foi para a mesa.
— Onde está o sr. Fuller? — perguntou antes dar a segunda mordida.
— Foi nadar. — Ela apontou para fora, onde as luzes da piscina iluminavam o quintal. — Ele comeu cinco pedaços de pizza.
Ela pegou a tigela de Skittles que Cash havia deixado na mesa enquanto mandava uma mensagem para Chloe.
— Foi você quem comprou esses Skittles ou foi Tony? — ela perguntou.
— Fui eu.
Ela balançou a tigela por um segundo.
— Onde estão os vermelhos? São os melhores.
Cash engoliu a pizza.
— Eu comi. — Era mentira. Eles estavam num saquinho em seu quarto.
A sra. Fuller colocou a tigela na mesa.
— Você não me contou como são as suas aulas na faculdade.
— São boas. O professor é chato, mas não vejo problema. — Ele terminou sua primeira fatia e pegou outra. Ela lhe entregou um guardanapo. Cash colocou a pizza no prato e limpou a boca. — Como foi o seu dia?
— Foi ok.
— Salvou a vida de alguém?
— Estou trabalhando nisso. — Ela olhou para a tigela de Skittles, tirou uma balinha laranja e colocou na boca. — Você sabe, Tony e eu conversamos e você pode parar de trabalhar se quiser se dedicar mais à escola e terminar o ensino médio.
— Não, estou bem assim. Só tenho aula na faculdade às quartas-feiras. — Ele saboreava o segundo pedaço. A sra. Fuller assistiu Cash acabar de mastigar. Ele pegou o terceiro.
Ela franziu a testa.
— Não que a gente ache que você não dê conta. Achamos que você é muito capaz. É que... pense em como seria mais fácil se você apenas se concentrasse nos estudos.
— Eu gosto de trabalhar. — Cash deu outra mordida. — Essa pizza é muito boa — ele acrescentou, esperando mudar de assunto.
— Você está indo muito bem, mas poderia tirar notas melhores e entrar numa...
— Eu estou bem assim. — Seu plano era fazer um curso técnico depois do ensino médio e mais tarde ingressar na Universidade de Houston, que seria custeada por um programa do governo para pessoas como ele, que moravam em lares temporários. Mas Cash não queria falar sobre faculdades esta noite. Eles já haviam discutido quando ele disse que iria pleitear uma bolsa do governo que o programa de adoção oferecia. Cash já lhes devia o jipe. Não queria que pagassem também a faculdade.
— Você pode estudar onde quiser.
— Está tarde. Eu queria fazer a lição de casa. — Ele pegou o prato e o colocou na máquina de lavar louça. — Obrigado pela pizza. — Enquanto ele passava pela mesa, pegou outra fatia.
— Cash — ela chamou, parecendo um pouco impaciente.
Dando outra mordida, ele se virou, esperando que a sra. Fuller começasse a listar as universidades. Boas universidades, universidades caras. Ele começou a falar com o pedaço de pizza na boca.
— Olha, eu preciso...
— Queremos adotá-lo.
Ele ouviu as palavras, mas não as assimilou. O bocado de pizza, já no meio da garganta, bateu contra seu pomo de adão. Sua mente disparou. O coração doía. Ele se lembrou de quando disse que não era filho dela.
Era por isso que a sra. Fuller estava fazendo aquilo? Achava que ele queria ser filho dela?
Era a última coisa que Cash queria. Seu objetivo sempre fora pagá-los pelo jipe e sair da vida deles para que seus problemas não continuassem a afetá-los.
— Não. Péssima ideia. — Ele subiu as escadas correndo.
— Por quê? — ela perguntou, enquanto Cash subia. — Por que é uma péssima ideia? — Ele não respondeu.
15
Dez minutos depois do começo do filme e da segunda piada sobre preservativo, minha mãe decide que ele não é engraçado nem apropriado. Na verdade, é engraçado, pelo menos foi quando assisti com Alex um ano atrás. Lembro-me de todas as vezes que íamos à casa dele, deitávamos na cama e assistíamos a filmes. E fazíamos outras coisas.
Os pais dele tinham uma imobiliária e trabalhavam até tarde. Nós tínhamos a casa inteira para nós até por volta das oito. Eu, sinceramente, acho que, se os pais dele tivessem um horário de trabalho normal, nós não teríamos uma vida sexual.
Minha mãe tira o filme e assistimos à série Law & Order. Eu quase a lembro de que deveríamos assistir algo engraçado, mas tenho medo de que ela desligue a TV. Então fico de boca fechada. É uma reprise. Eu já vi esse episódio. Mas não quero que minha mãe se sinta abandonada, então fico e finjo assistir. O que estou realmente fazendo é repassando mentalmente o telefonema do meu pai.
Ele não fez rodeios. Pediu desculpas por não me ligar no primeiro dia de aula, alegando que tivera uma semana ruim. Eu queria perguntar se tinha algo a ver com a nova namorada.
Ele não disse nada sobre ter dado o meu quarto a Darlene, mas me falou que me amava e que sabia que não era perfeito.
Não pude discordar. Mas por mais triste que seja, acho que isso fazia parte do problema. Antes, ele era perfeito. Então Darlene apareceu. E sugou tudo o que ele tinha de perfeito. Ele me lembrou de que eu era filha dele e que a minha mãe não deveria tentar me colocar contra ele. Não pude discordar disso também.
Ele disse que precisava me ver e que sentia a minha falta. E eu gostasse ou não, ele era meu pai e não ia deixar minha mãe ficar entre nós. Eu quase perguntei: E Darlene? Você vai deixar que ela fique entre nós?
Consegui ficar quieta e concordei em jantar com ele amanhã à noite. Mas só depois que me certifiquei de que seríamos apenas nós dois. Eu notei o tom contrariado na voz dele quando perguntei. Eu não sabia se ele planejava trazer Darlene, mas ele concordou em vir sozinho. Ainda assim, estou esperando o nosso jantar com o mesmo entusiasmo com que espero minha menstruação.
Pego o álbum de fotos que minha mãe deixou sobre a mesa do escritório. Vou virando as páginas. Não acho que já tenha visto esse. Aposto que era de uma das minhas avós. Até nos mudarmos para cá, a maior parte das coisas da minha avó estava encaixotada no sótão.
Eu observo as imagens em preto e branco dos meus avós e da minha mãe quando era pequena.
Fotos dela quando criança, parecendo feliz. Viro a página e encontro fotos minhas.
Eu bem pequena. Eu segurando um presente com um grande laço.
Eu não parecendo feliz, apesar de estar segurando um presente.
Ali estão duas fotos que foram editadas, o que significa que minha mãe cortou a imagem do meu pai com a tesoura.
Minha mãe me vê olhando o álbum. Ela aponta para uma foto em que aparecem meus avós e eu.
— Essa foi tirada quando você os conheceu.
Eu observo a imagem. Meu eu mais jovem está olhando para a câmera como se estivesse implorando para alguém me salvar. O olhar no meu rosto me lembra o olhar dos animais que a gente vê naqueles anúncios comoventes para arrecadar dinheiro, promovidos pelas ONGs que cuidam de animais abandonados. O medo que eu tinha empurrado para longe me domina novamente.
Então vejo uma contusão na minha bochecha. Como eu teria me machucado?
— Tínhamos acabado de buscar você e viemos direto para cá, da agência de adoção.
Sinto meu coração acelerar.
— Como eu ganhei esse machucado?
Minha mãe olha para a foto.
— Eles disseram que você caiu no parquinho. Por quê?
Eu não sei, realmente não sei, mas o medo deixa os pelos da minha nuca arrepiados. Então percebo que essa é a minha chance de fazer perguntas.
— Então você me adotou numa agência daqui?
Eu folheio o álbum, não querendo que ela me veja esperando sua resposta com respiração suspensa.
— Em Fort Landing. Duas cidades mais para a frente. Eu lembro que a coloquei na cadeirinha do carro e voltei com você.
Eu olho para minha mãe. Ela ostenta um sorriso enquanto fala sobre mim quando eu era pequena. Um sorriso de amor. Não é o olhar de alguém que se lembra de ter sequestrado uma criança.
Eu não sei se posso chamar de alívio, mas meu peito fica mais leve. É como se isso confirmasse o que eu acredito que seja verdade. Meus pais não me sequestraram. Eu sei disso. Eu apostaria minha vida nisso.
— Quanto tempo levou a adoção?
— Oito meses. Os oito meses mais longos da minha vida.
Eu volto a olhar a foto do meu eu mais jovem. Tenho cabelos castanho-escuros encaracolados e meus olhos parecem grandes demais para o meu rosto.
— Eu pareço assustada.
— Você era nervosa. Confusa. Morou num lar temporário por um mês. Ficou apegada a eles.
Meu coração dá outro salto. Se isso é verdade, se morei num lar temporário, então não sou Emily Fuller, porque ela foi sequestrada no dia anterior à minha adoção.
— Eles disseram que demoraria um tempo para você se ajustar.
Eu engulo em seco.
— E demorou?
— Sim. Dormi com você por quase um mês, porque você chorava à noite. Eu te abraçava e cantava para você.
Eu acho que me lembro dela cantando. Meu peito dói quase como se estivesse sentindo o que senti na época. O que senti na única lembrança que me assombra. Confusa. Assustada. Insegura. Abandonada. Mal-amada.
— Eu falava alguma coisa sobre isso?
— Só que você queria sua mãe e seu pai. Partia meu coração. Eu ficava te dizendo que éramos sua mamãe e seu papai a partir daquele dia. Não demorou para você começar a sorrir.
Uma pergunta não sai da minha cabeça. Algo que eu secretamente sempre me perguntava.
— A agência lhe informou por que fui para a adoção?
Minha mãe parece surpresa. E também estou surpresa. Surpresa por nunca ter perguntado antes. Então, de repente, sei por que nunca perguntei. Parecia mais seguro não saber.
— Eles disseram que sua mãe era muito jovem e não era casada. Ela queria ficar com você, mas era difícil demais do ponto de vista financeiro. Nós temos muita sorte em ter você. Você é uma bênção. Tentei engravidar por muitos anos. Seu avô conheceu um casal que indicou essa agência. Não era muito caro. Eles conseguiam pais adotivos para muitas crianças mestiças um pouco mais velhas, cuja adoção é mais difícil.
Eles me disseram que eu sou, em parte, descendente de hispânicos, o que explica a coloração castanho-esverdeada dos meus olhos.
— Minha mãe é hispânica ou meu pai?
— Eu não sei.
Viro a página. Há uma foto minha com uma boneca. Uma daquelas que se parece com a criança que a ganha. Estamos com um vestido igual. Temos cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos castanho-esverdeados. A boneca está sorrindo e, nessa foto, eu também. Eu me pergunto quanto tempo já tinha se passado desde a adoção.
Minha mãe sorri.
— Você adorava essa boneca. Fomos a uma loja onde tivemos que assinar um termo de adoção depois de comprar a boneca. Você a carregava para todo lugar.
— Eu não me lembro — digo. Recordo-me da caixa de brinquedos que vi no sótão da casa do meu pai quando estávamos nos mudando. — Eu ainda a tenho?
— Não. Nós a esquecemos num parque alguns meses depois que você a ganhou. Nós voltamos, mas alguém já tinha levado a boneca. Você chorou por semanas, querendo Emily de volta.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Emily?
— Sim, foi o nome que você deu a ela.
Eram dez horas da noite quando o celular de Cash tocou. Ele saltou da sua escrivaninha, onde fazia o dever de casa distraidamente, enquanto pensava no que a mãe adotiva tinha dito e torcia para que ela não decidisse tentar terminar a conversa. Porque ele não sabia como terminá-la.
Por que é uma péssima ideia?
A única resposta de Cash seria perguntar por que ela achava que seria uma boa ideia. Os Fuller já tinham feito muito mais do que se esperava deles. Não sabiam como era difícil corresponder às expectativas deles? A sra. Fuller não se lembrava de como tinha ficado decepcionada quando o expulsaram da Westwood Academy? Ou, um ano antes, quando o acusaram de roubar um carro no bairro só porque ele fazia parte de um programa de adoção do governo?
Ou mesmo quando ele se envolveu na briga com Paul? Cash nunca conseguiria apagar seu passado. Droga, eles não conheciam metade do seu passado! Cash costumava furtar a aposentadoria do bolso de idosos. Roubava carros. Uma vez, quando o pai trabalhava na casa de um casal idoso, Cash havia entrado e furtado os cartões do banco e um colar valioso da mulher, uma joia que o marido acabara de comprar para presentear a esposa nas bodas de ouro.
Ele viu o número de Chloe na tela.
— Oi.
— Desculpe ligar tão tarde. Foi uma noite insana.
— Sua mãe não descobriu que você faltou às aulas hoje, não é?
— Não. Você contou para alguém?
— Não.
Ela ficou quieta e depois falou:
— Olha, eu tenho certeza de que minha mãe e meu pai não me sequestraram, mas... Estou achando que alguém fez isso. E você tem razão. Eu quero respostas.
— Ótimo. — Pausa. — Aconteceu alguma coisa para você mudar de ideia?
Chloe contou o que havia descoberto sobre a agência de adoção e o lar temporário em que tinha ficado durante um mês e sobre a boneca que se chamava Emily.
Ele odiava perceber a dor na voz dela.
— Vamos descobrir a verdade.
— Como?
— Acho que precisamos conversar com a sua babá. — Cash se sentou na cama.
— Babá?
— Emily estava com a babá quando desapareceu.
— Como você sabe?
— A sra. Fuller comentou um dia. E, desde que você chegou aqui, estou pesquisando na internet. Também li alguma coisa, alguns anos atrás, num arquivo que eles têm. E há outras coisas nesse arquivo. Tipo relatórios policiais e outras coisas. Vou tentar ver o arquivo novamente. Mas tenho que esperar quando eles não estiverem em casa. Mas, assim que eu desligar, vou ver quantas agências de adoção existem em Fort Landing. É uma cidade maior que Joyful. Pode existir mais de uma.
— São três — Chloe disse. — Eu chequei. Mas apenas uma estava aberta na época em que fui adotada, a Agência de Adoção New Hope, mas isso não significa que seja essa.
— Tem razão. — Ele encostou na cabeceira da cama. — Vou começar tentando encontrar a babá.
— Como?
— Internet.
— Encontrei minha certidão de nascimento. Ela diz que nasci aqui. — Cash a ouviu suspirar e o suspiro se parecia muito com o da sra. Fuller que o tocava tanto.
— Vamos descobrir.
— Você diz isso como se acreditasse que vamos mesmo descobrir.
— Eu acredito. Sou bom em descobrir coisas. Resolver quebra-cabeças. — Cada golpe é como um quebra-cabeça. Você só tem que descobrir quais peças juntar. Ele fez uma pausa. — Trabalho amanhã, mas saio às cinco. Você quer me encontrar? Podemos comer alguma coisa e conversar.
— Eu não posso. Meu pai está vindo para a cidade.
Será que ela só está dizendo isso porque não quer me ver?
— E domingo? — Ele apertou mais o celular na mão.
A linha ficou muda.
— Preciso pedir à minha mãe, mas não deve ser problema.
Ele se lembrou do que Chloe havia dito sobre o pai.
— Você vai ver seu pai numa boa?
— Não. Mas não importa... Não tenho escolha.
— Você sempre tem escolha — disse Cash. Até ele tinha escolha quando estava com o pai.
— Nenhuma que não causaria problemas.
— Já ouviu dizer que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos?
— Então você é aquele que quebra ovos enquanto eu sou uma pessoa que põe panos quentes. Não tenho certeza se somos compatíveis.
Ele riu.
— Eu só quebro ovos quando não há outro jeito.
— Quando não houve outro jeito? — Chloe perguntou.
— O que você quer dizer?
— Quando foi a última vez que você teve que se defender? Além daquele dia em que brigou para defender o garoto, no primeiro dia de aula.
— Esta noite — ele disse, depois se arrependeu.
— O que aconteceu?
Cash concluiu que poderia contar parte do que havia acontecido.
— A sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina.
— Por quê?
— Ela acha que me sobrecarrega por causa das aulas na faculdade e o ensino médio.
— Você está tendo aulas numa faculdade?
— Sim. Nas quartas-feiras à noite. Só para ajudar.
— Isso parece muita coisa mesmo — ela diz.
— Eu dou conta. Além disso, não é só por causa do tempo. Ela tem receio que eu mude de ideia e decida trabalhar na oficina e não ir para a faculdade.
— Mas, se você já está fazendo aula numa faculdade, por que ela tem esse receio?
— Porque também estou cursando Tecnologia Automotiva e não estou me candidatando para uma faculdade chique.
— Para que faculdade ela quer que você vá?
— Rice ou Harvard, pelo que sei.
— E por que você não quer ir para uma boa faculdade?
— Porque tem que ser uma faculdade estadual que a minha bolsa cubra.
No momento em que ele disse isso, desejou ter ficado quieto. Era como se a bolsa fosse uma esmola.
— Você tem uma bolsa do governo?
Cash hesitou.
— Por causa do programa de adoção.
— Isso é bom — disse Chloe.
— Sim — ele mentiu. E continuava dizendo a si mesmo que, quando concluísse a faculdade, reembolsaria o Estado também. Durante toda a vida, o pai dele não tinha feito nada a não ser lesar as pessoas. Cash tinha lesado muitas pessoas. Ele queria compensar isso.
— Você tem planos para a faculdade? — Cash perguntou para mudar de assunto.
— Universidade de Houston, provavelmente.
— Estou pensando nessa também. Mas por que “provavelmente”?
— No momento não posso deixar minha mãe do jeito que está.
— Mas ela já superou o câncer.
— Ela não superou o divórcio.
Ele se lembrou de Chloe dizendo que a mãe estava deprimida.
— Ela está muito mal?
— Depende de quando você pergunta. Hoje mais cedo, eu diria que ela estava realmente muito mal. Esta noite, estava melhor. Pelo menos está recebendo ajuda agora.
— Terapia?
— Sim. Hoje foi a primeira vez que ela foi. Espero que ajude.
— Sim. — Cash não colocava muita fé em terapeutas ou psiquiatras. Ele tinha sido forçado a fazer terapia por um ano, quando foi para um lar temporário. A única diferença era que havia aprendido a esconder melhor suas emoções.
A terapeuta não cansava de dizer: Nada do que você fez foi culpa sua. Mas era, sim. Ele sabia que estava errado quando fazia.
— Ela conseguiu um emprego, então espero que também ajude. Mas só começa daqui a algumas semanas.
— Que tipo de trabalho ela faz?
— Enfermagem.
— É isso que você vai cursar na faculdade? Medicina? — E se ela fosse a filha dos Fuller, não seria apropriado?
— Não. Estou pensando em Jornalismo. Ou Literatura Inglesa.
— Você quer ser escritora?
— Não. Minha mãe costumava escrever. Ela escreveu vários livros. Teve um editor numa grande editora de Nova York que pediu para ela fazer uma revisão no último que escreveu, mas então meu pai resolveu se separar e ela parou. Graças a Deus, ela não parou de ler livros.
— Você gosta de ler? — ele perguntou.
— Sim.
— O que você lê? Histórias de amor? — Cash perguntou para provocar.
— Claro! — Chloe riu. — Estou lendo um de ficção fantástica no momento. E você, lê?
— Eu costumava ler mais quando não estava trabalhando. Mas, gosto, sim.
— O que você leu nestes últimos tempos?
— Eu li Outsiders — Vidas sem Rumo e alguns do Stephen King durante o verão. Tentei ler Cinquenta Tons de Cinza, mas...
— Você leu Cinquenta Tons de Cinza? — Ela riu um pouco mais. — E você me recrimina por ler histórias de amor?
16
A risada dela fez o peito de Cash instantaneamente parecer mais leve.
— Eu disse que tentei ler. Não consegui terminar o primeiro capítulo.
— Não consigo nem imaginar você comprando ou pegando esse livro emprestado na biblioteca.
— Não fiz nada disso — ele disse. — A sra. Fuller leu e um dia eu entrei na biblioteca deles e peguei. Você não leu?
— Não. — O tom dela era agudo, denunciando uma mentira.
— Mentira. Você leu, sim.
Ela riu com culpa.
— Ok, eu e minhas amigas estávamos curiosas.
— E o que você achou? — Cash reajustou o travesseiro atrás das costas.
— Eu sei por que você não passou do primeiro capítulo. O que você planeja fazer na faculdade?
Cash notou que ela tinha mudado de assunto.
— Provavelmente algo ligado à área de negócios. Ainda estou indeciso também. Ele fez uma pausa. — Então, o que mais você faz além de ler livros eróticos?
Chloe riu de novo.
— Não sei.
— Você gosta de correr ou algo assim?
— Só se alguém estiver me perseguindo.
Agora foi ele quem riu.
— Quero dizer, para manter a forma.
— Eu sei. Eu costumava jogar futebol.
— E você era a mais bonita do time. — Ele lembrou da foto de Chloe e de várias colegas jogando futebol de shorts e a parte de cima de um biquíni. Ela parecia incrível.
— Como sabe? Ah, sim, você me stalkeou na internet.
— Eu não stalkeei você. Pesquisei sobre você.
— Você tem perfil no Facebook? — Ele a ouviu digitar algo no computador.
— Não. Pelo menos não com a minha verdadeira identidade.
— Você tem uma conta falsa no Facebook? Mas não tem uma com a sua verdadeira identidade...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Porque... gosto de stalkear as pessoas na internet. — Era uma piada. Chloe não riu.
— Sério?
— Na outra escola, ouvi dizer que alguns alunos estavam falando sobre mim no Facebook. Eu quis ver se era verdade... anonimamente.
Ela não disse nada por alguns segundos, então:
— Você costuma correr?
— Eu tento. Mas, neste verão, nadei mais.
— Você faz parte de uma equipe de natação? — ela perguntou.
— Não. Os Fuller têm piscina. E eu vou muito à casa de veraneio deles, no lago.
— Você não pratica esportes?
— Gosto de assistir. Mas nunca joguei.
— Sério? Com o seu tamanho, acho que algum treinador já devia ter feito você jogar futebol americano há muitos anos.
— Eles preferem evitar estudantes que moram em lares temporários. Nós nos mudamos muito.
— Você também?
— O quê? — ele perguntou.
— Mudou-se muito, antes de morar com os Fuller?
Ele passou a mão no rosto. Por que ele havia mencionado o programa de adoção?
— Eles são a minha quarta casa.
— Foi ruim?
Não tão ruim quanto viver com meu pai.
— Na verdade, não.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele queria mudar de assunto, mas Chloe o acusara de fazer isso no parque.
— Tinha 11.
— Como... como o seu pai morreu?
Merda. Essa era a desvantagem de se aproximar de uma garota. Ela queria saber a história da sua vida.
A linha ficou muda.
— Você não precisa contar, se não quiser.
Ele quase disse “ótimo”, mas optou por:
— É uma longa história, e já está tarde.
— Sim. Melhor a gente desligar.
Cash a sentiu se afastando. Quando ele queria que Chloe se aproximasse.
— Ele morreu num acidente de carro. — Era verdade. Cash tinha batido o carro, mas a bala no peito do pai é que o matara.
— Você estava no carro com ele?
— Não.
— Sinto muito. — A emoção veio acompanhada de um pedido de desculpas. — Quando minha mãe teve câncer, eu estava com tanto medo de perdê-la... Não sei se conseguiria superar algo assim. Isso deve ter sido muito difícil pra você.
Cash odiava a compaixão que sentia na voz dela. Ele não merecia. E nem o vigarista do pai.
É sábado à tarde e estou na casa de Lindsey, ajudando-a a decidir o que vestir no seu encontro com David. Estou empolgada com a notícia de que estão saindo. E estou me esforçando para irradiar boas vibrações. Minha mãe ficou deitada o dia todo. Eu mal consegui tirá-la do quarto para comer.
Vê-la deprimida faz com que eu me sinta culpada por ter concordado em ver meu pai. Ah, sei que não é justo que ela me faça sentir dessa forma e, sinceramente, não acho que minha mãe queira que eu me sinta assim. Mas ela faz isso e eu me sinto culpada. Adicione a tudo isso o fato de que não estou ansiosa para ver meu pai e é compreensível que meu humor não esteja muito melhor do que o da minha mãe.
— Eu gosto mais dessa blusa azul — digo a Lindsey.
— Não é muito sem graça?
— Não, realça seus seios.
— Não mostra demais, não é? Não quero que ele pense que estou tentando levá-lo para o banco de trás do carro no primeiro encontro.
Eu solto uma risada.
— Essa blusa não diz “vamos saltar para o banco de trás?”. Ela diz “olhe pra mim”.
— E olhar para mim é bom, certo? — Ela franze a testa. — Não sei se estou pronta para isso.
— Você está pronta — eu garanto.
Ela me olha pelo espelho.
— Eu preferia que fosse um encontro duplo. Você não pode ligar para Cash e ver se vocês podem ir conosco? — Ela se vira.
— Eu não posso. Vou ver meu pai hoje à noite, esqueceu?
— Ah, que pena. — Ela franze a testa. — Foi mal.
— Eu também lamento... — Desabo na cama dela e juro que não vou começar a me queixar da minha vida. Já fiz isso o suficiente ontem à noite, quando conversamos depois do telefonema de Cash. Sandy, uma das minhas amigas antigas, só reclamava. — Além disso, eu ainda não estou saindo com Cash.
— Vocês vão sair no domingo. Além disso, você ficou com ele no balanço da varanda.
— É verdade. — Eu sorrio, ao me lembrar e, se eu pudesse só pensar nisso, em vez de em outras coisas, ficaria mais feliz. — Mas não sei se é um encontro de fato ou só uma reunião para descobrir se sou Emily Fuller.
Ela revira os olhos.
— Depois daquela mensagem que ele enviou sobre querer beijar você?
Sim, eu mostrei a ela a mensagem de Cash.
— Tem razão. Acho que você não é a única que está nervosa.
— Apenas rezo para que, se ele tentar me beijar, eu não pense em Jonathon. Ele me enviou um e-mail esta manhã. Me perguntou o que eu ia fazer no final de semana.
— Você não respondeu o e-mail, não é?
— Respondi, mas apenas para dizer que estava ocupada. Tive que deixar claro que não estou em casa chorando por causa dele.
— Ele perguntou o que você andava fazendo?
— Perguntou. Eu não respondi. — Ela sorri.
— Esqueça esse cara — eu digo. — Esta noite vai ser divertida.
Lindsey se deixa cair na cama.
— Será que devo contar a David meu segredo mais profundo e sombrio?
— Qual segredo?
— Que minha mãe é lésbica. Ou isso não é algo que se diga no primeiro encontro?
— Por que você precisaria contar a ele?
— Porque se Lola estiver aqui, ele pode descobrir como você descobriu.
— Você não sentiria essa necessidade de contar a ele se sua mãe fosse heterossexual. Então, por que contar só porque ela é homossexual?
— Porque nem todo mundo acha que isso é normal como você.
— Não acho que você precise fazer alarde sobre isso.
Ela sorri.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo. Por dizer todas as coisas certas. Pedi a Jamie para fazer isso e ela disse que ela e a prima iam à manicure.
— Não esquenta. — Não sei se Lindsey percebeu que ela acabou de me dizer que sou sua segunda opção. É uma droga ser a segunda opção de alguém. Mas, ei, é melhor do que não ser opção nenhuma.
— Você vai perguntar ao seu pai o nome da agência de adoção?
— Se eu conseguir encontrar uma maneira de abordar esse assunto na conversa...
— Por que simplesmente não pergunta?
— Porque não sinto vontade de explicar que eu posso ser uma criança sequestrada!
Lindsey passa a escova nos cabelos.
— Você realmente não se lembra de nada da sua vida de antes?
Eu conto a ela sobre a minha única lembrança com o vestido de princesa.
— E o sequestro? Quero dizer, deve ter sido traumático e você se lembraria dele.
— Eu não me lembro.
O medo toma conta de mim. Conto a ela sobre a foto com o machucado no rosto. Do medo inexplicável que sinto.
— Ok, isso é de arrepiar — diz ela.
— Sim.
— Você não precisa contar ao seu pai sobre a história do sequestro. Apenas diga que esteve pensando sobre a adoção.
— Sim. — Mas como eu disse a Cash, sou de pôr panos quentes, não de quebrar ovos. Por outro lado, nas últimas vezes em que conversei ou estive com meu pai, eu estava surtando. Mas a coisa toda do sequestro é diferente. É muito maior. E se eu descobrir que sou realmente Emily Fuller, não vai haver uma tigela grande o suficiente para recolher todos os ovos que vou quebrar.
Meu celular avisa sobre a chegada de uma mensagem. Achando que é de Cash, sinto uma emoção brotar no meu peito. Não é de Cash.
É da minha mãe.
Avise seu pai que não deve entrar em casa. Eu não quero vê-lo! E pergunte a ele por que não pagou o seguro do seu carro ainda.
Um pensamento insano me ocorre. Não sobre minha mãe, mas sobre meu pai. Sobre perdoar papai.
Talvez eu não seja capaz de perdoá-lo até que minha mãe esteja bem. Talvez eu não seja capaz de perdoar meu pai até que minha mãe o perdoe.
O que pode ser, tipo... nunca.
Isso parece errado, mas pode ser verdade.
Eu me reclino na cama de Lindsey.
— Odeio a minha vida.
Cash trabalhou até um pouco mais tarde e já eram seis horas quando foi trocar de roupa. O celular tocou e, esperando que fosse uma mensagem de Chloe, ele pegou o aparelho. Não havia mandado uma mensagem para ela ainda, com receio de que ela fizesse perguntas sobre seu pai novamente, mas decidiu que mandaria uma mensagem mais tarde.
Cash esperava que ela estivesse acordada quando ele fizesse outra ligação tarde da noite. Se não fosse para falar sobre o passado, ele gostava de conversar com Chloe. Ele sorriu ao se lembrar da conversa sobre Cinquenta Tons de Cinza.
Olhou para a tela do celular. Não era uma mensagem de Chloe. Era da sra. Fuller. Ele se encheu de pavor. Tinha saído de casa aquela manhã sem vê-la. Cash não tinha ideia de como ela reagiria ao seu comentário de que seria uma “péssima ideia” adotá-lo.
Ele leu a mensagem.
Tony e eu estamos com vontade de comer comida indiana. Quer se juntar a nós no Kiran's Café?
Ele queria recusar o convite, mas talvez ir jantar fora fosse mais fácil do que enfrentá-la em casa.
Ele mandou uma mensagem. Que horas?
Sete?
Certo.
Ela enviou o emoji de uma carinha sorridente. A sra. Fuller sempre mandava mensagens com muitas carinhas sorridentes. Cash sabia que era um sinal de que ela se importava com ele. Ele também gostava de recebê-las.
Como ainda faltava uma hora, decidiu dar uma corrida até a livraria. Conversar com Chloe sobre livros o deixara com vontade de ler um. Talvez ele encontrasse um livro de ficção fantástica sobre o qual pudessem conversar.
Quando saio do banheiro, depois de me arrumar para me encontrar com meu pai, minha mãe está enrodilhada no sofá, com um livro e Félix no colo.
Ela olha para mim.
— Você está bonita.
— Obrigada. — Tudo o que fiz foi pentear o cabelo e colocar rímel e brilho labial, mas eu sei que essa é minha mãe fingindo que está tudo bem, e eu agradeço. Consulto as horas e vejo que são quase seis e meia.
Inclinando-me, acaricio Docinho, que está abanando o rabo como se achasse que vamos sair para dar um passeio.
— Você quer que eu traga algo para você comer? — pergunto à minha mãe.
— Não! Não quero comer nada que seu pai tenha comprado. — Ela já não está fingindo que está tudo bem.
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Por que você não escreve? — sugiro.
— Talvez.
Aposto que ela não vai nem tentar. E provavelmente não vai comer também. Eu verifiquei e, até hoje, ela só tomou duas das suas bebidas nutritivas, no total. E a promessa de beber duas por dia? Juro, minha mãe parece ainda mais magra agora.
— Até mais tarde.
Pego a bolsa e saio, me sentindo culpada por deixá-la sozinha.
Sentada nos degraus da varanda, vejo uma picape parar em frente à casa ao lado. Então Jonathon, o cão sarnento traidor, sai do carro. Ele me vê e me cumprimenta com a cabeça. Aceno de volta, mas não de uma maneira amigável. Sei que Lindsey já saiu há trinta minutos.
Eu o ouço bater na porta e perguntar por Lindsey. Escuto a mãe dela responder.
— Ela saiu.
— Pode dizer a ela...?
A porta se fecha. Eu sorrio. A mãe de Lindsey também não gosta do cão sarnento traidor.
Ainda estou sorrindo quando ouço passos. Ah, merda!
Olho para a rua, rezando para ver o carro do meu pai chegando. Mas não.
Quando vejo, Jonathon está na minha frente.
— Você é a garota nova da escola, não é? Chelsea?
— Chloe — corrijo-o.
— Você e Lindsey não vão juntas para a escola?
— Sim. — Cadê você, pai?
— Você sabe onde ela está?
O que eu digo? O que eu digo?! Eu poderia dizer que ela saiu com um cara muito gato. Ou eu poderia...
— Não.
— Sabe com quem ela está?
O que eu digo agora? Vou optar pela verdade outra vez.
— Sim.
Ele faz uma careta.
— Mas não vai me dizer, certo?
— Não sou eu que tenho que dizer.
— Sabe, não sou um cara tão ruim quanto ela disse que sou.
Sei. Quer dizer, então, que você não pôs chifres nela?, eu penso, mas não pergunto.
Ele se inclina contra a cerca da varanda.
— De que cidade você veio?
— El Paso — digo, desejando que ele vá embora.
— Você gosta daqui?
— Não. — Quando olho para cima, ele está olhando para os meus peitos. Como se esse cara tivesse alguma chance comigo.
Ele esfrega a sola do sapato no degrau.
— Bem, já que não estou fazendo nada e você não está fazendo nada, quem sabe a gente possa...?
— Não. — O carro do meu pai para em frente à minha casa. Eu me levanto. — Tchau!
Quando entro no carro, a cabeça do meu pai está virada na direção de Jonathon, que fica nos encarando enquanto volta para a sua picape. Considerando que meu pai está dirigindo um conversível vermelho e tem cabelos espetados, Jonathon provavelmente acha que meu pai é meu namorado. Ai, credo!
— Quem é esse? — meu pai pergunta.
— Ninguém. — Esqueço minha antipatia por Jonathon e me defronto com a minha decepção em relação a meu pai. Ele precisa desistir desse cabelo espetado.
— Você já está namorando?
— Não. — Então eu me lembro de Cash. — Talvez.
— Não acha que é um pouco cedo?
Balanço a cabeça, discordando.
— Por que não nos apresenta? — Ele fala como um pai zeloso. Por que isso me irrita? Então percebo por quê. Meu pai perdeu o direito de falar comigo sobre garotos ou sobre sexo quando começou a transar com Darlene.
— Primeiro porque aquele cara não é meu namorado. Segundo, porque... deixa quieto. — Calo a boca. Eu não quero discutir.
Meu pai olha para mim e, pela expressão dele, posso ver que está pensando o mesmo que eu.
— É bom ver você. — Ele estende a mão e aperta a minha. — Faz muito tempo que não saímos juntos, só nós dois.
Se sentiu tanto a minha falta, por que não enviou flores na data certa ou não me ligou quando disse que ligaria? Eu engulo a pergunta. Hoje não vou quebrar ovos. Mas penso no comentário de Lindsey sobre fazer ao meu pai algumas perguntas “vagas” sobre a agência de adoção. Isso eu posso fazer.
Meu pai começa a falar.
— Procurei no Google restaurantes indianos em Joyful. Achei um, o Kiran’s Café. Que tal um frango na manteiga?
17
A caminho do restaurante, conversamos sobre assuntos neutros. O clima. O último livro que li. Ele está tentando conversar, mas os assuntos acabam tão rápido que tenho receio de que logo não tenhamos mais sobre o que conversar.
— Como estão Brandon e Patrick? — pergunto, me referindo ao primo do meu pai e o marido dele. Acho que esse é um assunto seguro.
— Não sei. Faz muito tempo que não vejo os dois.
— Por quê? — Eles costumavam ir em casa pelo menos uma vez por mês, além de passar os feriados conosco. Brandon, que é chef de cozinha, sempre se encarregava das refeições.
— Nós vivemos ocupados.
Quando diz “nós”, meu pai se refere a ele e a Darlene. Antes que eu possa me conter, meu próximo pensamento sai pela minha boca:
— Eles não gostam de Darlene? — Isso não deveria me deixar feliz, mas deixa. — Ou ela não gosta deles?
Essa possibilidade aumenta a minha angústia com relação ao meu pai. Como meus avós paternos morreram em um acidente de carro logo depois que meus pais se casaram, Brandon é o único parente que meu pai tem.
— Você não devia deixar Darlene acabar com a sua família. — Quer dizer que, mais uma vez, ele deixou que ela separasse a nossa família.
A expressão do meu pai muda.
— Não é bem assim. — A mentira fica evidente na voz dele.
Em alguns minutos, meu pai estaciona e entramos no restaurante impregnado com um aroma intenso de curry, cominho e açafrão. Meu estômago se contrai de fome, mas meu coração se contrai de dor. Sou transportada de volta a todas as vezes em que saí com meu pai no passado. Volto à época em que sair com ele era um dos meus programas favoritos. Nós ríamos. Falávamos de futebol. Discutíamos filmes. Ele perguntava sobre a escola, os meus amigos, a minha vida. Não como se estivesse checando o que eu andava fazendo, mas como se quisesse saber tudo sobre mim porque eu o interessava. Porque eu era importante para ele.
Sinto falta disso. Sinto falta dele. Do meu antigo pai. De como éramos antes. Um nó se forma na minha garganta.
Estamos sentados a uma mesa perto da porta. O garçom, um homem alto, mais velho e de ascendência indiana, nos entrega os cardápios. Noto que meu pai está olhando em volta como se estivesse confuso. Ele pega o cardápio, mas olha para o garçom.
— Este lugar não costumava ser a Pauline Pizzaria?
— Sim — diz o garçom. — Meu irmão comprou o ponto sete anos atrás.
— Foi o que pensei.
O garçom anota nossas bebidas e se afasta.
Meu pai olha para mim.
— Sua mãe trabalhava aqui. Eu costumava comer pizza aqui toda sexta-feira à noite, porque um funcionário que trabalhava às sextas-feiras gostava dela. — Há uma expressão suave no rosto dele, como se a lembrança fosse boa; então, de repente, ele pisca e o ar de felicidade desaparece. Meu pai abre o cardápio, como se quisesse se esconder atrás dele. É só uma suposição, mas juro que ele parece sofrer ao se lembrar da minha mãe. Ou talvez ao se lembrar do quanto a está fazendo sofrer.
Por outro lado, posso jurar que meu pai não sabe quanto ele magoou minha mãe. Ou quanto me magoou.
É muito egoísmo da minha parte querer que ele sofra também? Talvez seja normal, mas parece errado. Tudo parece errado. Estar aqui com ele parece errado.
Ele baixa o cardápio.
— Você quer pedir o de sempre? Frango na manteiga e cordeiro vindaloo, e dividimos os pratos?
— Tudo bem — eu digo.
— Quer mais alguma coisa?
— Talvez — eu digo, pensando que, quanto mais comida tivermos para comer, menos tempo teremos para conversar.
O garçom traz nossas bebidas.
— Prontos para pedir?
Meu pai olha para mim.
— Vamos pedir esses dois pratos primeiro e, depois, se você quiser mais alguma coisa, pedimos também, ok?
Eu concordo. Meu pai faz o pedido.
Quando o garçom se afasta, voltamos a olhar um para o outro.
— Na escola, vai tudo bem? — ele pergunta.
Acho que meu pai quer que eu diga que vai tudo bem, assim pode se sentir menos culpado.
Estou sobrevivendo. Aos trancos e barrancos.
Não vou amenizar a culpa dele.
Ele me fala que encontrou Kara e Sandy na loja de CDs. Como meu pai só entrava na loja de CDs se eu implorasse, acho que ele estava com Darlene. Imagino o choque das minhas antigas amigas ao ver Darlene. Eu me pergunto por que nenhuma das duas me mandou uma mensagem falando sobre isso. Elas provavelmente acharam que isso ia me deixar chateada. Constrangida. Elas têm razão.
— Estou com fome — diz meu pai quando um garçom diferente passa por nós com dois pratos de comida.
— Eu também — minto. Não sei se vou conseguir comer. Todos aqueles aromas que antes me inspiravam sentimentos de amor agora me provocam náuseas.
Ficamos em silêncio outra vez. O telefone do meu pai toca avisando da chegada de uma mensagem. Ele lê. Eu me pergunto se é Darlene. Não. Ainda não tenho fome. O barulho do restaurante aumenta. Garfos batendo nos pratos. Ruídos de refeições sendo preparadas na cozinha. O burburinho das conversas. Ouço a recepcionista perguntando para quantos é a mesa.
— Três. Obrigado — responde o cliente. A voz me parece familiar.
Olho na direção da porta. Perco o fôlego. Cash está entrando com um homem e uma mulher.
A mulher do vídeo, só que mais velha. O homem tem cabelos escuros. E olhos castanhos. O mesmo tom castanho dos meus olhos.
Analiso o rosto dele.
Depois o rosto dela.
Eles são meus pais? Tenho o DNA deles? Fui arrancada da minha família?
Parte de mim quer correr até eles, outra parte quer fugir.
Cash deve ter sentido o meu olhar, porque olha na minha direção e arregala os olhos, como quem diz, “Ah, merda".
Abro o cardápio para cobrir meu rosto.
— Por aqui — ouço a recepcionista dizer. Os passos se distanciam. Meu coração bate forte no peito. Ouço o sangue fluindo nos meus ouvidos.
Abaixo o menu e vejo Cash tentando fazer os Fuller se sentarem de costas para mim.
O pânico sobe até o meu peito como um líquido quente. Meus pulmões recusam o oxigênio.
— Você encontrou outra coisa que queira pedir? — meu pai pergunta.
Eu desvio os olhos para a mesa de Cash e depois para a porta.
— Não vai dar... — digo, sem querer, em voz alta.
— O que não vai dar? — ele pergunta.
Eu me levanto, não tão rápido a ponto de chamar atenção, e sigo na direção da porta.
— Chloe? — meu pai me chama. Não olho para trás.
Abro a porta. O ar quente me envolve. Ainda não consigo respirar.
— Merda!
Vou até o carro do meu pai e me encosto no capô. Meu coração está batendo na garganta. E então a ficha cai. Eu tenho que saber. Tenho que saber se eles são meus pais. Tenho que saber se não fui simplesmente abandonada, como se não fosse importante. Como se não fosse amada. Aperto os punhos.
Então ouço passos. O medo dá um nó no meu estômago. Será que eles me viram? Será que tudo vai acontecer agora? Por mais que eu queira conhecê-los, estou com medo. Ergo os olhos. É meu pai.
Seus passos devoram a calçada, na minha direção. Ele me olha com a testa franzida.
— Que diabos aconteceu? — ele me pergunta. Seus ombros estão tensos, sua expressão é carregada; a frustração é uma nuvem ao redor dele.
A raiva dele desperta a minha. Minha mente dispara e a única coisa em que consigo pensar é repetir o que eu já disse.
— Não vai dar.
— Não vai dar para fazer o quê?
— Ter um encontro de pai e filha como se tudo estivesse bem quando não está. — No segundo em que a desculpa sai da minha boca, não é mais uma desculpa. É a mais pura verdade. — Você me abandonou. Você não está nem aí comigo. — Sinto-me abandonada, como na época em que tinha 3 anos. Então, do nada, ouço uma voz, “Seu pai e sua mãe não querem mais você". De onde, diabos, vem essa voz? Lágrimas enchem meus olhos. — Você pode abrir o carro? Por favor!
A expressão do meu pai endurece.
— Eu me divorciei da sua mãe, não de você!
— Não é o que parece — rebato.
Ele fica ali, ainda com raiva, ainda frustrado e ainda o homem que culpo por me causar tanta dor. Como ele pode não se envergonhar de si mesmo?
— Vou lá pagar o jantar. — Ele abre o carro.
Deslizo para o banco do passageiro e me encolho para que ninguém me veja caso saia do restaurante. É muito estranho que eu esteja aqui fora discutindo com meu pai enquanto meu pai e minha mãe de verdade podem, muito bem, estar dentro do restaurante.
Começo a suar, mas não me importo. Fico sentada ali, com as janelas fechadas e sentindo calor. Então sinto novamente. O medo. Quero fugir. Estou com medo.
Fecho os olhos, pressiono a cabeça contra o encosto do banco e tento respirar. O tempo passa. Um minuto. Dois. Três.
Cinco.
Oito.
Que diabos meu pai está fazendo? Ah, Deus. Será que os Fuller me viram e foram confrontar meu pai?
Meu celular toca e chega uma mensagem. Pego o aparelho. É Cash.
Ele: Está tudo bem?
Eu: Não. O que está acontecendo?
Ele: Seu pai está pegando a comida para viagem.
Eu: Eles me viram?
Ele: Não.
Ouço a porta do carro se abrindo. Sinto outra onda de medo. Eu a reprimo. Meu pai, parecendo chateado, me entrega uma grande sacola branca.
Ele se senta atrás do volante, mas não liga o carro.
— Você é minha filha. Minha garotinha. Não posso perder você, Chloe!
Lágrimas enchem meus olhos e eu me viro para a janela. O aroma de comida indiana invade o carro, o cheiro dos meus encontros com meu pai. De repente, passo a não gostar mais daquele cheiro.
Ele começa a falar novamente.
— Sei que eu deveria ter ligado e estraguei tudo. E, sim, eu só me lembrei tarde demais que era a data da sua adoção. Por isso suas flores não chegaram até você a tempo. Eu sou humano. Não sou perfeito, Chloe.
Meu peito queima de raiva, mágoa, desespero. Um pouco por causa de hoje. Um pouco por causa do passado. Ainda não consigo olhar para ele, mas digo:
— Você costumava ser perfeito. Você costumava se lembrar das coisas. Eu costumava ter importância para você.
Eu o ouço bater a mão no volante e dizer um palavrão de cinco letras. Depois de um segundo, ele diz:
— Você ainda é importante para mim.
O silêncio paira entre nós, dentro do carro. Tudo que ouço somos nós dois respirando e meu coração se partindo.
— Muitos pais se divorciam — diz ele como se isso fosse justificativa. — Pais e filhas no mundo todo continuam se dando bem. Por que nós não podemos?
A pergunta paira no ar e a resposta surge dentro de mim como o vulcão que ele e eu construímos para o meu projeto de ciências, na quinta série.
— Acho que a mãe delas não teve câncer! — Minha voz soa estridente. — O pai delas não as deixou cuidando de tudo. Tendo que lidar com a mãe vomitando por semanas a fio, enfrentando o pensamento de que a mãe estava morrendo!
As palavras jorram da minha boca. Não consigo contê-las. Estou quebrando todos os ovos. Não me importo. Parece que, se eu não disser tudo isso, algo dentro de mim vai explodir.
— Mamãe teve câncer! Mas é como se eu também tivesse tido. Fui eu quem preparou sopa de tomate e sanduíches de queijo grelhado para ela, porque ela não conseguia comer outra coisa. Fui eu quem se sentou no chão do banheiro com ela chorando, porque o cabelo estava caindo. Fui eu quem teve de ser forte quando não me sentia forte. Eu, pai! — Bato no peito. — Eu! Droga! Ela precisava de você. Eu precisava de você! Mas você estava muito ocupado para se importar... tingindo o cabelo, comprando um novo guarda-roupa e transando com a Darlene!
Meu pai segura o volante e desvia os olhos de mim. Respira fundo. Segura o ar. Segura mais um pouco. Então olha para mim, novamente. Eu vejo tudo nos olhos dele. Culpa. Dor. Até amor. E isso é o que mais dói.
— Eu... Eu sinto muito. Eu não... Eu fiz tudo errado. Fiz mesmo, querida.
Eu respiro com dificuldade. Estou instável. Todo meu mundo está instável.
Meu pai liga o carro e acelera. Meu colo está quente por causa das caixas na sacola. O cheiro impregna o carro. Quero jogar tudo pela janela. Nunca mais vou comer comida indiana outra vez.
Ele dirige em direção à minha casa. Entra no meu bairro. Mas não vira na minha rua.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Não sei. Mas não posso deixar você sair deste carro até...
— O quê? — pergunto.
Eu o ouço engolir em seco.
— Até que... me perdoe. — A voz dele falha.
— Então vamos ficar neste carro por muito tempo! — Digo a mim mesma para não me sentir mal por ele estar sofrendo.
Ele vai para o parque. O mesmo ao qual Cash e eu fomos quando ele me contou sobre Emily.
Estaciona sob um poste de luz.
— Chloe, eu não sei o que eu estava pensando. Na verdade, eu não estava pensando. Você estava crescendo, sonhando com a faculdade e com garotos. Sua mãe só pensava em escrever, sonhando com uma nova carreira. E eu... Eu não tinha sonhos. Eu me sentia velho e cansado. — Ele respira fundo. — Então conheci Darlene e... — Ele para de falar.
— E você a amou mais do que amava mamãe e a mim?
Ele respira.
— Não. Mas não há desculpa para o que eu fiz. Eu vejo isso agora. É tão assustadoramente claro. Eu fui um idiota. Não mereço o seu amor. Não mereço o seu perdão. Mas não posso perder a minha garotinha. Por favor... me perdoe.
A dor dele é tão real que eu a sinto. Fico sem falar por quase um minuto, porque não sei o que dizer, mas depois as palavras jorram da minha boca.
— Eu não me recusei a ver você. Mas perdoar não é nada fácil. — Eu engulo. — Ainda te amo, mas às vezes preferia não amar.
Ele balança a cabeça, como se entendesse.
— O que posso fazer para ajudar? Faço qualquer coisa. Me diga. Sua mãe precisa de dinheiro?
— Eu... acho que não. Mas ela me disse para perguntar por que o seguro do meu carro não está pago.
— Não está pago? — ele pergunta.
— Ela disse que não.
— Mas Darlene disse... Vou averiguar. O que mais posso fazer?
— Nada. — Ouvir o nome de Darlene me deixa com raiva de novo.
Meu celular toca com a chegada de outra mensagem. Eu não olho. Deve ser Cash.
Ficamos sentados em silêncio, no carro, sentindo o calor.
— Trouxemos você aqui no dia em que a buscamos — meu pai diz.
Eu olho para ele, sem entender. Ele continua:
— Quando pegamos você na agência, fomos ver seus avós e depois viemos aqui. Eu coloquei você no balanço. Lembro-me de pensar em como você era delicada. Tão pequena, mesmo não sendo mais um bebê. Eu estava com medo, sabendo que, a partir daquele momento eu era responsável por cuidar de você. Coloquei você no balanço, mas estava com medo de empurrar com força demais e você cair. Você parecia assustada. Eu queria fazer alguma coisa, qualquer coisa para provar a você que eu era um cara legal. — Ouço a voz dele ficar embargada. — Eu me apaixonei por você logo de cara. Jurei que nunca deixaria ninguém machucá-la e agora eu sou o idiota que está te machucando. Eu me odeio por isso.
Eu não digo nada.
— Sei que vai levar um tempo para você me perdoar, mas não vou desaparecer da sua vida. Eu amo você — ele diz.
Sei que parece loucura, mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu, nunca duvidei que meu pai não me amasse. Eu simplesmente não consigo entender como ele pode ter me amado e feito o que fez.
Sei que ele espera que eu responda. Que eu diga que o amo. Mas eu já disse isso uma vez. É tudo o que posso fazer.
18
— Chloe? — Meu pai pega a minha mão. O toque me provoca um choque de dor. Eu quase me afasto, mas não faço isso porque sei que vou magoá-lo.
Nós ficamos sentados ali. Lembro-me do que eu queria perguntar a ele esta noite.
— Qual era o nome da agência de adoção?
— O quê?
Tiro a minha mão da dele.
— O nome da agência de adoção. Era em Fort Landing, não era?
— Sim. Acho que era... New Hope ou algo assim. Por quê?
Dou de ombros.
— Só curiosidade.
— Você está querendo...
— Não — me apresso a dizer. — E não diga nada à mamãe. Tenho medo que ela fique chateada.
— Não vou dizer nada.
Depois de outros segundos de silêncio, ele abre a porta do carro.
— Vamos lá? — diz ele.
— Onde?
— No balanço? Você costumava querer que eu te balançasse o tempo todo.
— Não — eu digo.
— Me deixe fazer isso... Você me disse uma vez que balançar era tão bom quanto voar.
Quase volto a recusar o convite, mas me lembro de quanto ele parecia chateado alguns minutos atrás, então resolvo sair do carro. Está escuro, mas a lua está cheia e brilhante. A noite está tão silenciosa que ouço nossos passos na calçada. Caminhamos até os balanços mais altos. Cada um se senta em um, deixando um espaço entre nós. Ele parece grande demais para estar num balanço. Eu me sinto muito grande. Mas a mágoa entre nós, de alguma forma, parece menor.
Eu balanço. Pernas para trás. Pernas para a frente. Contemplo a grande bola prateada no céu, as estrelas brilhantes. O movimento, o vaivém, parece de alguma forma catártico. A sensação é de que estamos voando.
Uma lufada de ar passa por mim quando meu pai pega impulso. Enquanto ele avança, eu recuo. Não estamos no mesmo ritmo. Percebo que pode demorar um pouco até que a minha relação com meu pai volte a ser como antes.
Eu não sei quando conseguirei perdoá-lo, mas essa é a primeira vez que sinto o arrependimento dele. Isso não resolve nada. Mas é um começo. Talvez nunca mais seja como antes, mas espero que encontremos um novo ritmo, um novo relacionamento entre pai e filha que não cause mágoas.
Acho que quebrar ovos pode ter suas vantagens.
Quando entro em casa, não sinto cheiro de comida vindo da cozinha. Minha mãe não preparou o jantar. Vou até o quarto, esperando que ela esteja acordada.
Ela está. Deitada no sofá, lendo. Não está escrevendo. Eu fico ali, lembrando-me de como me senti quando vi a sra. Fuller, como se tivessem me roubado alguma coisa — o amor da minha mãe. No entanto, eu tenho uma mãe. E por mais relapsa que tenha sido neste último ano, ela me ama. Eu sei disso. E eu a amo.
Ela ergue os olhos e de repente me sinto culpada. Culpada por ter sentido que ela não bastava, culpada por ter me queixado ao meu pai por ter de cuidar dela. Sim, eu sou uma cretina. Foi horrível para mim, mas não tanto quanto foi para ela. E, se fosse eu que tivesse adoecido, ela faria a mesma coisa por mim. Só que ela nunca teria reclamado. Meu peito se aperta.
Pego o meu celular.
— Você quer de quê?
— O quê?
— Estou pedindo uma pizza para nós.
— Pensei que você tinha saído com seu pai para jantar...
— Eu não comi nada — digo.
— Por quê? — ela pergunta.
— Estava sem apetite.
— Vocês discutiram? — Ela se endireita no sofá, como se estivesse se preparando para ficar com raiva.
— Quero a de lombo canadense com abacaxi — minto, porque sei que ela adora. — Um pouquinho doce e um pouquinho salgada. Está bom para você?
— Sim. Sobre o que foi a discussão?
— Você quer salada?
— Você não vai me contar?
— Você sabe o que acho que devemos fazer? — pergunto.
— O quê? — ela diz parecendo um pouco frustrada.
— Encomendar a pizza e depois dar outra chance para aquele filme que você queria assistir.
Ela faz uma careta.
— Era um pouco forte...
— Talvez. Mas o humor às vezes é um pouco forte. E nós duas precisamos rir.
— Você já viu?
— Sim. Mas quero ver de novo.
— Com quem? Com quem você viu aquele filme?
Eu franzo a testa.
— Promete que não vai ficar brava?
— Alex? — Como eu não nego, ela parece chocada, mas não muito brava.
— Sim. E nós dois rimos muito. E você está precisando rir também. Então vamos comer a pizza e assistir ao filme. E vamos rir das piadas de camisinha. Ok?
Ela parece surpresa com o meu jeito de falar, meio autoritário.
— Acho que não tenho escolha.
Lembro-me de Cash dizendo: Você sempre tem escolha. Mas, para minha mãe, essa é a escolha certa. E fico feliz que ela não esteja discutindo comigo. Já discuti o suficiente esta noite.
Quando Cash e os Fuller chegaram em casa, ele queria ir direto para o quarto.
— Acho que vou ler um pouco — disse a sra. Fuller, subindo as escadas, rumo à suíte principal.
Quando Cash começou a subir para o andar de cima, ouviu o sr. Fuller dizer:
— Cash, pegue duas cervejas na geladeira e vamos conversar aqui fora.
O quê?
— Cerveja?
— Sei que você já ficou bêbado antes.
— Eu não bebo tanto assim. — Ele já tinha visto o pai biológico beber demais e não tinha nenhuma vontade de fazer o mesmo.
— Eu não iria oferecer uma a você se achasse que bebe demais. Vou esperar aqui fora.
Cash pegou duas Bud Lights.
— O que eu fiz? — perguntou, com o palpite de que aquela pergunta tinha a ver com o comentário mal-humorado que soltara como resposta à sugestão de ser adotado.
— Obrigado por ir jantar conosco. Susan estava com receio de que você não fosse.
O sr. Fuller torceu a tampa da cerveja. Cash fez o mesmo.
— Ela te ama. — O sr. Fuller levantou a cerveja e deu uma golada.
— Ama até demais... — Cash tomou um gole.
— Ninguém pode amar demais — disse o sr. Fuller.
Cash discordava.
— Esta conversa é porque ela me disse que queria me adotar, não é?
O sr. Fuller baixou a cerveja.
— Nós não entendemos. Por que você não quer?
— Vou fazer 18 anos daqui a seis semanas. Não preciso de ninguém cuidando de mim.
— Todo mundo precisa de uma família, Cash.
Não, não é verdade.
— Olha, não é que eu não seja grato ao que vocês fazem por mim.
— Nós sabemos disso, Cash. É por isso mesmo. Você é grato. Nós temos certeza. E, tirando as briguinhas por aí, você é um bom garoto. Até suporta as regras de Susan... e algumas são ridículas! E eu sei que é porque você gosta dela. É por isso que não entendo por que você não quer a adoção.
Cash encolheu os ombros.
— Eu não sei o que dizer. Só não acho necessário.
O sr. Fuller tomou outro gole de cerveja.
— Você sabe do que ela tem medo?
— Não. — Cash girou a garrafa gelada nas mãos.
— Que, depois do seu aniversário, você arrume suas coisas e vá embora e nós nunca mais vejamos você. E... Caramba! Ela ainda sofre porque perdeu a filha. Não pode perder o filho.
A dor apertou o peito de Cash. Por isso ele esperava que Chloe fosse Emily.
— Não pretendo me mudar antes de me formar.
— E depois? — perguntou o sr. Fuller.
— Eu preciso ser eu mesmo.
— E quando tentamos fazê-lo ser algo que você não é?
— O tempo todo — disse ele, num tom firme. Você quer que eu seja seu filho. — Você ficou chateado quando me inscrevi em Tecnologia Automotiva. Você quer que eu vá para uma faculdade chique. E a sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina. O que eu não vou fazer.
— É errado da nossa parte querer que você vá para uma faculdade melhor? Você é tão inteligente, Cash! Você tem notas mais altas do que eu e Susan tínhamos. Você pode ser o que quiser. Por que quer ser mecânico?
— Não há nada de errado em ser mecânico. E eu vou para a faculdade, só não vou fazer o que você quer.
— Mas nós temos dinheiro...
— Eu consegui uma bolsa! — Cash se levantou.
— Cash, filho, por favor, sente-se.
Eu não sou seu filho.
Ao ver que Cash não faria isso, o sr. Fuller continuou:
— Estou implorando a você, não a magoe mais do que ela já foi magoada.
— Estou tentando não fazer isso. — Cash disparou para o andar de cima, procurando não bater a porta do quarto com muita força.
No quarto, o celular tocou. Uma mensagem de Chloe. Ele tinha enviado uma mensagem para ela mais cedo e perguntado se poderiam conversar.
A resposta dela: Esta noite não posso. Vamos conversar amanhã.
— Merda! — Cash jogou o aparelho na cama. Ele bem que precisava de uma distração. Precisava rir um pouco. Precisava ouvir a voz suave dela. Queria provocá-la mais sobre a leitura de Cinquenta Tons de Cinza e contar sobre o livro que comprara.
Ele queria...
Ele queria...
Ele queria...
Eram onze horas quando fui dormir. Minha mãe e eu rimos muito com o filme. Acho que foi um bom filme, mas na verdade ri mais de minha mãe do que de qualquer outra coisa. Agora não consigo dormir. Nada mais parece tão engraçado. Continuo vendo os Fuller na minha frente. O rosto dela no restaurante. O rosto dele. Os olhos dele. O homem que poderia ser meu pai.
Fico me perguntando se sou Emily. E se eu sou, o que seria da minha vida se eu não tivesse sido sequestrada e levada para longe da minha verdadeira família? Na outra vida, eu ainda seria eu? Como eles ainda são casados, eu teria sido poupada da tristeza causada pelo divórcio dos meus pais? Da angústia causada pelo câncer da minha mãe? Eu teria ido para uma escola particular e agora estaria planejando ingressar em uma das melhores faculdades do país? Quem eu seria se não tivesse crescido achando... achando que fui abandonada? Que fiz algo de errado. Até que ponto minha vida teria sido melhor?
Isso faz com que eu me sinta culpada novamente. Como se querer respostas, querer saber se meus verdadeiros pais me amavam, fizesse de mim uma filha ingrata aos olhos dos pais que me adotaram.
Afastando esse pensamento, começo a recapitular todas as coisas que eu disse para o meu pai. Tudo que eu disse é verdade, mas eu me lembro das lágrimas nos olhos dele, da dor que minhas palavras lhe causaram. Mesmo sabendo que ele mereceu, não me parece certo fazê-lo sofrer.
O pensamento mais absurdo me ocorre. E se o meu pai sofresse um acidente a caminho de casa? E se eu o perdesse! Lembro-me dele dizendo que me ama, enquanto estávamos sentados no carro. Ele precisava ouvir que eu também o amo, mas eu não disse nada. E se aquela foi a última chance que tive de dizer isso?
Eu sei, não devia pensar em tragédias como essa, mas penso assim mesmo, e essa bola de emoção — de tristeza e de uma culpa que eu não deveria sentir — fica represada no meu peito, como um grande elefante cor-de-rosa.
Pego o celular para mandar uma mensagem para o meu pai. Então percebo que ele não está na casa dele, percebo que a casa dele era minha e agora é a casa de Darlene. Jogo o celular longe e fecho as mãos em punho.
Penso em escrever uma mensagem para Lindsey, mas tenho certeza de que ela ainda está fora com David.
À meia-noite, pego o celular para mandar uma mensagem para Cash. Quero contar a ele que descobri o nome da agência de adoção. Quero alguém para me dizer que eu não deveria me sentir desleal por precisar de respostas. Ou talvez eu só queira conversar. Com ele. Ontem à noite, nossa conversa foi divertida. Me fez esquecer como a minha vida está bagunçada.
Não importa que ele esteja ajudando a descobrir se sou uma criança sequestrada. Não importa, por causa da provocação, do flerte, do desejo de saber mais sobre ele. Isso é divertido. É normal.
Eu preciso de mais coisas normais.
Começo a mandar uma mensagem para ele, mas o imagino dormindo em sua cama. Até imagino-o sem camisa. Nunca o vi sem camisa, mas posso imaginar como seria bom.
Nesse momento, meu celular toca, avisando sobre a chegada de uma mensagem. Levanto da cama num salto e pego o celular.
É dele. Está acordada?
Eu: Sim. Quer conversar?
Ele: Não.
Eu: Não...?
Ele: Quero ver você. Estou aqui fora, em frente à sua casa.
Eu: Em frente à minha casa? Agora?
Eu corro para a janela. Meu coração dispara.
Eu vejo o jipe dele. E mais do que tudo, quero ver Cash.
19
Eu me viro para ir até a porta, mas ouço o velho assoalho de madeira rangendo embaixo dos meus pés descalços. Paro e percebo que estou vestindo apenas shorts e uma camiseta combinando.
Estou decente?
Sim. Embora esteja sem sutiã, a blusa não é justa.
Meu próximo pensamento é se minha mãe está me ouvindo.
Corro de volta para a janela.
Não tem tela. Estou prestes a destrancá-la quando meu celular tocar novamente.
Ele: Isso significa que você não quer me ver?
Eu: Estou abrindo a janela.
Ouço a porta do jipe abrir e fechar, e vejo Cash. O peso no meu peito diminui como neblina se dissipando.
Ele parece tão lindo, caminhando em direção à minha janela... Em direção a mim.
— Tenho medo de acordar minha mãe, se abrir a porta da frente — sussurro.
Ele olha para cima.
— Você quer que eu entre?
— Não, eu vou sair. — Olho para baixo. É apenas uma queda de um metro de altura. Considerando que tenho um metro e setenta de altura, não é nada. Coloco o tronco para fora da janela, monto no parapeito, depois me viro e coloco a outra perna para fora. Estou inclinada para a frente, sentada na janela. Tudo que preciso fazer é saltar.
— Eu pego você. — As palavras dele soam tão doces. Eu quero que ele me pegue.
Cash estica a mão e eu salto. As mãos deslizam para baixo da minha blusa de pijama. Sinto o toque dele na minha cintura nua, e é tão bom, tão quente, tão doce. Eu instantaneamente sinto borboletas no estômago.
Quando coloco os pés no chão, recupero o fôlego, não por causa do salto, e sim em razão do toque de Cash. Ele me puxou para mais perto ou eu é que me aproximei?
Nós nos beijamos. Os lábios macios de Cash deslizam sobre os meus. As mãos dele descansam na minha cintura, e seus polegares fazem pequenos círculos nas minhas costas, logo acima da minha cintura. Minhas mãos se movem para a cintura dele.
Eu me inclino mais para perto. Meus seios, sem sutiã, estão comprimidos contra o peito sólido dele. Uma emoção, um doce formigamento, toma conta de mim.
— Uau. — Ele se afasta.
— Sim. — Eu sorrio. — Eu queria mandar uma mensagem para você.
— Por que não mandou?
— Achei que estivesse dormindo.
— Não consegui dormir — ele diz.
— Nem eu.
— Noite ruim? — ele pergunta.
— Sim. E você?
— Sim. Mas está melhor agora. — Ele se aproxima e me beija novamente. Desta vez, a língua dele desliza entre os meus lábios; sua boca tem gosto de menta, como se ele tivesse tomado um refresco.
Quando o beijo termina, estamos ambos sem fôlego.
— Você quer ir a algum lugar?
Eu reviro os olhos.
— Estou de pijama e descalça.
Seus olhos se desviam para os meus pés.
— Que fofura...
Enfio os dedos na grama quente.
— Meus pés?
— Você inteira! — diz ele. — Quer se sentar na varanda?
Eu ouço um miado. Félix pula no peitoril da janela do meu quarto.
— Não! — digo a ele, e Félix volta para o meu quarto. Cash fecha a janela.
— Talvez no seu carro — eu digo, sem querer que ninguém me veja de pijama, beijando um cara na minha varanda da frente.
— Tudo bem. — Ele tira a mão da minha cintura e segura a minha mão enquanto caminhamos para o carro dele. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
— O que aconteceu? — pergunto, lembrando-me do comentário sobre a noite ruim. — Eles não me viram, não é?
— Não. Só um pouco mais da mesma ladainha.
— Você quer dizer deixar o emprego e ir para uma faculdade melhor?
— Sim — diz ele.
— Lamento por você.
Chegamos ao jipe de Cash.
— Você quer sentar no banco de trás?
Lembro-me do comentário de Lindsey sobre não querer que David pensasse que ela queria se sentar no banco de trás.
— Só para conversar — diz Cash, como se estivesse lendo meus pensamentos. — E beijar. — Ele parece envergonhado. — Não é para... você sabe.
— Sei. — Eu sorrio porque acredito nele. Cash não está ali para tentar algo para o qual eu não esteja pronta.
Fico na ponta dos pés e beijo a bochecha dele.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por vir aqui.
Cash abre a porta de trás e entra no jipe depois de mim. O console entre os assentos está abaixado. Deslizo apenas até a metade do banco e fico perto dele. Cash se acomoda ao meu lado e fecha a porta.
— Ovelhas — diz ele.
— O quê? — pergunto.
— Você tem ovelhas nos shorts e na blusa.
Eu olho para baixo.
— Estou de pijama.
— Eu sei. — Sorrindo, ele tira meu cabelo da bochecha. — Ah, tome.
Ele tira algo do bolso. É um saquinho.
Eu sorrio ao ver o que é.
— Skittles vermelhos. Obrigada. — Coloco um na boca.
Então coloco um na boca dele.
— O que fez a sua noite ficar ruim? Encontrar os Fuller no restaurante?
— Em parte. E eu sou uma quebradora de ovos agora.
— O quê?
— Lembra que eu acusei você de ser um quebrador de ovos enquanto eu sou alguém que gosta de pôr panos quentes?
— Sim. O que você fez?
— Fiquei com muita raiva. Disse ao meu pai o que eu pensava dele por ter saído de casa e me deixado sozinha para cuidar da minha mãe doente.
— Muito bem. — Seu tom carinhoso me atinge em cheio no coração. — O que ele disse?
— Acho que meu pai finalmente percebeu o idiota que ele foi.
— Isso foi bom? — pergunta Cash.
— Não. Na verdade, não. Eu o magoei. — Mordo o lábio. — Ele chorou. Implorou para que eu o perdoasse.
— E você o perdoou — ele diz quase como se fosse uma coisa ruim.
— Não. Eu disse a ele que não era fácil. Mas eu falei que ainda o amo.
— Você é uma pessoa melhor do que eu — Cash diz.
Eu vejo algo nos olhos dele.
— Quem você precisa perdoar?
— Muitas pessoas.
Ele me beija novamente. Eu me perco na sensação da sua boca contra a minha.
Em alguns minutos, estamos deitados no assento, um de frente para o outro. Nós nos beijamos, nos beijamos e nos beijamos. As minhas mãos estão em seu peito; as dele, ainda na minha cintura. Ele sobe a minha blusa nas costas e suas mãos começam a vir para a frente. Para os meus seios.
Então ele tira as mãos das minhas costas e enterra o rosto no meu pescoço. Sinto sua respiração contra minha bochecha. Eu abro os olhos.
As janelas do carro estão embaçadas. Ele levanta a cabeça e eu vejo seus olhos. As pupilas estão dilatadas. Eu sei que ele parou para cumprir sua promessa. E eu quase gostaria que ele não tivesse prometido nada.
Cash sorri. Eu sorrio de volta.
— Eu precisava disso — ele diz. — Você me faz... esquecer as coisas ruins.
— Sim. — Eu o beijo outra vez, mas termino rapidamente. Lá no fundo, sei que precisamos desacelerar. Sei o que vem a seguir. E, embora pareça ótimo, não estou realmente pronta para o próximo passo.
Eu toco os lábios dele.
— Você faz eu me sentir tão... normal.
— Normal? — Ele sorri contra os meus dedos. — Para uma garota que lê histórias de amor, acho que você pode fazer melhor do que isso.
Eu solto uma risada.
— Não, quero dizer, não sou Chloe, cuja mãe tem câncer ou está depressiva. Ou Chloe, cujo pai é um cafajeste. Ou Chloe que pode ser uma garota sequestrada. Sou apenas uma garota normal, sentindo coisas incríveis enquanto beija um cara muito gato.
— Gosto da parte do “cara muito gato” — diz ele.
— Eu gosto do cara muito gato.
— Você é incrível. — Cash corre um dedo pela minha bochecha.
Lembro-me do que eu queria dizer a ele.
— Você estava certo. Meus pais usaram a Agência de Adoção New Hope.
— Como você sabe?
— Perguntei ao meu pai.
— Você contou a ele...?
— Não, eu disse que estava curiosa e pedi que não comentasse nada com a minha mãe.
Cash assente.
— Deveríamos ir até essa agência. Pedir para ver a sua documentação.
— Eles me deixariam ver? — Sento-me.
— Você não tem 18 anos ainda, mas logo terá, então quem sabe? Talvez deem algum papel para seus pais assinarem.
A mágica do beijo começa a desaparecer e eu me lembro do que estou enfrentando.
— Eu quero fazer isso. Vou fazer, mas... — Eu me lembro de ouvir minha mãe rindo aquela noite. — Não posso pedir para a minha mãe assinar nada. Isso pode deixá-la ainda mais deprimida.
— Eu poderia forjar a assinatura dela.
— Isso é ilegal.
— Não tão ilegal quanto sequestrar uma criança.
Sim, a mágica se foi.
— Meus pais não me sequestraram. Eles me adotaram.
— Eu não quis dizer... — Cash hesita. — Antes de irmos, precisamos saber tudo que for possível. Vou tentar dar uma olhada no arquivo. Podemos ir à agência na segunda-feira.
Concordo.
Os olhos verdes encontram os meus com cautela.
— Quando perguntei se você se lembrou de algo de antes da adoção, você disse “mais ou menos”. Do que você se lembra?
— Nem chega a ser uma lembrança completa. Estou sentada num sofá, ele é marrom-claro e manchado. Estou chorando, assustada. Calço sapatos pretos de verniz, com fivelas. O tapete é sujo. E estou usando um vestido de princesa e segurando uma tiara.
— Havia alguém com você?
— Não sei. Tudo o que sei é que estou com medo.
— Como se você tivesse sido sequestrada?
— Não sei, mas esse sentimento, esse mesmo medo, às vezes eu sinto do nada. — Minha garganta dá um nó. — Ou talvez seja do dia em que a minha mãe me deixou na agência de adoção. E se estivermos errados? E se tudo isso for uma coincidência? E meus verdadeiros pais simplesmente não me queriam?
Ele franze a testa.
— São muitas coincidências. Sua vida aqui. O nome do seu gato. A data em que Emily foi sequestrada e que você foi adotada. A sua boneca.
— Sim, mas ainda assim podem ser simples coincidências.
O ombro dele se aproxima do meu.
— Vamos descobrir.
Fecho os olhos e me lembro de quase ouvir alguém me dizendo que minha mãe e meu pai não me queriam mais. Isso aconteceu ou foi só uma impressão que eu tive? E o machucado no rosto...?
— Você acha que, se os Fuller tivessem me visto, eles me reconheceriam?
— Sim. Você está como naquela foto.
Eu me inclino contra ele.
— Isso é tão difícil...
— Eu sei — diz Cash.
Nesse momento, um carro para em frente à casa de Lindsey. Vejo quando os faróis se apagam.
— É Lindsey voltando para casa, depois do encontro com David. — Eu me abaixo no assento e o puxo para baixo. Ele volta a se levantar.
— Opa! Eles estão na varanda. Vão se beijar.
— Pare de bisbilhotar. — Mas então eu me levanto e vejo David beijar Lindsey.
— Que bom! — digo, esperando que Lindsey não esteja pensando em Jonathon.
— Isso é mais que bom. — Cash me puxa para baixo e me beija. E ele está certo. É mais do que bom.
Nos beijamos até ouvirmos o carro de David se afastar. Então eu digo:
— Já é tarde.
— Tem razão. — Ele me leva de volta até a janela e a abre.
Eu calculo a altura.
— Entrar vai ser mais difícil do que foi para sair.
— Salte e eu te dou impulso. — Ele pega os Skittles da minha mão e os coloca no bolso.
Apoio as mãos no parapeito da janela e pulo. As mãos dele empurram meu traseiro e Cash me dá impulso para cima. Metade do meu corpo já está do lado de dentro. De repente, acho engraçado. Dou risada e olho para trás.
— Já pode tirar as mãos da minha bunda agora.
— Eu estava apenas ajudando — diz ele, e sorri.
Acabo de escalar a janela, depois me viro e olho para Cash.
Ele me entrega as balas e depois dá um salto se apoiando no parapeito. Seus ombros enchem o espaço da janela, os bíceps musculosos enrijecendo, os olhos verdes nos meus.
Ele me dá um breve beijo de despedida.
— Bons sonhos.
— Você também.
Eu o vejo voltar para o carro. Corro a língua pelos lábios para saborear o gosto do beijo dele. Mesmo com todos os problemas, pela primeira vez estou começando a gostar de morar em Joyful.
C O N T I N U A
— O que está fazendo? — pergunto quando meu pai entra no estacionamento de uma loja de conveniência, a pouco mais de um quilômetro de onde minha mãe e eu estamos morando agora. Minha voz soa meio desafinada depois de passar cinco horas de viagem sem falar. Eu estava com medo de que, se dissesse alguma coisa, tudo dentro de mim transbordaria. Minha raiva. Minha mágoa. Minha decepção com o homem que costumava ser meu super-herói.
— Preciso abastecer o carro e ir ao banheiro — diz ele.
— Ir ao banheiro? Quer dizer que você não pode nem entrar para ver minha mãe quando me deixar em casa? — Sinto o coração apertado como se uma mão gigante o esmagasse.
Ele me olha nos olhos, ignora minhas perguntas e diz apenas:
— Você quer alguma coisa?
— Sim, minha vida de volta! — Saio do carro e bato a porta com tanta força que o barulho de metal contra metal reverbera no ar abafado do Texas. Arrasto os pés pelo estacionamento, enquanto fito minhas sandálias brancas devorando a calçada e tento esconder o brilho das lágrimas nos meus olhos.
— Chloe! — meu pai me chama. Eu ando mais rápido.
Com os olhos ainda colados no chão, abro a porta, entro com tudo dentro da loja e dou um encontrão em alguém, esmagando meus peitos contra o peito da pessoa.
— Merda! — rosna uma voz grave.
Um copo de isopor bate no chão e uma bebida vermelho-sangue explode nas minhas sandálias brancas. O copo vira, provocando uma hemorragia no piso de ladrilhos brancos.
Engulo o nó na garganta e dou um passo para trás, afastando meu sutiã tamanho P do tórax de um sujeito.
— Desculpe — ele murmura, embora a culpa seja minha.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ARRANCADA_DO_MEU_MUNDO.jpg
Eu me forço a olhar para ele e vejo primeiro o peito largo, depois os olhos verdes e em seguida o cabelo preto-azeviche caído na testa. Ah, droga! Eu não podia ter trombado com algum velhinho de bengala?
Volto a fitar os olhos brilhantes do desconhecido e vejo uma mudança neles. Não estão mais com uma expressão de quem se desculpa. Agora parecem chocados e então... zangados.
Eu deveria dizer algo do tipo, Eu é que tenho que me desculpar, mas o nó na minha garganta volta com força total.
— Merda. — A palavra volta a escapar, agora com uma cara feia.
Concordo, tudo isso é uma merda!
Ouço meu pai chamar meu nome novamente, do lado de fora da loja.
Minha garganta fica mais apertada e as lágrimas ardem nos meus olhos. Com vergonha de chorar na frente de um estranho, arranco minhas sandálias e disparo na direção de uma geladeira cheia de refrigerantes.
Abro a porta de vidro e estico o pescoço para sentir o ar frio, precisando muito esfriar a cabeça. Enxugo algumas lágrimas rebeldes nas bochechas, depois sinto alguém ao meu lado. Meu pai não vai deixar isso passar em branco.
— Apenas admita que você estragou tudo! — eu digo, depois olho para o lado e sou engolida por aqueles mesmos olhos verde-claros zangados de um minuto atrás. — Pensei que você fosse... Foi mal... — balbucio, sabendo que é tarde para um pedido de desculpas. O olhar dele é inquietante.
O garoto continua a me encarar. Um olhar que não faz a mínima questão de esconder a antipatia. Como se a irritação dele não fosse apenas pela raspadinha derramada.
— Eu pago a sua bebida. — Ele nem pisca, então acrescento: — Me desculpe.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta fica sem resposta.
— O quê? Eu conheço você? — Sei que fui rude, mas, gato ou não, o cara está me deixando assustada.
Os olhos dele brilham de raiva.
— O que você quer? — Não entendo por que há um tom de acusação na voz dele.
— Como assim?
— Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Ele ainda está me encarando. Percebo que estou me sentindo intimidada com aquele olhar.
— Eu não sou... Você deve estar me confundindo com outra pessoa. — Balanço a cabeça, sem saber se o cara é tão louco quanto sexy. — Não sei do que você está falando. Mas já me desculpei. — Pego uma lata de bebida e, descalça, com as sandálias gosmentas na mão, ando rápido para a entrada da loja.
Meu pai entra, carrancudo.
— Cuidado! — diz a moça do caixa ao meu pai, enquanto limpa o chão sujo de raspadinha em frente à porta.
— Desculpe — murmuro para a moça e aponto para o meu pai. — Ele vai pagar meu refrigerante! E essa raspadinha aí no chão.
Disparo até o carro, entro e seguro a lata fria de refrigerante contra a testa. Os fios de cabelo na minha nuca começam a ficar arrepiados. Olho em volta e o gato esquisitão está do lado de fora da loja, me encarando novamente.
Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
É isso aí, o cara não bate bem. Desvio o olhar para fugir da vigilância dele. Meu pai volta para o carro. Ele não dá partida, fica ali parado, só me olhando.
— Você sabe que isso não é fácil para mim também.
— Ok. — Então, por que você saiu de casa?
Ele liga o carro, mas, antes de partirmos, olho em volta novamente e vejo o garoto de cabelos pretos parado no estacionamento, escrevendo algo na palma da mão.
Engano meu ou ele está anotando o número da placa do meu pai? Esse cara é muito doido! Eu quase digo algo para o meu pai, mas me lembro de que estou chateada com ele.
Meu pai acelera. Fico atenta ao espelho retrovisor. O cara gostosão fica ali, com os olhos colados no carro do meu pai, e eu também não tiro os olhos dele até que não passe de um pontinho preto no retrovisor.
— Sei que é difícil — diz meu pai. — Penso em você todo dia.
Eu balanço a cabeça, como se entendesse, mas não falo nada.
Minutos depois, meu pai encosta o carro na frente da nossa casa. Ou melhor, da casa onde moramos minha mãe e eu. Meu pai não mora mais conosco.
— Eu te ligo amanhã para ver como foi o seu primeiro dia de aula.
Meu estômago se contrai como um tatu-bola com o lembrete de que vou começar meu último ano do ensino médio numa escola nova. Olho para a casa velha no bairro antigo. A casa que um dia pertenceu à minha avó materna e que minha mãe alugou para um casal de idosos nos últimos anos. Agora moramos nela. Uma casa que cheira a gente velha... e a tristeza.
— Ela está em casa? — pergunta meu pai.
À luz do entardecer, nossa casa está às escuras. Uma luz dourada se infiltra por debaixo da porta da casa ao lado, onde mora Lindsey; ela foi a primeira pessoa da minha idade que conheci na cidade.
— Mamãe provavelmente está descansando — respondo.
Ficamos calados por um momento.
— Como ela está?
Achei que não ia perguntar... Olho para eu pai, enquanto ele segura o volante com força e analisa a casa.
— Bem. — Abro a porta do carro, sem querer me despedir. Dói demais.
— Ei! — ele sorri. — Pode me dar pelo menos um abraço?
Eu não quero dar, mas por algum motivo (porque sob toda aquela raiva, eu ainda o amo) eu me inclino sobre o console entre os bancos e o abraço. Ele não tem mais nem o cheiro do meu pai. Está usando uma colônia que Darlene provavelmente comprou para ele. Lágrimas ardem nos meus olhos.
— Tchau. — Tiro do carro um pé melado de raspadinha.
Antes de eu levantar o traseiro do banco, ele diz:
— Ela vai voltar logo a trabalhar?
Eu me viro para ele.
— Foi por isso que você perguntou como ela está? Por causa do dinheiro?
— Não. — Mas a mentira é tão clara na voz dele que fica pairando no ar.
Quem é esse homem? Ele tinge os fios grisalhos nas têmporas. Agora usa o cabelo espetado e está vestindo uma camiseta com o nome de uma banda que ele nem sabia que existia até Darlene aparecer na vida dele.
Antes que eu possa me conter, as palavras se derramam da minha boca:
— Por quê? Sua namorada está precisando de mais um par de sapatos de grife?
— Não, Chloe — ele diz num tom severo. — Você está falando como a sua mãe.
A mágoa agora aperta a minha garganta.
— Ah, pelo amor de Deus... Se eu falasse como a minha mãe, diria: “A putinha está precisando de mais um par de sapatos de grife?”. — Eu me viro outra vez para a porta do carro.
Ele pega meu braço.
— Olhe aqui, mocinha, não posso esperar que você goste dela assim como eu, mas gostaria que pelo menos a tratasse com respeito.
— Respeito? A pessoa precisa merecer respeito, pai! Se eu usasse as roupas que ela veste, você me mataria. Na verdade, nem você eu respeito mais! Você arruinou a minha vida. Você ferrou a vida da mamãe. E agora está transando com alguém dezoito anos mais jovem que você. — Saio do carro e, a meio caminho da soleira de casa, ouço a porta do carro se abrir e bater.
— Chloe. Suas coisas. — Ele parece zangado, mas não mais do que eu, porque, além de raiva, sinto mágoa.
Se eu não estivesse com receio de que ele me seguisse até em casa, todo ofendido, e começasse uma discussão com a minha mãe, eu não voltaria para pegar nada. Mas não quero mais ouvi-los discutindo. E não sei se minha mãe também iria aguentar. Não tenho opção a não ser fazer a coisa certa. É péssimo quando você é a única pessoa na família que se comporta como um adulto.
Eu me viro, seco as lágrimas bruscamente e me volto para o meio-fio.
Meu pai está de pé ao lado do carro, com uma mão segura a minha mochila e, com a outra, uma enorme sacola com as roupas novas que comprou para eu usar na escola. Ótimo. Agora me sinto a filha desalmada e ingrata.
Quando me aproximo, murmuro:
— Obrigada pelas roupas.
— Por que está tão brava comigo? — ele pergunta.
Tantas razões... Qual delas eu escolho?
— Você deixou Darlene transformar meu quarto numa academia de ginástica.
Ele balança a cabeça.
— Nós tiramos suas coisas e colocamos no outro quarto.
— Mas aquele quarto era meu, pai.
— É por isso que você está tão brava ou será porque... ? — Ele faz uma pausa. — Não é culpa minha que sua mãe tenha ficado...
— Continue pensando assim — eu digo. — Um dia desses, você pode até começar a acreditar!
Com as mãos ocupadas e o peito pesado, deixo meu super-herói e meu coração partido abandonados na calçada. Minhas lágrimas estão caindo rápidas e quentes quando fecho a porta da frente atrás de mim.
Docinho, um vira-lata amarelo de porte médio, me cumprimenta com um ganido e o rabo abanando. Eu o ignoro. Largo a mochila, a sacola de compras e vou para o banheiro. Félix, meu gato amarelo tigrado, vem correndo e entra comigo.
Tento fechar a porta de um jeito normal, em vez de batê-la com raiva. Se minha mãe me vir assim, vai ficar chateada. Pior ainda, isso alimentará sua raiva.
— Chloe? — minha mãe chama. — É você?
— Sim. Estou no banheiro. — Espero que minha voz não revele quanto me sinto arrasada.
Eu me sento no vaso sanitário, pressiono as costas das mãos contra a testa e tento respirar.
Os passos da minha mãe fazem o velho assoalho de madeira ranger. A voz dela soa atrás da porta.
— Está tudo bem, querida?
Félix está ronronando e se esfregando na minha perna.
— Sim. Mas meu estômago nem tanto... Acho que o bolo de carne que comi na casa do papai não caiu bem.
— Darlene é quem estava cozinhando? — O tom de voz dela denuncia o ódio reprimido.
Eu cerro os dentes.
— Sim.
— Por favor, diga que seu pai repetiu o prato.
Fecho os olhos, quando o que realmente quero fazer é gritar: Pare com isso! Eu entendo por que minha mãe está tão furiosa. Entendo que meu pai é um filho da mãe. Entendo que ele se recusa a assumir a culpa e que isso só piora as coisas. Entendo o que ela passou. Entendo tudo isso. Mas ela tem ideia do quanto me dói ouvi-la falar tão mal de alguém que eu ainda amo?
— Vou me sentar um pouco lá fora, no quintal — diz ela. — Quando sair daí, vá se sentar lá comigo.
— Ok — respondo.
Os passos da minha mãe se afastam.
Fico sentada no vaso e tento não pensar em tudo que me magoa. Em vez disso, faço carinho em Félix. Seus olhos, tão verdes, me levam de volta ao garoto da loja. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
Que diabos ele quis dizer com isso?
Saio do banheiro, mas, antes de abrir a porta dos fundos, olho pela janela e vejo minha mãe no gramado, reclinada numa cadeira de armar. O sol está se pondo e ela está banhada numa luz dourada. Os olhos estão fechados e o peito se move para cima e para baixo, respirando lentamente. Está tão magra... magra demais.
O lenço azul desbotado escorregou da cabeça dela. Tudo que eu vejo é sua cabeça sem cabelos. E — pronto! Estou com raiva do meu pai outra vez.
Talvez ele esteja certo. Talvez eu o culpe pelo câncer da minha mãe.
Não adianta nem eu me lembrar de que, três semanas atrás, o médico a considerou curada. De fato, o câncer de mama foi detectado tão cedo que os médicos insistiram em dizer que deveríamos considerá-lo só um pequeno obstáculo no caminho.
Mas eu odeio os solavancos que os obstáculos podem provocar...
Meu olhar é atraído para a cabeça dela novamente. O médico afirmou que as breves sessões de quimioterapia eram só para ter certeza de que não restaria nenhuma célula cancerígena. Mas até eu ver o cabelo da minha mãe voltando a crescer e as costelas protuberantes sumindo, não vou parar de ter medo de perdê-la.
Quando ela foi diagnosticada, pensei que meu pai voltaria, que ele perceberia que ainda a amava. O mais triste é que acho que minha mãe pensou o mesmo. Mas isso não aconteceu.
Minha mãe abre os olhos, ajusta o lenço na cabeça e fica de pé com os braços abertos.
— Venha cá. Senti sua falta.
— Só fiquei três dias fora — digo. Mas é a primeira vez que durmo fora de casa desde que minha mãe adoeceu. E senti falta dela também.
Caímos nos braços uma da outra. Os abraços dela começaram a ficar mais longos desde que se separou do meu pai. Os meus ficaram mais apertados desde que a temida doença de minha mãe marcou nossas vidas.
Eu retribuo o abraço dela. Docinho está aos meus pés, a cauda abanando e batendo na minha perna.
— Ela redecorou a casa? — O tom de voz dela é casual, mas ainda carregado de animosidade.
Apenas o meu quarto. Mudando de assunto, eu pergunto:
— O que você fez enquanto estive fora?
— Li dois livros. — Ela sorri.
— Você não pegou seu manuscrito e tentou escrever?
Antes da separação, minha mãe passava todo o seu tempo livre trabalhando em seu livro. Ela chamava esse hobbie de “minha paixão”. Suponho que meu pai tenha exterminado essa paixão também.
— Não. Não tive vontade — ela diz. — Ah, olhe! — Ela tira a bandana. — Já está nascendo uma leve penugem na minha cabeça. Ouvi dizer que algumas mulheres gastam uma fortuna para ficar com esse visual.
Eu solto uma risada, não porque seja engraçado, mas porque ela está rindo. Eu não me lembro da última vez que minha mãe riu. Será que as coisas estão melhorando?
Ela vai até a cadeira de balanço dupla e se senta.
— Sente-se.
A cadeira afunda sob o nosso peso. O ombro de minha mãe esbarra no meu e ela olha fixamente para mim. Será que percebeu que meus olhos estão inchados de tanto chorar?
— O que há de errado, querida?
A preocupação em sua voz, o amor em seus olhos, tudo isso me faz lembrar de quando eu podia contar com ela para desabafar meus problemas. Quando eu não pesava cada palavra para garantir que não iria magoá-la. Porque ela já está sofrendo demais.
— Nada — eu digo.
Ela contrai os lábios.
— Seu pai deixou você chateada?
— Não — minto.
O olhar dela se demora em mim como se ela soubesse que não estou sendo sincera. Eu invento alguma coisa:
— É Alex.
— Você o viu enquanto estava na casa do seu pai?
Outro nó se forma na minha garganta. Acho que esse assunto também é delicado.
— Ele veio me ver e conversamos no carro.
— E então...?
— Não aconteceu nada. — Guardo essa dor para outra hora. — Eu disse a você que ele está saindo com outra pessoa.
— Sinto muito, querida. Você me odeia por tê-la feito se mudar de cidade?
Gente, não dá para odiar alguém que tem câncer! Mas e agora que o câncer está curado...? É tentador, mas não posso. Assim como não posso odiar meu pai.
— Eu não te odeio, mãe.
— Mas você odeia morar aqui? — A culpa acrescenta uma nota triste à voz dela. É a primeira vez que ela considera meus sentimentos sobre isso. Eu tentei ao máximo convencê-la a não se mudar, cheguei a implorar, mas ela não fez concessões. Então eu fiz. Fiz um monte de concessões.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Só é difícil.
Meu celular toca, indicando a chegada de uma mensagem. Não quero olhar agora, porque acho que é meu pai mandando uma mensagem para pedir desculpas e minha mãe pode ver, então vou ter que explicar. Ele está arrependido, não está? Quero acreditar que ele tenha percebido que dar meu quarto a Darlene foi um erro.
— Quem é? — pergunta minha mãe.
— Não sei. — O celular permanece no meu bolso.
Ele toca novamente. Merda!
— Você pode olhar para ver quem é... — diz minha mãe.
Eu tiro o celular do bolso e verifico as mensagens. Não é meu pai. E isso também me magoa.
— É Lindsey. — Eu leio a mensagem dela. Apareça quando puder.
— Ela ligou antes para ver se você estava em casa. Por que não vai vê-la? Vou preparar o jantar.
— Vou apenas mandar uma mensagem para ela — digo, sabendo que Lindsey vai perguntar sobre a minha viagem e eu não a conheço bem o suficiente para despejar tudo em cima dela.
— Ok. — Minha mãe dá um tapinha no meu braço. — O que você quer jantar?
— Pizza. — Estou morrendo de fome. Eu mal toquei no almoço na casa do meu pai.
— Pizza? Com o estômago revirado desse jeito? — diz minha mãe. — Que tal sopa de tomate e queijo grelhado?
Eu odeio sopa de tomate. É comida de hospital. Comida de quem tem câncer. Nós comemos isso quase todas as noites durante a quimioterapia. Então, mais uma vez, suponho que seja isso que eu ganhe por mentir.
— Claro!
Depois de um prato de sopa, um sanduíche e dois episódios de uma série, dou um abraço de boa-noite na minha mãe e vou para a cama. Docinho e Félix me seguem quando entro no meu quarto. Ou melhor, o quarto em que durmo. Meu quarto não existe mais.
Pego o celular para ver se alguma das minhas antigas amigas, ou talvez Alex, me mandou uma mensagem. Nada exceto outra mensagem de Lindsey, me lembrando de avisá-la quando estiver saindo para a escola na manhã seguinte.
Eu desabo na minha cama. Félix salta para cima do colchão, se aconchega ao meu lado e começa a ronronar. Docinho faz o mesmo e fica aos meus pés. Com o celular ainda na mão, deslizo a tela para as selfies que tirei de mim, Kara e Sandy neste final de semana. Nós estamos sorrindo, mas não é um sorriso sincero, natural. Parece que nós três estamos só fazendo pose. Como se estivéssemos fingindo alguma coisa. Fingindo um sorriso. Fingindo amizade.
Continuo passando as fotos com o dedo até chegar às mais antigas, com Kara e Sandy. Nós não estamos posando ou fingindo. Estamos nos divertindo. Isso está claro na nossa expressão, nos nossos sorrisos verdadeiros.
Eu continuo olhando as fotos até encontrar uma só minha e de Alex. Ele está beijando minha bochecha. Seus olhos azuis não aparecem na foto, e eu posso dizer que ele está rindo. Lembro-me de quando foi tirada. Na primeira noite em que dormimos juntos. Lágrimas enchem meus olhos e meu dedo desliza mais rapidamente. Imagens, instantâneos da minha vida agora não passam de borrões coloridos voando pela tela do meu celular.
Será que, na realidade, é apenas disso que se trata a vida? Borrões coloridos? Uma colagem de momentos efêmeros, em diferentes tons e matizes de emoção? Momentos em que você está feliz, triste, com raiva, com medo, e aqueles em que você está apenas fingindo.
Jogo o celular nos pés da cama e olho para o ventilador de teto girando, enquanto minhas emoções parecem fazer o mesmo. Meus olhos ficam pesados e então — pronto! — não estou mais olhando para o ventilador. Estou presa numa lembrança quase tão antiga quanto eu.
Estou sentada num sofá marrom. Meus pés, dentro de sapatos pretos de fivela, balançando bem acima de um tapete sujo. Estou usando um vestido de princesa com babados rosa, mas não sou uma princesa feliz. Soluços profundos e sinceros, meus soluços, ecoam ao meu redor. Eu me sinto um peixe fora d’água. Não consigo respirar.
Sento-me tão rápido que Félix pula da cama.
É a única lembrança que tenho antes de me tornar Chloe Holden. Alguns meses antes do meu terceiro aniversário. Antes de eu ser adotada.
Ultimamente, essa lembrança tem me ocorrido. Me assombrando, de certa forma. Mas eu sei por quê. É a sensação. A sensação de ser arrancada do meu mundo e colocada em outro lugar.
Não que isso não tenha sido bom. Naquela época, tive muita sorte em ser adotada, e por pais perfeitos. Ganhei uma mãe, um pai, tenho um gato chamado Félix e, ainda por cima, adotamos um cachorro chamado Docinho. Morávamos numa casa de tijolinhos brancos de três quartos, onde sempre havia risadas. E amor. Eu tinha amigos com quem cresci. Um namorado a quem entreguei a minha virgindade.
Eu tinha uma vida. Eu era feliz. Meus sorrisos eram de verdade nas fotos.
Aí meu pai passou a trabalhar até tarde.
Começaram as brigas dos meus pais.
O caso do meu pai.
A depressão da minha mãe.
O divórcio.
O câncer.
E depois a mudança da cidade de El Paso para Joyful, no Texas. Que, a propósito, de alegre não tem nada... [-11
E aqui estou eu. Arrancada do meu mundo outra vez. Arrancada brutalmente.
Mas, desta vez, não estou me sentindo tão sortuda assim.
2
Tentando me convencer de que este primeiro dia de aula não vai ser tão ruim quanto imagino, corro os dedos pelo meu cabelo grosso e escuro, que passei meia hora alisando. Depois de dar uma última olhada no espelho da penteadeira, envio uma mensagem para Lindsey e saio do quarto apressada.
Minha mãe, sumindo dentro de um roupão cor-de-rosa grande demais para ela, está sentada na mesa da cozinha, olhando para mim.
— Gosto mais da blusa vermelha.
— Eu sei. Mas prefiro esta hoje.
Dou um abraço nela. Sei que fico bem de vermelho, mas vou aparecer demais, tipo, Olhem para mim, eu sou a garota nova da escola! Então preferi usar uma blusa bege em vez disso.
— Me deseje sorte — diz ela.
— Por quê? O que você vai fazer? Vai começar a escrever de novo?
— Não. Estou procurando emprego.
Meu primeiro pensamento é que minha mãe deve esperar até o cabelo dela crescer.
— Você sente vontade de trabalhar?
— Sim. Estou cansada de não fazer nada.
— Então boa sorte. — Pego a mochila, faço um carinho rápido em Félix e em Docinho e saio, tentando não pensar em meu pai perguntando se minha mãe está trabalhando. Tentando não pensar que nunca recebi um pedido de desculpas dele.
Lindsey, vestindo jeans preto, blusa preta, unhas esmaltadas de preto e batom vermelho, está esperando ao lado da garagem. Seus cabelos loiro-claros com reflexos caem em cascata sobre os ombros. Ela parece saída de uma capa de revista.
— Caprichou no visual, hein? — eu digo.
Ela sorri.
— Meu plano é fazer Jonathon morrer de arrependimento.
Eu já ouvi tudo sobre Jonathon. A quem ela, na maioria das vezes, chama de “aquele cão sarnento traidor”. Eu o vi uma ou duas vezes quando nos mudamos. Foi só quando eles romperam o namoro que Lindsey e eu começamos a conversar. E só recentemente contei a ela sobre Alex, mas nós ainda não arranjamos um apelido perfeito para o meu ex-namorado.
Se a minha mãe não tivesse me arrastado para outra cidade do Texas, Alex e eu ainda estaríamos juntos. Não tenho certeza se poderia chamar de amor o que sentíamos, mas acho que estávamos perto disso. Quando fui embora, concordamos que iríamos manter um relacionamento a distância.
Só durou quatro semanas.
— Como foi a visita à casa do seu pai e do brinquedinho sexual dele? — ela pergunta enquanto caminhamos para o meu carro.
— Um verdadeiro inferno — digo, depois mudo de assunto. — Você já escolheu seu novo crush? — Entramos no meu Chevy Cruze branco.
— Sim, David Drake. Ele me convidou para sair no ano passado, logo depois que comecei a namorar Jonathon. Ele é engraçado, fofo e educado.
No trajeto, Lindsey fala sobre o horário das suas aulas e conta que tem três aulas com Jamie. Jamie é sua melhor amiga, que esteve fora durante o verão. Eu fico preocupada, achando que agora que a melhor amiga está de volta, Lindsey vai me deixar de lado quando mais preciso.
— Espero que a gente tenha aulas juntas — digo a Lindsey.
Quase todo mundo recebeu o horário das aulas por e-mail. Vou pegar o meu depois com a conselheira. Mas como Lindsey não faz as aulas mais puxadas, como eu, de conteúdo mais completo e aprofundado, duvido que tenhamos aulas nas mesmas classes.
Entro no estacionamento da escola e penduro no espelho retrovisor a autorização para estacionar ali. Minha mãe obrigou meu pai a pagar o plano mensal do estacionamento. Meu estômago começa a revirar ao ver pessoas que não conheço. Eu olho para Lindsey.
Ela está me olhando de um jeito estranho.
— Cara, você está nervosa mesmo!
— Um pouco, por quê?
Ela faz uma cara engraçada.
— Não sei. Achei que fosse mais peituda.
— Eu? Por quê?
— Sua mãe tem câncer. Você precisou se mudar no último ano do ensino médio e está, tipo, numa boa com tudo isso. Eu estaria surtando.
Eu digo a verdade.
— Eu estou surtando. Apenas finjo que não. — Saltamos do carro e pegamos nossas mochilas no banco de trás.
A poucos metros do meu carro, sinto pessoas olhando para mim e acenando para Lindsey. Levanto o queixo e finjo que não estou nem aí. Lindsey começa a falar sobre onde vamos nos encontrar depois das aulas e me diz para mandar uma mensagem quando eu souber os meus horários.
Estamos quase saindo do estacionamento quando ouço gritos. Paramos.
Um cara grandalhão, de cabelo castanho-claro, está rindo de outro, mais novo, com cara de ser do segundo ano. O valentão está segurando uma mochila e fazendo algumas piadas sobre a estatura do mais baixinho.
O rosto do garoto está vermelho, como se ele estivesse envergonhado e com muita raiva. Meu coração se compadece do aluno do segundo ano, que parece tão desconfortável quanto eu ali. Estou pensando em fazer alguma coisa quando outra pessoa faz. Alguém com cabelo preto- azeviche e ombros com um quilômetro de largura. Eu acho que ele é professor; então — droga! — eu o reconheço! É o cara paranoico com quem trombei na loja de conveniência.
— Pare de ser idiota! — O psicopata da loja tira a mochila da mão do garoto babaca e a joga para o garoto mais novo, que a agarra e sai correndo.
— Olha como ele corre! — diz o valentão, rindo. Mas, caramba, eu odeio valentões!
O cara estranho fala algo que não consigo ouvir. Eu chego mais perto. Lindsey se aproxima junto comigo.
O idiota explode:
— Quem diabos você pensa que é?
Lindsey se inclina.
— Isso está ficando interessante.
Eu não olho para ela. Meus olhos estão presos na cena.
— Paul é o cara que pegou a mochila do garoto — Lindsey continua, baixinho. — Ele é jogador de futebol. O outro cara é o Cash. Ele começou a estudar aqui na metade do último ano escolar. Costumava frequentar a Westwood Academy, uma escola particular para onde vão as crianças ricas. Mas há boatos de que cresceu num orfanato e é mau elemento.
— Paul é quem está agindo como um mau elemento. — Eu tento ligar o cara que está defendendo o garoto mais novo com o lunático que conheci ontem.
— Verdade. Paul é que vive praticando bullying — Lindsey admite.
Paul se aproxima de Cash. Apesar do encontro de ontem, estou torcendo por Cash. Não gosto de psicopatas, mas gosto menos ainda de valentões.
Cash não se move, mas seus ombros se alargam. Paul não parece assustado, mas ele deveria estar. Cash é uns cinco centímetros mais alto do que Paul. Mas não é a altura que o torna tão intimidador. É a linguagem corporal dele. Ele parece durão. Ainda mais durão agora do que ontem.
— Eu fiz uma pergunta! — Paul grita. — Quem você acha que é, garoto adotado?
Os ombros de Cash se alargam ainda mais.
— Sou o único aqui que não tem que pegar alguém menor do que eu para me sentir importante.
Paul se aproxima e cola o rosto no de Cash.
Cash fala alto:
— Vá embora enquanto pode. — Seu tom é ameaçador.
— Você é que vai embora! — rebate Paul.
Acho que Cash está prestes a recuar o punho para dar um soco no outro, mas ele me surpreende e diz:
— Você não vale o aborrecimento.
Ele se vira para ir embora.
Não sei se estou decepcionada por Cash não dar uma lição em Paul ou se ele tomou a atitude certa.
Cash se afasta alguns passos quando Paul avança e o empurra pelo ombro. Cash se desequilibra.
— Covarde! — Paul o acusa.
— Você é que é covarde por esperar eu virar as costas.
— Bem, agora estou na sua frente. — Paul desfere um soco.
Cash desvia para a esquerda. O punho de Paul golpeia o ar.
Todo mundo ri. Isso alimenta a fúria de Paul. Ele levanta os punhos na frente do rosto e começa a transferir o peso de um pé para o outro, como se fosse um boxeador profissional.
Cash leva os punhos até o queixo. Todos começam a gritar.
— Acaba com esse imbecil! Dá uma lição nele!
De alguma forma, sei que eles não estão torcendo por Cash. Eu não vou gostar dessa escola.
Estou achando que devemos ir embora, mas, assim como Lindsey, não consigo tirar os olhos da cena. Os dois caras se movem em círculo. Paul desfere outro soco, Cash se abaixa. Paul solta um rosnado.
Espero Cash fazer algum comentário irônico, mas ele não fala nada.
Tenho a sensação de que não quer lutar.
De repente, eles se posicionam de modo que Cash fica de frente para mim.
Aqueles olhos verdes líquidos olham para a frente e encontram os meus, castanhos. Ele congela.
É quando Paul desfere outro soco e seu punho atinge o olho de Cash. Ele quase cai, mas, com fúria, golpeia Paul — primeiro na barriga, depois no nariz. Paul cai, ofegante, e coloca a mão sobre o nariz. Sangue escorre entre os dedos dele.
— Parem! — alguém grita. Um homem corre na direção do grupo. Dessa vez é um professor de fato. A aglomeração começa a se dispersar.
— Vamos dar no pé. — Lindsey me puxa. Logo antes de eu me virar, o olhar de Cash me encontra novamente. Seu olho esquerdo já está inchando. Eu me viro e sigo Lindsey.
— Isso foi bem estranho... — Lindsey se apressa em direção à entrada da escola.
— A briga? — pergunto.
— Não. Cash olhando para você. Você o conhece?
— Não — eu digo, mas não explico mais nada.
— Bem, algo em você chamou a atenção dele.
— Eu provavelmente pareço alguém que ele conhece. — Me lembro de dizer o mesmo para ele na loja.
— Ou ele gosta de você. Todas as garotas da escola já tentaram chamar a atenção dele e não conseguiram. Você chega aqui e ele leva um soco enquanto olha para você.
— Talvez não estivesse olhando para mim — digo, sem muita convicção.
— Sei. — Lindsey revira os olhos.
Olho para a escola que aparece diante de mim e tudo que eu quero é dar meia-volta e voltar para casa.
Estou esperando na secretaria para pegar meus horários com a conselheira, a srta. Anderson, quando ouço uma voz zangada atrás de mim.
— Você quebrou o nariz dele.
Estou quase certa de que é a voz do professor que interrompeu a briga. Não viro a cabeça para ver quem é. Fico olhando para a frente, enquanto passam por mim. O professor empurra a porta giratória que leva à parte de trás da secretaria. Cash o segue.
Ele está quase passando pela porta quando se vira para trás. Seus olhos, ou melhor, “seu olho” me encontra — o outro está tão inchado que nem abre mais. O ar de acusação é evidente em sua expressão. Parece até que sou eu a responsável pelo olho roxo. Ouço o professor dizer algo e Cash se vira para a frente e o segue.
Incomodada com aquele olhar, vejo a recepcionista acenando para que eu me aproxime. Ela abre a porta e eu a sigo por um corredor, até os fundos. Viramos uma esquina e vejo o professor que interrompeu a briga. Parecendo chateado, ele conversa com uma mulher de cabelos pretos.
A recepcionista limpa a garganta.
O professor e a mulher olham para ela.
— Chloe Holden. — A recepcionista faz um gesto na minha direção.
— Leve-a até o meu escritório. — A recepcionista concorda com um ar contrariado. — Eu já estou indo.
Sou conduzida até outra sala e eu me sento na cadeira mais próxima da porta, enquanto a recepcionista dá meia-volta e sai. Posso ouvir ao longe a conversa entre o professor e a conselheira. Eu me reclino na cadeira.
— Não — diz a conselheira. — Estou dizendo para averiguar os fatos antes de fazer suposições.
— Eu já averiguei — respondeu o homem. — Paul Cane me disse o que aconteceu e três alunos confirmaram a história.
— Três amigos de Paul, posso apostar — diz a srta. Anderson. — Vou atender essa nova aluna e depois falo com ele.
— Vai perder o seu tempo — diz o professor.
— Bem, é o meu tempo que vou perder — responde a conselheira com rispidez.
Ouço passos vindo na minha direção. Sento-me mais ereta na cadeira e finjo que não estava prestando atenção na conversa.
— Sinto muito fazer você esperar. — Ela me oferece a mão, mas ainda está com a testa franzida. — Sou a srta. Anderson.
Aperto a mão dela. Pode parecer estranho, mas já gosto dela por defender sua opinião, apesar da oposição do professor.
— Eu sou Chloe Holden.
Ela se senta atrás da mesa e, em seguida, puxa um arquivo de uma pilha de papéis.
— Pedi seu histórico escolar para o Lionsgate High. Vi suas notas. São impressionantes. Com toda essa dedicação, você vai longe.
Eu ouço muito isso. Sou inteligente, mas não me dedico tanto assim aos estudos. As coisas, na escola, são fáceis para mim. Na realidade, na minha antiga escola, eu normalmente errava de propósito uma ou duas perguntas nas provas, para que minhas amigas não me odiassem. Ser inteligente demais não é legal.
— Você está planejando ir para a faculdade, certo?
— Estou, sim — digo. — Meus pais frequentaram a Universidade de Houston, então pretendo ir para lá também.
— Com essas notas, você pode ir para a universidade que quiser. Já solicitou uma bolsa?
Eu confirmo com a cabeça. Pelo menos meu pai vai ter uma folga nas mensalidades quando eu for para a faculdade.
— Bem, coloquei você nas turmas em que o conteúdo das matérias é visto com mais profundidade. Assim, acho que não vai ficar entediada.
Assinto com a cabeça outra vez, meus pensamentos ainda no que a ouvi dizendo para o professor no corredor.
— Sua mãe mencionou que está fazendo quimioterapia. E que se divorciou recentemente.
Por que mamãe contou isso a ela? Eu congelo na cadeira.
— Se você precisar conversar, saiba que estou à disposição.
— Obrigada — digo. — Eu estou bem. Minha mãe também. Ela está curada do câncer agora.
— Ótimo! — Ela olha para o computador. — Estou imprimindo os seus horários e vou pedir a alguém que a acompanhe por alguns dias até que você aprenda a se localizar dentro da escola.
Quero recusar a escolta, mas também não quero correr o risco de me perder dentro do prédio e chamar ainda mais atenção.
Ela faz uma ligação rápida e me entrega meus horários, depois de tirá-los da impressora.
— Sandra vai encontrar você no escritório principal.
Concordo novamente, pego minha mochila, dou dois passos em direção à porta e depois me viro.
— Ah, sobre o que aconteceu no estacionamento...
— O quê?
— A briga — eu digo.
— Você estava lá? — Ela se inclina para a frente. Eu tenho a sensação de que gosta de Cash ou talvez saiba que Paul pratica bullying.
— Sim, o cara com cabelos mais claros, acho que alguém o chamou de Paul, ele estava provocando um garoto mais novo. Pegou a mochila dele e não queria devolver. O outro cara, Cash, devolveu a mochila para o garoto. Paul começou a briga. Cash tentou até se afastar dele.
Os olhos da srta. Anderson se arregalam com um sorriso.
— Você conhece algum dos dois?
— Não, não conheço. Só vi a briga. E... alguém me disse o nome deles.
— Obrigada. — Ela parece aliviada.
Eu saio e paro, quase colidindo com o peito de Cash outra vez. Nossos olhares se encontram. Ou o meu olhar e o “meio olhar” dele. Seu olho está inchado agora. Mas juro que o outro está me acusando de alguma coisa.
As palavras “Desculpe por defender você” estão na ponta da língua. Eu não as digo.
Passo por ele com pressa.
Sinto seu olhar sobre mim. Como senti ontem. Calafrios percorrem minha espinha.
O que há com esse cara?
3
Trinta minutos depois, Cash Colton entrou no jipe. Por que ela me defendeu? Então tudo se encaixou e ele soube no mesmo instante: Porque eu estava certo.
Esbarrar nele tinha sido a estratégia perfeita. Sempre faça repararem em você. Não se aproxime. Faça com que suspeitem.
Foi tudo uma estratégia.
Bem, nem tudo. A briga não poderia ter sido. Ninguém poderia adivinhar que ele sairia em defesa do garoto. Cash não sabia nem por que tinha feito aquilo. Exceto... pelo fato de que aquele garotinho assustado costumava ser ele...
Defendê-lo, no entanto, tinha que fazer parte do jogo dela. Fazer com que confiassem nela. Acreditassem que ela é uma pessoa amigável.
Ela ia precisar de sorte. Cash não confiava em ninguém. Nem mesmo em alguém com seios bonitos.
Ninguém pode trapacear um trapaceiro — não quando ele sabe todos os tipos de truque. Foi treinado pelo melhor de todos: seu pai malandrão, agora já falecido.
Ele saiu do estacionamento da escola cantando pneu. Depois de inocentá-lo da briga, a srta. Anderson havia chamado sua mãe adotiva, a sra. Susan Fuller. Por ser médica e uma pessoa amorosa, ela insistiu em vê-lo antes de decidir se ele precisava ir ao pronto-socorro ou não. Ele deveria esperar que ela viesse examiná-lo antes de voltar às aulas.
A um quarteirão da escola, ele ligou para a sra. Fuller.
Ela atendeu:
— Estou a caminho. Você está bem?
— Estou. Não precisa vir. Estou indo para casa agora tomar uma aspirina.
— Cash, a srta. Anderson, queria que você ficasse na escola. Você não deveria ter...
— Ah, é? Eu não sabia. — Na verdade, ele tinha ouvido toda a conversa atrás da porta e saído furtivamente antes que alguém pudesse detê-lo. — Pensei que eu estava livre para ir embora, depois que ela falou com você.
— Não, querido, você não deveria estar dirigindo. Pode ter sofrido uma concussão. A que distância está de casa?
— Praticamente lá — ele mentiu de novo e sentiu um aperto no estômago.
— Você não está com tontura, está?
— Não.
— Ok, então siga em frente e volte para casa. Vou ligar para avisar a srta. Anderson. Estarei em casa em vinte minutos.
— Mas não é preciso. Estou bem. — Ele olhou para o relógio no painel. Oito e quarenta.
— Foi isso que você disse dois anos atrás, quando seu apêndice supurou — ela disse.
— E eu ainda estou vivo. Então eu estava bem, não estava?
— Depois de oito dias no hospital. — Ela suspirou. Cash ouvia muitos suspiros da mãe adotiva. Desapontá-la era a última coisa que ele queria. E, por mais que tentasse evitar, sempre a decepcionava. O passado de Cash o seguia por toda parte.
Os Fuller complicaram a vida deles quando optaram por adotá-lo [2]. Não que fossem sofrer por muito mais tempo. Em dois meses, ele já teria idade para deixar o lar adotivo. Ele não poderia fazer isso antes de terminar o ensino médio...
— Pare o carro e me ligue se sentir tontura.
— Entendido. — Ele desligou. Consultando o relógio novamente, ele passou a entrada para o bairro de Stallion, onde os Fuller moravam — ou melhor, onde ele ocupava um dos quartos da casa deles — e foi direto para o Walmart. O olho latejava.
Estacionou o jipe, entrou na loja e seguiu até o quadro de avisos.
Cada vez que ia ao supermercado, ele examinava aquele quadro. A primeira vez que tinha se deparado com ele, a vontade que teve foi de rasgá-lo, com receio de que os Fuller o vissem e ficassem tristes. Mais tarde, ele descobriu que os próprios pais é que tinham colocado o folheto ali.
E ali estava ela. Na foto, olhando para Cash.
O mesmo formato de olhos. A mesma mandíbula. Os mesmos lábios.
— Merda!
Isso não significava que fosse ela. A imagem que simulava a aparência dela com a idade que teria hoje poderia não ser exata. As fotos às vezes mentiam. Ele sabia disso por experiência própria. Mas, caramba, aquela garota parecia mais com ela em pessoa do que a foto que um filho da mãe dera à sra. Fuller um ano atrás. E depois que a sra. Fuller entregou a ele 3 mil dólares para encontrar a tal garota, ele convenientemente desapareceu. E levou uma parte do coração da mãe adotiva também. Só agora ela estava voltando ao normal.
Se ao menos a sra. Fuller tivesse contado a Cash, ele teria explicado a ela como funciona esse tipo de falcatrua.
Seria o mesmo vigarista voltando para conseguir mais dinheiro? Provavelmente. Mas, desta vez, havia se tornado seu jogo mais sofisticado. Só que agora Cash sabia o que estava acontecendo. E iria detê-lo.
Ele olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Quando estendeu a mão para tirar a foto do quadro, ouviu uma porta se abrir atrás dele. Cash se afastou e fingiu que verificava um cupom de ração para cachorro.
Enfiou as mãos nos bolsos, esperando a pessoa empurrar o carrinho pela porta. Quando não ouviu mais nenhum passo, concentrou-se novamente no panfleto.
Havia uma cópia do folheto na casa dele, também. Guardada num arquivo. Mas vasculhar a escrivaninha do sr. Fuller não parecia certo. Especialmente depois de Cash já ter sido pego fazendo isso uma vez. Ele estava com os Fuller havia apenas alguns meses, algumas semanas antes do seu aniversário de 15 anos, quando viu a sra. Fuller, com lágrimas nos olhos, olhando para o arquivo aberto. Mais tarde, quando ela já confiava nele a ponto de deixá-lo sozinho em casa, Cash descobriu o que a fizera chorar.
Ele não tinha ouvido a sra. Fuller entrar em casa aquele dia. No segundo em que ela o viu, Cash teve certeza de que ela ia gritar, depois ligar para dizer aos assistentes sociais que viessem buscá-lo. Outras três famílias já o tinham devolvido. Mas a sra. Fuller puxou uma cadeira e colocou-a ao lado dele, próximo à escrivaninha do marido, e perguntou o que ele estava fazendo.
Cash foi sincero:
— Eu queria saber o que a fez chorar.
Ela suspirou, um suspiro que era um gemido baixo misturado com uma expiração longa, e ele logo descobriu que aquele suspiro era a marca registrada da sra. Fuller, nos momentos em que estava infeliz. Depois ela contou a história toda. E chorou também enquanto a contava.
A porta do Walmart se fechou. Ele pegou o papel pregado no quadro, dobrou-o, guardou no bolso e saiu de lá. De volta ao carro, ligou o motor e verificou as horas. Droga. Ele tinha cinco minutos para chegar em casa antes da sra. Fuller.
E se ela chegasse lá antes dele, ficaria chateada.
Embora Cash não pudesse ser a pessoa que os pais adotivos queriam que fosse, ele se esforçava para não decepcioná-los. Dirigiu como se fugisse do próprio diabo. Sentado ereto, tomava ainda mais cuidado porque estava enxergando apenas com um olho. Mas ele provavelmente conseguiria dirigir até com os olhos vendados. Tinha muita prática.
Outra coisa que seu pai havia lhe ensinado. Com apenas 9 anos, ele era o motorista de fuga quando o pai roubava lojas de conveniência. Você tem que ganhar seu próprio sustento, garoto. Fazia sete anos que ele não via o rosto do homem, mas a voz dele ainda ecoava em sua cabeça.
Cash estacionou na garagem, destrancou a porta da frente e digitou o código de segurança. Correu pelas escadas, saltando dois degraus por vez, entrou no quarto e escondeu o folheto em sua escrivaninha. Depois correu de volta até o andar de baixo, pegou duas aspirinas, mastigou-as e se deixou cair no sofá. Félix, o velho gato malhado amarelo, miava para que ele o pegasse no colo. O pobrezinho já estava cego como um morcego. Ele pegou o bichano e lhe deu umas palmadinhas de leve. Mal tinha se reclinado no sofá quando a porta se abriu.
— Cash? — Era a voz da sra. Fuller, quase melodiosa, chamando-o.
— Estou aqui, na sala de estar — gritou ele.
Ela entrou e ele a viu franzir a testa.
— Ai, meu Deus!
Ela se aproximou e levantou o queixo dele com dois dedos. Cash tentou não se encolher. Não que tivesse aflição que o tocassem. A sra. Fuller tinha carta branca. Mas é que ele sentia dor quando ela o tocava. Não uma dor física, uma dor emocional...
— Acho que você precisa de um raio X. Só para...
— Não. — Ele se afastou. — É só um olho roxo. Já estou acostumado.
Lá veio o suspiro.
— Você pôs gelo?
— Por alguns minutos na escola.
Ela correu para a cozinha e voltou com um saco de ervilhas congeladas. Sua expressão era determinada. Ele suspeitou que a história do raio X não seria esquecida.
— Eu não vou ao hospital. — Ele pegou as ervilhas.
Um suspiro triste saiu dos lábios dela novamente e ela se sentou na cadeira em frente ao sofá. Eles se olharam nos olhos. Cash a comparou com a garota nova da escola. Havia muitas semelhanças. Mas não a cor dos olhos. Os olhos da sra. Fuller eram azuis. A garota tinha olhos castanhos com manchas verdes e douradas.
A sra. Fuller deu uma palmadinha nos joelhos e se balançou na cadeira algumas vezes. Isso geralmente significava que ela tinha algo na cabeça e queria conversar. Alguma coisa séria.
Ele esperou.
— A srta. Anderson me disse o que você fez. Defendeu aquele garoto.
Ele assentiu e continuou esperando. Não devia ser só isso.
— Estou orgulhosa de você, mas preferia que o tivesse defendido sem brigar. Você já sabe fazer melhor do que isso. — A decepção brilhava nos olhos dela. Cash se encolheu.
Quando apanhava do pai não doía tanto. Ele detestava — odiava — decepcionar a sra. Fuller
Cash tinha dezenas de justificativas na ponta da língua. Eu tentei ir embora. Ele bateu primeiro. Mas já fazia muito tempo que ele tinha aprendido que não adiantava se defender. As pessoas pensavam o que queriam.
— Desculpe — ele balbuciou.
— Você não pode ser expulso de outra escola.
E isso não foi culpa minha também. Cash levantou o queixo.
— Eles disseram que vão me expulsar?
— Não. Quando liguei de volta, a srta. Anderson deu a entender que você não vai ser punido. Vários alunos se manifestaram e defenderam você.
— Vários? — Ele tinha ficado chocado ao saber que um aluno o defendera. Então se lembrou de ter visto Jack quando o treinador interrompeu a briga. Ele e Jack não eram grandes amigos, mas no ano anterior tinham feito um projeto de ciências juntos e realmente haviam se dado bem.
— Foi isso que ela disse. Mas, se acontecer de novo, eles não vão facilitar para você.
Ele assentiu novamente.
— Pode voltar ao trabalho. Estou bem.
— Tudo bem. Minha assistente vai atender meus pacientes de hoje.
Mas não estava tudo bem. Os Fuller não mereciam ter que resolver as encrencas em que ele se metia. Perder a filha já era um fardo pesado demais. O que eles mereciam era ter a filha de verdade de volta. Mas qual era a probabilidade de Emily Fuller não estar sob sete palmos de terra?
Isso não impediria vigaristas de quererem tirar vantagem dos Fuller. Ele sabia. Havia convivido com um deles. Tinha sido um deles. Ele e o pai haviam cometido uma fraude semelhante certa vez, depois que o pai vira a foto de uma criança parecida com Cash num quadro de pessoas desaparecidas. O pai tinha feito uma breve pesquisa. A pobre mulher que havia colocado a foto no quadro estava sempre almoçando no parque perto do trabalho dele. Eles foram até lá todos os dias durante uma semana. O trabalho de Cash era encará-la. Chamar a atenção dela. Fazê-la morder a isca.
A mulher finalmente mordeu. Aproximou-se deles.
O pai dele era bom. Desempenhou bem seu papel. Contou a triste história de que não sabia o sobrenome de Cash. Que o garoto era o filho da irmã que ele perdera havia muito tempo — embora ele nunca soubera que ela havia tido um filho. Ela falecera e deixara o garoto para ele criar.
Demorou mais um dia para a mulher compartilhar sua própria história triste com eles. Só que a dela era verdadeira. Ela havia dado à luz um menino, que tinha desaparecido aos 4 anos de idade. Cash se parecia muito com ele.
— Venha cá — a mulher pedira a ele. Ela tinha lágrimas nos olhos. Com as mãos trêmulas, tocou no rosto de Cash. Ele se lembrava de ter se retraído um pouco. — Você é David? Você se lembra de mim? É por isso que você estava me encarando?
— Eu não sei — ele mentiu. Mentiu como o pai o obrigara a fazer. Então o pai o cutucou no ombro para lembrá-lo de terminar de falar o que haviam combinado. Tinha 6 anos de idade e já tinha que ganhar seu sustento. — Você tinha um cachorro preto com uma mancha branca no focinho?
A lembrança de como aquela mulher estava desesperada ainda assombrava Cash às vezes. Ela não hesitara: dera ao pai dele o dinheiro para que fizessem o teste do DNA de Cash. Claro que nunca fizeram. Naquela noite, eles fugiram de carro da cidade de Little Rock, em Arkansas, com 5 mil dólares no bolso. Provavelmente, o dinheiro que a mulher economizara a vida toda.
— Aquilo foi errado! Eu nunca vou fazer isso de novo — Cash disse ao pai. Aquele havia sido seu primeiro olho roxo. Tinha doído. Mas ele estava certo de que tinha doído ainda mais na mulher.
Cash nunca deixaria que isso acontecesse aos Fuller.
Ele precisava encontrar respostas.
— Oi, querida. Como foi na escola?
Minha mãe está me esperando quando entro em casa aquela tarde. Achei que ela ainda estaria procurando emprego. Não estou a fim de ser interrogada.
— Foi tudo bem — digo.
— Lindsey apresentou você para todo mundo?
— Sim. Conheci Jamie, a melhor amiga dela. Ela é legal. — E ela era mesmo, mas notei que não parou de me contar histórias sobre Lindsey e ela, como se tentasse provar alguma coisa. Como se quisesse deixar claro que eu sou a garota nova e Lindsey é a melhor amiga dela.
Não me importo com isso. Faltam apenas nove meses para eu me formar.
Percebo que minha mãe está esperando que eu conte mais.
— Lindsey quer que eu saia com elas mais tarde. Jamie vai à casa dela. — Se eu estivesse em El Paso, estaria com Sandy e Kara. Estaríamos comparando as nossas experiências na escola, nossos professores, os caras que parecem mais gatos este ano do que no ano passado.
Mas não estou em El Paso. Estou aqui. E por isso não vou dar uma de idiota; vou me contentar em ser a segunda melhor amiga de Lindsey e agradecer por isso.
— Como foi seu dia? — pergunto. — Encontrou um emprego?
O sorriso dela se amplia e é muito bom vê-la sorrir.
— Encontrou?
— Sim, fui ao consultório do meu médico, o dr. James, meu oncologista. Há dois médicos no consultório. Eu disse a ele que tinha diploma de enfermagem e ele praticamente me ofereceu um emprego. Eles têm que checar meus antecedentes e preciso ser entrevistada por outro médico, mas parece que consegui a vaga.
Ela está sorrindo, feliz. Eu a abraço.
Quando nos separamos, ainda está sorrindo.
— Vai dar certo. — Ela segura minhas bochechas como fazia desde que eu era uma garotinha. — Nós aqui. Vai dar certo.
Concordo, querendo acreditar. E vendo-a feliz, quase acredito.
No dia seguinte, eu me recuso a andar pela escola com uma escolta. Tenho certeza de que já sei me localizar. Ledo engano. Me perdi e chego atrasada para a segunda aula, de Literatura Americana, sentindo como se tivesse uma placa de neon piscando nas minhas costas com a inscrição ALUNA NOVA.
Infelizmente, aquela sensação de ser observada nunca desaparece. E eu vejo quem está olhando: Cash. Ele está começando a me assustar. Conto os minutos para a aula terminar.
No intervalo entre as aulas, vou ao meu armário para trocar de livros. Estou com os dois braços ocupados quando sinto alguém ao meu lado. Meu coração vai parar na garganta. Acho que é Cash.
Errado.
Olho para cima e encontro um par de olhos azul-claros sedutores, que pertencem ao garoto bonito que notei na aula de Literatura Americana.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? Precisa de um encontro na sexta à noite?
Eu retribuo o sorriso. Meu coração bate de emoção.
— Sou David Drake.
— Eu sou... — Meu nome gruda na língua enquanto tento descobrir onde ouvi o nome dele antes. Então — pronto! —, eu me lembro. E não é nada bom.
David Drake é o novo crush de Lindsey. Merda.
— Eu... não estou interessada. — Eu me afasto para recuperar meu espaço e me concentro no meu armário.
— Pensei que seu nome era Chloe.
— É sério. — Olho para ele outra vez, desta vez sem sorrir.
O sorriso do garoto continua intacto.
— Quem sabe você comece a se interessar com o tempo...
— Sou comprometida.
— Deixou um namorado na cidade de onde veio?
— Sim — minto, jogando o cabelo para trás. — Estamos praticamente noivos.
Ele coloca a mão direita contra o peito.
— Como assim? Você acabou de partir meu coração.
Balanço a cabeça e tenho uma ideia. Antes que eu possa concluir se a ideia é boa ou ruim, conto a ele.
— Sabe, ouvi falar de uma garota que gosta de você.
— Quem?
— Não posso dizer, mas... uma dica é que você a convidou para sair no ano passado.
Ele franze a testa.
— Sara?
Eu não respondo.
— Lisa?
Eu franzo a testa.
— Katie? Paula? Anna? Lacy? Carol? Jackie? Hannah?
Não estou acreditando...
— Estou brincando — diz ele. — Como só convidei duas garotas para sair e uma delas vem à escola com você, eu sei quem é. Mas achei que ela estivesse com Jonathon.
Eu me preocupo, achando que deveria ter ficado de boca fechada, então só encolho os ombros e me viro para me afastar. Por que sempre quero consertar as coisas?
Dou apenas alguns passos quando vejo Cash novamente, dois armários depois do meu. Ele não está olhando para mim, mas aposto o meu melhor sutiã que ele estava ouvindo a minha conversa com David.
Então vejo Jamie do outro lado do corredor. Ela desvia o olhar rápido e vai embora. Eu sei que ela viu David falando comigo.
Droga! Provavelmente está indo contar para Lindsey agora mesmo.
Cash esperou até o sr. Alieda deixar a sala de aula, para dar uma rápida corrida ao banheiro e entrar no laboratório de ciências. Correu para os dois terrários encostados à parede. Os alunos começariam a chegar a qualquer momento. Um tanque continha uma jiboia, o outro tinha comida viva para a cobra. Abrindo a mochila vazia, ele tirou dali uma luva.
O camundongo ficou de pé nas patas traseiras e olhou para Cash, mexendo os bigodes.
— Vamos fazer um acordo? Eu ajudo você e você me ajuda. Você tem uma chance de conquistar a liberdade. E eu consigo... respostas. Talvez.
Cash pegou o camundongo com delicadeza e colocou-o na mochila vazia. Depois de recolocar a tampa no terrário, ele foi para a secretaria.
Não era o melhor plano que ele já tinha engendrado, mas era um plano.
Naquela manhã, ao agendar uma reunião com a srta. Anderson, ele tinha ficado em dúvida quanto ao melhor horário até descobrir que ela almoçava entre onze e onze e meia. Perfeito. Era naquele horário que ele almoçava também.
Tudo o que ele precisava era de três minutos no escritório dela. Três.
Ele poderia esperar e voltar à noite, mas e se fosse pego...? Invasão dava cadeia. Liberar um camundongo indefeso era uma ofensa perdoável.
Ao entrar na secretaria, ele viu três garotas esperando para falar com a funcionária da recepção. Aquilo podia funcionar.
Ele ficou atrás das meninas, abriu a mochila e colocou o camundongo no chão. O bichinho demorou cerca de quatro segundos para correr em busca da liberdade.
Voltando a fechar a mochila, ele disse:
— Isso é um camundongo?
Assim como ele tinha planejado, reinou o caos. O camundongo correu para baixo do balcão.
A recepcionista gritou e correu para fora da secretaria. Enquanto as meninas continuavam gritando, Cash entrou na secretaria, olhando para o chão como se procurasse o roedor.
Uma vez no corredor, ele correu para a porta da srta. Anderson e pegou, no bolso, seu clipe de papel. Mas encontrou a porta aberta. Ótimo. Entrou no escritório, fechou a porta e foi direto para a mesa onde tinha visto o arquivo de Chloe Holden.
Com os ouvidos atentos para ouvir qualquer movimento do lado de fora, ele abriu a pasta. Não a leu. Faria isso mais tarde.
Tirou a primeira foto, virou o papel e tirou a segunda. Mais uma página virada e fechou o arquivo, devolveu-o ao topo da pilha e virou-se para sair. Abriu a porta para ouvir se vinha alguém.
Vozes soaram. Ele reconheceu a voz da srta. Anderson.
Então ouviu o salto alto das mulheres batendo no assoalho do corredor.
Merda. Ele tinha sido pego.
4
Cash! — ela exclamou, parando de repente ao entrar na sala.
— Olá. — Ele se sentou na cadeira em frente à mesa dela e se forçou a relaxar. Pareça inocente. Às vezes o único jeito é fingir até parecer que é verdade.
— O que... você está fazendo aqui? — a srta. Anderson perguntou.
Ele se virou e olhou para ela.
— Tenho horário marcado.
Ele manteve a expressão sob controle, mesmo quando o pânico deixava as palmas de suas mãos suadas. Sinceramente, se aquilo poupasse os Fuller da decepção, não se importava de ser pego.
Ela olhou para o relógio na parede.
— Isso é daqui vinte minutos.
— Não foi o que me disseram na secretaria hoje de manhã.
Ele fez uma cara de quem demonstrava confusão. Eles podem não acreditar no que você diz, mas vão quase sempre acreditar no que veem.
— Sinto muito. — Ele se levantou. — Volto depois. Eu só... quando entrei, eu estava alguns minutos atrasado e não havia ninguém no balcão da frente... Não queria deixá-la esperando. Então vim para cá. Achei que a senhora pudesse estar no... banheiro ou algo assim. — Ele baixou os olhos como se estivesse envergonhado.
— Não. Eu fui... à sala dos professores. — Os ombros dela relaxaram. Ela estava acreditando. Seus batimentos cardíacos se normalizaram. Cash não queria ter que ouvir a sra. Fuller suspirar hoje.
Ele deu um passo em direção à porta.
— Ok, vou embora e...
— Não. Tudo bem. Eles devem ter informado o horário errado. Esse é o meu horário de almoço.
— Bem... — Ele não via a hora de ler o arquivo. — Não quero atrapalhar o seu almoço...
— Não, fique. Já almocei.
Cash se sentou novamente. A srta. Anderson se acomodou atrás da escrivaninha. Quando notou o jeito como ela estava olhando para ele, o pânico aumentou novamente. Não estava olhando como se ela soubesse que ele estava mentindo. Ou como se tivesse uma ideia do que Cash estava fazendo. Mas como se quisesse corrigi-lo.
Quantas vezes ele já havia se sentado diante de um conselheiro ou psicólogo e eles tinham tentado entrar em sua cabeça? Como se pensassem que, convencendo-o a se abrir, poderiam torná-lo uma pessoa melhor. Eles não podiam.
Ninguém poderia mudar seu passado. Ninguém poderia mudar o que já tinha acontecido. Ou as coisas terríveis que ele já tinha feito. Falar sobre isso só piorava.
— Você sabe por que eu queria falar com você?
— Imagino que seja por causa da briga — Cash disse.
— Bem, sim, mas eu também queria só... ver se você está bem. — Ela se concentrou no rosto machucado dele. — E conversar.
Bem, já ia começar o sermão. Ele respirou fundo.
— Srta. Anderson, não quero parecer desrespeitoso. E se quiser falar comigo, me dar uma punição pela briga, vou ficar sentado aqui e ouvir. Mas, na verdade, não quero falar sobre outras coisas.
Ela olhou para baixo como se quisesse organizar os pensamentos.
— Ok — a srta. Anderson disse, mas levou alguns segundos para falar outra vez. — Me contaram o que realmente aconteceu naquela briga. Eu sinto muito.
— Eu também — disse ele.
— Praticar bullying é proibido e ponto final. O que Paul fez é inaceitável. Me disseram que você tentou ir embora.
Ele deu de ombros como se não fosse importante, mas se sentiu compreendido. Não se sentia assim com muita frequência.
— Mas não acho que você saiba quanto é forte. Tenho certeza de que não pretendia bater nele com tanta força.
Sim, eu pretendia. O cretino tinha dado um soco em seu olho. Cash queria machucar aquele filho da puta. Mas não disse isso.
A srta. Anderson se remexeu na cadeira.
— Graças a Deus, o nariz de Paul não estava quebrado.
Ele teve que se esforçar para esconder a decepção.
— A questão é que eu sei como são os adolescentes. E eu sei que ele bateu primeiro. Mas precisamos garantir que isso não aconteça novamente.
— Eu não vou dar mais na cara dele — disse Cash.
— Mas e se ele der na sua?
Cash não respondeu. Não podia. Dizer que ele não se defenderia seria mentir. E as pessoas podiam não acreditar, mas ele não gostava de mentir.
— Veja. Em dois meses, você fará 18 anos e Paul ainda vai ter 17. Se acontecer outra briga, isso pode acarretar graves consequências para você.
Com o ar preso nos pulmões, Cash perguntou:
— Então você quer que eu saia da escola? — Isso era exatamente o que os Fuller não queriam. O objetivo deles era que Cash se formasse no ensino médio.
Os olhos dela se arregalaram.
— Não! Só quero que você esteja ciente disso, para que assim possa evitar qualquer complicação com a Justiça.
Ele assentiu.
— Vou me lembrar disso. Posso ir agora?
Se a expressão dela indicava alguma coisa, a srta. Anderson tinha percebido a emoção no tom de voz dele.
— Só mais uma coisa.
Cash se preparou para ouvir.
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha 11 anos, por causa de um motorista embriagado. Meus pais é que estavam bêbados. Minha avó não achou que pudesse me criar. Cresci num lar temporário.
Isso não era o que ele esperava ouvir.
— Eu sinto muito.
Cash estava sendo sincero, mas ainda não queria se abrir com ela. Também não queria saber a história dela. Não queria chegar perto de se preocupar com mais ninguém. Preocupar-se com os Fuller já era ruim o suficiente.
— Eu também — disse a srta. Anderson. — O que estou tentando dizer é que sei o que é crescer no meio do caos. Se você quiser conversar, sabe onde me encontrar.
Sim, farei isso quando o diabo começar a servir bolo de sorvete no inferno.
— Vou me lembrar disso. — Ele se levantou e saiu da sala.
Entro no refeitório. Os cheiros, a multidão de estranhos e o burburinho me fazem querer sumir dali.
Olho em volta e todo mundo está batendo papo. Eles não percebem todo o barulho, porque fazem parte dele. Eles não veem estranhos; veem amigos.
Cinco minutos depois, estou me sentindo sozinha e deslocada enquanto como uma pizza que parece feita de papelão.
É nesse momento que alguém se senta ao meu lado. Lindsey. Ela está de braços cruzados. Parece aborrecida. Comigo.
No mesmo instante, eu sei por quê. Ela ouviu falar da visitinha de David ao meu armário.
— Não gostei dele — já fui dizendo.
— Tem certeza?
— Tenho. Gosto de garotos de cabelos pretos e que fazem o tipo mais caladão. — Se eu pudesse excluir a última parte, faria isso, porque minha descrição pareceu demais com a do cara de olho inchado que anda me causando arrepios ultimamente.
Ela olha para mim.
— Mas não importa. David gostou de você.
— Não. Ele nem me conhece. Sou apenas a aluna nova e isso, para os caras, significa apenas “carne fresca”. Ou, como minha mãe costuma dizer, sou a “vaca nova no pasto”. Os touros veem uma vaca nova no pasto e logo vão atrás dela. Começam a bufar, remexer a terra e babar.
Lindsey se acomoda na cadeira, parecendo mais conformada.
— Eu não quero um touro que fica atrás das vacas novas. Já fiz isso antes.
Eu não pretendia desmotivá-la.
— Você não pode julgar David. Ele não é o seu touro ainda. Depois que você pegá-lo pelos chifres, marcar seu nome no traseiro dele e ver que ele começa a atender quando você o chama, aí sim você vai poder levá-lo para o matadouro caso ele persiga uma vaca nova. Pode vendê-lo como comida de cachorro e fazer picadinho com os testículos dele.
Lindsey solta uma risada.
— Picadinho com os testículos dele já é demais.
— Ei, esse é o sonho da minha mãe. Ver os cojones do meu pai flutuando no formol e meu cachorro dando uma mordida no traseiro dele.
Nós duas rimos, mas logo o sorriso de Lindsey se dissipa.
— Então por que fazemos isso? Por que nos apaixonamos se todos os caras são touros babões perseguindo as vacas novas?
— Porque talvez exista um ou dois que não sejam assim — digo, sentindo a mágoa de ser filha de um homem com uma queda por vacas novas aumentar no meu peito, mas Lindsey e eu só compartilhamos um sorriso triste.
E nesse instante algo me ocorre. Numa questão de minutos, deixei de ser uma alienígena num mundo estranho para fazer parte dele. Estou criando raízes.
Minha amizade com Lindsey está passando do estágio em que estamos nos conhecendo e indo para a parte onde nos tornamos aliadas, rindo de coisas que não são realmente engraçadas para ajudar uma à outra.
Parece bom, mas há uma parte de mim que quer tirar os pés da terra e cortar as raízes, porque sei que vou sofrer quando tiver que deixar esta vida e ir para a faculdade. Vai doer assim como doeu quando fui arrancada de El Paso.
Paro de rir e Lindsey segue o exemplo. Solto um suspiro. Lindsey olha para mim.
— A sua mãe realmente disse que quer fazer picadinho com os testículos do seu pai? — Ela não está mais dizendo isso como se fosse engraçado. Ela está dizendo como se soubesse que isso me machuca.
Eu faço que sim com a cabeça.
— A sua mãe não costuma brigar com seu pai?
Ela pensa um pouco.
— Às vezes, mas... Eles se divorciaram há quinze anos. Provavelmente brigavam muito, mas eu não me lembro.
Sei que ela está dizendo isso apenas para que eu me sinta melhor.
— Merda... — diz Lindsey.
— O que foi? — pergunto.
— É Jonathon. De camiseta preta. Paquerando a garota ali.
Lembro-me de tê-lo visto algumas vezes naquele verão.
Ele tem cabelos castanhos e é bonito, mas na verdade... nem tanto.
— David é mais gato.
Cash conseguiu permissão para visitar a biblioteca durante o horário de estudos. Os celulares eram proibidos ali, mas, no ano anterior, a bibliotecária não dava muita atenção a isso. Se o aluno fizesse silêncio e não tumultuasse o ambiente, ela o deixava em paz. Conhecer as regras antes de quebrá-las era outra lição que Cash aprendera com o pai.
Ele pegou as fotos do arquivo em seu celular e aumentou o zoom para que pudesse ler sobre Chloe Holden.
A primeira informação que coletou foi o aniversário dela: 18 de novembro. Emily tinha nascido em 6 de novembro. Mas, se a pessoa é sequestrada, é claro que vão mudar a data de nascimento dela. Segunda informação: ela era inteligente. Suas notas eram bem mais altas do que as dele. Mas, se ela estivesse aplicando um golpe, teria mesmo que ser alguém bem esperto.
Então ele descobriu que os pais dela tinham se divorciado recentemente. E se eles fossem de fato os pais dela?
Ele leu uma anotação da srta. Anderson. Mãe, JoAnne Holden, tem câncer. Bem, isso é o que diziam. Cash “também tinha câncer”. O pai dele raspava a cabeça e as sobrancelhas do filho e postava fotos dele numa página do GoFundMe, em que as pessoas levantavam fundos para realizar seus sonhos ou pagar seus tratamentos de saúde, entre outras coisas.
No que dizia respeito a seu pai, não havia nada que ele não fosse capaz de fazer para ganhar uma grana ilícita. Cash tinha até obrigado Cash a seguir uma dieta rigorosa no mês anterior ao golpe, para parecer doente.
Cash leu algumas anotações da escola antiga de Chloe. Ela jogava futebol.
Essa era a isca de que ele precisava. Cash abriu o Google para encontrar o nome do time de futebol da antiga escola dela. Encontrou e foi pesquisar as imagens.
Só precisou de cinco minutos para clicar nos links e encontrá-la. Ele ficou ali, contemplando as fotos. Das três garotas na imagem, Chloe — se é que esse era o nome verdadeiro dela — era a que mais se destacava. Ela era a mais alta, a mais curvilínea e a mais gata.
Não que ele já não tivesse notado. Droga, ainda se lembrava de como era a sensação do corpo dela contra o dele. Mas Cash podia apreciar uma imagem com mais atenção do que pessoalmente. Ou de um jeito que ele não ousaria fazer ao vivo.
Muitas vezes, Chloe o pegara olhando para ela. Nem todas as vezes ele estava olhando com cara de quem olha uma garota. Às vezes, Cash a comparava com a sra. Fuller. E, caramba, ele via ainda mais semelhanças observando aquelas fotos!
Clicando na imagem, ele procurou pela conta de Chloe no Instagram.
Encontrou uma, mas ela não postava nada fazia três meses.
Se aquilo era um golpe, ela teria mantido as postagens, não teria? Ou talvez não.
As imagens e postagens que ele podia ver pareciam reais. Ele verificou as fotos. Havia várias dela com um cara, Alex. Eles se abraçando. Se beijando. Parecendo felizes. Numa delas, Chloe estava sentada no colo dele.
Cara sortudo...
Ele se lembrou do que ela tinha falado a David Drake sobre o namorado: estamos praticamente noivos. A mentira transpareceu na voz dela e na linguagem corporal.
Ele viu que Alex tinha deixado comentários numa das fotos: “Você está linda, mozão”. Ele clicou no link do perfil dele, esperando que as fotos não fossem privadas. Não eram. E... Ha, ha! Ali estava. A verdade. Uma foto do cara com outra garota. Postada na semana anterior. Ele voltou a olhar as fotos antigas e encontrou uma com Chloe no treino de futebol. Então, parecia que ela realmente era de El Paso. Isso não descartava um golpe. Ele tinha só arranhado a superfície.
5
O sinal tocou, na segunda-feira. Agora já completei uma semana na nova escola. Eu ainda não gosto dela, mas odeio menos. Ou talvez esteja apenas me acostumando. Me acostumando a ser a aluna nova. Me acostumando a ver Cash Colton me encarando como se eu tivesse comido o último biscoito do pacote.
Me acostumando a não ter pai. Porque ele nem me telefonou.
Estou quase na porta da escola quando percebo que esqueci meu livro de História no armário. Volto para pegá-lo e encontro Lindsey.
— O que houve? — pergunto.
Lindsey morde o lábio inferior.
— Eu vou... Vou para casa com Jamie. Ela quer conversar sobre o ex-namorado.
Eu sabia que o plano de Lindsey para que nos tornássemos as três mosqueteiras estava condenado quando os planos que tínhamos para o fim de semana caíram por terra. É por isso que começar a estudar numa escola nova na última série do ensino médio é uma droga. Você não pode simplesmente se tornar amiga de alguém. Você precisa ser aprovada pelas amigas dessa pessoa.
— Vejo você mais tarde. — Eu até sorrio.
— Sim. — Ela se vira, depois volta a olhar para mim. — Foi mal. Eu cheguei a perguntar se você podia ir...
— Tudo bem. Vocês duas têm aula de História e ficaram todo o verão sem se ver. Entendo. De verdade.
Ela se afasta, ainda parecendo culpada. Me sinto mal por fazê-la se sentir assim.
Quando pego meu livro e saio novamente, o estacionamento está vazio. A maioria dos carros já faz fila na saída para deixar o pátio. Buzinas soam. As risadas vazam pelas janelas e fazem com que eu me sinta ainda mais sozinha.
Pego as chaves do carro na mochila e clico o botão de abrir as portas. Quando me sento atrás do volante, percebo que meu carro está diferente. Algo parece estranho, fora de prumo. A mesma sensação que eu tenho dentro de mim.
Eu saio do carro e meu olhar vai direto para o pneu traseiro. Está murcho.
— Merda!
Pego o celular para ligar para o meu pai. Então paro. Meu pai não está mais disponível para me ajudar com essas coisas. E — pronto! — eu me lembro de que, logo depois que tirei minha carteira de motorista e antes do caso do meu pai, ele me ensinou a trocar pneu. Ele fez de conta que era um jogo e cronometramos para ver quem conseguia trocar mais rápido. Eu venci e ganhei dez dólares. Na verdade, venci três vezes. Acabei ganhando trinta dólares.
Agora aquela lembrança já não parece mais tão boa, porque eu me pergunto se meu pai já sabia que estava indo embora de casa. Sabia que eu não poderia mais contar com ele.
Evitando sentir pena de mim mesma, concentro-me no lado positivo: pelo menos eu sei trocar meu próprio pneu. Largando a mochila no banco, abro o porta-malas.
— Precisa de uma mãozinha?
Eu prendo a respiração. Cash está encostado num jipe estacionado ao meu lado, como se já estivesse há algum tempo parado lá. Como eu não o vi?
— Posso ajudar. — Nenhuma acusação em seus olhos ou no seu tom de voz agora. Pelo menos acho que não. Nunca tive tanta dificuldade para interpretar uma pessoa... — ou será que nunca encontrei alguém tão bom em camuflar emoções?
— Não. Posso fazer isso sozinha. Obrigada. — Esse cara me deixa nervosa, por várias razões.
— Eu tenho uma coisa para consertar pneus instantaneamente. Só vai demorar um segundo.
— Que coisa? — pergunto.
— Chama Fix-a-Flat. Infla o pneu e sela qualquer vazamento. Você vai poder dirigir até um borracheiro.
— Não esquenta. Tenho um estepe.
Ele se aproxima. Borboletas voam no meu estômago.
— Você sabe trocar pneu? — Ele enfia a mão direita no bolso do jeans.
Eu levanto o queixo.
— Você não acha que as garotas conseguem trocar um pneu?
Ele parece pensar na minha pergunta.
— Acho que a maioria das garotas não quer trocar pneus.
— Bem, esta garota aqui não se importa.
Inclino-me no meu porta-malas e afrouxo a porca para pegar o estepe.
Não o ouço se mexer. Será que ele está pensando em me observar? Irritante. Mas tudo bem. Talvez eu tenha coragem de fazer a ele algumas perguntinhas.
— Você é nova aqui? — Cash diz.
— Sim. — Pego o pneu e o deixo cair no chão. Então tiro o macaco do carro.
— De onde você é? — ele pergunta.
Coloco o macaco no chão e pego a chave de roda. Só então olho para ele e reúno coragem.
— O que você quis dizer no posto de gasolina, sobre eu querer fazer alguma coisa?
Ele não parece chocado com a pergunta.
— Você tinha razão. Você parece alguém que eu conhecia.
— Mas, obviamente, você descobriu que não sou essa pessoa, então por que ainda continuou me encarando?
Os olhos verdes dele se estreitam e seus lábios se abrem num sorriso incrível.
— Por que os caras geralmente encaram as garotas?
— Porque são uns pervertidos? — pergunto, me lembrando do bate- papo com Lindsay sobre touros e vacas.
Ele ri.
Eu sou pega de surpresa pelo som da risada dele e, por incrível que pareça, ele parece surpreso também. Como se não costumasse rir muito.
Ficamos em silêncio e olhamos um para o outro.
— Com quem? — pergunto.
— O quê?
— Com quem eu me pareço? — Eu me ajoelho para colocar o macaco no lugar.
— Ela já morreu. — Sua voz parece solene.
Eu olho para ele.
— Sinto muito.
— Eu também.
Cash se ajoelha ao meu lado para ver onde eu encaixei o macaco, como se pensasse que fiz tudo errado. A perna dele roça na minha. É um gesto inocente, mas parece íntimo. Seu cheiro, que lembra grama recém-cortada, enche meu nariz e se sobrepõe ao cheiro dos pneus oleosos.
— Então, o que trouxe você aqui? — ele pergunta.
Minha mente está ocupada apreciando o perfume dele, por isso demoro um segundo para responder.
— O que trouxe você aqui? — rebato, tentando não pensar no formigamento na minha perna, provocado pela sua coxa musculosa, coberta pelo jeans.
A sobrancelha esquerda sobre o olho roxo se levanta e ele cerra a mandíbula.
— Você não gosta muito de responder perguntas, não é? — Agora o tom é de acusação.
— Obviamente, você também não. — Encaixo a chave de roda na porca e a viro. Não vai ceder. Merda.
— Quer ajuda? — Ele se aproxima.
— Eu consigo. — Reajusto a chave e jogo todo o meu peso sobre ela, lembrando do que meu pai me ensinou. Meu peso não é suficiente. Droga. Quem quer que tenha colocado esse pneu usou toda a sua força.
— E agora? — Cash se aproxima ainda mais.
— Quê? — A minha frustração é evidente mesmo respondendo com uma única palavra.
— Quer ajuda agora? — Ele está sorrindo novamente. — Prometo não subestimar você por causa disso.
— Não tem graça — eu digo.
— Foi mal. — Os lábios dele não estão mais sorrindo, mas seus olhos estão.
Eu cedo e dou mais espaço a ele.
— Esses pneus são novinhos em folha. Não deveriam ter murchado.
Cash pega a chave de roda e, com uma volta do pulso, o músculo do bíceps se contrai sob a manga da camiseta cinza e a porca se solta.
Ele olha para mim. Mesmo com o olho roxo, seu sorriso dispara um alarme na minha cabeça. Um daqueles sorrisos tortos que saem da boca, vão direto para o meu estômago e acordam mais borboletas. O tipo de sorriso que Alex costumava me dar.
— Você já tinha afrouxado pra mim. — Ele passa para a segunda porca. Volto a assistir seus músculos se contraírem novamente. As borboletas voam como loucas.
Depois de vários segundos de silêncio, Cash me olha.
— Não consegui me entrosar muito na minha última escola.
— Ah... — Porque ele se abriu, eu faço o mesmo. — Meus pais se divorciaram.
— E Joyful pareceu o lugar ideal para morarem? — Ele continua trocando o pneu.
— Não. Minha avó morava aqui. Ela faleceu, minha mãe herdou a casa.
— Então você já morou aqui? — A pergunta parece importante para Cash, mas estou muito ocupada observando os músculos dele para pensar nisso.
— Não. — Então percebo que é mentira. Morei aqui por algumas semanas depois de ser adotada. — Quer dizer, sim, mas não me lembro.
— Como não se lembra?
— É que eu não tinha nem 3 anos de idade quando nos mudamos.
Ele para de trocar o pneu e me lança um longo olhar.
— Ok.
— Ok o quê? — Meu tom é curto e grosso.
— Ok, acredito em você.
— Mas por que acha que eu mentiria? O que há com...?
— Todo mundo conta uma mentira de vez em quando.
— Eu não!
Ele levanta a sobrancelha do olho roxo novamente.
— Você mentiu para David sobre ainda estar com Alex.
— Você estava escutando a nossa conversa?
— Confesso que sim. — O olhar dele colide com o meu.
Pressiono as mãos no asfalto.
— Como sabe que o nome do meu namorado é Alex? Não contei a David.
Ele continua removendo as porcas. A calma que demonstra me assusta. Ninguém solta uma bomba assim e volta a trocar um pneu!
— Responda! — Eu bato na perna dele com o pé.
Ele continua trabalhando.
— Dei uma olhada no seu Instagram. Suas fotos estão visíveis para o público. Você devia ter mais cuidado com isso. — Cash olha para mim, a expressão dele é insondável.
Eu franzo a testa.
— Mas como sabe que terminamos?
— Porque há uma foto no Instagram dele com outra garota. E eu não acho que você seja do tipo que aceita esse tipo de coisa.
Não sei bem como reagir a isso. Tudo está confuso na minha cabeça.
— O que você é? Algum tipo de investigador de crimes digitais? Ou um stalker?
Ele volta a se concentrar no meu pneu.
— Estou mais para investigador...
— Por que está investigando a minha vida?
— Achei que já tínhamos esclarecido isso antes.
— Porque pareço alguém que você conhece?
Cash confirma com a cabeça.
— Mas se a pessoa com quem pareço já morreu, por que você precisaria...?
— Ela tem uma irmã.
O tom com que ele fala é de alguma forma diferente. Será que está mentindo agora? Os olhos dele encontram os meus.
— Achei que ela poderia tentar prejudicar alguém que é importante para mim.
Há tanta honestidade naquelas palavras, em seu olhar, que acredito nele. Ou acho que acredito.
— Por que acredito em você às vezes e outras vezes, não?
Ele começa a desparafusar a última porca.
— Sei lá. Talvez porque tenha dificuldade para confiar nas pessoas. — Cash tira o pneu e coloca na calçada.
O tom é provocador, no entanto... Ele coloca o estepe no lugar e aperta as porcas. Abaixa o macaco e depois o retira de onde está encaixado.
Ele tem razão. Tenho dificuldade para confiar nas pessoas. É o que acontece quando a sua família entrega você para adoção e depois o pai que a adotou abandona sua mãe e decide morar com uma piranha mais nova.
— Você é difícil de entender — eu digo.
— Você também. — Cash estende a mão para me ajudar a levantar.
Eu quase a pego, mas depois me arrependo.
— Nós poderíamos resolver isso já — diz ele. — Há um lugar mais para cima, nesta rua, que serve café, chai ou qualquer outra coisa de que você goste.
Levanto-me, sem a ajuda dele, e limpo o pó das minhas mãos, passando-as no meu traseiro.
— O que acha? — ele pergunta.
Olho para Cash, minha cabeça girando.
— Não sei ainda...
6
O truque do pneu funcionou à perfeição, mas teria sido mais fácil se ela tivesse me deixado usar o Fix-a-Flat.
Ele saiu do estacionamento em seu carro e a viu fazer o mesmo. O celular dela tocou. Levantando um dedo para pedir que ele esperasse, ela atendeu.
— Não sei. Mas coloquei o estepe. Sim, apenas alguns minutos — Chloe disse. — Tudo bem. — Ela desligou e guardou o celular na mochila. — Minha mãe.
Ele quase perguntou como estava a mãe dela, mas parou a tempo.
— Você mora perto da escola? — Cash perguntou, embora tivesse conseguido o endereço dela no arquivo.
— A uns dois quilômetros. Em Oak Tree Park. E você?
— Um pouco mais longe — disse ele. — Em Stallion.
— Aquele condomínio com a estátua do cavalo e um lago na entrada? — ela perguntou.
Cash assentiu e se perguntou se ela o discriminaria por morar num bairro de classe alta. Alguns colegas de escola tinham jogado isso na cara dele no ano anterior.
Depois de entrarem na cafeteria, Chloe consultou o cardápio diante do balcão e pediu um chá de pêssego. Ele pediu uma Coca-Cola. Quando tentou pagar pelo pedido dela, ela recusou e entregou um cartão de crédito ao rapaz do caixa. Bebidas na mão, ele a conduziu até uma mesa nos fundos.
— É um lugar agradável — disse ela.
— Sim. Eu costumava lavar louça aqui aos 15, para ganhar uns trocados.
— E agora?
— Trabalho meio período numa oficina. Troco pneus e coisas assim.
— Ele sorriu. — Então, você gosta de Joyful?
— É legal. — Aquilo soou como uma mentira.
— De onde você veio?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Você não encontrou essa informação quando estava me investigando?
Ele se recostou na cadeira.
— Ok. El Paso. Você sente falta de lá?
Ela contou como as duas cidades eram diferentes. Foi uma conversa sobre banalidades, mas Cash prestou atenção em cada palavra. Depois, Chloe tomou um gole do chá e olhou para ele por cima do copo de papel.
— Agora é a minha vez.
— Sua vez?
— Você desenterrou informações sobre mim pelas minhas costas. Eu vou fazer da maneira correta e perguntar.
— Então você gosta de fazer tudo da maneira certa, hein? — ele disse, tentando parecer casual e mudar de assunto.
Ela não respondeu. E ele teve a sensação de que Chloe ainda estava refletindo sobre a coisa toda do Instagram.
Cash odiava perguntas, mas conhecia bem esse jogo, e se não dissesse alguma coisa, ela não abriria mais a boca.
— Ok. O que você quer saber?
Ela olhou para o chá como se estivesse elaborando uma lista de perguntas mentalmente.
Cash se perguntou o que ela já sabia sobre ele. Muitas questões da vida particular dele já eram do conhecimento de todos.
Cash se lembrou de Paul chamando-o de garoto adotado, como se fosse alguma coisa de que devesse se envergonhar. Mal sabia Paul que ele tinha muito mais vergonha da vida que levava antes de entrar para o programa de adoção do governo.
— Por que você não se entrosou na antiga escola?
Ele encolheu os ombros.
— Os alunos eram filhinhos de papai. Achavam que não podiam ser responsabilizados pelas suas ações. E a direção da escola parecia pensar o mesmo.
Ela correu um dedo pelo copo.
— Então, o que o fez sair? — Ela olhou bem nos olhos dele, como se procurasse a verdade.
Sim. Ele conhecia muito bem esse jogo. Diga algo pessoal. Vão achar que te conhecem e responder às perguntas sem criar caso. Normalmente, era a essa altura que ele inventava alguma coisa. Mas, por algum motivo, não sentia vontade de fingir.
Os ombros dele ficaram rígidos.
— Não saí da escola. Fui expulso.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você fez?
Ele já devia estar preparado para essa reação, mas isso ainda lhe dava nos nervos.
— Por que você já concluiu que eu fiz alguma coisa errada?
Ela franziu a testa.
— Porque você disse que foi expulso. Ninguém é expulso por nada.
— Certo. Mas você supôs que a culpa foi minha.
Ela olhou para Cash. Seus instintos lhe diziam que ele estava revelando muito mais do que pretendia.
— Não estou supondo nada. Estou perguntando.
Ele hesitou, contrariado por não estar mentindo, mas sem poder voltar atrás agora.
— Você quer a verdade? Ou quer que eu ofereça uma versão mais bonita?
— A verdade. — No entanto, a maneira como ela se afastou na cadeira revelou que preferia a versão mais bonita.
Cash deu a ela o meio-termo:
— Três jogadores de futebol da minha antiga escola estavam tirando vantagem de uma garota. Eu dei um fim à brincadeira deles. Quando terminei, um cara estava com o maxilar quebrado.
Chloe perdeu o fôlego.
— Era sua namorada?
— Não. A garota não dava a mínima para mim. O que deveria significar que eu não dava a mínima para ela. Mas... não era esse o caso. E os caras mentiram e disseram que eu apareci do nada, querendo briga.
— Mas e a garota? Com certeza, ela...
— Negou tudo à polícia.
— Mas como pôde...? Por quê?
— Ficou com vergonha. E, além disso, queria ser líder de torcida e achou que, se dissesse alguma coisa contra eles, poderia não conseguir fazer parte da equipe. Ela só lamentou que eu tivesse arranjado problemas por querer ajudá-la. Ele suspirou. — Mas sei que isso vive acontecendo. As vítimas normalmente preferem não dizer nada.
— Sim, mas... — Chloe colocou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.
Ela parecia zangada. Isso deveria ser bom, mas não era. Ele se sentia exposto.
— Ainda assim, isso causou um belo estrago. — Os lábios de Chloe se contraíram.
— Sim, é verdade. — Cash se sentiu um pouco melhor.
Ambos se recostaram na cadeira em silêncio, como se precisassem de um tempo para pensar. Ele sabia que precisava.
Quando ela olhou para Cash, ele falou primeiro.
— Agora é a minha vez?
Ela piscou.
— Acho que sim.
Você está tentando enganar os Fuller?
Ele não podia perguntar isso.
— Por que você estava tão chateada na loja de conveniência?
Ela pareceu surpresa, mas depois suspirou.
— Você quer a verdade? Ou quer a versão mais bonita?
Ele sorriu, gostando de saber que ela realmente tinha ouvido.
— A verdade.
— Eu estava chateada com o meu pai.
— Por quê?
— Você está com tempo? — Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Tenho o dia todo — ele respondeu, e era verdade. Cash precisava descobrir quem ela era. Mas uma voz dentro dele dizia que não era só isso.
Ele gostava de ouvi-la falar, de contemplar suas expressões e o jeito como mexia as mãos.
Gostava de ouvir a voz de Chloe, embora ele preferisse não ver o brilho de tristeza nos olhos castanhos.
— Até um ano atrás, ele era tipo... o melhor pai do mundo. O pai que me levava com as minhas amigas aos bailes da escola. Quando ele ia nos buscar, nos levava para comer hambúrgueres às duas da manhã. Mas depois... — Ela fez uma pausa. — Depois ele traiu minha mãe com uma mulher apenas sete anos mais velha do que eu. Agora ela está morando com ele. Meu pai está fazendo papel de palhaço, tentando agir como se fosse mais jovem, tingindo o cabelo, usando gel... Ah, e deixou que ela transformasse meu quarto numa academia. Ela colocou lá um aparelho para endurecer os glúteos e outros aparelhos estranhos onde costumava ficar a minha cama.
A voz dela tornou-se mais aguda.
— Ela usa microssaias! E um decote até aqui. — Ela colocou a mão na metade dos seios. O olhar dele foi atraído para lá, mas ele não deixou que se demorasse ali por muito tempo, mesmo querendo muito. — Ah, e ele me disse que me ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Porque está muito ocupado descabelando o palhaço com a srta. Bunda Durinha.
Cash riu, mas quando viu a expressão de dor no rosto dela, reprimiu o sorriso.
— Lamento. Isso é uma droga.
— Sim. Uma droga. — Ela afastou a bebida e suspirou. Suspirou como a sra. Fuller, quando ficava decepcionada.
Um som profundo e triste que ele não gostava de ouvir. Um som que o fazia querer acreditar nela.
Chloe ergueu os olhos e Cash viu que ela reprimia as lágrimas.
— Desculpe eu ter descarregado tudo em você. Não foi legal.
— Ei, eu que perguntei...
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se abruptamente. Num instante já estava cruzando a porta num flash.
Ainda imaginando o que havia acontecido, ele a observou pela janela enquanto o carro partia. Quando olhou para baixo, viu que o cartão de crédito dela ainda estava em cima da mesa.
Uma hora depois, ele já tinha terminado sua lição de casa na cafeteria e decidido enrolar um pouco antes de ir à casa de Chloe, para lhe devolver o cartão.
Digitou no celular o número da residência dos Fuller e ficou surpreso quando o pai adotivo atendeu.
— Ei, eu já ia ligar para você. Está tudo bem?
— Sim — respondeu Cash. — Parei na casa de um amigo para fazer o dever de casa. Tudo bem se eu chegar por volta das seis?
— Claro. Somos apenas você e eu hoje à noite. Susan teve uma emergência no hospital. Pensei em sairmos e comprarmos algo para ela comer. Talvez pegar um sorvete também.
— Aquele tipo de emergência? — O peito de Cash se apertou.
Susan Fuller era oncologista e não tinha que atender muitas emergências. As crises dela significavam que tinha perdido um paciente ou estava prestes a perder. Ela sempre tinha dificuldade para lidar com isso.
— Receio que sim — ele respondeu.
Cash não era tão próximo do sr. Fuller quanto era da mãe adotiva, mas não podia negar que o homem amava a esposa. Só por isso, Cash o respeitava.
Parte da distância entre eles era por culpa do próprio Cash. Depois de onze anos com seu pai e alguns lares temporários não tão bons, ele resistia à figura paterna. O sr. Fuller se esforçava, no entanto. No ano anterior, depois que Cash tinha passado a frequentar algumas aulas numa faculdade e começado a namorar garotas mais velhas, o sr. Fuller tivera com ele uma conversa sobre sexo e lhe dera um pacote de preservativos.
— Você prefere churrasco ou pizza? — perguntou o sr. Fuller.
— Acho que ela gosta mais de churrasco.
— Concordo. Não chegue muito depois das seis. Quero voltar antes que ela chegue em casa.
— Não posso encontrar você no restaurante?
Quando Cash desligou, pensou em como toda aquela história em torno de Chloe afetaria a mãe adotiva. Se ele procurasse os pais agora para contar tudo e depois descobrisse que Chloe não era Emily Fuller, aquilo poderia trazer de volta toda a dor de perdê-la pela primeira vez, como na época em que aquele vigarista os tinha enganado no ano anterior. Cash não podia dizer nada antes de ter certeza.
Minha mãe e eu estamos esperando consertarem o meu pneu. Na televisão da sala de espera da loja está passando um programa político. Estamos folheando revistas. Lembro-me de quando minha mãe costumava comprá-las para encontrar personagens para seus livros. É triste saber que ela parou de escrever.
Olho para o lado e ela está lendo uma revista, a cabeça coberta com a bandana desbotada. Normalmente, ela usa uma peruca quando saímos.
Hoje não. Mal posso esperar para ver o cabelo dela voltar a crescer. Para vê-la ganhar peso. Estou cansada de vê-la com a aparência de um zumbi.
— Você almoçou hoje? — pergunto ao virar a página da revista.
Ela ergue os olhos.
— Sim.
— O que você comeu?
— Um sanduíche, acho.
— Com batatas fritas?
— Não.
— Você deveria ter comido batatas fritas.
Ela sorri.
— Você é nutricionista?
— Não. Sou sua filha que acha que você está muito magra. Sério, você precisa comer mais. Podemos sair para jantar. Comer algo cheio de calorias.
— Pizza? — Ela sorri.
— Com recheio extra.
— Combinado.
— E você toma uma cerveja.
Ela ri.
— Não posso beber por causa dos remédios.
— Que remédios?
— O comprimido que tenho de tomar por três anos para evitar que o câncer volte.
Sento-me ereta, com uma dor se instalando no meu peito.
— Os médicos acham que pode voltar?
— Não. — Ela bate o ombro no meu. — O remédio é para garantir que não volte.
Eu olho para ela, de repente cheia de preocupação.
— Holden? — Um homem vestindo macacão entra na sala, vindo da oficina.
— Sou eu. — Minha mãe fica em pé.
— Boas notícias. Não há nada de errado com o seu pneu.
— Mas estava murcho! — eu digo.
— Bem, às vezes o pneu pode ficar mais baixo devido à mudança de temperatura, mas, como isso não aconteceu, eu diria que alguém o murchou de propósito.
— Por que alguém faria isso? — Minha mãe me pergunta.
— Sei lá. — Então me lembro de Cash parado ao lado do meu carro. Ele não faria isso, faria?
— Poderia ser pior — diz o mecânico. — Poderiam ter cortado os pneus.
Às quatro e meia, Chloe ainda não estava em casa. Nem mesmo às cinco. Por fim, às cinco e meia, Cash viu o carro dela e estacionou em frente à casa.
Ele pegou o cartão de crédito e o colocou no bolso da frente do jeans. Subindo na varanda, viu uma grande janela com as cortinas abertas. Espiou lá dentro. Uma mulher estava sentada à mesa de jantar. Ela estava usando uma bandana, mas por baixo ele viu que não havia nem um fio de cabelo. As maçãs do rosto estavam salientes. Os olhos, fundos.
A visão o levou à época em que o pai raspava a cabeça e as sobrancelhas de Cash para tirar foto. Ele perdeu vários quilos, após passar fome por quase um mês; depois o pai passou sombra preta sob seus olhos para fazê-lo parecer ainda mais doente. Funcionou. O pai se orgulhava do dinheiro que as pessoas tinham doado para salvar o menino com câncer.
Mas essa mulher não estava usando maquiagem. O peito dele doía por Chloe. Será que a mãe dela ia morrer? Ele sofria até pela mãe adotiva. A mãe de Chloe era o tipo de paciente que a sra. Fuller tratava. O tipo que morria nas mãos dela, não importava quanto se esforçava para tentar salvar.
Suspirando, resignado, ele tocou a campainha. Os olhos da mulher encontraram os dele através da janela.
Quando ela se levantou, pareceu ainda mais magra.
A porta da frente se abriu e ele se apresentou.
— Oi. Meu nome é Cash. Estudo na escola de Chloe. Ela está em casa?
A mulher sorriu.
— Entre. Sou JoAnne Holden, mãe de Chloe. Ela está no quarto. — Então chamou: — Chloe?
Ele entrou. Um gato tigrado amarelo, igual a Félix, pulou de uma cadeira.
— Você gostaria de beber alguma coisa?
— Não, obrigado. — As mãos dele estavam suadas. Será que ele estava nervoso só porque estava conhecendo a mãe de Chloe? Ou seria porque essa mulher poderia ser a sequestradora de Emily Fuller?
Chloe entrou. A postura dela era rígida, os olhos acusadores. Já não tinham passado dessa fase?
— Vamos para o quintal. — Ela passou por ele sem cumprimentá-lo.
Cash agradeceu a mãe dela com a cabeça e seguiu Chloe, passaram pela sala até chegar a um quintal nos fundos.
Ela se virou para trás.
— Feche a porta.
Cash fechou, mas a expressão nos olhos dela dizia que seria melhor se ele encontrasse uma rota de fuga.
— Como você sabia onde eu morava?
A pergunta dela fez Cash suspirar de alívio. Ele sabia o que dizer.
— Você me disse que morava em Oak Tree. Dei uma volta pelo bairro até ver seu carro. Trouxe isso para você.
Ele tirou o cartão de crédito dela do bolso.
— Você esqueceu na cafeteria.
Chloe pegou o cartão, a suspeita ainda em seus olhos.
— Você murchou o meu pneu?
A pergunta saiu enérgica e foi como um soco no estômago. Ele sabia que aquela suspeita poderia surgir e o plano dele era negar. Esse ainda era seu plano, mas agora parecia muito ruim.
— Seu pneu não estava furado? — Aquilo tinha soado convincente? Merda, claro que não. Ele deveria ter cortado o pneu, mas isso teria custado o dinheiro dela.
— Não. — A mão dela pousou no quadril. — Foi você quem o murchou?
— Por que eu faria isso? — Responda a uma pergunta com outra pergunta. Isso confunde as pessoas.
— Não sei. Mas alguém fez isso. E você estava lá.
Ela não se deixava enganar com facilidade.
— E eu o troquei para você. Não gosto tanto assim de trocar pneus. Uau, você realmente tem dificuldade para confiar nas pessoas, hein?
Pela expressão dela, Cash percebeu que tinha dito a coisa errada.
— Sim, eu tenho. E, neste momento, não confio em você.
— Bem. Sugiro que verifique se não usei o seu cartão.
Então saiu pelo portão externo.
O que o deixou mais surpreso foi o fato de se sentir magoado por Chloe não acreditar nele, mesmo que ela estivesse certa em não querer acreditar.
7
Eram onze horas da noite quando o estômago de Cash começou a reclamar de fome. Ele tinha perdido o apetite depois de sair da casa de Chloe e passara a maior parte da noite em seu quarto, depois de encontrar o sr. Fuller para comprar o jantar.
Quando desceu as escadas sem fazer barulho e abriu a geladeira, viu a mãe adotiva sentada na sala de jantar — no escuro. Félix, seu gato, estava estendido sobre a mesa e ela acariciava lentamente o pelo dele. Ela estava de costas para a porta, mas o ouvira entrar.
Ele se aproximou e ficou ao lado dela. A mãe adotiva colocou Félix no chão e enxugou as lágrimas antes de olhar para Cash.
— Sinto muito — disse ele.
Ela assentiu.
— Também sinto.
Cash se sentou ao lado dela.
— Você salva muito mais pessoas do que perde.
A sra. Fuller ofereceu a ele um sorriso triste.
— Ela era apenas alguns anos mais velha que você — ela disse. — Alguns anos mais velha que Emily. Eu queria salvá-la. — Ela respirou fundo. — É difícil perder um paciente, mas quando eles são jovens... Acho que, se eu pudesse salvá-los, isso poderia compensar... — Ela colocou os dedos sobre os lábios trêmulos.
— Compensar o quê?
Ela balançou a cabeça.
— Foi culpa minha. Eu estava tão ocupada com a faculdade... Era meu dia de cuidar da Emily, mas liguei para a babá e pedi para que ela a levasse para passear.
— Não foi culpa sua — Cash disse bruscamente.
— Eu sei. Só estou com pena de mim mesma. E amanhã é... Vai fazer quinze anos que Emily desapareceu. — Ela fez uma pausa. — Odeio não ter conseguido salvá-la.
Quinze anos. Ele não sabia nem mesmo de quem ela estava falando ao dizer que não tinha conseguido salvar. A garota com câncer ou a filha dela?
A sra. Fuller esfregou os olhos e olhou para ele. De perto, ele viu a expressão dela, tão cheia de dor.
Ele colocou a mão no braço da mãe adotiva. De onde vinham as palavras, Cash não sabia, mas elas deixaram seus lábios:
— Você me salvou.
— Eu salvei? — A voz dela tremia. — Às vezes eu me preocupo quando vejo que você não deixa que a gente se aproxime muito de você...
— Você está mais próxima de mim do que qualquer outra pessoa jamais esteve. — E aquela era a mais pura verdade.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Obrigada. É demais pedir um abraço?
Ele balançou a cabeça, mesmo que preferisse evitar abraços.
Eles ficaram de pé e os braços dela o envolveram. Cash não se moveu, a dor que sentia no peito era profunda. A garganta apertou.
Ela o soltou rapidamente, como se sentisse quanto era difícil para ele.
— Nós amamos você como um filho.
Vocês não deveriam.
— Eu sei. — Mas eles mereciam ter a filha de volta e, se ele pudesse, se fosse possível, iria devolvê-la aos Fuller.
Estou me arrumando para ir à escola na manhã seguinte, quando meu celular toca. Tenho certeza que é Lindsey, por isso atendo. Me enganei.
— Como está a filhinha do papai? — É o homem que me deve um pedido de desculpas. De repente, quero que ele saiba que me magoou. Parece que não resta mais nada nele do pai que eu conhecia. O cara que costumava me levar para comer comida indiana porque minha mãe não gostava. O cara que costumava me abraçar forte, que me ensinou a trocar pneu. Ele se foi. Já era.
— Como está minha garota? — ele pergunta novamente.
— Bem.
— Como está indo na escola?
— Muito engraçado... — Mas não estou rindo.
— O que é engraçado?
— Pensei que você fosse me ligar no primeiro dia de aula para saber como foi.
— Ah... — A culpa está estampada nessa única palavra. — Sinto muito, querida. Foi uma semana agitada.
Este é o momento em que deveria dizer que está tudo bem e deixá-lo falar quanto sente a minha falta. Mas não consigo.
— É bom saber que não estou na sua lista de prioridades.
— Chloe! Não diga isso.
— Por quê? É verdade. Você deu a Darlene meu quarto. Diz que vai ligar, mas não liga. O que mais? Agora vai se negar a pagar a pensão também?
— Por quê? Sua mãe está falando mal de mim?
— Sim, mas ela já faz isso há muito tempo. Mas agora finalmente estou percebendo que o que ela diz é verdade.
Desligo e começo a chorar. Mas, por outro lado, me sinto bem. Ele merecia isso.
Ao consultar o relógio, vejo que tenho que me apressar. Passo rápido pela minha mãe, para ela não ver que eu estava chorando.
Quando saio, Lindsey está esperando ao lado do meu carro.
— Algo errado?
— Tudo.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— Isso pode parecer terrível, mas agora você não está mais fingindo tão bem e eu gosto mais de você assim.
Eu olho para ela como quem diz “Do que você está falando?”.
— Antes, você agia como se fosse a Mulher-Maravilha. Eu me sentia mal quando te contava meus problemas, porque você podia me achar meio patética. — Ela dá a volta para entrar no carro.
— De que problemas você está falando? — pergunto, para não parecer mais patética ainda. Eu me sento atrás do volante. — Além do cão sarnento traidor?
Ela se acomoda no banco do passageiro e parece hesitante.
— Não vou aborrecer você com detalhes, mas... — Ela faz uma cara assustada e fica séria. — Minha mãe é gay.
Eu olho para ela.
— Eu já sabia.
Ela me olha perplexa.
— É tão óbvio assim?
— Sim. A namorada da sua mãe está sempre na sua casa e, quando assistem TV, ficam de mãos dadas. Por que isso...?
— É um problema? — Ela termina a minha frase. — Não é. Estou feliz que ela tenha se encontrado e encontrado Lola. Uns dois anos atrás, ela teve depressão. Até sete meses atrás, estava tomando antidepressivos, solitária e infeliz. Ela é muito mais feliz agora. E para mim tudo bem... Mas... nem todo mundo aceita. E tenho medo que...
— Você não deveria se importar com o que as pessoas pensam. Quem a sua mãe ama não é da conta de ninguém. Você tem uma mãe que é gay. Ponto final. Isso não é nada de mais.
Os olhos dela se estreitam.
— Você não entende. Não é que eu me importe com o que pensam. Eu tenho medo de que, da próxima vez que alguém disser alguma coisa sobre ela, eu pule na garganta da criatura. É a minha mãe! Odeio que o mundo a julgue.
Eu sorrio.
— Ótimo. Quem disse algo sobre ela?
— Clare, uma das primas de Jamie. Foi logo antes de Jamie viajar para o acampamento. Eu não sabia que Jamie tinha contado a ela sobre a minha mãe até ela começar a dizer quanto aquilo devia ser estranho para mim. Eu simplesmente fui embora. Nem me despedi de Jamie. Mais tarde, fiquei tão brava comigo mesma por não defender minha mãe que agora não vejo a hora de outra pessoa dizer alguma coisa.
Eu olho para ela.
— É o seguinte. Quando alguém disser alguma coisa, venha me chamar e vou ajudar você a dar uma lição nessa pessoa. Estou ficando boa nisso.
Lindsey suspira.
— Estou tão feliz que você tenha se mudado para a casa ao lado da minha!
Eu não posso dizer o mesmo, porque ainda sinto muita falta da minha outra vida, mas sorrio. Naquele momento, sei que não sou apenas colega de Lindsey. Gostando ou não da cidade, consegui uma boa amiga. Então decido confiar nela e contar sobre Cash e o pneu murcho.
— E se ele fez isso apenas para ter um motivo para falar com você? — ela pergunta.
— Se ele quisesse falar comigo, poderia ter simplesmente se aproximado e falado comigo. Ele não é tímido.
— Você não sabe. Ele talvez não seja tão confiante quanto parece.
Será que exagerei, por causa das minhas próprias inseguranças? Porque não acredito que ele possa estar interessado em alguém como eu?
Será que cheguei automaticamente à conclusão errada, como todas as outras pessoas? Ao me lembrar da história sobre como ele foi expulso da sua última escola, porque as pessoas preferiram acreditar no pior com relação a ele, começo a me sentir culpada.
— Sou uma cretina — murmuro e Lindsey ri.
Cash decidiu se desculpar. Ele faria qualquer coisa para voltar a ter a confiança de Chloe. Precisava de respostas e a única maneira de consegui-las era se aproximar dela. Ele tinha que descobrir se ela era Emily Fuller.
Ele não sabia exatamente o que precisava para provar ou refutar sua suspeita. Mas seus instintos lhe diziam que ele saberia quando ouvisse. E não ouviria nada se ela se afastasse dele.
Ele viu Chloe perto do armário, mas, antes que pudesse se aproximar, ela desapareceu no corredor, entre os outros alunos. No caminho para a aula de Literatura Americana, que eles tinham juntos, ele olhou para a esquerda e para a direita, esperando encontrá-la. Quando se aproximou da porta da sala de aula, ele a viu parada ali, esperando.
Seus olhares se encontraram e ela começou a andar na direção dele. Ele não estava perto o suficiente para decifrar a expressão nos olhos dela. Mas a tensão fez com que seu estômago se contraísse.
Chloe parou na frente dele, então fez um gesto para que se afastassem da porta.
— Oi. Eu...
— Olha, eu...
— Pode falar — disse Cash. Sempre deixe a outra pessoa falar primeiro. Seu plano de jogo talvez mude.
Ela mordeu o lábio.
— Sinto muito. Não deveria ter acusado você. Fui rude. — Chloe olhou para ele. O pedido de desculpas iluminou os olhos castanhos dela. Ele viu as manchas verdes e douradas. Seus olhos seriam da mesma cor que os do sr. Fuller?
Seu próprio pedido de desculpas estava na ponta da língua. Quando falar com uma garota tinha ficado tão difícil?
Em vez disso, ele sorriu.
— Tudo bem.
— Não, não está tudo bem.
Ela fez uma pausa como se fosse a vez dele de dizer alguma coisa, mas Cash estava muito ocupado se recriminando, porque ele era o culpado e deveria ser o único a pedir desculpas. Ela se virou para entrar na sala de aula.
— Espere. — Ele pegou o braço dela e sentiu o mesmo choque. Como tocar num fio desencapado. Mas a sensação logo desapareceu e tudo o que restou foi a sensação de como a pele dela era macia. — Podemos falar sobre isso mais tarde?
— Sim. — Ela sorriu e não saiu do lugar.
Demorou um segundo para Cash perceber que ainda segurava o braço dela. E estava acariciando a pele dela com o polegar. Mas, caramba, ele gostava da sensação de estar tocando Chloe...
Com relutância ele a soltou e deixou-a ir para a aula. O toque podia ter vindo com uma centelha de dor, mas o que viera a seguir — a pele quente, suave e feminina — fizera tudo valer a pena.
8
Depois da escola, Cash dirigiu até a casa de Chloe, mas estacionou algumas casas à frente. Enquanto esperava, sentiu certo nervosismo. Estava pensando em sugerir que se encontrassem na cafeteria. Algo sobre a mãe de Chloe o deixava apreensivo. Vê-la tão doente e questionar se ela tinha sequestrado Chloe tornava tudo mais difícil.
Ele se perguntou quão difícil não seria para Chloe ver a mãe dela tão magra. E ele só contribuiria para aumentar os problemas da garota se dissesse que ela podia ser Emily Fuller. Ocorreu-lhe que seria mais fácil se ela não fosse a filha dos Fuller.
Ele não teria que mentir para ela.
O carro de Chloe entrou na garagem da casa.
Cash viu pelo espelho retrovisor a amiga dela colocando a mochila no ombro. Ele tinha reparado nela no ano anterior. Não estava na sua lista de garotas insuportáveis.
Chloe saiu do carro. Cash gostava de observá-la, especialmente quando ela não sabia que estava sendo observada. Ela parecia de alguma forma... diferente das outras garotas. Quando cruzava com outras pessoas no corredor, pedia licença. A maioria não fazia isso. Ela sorria para os outros alunos — não apenas para os mais populares, como algumas garotas faziam.
Cash também via os garotos olhando para ela. Não podia culpá-los. Ele olhava também. Só que alguns caras eram uns cretinos.
Só quando Chloe viu o carro dele é que Cash saiu.
— Vamos entrar. — O cabelo dela balançava em volta dos ombros e a camisa vermelha se ajustava aos seios.
Ele a seguiu para dentro da casa.
— Mãe? — Chloe chamou. — Cash está aqui. Vamos nos sentar lá fora, no quintal. — Cash ouviu a mãe dela responder algo do quarto.
Chloe largou a mochila numa cadeira da sala de jantar.
— Aposto que a sua casa é muito melhor que a minha.
— Na verdade, não — Cash mentiu, porque seria rude da parte dele se concordasse com ela. Mas com exceção da casa dos Fuller, a casa de Chloe era melhor do que qualquer outra em que ele já tinha morado. Durante seis meses, ele e o pai haviam morado numa cabana na floresta sem água corrente, eletricidade ou banheiro.
Ele a seguiu pela casa e viu alguns porta-retratos na mesinha ao lado do sofá. Ali havia várias fotos de Chloe quando era pequena. Uma delas chamou a atenção dele, como se ele já a tivesse visto antes. Era Chloe segurando um gato tigrado amarelo. Ele pegou o porta-retratos. Estava imaginando coisas ou era a mesma foto que a Susan Fuller tinha num dos quartos vazios? Se pudesse, fotografaria a foto para poder compará-las.
Cash levantou os olhos e percebeu que Chloe estava olhando para ele.
— Você era uma gracinha.
— Obrigada. — Ela fez sinal para ele acompanhá-la até o quintal. Lembrou-se da última vez em que estivera ali, quando ela o acusara de ter murchado seu pneu. Esperava que desta vez não houvesse acusações.
Quando saíram no quintal, um cachorro amarelo, de tamanho médio e raça indefinida, veio correndo para cima dele, latindo. Não era um latido ameaçador, mas brincalhão. Cash acariciou o animal.
— Não, não pule, Docinho! — Chloe foi se sentar no balanço. Cash teve a sensação de que ela esperava que ele fizesse o mesmo. Então se sentou, deixando de propósito um espaço entre eles. Mas, mesmo assim, estavam muito próximos. Ele podia sentir o aroma que exalava dela. Um perfume de frutas e flores. Não um perfume, mas uma colônia, e talvez um brilho labial também, porque ele notou que os lábios dela estavam brilhantes.
O cachorro colocou a pata na perna de Cash.
— Ela é bonita.
— Ele — disse Chloe.
— Você deu o nome de Docinho para um macho?
— Ele era muito bonzinho. E eu tinha 7 anos.
Cash soltou uma risadinha.
— Você provavelmente o castrou também, para tirar dele qualquer resquício de masculinidade...
Ela levantou uma sobrancelha e acariciou o cachorro.
— Só depois que ele cruzou com a cachorra do vizinho e ela teve vários filhotes. E foi na festa do meu aniversário. Na frente de todos os amigos da minha classe. Minha festa teve cama elástica, um palhaço e uma aula de educação sexual.
Ele riu e percebeu que fazia muito isso quando Chloe estava presente. Então pensou no que ela tinha dito. Cash não tinha realmente refletido sobre como tinha sido a infância dela, mas não parecia ruim. Será que pessoas que organizam festas de aniversário bem elaboradas para os filhos sequestram crianças?
Ele nunca tivera uma festa de aniversário. Teve apenas um bolo de aniversário antes da chegada dos Fuller. Agora os aniversários nunca passavam em branco. Sempre havia bolo e presentes. E a mãe adotiva sempre tirava o dia de folga e cozinhava o que ele queria. Se Cash não dissesse o que queria, ela fazia os pratos que sabia que ele gostava. Será que era isso que Chloe também tinha?
Percebendo que o silêncio estava ficando pesado, ele disse:
— Parece que foi uma ótima festa de aniversário.
— Foi inesquecível.
— Eu não estou nem aí! — A voz em tom elevado da mãe de Chloe vazou por trás da porta dos fundos, mesmo fechada.
Chloe franziu a testa.
— Bem, eu só disse a verdade! — A voz da mãe soou irritada novamente.
— Merda. — Chloe saiu do balanço. — Já volto.
Ela disparou para dentro. O cachorro sentado ao lado dele choramingou. Quando a porta se fechou, ele ouviu Chloe dizer:
— Mãe! Cash está aqui.
A voz da mãe dela explodiu novamente.
— Talvez você devesse ter pensado nisso antes de começar a transar com alguém que poderia ser irmã dela! Sim, eu disse isso. Você é um merda. E ela é uma vadia!
— Mamãe! Pare! — A voz de Chloe soou mais alto.
— Passe bem! — A mãe gritou, e então... — Você disse ao seu pai que eu estava falando mal dele?
Cash abaixou os pés para interromper o movimento estridente do balanço e ouvir o que ela diria em seguida.
— Eu... Nós podemos conversar sobre isso mais tarde? Cash está aqui.
— Por que você conta a ele tudo o que eu digo? — A mãe dela gritou.
A voz de Chloe soou em seguida.
— Eu não tinha intenção... — A dor era evidente na voz dela. O mesmo tipo de dor que ele tinha ouvido no dia anterior, quando contou a ele sobre o pai.
— Aquele homem não tem vergonha na cara! E pode dizer a ele que eu disse isso!
Uma porta bateu lá dentro. Cash passou as mãos no jeans e se perguntou se deveria ir embora.
Chloe voltou para o quintal.
O rosto dela estava vermelho. Estava de braços cruzados, como se estivesse zangada ou envergonhada. Talvez as duas coisas.
Ela encontrou os olhos dele.
— Olha, eu vou te dar um conselho: vá embora e me esqueça. Você não tem que ouvir os melodramas dessa minha família maluca.
Ele não saiu do lugar. Só queria ter algo para dizer que a fizesse se sentir melhor.
— Tive uma família muito pior. São apenas os problemas do divórcio.
Ela se aproximou e deixou-se cair no balanço.
— Foi mal...
Quando ela virou o rosto para cima, ele viu lágrimas nos cílios longos e escuros.
— Sério, está tudo bem.
— Minha vida é uma zona. Você não vai querer... — Chloe mordeu o lábio.
— Não. A vida dos seus pais é uma zona. Você é apenas uma vítima inocente.
Cash não podia acreditar que estava reciclando alguns dos velhos clichês que os psicólogos costumavam repetir para ele enquanto estava no hospital, depois de ter sido baleado. A psicóloga estava lá quando ele acordara. Cash tinha se lembrado de perguntar a ela:
— Eu vou para a cadeia?
Ela tentou consolá-lo.
— Não. Você não fez nada de errado.
Ele se lembrou de levantar o queixo, disposto a aceitar sua punição.
— Sim, eu fiz.
— Você não é má pessoa. Foi seu pai quem fez coisas ruins. Você é jovem, fez o que tinha que fazer para sobreviver.
Ao lado dele, Chloe balançou a cabeça.
— Não. Eu não sou inocente desta vez. — Mais uma vez, ela mordeu o lábio. — Meu pai ligou esta manhã e eu disse algo que não deveria ter dito. Eu queria magoar meu pai, não a minha mãe.
Ele não sabia direito o que o levou a fazer aquilo, mas colocou o braço sobre os ombros de Chloe. Um choque de prazer percorreu o corpo dele, acompanhado de dor. Mas então a dor se foi.
Ela soltou aquele som triste novamente — um suspiro muito parecido com o da sra. Fuller, o que o fez lembrar por que ele estava ali. Antes que Cash pudesse mover o braço, Chloe se inclinou contra ele.
Ele tentou não recuar.
— Ainda tem a ver com eles. Não com você.
Ela olhou para ele. Estavam tão perto que Cash poderia contar os cílios dela. E isso deu a ele uma visão panorâmica da dor nos olhos castanhos dela.
— Você é muito bom nisso — Chloe sussurrou.
— No quê?
— Em saber dizer a coisa certa.
— Que estranho... Eu geralmente sou péssimo nisso. — Cash forçou um sorriso, sentindo cada centímetro do corpo dela contra o dele. Sentindo quanto aquilo parecia certo e errado ao mesmo tempo.
— Seus pais se divorciaram? — perguntou ela.
Ele sentiu o ar preso na garganta. A última coisa que queria era falar sobre o passado.
— Não. Eles morreram.
— O que aconteceu? Desculpe, eu não deveria...
Docinho bateu contra o joelho dele, com uma bola de tênis amarela na boca. Com o braço livre, Cash jogou a bola longe para o cachorro pegar.
— Sua mãe parecia furiosa.
— Ela não está apenas furiosa. Ela está amargurada.
Chloe olhou para a porta e sua expressão era de tristeza novamente.
— Não posso culpá-la, só que... dói ouvi-la xingar meu pai o tempo todo. Eu sei que ele merece. Mas... — Ela cobriu o rosto com as mãos. — Droga. Estou fazendo de novo.
— Fazendo o quê?
— Despejando os meus problemas em cima de você.
Cash sorriu.
— Eu aguento.
Ela riu e recostou-se nele. Estavam ainda mais perto agora.
Ele inspirou o perfume dela.
— É câncer que ela tem?
— Sim.
— Ela vai ficar bem?
A raiva nos olhos dela se transformou em tristeza.
— O médico disse que ela está curada. Mas acabei de descobrir... que o câncer pode voltar. — Chloe fez uma pausa. — Mal posso esperar o dia em que ela deixar de parecer... que está morrendo.
— Sinto muito. — Cash quase disse que a mãe adotiva era oncologista, mas falar sobre a mulher que ele achava que podia ser a mãe dela parecia errado.
Os olhos deles se encontraram. E ali ficaram. Os lábios dela vieram ao encontro dos dele.
Cash recuou.
Ela se encolheu.
— Foi mal...
— Não. Eu só... Eu não estava... — Ele não conseguia desviar os olhos dos lábios dela. Então ele se inclinou. Seus sentidos continuavam hiperalertas.
Ele sentiu tudo intensamente. O sabor dos lábios dela. Um pouco salgados, por causa das lágrimas. A textura deles. Macios, quentes. Úmidos. O modo como ela chegou um pouco mais perto e seus seios pressionaram suavemente as costelas dele. Cash a queria mais perto, para que pudesse envolver sua cintura, deslizar as mãos sob a camisa vermelha, para sentir a pele nos lugares que não tinha conseguido ver.
Percebendo que não deveria estar pensando aquilo, ele pôs fim ao beijo, mas conseguiu fazer isso bem devagar.
Chloe sorriu.
— Isso foi bom.
— Sim. Foi mesmo...
Mas, que droga, ele estava indo longe demais! Aquilo podia acabar muito mal.
Cash estacionou na garagem, entrou em casa e digitou o código para desligar o alarme. Ele tinha ido embora depois que os dois haviam se beijado pela quinta vez. Cinco beijos. Ele ficou dizendo a si mesmo que precisava parar, mas não conseguia. Não quando ela se sentou tão perto e parecia tão disposta, olhando para ele com desejo misturado com tristeza. Chloe precisava ser beijada e ele precisava beijá-la.
Ele subiu os degraus de madeira e cruzou o corredor até o quarto onde a sra. Fuller guardava todas as recordações da filha que havia perdido. Fotografias, bichinhos de pelúcia com que a criança brincava, livros que ele imaginava que a mãe lia para ela. Na cômoda ainda havia algumas roupas. Era como um museu dedicado à filha.
Quando acendeu a luz, ele descobriu que a cama estava desarrumada. Ele apostava que ela tinha dormido ali na noite anterior. Sempre fazia isso quando estava com algum problema.
Cash foi até as prateleiras que continham livros e porta-retratos. E encontrou. A foto de Emily Fuller segurando um gatinho. Não apenas qualquer gatinho, mas Félix. O gato malhado amarelo quase idêntico ao da fotografia na casa de Chloe. Igualmente idêntica era a garota.
Ele pegou a foto.
A mãe adotiva tinha lhe contado muitas vezes como Emily amava Félix. Eles haviam encontrado o gatinho abandonado na rua. Era por isso que a mãe adotiva amava tanto aquele gato. Aquela seria uma peça do quebra-cabeça? Ou todos os pais decentes tinham fotos dos filhos com seus animais de estimação? Mas como essas duas garotas poderiam se parecer tanto? E seria coincidência que os gatinhos se parecessem também?
Ele pegou o celular para fotografar o porta-retratos.
9
Atenta a cada barulhinho vindo do quarto da minha mãe, eu coloco o que restou de uma pizza no forno, esperando que o cheiro apetitoso a atraia para a cozinha. Cash saiu faz uma hora, mas minha mãe não apareceu ainda. Será que ela está chorando? Está deprimida? Irritada?
Parte de mim gostaria de obrigá-la a sair do quarto. Ela está agindo como uma criança birrenta.
Quando é que assumi o papel da mãe nesta casa?
Ah, sim, quando ela teve câncer. Ou talvez quando meu pai a abandonou.
Desconto minha frustração na alface, no tomate e nas cenouras que estou picando. Félix mia e circula entre os meus tornozelos.
Com as mãos no piloto automático, minha mente divaga. Estou angustiada com a minha mãe e ao mesmo tempo nas nuvens por ter sido beijada por Cash. Beijada cinco vezes. Eu tomei a iniciativa. Quero dizer, os lábios dele estavam tão perto que eu simplesmente o beijei. Mas os outros quatro beijos foram iniciativa dele.
Eu posso fechar os olhos e ainda sentir seus lábios contra os meus. Saboreio a lembrança e... os sentimentos novos que brotam no meu peito. Esperança. Empolgação. Antecipação.
Desde que meus pais começaram a se desentender, sinto como se alguém tivesse roubado a minha alegria. Mas talvez ela não tenha sido roubada, apenas reprimida. Talvez...
A porta do quarto da minha mãe se abre. Ela entra na cozinha em meio a uma aura de depressão.
— Estou esquentando a pizza — digo.
— Não estou com fome.
— Você tem que comer. — Sim, eu sou a mãe aqui.
Nossos olhares se encontram. Eu vejo a mágoa nos olhos fundos dela. Toda a alegria que eu sinto no peito murcha como uma flor deixada num vaso sem água. Sou tomada por um sentimento de culpa.
— Eu não fico falando de você para o papai. Ele ligou esta manhã e fiquei com raiva.
— Por quê?
— Ele me disse que ligaria no primeiro dia de aula e não ligou. Quando reclamei, ele perguntou se você estava falando mal dele e se era por isso que eu estava sendo agressiva. Eu disse que, sim, que você estava falando mal dele, mas que não era esse o problema. O problema era que agora eu estava percebendo que tudo que você dizia era verdade. Eu não quis...
Ela se senta.
— Então ele disse que ligaria e não ligou?
Isso não está ajudando. Agora ela vai ficar brava de novo. Eu me deixo contagiar por essa raiva.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não fique com raiva.
— Como posso não ficar com raiva? Olha o que ele fez comigo! — Ela arranca a bandana.
— O que aconteceu com aquela minha mãe que estava feliz outro dia? Que disse que tudo ia ficar bem?
— Seu pai aconteceu! — Lágrimas enchem os olhos dela.
Lágrimas enchem meus olhos também. Sento-me ao lado dela.
— Mãe, você precisa de ajuda. Precisa de terapia ou algo assim. Você pode sobreviver ao câncer, mas essa amargura vai te matar.
Sem mais uma palavra, ela volta para o quarto.
Eu desligo o forno, vou para o meu quarto e bato a porta.
Nenhuma de nós janta.
Na manhã seguinte, quando saio do meu quarto para fazer xixi, minha mãe me chama. Ela está sentada na cozinha, vestida com o roupão cor- de-rosa, que parece engolir seu corpo inteiro.
— Podemos conversar?
Tento decifrar o humor em que ela está. Ainda está furiosa? Ainda está deprimida? Quando me aproximo, sinto outra coisa. Culpa.
— Sente-se. — Ela faz um gesto indicando a mesa.
Eu me sento na frente da minha mãe. As olheiras sob os olhos dela estão mais escuras. Ela não anda dormindo.
— Sinto muito — diz minha mãe. Lágrimas caem dos seus olhos verdes. — Eu tive um dia ruim ontem. Ficaram de me ligar ontem para falar sobre a vaga de emprego no consultório, mas ninguém ligou. Estou achando que podem ter mudado de ideia. E o remédio que estou tomando causa sintomas de gripe. Comecei a sentir pena de mim mesma, então o seu pai me ligou e eu perdi a cabeça. — Ela pega minha mão. — Me desculpe por ter surtado na frente do seu amigo.
Embora eu quisesse acreditar que tudo está bem agora, não posso. Não é o primeiro pedido de desculpas que ouço dela.
— Amo você, mãe — digo. — E eu te perdoo. Mas você precisa fazer terapia.
— Foi só um dia ruim.
Eu enrijeço os ombros e digo a mim mesma que não sou a mãe dela.
— É mais do que isso. Você parou de escrever. Parou de viver. Parou de comer. Não foi só um dia ruim. Você teve um ano ruim. Vejo anúncios na TV dizendo que hoje existe todo tipo de remédio para a depressão.
— Querida, eu não preciso...
— Você precisa, mãe. — Eu a olho bem nos olhos.
Ela hesita e diz com relutância:
— Vou ver se o nosso seguro-saúde cobre.
Não era um sim, mas também não era um não.
Termino de me arrumar, abraço minha mãe e a lembro de ligar para o seguro-saúde. Quando saio, Lindsey está ao lado do meu carro. Ela havia me mandado uma mensagem ontem à noite, cerca de uma hora depois que me tranquei no meu quarto, implorando para eu ir à casa dela, mas eu só liguei. Não contei sobre a minha mãe, não estava pronta para conversar sobre isso, mas contei sobre Cash. Sobre nós nos beijando.
Quando ela me vê, sorri.
— Ainda caminhando nas nuvens?
— Mais ou menos... — Entro no meu carro.
Lindsey se senta no banco do passageiro.
— Eu mal posso acreditar que você está namorando Cash Colton. Ele é o cara mais gato da escola!
— Calma aí! Não estou namorando Cash. Ainda não.
Quando dou partida no carro, vejo minha mãe olhando pela janela.
Despenco das nuvens um pouco mais.
— Ok, deixe-me reformular — diz Lindsey. — Mal posso acreditar que você está dando uns amassos no cara mais gato da escola.
— Não dei uns amassos... Foram só cinco beijos...
— Hmm... — diz Lindsey. — Acho que foram amassos, sim. Vamos ver o que o Google diz. — Ela pega o celular e, em alguns segundos, está lendo e rindo.
— O que foi? — pergunto.
— Bem, de acordo com o Google, são vários os significados de “dar uns amassos”. Só beijar é um deles. Beijar com a língua é outro. — Ela olha para mim. — Você deu um beijo de língua no Cash?
— Digamos que sim...
— Ah, olha só... — Ela se concentra no celular. — Aqui está outro significado: “Trocar carícias, esfregar-se um no outro ou remover peças de roupa”.
— Nós não removemos nenhuma peça de roupa! — Eu solto uma risada.
Ela continua.
— Ouça esta aqui: “Qualquer coisa que não incluir penetração”. Penetração? Isso parece tão pervertido...
O comentário me faz bufar e depois pergunto:
— E quando você vai falar com David?
— Não vou. Se gosta de mim, ele é que vai falar comigo. — Lindsey afivela o cinto de segurança. — Adivinha quem mandou uma mensagem ontem à noite?
— Quem?
— Jonathon.
— O cachorro sarnento traidor? — Começo a dirigir.
Ela confirma.
Piso repentinamente no freio quando vejo o farol vermelho. O carro dá um solavanco.
— Não... — digo com firmeza.
— Não o quê?
— Não, você não vai voltar com ele! Ele te tratou como lixo.
— Mas...
— Sem desculpas! Não seria sua amiga se deixasse você voltar com ele.
Ela baixa a cabeça.
— Tem razão.
— Fale com David hoje!
— Talvez — Lindsey responde.
— Nada de talvez! Faça isso. E nem estou dizendo para sair com ele, apenas...
— Apenas o quê?
— Sinta que é possível. Descubra o poder que existe dentro de toda garota e pare de pensar que precisa de Jonathon para ser feliz. Às vezes acho que precisamos saber que outro cara gosta de nós para nos sentirmos bem com a gente mesmo. Às vezes só precisamos saber que conseguimos fazer um cara perceber que talvez a gente não precise de cara nenhum.
— É isso que você está fazendo com Cash? Encontrando o poder que existe dentro de toda garota?
A pergunta rola na minha cabeça.
— Talvez. Não sei ainda. — Mas quando penso nele, sinto que é mais do que isso.
Cash chegou cedo na escola, mas disse a si mesmo que sua pressa para chegar não tinha nada a ver com Chloe.
Na noite anterior, ele só conseguia pensar nela. Ficou se perguntando se ela seria Emily. Se havia gostado tanto de beijá-lo quanto ele gostara de beijá-la. Se ela iria odiá-lo quando ele contasse sobre as suas suspeitas.
Quando virou no corredor, ele a viu. Diminuiu o passo e a observou. Prestou atenção na maneira como o cabelo dela caía nas costas, enquanto ela guardava a mochila no armário.
Então ele se aproximou até parar ao lado dela.
— Olá.
Chloe se virou e sorriu.
— Oi.
— Oi. — O olhar de Cash foi direto para os lábios dela e ele quis beijá-la. Nunca fora de demonstrar afeto em público, mas poderia dizer que seria fácil mudar de ideia.
Percebendo que ficar olhando para os lábios de Chloe era estranho, ele desviou o olhar para o livro de matemática que ela segurava contra os seios. Mas deixar que o olhar se demorasse ali seria ainda mais estranho, então Cash falou sem pensar:
— Indo para a aula de Cálculo? Você tem aula com o sr. Williams? Eu tenho aula com ele mais tarde.
Desde a noite anterior, ele sabia que ela tinha aula com o sr. Williams, pois tinha lido e relido o arquivo que fotografara no escritório da srta. Anderson.
— Sim — ela respondeu. — Ele parece legal. Qual é a sua primeira aula?
— História. — O alarme tocou.
— Preciso ir — disse ela. — Vejo você na aula de Literatura Americana.
— Até mais tarde. — Ele se inclinou na direção dela. — Gostei de ontem.
Ela sorriu e aqueles suaves olhos castanhos o fitaram através dos cílios.
— Eu também.
Ela se afastou. Ele a viu cruzar o corredor em meio à multidão. O jeans preto que ela usava se ajustava quase tão bem quanto o jeans azul que vestira no dia anterior.
Ele ficou ali parado até a visão dela ser obstruída por outros alunos.
Considerando que Cash fazia parte de quase todas as aulas de conteúdo mais aprofundado, era estranho que só tivessem uma aula juntos aquele dia. Apenas azar. Ou talvez fosse porque ele tinha escolhido estudar Tecnologia Automotiva.
No ano anterior, quando montava sua grade de aula, a srta. Anderson tinha tentado convencê-lo a não fazer isso.
— Mas eu não posso mantê-lo em todas as aulas mais avançadas se estiver estudando Tecnologia Automotiva. Você poderia escolher outra aula de matemática para se preparar melhor para os cursos universitários.
Ele explicou que havia planejado cursar aulas de matemática numa faculdade antes de se formar. E ele já estava fazendo isso. Aquela noite era sua primeira aula.
— Então você planeja ir para a faculdade? — ela perguntou como se não esperasse que ele tivesse esses planos. Agora que sabia que a srta. Andreson era adotada, ele estava meio desapontado ao ver que ela tinha automaticamente pensado o pior dele. Pessoas comuns faziam aquilo, não pessoas que entendiam o que era uma adoção.
Ou talvez ela tivesse entendido até bem demais. A maioria das crianças adotadas por meio do programa do governo acabava na prisão. Quando Cash leu essa estatística, ficou chateado. Pensou nas poucas crianças adotadas de que ele realmente gostava. Não que tivesse mantido contato com elas. Isso era quase impossível em razão do número de vezes que mudara de lar temporário.
Enquanto caminhava para a aula de História, lembrou-se da pergunta seguinte da srta. Anderson. Ela quis saber:
— Então por que fazer Tecnologia Automotiva?
Cash disse a ela:
— Porque eu gosto.
E ele gostava mesmo. Mas a verdade era que, quando terminasse o ensino médio, não planejava receber uma mesada dos pais adotivos. Se algo acontecesse com o carro dele, era melhor que ele estivesse preparado para consertar.
Além disso, a oficina estava lhe atribuindo serviços cada vez maiores, agora que sabiam que ele estava cursando Tecnologia Automotiva, e ele esperava trabalhar numa grande oficina mecânica enquanto fazia faculdade.
Incomodava-o o fato de os Fuller terem comprado um jipe para ele. Eles o tinham convencido a aceitá-lo. Mas Cash se arrependera. E estava determinado a reembolsá-los.
Depois do almoço, vou ao meu armário buscar meus livros. Com o armário aberto, pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem para minha mãe. Você ligou para o seguro-saúde?
Ela precisava saber que eu não tinha me esquecido.
Estou esperando para ver se ela vai responder quando sinto alguém de pé ao meu lado. Abro um sorriso, pensando que é Cash. Mas, quando olho, vejo o rosto de um valentão com um nariz muito machucado. O nariz que Cash socou.
— Oi — ele diz. — Sou Paul Cane. Quarterback do time de futebol.
Eu olho para o meu celular novamente, esperando que ele vá embora. Ele obviamente acha que eu deveria ficar impressionada com a posição dele no futebol.
— Pois não?
— Chloe, certo? — ele pergunta.
— Sim.
— Pensei em fazer um favor a você.
Isso me faz levantar o olhar.
— Vi você saindo com aquele cara, Cash. Você provavelmente não sabe, mas ele é adotado.
Para mim isso é como derramar suco de limão num corte profundo.
— E daí? — percebo o tom frio da minha voz e espero que ele também tenha percebido.
Ele deve ter percebido, porque parece decepcionado.
— Conheço alguns alunos que frequentam a antiga escola de Cash, e há boatos de que ele é mau elemento.
Eu lanço um dos meus sorrisos mais amarelos e falsos.
— O bom é que não desperdiço meu tempo com boatos.
Os olhos cinzentos dele escurecem.
— Dizem que ele matou o pai. Um tiro bem no coração.
Isso me deixa atordoada, mas não demonstro.
— Como eu disse, não dou a mínima atenção para boatos.
Começo a andar, mas ele pega meu braço.
— Você deveria dar. — O tom da voz dele é tão arrogante quanto no dia em que praticou o bullying. Como se ele fosse mais esperto que todo mundo, superior. Mas eu o vejo simplesmente pelo que ele é: um babaca.
Eu olho para a mão dele e afasto o meu braço.
Ombros tensos, bato a porta do meu armário com um pouco de força demais. O barulho ecoa no corredor. Pessoas se viram para olhar.
Quando começo a andar, minha mente começa a dar voltas. Será que Cash de fato matou o próprio pai?
10
Quando toca o último sinal do dia, Lindsey me encontra em frente ao meu armário e vamos juntas ao estacionamento. Estou decepcionada que Cash não veio falar comigo. Durante todo o dia pensei no que Paul me disse. Não que eu acredite nele.
Sei que Paul é um idiota que diria qualquer coisa para prejudicar Cash. E se Cash soubesse o que ele disse, ficaria chateado. E é por isso que não vou dizer nada a ele.
Quando Lindsey e eu nos aproximamos do meu carro, eu o vejo encostado contra a lataria. Lembro com clareza como foi beijá-lo. Um sorriso aparece nos meus lábios e depois nos meus olhos.
Não. Ele não é um assassino.
— Você quer que eu deixe vocês dois sozinhos? — Lindsey pergunta.
— Não — eu digo.
Nós continuamos andando e tudo que eu posso ver é Cash. Em como seus olhos verdes brilham enquanto me olham. Na expressão dele, quase sorrindo.
— Esta é Lindsey.
Cash é educado e diz:
— Olá. Conheço você de vista desde o ano passado.
— Oi. — Ela pega o celular. — Eu preciso mandar uma mensagem... para uma pessoa. — Ela vai para o outro lado do carro. Sei que está apenas nos dando um pouco de privacidade e lhe sou grata por isso. Me aproximo dele.
— Espero que goste da sua aula de hoje à noite.
— Eu só queria me despedir.
Olho para ele. Seu olho roxo está melhor. Uma rajada de vento tira o cabelo preto da testa. Eu me pergunto se ele quer me beijar de novo. Sei que quero beijá-lo, mas usei toda a minha coragem quando o beijei primeiro ontem.
— Tudo bem se eu te mandar uma mensagem ou te ligar mais tarde? — ele pergunta.
— Tudo bem. — Nós trocamos números de telefone.
— Você pode me ligar também. — Cash passa a mão no meu braço. Sei que ele não está planejando me beijar. Mas o toque de alguma forma me tira o fôlego tanto quanto o beijo.
Fico ali parada, vendo-o se afastar. Ele se vira uma vez e abre um sorriso. Isso é tão bom...
— Sem beijo? — Lindsey pergunta depois que entramos no carro.
— Sem beijo. — Eu ofereço a ela um sorriso e quase digo quanto me sinto bem.
Ela suspira.
— Você sabe que isso tudo é muito louco? Sério, as garotas ficavam, tipo, se jogando em cima dele, e ele ignorava todas elas.
— Também acho muito louco... — comento, e a insegurança me atinge em cheio. Sei que ele disse que eu me pareço com alguém e foi por isso que tudo começou, mas, se Cash pode ter qualquer garota que quiser, o que está fazendo comigo?
Afasto esse pensamento e olho para Lindsey.
— Você falou com David hoje?
Ela sorri.
— Falei.
— E como foi?
— Usei o poder que toda garota tem! — diz ela. — E se ele me convidar para sair, eu vou. Eu não sei se ele gosta de mim, mas eu gosto dele. Ele é... revigorante.
— Ótimo! — Enquanto esperamos na fila para sair do estacionamento, ouço uma batida na janela da frente, do lado do passageiro.
É Jamie.
Lindsey abaixa o vidro.
— Oi — Jamie diz para Lindsey, sem nem me cumprimentar com um aceno de cabeça.
— Quer ir para casa comigo? A gente faz o dever de casa juntas...
— Hã... — Lindsey olha para mim como se estivesse constrangida.
— Pode ir — eu digo.
— Ok, então — diz Lindsey.
Eu fico olhando enquanto Lindsey salta do carro e se afasta com Jamie, dizendo a mim mesma que não estou com ciúme. O carro na minha frente anda um pouco mais. Eu faço o mesmo. Olho pelo retrovisor e as vejo dando risada. Não estou com ciúme, repito, mas machuca um pouco de qualquer forma.
Cash deixou Chloe, pensando se não deveria tê-la beijado. Ele andou na direção do jipe. Parecia que ela queria ser beijada. Talvez devesse mandar uma mensagem para dizer que ele queria também. Faria isso. Então se perguntou novamente se aquilo era sensato. Como ela iria reagir quando ele contasse sobre Emily? Cash preferia que ela não tivesse relação nenhuma com aquela história. Ele não tinha planejado gostar dela.
Claro que Chloe compreenderia.
Mas ele precisava contar em breve. Muito em breve. Ele não sabia o que estava esperando. Mais provas?
Quando se aproximou do jipe, viu algo estranho na porta do motorista. A raiva ferveu dentro dele enquanto fitava o risco fino na lateral do carro. Algum idiota havia riscado seu jipe. E ele apostava que o idiota tinha um nariz inchado também.
Cash ficou ali, cerrando e abrindo os punhos. Queria encontrar aquele cretino e lhe dar uma lição. Então se lembrou do suspiro triste da mãe adotiva.
Embora soubesse que Paul tinha feito aquilo, ele não tinha provas. Assim como não tinha provas do estupro. Quem acreditaria nele? Ninguém. Se ele fosse atrás de Paul agora, seria acusado de começar a briga. E teria problemas. Poderia ser expulso da escola novamente.
— Merda! — Cash se forçou a entrar no jipe. Ficou sentado ali, segurando o volante com tanta força que seus punhos doeram. De alguma forma, de algum jeito, tinha que dar uma lição em Paul, mas sem arranjar problemas.
Paro na calçada e fico olhando para a casa antiga. Tenho medo de entrar. Medo de ver minha mãe fazendo drama. Estou cansada de drama.
Ela me contou que esse foi o primeiro lugar onde vieram depois da adoção. Ela estava tão animada para me mostrar aos pais... Por que não me lembro disso? Minha única lembrança é a de olhar para aquele tapete sujo e para meus sapatos pretos de fivela. Triste, sozinha. Assustada. Eu me pergunto se estava sentindo falta dos meus verdadeiros pais naquele dia. Eu me pergunto por que eles não me quiseram mais.
Me pergunto por que diabos desperdiço tempo pensando nisso. Sempre acabo sentindo dó de mim mesma. Sentindo-me patética. E não quero ser essa garota que tem pena de si mesma.
Pego minha mochila e saio do carro.
Ao entrar em casa, eu me preparo para outra discussão com minha mãe. Ela não respondeu à minha mensagem perguntando se havia ligado para o seguro-saúde.
Ela está na cozinha. Arrumada. Isso é um bom sinal. Mas vestindo roupas dois números maiores, ela me lembra um pouco um manequim vestido com trajes largos demais.
Ao entrar na cozinha, coloco a mochila sobre a mesa. Ela está sorrindo e eu não consigo não me perguntar se não está apenas fingindo.
— Como foi seu dia?
— Ótimo! — ela diz.
— Você começou a escrever de novo? — Ela costumava ficar realmente feliz quando conseguia escrever várias páginas do seu livro.
— Não. Recebi uma ligação do consultório médico. Eu tenho uma entrevista amanhã para me encontrar com o outro médico. Surtei por nada.
— Isso é ótimo, mamãe!
Odeio ser estraga-prazer, mas tenho que perguntar.
— Você ligou para o seguro-saúde?
O sorriso dela diminui.
— Liguei. Eles vão me enviar um e-mail com uma lista de terapeutas.
— Eles não têm simplesmente um site que você possa acessar?
— Sim, mas está em manutenção, por isso a funcionária vai me enviar uma lista atualizada.
Eu não sei se isso é só uma tática para adiar a terapia, mas não sei como argumentar.
— Ótimo. Eu só quero...
— Preciso ir às compras — ela interrompe. — Usei a minha única roupa apresentável na primeira entrevista. E como hoje é 4 de setembro... — Ela me manda um beijo. — Achei que poderíamos sair para comemorar. Aproveito e compro uma roupa para você também.
Eu me esqueci da data.
Quando eu era mais nova, 4 de setembro era como um segundo aniversário para mim. Presentes e bolo. É o dia em que eles me adotaram. Nós sempre comemorávamos. No ano passado, depois que meu pai foi embora, ele enviou flores.
Passo os olhos pelo balcão da cozinha só para dar uma checada rápida. Nada de flores. Talvez elas cheguem mais tarde. Ou talvez meu pai também tenha esquecido.
Minha mãe ainda está sorrindo.
— Onde você gostaria de comer?
Eu me forço a parecer interessada. Acho que ainda estou chateada com ela por me envergonhar na frente de Cash, mas faço a coisa certa.
— Naquele restaurante italiano, na avenida principal.
Às oito da noite, já em casa, abraço minha mãe, digo a ela que me diverti ajudando-a a escolher uma roupa e agradeço pela blusa. Não deixei que ela comprasse outra calça jeans, porque sei que ela não tem muito dinheiro.
Na verdade, eu me diverti bastante. Minha mãe estava... quase normal. Nós não falamos sobre meu pai, nem a respeito do telefonema ou do seguro-saúde. Comemos frango marsala e tiramisu, e ela contou como foi a infância dela nesta cidade. Até falou um pouco sobre algumas das suas antigas amigas e sugeri que ela tentasse entrar em contato com elas.
No caminho para casa, ela perguntou sobre Cash. Ele é seu namorado? O que você sabe sobre ele? Minhas respostas — evasivas — foram propositalmente curtas para não prolongar o assunto. Desde que Lindsey mencionou que todas as garotas praticamente se jogavam em cima de Cash, tenho questionado o interesse dele por mim. Além disso, cinco beijos não fazem de ninguém um namorado, e eu não vou entrar naquele assunto sobre ele ser adotado. Mas a pergunta da minha mãe me faz pensar em como sei pouco sobre ele.
Depois de pegar uma garrafinha de água, vou para o meu quarto fazer a lição de casa e penso no que vou escrever para Cash. Ou na razão por que ele não me mandou nenhuma mensagem.
Odeio me sentir assim. Por que não posso simplesmente mandar uma mensagem para ele? Tenho receio de dizer algo idiota e ele parar de gostar de mim. Tenho medo de que ele não me mande nenhuma mensagem porque encontrou uma universitária muito mais bonita do que eu.
Sim, eu sou uma boba insegura. Sempre culpo a adoção. O fato de saber que meus verdadeiros pais não me quiseram. Às vezes quero encontrá-los e perguntar por quê.
Eu desabo na minha cama e Félix se deita sobre meu peito. Ouço seu ronronar e esse som me acalma. Abro meu aplicativo de fotos e tiro uma foto dele. Só sai metade de sua carinha, mas a foto fica bonita.
Eu finalmente o empurro para sair de cima de mim, fico de bruços e escrevo: Como foi a aula?
Imediatamente, vejo que ele leu a minha mensagem. Sorrio e me pergunto se ele estava prestes a me escrever também.
Cash: Entediante. Professor estava atrasado.
Eu: Que pena. Você ainda está na faculdade?
Ele: Não. O que você fez hoje à noite?
Eu: Saí para jantar em um restaurante italiano com a minha mãe.
Ele: Ela está de bom humor?
Eu: Não surtou mais. ©
Ele: Que bom.
Félix se deita sobre as minhas costas e fica afofando meus ombros.
Faço uma pausa e olho outra vez o celular. Devo me despedir agora?
Ele: Eu gostaria de ter beijado você no estacionamento.
Dou risada e solto um gritinho.
Eu: Eu também.
Ele: Posso te ver amanhã à tarde?
Eu não quero trazê-lo em casa novamente.
Eu: Que tal se a gente se encontrar naquela cafeteria depois de eu deixar Lindsey em casa?
Ele: Boa ideia.
Eu: Preciso fazer a lição de casa, mas o meu gato não me deixa em paz.
Ele: O gato dos Fuller também é assim.
Tenho a triste sensação de que ele não pensa no gato como se fosse dele e não se refere à casa dos Fuller como se fosse a casa dele. Eu me pergunto se as coisas são ruins lá. Quero perguntar, mas não sei como. Em vez disso, anexo a foto que acabei de tirar de Félix e uma legenda.
Eu: Olha o Félix.
Deitado na cama, Cash leu a mensagem. Ele se levantou na hora. Caramba! O nome do gato dela é Félix? Ele tentou se lembrar se havia contado a ela qual era o nome do gato dos Fuller. Ele não havia contado. Não tinha nem falado do gato ainda. Certo?
Ele: O nome do seu gato é Félix?
Ela: Sim.
Ele: Quem deu esse nome a ele?
Ela: Eu. Era pequena. Tinha 3 ou 4 anos. Por quê?
Merda! Ele saltou da cama e começou a andar pelo quarto.
Mas, puxa, se isso fosse um golpe, seria a maneira perfeita de aplicá-lo! Continuar dando dicas até... mas não era um golpe.
Ele ficou ali, o dedo posicionado acima do celular, sem saber o que digitar. O que dizer. Finalmente digitou:
Ele: O gato dos Fuller se chama Félix.
Ela: Mentes brilhantes pensam de maneira parecida.
Ele: Sim.
Ela: Foi você quem deu esse nome a ele?
Cash se sentou outra vez enquanto suas emoções desciam por uma tirolesa, abalando seus nervos. Digitou: Não. Ele é velho.
Ele tinha que contar a ela. No dia seguinte. Mostraria a foto em que tinham feito a progressão da idade dela. Chloe ficaria com raiva? Iria descontar a raiva nele? Ficaria chateada por ele ter escondido isso dela? Seria o final do relacionamento entre eles?
— Provavelmente — Cash respondeu em voz alta. Mas ele não tinha escolha.
11
— O que você está fazendo?
Merda. Cash olhou através do para-brisa. Eram cinco da manhã e ele achava que poderia fazer aquilo sem que ninguém soubesse.
A sra. Fuller, ainda de roupão, estava parada na porta da garagem. Que horas ela acordava?
Ele não tinha contado aos Fuller que o carro dele fora riscado. Agora, como explicar por que ele estava instalando uma câmera em seu carro? Ele tinha cerca de um segundo para decidir se deveria dizer a verdade ou mentir. Mentir não parecia justo.
Ele saiu do jipe.
— Estou instalando uma câmera.
— Uma câmera? Por quê?
— Ontem alguém riscou a minha porta.
— O quê? — Franzindo a testa, ela se aproximou e olhou a lateral do jipe. — Por que alguém faria isto?
— Estou achando que é o cara com quem briguei. Mas não posso provar. Então, achei que, se o pegasse no flagra, poderia ter certeza. — O que ele faria se esse plano funcionasse? Ah, já tinha algumas ideias. A maioria delas incluía socos e todas o deixariam em maus lençóis.
Mas aquilo era algo em que ele pensaria mais tarde.
— Você denunciou?
— Não.
Ela apertou os lábios.
— Por quê? A escola precisa saber.
Ele sentiu um nó no estômago.
— Por favor, me deixe resolver do meu jeito.
Ela ficou rígida.
— E se envolver em outra briga com ele?
— Eu não vou brigar — Cash disse, sabendo que estava fazendo uma promessa que dificilmente conseguiria cumprir. — Não tenho certeza se foi ele quem fez isso. Isso pode até ter acontecido na faculdade. — Era mentira. — Não quero acusar ninguém sem provas. Se riscarem meu carro de novo, vou saber quem foi.
— E o que vai fazer quando souber?
— Não vou começar uma briga. Prometo.
A sra. Fuller soltou aquele suspiro triste e ele sentiu um aperto no peito, sabendo que a estava decepcionando novamente.
— Precisamos acionar o seguro do carro. Tenho certeza de que o conserto está coberto.
— Tudo bem. Vou dar um jeito. — Não importava que fosse importante para ele.
— Você não deveria resolver isso sozinho. Vou avisar Tony e você e ele podem decidir como solucionar isso.
Droga! Ele deveria ter mentido.
— Onde você conseguiu a câmera? — ela perguntou.
— Numa loja de peças automotivas. Paguei com o meu próprio dinheiro.
A sra. Fuller soltou outro longo suspiro.
— Você tem o nosso cartão de crédito. Poderia ter usado.
Sim, ele tinha e nunca usara. Nunca faria isso. Nunca tirava vantagem dos Fuller nem pedia a eles mais do que precisava.
— Já que está acordado, venha tomar café da manhã comigo. Estou fazendo ovos com torradas.
Ele queria recusar, mas sabia que ela ficaria chateada.
— Está bem.
— Fica pronto em cinco minutos — disse ela.
Ele instalou a câmera em três minutos e entrou.
— O sr. Fuller não acordou ainda? — perguntou Cash.
— Ele só tem paciente às nove, por isso está dormindo — disse ela.
— Você quer suco? — Cash perguntou.
— Por favor.
Quando ele se aproximou do balcão, viu algo ali, ao lado da bolsa da sra. Fuller. Sua respiração ficou presa.
— O que você está fazendo com isso? — Ele olhou para a foto de Emily com a progressão da idade.
— Alguém pegou a que estava no Walmart. Eu imprimi outra.
Cash olhou para a sra. Fuller enquanto ela fritava os ovos.
— Não fale nada. Tony já disse. — Ela tirou a frigideira do fogão. — Sei que as chances de encontrá-la são praticamente nulas. Sei que a foto que aquele homem me mostrou é provavelmente uma farsa. Mas que mal faz afixar esta naquele quadro?
Ela cruzou os braços.
— Adoraria saber quem a tirou de lá.
A culpa apertou o peito de Cash.
A sra. Fuller tirou a torrada da torradeira e a colocou num prato.
— Será que acharam que ela se parecia com alguém? Não consigo parar de pensar. E se for a pessoa que a levou? Todos pensam que ela está morta. Eu entendo. — Ela colocou a torrada na mesa. — Mas e se não estiver? — A sra. Fuller olhou para ele. — Eu não estou obcecada com isso. Eu só.... Que mal faria deixar uma foto naquele quadro?
Cash viu a dor nos olhos dela e se perguntou se ela e o sr. Fuller teriam discutido sobre isso. Cash os ouvira brigando depois que foram enganados. O marido queria que ela esquecesse. Ela o acusara de esquecer a filha.
— Sinto muito.
A sra. Fuller franziu as sobrancelhas.
— Eu sei. Não faça tempestade em corpo d’água, assim como Tony. Estou bem.
Ela não estava bem, pensou Cash. Tinha perdido a filha. Por que, depois de quinze anos, sua mãe adotiva ainda ansiava pela filha, enquanto a mãe dele tinha acordado uma manhã e ido embora?
Cash ouviu as palavras do pai: Ela não estava nem aí pra você.
O alarme toca e eu tropeço a caminho do banheiro, ainda meio dormindo. As luzes estão acesas na sala de estar. O aroma de café perfuma o ar. Eu diminuo os passos para espiar a minha mãe, sem a bandana, sentada no sofá. Está usando o roupão muito grande para ela e folheia um álbum de fotos. Ela vira uma página. Algo na lentidão do gesto demonstra o humor em que ela está.
E não é bom.
Esperando que eu esteja errada, vou fazer xixi. Então saio do banheiro e entro na sala de estar, imprimindo de propósito mais alegria à minha voz.
— Bom dia!
Ela ergue os olhos. Eu desanimo ao ver as lágrimas nos olhos dela. Espero que o e-mail do seguro-saúde com a lista de terapeutas chegue hoje.
Ao me aproximar, sinto como se estivesse entrando numa bolha de tristeza. Meu olhar se desvia para o álbum. Espero ver uma foto do meu pai, mesmo achando que eu tenha confiscado e escondido todas as fotos dele quando a encontrei arrancando-as do álbum e rasgando-as. Mas não é a foto do papai que ela está olhando.
É da minha avó, quando era mais nova. Eu me lembro dela.
Minha mãe enxuga uma lágrima da bochecha.
— Sonhei com ela.
Quando me sento ao lado da minha mãe, o sofá solta um assovio. Contemplo a imagem de uma mulher de cabelos castanho-claros, olhos verde-claros e um sorriso radiante. Pela primeira vez, percebo quanto minha mãe se parece com ela. No entanto, não a vejo abrir um sorriso tão grande faz muito tempo.
Ela vira a página. Há uma foto dos meus avós. Minha mãe era filha única e nasceu quando eles já tinham certa idade. O pai dela morreu logo depois que fui adotada.
Vovó morreu quando eu tinha 7 anos. Ela sempre vinha ficar conosco no Natal e nas férias de verão. Naquela época, minha mãe trabalhava em período integral no hospital e minha avó ficava cuidando de mim. Lembro-me dela sempre comendo e me oferecendo tangerinas; ela até cheirava a tangerina. Sempre lia para mim à noite e seus abraços eram bem apertados. Ela me chamava de Mosquitinho. Eu odiava insetos, mas sabia que era um apelido carinhoso.
Também me lembro de acordar uma manhã e encontrar minha mãe chorando na cozinha. Meu pai estava abraçado a ela. Ele então se afastou de minha mãe e me puxou para o lado e explicou que vovó tinha ido para o céu, por isso minha mãe estava triste. Eu me lembro de chorar naquele dia também. Eu amava minha avó. Iria sentir falta dos abraços de tangerina e das caras engraçadas que ela fazia quando lia para mim.
Agora, depois que quase perdi minha mãe, quero chorar de novo — mas pela minha mãe desta vez. Posso imaginar muito bem como é perder um pai ou uma mãe.
— Foi um sonho bom? — pergunto.
— Sim. Estávamos cozinhando. Descascando batatas e rindo. Eu ainda sinto falta dela.
— Aposto que sente. — Meu coração fica apertado. Eu toco a cabeça dela.
— Ei, está nascendo cabelo! Cabelo de verdade, não só uma penugem.
— Sim, eu também notei. — Ela sorri, mas seus olhos parecem cansados.
— A que horas você acordou?
— Estou acordada desde as três da manhã.
— Volte para a cama — eu digo.
— Não. Preciso me preparar emocionalmente para a minha entrevista.
— Ah, claro. — Aperto a mão dela. — Boa sorte.
— Minha entrevista é só às quatro e meia. Te vejo antes de sair. Vou precisar que você me lembre de que não tenho com que me preocupar.
Não, não vai dar! Vou me encontrar com Cash. As palavras estão na ponta da língua, mas não consigo empurrá-las para fora.
— Claro.
Droga. Droga. Droga. Estou murmurando baixinho vinte minutos depois, enquanto passo um pouco de brilho nos lábios. Por que não consigo apenas dizer boa sorte para ela agora? Minha mãe precisa viver a vida dela e, até que faça isso, vai ser difícil eu conseguir viver a minha. O pensamento de ir para a faculdade parece impossível. Vejo a imagem na minha cabeça: eu envelhecendo ao lado da minha mãe.
Olho para o meu rosto no espelho do banheiro e me pergunto se depressão é algo contagioso.
A verdade é que eu provavelmente estava deprimida antes do início das aulas. Mas ter um lugar para onde ir todo dia e talvez a emoção de encontrar Cash e, quem sabe, até me tornar a melhor amiga de Lindsey fizeram minha vida parecer mais divertida. Melhor. Menos amarga.
Isso me dá a esperança de que minha mãe sinta o mesmo com relação ao trabalho dela. Com o novo emprego e a terapia, talvez eu consiga minha mãe de volta.
Eu ouço Docinho choramingando na porta do banheiro. Abro e ele está ali, com a guia na boca.
— Desculpa, amigão. Tenho que ir para a escola. Talvez esta tarde.
Então percebo que, embora eu não consiga encontrar Cash logo após a escola, a entrevista da minha mãe vai durar tempo suficiente para eu vê-lo enquanto ela estiver fora.
— Você gostou de Cash, não gostou? Tudo bem se ele for conosco no nosso passeio, certo? — Docinho abana o rabo. Ah, eu podia ter esperança, no final das contas.
Era cedo quando Cash chegou à casa de Chloe. Ela tinha pedido que ele chegasse às quatro e meia, então ele estacionou quatro casas abaixo e esperou. Ele estava uma pilha de nervos e seus ombros estavam, rígidos.
Ele tocou no bolso da frente, onde estava a foto com a progressão da idade.
Como ele iria explicar aquilo? Chloe ficaria chateada? Será que o fato de descobrir sobre a foto a levaria a desvendar todas as outras mentiras dele? O pneu? O arquivo da escola? Cash continuava dizendo a si mesmo que na hora decidiria o que fazer. Mas não estava a fim de improvisar.
Precisando de algo com que se ocupar, começou a excluir alguns vídeos gravados do cartão de memória da câmera do carro. Não tinha conseguido nada ainda. Mas podia demorar um pouco até que os agressores ficassem decepcionados pela falta de reação dele e tentassem novamente. Isso é o que eles queriam. Uma reação. Paul queria que ele começasse uma briga. Então, ele poderia dizer: Veja, Cash começou essa briga e a anterior também.
Cash não ia dar a Paul o que ele queria. Na verdade, hoje ele havia se desviado do seu caminho habitual só para passar ao lado de Paul e seus amigos, e sorrira o tempo todo.
Ele sabia que isso irritava Paul.
Paciência é a chave. Espere as pessoas fazerem alguma coisa. Elas vão fazer alguma besteira. Sempre fazem.
De onde estava estacionado, ele viu Chloe andando com a mãe até o carro. Antes de a mãe entrar, Chloe a abraçou. Ele lembrou que a mãe dela tinha uma entrevista de emprego naquele dia.
A cena lhe pareceu estranha. Como se Chloe fosse a mãe, não a filha.
Mais uma razão para Cash se preocupar com a história toda de Emily. O tiro poderia sair pela culatra. A primeira reação de Chloe poderia ser defender a mãe. Não, ele não acusaria os pais dela de serem os sequestradores, mas isso estava implícito.
Seus instintos lhe diziam para adiar a revelação, mas haveria um momento melhor para contar tudo a ela?
Chloe observou a mãe ir embora. Quando ela se virou para voltar para dentro de casa, seu olhar se desviou para a rua. Ela colocou a mão na testa para bloquear o sol e olhou na direção do carro dele. Droga. Ela o viu.
Cash ligou o motor e parou na frente da casa de Chloe.
Sentindo-se culpado por espioná-la, ele saiu do carro com a cabeça baixa, ensaiando o que dizer.
— Eu cheguei cedo e não quis incomodá-la.
— Você não precisava esperar no carro. — Ela não parecia chateada. Cash percebeu que havia reconquistado a confiança dela. E agora estava prestes a destruir essa confiança.
Um sorriso iluminou o rosto dela. Uma brisa agitou seus cabelos. Era o clima perfeito para ir ao parque.
— Entre — Chloe disse. — Vou pegar Docinho.
Ele a seguiu para dentro. Ela se virou e olhou para ele. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos desde que tinham se beijado. Será que ela esperava que ele a beijasse agora? Ele queria. Tinha pensado tanto naqueles beijos... A lembrança estava tatuada em sua mente. Mas não parecia certo beijá-la novamente enquanto ele estava mantendo aquele grande segredo.
Ela chamou o cachorro. Um latido veio do quintal e ela deixou o cão entrar.
— Quer ir passear, amigão?
Ela pegou a guia e a prendeu à coleira do cachorro, então parou.
— Vou correr até lá em cima e pegar um cobertor para a gente se sentar.
Enquanto Chloe disparava para o quarto, ele foi dar uma olhada nas fotos de família, na mesa ao lado do sofá. Encontrou aquela com uma Chloe pequena segurando o gato. Ele percebeu outra coincidência. Tanto Chloe quanto Emily estavam com um vestido cor-de-rosa. Ele pegou o celular no bolso para tirar uma foto, mas ouviu passos e guardou o aparelho.
Um gato tigrado amarelo a seguia. Ele olhou para o animal se esfregando nos tornozelos dela. Os dois Félix eram idênticos. Seria por isso que a jovem Chloe tinha dado a eles o mesmo nome?
— Félix? — ele perguntou.
— Sim. Ele é um amor. — Ela largou o cobertor numa cadeira próxima e agachou-se para acariciar o felino. A camiseta que ela usava tinha um decote que lhe dava uma visão de parte dos seios. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.
— Félix, este é Cash — apresentou ela.
Chloe se levantou e ele mal conseguiu desviar os olhos para o gato. Ele pegou o cobertor e, enquanto saíam da casa, ela se inclinou para mais perto dele. O choque de prazer e de dor acertou-o em cheio. Apesar do desconforto gerado pela culpa, ele adorava tocá-la.
Quando chegaram ao parque, Docinho começou a saltitar. Cash pegou a guia e Chloe ficou com o cobertor. O parque estava quase vazio. Eles encontraram um local sob a sombra de uma árvore e ela estendeu o cobertor na grama.
— Posso tirar a guia dele? — Cash perguntou.
— Sim. Ele fica por perto.
Cash se sentou ao lado de Chloe e soltou o cachorro, que congelou no lugar como se estivesse hipnotizado pela bola nas mãos dela.
Ela jogou a bola e Docinho correu. Chloe sorriu.
— Já vou pedindo desculpas. Ele não vai dar sossego por causa dessa bola. Tem obsessão por ela.
— Tudo bem — disse Cash. — Estou começando a ter obsessão por Chloe, então posso entender.
Ela riu.
— Acho que estou começando a ter obsessão por Cash também.
— Ótimo! — ele disse.
Sorrindo, ela olhou para o céu.
— É um belo dia.
Cash seguiu o olhar dela até o céu azul salpicado de nuvens brancas e fofas.
— Sim.
Chloe se recostou no cobertor. O decote dela subiu o suficiente para que ele pudesse olhá-la sem ficar babando. Os cabelos longos e castanhos estavam espalhados ao redor dos ombros e o sol suave do entardecer iluminava o rosto dela.
Ele queria beijá-la e deixar a conversa para depois.
Os olhos castanhos dela encontraram os dele.
— Você ficava tentando encontrar figuras nas nuvens, quando criança?
— Encontrar o quê? — Cash perguntou, estava tão ocupado olhando para ela que não prestara atenção ao que Chloe dissera.
— Você sabe, tipo elefantes ou dragões. No céu. Agora mesmo vejo um cavalo.
Ela apontou para cima.
Ele tentou seguir o dedo dela.
— Tudo o que vejo são nuvens.
Chloe riu.
— Use a imaginação. Não vê a cabeça, as patas e a cauda atrás?
Ele tentou.
— Lamento, mas...
— Minha mãe e eu costumávamos ir para o quintal e ficar olhando o céu por horas, tentando encontrar coisas. Ela sempre levava um saquinho de Skittles. E, sempre que uma de nós encontrava algo, ganhávamos um vermelho. — Ela sorriu.
— Por que vermelho?
— Porque os vermelhos são os melhores. São doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Cash forçou um sorriso e novamente tentou ligar alguém que procurava formas em nuvens na companhia da filha com a imagem de uma sequestradora. Algo parecia errado.
— Você se lembra dos seus pais? — ela perguntou.
A pergunta o pegou desprevenido. Docinho veio correndo com a bola na boca. Cash pegou a bola, grato pela pequena interrupção, e jogou-a novamente.
— Da minha mãe, não. Do meu pai, sim.
— Como ele era?
Ele voltou a olhar para o céu. Um cretino.
— Acho que vi o cavalo.
Quando Cash olhou para Chloe, ela estava franzindo a testa.
— Você faz muito isso.
— O quê?
— Mudar de assunto. — Ela mordeu o lábio. — Você não gosta de falar sobre eles, não é?
— Na verdade, não.
Ele respirou fundo.
— Chloe, eu preciso...
— Eu sinto que você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre você.
— Eu não sei tudo sobre você — disse ele, tentando escapar da conversa.
— Você sabe que meu pai é um idiota que vive me enganando. Você sabe que meu namorado se chamava Alex e que minha mãe teve câncer.
— Que tipo de câncer? — Cash perguntou e, para seu crédito, ele queria mesmo saber. Tinha ouvido a sra. Fuller falar sobre cânceres que eram mais difíceis de curar.
Chloe sentou-se.
— Câncer de mama. — Ela puxou um joelho e o abraçou. Dava para perceber que era difícil para ela falar sobre a doença da mãe.
— Mas ela está livre do câncer agora, certo?
— Sim. Foi diagnosticado cedo. Minha avó teve câncer de mama, então minha mãe fazia mamografias anuais. Ela estava com medo de ter o gene do câncer.
— Gene do câncer? — Cash perguntou.
— Há um gene de câncer de mama hereditário. Ela fez o teste e foi comprovado que não o tem.
— Tenho certeza de que você ficou aliviada — ele disse, sem saber o que dizer.
— Bem, como ela não é minha mãe biológica, isso não me afetou.
As palavras de Chloe ficaram dando voltas na cabeça dele. Não é minha mãe biológica. Docinho veio correndo e deixou cair a bola ao lado de Cash. Ele o ignorou.
— Ela... não é sua mãe de verdade?
— Não. Eu sou adotada. — Ela puxou a outra perna para cima. — E lá vou eu de novo, falar de mim a você. Já que você conhece Alex, conte-me sobre sua ex-namorada.
Chloe é adotada? Isso significa...?
— Adotada?
— Não mude de assunto. Conte-me sobre sua antiga namorada.
Cash teve que se concentrar para responder.
— Eu namorei uma garota por alguns meses quando tinha 16 anos.
— Da escola particular?
— Não, ela morava em Langly.
— Como você a conheceu?
— Os pais dela têm uma casa no lago ao lado da casa de veraneio dos Fuller, mas...
Não é minha mãe biológica.
— O que aconteceu? — Chloe perguntou.
— Ela conheceu outra pessoa.
Ele precisava dizer a Chloe agora.
Antes que Cash pudesse dizer mais uma palavra, ela continuou.
— Você gostava dela?
— Não. Um pouco. Só namoramos por uns dois meses.
— E essa foi a única namorada que você teve? — O tom de voz de Chloe dizia que ela não iria desistir.
— Neste verão, saí com algumas universitárias.
— Garotas mais velhas? — As sobrancelhas dela se levantaram, como se aquilo fosse uma coisa ruim.
— Apenas um ano ou um pouco mais do que isso.
— Você ainda está saindo com elas?
— Não. Chloe, eu preciso...
— Há quanto tempo você mora com os Fuller?
Docinho bateu com a bola na perna dele. Cash a jogou novamente.
— Faz três anos.
Ela descansou a mão no braço dele. Seu toque enviou uma faísca de dor direto para o peito de Cash. Mas então, com a mesma rapidez, a centelha lhe deu prazer.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele colocou um dedo nos lábios dela.
— Pare de fazer perguntas. — O tom foi mais agudo do que ele pretendia. — Estou tentando te dizer uma coisa.
Ela fez uma careta.
— Ok.
Ótimo. Cash já a irritara e nem tinha começado a falar ainda. Ele passou a mão pelos cabelos.
— Eu só vou mostrar a você.
— Me mostrar o quê? — Ela inclinou a cabeça para o lado como um filhote de cachorro curioso.
Ele tirou do bolso a foto com a progressão da idade e entregou a Chloe. Ela desdobrou a foto. Examinou-a e depois olhou para ele.
— O que é isso?
Cash não viu o reconhecimento que ele esperava nos olhos dela.
O coração dele acelerou no peito.
— É uma foto de Emily Fuller com a idade que ela teria hoje.
— Emily Fuller, o mesmo sobrenome dos seus pais adotivos?
Cash assentiu.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Eu ainda não entendi por que você está me mostrando isso.
— É você. Não vê?
Chloe olhou para a foto novamente, os olhos arregalados.
— Não sou eu.
— Parece você.
— Não. Quero dizer, talvez um pouco, mas não... parece de fato.
Ela examinou a foto novamente.
Cash viu um vinco aparecer entre as sobrancelhas dela. Chloe estaria se reconhecendo agora?
Agora ela parecia preocupada.
— Os Fuller... deram o bebê deles para adoção?
12
— Não — diz Cash.
Estou tentando entender o que ele está dizendo. Olho para a foto. Não, não é uma foto, mas um desenho. Ou um desenho feito no computador. Um daqueles mostrados nas séries policiais da TV. Eu vejo uma semelhança, mas não é tão grande assim. Ou será que é?
— Então, não sou eu. Fui adotada.
Ele me olha como se pedisse desculpas.
— Ela foi sequestrada.
As palavras de Cash ecoam nos meus ouvidos e minha resposta vem imediatamente.
— Eu não fui.
— Quantos anos você tinha quando foi adotada?
— Espere. Você acha que...? Isso é loucura.
— Eu sei que é, mas apenas me responda. Quantos anos você tinha?
— Quase 3.
Os olhos dele se apertam como se isso provasse alguma coisa.
— Você se lembra dos seus pais de verdade?
— Não. Mas você não está escutando. Eu fui adotada.
— Chloe, Emily Fuller desapareceu dois meses antes de fazer 3 anos de idade.
Um sentimento desconfortável brota no meu peito.
— Eu fui adotada. Não sequestrada.
— Tem mais uma coisa. — Ele pega o celular, encontra algo e passa o aparelho para mim.
— Veja.
Com uma mão estou segurando a foto, com a outra, o celular dele. De repente, as duas coisas parecem pesadas.
Eu quase não olho para a tela, mas então crio coragem. É uma foto emoldurada minha quando criança, com Félix no colo.
— Por que você tirou uma foto disso?
— Chloe, essa é Emily Fuller. Tirei essa foto na casa dos Fuller.
— Não, esta é a foto que está na minha casa.
Eu olho para a imagem e percebo que estou enganada. Na foto que há em casa, estou de pé ao lado de um balanço.
— Ok, eu pareço com ela, mas isso não...
— O nome do gato é Félix.
— Hã?
— Você disse que deu ao seu gato o nome de Félix. O gato dos Fuller se chama Félix.
O ar fica preso no meu peito, uma grande bolha que pressiona meus órgãos.
— Muitos gatos se chamam Félix. Havia um desenho animado...
— Seus pais se mudaram para longe logo após dizerem que adotaram você.
Dizerem? A bolha torna-se dolorosa.
— Você acha que meus pais me sequestraram? Você está maluco.
Olho a foto novamente e meu polegar acidentalmente passa o dedo na tela. A imagem muda. Eu pisco e olho. É um formulário. Mas tem o meu nome.
— O que é isso? — Eu mostro para ele o celular.
Culpa transparece nos olhos de Cash.
— Seus arquivos escolares. Eu precisava descobrir se...
— Descobrir o quê? — Minha coluna vertebral se enrijece.
— Achei que você poderia estar tentando enganar os Fuller.
— Enganá-los? O que você quer dizer?
— Se você parecia com Emily, então talvez estivesse tentando extorquir dinheiro deles.
Eu inspiro uma lufada de ar, aumentando a bolha. Balanço a cabeça. Nada faz sentido. Fico sentada ali, sentindo o sol na minha pele e a acusação de Cash na minha cabeça.
— Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso? — Então me lembro do que Cash me disse naquele dia na loja de conveniência. Seja lá o que está tentando fazer, não faça.
— As pessoas fazem coisas assim. — A expressão dele é quase de irritação.
Mas ele não tem o direito de ficar com raiva. Eu tenho.
— Então é disso — gesticulo indicando o espaço entre nós — que se trata o nosso relacionamento? — Olho para a foto do formulário. Tem o meu endereço nele. — Você não estava dirigindo pelo meu bairro procurando o meu carro aquele dia. Você sabia onde eu morava.
Cash não responde. Não precisa. A expressão dele deixa transparecer a verdade.
— Você... Foi você quem murchou o meu pneu!
— Eu precisava me aproximar de você para descobrir.
— Nada disso é real! — A raiva cresce por dentro, eu não consigo me conter. Jogo o celular para ele e me levanto. — Você é um sem-noção.
Cash também se levanta.
Cubro os olhos com as mãos, vejo tudo escuro, depois lampejos de luz.
— Ah, Deus. Eu te beijei. Tiro as mãos do rosto e olho para ele. — Você... Você nem gosta de mim.
— Isso não é verdade. Eu te beijei também e depois te beijei mais quatro vezes. Eu não pretendia... me apaixonar por você, mas me apaixonei.
Pego a guia de Docinho.
— Vou para casa.
— Chloe, não. Vamos conversar.
— Não. — Eu levanto a mão. Chamo Docinho. Quando ele vem, coloco a guia nele.
Dou um passo. Cash pega meu braço.
— Vou te levar.
Eu puxo o braço.
— Não. Vou andando. — Preciso ficar sozinha. Eu preciso... — Eu não sei do que preciso, exceto que tenho que ficar longe dele. Longe das acusações absurdas.
Eu o ouço chamar meu nome, mas continuo colocando um pé na frente do outro. Eu fui adotada. Não... Não. Não é verdade. Não pode ser. Eu não acredito. Então me recordo da minha única lembrança: eu, sentada num sofá, olhando para um tapete sujo. Eu me lembro de me sentir tão perdida. Tão abandonada. Tão assustada.
Continuo andando. Meus joelhos estão tremendo, ou será que é o chão embaixo de mim que está estremecendo? Todo o meu mundo está estremecendo. Isso não pode ser verdade.
Eu caminho rápido. Docinho continua andando ao meu lado. O ruído de suas patas batendo na calçada enche minha cabeça. Cada vez que ouço um carro se aproximando, fico com medo de que seja Cash.
Meu celular toca. Eu ignoro. Ao me aproximar de casa, vejo o carro de Jamie estacionado em frente à casa de Lindsey. As duas estão nos degraus da varanda de Lindsey. Eu não quero falar com elas.
Sei que ainda estou segurando a foto que Cash me mostrou. Eu amasso a foto, vou jogá-la fora, mas mudo de ideia e a guardo no bolso. Saio da calçada quando estou em frente à minha casa.
— Chloe? — Alguém me chama da casa ao lado.
Eu ignoro e continuo andando. Procuro no meu bolso a chave da porta, ando até a varanda e rezo para que elas desistam.
Elas não desistem.
Eu as ouço subindo os degraus atrás de mim. Por favor, vão embora. Eu percebo que estou chorando.
— O que foi? — É a voz de Lindsey, mas ouço os passos de outra pessoa, então sei que Jamie está com ela. Jamie nem gosta de mim. Eu não quero que ela me veja chorando como um bebê.
— Eu não posso falar agora. — Abro a porta, coloco Docinho para dentro, fecho a porta na cara delas e corro para o meu quarto. Eu me jogo na cama e abraço um travesseiro com força suficiente para fazê-lo explodir. Félix pula no colchão, tentando se aconchegar a mim.
Eu não acredito, digo a mim mesma. Então, por que estou tão arrasada?
Digo a mim mesma que é porque fiz papel de idiota quando beijei Cash.
Meu celular toca. Ignoro.
Cinco minutos depois, ele toca novamente.
E de novo.
E de novo.
Arranco-o do bolso para desligá-lo, mas vejo que há uma mensagem da minha mãe.
Ah, ótimo! Verifico para ver o que ela diz, sabendo que não posso estar chorando quando ela chegar em casa.
Consegui o emprego! Preenchendo a papelada. Comprando comida chinesa para o jantar. Vejo você em uma hora.
Ouço uma batida na porta da frente. Merda! É Cash?
Olho pela minha janela, onde posso ver a rua. O carro dele não está em frente, mas não consigo ver quem está na varanda.
Meu celular apita novamente. É Lindsey.
Preocupada. Você está bem?
Eu mando uma mensagem de volta.
É você quem está na porta?
Sim.
Sozinha?
Simmm.
Eu enxugo o rosto, me obrigo a me levantar e vou até a porta da frente.
— O que há de errado? — Lindsey pergunta assim que eu abro a porta. Ela não aguarda um convite; simplesmente entra.
— É uma maluquice — eu digo.
— O que é uma maluquice? Cash fez alguma coisa?
Pego a foto amassada do bolso e a aliso para desamassá-la.
— Essa garota não se parece comigo, não é?
Lindsey pega o papel amassado, olha para ele e depois olha para mim.
— Parece, sim. O que é isso?
Meu peito aperta. Vou para a sala e me largo no sofá. Meu corpo parece mais pesado ainda.
— Você deveria dizer que não.
Ela se senta ao meu lado.
— Desculpa. Você deveria ter me dito isso antes de perguntar.
Eu respiro fundo. Ainda quero chorar, mas me seguro. Olho para Lindsey.
— Você não pode contar a ninguém.
— Eu não vou contar.
— Cash pensa... Ele acha que eu sou a filha desaparecida dos pais adotivos dele.
Ela olha para mim como se eu não estivesse falando coisa com coisa, o que me dá um pouco de esperança. Porque nada daquilo faz sentido. Não pode ser verdade.
— O quê?
— Ela foi sequestrada.
Os olhos de Lindsey se arregalam.
— Ele acha que você foi sequestrada?
Lindsey faz um som de bufar que é meio risada, meio descrença.
— Sim. É loucura. Eu acho que ele nem gosta de mim. Cash pensou que eu estava tentando enganar os pais adotivos dele, tentando extorquir dinheiro deles. Ah, e imagine só! Ele murchou meu pneu.
— O quê? — Lindsey repete. Então ela olha novamente para a foto.
— Ok, parece com você, mas... Isso é loucura.
— Eu sei. Quero dizer, sim, fui adotada, mas...
— Espera aí. — Ela se inclina para mais perto. — Você foi adotada?
— Sim.
Lindsey arregala os olhos.
— Ok, mas quando você foi adotada e quando essa garota desapareceu?
Eu franzo a testa.
— Na mesma época.
Ela olha para a foto novamente.
— Merda. — Quando Lindsey olha para mim, posso ver em seus olhos que ela está começando a acreditar.
— Não pode ser verdade. Meus pais não são sequestradores!
Ela faz uma careta e devolve a foto para mim.
— Você já procurou na internet?
— Procurou o quê?
— O sequestro?
— Não. — Eu me levanto. — Mas agora vou procurar. — Corro para o meu quarto, onde meu laptop está ligado.
— Você sabe o nome da garota? — Lindsey pergunta, me seguindo.
— Sim. — Sento-me na minha escrivaninha e coloco a foto de lado. Meu celular toca. Provavelmente é Cash. Eu o ignoro e digito na barra de pesquisa do Google: criança desaparecida Emily Fuller. Ao digitar o nome, sinto calafrios, como se isso significasse algo para mim. Mas não pode significar nada. Então ouço o nome na minha cabeça. Emily. Emily. Emily. Há uma familiaridade nele que eu odeio, mas não compreendo.
Clico no primeiro link, mas existe, tipo, uma dezena deles. O link se abre. Vejo a foto de uma garotinha. Uma garotinha que se parece muito comigo quando eu era pequena. Eu começo a ler. “Desaparecida em 3 de setembro de 2004.” Minha respiração fica presa na garganta. Eu fui adotada em 4 de setembro.
Lindsey está lendo por cima do meu ombro.
— Você só foi adotada quando tinha 3 anos de idade?
— Quase 3 — respondo.
— Isso é muito estranho... — A voz dela ecoa.
Eu olho para Lindsey.
— Não sou eu. Não pode ser.
Meu celular toca novamente.
— Merda. — Eu o pego, vejo o nome de Cash e desligo.
Nesse momento, a campainha toca.
Lindsey se vira como se planejasse atender.
Eu agarro o braço dela.
— Não. Não quero vê-lo.
— Cash? — ela pergunta, e vai até a janela.
— Não vejo jipe nenhum lá fora. É uma van com o logotipo de uma floricultura.
A campainha toca novamente. Vou até a porta da frente e abro. Um homem está ali, com flores nas mãos.
— Chloe Holden? — ele pergunta.
É uma dessas perguntas que eu não deveria ter que pensar para responder, mas agora penso. Na verdade, pensei muito nisso durante toda a minha vida. Em quem realmente sou. Em quem meus pais realmente são.
Em que eu poderia ter feito de errado, tão pequena, para que meus pais me dessem para adoção.
De repente, sei quem enviou as flores. E começo a chorar novamente.
Uma hora depois, minha mãe está falando sem parar. Estamos sentadas na cozinha. Eu dou uma mordida no frango xadrez que ela trouxe para casa.
— Eles me adoraram! — Ela está animada. Feliz. Por isso escondi as flores no meu quarto. Eu quase as joguei fora. Eu já tinha tirado o buquê do vaso e segurado as flores acima da lata de lixo, mas não consegui.
Ele é meu pai. E... ele não é meu sequestrador. Essa coisa toda é um erro.
Então por que não conto à minha mãe?
Abro a boca para contar, mas nada sai. Porque isso poderia perturbá-la? Porque talvez eu não esteja convencida de que não é nada? As datas. O gato chamado Félix. A foto. Droga.
— Ele me disse que, por ter tido câncer, eu poderia oferecer mais apoio aos pacientes.
Estou tentando ouvir, mas ela já está se repetindo. Estou olhando para cima, depois para baixo, com o garfo na mão, enquanto persigo uma castanha-de-caju pelo prato.
— É o trabalho perfeito para você. — Pego a castanha e coloco na boca. Mastigo. Engulo. Não consigo sentir o gosto.
Minha mãe deixa cair o garfo.
— Não coma demais. Comprei sorvete de chocolate.
— Hmm... — Empurro meu prato e falsifico outro sorriso.
— Eu só começo quando a outra enfermeira sair. O que pode demorar duas ou três semanas. Eu gostaria que fosse agora. Ela estende o braço para pedir o meu prato. — Eu já contei que comprei umas bebidas que servem como suplemento alimentar? Eu me pesei esta manhã. Perdi mais alguns gramas.
Sim, porque você não come quando está chateada e você está quase sempre chateada.
— Você deveria beber, tipo, três por dia.
— Duas.
Olho para ela e tenho medo de perguntar, mas preciso. Porque, mesmo que ela esteja feliz agora, tenho medo de que algo pequeno, como o vaso de flores escondido no meu quarto, possa mudar isso.
— Você já recebeu os nomes dos terapeutas?
— Sim. E marquei uma consulta também.
Estou chocada.
— Sério?
— Sim. E é amanhã. — Ela aponta o garfo para mim. — Alguém cancelou a consulta.
— Ótimo!
Ela olha para mim, toda maternal.
— Você está se sentindo bem?
— Sim.
— Seus olhos parecem inchados.
Meu estômago aperta.
— Estou bem. Levei Docinho para passear. Eu acho que é alergia.
Ela continua a olhar.
— Seu pai ligou de novo?
— Não. — Merda. Ela sabe que andei chorando. E eu posso ver que a felicidade escorre dos olhos dela à simples menção do meu pai.
Ela continua me olhando.
— Tem certeza?
— Eu não tenho falado com meu pai. — Essa confissão me provoca um pouco de culpa. Eu deveria ter ligado para ele depois que as flores chegaram.
Não liguei.
— O que a deixou chateada?
— Nada. Estou bem, mãe.
— O que o deixou tão chateado?
Cash olhou para a sra. Fuller, parada à porta da cozinha. Quinta-feira era o dia de o sr. Fuller acordar mais tarde, então estavam apenas os dois acordados. E como ele não quisera jantar na noite anterior, ela tinha certeza de que havia algo errado. E havia mesmo.
Cash queria ir para o quarto e terminar a lição de casa, mas eles tinham uma regra tácita: se ela estivesse em casa, ele só tinha permissão para ir para o quarto depois das oito. Mesmo se Cash tivesse dever de casa, esperavam que ele o fizesse na cozinha.
A sra. Fuller achava que era isso que havia de errado com os adolescentes de hoje em dia. Os filhos passavam muito tempo no quarto e não conviviam o suficiente com a família.
Não importava que ela não fosse da família de Cash.
Era uma regra idiota.
— Não estou chateado. Eu já disse a você que comi um hambúrguer.
Ela fez uma careta.
— Isso explica por que você não jantou. Mas por que parece tão desanimado?
Porque magoei Chloe. Cash deveria ter pensado melhor antes de falar com ela. Ele deveria ter...
— É a lição de casa. Eu odeio resolver problemas de matemática.
A sra. Fuller se sentou.
— Eu posso ajudar. Não sou tão boa quanto Tony, mas...
— Não. — Ele olhou para o livro.
Cash a sentiu olhando para ele.
— Algo está aborrecendo você, Cash.
— Eu só preciso terminar isso.
Ela estendeu a mão e ergueu o queixo dele e o olhou direto nos olhos. O toque dela doía, como o de Chloe havia doído aquele dia mais cedo.
— Eu me preocupo com você. — Ela o olhou como se estivesse tentando ler a alma dele.
Cash não queria ninguém vendo o que havia na sua alma.
— Pare de tentar me psicanalisar.
Ela deixou cair a mão.
— Na outra noite, quando você veio à sala de jantar, eu estava sofrendo e você me ajudou. Não acho que me lembrei de dizer obrigada.
— Não há de quê — Cash disse, sem saber por que ela estava fazendo aquilo.
— Eu quero fazer o mesmo por você. — O suspiro dela encheu o cômodo. — Mas você não nos conta os seus problemas. Você nos afasta. Eu quero fazer as coisas direito.
Você não pode fazer direito.
— Eu já disse que estou bem. — Um dia ele teria que contar aos Fuller sobre toda aquela história de Chloe/Emily, mas não enquanto Chloe estivesse chateada. E não até que Cash tivesse certeza absoluta de que estava certo. No caminho para casa, ele tinha pensado nas palavras de Chloe. Você acha que estou tentando extorquir dinheiro deles? Que tipo de pessoa faria isso?
O tipo dele. Cash fez isso. Ele se lembrou da dor profunda que viu nos olhos da mulher quando ele mentiu sobre ser o filho dela.
Cash tinha que ter certeza de que estava certo sobre Chloe ser Emily antes de contar aos Fuller.
Ele tinha que acabar com aquela raiva de Chloe para que pudessem descobrir a verdade. Mas como, se ela não estava nem mesmo respondendo às suas mensagens?
— Você não está bem — disse a sra. Fuller. — É como se achasse que não nos importamos. Nós te amamos.
Ele deixou cair o lápis.
— Pare. — A mesma frustração que Cash tinha sentido com Chloe brotou dentro dele.
— Parar o quê?
— Isso que está fazendo. Me desculpe, não posso ser o que você quer que eu seja. — Ele fechou o livro com força.
Os ombros da sra. Fuller afundaram.
— O que você acha que eu quero que você seja, Cash?
A resposta saiu sem que ele pudesse detê-la.
— Seu filho! Eu não sou seu filho!
A dor ficou estampada na expressão dela e ele quis dar um chute em si mesmo.
Cash olhou para o relógio do forno.
— São cinco para as oito. Posso ir para o meu quarto?
Ela assentiu.
Ele saiu da cozinha, mas não rápido o suficiente para não ouvir o suspiro de decepção da mãe adotiva.
Droga! Ele nunca fazia nada certo.
13
Eu estaciono na escola na manhã seguinte. Lindsey falou o caminho todo até aqui. Fazendo perguntas que não sei responder. Mas não fico irritada, porque são perguntas que eu preciso fazer a mim mesma. Emily Fuller tinha alguma marca de nascença? Havia algum suspeito? Havia descrições dos suspeitos?
Eu não voltei ao computador ontem à noite. Não consegui. Em vez disso, li um livro. Fiquei acordada e li um romance inteiro sobre vampiros e metamorfos, porque a história era muito distante da minha própria realidade. Eu queria ser transportada para longe da minha vida. Porque a minha vida é uma insana caixa de Pandora e, se eu abri-la, tenho medo do que vou encontrar.
Eu acabo de estacionar e olho para os prédios da escola. Estou cansada. Acho que dormi uma hora, talvez. Graças a Deus é sexta-feira. Pego minha bolsa e a mochila e percebo que não vou conseguir enfrentar isso também. Não vou conseguir passar o dia fingindo que está tudo bem. Não vou conseguir enfrentar Cash. Eu não tive nem coragem de ler as mensagens dele ainda.
— É isso, não vou para a escola — deixo escapar.
— Sério? — Lindsey pergunta.
— Quero pesquisar sobre Emily Fuller. — Por que toda vez que digo esse nome, sinto um déjà-vu? Emily. Emily. Emily.
— Eu tenho prova — diz Lindsey —, mas...
— Não — eu digo. — Preciso ficar sozinha. — Fui rude com ela? — Não é nada com você. Eu é que tenho que digerir essa coisa toda. Preciso ler todos aqueles artigos.
— Sua mãe não está em casa? — ela pergunta.
— Eu vou à biblioteca.
Ela parece preocupada.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Eu confirmo com a cabeça.
— Venho buscá-la depois das aulas.
— Não. Vou pedir para Jamie me levar para casa. — Ela me abraça. — Vai ficar tudo bem.
Como?, quero perguntar. Só vai ficar tudo bem se eu descobrir que nada daquilo é verdade. E mesmo assim, não vai ficar assim tão bem. Minha vida está uma bagunça.
O sr. Fuller tinha, por fim, ido falar com Cash sobre o fato de o jipe ter sido riscado. A conversa quase atrasou Cash para a escola. Ele mentiu sobre não saber onde o vandalismo tinha acontecido. O sr. Fuller insistiu em denunciar o estrago ao seguro, mas não estava obrigando Cash a fazer denúncia na escola. No entanto, ele teve que fazer ao pai adotivo a mesma promessa que fizera à mãe. Que, se ele flagrasse algo na câmera, resolveria o problema sem brigas. Manter essa promessa não seria fácil, mas Cash pretendia tentar.
O sr. Fuller não havia mencionado nada sobre o comportamento rude de Cash com a sra. Fuller. A mãe talvez não tivesse contado ao marido. Provavelmente porque temia que o sr. Fuller expulsaria Cash de casa. Será que ela sabia que os dois estariam melhor sem Cash? Ele se sentia um mau caráter por magoá-la. Por que tinha se transformado naquele cretino?
Estresse. Preocupação com Chloe. O fato de estar chateado com o vandalismo que Paul fizera no jipe que os Fuller lhe haviam dado. O jipe que ele não merecia. O jipe que era a única coisa nova e perfeita que ele já tivera na vida.
Cash não via a hora de a primeira aula acabar, pois estava desesperado para ver Chloe. Esperou até Literatura Americana para encontrá-la antes que ela entrasse na segunda aula — na esperança de que ela falasse com ele. Chloe não apareceu.
Antes que o sinal tocasse, ele foi para a ala leste da escola, onde ficava o armário de Lindsey.
— Ei — ele chamou quando a viu.
Surpresa, ela apertou os olhos.
— Oi.
— Você sabe onde Chloe está? — ele perguntou.
Lindsey franziu a testa. Não era um bom sinal.
— Espero que você não esteja brincando com ela.
Agora era a vez dele de se surpreender.
— O que você quer dizer?
— Você sabe o que eu quero dizer! A vida dela já não está fácil. A perda do namorado, o divórcio dos pais e o câncer da mãe, e agora você despeja em cima dela aquela história de ela ter sido sequestrada.
Ele não tinha dito a Chloe para não contar a ninguém, mas ficou chocado ao descobrir que ela havia contado.
— Eu preciso falar com ela. Onde ela está?
— Ela não veio à escola. Disse que precisava pesquisar tudo que pudesse encontrar sobre o sequestro.
— Ela trouxe o laptop? — Cash perguntou.
Lindsey franziu a testa de novo.
— Hã?
— Ela está com o laptop?
— Por quê...?
— A mãe dela provavelmente está em casa, então Chloe não iria querer fazer essa pesquisa lá. Se não está com o laptop, isso significa que está na biblioteca.
A expressão de Lindsey confirmou seu raciocínio.
— Não fui eu que disse. — As palavras dela o perseguiram pelo corredor enquanto Cash desaparecia em meio à multidão.
É como se o silêncio da biblioteca estivesse pesando sobre mim. A cada dois minutos, olho por cima do ombro, com medo de que alguém esteja observando o que estou lendo, vendo as imagens, me vendo. Por razões que não posso entender, estou com medo. E não apenas da verdade. É o tipo de medo que sentimos quando imaginamos um monstro embaixo da cama.
Eu tento afastar isso. Olhando para o computador, não consigo acreditar que existam tantos artigos sobre o sequestro de Emily Fuller.
Mesmo que seja coincidência, não consigo deixar de me perguntar como meus pais não viram as fotos ou as reportagens e não acharam que eu parecia com Emily.
Termino o oitavo artigo. Meu coração está apertado e meus nervos, à flor da pele. Quando respiro, meu coração bate na garganta. Me esforço para não chorar. Clico num vídeo e coloco os fones de ouvido que estão ao lado do computador. Antes de apertar o botão, olho para o rosto de uma mulher na tela. Seus cabelos escuros, olhos azuis e feições me hipnotizam. Eu não quero ver, mas não consigo desviar o olhar. Eu me pareço com ela.
Minha respiração fica presa na garganta. Durante toda a minha vida, tentei não me perguntar como seria a minha mãe biológica. Eu tentei não ficar ressentida, porque tenho uma mãe, uma mãe que me ama. Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe biológica não me amar. De ela simplesmente me entregar para alguma agência de adoção. E nessa única lembrança que tenho de mim mesma, chorando, sei que estou sentindo falta dela.
Eu sempre disse a mim mesma que não importava que ela tivesse desistido de mim, mas o abandono sempre esteve ali, me assombrando, roubando a felicidade do meu coração. Sempre me fazendo me perguntar o que havia de errado comigo.
Mas e se ela não tivesse me dado para adoção? E se, no final das contas, ela me quisesse?
Na minha cabeça, vejo a imagem da minha mãe adotiva, quase careca e magra demais, num roupão cor-de-rosa folgado. Por que sinto como se a estivesse traindo? Um nó se forma na minha garganta. Eu aperto o play.
“Por favor, por favor, não machuquem o meu bebê.” A voz dela soa na minha cabeça como música. É familiar ou minha mente está me iludindo? “Ela é uma boa menina", continua a mulher. “Ela é feliz, meiga e inteligente.” Há tanta dor na voz dessa mulher que ela vaza do computador e penetra a minha pele, o meu peito e se enrodilha como uma bola de elásticos prestes a se desenrolar. “Por favor, não machuquem meu bebê. Por favor, devolvam a minha filha. Eu não consigo nem respirar sem ela.”
Lágrimas escorrem pelas bochechas dela. Lágrimas estão escorrendo pelas minhas bochechas. Eu não me preocupo em enxugá-las. Isso dói. Dói tanto...
Como é possível? Isso é uma loucura. É um absurdo. Tem que ser um engano.
Alguém se senta ao meu lado. O medo me domina. Um grito sobe até a minha garganta. Eu me sobressalto, depois vejo Cash através das lágrimas.
Arranco os fones de ouvido.
— Chloe, por favor, vamos conversar.
Pego minha bolsa e minhas anotações e saio correndo da biblioteca. É apenas Cash, mas o medo paira sobre mim. O monstro embaixo da cama está lá fora.
Calafrios percorrem minha coluna como aranhas.
Escuto passos atrás de mim. É apenas Cash, mas percebo o meu coração batendo na garganta, enquanto ouço a voz dele implorando. Há um zunido nos meus ouvidos. Lágrimas deslizam por minhas bochechas. Um medo infundado, inexplicável, me envolve.
Chego ao meu carro e percebo que tenho que procurar as chaves. Antes que eu possa colocar a mão na bolsa, Cash está parado na minha frente.
— Precisamos conversar!
A bola de elásticos no meu peito começa a se soltar. Um. Dois. Três. Pop, pop, pop. Eles machucam minha pele.
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto.
— Você não estava na escola.
Eu pisco.
— Você foi à minha casa? Se você tiver dito algo sobre isso à minha mãe... — Coloco o dedo no peito dele. — Se você tiver feito isso...!
— Eu não fiz nada.
— Ela já está sofrendo demais. Você não vai contar...
— Não vou. Pode acreditar.
Eu balanço a cabeça.
— Claro, como se você nunca tivesse mentido para mim nem nada.
Cash segura as minhas mãos.
— Você está certa. Eu menti. Meti o pé pelas mãos. Não sabia como dizer a você. Desculpe.
Começo a vasculhar a bolsa, procurando as chaves.
— Mas, Chloe, eu sei que você tem perguntas e eu posso responder muitas delas.
Balanço a cabeça mais uma vez.
— É um equívoco — eu digo e gostaria de acreditar nisso. Gostaria que o nome Emily não fosse tão familiar para mim. Queria que a voz da mulher no vídeo não continuasse ecoando no meu ouvido. Gostaria que esse medo louco desaparecesse. — Tem que ser um equívoco.
— Sei que é difícil. E talvez seja um equívoco. Mas vamos descobrir.
— Como? — pergunto a ele, em um tom de voz muito alto. — O que você quer que eu faça? Vá até a minha mãe e pergunte: “Ei, você me sequestrou?” — Eu fecho as mãos em punhos apertados. — Você não viu como a minha mãe está? Ela não está nem comendo direito, porque está deprimida. Isso a mataria!
Volto a vasculhar minha bolsa.
— Onde estão minhas malditas chaves? — Meu coração está batendo tão rápido que o meu peito vibra.
Vou até o capô do carro e despejo o conteúdo da bolsa em cima dele. Minha carteira, meu celular, pó compacto, um absorvente interno e algumas moedas soltas caem da bolsa e deslizam pelo capô. Eu olho minhas coisas, nada. Não acho minhas chaves. Devo ter deixado na biblioteca.
Pego minha carteira, a única coisa sem a qual não posso viver, e começo a voltar para a biblioteca.
Ele caminha ao meu lado.
— Chloe, por favor. Venha se sentar no meu jipe e vamos conversar. Podemos investigar isso juntos.
Eu o encaro.
— Talvez eu não queira descobrir a verdade.
Os olhos verdes dele se fixam em mim.
— Você está chateada. Está chorando e, se for à biblioteca, vão achar que algo está errado. Venha se sentar no meu jipe. Eu vou encontrar as suas chaves.
Seu tom de voz tranquilizador me contagia. Passo a mão no rosto.
— Ele está logo atrás de você. — Cash enfia a mão no bolso e eu ouço um sinal sonoro quando a porta do jipe se abre. — Entre. Vou encontrar suas chaves, ok?
Eu obedeço. Não sei por que, mas eu me viro e entro no jipe. Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos. Mas então abro os olhos com a sensação de que alguém está do lado de fora, me olhando pela janela. Mas não há ninguém ali.
Fico sentada no carro, respirando. Só respirando. Em alguns minutos, ouço Cash voltar para o jipe.
Levanto a cabeça.
— Encontrou?
— Sim — ele diz, mas não vejo nada nas mãos dele. — Podemos conversar? Por favor.
Quero insistir para que ele entregue as chaves, mas a lógica intervém.
— Eu não sei o que dizer.
— Então deixe-me dizer outra vez que sinto muito. — Ele parece tão sincero. — Não sei como poderia ter lidado com isso de forma diferente, mas obviamente meti os pés pelas mãos.
— Não brinca, Sherlock!
Ele sorri, depois volta a ficar sério e parece culpado.
O som dos carros passando e da vida acontecendo ecoa do lado de fora do jipe, mas, ali dentro, tudo está silencioso. Eu respiro outra vez e tento afastar o pânico que cresce dentro de mim.
— Sério, como você me encontrou aqui?
— Quando vi que você não estava na escola, perguntei a Lindsey. Ela disse que você queria pesquisar sobre o sequestro. Com sua mãe em casa, imaginei que o único lugar para fazer isso era a biblioteca.
Eu balanço a cabeça confirmando, depois puxo o quebra-sol do carro para baixo e me olho no espelho. Ele tem razão. Eu pareço chateada. Esfrego os dedos no rosto e limpo pelo menos parte da maquiagem borrada. Então olho para as minhas feições e me lembro do rosto no vídeo. Do rosto dela. Minha mente recapitula o que acabei de ler. Lágrimas enchem meus olhos.
Eu me reclino no assento.
— Meus pais nunca teriam me sequestrado. — Olho para ele.
Eu posso ver que Cash tem dúvidas. Mas como posso ficar chateada com ele quando existe uma pequena parte de mim que...
— Então vamos investigar a adoção. Você sabe o nome da agência?
— Não — eu digo.
— Você sabe se eles são da região, de algum lugar próximo daqui?
— Acho que sim.
— Existe alguma maneira de você encontrar o nome da agência? Sua mãe tem documentos ou algo assim?
Lembro-me vagamente de um dia em que minha mãe encontrou esses documentos quando estava procurando a apólice de seguro da minha avó. Mas isso foi há muito tempo.
— Sim, mas não sei se ela não os deixou na casa do meu pai.
Ele balança a cabeça. Mais dúvidas.
— Talvez você possa dar uma olhada na sua casa.
— Sim.
— E a sua certidão de nascimento?
— Isso ela tem. Usou para me matricular na escola. Mas eu já vi. Lá está escrito que sou Chloe Holden e que meus pais adotivos são meus pais. E que nasci em 18 de novembro.
— Em que lugar você nasceu?
— Eu não sei. — Algo me ocorre. — Você não contou... a eles, para os Fuller, não é?
— Não. Acho que precisamos ter certeza antes de contar. Se eles pensarem que você é Emily e depois... você descobrir que não é, isso os fará sofrer muito.
Eu fecho os olhos por um segundo. Fico curiosa.
— Como eles são?
Cash olha para mim e vejo compaixão nos olhos dele.
— Eles são... legais. Muito bondosos. Rigorosos. Muito rigorosos. — Ele suspira. — São melhores que a maioria das pessoas. Muito melhores.
Ao ouvir a resposta de Cash, compreendo muito do que ele sente. Amor, respeito e algo mais que não consigo definir, mas estou muito sobrecarregada para perguntar agora. A verdade é que tenho tantas outras perguntas... Um dos artigos dizia que ambos estavam na faculdade de medicina quando a filha foi levada. Eu quero saber qual é a especialidade deles. Se os Fuller já disseram a Cash alguma coisa sobre Emily. Eles ainda sentem falta dela? Tenho algum trejeito da filha deles? Mas tenho medo de desmoronar se perguntar. Então não faço isso.
— Você não se lembra de nada antes de ser adotada? — Cash pergunta.
Eu quase lhe conto sobre a lembrança que tenho, mas estou muito perturbada para falar sobre isso.
— Quase nada.
— Você estava assistindo ao vídeo. A sra. Fuller lhe parece familiar?
— A voz... — Um nó de emoção se forma na minha garganta. — Eu não posso acreditar. Tem que haver um engano.
— Então vamos provar que há um engano.
— Como? — Fecho a mão num punho apertado.
— Há um arquivo na mesa do sr. Fuller, onde eles guardam uma cópia de todos os artigos. Vou tentar encontrá-lo e tirar fotos para termos cópias de tudo. Isso pode ajudar. Você procura os documentos da adoção.
— E se eu não conseguir? Não vou perguntar...
— Vamos descobrir.
— Você acredita que eles me sequestraram, não acredita? — A dor dentro de mim duplica de tamanho.
— Eu não sei no que eu acredito — ele diz. — Mas, juntos, podemos encontrar a verdade.
Meu punho aperta mais forte.
— Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.
— Chloe, se você for Emily e seus pais a tiverem sequestrado, eles merecem...
— Eles não me sequestraram!
— Então por que não é uma boa ideia? Você quer respostas, não quer?
Eu quero. Acho que quero.
— Talvez eu não queira.
— Como você pode não querer saber a verdade?
— Minha vida já está de ponta-cabeça. — Mais lágrimas se acumulam nos meus olhos. — Eu tenho que ir. — Saio do jipe, olho para o meu carro estacionado perto e então me lembro de que ele está com as minhas chaves. Eu só fico parada ali.
Ouço quando Cash sai do jipe. Ele anda até ficar na minha frente.
— Quando você quiser conversar, me ligue, ok? — Cash parece preocupado e parte de mim quer abraçá-lo e chorar no ombro dele.
Em vez disso, só balanço a cabeça.
— Trabalho hoje à noite na oficina, mas saio por volta das oito. Poderíamos comer uma pizza.
— Não — eu digo.
Ele me entrega as minhas chaves.
Elas estão pesadas. Meu coração está pesado com a possibilidade de que eu seja Emily Fuller. Que meus pais nunca tenham desistido de mim. Que aquele monstro, o monstro embaixo da cama, tenha me tirado deles.
Entro no meu carro e saio do estacionamento. Não sei para onde estou indo, mas dirijo assim mesmo.
14
Cash observou enquanto Chloe se afastava. Aquilo ia de mal a pior! O que ele está fazendo de errado? Como ela poderia não querer respostas?
Então se lembrou do teste de DNA que ele nunca tinha olhado. Os Fuller haviam feito para ele no ano anterior, caso ele quisesse procurar a mãe biológica. O pai dele sempre dissera que a mãe tinha simplesmente acordado um dia e ido embora, abandonando-o. A sra. Fuller questionou essa história:
— Você não sabe, seu pai pode ter tirado você dela, como a pessoa que levou Emily.
A mãe adotiva tinha razão, mas Cash ainda não havia se convencido disso. Ele tinha medo de saber a verdade. Medo de como se sentiria ao descobrir a verdade. Era isso que Chloe estava sentindo? Às vezes o que você não sabe é mais assustador do que aquilo que você sabe. Mesmo que aquilo que você saiba já seja bastante assustador...
Ele ficou no estacionamento por uns bons trinta minutos, apenas remoendo as coisas. Sem saber se deveria voltar para a escola ou simplesmente ir para casa.
Quando resolveu ir para casa, sentiu um buraco no estômago. Ele não havia jantado na noite anterior nem tomado café da manhã, e estava morrendo de fome. Então parou numa loja de conveniência onde havia um McDonald’s. Enquanto andava pelo corredor de doces da loja, viu sacos vermelhos brilhantes de Skittles e lembrou de Chloe falando sobre os Skittles vermelhos. Eles são doces, mas um pouco azedinhos e têm gosto de recompensa.
Ele pegou quatro pacotes.
Passei o resto do dia encolhida num banco do Whataburger. As cores brilhantes da hamburgueria e os fregueses alegres afugentam o medo infundado de antes. Lutando para ficar acordada, começo a navegar pelas páginas do Facebook dos meus antigos amigos e constato que todas as pessoas da minha antiga vida estão ótimas enquanto a minha vida fica cada vez mais insana. Visito a página de Alex. Ele adicionou várias fotos dele e de Cassie.
Depois procuro alguns dos meus autores favoritos e compro outro livro de vampiros para quando eu não conseguir dormir. Em seguida, leio alguns artigos on-line sobre como descobrir se um cara está saindo com você só porque quer sexo.
Eu queria que existisse um artigo que explicasse se um cara está saindo com você só porque acha que você é a filha dos pais adotivos dele. Que raiva! Então, quando penso em Cash, resolvo checar as mensagens não lidas que ele me enviou ontem.
São catorze.
Uma delas queria me lembrar de que a culpa não era dele.
Duas eram pedidos de desculpa, uma delas por ter enviado a mensagem de que a culpa não era dele.
Três eram para me avisar de que esqueci meu cobertor com ele. Duas eram para perguntar se ele podia me entregar.
Sete eram variações de Me ligue.
E uma mensagem muito longa era para dizer que eu tinha entendido tudo errado. Ela dizia: Você está errada em pensar que não gosto de você. Achei você linda desde o instante em que trombou comigo e derramou toda a minha raspadinha. E você chamou minha atenção no ato. Então vi quem você era e tentei não pensar que você era linda. Mas não consegui. Então comecei a conversar com você e vi que, além de linda, você é engraçada e inteligente, e não consegui deixar de gostar de você. A única razão pela qual não beijei você primeiro foi porque eu estava com medo de que pudesse interferir no que eu estava prestes a te contar. E isso de fato aconteceu. Mas ainda gosto de você. E quero te beijar novamente. E de novo.
Essa mensagem me tocou. Droga. Gosto dele também. E se a minha vida não fosse um caos, eu estaria pulando de alegria, porque também gosto muito de Cash.
Meu celular toca e chega uma figurinha da palavra “Olá” escrita em vermelho, com a mesma fonte usada no pacote de Skittles. A próxima mensagem diz para ligar para ele quando eu tiver vontade de conversar. E depois: Eu sei que isso é difícil.
A emoção forma um nó na minha garganta. Pego minhas batatas fritas frias, escrevo com elas a palavra “Oi”, tiro uma foto e escrevo que vou entrar em contato à noite.
A resposta é outra foto: um Skittles com um rosto sorridente.
Sim. Eu realmente gosto de Cash.
No mesmo horário em que as aulas acabaram, fui para casa com um humor muito melhor do que quando saí, mas no momento em que entro em casa e vejo minha mãe, com lágrimas nos olhos, sentada na mesa da cozinha com as flores que escondi no meu quarto, meu humor despenca.
— Por que você mentiu para mim?
— Não menti — digo.
— Você não me disse que recebeu essas flores.
— Isso não é mentir.
— Bem, você me fez mentir! Liguei para o seu pai e dei uma bronca nele por se esquecer de lhe enviar alguma coisa. Ele jurou que enviou. Então eu encontrei as flores. Por que não me disse?
— Porque eu estava com medo de chatear você. Justamente o que está acontecendo. — Meu coração está batendo na boca e eu não preciso disso agora. Quando poderei levantar as mãos no ar e gritar “Chega!”?
— Você não pode esconder as coisas de mim! — ela retruca.
— Eu não estava...
— Seu pai está bravo por você não ter ligado para ele. Me acusou de fazê-la ficar contra ele. Vem vê-la amanhã. Mas eu não quero colocar os olhos nele novamente! Ele é um cretino. — Então vai para o quarto, batendo a porta.
Largo a bolsa e a mochila na mesa da cozinha e me jogo na cadeira. Chego à conclusão de que a sessão de terapia não adiantou muito.
Meu peito aperta, um nó se forma na minha garganta e estou chorando. Fico apenas sentada ali e tento não seguir minha mãe até o fundo do poço, onde tudo que existe é a depressão.
Nessa noite, troco mensagens com Lindsey. Ela quer que eu vá à casa dela, mas eu não tenho condições.
Estou prestes a ligar para Cash quando minha mãe bate na minha porta. Ela enfia a cabeça pelo vão. Vejo um pedido de desculpas em seus olhos.
— Posso entrar?
Eu deixo.
Ela se aproxima e se senta na beira da minha cama.
— Sinto muito. Novamente.
Eu assinto. O que devo falar? Eu não perdoo você? Estou cansada de tudo isso? Você me sequestrou? A última pergunta, que dá voltas na minha cabeça, bate fundo no meu peito.
— Obrigada pelo macarrão com queijo — diz ela.
Eu havia preparado o macarrão e deixado um prato sobre o fogão.
— Você tomou uma daquelas garrafinhas que fazem bem à sua saúde?
— Não, mas vou tomar.
Ela toca a minha mão.
— Sou uma péssima mãe.
No momento, isso é verdade. Mas, antes que meu pai a abandonasse, antes do câncer, ela era incrível. Então balancei a cabeça, dizendo que não. De todos os meus amigos, eu sempre soube que eu era a que tinha mais sorte quando se tratava de pais. Eu me sentiria tão amada se eles fossem sequestradores de crianças? Acho que não.
Percebo que minha mãe está me olhando.
— Como foi a terapia?
— Difícil. A terapeuta disse que tenho muita raiva.
— Você tem.
— Vou começar a ir uma vez por semana. Vou melhorar.
— E os remédios? — pergunto.
— Vamos tentar sem eles a princípio. Vou começar a fazer caminhadas todos os dias.
Eu tento não ser pessimista, mas quero gritar, Caminhadas não vão resolver!
— O terapeuta também acha que vou melhorar quando começar a trabalhar. Você sabe, sair de casa e ter algo em que pensar, além do câncer e do cretino do seu pai.
O comentário sobre o meu pai me incomoda, mas pelo menos ela está fazendo terapia e falando sobre isso.
— E se você não quiser ver seu pai, não precisa fazer isso.
Minha mente dispara. Eu não estou com vontade de vê-lo, mas não quero que a minha mãe sinta que tem o poder, consciente ou subconsciente, de determinar se quero vê-lo ou não.
— Eu vou vê-lo.
Decepção transparece nos olhos dela. Mas minha mãe assente.
— Encontrei um bom filme. Uma comédia. O terapeuta sugeriu que eu comece a rir mais. Quer assistir comigo?
— Sim. Só preciso fazer uma ligação primeiro.
Seu tom de voz fica mais agudo.
— Para o seu pai?
— Não. Cash. — Vou falar com meu pai quando ele vier, mas só de pensar nisso, já me encho de pavor.
— Você gosta dele, não gosta?
— Sim. — Admitir é difícil.
— Apenas tenha cuidado. Os homens podem apunhalá-la pelas costas. — Depois de falar isso, ela sai do meu quarto.
Que conselho maternal mais doce e acolhedor... Eu volto para a cama. Penso em Cash e lembro como doeu quando meu pai foi embora. Lembro como doeu me afastar de Alex. Lembro que preciso ir para a faculdade no próximo ano. Lembro de minha única memória de quando eu era pequena, de ser arrancada da minha vida. Odeio esse sentimento e, se eu chegar perto de Cash, vou me sentir assim novamente. Já vou me sentir assim com Lindsey.
Tenho muitas razões para proteger meu coração, para não me deixar me apaixonar por Cash. Razões que nem incluem a suspeita dele de que eu seja Emily Fuller.
Volto a ouvir a pergunta que ele me fez antes.
Como você pode não querer saber a verdade?
Meu celular toca. Pensando que é Cash, meu coração dá um salto. Não é ele.
Antes de atender, verifico se minha mãe fechou a porta.
— Oi, pai.
— Como foi o seu dia? — a sra. Fuller perguntou quando Cash chegou em casa do trabalho e entrou na cozinha. O plano dele era subir as escadas e ir para o quarto, começar a lição de casa e decidir se iria tomar a iniciativa e ligar para Chloe ou esperar e deixar que ela fizesse isso.
— Ok — Cash respondeu, lembrando que ele e a mãe não tinham terminado a conversa de um jeito muito amigável na noite anterior.
— Posso fazer um sanduíche?
Ela franziu a testa e ele sabia por quê.
— Eu quis dizer, vou fazer um sanduíche. — A sra. Fuller odiava quando ele perguntava se podia fazer alguma coisa. Ela dizia que era um sinal de que ele não se sentia em casa. Ela estava certa. Cash não se sentia mesmo. Sim, ele gostava muito dos Fuller, mas não podia deixar de se perguntar se os dois não mudariam de ideia sobre ele se soubessem de todas as coisas que tinha feito ao lado do pai biológico. Eles não percebiam que Cash não era digno de generosidade?
— Melhor assim — disse ela. — Mas se estiver interessado, pode comer a pizza que guardei no forno para você.
— Muito interessado. — Ele tirou a caixa do forno e colocou no balcão. — Obrigado. — Cash pegou uma fatia e afundou os dentes no recheio macio e morno de muçarela e calabresa.
— De nada. — Ela sorriu. A sra. Fuller gostava de agradá-lo, tanto que às vezes o incomodava. — Tem salada na geladeira. Posso pegar para você.
— Não, apenas pizza, obrigado — ele agradeceu, mastigando com gosto.
Ela pegou um prato no armário e acenou para ele se sentar.
— Sente-se e coma. Vamos conversar um pouco antes de você subir e se trancar no seu quarto.
Cash se perguntou se isso era uma queixa com relação à noite anterior. De qualquer maneira, ele pegou a caixa e foi para a mesa.
— Onde está o sr. Fuller? — perguntou antes dar a segunda mordida.
— Foi nadar. — Ela apontou para fora, onde as luzes da piscina iluminavam o quintal. — Ele comeu cinco pedaços de pizza.
Ela pegou a tigela de Skittles que Cash havia deixado na mesa enquanto mandava uma mensagem para Chloe.
— Foi você quem comprou esses Skittles ou foi Tony? — ela perguntou.
— Fui eu.
Ela balançou a tigela por um segundo.
— Onde estão os vermelhos? São os melhores.
Cash engoliu a pizza.
— Eu comi. — Era mentira. Eles estavam num saquinho em seu quarto.
A sra. Fuller colocou a tigela na mesa.
— Você não me contou como são as suas aulas na faculdade.
— São boas. O professor é chato, mas não vejo problema. — Ele terminou sua primeira fatia e pegou outra. Ela lhe entregou um guardanapo. Cash colocou a pizza no prato e limpou a boca. — Como foi o seu dia?
— Foi ok.
— Salvou a vida de alguém?
— Estou trabalhando nisso. — Ela olhou para a tigela de Skittles, tirou uma balinha laranja e colocou na boca. — Você sabe, Tony e eu conversamos e você pode parar de trabalhar se quiser se dedicar mais à escola e terminar o ensino médio.
— Não, estou bem assim. Só tenho aula na faculdade às quartas-feiras. — Ele saboreava o segundo pedaço. A sra. Fuller assistiu Cash acabar de mastigar. Ele pegou o terceiro.
Ela franziu a testa.
— Não que a gente ache que você não dê conta. Achamos que você é muito capaz. É que... pense em como seria mais fácil se você apenas se concentrasse nos estudos.
— Eu gosto de trabalhar. — Cash deu outra mordida. — Essa pizza é muito boa — ele acrescentou, esperando mudar de assunto.
— Você está indo muito bem, mas poderia tirar notas melhores e entrar numa...
— Eu estou bem assim. — Seu plano era fazer um curso técnico depois do ensino médio e mais tarde ingressar na Universidade de Houston, que seria custeada por um programa do governo para pessoas como ele, que moravam em lares temporários. Mas Cash não queria falar sobre faculdades esta noite. Eles já haviam discutido quando ele disse que iria pleitear uma bolsa do governo que o programa de adoção oferecia. Cash já lhes devia o jipe. Não queria que pagassem também a faculdade.
— Você pode estudar onde quiser.
— Está tarde. Eu queria fazer a lição de casa. — Ele pegou o prato e o colocou na máquina de lavar louça. — Obrigado pela pizza. — Enquanto ele passava pela mesa, pegou outra fatia.
— Cash — ela chamou, parecendo um pouco impaciente.
Dando outra mordida, ele se virou, esperando que a sra. Fuller começasse a listar as universidades. Boas universidades, universidades caras. Ele começou a falar com o pedaço de pizza na boca.
— Olha, eu preciso...
— Queremos adotá-lo.
Ele ouviu as palavras, mas não as assimilou. O bocado de pizza, já no meio da garganta, bateu contra seu pomo de adão. Sua mente disparou. O coração doía. Ele se lembrou de quando disse que não era filho dela.
Era por isso que a sra. Fuller estava fazendo aquilo? Achava que ele queria ser filho dela?
Era a última coisa que Cash queria. Seu objetivo sempre fora pagá-los pelo jipe e sair da vida deles para que seus problemas não continuassem a afetá-los.
— Não. Péssima ideia. — Ele subiu as escadas correndo.
— Por quê? — ela perguntou, enquanto Cash subia. — Por que é uma péssima ideia? — Ele não respondeu.
15
Dez minutos depois do começo do filme e da segunda piada sobre preservativo, minha mãe decide que ele não é engraçado nem apropriado. Na verdade, é engraçado, pelo menos foi quando assisti com Alex um ano atrás. Lembro-me de todas as vezes que íamos à casa dele, deitávamos na cama e assistíamos a filmes. E fazíamos outras coisas.
Os pais dele tinham uma imobiliária e trabalhavam até tarde. Nós tínhamos a casa inteira para nós até por volta das oito. Eu, sinceramente, acho que, se os pais dele tivessem um horário de trabalho normal, nós não teríamos uma vida sexual.
Minha mãe tira o filme e assistimos à série Law & Order. Eu quase a lembro de que deveríamos assistir algo engraçado, mas tenho medo de que ela desligue a TV. Então fico de boca fechada. É uma reprise. Eu já vi esse episódio. Mas não quero que minha mãe se sinta abandonada, então fico e finjo assistir. O que estou realmente fazendo é repassando mentalmente o telefonema do meu pai.
Ele não fez rodeios. Pediu desculpas por não me ligar no primeiro dia de aula, alegando que tivera uma semana ruim. Eu queria perguntar se tinha algo a ver com a nova namorada.
Ele não disse nada sobre ter dado o meu quarto a Darlene, mas me falou que me amava e que sabia que não era perfeito.
Não pude discordar. Mas por mais triste que seja, acho que isso fazia parte do problema. Antes, ele era perfeito. Então Darlene apareceu. E sugou tudo o que ele tinha de perfeito. Ele me lembrou de que eu era filha dele e que a minha mãe não deveria tentar me colocar contra ele. Não pude discordar disso também.
Ele disse que precisava me ver e que sentia a minha falta. E eu gostasse ou não, ele era meu pai e não ia deixar minha mãe ficar entre nós. Eu quase perguntei: E Darlene? Você vai deixar que ela fique entre nós?
Consegui ficar quieta e concordei em jantar com ele amanhã à noite. Mas só depois que me certifiquei de que seríamos apenas nós dois. Eu notei o tom contrariado na voz dele quando perguntei. Eu não sabia se ele planejava trazer Darlene, mas ele concordou em vir sozinho. Ainda assim, estou esperando o nosso jantar com o mesmo entusiasmo com que espero minha menstruação.
Pego o álbum de fotos que minha mãe deixou sobre a mesa do escritório. Vou virando as páginas. Não acho que já tenha visto esse. Aposto que era de uma das minhas avós. Até nos mudarmos para cá, a maior parte das coisas da minha avó estava encaixotada no sótão.
Eu observo as imagens em preto e branco dos meus avós e da minha mãe quando era pequena.
Fotos dela quando criança, parecendo feliz. Viro a página e encontro fotos minhas.
Eu bem pequena. Eu segurando um presente com um grande laço.
Eu não parecendo feliz, apesar de estar segurando um presente.
Ali estão duas fotos que foram editadas, o que significa que minha mãe cortou a imagem do meu pai com a tesoura.
Minha mãe me vê olhando o álbum. Ela aponta para uma foto em que aparecem meus avós e eu.
— Essa foi tirada quando você os conheceu.
Eu observo a imagem. Meu eu mais jovem está olhando para a câmera como se estivesse implorando para alguém me salvar. O olhar no meu rosto me lembra o olhar dos animais que a gente vê naqueles anúncios comoventes para arrecadar dinheiro, promovidos pelas ONGs que cuidam de animais abandonados. O medo que eu tinha empurrado para longe me domina novamente.
Então vejo uma contusão na minha bochecha. Como eu teria me machucado?
— Tínhamos acabado de buscar você e viemos direto para cá, da agência de adoção.
Sinto meu coração acelerar.
— Como eu ganhei esse machucado?
Minha mãe olha para a foto.
— Eles disseram que você caiu no parquinho. Por quê?
Eu não sei, realmente não sei, mas o medo deixa os pelos da minha nuca arrepiados. Então percebo que essa é a minha chance de fazer perguntas.
— Então você me adotou numa agência daqui?
Eu folheio o álbum, não querendo que ela me veja esperando sua resposta com respiração suspensa.
— Em Fort Landing. Duas cidades mais para a frente. Eu lembro que a coloquei na cadeirinha do carro e voltei com você.
Eu olho para minha mãe. Ela ostenta um sorriso enquanto fala sobre mim quando eu era pequena. Um sorriso de amor. Não é o olhar de alguém que se lembra de ter sequestrado uma criança.
Eu não sei se posso chamar de alívio, mas meu peito fica mais leve. É como se isso confirmasse o que eu acredito que seja verdade. Meus pais não me sequestraram. Eu sei disso. Eu apostaria minha vida nisso.
— Quanto tempo levou a adoção?
— Oito meses. Os oito meses mais longos da minha vida.
Eu volto a olhar a foto do meu eu mais jovem. Tenho cabelos castanho-escuros encaracolados e meus olhos parecem grandes demais para o meu rosto.
— Eu pareço assustada.
— Você era nervosa. Confusa. Morou num lar temporário por um mês. Ficou apegada a eles.
Meu coração dá outro salto. Se isso é verdade, se morei num lar temporário, então não sou Emily Fuller, porque ela foi sequestrada no dia anterior à minha adoção.
— Eles disseram que demoraria um tempo para você se ajustar.
Eu engulo em seco.
— E demorou?
— Sim. Dormi com você por quase um mês, porque você chorava à noite. Eu te abraçava e cantava para você.
Eu acho que me lembro dela cantando. Meu peito dói quase como se estivesse sentindo o que senti na época. O que senti na única lembrança que me assombra. Confusa. Assustada. Insegura. Abandonada. Mal-amada.
— Eu falava alguma coisa sobre isso?
— Só que você queria sua mãe e seu pai. Partia meu coração. Eu ficava te dizendo que éramos sua mamãe e seu papai a partir daquele dia. Não demorou para você começar a sorrir.
Uma pergunta não sai da minha cabeça. Algo que eu secretamente sempre me perguntava.
— A agência lhe informou por que fui para a adoção?
Minha mãe parece surpresa. E também estou surpresa. Surpresa por nunca ter perguntado antes. Então, de repente, sei por que nunca perguntei. Parecia mais seguro não saber.
— Eles disseram que sua mãe era muito jovem e não era casada. Ela queria ficar com você, mas era difícil demais do ponto de vista financeiro. Nós temos muita sorte em ter você. Você é uma bênção. Tentei engravidar por muitos anos. Seu avô conheceu um casal que indicou essa agência. Não era muito caro. Eles conseguiam pais adotivos para muitas crianças mestiças um pouco mais velhas, cuja adoção é mais difícil.
Eles me disseram que eu sou, em parte, descendente de hispânicos, o que explica a coloração castanho-esverdeada dos meus olhos.
— Minha mãe é hispânica ou meu pai?
— Eu não sei.
Viro a página. Há uma foto minha com uma boneca. Uma daquelas que se parece com a criança que a ganha. Estamos com um vestido igual. Temos cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos castanho-esverdeados. A boneca está sorrindo e, nessa foto, eu também. Eu me pergunto quanto tempo já tinha se passado desde a adoção.
Minha mãe sorri.
— Você adorava essa boneca. Fomos a uma loja onde tivemos que assinar um termo de adoção depois de comprar a boneca. Você a carregava para todo lugar.
— Eu não me lembro — digo. Recordo-me da caixa de brinquedos que vi no sótão da casa do meu pai quando estávamos nos mudando. — Eu ainda a tenho?
— Não. Nós a esquecemos num parque alguns meses depois que você a ganhou. Nós voltamos, mas alguém já tinha levado a boneca. Você chorou por semanas, querendo Emily de volta.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Emily?
— Sim, foi o nome que você deu a ela.
Eram dez horas da noite quando o celular de Cash tocou. Ele saltou da sua escrivaninha, onde fazia o dever de casa distraidamente, enquanto pensava no que a mãe adotiva tinha dito e torcia para que ela não decidisse tentar terminar a conversa. Porque ele não sabia como terminá-la.
Por que é uma péssima ideia?
A única resposta de Cash seria perguntar por que ela achava que seria uma boa ideia. Os Fuller já tinham feito muito mais do que se esperava deles. Não sabiam como era difícil corresponder às expectativas deles? A sra. Fuller não se lembrava de como tinha ficado decepcionada quando o expulsaram da Westwood Academy? Ou, um ano antes, quando o acusaram de roubar um carro no bairro só porque ele fazia parte de um programa de adoção do governo?
Ou mesmo quando ele se envolveu na briga com Paul? Cash nunca conseguiria apagar seu passado. Droga, eles não conheciam metade do seu passado! Cash costumava furtar a aposentadoria do bolso de idosos. Roubava carros. Uma vez, quando o pai trabalhava na casa de um casal idoso, Cash havia entrado e furtado os cartões do banco e um colar valioso da mulher, uma joia que o marido acabara de comprar para presentear a esposa nas bodas de ouro.
Ele viu o número de Chloe na tela.
— Oi.
— Desculpe ligar tão tarde. Foi uma noite insana.
— Sua mãe não descobriu que você faltou às aulas hoje, não é?
— Não. Você contou para alguém?
— Não.
Ela ficou quieta e depois falou:
— Olha, eu tenho certeza de que minha mãe e meu pai não me sequestraram, mas... Estou achando que alguém fez isso. E você tem razão. Eu quero respostas.
— Ótimo. — Pausa. — Aconteceu alguma coisa para você mudar de ideia?
Chloe contou o que havia descoberto sobre a agência de adoção e o lar temporário em que tinha ficado durante um mês e sobre a boneca que se chamava Emily.
Ele odiava perceber a dor na voz dela.
— Vamos descobrir a verdade.
— Como?
— Acho que precisamos conversar com a sua babá. — Cash se sentou na cama.
— Babá?
— Emily estava com a babá quando desapareceu.
— Como você sabe?
— A sra. Fuller comentou um dia. E, desde que você chegou aqui, estou pesquisando na internet. Também li alguma coisa, alguns anos atrás, num arquivo que eles têm. E há outras coisas nesse arquivo. Tipo relatórios policiais e outras coisas. Vou tentar ver o arquivo novamente. Mas tenho que esperar quando eles não estiverem em casa. Mas, assim que eu desligar, vou ver quantas agências de adoção existem em Fort Landing. É uma cidade maior que Joyful. Pode existir mais de uma.
— São três — Chloe disse. — Eu chequei. Mas apenas uma estava aberta na época em que fui adotada, a Agência de Adoção New Hope, mas isso não significa que seja essa.
— Tem razão. — Ele encostou na cabeceira da cama. — Vou começar tentando encontrar a babá.
— Como?
— Internet.
— Encontrei minha certidão de nascimento. Ela diz que nasci aqui. — Cash a ouviu suspirar e o suspiro se parecia muito com o da sra. Fuller que o tocava tanto.
— Vamos descobrir.
— Você diz isso como se acreditasse que vamos mesmo descobrir.
— Eu acredito. Sou bom em descobrir coisas. Resolver quebra-cabeças. — Cada golpe é como um quebra-cabeça. Você só tem que descobrir quais peças juntar. Ele fez uma pausa. — Trabalho amanhã, mas saio às cinco. Você quer me encontrar? Podemos comer alguma coisa e conversar.
— Eu não posso. Meu pai está vindo para a cidade.
Será que ela só está dizendo isso porque não quer me ver?
— E domingo? — Ele apertou mais o celular na mão.
A linha ficou muda.
— Preciso pedir à minha mãe, mas não deve ser problema.
Ele se lembrou do que Chloe havia dito sobre o pai.
— Você vai ver seu pai numa boa?
— Não. Mas não importa... Não tenho escolha.
— Você sempre tem escolha — disse Cash. Até ele tinha escolha quando estava com o pai.
— Nenhuma que não causaria problemas.
— Já ouviu dizer que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos?
— Então você é aquele que quebra ovos enquanto eu sou uma pessoa que põe panos quentes. Não tenho certeza se somos compatíveis.
Ele riu.
— Eu só quebro ovos quando não há outro jeito.
— Quando não houve outro jeito? — Chloe perguntou.
— O que você quer dizer?
— Quando foi a última vez que você teve que se defender? Além daquele dia em que brigou para defender o garoto, no primeiro dia de aula.
— Esta noite — ele disse, depois se arrependeu.
— O que aconteceu?
Cash concluiu que poderia contar parte do que havia acontecido.
— A sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina.
— Por quê?
— Ela acha que me sobrecarrega por causa das aulas na faculdade e o ensino médio.
— Você está tendo aulas numa faculdade?
— Sim. Nas quartas-feiras à noite. Só para ajudar.
— Isso parece muita coisa mesmo — ela diz.
— Eu dou conta. Além disso, não é só por causa do tempo. Ela tem receio que eu mude de ideia e decida trabalhar na oficina e não ir para a faculdade.
— Mas, se você já está fazendo aula numa faculdade, por que ela tem esse receio?
— Porque também estou cursando Tecnologia Automotiva e não estou me candidatando para uma faculdade chique.
— Para que faculdade ela quer que você vá?
— Rice ou Harvard, pelo que sei.
— E por que você não quer ir para uma boa faculdade?
— Porque tem que ser uma faculdade estadual que a minha bolsa cubra.
No momento em que ele disse isso, desejou ter ficado quieto. Era como se a bolsa fosse uma esmola.
— Você tem uma bolsa do governo?
Cash hesitou.
— Por causa do programa de adoção.
— Isso é bom — disse Chloe.
— Sim — ele mentiu. E continuava dizendo a si mesmo que, quando concluísse a faculdade, reembolsaria o Estado também. Durante toda a vida, o pai dele não tinha feito nada a não ser lesar as pessoas. Cash tinha lesado muitas pessoas. Ele queria compensar isso.
— Você tem planos para a faculdade? — Cash perguntou para mudar de assunto.
— Universidade de Houston, provavelmente.
— Estou pensando nessa também. Mas por que “provavelmente”?
— No momento não posso deixar minha mãe do jeito que está.
— Mas ela já superou o câncer.
— Ela não superou o divórcio.
Ele se lembrou de Chloe dizendo que a mãe estava deprimida.
— Ela está muito mal?
— Depende de quando você pergunta. Hoje mais cedo, eu diria que ela estava realmente muito mal. Esta noite, estava melhor. Pelo menos está recebendo ajuda agora.
— Terapia?
— Sim. Hoje foi a primeira vez que ela foi. Espero que ajude.
— Sim. — Cash não colocava muita fé em terapeutas ou psiquiatras. Ele tinha sido forçado a fazer terapia por um ano, quando foi para um lar temporário. A única diferença era que havia aprendido a esconder melhor suas emoções.
A terapeuta não cansava de dizer: Nada do que você fez foi culpa sua. Mas era, sim. Ele sabia que estava errado quando fazia.
— Ela conseguiu um emprego, então espero que também ajude. Mas só começa daqui a algumas semanas.
— Que tipo de trabalho ela faz?
— Enfermagem.
— É isso que você vai cursar na faculdade? Medicina? — E se ela fosse a filha dos Fuller, não seria apropriado?
— Não. Estou pensando em Jornalismo. Ou Literatura Inglesa.
— Você quer ser escritora?
— Não. Minha mãe costumava escrever. Ela escreveu vários livros. Teve um editor numa grande editora de Nova York que pediu para ela fazer uma revisão no último que escreveu, mas então meu pai resolveu se separar e ela parou. Graças a Deus, ela não parou de ler livros.
— Você gosta de ler? — ele perguntou.
— Sim.
— O que você lê? Histórias de amor? — Cash perguntou para provocar.
— Claro! — Chloe riu. — Estou lendo um de ficção fantástica no momento. E você, lê?
— Eu costumava ler mais quando não estava trabalhando. Mas, gosto, sim.
— O que você leu nestes últimos tempos?
— Eu li Outsiders — Vidas sem Rumo e alguns do Stephen King durante o verão. Tentei ler Cinquenta Tons de Cinza, mas...
— Você leu Cinquenta Tons de Cinza? — Ela riu um pouco mais. — E você me recrimina por ler histórias de amor?
16
A risada dela fez o peito de Cash instantaneamente parecer mais leve.
— Eu disse que tentei ler. Não consegui terminar o primeiro capítulo.
— Não consigo nem imaginar você comprando ou pegando esse livro emprestado na biblioteca.
— Não fiz nada disso — ele disse. — A sra. Fuller leu e um dia eu entrei na biblioteca deles e peguei. Você não leu?
— Não. — O tom dela era agudo, denunciando uma mentira.
— Mentira. Você leu, sim.
Ela riu com culpa.
— Ok, eu e minhas amigas estávamos curiosas.
— E o que você achou? — Cash reajustou o travesseiro atrás das costas.
— Eu sei por que você não passou do primeiro capítulo. O que você planeja fazer na faculdade?
Cash notou que ela tinha mudado de assunto.
— Provavelmente algo ligado à área de negócios. Ainda estou indeciso também. Ele fez uma pausa. — Então, o que mais você faz além de ler livros eróticos?
Chloe riu de novo.
— Não sei.
— Você gosta de correr ou algo assim?
— Só se alguém estiver me perseguindo.
Agora foi ele quem riu.
— Quero dizer, para manter a forma.
— Eu sei. Eu costumava jogar futebol.
— E você era a mais bonita do time. — Ele lembrou da foto de Chloe e de várias colegas jogando futebol de shorts e a parte de cima de um biquíni. Ela parecia incrível.
— Como sabe? Ah, sim, você me stalkeou na internet.
— Eu não stalkeei você. Pesquisei sobre você.
— Você tem perfil no Facebook? — Ele a ouviu digitar algo no computador.
— Não. Pelo menos não com a minha verdadeira identidade.
— Você tem uma conta falsa no Facebook? Mas não tem uma com a sua verdadeira identidade...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Porque... gosto de stalkear as pessoas na internet. — Era uma piada. Chloe não riu.
— Sério?
— Na outra escola, ouvi dizer que alguns alunos estavam falando sobre mim no Facebook. Eu quis ver se era verdade... anonimamente.
Ela não disse nada por alguns segundos, então:
— Você costuma correr?
— Eu tento. Mas, neste verão, nadei mais.
— Você faz parte de uma equipe de natação? — ela perguntou.
— Não. Os Fuller têm piscina. E eu vou muito à casa de veraneio deles, no lago.
— Você não pratica esportes?
— Gosto de assistir. Mas nunca joguei.
— Sério? Com o seu tamanho, acho que algum treinador já devia ter feito você jogar futebol americano há muitos anos.
— Eles preferem evitar estudantes que moram em lares temporários. Nós nos mudamos muito.
— Você também?
— O quê? — ele perguntou.
— Mudou-se muito, antes de morar com os Fuller?
Ele passou a mão no rosto. Por que ele havia mencionado o programa de adoção?
— Eles são a minha quarta casa.
— Foi ruim?
Não tão ruim quanto viver com meu pai.
— Na verdade, não.
— Quantos anos você tinha quando seu pai morreu?
Ele queria mudar de assunto, mas Chloe o acusara de fazer isso no parque.
— Tinha 11.
— Como... como o seu pai morreu?
Merda. Essa era a desvantagem de se aproximar de uma garota. Ela queria saber a história da sua vida.
A linha ficou muda.
— Você não precisa contar, se não quiser.
Ele quase disse “ótimo”, mas optou por:
— É uma longa história, e já está tarde.
— Sim. Melhor a gente desligar.
Cash a sentiu se afastando. Quando ele queria que Chloe se aproximasse.
— Ele morreu num acidente de carro. — Era verdade. Cash tinha batido o carro, mas a bala no peito do pai é que o matara.
— Você estava no carro com ele?
— Não.
— Sinto muito. — A emoção veio acompanhada de um pedido de desculpas. — Quando minha mãe teve câncer, eu estava com tanto medo de perdê-la... Não sei se conseguiria superar algo assim. Isso deve ter sido muito difícil pra você.
Cash odiava a compaixão que sentia na voz dela. Ele não merecia. E nem o vigarista do pai.
É sábado à tarde e estou na casa de Lindsey, ajudando-a a decidir o que vestir no seu encontro com David. Estou empolgada com a notícia de que estão saindo. E estou me esforçando para irradiar boas vibrações. Minha mãe ficou deitada o dia todo. Eu mal consegui tirá-la do quarto para comer.
Vê-la deprimida faz com que eu me sinta culpada por ter concordado em ver meu pai. Ah, sei que não é justo que ela me faça sentir dessa forma e, sinceramente, não acho que minha mãe queira que eu me sinta assim. Mas ela faz isso e eu me sinto culpada. Adicione a tudo isso o fato de que não estou ansiosa para ver meu pai e é compreensível que meu humor não esteja muito melhor do que o da minha mãe.
— Eu gosto mais dessa blusa azul — digo a Lindsey.
— Não é muito sem graça?
— Não, realça seus seios.
— Não mostra demais, não é? Não quero que ele pense que estou tentando levá-lo para o banco de trás do carro no primeiro encontro.
Eu solto uma risada.
— Essa blusa não diz “vamos saltar para o banco de trás?”. Ela diz “olhe pra mim”.
— E olhar para mim é bom, certo? — Ela franze a testa. — Não sei se estou pronta para isso.
— Você está pronta — eu garanto.
Ela me olha pelo espelho.
— Eu preferia que fosse um encontro duplo. Você não pode ligar para Cash e ver se vocês podem ir conosco? — Ela se vira.
— Eu não posso. Vou ver meu pai hoje à noite, esqueceu?
— Ah, que pena. — Ela franze a testa. — Foi mal.
— Eu também lamento... — Desabo na cama dela e juro que não vou começar a me queixar da minha vida. Já fiz isso o suficiente ontem à noite, quando conversamos depois do telefonema de Cash. Sandy, uma das minhas amigas antigas, só reclamava. — Além disso, eu ainda não estou saindo com Cash.
— Vocês vão sair no domingo. Além disso, você ficou com ele no balanço da varanda.
— É verdade. — Eu sorrio, ao me lembrar e, se eu pudesse só pensar nisso, em vez de em outras coisas, ficaria mais feliz. — Mas não sei se é um encontro de fato ou só uma reunião para descobrir se sou Emily Fuller.
Ela revira os olhos.
— Depois daquela mensagem que ele enviou sobre querer beijar você?
Sim, eu mostrei a ela a mensagem de Cash.
— Tem razão. Acho que você não é a única que está nervosa.
— Apenas rezo para que, se ele tentar me beijar, eu não pense em Jonathon. Ele me enviou um e-mail esta manhã. Me perguntou o que eu ia fazer no final de semana.
— Você não respondeu o e-mail, não é?
— Respondi, mas apenas para dizer que estava ocupada. Tive que deixar claro que não estou em casa chorando por causa dele.
— Ele perguntou o que você andava fazendo?
— Perguntou. Eu não respondi. — Ela sorri.
— Esqueça esse cara — eu digo. — Esta noite vai ser divertida.
Lindsey se deixa cair na cama.
— Será que devo contar a David meu segredo mais profundo e sombrio?
— Qual segredo?
— Que minha mãe é lésbica. Ou isso não é algo que se diga no primeiro encontro?
— Por que você precisaria contar a ele?
— Porque se Lola estiver aqui, ele pode descobrir como você descobriu.
— Você não sentiria essa necessidade de contar a ele se sua mãe fosse heterossexual. Então, por que contar só porque ela é homossexual?
— Porque nem todo mundo acha que isso é normal como você.
— Não acho que você precise fazer alarde sobre isso.
Ela sorri.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo. Por dizer todas as coisas certas. Pedi a Jamie para fazer isso e ela disse que ela e a prima iam à manicure.
— Não esquenta. — Não sei se Lindsey percebeu que ela acabou de me dizer que sou sua segunda opção. É uma droga ser a segunda opção de alguém. Mas, ei, é melhor do que não ser opção nenhuma.
— Você vai perguntar ao seu pai o nome da agência de adoção?
— Se eu conseguir encontrar uma maneira de abordar esse assunto na conversa...
— Por que simplesmente não pergunta?
— Porque não sinto vontade de explicar que eu posso ser uma criança sequestrada!
Lindsey passa a escova nos cabelos.
— Você realmente não se lembra de nada da sua vida de antes?
Eu conto a ela sobre a minha única lembrança com o vestido de princesa.
— E o sequestro? Quero dizer, deve ter sido traumático e você se lembraria dele.
— Eu não me lembro.
O medo toma conta de mim. Conto a ela sobre a foto com o machucado no rosto. Do medo inexplicável que sinto.
— Ok, isso é de arrepiar — diz ela.
— Sim.
— Você não precisa contar ao seu pai sobre a história do sequestro. Apenas diga que esteve pensando sobre a adoção.
— Sim. — Mas como eu disse a Cash, sou de pôr panos quentes, não de quebrar ovos. Por outro lado, nas últimas vezes em que conversei ou estive com meu pai, eu estava surtando. Mas a coisa toda do sequestro é diferente. É muito maior. E se eu descobrir que sou realmente Emily Fuller, não vai haver uma tigela grande o suficiente para recolher todos os ovos que vou quebrar.
Meu celular avisa sobre a chegada de uma mensagem. Achando que é de Cash, sinto uma emoção brotar no meu peito. Não é de Cash.
É da minha mãe.
Avise seu pai que não deve entrar em casa. Eu não quero vê-lo! E pergunte a ele por que não pagou o seguro do seu carro ainda.
Um pensamento insano me ocorre. Não sobre minha mãe, mas sobre meu pai. Sobre perdoar papai.
Talvez eu não seja capaz de perdoá-lo até que minha mãe esteja bem. Talvez eu não seja capaz de perdoar meu pai até que minha mãe o perdoe.
O que pode ser, tipo... nunca.
Isso parece errado, mas pode ser verdade.
Eu me reclino na cama de Lindsey.
— Odeio a minha vida.
Cash trabalhou até um pouco mais tarde e já eram seis horas quando foi trocar de roupa. O celular tocou e, esperando que fosse uma mensagem de Chloe, ele pegou o aparelho. Não havia mandado uma mensagem para ela ainda, com receio de que ela fizesse perguntas sobre seu pai novamente, mas decidiu que mandaria uma mensagem mais tarde.
Cash esperava que ela estivesse acordada quando ele fizesse outra ligação tarde da noite. Se não fosse para falar sobre o passado, ele gostava de conversar com Chloe. Ele sorriu ao se lembrar da conversa sobre Cinquenta Tons de Cinza.
Olhou para a tela do celular. Não era uma mensagem de Chloe. Era da sra. Fuller. Ele se encheu de pavor. Tinha saído de casa aquela manhã sem vê-la. Cash não tinha ideia de como ela reagiria ao seu comentário de que seria uma “péssima ideia” adotá-lo.
Ele leu a mensagem.
Tony e eu estamos com vontade de comer comida indiana. Quer se juntar a nós no Kiran's Café?
Ele queria recusar o convite, mas talvez ir jantar fora fosse mais fácil do que enfrentá-la em casa.
Ele mandou uma mensagem. Que horas?
Sete?
Certo.
Ela enviou o emoji de uma carinha sorridente. A sra. Fuller sempre mandava mensagens com muitas carinhas sorridentes. Cash sabia que era um sinal de que ela se importava com ele. Ele também gostava de recebê-las.
Como ainda faltava uma hora, decidiu dar uma corrida até a livraria. Conversar com Chloe sobre livros o deixara com vontade de ler um. Talvez ele encontrasse um livro de ficção fantástica sobre o qual pudessem conversar.
Quando saio do banheiro, depois de me arrumar para me encontrar com meu pai, minha mãe está enrodilhada no sofá, com um livro e Félix no colo.
Ela olha para mim.
— Você está bonita.
— Obrigada. — Tudo o que fiz foi pentear o cabelo e colocar rímel e brilho labial, mas eu sei que essa é minha mãe fingindo que está tudo bem, e eu agradeço. Consulto as horas e vejo que são quase seis e meia.
Inclinando-me, acaricio Docinho, que está abanando o rabo como se achasse que vamos sair para dar um passeio.
— Você quer que eu traga algo para você comer? — pergunto à minha mãe.
— Não! Não quero comer nada que seu pai tenha comprado. — Ela já não está fingindo que está tudo bem.
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Por que você não escreve? — sugiro.
— Talvez.
Aposto que ela não vai nem tentar. E provavelmente não vai comer também. Eu verifiquei e, até hoje, ela só tomou duas das suas bebidas nutritivas, no total. E a promessa de beber duas por dia? Juro, minha mãe parece ainda mais magra agora.
— Até mais tarde.
Pego a bolsa e saio, me sentindo culpada por deixá-la sozinha.
Sentada nos degraus da varanda, vejo uma picape parar em frente à casa ao lado. Então Jonathon, o cão sarnento traidor, sai do carro. Ele me vê e me cumprimenta com a cabeça. Aceno de volta, mas não de uma maneira amigável. Sei que Lindsey já saiu há trinta minutos.
Eu o ouço bater na porta e perguntar por Lindsey. Escuto a mãe dela responder.
— Ela saiu.
— Pode dizer a ela...?
A porta se fecha. Eu sorrio. A mãe de Lindsey também não gosta do cão sarnento traidor.
Ainda estou sorrindo quando ouço passos. Ah, merda!
Olho para a rua, rezando para ver o carro do meu pai chegando. Mas não.
Quando vejo, Jonathon está na minha frente.
— Você é a garota nova da escola, não é? Chelsea?
— Chloe — corrijo-o.
— Você e Lindsey não vão juntas para a escola?
— Sim. — Cadê você, pai?
— Você sabe onde ela está?
O que eu digo? O que eu digo?! Eu poderia dizer que ela saiu com um cara muito gato. Ou eu poderia...
— Não.
— Sabe com quem ela está?
O que eu digo agora? Vou optar pela verdade outra vez.
— Sim.
Ele faz uma careta.
— Mas não vai me dizer, certo?
— Não sou eu que tenho que dizer.
— Sabe, não sou um cara tão ruim quanto ela disse que sou.
Sei. Quer dizer, então, que você não pôs chifres nela?, eu penso, mas não pergunto.
Ele se inclina contra a cerca da varanda.
— De que cidade você veio?
— El Paso — digo, desejando que ele vá embora.
— Você gosta daqui?
— Não. — Quando olho para cima, ele está olhando para os meus peitos. Como se esse cara tivesse alguma chance comigo.
Ele esfrega a sola do sapato no degrau.
— Bem, já que não estou fazendo nada e você não está fazendo nada, quem sabe a gente possa...?
— Não. — O carro do meu pai para em frente à minha casa. Eu me levanto. — Tchau!
Quando entro no carro, a cabeça do meu pai está virada na direção de Jonathon, que fica nos encarando enquanto volta para a sua picape. Considerando que meu pai está dirigindo um conversível vermelho e tem cabelos espetados, Jonathon provavelmente acha que meu pai é meu namorado. Ai, credo!
— Quem é esse? — meu pai pergunta.
— Ninguém. — Esqueço minha antipatia por Jonathon e me defronto com a minha decepção em relação a meu pai. Ele precisa desistir desse cabelo espetado.
— Você já está namorando?
— Não. — Então eu me lembro de Cash. — Talvez.
— Não acha que é um pouco cedo?
Balanço a cabeça, discordando.
— Por que não nos apresenta? — Ele fala como um pai zeloso. Por que isso me irrita? Então percebo por quê. Meu pai perdeu o direito de falar comigo sobre garotos ou sobre sexo quando começou a transar com Darlene.
— Primeiro porque aquele cara não é meu namorado. Segundo, porque... deixa quieto. — Calo a boca. Eu não quero discutir.
Meu pai olha para mim e, pela expressão dele, posso ver que está pensando o mesmo que eu.
— É bom ver você. — Ele estende a mão e aperta a minha. — Faz muito tempo que não saímos juntos, só nós dois.
Se sentiu tanto a minha falta, por que não enviou flores na data certa ou não me ligou quando disse que ligaria? Eu engulo a pergunta. Hoje não vou quebrar ovos. Mas penso no comentário de Lindsey sobre fazer ao meu pai algumas perguntas “vagas” sobre a agência de adoção. Isso eu posso fazer.
Meu pai começa a falar.
— Procurei no Google restaurantes indianos em Joyful. Achei um, o Kiran’s Café. Que tal um frango na manteiga?
17
A caminho do restaurante, conversamos sobre assuntos neutros. O clima. O último livro que li. Ele está tentando conversar, mas os assuntos acabam tão rápido que tenho receio de que logo não tenhamos mais sobre o que conversar.
— Como estão Brandon e Patrick? — pergunto, me referindo ao primo do meu pai e o marido dele. Acho que esse é um assunto seguro.
— Não sei. Faz muito tempo que não vejo os dois.
— Por quê? — Eles costumavam ir em casa pelo menos uma vez por mês, além de passar os feriados conosco. Brandon, que é chef de cozinha, sempre se encarregava das refeições.
— Nós vivemos ocupados.
Quando diz “nós”, meu pai se refere a ele e a Darlene. Antes que eu possa me conter, meu próximo pensamento sai pela minha boca:
— Eles não gostam de Darlene? — Isso não deveria me deixar feliz, mas deixa. — Ou ela não gosta deles?
Essa possibilidade aumenta a minha angústia com relação ao meu pai. Como meus avós paternos morreram em um acidente de carro logo depois que meus pais se casaram, Brandon é o único parente que meu pai tem.
— Você não devia deixar Darlene acabar com a sua família. — Quer dizer que, mais uma vez, ele deixou que ela separasse a nossa família.
A expressão do meu pai muda.
— Não é bem assim. — A mentira fica evidente na voz dele.
Em alguns minutos, meu pai estaciona e entramos no restaurante impregnado com um aroma intenso de curry, cominho e açafrão. Meu estômago se contrai de fome, mas meu coração se contrai de dor. Sou transportada de volta a todas as vezes em que saí com meu pai no passado. Volto à época em que sair com ele era um dos meus programas favoritos. Nós ríamos. Falávamos de futebol. Discutíamos filmes. Ele perguntava sobre a escola, os meus amigos, a minha vida. Não como se estivesse checando o que eu andava fazendo, mas como se quisesse saber tudo sobre mim porque eu o interessava. Porque eu era importante para ele.
Sinto falta disso. Sinto falta dele. Do meu antigo pai. De como éramos antes. Um nó se forma na minha garganta.
Estamos sentados a uma mesa perto da porta. O garçom, um homem alto, mais velho e de ascendência indiana, nos entrega os cardápios. Noto que meu pai está olhando em volta como se estivesse confuso. Ele pega o cardápio, mas olha para o garçom.
— Este lugar não costumava ser a Pauline Pizzaria?
— Sim — diz o garçom. — Meu irmão comprou o ponto sete anos atrás.
— Foi o que pensei.
O garçom anota nossas bebidas e se afasta.
Meu pai olha para mim.
— Sua mãe trabalhava aqui. Eu costumava comer pizza aqui toda sexta-feira à noite, porque um funcionário que trabalhava às sextas-feiras gostava dela. — Há uma expressão suave no rosto dele, como se a lembrança fosse boa; então, de repente, ele pisca e o ar de felicidade desaparece. Meu pai abre o cardápio, como se quisesse se esconder atrás dele. É só uma suposição, mas juro que ele parece sofrer ao se lembrar da minha mãe. Ou talvez ao se lembrar do quanto a está fazendo sofrer.
Por outro lado, posso jurar que meu pai não sabe quanto ele magoou minha mãe. Ou quanto me magoou.
É muito egoísmo da minha parte querer que ele sofra também? Talvez seja normal, mas parece errado. Tudo parece errado. Estar aqui com ele parece errado.
Ele baixa o cardápio.
— Você quer pedir o de sempre? Frango na manteiga e cordeiro vindaloo, e dividimos os pratos?
— Tudo bem — eu digo.
— Quer mais alguma coisa?
— Talvez — eu digo, pensando que, quanto mais comida tivermos para comer, menos tempo teremos para conversar.
O garçom traz nossas bebidas.
— Prontos para pedir?
Meu pai olha para mim.
— Vamos pedir esses dois pratos primeiro e, depois, se você quiser mais alguma coisa, pedimos também, ok?
Eu concordo. Meu pai faz o pedido.
Quando o garçom se afasta, voltamos a olhar um para o outro.
— Na escola, vai tudo bem? — ele pergunta.
Acho que meu pai quer que eu diga que vai tudo bem, assim pode se sentir menos culpado.
Estou sobrevivendo. Aos trancos e barrancos.
Não vou amenizar a culpa dele.
Ele me fala que encontrou Kara e Sandy na loja de CDs. Como meu pai só entrava na loja de CDs se eu implorasse, acho que ele estava com Darlene. Imagino o choque das minhas antigas amigas ao ver Darlene. Eu me pergunto por que nenhuma das duas me mandou uma mensagem falando sobre isso. Elas provavelmente acharam que isso ia me deixar chateada. Constrangida. Elas têm razão.
— Estou com fome — diz meu pai quando um garçom diferente passa por nós com dois pratos de comida.
— Eu também — minto. Não sei se vou conseguir comer. Todos aqueles aromas que antes me inspiravam sentimentos de amor agora me provocam náuseas.
Ficamos em silêncio outra vez. O telefone do meu pai toca avisando da chegada de uma mensagem. Ele lê. Eu me pergunto se é Darlene. Não. Ainda não tenho fome. O barulho do restaurante aumenta. Garfos batendo nos pratos. Ruídos de refeições sendo preparadas na cozinha. O burburinho das conversas. Ouço a recepcionista perguntando para quantos é a mesa.
— Três. Obrigado — responde o cliente. A voz me parece familiar.
Olho na direção da porta. Perco o fôlego. Cash está entrando com um homem e uma mulher.
A mulher do vídeo, só que mais velha. O homem tem cabelos escuros. E olhos castanhos. O mesmo tom castanho dos meus olhos.
Analiso o rosto dele.
Depois o rosto dela.
Eles são meus pais? Tenho o DNA deles? Fui arrancada da minha família?
Parte de mim quer correr até eles, outra parte quer fugir.
Cash deve ter sentido o meu olhar, porque olha na minha direção e arregala os olhos, como quem diz, “Ah, merda".
Abro o cardápio para cobrir meu rosto.
— Por aqui — ouço a recepcionista dizer. Os passos se distanciam. Meu coração bate forte no peito. Ouço o sangue fluindo nos meus ouvidos.
Abaixo o menu e vejo Cash tentando fazer os Fuller se sentarem de costas para mim.
O pânico sobe até o meu peito como um líquido quente. Meus pulmões recusam o oxigênio.
— Você encontrou outra coisa que queira pedir? — meu pai pergunta.
Eu desvio os olhos para a mesa de Cash e depois para a porta.
— Não vai dar... — digo, sem querer, em voz alta.
— O que não vai dar? — ele pergunta.
Eu me levanto, não tão rápido a ponto de chamar atenção, e sigo na direção da porta.
— Chloe? — meu pai me chama. Não olho para trás.
Abro a porta. O ar quente me envolve. Ainda não consigo respirar.
— Merda!
Vou até o carro do meu pai e me encosto no capô. Meu coração está batendo na garganta. E então a ficha cai. Eu tenho que saber. Tenho que saber se eles são meus pais. Tenho que saber se não fui simplesmente abandonada, como se não fosse importante. Como se não fosse amada. Aperto os punhos.
Então ouço passos. O medo dá um nó no meu estômago. Será que eles me viram? Será que tudo vai acontecer agora? Por mais que eu queira conhecê-los, estou com medo. Ergo os olhos. É meu pai.
Seus passos devoram a calçada, na minha direção. Ele me olha com a testa franzida.
— Que diabos aconteceu? — ele me pergunta. Seus ombros estão tensos, sua expressão é carregada; a frustração é uma nuvem ao redor dele.
A raiva dele desperta a minha. Minha mente dispara e a única coisa em que consigo pensar é repetir o que eu já disse.
— Não vai dar.
— Não vai dar para fazer o quê?
— Ter um encontro de pai e filha como se tudo estivesse bem quando não está. — No segundo em que a desculpa sai da minha boca, não é mais uma desculpa. É a mais pura verdade. — Você me abandonou. Você não está nem aí comigo. — Sinto-me abandonada, como na época em que tinha 3 anos. Então, do nada, ouço uma voz, “Seu pai e sua mãe não querem mais você". De onde, diabos, vem essa voz? Lágrimas enchem meus olhos. — Você pode abrir o carro? Por favor!
A expressão do meu pai endurece.
— Eu me divorciei da sua mãe, não de você!
— Não é o que parece — rebato.
Ele fica ali, ainda com raiva, ainda frustrado e ainda o homem que culpo por me causar tanta dor. Como ele pode não se envergonhar de si mesmo?
— Vou lá pagar o jantar. — Ele abre o carro.
Deslizo para o banco do passageiro e me encolho para que ninguém me veja caso saia do restaurante. É muito estranho que eu esteja aqui fora discutindo com meu pai enquanto meu pai e minha mãe de verdade podem, muito bem, estar dentro do restaurante.
Começo a suar, mas não me importo. Fico sentada ali, com as janelas fechadas e sentindo calor. Então sinto novamente. O medo. Quero fugir. Estou com medo.
Fecho os olhos, pressiono a cabeça contra o encosto do banco e tento respirar. O tempo passa. Um minuto. Dois. Três.
Cinco.
Oito.
Que diabos meu pai está fazendo? Ah, Deus. Será que os Fuller me viram e foram confrontar meu pai?
Meu celular toca e chega uma mensagem. Pego o aparelho. É Cash.
Ele: Está tudo bem?
Eu: Não. O que está acontecendo?
Ele: Seu pai está pegando a comida para viagem.
Eu: Eles me viram?
Ele: Não.
Ouço a porta do carro se abrindo. Sinto outra onda de medo. Eu a reprimo. Meu pai, parecendo chateado, me entrega uma grande sacola branca.
Ele se senta atrás do volante, mas não liga o carro.
— Você é minha filha. Minha garotinha. Não posso perder você, Chloe!
Lágrimas enchem meus olhos e eu me viro para a janela. O aroma de comida indiana invade o carro, o cheiro dos meus encontros com meu pai. De repente, passo a não gostar mais daquele cheiro.
Ele começa a falar novamente.
— Sei que eu deveria ter ligado e estraguei tudo. E, sim, eu só me lembrei tarde demais que era a data da sua adoção. Por isso suas flores não chegaram até você a tempo. Eu sou humano. Não sou perfeito, Chloe.
Meu peito queima de raiva, mágoa, desespero. Um pouco por causa de hoje. Um pouco por causa do passado. Ainda não consigo olhar para ele, mas digo:
— Você costumava ser perfeito. Você costumava se lembrar das coisas. Eu costumava ter importância para você.
Eu o ouço bater a mão no volante e dizer um palavrão de cinco letras. Depois de um segundo, ele diz:
— Você ainda é importante para mim.
O silêncio paira entre nós, dentro do carro. Tudo que ouço somos nós dois respirando e meu coração se partindo.
— Muitos pais se divorciam — diz ele como se isso fosse justificativa. — Pais e filhas no mundo todo continuam se dando bem. Por que nós não podemos?
A pergunta paira no ar e a resposta surge dentro de mim como o vulcão que ele e eu construímos para o meu projeto de ciências, na quinta série.
— Acho que a mãe delas não teve câncer! — Minha voz soa estridente. — O pai delas não as deixou cuidando de tudo. Tendo que lidar com a mãe vomitando por semanas a fio, enfrentando o pensamento de que a mãe estava morrendo!
As palavras jorram da minha boca. Não consigo contê-las. Estou quebrando todos os ovos. Não me importo. Parece que, se eu não disser tudo isso, algo dentro de mim vai explodir.
— Mamãe teve câncer! Mas é como se eu também tivesse tido. Fui eu quem preparou sopa de tomate e sanduíches de queijo grelhado para ela, porque ela não conseguia comer outra coisa. Fui eu quem se sentou no chão do banheiro com ela chorando, porque o cabelo estava caindo. Fui eu quem teve de ser forte quando não me sentia forte. Eu, pai! — Bato no peito. — Eu! Droga! Ela precisava de você. Eu precisava de você! Mas você estava muito ocupado para se importar... tingindo o cabelo, comprando um novo guarda-roupa e transando com a Darlene!
Meu pai segura o volante e desvia os olhos de mim. Respira fundo. Segura o ar. Segura mais um pouco. Então olha para mim, novamente. Eu vejo tudo nos olhos dele. Culpa. Dor. Até amor. E isso é o que mais dói.
— Eu... Eu sinto muito. Eu não... Eu fiz tudo errado. Fiz mesmo, querida.
Eu respiro com dificuldade. Estou instável. Todo meu mundo está instável.
Meu pai liga o carro e acelera. Meu colo está quente por causa das caixas na sacola. O cheiro impregna o carro. Quero jogar tudo pela janela. Nunca mais vou comer comida indiana outra vez.
Ele dirige em direção à minha casa. Entra no meu bairro. Mas não vira na minha rua.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Não sei. Mas não posso deixar você sair deste carro até...
— O quê? — pergunto.
Eu o ouço engolir em seco.
— Até que... me perdoe. — A voz dele falha.
— Então vamos ficar neste carro por muito tempo! — Digo a mim mesma para não me sentir mal por ele estar sofrendo.
Ele vai para o parque. O mesmo ao qual Cash e eu fomos quando ele me contou sobre Emily.
Estaciona sob um poste de luz.
— Chloe, eu não sei o que eu estava pensando. Na verdade, eu não estava pensando. Você estava crescendo, sonhando com a faculdade e com garotos. Sua mãe só pensava em escrever, sonhando com uma nova carreira. E eu... Eu não tinha sonhos. Eu me sentia velho e cansado. — Ele respira fundo. — Então conheci Darlene e... — Ele para de falar.
— E você a amou mais do que amava mamãe e a mim?
Ele respira.
— Não. Mas não há desculpa para o que eu fiz. Eu vejo isso agora. É tão assustadoramente claro. Eu fui um idiota. Não mereço o seu amor. Não mereço o seu perdão. Mas não posso perder a minha garotinha. Por favor... me perdoe.
A dor dele é tão real que eu a sinto. Fico sem falar por quase um minuto, porque não sei o que dizer, mas depois as palavras jorram da minha boca.
— Eu não me recusei a ver você. Mas perdoar não é nada fácil. — Eu engulo. — Ainda te amo, mas às vezes preferia não amar.
Ele balança a cabeça, como se entendesse.
— O que posso fazer para ajudar? Faço qualquer coisa. Me diga. Sua mãe precisa de dinheiro?
— Eu... acho que não. Mas ela me disse para perguntar por que o seguro do meu carro não está pago.
— Não está pago? — ele pergunta.
— Ela disse que não.
— Mas Darlene disse... Vou averiguar. O que mais posso fazer?
— Nada. — Ouvir o nome de Darlene me deixa com raiva de novo.
Meu celular toca com a chegada de outra mensagem. Eu não olho. Deve ser Cash.
Ficamos sentados em silêncio, no carro, sentindo o calor.
— Trouxemos você aqui no dia em que a buscamos — meu pai diz.
Eu olho para ele, sem entender. Ele continua:
— Quando pegamos você na agência, fomos ver seus avós e depois viemos aqui. Eu coloquei você no balanço. Lembro-me de pensar em como você era delicada. Tão pequena, mesmo não sendo mais um bebê. Eu estava com medo, sabendo que, a partir daquele momento eu era responsável por cuidar de você. Coloquei você no balanço, mas estava com medo de empurrar com força demais e você cair. Você parecia assustada. Eu queria fazer alguma coisa, qualquer coisa para provar a você que eu era um cara legal. — Ouço a voz dele ficar embargada. — Eu me apaixonei por você logo de cara. Jurei que nunca deixaria ninguém machucá-la e agora eu sou o idiota que está te machucando. Eu me odeio por isso.
Eu não digo nada.
— Sei que vai levar um tempo para você me perdoar, mas não vou desaparecer da sua vida. Eu amo você — ele diz.
Sei que parece loucura, mas, mesmo depois de tudo o que aconteceu, nunca duvidei que meu pai não me amasse. Eu simplesmente não consigo entender como ele pode ter me amado e feito o que fez.
Sei que ele espera que eu responda. Que eu diga que o amo. Mas eu já disse isso uma vez. É tudo o que posso fazer.
18
— Chloe? — Meu pai pega a minha mão. O toque me provoca um choque de dor. Eu quase me afasto, mas não faço isso porque sei que vou magoá-lo.
Nós ficamos sentados ali. Lembro-me do que eu queria perguntar a ele esta noite.
— Qual era o nome da agência de adoção?
— O quê?
Tiro a minha mão da dele.
— O nome da agência de adoção. Era em Fort Landing, não era?
— Sim. Acho que era... New Hope ou algo assim. Por quê?
Dou de ombros.
— Só curiosidade.
— Você está querendo...
— Não — me apresso a dizer. — E não diga nada à mamãe. Tenho medo que ela fique chateada.
— Não vou dizer nada.
Depois de outros segundos de silêncio, ele abre a porta do carro.
— Vamos lá? — diz ele.
— Onde?
— No balanço? Você costumava querer que eu te balançasse o tempo todo.
— Não — eu digo.
— Me deixe fazer isso... Você me disse uma vez que balançar era tão bom quanto voar.
Quase volto a recusar o convite, mas me lembro de quanto ele parecia chateado alguns minutos atrás, então resolvo sair do carro. Está escuro, mas a lua está cheia e brilhante. A noite está tão silenciosa que ouço nossos passos na calçada. Caminhamos até os balanços mais altos. Cada um se senta em um, deixando um espaço entre nós. Ele parece grande demais para estar num balanço. Eu me sinto muito grande. Mas a mágoa entre nós, de alguma forma, parece menor.
Eu balanço. Pernas para trás. Pernas para a frente. Contemplo a grande bola prateada no céu, as estrelas brilhantes. O movimento, o vaivém, parece de alguma forma catártico. A sensação é de que estamos voando.
Uma lufada de ar passa por mim quando meu pai pega impulso. Enquanto ele avança, eu recuo. Não estamos no mesmo ritmo. Percebo que pode demorar um pouco até que a minha relação com meu pai volte a ser como antes.
Eu não sei quando conseguirei perdoá-lo, mas essa é a primeira vez que sinto o arrependimento dele. Isso não resolve nada. Mas é um começo. Talvez nunca mais seja como antes, mas espero que encontremos um novo ritmo, um novo relacionamento entre pai e filha que não cause mágoas.
Acho que quebrar ovos pode ter suas vantagens.
Quando entro em casa, não sinto cheiro de comida vindo da cozinha. Minha mãe não preparou o jantar. Vou até o quarto, esperando que ela esteja acordada.
Ela está. Deitada no sofá, lendo. Não está escrevendo. Eu fico ali, lembrando-me de como me senti quando vi a sra. Fuller, como se tivessem me roubado alguma coisa — o amor da minha mãe. No entanto, eu tenho uma mãe. E por mais relapsa que tenha sido neste último ano, ela me ama. Eu sei disso. E eu a amo.
Ela ergue os olhos e de repente me sinto culpada. Culpada por ter sentido que ela não bastava, culpada por ter me queixado ao meu pai por ter de cuidar dela. Sim, eu sou uma cretina. Foi horrível para mim, mas não tanto quanto foi para ela. E, se fosse eu que tivesse adoecido, ela faria a mesma coisa por mim. Só que ela nunca teria reclamado. Meu peito se aperta.
Pego o meu celular.
— Você quer de quê?
— O quê?
— Estou pedindo uma pizza para nós.
— Pensei que você tinha saído com seu pai para jantar...
— Eu não comi nada — digo.
— Por quê? — ela pergunta.
— Estava sem apetite.
— Vocês discutiram? — Ela se endireita no sofá, como se estivesse se preparando para ficar com raiva.
— Quero a de lombo canadense com abacaxi — minto, porque sei que ela adora. — Um pouquinho doce e um pouquinho salgada. Está bom para você?
— Sim. Sobre o que foi a discussão?
— Você quer salada?
— Você não vai me contar?
— Você sabe o que acho que devemos fazer? — pergunto.
— O quê? — ela diz parecendo um pouco frustrada.
— Encomendar a pizza e depois dar outra chance para aquele filme que você queria assistir.
Ela faz uma careta.
— Era um pouco forte...
— Talvez. Mas o humor às vezes é um pouco forte. E nós duas precisamos rir.
— Você já viu?
— Sim. Mas quero ver de novo.
— Com quem? Com quem você viu aquele filme?
Eu franzo a testa.
— Promete que não vai ficar brava?
— Alex? — Como eu não nego, ela parece chocada, mas não muito brava.
— Sim. E nós dois rimos muito. E você está precisando rir também. Então vamos comer a pizza e assistir ao filme. E vamos rir das piadas de camisinha. Ok?
Ela parece surpresa com o meu jeito de falar, meio autoritário.
— Acho que não tenho escolha.
Lembro-me de Cash dizendo: Você sempre tem escolha. Mas, para minha mãe, essa é a escolha certa. E fico feliz que ela não esteja discutindo comigo. Já discuti o suficiente esta noite.
Quando Cash e os Fuller chegaram em casa, ele queria ir direto para o quarto.
— Acho que vou ler um pouco — disse a sra. Fuller, subindo as escadas, rumo à suíte principal.
Quando Cash começou a subir para o andar de cima, ouviu o sr. Fuller dizer:
— Cash, pegue duas cervejas na geladeira e vamos conversar aqui fora.
O quê?
— Cerveja?
— Sei que você já ficou bêbado antes.
— Eu não bebo tanto assim. — Ele já tinha visto o pai biológico beber demais e não tinha nenhuma vontade de fazer o mesmo.
— Eu não iria oferecer uma a você se achasse que bebe demais. Vou esperar aqui fora.
Cash pegou duas Bud Lights.
— O que eu fiz? — perguntou, com o palpite de que aquela pergunta tinha a ver com o comentário mal-humorado que soltara como resposta à sugestão de ser adotado.
— Obrigado por ir jantar conosco. Susan estava com receio de que você não fosse.
O sr. Fuller torceu a tampa da cerveja. Cash fez o mesmo.
— Ela te ama. — O sr. Fuller levantou a cerveja e deu uma golada.
— Ama até demais... — Cash tomou um gole.
— Ninguém pode amar demais — disse o sr. Fuller.
Cash discordava.
— Esta conversa é porque ela me disse que queria me adotar, não é?
O sr. Fuller baixou a cerveja.
— Nós não entendemos. Por que você não quer?
— Vou fazer 18 anos daqui a seis semanas. Não preciso de ninguém cuidando de mim.
— Todo mundo precisa de uma família, Cash.
Não, não é verdade.
— Olha, não é que eu não seja grato ao que vocês fazem por mim.
— Nós sabemos disso, Cash. É por isso mesmo. Você é grato. Nós temos certeza. E, tirando as briguinhas por aí, você é um bom garoto. Até suporta as regras de Susan... e algumas são ridículas! E eu sei que é porque você gosta dela. É por isso que não entendo por que você não quer a adoção.
Cash encolheu os ombros.
— Eu não sei o que dizer. Só não acho necessário.
O sr. Fuller tomou outro gole de cerveja.
— Você sabe do que ela tem medo?
— Não. — Cash girou a garrafa gelada nas mãos.
— Que, depois do seu aniversário, você arrume suas coisas e vá embora e nós nunca mais vejamos você. E... Caramba! Ela ainda sofre porque perdeu a filha. Não pode perder o filho.
A dor apertou o peito de Cash. Por isso ele esperava que Chloe fosse Emily.
— Não pretendo me mudar antes de me formar.
— E depois? — perguntou o sr. Fuller.
— Eu preciso ser eu mesmo.
— E quando tentamos fazê-lo ser algo que você não é?
— O tempo todo — disse ele, num tom firme. Você quer que eu seja seu filho. — Você ficou chateado quando me inscrevi em Tecnologia Automotiva. Você quer que eu vá para uma faculdade chique. E a sra. Fuller quer que eu pare de trabalhar na oficina. O que eu não vou fazer.
— É errado da nossa parte querer que você vá para uma faculdade melhor? Você é tão inteligente, Cash! Você tem notas mais altas do que eu e Susan tínhamos. Você pode ser o que quiser. Por que quer ser mecânico?
— Não há nada de errado em ser mecânico. E eu vou para a faculdade, só não vou fazer o que você quer.
— Mas nós temos dinheiro...
— Eu consegui uma bolsa! — Cash se levantou.
— Cash, filho, por favor, sente-se.
Eu não sou seu filho.
Ao ver que Cash não faria isso, o sr. Fuller continuou:
— Estou implorando a você, não a magoe mais do que ela já foi magoada.
— Estou tentando não fazer isso. — Cash disparou para o andar de cima, procurando não bater a porta do quarto com muita força.
No quarto, o celular tocou. Uma mensagem de Chloe. Ele tinha enviado uma mensagem para ela mais cedo e perguntado se poderiam conversar.
A resposta dela: Esta noite não posso. Vamos conversar amanhã.
— Merda! — Cash jogou o aparelho na cama. Ele bem que precisava de uma distração. Precisava rir um pouco. Precisava ouvir a voz suave dela. Queria provocá-la mais sobre a leitura de Cinquenta Tons de Cinza e contar sobre o livro que comprara.
Ele queria...
Ele queria...
Ele queria...
Eram onze horas quando fui dormir. Minha mãe e eu rimos muito com o filme. Acho que foi um bom filme, mas na verdade ri mais de minha mãe do que de qualquer outra coisa. Agora não consigo dormir. Nada mais parece tão engraçado. Continuo vendo os Fuller na minha frente. O rosto dela no restaurante. O rosto dele. Os olhos dele. O homem que poderia ser meu pai.
Fico me perguntando se sou Emily. E se eu sou, o que seria da minha vida se eu não tivesse sido sequestrada e levada para longe da minha verdadeira família? Na outra vida, eu ainda seria eu? Como eles ainda são casados, eu teria sido poupada da tristeza causada pelo divórcio dos meus pais? Da angústia causada pelo câncer da minha mãe? Eu teria ido para uma escola particular e agora estaria planejando ingressar em uma das melhores faculdades do país? Quem eu seria se não tivesse crescido achando... achando que fui abandonada? Que fiz algo de errado. Até que ponto minha vida teria sido melhor?
Isso faz com que eu me sinta culpada novamente. Como se querer respostas, querer saber se meus verdadeiros pais me amavam, fizesse de mim uma filha ingrata aos olhos dos pais que me adotaram.
Afastando esse pensamento, começo a recapitular todas as coisas que eu disse para o meu pai. Tudo que eu disse é verdade, mas eu me lembro das lágrimas nos olhos dele, da dor que minhas palavras lhe causaram. Mesmo sabendo que ele mereceu, não me parece certo fazê-lo sofrer.
O pensamento mais absurdo me ocorre. E se o meu pai sofresse um acidente a caminho de casa? E se eu o perdesse! Lembro-me dele dizendo que me ama, enquanto estávamos sentados no carro. Ele precisava ouvir que eu também o amo, mas eu não disse nada. E se aquela foi a última chance que tive de dizer isso?
Eu sei, não devia pensar em tragédias como essa, mas penso assim mesmo, e essa bola de emoção — de tristeza e de uma culpa que eu não deveria sentir — fica represada no meu peito, como um grande elefante cor-de-rosa.
Pego o celular para mandar uma mensagem para o meu pai. Então percebo que ele não está na casa dele, percebo que a casa dele era minha e agora é a casa de Darlene. Jogo o celular longe e fecho as mãos em punho.
Penso em escrever uma mensagem para Lindsey, mas tenho certeza de que ela ainda está fora com David.
À meia-noite, pego o celular para mandar uma mensagem para Cash. Quero contar a ele que descobri o nome da agência de adoção. Quero alguém para me dizer que eu não deveria me sentir desleal por precisar de respostas. Ou talvez eu só queira conversar. Com ele. Ontem à noite, nossa conversa foi divertida. Me fez esquecer como a minha vida está bagunçada.
Não importa que ele esteja ajudando a descobrir se sou uma criança sequestrada. Não importa, por causa da provocação, do flerte, do desejo de saber mais sobre ele. Isso é divertido. É normal.
Eu preciso de mais coisas normais.
Começo a mandar uma mensagem para ele, mas o imagino dormindo em sua cama. Até imagino-o sem camisa. Nunca o vi sem camisa, mas posso imaginar como seria bom.
Nesse momento, meu celular toca, avisando sobre a chegada de uma mensagem. Levanto da cama num salto e pego o celular.
É dele. Está acordada?
Eu: Sim. Quer conversar?
Ele: Não.
Eu: Não...?
Ele: Quero ver você. Estou aqui fora, em frente à sua casa.
Eu: Em frente à minha casa? Agora?
Eu corro para a janela. Meu coração dispara.
Eu vejo o jipe dele. E mais do que tudo, quero ver Cash.
19
Eu me viro para ir até a porta, mas ouço o velho assoalho de madeira rangendo embaixo dos meus pés descalços. Paro e percebo que estou vestindo apenas shorts e uma camiseta combinando.
Estou decente?
Sim. Embora esteja sem sutiã, a blusa não é justa.
Meu próximo pensamento é se minha mãe está me ouvindo.
Corro de volta para a janela.
Não tem tela. Estou prestes a destrancá-la quando meu celular tocar novamente.
Ele: Isso significa que você não quer me ver?
Eu: Estou abrindo a janela.
Ouço a porta do jipe abrir e fechar, e vejo Cash. O peso no meu peito diminui como neblina se dissipando.
Ele parece tão lindo, caminhando em direção à minha janela... Em direção a mim.
— Tenho medo de acordar minha mãe, se abrir a porta da frente — sussurro.
Ele olha para cima.
— Você quer que eu entre?
— Não, eu vou sair. — Olho para baixo. É apenas uma queda de um metro de altura. Considerando que tenho um metro e setenta de altura, não é nada. Coloco o tronco para fora da janela, monto no parapeito, depois me viro e coloco a outra perna para fora. Estou inclinada para a frente, sentada na janela. Tudo que preciso fazer é saltar.
— Eu pego você. — As palavras dele soam tão doces. Eu quero que ele me pegue.
Cash estica a mão e eu salto. As mãos deslizam para baixo da minha blusa de pijama. Sinto o toque dele na minha cintura nua, e é tão bom, tão quente, tão doce. Eu instantaneamente sinto borboletas no estômago.
Quando coloco os pés no chão, recupero o fôlego, não por causa do salto, e sim em razão do toque de Cash. Ele me puxou para mais perto ou eu é que me aproximei?
Nós nos beijamos. Os lábios macios de Cash deslizam sobre os meus. As mãos dele descansam na minha cintura, e seus polegares fazem pequenos círculos nas minhas costas, logo acima da minha cintura. Minhas mãos se movem para a cintura dele.
Eu me inclino mais para perto. Meus seios, sem sutiã, estão comprimidos contra o peito sólido dele. Uma emoção, um doce formigamento, toma conta de mim.
— Uau. — Ele se afasta.
— Sim. — Eu sorrio. — Eu queria mandar uma mensagem para você.
— Por que não mandou?
— Achei que estivesse dormindo.
— Não consegui dormir — ele diz.
— Nem eu.
— Noite ruim? — ele pergunta.
— Sim. E você?
— Sim. Mas está melhor agora. — Ele se aproxima e me beija novamente. Desta vez, a língua dele desliza entre os meus lábios; sua boca tem gosto de menta, como se ele tivesse tomado um refresco.
Quando o beijo termina, estamos ambos sem fôlego.
— Você quer ir a algum lugar?
Eu reviro os olhos.
— Estou de pijama e descalça.
Seus olhos se desviam para os meus pés.
— Que fofura...
Enfio os dedos na grama quente.
— Meus pés?
— Você inteira! — diz ele. — Quer se sentar na varanda?
Eu ouço um miado. Félix pula no peitoril da janela do meu quarto.
— Não! — digo a ele, e Félix volta para o meu quarto. Cash fecha a janela.
— Talvez no seu carro — eu digo, sem querer que ninguém me veja de pijama, beijando um cara na minha varanda da frente.
— Tudo bem. — Ele tira a mão da minha cintura e segura a minha mão enquanto caminhamos para o carro dele. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
— O que aconteceu? — pergunto, lembrando-me do comentário sobre a noite ruim. — Eles não me viram, não é?
— Não. Só um pouco mais da mesma ladainha.
— Você quer dizer deixar o emprego e ir para uma faculdade melhor?
— Sim — diz ele.
— Lamento por você.
Chegamos ao jipe de Cash.
— Você quer sentar no banco de trás?
Lembro-me do comentário de Lindsey sobre não querer que David pensasse que ela queria se sentar no banco de trás.
— Só para conversar — diz Cash, como se estivesse lendo meus pensamentos. — E beijar. — Ele parece envergonhado. — Não é para... você sabe.
— Sei. — Eu sorrio porque acredito nele. Cash não está ali para tentar algo para o qual eu não esteja pronta.
Fico na ponta dos pés e beijo a bochecha dele.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por vir aqui.
Cash abre a porta de trás e entra no jipe depois de mim. O console entre os assentos está abaixado. Deslizo apenas até a metade do banco e fico perto dele. Cash se acomoda ao meu lado e fecha a porta.
— Ovelhas — diz ele.
— O quê? — pergunto.
— Você tem ovelhas nos shorts e na blusa.
Eu olho para baixo.
— Estou de pijama.
— Eu sei. — Sorrindo, ele tira meu cabelo da bochecha. — Ah, tome.
Ele tira algo do bolso. É um saquinho.
Eu sorrio ao ver o que é.
— Skittles vermelhos. Obrigada. — Coloco um na boca.
Então coloco um na boca dele.
— O que fez a sua noite ficar ruim? Encontrar os Fuller no restaurante?
— Em parte. E eu sou uma quebradora de ovos agora.
— O quê?
— Lembra que eu acusei você de ser um quebrador de ovos enquanto eu sou alguém que gosta de pôr panos quentes?
— Sim. O que você fez?
— Fiquei com muita raiva. Disse ao meu pai o que eu pensava dele por ter saído de casa e me deixado sozinha para cuidar da minha mãe doente.
— Muito bem. — Seu tom carinhoso me atinge em cheio no coração. — O que ele disse?
— Acho que meu pai finalmente percebeu o idiota que ele foi.
— Isso foi bom? — pergunta Cash.
— Não. Na verdade, não. Eu o magoei. — Mordo o lábio. — Ele chorou. Implorou para que eu o perdoasse.
— E você o perdoou — ele diz quase como se fosse uma coisa ruim.
— Não. Eu disse a ele que não era fácil. Mas eu falei que ainda o amo.
— Você é uma pessoa melhor do que eu — Cash diz.
Eu vejo algo nos olhos dele.
— Quem você precisa perdoar?
— Muitas pessoas.
Ele me beija novamente. Eu me perco na sensação da sua boca contra a minha.
Em alguns minutos, estamos deitados no assento, um de frente para o outro. Nós nos beijamos, nos beijamos e nos beijamos. As minhas mãos estão em seu peito; as dele, ainda na minha cintura. Ele sobe a minha blusa nas costas e suas mãos começam a vir para a frente. Para os meus seios.
Então ele tira as mãos das minhas costas e enterra o rosto no meu pescoço. Sinto sua respiração contra minha bochecha. Eu abro os olhos.
As janelas do carro estão embaçadas. Ele levanta a cabeça e eu vejo seus olhos. As pupilas estão dilatadas. Eu sei que ele parou para cumprir sua promessa. E eu quase gostaria que ele não tivesse prometido nada.
Cash sorri. Eu sorrio de volta.
— Eu precisava disso — ele diz. — Você me faz... esquecer as coisas ruins.
— Sim. — Eu o beijo outra vez, mas termino rapidamente. Lá no fundo, sei que precisamos desacelerar. Sei o que vem a seguir. E, embora pareça ótimo, não estou realmente pronta para o próximo passo.
Eu toco os lábios dele.
— Você faz eu me sentir tão... normal.
— Normal? — Ele sorri contra os meus dedos. — Para uma garota que lê histórias de amor, acho que você pode fazer melhor do que isso.
Eu solto uma risada.
— Não, quero dizer, não sou Chloe, cuja mãe tem câncer ou está depressiva. Ou Chloe, cujo pai é um cafajeste. Ou Chloe que pode ser uma garota sequestrada. Sou apenas uma garota normal, sentindo coisas incríveis enquanto beija um cara muito gato.
— Gosto da parte do “cara muito gato” — diz ele.
— Eu gosto do cara muito gato.
— Você é incrível. — Cash corre um dedo pela minha bochecha.
Lembro-me do que eu queria dizer a ele.
— Você estava certo. Meus pais usaram a Agência de Adoção New Hope.
— Como você sabe?
— Perguntei ao meu pai.
— Você contou a ele...?
— Não, eu disse que estava curiosa e pedi que não comentasse nada com a minha mãe.
Cash assente.
— Deveríamos ir até essa agência. Pedir para ver a sua documentação.
— Eles me deixariam ver? — Sento-me.
— Você não tem 18 anos ainda, mas logo terá, então quem sabe? Talvez deem algum papel para seus pais assinarem.
A mágica do beijo começa a desaparecer e eu me lembro do que estou enfrentando.
— Eu quero fazer isso. Vou fazer, mas... — Eu me lembro de ouvir minha mãe rindo aquela noite. — Não posso pedir para a minha mãe assinar nada. Isso pode deixá-la ainda mais deprimida.
— Eu poderia forjar a assinatura dela.
— Isso é ilegal.
— Não tão ilegal quanto sequestrar uma criança.
Sim, a mágica se foi.
— Meus pais não me sequestraram. Eles me adotaram.
— Eu não quis dizer... — Cash hesita. — Antes de irmos, precisamos saber tudo que for possível. Vou tentar dar uma olhada no arquivo. Podemos ir à agência na segunda-feira.
Concordo.
Os olhos verdes encontram os meus com cautela.
— Quando perguntei se você se lembrou de algo de antes da adoção, você disse “mais ou menos”. Do que você se lembra?
— Nem chega a ser uma lembrança completa. Estou sentada num sofá, ele é marrom-claro e manchado. Estou chorando, assustada. Calço sapatos pretos de verniz, com fivelas. O tapete é sujo. E estou usando um vestido de princesa e segurando uma tiara.
— Havia alguém com você?
— Não sei. Tudo o que sei é que estou com medo.
— Como se você tivesse sido sequestrada?
— Não sei, mas esse sentimento, esse mesmo medo, às vezes eu sinto do nada. — Minha garganta dá um nó. — Ou talvez seja do dia em que a minha mãe me deixou na agência de adoção. E se estivermos errados? E se tudo isso for uma coincidência? E meus verdadeiros pais simplesmente não me queriam?
Ele franze a testa.
— São muitas coincidências. Sua vida aqui. O nome do seu gato. A data em que Emily foi sequestrada e que você foi adotada. A sua boneca.
— Sim, mas ainda assim podem ser simples coincidências.
O ombro dele se aproxima do meu.
— Vamos descobrir.
Fecho os olhos e me lembro de quase ouvir alguém me dizendo que minha mãe e meu pai não me queriam mais. Isso aconteceu ou foi só uma impressão que eu tive? E o machucado no rosto...?
— Você acha que, se os Fuller tivessem me visto, eles me reconheceriam?
— Sim. Você está como naquela foto.
Eu me inclino contra ele.
— Isso é tão difícil...
— Eu sei — diz Cash.
Nesse momento, um carro para em frente à casa de Lindsey. Vejo quando os faróis se apagam.
— É Lindsey voltando para casa, depois do encontro com David. — Eu me abaixo no assento e o puxo para baixo. Ele volta a se levantar.
— Opa! Eles estão na varanda. Vão se beijar.
— Pare de bisbilhotar. — Mas então eu me levanto e vejo David beijar Lindsey.
— Que bom! — digo, esperando que Lindsey não esteja pensando em Jonathon.
— Isso é mais que bom. — Cash me puxa para baixo e me beija. E ele está certo. É mais do que bom.
Nos beijamos até ouvirmos o carro de David se afastar. Então eu digo:
— Já é tarde.
— Tem razão. — Ele me leva de volta até a janela e a abre.
Eu calculo a altura.
— Entrar vai ser mais difícil do que foi para sair.
— Salte e eu te dou impulso. — Ele pega os Skittles da minha mão e os coloca no bolso.
Apoio as mãos no parapeito da janela e pulo. As mãos dele empurram meu traseiro e Cash me dá impulso para cima. Metade do meu corpo já está do lado de dentro. De repente, acho engraçado. Dou risada e olho para trás.
— Já pode tirar as mãos da minha bunda agora.
— Eu estava apenas ajudando — diz ele, e sorri.
Acabo de escalar a janela, depois me viro e olho para Cash.
Ele me entrega as balas e depois dá um salto se apoiando no parapeito. Seus ombros enchem o espaço da janela, os bíceps musculosos enrijecendo, os olhos verdes nos meus.
Ele me dá um breve beijo de despedida.
— Bons sonhos.
— Você também.
Eu o vejo voltar para o carro. Corro a língua pelos lábios para saborear o gosto do beijo dele. Mesmo com todos os problemas, pela primeira vez estou começando a gostar de morar em Joyful.