Esta é a segunda parte de O Senhor dos Anéis. A primeira parte, A Sociedade do Anel, narra como Gandalf, o Cinzento, descobriu que o anel possuído por Frodo, o hobbit, era na realidade o Um Anel, que governava todos os Anéis de Poder. Relata também como Frodo e seus companheiros fugiram do pacífico Condado, sua terra natal, e foram perseguidos pelo terror dos Cavaleiros Negros de Mordor até que finalmente, com a ajuda de Aragorn, o guardião de Eriador, e depois de passarem por perigos terríveis, chegaram à Casa de Elrond em Valfenda.
Ali aconteceu o grande Conselho de Elrond, no qual foi decidido que se deveria tentar destruir o Anel, e Frodo foi designado Portador do Anel.
Então foi escolhida a Comitiva do Anel, que deveria ajudar Frodo em sua missão: chegar, se conseguisse, à Montanha de Fogo de Mordor, a terra do próprio Inimigo, o único lugar onde o Anel poderia ser desfeito. Nessa sociedade estavam Aragorn e Boromir, filho do Senhor de Gondor, representando os homens; Legolas, filho do Rei Élfico da Floresta das Trevas, representando os elfos; Gimli, filho de Glóin, da Montanha Solitária, representando os anões; Frodo, com seu servidor Samwise e seus dois jovens parentes Meriadoc e Peregrin, representando os hobbits, além de Gandalf, o Cinzento.
Os Companheiros viajaram em segredo até um ponto já bastante distante de Valfenda, no norte, quando, frustrados em sua tentativa de atravessar a passagem de Caradhras, no inverno, foram conduzidos por Gandalf através do portão oculto e adentraram as vastas Minas de Moria, procurando um caminho por baixo das montanhas.
Ali Gandalf, em batalha com um terrível espírito do mundo subterrâneo, caiu num abismo escuro. Mas Aragorn, agora revelado como o herdeiro dos antigos Reis do Oeste, passou a liderar a Comitiva partindo do Portão Leste de Moria, através da terra élfica de Lórien e descendo o Grande Rio Anduin, até chegar às Cachoeiras de Rauros. Nesse ponto eles já estavam cientes de que sua jornada estava sendo vigiada por espiões, e que a criatura chamada Gollum, que certa vez possuíra o Anel e ainda o desejava, estava seguindo suas pegadas.
Fez-se então necessário que eles decidissem se deveriam rumar para leste, na direção de Mordor, ou acompanhar Boromir em auxílio de Minas Tirith, principal cidade de Gondor, na qual se instaurava uma guerra, ou ainda se separar. Quando ficou claro que o Portador do Anel estava decidido a prosseguir em sua jornada desesperada à terra do Inimigo, Boromir tentou tomar-lhe o Anel à força. A primeira parte terminou com a queda de Boromir, seduzido pelo Anel, com a fuga e o desaparecimento de Frodo e seu servidor Samwise, e a dispersão dos outros membros da Sociedade por um ataque repentino de soldados-orcs, alguns a serviço do Senhor do Escuro de Mordor, outros a serviço do traidor Saruman de Isengard. A Demanda do Portador do Anel já parecia fadada ao desastre.
Esta segunda parte, As Duas Torres, contará o que sucedeu a cada um dos membros da Sociedade do Anel, depois do rompimento de sua sociedade, até a chegada da grande Escuridão e o início da Guerra do Anel, que será contada na terceira e última parte.
A PARTIDA DE BOROMIR
Aragorn subiu correndo a colina. De quando em quando, curvava-se sobre o chão.
Os hobbits caminham com leveza e as pegadas que deixam não são fáceis de detectar nem mesmo por um guardião, mas não muito longe do topo uma nascente cruzava a trilha, e na terra molhada ele viu o que procurava.
— Interpretei os vestígios corretamente — disse ele para si mesmo. Frodo correu para o topo da colina. Fico imaginando o que terá visto ali. Mas ele voltou pelo mesmo caminho, e desceu a colina outra vez.
Aragorn hesitou. Ele também desejava ir ao alto trono, na esperança de ver algo que pudesse guiá-lo em suas perplexidades, mas o tempo estava passando. De repente, deu um pulo para frente e correu ao topo, atravessando as grandes lajes e subindo os degraus. Então, sentando-se no trono, olhou em volta. Mas o sol parecia escurecido e o mundo apagado e remoto. Percorreu com os olhos toda a região, virando-se do norte de volta para o norte, mas não viu nada exceto as colinas ao longe, a não ser que aquilo que vislumbrava na distância fosse um grande pássaro, semelhante a uma águia voando alto no céu, descendo devagar em amplos círculos em direção à terra.
No momento em que olhava, seus ouvidos atentos distinguiram sons vindos da floresta abaixo, no lado oeste do Rio. Retesou-se. Eram gritos, e em meio a eles, para seu terror, Aragorn pôde perceber vozes rudes de orcs. Então, de repente, num chamado grave, uma poderosa corneta soou, e seus clangores golpearam as colinas e ecoaram nas concavidades, erguendo-se num grito poderoso acima do rugido da cachoeira.
— A corneta de Boromir! — gritou ele. — Ele está em apuros! — Saltou os degraus e desceu a trilha aos pulos. — Que lástima! Uma má sorte paira sobre mim hoje, e tudo o que faço dá errado. Onde está Sam?
Conforme corria, os gritos iam ficando mais nítidos, mas a corneta soava mais fraca e desesperada. Ferozes e agudos cresciam os urros dos orcs, até que de repente a voz da trombeta calou. Aragorn precipitou-se pela última encosta, mas antes que conseguisse atingir o pé da colina os outros sons também foram diminuindo; e no momento em que ele virou à esquerda e correu na direção deles, os gritos sumiram, até que finalmente não podiam mais ser ouvidos. Puxando sua espada reluzente e gritando Elendil! Elendil!
Aragorn irrompeu através das árvores.
A uma milha, talvez, do Parth Galen, numa pequena clareira não muito distante do lago, encontrou Boromir. Estava sentado e recostado numa grande árvore, como se descansasse. Mas Aragorn viu que ele estava perfurado por muitas flechas com plumas negras; ainda se via a espada em sua mão, mas estava quebrada perto do punho.
A corneta, partida em duas, descansava ao seu lado. Viu muitos orcs abatidos, empilhados em toda a volta e aos pés de Boromir.
Aragorn ajoelhou-se ao lado dele. Boromir, abrindo os olhos, esforçava-se para falar. Finalmente, lentas palavras afloraram. — Tentei tirar o Anel de Frodo — disse ele. — Sinto muito. Paguei por isso. — Seu olhar desviou para os inimigos caídos; pelo menos vinte. — Eles se foram; os Pequenos; os orcs os levaram. Acho que não estão mortos. — Fez uma pausa na qual seus olhos se fecharam de cansaço.
Depois de um momento, falou outra vez.
— Adeus, Aragorn! Vá para Minas Tirith e salve meu povo! Eu falhei.
— Não! — disse Aragorn, pegando-lhe a mão e beijando sua fronte. Você venceu. Poucos conseguiram tal vitória. Fique em paz! Minas Tirith não sucumbirá!
Boromir sorriu,
— Para que lado foram? Frodo estava com eles? — perguntou Aragorn. Mas Boromir não falou mais nada.
— Que pena! — disse Aragorn. — Assim parte o herdeiro de Denethor, Senhor da Torre da Guarda! É um fim amargo. Agora a Comitiva está completamente desfeita. Fui eu quem falhou. A confiança que Gandalf depositou em mim foi em vão. Que farei agora? Boromir me incumbiu de ir a Minas Tirith, e meu coração deseja a mesma coisa; mas onde estão o Anel e o Portador? Como poderei salvá-los e salvar a Demanda do desastre?
Ficou ajoelhado por um tempo, curvado e chorando, ainda agarrado à mão de Boromir. Foi assim que Legolas e Gimli o encontraram. Vieram da encosta oeste da colina, em silêncio, rastejando por entre as árvores, como se estivessem caçando.
Gimli trazia na mão o machado, e Legolas empunhava sua longa faca: tinha usado todas as flechas. Quando atingiram a clareira, pararam confusos; depois ficaram um tempo cabisbaixos e tristes, pois para eles ficara claro o que tinha acontecido.
— É lamentável! — disse Legolas, aproximando-se de Aragorn. — Caçamos e matamos muitos orcs na floresta, mas teríamos sido de mais utilidade aqui. Viemos quando escutamos a corneta. Tarde demais, ao que parece. Receio que tenha sofrido um ferimento mortal.
— Boromir está morto! — disse Aragorn. — Eu estou ileso, pois não estava aqui com ele. Ele pereceu defendendo os hobbits, enquanto eu estava longe, na colina.
— Os hobbits — gritou Gimli. — Onde estão eles então? Onde está Frodo?
— Não sei — respondeu Aragorn, fatigado. — Antes de morrer, Boromir me disse que os orcs os aprisionaram, embora não achasse que eles estivessem mortos. Pedi a ele que seguisse Merry e Pippin, mas não perguntei se Frodo ou Sam estavam com eles: não até que fosse tarde demais. Tudo o que fiz hoje deu errado. Que se deve fazer agora?
— Primeiro temos de cuidar do morto — disse Legolas. — Não podemos deixá— lo aqui estendido como um cadáver qualquer em meio a esses orcs nojentos.
— Mas precisamos ser rápidos — disse Gimli. — Ele não desejaria que demorássemos.
Devemos seguir os orcs, se ainda temos alguma esperança de que algum membro de nossa Comitiva seja um prisioneiro vivo.
— Mas não sabemos se o Portador do Anel está com eles ou não — disse Aragorn. — Vamos abandoná-lo? Devemos procurá-lo primeiro? Uma terrível escolha se coloca diante de nós!
— Então vamos fazer primeiro o que devemos fazer — disse Legolas. Não temos tempo nem ferramentas para enterrar nosso companheiro com todas as honras, ou para erguer-lhe um monumento protetor. Podemos deixar um marco mortuário.
— O trabalho será difícil e longo: por aqui não há pedras para construir um marco. O lugar mais próximo onde podemos encontrá-las é a margem do Rio.
— Então vamos deitá-lo num barco com suas armas, e com as armas de seus inimigos derrotados — disse Aragorn. — Vamos enviá-lo à Cachoeira de Rauros e oferecê-lo ao Anduin. O Rio de Gondor cuidará para que pelo menos nenhuma criatura maligna desonre seus ossos.
Rapidamente revistaram os cadáveres dos orcs, recolhendo as espadas e elmos partidos e escudos numa pilha.
— Vejam! — gritou Aragorn. — Aqui encontramos sinais! — Apanhou da pilha de armas repugnantes duas facas com lâminas em forma de folha, trabalhadas em ouro e vermelho; procurando um pouco mais, encontrou as bainhas, negras e ornadas com pequenas pedras vermelhas. — Estas não são ferramentas de orcs! — disse ele. — Estavam sendo carregadas pelos hobbits. Sem dúvida, os orcs os despojaram, mas temeram guardar as facas, reconhecendo o que eram: trabalho do Ponente, cheio de encantos para a destruição de Mordor. Bem, agora, se ainda estão vivos, nossos amigos estão desarmados. Vou levar essas coisas, na esperança de poder devolvê-las a eles, embora essa esperança seja ínfima.
— E eu — disse Legolas — vou levar as flechas que puder encontrar, pois minha aljava está vazia. — Procurou na pilha e no chão em volta, encontrando um bom número de flechas que estavam intactas e eram mais longas na haste do que as que os orcs costumavam usar. Examinou-as atentamente.
E Aragorn olhou para os mortos, e disse: — Aqui estão muitos que não são do povo de Mordor. Alguns são do Norte, das Montanhas Sombrias, se é que sei alguma coisa sobre os orcs e suas espécies. Esses equipamentos não são nem um pouco parecidos com os dos orcs.
Havia quatro soldados-orcs de estatura maior, de pele escura, olhos oblíquos, com pernas grossas e mãos grandes. Estavam armados com espadas de lâminas curtas e largas, e não com as cimitarras arqueadas habituais dos orcs; e tinham arcos de teixo, do comprimento e da forma dos arcos dos homens. Nos escudos carregavam uma estranha insígnia. Uma pequena mão branca no centro de um campo negro; na parte frontal de seus elmos de ferro via-se uma runa correspondente à letra S, moldada em algum tipo de metal branco.
— Nunca vi estes símbolos antes — disse Aragorn. — O que significam?
— S é de Sauron — disse Gimli. — isso é fácil de ler.
— Nada disso — disse Legolas. — Sauron não usa runas élficas.
— Nem usa seu nome certo, nem permite que seja soletrado ou pronunciado — disse Aragorn. — E ele não usa a cor branca. Os orcs a serviço de Barad-dûr usam o símbolo do Olho Vermelho. — Parou por um tempo, pensando.
— Esse S é de Saruman, eu acho — disse ele finalmente. — O mal está à solta em Isengard, e o Oeste já não é seguro. É como Gandalf temia: de algum modo o traidor Saruman teve notícias de nossa jornada. É provável também que saiba da queda de Gandalf. Perseguidores de Moria podem ter escapado da vigilância de Lórien, ou talvez tenham evitado aquela terra, vindo para Isengard por outros caminhos. Os orcs viajam rápido. Mas Saruman tem muitos meios de conseguir notícias. Lembram-se dos pássaros?
— Bem, não temos tempo para resolver enigmas — disse Gimli. Vamos levar Boromir embora.
— Mas antes disso temos de decifrar os enigmas, para escolhermos o caminho certo — respondeu Aragorn.
— Talvez não exista uma escolha certa — disse Gimli.
Pegando seu machado, o anão começou a cortar vários galhos, que foram amarrados com cordas de arcos. Depois disso, eles estenderam suas capas sobre a estrutura.
Sobre esse rude esquife carregaram o corpo do companheiro para a praia, juntamente com os troféus de sua última batalha que foram escolhidos para acompanhá-lo.
O percurso era curto; mesmo assim não foi uma tarefa fácil, pois Boromir era alto, além de robusto. Na beira da água, Aragorn ficou vigiando o esquife, enquanto Legolas e Gimli correram de volta para o Parth Galen. A distância era de uma milha ou mais, e demorou um pouco até que voltassem, conduzindo dois barcos rapidamente ao longo da margem.
— Tenho um caso estranho para contar! — disse Legolas. — Só há dois barcos sobre o barranco da margem. Não encontramos nem sinal do outro.
— Os orcs passaram por lá? — perguntou Aragorn.
— Não vimos sinais deles — respondeu Gimli. — E os orcs teriam levado ou destruído todos os barcos, como também a bagagem.
— Vou examinar o solo quando chegarmos lá — disse Aragorn.
Colocaram então Boromir no meio do barco que deveria levá-lo embora.
Dobraram o capuz e o manto élfico, colocando-os sob sua cabeça. Pentearam seus longos cabelos escuros, arrumando-os sobre os ombros. O cinto dourado de Lórien reluzia em sua cintura. O elmo foi colocado ao lado do corpo, e atravessados sobre seu colo colocaram a corneta partida e o punho com os fragmentos da lâmina da espada; sob os pés colocaram as espadas dos inimigos. Então, fixando a proa à popa do outro barco, arrastaram-no até a água. Remaram tristemente ao longo da margem, e mudando o curso para atingir o canal veloz, passaram pelo gramado verde do Parth Galen. As encostas escarpadas do Tol Brandir reluziam: já estavam no meio da tarde. Conforme se dirigiam para o Sul, a fumaça de Rauros se erguia e tremeluzia diante deles, uma névoa de ouro. O estrondo e a velocidade da cachoeira agitavam o ar parado.
Cheios de tristeza, soltaram o barco fúnebre: ali jazia Boromir, descansado, em paz, deslizando sobre o coração da água. A correnteza o levou, enquanto os outros seguravam o próprio barco com os remos. Boromir flutuou passando por eles, e lentamente seu barco afastou-se, reduzindo-se a um ponto escuro contra a luz dourada; depois, de repente, desapareceu. Rauros continuava rugindo, sem qualquer alteração. O Rio tinha levado Boromir, filho de Denethor, que agora não seria mais visto em Minas Tirith, altaneiro, como costumava ficar sobre a Torre Branca de manhã. Mas em Gondor, tempos depois, falou-se muito que o barco élfico passou pela cachoeira e pelo lago espumante, levando-o através de Osgiliath, passando pelas várias desembocaduras do Anduin, e entrando no Grande Mar à noite, sob as estrelas.
Por um tempo, os três companheiros permaneceram em silêncio , observando o rio que levara Boromir. Então Aragorn falou.
— Da Torre Branca vão procurá-lo, mas ele não mais retornará das montanhas ou do mar. Depois, lentamente, começou a cantar:
Por Rohan sobre charco e campo onde alta cresce a grama
O Vento Oeste vai voando e em torno aos muros clama.
Que novas tu, ó Vento, vais à noite revelar?
Viste Boromir, o Alto, andando no luar?
Por amplas águas sete rios escuros o vi descer;
Por terras ermas foi-se embora até desaparecer
Nas sombras que cobrem o norte. Não mais vi ao redor.
O Vento Norte viu talvez o Filho de Denethor
Ó Boromir! Dos altos muros o oeste eu entrevi,
Mas da região de homens deserta voltar eu não te vi.
Então Legolas cantou:
Da boca do Mar das pedras e dunas o Vento Sul vôa;
Traz das gaivotas o lamento, e ao portão geme à toa.
Que novas do sul, ó lamuriento, esta noite tu me dás?
Onde está o Belo Boromir? Demora e eu não tenho paz.
Onde ele mora não perguntes. Lá tantos ossos vão
Em praias brancas ou escuras sob tormentoso chão.
Desceram tantos o Anduin fluindo para o Mar.
O Vento Norte detém novas de quem aqui vai passar
Ó Boromir! Além das portas ao sul a estrada investe,
Mas tu do Mar com as gaivotas chorosas não vieste.
Depois Aragorn de novo cantou:
Dos portões reais o Vento Norte vem e as cataratas sobrevoa;
E claro e frio em torno à torre sua trompa alto ecoa.
Que novas do norte, ó vento forte, me trazes nesta hora?
Que é de Boromir, o Ousado? Há tempos foi embora.
No Amon Hen ouvi seu grito. Com muitos s e bateu.
O seu broquel e sua espada o rio os recebeu.
Afronte alta, o rosto belo, o corpo ao rio doaram;
E Rauros, de ouro Cataratas, ao peito o carregaram.
A Torre da Guarda, ó Boromir. Ao norte observará
As Cataratas de ouro, Rauros, até que o tempo findará.
Assim terminaram. Então viraram o barco e conduziram-no na maior velocidade possível contra a correnteza, de volta para o Parth Galen.
— Você deixou o Vento Leste para mim — disse Gimli. — Mas não vou dizer nada sobre isso.
— É o que devia ser feito — disse Aragorn. — Em Minas Tirith, eles suportam o Vento Leste, mas não lhe pedem notícias. Mas agora Boromir tomou sua estrada, e nós devemos nos apressar e escolher a nossa.
Examinou o gramado verde, rapidamente mas de forma completa, muitas vezes se abaixando ao solo. — Nenhum orc passou por este terreno — disse ele. — Se não for assim, não se pode ter certeza de nada. Todas as nossas pegadas estão aqui, cruzando e recruzando o terreno. Não posso dizer se qualquer um dos hobbits voltou aqui desde que começamos a procurar Frodo. — Voltou para a margem, perto do ponto onde a nascente escorria para dentro do Rio. — Há algumas pegadas bem visíveis aqui — disse ele.
— Um hobbit caminhou para dentro da água, voltou, e depois entrou na água de novo, mas não consigo dizer há quanto tempo.
— Então como você decifra este enigma?
Aragorn não respondeu imediatamente, mas voltou para o acampamento e olhou a bagagem. — Estão faltando duas mochilas — disse ele. — E uma com certeza é de Sam: era bem grande e pesada. Esta então é a resposta: Frodo foi de barco, e seu servidor foi com ele. Frodo deve ter retornado quando todos estávamos longe daqui. Encontrei Sam subindo a colina e disse-lhe que me seguisse; mas está claro que ele não fez isso. Adivinhou os pensamentos de seu patrão e voltou aqui antes que Frodo tivesse partido. Não seria fácil para ele abandonar Sam.
— Mas por que nos abandonaria, e sem dizer nada? — disse Gimli. Que atitude estranha!
— E corajosa! — disse Aragorn. — Sam estava certo, eu acho. Frodo não desejava conduzir qualquer amigo para a morte em Mordor. Mas sabia que ele próprio deveria ir. Alguma coisa aconteceu depois que ele nos deixou, e isso o fez superar seus receios e dúvidas.
— Talvez um ataque de orcs caçadores o tenha feito fugir — disse Legolas.
— Certamente ele fugiu — disse Aragorn. — Mas não acho que tenha fugido dos orcs. — O que considerava ser a causa da súbita resolução e da fuga de Frodo Aragorn não disse.
Guardou em segredo por muito tempo as últimas palavras de Boromir.
— Bem, isso pelo menos está claro agora — disse Legolas. — Frodo não está mais deste lado do Rio: só pode ter sido ele quem levou o barco. E Sam está com ele; só ele teria levado a própria mochila.
— Deixem-me pensar! — disse Aragorn. — E, agora, tomara que eu possa fazer a escolha certa e mudar o destino trágico deste dia infeliz! — Ficou em silêncio por um momento. — Vou seguir os orcs — disse ele finalmente. — E eu teria guiado Frodo a Mordor, acompanhando-o até o fim; mas se o procurar agora nestes lugares desertos vou abandonar os prisioneiros ao tormento e à morte. Meu coração fala claramente: o destino do Portador não está mais em minhas mãos. A Comitiva desempenhou seu papel. Mas nós, que permanecemos, não podemos abandonar n ossos companheiros enquanto tivermos forças. Venham! Partiremos agora! Deixem para trás tudo o que for possível! Vamos prosseguir de dia e de noite.
Arrastaram o último barco e carregaram-no para as árvores. Colocaram debaixo dele as coisas de que não iriam precisar e que não podiam levar.
Depois deixaram o Parth Galen. A tarde ia se apagando quando retornaram à clareira onde Boromir tinha sucumbido. Ali pegaram a trilha dos orcs. Não foi preciso muita habilidade para encontrá-la.
— Nenhum outro povo pisa tão pesadamente — disse Legolas. — Parece que o prazer deles é ferir e derrubar tudo o que estiver crescendo, mesmo que não esteja em seu caminho.
— Mas eles avançam com grande velocidade apesar disso — disse Aragorn. — E não se cansam. E mais tarde talvez tenhamos de procurar nosso caminho em terras duras e desertas.
— Bem, atrás deles! — disse Gimli. — Os anões também conseguem andar depressa, e não se cansam antes que os orcs. Mas será uma longa caçada: eles estão em grande vantagem.
— Sim — disse Aragorn. — Todos nós precisaremos da resistência dos anões! Mas venham! Com ou sem esperança, seguiremos a trilha de nossos inimigos. E ai deles se acabarmos sendo mais rápidos! Faremos uma caçada que será considerada um prodígio nos Três Reinos: dos elfos, anões e homens. Lá vão os Três Caçadores!
Como uma corça ele saltou à frente. Através das árvores, correu. Sempre adiante conduziu os outros, incansável e veloz, agora que finalmente tinha decidido o que fazer.
A floresta em volta do lago ficou para trás. Escalaram longas encostas, escuras, de arestas duras contra o céu que já se avermelhava com o pôr-do-sol. Chegou o crepúsculo.
Passaram, sombras cinzentas numa região rochosa.
OS CAVALEIROS DE ROHAN
A escuridão se adensou. Por entre as árvores que estavam atrás e abaixo deles via-se uma névoa, que também se formava nas margens pálidas do Anduin, embora o céu estivesse limpo. As estrelas apareceram. A lua crescente movia-se no oeste, e as sombras das rochas eram negras. Tinham atingido os pés de colinas rochosas e diminuído o passo, pois seguir a trilha era mais difícil. Naquela região, as montanhas Emyn Muil corriam de norte a sul em duas longas cordilheiras cheias de picos. O lado oeste de cada cordilheira era íngreme e difícil, mas as encostas ao leste eram mais suaves, sulcadas por muitas valas e pequenos desfiladeiros. Por toda a noite, os três companheiros avançaram aos tropeços naquele terreno irregular, subindo à crista da primeira cordilheira, que era a mais alta, e descendo outra vez para dentro da escuridão de um vale profundo e sinuoso, do outro lado.
Ali, na hora quieta e fria que antecede a aurora, descansaram por um breve período. A lua já tinha descido havia muito tempo diante deles, as estrelas reluziam no alto; a primeira luz do dia ainda não tinha atingido as colinas escuras que ficavam atrás.
No momento, Aragorn estava perdido: a trilha dos orcs tinha descido para dentro do vale, mas depois desaparecera.
— Para que lado você acha que os orcs ir iam? — perguntou Legolas. Para o norte, pegando uma estrada mais direta até Isengard ou Fangorn, se esse é o objetivo deles, como você supõe? Ou será que iriam rumo ao sul, para atingir o Entágua?
— Eles não irão na direção do rio, qualquer que seja o alvo que almejem — disse Aragorn. — E a não ser que tenha acontecido muita coisa em Rohan e o poder de Saruman tenha aumentado bastante eles vão tomar o caminho mais curto que puderem encontrar através dos campos dos rohirrim. Vamos continuar a busca rumo ao norte!
O vale corria como um rio de pedra entre as duas cordilheiras, e um fio de água fluía em meio aos seixos em seu leito. Um penhasco se encrespava à direita deles; à esquerda se erguiam encostas cinzentas, apagadas e sombrias na noite alta. Continuaram por uma milha ou mais em direção ao norte. Curvado em direção ao chão, Aragorn procurava sinais por entre as dobras e valas que conduziam à cordilheira oeste. Legolas ia um pouco à frente. De repente, o elfo deu um grito e os outros correram até ele.
— Já alcançamos alguns daqueles que estamos caçando — disse ele. Olhem! — Ele apontou e os outros viram que o que a princípio julgaram ser rochas ao pé da encosta eram corpos amontoados. Cinco orcs mortos estavam ali. Tinham sido feridos com muitos golpes cruéis e dois tiveram a cabeça decepada. A terra estava molhada pelo seu sangue escuro.
— Aqui está outro enigma! — disse Gimli. — Mas ele necessita da luz do dia, e por ela não podemos esperar.
— Apesar disso, qualquer que seja o modo de decifrá-lo, parece que traz alguma esperança — disse Legolas. — Provavelmente, os inimigos dos orcs são nossos amigos. Existe algum povo morando nestas colinas?
— Não — disse Aragorn. — Os rohirrim raramente vêm aqui, e estamos longe de Minas Tirith. Pode ser que algum grupo de homens estivesse caçando aqui por motivos que desconhecemos. Mas acho que não é isso.
— E o que você acha? — perguntou Gimli.
— Acho que o inimigo trouxe consigo seu próprio inimigo — respondeu Aragorn. — Estes são orcs do norte, de muito longe. Entre os mortos, não vemos nenhum daqueles orcs grandes com insígnias estranhas. Houve uma discussão, eu suponho: não é uma coisa muito incomum no meio desse povo maligno. Talvez tenha havido alguma disputa pela estrada.
— Ou pelos prisioneiros — disse Gimli. — Vamos esperar que os hobbits também não tenham encontrado aqui o seu fim.
Aragorn revistou o solo num raio amplo, mas não havia outros vestígios da luta.
Continuaram. O céu ao leste já ficava esmaecido; as estrelas estavam sumindo, e uma luz cinzenta crescia lentamente. Um pouco mais adiante, encontraram uma dobra no solo onde um pequeno córrego, caindo sinuoso, tinha cortado uma trilha rochosa que descia até o vale. Nela cresciam alguns arbustos, e viam-se tufos de grama nos lados.
— Até que enfim! — disse Aragorn. — Aqui estão as pegadas que procuramos! Vamos subir este canal de água: este é o caminho pelo qual foram os orcs depois de sua discussão.
Agora os perseguidores voltaram-se rapidamente e seguiram a nova trilha.
Dispostos como se tivessem tido uma noite de sono, foram saltando de pedra em pedra. Finalmente atingiram a crista da colina cinzenta, e uma brisa repentina soprou-lhes nos cabelos e agitou-lhes os mantos: o vento frio da aurora.
Voltando-se para trás, viram do outro lado do Rio as colinas distantes se acenderem. De um salto o dia entrou no céu. A borda vermelha do sol se ergueu por sobre as colinas da terra escura. Adiante, no oeste, o mundo continuava quieto, disforme e cinzento; mas, ainda enquanto olhavam, as sombras da noite se desvaneceram, as cores voltaram à terra que despertava: o verde fluiu sobre os amplos prados de Rohan; a névoa branca tremeluzia nos cursos de água, e bem adiante e à esquerda, a trinta léguas ou um pouco mais, num tom azul e púrpura, erguiam-se as Montanhas Brancas, subindo até picos de azeviche, cobertos por uma neve reluzente, ruborizados pelo róseo matutino.
— Gondor! Gondor! — gritou Aragorn. — Quisera olhar sobre esta terra num momento mais feliz! Minha estrada ainda não se dirige para o sul e para seus córregos claros.
Gondor! Gondor de um lado os Montes, do outro o Mar!
Soprava o Vento Oeste lá, e a luz chovia devagar
Sobre a Árvore de Prata e os jardins dos Reis de Outrora.
Ó muros altos! Torres brancas! Corôa alada e trono de ouro!
Ó Gondor Gondor! Irão os homens a Árvore contemplar
Ou o Vento Oeste irá soprar nos Montes e no Mar?
— Agora vamos! — disse ele, tirando seus olhos do sul e olhando ao leste e ao norte, para o caminho que deveria trilhar.
A cordilheira na qual os companheiros estavam descia abruptamente sob seus pés.
Cerca de quarenta metros abaixo, havia uma saliência ampla e desigual que terminava de repente na borda de um penhasco escarpado: a Muralha Leste de Rohan.
Assim terminavam as Emyn Muil, e as verdes planícies dos rohirrim se estendiam diante deles até onde a vista alcançava.
— Olhem! — gritou Legolas, apontando para o céu claro. — Ali vem a águia outra vez!
Está voando bem alto. Agora parece estar indo embora desta terra, de volta para o norte.
Está indo a uma enorme velocidade. Olhem!
— Não, nem mesmo meus olhos conseguem vê-la, meu bom Legolas disse Aragorn.
— Deve estar realmente distante. Fico imaginando qual será sua missão, se for o mesmo pássaro que já vi antes. Mas olhem! Estou vendo algo mais próximo de nós, e mais urgente; há algo se movendo na planície!
— Muitas coisas — disse Legolas. — É um grande grupo a pé; mas não posso dizer mais, nem enxergar que tipo de povo pode ser. Estão a muitas léguas de distância. Doze, eu suponho; mas na planície é difícil calcular.
— Eu acho, entretanto, que não precisamos mais de qualquer trilha que nos diga que caminho seguir — disse Gimli. — Vamos encontrar um caminho que desça até os campos o mais rápido possível.
— Duvido que encontre um caminho mais rápido do que aquele que os orcs escolheram — disse Aragorn.
Seguiam agora os inimigos em plena luz do dia. Parecia que os orcs tinham apertado o passo e estavam na maior velocidade possível. De quando em quando, os perseguidores encontravam coisas que tinham sido derrubadas ou jogadas fora: sacos de comida, crostas e cascas de pães duros e cinzentos, uma capa preta rasgada, um sapato pesado com pregos de ferro que se arrebentara nas pedras. A trilha os conduzia para o norte ao longo do topo do penhasco, e finalmente eles chegaram a uma fenda profunda formada na rocha por uma nascente que descia espirrando com muito barulho. Na garganta estreita uma passagem acidentada descia até a planície como uma escada íngreme.
Na base atingiram, de modo estranho e repentino, o gramado de Rohan.
Crescia como um mar verde subindo até o pé das Emyn Muil. A nascente que caía desapareceu numa vegetação espessa de agriões e plantas aquáticas, e eles podiam ouvi-la correndo dentro de túneis verdes, descendo encostas suaves e longas na direção dos pântanos do Vale do Entágua muito além. Parecia que tinham deixado o inverno envolvendo as colinas que ficaram para trás. Ali o ar estava mais calmo e quente, com um aroma leve, como se a primavera já se agitasse e a seiva corresse outra vez nas ervas e folhas. Legolas respirou fundo, como alguém que sorve um grande gole depois de um longo período de sede em terras desertas.
— Ali! O cheiro do verde! — disse ele. — É melhor que muito sono. Vamos correr!
— Os pés leves podem correr mais rápido aqui — disse Aragorn. — Mais rápido, talvez, do que os orcs com seus calçados de ferro. Agora temos uma oportunidade de diminuir a vantagem deles!
Foram em fila indiana, correndo como cães que perseguem um cheiro forte, e com uma luz ansiosa nos olhos. Seguindo quase para o oeste, a trilha de destruição dos orcs deixara seu rastro horrível; a grama suave de Rohan fora amassada e enegrecida com sua passagem. Nesse momento, Aragorn deu um grito e desviou-se.
— Parem! — gritou ele. — Não me sigam ainda! — Correu para a direita, para um ponto fora da trilha principal, pois tinha visto pegadas que iam por ali, separando-se das outras: marcas de pés pequenos e descalços. Estas, entretanto, não iam muito longe até serem atravessadas por pegadas de orcs, também saindo da trilha principal tanto atrás quanto na frente, e então elas faziam uma curva fechada voltando, e se perdiam no meio das outras pegadas. No ponto mais distante, Aragorn se abaixou e apanhou algo da grama; então voltou correndo.
— Sim — disse ele. — Estão muito nítidas: pegadas de um hobbit. Acho que são de Pippin. Ele é menor que o outro. E olhem isto! — Aragorn ergueu um objeto que brilhou à luz do sol. Parecia uma folha de faia recém-aberta, bela e estranha naquela planície sem árvores.— o broche de um manto élfico! — gritaram Legolas e Gimli juntos.
— As folhas de Lórien não caem à toa — disse Aragorn. — Isto não caiu por acaso: foi jogado como um sinal para qualquer um que pudesse vir atrás. Acho que Pippin fugiu da trilha com esse propósito.
— Então pelo menos ele estava vivo — disse Gimli. — E pôde usar de sua esperteza, e de suas pernas também. Isso nos anima. Não estamos perseguindo os orcs em vão.
— Vamos esperar que ele não tenha pagado c aro demais por sua ousadia — disse Legolas. — Venham! Vamos continuar! Pensar naquelas pessoas alegres e jovens sendo levadas como gado me deixa furioso.
O sol subiu até o meio-dia, e depois foi descendo o céu devagar. Leves nuvens subiram do mar no sul distante, e foram levadas pela brisa. O sol afundou. Sombras cresceram atrás e estenderam seus longos braços saindo do leste. Os caçadores ainda continuavam. Já fazia um dia que Boromir caíra, e os orcs ainda estavam muito à frente.
Não se via mais qualquer sinal deles nas planícies.
Quando a sombra da noite se fechava em volta deles, Aragorn parou. Apenas duas vezes na marcha daquele dia os três companheiros tinham descansado por um curto período, e doze léguas se estendiam agora entre o ponto onde estavam e a Muralha leste onde tinham parado ao amanhecer.
— Finalmente chegamos ao momento de fazer uma escolha difícil disse ele.
— Devemos descansar durante a noite, ou prosseguir até esgotar nossa força e nossa disposição?
— A não ser que nossos inimigos também descansem, vão nos deixar muito para trás, se pararmos para dormir — disse Legolas.
— Até os orcs fazem pausas durante a marcha, não é? — disse Gimli.
— Eles raramente viajam por lugares abertos sob a luz do sol, mas esses fizeram isso — disse Legolas. — Com certeza não vão descansar à noite.
— Mas se caminharmos durante a noite não poderemos seguir sua trilha — disse Gimli.
— A trilha é estreita, e não vira nem para a direita nem para a esquerda, até onde minha vista alcança — disse Legolas.
— Talvez eu pudesse guiá-los na escuridão adivinhando o caminho, sem perder a trilha — disse Aragorn. — Mas se nos perdêssemos, ou se eles mudassem de rumo, quando a luz chegasse poderíamos demorar muito até encontrar a trilha outra vez.
— E além disso — disse Gimli — só durante o dia podemos enxergar se alguma pegada se separa da trilha principal. Se um prisioneiro conseguisse escapar, ou se fosse carregado para o leste, vamos dizer para o Grande Rio, na direção de Morder, poderíamos passar pelos sinais e nunca saber disso.
— Isso é verdade — disse Aragorn. — Mas se interpretei os sinais corretamente lá atrás os orcs da Mão Branca prevaleceram, e todo o grupo está indo na direção de Isengard. O caminho que fazem agora confirma o que digo.
— Apesar disso, seria precipitado ter certeza dos planos deles — disse Gimli. — E que dizer sobre as fugas? No escuro, teríamos deixado passar os sinais que conduziram você ao broche.
— Os orcs redobrarão a vigilância depois disso, e os prisioneiros estarão duas vezes mais cansados — disse Legolas. — Não haverá fuga outra vez, a não ser que a planejemos. Não sabemos como isso poderá acontecer, mas primeiro precisamos alcançá-los.
— Mesmo assim, nem eu, anão de muitas jornadas, que não sou o menos resistente de meu povo, conseguiria correr todo o caminho até Isengard sem uma parada — disse Gimli. — Meu coração também me queima, e eu teria partido mais cedo, mas agora preciso descansar um pouco para correr melhor. E se é para descansarmos a noite cega é a hora de fazê-lo.— Eu disse que a escolha era difícil — disse Aragorn. — Como terminamos esta discussão?
— Você é o guia — disse Gimli —, e tem habilidades na caçada. Você deve escolher.
— Meu coração me pede para prosseguir — disse Legolas. — Mas devemos permanecer juntos. Seguirei seu conselho.
— Vocês entregam a escolha a alguém que escolhe mal — disse Aragorn. — Desde que passamos pelos Argonath, minhas escolhas deram errado. — Ficou em silêncio, olhando durante um longo tempo para o norte e para o oeste, dentro da noite que se formava.
— Não vamos caminhar no escuro — disse ele finalmente. — O perigo de perdermos a trilha ou os sinais de outras idas e vindas parece ser maior. Se a lua nos desse luz suficiente, poderíamos usá-la, mas infelizmente ela se deita cedo, e ainda está nova e pálida.
— E esta noite a lua estará coberta, de qualquer forma — murmurou Gimli.
— Seria bom que a Senhora nos tivesse dado uma luz, semelhante ao presente que deu a Frodo!
— A luz será mais necessária para aquele a quem foi concedida — disse Aragorn. — Com ele está a Demanda verdadeira. O nosso é um problema pequeno entre os grandes feitos desta época. Talvez desde o princípio uma busca em vão, que nenhuma escolha minha possa estragar ou consertar. Bem, já fiz a escolha. Vamos usar o tempo da melhor maneira possível!
Jogou-se no chão e adormeceu imediatamente, pois não tinha dormido desde a noite que passaram sob a sombra do Tol Brandir. Antes que a aurora estivesse no céu, ele acordou e se levantou. Gimli ainda estava num sono profundo, mas Legolas estava de pé, olhando para o norte, dentro da escuridão, pensativo e quieto como uma árvore jovem numa noite sem vento.
— Eles estão muito, muito longe — disse ele com tristeza, voltando-se para Aragorn.
— Sei em meu coração que não descansaram esta noite. Só uma águia poderia alcançá-los agora.
— Mesmo assim, ainda vamos segui-los como pudermos — disse Aragorn.
Abaixando-se, acordou o anão. — Venha! Precisamos ir — disse ele.
— O rastro está esfriando.
— Mas ainda está escuro — disse Gimli. — Nem Legolas no topo de uma colina poderia vê-los antes de o sol nascer.
— Receio que tenham saído de meu campo de visão, seja do topo de uma colina ou de uma planície, sob o sol ou sob a lua — disse Legolas.
— Onde a vista falha, a terra pode trazer alguma informação — disse Aragorn. — O solo deve gemer sob os pés odiosos dos orcs. — Deitou-se sobre o solo, colocando a orelha contra a turfa. Ficou ali parado por tanto tempo que Gimli começou a indagar se ele não tinha desmaiado ou adormecido de novo.
Finalmente se levantou, e então os companheiros puderam ver seu rosto: estava pálido e consternado, com o olhar preocupado.
— O ruído da terra é baixo e confuso — disse ele. — Nada caminha sobre ela por muitas milhas ao nosso redor. Os pés de nossos inimigos estão distantes e são quase inaudíveis. Mas pode-se ouvir com clareza ruídos de cascos de cavalos. Tenho a impressão de tê-los escutado, mesmo enquanto dormia, e eles incomodaram meu sono: cavalos galopando, passando no oeste. Mas agora estão se distanciando de nós ainda mais, indo para o norte. Fico imaginando o que estará acontecendo nesta terra.
— Vamos! — disse Legolas.
Assim começou o terceiro dia de sua busca. Durante todas as longas horas de nuvem e sol vacilante, eles quase não pararam, algumas horas andando em grandes passadas, outras correndo, como se nenhum cansaço pudesse debelar o fogo que lhes queimava o coração. Raramente falavam. Atravessaram a ampla solidão e seus mantos élficos desapareceram contra o fundo dos campos cinza-esverdeados; mesmo na fria luz do sol do meio-dia, poucos olhos, com a exceção dos élficos, poderiam tê-los notado, até que estivessem bem próximos. Sempre agradeciam em seus corações à Senhora de Lórien pela dádiva do lembas, pois podiam comê-lo e encontrar novas forças até mesmo enquanto corriam.
Durante todo o dia, a trilha do inimigo conduziu sempre em frente, indo para o noroeste sem interrupção ou curva. Quando outra vez o dia se acabava, chegaram a encostas longas e sem árvores, onde o solo se elevava, crescendo em direção a uma fileira de colinas baixas e corcovadas à frente.
A trilha dos orcs ficou mais fraca, conforme rumava para o norte na direção delas, pois o solo era mais duro e a grama mais curta. Lá adiante, à esquerda, o rio Entágua fazia curvas, um fio prateado no chão verde. Não se via qualquer ser em movimento. Aragorn muito se surpreendia pelo fato de não estarem vendo sinais de animais ou homens. As moradias dos rohirrim ficavam, em sua maioria, muitas léguas ao sul, sob as bordas das Montanhas Brancas, que eram cobertas de florestas, agora escondidas por névoa e nuvem; apesar disso, os Senhores dos Cavalos costumavam anteriormente manter muitos rebanhos e criações de cavalos no Estemnete, região ao leste de seu reino, e ali os pastores costumavam vagar com muita freqüência, vivendo em acampamentos e tendas, mesmo durante o inverno.
Mas agora toda a região estava vazia, e havia um silêncio que não parecia ser a quietude da paz.
Ao crepúsculo pararam novamente. Agora já tinham avançado cerca de doze léguas na planície de Rohan, e a muralha das Emyn Muil se perdia nas sombras do leste.
A lua jovem brilhava num céu enevoado, mas emanava pouca luz, e as estrelas estavam veladas.
— Agora sou eu quem sente falta de um tempo para descansar, ou de uma pausa em nossa caçada — disse Legolas. — Os orcs correram na nossa frente como se estivessem sendo perseguidos pelos chicotes de Sauron. Receio que já tenham atingido a floresta e as escuras colinas, e que exatamente agora estejam entrando nas sombras das árvores.
Gimli rangeu os dentes. — Este é um final triste para toda nossa esperança e nosso esforço! — disse ele.
— Para a esperança talvez, mas não para o esforço — disse Aragorn. Não voltaremos daqui. Mas estou cansado. — Olhou para trás, na direção do caminho pelo qual tinham vindo, na direção da noite que se formava no leste. — Existe alguma coisa estranha se operando nesta terra. Desconfio do silêncio. Desconfio até dessa lua pálida.
As estrelas estão apagadas, e eu estou cansado como raramente estive antes, cansado como um guardião não deveria estar ao seguir uma trilha nítida. Há alguma disposição que empresta velocidade a nossos inimigos e põe diante de nós uma barreira invisível: um cansaço que é mais do coração que das pernas.
— É verdade! — disse Legolas. — Isso eu já sei desde que descemos das Emyn Muil. Pois essa disposição não está atrás, mas à nossa frente.
Apontou na distância, sobre a terra de Rohan, para o oeste que escurecia sob a lua em forma de foice.
— Saruman! — murmurou Aragorn. — Mas isso não deve fazer com que retomemos. Mais uma vez devemos parar, pois, vejam!, até mesmo a lua está sendo envolvida pelas nuvens que se adensam. Mas ao norte estará nossa estrada, entre colina e pântano, quando o dia retornar.
Como antes, Legolas foi o primeiro a se pôr de pé, se é que de fato tinha dormido.
— Acordem! Acordem! — gritou ele. — A aurora já chegou. Coisas estranhas nos esperam perto das bordas da floresta. Boas ou más, eu não sei; mas estamos sendo chamados. Acordem!
Os outros pularam de pé, e quase imediatamente os três partiram outra vez.
Devagar as colinas foram se aproximando. Ainda faltava uma hora para o meio-dia quando as atingiram: encostas verdes erguendo-se numa cordilheira que corria numa linha reta em direção ao norte. Aos pés deles, o solo era seco e a turfa curta, mas uma faixa comprida de terra afundada, com cerca de dez milhas de largura, estendia-se entre eles e o rio, descrevendo curvas com moitas apagadas de juncais. Logo a oeste da encosta que ficava no extremo sul, havia um grande círculo, onde a turfa tinha sido arrancada e socada por muitos pés. Desse ponto a trilha dos orcs saía outra vez, virando para o norte ao longo da orla ressecada das colinas. Aragorn parou e examinou a trilha minuciosamente.
Eles descansaram um tempo aqui — disse ele —, mas mesmo a trilha mais extrema já está velha. Receio que seu coração tenha dito a verdade, Legolas: faz três vezes doze horas, eu acho, que os orcs pisaram aqui onde estamos pisando agora. Se mantiveram o passo, então ao pôr-do-sol de ontem já atingiram as fronteiras de Fangorn.
— Não vejo ao norte e a oeste nada além de capim que desaparece na névoa — disse Gimli. — Conseguiríamos ver a floresta, se subíssemos nas colinas?
— Ainda estamos muito longe — disse Aragorn. — Se me lembro corretamente, estas colinas ficam oito léguas ou mais ao norte, e depois a noroeste, rumando para a desembocadura do Entágua, ainda se estende uma terra ampla, talvez outras quinze léguas.
— Bem, vamos indo — disse Gimli. — Minhas pernas precisam esquecer as milhas. Ficariam mais dispostas se meu coração estivesse menos pesado.
O sol já afundava no horizonte quando finalmente chegaram perto do final da fileira de colinas. Tinham marchado por muitas horas sem descanso. Agora iam devagar, e as costas de Gimli estavam curvadas. Os anões são resistentes como pedra no trabalho ou numa jornada, mas aquela busca infindável começou a desgastá-lo, e toda esperança desapareceu de seu coração. Aragorn caminhava atrás dele, austero e silencioso, abaixando-se de vez em quando para procurar alguma pegada ou marca no solo. Apenas Legolas ia pisando com a mesma leveza de sempre, seus pés mal parecendo tocar a relva, sem deixar marcas ao passar; apenas ingerindo o pão de viagem dos elfos ele encontrava todo o sustento de que necessitava, e conseguia dormir, se é que os homens chamariam isso de dormir, descansando a mente pelos caminhos estranhos dos sonhos élficos, mesmo quando caminhava com os olhos abertos na luz deste mundo.
— Vamos subir esta colina verde! — disse ele. Cansados, os outros o seguiram, escalando a longa encosta, até que chegaram ao topo. Era uma colina redonda, suave e nua, erguendo-se solitária, a colina que ficava mais ao norte. O sol mergulhou e as sombras da noite caíram como uma cortina. Estavam sozinhos num mundo cinzento e disforme, sem marco ou medida. Só ao longe, no noroeste, havia uma escuridão mais densa contra a luz agonizante do dia: as Montanhas Sombrias e a floresta aos pés delas.
— Nada se vê aqui que possa nos guiar — disse Gimli. — Bem, agora devemos parar outra vez e passar a noite. Está ficando frio!
— O vento sopra do norte, vindo da neve — disse Aragorn.
— E antes de amanhecer estará no leste — disse Legolas. — Mas descanse, se precisar. Ainda não joguei toda a esperança fora. Não se sabe o dia de amanhã. O nascer do sol geralmente traz um bom conselho.
— Três sóis já nasceram em nossa busca, e nenhum trouxe bons conselhos — disse Gimli.
A noite ficou mais fria. Aragorn e Gimli dormiram inquietos, e a qualquer momento que acordavam sempre viam Legolas em pé ao lado deles, ou andando de um lado para o outro, cantando baixinho para si mesmo na própria língua, e enquanto cantava as estrelas se abriam na abóbada negra e dura do céu.
Assim passou a noite. Juntos observaram a aurora crescendo lentamente no céu, agora deserto e sem nuvens, até que finalmente o sol nasceu. Sua luz era clara e pálida. O vento soprava do leste e levara a névoa embora; uma região ampla e desolada se estendia em volta deles naquela luz fria.
Adiante e na direção do leste, viram os planaltos do Descampado de Rohan, que já tinham avistado do Grande Rio muitos dias atrás. Na direção noroeste assomava a escura floresta de Fangorn; ainda a dez léguas ficavam suas fronteiras sombrias, e suas encostas mais distantes desapareciam num azul distante.
Além dela brilhava na distância, como se boiasse numa nuvem cinza, a cabeça branca do alto Methedras, o último pico das Montanhas Sombrias. Saindo da floresta, o Entágua corria ao encontro deles, com sua correnteza agora veloz e estreita, e suas margens íngremes e fundas. A trilha dos orcs desviava das colinas na direção dele.
Seguindo com seus olhos argutos a trilha que ia para o rio, e depois do rio de volta à floresta, Aragorn viu uma sombra no verde distante, um borrão escuro que se movia rapidamente. Jogou-se no chão e outra vez escutou com atenção. Mas Legolas ficou de pé ao seu lado, protegendo seus claros olhos élficos com a mão longa e delgada, e não viu uma sombra, nem um borrão, mas as pequenas figuras de cavaleiros, muitos cavaleiros, e a luz da manhã sobre as pontas de suas lanças era como o faiscar de diminutas estrelas além do limite da visão dos mortais. Muito atrás deles, uma fumaça negra subia em fios finos e encaracolados.
Havia um silêncio nos campos vazios, e Gimli podia ouvir o ar se movendo no capim.
— Cavaleiros! — gritou Aragorn, pulando de pé. — Muitos cavaleiros montando cavalos velozes estão vindo em nossa direção!
— Sim — disse Legolas. — Há cento e cinco deles. Têm os cabelos dourados, e as lanças brilhantes. O líder é muito alto.
Aragorn sorriu. — Agudo é o olhar dos elfos — disse ele.
— Não! Os cavaleiros estão a pouco mais de cinco léguas de distância — disse Legolas.
— Cinco léguas ou uma — disse Gimli —, não podemos escapar deles nesta terra deserta. Vamos esperá-los aqui ou devemos seguir nosso caminho?
— Vamos esperar — disse Aragorn. — Estou cansado, e nossa caçada foi um fracasso. Ou pelo menos outros chegaram na nossa frente, pois esses cavaleiros estão retornando pela trilha dos orcs. Podemos receber notícias deles.
— Ou lanças — disse Gimli.
— Há três selas vazias, mas não vejo hobbits — disse Legolas.
— Eu não disse que conseguiríamos boas notícias — falou Aragorn. Mas, sejam boas ou más, vamos esperar aqui.
Então os três companheiros deixaram o topo da colina, onde poderiam ser um alvo fácil contra o céu pálido, e desceram devagar a encosta norte.
Pararam um pouco acima do pé da colina, e embrulhando-se com os mantos élficos sentaram-se uns perto dos outros sobre o capim ralo. O tempo passava lento e pesado. O vento era fino e penetrante.
Gimli estava inquieto.
— O que você sabe sobre esses cavaleiros, Aragorn? — perguntou ele. Estamos aqui sentados esperando morte súbita?
— Já estive entre eles — disse Aragorn. — São voluntariosos e cheios de orgulho, mas têm o coração sincero, são generosos em pensamentos e ações; destemidos mas não cruéis; sábios mas incultos, não escrevendo nenhum livro mas cantando muitas canções, a maneira dos filhos dos homens antes dos Anos Escuros. Mas não sei o que aconteceu aqui ultimamente, nem com que disposição os rohirrim podem agora estar entre o traidor Saruman e a ameaça de Sauron. Por muito tempo foram amigos do povo de Gondor, embora não sejam parentes deles. Foi nos dias esquecidos de antigamente que Eorl, o Jovem, trouxe-os do norte, e seu parentesco é na verdade com os bardings de Valle, e com os beornings da Floresta, entre os quais ainda se pode ver muitos homens altos e belos, como são os Cavaleiros de Rohan. Pelo menos, é certeza que não morrem de amores pelos orcs.
— Mas Gandalf comentou sobre um boato de que eles pagam tributo a Mordor — disse Gimli.
— Não acredito nisso mais do que acreditava Boromir — respondeu Aragorn.
— Logo saberá da verdade — disse Legolas. — Eles já estão se aproximando.
Finalmente, até mesmo Gimli pôde ouvir a batida distante de cascos galopantes. Os cavaleiros, seguindo a trilha, desviaram do rio e se aproximaram das colinas.
Galopavam na velocidade do vento.
Agora o som de vozes fortes e nítidas vinha ecoando através dos campos.
De repente avançaram com um barulho de trovão, e o cavaleiro mais à frente mudou de rumo, passando ao lado do pé da colina, e conduzindo o grupo de volta ao sul, ao longo da orla ocidental da cordilheira. Atrás dele ia uma longa fila de homens vestidos de malhas metálicas, velozes, brilhantes, terríveis e belos de se olhar.
Os cavalos eram de grande estatura, fortes e com patas bem proporcionadas; as capas cinzentas reluziam, as caudas longas esvoaçavam ao vento, as crinas caíam trançadas sobre os pescoços imponentes. Os homens que os montavam combinavam muito bem com eles: altos e esbeltos; os cabelos claros como palha saíam dos elmos leves e desciam-lhes em longas tranças pelas costas; os rostos eram austeros e argutos. Nas mãos traziam longas lanças de freixo, escudos pintados pendiam-lhes das costas, longas espadas estavam penduradas em seus cintos, as bainhas das vestimentas de malha de metal polido desciam-lhes até os joelhos.
Galopavam em pares, e, embora de quando em quando um deles se erguesse nos estribos e olhasse para os dois lados, eles pareciam não perceber os três forasteiros, sentados em silêncio e vigiando-os. O exército quase passara por eles quando Aragorn se levantou e chamou em voz alta:
— Que notícias têm do norte, Cavaleiros de Rohan?
Com velocidade e habilidade assombrosas, eles pararam seus cavalos, viraram e voltaram. Logo os três companheiros se viram num círculo de cavaleiros movimentando-se numa roda que não parava, subindo a encosta da colina atrás deles, e descendo, dando várias voltas ao redor deles, fechando o cerco cada vez mais. Aragorn permanecia quieto, e os outros dois ficaram sentados sem se mexer, pensando no rumo que as coisas tomariam.
Sem qualquer palavra ou chamado, de repente, os Cavaleiros pararam. Uma floresta de lanças apontava para os estranhos, e alguns dos cavaleiros tinham nas mãos arcos, com as flechas já ajustadas às cordas. Então um deles avançou, um homem alto, mais alto que os demais; de seu elmo, como uma crista, pendia uma cauda branca de cavalo. Aproximou-se até que a ponta de sua lança ficasse a uns trinta centímetros do peito de Aragorn, que não se mexeu.
— Quem são vocês, e o que fazem nesta terra? — perguntou o Cavaleiro, usando a Língua Geral do Oeste, numa maneira e tom semelhantes aos de Boromir, homem de Gondor.
— Chamam-me Passolargo — respondeu Aragorn. — Venho do norte. Estou caçando orcs.
O Cavaleiro saltou do cavalo. Dando a lança a um outro que se aproximou e desceu do cavalo ao lado dele, puxou sua espada e ficou cara a cara com Aragorn, observando-o atentamente, não deixando de demonstrar surpresa. Finalmente, falou outra vez.
— Primeiro pensei que vocês fossem orcs — disse ele —, mas agora vejo que não é assim. Na verdade, vocês sabem pouco sobre os orcs, se vão caçando — os assim dessa maneira. Eles eram rápidos e estavam bem armados. E eram muitos. Vocês teriam passado de caçadores a caça, se tivessem alcançado o bando. Mas há algo estranho em você, Passolargo. — Deitou os olhos claros e brilhantes outra vez no guardião. — Isso não é nome que se dê a um homem. E estranhas também são suas vestes. Vocês surgiram do capim? Como escaparam de nossa vista? Vocês são do povo dos elfos?
— Não — disse Aragorn. — Apenas um de nós é um elfo, Legolas do Reino da Floresta, da longínqua Floresta das Trevas. Mas passamos por Lothlórien, e as dádivas e a proteção da Senhora nos acompanham.
O Cavaleiro olhou-os com surpresa renovada, mas seus olhos endureceram.
— Então existe uma Senhora na Floresta Dourada, como contam as antigas histórias! — disse ele. — Poucos escapam de suas redes, pelo que dizem. Estes são dias estranhos! Mas se vocês têm a proteção dela então também tecem redes e talvez sejam feiticeiros. — De repente lançou para Legolas e Gimli um olhar frio. — Por que não falam, vocês que estão em silêncio?
Gimli se levantou e plantou os pés afastados no chão: sua mão agarrou firmemente o cabo do machado, e os olhos escuros brilharam.
— Diga o seu nome, mestre-dos-cavalos, e então lhe direi o meu, e outras coisas também — disse ele.
— Quanto a isso — disse o Cavaleiro, abaixando os olhos na direção do anão —, o forasteiro deve se declarar primeiro. Mas meu nome é Éomer, filho de Éomund, e chamam-me Terceiro Marechal da Terra dos Cavaleiros.
— Então, Éomer, filho de Éomund, Terceiro Marechal da Terra dos Cavaleiros, deixe que Gimli, o anão, filho de Glóin, faça uma advertência contra suas tolas palavras. Você fala mal do que é belo além do alcance de seu pensamento, e sua única desculpa pode ser a falta de inteligência.
Os olhos de Éomer reluziram, e os homens de Rohan soltaram murmúrios enfurecidos e fecharam mais o círculo, avançando com as lanças.
— Eu poderia cortar-lhe a cabeça, a barba e o resto, Mestre Anão, se você se erguesse um pouco mais acima do chão — disse Éomer.
— Ele não está sozinho — disse Legolas, aprumando seu arco e ajustando uma flecha com mãos que se movimentavam mais rápido que os olhos.
— Você morreria antes que desferisse o golpe.
Éomer ergueu sua espada, e as coisas poderiam ter acabado mal, mas Aragorn saltou no meio deles, levantando a mão.
— Peço suas desculpas, Éomer! — gritou ele. — Quando souber mais, você poderá entender por que enfureceu meus companheiros. Não temos más intenções para com Rohan, nem para com seu povo, seus homens e seus cavalos. Não poderia ouvir nossa história antes de atacar?
— Está bem — disse Éomer abaixando sua espada. — Mas os que vagueiam pela Terra dos Cavaleiros seriam mais sábios se fossem menos arrogantes nestes dias duvidosos. Primeiro diga-me seu nome correto.
— Antes me diga a quem serve — disse Aragorn. — É amigo ou inimigo de Sauron, o Senhor de Mordor?
— Sirvo apenas ao Senhor dos Cavaleiros, o Rei Théoden, filho de Thengel — respondeu Éomer. — Não servimos ao Poder da Terra Negra distante, mas também não estamos em guerra declarada contra ele; se estão fugindo dele, então é melhor que abandonem esta terra. Existem problemas atualmente em todas as nossas fronteiras, e estamos sendo ameaçados, mas só desejamos ser livres, e viver como temos vivido, mantendo nosso próprio senhor, sem servir a nenhum senhor estrangeiro, seja ele bom ou mau. Em dias melhores, recebíamos bem os visitantes, mas nestes tempos o forasteiro não-convidado nos encontra alertas e duros. Digam! Quem são vocês? A quem servem? A mando de quem estão caçando orcs em nossas terras?
— Não sirvo a homem nenhum — disse Aragorn —, mas persigo os servidores de Sauron por quaisquer terras onde possam andar. Há poucos entre os homens mortais que sabem mais sobre orcs, e eu não os estou caçando desta maneira por escolha própria. Os orcs que perseguimos capturaram dois de meus amigos. Nessas condições, um homem que não tem um cavalo irá a pé, e não pedirá permissão para seguir a trilha. Nem contará as cabeças dos inimigos exceto com a espada . Não estou desarmado.
Aragorn jogou para trás seu manto. A bainha élfica reluziu no momento em que ele a agarrava, e a clara lâmina de Andúril brilhou como uma chama súbita conforme a puxou.
— Elendil! — gritou ele. — Sou Aragorn, filho de Arathorn, e sou chamado de Elessar, a Pedra Élfica, Dúnadan, o herdeiro de Isildur, filho de Elendil, de Gondor. Vai me ajudar ou me impedir? Decida logo!
Gimli e Legolas olhavam seu companheiro com surpresa, pois não o tinham visto daquele jeito antes. Parecia ter crescido em tamanho enquanto Éomer encolhera, e em seu rosto vívido capturaram uma breve visão do poder e majestade dos reis de pedra. Por um momento, pareceu aos Olhos de Legolas que uma chama branca faiscava na fronte de Aragorn, como uma corôa brilhante.
Éomer recuou com um ar estupefato no rosto. Abandonou seu olhar orgulhoso.
— Estes são realmente dias estranhos — murmurou ele. — Sonhos e lendas saltam do capim para a vida real.
— Diga-me, senhor — disse ele, — O que o traz aqui? Qual é o significado das palavras obscuras? Há muito tempo Boromir, filho de Denethor, partiu em busca de uma resposta, e o cavalo que lhe emprestamos voltou sozinho. Que sina terrível traz do norte?
— A sina da escolha — disse Aragorn. — Você pode dizer isto a Théoden, filho de Thengel: a guerra aberta está diante dele, ao lado de Sauron ou contra ele. Ninguém mais pode viver como costumava, e poucos poderão manter o que chamam de seu. Mas desses assuntos grandiosos falaremos depois. Se for possível, eu mesmo irei ter com o rei. Agora estou em grande dificuldade, e peço ajuda, ou pelo menos notícias. Você escutou que estamos caçando um bando de orcs que levou nossos amigos. O que tem a nos dizer?
— Que não precisa mais persegui-los — disse Éomer. — Os orcs foram destruídos.
— E nossos amigos?
— Não encontramos nenhum deles entre os orcs.
— Mas isso é realmente estranho — disse Aragorn. — Procuraram entre os mortos? Não havia cadáveres que não fossem da espécie dos orcs? Seriam pequenos, apenas crianças aos seus olhos, descalços, mas vestidos de cinza.
— Não havia nem crianças nem anões — disse Éomer. — Contamos todos os mortos e os espoliamos, depois fizemos uma pilha com as carcaças e as queimamos, como é nosso costume. As cinzas ainda estão soltando fumaça.
— Não estamos falando de crianças nem de anões — disse Gimli. — Nossos amigos eram hobbits.
— Hobbits? — disse Éomer. — E que vêm a ser eles? Esse nome é estranho.
— Um nome estranho para um povo estranho — disse Gimli. — Mas estes nos eram muito caros. Parece que vocês em Rohan ouviram falar das palavras que perturbaram Minas Tirith. Elas falavam do Pequeno. Esses hobbits são Pequenos.
— Pequenos! — riu o Cavaleiro que estava do lado de Éomer. — Pequenos! Mas eles são apenas um pequeno povo em velhas cantigas e histórias infantis do norte. Estamos andando em lendas ou sobre a terra verde à luz do dia?
— Um homem pode fazer as duas coisas — disse Aragorn. — Pois não seremos nós, mas os que vierem depois, que farão as lendas de nossa época. A terra verde, você diz? Este é um grande assunto para as lendas, embora você pise nela sob a luz do dia.
— O tempo está passando — disse o Cavaleiro, sem dar atenção a Aragorn. — Devemos nos apressar em direção ao sul, senhor. Vamos deixar essas pessoas e suas fantasias. Ou vamos aprisioná-los e levá-los até o rei.
— Paz, Éothain! — disse Éomer em sua própria língua. — Deixe-me um pouco. Diga ao Éored que se reúna no caminho e se apronte para rumar para o Vau Ent.
Éothain se retirou murmurando, e falou aos outros, que logo recuaram e deixaram Éomer sozinho com os três companheiros.
— Tudo o que diz é estranho, Aragorn — disse ele. — Apesar disso, está falando a verdade, sem dúvida: os homens da Terra dos Cavaleiros não mentem, e por isso não são enganados com facilidade. Mas você não disse tudo. Não pode agora falar sobre sua missão de forma mais clara, de modo que eu possa julgar o que fazer?
— Eu parti de Imladris, como se chama esse lugar nas rimas, muitas semanas atrás — respondeu Aragorn. — Comigo partiu Boromir de Minas Tirith. Minha missão era ir para aquela cidade com o filho de Denethor, para ajudar seu povo na guerra contra Sauron. Mas a Comitiva com a qual eu viajava tinha outros objetivos. Disso não posso falar agora. Gandalf, o Cinzento, era nosso líder.
— Gandalf! — exclamou Éomer. — Gandalf Capa-Cinzenta é conhecido por aqui; mas seu nome, eu lhe aviso, não é mais uma senha para se conseguir os favores do rei. Ele foi hóspede desta terra muitas vezes na memória dos homens, vindo quando bem entendesse, depois de uma estação ou depois de muitos anos. Ele é sempre o arauto de acontecimentos estranhos: alguém que traz o mal, dizem alguns atualmente.
— Na verdade, desde sua última vinda no verão, todas as coisas deram errado. Naquela época, começou nosso problema com Saruman. Até então considerávamos Saruman um amigo, mas Gandalf veio e nos avisou que uma guerra súbita estava sendo preparada em Isengard. Disse que ele próprio tinha sido um prisioneiro em Orthanc e quase não escapara, e implorou ajuda. Mas Théoden não lhe deu ouvidos, e ele foi embora. Não fale em voz alta o nome de Gandalf aos ouvidos de Théoden! Ele está furioso, pois Gandalf levou o cavalo chamado Scadufax, o mais precioso dos animais do rei, líder dos Mearas, que apenas o Senhor dos Cavaleiros pode ria montar. Pois o progenitor dessa raça foi o grande cavalo de Eorl, que sabia a língua dos homens. Há sete noites, Scadufax retornou; mas a ira do rei não é menor, pois agora o cavalo ficou indomável e não permite que nenhum homem o controle.
— Então Scadufax encontrou o caminho sozinho, vindo do distante norte — disse Aragorn —, pois foi ali que Gandalf e ele se separaram. Mas infelizmente Gandalf não montará mais. Ele caiu dentro da escuridão das Minas de Moria e não volta mais.
— Essa é uma notícia terrível — disse Éomer. — Pelo menos para mim e muitos outros, mas não para todos, como você poderá verificar se for até o rei.
— Essa notícia é mais lamentável do que qualquer um nesta terra pode entender, embora possa tocá-los dolorosamente antes que o ano avance muito — disse Aragorn. — Mas quando os grandes caem, os menores devem assumir a liderança. Minha parte tem sido guiar nossa Comitiva na longa estrada que vem de Moria. Viemos através de Lórien — e dessa terra seria bom que vocês aprendessem a verdade antes de se referirem a ela outra vez — e depois disso viemos descendo ao longo do Grande Rio, até a cachoeira de Rauros. Ali Boromir foi morto pelos mesmos orcs que vocês destruíram.
— Suas notícias são todas de pesar — disse Éomer arrasado. — A morte de Boromir é uma grande perda para Minas Tirith, e para todos nós. Era um homem valoroso! Era elogiado por todos. Raramente vinha à Terra dos Cavaleiros, pois estava sempre nas guerras das fronteiras do leste, mas eu o vi. Na minha opinião era mais parecido com os velozes filhos de Eorl do que com os austeros homens de Gondor, e provavelmente se mostraria um grande capitão de seu povo quando o momento chegasse. Mas não recebemos qualquer palavra de Gondor sobre essa perda. Quando aconteceu?
— Já faz quatro dias que foi morto — respondeu Aragorn —, e desde esse dia temos viajado, partindo da sombra do Tol Brandir.
— A pé? — exclamou Éomer.
— Sim, da maneira como nos vê agora.
Uma enorme surpresa cobriu os olhos de Éomer.
— Passolargo é um nome muito pobre, filho de Arathorn. Vou chamá-lo de Pé-de-Vento. Esse feito dos três amigos será cantado em muitos salões. Quarenta e cinco léguas vocês percorreram antes do fim do quarto dia! Resistente é a raça de Elendil!
— Mas agora, senhor, que devo fazer? Devo retornar depressa a Théoden. Falei sinceramente diante de meus homens. É verdade que ainda não estamos em guerra declarada contra a Terra Negra, e existem alguns, próximos do ouvido do rei, que lhe dão conselhos covardes; mas a guerra está chegando. Não abandonaremos nossa antiga aliança com Gondor, e enquanto eles lutarem lutaremos ao lado deles: assim digo eu e todos os que permanecem comigo. A Fronteira Leste está ao meu encargo, o distrito do Terceiro Marechal, e removi todos os nossos rebanhos e pastores, retirando-os para além do Entágua, não deixando ninguém exceto guardas e velozes batedores.
— Então vocês não pagam tributo a Sauron? — perguntou Gimli.
— Não, e nunca pagamos — disse Éomer com um brilho nos olhos embora tenha chegado aos meus ouvidos que essa mentira foi espalhada. Há alguns anos, o Senhor da Terra Negra quis comprar nossos cavalos a um alto preço, mas nós recusamos, pois ele utiliza os animais para propósitos malignos. Então ele enviou orcs saqueadores, e eles levam o que conseguem, escolhendo sempre os cavalos negros: agora restam poucos deles. E esta é a razão que explica nossa amarga inimizade com os orcs.
— Mas neste momento nossa principal preocupação é com Saruman . Ele reivindicou soberania sobre toda esta terra, e tem havido guerra entre nós já há vários meses.
Ele recrutou orcs a seu serviço, e montadores de Lobos, e homens maus; bloqueou o Desfiladeiro contra nós, de modo que é provável que fiquemos cercados pelo leste e pelo oeste.
— É terrível lidar com um inimigo desses: ele é um mago, ao mesmo tempo astuto e cheio de poderes mágicos, tendo vários disfarces. Caminha por aí, dizem, como um velho de capuz e capa, muito semelhante a Gandalf, como muitos agora se lembram dele. Seus espiões penetram qualquer rede, e seus pássaros de mau agouro estão espalhados pelo céu. Não sei como tudo isto vai terminar, e meu coração pressente algo mais, pois tenho a impressão de que nem todos os seus amigos moram em Isengard. Mas, se vier à casa do rei, terá a chance de ver com os próprios olhos, Aragorn. Você não virá? Serão vãs minhas esperanças de que você tenha sido enviado como uma ajuda nestes tempos de dúvida e necessidade?
— Irei quando puder — disse Aragorn.
— Venha agora! — disse Éomer. — O Herdeiro de Elendil seria realmente uma força para os Filhos de Eorl nesta maré maligna. Há batalhas neste mesmo momento no Vestemnec, e receio que possamos ser derrotados.
— Na verdade, nesta minha cavalgada para o norte, eu vim s em a permissão do rei, pois na minha ausência sua casa fica com poucos guardas. Mas os batedores me avisaram sobre um bando de orcs descendo da Muralha Leste há três noites, e entre eles viram alguns portando as insígnias brancas de Saruman. Então, suspeitando o que eu mais temia, uma aliança entre Orthanc e a Torre Escura, conduzi meu éored, homens de minha própria casa, e nós alcançamos os orcs ao escurecer, dois dias atrás, perto da fronteira da Floresta Ent. Ali os cercamos e começamos a batalha ontem ao amanhecer. Perdi quinze dos meus homens e doze cavalos, infelizmente. Pois os orcs estavam em maior número do que estimávamos. Outros se juntaram a eles, vindo do leste através do Grande Rio: é fácil ver a trilha que fizeram um pouco ao norte deste local. E outros também vieram da floresta. Grandes orcs, também carregando a Mão Branca de Isengard: essa espécie é mais forte e mais terrível que todas as outras.
— Não obstante isso, acabamos com eles. Mas estamos fora há muito tempo. Precisam de nós no sul e no oeste. Você não virá? Há cavalos sobrando, como pode ver. Há trabalho para a Espada desempenhar. Sim, e poderíamos encontrar utilidade para o machado de Gimli e para o arco de Legolas, se eles desculparem minhas palavras rudes em relação à Senhora da Floresta. Só falei como falam todos os homens de minha terra, e gostaria muito de aprender mais.
— Agradeço-lhe por suas belas palavras — disse Aragorn —, e meu coração deseja acompanhá-lo; mas não posso abandonar meus amigos enquanto houver esperança.
— Não há mais esperança — disse Éomer. — Vocês não encontrarão seus amigos nas fronteiras do norte.
— Mas meus amigos não estão lá atrás. Encontramos um claro sinal não muito longe da Muralha Leste de que pelo menos um deles ainda está vivo. Mas entre a muralha e as colinas não encontramos qualquer outro rastro deles, e nenhuma trilha desviou da principal, seja para um lado ou para outro, a não ser que minha percepção tenha me abandonado por completo.
— Então, o que acha que aconteceu com eles?
— Não sei. Podem ter sido mortos e queimados em meio aos orcs, mas isso você diz que não aconteceu, e não receio que tenha sido assim. Só posso pensar que foram levados para dentro da floresta antes da batalha, antes mesmo de vocês encurralarem seus inimigos, talvez. Você poderia Jurar que nenhum deles escapou de sua emboscada?
— Posso jurar que nenhum orc escapou depois que os vimos — disse Éomer. — Atingimos a fronteira da floresta antes deles, e depois disso, se qualquer ser vivo burlou nosso cerco, então não era um orc e tinha algum poder élfico.
— Nossos amigos estavam vestidos exatamente como nós — disse Aragorn —, e vocês passaram sem nos ver em plena luz do dia.
— Tinha me esquecido disto — disse Éomer. — É difícil ter certeza de qualquer coisa em meio a tantos prodígios. O mundo todo ficou muito estranho. Elfo e anão andam juntos em nossos campos; pessoas conversam com a Senhora da Floresta e continuam vivas, e retorna à batalha a Espada que foi quebrada nas eras antigas anteriores à época em que os pais de nossos pais chegaram à Terra dos Cavaleiros! Como pode um homem julgar o que fazer em tempos assim?
— Como sempre julgou — disse Aragorn. — O bem e o mal não mudaram desde o ano passado; nem são uma coisa para os elfos e anões e outra coisa para os homens. É papel de um homem discerni-los, tanto na Floresta Dourada como em sua própria casa.
— Isso é verdade — disse Éomer. — Não duvido de você, nem da ação que meu coração escolheria. Mas não sou livre para fazer tudo como desejar — É contra nossa lei permitir que forasteiros caminhem por nossa terra, até que o próprio rei lhes dê permissão, e essa ordem é ainda mais estrita nestes dias perigosos. Implorei que me acompanhasse de livre e espontânea vontade, e você não vai me atender. Detesto iniciar uma batalha de cem contra três.
— Não acho que sua lei tenha sido feita para uma ocasião como esta disse Aragorn. — E na verdade não sou um forasteiro, pois já estive nesta terra antes, mais de uma vez, e já montei com o exército dos rohirrim, embora estivesse com outro nome e com outras vestimentas. Você eu não vi antes, pois você é jovem, mas já falei com Éomund, seu pai, e com Théoden, filho de Thengel. Nunca nos dias passados qualquer alto senhor desta terra teria forçado um homem a abandonar uma busca como a minha. Meu dever, pelo menos, está claro: seguir em frente. Vamos lá, filho de Éomund, a escolha deve ser feita finalmente. Ajude-nos, ou no mínimo deixe-nos ir em liberdade. Ou então tente cumprir sua lei. Se fizer isto, haverá menos homens retornando à sua guerra e ao seu rei.
Éomer ficou em silêncio por um momento e depois falou. — Todos nós temos pressa — disse ele. — Meu grupo já se irrita querendo ir embora, e cada hora que passa diminui nossa esperança. Minha escolha é esta. Você pode ir; e, mais ainda, vou emprestar-lhe cavalos. Só peço isto: quando sua missão estiver cumprida, ou se mostrar inútil, retorne com os cavalos pelo Vau Ent até Meduseld, a alta casa em Edoras onde Théoden agora vive. Assim provará a ele que não fiz um julgamento errôneo. Nisso coloco minha pessoa, e talvez minha própria vida, acreditando na sua boa-fé. Não falhe.
— Não falharei! — disse Aragorn.
Houve grande surpresa e muitos olhares sombrios e duvidosos entre os homens de Éomer, quando ele deu ordens para que os cavalos que estavam sobrando fossem emprestados aos forasteiros, mas só Éothain ousou falar abertamente.
— Isto está bem para esse senhor da raça de Gondor, como ele diz ser — disse ele. — Mas quem já ouviu dizer de um cavalo de nossa terra sendo dado a um anão?
— Ninguém — disse Gimli. — E não se preocupe: ninguém nunca vai ouvir uma coisa dessas. Eu prefiro caminhar a montar um animal tão grande, livre ou forçado.
— Mas agora você deve montar, ou vai nos atrasar — disse Aragorn.
— Venha, você vai montar atrás de mim, meu amigo — disse Legolas. Tudo então ficará bem, e você não vai precisar nem tomar emprestado um cavalo nem ser incomodado por ele.
Trouxeram um grande cavalo cinza-escuro para Aragorn, que o montou. — O nome dele é Hasufel — disse Éomer. — Que ele o conduza bem e que tenha melhor sorte do que Gámif, seu falecido dono!
Um cavalo menor e mais leve, mas inquieto e fogoso, foi trazido para Legolas. Seu nome era Arod. Mas Legolas pediu que tirassem a sela e o arreio. — Não preciso deles — disse ele, montando levemente o cavalo com um salto; para a surpresa de todos, Arod ficou dócil e disposto, indo de um lado para o outro logo que ouvia uma palavra de comando: assim era o modo dos elfos com todos os bons animais.
Gimli foi erguido e colocado na garupa do amigo, ao qual se agarrou, não muito mais à vontade do que Sam Gamgi num barco.
— Até logo, e que vocês encontrem o que procuram! — gritou Éomer. Voltem tão rápido quanto puderem, e que nossas espadas brilhem lado a lado daqui para frente.
— Eu voltarei — disse Aragorn.
— E eu voltarei também — disse Gimli. — A questão da Senhora ainda fica entre nós. Preciso ainda ensinar-lhe palavras gentis.
— Vamos ver — disse Éomer. — Tantas coisas estranhas têm acontecido que aprender a elogiar uma bela senhora sob os golpes adoráveis do machado de um anão não parecerá um grande prodígio. Até logo!
Com essas palavras, eles partiram. Muito velozes eram os cavalos de Rohan.
Quando Gimli, depois de um tempo, olhou para trás, o grupo de Éomer já estava pequeno e distante. Aragorn não olhou para trás: estava vigiando a trilha conforme avançavam com velocidade, inclinando-se e colocando a cabeça ao lado do pescoço de Hasufel.
Em breve estavam na borda do Entágua, e ali encontraram a outra trilha da qual Éomer tinha falado, descendo do leste e saindo do Descampado.
Aragorn desmontou e examinou o solo; depois, montando de novo, avançou um pouco em direção ao leste, mantendo-se ao lado da trilha e tentando fazer com que o cavalo não repisasse as pegadas. Depois desceu do cavalo outra vez e examinou o solo, andando para frente e para trás.
— Há pouco a descobrir — disse ele quando retornou. — A trilha principal está toda confundida com a passagem dos cavaleiros quando voltaram; seu caminho externo deve ter sido feito mais próximo ao rio. Mas esta trilha que vai para o leste é nova e visível.
Não há sinais aqui de pés indo em sentido contrário, de volta para o Anduin.
Agora devemos ir mais devagar, para ter certeza de que nenhum vestígio ou pegada se ramifica para qualquer um dos lados, A partir deste ponto, os orcs deviam estar conscientes de que estavam sendo perseguidos; podem ter feito alguma tentativa de levar os prisioneiros para outro lugar antes de serem alcançados.
Conforme avançavam, o dia ia ficando nebuloso. Nuvens baixas e cinzentas desceram sobre o Descampado. A névoa cobriu o sol. As encostas cobertas de árvores de Fangorn assomavam cada vez mais próximas, escurecendo lentamente enquanto o sol ia para o oeste. Os companheiros não viram qualquer sinal de pegadas indo para a direita ou para a esquerda, mas aqui e ali passavam por alguns orcs que haviam caído sobre a trilha quando corriam, com flechas de plumas cinzentas espetadas nas costas ou na garganta.
Finalmente, quando a tarde morria, chegaram às fronteiras da floresta, e numa clareira aberta em meio às primeiras árvores encontraram o local da grande fogueira: as cinzas ainda estavam quentes e fumegantes. Ao lado havia uma grande pilha de elmos e malhas metálicas, escudos partidos e espadas quebradas, arcos e dardos e outros equipamentos de guerra. Sobre uma estaca, bem no meio, estava colocada uma grande cabeça de orc; sobre o elmo despedaçado ainda se podia ver a insígnia branca.
Mais adiante, não muito longe do rio, no ponto onde ele saía da borda da floresta, havia um túmulo. Tinha sido erguido recentemente: a terra removida fora coberta de turfa recém-cortada: em torno estavam fincadas quinze lanças.
Aragorn e seus companheiros procuraram por todos os cantos do campo de batalha, mas a luz foi diminuindo e a noite logo chegou, apagada e cheia de névoa. Até o cair da noite, não tinham descoberto nenhum sinal de Merry ou de Pippin.
— Não podemos fazer mais nada — disse Gimli com tristeza. — Fomos submetidos a muitos enigmas desde que chegamos ao Tol Brandir, mas este é o mais difícil de se decifrar. Eu suporia que os ossos queimados dos hobbits estão agora misturados aos dos orcs. Será uma notícia dura para Frodo, se ele viver para recebê-la, e dura também para o velho hobbit que espera em Valfenda. Elrond era contra a vinda deles.
— Mas Gandalf não era — disse Legolas.
— Mas Gandalf escolheu vir, e foi o primeiro a se perder — respondeu Gimli. — Sua previsão falhou.
— O conselho de Gandalf não se baseava em previsões sobre segurança, nem para ele nem para os outros — disse Aragorn. — Algumas coisas é melhor começar do que recusar, mesmo que o fim possa ser escuro. Mas não vou partir deste lugar ainda. De qualquer modo, devemos esperar pela luz do dia.
Um pouco além do campo de batalha montaram acampamento sob uma grande árvore: parecia uma castanheira, e apesar disso ainda tinha muitas folhas amarronzadas de anos anteriores, como mãos secas com dedos longos e oblíquos que se batiam tristemente na brisa da noite.
Gimli tremeu. Tinham trazido apenas um cobertor para cada um.
— Vamos acender uma fogueira — disse ele. — Não me preocupo mais com o perigo. Que os orcs venham como um bando de mariposas em volta de uma lamparina no verão!
— Se esses hobbits infelizes estão perdidos na floresta, o fogo poderia trazê-los para cá — disse Legolas.
— E poderia também trazer outras coisas, nem orcs nem hobbits — disse Aragorn. — Estamos perto das fronteiras das montanhas do traidor Saruman. Também estamos bem no limite de Fangorn, e é perigoso tocar as árvores dessa floresta, pelo que se comenta.
— Mas os rohirrim fizeram uma grande fogueira aqui ontem — disse Gimli — e derrubaram árvores para fazer o fogo, como se pode ver. Apesar disso, passaram a noite em segurança, após terminado o trabalho.
— Eles eram muitos — disse Aragorn —, e não deram atenção à ira de Fangorn, pois raramente chegam até aqui, e não andam sob as árvores. Mas nossas trilhas provavelmente vão nos conduzir exatamente para o coração da própria floresta. Por isso, tenham cuidado! Não cortem nenhuma madeira viva!
— Não é preciso — disse Gimli. — Os Cavaleiros deixaram galhos e tocos em quantidade suficiente, e há muita madeira morta. — Saiu para recolher lenha, e se ocupou em preparar e acender uma fogueira; mas Aragorn ficou sentado em silêncio, recostado à grande árvore, mergulhado em pensamentos. Legolas ficou parado sozinho no espaço aberto, olhando na direção da profunda sombra da floresta, inclinando-se para a frente, como alguém que tenta escutar vozes chamando de um lugar distante.
Quando o anão conseguiu manter uma pequena chama ardente, os três companheiros se aproximaram da fogueira e sentaram-se próximos, escondendo a luz com suas formas encapuzadas. Legolas levantou os olhos para os ramos da árvore que se estendiam acima deles.
— Olhem! — disse ele. — A árvore está feliz com o fogo!
Pode ser que as sombras dançantes tivessem enganado os olhos dos três, mas a todos eles pareceu que os galhos estavam se inclinando para um lado e para o outro, a fim de se aproximar das chamas, enquanto os ramos mais altos pareciam estar se abaixando; as folhas castanhas se sobressaíam rígidas, e se esfregavam umas às outras como muitas mãos frias e rachadas se reconfortando no calor.
Fez-se silêncio, pois de repente a floresta escura e desconhecida, tão Próxima, fez-se sentir como uma grande presença pairando no ar, cheia de propósitos secretos.
Depois de um tempo, Legolas falou outra vez.
— Celeborn nos avisou para não avançarmos muito no interior de Fangorn — disse ele. — Você sabe a razão disso, Aragorn? Quais são as fábulas sobre a floresta que Boromir ouviu?
— Ouvi muitas histórias em Gondor e em outros lugares — disse Aragorn mas se não fosse pelas palavras de Celeborn eu as consideraria apenas como fábulas que os homens criam quando desaparece o verdadeiro conhecimento. Pensei em perguntar a você o que havia de verdade nesse assunto. E, se um elfo da Floresta não sabe, como pode um homem responder?
— Você viajou a lugares mais distantes que eu — disse Legolas. — Nunca ouvi nada sobre isso em minha própria terra, a não ser as canções que contam como os orodrim, que os homens chamam de ents, moraram aqui há muito tempo; Fangorn é antiga, mesmo para os cômputos dos elfos.
— Sim, é antiga — disse Aragorn. — Antiga como a floresta ao lado das Colinas dos Túmulos, e é muito maior. Elrond diz que as duas são aparentadas, as últimas fortalezas das poderosas florestas dos Dias Antigos, nas quais os Primogênitos perambulavam quando os homens ainda dormiam. Mas Fangorn guarda um segredo próprio. E não sei qual é.
— E eu não quero saber — disse Gimli. — Que nada que vive em Fangorn se incomode por minha causa!
Tinham feito um sorteio para ver quem ia fazer a guarda, e o primeiro turno caiu para Gimli. Os outros se deitaram. Quase imediatamente, o sono lhes sobreveio.
— Gimli! — disse Aragorn sonolento. — Lembre-se, é perigoso cortar galhos ou ramos de uma árvore viva em Fangorn. Mas não se afaste muito à procura de madeira morta. Antes deixe que a fogueira se apague. Chame-me se precisar! — Com isso adormeceu.
Legolas já estava deitado sem se mexer, as belas mãos cruzadas sobre o peito, os olhos abertos misturando a noite de vigília a um sono profundo, como fazem os elfos. Gimli se sentou arqueado perto do fogo, passando o polegar ao longo da lâmina de seu machado, pensativamente. A árvore farfalhou. Não havia qualquer outro som.
De repente Gimli levantou os olhos e ali, bem no limiar da luz do fogo, estava um velho curvado, apoiando-se num cajado, coberto por uma grande capa; o chapéu de abas largas cobria-lhe os olhos. Gimli pulou de pé, surpreso demais naquele momento para gritar, embora imediatamente tivesse vindo à sua mente o pensamento de que Saruman os havia pego. Aragorn e Legolas, acordados por seu movimento brusco, sentaram-se e olharam. O velho não falou nem fez qualquer sinal.
— Meu velho, que podemos fazer pelo senhor? — perguntou Aragorn, saltando de pé.
— Venha e se aqueça, se estiver com frio! — Avançou alguns passos, mas o velho havia desaparecido. Não se via qualquer vestígio dele nas proximidades, e eles não ousaram procurar mais além. A lua havia-se posto, e a noite estava muito escura.
De repente, Legolas deu um grito.
— Os cavalos! Os cavalos!
Os cavalos tinham-se ido. Tinham arrastado as estacas e desaparecido. Por algum tempo, os três companheiros ficaram parados e em silêncio, preocupados com aquele novo golpe de má sorte. Estavam sob as fronteiras de Fangorn, e léguas intermináveis os separavam dos homens de Rohan, seus únicos amigos naquela terra ampla e perigosa.
Parados ali, tiveram a impressão de ouvir, bem distante na noite, o som de cavalos relinchando e relinchando. Depois tudo ficou quieto outra vez, a não ser pelo farfalhar frio do vento.
— Bem, eles se foram — disse Aragorn finalmente. — Não podemos encontrá-los ou capturá-los, de modo que, se não retornarem pela própria vontade, vamos ter de nos arranjar sem eles. Partimos com nossos próprios pés, que ainda temos.
— Pés! — disse Gimli. — Mas não podemos comê-los e ao mesmo tempo andar com eles. — Jogou um pouco de lenha na fogueira e caiu ao lado dela.
— Apenas algumas horas atrás, você não estava disposto a montar um Cavalo de Rohan — riu Legolas. — Agora já é um cavaleiro.
— Se querem saber o que eu penso — começou ele depois de uma pausa. — Acho que foi Saruman. Quem mais poderia ser? Lembrem-se das palavras de Éomer: ele anda por aí como um velho de capuz e capa. Foram essas as palavras que usou. Foi embora com nossos cavalos, ou os afugentou, e aqui estamos nós. Teremos mais problemas, prestem atenção ao que digo!
— Estou prestando atenção — disse Aragorn. — Mas prestei atenção também ao fato de que este velho estava usando um chapéu, e não um capuz. Mas mesmo assim não duvido que sua suposição esteja correta, e que estamos correndo perigo aqui, de noite ou de dia. Apesar disso, por enquanto não há nada que possamos fazer a não ser descansar.
Vou vigiar um pouco agora, Gimli. Tenho mais necessidade de pensar do que de dormir.
A noite passou devagar. Legolas rendeu Aragorn, e Gimli rendeu Legolas, e a guarda de cada um deles se acabou. Mas nada aconteceu. O velho não apareceu de novo, e os cavalos não retornaram.
OS URUK-HAI
Pippin estava tendo um sonho sombrio e turbulento: tinha a impressão de escutar sua própria voz pequena ecoando em túneis negros, chamando Frodo! Frodo! Mas em vez de Frodo centenas de caras horrendas de orcs riam para ele de dentro das sombras, centenas de braços horrendos o agarravam por todos os lados. Onde estava Merry?
Acordou. Um ar frio bateu em seu rosto. Estava deitado de costas. A noite chegava, e o céu estava se apagando. Virou-se e percebeu que o sonho era pouco pior que a realidade. Tinha os pulsos, pernas e tornozelos amarrados por cordas.
Merry estava deitado ao lado, com o rosto lívido e um farrapo sujo cobrindo-lhe a fronte.
Por todos os lados em volta deles, uns sentados e outros de pé, estava um grande grupo de orcs.
Lentamente, na cabeça dolorida de Pippin, a memória foi juntando os pedaços e se separando das sombras dos sonhos. Estava claro: ele e Merry tinham fugido para a floresta. O que tinha dado neles? Por que tinham saído correndo daquele modo, nem dando atenção ao velho Passolargo? Tinham corrido um bom pedaço, gritando — ele não podia se lembrar da distância ou por quanto tempo; então, de repente, tinham dado de cara com um grupo de orcs: estavam parados escutando, e pareciam não ter visto Merry e Pippin até que eles estivessem quase em seus braços. Então gritaram e dúzias de outros orcs pularam das árvores. Merry e ele puxaram as espadas, mas os orcs não queriam lutar, e só tentaram prendê-los, mesmo depois de Merry ter decepado várias mãos e vários braços.
Então Boromir tinha chegado, saltando através das árvores. Tinha-os feito lutar.
Matou muitos deles e o resto fugiu. Mas os três não tinham avançado muito no caminho de volta quando foram atacados de novo, por Pelo menos uma centena de orcs, alguns deles muito grandes, que atiraram uma chuva de flechas: sempre em Boromir. Boromir tocou sua cometa até que a floresta reverberou, e a princípio os orcs ficaram amedrontados e recuaram; mas quando não veio nenhuma resposta a não ser o eco eles atacaram com mais ferocidade que nunca. Pippin não lembrava muito mais.
Sua última lembrança era a de Boromir se apoiando numa árvore, arrancando de seu corpo uma flecha; depois disso, a escuridão caiu de repente.
— Acho que me bateram na cabeça — disse ele consigo mesmo. — Pergunto-me se o pobre Merry não está muito ferido. Que aconteceu com Boromir? Por que os orcs não nos mataram? Onde estamos e para onde vamos?
Não conseguia responder as perguntas. Sentia-se doente e com frio.
“Gostaria que Gandalf não tivesse persuadido Elrond a permitir que viéssemos”, pensou ele. “Que fiz de bom? Nada: fui só um peso morto, um passageiro, uma peça de bagagem. E agora fui raptado e sou uma peça de bagagem para os orcs.
Espero que Passolargo ou alguém venha nos reclamar! Mas será que devo alimentar essa esperança? Isso não estragaria todos os planos? Gostaria de poder me libertar!” Tentou por uns momentos, mas foi totalmente inútil. Um dos orcs que estava sentado ali perto riu e disse alguma coisa a um companheiro na sua língua abominável.
— Descanse enquanto puder, pequeno tolo! — disse ele então a Pippin, na Língua Geral, que na sua boca parecia tão horrenda quanto a própria língua deles. — Descanse enquanto puder! Vamos achar uma utilidade para suas pernas logo, logo.
Vai desejar não ter nenhuma antes de chegarmos em casa.
— Se pudesse escolher, gostaria que vocês estivessem mortos agora disse o outro. — Faria você guinchar, seu rato miserável! — Abaixou-se sobre Pippin, aproximando suas presas amarelas do rosto dele. Tinha na mão uma faca preta com uma lâmina denteada. — Fique quieto, ou vou fazer cócegas em você com isto — disse ele num chiado.
— Não atraia atenção sobre você, ou poderei esquecer minhas ordens. Malditos sejam os isengardenses! Uglúk u bagronk sha pushdug Saruman-glob búbhosh skai. — Passou a um discurso na própria língua que lentamente foi se transformando em resmungos e rosnados.
Apavorado, Pippin ficou imóvel, embora sentisse a dor aumentar nos pulsos e tornozelos, e as pedras sobre as quais estava deitado lhe perfurassem as costas. Para tirar o pensamento de si próprio, escutava atentamente tudo o que conseguia ouvir. Havia muitas vozes ao redor, e embora a língua dos orcs soasse sempre cheia de ódio e raiva parecia que alguma coisa semelhante a uma discussão tinha começado, e estava ficando mais acirrada.
Para a sua própria surpresa, percebeu que grande parte da conversa era inteligível; muitos orcs estavam usando uma linguagem comum.
Aparentemente, membros de duas ou três tribos completamente diferentes estavam presentes, e não podiam entender a língua uns dos outros. Houve uma discussão acalorada sobre o que deveriam fazer: que caminho deviam tomar e o que devia ser feito com os prisioneiros.
— Não há tempo para matá-los adequadamente — disse um. — Não há tempo para diversão nesta viagem.
— Isso não se pode evitar — disse um outro. — Mas por que não matá-los rápido, matá-los agora? São um incômodo desgraçado, e estamos compressa.
A noite está chegando, e devemos nos mexer e ir adiante.
— Ordens — disse uma terceira voz num rosnado grave. — Matem todos, mas NÃO os Pequenos; eles devem ser trazidos VIVOS o mais rápido possível. Isso é as minhas ordens.
— Por que os querem? — perguntaram muitas vozes. — Por que vivos? Eles dão bom divertimento?
— Não! Ouvi dizer que um deles tem uma coisa, uma coisa que é necessária para a Guerra, algum truque élfico ou outra coisa. De qualquer forma, os dois serão interrogados.
— É tudo o que você sabe? Por que não os revistamos para descobrir? Podíamos achar alguma coisa que nós mesmos poderíamos usar.
— Essa é uma observação muito interessante — zombou uma voz, mais suave e mais maligna que as outras. — Talvez eu tenha de reportar isso. NINGUÉM deve revistar ou roubar os prisioneiros: essas são as minhas ordens.
— E minhas também — disse a voz grave. — Vivos e como foram capturados; sem roubo. Isso é minhas ordens.
— Não nossas ordens — disse uma das vozes anteriores. — Fizemos todos o caminho desde as Minas para matar e vingar nosso povo. Quero matar, e depois voltar para o norte.
— Então vai ficar querendo — disse a voz rosnante. — Sou Uglúk. Eu dou as ordens.
Volto para Isengard pelo caminho mais curto.
— Quem é o patrão: Saruman ou o Grande Olho? — disse a voz maligna. — Temos de voltar imediatamente para Lugbúrz.
— Se conseguíssemos atravessar o Grande Rio, poder íamos fazer isso — disse outra voz. — Mas não há um número suficiente de nós que se aventure pelo caminho das pontes.
— Eu a atravessei — disse a voz maligna. — Um Nazgúl alado espera por nós na margem leste, ao norte.
— Talvez, talvez! Daí você vai fugir voando com nossos prisioneiros e ficar com toda a recompensa e os elogios em Lugbúrz, e deixar que nós voltemos a pé como pudermos através da Terra dos Cavalos. Não, vamos ficar juntos. Estas terras são perigosas: cheias de rebeldes e bandidos.
— É, devemos ficar juntos — rosnou Uglúk. — Não confio em você, pequeno suíno.
Você manda em seu próprio chiqueiro. Se não fosse a gente, todos vocês teriam fugido.
Nós somos Uruk-hai guerreiros! Matamos o grande guerreiro. Trouxemos os prisioneiros.
Somos servidores de Saruman, o Sábio, a Mão Branca: a Mão que nos dá carne humana para comer. Viemos de Isengard, e os trouxemos aqui, e vamos levá-los de volta pelo caminho que escolhermos. Sou Uglúk. Eu falei.
— Você falou mais que o suficiente, Uglúk — zombou a voz maligna. Fico pensando se gostariam disso em Lugbúrz. Eles poderiam pensar que os ombros de Uglúk precisam ser aliviados do peso de uma cabeça inchada.
Poderiam perguntar de onde vieram suas estranhas idéias. Vieram de Saruman, talvez? Quem ele pensa que é, dando as ordens sozinho com suas nojentas insígnias brancas?
Talvez eles concordem comigo, com Grishnákh , o mensageiro em quem confiam; e eu, Grishnákh, digo isto: Saruman é um idiota, e um idiota sujo e traiçoeiro. Mas o Grande Olho está sobre ele.
— Suíno, é? O que vocês acham, pessoal, de serem chamados de suínos pelos dedos-duros de um maguinho sujo? Garanto que eles comem carne de orc.
Como resposta vieram muitos berros na língua dos orcs e o eco do tinido das armas sendo sacadas. Cuidadosamente, Pippin virou-se no chão, tentando ver o que iria acontecer. Seus guardas tinham ido se juntar aos outros na briga. No crepúsculo, Pippin viu um orc negro e grande, provavelmente Uglúk, em pé e encarando Grishnákh, uma criatura de pernas curtas e tortas, muito entroncada e com longos braços que chegavam quase até o chão. Em volta deles estavam muitos outros orcs menores. Pippin imaginou que estes eram os do norte. Estavam empunhando facas e espadas, mas hesitavam em atacar Uglúk.
Uglúk gritou, e muitos orcs que tinham quase o tamanho dele correram na direção onde estava. Então, de repente, sem avisar, Uglúk saltou à frente, e com dois golpes rápidos decepou as cabeças de dois adversários. Grishnákh pulou de lado e desapareceu dentro das sombras. Os outros recuaram, e um deles, dando um passo para trás, caiu sobre a figura prostrada de Merry soltando um palavrão. Mas provavelmente isso salvou a vida do hobbit, pois os seguidores de Uglúk saltaram sobre ele e mataram um outro com suas espadas de lâminas largas. Era o guarda de presas amarelas. Seu corpo caiu bem em cima de Pippin, ainda segurando sua longa faca serrilhada.
— Levantem suas armas! — gritou Uglúk. — E vamos deixar de besteira! Vamos para o oeste direto daqui, e vamos descer a escada. Dali, direto para as colinas, depois ao longo do rio até a floresta. E marchar dia e noite. Está claro? “Agora”, pensou Pippin, “se demorar um pouco até esse camarada horroroso conseguir controlar sua tropa, eu terei uma chance.” Teve um laivo de esperança. A lâmina da faca negra tinha cortado seu braço, e depois deslizado até o pulso.
Sentiu que o sangue lhe escorria até a mão, mas também sentiu o toque frio do aço contra a pele.
Os orcs estavam se aprontando para marchar outra vez, mas alguns do norte ainda estavam relutando, e os isengardenses mataram mais dois antes que o resto fosse dominado.
Havia grande confusão e xingamento. Naquele momento, ninguém vigiava Pippin, que tinha as pernas bem presas, mas os braços amarrados só pelos pulsos, com as mãos à frente do corpo. Conseguia mexer as duas juntas, embora as cordas estivessem muito apertadas.
Empurrou o orc morto para um lado e depois, mal ousando respirar, movimentou o nó da corda que prendia o pulso contra a lâmina da faca. Era afiada e a mão morta ainda a segurava com firmeza. A corda foi cortada! Rapidamente, Pippin a tomou nos dedos e atou-a como uma pulseira larga de duas voltas, e passou-a sobre as mãos outra vez.
Depois ficou deitado e bem quieto.
— Peguem os prisioneiros! — gritou Uglúk. — Não brinquem com eles! Se não estiverem vivos quando voltarmos, alguém mais vai ter de morrer também.
Um orc agarrou Pippin como um saco, pôs sua cabeça entre as mãos amarradas do hobbit, segurou-lhe os braços puxando-os para baixo, até que o rosto de Pippin ficasse contra seu pescoço; depois saiu levando-o consigo. Um outro deu o mesmo tratamento a Merry. A mão em garra do orc prendeu como ferro o braço de Pippin; as unhas entraram-lhe na carne. Ele fechou os olhos e voltou aos seus sonhos terríveis.
De repente, foi jogado novamente ao chão. A noite estava começando, mas a lua fina já descia em direção ao oeste. Estavam na beira de um penhasco que parecia se debruçar sobre um mar de névoa pálida. Havia um som de água caindo ali perto.
Os batedores finalmente chegaram — disse um orc que estava próximo. Bem, o que vocês descobriram? — rosnou a voz de Uglúk.
Apenas um único cavaleiro, e ele foi para o oeste. Tudo está claro agora.
Agora, talvez. Mas por quanto tempo? Seus idiotas! Deviam ter atirado nele. Ele vai dar o alarme. Os malditos criadores de cavalos vão ouvir falar de nós pela manhã.
Agora vamos ter de redobrar a velocidade da marcha.
Uma sombra se curvou sobre Pippin. Era Uglúk. — Sente-se — disse o orc. — Meus rapazes estão cansados de carregar vocês. Precisamos descer, e vocês vão ter de usar as próprias pernas. Sejam bonzinhos agora. Não gritem, nem tentem escapar. Temos modos de recompensar trapaças que vocês vão detestar, embora também não estraguem a utilidade que possam ter para o Mestre.
Cortou os nós das pernas e tornozelos de Pippin, ergueu-o pelos cabelos e colocou-o de pé. Pippin caiu, e Uglúk o levantou pelos cabelos outra vez.
Vários orcs riram.
Uglúk abriu um cantil com os dentes e derramou um Pouco de líquido ardente na garganta de Pippin: ele sentiu uma quentura forte fluir-lhe pelo corpo. A dor de suas pernas e tornozelos desapareceu. Conseguiu ficar de pé.
— Agora, para o outro — disse Uglúk. Pippin o viu ir até Merry, que estava deitado ali perto, e chutá-lo. Merry resmungou. Agarrando-o de forma rude, Uglúk o colocou sentado e rasgou a banda que lhe envolvia a cabeça.
Então esfregou o ferimento com alguma coisa escura que retirou de uma caixa de madeira.
Merry gritou e se debateu alucinado. Os orcs bateram palmas e vaiaram. — Não consegue tomar o remédio — caçoaram eles. — Não sabe o que é bom para ele. Ai! Vamos nos divertir mais tarde.
Mas naquele momento Uglúk não estava para brincadeiras. Precisava se apressar e tinha de reanimar seguidores indispostos. Estava curando Merry à maneira dos orcs, e seu tratamento deu resultado rápido. Depois forçou o hobbit a beber o líquido do cantil e cortou as amarras de suas pernas, colocando-o de pé; Merry conseguiu se sustentar, com uma aparência pálida mas severa e desafiadora, e muito viva. O corte em sua testa não o incomodava mais, mas ele ficou com uma cicatriz escura para o resto da vida.
— Alô, Pippin! — disse ele. — Então você também veio nesta pequena expedição?
Onde conseguimos cama e comida?
— Agora! — disse Uglúk. — Nada disso! Segurem suas línguas. Nada de conversas.
Qualquer problema será reportado na chegada, e Ele saber á como recompensá-los. Vocês vão ter cama e comida sim: muito mais do que puderem agüentar.
O bando de orcs começou a descer uma pequena garganta que conduzia à planície cheia de névoa. Merry e Pippin, separados por uma dúzia ou mais de orcs, desceram com eles. Na planície, seus pés tocaram o capim, e os corações dos hobbits ficaram mais leves.
— Agora, sempre em frente! — gritou Uglúk. — Para o oeste e um pouco ao norte. Sigam Lugdúsh.
— Mas o que vamos fazer quando o dia chegar? — perguntaram alguns dos orcs do norte.
— Continuar correndo — disse Uglúk. — Que estão pensando? Que vamos sentar no chão e esperar que os Peles-Brancas se juntem ao piquenique?
— Mas não podemos correr à luz do sol.
— Vocês vão correr porque eu vou atrás de vocês — disse Uglúk. — Corram! Ou nunca mais verão suas adoradas tocas. Pela Mão Branca! Que adianta trazer esses vermes das montanhas numa viagem, sem um treinamento completo? Corram, seus malditos. Corram enquanto a noite durar!
O grupo todo começou a correr no trote largo dos orcs. Não iam em ordem, entrechocando-se, dando empurrões e xingando; apesar disso, avançavam com grande velocidade.
Cada hobbit tinha uma guarda de três orcs. Pippin estava no fim da fila.
Perguntava-se por quanto tempo agüentaria ir naquele passo: não tinha comido nada desde a manhã. Um de seus guardas tinha um chicote. Mas no momento a bebida dos orcs ainda agia sobre ele. Sua percepção também estava bem acordada.
De quando em quando vinha-lhe à mente, sem ser invocada, uma visão do rosto arguto de Passolargo se curvando sobre uma trilha escura, e correndo, correndo atrás.
Mas o que poderia alguém ver, mesmo que fosse um guardião, além de uma trilha confusa de pés de orcs? Suas próprias pegadas e as de Merry estavam sendo cobertas pelo pisotear dos sapatos com cravos dos orcs, à frente, atrás, e em toda a volta deles.
Tinham avançado uma milha ou um pouco mais desde o desfiladeiro quando o terreno começou a descer numa depressão larga e rasa, onde o solo era macio e molhado.
Havia névoa ali, reluzindo pálida aos últimos raios da lua em forma de foice.
As figuras escuras dos orcs ficaram apagadas, e eles foram engolidos pela névoa.
— Ei! Calma agora! — gritou Uglúk de trás.
Um pensamento súbito veio à mente de Pippin, e ele o pôs em prática imediatamente. Afastou-se para o lado, e mergulhou para longe do alcance dos guardas, para dentro da névoa; caiu estatelado no capim.
— Parem! — gritou Uglúk.
Por um momento, houve tumulto e confusão. Pippin saltou de pé e correu.
Mas os orcs foram atrás. Alguns apareceram de repente bem diante dele. “Sem esperanças de escapar!”, pensou Pippin. “Mas existe uma esperança de que eu possa ter deixado algumas de minhas próprias pegadas no chão molhado, e de que elas não sejam desmanchadas.” Levou as duas mãos amarradas à garganta e soltou o broche de sua capa.
No momento em que braços longos e garras fortes o pegaram, deixou o broche cair no chão. “Acho que vai ficar ali até o fim dos tempos”, pensou ele. “Não sei por que fiz isso.
Se os outros escaparam, devem ter ido com Frodo.”
Um chicote se enrolou em suas pernas e ele sufocou um grito.
— Basta! — gritou Uglúk, correndo na direção deles. — Ele ainda tem um longo caminho a percorrer. Obriguem os dois a correr. Usem os chicotes apenas como lembrete.
— Mas não é só isso — rosnou ele, voltando-se para Pippin. — Não vou esquecer. A recompensa foi apenas adiada. Corram!
Nem Pippim nem Merry se lembraram da parte posterior da viagem. Sonhos maus e despertares piores se misturaram num longo túnel de miséria, com a esperança sempre diminuindo e ficando para trás. Correram e correram, esforçando-se para manter o passo com os orcs, lambidos de quando em quando por um chicote habilmente manuseado.
Se paravam ou tropeçavam, eram agarrados e arrastados por algum espaço.
A quentura da bebida dos orcs tinha-se acabado. Pippin se sentia doente e com frio outra vez. De repente, caiu de cara no chão. Mãos fortes com unhas cortantes o ergueram.
Foi de novo carregado como um saco, e a escuridão cresceu à sua volta: se era outra noite ou uma cegueira nos olhos, ele não poderia dizer.
Lentamente, tomou consciência de vozes clamando. Parecia que muitos orcs estavam pedindo uma parada. Uglúk gritava. Sentiu-se sendo jogado ao chão, e ali ficou como caiu, até que sonhos negros tomassem conta dele. Mas não escapou da dor por muito tempo; logo a pinça de ferro de mãos impiedosas estava sobre ele outra vez. Por um tempo foi sacudido e jogado, até que lentamente a escuridão cedeu, e ele acordou outra vez, percebendo que era de manhã. Houve gritos de ordens e ele foi jogado rudemente no capim.
Ali ficou por um tempo, lutando contra o desespero. A cabeça rodava, mas pela quentura do corpo percebeu que lhe tinham dado mais um gole. Um orc se abaixou sobre ele, e jogou-lhe um pouco de pão e uma tira crua de carne-seca. Pippin comeu o pão velho e cinzento com avidez, mas não a carne. Estava esfomeado, mas não esfomeado a ponto de comer carne que lhe tinha sido jogada por um orc, a carne de uma criatura que ele não ousava adivinhar qual seria.
Sentou-se e olhou ao redor. Merry não estava longe. Estavam às margens de um rio veloz e estreito. À frente assomavam montanhas: um pico alto capturava os primeiros raios do sol. Uma mancha escura da floresta se deitava nas encostas mais baixas diante deles.
Ouvia-se grande gritaria e discussão entre os orcs; parecia que uma briga estava a ponto de começar outra vez entre os do norte e os de Isengard.
Alguns apontavam para trás na direção sul, e outros apontavam para o oeste.
— Muito bem — disse Uglúk. — Deixem-nos comigo, então! Nada de matar, como eu já lhes disse antes; mas se querem jogar fora o que viajamos tanto para conseguir, então joguem fora. Vou tomar conta disso. Que os Uruk hai guerreiros façam o trabalho, como sempre. Se estão com medo dos Peles Brancas, corram! Corram! Ali está a floresta — gritou ele, apontando para frente. — Entrem nela! É a melhor esperança que têm. Podem ir! E rápido, antes que eu corte mais algumas cabeças, para botar algum juízo nas outras.
Houve algum xingamento e tumulto, e depois a maioria dos orcs do norte se separaram e se distanciaram, mais de uma centena deles, correndo alucinadamente ao longo do rio em direção às montanhas. Os hobbits foram deixados com os isengardenses: um bando de orcs horríveis e escuros, pelo menos oitenta deles: grandes, de pele escura e olhos oblíquos, com grandes arcos e espadas largas de lâminas curtas. Alguns dos orcs do norte maiores e mais fortes permaneceram com eles.
— Agora vamos cuidar de Grishnákh — disse Uglúk, mas alguns elementos de seu próprio bando estavam olhando inquietos para o sul.
— Eu sei — rosnou Uglúk. — Os malditos cavaleiros perceberam o nosso rastro. Mas isso é culpa sua, Snaga. Você e os outros batedores deveriam ter as orelhas arrancadas. Mas nós somos os guerreiros. Vamos nos banquetear com carne de cavalo, ou coisa melhor.
Naquele momento, Pippin viu por que alguns da tropa tinham apontado para o leste. Daquela direção chegavam agora gritos roucos, e ali estava Grishnákh outra vez, e atrás dele uns vinte outros como ele: orcs de braços longos e pernas tortas. Uglúk avançou para encontrá-los.
— Então vocês voltaram? — disse ele. — Pensaram melhor, hein?
— Voltei para me certificar de que as ordens estão sendo cumpridas e os prisioneiros estão a salvo — respondeu Grishnákh.
— É mesmo? — disse Uglúk. — Esforço desperdiçado. Eu vou cuidar para que as ordens sejam cumpridas sob meu comando. E por que mais voltaram? Vocês foram correndo. Deixaram para trás alguma coisa?
— Deixei um idiota — rosnou Grishnákh. — Mas havia alguns camaradas fortes com ele que são bons demais para se perder. Eu sabia que você os conduziria para uma bagunça. Vim ajudá-los.
— Esplêndido! — disse Uglúk rindo. — Mas a não ser que tenha fibra para lutar você pegou o caminho errado. Lugbúrz: era nosso caminho. Os Peles Brancas estão chegando.
Que aconteceu com seu precioso Nazgúl? Teve outra de suas montarias abatida? Agora, se você o trouxesse junto, isso poderia ser útil — se esses Nazgúl são tudo o que fingem ser.
— Nazgúl, Nazgúl! — disse Grishnákh, tremendo e lambendo os lábios, como se a palavra tivesse um gosto ruim que ele saboreava com sofrimento.
— Você fala do que está muito além do alcance de seus sonhos sujos, Uglúk disse ele. — Nazgúl! Ah! Tudo o que fingem ser! Um dia você vai desejar não ter dito isso.
— Seu macaco! — rosnou ele com ferocidade. — Você precisa saber que eles são a menina-do-Grande-Olho. Mas o Nazgúl alado, por enquanto não, ainda não. Ele não permitirá que se mostrem do outro lado do Grande Rio. Não tão cedo. Eles são para a guerra — e outras finalidades.
— Parece que você sabe muito — disse Uglúk, — Mais do que lhe convém, eu acho.
Talvez aqueles que estão em Lugbúrz possam querer saber como, e por quê. Mas enquanto isso os Uruk-hai de Isengard podem fazer o serviço sujo, como sempre. Não fiquem aqui bajulando. Reúna a sua canalha! Os outros suínos estão correndo para dentro da floresta. É melhor segui-los. Você não retornaria vivo ao Grande Rio. Vamos andando! Agora! Vou estar bem atrás de você.
Os isengardenses pegaram Merry e Pippin de novo e os jogaram sobre as costas.
Depois a tropa partiu. Hora após hora eles correram, parando de vez em quando apenas para entregar os hobbits a carregadores descansados.
Talvez por serem mais rápidos e resistentes, ou então devido a algum plano de Grishnákh, os isengardenses gradualmente passaram pelos orcs de Mordor, e o pessoal de Grishnákh se fechou atrás deles. Logo já estavam levando vantagem sobre os do norte que iam à frente. A floresta começou a se aproximar.
Pippin estava escoriado e com cortes, a cabeça dolorida raspando na mandíbula nojenta e na orelha peluda do orc que o carregava.
Imediatamente à frente iam costas arcadas, e pernas grossas e fortes subiam e desciam, subiam e desciam, incansáveis, como se fossem feitas de fibra e força, marcando os segundos de um pesadelo interminável.
Durante a tarde, a tropa de Uglúk ultrapassou os orcs de Mordor. Eles estavam ficando fatigados com os raios brilhantes do sol, embora fosse apenas um sol de inverno reluzindo num céu frio e pálido; estavam com as cabeças curvadas e as línguas de fora.
— Vermes! — zombavam os isengardenses. — Vocês estão fritos. Os Peles Brancas vão capturá-los e comê-los. Eles estão chegando!
Um grito de Grishnákh demonstrou que isso não era uma simples brincadeira.
Cavaleiros, cavalgando muito rápido, tinham realmente sido vistos: ainda bem atrás, mas avançando mais depressa que os orcs, ganhando terreno como uma onda que avança sobre uma planície onde pessoas estão sendo tragadas pela areia movediça.
Os isengardenses começaram a correr num ritmo duas vezes maior, o que deixou Pippin atônito, parecia um arranque espetacular no final de uma corrida. Então ele viu que o sol afundava, caindo atrás das Montanhas Sombrias; as sombras cobriram toda a terra.
Os soldados de Mordor ergueram as cabeças e também começaram a aumentar a velocidade. A floresta era escura e densa. Já tinham ultrapassado algumas árvores externas. O terreno começava a subir, ficando cada vez mais íngreme; mas os orcs não pararam. Tanto Uglúk como Grishnákh gritavam, incitando-os a avançar num último esforço.
“Eles ainda vão conseguir. Vão escapar”, pensou Pippin. Então conseguiu virar o pescoço, a fim de olhar para trás por sobre os ombros com um olho. Viu que os cavaleiros no leste já estavam emparelhados com os orcs, galopando sobre a planície.
O sol que se punha dourava suas lanças e capacetes, e reluzia em seus cabelos claros e esvoaçantes. Estavam cercando os orcs, impedindo que se espalhassem, e conduzindo-os ao longo da linha do rio.
Queria muito saber que tipo de povo eram eles. Gostaria agora de ter aprendido mais em Valfenda, e examinado mais mapas e coisas; mas naqueles dias os planos para a jornada pareciam estar em mãos mais competentes, e ele jamais tinha considerado a hipótese de se separar de Gandalf, ou de Passolargo, ou mesmo de Frodo. Tudo que podia lembrar de Rohan era que aquele cavalo de Gandalf, Scadufax, tinha vindo daquela terra.
Esse fato lhe trazia esperanças.
“Mas como vão saber que não somos orcs? —, pensou ele. “Não acho que tenham ouvido falar em hobbits por aqui. Acho que devo ficar feliz com a probabilidade de esses orcs animalescos serem destruídos, mas gostaria mais se fosse salvo.” As chances eram de que ele e Merry fossem mortos juntos com os que os capturaram, antes mesmo que os homens de Rohan tomassem conhecimento deles.
Alguns dos cavaleiros pareciam ser arqueiros., treinados para atirar de um cavalo em movimento. Cavalgando rápido para ficarem ao alcance, eles atiraram flechas nos orcs que estavam mais atrás, e vários caíram; então os cavaleiros saíram do alcance das flechas dos inimigos, que atiravam alucinadamente, não ousando parar.
Isso aconteceu várias vezes, e em uma ocasião as flechas caíram entre os isengardenses. Um deles, bem à frente de Pippin, tropeçou e não se levantou mais.
A noite caiu sem que os cavaleiros se aproximassem para a batalha. Muitos orcs tinham caído, mas com certeza uns duzentos ainda restavam. Na escuridão precoce os orcs encontraram um montículo. As bordas da floresta estavam muito próximas, provavelmente a menos de seiscentos metros de distância, mas eles não conseguiam avançar mais. Os cavaleiros tinham feito um círculo em volta deles. U m pequeno grupo desobedeceu a ordem de Uglúk, e continuou correndo para a floresta: só três retornaram.
— Bem, aqui estamos — zombou Grishnákh. — ótima liderança! Espero que o grande Uglúk nos tire do perigo outra vez.
— Ponha esses Pequenos no chão! — ordenou Uglúk, sem dar atenção a Grishnákh. — Você, Lugdúsh, pegue mais dois e fique vigiando! Eles não devem ser mortos, a não ser que os nojentos Peles-Brancas invadam nosso grupo. Entendeu? Enquanto eu estiver vivo, eu os quero. Mas eles não devem gritar e nem ser resgatados. Prenda as pernas deles!
A última parte da ordem foi cumprida impiedosamente. Mas Pippin viu que pela primeira vez estava perto de Merry. Os orcs estavam fazendo um enorme barulho, gritando e batendo as armas, e os hobbits conseguiram conversar aos sussurros por uns momentos.
— Não tenho multa esperança de sair dessa situação — disse Merry. Sinto-me quase morto. Não acho que conseguiria me arrastar para longe, mesmo que estivesse livre.
— Lembas! — sussurrou Pippin. — Lembas: eu tenho um pouco. Você tem? Não acho que nos tiraram outras coisas a não ser as espadas.
— Sim, eu tinha um pacote no bolso — respondeu Merry —, mas deve estar reduzido a migalhas. De qualquer forma, não consigo pôr a boca em meu bolso!
— Não vai ter de fazer isso. Eu... — Mas nesse mesmo momento um chute impiedoso avisou Pippin que o barulho tinha diminuído, e que os guardas estavam alerta.
A noite estava fria e quieta. Por toda a volta do pequeno monte onde os orcs estavam reunidos, pequenas fogueiras apareceram, num vermelho dourado naquela escuridão, um círculo completo delas. Estavam no raio de um tiro longo de flecha, mas os cavaleiros não se mostravam contra a luz, e os orcs desperdiçaram muitas flechas atirando nas fogueiras, até que Uglúk mandou que parassem. Os cavaleiros não faziam ruído algum. Mais tarde da noite, quando a lua saiu da névoa, eles podiam às vezes ser vistos, figuras sombrias que cintilavam uma vez ou outra na luz branca, conforme se moviam numa patrulha ininterrupta.
— Eles vão esperar o sol, malditos! — resmungou um dos guardas. — Por que não nos reunimos e atacamos? O que o velho Uglúk pensa que está fazendo? Gostaria de saber!
— Garanto que gostaria — rosnou Uglúk, chegando por trás. — Quer dizer que eu não penso nada, né? Malditos! Vocês são tão péssimos quanto a outra canalha: os vermes e macacos de Lugbúrz. Não adianta tentar atacar com eles. Só iriam gritar e fugir feito raios, e há mais cavaleiros que o suficiente para varrer nosso grupo da planície.
— Só há uma coisa que esses vermes conseguem fazer: eles enxergam no escuro como corujas. Mas esses Peles-Brancas têm uma visão noturna melhor que a maioria dos homens, por tudo que já ouvi dizer; e não se esqueça dos cavalos! Eles enxergam a brisa da noite, ou pelo menos é o que se diz. Apesar disso, há uma coisa que esses gentis companheiros não sabem: Mauhúr e seus rapazes estão na floresta, e devem aparecer a qualquer momento.
As palavras de Uglúk foram o bastante, aparentemente, para satisfazer os isengardenses, mas os outros orcs estavam desmotivados e rebeldes. Colocaram alguns vigias, mas a maioria deles se deitava no chão, descansando na escuridão agradável.
Ficou realmente muito escuro outra vez, pois a lua passou ao leste, sendo coberta por uma densa nuvem, e Pippin não conseguia ver nada a mais de um metro de distância. As fogueiras não traziam luz ao montículo. Entretanto, os cavaleiros não estavam satisfeitos simplesmente em esperar a aurora e deixar que os inimigos descansassem. Um grito repentino no lado leste do pequeno monte mostrou que alguma coisa estava errada.
Parecia que alguns homens tinham chegado mais perto e descido dos cavalos, arrastando-se até o acampamento e matando vários orcs, e depois tinham desaparecido outra vez.
Uglúk se atirou naquela direção para evitar uma debandada.
Pippin e Merry se sentaram. Os guardas, isengardenses, tinham ido com Uglúk.
Mas se os hobbits chegaram a pensar em fugir esse pensamento foi logo frustrado. Um braço comprido e peludo os pegou pelo pescoço e os trouxe para perto um do outro.
Perceberam vagamente a grande cabeça de Grishnákh e seu rosto odioso entre eles; o hálito nojento do orc batia-lhes nas bochechas. Começou a apalpá-los e tateá-los. Pippin tremeu quando os dedos duros e gelados desceram pelas suas costas.
— Bem, meus pequeninos! — disse Grishnákh num sussurro suave. Gostando do descanso? Ou não? Lugar um pouco inadequado, talvez: espadas e chicotes de um lado, e lanças incômodas do outro! Pessoas pequenas não deviam se meter em coisas grandes demais para elas. Os dedos continuavam procurando alguma coisa.
Havia uma luz semelhante a um fogo pálido, mas quente, em seus olhos.
O pensamento chegou de repente à mente de Pippin, como se capturado diretamente da idéia óbvia do próprio inimigo: “Grishnákh sabe do Anel! Está procurando, enquanto Uglúk está ocupado: provavelmente o quer para si mesmo.” Um pavor frio tomou conta do coração de Pippin, mas ao mesmo tempo ele pensava em como poderia se utilizar do desejo de Grishnákh.
— Acho que não vai encontrá-lo desta maneira — sussurrou ele. — Não é fácil de se encontrar.
— Encontrá-lo? — disse Grishnákh: seus dedos pararam de se mover e agarraram o ombro de Pippin. — Encontrar o quê? De que está falando, pequenino?
Por um momento, Pippin ficou calado. Então, de repente, fez na escuridão um barulho com a garganta: gollum, gollum. — Nada, meu precioso acrescentou ele.
Os hobbits sentiram os dedos de Grishnákh se crispando. — Oh, oh! Chiou o orc baixinho. — É disso que ele está falando, é? Oh, oh! Muito, muito perigoso, meus pequeninos.
— Talvez — disse Merry, agora alerta e consciente da suposição de Pippin.
— Talvez: e não só para nós. Mas você sabe das suas coisas melhor que nós. Você o quer? E o que daria em troca?
— Se eu quero? Se eu quero? — disse Grishnákh, como se estivesse confuso; mas seus braços tremiam. — O que eu daria em troca? Que está querendo dizer?
— Queremos dizer — disse Pippin, escolhendo com cuidado as palavras — que não adianta ficar tateando no escuro. Poderíamos poupar tempo e problemas. Mas primeiro você tem de desamarrar nossas pernas, ou não faremos nada, e não diremos nada também.
— Meus queridos e ternos tolos — chiou Grishnákh —, tudo o que vocês têm e tudo o que sabem será tirado de vocês na hora certa: tudo! Vocês vão desejar ter mais coisas a dizer para satisfazer o Interrogador, ah, se vão: logo, logo. Não vamos apressar o interrogatório, de jeito nenhum! Por que acham que foram mantidos vivos? Meus pequenos companheiros, acreditem quando digo que não foi por gentileza: esse não é sequer um dos defeitos de Uglúk.
— Acho muito fácil acreditar — disse Merry. — Mas vocês ainda não levaram seus prisioneiros para casa. E não parece que vão levar a melhor nessa situação, aconteça o que acontecer. Se chegarmos a Isengard, não será o grande Grishnákh o beneficiado: Saruman vai tomar tudo o que puder encontrar. Se você quer alguma coisa para si mesmo, agora é o momento de fazermos um trato.
Grishnákh começou a ficar zangado. O nome de Saruman parecia enraivecê-lo particularmente. O tempo passava e o tumulto estava diminuindo.
Uglúk ou os isengardenses podiam voltar a qualquer momento. — Estão com ele — um de vocês dois? — rosnou ele.
— Gollum, gollum! — disse Pippin.
— Desamarre nossas pernas! — disse Merry.
Sentiram os braços do orc tremendo violentamente. — Malditos sejam, seus pequenos vermes nojentos! — disse ele num chiado. — Desamarrar suas pernas. Vou desamarrar cada fibra de seus corpos. Acham que não posso revistá-los até os ossos? Revistá-los! Vou cortar os dois em tiras bem fininhas. Não preciso da ajuda de suas pernas para levá-los para longe, e ter vocês inteiramente para mim!
De repente agarrou-os. A força dos braços compridos e ombros era aterradora.
Meteu-os um debaixo de cada braço, e os apertou com força ao corpo; uma mão grande e sufocante cobria-lhes a boca. Depois, de um salto, saiu correndo agachado. Ia depressa e sem barulho, até chegar à beira do pequeno monte.
Ali, escolhendo um espaço entre os guardas, passou como uma sombra maligna para dentro da noite, descendo a encosta e dirigindo-se para o oeste na direção do rio que vinha da floresta. Naquela direção havia um espaço amplo e aberto, com apenas uma fogueira.
Depois de andar uns doze metros, ele parou, espiando e escutando. Não se via nem se ouvia nada. Continuou se arrastando devagar, quase totalmente curvado. Então agachou-se e escutou outra vez. Depois levantou-se como se fosse arriscar uma corrida súbita. Nesse mesmo momento, a figura escura de um cavaleiro se ergueu bem diante dele. Um cavalo bufou e empinou. Um homem gritou.
Grishnákh se jogou no chão, arrastando os hobbits debaixo dele; então puxou a espada. Sem dúvida, sua idéia era matar os prisioneiros, antes de deixá-los escapar para serem resgatados; mas foi aí que ele errou. A espada ressoou baixinho, e reluziu um pouco à luz da fogueira que estava adiante, à sua esquerda.
Uma flecha veio da escuridão assobiando: desferida com habilidade, ou guiada pela sorte, atingiu a mão direita do orc, que deixou cair a espada e gritou. Ouviu-se a batida rápida de cascos, e no momento em que Grishnákh levantava e corria foi pisoteado e uma lança atravessou-lhe o corpo. Depois de um tremor e grito medonhos, caiu sobre o chão sem se mover mais.
Os hobbits continuaram deitados no solo, como Grishnákh os tinha deixado.
Outro cavaleiro veio depressa para ajudar seu companheiro. Fosse por alguma agudeza especial de visão, ou por algum outro sentido, o cavalo subiu e saltou sobre eles com leveza; mas o cavaleiro não os viu, pois estavam deitados e cobertos por suas capas élficas, arrasados e amedrontados demais naquele momento para se mexer.
Finalmente Merry se mexeu e sussurrou baixinho: — Até agora, tudo bem: mas como nós podemos evitar sermos espetados?
A resposta veio quase imediatamente. Os gritos de Grishnákh tinham despertado os orcs. Pelos gritos e guinchos vindos do montículo, os hobbits supuseram que seu desaparecimento fora descoberto: Uglúk provavelmente estava arrancando mais algumas cabeças. Então, de repente, vozes de orcs em gritos de resposta vieram da direita, de fora do círculo de fogueiras, da direção da floresta e das montanhas.
Aparentemente, Mauhúr tinha chegado e estava atacando os sitiadores. Ouviu-se o som de cavalos galopando. Os Cavaleiros estavam fechando o cerco em volta do pequeno monte, arriscando-se às flechas dos orcs de modo a prevenir qualquer outro ataque, enquanto um grupo se afastava para cuidar dos recém-chegados. De repente, Merry e Pippin perceberam que sem se mexer estavam agora fora do círculo: nada restava entre eles e a fuga.
— Agora — disse Merry —, se pelo menos nossos braços e pernas estivessem livres, poderíamos escapar. Mas não consigo tocar os nós, e não Posso mordê-los.
— Nem precisa tentar — disse Pippin. — Eu ia lhe dizer: consegui libertar as mãos. Só deixei essas cordas como encenação. É melhor você comer um pouco de lembas primeiro.
Tirou as cordas dos pulsos e pescou um pacote do bolso. Os bolos estavam partidos, mas em bom estado, ainda embrulhados nas folhas. Os hobbits comeram dois ou três pedaços cada um. O gosto lhes trouxe de volta a lembrança de belos rostos e de riso e de boa comida em dias tranqüilos agora distantes. Por uns momentos, comeram pensativamente, sentados no escuro : sem dar atenção aos gritos e sons da batalha ali perto. Pippin foi o primeiro a voltar ao presente.
— Precisamos fugir — disse ele. — Só um momentinho! — A espada de Grishnákh estava próxima, mas era pesada demais e desajeitada para que ele pudesse usá-la; então arrastou-se à frente, e encontrando o corpo do orc tirou da bainha uma faca longa e afiada.
Com ela cortou rapidamente as amarras.
— Agora vamos! — disse ele. — Quando estivermos um pouco aquecidos, talvez possamos ficar de pé outra vez, ou até caminhar. Mas de qualquer forma é melhor começarmos nos arrastando.
Arrastaram-se. A turfa era funda e mole, e isso os ajudou; mas parecia uma tarefa longa e demorada. Mantendo uma distância segura da fogueira, arrastaram-se como vermes, avançando pouco a pouco, até chegarem à beira do rio, que gorgolejava nas sombras sob suas margens altas. Então olharam para trás.
Os sons tinham sumido. Evidentemente, Mauhúr e seus “rapazes” tinham sido mortos ou derrotados. Os Cavaleiros tinham retornado à sua vigia silenciosa e agourenta.
Não duraria muito mais. A noite já estava bem avançada. No leste, que tinha permanecido sem nuvens, o céu começava a clarear.
— Devemos procurar um abrigo — disse Pippin —, ou seremos vistos. Não vai ser consolo para nós se alguns desses Cavaleiros descobrirem que não somos orcs depois que estivermos mortos. — Levantou-se e ficou de pé.
— Aquelas cordas me cortaram como arame, mas meus pés estão se aquecendo de novo. Eu conseguiria andar agora, com alguma dificuldade. E você, Merry?
Merry ficou de pé. — Sim — disse ele. — Eu consigo. Lembas realmente injeta coragem na gente! E também uma sensação mais agradável que a quentura daquela bebida dos orcs. Pergunto-me do que é feita. Acho que é melhor não saber. Vamos tomar um gole de água e lavar a lembrança daquele gosto.
— Aqui não, as margens são muito escarpadas — disse Pippin. — Para a frente agora!
Voltaram-se e foram andando lado a lado ao longo do rio. Atrás deles a luz crescia no leste. Conforme caminhavam, iam comparando observações, conversando com leveza, à moda dos hobbits, sobre as coisas que tinham acontecido desde sua captura. Ninguém que escutasse suas palavras adivinharia que tinham sofrido cruelmente, e estado em perigo mortal, indo sem esperança em direção ao tormento e à morte, ou que mesmo agora, como eles bem sabiam, tinham pouca chance de reencontrar amigos ou segurança.
— Parece que você tem se saído bem, Mestre Túk — disse Merry. — Você vai conseguir quase um capítulo do livro do velho Bilbo, se eu tiver uma chance de contar a ele. Bom trabalho: principalmente decifrando o joguinho daquele vilão peludo, e fazendo o mesmo jogo. Mas me pergunto se alguém vai achar nossa trilha e pegar aquele broche.
Eu odiaria perder o meu. Mas receio que o seu está perdido para sempre.
— Vou ter de acelerar o passo, se quiser ficar emparelhado com você. Na verdade, o Primo Brandebuque vai na frente agora. É aqui que ele entra. Não acho que você tenha muita noção de onde está, mas gastei meu tempo em Valfenda de forma mais produtiva.
Estamos indo para o oeste, ao longo do Entágua. A extremidade das Montanhas Sombrias está à nossa frente, e também a Floresta de Fangorn.
Enquanto falava, a borda escura da floresta assomou bem diante deles.
Parecia que a noite tinha se refugiado sob aquelas enormes árvores, fugindo da Aurora que se aproximava.
— Conduza-nos para frente, Mestre Brandebuque! — disse Pippin. — Ou para trás!
Fomos avisados para não entrar em Fangorn. Mas alguém tão sabido não esqueceria isso.
— Eu não esqueci — respondeu Merry -, mas, mesmo assim, entrar na floresta me parece melhor do que voltar para o meio da batalha.
Foi à frente sob os grandes galhos das árvores. Pareciam incalculavelmente antigos. Grandes barbas de líquens pendiam delas, esvoaçando e dançando na brisa. Das sombras os hobbits espiaram, olhando para a encosta que descia: pequenas figuras furtivas que na luz fraca se assemelhavam a crianças élficas nas profundezas do tempo, espiando da Floresta Selvagem, admiradas ao ver a primeira Aurora.
Bem adiante, do outro lado do Grande Rio, e das Terras Castanhas, léguas após léguas cinzentas de distância, a Aurora chegou, vermelha como fogo.
Fortes ecoaram as cornetas dos caçadores para saudá-la. Os Cavaleiros de Rohan saltaram subitamente para a vida. Cornetas responderam a cornetas outra vez.
Merry e Pippin ouviram, nítido no ar frio, o relinchar de cavalos de guerra, e o canto súbito de muitos homens. A borda do sol se levantou, um arco de fogo sobre a margem do mundo. Então, com um grande grito, os Cavaleiros atacaram do leste; a luz vermelha reluzia nas malhas e nas lanças. Os orcs berravam e atiravam todas as flechas que ainda tinham. Os hobbits viram vários cavaleiros caírem; mas a fileira deles manteve sua formação subindo a colina e passando sobre ela, fez uma volta e atacou de novo. A maior parte dos invasores que permaneceram vivos se separaram e fugiram, para todos os lados, perseguidos até a morte um a um. Mas um bando, permanecendo junto numa mancha negra, dirigiu-se resolutamente para a floresta. Subindo a colina, avançaram na direção dos observadores. Agora estavam se aproximando, e parecia certeza que iam escapar: já tinham derrubado três Cavaleiros que tentaram barrar seu caminho.
— Observamos durante muito tempo — disse Merry. — Ali vem Uglúk! Não quero encontrá-lo de novo. — Os hobbits voltaram-se e fugiram para dentro das sombras da floresta.
Foi por isso que não viram o último confronto, quando Uglúk foi derrotado e acuado exatamente na fronteira de Fangorn. Ali foi morto por Éomer, o Terceiro Marechal da Terra dos Cavaleiros, que desceu do cavalo e lutou com ele, espada contra espada. E através dos amplos campos os Cavaleiros de olhos argutos caçaram os poucos orcs que tinham escapado e ainda tinham forças para fugir.
Em seguida, após colocarem os companheiros mortos num túmulo, e cantarem seus méritos, os Cavaleiros fizeram uma grande fogueira e espalharam as cinzas de seus inimigos.
Assim terminou o ataque, e nenhuma notícia dele jamais chegou a Mordor ou a Isengard; mas a fumaça da fogueira subiu alto no céu e foi vista por muitos olhos atentos.
BARBÁRVORE
Enquanto isso os hobbits iam a toda velocidade que a floresta escura e emaranhada permitia, seguindo a linha do rio, para o oeste e para cima, na direção das encostas das montanhas, entrando cada vez mais no coração de Fangorn. Lentamente, o medo que sentiam dos orcs foi desaparecendo, e seu passo diminuindo. Uma estranha sensação de sufocamento tomou conta deles, como se o ar fosse muito escasso e rarefeito para que pudessem respirá-lo.
Finalmente, Merry parou. — Não podemos continuar assim — disse ele ofegando. — Preciso de um pouco de ar.
— De qualquer forma, vamos beber alguma coisa — disse Pippin. Estou ressecado. — Trepou numa grande raiz de árvore que descia até o rio e, agachando-se, pegou um pouco de água nas mãos em concha. A água era fria e cristalina, e ele bebeu vários goles. Merry fez o mesmo. A água os reconfortou e pareceu alegrar-lhes o coração; por um tempo ficaram ali sentados, na borda do rio, mergulhando na água pés e pernas doloridos, espiando as árvores que se erguiam silenciosas ao redor deles, fileira após fileira, até desaparecerem dentro do crepúsculo cinzento, em todas as direções.
— Suponho que você ainda não nos tenha feito perder o caminho disse Pippin, encostando-se num grande tronco de árvore. — Pelo menos podemos seguir o curso do rio, o Entágua ou qualquer que seja o nome que você lhe dá, e sair outra vez por onde entramos.
— Poderíamos, se nossas pernas conseguissem — disse Merry — e se conseguíssemos respirar adequadamente.
— Sim, está tudo muito escuro e abafado aqui — disse Pippin. — De alguma maneira me faz lembrar da velha sala no Grande Solar dos Túks, lá nos Smials em Tuqueburgo: um cômodo enorme, onde a mobília não foi mudada ou removida por gerações. Dizem que o Velho Túk viveu nela por anos a fio, enquanto ele e a sala iam ficando mais velhos e desgastados juntos — e a sala nunca foi mexida depois que ele morreu, há um século. E o Velho Gerontius era meu tataravô: isso faz recuar um bocado no tempo. Mas não se compara ao que se sente aqui. Veja todas aquelas barbas e suíças de líquen, chorosas, rastejantes! E a maioria das árvores parece estar meio coberta de folhas secas e despedaçadas que jamais caíram. Desmazeladas. Não consigo imaginar como seria a primavera aqui, se é que ela atinge este lugar; e menos ainda uma faxina de primavera.
— Mas de qualquer jeito o Sol deve dar uma espiadinha aqui dentro de vez em quando — disse Merry. — A floresta não se assemelha à descrição que Bilbo fez da Floresta das Trevas. Aquela era toda escura e negra, o lar de coisas escuras e negras. Esta é apenas pouco iluminada, e assustadoramente arvoresca. Não se pode de forma alguma imaginar animais vivendo ou permanecendo aqui por muito tempo.
— Não, e nem hobbits — disse Pippin, — E também não gosto da idéia de tentarmos atravessá-la. Nada para comer por uma centena de milhas, eu desconfio. Como estão nossos suprimentos?
— Escassos — disse Merry. — Fugimos sem levar quase nada, a não ser alguns pacotes a mais de lembas, e deixamos tudo para trás. — Olharam para o que restou dos bolos élficos: pedaços quebrados que poderiam durar cerca de cinco dias de necessidade, isso era tudo. — E nenhum agasalho ou cobertor — disse Merry, — Vamos sentir frio à noite, qualquer que seja a direção que tomemos.
— Bem, é melhor decidirmos isso agora — disse Pippin. — A manhã deve estar avançando.
Nesse exato momento, perceberam uma luz amarela que tinha aparecido, a alguma distância mais para dentro da floresta: lanças de luz solar pareciam ter perfurado repentinamente o teto da floresta.
— Olhe lá! — disse Merry. — O sol deve ter entrado numa nuvem enquanto estivemos sob estas árvores, e agora ele saiu novamente; ou então subiu o suficiente para olhar de cima, através de alguma abertura. Não está longe — vamos investigar!
Descobriram que a claridade estava mais longe do que tinham imaginado. O solo subia de modo abrupto, ficando cada vez mais pedregoso. A luz ficou mais forte conforme avançaram, e logo perceberam que havia uma muralha de rocha diante deles: a encosta de uma colina, ou a extremidade abrupta de alguma longa raiz das montanhas distantes.
Nenhuma árvore crescia nela, e o sol batia em cheio sobre a face de pedra. Os galhos das árvores ao sopé estavam estendidos e completamente paralisados, como se tentassem alcançar o calor. Onde tudo parecera tão desolado e cinzento antes, a floresta agora reluzia com ricas tonalidades castanhas, e com o preto-acinzentado dos troncos que pareciam couro polido. As copas das árvores brilhavam com um verde suave, como relva nova: o início da primavera, ou uma visão fugaz dela, envolvia-as.
Na superfície da muralha rochosa havia algo como uma escada: talvez natural, feita pela erosão e por fissuras na pedra, pois era áspera e irregular. Na parte de cima, quase na altura das copas das árvores da floresta, havia um patamar sob um penhasco. Nada crescia ali, com exceção de um pouco de capim e mato nas bordas, e um velho tronco de árvore com apenas dois galhos curvados: parecia quase a figura retorcida de um velho, parado ali, piscando à luz matinal.
— Para cima! — disse Merry alegremente. — Vamos em busca de ar e de uma vista panorâmica!
Foram escalando a rocha com dificuldade. Se a escada tivesse sido feita, destinavase a pés maiores e pernas mais compridas que as deles. Os hobbits estavam ansiosos demais para se surpreenderem com o modo notável pelo qual os cortes e ferimentos de seu cativeiro tinham sarado, e o vigor lhes retornara aos corpos. Finalmente chegaram à borda do patamar, quase ao pé do velho tronco; então deram um salto e voltaram as costas para a colina, respirando fundo, e olhando para o leste, Perceberam que tinham avançado apenas umas três ou quatro milhas floresta adentro; as cabeças das árvores marchavam encosta abaixo em direção à planície.
Nesse ponto, perto da franja da floresta, longas espirais de fumaça negra e encaracolada subiam, oscilando e flutuando na direção deles.
— O vento está mudando — disse Merry. — Voltou-se para o leste outra vez.
— Está frio aqui em cima.
— É — disse Pippin. — Receio que essa claridade seja passageira, e que tudo fique cinzento outra vez. Que pena! Essa velha floresta desgrenhada ficava tão diferente à luz do sol! Quase senti que gostava do lugar.
Quase sentiu que gostava da Floresta! Isso é bom! Você foi de uma gentileza rara — disse uma voz estranha. — Virem-se e deixem-me dar uma olhada em seus rostos.
Quase senti que não gostava de vocês dois, mas não sejamos apressados.
Virem-se! — Uma grande mão com saliências nodosas pousou nos ombros de cada um deles, e eles foram virados, suave mas irresistivelmente; depois dois grandes braços os ergueram.
Descobriram-se olhando para um rosto extraordinário. Pertencia a uma figura semelhante a um homem, quase semelhante a um troll, de pelo menos quatro metros e meio de altura, muito robusta, com uma cabeça alta e quase sem pescoço. Se estava coberta por alguma coisa semelhante a casca de árvore verde e cinzenta, ou se aquilo era seu couro, era dificil dizer. De qualquer forma, os braços, numa pequena distância do tronco, não eram enrugados, mas cobertos de uma pele lisa e castanha. Cada um dos pés tinha sete dedos. A parte inferior do rosto comprido estava coberta por uma vasta barba cinza, cerrada, quase dura como galhos na raiz, fina feito musgo nas Pontas. Mas naquela hora os hobbits notaram pouca coisa além dos olhos. Uns olhos profundos, lentos e solenes, mas muito penetrantes. Eram castanhos, carregados de uma luz esverdeada.
Tempos depois, freqüentemente Merry tentou descrever a primeira impressão que teve deles.
A sensação era como se houvesse um poço enorme atrás deles, cheio de eras de memória e de um pensamento constante, longo, lento; mas a superfície faiscava com o presente: como o sol tremeluzindo nas folhas externas de uma imensa árvore, ou nas ondas de um lago muito fundo. Não sei, mas parecia que alguma coisa que crescia na terra-adormecida, pode-se dizer, ou apenas percebendo-se a si mesma como algo entre a extremidade de uma raiz e a ponta de uma folha, entre a terra funda e o céu — despertara de repente, e estava observando você com o mesmo cuidado lento que tinha dedicado às suas próprias preocupações por anos intermináveis.
— Huum, Hum — murmurou a voz, uma voz profunda como um instrumento de sopro muito grave. — Realmente muito estranho! Não se apresse, este é meu mote. Mas se eu tivesse visto vocês antes de ouvir suas vozes, gostei delas: agradáveis pequenas vozes; fizeram-me pensar em algo de que não consigo me lembrar —, se tivesse visto vocês antes de ouvi-los, teria simplesmente pisado em vocês, tomando-os por pequenos orcs, e só perceberia o erro depois. Muito estranhos são vocês, realmente. Raiz e galho, muito estranhos!
Pippin, embora ainda pasmo, não sentia mais medo. Sob aqueles olhos sentia um curioso suspense, mas não medo. — Por favor — disse ele quem é você?
Um olhar estranho surgiu nos velhos olhos, um tipo de cautela; os poços fundos estavam cobertos.
— Huum, agora — respondeu a voz —, bem, eu sou um ent, ou é assim que me chamam. Sim, ent é a palavra. O ent, eu sou, você pode dizer, no seu modo de falar. Fangorn é meu nome segundo alguns, outros me chamam de Barbárvore. Barbárvore está bom.
— Um ent — disse Merry. — O que é isso? Mas como você próprio se chama? Qual é o seu nome verdadeiro?
— Huuu, agora! — respondeu Barbárvore. — Huuu! Isso já daria uma história! Não tão depressa. E eu estou fazendo as perguntas. Vocês estão no meu território. Que são vocês, eu me pergunto? Não consigo classificá-los. Parece que vocês não estão nas velhas listas que aprendi quando era jovem. Mas isso foi há muito, muito tempo, e pode ser que eles tenham feito listas novas. Deixe-me ver! Deixe-me ver! Como era mesmo?
Aprende a lição dos seres viventes! Nomeie primeiro os quatro povos livres: Os filhos dos Elfos que são os mais velhos; Anão cavador das casas escuras; O Ent da terra, da idade dos montes; Homem mortal, senhor dos cavalos:
Hum, hum,
Hum, hum
Castor construtor,
cervo saltitante,
Urso abelhudo,
javali brigador;
O cão é faminto,
a lebre é medrosa...
Hum, hum.
Águia no ninho,
boi na pastagem,
veado o chifrudo,
gavião o mais lesto,
Cisne o mais branco,
serpente a mais fria...
— Hum, hum, hum, hum, como era mesmo? Hum hum, hum hum, rum tum tum.
Era uma longa lista. Mas de qualquer forma vocês parecem não se encaixar em lugar nenhum.
— Parece que sempre ficamos de fora das velhas listas, e das velhas histórias — disse Merry. — Apesar disso, estamos em circulação há muito tempo. Somos hobbits.
— Por que não fazer mais um verso? — disse Pippin. — Hobbits pequenos, que moram em tocas
— Coloque-nos entre os quatro, perto dos Homens (as Pessoas Grandes), e fica tudo certo.
— Hum! Nada mal, nada mal — disse Barbárvore. — Assim ficaria bem. Então vocês vivem em tocas, hein? Sôa muito correto e adequado. Mas quem chama vocês de hobbits? Não me parece um nome élfico. Os elfos fizeram todas as palavras antigas: eles começaram isso.
— Ninguém mais nos chama de hobbits; nós nos chamamos assim — disse Pippin.
— Hum, hum! Esperem um pouco! Não tão depressa! Vocês se chamam de hobbits? Mas então não deveriam dizer isso a qualquer um. Vão revelar seus próprios nomes corretos, se não forem cautelosos!
— Não temos cautela em relação a isso — disse Merry. — Para falar a verdade, sou um Brandebuque, Meriadoc Brandebuque, embora a maior par te das pessoas me chame simplesmente de Merry.
— E eu sou um Túk, Peregrin Túk, mas geralmente sou chamado de Pippin, ou até de Pip.
— Hum, mas vocês são pessoas apressadas, estou vendo — disse Barbárvore. — Fico honrado com a confiança que depositam em mim; mas não deveriam ficar assim totalmente à vontade tão depressa. Há ents e ents, vocês sabem; ou há ents e seres que se parecem com ents mas não são, por assim dizer. Vou chamá-los de Merry e Pippin se isso lhes agrada — bons nomes. Pois não vou lhes dizer meu nome; não por enquanto, de qualquer forma. — Um olhar estranho, meio irônico e meio sábio, veio de seus olhos numa centelha esverdeada. — Em primeiro lugar, porque levaria muito tempo; meu nome é como uma história. Os nomes verdadeiros, na minha língua, contam as histórias dos seres a quem pertencem. No velho entês, como vocês diriam. É uma língua adorável, mas leva muito tempo para se dizer qualquer coisa nela, porque não dizemos nada nela a não ser que valha a pena gastar um longo tempo para dizer, e para escutar.
— Mas, agora — e os olhos ficaram muito brilhantes e “presentes”, dando a impressão de terem diminuído e quase ficado aguçados —, o que está acontecendo? Posso ver e ouvir (e cheirar e sentir) muita coisa, desse , desse, desse a-lalla-lalla-rumbakamanda-lind-or-btírúniê. Desculpem, essa é parte do meu nome para essa coisa: não sei qual é a palavra nas línguas de fora: vocês sabem, a coisa na qual estamos, onde eu fico e olho ao redor nas manhãs agradáveis, e penso no sol, e na relva além da floresta, e nos cavalos, e nas nuvens, e no desabrochar do mundo. O que está acontecendo? O que Gandalf está fazendo? E esses — burárum —, ele soltou um enorme estrondo, como uma dissonância num grande órgão —, esses orcs, e O jovem Saruman lá em Isengard? Gosto de notícias. Mas não sejam muito apressados agora.
— Tem muita coisa acontecendo — disse Merry —, e mesmo que tentássemos ser rápidos levaria muito tempo para contar. Mas você disse para não nos apressarmos.
Devemos contar-lhe alguma coisa logo? Seria rude se perguntássemos o que vai fazer conosco, e de qual lado está? E você conheceu Gandalf?
— Sim, eu o conheço: o único mago que realmente se preocupa com as árvores — disse Barbárvore. — Vocês o conhecem?
— Sim — disse Pippin tristemente —, conhecíamos. Ele era um grande amigo, e nosso guia.
— Então posso responder a suas outras perguntas — disse Barbárvore.
— Não vou fazer nada com vocês: não se com isso vocês estiverem querendo dizer “fazer algo a vocês” sem sua permissão. Podemos fazer algumas coisas juntos. Não sei nada sobre lados. Sigo meu próprio caminho, mas o caminho de vocês pode acompanhar o meu por um tempo. Mas vocês falam do Mestre Gandalf como se ele estivesse numa história que tivesse chegado ao fim.
— Sim, falamos — disse Pippin tristemente. — A história parece estar continuando, mas receio que Gandalf tenha caído fora dela.
— Huu, esperem agora! — disse Barbárvore. — Hum, hum, ah, bem. — Ele parou e olhou longamente para os dois hobbits. — Hum, ah, bem, não sei o que dizer. Esperem um pouco!
— Se quiser escutar mais — disse Merry —, nós podemos contar. Mas vai levar algum tempo. Você não gostaria de nos pôr no chão? Não poderíamos sentar juntos ao sol, enquanto ainda o temos? Você deve estar ficando cansado de nos carregar.
— Hun, cansado? Não, não estou cansado. Não me canso facilmente. E não me sento. Não sou muito, inclinável. Mas olhem, o sol está entrando. Vamos deixar esta — vocês disseram como o chamam?
— Colina? — sugeriu Pippin. — Patamar? Degrau? — sugeriu Merry.
Barbárvore repetiu as palavras pensativamente.
— Colina. Sim, era isso. Mas é uma palavra rápida para uma coisa que está aqui desde que esta parte do mundo foi formada. Não importa. Vamos deixá-la e ir.
— Aonde vamos? — perguntou Merry.
— Para minha casa, ou uma de minhas casas — respondeu Barbárvore.
— É longe?
— Não sei. Vocês podem dizer que é longe, talvez, Mas que importância tem isso?
— Bem, você sabe, perdemos todas as nossas coisas — disse Merry. Temos só um pouco de comida.
— Oh! Hum! Vocês não precisam se preocupar com isso — disse Barbárvore. — Posso lhes dar uma bebida que os manterá verdes e crescendo por um longo, longo tempo. E se decidirmos nos separar posso colocá-los fora de meu território em qualquer ponto que escolherem. Vamos!
Segurando os hobbits suavemente, mas com firmeza, um na curva de cada braço, Barbárvore levantou primeiro um de seus pés grandes, e depois o outro, levando-os até a borda do patamar rochoso. Os dedos em forma de raiz agarraram as rochas. Depois, cuidadosamente, ele foi descendo degrau por degrau, e chegou ao chão da Floresta.
Imediatamente partiu com passos enormes e deliberados através das árvores, afundando cada vez mais na floresta, nunca se distanciando do rio, subindo sem parar em direção às encostas das montanhas. Muitas das árvores pareciam estar dormindo, ou não se dando conta da presença dele ou de qualquer outra criatura que simplesmente passasse; mas algumas estremeciam, e outras levantavam seus galhos acima da cabeça dele conforme Barbárvore se aproximava. Todo o tempo, enquanto andava, ele falava consigo mesmo, numa longa cadeia contínua de sons musicais.
Os hobbits ficaram em silêncio por um tempo. Sentiam-se, por incrível que pareça, confortáveis e a salvo, e tinham muito o que pensar e ponderar.
Finalmente, Pippin arriscou falar de novo.
— Por favor, Barbárvore — disse ele —, posso lhe perguntar uma coisa? Por que
Celeborn nos advertiu sobre sua floresta? Ele nos disse que não nos arriscássemos a nos embrenhar nela.
— Hum, ele disse, é? — ribombou Barbárvore. — E eu poderia ter dito o mesmo, se vocês estivessem indo daqui para lá. Não se arrisquem a se embrenhar na floresta de Laurelindórenan! É assim que os elfos costumavam chamá-la, mas agora eles encurtaram o nome: Lothlórien, é como a chamam. Talvez estejam certos: talvez ela esteja sumindo e não crescendo. Terra do Vale do Ouro Cantante, era como se chamava há muito tempo.
Agora é a Flor do Sonho. Ah, bem! Mas é um lugar estranho, e não é para qualquer um se aventurar nela. Fico surpreso em saber que vocês conseguiram sair de lá, mas muito mais surpreso ao pensar que vocês conseguiram entrar: isso não acontece com um forasteiro há muitos e muitos anos. É um lugar estranho.
— E este também é. Muitos encontraram a tristeza aqui. Sim, encontraram tristeza.
Laurelindórenan findelorendor malinornéfion omemalin murmurou ele consigo mesmo.
— Eles de certa forma estão ficando para trás do mundo lá, eu acho — disse ele. — Nem este lugar, nem qualquer outra coisa fora da Floresta Dourada, é aquilo que era quando Celeborn era jovem. Mas: Taurelilómêa-tumbalemorna Tumbaletaurêa Lómêanor, é isso que eles costumavam dizer. As coisas mudaram, mas isso ainda é verdade em alguns lugares.
— Que quer dizer? — disse Pippin. — O que é verdade?
— As árvores e os ents — disse Barbárvore. — Eu mesmo não entendo tudo o que está acontecendo, por isso não posso lhes explicar. Alguns de nós ainda são ents verdadeiros, e bastante vivos à nossa própria maneira, mas muitos estão ficando sonolentos, ficando arvorescos, por assim dizer. A maioria das árvores são árvores verdadeiras, é claro; mas muitas estão semi-acordadas. Outras estão bastante acordadas, e algumas estão, bem, ah, bem, ficando entescas. Isso está acontecendo o tempo todo.
— Quando isso acontece a uma árvore, você descobre que algumas têm corações maus. Não tem nada a ver com a madeira: não quero dizer isso. Vejam, eu conheci alguns bons salgueiros velhos, descendo o Entágua, que se foram há muito tempo, infelizmente!
Estavam bem ocos, na verdade estavam caindo aos pedaços, mas eram tranqüilos e falavam suavemente como uma folha jovem. E também há algumas árvores nos vales sob as montanhas, vendendo saúde e totalmente más. Esse tipo de coisa parece estar se espalhando. Costumava haver umas partes muito perigosas neste lugar. Ainda há alguns trechos muito negros.
— Como a Floresta Velha lá no norte, você quer dizer? — perguntou Merry.
— É, é, alguma coisa assim, mas muito pior. Não duvido que exista alguma sombra da Grande Escuridão pairando ainda no norte, e más recordações se transmitem de geração a geração. Mas existem vales escuros nesta terra onde a Escuridão nunca foi devassada, e onde as árvores são mais velhas que eu. Mesmo assim, fazemos o que podemos. Mantemos à distância forasteiros e atrevidos; e ensinamos e treinamos, caminhando e carpindo.
— Somos pastores de árvores, nós, os velhos ents. Restou um número suficiente de nossa espécie. As ovelhas ficam como os pastores, e os pastores como as ovelhas, é o que se diz; mas lentamente, e nenhum dos dois permanece multo no mundo. Acontece mais rápido e mais de perto com as árvores e os ents, e eles caminham juntos através das eras.
Pois os ents são mais como os elfos: menos interessados em si próprios do que os homens, e melhores para penetrar os outros seres. E apesar disso os ents são mais como os homens, mais mutáveis que os elfos, e mais rápidos para assumir as cores do exterior, por assim dizer. Ou melhores que ambos: pois são mais firmes e mantêm as mentes nas coisas por mais tempo. Alguns de meus parentes são exatamente como árvores atualmente, e precisam de algo grandioso que os desperte; agora só conversam aos sussurros. Mas outros têm os membros flexíveis, e muitos conseguem conversar comigo. Os elfos começaram tudo, é claro, despertando as árvores e ensinando-as a falar e aprendendo sua fala-de-árvore. Eles sempre desejaram conversar com tudo, os velhos elfos. Mas depois a Grande Escuridão chegou, e eles foram para longe através do Mar, ou fugiram para vales distantes e se esconderam, e fizeram canções sobre tempos que jamais voltariam. Nunca mais. — É sim, houve um tempo em que só havia uma floresta, daqui até as Montanhas de Un, e esta era apenas a Extremidade Leste.
— Aqueles foram dias grandiosos! Houve um tempo em que eu podia caminhar e cantar o dia todo e escutar apenas o eco de minha própria voz nas concavidades das colinas. As florestas eram como a floresta de Lothlórien, apenas mais densas, mais fortes, mais jovens. E o aroma do ar! Eu costumava passar uma semana só respirando.
Barbárvore ficou em silencio, avançando a grandes passadas e apesar disso mal fazendo ruído com seus grandes pés. Depois começou a cantar baixinho outra vez, passando então para um canto murmurante. Gradualmente, os hobbits perceberam que ele cantava para eles:
Pelos prados de salgueiros de Tasarinan caminhei na Primavera.
Ah! a paisagem e o cheiro da Primavera em Nan-tasarion!
E eu disse que era bom.
Eu vaguei no Verão pelos bosques de olmos de Ossiriand.
Ah! a luz e a música no Verão ao longo dos Sete Rios de Ossir!
E eu pensei que era melhor
As faias de Neldoreth visitei no Outono.
Ah! o ouro e o vermelho e o suspiro das folhas do Outono em Taur-na-neldor!
Era mais do que eu desejava.
Até os pinheiros da planície de Dorthonion galguei no Inverno.
Ah! o vento e a brancura e os galhos negros do Inverno em Orod-na-Thôn!
Minha voz se soltou e cantou no céu.
E agora aquelas terras jazem todas sob as águas,
E eu caminho em Ambaróna, em Tauremorna, em Aldalómê,
Na minha própria terra, no território de Fangorn,
Onde as raízes são longas,
E os anos fazem mais densos do que as fôlhas
Em Tauremornalômê.
Terminou e continuou caminhando em silêncio, e em toda a floresta, até onde os ouvidos podiam alcançar, não havia ruído algum.
O dia terminava e o crepúsculo se entrelaçava às copas das árvores.
Finalmente os hobbits viram, assomando vagamente diante deles, uma terra íngreme e escura: tinham atingido os pés das montanhas, e as raízes verdes do alto Methedras. Descendo a encosta, o jovem Entágua, saltando de suas nascentes que ficavam bem acima, corria ruidosamente de degrau em degrau, ao encontro deles. À direita do rio havia uma longa encosta, coberta de relva, que agora se acinzentava ao crepúsculo. Ali não cresciam árvores, e a encosta se abria para o céu; as estrelas já brilhavam em lagos, entremeadas por margens de nuvens.
Barbárvore subiu a encosta, quase sem diminuir o passo. De repente os hobbits viram adiante uma grande abertura, Duas grandes árvores se erguiam ali, uma de cada lado, como um enorme portal vivo; mas não havia portão algum, a não ser pelos próprios galhos que se cruzavam e entrelaçavam. Quando o velho ent se aproximou, as árvores ergueram seus galhos, e todas as folhas estremeceram e farfalharam. Eram árvores perenes, com folhas escuras e polidas que reluziam no crepúsculo. Depois delas havia um amplo espaço plano, como se o assoalho de um grande salão tivesse sido recortado no flanco da colina. Dos dois lados as paredes subiam, até atingir uma altura de quinze metros ou mais, e ao longo de cada parede ficava um corredor de árvores que também cresciam em altura conforme avançavam para dentro.
Na extremidade oposta a parede rochosa era íngreme, mas na parte de baixo tinha sido escavada uma concavidade, que formava um vão baixo com um teto arqueado: o único teto do salão, a não ser pelos galhos das árvores, que na extremidade interior cobriam de sombras todo o chão, deixando aberta apenas uma trilha larga no meio. Um pequeno riacho fugia das nascentes acima e, abandonando a correnteza principal, caía tinindo pela superfície íngreme da parede, derramando-se em gotas prateadas como uma fina cortina à frente do vão sob o arco. A água era recolhida novamente dentro de uma bacia de pedra que ficava no chão entre as árvores, e depois transbordava e corria ao lado da trilha descoberta, para juntar-se ao Entágua em sua viagem através da floresta.
— Hum! Aqui estamos! — disse Barbárvore, quebrando o seu longo silêncio.
— Trouxe-os em cerca de setenta mil passadas-ent, mas o que isso representa na medida de sua terra eu não sei. De qualquer forma, estamos perto das raízes da última Montanha. Parte do nome deste lugar poderia ser Gruta da Nascente, se fosse transformado em sua língua. Gosto daqui. Vamos ficar esta noite. — Colocou-os sobre a relva entre os corredores de árvores, e eles o seguiram na direção do grande arco. Os hobbits notaram nesse momento que, conforme Barbárvore andava, mal inclinava os joelhos, mas que suas pernas se abriam em grandes passadas. Plantava os grandes dedos dos pés (que eram de fato muito grandes, e largos) no solo primeiro, antes de fazer o mesmo com qualquer outra parte dos pés.
Por um momento, Barbárvore parou sob a chuva do riacho que caía, e respirou fundo; depois riu, e passou para dentro. Uma grande mesa de pedra se encontrava ali, mas não havia nenhuma cadeira. No fundo do vão já estava bem escuro.
Barbárvore ergueu duas grandes vasilhas e colocou-as na mesa. Pareciam estar cheias de água, mas quando ele ergueu as mãos sobre elas imediatamente começaram a brilhar, uma com uma luz dourada, e outra com uma luz de um verde profundo; e a mistura das duas luzes iluminou o vão, como se o sol do verão estivesse brilhando através de um teto de folhas novas. Olhando para trás, os hobbits viram que as árvores no pátio também começavam a brilhar, pouco no início, mas cada vez mais, até que todas as folhas foram atingidas pela luz: algumas verdes, outras douradas, outras ainda vermelhas como o cobre; e os troncos das árvores pareciam Pilares moldados em pedra luminosa.
— Bem, bem, agora podemos conversar outra vez — disse Barbárvore. Suponho que estejam com sede. Talvez também cansados. Bebam isto!
Caminhou para o fundo do vão, e então os hobbits viram vários jarros de pedra com tampas pesadas. Ele retirou uma das tampas e afundou uma grande concha, e com ela encheu três tigelas, uma bem grande e duas menores.
— Esta é uma casa-ent — disse ele —, e receio que não haja lugares para sentar. Mas vocês podem sentar-se na mesa. — Pegando os hobbits, ele os colocou sobre a grande laje de pedra, a um metro e oitenta centímetros do solo, e ali eles ficaram balançando as pernas e bebendo aos golinhos.
A bebida era como água, na verdade bem semelhante em sabor à água que tinham bebido do Entágua perto das fronteiras da floresta, e apesar disso havia nela algum aroma ou gosto que eles não conseguiam descrever: era fraco, mas fazia lembrar do cheiro de uma floresta distante, trazido de longe por uma brisa fresca à noite.
O efeito da bebida começou nos dedos dos pés, e subiu cada vez mais pelo corpo, trazendo descanso e vigor conforme avançava em seu curso, chegando até as pontas dos cabelos. Na verdade, os hobbits sentiram que seus cabelos estavam literalmente em pé, fazendo ondas e cachos, crescendo. Quanto a Barbárvore, ele primeiro banhou os pés na bacia além do arco, e então esvaziou sua tigela num gole, num longo e lento gole. Os hobbits acharam que ele nunca iria terminar.
Finalmente colocou a tigela outra vez na mesa. — Ah-ah — suspirou ele.
— Hum, hum, agora podemos conversar mais tranqüilos. Vocês podem sentar-se no chão, e eu vou me deitar; isso vai evitar que essa bebida suba à minha cabeça e me faça adormecer.
Do lado direito do vão havia uma grande cama sobre pés baixos, com menos de um metro de altura, coberta por uma grossa camada de grama seca e samambaias. Barbárvore abaixou-se lentamente até ela (com um mínimo sinal de curvar o meio de seu corpo), até que se deitou completamente, com os braços atrás da cabeça, olhando para o teto, sobre o qual havia luzes piscando, como o jogo das folhas à luz do sol. Merry e Pippin se sentaram ao lado dele, em almofadas de capim.
— Agora contem-me sua história e não se apressem! — disse Barbárvore. Os hobbits começaram a lhe contar a história de suas aventuras desde que deixaram a Vila dos Hobbits. Não seguiram uma ordem muito clara, pois um interrompia o outro constantemente, e Barbárvore sempre cortava quem estava falando, e voltava para algum ponto anterior, ou saltava à frente fazendo perguntas sobre acontecimentos posteriores.
Eles não disseram nada que se relacionasse ao Anel, e não contaram a ele o motivo de terem partido, ou para onde estavam indo; ele não perguntou os motivos.
Barbárvore se interessava imensamente por tudo: pelos Cavaleiros Negros, por Elrond e Valfenda, pela Floresta Velha e Tom Bombadil, pelas Minas de Moria e por Lothlórien e Galadriel. Fez com que eles descrevessem o Condado e sua região inúmeras vezes. Disse uma coisa estranha nesse ponto. — Vocês nunca viram algum hum, algum ent por lá, viram? — perguntou ele. — Bem, não ents, entesposas eu deveria dizer na verdade.
— Entesposas? — disse Pippin. — São parecidas com vocês?
— Sim, Hum, bem, não: na verdade não sei agora — disse Barbárvore pensativo. — Mas elas gostariam de sua terra, ou pelo menos achei que sim. Entretanto, Barbárvore estava especialmente interessado em tudo o que concernia a Gandalf, e acima de tudo interessado em todos os feitos de Saruman. Os hobbit s sentiram muito por saberem tão pouco sobre o assunto: apenas um relato muito vago que Sam tinha feito sobre o que Gandalf dissera no Conselho.
Mas de qualquer forma foram claros em relação a Uglúk e sua tropa terem vindo de Isengard, e mencionavam Saruman como seu mestre.
— Hum, hum! — disse Barbárvore, quando a história tinha enveredado para a batalha entre os orcs e os Cavaleiros de Rohan. — Bem, bem! Esse é um bocado de notícias, sem dúvida. Vocês não me contaram tudo, não mesmo, nem de perto. Mas não duvido que vocês estão procedendo como Gandalf desejaria. Há alguma coisa muito grandiosa acontecendo, isso estou vendo, e o que é talvez eu possa saber no tempo certo, ou no tempo errado. Raiz e galho, mas é uma coisa estranha: surgem pessoas pequenas que não estão nas antigas listas, e, vejam!, os Nove Cavaleiros esquecidos reaparecem para caçálos, e Gandalf os leva numa grande viagem, e Galadriel os acolhe em Caras Galadhon, e os orcs os perseguem por todas as milhas das Terras Ermas: na verdade eles parecem estar presos numa grande tempestade. Espero que consigam vencê-la.
— Agora, e sobre você?
— Hum, hum, eu não me preocupei com as Grandes Guerras — disse Barbárvore —, elas concernem principalmente a homens e elfos. Isso é assunto dos Magos: os Magos estão sempre preocupados com o futuro. Eu não gosto de me preocupar com o futuro. Não estou totalmente do lado de ninguém, porque ninguém está totalmente do meu lado, se é que me entendem: ninguém se preocupa com as florestas como eu me preocupo, nem mesmo os elfos hoje em dia. Apesar disso, afeiçôo-me mais aos elfos que aos outros: foram os elfos que nos curaram do adormecimento há muito tempo, e essa foi uma grande dádiva que não pode ser esquecida, embora nossos caminhos tenham se separado desde então. E há algumas coisas, é claro, de cujo lado eu absolutamente não estou; sou absolutamente contra elas: esses — burárum (ele fez outra vez o ruído grave de nojo) —, esses orcs, e seus mestres.
— Eu costumava ficar ansioso quando a sombra cobriu a Floresta das Trevas, mas quando ela foi para Mordor parei de me preocupar por uns tempos: Mordor fica muito distante. Mas parece que o vento está se fixando no leste, e a devastação de todas as florestas pode estar chegando. Não há nada que um velho ent possa fazer para impedir que essa tempestade avance: ele deve vencê-la ou arrebentar-se.
— Mas e Saruman agora! Saruman é um vizinho: não posso ignorá-lo. Preciso fazer alguma coisa, eu acho. Ultimamente tenho pensado com frequência no que devo fazer a respeito de Saruman.
— Quem é Saruman? — perguntou Pippin. — Você sabe algo sobre a história dele?
— Saruman é um Mago — respondeu Barbárvore. — Mais que isso não posso dizer. Não conheço a história dos Magos. Eles apareceram primeiro, depois que os Grandes Navios vieram através do Mar; mas se vieram com os Navios eu não sei. Saruman era considerado importante entre os seus, eu acho. Ele desistiu de vagar por aí e de se preocupar com os problemas dos homens e dos elfos, há algum tempo — vocês chamariam isso de muito, muito tempo,— e se acomodou em Angrenost, ou Isengard, como os homens de Rohan chamam o lugar. No início ficou muito quieto, mas sua fama começou a crescer. Foi escolhido como o presidente d o Conselho Branco, pelo que dizem; mas isso não deu muito certo, Fico imaginando agora se mesmo naquela época Saruman já não estava se voltando para o mal. Mas de qualquer forma, não costumava trazer problemas para seus vizinhos. Eu costumava conversar com ele. Houve um tempo em que estava sempre perambulando por minhas florestas. Era educado naquela época, sempre pedindo minha permissão (pelo menos quando me encontrava); e sempre ansioso por escutar. Eu lhe disse coisas que ele nunca descobriria por conta própria, mas nunca me retribuiu da mesma forma. Não consigo recordar de ele me ter contado qualquer coisa. E ficou cada vez mais assim; o rosto, pelo que me lembro — não o vejo há muitos dias —, ficou parecido com janelas numa muralha de pedra: janelas, vedadas por dentro.
— Acho que agora entendo o que ele pretende. Está tramando para se transformar num Poder. Tem um cérebro de metal e rodas, e não se preocupa com os seres que crescem, a não ser enquanto o servem. E agora fica claro que ele é u m traidor negro.
Aliou-se a seres maus, aos orcs. Bem, hum! Pior que isso: vem fazendo alguma coisa a eles; alguma coisa perigosa. Porque esses isengardenses são mais semelhantes a homens maus. Os seres malignos que vieram na Grande Escuridão têm como marca a característica de não suportarem o sol; mas os orcs de Saruman suportam, mesmo que o odeiem. Fico imaginando o que ele terá feito. Seriam eles homens que ele arruinou, ou teria ele misturado as raças dos orcs e dos homens? Isso seria uma maldade negra!
Barbárvore roncou por uns momentos, como se estivesse pronunciando alguma maldição entesca profunda, subterrânea. — Há algum tempo comecei a me perguntar como os orcs ousavam passar pela minha floresta tão livremente — continuou ele. — Só há pouco tempo é que descobri que a culpa era de Saruman, e que há muito tempo ele estivera espiando todos os caminhos, e descobrindo meus segredos. Ele e seu povo sujo estão devastando tudo agora. Lá embaixo, nas fronteiras, estão derrubando árvores árvores boas. Algumas eles apenas cortam e deixam apodrecer — isso é serviço dos orcs; mas a maioria delas são derrubadas e levadas para alimentar as fogueiras de Orthanc. Vejo sempre uma fogueira subindo de Isengard nos últimos tempos-raiz e ramo! Muitas daquelas árvores eram minhas amigas, criaturas que eu conhecia desde sementes; várias tinham vozes próprias que agora estão perdidas para sempre. E há restos de tocos e sarças onde já existiram bosques cantantes. Fiquei sem fazer nada. Deixei que as coisas acontecessem. Isso deve parar!
— Maldito seja.
Barbárvore levantou de sua cama de um salto, ficou de pé e bateu com a mão na mesa. As vasilhas de luz tremeram e lançaram dois jatos de chama.
Havia uma centelha de fogo verde em seus olhos, e a barba sobressaiu , rija como uma vassoura de galhos.
— Vou acabar com isso! — ribombou ele. — E vocês virão comigo. Talvez possam me ajudar. Estarão ajudando a seus próprios amigos desse modo também; pois, se Saruman não for detido, Rohan e Gondor terão um inimigo à frente e também pelas costas. Nossas estradas irão juntas para Isengard.
— Iremos com você — disse Merry— Faremos o que pudermos.
— Sim! — disse Pippin. — Vou gostar de ver a Mão Branca derrubada. Gostaria de estar lá, mesmo que não fosse de muita utilidade: jamais esquecerei Uglúk e a travessia de Rohan.
— Bom Bom — disse Barbárvore. — Mas eu falei muito depressa. Não devemos nos afobar, Ficamos muito quentes. Preciso esfriar e pensar; pois é mais fácil gritar pare! Do que parar.
Foi até o arco e ficou algum tempo, sob a chuva que caía da nascente.
Depois riu e agitou o corpo, e cada gota de água que descia dele brilhando, para cair no chão, reluzia com faíscas verdes e vermelhas. Barbárvore voltou e se deitou na cama outra vez, ficando em silêncio.
Depois de algum tempo os hobbits o escutaram murmurando de novo. Parecia estar contando nos dedos.
— Fangorn, Finglas, Fladrif, sim, sim — suspirou ele. — O problema é que restam tão poucos de nós — disse ele virando-se para os hobbits. — Restam apenas três dos primeiros ents que caminhavam na floresta antes da Escuridão: só eu, Fangorn, Finglas e Fladrif, para lhes dar seus nomes élficos; vocês podem chamá-los de Mecha-de-Folha e Casca-de-Pele, se preferirem. E, de nós três, Mecha-de-Folha e Casca-de-Pele não são de muita utilidade para esse tipo de coisa. Mecha-de-Folha ficou sonolento, quase arvoresco, poderíamos dizer: pegou o costume de ficar parado sozinho, semi-adormecido, durante todo o verão, com a funda relva das campinas em volta dos joelhos. Ele é coberto por uma cabeleira de folhas. Costumava despertar no inverno; mas recentemente tem estado sonolento demais para fazer longas caminhadas até nesta época do ano. Casca-de-Pele vivia nas encostas das montanhas a oeste de Isengard. É ali que o pior problema aconteceu. Foi ferido pelos orcs e muitos entre seu pessoal e seus pastores de árvores foram mortos e destruídos. Subiu para os lugares altos, para junto das bétulas que tanto ama, e não vai descer. Mesmo assim, arrisco dizer que eu poderia reunir um bom grupo de nosso pessoal mais jovem — se pudesse fazê-los entender a necessidade: se pudesse despertá-los: não somos pessoas apressadas. É uma pena que haja tão poucos de nós!
— Por que há tão poucos se vocês vivem neste lugar há tanto tempo? Perguntou Pippin. — Morreram muitos?
— Oh, não! — disse Barbárvore. — Nenhum morreu de dentro para fora, como vocês diriam. Alguns caíram na má sorte dos longos anos, é claro; e a maior parte se tornou arvoresca. Mas nunca houve muitos de nós, e não aumentamos em número. Não houve entinhos — crianças, vocês diriam por uma conta interminável de anos. Sabem, perdemos as entesposas.
— Que coisa triste! — disse Pippin. — Como foi que todas morreram?
— Elas não morreram! — disse Barbárvore. — Eu não disse morreram. Nós as perdemos, eu disse. Perdemos e não conseguimos encontrá-las. Ele suspirou. — Achei que a maior parte das pessoas sabia disso. Há canções sobre os ents procurando as entesposas, que são cantadas pelos elfos e pelos homens, da Floresta das Trevas até Gondor. Não podem estar de todo esquecidas.
— Bem, receio que as canções não tenham chegado através das montanhas a oeste até o Condado — disse Merry. — Você não poderia nos contar mais coisas, ou cantar uma das canções?
— Posso sim — disse Barbárvore, parecendo satisfeito com o pedido. Mas não posso contar de maneira adequada, só vou fazer um resumo; e depois precisamos terminar nossa conversa: amanhã temos conselhos a convocar, e trabalho a fazer; talvez até comecemos uma viagem.
— É uma história muito triste e estranha — continuou ele depois de uma pausa. — Quando o mundo era jovem, e as florestas eram vastas e selvagens, os ents e as entesposas — e havia entezelas naquela época: ah! Como era adorável Fimbrethil, Pé-de- Fada, a dos passos leves, nos dias de minha juventude! —, eles andavam juntos e moravam juntos, mas nossos corações não continuaram crescendo do mesmo modo: os ents devotavam seu amor a coisas que encontravam no mundo, e as entesposas devotavam o seu a outras coisas; pois os ents amavam as grandes árvores e as florestas, e as encostas de colinas altas, e bebiam das nascentes das montanhas, e só comiam frutas que as árvores deixavam cair em seu caminho; e aprenderam com os elfos e conversavam com as árvores. Mas as entesposas se dedicaram a árvores menores, e a campinas ao sol além dos pés das florestas; viram o abrunheiro nas moitas e a macieira selvagem e a cerejeira florescendo na primavera; e as ervas verdes nas terras banhadas pela água e a grama descente nos campos durante o outono. Não desejavam conversar com esses seres, mas eles desejavam ouvi-las e obedecer ao que lhes diziam. As entesposas ordenaram que crescessem conforme seus desejos, e que produzissem folhas e frutos como queriam; pois as entesposas desejavam a ordem, muita ordem, e paz (que para elas queria dizer que as coisas deviam permanecer como elas as tinham colocado). Então as entesposas fizeram jardim nos quais pudessem morar. Mas nós, ents, continuamos vagando, e só íamos aos jardins de vez em quando. Então, quando a Escuridão chegou ao Norte, as entesposas atravessaram o Grande Rio, e fizeram novos jardins, e araram novos campos, e nós as víamos com menos freqüência. Depois que a Escuridão foi derrotada, a terra das entesposas floresceu ricamente, e seus campos ficaram cheios de trigo. Muitos homens aprenderam os ofícios das entesposas e prestavam grandes honras a elas; mas nós ficamos sendo para eles apenas uma lenda, um segredo no coração da floresta. Mas ainda estamos aqui, enquanto que os jardins das entesposas estão abandonados: os homens os chamam agora de Terras Castanhas.
— Lembro-me de que foi há muito tempo — na época da guerra entre Sauron e os Homens do Mar — que me veio o desejo de rever Fimbrethil. Ela ainda era muito bela aos meus olhos, da última vez que a vira, embora se parecesse pouco com a entezela de antigamente. Pois as entesposas estavam curvadas e escurecidas devido ao trabalho; seus cabelos ficaram ressecados pelo sol, assumindo a tonalidade do trigo maduro, e suas faces ficaram como maçãs vermelhas. Apesar disso, os olhos ainda eram os olhos de nosso próprio povo. Atravessamos o Anduim e chegamos à terra delas; mas encontramos um deserto: estava tudo queimado e arrancado, pois a guerra passara por ali. Mas as entesposas não estavam lá. Por muito tempo chamamos, e por muito tempo procuramos, e perguntávamos a todas as Pessoas que encontrávamos para onde as entesposas tinham ido. Alguns diziam que nunca as tinham visto; outros diziam que elas tinham sido vistas caminhando para o oeste, e outros ainda diziam para o leste, e outros diziam para o sul.
Mas em nenhum lugar a que fomos pudemos encontrá-las. Nossa tristeza foi muito grande. Mas a floresta selvagem chamou e retornamos a ela. Por muitos anos mantivemos o costume de sair de vez em quando p ara procurar as entesposas, andando por todo canto e chamando-as por seus belos nomes. Mas conforme o tempo passou íamos cada vez com menos freqüência, e cada vez menos longe. E agora as entesposas são para nós apenas uma lembrança, e nossas barbas estão longas e cinzentas. Os elfos fizeram muitas canções sobre a busca dos ents, e algumas delas passaram para a língua dos homens. Mas nós não fizemos canção alguma sobre o assunto, ficando satisfeitos em cantar seus belos nomes quando pensávamos nas entesposas. Acreditamos que ainda podemos encontrá-las num tempo que virá, e talvez encontremos em algum lugar uma terra onde possamos viver juntos, ficando todos satisfeitos. Mas pressentimos que isso só acontecerá quando ambos, ents e entesposas, tiverem perdido tudo o que têm agora. E é bem possível que a hora esteja finalmente se aproximando. Pois, se Sauron destruiu todos os jardins antigamente, hoje o Inimigo tende a arruinar todas as florestas.
— Havia uma canção élfica que falava disso, ou pelo menos eu a entendia assim.
Costumava-se cantá-la ao longo de todo o Grande Rio. Nunca foi uma canção entesca, vejam bem: seria longa demais em entês! Mas nós a sabemos de cor, e a entoamos de vez em quando. Fica assim na língua de vocês:
Ent: Se a Primavera em folha a faia e a seiva os galhos banha,
Se a luz se espelha no regato e há vento na montanha,
Se o passo é largo, duro o esfôrço e fio corta o ar
Volta pra mim! Volta pra mim! Diz que é belo este lugar!
Entesposa: Se a Primavera ao campo chega e o trigo está na espiga,
Se branca a flor qual neve brilha e no pomar se abriga,
Se em chuva e sol por sobre a terra perfume há no ar,
Eu fico aqui, não volto não, é belo o meu lugar.
Ent: Se for Verão por sobre a terra e à tarde a luz dourada
Mil sonhos verdes derramar nas folhas enlaçadas;
Se verde e fresco,for o bosque e o vento for bem-vindo,
Volta pra mim! Volta pra mim! Diz que aqui tudo é mais lindo!
Entesposa: Se for Verão e no calor a juta escurecer,
Se a palha é seca, e a espiga branca na hora de colher;
Se pinga o mel, cresce a maçã ao vento que é bem-vindo,
Eu fico aqui, à luz do sol, pois isso é bem mais lindo!
Ent: Se for Inverno, o duro Inverno que mata o campo invade,
Se a noite escura o dia sem sol devora sem piedade,
Se o Vento Leste for mortal, então na chuva fria
Vou procurar-te, vou chamar-te, eu volto nesse dia.
Entesposa: Se for Inverno sem canções, se a treva enfim vier,
Quebrado já o inútil galho, se luz já não houver,
Vou procurar-te e esperar-te, até seguir um dia
Contigo pela estrada afora sob a chuva fria!
Ambos: E juntos para o oeste vamos nos encaminhar
E longe, longe encontraremos onde descansar.
Barbárvore terminou sua canção.
— É assim que fica — disse ele. — É uma canção élfica, sem dúvida: leve, ligeira e curta. Arrisco dizer que é bem bonita. Mas os ents, por seu lado, poderiam dizer mais coisas, se tivessem tempo! Mas agora vou ficar de pé e dormir um pouco. Onde vocês vão ficar?
— Nós geralmente nos deitamos para dormir — disse Merry. — Vamos ficar bem aqui onde estamos.
— Deitar para dormir! — disse Barbárvore. — É claro que vocês fazem isso! Fim, hum: estava esquecendo: cantar aquela canção me transportou a tempos antigos; quase pensei que estava conversando com jovens entinhos. Bem, vocês podem se deitar na cama. Eu vou ficar de pé na chuva. Boa noite!
Merry e Pippin escalaram a cama e aconchegaram-se na palha macia e nas samambaias. Era tudo novo, quente e de um aroma delicado. As luzes foram se apagando e o brilho das árvores desapareceu; mas lá fora, sob o arco, eles ainda podiam ver o velho Barbárvore em pé, imóvel, com os braços erguidos acima da cabeça. Claras estrelas apareceram no céu e iluminaram a água que caía, derramando-se sobre seus dedos e sua cabeça, para depois pingar, pingar, em centenas de gotas de prata sobre seus pés. Ouvindo o gotejar da água os hobbits adormeceram.
Acordaram para encontrar um sol fresco brilhando no grande pátio e sobre o assoalho do vão. Retalhos de nuvens altas lhes apareciam no céu, correndo ao vento constante que vinha do leste. Barbárvore não estava por ali; mas enquanto Merry e Pippin se banhavam na bacia sob o arco ouviram-no murmurando e cantando, conforme vinha pela trilha em meio às árvores.
— Hu, ho! Bom dia, Merry e Pippin! — ribombou ele ao vê-los. — Vocês dormem bastante. Já andei várias centenas de passadas hoje. Agora beberemos alguma coisa e depois vamos para o Entebate.
Encheu-lhes duas vasilhas com o líquido de um jarro de pedra; mas de um jarro diferente.
O gosto não era o mesmo do líquido da noite anterior: era mais terroso e rico, mais substancioso e mais parecido com comida, por assim dizer. Enquanto os hobbits bebiam, sentados na beirada da cama e mordiscando pequenos pedaços de bolo élfico (mais por acharem que comer alguma coisa era necessário no desjejum do que por sentirem fome), Barbárvore ficou parado, cantando em entês ou élfico ou alguma outra língua estranha, e olhando para o céu.
— Onde fica Entebate? — Pippin arriscou perguntar.
— Hum, hem? Entebate? — disse Barbárvore, voltando-se. — Não é um lugar, é uma reunião de ents — que não acontece freqüentemente hoje em dia. Mas consegui fazer com que um bom número deles prometessem ir. Vamos nos encontrar no lugar onde sempre nos encontramos: Valarcano, os homens chamam. Fica muito ao sul deste lugar. Devemos chegar lá antes do meio-dia.
Logo partiram. Barbárvore carregava os hobbits em seus braços, como no dia anterior. Na entrada do pátio virou à direita, deu uma passada atravessando o rio e continuou rumo ao sul, ao longo dos pés de grandes encostas esboroadas onde as árvores eram escassas. Acima delas os hobbits viram moitas de bétulas e sorveiras, e além delas pinheiros escuros que subiam. Logo Barbárvore mudou um pouco o rumo, distanciandose das colinas e mergulhando em bosques profundos, onde as árvores eram maiores.
Mais altas e mais espessas que quaisquer outras que os hobbits tinham visto antes.
Por um período, tiveram a sensação de abafamento que tinham tido quando se aventuraram pela primeira vez no interior de Fangorn, mas isso logo passou.
Barbárvore não falava com eles. Murmurava consigo mesmo, profunda e pensativamente, mas Merry e Pippin não entendiam nenhuma palavra: soava como bum bum, rumbum, burrar, bum buni, dari-ar hum bum, darrar bum e assim por diante, com uma mudança constante de tom e ritmo.
De tempos em tempos, eles tinham a impressão de escutar uma resposta, um murmúrio ou som ligeiro que parecia sair da terra, ou dos galhos sobre suas cabeças, ou talvez das copas das árvores; mas Barbárvore não parava nem voltava sua cabeça para nenhum dos lados.
Já estavam viajando havia um bom tempo — Pippin tinha tentado contar as “passadas-ent” mas falhara, perdendo-se na altura das três mil quando Barbárvore começou a diminuir o passo. De repente parou, colocou os hobbits no chão, e levou as mãos enrugadas até a boca, de modo a fazer com elas um tubo oco; depois soprou ou chamou através delas. Um grande hum hum soou pela floresta como uma corneta grave, dando a impressão de ecoar nas árvores. De longe veio, de várias direções, um hum, hom, hum que não era um eco, e sim uma resposta.
Barbárvore então empoleirou Merry e Pippin em seus ombros e continuou em suas passadas, de quando em quando enviando outro chamado, e cada vez as respostas vinham em sons mais altos e claros.
Chegaram finalmente ao que parecia ser uma parede impenetrável de árvores perenes escuras, árvores de um tipo que os hobbits nunca tinham visto antes: ramificavam-se diretamente das raízes, e eram densamente cobertas por folhas escuras e polidas como azevinheiros sem espinhos, e carregavam muitas espigas floridas rijas e eretas, com grandes botões brilhantes cor de oliva.
Virando à esquerda e contornando essa enorme cerca-viva, Barbárvore atingiu, com algumas passadas, uma passagem estreita. Por ela passava uma trilha gasta, que mergulhava de repente, descendo uma encosta íngreme. Os hobbits perceberam que estavam descendo para dentro de uma grande garganta, quase redonda como uma vasilha, muito ampla e profunda, coroada em sua borda pela cerca-viva alta de árvores perenes. O terreno no interior era macio e coberto de grama, e não havia árvores, com a exceção de altas e belas bétulas prateadas que se erguiam do fundo da vasilha. Duas outras trilhas conduziam à garganta: vindas do leste e do oeste.
Vários ents já tinham chegado. Outros estavam chegando pelas trilhas, e alguns agora vinham atrás de Barbárvore. Enquanto se aproximavam, os hobbits os observavam.
Sua expectativa era ver várias criaturas t ão parecidas cora Barbárvore como os hobbits eram parecidos entre si (pelo menos aos olhos de um estranho); e ficaram muito surpresos ao ver coisa muito diferente. Os ents eram tão diferentes uns dos outros como as árvores são diferentes entre si: alguns diferentes como uma árvore é diferente de outra que tem o mesmo nome, mas um desenvolvimento e uma história diversos, e outros diferentes como uma espécie de árvore é diferente da outra, como a bétula e a faia, como o carvalho e o pinheiro. Havia alguns ent s mais velhos, barbados e nodosos como árvores velhas e robustas (embora nenhum parecesse tão velho como Barbárvore); e havia ents altos e fortes, com os membros lisos e a pele macia, como árvores da floresta em sua plenitude; mas não havia ents jovens, nenhum rebento.
Todos juntos perfaziam cerca de duas dúzias, parados no chão amplo e gramado da garganta, enquanto um número semelhante se aproximava.
Num primeiro momento, Merry e Pippin ficaram chocados principalmente com a variedade que viram: as várias formas, cores e as diferenças em largura, altura, no comprimento dos braços e pernas, e no número de dedos dos pés e das mãos (qualquer coisa variando entre três a nove). Alguns pareciam mais ou menos aparentados a Barbárvore, e os faziam lembrar de faias e carvalhos. Mas havia outras espécies.
Alguns se assemelhavam à castanheira: ents de pele castanha, com grandes mãos de dedos espalhados, e pernas curtas e grossas. Outros pareciam o freixo: ents altos, eretos e cinzentos com mãos de muitos dedos e pernas compridas; outros lembravam o pinheiro (os ents mais altos), e outros a bétula, a tília e a sorveira.
Mas quando todos os ents se reuniram ao redor de Barbárvore, curvando as cabeças levemente, murmurando em suas vozes lentas e musicais, e olhando longa e atentamente para os forasteiros, então os hobbits viram que eram todos da mesma família, e todos tinham os mesmos olhos: não tão velhos e profundos como os de Barbárvore, mas todos com a mesma expressão lenta, firme e pensativa, e a mesma centelha verde.
Logo que todo o grupo estava reunido, parado num grande círculo ao redor de Barbárvore, uma conversa curiosa e ininteligível começou. Os ents começaram a murmurar lentamente: primeiro um e depois outro, até que todos estavam cantando juntos num ritmo longo, ascendente e descendente, em certos momentos mais alto de um lado do círculo, outros diminuindo ali e aumentando até chegar a um grande estrondo no outro lado, Embora não conseguisse entender nenhuma palavra — ele supôs que a língua era entês — Pippin achou o som muito agradável de escutar no início, mas gradualmente sua atenção se dispersou. Depois de um longo tempo (e o canto não dava sinais de chegar ao fim), ele se viu pensando, já que o entês era uma língua tão “desapressada”, se eles já tinham ido além do Bom dia; e se Barbárvore tivesse de fazer a chamada quantos dias levaria até que terminasse de cantar todos os nomes. “Fico imaginando quais são os termos em entês para sim e não”, pensou ele, bocejando.
Barbárvore imediatamente se deu conta dele. — Fim, ha, hei, meu Pippin! — disse ele, e os outros ents pararam de cantar. — Vocês são um povo apressado, eu estava esquecendo; e de qualquer forma é enfadonho escutar uma conversa que não se entende.
Vocês podem descer agora. Eu disse seus nomes ao Entebate, e eles já os viram, e concordaram que vocês não são orcs, e que uma linha nova deve ser acrescentada às velhas listas. Não discutimos mais nada até agora, mas isso já é um trabalho rápido para um Entebate, Você e Merry podem passear pela garganta, se quiserem.
Há um poço de água boa, se precisarem se refrescar, lá adiante na margem norte.
Ainda temos umas palavras a dizer antes que o Debate realmente comece. Logo irei ver vocês outra vez, e contar como as coisas estão indo.
Colocou os hobbits no chão. Antes de se afastarem, eles fizeram uma grande reverência. Esse gesto pareceu surpreender muito os ents, a julgar pelo tom de seus murmúrios e pela centelha em seus olhos; mas logo voltavam aos seus próprios assuntos.
Merry e Pippin subiram pela trilha que vinha do oeste, e olharam através da abertura na grande cerca-viva. Longas encostas cobertas de árvores subiam da borda da garganta, e mais além delas, sobre os pinheiros da cordilheira mais distante, erguia-se, pontudo e branco, o pico de uma alta montanha. Ao sul e à esquerda eles podiam ver a floresta descendo na distância cinzenta, Ali, bem longe, vislumbrava-se um trecho claro e verde que Merry supôs ser uma parte das planícies de Rohan.
— Fico imaginando onde fica Isengard — disse Pippin.
— Não sei muito bem onde estamos — disse Merry -. mas aquele pico provavelmente é Methedras, e pelo que consigo lembrar o círculo de Isengard fica numa bifurcação ou numa fissura no fim das montanhas. Provavelmente atrás d esta grande cordilheira. Parece haver uma fumaça ou névoa sobre aquela região à esquerda do pico, você não acha:?
— Como é Isengard? — perguntou Pippin. — De qualquer maneira, fico imaginando o que os ents podem fazer em relação a Isengard.
— Eu também — disse Merry. — Isengard é um tipo de círculo de rochas ou colinas, eu acho, com um espaço plano no interior, e uma ilha ou pilar de pedra no meio, chamado Orthanc. Ali Saruman tem uma torre. Há uma entrada, talvez mais de uma, na muralha que contorna o lugar, e acredito que haja um rio passando ali; vem das montanhas e corre atravessando o Desfiladeiro de Rohan. Não parece o tipo de lugar onde os ents possam agir. Mas tenho uma sensação estranha a respeito desses ents: de certo modo acho que eles não são assim tão inofensivos e tão esquisitos quanto parecem. Parecem lentos, estranhos e pacientes, quase tristes; apesar disso acredito que eles poderiam ser despertados. Se isso acontecesse, eu não gostaria de estar do outro lado.
— Sim! — disse Pippin. — Entendo o que quer dizer, Pode haver muita diferença entre um velho boi, sentado e ruminando pensativamente, e um touro atacando; e a mudança pode ser repentina. Pergunto-me se Barbárvore vai despertá-los. Tenho certeza de que vai tentar. Mas eles não gostam de excitação. O próprio Barbárvore ficou excitado ontem à noite, e depois se controlou outra vez.
Os hobbits se voltaram. As vozes dos ents ainda estavam subindo e descendo em sua assembléia. O sol já se erguera o bastante para olhar por sobre a alta cerca-viva: reluzia nas copas das bétulas. Ali eles viram uma pequena fonte brilhante. Caminharam ao longo da borda da grande vasilha ao pé das árvores perenes — era bom sentir a grama fresca em seus pés outra vez, sem estar com pressa — e depois desceram até a água que jorrava. Tomaram um gole pequeno, cristalino, frio e rápido e se sentaram numa rocha musgosa, contemplando os trechos ensolarados de grama e as sombras das nuvens que passavam navegando sobre o chão da garganta. O murmúrio dos ents continuava.
O lugar parecia muito estranho e remoto, fora de seu mundo, e distante de tudo que já lhes havia acontecido. Sobreveio-lhes um enorme desejo de rever os rostos e ouvir de novo as vozes de seus companheiros, especialmente Frodo e Sam, e Passolargo.
Finalmente se fez uma pausa nas vozes dos ents; erguendo os olhos eles viram que Barbárvore vinha na direção deles, ao lado de outro ent.
— Fim, hum, aqui estou de novo — disse Barbárvore. — Vocês estão ficando cansados ou se sentindo impacientes, hem? Bem, receio que não possam ficar impacientes ainda.
Terminamos agora o primeiro estágio; mas ainda preciso explicar umas coisas de novo para aqueles que vivem em lugares muito distantes, longe de Isengard, e para aqueles que não consegui reunir antes do Debate, e depois disso teremos de decidir o que fazer.
Entretanto, decidir o que fazer não toma tanto tempo dos ents quanto examinar todos os fatos e eventos sobre os quais eles precisam decidir. Mesmo assim, não adianta negar, vamos ficar aqui por um bom tempo ainda: provavelmente uns dois dias. Por isso trouxelhes um companheiro. Ele tem uma casa-ent por aqui. Bregalad é seu nome élfico.
Diz que já se decidiu e não precisa ficar até o fim do Debate. Hum, hum, ele é a coisa que temos mais parecida com um ent apressado. Vocês vão se dar bem juntos. Até logo! Barbárvore virou-se e os deixou.
Bregalad ficou por um tempo examinando os hobbits solenemente; eles também olhavam-no, pensando quando é que mostraria algum sinal de apressamento. Era alto e parecia ser um do s ents mais jovens; tinha uma pele macia e lustrosa nos braços e nas pernas; os lábios eram rubros e os cabelos tinham um tom verde-acinzentado. Conseguia se curvar e se virar como uma árvore esbelta ao vento, Finalmente falou, e embora a voz fosse ressonante era mais alta e clara que a de Barbárvore.
— Ha, hummm, meus amigos, vamos dar um passeio! — disse ele. — Sou Bregalad, quer dizer Tronquesperto, na sua língua. Mas é apenas um apelido, claro. Eles me chamam assim desde que eu disse sim a um ent mais velho antes que ele terminasse sua pergunta. Também eu bebo rapidamente, e saio enquanto outros ainda estão molhando as barbas. Venham comigo!
Estendeu dois braços bem formados e ofereceu a cada um dos hobbits uma mão com dedos longos. Durante todo o dia caminharam pela floresta com ele, cantando e rindo; pois Tronquesperto frequentemente ria. Ria se o sol surgisse por trás de uma nuvem, ria quando encontravam um rio ou nascente: nesse caso parava e molhava os pés e a cabeça; ria às vezes ao ouvir algum som ou sussurro nas árvores. Toda vez que via uma sorveira, parava um tempo com os braços estendidos e cantava, e balançava o corpo enquanto cantava.
Ao cair da noite, levou-os para sua casa-ent: nada além de uma pedra limosa colocada em meio à turfa sob um barranco verde. Sorveiras cresciam fazendo um círculo em volta da pedra, e havia água (como em todas as casas-ents), uma nascente que saía borbulhando do barranco. Conversaram por um tempo enquanto a escuridão caía sobre a floresta. Não muito longe, podiam-se ouvir as vozes do Entebate continuando; mas agora pareciam mais graves e menos despreocupadas, e de quando em quando uma grande voz se erguia numa música aguda e agitada, enquanto todas as outras diminuíam. Mas com os hobbits Bregalad conversava na língua deles, quase sussurrando; souberam que ele pertencia ao povo de Casca-de-Pele, e a região onde viveram tinha sido devastada. Isso parecia aos hobbits motivo suficiente para explicar seu “apressamento”, pelo menos em relação aos outros.
— Havia sorveiras em minha terra — disse Bregalad suave e tristemente. — Sorveiras que criaram raízes quando eu ainda era um entinho, muitos, muitos anos atrás na quietude do mundo. As mais velhas foram plantadas pelos ents numa tentativa de agradar às entesposas; mas elas olharam para as plantas, sorriram e disseram que sabiam onde botões mais brancos e frutos mais ricos estavam crescendo.
Mas não há árvore dentre toda essa raça, o povo da Rosa, que eu ache tão bela. E essas árvores cresceram, cresceram, até que a sombra de cada uma ficasse como um salão verde, e seus frutos vermelhos eram um peso no outono, e também uma beleza de admirar. Os pássaros costumavam pousar nelas aos bandos. Eu gosto de pássaros, mesmo quando ficam tagarelando; e as sorveiras têm pássaros de sobra. Mas os pássaros ficaram hostis e vorazes, bicavam as árvores e derrubavam os frutos sem comê-los.
Então vieram os orcs com machados e cortaram minhas árvores. Eu cheguei e as chamei por seus longos nomes, mas elas nem se mexeram, não ouviram nem responderam: jaziam mortas.
O Orojámê, Lassemista, Carnimíriê!
Bela sorveira, em tua cabeleira tão branca era tua flor!
Sorveira minha, teu brilho tinha do sol o tom e a cor
Tua casca em luz, tua folha em luz, tua voz tão doce e fria:
Em tua cabeça de ouro espessa corôa te enaltecia!
Morta sorveira, em tua cabeleira há cinzas invernais,
Corôa perdida, a voz sumida pra sempre e nunca mais.
O Orofarnê, Lassemista, Carnimíriê!
Os hobbits adormeceram ao som do cantar suave de Bregalad, que parecia lamentar em muitas línguas a queda das árvores que ele tanto amara.
Passaram também o dia seguinte na companhia dele, mas não se afastaram muito de sua “casa”. Ficaram a maior parte do tempo sentados em silêncio sob o abrigo do barranco, pois o vento estava mais frio, e as nuvens mais fechadas e cinzentas; havia pouco sol, e na distância as vozes dos ents no Debate ainda subiam e desciam, algumas vezes altas e fortes, outras vezes baixas e tristes; algumas vezes aumentando o ritmo, outras vezes lentas e solenes como um hino fúnebre. Uma segunda noite chegou e ainda os ents continuavam em sua assembléia, sob nuvens apressadas e estrelas vacilantes.
O terceiro dia raiou, com frio e vento. Ao nascer do sol, as vozes dos ents se ergueram num grande clamor e depois diminuíram de novo. Pelo fim da manhã o vento diminuiu e o ar ficou pesado de expectativas. Os hobbits viam agora que Bregalad escutava com atenção, embora para eles, lá no vale de sua casa-ent, o som do Debate estivesse longínquo.
A tarde chegou, e o sol, rumando para o oeste na direção das montanhas, mandava raios compridos e amarelos através das fendas e fissuras das nuvens. De repente perceberam que tudo estava muito quieto; toda a floresta estava parada, num silêncio de escuta. Era óbvio que as vozes dos ents tinham cessado. O que queria dizer isso?
Bregalad estava de pé, ereto e tenso, olhando para o norte, na direção do Valarcano.
Então com um estrondo veio um grito ruidoso: ra-hum-rah! As árvores tremeram e se curvaram como se golpeadas por uma rajada de vento. Houve outra pausa, e depois uma música de marcha começou como tambores solenes, e acima das batidas e estrondos ruidosos cresciam vozes cantando alto e forte.
Tambor, tambor, lá vamos nós: ta-runda runda runda rom!
Os ents estavam chegando: cada vez mais forte e próxima soava sua canção:
Tambor e trompa, vamos lá: ta-runda runda runda rom!
Bregalad pegou os hobbits e saiu de sua casa.
Logo eles viram a fileira em marcha se aproximando: os ents estavam marchando juntos com grandes passadas, descendo a encosta na direção deles. Barbárvore vinha à frente, e cerca de cinqüenta seguidores vinham atrás dele, dois a dois, marcando o passo com os pés e batendo com as mãos nos flancos. Conforme se aproximavam, foi possível ver o clarão e a centelha nos olhos deles.
— Hum, hom! Aqui estamos com um estrondo, finalmente chegamos! — gritou Barbárvore quando viu Bregalad e os hobbits. — Venham, juntem-se ao Entebate! Estamos de partida. De partida para Isengard!
— Para Isengard! — os ents gritaram em muitas vozes.
— Para Isengard!
Pra Isengard! Se Isengard for forte e for qual calabouço,
Se Isengard for um lugar de pedra fria e duro osso,
Nós vamos todos guerrear, quebrar a pedra e seu portão!
Pois galho e tronco num só ronco vão queimar— à guerra então!
À terra dum pesar comum rufando enfim, tambor tambor!
Pra Isengard com um tambor! Impor temor! Impor terror!
Assim cantavam, marchando para o sul.
Bregalad, com os olhos brilhando, juntou-se à fila ao lado de Barbárvore — O velho ent agora pegou os hobbits de volta, e colocou-os sobre os ombros outra vez, e assim eles foram orgulhosos à frente do grupo que cantava, com os corações palpitando e as cabeças erguidas. Embora tivessem tido expectativas de que alguma coisa ocorresse eventualmente, ficaram chocados com a mudança que ocorrera com os ents. Parecia abrupta como o estouro de uma correnteza há muito tempo estancada por dique.
— Os ents tomaram uma decisão bem rápido no final das contas, não foi? — arriscou-se Pippin a dizer depois de algum tempo, quando por um momento a cantoria parou, e apenas se ouviam as batidas das mãos e pés.
— Rápido? — disse Barbárvore. — Hum! É mesmo. Mais rápido do que eu esperava. Na verdade não os vejo assim entusiasmados há muitas eras. Nós ents não gostamos de ser incitados; e nunca despertamos a não ser que fique claro para nós que essas árvores e nossas vidas correm grande perigo. Isso não acontece nesta Floresta desde as guerras entre Sauron e os homens do Mar. Foi o serviço dos orcs, a derrubada indiscriminada de árvores rá rum — sem qualquer desculpa, nem mesmo com a péssima desculpa de alimentar as fogueiras, que nos enfureceu assim; e a traição de nosso vizinho, que deveria nos ter ajudado. Os Magos deveriam saber das coisas; e eles sabem. Não há maldição em élfico, entês, ou nas línguas dos homens para uma traição assim. Abaixo Saruman!
— Vocês vão realmente arrombar as portas de Isengard? — perguntou Merry.
— Ho, hm, bem, nós poderíamos, você sabe! Talvez vocês não saibam como somos fortes. Já ouviram, talvez, falar nos trolls? São muito fortes. Mas os trolls são apenas imitações, feitas pelo Inimigo na Grande Escuridão, à semelhança dos ents, como os orcs foram feitos à semelhança dos elfos. Somos mais fortes que os trolls. Somos feitos dos ossos da terra. Podemos partir as pedras como raízes de árvores, só que mais rápido, muito mais rápido, se nossas mentes forem incitadas! Se não formos derrubados, ou destruídos pelo fogo ou por alguma feitiçaria, podemos partir Isengard em pedaços e reduzir suas paredes a pedregulho.
— Mas Saruman vai tentar detê-los, não é?
— Sim, ah, sim, isso é verdade. Não esqueci desse fato. Na verdade pensei muito sobre isso. Mas, você sabe, muitos dos ents são muitas vidas de árvore mais jovens do que eu. Estão decididos agora, e concentram as mentes numa única coisa: destruir Isengard.
Mas logo começarão a pensar de novo: vão esfriar um pouco, quando estivermos tomando nossa bebida da noite. Que sede sentiremos! Mas, agora, que marchem e cantem! Temos um longo caminho a percorrer, e há tempo para pensar depois. Já é alguma coisa terem começado.
Barbárvore continuou marchando, cantando com os outros por um tempo. Mas depois sua voz foi diminuindo até se transformar num murmúrio, e ele ficou em silêncio de novo. Pippin podia ver que sua velha fronte estava franzida e cheia de nós. Finalmente ergueu os olhos, e Pippin pôde ver seu olhar triste, triste mas não infeliz.
Havia uma luz naquele olhar, como se a chama verde tivesse afundado mais ainda nos poços escuros de seu pensamento.
— É claro, é muito provável, meus amigos — disse ele devagar —, é provável que estejamos indo ao encontro de nosso destino: a última marcha dos ents. Mas se ficássemos em casa sem fazer nada o destino nos encontraria de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde. Esse pensamento vem crescendo em nossos corações, e é por isso que estamos marchando agora. Não foi uma decisão apressada. Agora, pelo menos, a última marcha dos ents será digna de uma canção. É — suspirou ele —, podemos ajudar os outros povos antes de desaparecermos. Mesmo assim, eu iria gostar de ver as canções sobre as entesposas se tornando realidade. Iria gostar muito de rever Fimbrethil. Mas, meus amigos, as canções são como as árvores: só dão frutos no tempo próprio, e à sua maneira: e às vezes murcham antes da hora.
Os ents continuaram marchando a longas passadas. Rumavam para uma grande dobra no terreno que descia para o sul; agora começavam a subir, galgando a alta cordilheira ocidental. A floresta ficou bem abaixo e eles atingiram grupos espalhados de bétulas, e depois encostas nuas onde apenas alguns pinheiros esqueléticos cresciam.
O sol mergulhou atrás da escura colina à frente deles. Um crepúsculo cinzento desceu sobre a terra.
Pippin olhou para trás. O número de ents tinha crescido — ou o que estava acontecendo? No lugar onde deveriam estar as encostas nuas que tinham atravessado, ele teve a impressão de ver bosques de árvores. Mas elas estavam se movendo.
Será que as árvores de Fangorn estavam acordadas, e que a floresta estava subindo, marchando sobre as colinas em direção à guerra? Pippin esfregou os olhos, imaginando que o sono ou a escuridão o estivessem enganando; mas as grandes formas cinzentas não paravam de se mover para frente. Ouvia-se um ruído como o do vento em muitos galhos.
Os ents estavam chegando perto da crista da cordilheira agora, e tinham parado completamente de cantar. A noite caiu, e houve silêncio: não se ouvia nada, a não ser um tremor fraco da terra sob os pés dos ents, e um farfalhar, a sombra de um sussurro, como de muitas folhas arrastadas. Finalmente chegaram ao topo, e olharam para baixo, dentro de um fosso escuro: a grande fenda no fim das montanhas: Nan Curunír, o Vale de Saruman.
— A noite cobre Isengard — disse Barbárvore.
O CAVALEIRO BRANCO
— Estou gelado até os ossos — disse Gimli, batendo os braços e pisando forte.
Finalmente o dia chegara. Ao nascer do sol os companheiros comeram o que havia; agora, na luz que aumentava, estavam se preparando para vasculhar o chão mais uma vez em busca de sinais dos hobbits.
— E não se esqueça daquele velho! — disse Gimli. — Eu ficaria mais feliz se visse a pegada de uma bota.
— Por que isso o deixaria feliz? — perguntou Legolas.
— Porque um velho com pés que deixam pegadas não pode ser mais nada além do que aparenta — respondeu o anão.
— Talvez — disse o elfo —, mas uma bota pesada poderia não deixar pegadas aqui: a grama é alta e fofa.
— Isso não enganaria um guardião — disse Gimli. — Uma folha tombada é o suficiente para que Aragorn possa ler. Mas não acho que ele vai descobrir qualquer sinal. Foi uma aparição maligna de Saruman o que vimos ontem à noite. Tenho certeza disso, mesmo sob a luz do dia. Os olhos dele estão nos procurando lá de Fangorn, até mesmo agora, talvez.
— É bem provável — disse Aragorn —, mas não tenho certeza. Estou pensando nos cavalos. Ontem você disse, Gimli, que eles tinham sido afugentados. Mas eu não achei que foi isso que aconteceu. Você os ouviu, Legolas? Pareciam animais apavorados?
— Não — disse Legolas. — Eu os ouvi claramente. Se não fosse pela escuridão e por nosso próprio medo, eu acharia que eram animais eufóricos com uma alegria repentina. Falaram como falam os cavalos que encontram um amigo do qual sentem falta há muito tempo.
— Eu também achei isso — disse Aragorn — mas não consigo decifrar o enigma, a não ser que eles retornem. Venham! A luz está aumentando rápido. Vamos olhar primeiro e adivinhar depois! Devemos começar por aqui, perto de nosso próprio acampamento, procurando cuidadosamente por tudo, e vasculhando a colina na direção da floresta.
Encontrar os hobbits é nossa missão, não importa o que pensemos sobre o visitante da noite passada. Se eles por algum acaso escaparam, então devem ter se escondido nas árvores, caso contrário teriam sido vistos. Se não encontrarmos nada desde este ponto até as bordas da floresta, então vamos fazer uma última busca no campo de batalha, por entre as cinzas. Mas lá há pouca esperança: os Cavaleiros de Rohan fizeram muito bem o seu trabalho.
Por algum tempo os companheiros se arrastaram, tateando o chão. A árvore se erguia lamentosa sobre eles, com suas folhas secas agora caídas, farfalhando ao frio Vento Leste. Aragorn se afastou lentamente. Chegou até as cinzas da fogueira dos cavaleiros, perto da margem do rio, e então começou a refazer o caminho de volta, na direção do montículo onde fora travada a batalha. De repente se agachou, baixando o rosto ao chão, quase até tocar a grama. Depois chamou os outros. Eles vieram correndo.
— Finalmente aqui encontramos notícias! — disse Aragorn. Ergueu uma folha quebrada para que os outros vissem, uma grande folha de tonalidade dourada, agora murchando e ficando marrom. — Aqui está uma folha de mallorn de Lórien, e há pequenas migalhas nela, e mais algumas na grama. E vejam ! Há alguns pedaços de corda cortada aqui perto!
— E aqui está a faca que a cortou! — disse Gimli. Abaixou-se e arrancou de uma touceira uma pequena lâmina dentada, que fora parar ali ao ser pesadamente pisada.
O punho de onde tinha sido quebrada estava ao lado.
— É uma arma de orc — disse ele, segurando-a com cuidado e olhando com nojo para o punho entalhado: fora moldado na forma de uma horrível cabeça, com olhos vesgos e boca torta.
— Bem, este é o enigma mais estranho que já encontramos! — exclamou Legolas. — Um prisioneiro amarrado escapa tanto dos orcs como dos cavaleiros que estão em volta, Depois pára, ainda no espaço descoberto, e corta suas amarras com uma faca de orc. Mas como e por quê? Pois, se as pernas estavam atadas, como conseguiu andar? Se os braços estavam amarrados, como cortou as cordas? E se nenhum dos dois estava amarrado por que então ele usou a faca? Satisfeito com a própria habilidade, sentou-se e comeu tranqüilamente um pouco de pão-de-viagem! Isso pelo menos é suficiente para mostrar que ele era um hobbit, sem contar com a folha de mallorn. Depois disso, suponho, transformou seus braços em asas e fugiu voando por entre as árvores. Seria fácil encontrá-lo: só precisamos de asas para nós também!
— Com certeza houve feitiçaria aqui — disse Gimli. — O que o velho estava fazendo? O que você tem a dizer, Aragorn, sobre a interpretação de Legolas? Pode melhorá-la?
— Talvez eu pudesse — disse Aragorn, sorrindo. — Há uns outros sinais por aqui que vocês não consideraram. Concordo que o prisioneiro era um hobbit e que devia estar ou com os pés ou com as mãos livres, antes de chegar aqui. Acho que eram as mãos, porque o enigma fica então mais fácil, e também porque, conforme estou interpretando os sinais, ele foi carregado até aqui por um orc. Correu sangue ali, a alguns passos adiante, sangue de orc. Há pegadas fundas de cascos rodeando todo este ponto, e sinais de que uma coisa pesada foi arrastada. O orc foi morto por cavaleiros, e depois seu corpo foi puxado até a fogueira. Mas o hobbit não foi visto: ele não estava no espaço aberto pois era noite e ele ainda tinha sua capa élfica, Estava exausto e faminto, e não é de admirar que, quando cortou suas amarras com a faca do inimigo, tenha descansado e comido um pouco antes de se arrasta r para longe. Mas é um consolo saber que ele tinha um pouco de lembas no bolso, mesmo que tenha fugido sem equipamentos ou mochilas, e isso talvez seja bem ao estilo dos hobbits. Digo ele, embora tenha esperanças e suponha que Merry e Pippin estiveram aqui juntos. Entretanto, não há nada que nos dê certeza disso.
— E como você supõe que um de nossos amigos conseguiu livrar uma das mãos? — perguntou Gimli.
— Não sei como isso aconteceu — respondeu Aragorn. — E também não sei por que um orc os estava carregando para longe. Não para ajudá-los a escapar, disso podemos ter certeza. Não, mas agora começo a entender uma coisa que me tem intrigado desde o começo: por que, quando Boromir caiu, os orcs ficaram satisfeitos em capturar Merry e Pippin? Não procuraram pelo resto de nosso grupo, nem atacaram nosso acampamento; em vez disso, foram a toda velocidade na direção de Isengard. Será que supunham ter capturado o Portador do Anel e seu fiel companheiro? Acho que não. Seus mestres não dariam ordens tão claras aos orcs, mesmo que soubessem de tanta coisa; não falariam abertamente sobre o Anel com eles: os orcs não são servidores confiáveis. Mas acho que receberam ordens de capturar hobbits, vivos e a qualquer custo. Foi feita uma tentativa de fuga com o s preciosos prisioneiros antes da batalha. Talvez traição, muito provável num povo assim; algum orc grande e corajoso poderia estar tentando escapar sozinho levando o premio, com fins próprios. Aí está minha história. Outras podem ser criadas. Mas podemos contar com isto de qualquer forma: pelo menos um de nossos amigos escapou. Nossa tarefa é procurá-lo e tentar ajudá-lo antes de retornarmos a Rohan. Não devemos nos intimidar com Fangorn, uma vez que a necessidade o levou para aquele lugar escuro.
— Não sei o que me intimida mais: Fangorn, ou pensar na longa estrada até Rohan a pé — disse Gimli.
— Vamos para a Floresta — disse Aragorn.
Não demorou muito para que Aragorn encontrasse pistas recentes. Num Ponto, perto da margem do Entágua, encontrou pegada s: pegadas de hobbit, mas leves demais para que se pudesse tirar muitas conclusões a partir delas. Depois, sob a copa de uma grande árvore, bem na orla da floresta, mais pegadas foram descobertas. A terra era seca e nua, e não revelou muita coisa.
— Pelo menos um hobbit parou aqui por um tempo e olhou para trás; e depois foi em direção à floresta — disse Aragorn.
— Então devemos entrar nela também — disse Gimli. — Mas não gosto do jeito desta Fangorn, e fomos advertidos em relação a ela. Gostaria que a busca nos tivesse conduzido a algum outro lugar!
— Não sinto maldade na floresta, não importa o que as histórias digam — disse Legolas. Parou à beira da floresta, inclinando-se para frente, como se tentasse escutar alguma coisa, e espiando com olhos bem abertos dentro das sombras.
— Não, a floresta não é má; ou, se houver algum mal nela, está bem longe. Só percebo ecos quase inaudíveis de lugares escuros, onde os corações das árvores são negros. Não há malícia perto de nós; mas há vigilância, e ódio.
— Bem, a floresta não tem motivos para sentir ódio de mim — disse Gimli. — Não lhe fiz mal nenhum.
— Concordo com isso — disse Legolas. — Mas, mesmo assim, ela sofreu danos. Há alguma coisa acontecendo aqui dentro, ou prestes a acontecer. Vocês não sentem a tensão? É até dificil respirar.
— Sinto o ar abafado — disse o anão. — Esta floresta é mais leve que a Floresta das Trevas, mas é mofada e deprimente.
— É velha, muito velha — disse o elfo. — Tão velha que quase me sinto Jovem, outra vez, como não me sinto desde que viajei com vocês, crianças. E velha e carregada de lembranças. Eu poderia me sentir feliz aqui, se tivesse vindo em dias de paz.
— Arrisco dizer que sim — retrucou Gimli. — Você é um elfo da Floresta, de qualquer forma, embora os elfos de qualquer tipo sejam pessoas esquisitas. Mas você me consola. Por onde for, irei também. Mas mantenha seu arco a postos, e eu vou deixar meu machado solto no cinto. Não para usá-lo nas árvores — acrescentou ele depressa, erguendo os olhos para a árvore sob a qual estavam. — Não quero encontrar aquele velho inesperadamente sem ter um argumento à mão, isso é tudo. Vamos!
Com isso os três caçadores mergulharam na floresta de Fangorn. Legolas e Gimli deixaram que Aragorn procurasse as pistas. Havia pouco para se ver.
O solo da floresta estava seco e coberto por uma camada de folhas; mas, supondo que os fugitivos ficariam perto da água, ele sempre retornava às margens do rio.
Foi assim que chegou ao lugar onde Merry e Pippin tinham bebido água e molhado os pés. Ali, perfeitamente claras para quem quisesse ver, estavam as pegadas de dois hobbits, um deles um pouco menor que o outro.
— Esta notícia é boa — disse Aragorn. — Mas as marcas já têm dois dias. E parece que neste ponto os hobbits abandonaram as margens.
— Então, que faremos agora? — disse Gimli. — Não podemos procurá-los através de toda a floresta. Viemos com poucos suprimentos. Se não os encontrarmos logo, não poderemos ser de nenhuma utilidade, a não ser sentando ao lado deles e demonstrando nossa amizade, passando fome juntos.
— Se isso for realmente tudo o que pudermos fazer, então devemos fazê-lo — disse Aragorn. — Vamos em frente.
Finalmente chegaram à extremidade abrupta da colina íngreme de Barbárvore, e olharam para a parede rochosa com degraus grosseiros, que conduziam ao alto patamar.
Raios de sol perfuravam as nuvens apressadas, e a floresta agora parecia menos cinzenta e desolada.
— Vamos subir e olhar em volta! — disse Legolas. — Ainda sinto a respiração dificil.
Gostaria de experimentar um ar mais livre por uns momentos. Os companheiros escalaram a encosta. Aragorn veio por último, avançando devagar: estava examinando os degraus e saliências minuciosamente.
— Tenho quase certeza de que os hobbits estiveram aqui em cima disse ele.
— Mas há outras marcas, marcas muito estranhas que eu não entendo. Fico imaginando se deste patamar conseguiremos ver alguma coisa que nos ajude a adivinhar para onde eles foram depois.
Levantou-se e olhou em volta, mas não viu nada que o ajudasse. O patamar voltava-se para o leste e para o sul; mas a vista só estava aberta na direção do leste.
Ali ele conseguiu ver as cabeças das árvores descendo em fileiras em direção à planície da qual eles tinham vindo.
— Demos uma grande volta — disse Legolas. — Poderíamos ter chegado aqui a salvo e juntos, se tivéssemos abandonado o Grande Rio no segundo ou terceiro dia, e virado para o oeste. Poucos conseguem enxergar para onde sua estrada os conduzirá antes de chegarem ao final dela.
— Mas nós não queríamos vir para Fangorn — disse Gimli.
— Mas aqui estamos nós, perfeitamente presos na teia — disse Legolas.
— Olhe!
— Olhar o quê? — perguntou Gimli.
— Ali, nas árvores.
— Onde? Não tenho olhos de elfo.
— Psssiu! Fale mais baixo! Olhe! — disse Legolas apontando. — Lá embaixo, na floresta, no caminho por onde viemos. É ele, Você não está vendo, passando de árvore em árvore?
— Estou vendo, agora estou vendo! — sussurrou Gimli. — Olhe, Aragorn! Eu não o avisei? Ali está o velho. Todo coberto de farrapos cinzentos: é por isso que não consegui vê-lo antes.
Aragorn olhou e viu uma figura curvada, movimentando-se devagar. Não estava longe. Parecia um velho mendigo, caminhando fatigado, apoiando-se num cajado rude — A cabeça estava curvada, e ele não olhava na direção deles. Em outras terras, teriam-no cumprimentado com palavras gentis, mas naquele momento ficaram em silêncio, cada um sentindo uma estranha expectativa: algo que trazia um poder oculto — ou ameaça — se aproximava.
Gimli observou com os olhos arregalados por um tempo, conforme a figura se avizinhava passo a passo. Então, de repente, não conseguindo mais se conter, falou numa explosão: — Seu arco, Legolas! Apronte-o! Fique preparado! É Saruman. Não deixe que ele fale, ou lance um feitiço sobre nós! Atire primeiro! Legolas pegou o arco e o preparou, lentamente, como se outra vontade se opusesse à dele. Segurava uma flecha na mão sem firmeza, sem encaixá-la na corda. Aragorn ficou quieto, seu rosto vigilante e atento.
— O que está esperando? Qual é o problema com você? — disse Gimli num sussurro chiado.
— Legolas está certo — disse Aragorn baixinho, — Não podemos atirar num velho desse modo, traiçoeiramente e sem desafio, qualquer que seja o medo ou a dúvida que tenhamos. Olhem e esperem!
Nesse momento, o velho apertou o passo e chegou com uma rapidez surpreendente ao pé da muralha rochosa. Então, de repente, ergueu os olhos, enquanto os três continuavam imóveis, olhando para baixo. Não se ouvia nenhum som.
Os companheiros não conseguiam ver seu rosto: ele estava usando um capuz, e sobre o capuz havia um chapéu de aba larga, de modo que todo o rosto estava encoberto, exceto a extremidade da barba grisalha. Mesmo assim, Aragorn teve a impressão de ver de relance o brilho de olhos perspicazes, emitido daquele rosto encapuzado.
Finalmente o velho quebrou o silêncio. — Bem-vindos, meus amigos disse ele numa voz suave. — Desejo-lhes falar. Vocês vão descer ou devo subir?
— Sem esperar uma resposta, começou a escalar.
— Agora! — disse Gimli. — Detenha-o, Legolas!
— Eu não disse que desejava lhes falar? — disse o velho. — Abaixe esse arco, Mestre Elfo!
O arco e a flecha caíram das mãos de Legolas, e os braços ficaram paralisados ao longo do corpo.
— E você, Mestre Anão, por favor, tire a mão do cabo de seu machado, até que eu chegue aí! Não vai precisar desses argumentos.
Gimli fez um movimento e depois ficou petrificado, olhando, enquanto o velho subia os rudes degraus com a leveza de um cabrito. Todo o cansaço parecia tê-lo abandonado.
Conforme pisou no patamar houve um brilho, rápido demais para se ter certeza, um breve vislumbre de branco, como se alguma vestimenta, ocultada pelos farrapos cinzentos, tivesse sido revelada por um instante. Podia-se ouvir a respiração de Gimli como um chiado ruidoso quebrando o silêncio.
— Bem-vindos, repito! — disse o velho, andando em direção a eles. Quando estava a alguns passos de distância, parou, inclinando-se sobre o cajado, com a cabeça para frente, espiando-os de seu capuz. — E todos vestidos à moda dos elfos. Não há dúvida de que por trás de tudo isso há uma história digna de ser ouvida. Essas coisas não são vistas com freqüência por aqui.
— Você fala como alguém que conhece bem Fangorn — disse Aragorn. — isso é verdade?
— Não muito bem — disse o velho. — Isso seria estudo para muitas vidas. Mas venho aqui de vez em quando.
— Podemos saber seu nome, e depois ouvir o que tem a nos dizer? Disse Aragorn. — A manhã está passando, e temos uma missão que não pode esperar.
— Quanto ao que eu desejava dizer, já o disse, E vocês, que andam fazendo, e que história podem me contar sobre vocês? Quanto ao meu nome! — Ele interrompeu, dando uma risada longa e suave. Aragorn sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo ao ouvir o som daquele riso, um arrepio frio e estranho; mas não foi medo ou terror o que sentiu: era mais como um golpe repentino de ar fresco, ou uma rajada de chuva fria despertando alguém de um sono intranqüilo.
— Meu nome! — disse o velho outra vez. — Ainda não adivinharam? Já o ouviram antes, eu acho. Sim, já o ouviram antes. Mas vamos agora, qual é sua história?
Os três companheiros ficaram em silêncio e não deram resposta.
— Existem pessoas que começariam a duvidar se sua missão merece ser contada — disse o velho. — Felizmente sei algo sobre ela. Estão seguindo as pegadas de dois jovens hobbits, suponho. Sim, hobbits. Não me olhem assim, como se nunca tivessem ouvido essa estranha palavra antes. Vocês já ouviram, e eu também. Bem, eles subiram aqui anteontem, e encontraram alguém que não esperavam. Isso os consola? E agora gostariam de saber para onde foram levados? Bem, bem, talvez eu possa lhes dar alguma notícia sobre isso. Mas por que estamos de pé? Sua missão, pelo que vejo, não é mais tão urgente quanto pensavam. Vamos nos sentar e ficar mais à vontade.
O velho se virou e foi na direção de um monte de pedras e rochas caídas ao pé do penhasco. Imediatamente, como se um feitiço tivesse sido removido, os outros relaxaram e se mexeram. As mãos de Gimli foram direto para o cabo do machado.
Aragorn sacou a espada. Legolas pegou o arco.
O velho não tomou conhecimento disso, mas se agachou e sentou-se sobre uma pedra baixa e plana. Então sua grande capa se abriu e eles viram, com certeza, que por baixo dela ele estava vestido de branco.
— Saruman! — gritou Gimli, saltando na direção dele com o machado em punho. — Fale! Diga-nos onde escondeu nossos amigos! Que fez com eles? Fale, ou farei um estrago em seu chapéu que será dificil de consertar, mesmo para um mago.
O velho foi rápido demais para ele. Saltou de pé e pulou para o topo de uma grande rocha. Ali ficou, subitamente imponente, erguendo-se diante deles. O capuz e os farrapos cinzentos caíram para trás. As vestes brancas brilharam.
Levantou o cajado, e o machado de Gimli saltou de seu punho e caiu com um ruído no solo. A espada de Aragorn, imóvel em sua mão paralisada, brilhava com um fogo repentino.
Legolas soltou um grito e atirou uma flecha no ar: ela sumiu num clarão de fogo.
— Mithrandir! — gritou ele. — Mithrandir!
— Bem-vindo, digo a você outra vez, Legolas! — disse o velho.
Todos olharam para ele. Os cabelos eram brancos como a neve ao sol, e brilhante era sua veste branca; os olhos sob as sobrancelhas grossas eram reluzentes, agudos como os raios do sol; havia poder em suas mãos. Em meio à surpresa, à alegria e ao medo, eles ficaram parados, sem saber o que dizer.
Finalmente Aragorn se mexeu.
— Gandalf! — disse ele. — Além de todas as esperanças você retorna em nossa necessidade! Que véu cobria minha visão? Gandalf! — Gimli não disse nada, mas caiu de joelhos e cobriu os olhos.
— Gandalf! — repetiu o velho, como se recuperasse de uma lembrança antiga um nome há muito em desuso. — Sim, esse era o nome. Eu era Gandalf.
Desceu da rocha e, apanhando a capa cinzenta, cobriu-se com ela: parecia que o sol estivera brilhando, e que agora se encobria de nuvens outra vez.
— Sim, podem ainda me chamar de Gandalf — disse ele, e a voz era a de seu velho amigo, companheiro e guia. — Levante-se, meu bom Gimli! Você não tem culpa, e não me fez mal algum. Na verdade, meus amigos, nenhum de vocês tem armas que possam me ferir. Alegrem-se! Encontramo-nos de novo! Na virada da maré. A grande tempestade se aproxima, mas a maré virou.
Colocou a mão sobre a cabeça de Gimli, e o anão ergueu os olhos e riu de repente.
— Gandalf! — disse ele. — Mas você está todo de branco!
— Sim, sou branco agora — disse Gandalf. — Na verdade, eu sou Saruman, quase poderíamos dizer, Saruman como ele deveria ter sido. Mas vamos agora, falem-me sobre vocês! Atravessei o fogo e águas profundas desde que nos separamos. Esqueci muita coisa que julgava saber, e aprendi de novo muita coisa que havia esquecido. Posso ver muitas coisas à distância, mas muitas coisas que estão próximas eu não consigo ver. Falem-me sobre vocês!
— O que deseja saber? — perguntou Aragorn. — Tudo o que aconteceu desde que nos separamos na ponte seria uma história longa. Você não poderia primeiro nos dar notícias dos hobbits? Você os encontrou, e eles estão a salvo?
— Não, não os encontrei — disse Gandalf — Havia uma escuridão sobre os vales dos Emyn Muil, e eu não sabia que estavam aprisionados, até que a águia me contou.
— A águia! — disse Legolas. — Eu vi uma águia voando bem alto: a última vez foi há três dias, sobre os Emyn Muil.
— Sim — disse Gandalf —, era Gwaihir, o Senhor dos Ventos, que me resgatou de Orthanc. Enviei-o na minha frente para vigiar o Rio e conseguir notícias. Ele tem uma visão apurada, mas seus olhos não conseguem enxergar tudo o que se passa sob as colinas e árvores. Algumas coisas ele viu, e outras eu mesmo vi. O Anel agora está fora do alcance de minha ajuda, ou da ajuda de qualquer um da Comitiva que partiu de Valfenda. Quase foi revelado ao Inimigo, mas escapou. Tive alguma parte nisso: pois sentei-me num lugar alto, e lutei contra a Torre Escura e a Sombra passou. Depois fiquei cansado, muito cansado; e caminhei por muito tempo, envolvido em pensamentos escuros.
— Então você sabe sobre Frodo! — disse Gimli. — Como estão as coisas com ele?
— Não sei dizer. Foi salvo de um grande perigo, mas muitos ainda o esperam. Resolveu ir sozinho a Mordor, e partiu: isso é tudo que posso dizer.
— Não sozinho — disse Legolas. — Achamos que Sam foi com ele.
— Ele foi? — disse Gandalf, e seus olhos brilharam e o rosto sorriu. Foi mesmo? Isso é novidade para mim, mas não me surpreende, Bom! Muito bom! Tiram-me um peso do coração. Precisam me dizer mais. Agora sentem-se ao meu lado e contem a história de sua jornada.Os companheiros sentaram-se no chão aos pés dele, e Aragorn continuou a história. Por um longo período Gandalf não disse nada, e não fez perguntas. Suas mãos estavam estendidas sobre os joelhos, e os olhos fechados. Finalmente, quando Aragorn falou sobre a morte de Boromir e de sua última viagem pelo Grande Rio, o velho suspirou.
— Você não disse tudo o que sabe ou supõe, Aragorn, meu amigo — disse ele suavemente. — Pobre Boromir! Não pude ver o que aconteceu com ele. Foi uma prova dura para um homem assim: um guerreiro, um senhor de homens. Galadriel me disse que ele estava em perigo. Mas escapou no final. Fico feliz. Não foi em vão que os jovens hobbits vieram conosco, mesmo que tenha sido apenas para o bem de Boromir. Mas esse não é o único papel deles. Foram trazidos a Fangorn, e a chegada deles foi como a queda de pequenas pedras que iniciam uma avalanche nas montanhas. Neste momento em que estamos conversando, ouço os primeiros estrondos. Será melhor para Saruman não ser pego fora de casa quando a represa explodir.
— Em uma coisa você continua o mesmo, caro amigo — disse Aragorn Você ainda fala por meio de enigmas.
— O quê? Em enigmas? — disse Gandalf — Pois estava falando comigo mesmo em voz alta. Um hábito dos velhos: escolhem falar às pessoas mais sábias, as longas explicações que os jovens necessitam são cansativas.
Mas o som do riso agora parecia quente e agradável, como um raio de sol.
— Não sou mais jovem, mesmo para os homens das Antigas Casas — disse Aragorn. — Você não poderia me abrir sua mente com mais clareza?
— Que devo então dizer? — disse Gandalf, depois parou um tempo, pensando.
— Este é um resumo das coisas como as vejo agora, se você quiser saber um pouco do que estou pensando, com a maior clareza possível. O Inimigo, é claro, já sabe há muito tempo que o Anel está viajando, e que seu portador é um hobbit. Sabe o número dos integrantes de nossa Comitiva, que partiu de Valfenda, e que tipo de pessoas somos. Mas ainda não percebe nosso propósito claramente. Supõe que todos nós está vamos indo para Minas Tirith, pois isso é o que ele próprio faria se estivesse em nosso lugar. E de acordo com a sua sabedoria isso seria um golpe forte contra seu poder. Na verdade, está sentindo um grande medo, sem saber que pessoa poderosa poderia de repente aparecer, controlando o Anel e ameaçando-o com a guerra, tentando destruí-lo e tomar seu lugar. Que poderíamos desejar destruí-lo e não colocar ninguém em seu lugar é um pensamento que não lhe ocorre. Que possamos tentar destruir o próprio Anel é algo que não entrou nem em seus sonhos mais escuros. Nisso, sem dúvida, vocês verão nossa boa sorte e nossa esperança. Por ter imaginado a guerra, deflagrou a guerra, acreditando que não tinha mais tempo a perder; pois aquele que dá o primeiro golpe, se o golpe tiver força suficiente, pode não precisar dar mais golpes. Assim, as forças que vem preparando há muito tempo, ele as colocou em ação antes do que pretendia. Sábio tolo. Pois se tivesse usado todo seu poder para guardar Mordor, de modo que ninguém conseguisse entrar, e colocado toda a sua astúcia na procura do Anel, então realmente não haveria mais esperanças: nem o Anel nem o portador poderiam tê-lo iludido por muito tempo. Mas agora olha mais para longe do que para as vizinhanças de seu lar; e principalmente olha na direção de Minas Tirith. Logo sua força cairá sobre aquela cidade como uma tempestade.
— Pois ele já sabe que os mensageiros que enviou para perseguir a Comitiva falharam de novo. Não encontraram o Anel. Nem trouxeram qualquer hobbit como refém. Se tivessem feito isso, teria sido um golpe forte para nós, que poderia ser fatal. Mas não vamos escurecer nossos corações imaginando o julgamento de sua gentil lealdade na Torre Escura. Pois o Inimigo falhou — por enquanto. Graças a Saruman.
— Então Saruman não é um traidor?
— Na verdade é — disse Gandalf — Duplamente, E isso não é estranho? Nada que suportamos recentemente parece tão lamentável quanto a traição de Isengard. Mesmo considerando-se o padrão de um senhor e um capitão, Saruman se tomou muito forte. Ameaça os homens de Rohan e retira o apoio que eles receberiam de Minas Tirith, exatamente no momento em que o golpe principal se aproxima, vindo do leste. Apesar disso, uma arma traiçoeira é sempre perigosa para quem a empunha. Saruman também desejava apossar-se do Anel, para uso próprio, ou pelo menos capturar alguns hobbits para seus propósitos malignos. Então, agindo em conjunto, nossos inimigos só conseguiram trazer Merry e Pippin numa velocidade espantosa, e no momento certo, até Fangorn, para onde eles nunca teriam vindo de outra forma! Além disso, encheram-se de dúvidas novas que atrapalham seus planos. Nenhuma notícia da batalha chegará a Mordor, graças aos Cavaleiros de Rohan; mas o Senhor do Escuro sabe que dois hobbits foram captura dos nos Emyn Muil e levados para Isengard contra a vontade de seus próprios servidores. Agora ele teme Isengard e também Minas Tirith. Se Minas Tirith cair, isso será ruim para Saruman.
— É uma pena que nossos amigos estejam no meio dessa luta — disse Gimli.
— Se nenhuma terra ficasse entre Isengard e Mordor, eles poderiam lutar enquanto nós ficaríamos observando e esperando.
— O vencedor emergeria mais forte que qualquer um dos dois, e livre de dúvidas — disse Gandalf. — Mas Isengard não pode lutar contra Mordor, a não ser que Saruman obtenha o Anel primeiro. E isso ele não conseguirá nunca. Ainda não sabe do perigo que corre. Há muita coisa que ele não sabe. Estava tão ávido por colocar as mãos em sua presa que não conseguiu ficar esperando em casa, e saiu para encontrar e espionar seus mensageiros. Mas chegou tarde demais, desta vez; a batalha já estava terminada e ele não podia mais ajudar em nada quando chegou a estas partes. Não ficou aqui por muito tempo. Olhando dentro da mente dele eu vejo suas dúvidas. Ele fica desorientado em florestas. Acha que os cavaleiros mataram e queimaram todos sobre o campo de batalha, mas não sabe se os orcs estavam ou não — trazendo algum prisioneiro. E não sabe da discussão entre seus servidores e os orcs de Mordor; e também não sabe do Mensageiro Alado.
— O Mensageiro Alado! — gritou Legolas. — Atirei nele com o arco de Galadriel sobre o Sarn Gebir, e derrubei-o dos céus. Ele nos encheu de medo. Que novo terror é esse?
— Um terror que você não pode abater com flechas — disse Gandalf. Você apenas abateu a montaria dele. Foi um bom feito; mas logo o Cavaleiro conseguiu outro cavalo.
Pois ele era um Nazgúl, um dos Nove, que agora têm montarias aladas. Logo seu terror cobrirá de sombras os últimos exércitos de nossos amigos, barrando o sol. Mas ainda não lhes foi permitido atravessar o Rio, e Saruman não conhece essa nova forma na qual os Espectros do Anel se apresentam. Tem o pensamento constantemente voltado para o Anel. O Anel estava presente na batalha? Foi encontrado? E se Théoden, Senhor da Terra dos Cavaleiros, se aproximasse e soubesse do poder desse Anel? É esse o perigo que Saruman enxerga, e ele fugiu de volta para Isengard para redobrar ou triplicar a força de seu a taque em Rohan. E durante todo o tempo há um outro perigo, muito próximo, que ele não enxerga, ocupado que está com seus pensamentos inflamados. Esqueceu Barbárvore.
— Agora você está falando para si mesmo outra vez — disse Aragorn com um sorriso. — Não conheço Barbárvore. E adivinhei parte da dupla traição de Saruman; apesar disso, não vejo de que modo a chegada de dois hobbits a Fangorn pode ter tido alguma serventia, exceto para nos proporcionar uma busca longa e infrutífera.
— Espere um minuto! — gritou Gimli. — Há uma outra coisa que eu gostaria de saber primeiro. Foi você, Gandalf, ou Saruman, que vimos a noite passada?
— Certamente vocês não me viram — respondeu Gandalf —, portanto devo supor que viram Saruman. Evidentemente somos agora tão parecidos que seu desejo de fazer um estrago irreversível no meu chapéu deve ser perdoado.
— Bom, bom! — disse Gimli. — Fico feliz em saber que não era você.
Gandalf riu de novo.
— Sim, meu bom anão — disse ele. — É bom não ser confundido em todos os pontos. Sei disso muito bem! Mas, é claro, nunca os culpei pelo modo como me receberam. Como poderia, se freqüentemente aconselhei meus amigos a suspeitarem até de suas próprias sombras, quando estivessem lidando com o Inimigo? Bendito seja, Gimli, filho de Glóin! Talvez você nos veja juntos um dia e então poderá julgar a diferença.
— Mas os hobbits! — interrompeu Legolas. — Viemos de longe à procura deles, e parece que você sabe onde eles estão. Onde estão agora?
— Com Barbárvore e os ents — disse Gandalf.
— Os ents! — exclamou Aragorn. — Então há verdade nas velhas lendas sobre os moradores das florestas profundas e os pastores gigantes das árvores? Ainda existem ents no mundo? Achei que fossem apenas uma lembrança de dias antigos, se de fato eram mesmo algo mais que uma lenda de Rohan.
— Uma lenda de Rohan! — gritou Legolas. — Não, todos os elfos das Terras Ermas já cantaram canções sobre os velhos onodrim e sua longa tristeza. Mas mesmo entre nós eles são apenas uma lembrança. Se eu encontrasse um deles ainda caminhando por este mundo, então poderia me sentir jovem outra vez! Mas Barbárvore: isso é apenas uma tradução de Fangorn para a Língua Geral; mas você parece estar falando de uma pessoa. Quem é esse Barbárvore?
— Ali, agora estão fazendo perguntas demais — disse Gandalf. — O pouco que sei de sua longa e lenta história daria uma narrativa para a qual não ternos tempo agora. Barbárvore é Fangorn, o guardião da floresta; é o mais velho dos ents, o ser mais velho que ainda caminha sob o sol, nesta Terra-média. Realmente espero, Legolas, que você ainda possa encontrá-lo. Merry e Pippin tiveram sorte: encontraram-no aqui, neste ponto onde estamos sentados. Pois ele veio aqui há dois dias e os levou para sua moradia lá longe, perto das raízes das montanhas. Freqüentemente vem aqui, principalmente quando tem a mente inquieta, e quando os rumores do mundo lá fora o preocupam. Vi-o há quatro dias andando a largas passadas por entre as árvores, e acho que ele me viu, pois parou; mas eu não disse nada, porque estava concentrado em meus pensamentos, e cansado depois de minha luta contra o Olho de Mordor; ele também não falou, nem chamou meu nome.
— Talvez também tenha achado que você era Saruman — disse Gimli.
— Mas você fala dele como se fosse um amigo. Pensei que Fangorn fosse perigoso.
— Perigoso! — exclamou Gandalf. — Eu também sou, muito perigoso: mais perigoso que qualquer outro ser que jamais encontrarão, a não ser que sejam levados vivos diante do trono do Senhor do Escuro. E Aragorn é perigoso, e Legolas é perigoso. Você está rodeado de perigos, Gimli, filho de Glóin; pois você mesmo é perigoso, à sua maneira. Certamente a floresta de Fangorn é perigosa — não menos perigosa para aqueles que são rápidos demais com seus machados; e o próprio Fangorn, ele também é perigoso, no entanto é gentil e sábio. Mas agora sua ira lenta e longa está transbordando, e toda a floresta está cheia dela. A vinda dos hobbits com as notícias que trouxeram foi a gota d’água: logo estará correndo como uma enchente; mas sua maré está voltada contra Saruman e os machados de Isengard. Algo que não acontece desde os Dias Antigos está para acontecer: os ents vão despertar e descobrir que são fortes.
— Que irão fazer? — perguntou Legolas atônito.
— Não sei — disse Gandalf. — Não acho que eles mesmos saibam. Fico imaginando. — Ficou em silêncio, com a cabeça curvada, perdido em pensamentos.
Os outros olharam para ele. Um raio de sol, através de nuvens fugitivas, bateu em suas mãos, que agora estavam caídas sobre seu colo, com as palmas voltadas para cima: pareciam estar cheias de luz como um copo cheio de água. Finalmente ergueu os olhos e olhou direto para o sol.
— A manhã está terminando — disse ele. — Logo devemos partir.
— Vamos encontrar nossos amigos e Barbárvore? — perguntou Aragorn.
— Não — disse Gandalf — Não é essa a estrada que devem pegar. Pronunciei palavras de esperança. Mas apenas de esperança. Esperança não é vitória. A guerra está sobre nós e todos os nossos amigos, uma guerra na qual apenas a utilização do Anel poderia nos dar certeza de vitória. Enche-me de grande tristeza e medo: pois muita coisa será destruída, e tudo pode ser perdido. Sou Gandalf, Gandalf, o Branco, mas o Negro ainda é mais poderoso.
Levantou-se e olhou em direção ao leste, protegendo os olhos, como se enxergasse coisas muito distantes que nenhum deles podia ver. Depois balançou a cabeça.
— Não — disse ele numa voz suave —, o Anel está além de nosso alcance. Alegremo-nos pelo menos com isso. Não podemos mais ser tentados a usá-lo. Devemos descer e enfrentar um perigo quase desesperador, mas aquele perigo mortal foi removido. — Virou-se. — Venha, Aragorn, filho de Arathorn! — disse ele. — Não se arrependa de sua escolha no vale das Emyn Muil, nem considere que esta busca foi em vão, Em meio a muitas dúvidas, você escolheu a trilha certa: a escolha foi justa, e foi recompensada. Pois assim nos encontramos em tempo, e se fosse de outro modo poderíamos ter nos encontrado tarde demais. Mas a busca de seus companheiros terminou. Sua próxima jornada está marcada pela palavra que deu. Deve ir a Edoras e procurar Théoden em seu palácio. Precisam de você. A luz de Andúril deve agora ser revelada na batalha pela qual ela esperou por tanto tempo. Há guerra em Rohan, é um mal maior: as coisas não vão bem para Théoden.
— Então não vamos ver os alegres hobbits de novo? — perguntou Legolas.
— Eu não disse isso — disse Gandalf — Quem pode saber? Tenha paciência. Vá aonde deve ir, e tenha esperança! Para Edoras! Eu também vou para lá!
— É uma estrada longa a ser trilhada por um homem, velho ou jovem — disse Aragorn.
— Receio que a batalha esteja terminada antes de chegarmos lá.
— Veremos, veremos — disse Gandalf. — Vocês me acompanham agora?
— Sim, partiremos juntos — disse Aragorn. — Mas não duvido que você chegue lá antes de mim, se quiser. — Levantou-se e olhou Gandalf longamente. Os outros observavam em silêncio, enquanto os dois olhavam um para o outro. A figura cinzenta do Homem, Aragorn, filho de Arathorn, era alta, firme como uma rocha, a mão sobre o punho de sua espada; parecia que um rei tinha surgido das névoas do mar e pisado sobre as praias de homens menores. Diante dele se curvava a velha figura, branca, agora brilhando como se alguma luz a iluminasse de dentro, inclinada, sobrecarregada pelos anos, mas detentora de um poder acima da força dos reis.
— Não falo a verdade, Gandalf — disse Aragorn finalmente —, quando digo que você poderia ir a qualquer lugar que quisesse mais rápido que eu? E também digo isto: você é nosso capitão e nossa insígnia. O Senhor do Escuro tem Nove. Mas nós temos Um, mais poderoso que eles: o Cavaleiro Branco. Passou pelo fogo e pelo abismo, e eles devem temê-lo. Iremos aonde nos levar.
— Sim, juntos seguiremos você — disse Legolas. — Mas primeiro, Gandalf, aliviaria meu coração ouvir o que lhe aconteceu em Moria. Não vai nos contar? Não pode ficar nem mesmo para dizer aos seus amigos como se libertou?
— Já fiquei tempo demais — respondeu Gandalf — O tempo é curto. Mas se houvesse um ano para conversar não seria o suficiente para contar-lhes tudo.
— Então conte-nos o que desejar, e o que o tempo permitir! — disse Gimli.
— Vamos, Gandalf, conte-nos como se saiu com o Balrog!
— Não mencione esse nome! — disse Gandalf, e por um instante pareceu que uma nuvem de dor passava sobre seu rosto, e ele ficou sentado, com uma aparência mais velha que a morte. — Por muito tempo caí — disse ele finalmente, devagar, como se tentasse recordar com dificuldade. — Caí por muito tempo, e ele caiu comigo. O fogo dele me envolvia. Eu estava me queimando. Então mergulhamos em águas profundas e tudo ficou escuro. A água era fria como a maré da morte: quase congelou meu coração.
— Profundo é o abismo atravessado pela Ponte de Durin, e ninguém nunca o mediu — disse Gimli.
— Mas ele tem um fundo, além da luz e do conhecimento — disse Gandalf — Cheguei lá finalmente, às mais remotas fundações de pedra. Ele ainda estava comigo. Seu fogo estava extinto, mas agora ele era um ser de lodo, mais forte que uma serpente estranguladora.
— Lutamos muito abaixo da terra vivente, onde não se conta o tempo. Ele sempre me agarrava e eu sempre o derrubava, até que finalmente ele fugiu para dentro de túneis escuros. Estes não foram feitos pelo povo de Durin, Gimli, filho de Glóin. Muito, muito abaixo das escavações dos anões, o mundo é corroído por seres sem nome. Nem mesmo Sauron os conhece. São mais velhos que ele. Agora, eu andei por lá, mas não farei nenhum relato para escurecer a luz do dia. Naquele desespero, meu inimigo era minha única esperança, e eu o segui, agarrando-me aos seus calcanhares. Assim ele me trouxe de volta, finalmente, aos caminhos secretos de Khazad-dûm: ele os conhecia muito bem.
Fomos subindo sempre, até chegarmos à Escada Interminável.
— Ela está perdida há muito tempo — disse Gimli. — Muitos disseram que nunca foi construída, a não ser nas lendas, mas outros diziam que havia sido destruída.
— Foi feita, e não foi destruída — disse Gandalf — Da última masmorra ao pico mais alto ela subia, ascendendo numa espiral ininterrupta de muitos milhares de degraus, até finalmente atingir a Torre de Durin, entalhada na rocha viva de Zirakzigil, o pináculo do Pico de Prata.
— Ali, no Celebdil, havia uma janela solitária sobre a neve, e diante dela se deitava um espaço estreito, um ninho vertiginoso sobre as névoas do mundo. Lá o sol brilhava violentamente, mas tudo embaixo estava envolvido por nuvens. Ele saltou para fora, e no momento em que eu o alcançava explodiu em chamas novas. Ninguém estava lá para ver, ou talvez em eras posteriores alguém ainda cantasse sobre a Batalha do Pico. De repente Gandalf riu. — Mas o que diriam nas canções? Aqueles que olharam para cima de um ponto distante pensaram que a montanha estava coberta pela tempestade. Ouviram trovões; e relâmpagos, diziam eles, atingiam Celebdil e ricocheteavam em línguas de fogo. Isso não é o bastante? Uma grande fumaça se ergueu à nossa volta. O gelo caiu como chuva. Joguei o inimigo para baixo, e ele caiu e quebrou a encosta da montanha no ponto em que a atingiu ao ser destruido. Depois a escuridão me dominou, e eu me perdi do pensamento e do tempo, e vaguei muito por estradas que não vou contar.
— Estava nu quando fui enviado de volta — por um tempo curto, até que minha tarefa estivesse cumprida. E nu jazi sobre o topo da montanha. A torre atrás dela estava desfeita em poeira, a janela já não existia mais; a escada arruinada estava obstruída por rochas quebradas e queimadas. Eu estava sozinho, esquecido, sem possibilidades de escapar, sobre o duro chifre do mundo. Fiquei ali deitado, olhando para cima, enquanto as estrelas rodavam, e cada dia era longo como uma era na vida da terra. Chegavam aos meus ouvidos os rumores longínquos de todas as terras: o nascimento e a morte, o canto e o choro, e o gemido lento e eterno da rocha sobrecarregada. Então, finalmente, Gwaihir, o Senhor do Vento, me encontrou novamente, e me carregou para longe.
— “Meu destino é sempre ser uma carga para você, amigo das horas difíceis”, disse eu.
— “Você foi uma carga”, respondeu ele, “mas não é agora. Está leve como a pluma de um cisne em minhas garras. O sol brilha através de seu corpo. Na realidade, acho que não precisa mais de mim: se o deixasse cair, você flutuaria no vento.”
— “Não me deixe cair!”, disse eu ofegante, pois sentia vida em mim outra vez. “Leve-me a Lothlórien!”
— “Foram exatamente essas as ordens da Senhora Galadriel, que me enviou para procurá-lo”, respondeu ele.
— Foi assim que cheguei a Caras Galadhon e soube que vocês tinham partido havia pouco. Permaneci lá, no tempo sem idade daquela terra onde os dias trazem cura e não ruína. Encontrei a cura, e fui vestido de branco. Dei conselhos e recebi conselhos. De lá vim por estradas estranhas, e trago mensagens a alguns de vocês. Para Aragorn, trago esta:
Onde estão os Dúnedain, Elessar. Elessar?
Por que agrada a teu povo vagar?
Vão dentro em breve os Perdidos surgir.
E os Cinzentos do Norte hão de vir.
Mas negro é o caminho a ti destinado:
Há Mortos à espreita na senda do Mar
Para Legolas ela enviou este recado:
Legolas Verdefôlha, o bosque é teu lar!
Alegre viveste. Cuidado com o Mar!
Se na praia gaivotas gritarem por ti,
Descanso jamais acharás por aqui.
Gandalf ficou em silêncio e fechou os olhos.
— Então ela não me mandou nenhum recado? — disse Gimli abaixando a cabeça.
— Escuras são as suas palavras — disse Legolas — e pouco significam para aqueles que as recebem.
— Isso não é consolo — disse Gimli.
— E daí? — disse Legolas. — Você queria que ela lhe falasse abertamente sobre sua morte?
— Sim, se não tivesse mais nada a dizer.
— O que é isso? — disse Gandalf, abrindo os olhos. — Sim, acho que posso adivinhar o significado das palavras dela. Desculpe-me, Gimli! Eu estava pensando nas mensagens mais uma vez. Mas ela realmente lhe enviou algumas palavras, que não são nem escuras nem tristes.
— “Para Gimli, filho de Glóin”, disse ela, “envie os cumprimentos de sua Senhora. Por onde fores, Portador da Mecha, meu pensamento te acompanhará. Mas tenha o cuidado de golpear com teu machado a árvore certa!”
— Em boa hora você retorna a nós, Gandalf — gritou o anão, fazendo cabriolagens enquanto cantava alto na estranha língua dos anões. — Venham! Venham! — gritou ele, brandindo o machado. — Agora que a cabeça de Gandalf é sagrada, vamos achar uma outra que seja justo partir.
— Não é preciso procurar muito longe — disse Gandalf, levantando-se. Venham! Gastamos todo o tempo que é permitido para um encontro de amigos que estavam separados. Agora precisamos nos apressar.
Embrulhou-se outra vez em sua velha capa surrada, e foi na frente. Seguindo-o, eles desceram rapidamente do alto patamar e foram de volta para a floresta, descendo a margem do Entágua. Não falaram mais nada, até pisarem outra vez na grama além das bordas de Fangorn. Não havia nenhum sinal de seus cavalos.
— Eles não retornaram — disse Legolas. — Será uma caminhada cansativa!
— Eu não vou caminhar. O tempo urge — disse Gandalf. Depois, levantando a cabeça, deu um longo assobio. Foi tão claro e penetrante que os outros ficaram chocados por ouvirem um som assim saindo daqueles velhos lábios barbados. Assobiou três vezes, então, fraco e distante, eles tiveram a impressão de escutar o relincho de um cavalo vindo das planícies, trazido pelo Vento Leste. Esperaram, curiosos. Logo chegou até eles o som de cascos, primeiro pouco mais que um tremor do chão, perceptível apenas para Aragorn, que estava deitado sobre a grama; depois, cada vez mais alto e claro, até tornar-se uma batida rápida.
— Há mais de um cavalo vindo para cá — disse Aragorn.
— Certamente — disse Gandalf. — Somos carga demais para um só.
— Há três cavalos — disse Legolas, olhando por sobre a planície. — Vejam como correm. É Hasufel, e ali está meu amigo Arod ao lado dele! Mas há um outro que vem na frente: um cavalo muito grande. Não vi nenhum assim antes.
— Nem vai ver outra vez — disse Gandalf — Aquele é Scadufax. É o chefe dos Mearas, senhores dos cavalos, e nem mesmo Théoden, Rei de Rohan, jamais viu um melhor. Ele não brilha como prata, e não corre com a suavidade de um rio veloz? Ele veio ao meu encontro: o cavalo do Cavaleiro Branco. Vamos à batalha juntos.
No momento em que o velho mago falava, o grande cavalo veio avançando pela encosta, na direção deles: seu pêlo brilhava e a crina flutuava ao vento. Os outros dois o seguiam, agora bem atrás. Assim que Scadufax viu Gandalf, apertou o passo e relinchou alto; depois, trotando suavemente, aproximou-se, abaixou a cabeça altiva e aninhou as grandes narinas no pescoço do velho. Gandalf o acariciou.
— É uma longa estrada desde Valfenda, meu amigo — disse ele. — Mas você é sábio e rápido e chega quando é necessário. Agora vamos cavalgar muito juntos, e nunca mais nos separaremos neste mundo!
Logo os outros cavalos vieram subindo e ficaram por perto, quietos como se esperassem ordens.
— Vamos imediatamente para Meduseld, o palácio de seu mestre, Théoden — disse Gandalf, dirigindo-se a eles com gravidade, Os animais abaixaram as cabeças. — O tempo está passando; então, com sua permissão, meus amigos, vamos montar. Imploramos que usem toda a velocidade que puderem. Hasufel levará Aragorn, e Arod levará Legolas. Vou colocar Gimli na minha frente, e com sua permissão Scadufax levará nós dois, Agora só vamos esperar que vocês bebam um pouco de água.
— Agora entendo uma parte do enigma da noite passada — disse Legolas enquanto pulava com leveza sobre o lombo de Arod. — Quer tenham ou não sentido medo num primeiro momento, os cavalos encontraram Scadufax, seu líder, e o receberam com alegria. Você sabia que ele estava por perto, Gandalf?
— Sim, eu sabia — disse o mago. — Coloquei meu pensamento nele, pedindo que se apressasse; pois ontem ele estava distante, no sul desta região. Rapidamente poderá me levar de volta!
Agora Gandalf falava com Scadufax, e o cavalo partiu num passo veloz, mas que os outros ainda podiam acompanhar. Depois de um tempo voltou-se de repente, e escolhendo um lugar onde as margens eram mais baixas entrou no rio, e então foi para o sul, passando por uma região plana, aberta e ampla. O vento ia como grandes ondas através das intermináveis ilhas de relva. Não havia sinal de estrada ou trilha, mas Scadufax não se perdia nem titubeava.
— Ele está fazendo um caminho direto até o palácio de Théoden, sob as encostas das Montanhas Brancas — disse Gandalf — Assim será mais rápido. O solo é mais firme no Estemnete, onde fica a trilha principal que vai para o Norte, através do rio, mas Scadufax sabe o caminho através de cada charco e concavidade.
Por muitas horas, continuaram cavalgando através dos prados e regiões ribeirinhas.
Quase sempre a relva era tão alta que atingia os joelhos dos cavaleiros, e os cavalos pareciam estar nadando num mar verde-acinzentado. Passaram por varias poças escondidas, e amplos acres de juncais que ondulavam sobre pântanos úmidos e traiçoeiros; mas Scadufax sempre achava o caminho, e os outros cavalos seguiam sua trilha. Lentamente o sol ia descendo o céu, em direção ao oeste. Olhando por sobre a grande planície, ao longe os cavaleiros o viram por um momento como um fogo vermelho afundando na relva. Embaixo, no horizonte, as saliências das montanhas brilhavam vermelhas dos dois lados. Uma fumaça parecia subir e escurecer o disco do sol até atingir a tonalidade do sangue, como se tivesse incendiado a relva ao passar para baixo da superfície da terra.
— Ali fica o Desfiladeiro de Rohan — disse Gandalf. — Agora está quase a oeste de onde estamos. Ali fica Isengard.
— Vejo uma grande fumaça — disse Legolas. — Que pode ser aquilo?
O REI DO PALÁCIO DOURADO
Continuaram cavalgando ao longo da tarde, do crepúsculo e do início da noite.
Quando finalmente pararam e desmontaram, até mesmo Aragorn sentia o corpo enrijecido e cansado. Gandalf só permitiu algumas horas de descanso.
Legolas e Gimli dormiram, e Aragorn ficou deitado de costas, esticado no chão; mas Gandalf ficou de pé, apoiando-se em seu cajado, olhando para dentro da escuridão, a leste e a oeste. Estava tudo em silêncio, e não havia sinal ou som de qualquer ser vivo. A noite estava coberta por longas nuvens, carregadas por um vento gelado, quando acordaram de novo. Sob a fria lua eles continuaram mais uma vez, com a mesma rapidez da cavalgada à luz do dia.
As horas se passavam e eles ainda iam cavalgando. Gimli cochilava, e teria caído do cavalo se Gandalf não o tivesse agarrado e chacoalhado.
Hasufel e Arod, exaustos mas altivos, seguiam seu líder incansável, uma sombra cinza diante deles, que mal se podia ver. As milhas passavam. A lua crescente mergulhou no oeste nebuloso.
Um frio cortante veio pelo ar. Lentamente, no leste, a escuridão foi dando lugar a um cinza frio. Raios vermelhos de luz saltaram por sobre as muralhas negras dos Emyn Muil, adiante e à esquerda deles. A aurora chegou clara e brilhante; um vento varria o caminho, correndo através da relva inclinada. De repente Scadufax parou e relinchou.
Gandalf apontou à frente.
— Olhem — gritou ele, e os outros levantaram os olhos cansados. Diante deles se erguiam as montanhas do sul: cobertas de branco e riscadas de preto. A planície coberta de relva ondulava contra as colinas amontoadas aos seus pés, e fluía cobrindo muitos vales ainda apagados e escuros, intocados pela luz da aurora, descrevendo sinuosos caminhos para o coração das grandes montanhas. Imediatamente à frente dos viajantes, o mais amplo desses vales se abria como um golfo comprido entre as colinas.
Mais para dentro eles vislumbraram uma massa montanhosa disforme, com um único pico alto; na entrada do vale erguia-se qual sentinela uma montanha solitária. Aos pés dela corria, como um fio de prata, o rio que saía do vale; sobre seu pico eles viram, ainda bem distante, o faiscar do sol que nascia, um cintilar de ouro.
— Fale, Legolas! — disse Gandalf. — Conte-nos o que você está vendo à nossa frente!
Legolas olhou adiante, protegendo os olhos dos raios quase horizontais do sol recém-nascido. — Vejo um rio branco que desce da neve — disse ele. — No ponto onde ele sai da sombra do vale, uma colina verde se ergue sobre o leste. Um fosso, uma poderosa muralha e uma cerca-viva de espinhos a contornam. Lá dentro se erguem os telhados de casas; e no meio, sobre uma plataforma verde, ergue-se imponente uma grande casa de homens. E parece aos meus olhos que o teto é de ouro. A luz dele brilha por sobre toda a região. Dourados, também, são os batentes das portas. Ali diviso homens vestidos em malhas metálicas brilhantes; mas todos os outros dentro dos pátios ainda estão dormindo.
— Esses pátios são chamados Edoras — disse Gandalf — E Meduseld é aquele palácio dourado. Ali mora Théoden, filho de Thengel, Rei da Terra de Rohan. Chegamos com o nascer do dia. Agora é fácil ver a estrada. Mas devemos cavalgar com mais cautela; pois a guerra se espalha e os rohirrim, Senhores dos Cavalos, não dormem, mesmo que de longe se tenha essa impressão. Não saquem nenhuma arma, nem pronunciem palavras arrogantes, aconselho a todos vocês, até que cheguemos diante do trono de Théoden.
O dia estava claro e brilhante, e pássaros cantavam, quando os viajantes atingiram o rio, que corria rapidamente para dentro da planície. Além do pé das colinas distanciavase da estrada numa curva larga, correndo para o leste para alimentar o Entágua lá adiante, em trechos repletos de juncos. A paisagem era verde: nas campinas úmidas e ao longo das bordas gramadas do rio cresciam vários salgueiros. Naquela região ao sul, essas árvores já estavam ficando com as pontas dos dedos avermelhadas, sentindo a primavera se aproximar. No rio havia um vau entre margens baixas, muito repisadas pela passagem de cavalos. Os cavaleiros atravessaram e atingiram uma trilha larga e sulcada, que conduzia às terras mais altas.
Ao pé da colina protegida por muralhas, o caminho passava sob a sombra de muitos montículos, altos e verdes. Na face oeste destes a grama era branca, como se estivesse borrifada de neve: pequenas flores nasciam como inúmeras estrelas por entre a turfa.
— Olhem! — disse Gandalf — Como são belos os olhos claros em meio à relva! São chamadas de Sempre-em-mente, simbelmyne, nesta terra de homens, pois elas florescem em todas as estações do ano, e crescem onde os mortos descansam. Olhem! Chegamos aos grandes túmulos onde dormem os antepassados de Théoden.
— Sete montículos à esquerda, e nove à direita — disse Aragorn. — O palácio dourado foi construído há muitas longas vidas de homem.
— Quinhentas vezes as folhas vermelhas caíram na Floresta das Trevas, o meu lar, desde essa época — disse Legolas — e temos a impressão de que faz pouco tempo.
— Mas para os Cavaleiros de Rohan parece tanto tempo — disse Aragorn —, que a construção dessa casa é apenas uma lembrança nas canções, e os anos precedentes estão perdidos nas névoas do tempo. Agora chamam esta terra de sua casa, seu lugar, e sua fala se diferencia de sua parente do norte.
— Então começou a cantar baixinho numa língua lenta, desconhecida pelo elfo e pelo anão; mesmo assim eles escutavam, pois a melodia era forte.
— Essa, eu acho, é a língua dos rohirrim — disse Legolas -, pois é parecida com a própria terra; em parte rica e suave, mas ao mesmo tempo dura e austera como as montanhas. Mas não consigo adivinhar o significado das palavras, embora perceba que estão carregadas com a tristeza dos Homens Mortais.
— A canção fica assim na Língua Geral — disse Aragorn —, do jeito mais próximo que consigo traduzi-la.
Onde estão cavalo e dono?
Onde a trompa que ecoava?
Onde estão elmo e gibão e o cabelo que esvoaçante brilhava?
Onde está a mão sobre a harpa e do fogo o rubro tremer?
A primavera e a colheita onde estão e o trigo alto a crescer?
Como a chuva da montanha passaram, como um vento no prado;
Os dias no poente desceram atrás do monte ensombreado.
A fumaça da brasa que morre quem a irá guardar?
E os anos do Mar refluindo quem os irá contemplar?
— Assim falou um poeta esquecido há muito tempo em Rohan, relembrando como era alto e belo Eorl, o Jovem, que veio cavalgando do norte; e havia asas nas patas de seu corcel, Felaróf, pai dos cavalos. Assim ainda cantam os homens ao anoitecer.
Com essas palavras, os viajantes passaram pelos montículos silenciosos.
Seguindo a trilha tortuosa que subia as encostas verdes das colinas, chegaram finalmente às amplas muralhas varridas pelo vento, e aos portões de Edoras.
Ali estavam sentados muitos homens em malhas reluzentes, que logo saltaram de pé e bloquearam o caminho com lanças. — Parem, forasteiros desconhecidos! — gritaram eles na língua da Terra dos Cavaleiros, perguntando os nomes e a missão dos forasteiros.
Via-se surpresa mas pouca simpatia nos olhos deles, que lançavam olhares oblíquos para Gandalf.
— Entendo bem o que dizem — respondeu ele na mesma língua —, apesar disso, poucos forasteiros entendem. Por que então não falam na Língua Geral, como é costume do oeste, se querem respostas às suas perguntas?
— É a vontade de Théoden que ninguém penetre seus portões, exceto aqueles que conhecem nossa língua e são nossos amigos — respondeu um dos guardas. — Ninguém é bem-vindo aqui, em tempo de guerra, a não ser nosso próprio povo, e aqueles que vêm de Mundburg, na Terra de Gondor.
— Quem são vocês, que chegam sem avisar através da planície, vestidos de forma tão estranha, montando cavalos parecidos com os nossos? Estamos montando guarda aqui há muito tempo, e temos observado vocês à distância. Nunca vimos outros cavaleiros tão estranhos, nem um cavalo mais altivo do que um desses que carregam vocês. Ele é um dos Mearas, a não ser que nossos olhos estejam sendo enganados por algum feitiço. Diga, você não é um mago, algum espião de Saruman, ou serão todos aparições produzidas por ele? Fale agora e seja rápido!
— Não somos aparições — disse Aragorn —, nem seus olhos o enganam. Pois realmente estes sãos seus próprios cavalos, como você bem sabia antes de perguntar, eu suponho. Mas é raro que um ladrão volte para o estábulo. Aqui estão Hasufel e Arod, que Éomer, Terceiro Marechal da Terra dos Cavaleiros, nos emprestou, há apenas dois dias, Trazemos agora os animais de volta, como prometemos a ele. Então Éomer não retornou, nem anunciou a nossa vinda?
Uma expressão preocupada cobriu os olhos do guarda. — Sobre Éomer, não tenho nada a dizer — respondeu ele. — Se o que fala é verdade, então, sem dúvida, Théoden já sabe disso. Talvez sua vinda não seja totalmente inesperada. Faz duas noites que Língua de Cobra veio até nós e disse que era vontade de Théoden que nenhum forasteiro atravessasse estes portões.
— Língua de Cobra? — disse Gandalf, lançando um olhar agudo para o guarda. — Não diga mais nada. Minha mensagem não é para Língua de Cobra, mas para o senhor da Terra dos Cavaleiros em pessoa. Tenho pressa. Você não pode ir ou mandar dizer que chegamos? — Seus olhos faiscavam sob as grossas sobrancelhas quando lançou o olhar sobre o homem.
— Sim, irei — respondeu ele lentamente. — Mas que nomes devo anunciar? E que devo dizer sobre vocês? Você agora parece velho e cansado, e apesar disso no fundo é altivo e austero, julgo eu.
— Você vê e fala bem — disse o mago. — Pois sou Gandalf Eu voltei. E olhe! Eu também trago de volta um cavalo. Aqui está Scadufax, o Grande, animal que nenhuma outra mão consegue domar. E aqui ao meu lado está Aragorn, filho de Arathorn, o herdeiro dos Reis, e é para Mundburg que ele vai. Aqui também estão Legolas, o elfo, e Gimli, o anão, nossos companheiros. Vá agora e diga ao seu mestre que estamos aos seus portões e queremos falar com ele, se nos for permitido entrar em seu palácio.
— São nomes realmente estranhos! Mas vou transmiti-los como me pede, e saber qual é a vontade de meu senhor — disse o guarda. — Esperem um pouco aqui, e lhes trarei a resposta que ele julgar melhor. Não esperem muita coisa! Estes são tempos sombrios. — Foi-se depressa, deixando os forasteiros sob os olhos vigilantes dos outros guardas. Depois de um tempo retornou. — Sigam-me — disse ele. — Théoden lhes dá permissão para entrarem; mas qualquer arma que tiverem, mesmo que seja só um cajado, devem deixá-la na entrada. Sentinelas tomarão conta delas.
Os portões escuros foram abertos. Os via jantes entraram, andando em fila atrás de seu guia. Encontraram uma trilha larga, pavimentada com pedras cortadas, que em certos trechos subia em rampa, e em outros por meio de curtos lances de degraus bem construídos. Passaram por muitas casas de madeira e muitas portas escuras. Ao lado da trilha, num canal de pedra, um riacho de água límpida corria, brilhando e tagarelando.
Finalmente atingiram o topo da montanha. Ali ficava uma alta plataforma, sobre um planalto verde, ao pé do qual um riacho cristalino jorrava de uma pedra esculpida na forma de uma cabeça de cavalo; embaixo via-se uma grande bacia, da qual a água extravasava, alimentando a correnteza que descia. Subindo o planalto verde havia uma escada de pedra, alta e larga, e em cada um dos lados do degrau mais alto estavam cadeiras esculpidas na pedra. Ali estavam sentados outros guardas, com espadas depositadas sobre os joelhos. Os cabelos dourados caíam-lhes em tranças sobre os ombros; seus escudos verdes ostentavam o sol, os longos corseletes reluziam, e quando se levantavam pareciam mais altos que os homens mortais.
— Ali adiante estão as portas — disse o guia. — Devo agora retornar ao meu dever junto ao portão. Até logo! E que o Senhor dos Cavaleiros seja gentil para com vocês!
Virou-se e retornou depressa pela estrada. Os outros subiram a longa escada sob os olhos das altas sentinelas. Já no alto, permaneceram em silêncio, e não disseram uma palavra, até que Gandalf pisou no terraço pavimentado, na cabeceira da escada. Então, de repente, com vozes claras, pronunciaram em sua própria língua um cumprimento cortês.
— Saudações, viajantes que vêm de longe! — disseram eles, voltando os punhos de suas espadas na direção dos viajantes, em sinal de paz. Pedras verdes faiscaram à luz do sol. Então um dos guardas deu um passo à frente e falou na Língua Geral.
— Sou a Sentinela de Théoden — disse ele. — Háma é o meu nome. Aqui preciso pedir que deixem de lado suas armas antes de entrarem.
Então Legolas entregou na mão dele sua faca com punho de prata, sua aljava e seu arco. — Tome conta deles — disse ele —, pois essas armas vêm da Floresta Dourada, e me foram ofertadas pela Senhora Galadriel.
Os olhos do homem se encheram de surpresa, e ele logo as colocou perto da parede, como se tivesse medo de manuseá-las.
— Nenhum homem irá tocá-las, eu lhe prometo — disse ele.
Aragorn hesitou por um instante.
— Não é meu desejo — disse ele separar-me de minha espada ou entregar Andúril nas mãos de qualquer outro homem.
— É o desejo de Théoden — disse Háma.
— Não está claro para mim que o desejo de Théoden, filho de Thengel, mesmo que ele seja o senhor da Terra dos Cavaleiros, deva prevalecer sobre o desejo de Aragorn, filho de Arathorn, herdeiro de Elendil, de Gondor.
— Esta é a casa de Théoden, não de Aragorn, mesmo que ele fosse o Rei de Gondor e ocupasse o trono de Denethor — disse Háma, avançando rápido até a porta e bloqueando o caminho. Segurava agora a espada com a ponta na direção dos forasteiros.
— Essa conversa não leva a nada — disse Gandalf — Desnecessário é o pedido de Théoden, mas é inútil recusá-lo. Um rei será respeitado em seu próprio palácio, sejam suas ordens tolas ou sábias.
— É verdade — disse Aragorn. — E eu faria como o senhor da casa me pede, mesmo que esta fosse apenas a cabana de um lenhador, se estivesse carregando agora qualquer outra espada que não Andúril.
— Qualquer que seja o nome — disse Háma —, aqui irá colocá-la, se não quiser lutar sozinho contra todos os homens de Edoras.
— Sozinho não! — disse Gimli, alisando a lâmina de seu machado, dirigindo ao guarda um olhar ameaçador, como se ele fosse uma árvore jovem que Gimli quisesse cortar. — Sozinho não!
— Vamos, vamos! — disse Gandalf — Somos todos amigos aqui. Ou deveríamos ser; pois as gargalhadas de Mordor serão nossa única recompensa se discutirmos. Minha mensagem é urgente. Aqui, pelo menos, está a minha espada, meu bom Háma. Tome conta dela. Glamdring é seu nome, pois os elfos a fizeram há muito tempo. Agora, deixe-me passar. Venha, Aragorn!
Lentamente Aragorn desafivelou o cinto e colocou ele mesmo sua espada de pé contra a parede.
— Aqui a coloco — disse ele —, mas ordeno que não a toquem, nem permitam que qualquer outra pessoa ponha as mãos nela. Nesta bainha élfica está a Espada que foi Quebrada, e foi forjada de novo. A morte virá para qualquer um que brandir a espada de Elendil, a não ser o seu herdeiro.
O guarda deu um passo para trás e olhou espantado para Aragorn.
— Ao que parece, você chegou nas asas da canção, vindo de dias esquecidos — disse ele. — Será, senhor, como ordena.
— Bem — disse Gimli. — Se tem Andúril para lhe fazer companhia, meu machado pode ficar aqui, também, sem embaraço — e colocou-o no chão.
— Agora, então, se tudo está como deseja, deixe-nos ir falar com seu mestre.
O guarda ainda hesitou.
— Seu cajado — disse ele a Gandalf. — Desculpe-me, mas ele também deve ser deixado na entrada.
— Tolice! — disse Gandalf — Prudência é uma coisa, descortesia é outra. Sou velho. Se não puder me apoiar em meu cajado para ir até lá, então ficarei aqui fora, até que seja do agrado do próprio Théoden vir mancando até aqui, para falar comigo.
Aragorn riu.
— Todo homem tem algo que preza demais para confiar a outro homem. Mas você separaria um velho de seu apoio? Vamos lá, não vai nos deixar entrar?
— Um cajado na mão de um mago pode ser mais que um apoio para a velhice — disse Háma. Olhou firme para o cajado cinzento no qual se apoiava Gandalf. — Mas, na dúvida, um homem valoroso confiará em sua própria sabedoria. Acredito que vocês são amigos, e pessoas dignas de honra, que não têm propósitos malignos. Podem entrar.
Os guardas então ergueram as pesadas barras das portas, que se abriram lentamente, resmungando em suas grandes dobradiças. Os viajantes entraram. O interior parecia escuro e quente, depois do ar claro sobre a colina.
O salão era comprido e largo, e cheio de sombras e meias-luzes; pilares poderosos sustentavam o teto alto. Mas em alguns pontos a luz do sol caía em raios bruxuleantes das janelas orientais, altas sob os profundos beirais. Através das gelosias do teto, sobre os fios tênues de fumaça que subiam, o céu se mostrava claro e azul. Conforme desviaram os olhos, os viajantes perceberam que o chão era pavimentado com pedras de várias tonalidades; runas trabalhadas e estranhos objetos se entrelaçavam sob seus pés. Viram nesse momento que os pilares eram ricamente entalhados, reluzindo veladamente em ouro e cores meio imperceptíveis. Muitas estampas tecidas pendiam das paredes, e sobre seus amplos espaços marchavam figuras de lendas antigas, algumas apagadas pelos anos algumas escurecidas pela sombra. Mas sobre uma das formas a luz do sol batia: um jovem sobre um cavalo branco. Tocava uma grande corneta, e seus cabelos dourados esvoaçavam ao vento. A cabeça do cavalo estava erguida, e as narinas se abriam vermelhas enquanto relinchava, sentindo o cheiro da batalha à sua frente. Águas espumantes, brancas e verdes, corriam e se encrespavam aos seus joelhos.
— Eis aqui Eorl, o Jovem — disse Aragorn. — Assim veio ele cavalgando do norte, para a Batalha do Campo de Celebrant.
Os quatro companheiros avançaram, passando pela chama viva que ardia sobre a longa lareira no meio do salão. Então pararam. Na outra extremidade da casa, além da lareira e virado para o norte na direção das portas, estava u m estrado com três degraus; no meio do estrado havia uma grande cadeira dourada.
Nela sentava-se um homem tão curvado pela idade que quase parecia um anão; mas seus longos cabelos eram brancos e grossos, caindo em grandes tranças que surgiam de um fino diadema de ouro que lhe cingia a fronte. No centro da testa, brilhava um único diamante branco. A barba caía-lhe sobre os joelhos como neve, mas em seus olhos ainda queimava uma luz clara, que faiscou quando olharam para os forasteiros. Atrás de sua cadeira estava uma mulher vestida de branco, de pé. Nos degraus aos pés do rei sentavase a figura mirrada de um homem, com um rosto pálido e sábio e pálpebras caídas.
Estavam em silêncio. O velho não se mexia na cadeira. Finalmente, Gandalf falou.
— Salve, Théoden, filho de Thengel! Eu retornei. Pois, veja!, a tempestade se aproxima, e agora todos os amigos devem se reunir, para que não sejam destruídos um a um.
Lentamente o velho se levantou, apoiando-se muito num bastão curto e preto, com um cabo de osso branco; agora os forasteiros viam que, embora ele estivesse curvado, ainda era alto e, quando jovem, devia ter sido realmente grande e imponente.
— Cumprimento-o — disse ele —, e talvez você espere minhas boas-vindas. Mas para falar a verdade duvidamos que seja bem-vindo aqui, Mestre Gandalf Você sempre foi um arauto do pesar. Os problemas o seguem como corvos, e, quanto maior a freqüência, tanto pior. Não vou enganá-lo: quando ouvi que Scadufax tinha retornado sem seu cavaleiro, fiquei feliz com a volta do cavalo, e ainda mais com a falta do cavaleiro; e quando Éomer trouxe a notícia de que você tinha partido para sua última morada, eu não lamentei. Mas a notícia que vem de longe raramente é verdadeira. Aí está você de novo! E com você chegam males ainda piores que os anteriores, como se pode esperar. Por que deveria dar-lhe boas-vindas, Gandalf, Corvo da Tempestade? Diga-me. — Lentamente sentou-se de novo na cadeira.
— Fala corretamente, meu senhor — disse o homem pálido sentado nos degraus do estrado. — Ainda não faz cinco dias que chegou a triste notícia de que seu filho, Théodred foi morto nas Fronteiras Ocidentais: seu braço direito, Segundo Marechal da Terra dos Cavaleiros. Em Éomer pouco se pode confiar. Poucos homens restariam para guardar suas muralhas, se lhe fosse permitido governar. E agora mesmo sabemos por Gondor que o Senhor do Escuro se agita no leste. É esta hora que esse andarilho escolhe para retornar. Realmente, por que devemos lhe dar boas-vindas, Mestre Corvo da Tempestade? Vou chamá-lo de Láthspell, Más-notícias; e más notícias não fazem bons hóspedes, dizem por aí. — Soltou uma gargalhada sinistra, conforme levantou as pesadas pálpebras por um instante e lançou um olhar sombrio para os forasteiros.
— Você é considerado sábio, amigo Língua de Cobra, e sem dúvida é um grande apoio para seu mestre — respondeu Gandalf em voz baixa. Apesar disso, um homem pode acompanhar as más notícias de dois modos. Pode estar trabalhando para o mal, ou ser apenas aquele que não interfere no que está bom para não estragar, e só se apresenta para ajudar em tempos de necessidade.
— Isso é verdade — disse Língua de Cobra -, mas existe um terceiro tipo: catadores de ossos, que se intrometem nas tristezas de outros homens, abutres que engordam à custa da guerra. Que ajuda você já trouxe, Corvo da Tempestade? E que ajuda traz agora? Foi nossa ajuda que procurou na última vez que esteve aqui. Então meu senhor ordenou que escolhesse qualquer cavalo que quisesse e partis se, e para a surpresa de todos vocês, na sua insolência, escolheu Scadufax. Meu senhor ficou muito magoado; mesmo assim, para alguns pareceu que, em troca de afastá-lo rapidamente desta terra, o preço não foi alto demais. Acho provável que aconteça o mesmo outra vez: você vai pedir ajuda e não oferecê-la. Você está trazendo homens? Está trazendo cavalos, espadas, lanças? Essas coisas eu chamaria de ajuda; e é delas que precisamos agora. Mas quem são estes que o seguem? Três andarilhos esfarrapados, vestidos de cinza, e você, o mais molambento dos quatro!
— A cortesia de seu palácio parece ter diminuído nos últimos tempos, Théoden, filho de Thengel — disse Gandalf — O mensageiro de seus portões não anunciou os nomes de meus companheiros? Raramente um senhor de Rohan recebeu convidados assim.
Deixaram armas às suas Portas que são dignas de poucos mortais, mesmo os mais poderosos. Suas vestes são cinzentas, pois os elfos os vestiram, e assim eles passaram através da sombra de muitos perigos, para chegar ao seu palácio.
— Então é verdade, como reportou Éomer, que vocês são aliados da Feiticeira da Floresta Dourada? — disse Língua de Cobra. — Não é de admirar: as teias da falsidade sempre foram tecidas em Dwimordene.
Gimli deu um passo à frente, mas sentiu de súbito a mão de Gandalf agarrando-o pelo ombro, e parou, duro como uma pedra.
Em Dwimordene, em Lórien
De raro andaram pés de Homem,
Poucos mortais viram a luz
Que sempre e forte ali reluz.
Galadriel! Galadriel!
De teu poço n'água claro é o céu;
Branca é a estrela em tua branca mão;
Sem par sem mancha é folha e chão
Em Dwimordene :”em Lórien,
Melhor que pensa o Mortal Homem.
Assim Gandalf cantou baixinho, e de repente mudou. Jogando para trás sua velha capa esfarrapada, levantou-se e deixou de se apoiar no cajado; falou então numa voz clara.
— Os sábios só falam do que conhecem, Gríma, filho de Gálmód. Você se transformou num verme estúpido. Portanto fique em silêncio, e mantenha sua língua bifurcada atrás dos dentes. Não passei pelo fogo e pela morte para trocar palavras distorcidas com um servidor até que caiam raios do céu.
Levantou o cajado. Ouviu-se o estrondo de um trovão. A luz do sol se apagou nas janelas do leste; todo o salão ficou de repente escuro como a noite. O fogo diminuiu, passando a pequenas brasas. Só se via Gandalf, erguendo-se branco e altivo diante da lareira enegrecida.
Na escuridão, escutaram o chiado da voz de Língua de Cobra:
— Não o aconselhei, senhor, a proibir esse cajado? Aquele tolo, Háma, nos traiu! — Houve um clarão como se um raio tivesse fendido o teto. Depois tudo ficou em silêncio. Língua de Cobra caiu esticado no chão.
— Agora, Théoden, filho de Thengel, não vai me escutar? — disse Gandalf — Está pedindo ajuda? — Levantou o cajado e apontou para uma alta janela.
Ali a escuridão pareceu se extinguir, e através de uma abertura podia-se ver, alto e distante, um pedaço de céu luminoso.
— Nem tudo está escuro, Tenha coragem, Senhor da Terra dos Cavaleiros; pois melhor ajuda não encontrará. Não tenho conselhos a dar para os que se desesperam. Mas poderia dar conselhos, e poderia lhe dizer umas palavras. Não vai me escutar? Não se destinam a qualquer ouvido. Peço que deixe o interior dessas portas e olhe lá fora. Por muito tempo você ficou sentado nas sombras e confiou em histórias distorcidas e sugestões tortuosas.
Lentamente Théoden deixou sua cadeira. Uma luz fraca se acendeu no salão de novo. A mulher correu para o lado do rei, pegando-lhe o braço, e com passos vacilantes o velho desceu do estrado e caminhou suavemente através do salão. Língua de Cobra continuou deitado no chão. Chegaram até as portas e Gandalf bateu.
— Abram! — gritou ele. — O Senhor da Terra dos Cavaleiros se aproxima! As portas se abriram e um ar fresco entrou, com um assobio. Um vento soprava na colina.
— Mande que seus guardas desçam a escada — disse Gandalf — E você, senhora, deixe-o um pouco comigo. Tomarei conta dele.
— Vá, Éowyn, filha de minha irmã! — disse o velho rei. — O tempo do medo acabou.
A mulher se voltou e foi lentamente para dentro da casa. Ao passar pelas portas, virou-se e olhou para trás. Seu olhar era grave e pensativo, quando se dirigiu ao rei com uma piedade calma. Muito belo era seu rosto, e seus longos cabelos eram como um rio de ouro. Era alta e esbelta em seu traje branco cingido por um cinto de prata; mas parecia forte e rígida como o aço, uma filha de reis. Assim Aragorn, pela primeira vez em plena luz do dia, contemplou Éowyn, Senhora de Rohan, e a achou bela, bela e fria, como uma manhã pálida de primavera que ainda não atingiu a plenitude de mulher. E ela de repente se deu conta dele: altivo herdeiro de reis, sábio após muitos invernos, coberto com um manto cinza, escondendo um poder que ela adivinhava. Por um momento, permaneceu imóvel como uma pedra; depois virando-se rapidamente, ela se foi.
— Agora, senhor — disse Gandalf —, contemple sua terra! Respire o ar livre outra vez!
Do alpendre sobre o planalto eles podiam ver além do rio os campos verdes de Rohan, sumindo num cinza distante. Cortinas de chuva açoitadas pelo vento caíam oblíquas.
O céu acima e ao oeste ainda estava escuro e trovejava; relâmpagos piscavam distantes, em meio aos topos das colinas escondidas. Mas o vento tinha mudado para o norte, e a tempestade que surgira no leste já amainava, rolando em direção ao mar. De repente, através de uma brecha nas nuvens atrás deles, um raio de sol cortou o céu. A chuva que caía brilhou como prata, e na distância o rio resplandeceu como um espelho de luz trêmula.
— Não está tão escuro aqui — disse Théoden.
— Não — disse Gandalf. — Nem a idade pesa tanto em seus ombros, como alguns querem fazê-lo pensar. Jogue fora seu apoio!
Das mãos do rei, o bastão negro caiu, batendo sobre as pedras. Ele esticou o corpo, lentamente, como um homem que se sente enrijecido após ficar um longo período curvado sobre alguma tarefa enfadonha. Agora erguia-se alto e ereto, e seus olhos azuis contemplavam o céu que se abria.
— Escuros têm sido meus sonhos nos últimos tempos — disse ele —, mas sinto-me como alguém que acabou de despertar. Desejaria agora que você tivesse vindo antes, Gandalf, pois receio que já tenha chegado tarde demais, apenas para ver os últimos dias de minha casa. Não por muito tempo deverá resistir o alto palácio que Brego, filho de Eorl, construiu. O fogo devorará o alto trono. Que se pode fazer?
— Muito — disse Gandalf — Mas primeiro mande chamar Éomer. Não estou certo, supondo que você o mantém prisioneiro, por conselho de Gríma, aquele que todos menos você chamam de Língua de Cobra?
— É verdade — disse Théoden. — Ele se rebelou contra minhas ordens, e ameaçou Gríma de morte em meu palácio.
— Um homem pode amá-lo mas não amar Língua de Cobra ou os conselhos dele — disse Gandalf.
— Isso pode ser. Farei como me pede. Chame Háma, diga que venha até mim. Já que ele provou ser uma sentinela não confiável, que agora se torne um transmissor de recados. Os culpados devem trazer os culpados ao julgamento — disse Théoden, e sua voz era grave; apesar disso olhou para Gandalf e sorriu, e quando fez isso muitas rugas de preocupação desapareceram de seu rosto, para não voltar mais.
Depois que Háma se apresentara e já saíra, Gandalf conduziu Théoden até a cadeira de pedra, e então sentou-se diante do rei sobre o degrau mais alto da escada.
Aragorn e seus companheiros ficaram por perto.
— Não há tempo para lhe contar tudo o que precisa ouvir — disse Gandalf — Mas se minha esperança não estiver enganada, chegará um tempo, dentro em breve, quando poderei falar de modo mais completo. Olhe! Você corre um perigo maior até do que aqueles que a habilidade de Língua de Cobra poderia ter introduzido em seus sonhos! Mas veja! Você não está mais sonhando. Você está vivo. Gondor e Rohan não estão sozinhas. O inimigo é mais forte do que podemos imaginar, apesar disso temos uma esperança que ele ainda não imagina.
Gandalf agora falava rápido. Sua voz era baixa e confidencial, e ninguém a não ser o rei ouvia o que ele dizia. Mas a cada palavra do mago aumentava o brilho nos olhos de Théoden, e finalmente ele se levantou de seu assento em toda a sua imponência, tendo Gandalf ao lado dele, e juntos lá do alto eles olharam na direção do leste.
— Realmente! — disse Gandalf, agora numa voz alta, forte e clara naquela direção está nossa esperança, lá onde está nosso maior medo. O destino ainda está por um fio. Mas ainda há esperança, se conseguir-mos resistir imbatíveis por um tempo.
Os outros agora também olhavam para o leste. Por sobre légua s de terras que se estendiam, lá adiante eles divisavam o horizonte, e a esperança e o medo ainda faziam seus pensamentos avançarem mais, além das escuras montanhas, para a Terra da Sombra.
Onde estaria agora o Portador do Anel? Como era fino o fio do qual pendia o destino!
Legolas teve a impressão, ao forçar os olhos poderosos, de ver de relance um brilho branco: na distância, talvez o sol piscasse num pináculo da Torre de Guarda. E mais além ainda, infinitamente remoto e no entanto uma ameaça presente, havia uma fina língua de fogo.
Lentamente Théoden se sentou de novo, como se o cansaço ainda lutasse para dominá-lo, contra a vontade de Gandalf. Virou-se e olhou para seu grande palácio.
— É pena — disse ele — que esses dias tristes devam ser meus, e que venham em minha velhice, no lugar da paz que eu conquistei. Sinto pena por Boromir, o bravo! Os jovens perecem e os velhos permanecem, fenecendo. — Segurou os joelhos com suas mãos enrugadas.
— Seus dedos se recordariam melhor da velha força se segurasse m o punho de uma espada — disse Gandalf
Théoden se levantou e colocou a mão do lado do corpo, mas não havia espada alguma em seu cinto.
— Onde Gríma a escondeu? — disse ele num sussurro.
— Tome esta, querido senhor — disse uma voz límpida. — Ela sempre esteve a seu serviço. — Dois homens tinham subido em silêncio a escada, e agora estavam parados, a poucos passos do topo. Éomer estava lá. Sem elmo sobre a cabeça, sem malha sobre o peito, mas na mão segurava uma espada; ajoelhando-se, ofereceu o punho ao seu mestre.
— Que significa isso? — disse Théoden severo. Voltou-se para Éomer e os homens ficaram surpresos ao vê-lo, erguendo-se agora altivo e ereto. Onde estava o velho que tinham deixado curvado em seu trono, ou apoiado em seu cajado?
— A responsabilidade é minha, senhor — disse Háma, tremendo. Entendi que Éomer deveria ser libertado. Tamanha alegria dominou meu coração que talvez eu tenha cometido um erro. No entanto, uma vez que ele estava livre de novo, e sendo ele um Marechal da Terra dos Cavaleiros, trouxe-lhe a espada como ele me pediu.
— Para depositá-la aos seus pés, meu senhor — disse Éomer.
Por um instante de silêncio, Théoden ficou olhando para Éomer, que ainda estava ajoelhado a seus pés. Nenhum dos dois se mexeu.
— Não vai pegar a espada? — perguntou Gandalf
Lentamente Théoden estendeu a mão. Quando seus dedos tocaram o punho, pareceu aos que olhavam que a força e a firmeza retornavam ao seu braço.
De repente ergueu a lâmina e a brandiu, reluzente e assobiando no ar. Então soltou um forte grito. Sua voz soava clara enquanto cantava, na língua de Rohan, um chamado às armas.
— De pé já, de pé, Cavaleiros de Théoden! Duros feitos despertam, a leste já escurece. A sela do cavalo, o som à trombeta! Avante, Eorlingas!
Os guardas, julgando que estavam sendo convocados, subiram correndo a escada.
Olharam seu senhor com surpresa, e depois, como se fossem um só homem, puxaram suas espadas e colocaram-nas aos pés dele. Comande-nos — disseram eles.
— Westu Théoden hál! — gritou Éomer. — É uma alegria para nós vê-lo voltar a ser o que era. Nunca mais alguém dirá, Gandalf, que você só vem trazendo tristeza!
— Pegue de volta sua espada, Éomer, filho de minha irmã! — disse o rei. — Vá, Háma, e procure minha própria espada! Está em poder de Gríma. Traga-o a mim também. Agora, Gandalf, você disse que tinha conselhos a dar, se eu quisesse escutá-los. Qual é o seu conselho?
— Você já o colocou em prática — respondeu Gandalf — Depositar sua confiança em Éomer, e não num homem de mente pervertida. Jogar fora o medo e o arrependimento. Fazer o que deve ser feito. Todo homem que pode cavalgar deve ser enviado para o oeste imediatamente, como Éomer o aconselhou: devemos primeiro destruir a ameaça de Saruman, enquanto temos tempo. Se falharmos, seremos derrotados. Se tivermos sucesso — então enfrentaremos a próxima tarefa. Enquanto isso, aqueles do seu povo que sobrarem, as mulheres, as crianças e os velhos, devem fugir para os refúgios que vocês mantêm nas montanhas. Não foram eles preparados para um dia tão terrível como este?
Deixe que levem provisões, mas que não demorem, nem carreguem na bagagem tesouros, grandes ou pequenos. É a vida deles que está em questão.
— Esse conselho me parece bom agora — disse Théoden. — Que todo meu povo se apronte! Menos vocês, meus hóspedes — você estava certo, Gandalf, quando disse que a cortesia de meu palácio diminuiu. Vocês cavalgaram a noite toda e a manhã já está terminando. Vocês não dormiram nem comeram nada. Uma casa d e hóspedes será preparada: ali deverão dormir, após terem comido.
— Não, senhor — disse Aragorn. — Ainda não pode haver repouso para os cansados.
Os homens de Rohan devem partir hoje, e nós iremos com eles, com machado, espada e arco. Não trouxemos essas armas para que ficassem descansando contra sua parede, Senhor dos Cavaleiros. E prometi a Éomer que minha espada e a dele seriam brandidas juntas.
— Agora realmente vejo esperança de vitória! — disse Éomer.
— Esperança sim — disse Gandalf — Mas Isengard é forte. E outros perigos se aproximam cada vez mais. Não demore, Théoden, quando tivermos partido. Conduza seu povo rapidamente ao Forte do Templo da Colina!
— Não, Gandalf. — disse o rei. — Você não conhece seu próprio poder de cura. Não será assim. Eu mesmo irei à guerra, para cair à frente da batalha, se isso tiver de acontecer. Assim dormirei melhor.
— Nesse caso, mesmo a derrota de Rohan será gloriosa nas canções — disse Aragorn.
Os homens armados que estavam por perto bateram suas armas, gritando:
— O Senhor dos Cavaleiros irá cavalgar. Avante, Eorlingas!
— Mas seu povo não pode ficar sem armas e sem um líder ao mesmo tempo — disse Gandalf — Quem irá guiá-los e governá-los em seu lugar?
— Pensarei nisso antes de partir — respondeu Théoden. — Lá vem meu conselheiro.
Nesse momento, Háma voltou do salão. Atrás dele, encolhendo-se entre dois outros homens, vinha Gríma, o Língua de Cobra. Seu rosto estava muito branco. Os olhos piscavam com a luz do sol. Háma se ajoelhou e apresentou a Théoden uma grande espada numa bainha trabalhada em ouro e adornada com pedras verdes.
— Aqui, senhor, está Hertigrim, sua antiga espada — disse ele. — Foi encontrada na arca dele. A contragosto entregou as chaves. Há muitas outras coisas lá de que os homens deram falta.
— Você está mentindo — disse Língua de Cobra. — E essa espada me foi confiada por seu próprio mestre.
— E agora ele a requer de volta — disse Théoden. — Isso lhe desagrada?
— Certamente que não, senhor — disse Língua de Cobra. — Cuido do senhor e dos seus o melhor que posso. Mas não se dê tanto trabalho, não exija demais de suas energias.
Deixe que outros lidem com esses hóspedes aborrecidos. Sua carne está quase pronta para servir. Não quer prová-la?
— Quero — disse Théoden. — E faça com que a comida de meus hóspedes seja servida ao meu lado na mesa. O exército cavalgará hoje. Envie os arautos! Que reúnam todos os que moram nas redondezas. Todo homem e todo rapaz bastante forte para segurar uma arma, e todos os que têm cavalos, que estejam pronto s sobre as selas antes da segunda hora após o meio-dia!
— Caro senhor! — gritou Língua de Cobra. — É como eu receava. Esse mago o enfeitiçou. Não vai ficar ninguém para defender o Palácio Dourado que pertenceu aos seus ancestrais, e todo o seu tesouro? Ninguém para proteger o Senhor da Terra dos Cavaleiros?
— Se isso for feitiço — disse Théoden —, parece-me mais benfazejo que seus sussurros. Sua arte de sanguessuga teria logo feito com que eu começasse a andar de quatro, como um animal. Não, ninguém ficará, nem mesmo Gríma. Gríma também cavalgará. Vá! Você ainda tem tempo para limpar a ferrugem de sua espada.
— Clemência, senhor! — choramingou Língua de Cobra, rastejando no chão. — Tenha pena de alguém que se desgastou de tanto o servir. Não me mande para longe de sua companhia! Pelo menos eu ficarei ao seu lado quando todos os outros tiverem partido. Não mande seu fiel Gríma embora!
— Você tem minha compaixão — disse Théoden. — E não o mandarei para longe de minha companhia. Eu mesmo irei para a guerra com meus homens. Ordeno que venha comigo e prove sua fidelidade.
Língua de Cobra olhava de rosto em rosto. Em seus olhos se via a expressão de um animal acossado, procurando uma brecha no círculo formado por seus inimigos. Lambeu os lábios com sua língua comprida e descorada. — Pode-se esperar uma resolução dessas de um senhor da Casa de Eorl, mesmo que ele seja velho — disse ele. — Mas os que realmente o amam Poupariam seus últimos anos. Apesar disso, vejo que chego tarde demais. Outros, a quem talvez a morte de meu senhor entristeceria menos, já o persuadiram. Se não posso desfazer o que fizeram, escute-me pelo menos nisto, senhor! Alguém que conhece seus pensamentos e honra suas ordens deve ficar em Edoras. Nomeie um administrador fiel. Permita que seu conselheiro, Gríma, cuide de tudo até seu retorno — e espero que possamos revê-lo, embora nenhum homem sábio tenha esperanças.
Éomer riu.
— E se esse pedido não o dispensar da guerra, nobilíssimo Língua de Cobra — disse ele —, que serviço de menor honra você aceitaria? Carregar um saco de farinha para as montanhas — se alguém confiasse em você para essa tarefa?
— Não, Éomer, você não está entendendo completamente os pensamentos do Mestre Língua de Cobra — disse Gandalf, voltando o olhar agudo para este último. — Ele é bravo e astuto. Agora mesmo está fazendo um jogo com o perigo e ganhou uma jogada. Já desperdiçou horas de meu precioso tempo. Ao chão, cobra! — disse ele de repente com uma voz terrível. — De barriga no chão! Quanto tempo faz que Saruman o comprou? Qual foi o preço prometido? Quando todos os homens estivessem mortos, você teria uma parte no tesouro, e levaria a mulher que deseja? Há muito tempo você a tem observado com seus olhos oblíquos e perseguido seus passos.
Éomer puxou sua espada.
— Disso eu já sabia — murmurou ele. — Por esse motivo já o teria matado antes, esquecendo a lei do palácio. Mas há outros motivos. — Deu um passo à frente, porém Gandalf o deteve com sua mão.
— Éowyn está a salvo agora — disse ele. — Mas você, Língua de Cobra, já fez tudo o que podia por seu verdadeiro mestre. Alguma recompensa conseguiu no fim. No entanto, Saruman é capaz de ignorar as promessas que fez. Devo recomendar que vá rápido e refresque a memória dele, para que não esqueça seus fiéis serviços.
— Você está mentindo — disse Língua de Cobra.
— Essa palavra brota com muita freqüência de seus lábios — disse Gandalf — Eu não estou mentindo. Veja, Théoden , aqui está uma cobra! Não pode levá-la consigo em segurança, nem deixá-la para trás. Matá-la seria justo. Mas essa criatura não foi sempre como é agora. Já foi um homem, e o serviu à sua maneira. Dê-lhe um cavalo e faça-o partir imediatamente, para onde escolher. Poderá julgá-lo por sua escolha.
— Você ouviu isso, Língua de Cobra? — disse Théoden. — A escolha é sua: cavalgar comigo para a guerra, e nos deixar comprovar na batalha a sua sinceridade, ou partir agora, para onde quiser. Mas se for assim, se nos encontrarmos novamente, não terei pena.
Lentamente, Língua de Cobra se levantou. Olhou para eles com os olhos semicerrados.
Por último olhou para o rosto de Théoden e abriu a boca, como se fosse falar alguma coisa. Então de repente se aprumou. As mãos se agitavam, os olhos faiscavam.
Havia tanta malícia neles que os homens recuaram.
Mostrou os dentes; e depois, com uma respiração chiada, cuspiu aos pés do rei, e, lançando-se para um lado, fugiu descendo a escada.
— Atrás dele! — disse Théoden. — Cuidem para que não faça mal a ninguém, mas não o machuquem e nem impeçam que parta. Que lhe seja dado um cavalo, se ele quiser.
— Isso se algum animal o aceitar — disse Éomer.
Um dos guardas desceu a escada correndo. Um outro foi até o poço ao pé do planalto e com seu elmo retirou um pouco de água. Com ela lavou as pedras que Língua de Cobra tinha conspurcado.
— Agora venham, meus hóspedes! — disse Théoden. — Venham e se reconfortem da maneira que o tempo permite.
Entraram na grande casa. Já escutavam lá embaixo os arautos gritando pela cidade e as cornetas de guerra soando. Pois o rei devia partir logo que os homens da cidade e os que moravam nas redondezas estivessem armados e reunidos.
À mesa do rei sentaram-se Éomer e os quatro hóspedes, e ali também, servindo o rei, estava a senhora Éowyn. Comeram e beberam de pressa. Os outros ficaram em silêncio, enquanto Théoden fazia perguntas a Gandalf a respeito de Saruman.
— A quando remonta essa traição, quem pode saber? — disse Gandalf
— Ele não foi sempre mau. Não duvido que já tenha sido um amigo de Rohan; e mesmo quando seu coração esfriou ele ainda o considerou útil. Mas faz tempo agora que vem planejando sua ruína, usando a máscara da amizade, até que ele estivesse pronto.
Nesses anos, a tarefa de Língua de Cobra foi fácil, e tudo o que você fazia era logo relatado em Isengard; pois sua terra estava aberta, e os forasteiros entravam e saíam. E sempre o sussurro de Língua de Cobra estava em seus ouvidos, envenenando seus pensamentos, enregelando seu coração, enfraquecendo seus músculos, enquanto os outros viam tudo e não podiam dizer nada, pois sua vontade era controlada por ele.
— Mas quando escapei e avisei você, então a máscara foi destruída para aqueles que quisessem ver. Depois disso Língua de Cobra jogou perigosamente, sempre procurando atrasá-lo, para impedir que recobrasse todas as suas forças. Ele foi esperto: entorpecendo a astúcia dos homens e alimentando seus medos, como melhor coubesse em cada ocasião.
Não lembra com que avidez ele disse que nenhum homem deveria ser desperdiçado numa busca infrutífera em direção ao norte, quando todo o perigo estava no oeste? Ele o persuadiu a proibir que Éomer caçasse os orcs invasores. Se Éomer não tivesse desafiado a voz de Língua de Cobra que falava através de seus lábios, aqueles orcs já teriam chegado a Isengard agora levando um grande prêmio. Na realidade, não o prêmio que Saruman deseja acima de todos os outros, mas no mínimo dois membros de minha Comitiva, que compartilham uma esperança secreta, da qual nem mesmo a você, meu rei, ainda não posso falar abertamente. Ousa pensar o quanto eles estariam sofrendo agora, ou o que Saruman poderia ter descoberto para nossa desgraça?
— Devo muito a Éomer — disse Théoden. — Um coração fiel pode ter uma língua rebelde.
— Diga também — disse Gandalf — que para olhos tortos a verdade pode ter um rosto desvirtuado.
— Realmente meus olhos estavam quase cegos — disse Théoden. Acima de tudo devo a você, meu convidado. Mais uma vez chegou a tempo. Gostaria de lhe oferecer um presente antes de partirmos, à sua escolha. Você só tem de apontar qualquer coisa que é minha. Agora só reservo minha própria espada.
— Se cheguei a tempo não podemos saber agora — disse Gandalf. — Mas quanto ao presente, senhor, vou escolher um que supra minhas necessidades: rápido e seguro. Dê-me Scadufax! Antes ele só foi emprestado, se é que podemos chamar aquilo de empréstimo. Mas agora vou conduzi-lo para grandes perigos, colocando a prata contra o negro: eu não arriscaria qualquer coisa que não fosse minha. E já existe um elo de amizade entre nós.
— Você fez uma boa escolha — disse Théoden -, e agora eu o passo às suas mãos alegremente. Mas é um grande presente. Não há outro como Scadufax. Nele retorna um dos poderosos animais de antigamente. Nenhum assim retornará outra vez. E a vocês, meus outros convidados, oferecerei coisas que podem ser encontradas em meu arsenal.
De espadas vocês não precisam, mas há elmos e coletes de malha feitos num habilidoso trabalho com os metais, que foram dados de presente aos meus antepassados por Gondor.
Escolham entre estes antes de partirmos, e que possam lhes servir bem!
Então chegaram homens trazendo vestimentas de guerra do tesouro do rei, e vestiram Aragorn e Legolas em malhas reluzentes. Escolheram também elmos, e escudos redondos: neles havia gravuras enfeitadas com ouro e pedras, verdes, vermelhas e brancas. Gandalf não pegou nenhuma armadura, e Gimli não precisava de nenhum colete de metal, mesmo que se encontrasse algum que servisse no seu tamanho, pois não havia couraça de malhas nos tesouros de Edoras de melhor qualidade do que seu pequeno corselete feito sob a Montanha do Norte. Mas escolheu uma touca de ferro e couro que serviu bem em sua cabeça redonda, e pegou também um pequeno escudo.
Esta peça exibia o cavalo correndo, branco sobre verde, que era o emblema da Casa de Eorl.
— Que o proteja bem — disse Théoden . — Foi feito para mim no tempo de Thengel, quando eu ainda era um menino.
Gimli fez uma reverência. — Fico orgulhoso, Senhor dos Cavaleiros, em usar uma peça sua — disse ele. — Na realidade, seria mais fácil eu carregar um cavalo do que ser carregado por um. Gosto mais dos meus pés. Mas, talvez, chegarei a algum lugar onde possa ficar de pé e lutar.
— Pode muito bem acontecer — disse Théoden .
O rei então se levantou, e imediatamente Éowyn se aproximou trazendo vinho.
— Ferthu Théoden hál! — disse ela. — Tome esta taça e beba nesta hora feliz. Que a saúde o acompanhe em sua ida e em seu retorno!
Théoden bebeu da taça, e então ela a ofereceu aos convidados. Ao ficar diante de Aragorn, Éowyn parou de repente e o olhou, com um brilho nos olhos. E ele olhou o rosto dela e sorriu; mas quando pegou a taça a mão dele encontrou a dela, e Aragorn percebeu que ela tremeu àquele toque. Salve, Aragorn, filho de Arathorn! — disse ela.
— Salve, Senhora de Rohan! — respondeu ele, mas agora tinha o rosto preocupado e não sorriu.
Quando todos tinham bebido, o rei atravessou o salão em direção às portas. Ali guardas esperavam por ele, e arautos também, e todos os senhores e chefes de Edoras e das redondezas estavam reunidos.
— Vejam! Vou na frente, e é provável que esta seja minha última cavalgada — disse Théoden. — Não tenho filhos. Théodred, meu filho, está morto. Nomeio Éomer, filho de minha irmã, como meu herdeiro. Se nenhum de nós voltar, então escolham outro senhor.
Mas a alguém devo agora confiar meu povo que abandono, para governá-lo em paz. Qual de vocês está disposto a ficar?
Ninguém disse nada.
— Não há ninguém que possam indicar? Em quem meu povo confia?
— Na Casa de Eorl — respondeu Háma.
— Mas não podemos deixar Éomer, nem ele ficaria — disse o rei; e ele é o último dessa Casa.
— Não me referi a Éomer — respondeu Háma. — E ele não é o último. Há sua irmã Éowyn, filha de Éomund. Ela é corajosa e tem um coração nobre. Todos a amam. Deixe que ela faça o papel de senhor dos Eorlingas, enquanto estivermos fora.
— Assim será — disse Théoden. — Que os arautos anunciem ao povo que a Senhora Éowyn os conduzirá!
Então o rei se sentou numa cadeira diante de suas portas, e Éowyn se ajoelhou à sua frente, recebendo dele uma espada e um belo corselete. Até logo, filha de minha irmã! — disse ele. — Escura é esta hora, mas talvez retornemos ao Palácio Dourado. Mas no Templo da Colina as pessoas poderão se defender por muito tempo, e se o final da batalha for contra nós para cá virão todos os que escaparem.
— Não fale desse modo! — respondeu ela. — Suportarei um ano para cada dia que passar até seu retorno. — Mas enquanto ela falava seus olhos se dirigiram a Aragorn, que estava ao lado.
— O rei retornará — disse ele. — Não tenha medo! Nosso destino nos espera no leste e não no oeste.
O rei então desceu a escada, com Gandalf ao seu lado. Os outros os seguiram.
Aragorn olhou para trás no momento em que passavam em direção ao portão. Sozinha, Éowyn ficou parada diante das portas do salão, no topo da escada; a espada estava de pé diante dela, e suas mãos descansavam sobre o punho. Estava agora vestida em malhas metálicas, e brilhava como prata ao sol.
Gimli foi ao lado de Legolas, com o machado sobre os ombros. Bem, finalmente partimos! — disse ele. — Os homens precisam de muitas palavras antes das ações. Meu machado está inquieto em minhas mãos. Contudo eu não duvido que esses rohirrim tenham mãos ferozes no momento necessário. Apesar disso, não é este o tipo de batalha que me cai bem, Como irei para a batalha? Preferia andar, e não ficar pulando como um saco na garupa de Gandalf.
— Um lugar mais seguro que muitos outros — disse Legolas. — Apesar disso, Gandalf o colocará no chão de bom grado quando os golpes começarem; ou o próprio Scadufax fará isso, Um machado não é arma para um cavaleiro.
— E um anão não é um cavaleiro. São os pescoços dos orcs que eu queria cortar, e não barbear os escalpos de homens — disse Gimli, batendo no cabo do machado.
No portão encontraram um grande exército de homens, velhos e jovens, todos prontos na sela. Mais de mil estavam ali reunidos. Suas lanças eram como uma floresta irrequieta. Gritaram com muita alegria quando Théoden surgiu. Alguns seguravam o cavalo do rei, Snawmana, e outros seguravam os cavalos de Aragorn e Legolas. Gimli ficou pouco à vontade, franzindo a testa, mas Éomer veio até ele, trazendo seu cavalo.
— Salve, Gimli, filho de Glóin — gritou ele. — Não tive tempo de aprender um modo gentil de falar sob sua palmatória, como me prometeu. Mas não podemos deixar de lado nossa desavença? Pelo menos não falarei mal da Senhora da Floresta outra vez.
— Vou esquecer minha ira por enquanto, Éomer, filho de Éomund disse Gimli —, mas se algum dia você tiver a oportunidade de ver a Senhora Galadriel com seus próprios olhos então irá considerá-la a mais bela das senhoras; caso contrário, nossa amizade chegará ao fim.
— Que assim seja! — disse Éomer. — Mas até esse dia me perdôe, e em sinal de perdão cavalgue comigo, eu lhe peço. Gandalf irá na frente com o Senhor dos Cavaleiros; mas Pé-de-Fogo, meu cavalo, nos levará a nós dois, se você estiver disposto.
— Agradeço-lhe imensamente — disse Gimli, muito satisfeito. — Irei contente com você, se Legolas, meu companheiro, puder cavalgar ao nosso lado.
— Assim será — disse Éomer. — Legolas à minha esquerda, e Aragorn à minha direita, e ninguém ousará nos enfrentar!
— Onde está Scadufax? — disse Gandalf
— Correndo solto sobre a grama — responderam eles. — Não deixa que nenhum homem o pegue. Lá vai ele, lá embaixo, perto do vau, como uma sombra por entre os salgueiros.
Gandalf assobiou e chamou o nome do cavalo em voz alta, e na distância ele balançou a cabeça e relinchou; virando-se, correu na direção do exército como uma flecha.
— Se o sopro do Vento Leste tomasse a forma de um corpo visível, teria exatamente a aparência desse animal — disse Éomer, enquanto o grande cavalo subia, até parar ao lado do mago.
— Parece que o presente já está entregue — disse Théoden. — Mas escutem todos! Aqui nomeio agora meu hóspede, Gandalf Capa-Cinzenta, o mais sábio dos conselheiros, o mais bem-vindo dos andarilhos, um senhor da Terra dos Cavaleiros, um líder dos Eorlingas enquanto nosso povo durar; e dou a ele Scadufax, o príncipe dos cavalos.
— Agradeço-lhe, Rei Théoden — disse Gandalf. Então, de repente, jogou para trás a capa cinzenta, jogou de lado seu chapéu, e de um salto montou no cavalo. Não usava nem elmo nem armadura. Seus cabelos de neve voavam ao vento, as vestes brancas brilhavam ofuscantes ao sol.
— Vejam o Cavaleiro Branco — gritou Aragorn, e todos repetiram essas palavras.
— Nosso Rei e o Cavaleiro Branco! — gritaram eles. — Avante, Eorlingas! As trombetas soaram. Os cavalos empinaram e relincharam. Lanças batiam nos escudos, então o rei levantou a mão, e numa velocidade semelhante ao início de um grande vendaval o último exército de Rohan cavalgou, retumbando em direção ao oeste.
Distante na planície Éowyn viu o brilho de suas lanças, enquanto ficou parada, sozinha diante das portas da casa silenciosa.
O ABISMO DE HELM
O sol já se dirigia para o oeste quando partiram de Edoras, e sua luz incidia nos olhos de todos, transformando os campos de Rohan numa névoa dourada. Havia um caminho batido a noroeste, ao longo dos pés das Montanhas Brancas; por ali seguiram, subindo e descendo uma região verde, atravessando pequenos riachos velozes por muitos vaus. Na distância, à direita, assomavam as Montanhas Sombrias, que ficavam cada vez mais altas e escuras com o passar das milhas. O sol descia devagar diante deles.
Atrás, a noite caía.
A tropa continuou cavalgando. Temendo chegar tarde demais, iam a toda velocidade, raramente fazendo uma pausa. Velozes e resistentes eram os cavalos de Rohan, mas havia muitas léguas a percorrer. Eram quarenta léguas ou mais, em linha reta, de Edoras até os vaus do Isen, onde esperavam encontrar os homens do rei que impediam o avanço dos exércitos de Saruman.
A noite se fechou ao redor deles. Finalmente pararam para montar acampamento.
Tinham cavalgado cerca de cinco horas e avançado bastante pela planície oeste; mesmo assim, mais da metade da viagem ainda se estendia à frente. Numa grande roda, sob o céu estrelado e a lua crescente, estavam acampados agora. Não acenderam fogueiras, pois estavam inseguros da situação, mas colocaram um círculo de guardas montados ao redor deles, e batedores foram mais à frente, passando como sombras pelas dobras da terra. A noite lenta passou sem qualquer surpresa ou alarma. Com o chegar do dia soaram as cornetas, e dentro de uma hora o exército já estava de novo na estrada.
Ainda não havia nuvens cobrindo o céu, mas o ar estava pesado; estava quente para aquela estação do ano. O sol se levantava envolto em névoas e atrás dele, seguindo-o devagar em sua escalada no céu, via-se uma escuridão crescente, como uma grande tempestade que chegava do leste. E em direção ao noroeste parecia haver outra escuridão se formando aos pés das Montanhas Sombrias, uma sombra que se arrastava devagar, descendo do Vale do Mago.
Gandalf recuou até onde cavalgava Legolas, ao lado de Éomer. — Você tem o olhar agudo de seu belo povo, Legolas — disse ele —, e eles distinguem um pardal de um tendilhão a uma légua de distância. Diga-me, está vendo alguma coisa lá na frente, na direção de Isengard?
— Há muitas milhas daqui até lá — disse Legolas olhando à frente e protegendo os olhos com sua mão esguia. — Vejo uma escuridão. Há formas se movendo nela, grandes formas lá adiante, na margem do rio; mas o que são não sei dizer. Não são as nuvens ou a névoa que atrapalham minha visão: há um véu de sombra, que algum poder derrama por sobre a terra, e que está descendo lentamente o rio. É como se o crepúsculo, sob árvores infinitas, estivesse descendo das montanhas.
— E atrás de nós vem uma verdadeira tempestade de Mordor — disse Gandalf
— Será uma noite negra.
O segundo dia de cavalgada foi passando, e o ar foi ficando mais pesado.
Durante a tarde, as nuvens escuras começaram a alcançá-los: um dossel sombrio tendo nas bordas grandes vagalhões, salpicados de uma luz ofuscante. O sol se pôs, vermelho como sangue numa névoa de fumaça. As lanças dos Cavaleiros tinham pontas de fogo quando os últimos raios de luz acenderam as encostas íngremes dos picos de Thrihyme: agora estavam muito próximos do braço mais ao norte das Montanhas Brancas, três chifres farpados olhando para o pôr-do-sol. No último brilho vermelho, os homens da vanguarda viram uma mancha negra, um cavaleiro vindo ao encontro deles. Pararam, aguardando sua chegada.
Chegou: um homem exausto com um elmo trincado e um escudo partido. Desceu devagar do cavalo e ficou parado um instante, enquanto tomava fôlego.
Finalmente falou.
— Éomer está aqui:”? — perguntou ele. — Finalmente vocês chegam, mas tarde demais, e com muito pouca força. As coisas vão mal desde que Théodred caiu. Recuamos ontem pelo Isen com grandes perdas. Muitos pereceram na travessia.
Depois, à noite, novas forças vieram pelo rio atacando nosso acampamento. Toda Isengard deve estar vazia; Saruman armou os bárbaros das colinas e os pastores da Terra Parda, além do rio: estes também ele atiçou contra nós. Fomos dominados. A parede de escudos foi quebrada.
Erkenbrand do Folde Ocidental se retirou com os homens que pôde reunir para sua fortaleza no Abismo de Helm. O restante deles está disperso.
— Onde está Éomer? Digam-lhe que não há esperança à frente. Ele deve retornar a Edoras antes que os lobos de Isengard cheguem aqui.
Théoden permanecera quieto, escondido da visão do homem, atrás de seus guardas; fez então seu cavalo avançar. — Venha, fique ao meu lado, Ceorl! — disse ele. — Estou aqui. O último exército dos Eorlingas está a postos. Não retornaremos sem lutar.
O rosto do homem se iluminou de alegria e surpresa. Aproximou-se. Depois ficou de joelhos, oferecendo ao rei sua espada chanfrada. — Às suas ordens, senhor! — gritou ele.
— E me perdôe! Pensei...
— Pensou que eu tinha ficado em Meduseld, curvado como uma árvore velha sob a neve do inverno. Era assim quando veio para a guerra. Mas um vento oeste chacoalhou os ramos — disse Théoden . — Dê a este homem uni cavalo descansado! Vamos em auxílio de Erkenbrand.
Enquanto Théoden falava, Gandalf avançou alguns passos e ficou ali sozinho, olhando para o norte em direção a Isengard e para o sol que se punha no oeste. Agora voltava.
— Avance, Théoden! — disse ele. — Vá para o Abismo de Helm! Não vá para os Vaus do Isen, e não permaneça na planície! Devo deixá-los por um tempo. Scadufax deve agora me conduzir numa missão urgente. — Voltando-se para Aragorn e Éomer, e para os homens da casa do rei, ele gritou: Cuidem bem do Senhor da Terra dos Cavaleiros até que eu retorne. Aguardem-me no Portão de Helm! Até já! Disse uma palavra para Scadufax, e como uma flecha disparada por um arco o grande cavalo saltou à frente. Quando olharam, ele já havia desaparecido: um clarão de prata no pôr-do-sol, um vento sobre a grama, uma sombra que passou e sumiu de vista.
Snawmana resfolegou e pateou, ansioso por segui-lo; mas só um pássaro feito flecha poderia tê-lo alcançado.
— Que significa isso? — perguntou a Háma um homem da guarda.
— Que Gandalf Capa-Cinzenta precisa se apressar — respondeu Háma. Ele sempre parte e chega sem ser esperado.
— Língua de Cobra, se estivesse aqui, não teria dificuldade em explicar — disse o outro.
— Isso é bem verdade — disse Háma -, mas, quanto a mim, vou esperar até que veja Gandalf de novo.
— Talvez você espere muito tempo — disse o outro.
A tropa desviou-se da estrada que conduzia aos Vaus do Isen e rumou para o sul. A noite caiu, e eles ainda continuavam a cavalgada. As colinas se aproximavam, mas os altos picos de Thrihyme já se apagavam contra o céu que escurecia.
Ainda a algumas milhas dali, no lado oposto do Vale do Folde Ocidental, ficava uma garganta verde, uma grande reentrância no meio das montanhas, que se transformava num precipício entre elas. Os homens daquela região deram-lhe o nome de Abismo de Helm, em homenagem a um herói de antigas guerras que se refugiara ali. Partindo do norte, a garganta afundava, cada vez mais íngreme e estreita dentro das sombras do Thrihyme, até o ponto onde os penhascos ocupados por corvos assomavam como torres poderosas dos dois lados, bloqueando a luz.
No Portão de Helm, diante da entrada do Abismo, havia um esporão de pedra que o penhasco ao norte projetava para fora. Ali, na sua extremidade, erguiam-se altas muralhas de pedra antiga, e dentro delas via-se uma torre alta. Os homens diziam que nos tempos longínquos da glória de Gondor os reis dos mares tinham construído ali sua fortaleza com mãos de gigantes. Chamava— se Forte da Trombeta, pois se tal instrumento fosse tocado na torre o som ecoava no Abismo atrás dela, como se exércitos há muito esquecidos estivessem marchando para a guerra, vindo das cavernas sob as colinas. Os homens de antigamente também tinham construído uma muralha, que ia desde o Forte da Trombeta até o penhasco ao sul, barrando a passagem para a garganta. Abaixo dela, através de uma larga galeria, passava o Riacho do Abismo. Aos pés do Rochedo da Trombeta ele fazia uma curva, e corria então numa vala que passava no meio de uma ampla fenda, descendo suavemente do Portão de Helm para o Dique de Helm. De lá caía na Garganta do Abismo, desembocando no Vale do Folde Ocidental. Ali, no Forte da Trombeta, no Portão de Helm, morava Erkenbrand, senhor do Folde Ocidental, nas fronteiras das Terras dos Cavaleiros.
Quando os dias foram ficando mais escuros com a ameaça da guerra, sendo sábio, ele tinha consertado a muralha e aumentado a segurança da fortaleza.
Os Cavaleiros estavam ainda no baixo vale, diante da entrada da Garganta, quando se ouviram os gritos e clangores de seus batedores que ia m à frente. Da escuridão vieram flechas zunindo. Rapidamente um batedor retornou e reportou que homens montados em lobos estavam circulando no vale, e que uma tropa de orcs e de homens bárbaros estava correndo para o sul vindo dos Vaus do Isen, e parecia estar se dirigindo para o Abismo de Helm.
— Vimos muitos homens de nosso povo que caíram mortos quando fugiam para lá — disse o batedor. — E encontramos grupos dispersos, indo de um lado para o outro, sem terem quem os comandasse. O que aconteceu a Erkenbrand ninguém parece saber. É provável que seja alcançado antes que consiga chegar ao Portão de Helm, se é que ainda não pereceu. Alguém viu Gandalf? — perguntou Théoden .
— Sim, senhor. Muitos viram um velho vestido de branco montando um cavalo, aparecendo aqui e acolá sobre as colinas, como o vento sobre a grama.
Alguns o tomaram por Saruman. Pelo que dizem, ele se foi antes do anoitecer em direção a Isengard. Alguns também dizem que Língua de Cobra foi visto antes, indo para o norte com um grupo de orcs.
— Será ruim para Língua de Cobra, se Gandalf cruzar com ele — disse Théoden. — Apesar disso, sinto falta de meus dois conselheiros, o velho e o novo. Mas nesta situação não temos escolha melhor do que ir em frente, como Gandalf disse, até o Portão de Helm, estando Erkenbrand lá ou não. Sabe-se o tamanho da tropa que vem do norte?
— É muito grande — disse o batedor. — Quem está fugindo vê inimigos em dobro, mas eu falei com homens de muita coragem, e não duvido que a força principal do inimigo seja muitas vezes maior do que toda a que temos aqui.
— Então sejamos rápidos — disse Éomer. — Vamos passar pelos inimigos que já estão entre nós e a fortaleza. Há cavernas no Abismo de Helm onde centenas de homens podem se esconder, e caminhos secretos leva m de lá até as colinas.
— Não confie nos caminhos secretos — disse o rei. — Saruman andou espionando esta região durante um longo tempo. Mas naquele lugar nossa defesa pode resistir por muito tempo. Vamos!
Aragorn e Legolas iam agora na frente com Éomer. Continuaram cavalgando no escuro, cada vez mais devagar conforme a noite avançava e o caminho subia para o sul, cada vez mais entrando nas dobras escuras aos pés da montanha.
Encontraram poucos inimigos. Em alguns pontos cruzaram com grupos errantes de orcs, mas eles fugiam antes que os Cavaleiros pudessem pegá-los ou matá-los.
— Não vai demorar muito, eu receio — disse Éomer —, até que o líder de nossos inimigos tome conhecimento da chegada do exército do rei, seja ele Saruman ou qualquer capitão que ele tenha mandado.
O rumor da guerra crescia atrás deles. Agora podiam ouvir, chegando através da escuridão, o som de uma cantoria rude. Tinham avançado muito pela Garganta do Abismo quando olharam para trás. Então viram tochas, pontos inumeráveis de luz de fogo sobre os campos negros atrás deles, espalhados como flores vermelhas, ou subindo em longas fileiras faiscantes. Em alguns pontos uma chama maior se erguia.
É uma tropa grande, e avança rápido em nossa direção — disse Aragorn.
— Estão trazendo fogo — disse Théoden —, e conforme passam vão queimando palha, cabana e árvore. Este era um vale rico e tinha muitas propriedades. Sinto por meu povo!
— Gostaria que o dia já tivesse nascido e que pudéssemos cavalgar sobre eles como uma tempestade! — disse Aragorn. — Fico triste em ter de fugir desse jeito.
— Não precisamos fugir muito mais — disse Éomer. — Não muito além daqui fica o Dique de Helm, uma trincheira com baluarte antiga cortada através da garganta, quatrocentos metros abaixo do Portão de Helm. Ali Podemos nos virar e combater.
— Não, somos muito poucos para defender o Dique — disse Théoden .
— Tem uma milha ou mais de comprimento, e sua abertura é grande.
— Na abertura ficará nossa retaguarda, se formos pressionados — disse Éomer.
Não havia lua nem estrelas quando os Cavaleiros atingiram a abertura do Dique, por onde a correnteza que vinha de cima passava, e onde a estrada ao lado descia do Forte da Trombeta. O baluarte de repente assomou diante deles, uma sombra alta além de um poço escuro. Conforme foram subindo, uma sentinela os interpelou.
— O Senhor da Terra dos Cavaleiros se dirige para o Portão de Helm respondeu Éomer. — Eu, Éomer, filho de Éomund, estou falando.
— Isso é uma boa notícia que supera qualquer expectativa — disse a sentinela. — Apressem-se! O inimigo está em seus calcanhares.
A tropa passou através da abertura e parou na ladeira inclinada que ficava acima.
Agora descobriram, para sua alegria, que Erkenbrand deixara muitos homens defendendo o Portão de Helm, e muitos outros tinham depois ali se refugiado.
— Talvez tenhamos mil homens prontos para lutar a pé — disse Gamling, um velho, o líder dos que vigiavam o Dique. — Mas a maioria deles já viu invernos demais, como eu, ou muito poucos, como este filho de meu filho. Que notícias têm de Erkenbrand? Chegou até nós ontem a notícia de que ele vinha para cá, batendo em retirada com tudo o que sobrou dos melhores Cavaleiros do Folde Ocidental. Mas ainda não chegou.
— Receio que não chegue mais — disse Éomer. — Nossos batedores não conseguiram notícias dele, e o inimigo domina todo o vale atrás de nós.
— Gostaria que ele tivesse escapado — disse Théoden. — Era um homem poderoso.
Nele reviveu o valor de Helm, o Mão-de-Martelo. Mas não podemos esperá-lo aqui.
Devemos reunir agora todas as nossas forças detrás das muralhas. Vocês têm boas provisões? Temos poucas, porque partimos para uma batalha aberta, e não preparados para um cerco.
— Atrás de nós, nas cavernas do Abismo, estão três partes do povo do Folde Ocidental, velhos e jovens, crianças e mulheres — disse Gamling. Mas um grande estoque de comida, e vários animais e rações para eles também foram guardados lá.
— Isso é bom — disse Éomer. — Eles estão queimando e saqueando tudo o que resta no vale.
— Se vierem barganhar nossa comida no Portão de Helm, vão pagar um preço alto — disse Gamling.
O rei e seus Cavaleiros passaram à frente. Diante do passadiço que atravessava o rio eles desmontaram. Numa longa fila, conduziram seus cavalos rampa acima e passaram para dentro dos portões do Forte da Trombeta. Ali outra vez foram recebidos com alegria e esperança renovada, pois agora havia homens em número suficiente para proteger tanto o forte quanto a muralha.
Rapidamente, Éomer deixou seus homens a postos. O rei e os homens de sua casa estavam no Forte da Trombeta, e também havia vários homens do Folde Ocidental. Mas na Muralha do Abismo e na torre, e atrás dela, Éomer reuniu a maioria de sua força, pois ali a defesa parecia mais duvidosa, se o ataque fosse determinado e violento.
Os cavalos foram conduzidos mais para cima do Abismo, ficando aos cuidados de alguns homens que foi possível separar para essa função.
A Muralha do Abismo tinha seis metros de altura, e era tão larga que quatro homens podiam andar lado a lado em cima dela, protegidos por um parapeito sobre o qual apenas um homem alto poderia olhar. Em alguns pontos havia fendas na pedra, através das quais os combatentes podiam atirar. Podia-se chegar a esse parapeito por uma escada que descia de uma porta no pátio externo do Forte da Trombeta; três lances de degraus também conduziam para a parte superior da muralha, saindo do Abismo lá embaixo; mas a parte da frente era lisa, e as grandes pedras foram assentadas com tal habilidade que não se via nenhuma saliência nas suas junções, e no topo elas tinham a forma de um penhasco esculpido pelo mar.
Gimli ficou de pé apoiando-se no parapeito do muro. Legolas estava sentado em cima do parapeito, manuseando o arco e espiando na escuridão.
— Isso está mais ao meu gosto — disse o anão, pisando firme nas pedras. — Meu coração se alegra quando nos aproximamos das montanhas. Há boas pedras aqui. Esta terra tem ossos resistentes. Senti-os em meus pés quando viemos do dique.
Se me dessem um ano e cem anões de meu povo, eu faria disto aqui um lugar contra o qual os exércitos se arrebentariam como água.
— Não duvido disso — disse Legolas, — Mas você é um anão, e anões são pessoas estranhas. Não gosto deste lugar, e gostarei menos ainda à luz do dia. Mas você me consola, Gimli, e estou feliz em tê-lo ao meu lado, com suas pernas fortes e seu machado resistente. Gostaria que houvesse mais pessoas de seu povo entre nós. Mas mais ainda eu daria por uma centena de bons arqueiros da Floresta das Trevas. Vamos precisar deles. Os rohirrim têm homens que são bons arqueiros à sua maneira, mas há muito Poucos aqui, muito poucos.
— Está escuro para o uso dos arcos — disse Gimli. — Na verdade, está na hora de dormir. Dormir! Sinto necessidade disso, como nunca pensei que um anão sentiria.
Cavalgar é um trabalho cansativo. Mesmo assim meu machado está inquieto em minhas mãos. Dê-me uma fileira de pescoços de orcs e um espaço para me movimentar, que todo o cansaço abandonará meu corpo.
O tempo passou devagar. Lá embaixo no vale, fogueiras isoladas ainda ardiam. As tropas de Isengard avançavam em silêncio agora. Podia-se ver suas tochas subindo a garganta em muitas fileiras.
De repente, do Dique, gritos e berros, e os ferozes gritos de guerra começaram.
Tochas flamantes apareceram sobre a borda e se amontoaram na fenda. Depois se espalharam e desapareceram. Homens vieram galopando pelo campo e subiram a rampa que conduzia ao Forte da Trombeta. A retaguarda dos homens do Folde Ocidental fora acuada para dentro.
— O inimigo está próximo! — disseram eles. — Soltamos todas as flechas que tínhamos e enchemos o Dique de orcs. Mas isso não vai detê-los por muito tempo. Eles já estão escalando a margem em vários pontos, numerosos como formigas em marcha. Mas lhes ensinamos a não carregarem tochas.
Agora já passava da meia-noite. O céu estava completamente negro, e o marasmo do ar pesado anunciava uma tempestade. De repente as nuvens foram chamuscadas por um clarão ofuscante. Muitos relâmpagos golpeavam as colinas do leste. Por um instante, os vigias das muralhas viram todo o espaço entre o ponto onde estavam e o Dique iluminado por uma luz branca: lá fervilhavam e rastejavam figuras negras, algumas largas e troncudas, outras altas e sinistras, com altos elmos e escudos negros.
Mais centenas e centenas se despejavam sobre o Dique e através da brecha.
A onda escura atingia as paredes de penhasco a penhasco. Trovões retumbavam no vale. A chuva veio açoitando tudo.
Inúmeras flechas chegavam zunindo sobre as ameias, e caíam tinindo e resvalando na pedra. Algumas atingiam o alvo. O ataque ao Abismo de Helm tinha começado, mas nenhum som ou desafio vinha lá de dentro: nenhuma flecha veio em resposta.
As tropas atacantes pararam, frustradas pela ameaça silenciosa de rocha e muralha.
Freqüentemente os relâmpagos rasgavam a escuridão. Quando isso acontecia, os orcs gritavam, agitando lanças e espadas, e atirando uma nuvem de flechas contra qualquer um que aparecesse nas ameias; e os homens da Terra dos Cavaleiros, assustados, viram lá fora um grande campo coberto por um trigal escuro, açoitado por uma tempestade de guerra, e cada espiga faiscava com uma luz mordaz.
Ouviram-se trombetas impudentes. O inimigo avançava como um a onda, uns contra a Muralha do Abismo, outros na direção do passadiço e da rampa que conduzia aos portões do Forte da Trombeta. Ali estavam reunidos os orcs maiores, e os bárbaros das colinas da Terra Parda. Hesitaram por um momento e depois continuaram avançando. O relâmpago produziu um clarão, e estampado em cada elmo e escudo pôde-se ver a mão sinistra de Isengard. Alcançaram o topo do rochedo; dirigiram-se para os portões.
Então finalmente veio uma resposta: uma tempestade de flechas os recebeu, junto com uma avalanche de pedras. Eles vacilaram, pararam e fugiram; e depois atacaram de novo; pararam e atacaram outra vez; e a cada vez, como a invasão do mar, eles paravam num ponto mais alto. De novo soaram cornetas, e um monte de homens urrando saltou à frente. Mantinham seus grandes escudos acima das cabeças como um telhado, enquanto no meio deles carregavam dois grandes troncos de árvore. Atrás apinhavam-se orcsarqueiros, mandando uma saraivada de flechas na direção dos arqueiros que estavam sobre a muralha. Ganharam os portões. Os troncos, balançados por fortes braços, golpeavam o madeirame do portão com um estrondo destruidor. Se algum homem caía, atingido por uma pedra que fora atirada de cima, dois outros surgiam para tomar-lhe o lugar. Golpe após golpe os grandes aríetes balançavam e batiam.
Éomer e Aragorn estavam juntos sobre a Muralha do Abismo. Ouviam o rugido de vozes e as pancadas surdas dos aríetes; então, num clarão repentino, enxergaram o perigo que ameaçava os portões.
— Venha! — disse Aragorn. — É chegada a hora em que devemos brandir juntos nossas espadas.
Velozes como o vento, eles correram ao longo da muralha, subindo os degraus, passando para o pátio exterior sobre o Rochedo. Conforme corriam, foram reunindo vários espadachins robustos. Havia uma pequena porta que se abria num canto da parede oeste do forte, onde o penhasco se esticava na direção dela.
Daquele lado um caminho estreito ia em direção ao grande portão, entre a muralha e a borda íngreme do Rochedo. Juntos, Éomer e Aragorn saltaram através da porta, com seus homens vindo logo atrás. As duas espadas saíram reluzindo das bainhas como se fossem uma só.
— Gúthwiné! — gritou Éomer. — Gúthwiné pela Terra dos Cavaleiros!
— Andúril! — gritou Aragorn. — Andúril pelos Dúnedain!
Avançando pela lateral, eles se arremessaram sobre os bárbaros. Andúril subia e descia, reluzindo com um fogo branco. Um clamor subiu da muralha e da torre.
— Andúril! Andúril vai à guerra. A Espada que foi Quebrada brilha de novo!
Assombrados, os homens deixaram cair os troncos e voltaram-se para lutar; mas a parede de seus escudos foi partida como se por um relâmpago, e eles foram varridos, derrubados ou jogados contra o Rochedo, indo cair no rio pedregoso lá em baixo. Os orcs-arqueiros atiraram alucinados e depois fugiram.
Por um momento, Éomer e Aragorn pararam diante dos portões. Os trovões retumbavam agora na distância. Os relâmpagos ainda faiscavam, adiante, entre as montanhas do sul, Um vento cortante soprava do norte outra vez. As nuvens se partiam e passavam, e as estrelas apareceram; sobre as colinas das encostas da Garganta, a lua se dirigia para o oeste, bruxuleando amarela entre os destroços da tempestade.
— Quase chegamos tarde demais — disse Aragorn, olhando os portões. Suas grandes dobradiças e barras de ferro estavam deslocadas e tortas; muitas de suas vigas de madeira estavam quebradas.
— Apesar disso não podemos ficar aqui fora das muralhas para defendê-las – disse Éomer. — Olhe! — Ele apontou para o passadiço. Uma grande massa de orcs e homens estava se reunindo outra vez do outro lado do rio. Flechas zuniam e ricocheteavam nas pedras em volta deles. — Venha! Precisamos voltar e ver o que podemos fazer para empilhar pedras e vigas contra os portões do lado de dentro. Vamos! Voltaram-se e correram. Nesse momento, cerca de doze orcs que estavam deitados imóveis por entre os mortos ergueram-se e vieram silenciosa e rapidamente atrás deles.
Dois se jogaram ao chão nos calcanhares de Éomer, derrubaram-no e num segundo já estavam sobre ele. Mas uma pequena figura escura que ninguém tinha notado saltou das sombras e soltou um grito rouco: Baruk Khazâd! Khazâd ai mênu! Um machado varreu o ar, Dois orcs caíram decapitados. O resto deles fugiu.
Éomer se levantou num esforço, no mesmo momento em que Aragorn corria em seu auxílio.
A pequena passagem foi fechada outra vez, a porta de ferro foi bloqueada com pedras empilhadas do lado de dentro. Quando todos estavam a salvo lá dentro, Éomer se voltou:
— Agradeço a você, Gimli, filho de Glóin! — disse ele. — Não sabia que você estava ao nosso lado nesse ataque. Mas geralmente o hóspede que não foi convidado acaba sendo a melhor companhia. Como chegou até lá?
— Segui vocês para espantar o sono — disse Gimli —, mas olhei os homens das colinas e os achei muito grandes para mim, então me sentei ao lado de uma pedra para ver seu jogo de espadas.
— Não será fácil retribuir o que me fez — disse Éomer.
— Pode haver muitas oportunidades antes do fim da noite — disse rindo o anão. — Mas fico contente. Até agora não derrubei nada além de árvores, desde que deixei Moria.
— Dois! — disse Gimli, acariciando seu machado. Tinha voltado para seu lugar na muralha.
— Dois? — disse Legolas. — Consegui marca melhor, embora agora precise tatear o chão à procura de flechas perdidas; todas as minhas se foram. Apesar disso, minha conta é vinte no mínimo. Mas não é mais que algumas folhas em meio a uma floresta.
As nuvens agora se dispersavam rapidamente, e a lua que afundava brilhava muito.
Mas a luz trouxe poucas esperanças para os Cavaleiros de Rohan. O inimigo diante deles parecia ter aumentado em número, e outros ainda vinham do vale através da abertura, O ataque sobre o rochedo produziu apenas uma breve trégua. A investida contra os portões redobrara. Contra a Muralha do Abismo, as tropas de Isengard rugiam como um mar.
Orcs e homens das colinas pareciam um enxame ao redor de sua base, de ponta a ponta.
Cordas com ganchos foram jogadas por sobre o parapeito tão rápido que os homens não conseguiam cortá-las ou jogá-las todas de volta. Subiram centenas de longas escadas.
Muitas caiam destruídas, mas eram substituídas por muitas outras, e os orcs subiam por elas como os macacos das escuras florestas do sul. Diante da base da muralha, os mortos e feridos se empilhavam como os destroços de uma tempestade; cada vez mais altos ficaram os horrendos montes, e ainda assim o inimigo avançava.
Os homens de Rohan ficaram cansados. Usaram todas as suas flechas, e atiraram cada lança; as espadas estavam chanfradas, e os escudos trincados. Três vezes Aragorn e Éomer os animaram, e três vezes Andúril reluziu num ataque desesperado que afastou o inimigo da muralha.
Então um clamor subiu do Abismo lá embaixo. Orcs tinham se arrastado como ratos através da galeria pela qual o rio desembocava.
Tinham se juntado ali na sombra dos penhascos, esperando que o ataque de seus companheiros estivesse em plena força e que quase todos os homens da defesa tivessem corrido para o topo da muralha. Então saltaram. Alguns já tinham entrado pela mandíbula do Abismo e se misturavam aos cavalos, lutando com os guardas.
Da muralha saltou Gimli, com um grito feroz que ecoou nos penhascos. Khazád!
Khazád! Logo teve muito trabalho.
— Ai-oi! — gritou ele. — Os orcs estão do outro lado da muralha. Ai-oi! Venha, Legolas. Há orcs suficientes para nós dois. Khazád ai ménu! Gamling, o Velho, olhou de cima do Forte da Trombeta, ouvindo a voz possante do anão acima de todo o tumulto. — Os orcs estão no Abismo! — disse ele. — Helm! Helm! Avante Helmingas! — gritou ele ao saltar pela escada do Rochedo com muitos homens atrás.
O ataque foi feroz e repentino, e os orcs fugiram deles. Logo foram cercados na parte estreita da garganta, e todos foram mortos ou levados aos gritos até a brecha do Abismo para cair diante dos protetores das cavernas ocultas.
— Vinte e um! — gritou Gimli. Deu um golpe com as duas mãos e derrubou o último orc diante de seus pés. — Agora minha conta ultrapassa a de Mestre Legolas outra vez.
— Precisamos bloquear essa toca de ratos — disse Gamling. — Os anões têm fama de saber trabalhar com pedras. Ajude-nos, mestre!
— Nós não trabalhamos em pedras com machados de batalha, nem com nossas unhas — disse Gimli. — Mas vou ajudá-los como puder.
Juntaram a maior quantidade possível de pequenas rochas e pedras quebradas que havia por perto, e sob a orientação de Gimli os homens do Folde Ocidental bloquearam a extremidade interior da galeria, até que sobrasse apenas uma saída estreita. Então o Riacho do Abismo, mais caudaloso por causa da chuva, revolto se agitava em sua passagem sufocada, espraiando-se lentamente em poças frias, de penhasco a penhasco.
— Lá em cima deve estar mais seco — disse Gimli. — Venha, Gamling. Vamos ver como estão as coisas na muralha!
Subiu e encontrou Legolas junto com Aragorn e Éomer. O elfo estava amolando sua longa faca. Houve alguns instantes de trégua, já que a tentativa de invasão pela galeria havia sido frustrada.
— Vinte e um! — disse Gimli.
— Bom! — disse Legolas. — Mas minha conta agora já está em duas dúzias. Aqui em cima o trabalho foi feito a faca.
Éomer e Aragorn, cansados, apoiavam-se nas espadas. Mais adiante, à esquerda, o estrondo e o clamor da batalha no Rochedo aumentaram de novo.
Mas o Forte da Trombeta estava seguro como uma ilha no mar. Os portões estavam arruinados, mas pela barricada de troncos e pedras nenhum inimigo havia passado ainda.
Aragorn olhou para as estrelas pálidas e para a lua, agora atrás das colinas a oeste que fechavam o vale. — Esta noite está sendo longa como muitos anos — disse ele. — Quanto tempo falta para o dia chegar?
— A aurora não tarda — disse Gimli, que agora tinha subido e estava ao lado dele. — Mas receio que não nos ajude em nada.
— Apesar disso, a aurora é sempre a esperança dos homens — disse Aragorn.
— Mas essas criaturas de Isengard, esses semi-orcs e homens-orcs que o trabalho maligno de Saruman criou, não vão tremer diante do sol — disse Gamling. — Muito menos os bárbaros das colinas. Não está ouvindo as vozes deles?
— Eu estou ouvindo — disse Éomer —, mas não representam mais que gritos de pássaros e urros de animais aos meus ouvidos.
— Mas há muitos que gritam na língua da Terra Parda — disse Gamling.
— Conheço essa língua. É um dialeto antigo dos homens, que já foi falado em vários vales a oeste da Terra dos Cavaleiros. Escutem! Eles nos odeiam, e estão felizes, pois parecem ter certeza de nosso fim. “O rei, o rei!”, gritam eles. “Vamos capturar o rei deles.
Morte aos Forgoil! Morte aos Cabeças de Palha! Morte aos ladrões do norte!” São esses nomes que usam para nós. Nem em quinhentos anos esqueceram a mágoa que sentiram quando os senhores de Gondor deram a Terra dos Cavaleiros a Eorl, o Jovem, e fizeram com ele uma aliança. Saruman instigou esse antigo ódio. São um povo feroz quando provocado. Não vão ceder agora diante do crepúsculo ou da aurora, até que consigam capturar Théoden, ou até que eles mesmos sejam mortos.
— Mesmo assim, o dia me traz esperanças — disse Aragorn. — Não se fala que nenhum inimigo jamais tomou o Forte da Trombeta, se homens o estivessem defendendo?
— Assim cantam os menestréis — disse Éomer.
— Então vamos defendê-lo, e ter esperança! — disse Aragorn.
No momento em que falavam, ouviu-se o clangor de trombetas. Então houve um estrondo e um clarão de fogo e fumaça. As águas do Riacho do Abismo jorraram, assobiando e espumando: não estavam mais bloqueadas, um buraco fora escancarado na muralha. Uma tropa de figuras negras começou a invadir o lugar.
— Diabrura de Saruman! — gritou Aragorn. — Eles entraram na galeria outra vez, enquanto conversávamos, e acenderam o fogo de Orthanc embaixo de nossos pés.
— Elendil! Elendil! — gritou ele, ao descer através da brecha; mas no momento em que fazia isso, uma centena de escadas foram levantadas contra as ameias.
Sobre a muralha e sob a muralha, o último ataque veio varrendo tudo como uma onda negra numa colina de areia. A defesa foi varrida. Alguns dos Cavaleiros foram empurrados cada vez mais fundo no Abismo, caindo e lutando enquanto recuavam, passo a passo, na direção das cavernas. Outros cortavam caminho na direção da cidadela.
Uma larga escada subia do Abismo até o Rochedo e o portão dos fundos do Forte da Trombeta. Perto da parte inferior estava Aragorn. Em sua mão ainda reluzia Andúril, e o terror da espada manteve o inimigo afastado por um tempo enquanto, um a um, todos os que conseguiram alcançar a escada subiram na direção do portão. Atrás, no degrau mais alto, Legolas estava ajoelhado. O arco estava pronto, mas só lhe restava uma única flecha, e agora ele olhava atento, pronto para atirar no primeiro orc que ousasse se aproximar da escada.
— Todos os que conseguiram entrar estão agora a salvo lá dentro, Aragorn — chamou ele. — Volte!
Aragorn virou-se e subiu correndo a escada, mas enquanto corria tropeçou de cansaço. Imediatamente, seus inimigos se atiraram em perseguição. Os orcs vinham berrando, com os longos braços estendidos para pegá-lo. O que estava mais à frente caiu com a última flecha de Legolas em sua garganta, mas o resto saltou sobre ele. Então uma grande pedra, jogada do alto da muralha externa, caiu sobre a escada, e os arremessou de volta para dentro do Abismo.
Aragorn atingiu a porta, e rapidamente ela bateu atrás dele.
— As coisas vão mal, meus amigos — disse ele, limpando o suor de sua fronte com o braço.
— Muito mal — disse Legolas —, mas ainda não totalmente sem esperança, enquanto tivermos você ao nosso lado. Onde está Gimli?
— Não sei — disse Aragorn. — Avistei-o pela última vez lutando no chão atrás da muralha, mas o inimigo nos separou..
— Ai de nós! Essa é uma má notícia — disse Legolas.
— Ele é forte e corajoso — disse Aragorn. — Vamos esperar que consiga escapar para as cavernas. Ali ficaria a salvo por um tempo. Mais a salvo do que nós. Um refúgio assim estaria ao gosto de um anão.
— Essa deve ser minha esperança — disse Legolas. — Mas gostaria que ele tivesse vindo para este lado. Queria dizer ao Mestre Gimli que minha conta agora já está em trinta e nove.
— Se ele conseguir voltar para as cavernas, a conta dele ultrapassará a sua de novo — disse Aragorn rindo. — Nunca vi um machado trabalhar tanto.
— Preciso ir procurar umas flechas — disse Legolas. — Queria que esta noite terminasse logo, e ter mais luz para atirar melhor.
Aragorn entrou na cidadela. Ali, para seu desânimo, ficou sabendo que Éomer não alcançara o Forte da Trombeta.
— Não, ele não veio para o Rochedo — disse um dos homens do Folde Ocidental. — A última vez que o vi, ele estava reunindo homens à sua volta e lutando na entrada do Abismo. Gamling estava com ele, e o anão; mas não consegui chegar até eles.
Aragorn cruzou em grandes passadas o pátio interno, e subiu a um cômodo alto na torre. Ali estava o rei, sombrio, junto a uma janela estreita, olhando sobre o vale.
— Quais são as novas, Aragorn? — perguntou ele.
— A Muralha do Abismo foi tomada, senhor, e toda a defesa recuou; m as muitos escaparam para cá.
— Éomer está aqui?
— Não, senhor. Mas muitos de seus homens se retiraram para o Abismo, e alguns dizem que Éomer está entre eles. Nos desfiladeiros eles poderão manter o inimigo afastado e entrar nas cavernas. Que esperança terão lá, eu não sei.
— Mais esperanças que nós. Boas provisões, pelo que dizem. E o ar lá é salubre, devido a fissuras no alto da rocha. Ninguém pode forçar uma invasão contra homens determinados. Eles podem resistir por muito tempo.
— Mas os orcs trouxeram um feitiço de Orthanc — disse Aragorn. — Têm um fogo explosivo, e com ele derrubaram a Muralha. Se não conseguirem entrar nas cavernas, podem prender os que estão lá dentro. Mas agora devemos voltar todos os nossos pensamentos para nossa própria defesa.
— Sinto-me mal nesta prisão — disse Théoden. — Se conseguisse cravar uma lança, cavalgando à frente de meus homens em campo aberto, talvez sentisse de novo a alegria da batalha, e terminaria meus dias assim. Mas aqui sou de pouca utilidade.
— Aqui, pelo menos, está protegido na mais segura fortaleza da Terra dos Cavaleiros — disse Aragorn. — Temos mais possibilidades de defendê-lo no Forte da Trombeta do que em Edoras, ou mesmo nas montanhas, no Templo da Colina.
— Dizem que o Forte da Trombeta jamais caiu diante de um ataque disse Théoden. — Mas agora meu coração se enche de dúvidas. O mundo muda, e tudo o que certa vez se mostrou forte agora se mostra incerto. Como pode uma torre resistir a tal número de homens e a um ódio tão acirrado? Se soubesse que a força de Isengard tinha ficado tão grande, talvez eu não tivesse saído contra ela de forma tão temerária, não obstante todas as artes de Gandalf. Os conselhos dele não parecem tão bons agora como pareciam sob a luz da manhã.
— Não julgue o conselho de Gandalf, senhor, até que tudo esteja acabado — disse Aragorn.
— O fim não está muito distante — disse o rei. — Mas não terminarei aqui como um velho texugo preso numa armadilha. Snawmana e Hasufel e os cavalos de minha guarda estão no pátio interno. Quando o dia chegar, ordenarei que os homens toquem a trombeta de Helm, e cavalgarei à frente. Você me acompanhará, filho de Arathorn? Talvez possamos abrir uma estrada, ou ter um fim que seja digno de uma canção — se sobrar alguém para cantar nossa história.
— Vou acompanhá-lo — disse Aragorn.
Saindo de lá, voltou às muralhas, fazendo todo o circuito em volta delas, encorajando os homens e ajudando em todos os pontos em que o ataque estava acirrado.
Legolas foi com ele. Rajadas de fogo saltavam lá de baixo, fazendo tremer as pedras.
Ganchos com garras foram lançados, e escadas levantadas.
Repetidas vezes os orcs atingiam o topo da muralha externa, e sempre os defensores os derrubavam.
Finalmente Aragorn parou sobre os grandes portões, sem dar atenção às flechas do inimigo. Quando olhou à frente, viu o céu ao leste clareando.
Então levantou a mão vazia, com a palma para fora, em sinal de que queria negociar.
Os orcs berraram zombando dele.
— Desça! Desça! — gritaram eles, Se quer falar conosco, desça! Traga seu rei! Somos os Uruk-hai guerreiros. Vamos tirá-lo de sua toca, se não vier. Traga seu rei covarde!
— O rei vai ou fica de acordo com seu próprio desejo — disse Aragorn.
— Então, o que está fazendo aqui? — responderam eles. — Por que está olhando para fora? Quer ver a grandeza de nosso exército? Somos os Uruk-hai guerreiros.
— Estou olhando para fora para ver a aurora — disse Aragorn.
— Que tem a aurora? — zombaram eles. — Somos os Uruk-hai: não interrompemos a batalha de dia ou de noite, no tempo bom ou na tempestade. Viemos para matar, sob o sol ou sob a lua. Que tem a aurora?
— Ninguém sabe o que o novo dia trará — disse Aragorn. — Sumam daqui, antes que seja pior para vocês.
— Desça, ou derrubaremos você da muralha — gritaram eles. — Isso não é uma negociação. Você não tem nada a dizer.
— Ainda tenho isto a dizer — respondeu Aragorn. — Nenhum inimigo jamais tomou o Forte da Trombeta. Partam, ou nenhum de vocês será poupado. Ninguém ficará vivo para voltar com notícias para o norte. Não sabem o perigo que estão correndo.
Um poder e uma realeza tão grandes revelaram-se em Aragorn, ali parado, sozinho sobre os portões em ruína, diante de uma tropa de inimigos, que muitos bárbaros pararam, e olharam por sobre os ombros para trás, na direção do vale; outros olharam para o céu cheios de dúvidas. Mas os orcs riram em altas vozes e uma saraivada de flechas e dardos zuniu sobre a muralha, no momento em que Aragorn descia num salto.
Houve um bramido e uma rajada de fogo. O arco do portão sobre o qual ele estava havia um momento ruiu e se desmanchou em poeira e fumaça. A barricada se espalhou como se pelo efeito de um trovão. Aragorn correu para a torre do rei.
Mas no momento em que o portão caiu, e os orcs que estavam ao redor gritaram prontos para atacar, um murmúrio se levantou atrás deles, como um vento na distância, crescendo num clamor de muitas vozes gritando notícias estranhas na aurora. Os orcs que estavam no Rochedo, ouvindo os rumores de desalento, vacilaram e olharam para trás.
Então, repentino e terrível, da torre acima deles ecoou o som da grande trombeta de Helm.
E todos os que escutaram aquele som tremeram. Muitos orcs se jogaram ao chão cobrindo os ouvidos com as garras. Os ecos retornavam do Abismo, clangor após clangor, como se em cada penhasco e colina estivesse um poderoso arauto. Mas das muralhas os homens olhavam para cima maravilhados; pois os ecos não diminuíam. Os clangores continuavam circulando entre as colinas; mais próximos agora e mais fortes respondiam uns aos outros, soando ferozes e livres.
— Helm! Helm! — os Cavaleiros gritavam. — Helm despertou e retorna à guerra. Helm pelo Rei Théoden!
E com esse grito surgiu o rei. Seu cavalo branco como a neve, dourado seu escudo, longa sua lança. À sua direita estava Aragorn, herdeiro de Elendil, atrás cavalgavam os senhores da Casa de Eorl, o Jovem. A luz irrompeu no céu. A noite partira.
— Avante Eorlingas! — Com um grito e muito barulho eles avançaram.
Desceram os portões num bramido, atravessaram o passadiço e passaram por entre as tropas de Isengard como o vento se infiltra na relva. Atrás deles, do Abismo, vieram os gritos firmes de homens saindo das cavernas, avançando na direção do inimigo.
Apareceram todos os homens que restavam sobre o Rochedo. E continuamente o som de trombetas ecoava nas colinas.
Continuaram cavalgando, o rei e seus companheiros. Capitães e campeões caíam ou corriam diante deles. Nem homens nem orcs puderam resistir. Deram as costas para as espadas e lanças dos Cavaleiros, e os rostos para o vale. Gritavam e gemiam, pois um medo e um grande assombro os tinham dominado com o nascer do dia.
Assim o Rei Théoden partiu do Portão de Helm e fez sua trilha na direção do grande Dique. Ali o grupo parou. A luz tornou-se intensa ao redor deles. Raios de sol flamejavam sobre as colinas do leste, e tremeluziam nas lanças. Mas eles estavam em silêncio sobre os cavalos, descendo os olhos na direção da Garganta do Abismo.
A terra mudara. Onde antes havia o vale verde, com suas encostas cobertas de grama envolvendo as colinas cada vez mais altas, agora assomava uma floresta. Grandes árvores, nuas e silenciosas, se erguiam, fileira após fileira, com galhos entrelaçados e cabeças brancas, as raízes retorcidas enterradas na alta relva verde. A escuridão estava debaixo delas. Entre o Dique e as bordas daquela floresta sem nome só havia uns quatrocentos metros de campo descoberto.
Ali agora se amontoavam as altivas tropas de Saruman, com medo do rei e com medo das árvores.
Foram descendo do Portão de Helm até que toda a região acima do Dique se esvaziasse deles, mas abaixo dele se apinhavam como um enxame de moscas. Em vão se arrastavam e subiam as paredes da Garganta, procurando escapar. A leste, o vale era muito íngreme e pedregoso; à esquerda, do oeste sua ruína final se aproximava.
Ali, de repente, sobre uma cordilheira apareceu um cavaleiro, vestido de branco, brilhando ao sol. Sobre as colinas baixas as trombetas soavam.
Atrás dele, descendo depressa as longas encostas, vinham mil homens a pé, brandindo suas espadas. Entre eles avançava um homem alto e forte. Seu escudo era vermelho. Quando chegou à borda do vale, colocou nos lábios uma grande trombeta negra e emitiu um clangor retumbante.
— Erkenbrand! — os Cavaleiros gritavam. — Erkenbrand!
— Vejam o Cavaleiro Branco — gritou Aragorn. — Gandalf está de volta!
— Mithrandir, Mithrandir! — gritou Legolas. — Isso é realmente coisa de mago! Venha! Eu queria contemplar essa floresta, antes de o feitiço mudar!
As tropas de Isengard rugiam, indo de um lado para o outro, desviando de um medo para enfrentar outro. Outra vez a trombeta soou da torre.
Descendo através da brecha no Dique avançou o grupo do rei. Das colinas saltou Erkenbrand, senhor do Folde Ocidental. Scadufax também descia, como um cervo que corre com pés firmes pelas montanhas.
O Cavaleiro Branco avançava contra eles, e o terror de sua chegada alucinava o inimigo. Os bárbaros se jogaram ao chão diante dele. Os orcs cambaleavam e gritavam, jogando fora espadas e lanças. Como uma nuvem preta acossada por um vento forte eles fugiram. Passaram gemendo sob a sombra das árvores que os esperava; e daquela sombra nenhum deles saiu de novo.
A ESTRADA PARA ISENGARD
Foi assim que, na luz de uma bela manhã , o Rei Théoden e Gandalf, o Cavaleiro Branco, encontraram-se outra vez sobre a verde relva ao lado do Riacho do Abismo. Lá também estava Aragorn, filho de Arathorn, Legolas, o elfo, e Erkenbrand do Folde Ocidental, assim como os senhores do Palácio Dourado. Ao redor dos cinco estavam reunidos os rohirrim, os Cavaleiros de Rohan: a surpresa superou a alegria que sentiram com a vitória, e seus olhos voltaram-se em direção à floresta.
De repente ouviu-se um grito estrondoso, e do Dique saíram aquele s que tinham recuado para dentro do Abismo. Dali vieram Gamling, o Velho, Éomer, filho de Éomund, e ao lado deles caminhava Gimli, o anão. Estava sem elmo, e tinha a cabeça envolta em uma bandagem branca manchada de sangue; mas sua voz era alta e forte.
— Quarenta e dois, Mestre Legolas! — gritou ele. — Que pena, meu machado está chanfrado: o quadragésimo segundo tinha uma argola de ferro em volta do pescoço, Como vão as coisas com você?
— Você ultrapassou minha marca por um — respondeu Legolas. — Mas não lamento a derrota, pois me sinto tão feliz por vê-lo vivo!
— Bem-vindo, Éomer, filho de minha irmã! — disse Théoden. — Agora que o vejo a salvo, estou realmente feliz.
— Salve, Senhor da Terra dos Cavaleiros! — disse Éomer. — A noite escura passou, e o dia chegou novamente. Mas o dia trouxe estranhas notícias. — Voltou-se e olhou à volta surpreso, primeiro para a floresta e depois para Gandalf. — Mais uma vez você chega na hora da necessidade, visitante inesperado.
— Inesperado? — disse Gandalf — Eu disse que retornaria para encontrá-los aqui.
— Mas não disse a hora, nem nos adiantou a maneira de sua chegada. Traz-nos uma estranha ajuda. Você é poderoso em magia, Gandalf, o Branco!
— É possível. Mas, se isso for verdade, ainda não tive ocasião de demonstrar minha magia. Tudo o que fiz foi dar bons conselhos numa hora de perigo, e utilizar a velocidade de Scadufax. O próprio valor de vocês fez muito mais, assim como as fortes pernas dos homens do Folde Ocidental, marchando ao longo da noite.
Então todos olharam para Gandalf com surpresa ainda maior. Alguns voltaram olhares duvidosos para a floresta, passando a mão sobre os olhos, como se pensassem que o que viam era diferente do que ele via.
Gandalf riu bastante e com alegria. — As árvores? — disse ele. — Não, estou vendo a floresta tanto quanto vocês. Mas isso não é um feito meu. É algo além do conselho dos sábios. Melhor que meu desígnio, e melhor até do que minha esperança o acontecimento acabou se mostrando.
— Então, se não é sua, de quem é a magia? — disse Théoden. — Não de Saruman, isto está claro. Existe algum outro sábio que ainda não conhecemos?
— Isso não é magia, mas um poder muito mais antigo — disse Gandalf, um poder que caminhava sobre a terra, antes que elfo cantasse ou martelos ressoassem.
Antes do malho no ferro ou entalhe na madeira,
Quando lua e montanha eram novas e faceiras;
Antes que anel ou mal fosse feito,
Caminhou na floresta em passo perfeito.
— E qual seria a resposta para seu enigma? — disse Théoden.
— Se quisesse descobrir, iria comigo a Isengard — respondeu Gandalf.
— Para Isengard? — exclamaram eles.
— Sim — disse Gandalf. — Retornarei a Isengard, e aqueles que quiserem poderão vir comigo. Ali poderemos ver coisas estranhas.
— Mas não há homens suficientes na Terra dos Cavaleiros, nem que fossem todos reunidos e curados de todos os ferimentos, para atacar a fortaleza de Saruman — disse Théoden.
— Mesmo assim, irei para Isengard — disse Gandalf — Não permanecerei muito aqui. Meu caminho agora ruma para o leste. Esperem-me em Edoras, antes da lua minguante!
— Não — disse Théoden. — Na hora escura antes do amanhecer eu duvidei, mas não nos separaremos agora. Irei com você, se este for seu conselho.
— Desejo falar com Saruman o mais breve possível — disse Gandalf —, e já que ele lhes causou grandes prejuízos seria adequado que vocês estivessem lá. Mas em quanto tempo poderiam partir, e com que velocidade cavalgariam?
— Meus homens estão cansados da batalha — disse o Rei —, e eu também estou cansado! Pois cavalguei muito e dormi pouco. É uma pena! Minha idade avançada não foi forjada por Língua de Cobra e nem se deve apenas aos sussurros dele. É um mal que nenhuma sangria pode curar inteiramente, nem mesmo de Gandalf.
— Então deixe que todos os que vão cavalgar comigo descansem agora disse Gandalf. — Viajaremos sob a sombra da noite. Assim está bem; pois é meu conselho que todas as nossas idas e vindas sejam feitas no maior segredo possível daqui para frente. Mas não ordene que muitos homens o acompanhem, Théoden. Vamos negociar, e não guerrear.
O Rei então escolheu homens que não estavam feridos e tinham cavalos velozes, e os enviou na frente com notícias da vitória para todos os vales da Terra dos Cavaleiros; levaram também uma convocação sua, ordenando que todos os homens, jovens e velhos, fossem depressa a Edoras. Ali o Senhor dos Cavaleiros reuniria uma assembléia de todos os que pudessem portar armas, no segundo dia depois da lua cheia. Para acompanhá-lo a Isengard o Rei escolheu Éomer e vinte homens de sua casa. Com Gandalf iriam Aragorn, Legolas e Gimli. Apesar de seu ferimento, o anão se recusava a ficar para trás.
— Foi só um golpe fraco, e a touca o repeliu — disse ele. — Seria necessário mais do que um arranhão de orc para impedir que eu partisse.
— Vou cuidar de seu ferimento enquanto você descansa — disse Aragorn.
Depois disso o rei voltou para o Forte da Trombeta e dormiu um sono tranqüilo que não conhecera por muitos anos; o restante de sua comitiva escolhida também descansou, mas os outros, todos os que não estavam machucados ou feridos, começaram um árduo trabalho; pois muitos tinham caído na batalha e estavam mortos sobre o campo ou no Abismo.
Não sobrara nenhum orc vivo; seus corpos não foram contados. Mas muitos homens das montanhas tinham se rendido; estavam com medo e imploravam clemência.
Os homens da Terra dos Cavaleiros tomaram-lhes as armas e puseram-nos para trabalhar.
— Ajudem agora a reparar o mal no qual vocês tomaram parte — disse Erkenbrand —, e depois deverão fazer um juramento de nunca mais atravessar os Vaus do Isen armados, nem marchar com os inimigos dos homens; e então poderão retornar livres para sua terra. Pois vocês foram iludidos por Saruman. Muitos de vocês obtiveram a morte como recompensa por sua confiança nele; mas se tivessem vencido seus lucros seriam pouco melhores.
Os homens da Terra Parda ficaram surpresos, pois Saruman lhes dissera que os homens de Rohan eram cruéis e queimavam vivos seus prisioneiros. No meio do campo, diante do Forte da Trombeta, dois túmulos foram levantados, e neles colocaram os Cavaleiros de Rohan que caíram na defesa, os dos Vales Orientais de um lado, e os do Folde Ocidental do outro. Num túmulo isolado sob a sombra do Forte da Trombeta colocaram Háma, capitão da guarda real.
Ele havia caído diante do Portão.
Os orcs foram empilhados em grandes montes, longe dos túmulos dos homens, não muito distante das bordas da floresta. E as pessoas estavam preocupadas, pois os montes de cadáveres eram muito grandes para serem enterrados ou queimados. Eles tinham pouca lenha para queimar, e ninguém ousaria usar um machado contra as estranhas árvores, mesmo que Gandalf não os tivesse aconselhado a não ferirem nem tronco nem ramo, pois caso contrário estariam correndo grande perigo.
— Deixe os orcs onde estão — disse Gandalf — O dia poderá trazer novos conselhos.
Durante a tarde, a comitiva do Rei se preparou para partir. O trabalho de enterrar os corpos estava apenas começando; Théoden chorou pela perda de Háma, seu capitão, e jogou a primeira pá de terra sobre seu túmulo.
— Realmente Saruman causou um grande mal a mim e a toda esta terra — disse ele —, e vou me lembrar disso, quando nos encontrarmos.
O sol já estava se aproximando das colina s a oeste da Garganta, quando finalmente Théoden , Gandalf e seus companheiros desceram do Dique a cavalo. Atrás deles vinha uma grande tropa, tanto de Cavaleiros quanto de pessoas do Folde Ocidental, velhos e jovens, mulheres e crianças, que tinham saído das cavernas. Cantaram com vozes cristalinas uma canção de vitória; depois ficaram em silêncio, imaginando o que iria acontecer, pois mantinham os olhos nas árvores e tinham medo delas.
Os Cavaleiros foram até a floresta, e pararam; homens e cavalos, todos estavam relutantes em entrar. As árvores eram cinzentas e ameaçadoras, e uma sombra ou névoa as envolvia. As extremidades de seus longos ramos pendiam como dedos que procuram algo, as raízes se levantavam da terra como as pernas de monstros estranhos, e cavernas escuras se abriam entre elas. Mas Gandalf foi na frente, liderando o grupo, e no ponto onde a estrada que vinha do Forte da Trombeta encontrava as árvores eles viram uma abertura como um portão arqueado sob galhos poderosos; por ele passou Gandalf, e eles o seguiram. Então, para sua surpresa, descobriram que a estrada continuava, com o Rio do Abismo ao lado; o céu estava descoberto acima de suas cabeças, e cheio de uma luz dourada. Mas dos dois lados os grandes corredores da floresta já estavam envoltos pelo crepúsculo, avançando para dentro de sombras impenetráveis; ali eles escutaram os estalidos e gemidos dos galhos, gritos distantes, e um rumor de vozes sem palavras, murmurando com ódio. Não se via qualquer orc ou ser vivo.
Legolas e Gimli cavalgavam agora juntos no mesmo animal, mantendo-se logo atrás de Gandalf, pois Gimli tinha medo da floresta.
— Faz calor aqui — disse Legolas a Gandalf — Mas sinto uma grande ira ao meu redor. Você não sente o ar pulsando em seus ouvidos?
— Sim — disse Gandalf
— Que foi feito dos miseráveis orcs? — disse Legolas.
— Isso, eu acho, ninguém jamais saberá — disse Gandalf
Cavalgaram em silêncio por um tempo, mas Legolas freqüentemente olhava de um lado para o outro, e teria parado muitas vezes para escutar os sons da floresta, se Gimli tivesse permitido.
— Estas são as árvores mais estranhas que já vi — disse ele —, e eu já vi inúmeros carvalhos crescerem desde plantinhas até a idade em que apodrecem. Gostaria que houvesse tempo agora para caminharmos no meio delas: ouço suas vozes, e com o tempo poderia entender seus pensamentos.
— Não, não! — disse Gimli. — Vamos deixá-las! Já adivinho o que pensam: odeiam todos os que andam sobre duas pernas, e falam em sufocar e esmagar.
— Não todos os que andam sobre duas pernas — disse Legolas. — Nesse ponto, acho que está errado. São os orcs que elas odeiam. Pois elas não pertencem a este lugar e sabem pouco sobre homens e elfos. Distantes ficam os vales onde brotaram. Os vales profundos de Fangorn, Gimli; é de lá que elas vêm, julgo eu.
— Então é a floresta mais perigosa da Terra-média — disse Gimli. Devo ficar agradecido pela parte que desempenharam, mas não as amo. Você pode considerá-las maravilhosas, mas já vi maravilha maior nesta terra, mais bela que qualquer bosque ou clareira que já surgiu: meu coração ainda está repleto dela.
— Estranhas são as maneiras dos homens, Legolas! Aqui eles têm umas das maravilhas do Mundo do Norte, e o que falam dela? Cavernas, dize m eles! Cavernas para se refugiarem em tempo de guerra, para armazenar forragem. Meu bom Legolas, você sabia que as cavernas do Abismo de Helm são vastas e belas? Haveria uma interminável peregrinação de anões, apenas para apreciá-las, se fossem conhecidas. Na verdade, pagariam com ouro puro por uma olhadela!
— E eu daria ouro para não ter de visitá-las! — disse Legolas -, e pagaria o dobro para sair, se me perdesse lá dentro!
— Você não viu, por isso perdôo sua caçoada — disse Gimli. — Mas você fala como um tolo. Acha que aqueles salões são belos, aqueles em que seu Rei mora sob a colina na Floresta das Trevas, e que os anões ajudaram a construir muito tempo atrás? Pois são apenas cabanas comparados às cavernas que vi aqui: salões imensos, cheios de uma música eterna de água que goteja em lagos, tão belos quanto Kheled-zâram à luz das estrelas.
— E, Legolas, quando as tochas são acesas e os homens andam pelo chão arenoso sob as cúpulas reverberantes, ah!, então, Legolas, pedras e cristais e veios de minérios preciosos faíscam nas paredes polidas; e a luz brilha através de dobras de mármores, em forma de conchas, translúcidas como as próprias mãos da Rainha Galadriel. Há colunas brancas e de um amarelo-alaranjado, e também de um rosa matinal, Legolas, estriadas e retorcidas em formas de sonho; surgem de assoalhos multicoloridos para encontrar os ornatos reluzentes que caem do teto: asas, cordas, cortinas finas como nuvens congeladas; lanças, flâmulas, pináculos de palácios suspensos! Lagos tranqüilos os espelham: um mundo tremeluzente espreita lá do fundo de lagos escuros cobertos por cristal translúcido; cidades, que a mente de Durin mal poderia ter imaginado em sonhos, estendem-se através de avenidas e pátios com pilares, para dentro de recônditos escuros onde a luz não alcança. E plinque! Uma gota de prata cai, e as ondas circulares no espelho fazem com que todas as torres se inclinem e tremam, como plantas e corais numa gruta do mar. Então chega a noite: elas vão desaparecendo, faiscando cada vez menos; as tochas passam para um outro cômodo, para um outro sonho. Há cômodos e mais cômodos, Legolas; salões abrindo-se de outros salões, abóbada após abóbada, escada após escada, e os caminhos sinuosos continuam conduzindo para dentro do coração das montanhas. Cavernas! As Cavernas do Abismo de Helm! Feliz foi o acaso que me guiou até lá! Deixar aquele lugar me faz chorar.
— Então desejo a você, como consolo, esta sorte, Gimli — disse o elfo que você possa se salvar da guerra e retornar para vê-lo de novo. Mas não conte para todo o seu povo! Parece que resta pouco para eles fazerem, pelo que você me contou. Talvez os homens desta terra falem pouco por sabedoria: uma família de anões trabalhadores com martelo e cinzel pode destruir mais do que eles construíram.
— Não, você não entende — disse Gimli. — Nenhum anão ficaria insensível diante de tanta beleza. Ninguém do povo de Durin escavaria aquelas cavernas à procura de pedras ou minérios, nem mesmo se diamantes e ouro pudessem ser encontrados ali. Você derruba bosques de árvores em flor durante a primavera para obter lenha? Nós cuidaríamos dessas florestas de pedras em flor, em vez de lavrá-las. Com talento cuidadoso, batida por batida — talvez uma pequena lasca de pedra e não mais, durante todo um dia ansioso —, assim poderíamos trabalhar, e com o passar dos anos abrir novos caminhos, e pôr à mostra câmaras distantes que ainda estão escuras, vislumbradas apenas como uma lacuna além das fissuras na rocha. E luzes, Legolas! Faríamos luzes, lamparinas parecidas com aquelas que brilharam certa vez em Khazad-dûm, e quando desejássemos expulsaríamos a noite que se deita ali desde que as colinas foram feitas; e quando quiséssemos descansar deixaríamos que a noite retornasse.
— Você me comove, Gimli — disse Legolas. — Nunca o vi falando dessa maneira antes. Quase faz com que eu sinta pesar por não ter visto aquelas cavernas. Vamos! Vamos combinar o seguinte — se nós dois retornarmos a salvo dos perigos que nos aguardam, vamos viajar juntos por um tempo. Você vai visitar Fangorn comigo, e então eu vou com você ver o Abismo de Helm.
— Esse não é o caminho de volta que eu escolheria — disse Gimli. Mas suportarei Fangorn, se você prometer que virá às cavernas e partilhará de suas maravilhas comigo.
— Está prometido — disse Legolas. — Mas infelizmente deveremos deixar para trás a caverna e a floresta por um tempo. Veja! Estamos chegando ao fim das árvores. A que distância fica Isengard, Gandalf.
— Cerca de quinze léguas, no percurso feito pelos corvos de Saruman — disse Gandalf —, cinco da abertura da Garganta até os Vaus, e mais dez de lá até os portões de Isengard. Mas não faremos todo o caminho esta noite.
— E quando chegarmos lá, o que veremos? — perguntou Gimli. — Você pode saber, mas eu nem imagino.
— Eu mesmo não sei com certeza — respondeu o mago. — Estive lá ao cair da noite ontem, mas muita coisa pode ter acontecido desde então. Apesar disso, acho que vocês não vão dizer que a viagem foi em vão — mesmo que as Cavernas Cintilantes de Aglarond tenham ficado para trás.
Finalmente o grupo passou pelas árvores, e percebeu que tinha atingido o fundo da Garganta, onde a estrada que vinha do Abismo de Helm se bifurcava, indo ao leste para Edoras, e ao norte para os Vaus do Isen. Conforme deixaram as bordas da floresta, Legolas parou e olhou para trás com pesar. Então deu um grito repentino.
— Há olhos! — disse ele. — Olhos espreitando-nos das sombras dos ramos! Nunca vi olhos assim antes!
Os outros, surpresos com seu grito, pararam e se viraram; mas Legolas começou a cavalgar de volta.
— Não, não! — gritou Gimli. — Faça o que quiser em sua loucura, mas primeiro deixe-me descer deste cavalo. Não quero ver olho nenhum!
— Pare, Legolas Verdefôlha! — disse Gandalf. — Não retorne para dentro da floresta, não ainda! Ainda não é a sua hora.
No momento em que ele falava, avançaram das árvores três formas estranhas.
Eram altas como trolls, com três metros e meio ou mais de altura; os corpos fortes, robustos como os de árvores jovens, pareciam estar cobertos por um traje ou por um couro justo, cinzento e marrom. As pernas eram longas e as mãos tinham muitos dedos; os cabelos eram duros e as barbas de um verde-acinzentado como musgo.
Olhavam com olhos solenes, mas não dirigiam seu olhar para os cavaleiros: voltavam-se para o norte.
De repente, ergueram as longas mãos até as bocas, e emitiram chamados retumbantes, límpidos como as notas de uma trombeta, mas mais musicais e variados. Os chamados foram respondidos; voltando-se outra vez, os cavaleiros viram outras criaturas da mesma espécie aproximando-se com largas passadas através da relva. Vinham rapidamente do norte, lembrando garças cruzando sobre as águas no jeito de andar, mas não na mesma velocidade, pois suas pernas, em suas longas passadas, batiam mais rápido que as asas das garças. Os cavaleiros gritaram pasmos, e alguns levaram as mãos aos punhos das espadas.
— Vocês não precisam de armas — disse Gandalf — Estes são apenas pastores. Não são nossos inimigos; na verdade, não estão nem um pouco preocupados conosco.
Assim parecia ser, pois enquanto ele falava as altas criaturas, sem nem lançar um único olhar para os cavaleiros, caminharam para dentro da floresta e desapareceram.
— Pastores? — disse Théoden. — Onde estão seus rebanhos? Que são eles, Gandalf Pois está claro que, pelo menos para você, essas criaturas não são estranhas.
— São os pastores das árvores — respondeu Gandalf — Faz tanto tempo assim que você ouviu histórias ao pé do fogo? Há crianças em sua terra que, dos fios emaranhados das histórias, poderiam retirar a resposta para sua pergunta. Você viu ents, ó Rei, ents da Floresta de Fangorn, à qual em sua língua você chama de Floresta Ent. Pensou que o nome tinha sido dado apenas por uma fantasia inconseqüente? Não, Théoden, é o contrário: para eles você é apenas uma história efêmera; todos os anos desde Eorl, o Jovem, até Théoden são de pouca monta para eles; e todos os feitos de sua casa um assunto de pouca importância.
O rei ficou em silêncio.
— Ents! — disse ele finalmente. — Por causa das sombras das lendas começo a entender um pouco da maravilha das árvores, suponho. Vivi o suficiente para ver dias estranhos. Por muito tempo cuidamos de nossos animais e nossos campos, construímos nossas casas, fabricamos nossas ferramentas, ou cavalgamos para longe, para ajudar nas guerras de Minas Tirith. E a isso chamamos a vida dos homens, o jeito do mundo. Nós nos preocupávamos pouco com o que ficava além das fronteiras de nossa terra. Temos canções que contam sobre essas coisas, mas estamos nos esquecendo delas, ensinando-as apenas a nossas crianças, como um hábito indiferente. E agora as canções chegaram até nós vindas de lugares estranhos, e caminham visíveis sob o sol.
— Você deve se alegrar, Rei Théoden — disse Gandalf. — Pois agora não é só a pequena vida dos homens que corre perigo, mas também a vida dessas criaturas que você considerava assunto de lendas. Você não está sem aliados, mesmo que não os conheça.
— Apesar disso, devo também me sentir triste — disse Théoden. — Pois, qualquer que seja o resultado da guerra, não pode acontecer que no fim muito do que era bonito e maravilhoso desapareça para sempre da Terra-média?
— É possível — disse Gandalf. — O mal de Sauron não pode ser inteiramente curado, nem tornado como se nunca tivesse existido . Mas estamos destinados a dias como este.
Prossigamos agora com a jornada que começamos.
O grupo então afastou-se da Garganta e da floresta e tomou a estrada em direção aos Vaus. Legolas seguia relutante. O sol tinha-se posto, afundando atrás da borda do mundo; mas, conforme cavalgavam saindo da sombra das colinas e olhavam para o oeste na direção do Desfiladeiro de Rohan, viam o céu ainda vermelho, e uma luz ardente aparecia sob as nuvens flutuantes. Escuros, voavam e desenhavam círculos contra ele muitos pássaros de asas negras. Alguns passavam sobre as cabeças dos cavaleiros com gritos de lamento, voltando às suas casas entre as rochas.
— As aves carniceiras estiveram ocupadas no campo de batalha — disse Éomer.
Avançavam agora num passo tranqüilo, e a escuridão descia sobre a planície ao redor deles. A lenta lua subia, ficando agora quase cheia, e em sua fria luz prateada os campos de relva ondulante subiam e desciam como um amplo mar cinzento.
O grupo tinha cavalgado por cerca de quatro horas desde a bifurcação da estrada, quando chegou perto dos Vaus. Ladeiras compridas desciam rapidamente até o ponto onde o rio se espalhava em baixios pedregosos em meio a altas plataformas cobertas de grama.
Trazidos pelo vento, eles ouviram o uivo de lobos. Tinham os corações pesados, lembrando os muitos homens caídos em batalha naquele lugar.
A estrada afundava entre altos barrancos de turfa, talhando seu caminho através das plataformas até a beira do rio, e subindo outra vez na direção oposta. Havia três caminhos de pedra cruzando o rio, e entre eles vaus para os cavalos, que iam de cada borda até uma ilhota no meio. Os cavaleiros observaram os caminhos lá embaixo e os acharam estranhos; pois os Vaus sempre tinham sido um lugar cheio da agitação e do rumor das águas sobre as pedras, mas agora estavam silenciosos. O leito do rio estava quase seco, um amontoado de cascalho e areia cinza.
— Este lugar se tornou lúgubre — disse Éomer. — Que doença acometeu o rio?
Saruman destruiu muitas coisas belas: será que também devorou as nascentes do Isen?
— É o que parece — disse Gandalf.
— É triste! — disse Théoden. — Temos de passar por este caminho, onde os animais carniceiros devoram tantos bons Cavaleiros de Rohan?
— Este é nosso caminho — disse Gandalf — Lamentável é a queda de seus homens; mas você verá que pelo menos os lobos das montanhas não os devoram. É com os amigos deles, os orcs, que eles fazem seu banquete: realmente é essa a amizade dessa espécie. Venham!
Foram descendo em direção ao rio, e a medida que avançavam os lobos paravam de uivar e retiravam-se furtivamente. O medo os dominava quando viam Gandalf à luz da lua, e Scadufax, seu cavalo, reluzindo como prata. Os cavaleiros passaram em direção à ilhota, e os olhos brilhantes os observaram languidamente das sombras das margens.
— Olhem! — disse Gandalf — Amigos trabalharam aqui.
E eles viram que, no meio da ilhota, um túmulo fora erguido e contornado por pedras, e várias lanças foram fincadas à sua volta.
— Aqui estão todos os homens de Rohan que caíram perto deste lugar — disse Gandalf.
— Que aqui descansem! — disse Éomer. — E quando suas lanças estiverem podres e enferrujadas, por muito tempo o túmulo permanecerá e guardará os Vaus do Isen!
— Esse também é um trabalho seu, Gandalf, meu amigo? — perguntou Théoden.
— Você realizou muita coisa numa tarde e numa noite!
— Com a ajuda de Scadufax — e outros — disse Gandalf. — Cavalguei rápido e muito. Mas aqui, ao lado do túmulo, direi isto para seu consolo: muitos caíram nas batalhas dos Vaus, mas menos do que dizem os rumores. O número dos homens que se dispersaram supera o daqueles que foram mortos: reuni todos os que pude encontrar. Alguns mandei com Grimbold de Folde Ocidental para que se juntassem a Erkenbrand. Outros designei para a construção deste monumento. Agora seguiram seu marechal, Elfhelm. Enviei-o com muitos Cavaleiros para Edoras. Eu sabia que Saruman tinha enviado todas as suas forças contra você, e que os seus servidores tinham abandonado todas as outras missões, indo para o Abismo de Helm: as terras pareciam vazias de inimigos; mesmo assim, eu receava que os monta-lobos e os saqueadores pudessem ir para Meduseld, enquanto estivesse indefeso. Mas agora acho que não precisam mais temer: Vão encontrar sua casa dando-lhes boas-vindas quando retornarem.
— E feliz ficarei em revê-la — disse Théoden —, embora seja breve, não duvido, minha permanência lá.
Com isso o grupo disse adeus à ilha e ao túmulo, e atravessou o rio, subindo a margem oposta. Então continuaram cavalgando, felizes por terem deixado os tristes Vaus.
Conforme se afastavam, o uivo dos lobos começou outra vez.
Havia uma estrada antiga que descia de Isengard até o local da travessia.
Por certo trecho ela fazia seu curso ao lado do rio, acompanhando-o em uma curva para o leste e depois para o norte; mas no fim desviava e ia direto para os portões de Isengard; estes ficavam sob a encosta da montanha no lado oeste do vale, dezesseis milhas ou mais de sua entrada. O grupo seguiu essa estrada, mas não cavalgaram por ela, pois o solo que a margeava era firme e plano, coberto ao longo de muitas milhas por uma turfa curta e macia. Avançavam agora com mais rapidez, e por volta da meia-noite os Vaus já estavam quase cinco léguas atrás. Então pararam, terminando a jornada daquela noite, pois o Rei estava exausto. Tinham chegado aos pés das Montanhas Sombrias, e os longos braços de Nan Curunír se estendiam para recebê-los. O vale se espalhava escuro diante deles, pois a lua tinha passado para o oeste, e sua luz estava escondida pelas colinas. Mas da sombra profunda do vale subia uma ampla espiral de fumaça e vapor; conforme subia, ela captava os raios da lua que ia descendo, e se espalhava em ondas tremeluzentes, negras e prateadas, pelo céu estrelado.
— O que acha disso, Gandalf? — perguntou Aragorn. — Alguém poderia achar que o Vale do Mago está em chamas.
— Há sempre uma fumaça sobre aquele vale nos últimos tempos disse Éomer —, mas nunca vi nada assim antes. Esses são vapores e não fumaça. Saruman está preparando algum feitiço para nos receber.
— Talvez esteja fervendo toda a água do Isen, e por isso o rio está secando.
— Talvez — disse Gandalf — Amanhã saberemos o que ele está fazendo. Agora vamos descansar um pouco, se conseguirmos.
Acamparam ao lado do leito do rio Isen, que ainda estava silencioso e vazio.
Alguns deles dormiram um pouco. Mas tarde da noite os vigias gritaram, e todos acordaram.
A lua tinha-se ido. As estrelas brilhavam; mas sobre o solo se arrastava uma escuridão mais negra que a noite. Dos dois lados do rio ela se aproximava deles, indo em direção ao norte.
— Fiquem onde estão! — disse Gandalf. — Não saquem as armas! Esperem e ela passará por vocês!
Uma névoa se formou ao redor deles. Acima algumas estrelas ainda brilhavam fracas, mas dos dois lados subiam paredes de uma escuridão impenetrável; estavam numa alameda estreita entre duas torres móveis de sombra. Ouviram vozes, sussurros e lamentos e um interminável suspiro farfalhante; a terra tremia sob seus pés. Pareceu-lhes longo o tempo em que ficaram sentados e com medo, mas finalmente a escuridão e o rumor passaram, desaparecendo entre os braços das montanhas.
Lá no sul, sobre o Forte da Trombeta, no meio da noite, os homens ouviram um grande ruído, como o do vento no vale, e a terra tremeu; todos sentiram medo e ninguém se aventurou a sair. Mas na manhã seguinte saíram e ficaram surpresos; pois os orcs mortos tinham-se ido, e também as árvores. Bem abaixo, no vale do Abismo, a grama estava amassada e pisada, como se pastores gigantes tivessem conduzido grandes rebanhos de gado por ali; mas uma milha abaixo do Fosso uma grande vala tinha sido cavada na terra, e sobre ela pedras tinham sido empilhadas, formando uma colina. Os homens acreditaram que os orcs mortos foram enterrados ali; mas se aqueles que tinham fugido para a floresta estavam entre eles ninguém pôde dizer, pois ninguém jamais pisou naquela colina. Desse dia em diante foi chamada de Colina da Morte, e nenhuma relva cresceu ali. Mas as árvores estranhas nunca mais foram vistas na Garganta do Abismo; tinham retornado de noite, dirigindo-se para longe, para os vales escuros de Fangorn.
Assim vingaram-se dos orcs.
O rei e sua comitiva não dormiram mais naquela noite; porém não ouviram nem viram qualquer coisa estranha, a não ser uma: a voz do rio ao lado deles de repente despertou.
A água jorrou, correndo por entre as pedras; e depois disso o Isen fluía e borbulhava em seu leito de novo, como sempre fizera.
Com a aurora se prepararam para continuar. A luz chegou pálida e cinzenta e eles não viram o nascer do sol. O ar acima estava impregnado de cerração e um fétido vapor os envolvia. Foram devagar, cavalgando agora pela estrada. Era ampla, firme e bem cuidada. Vagamente, através da névoa, podiam vislumbrar o longo braço das montanhas subindo à esquerda. Tinham passado pelo Nan Curunír, o Vale do Mago. Era um vale coberto, apenas com uma abertura ao sul. Outrora fora belo e verde, e através dele o Isen corria, já forte e profundo antes de encontrar as planícies; pois era alimentado por muitos riachos e rios menores ao passar pelas colinas banhadas pela chuva, e por toda a sua volta se estendera uma terra agradável e fértil.
Não era assim agora. Abaixo das muralhas de Isengard ainda havia acres cultivados pelos escravos de Saruman, mas a maior parte do vale tinha-se tornado um deserto cheio de mato e de espinheiros. Sarças se arrastavam no solo ou, trepando sobre arbustos ou barrancos, formavam cavernas emaranhadas onde se abrigavam pequenos animais.
Nenhuma árvore crescia ali, mas em meio ao mato alto ainda se podiam ver os troncos de antigos bosques, derrubados por machados e queimados. Era uma terra triste, silenciosa a não ser pelo ruído pedregoso de águas rápidas. Fumaça e vapores flutuavam em nuvens escuras e espreitavam nas concavidades. Os cavaleiros não falavam.
Muitos tinham os corações cheios de dúvidas, imaginando a que destino sombrio sua jornada conduziria.
Depois de cavalgarem algumas milhas, a estrada se transformou numa rua larga, pavimentada com grandes pedras planas, quadriculadas e assentadas com habilidade; não se via uma folha de grama nas junções. Canaletas fundas, cheias de água corrente, acompanhavam os dois lados. De repente um pilar alto assomou diante deles. Era negro, e colocada sobre ele via-se uma grande pedra, esculpida e pintada à semelhança de uma grande Mão Branca. Seu dedo apontava para o norte.
Agora eles sabiam que os portões de Isengard não deveriam estar distantes, e seus corações estavam pesados; mas seus olhos não podiam atravessar a névoa à frente.
Abaixo do braço da montanha, dentro do Vale do Mago, ao longo de anos incontáveis, houvera um lugar antigo que os homens chamavam de Isengard.
Fora parcialmente formado com o surgimento das montanhas, mas outrora os Homens de Ponente tinham feito ali obras grandiosas; Saruman morava nesse lugar havia muito tempo, e não tinha ficado ocioso.
Esta era sua aparência, enquanto Saruman estava em seu auge, tido por muitos como o chefe dos Magos. Uma grande muralha circular de pedra, semelhante a altos penhascos, projetava-se do patamar da encosta da montanha, avançando para depois voltar. Só fora feita uma única entrada, um grande arco escavado no lado sul da muralha.
Ali, através da rocha negra, um longo túnel fora cortado, fechado nas duas extremidades por fortes portas de ferro. Foram de tal modo construídas e equilibradas sobre suas enormes dobradiças, barras de aço fincadas na rocha bruta, que quando não estavam trancadas podiam ser movidas com um leve toque de mão, sem qualquer ruído.
Alguém que entrasse e saísse no outro lado desse túnel ecoante veria um grande círculo, plano, meio escavado como uma enorme vasilha rasa: media uma milha de borda a borda. Já fora verde e cheio de avenidas e bosques de árvores frutíferas, aguadas por riachos que corriam das montanhas e desembocavam num lago. Mas nada verde crescera ali nos últimos tempos de Saruman. As estradas foram pavimentadas com lajes de pedra, escuras e duras; e margeando-as, em vez de árvores, marchavam longas fileiras de pilares, alguns de mármore, outros de cobre e de ferro, ligados por pesadas correntes.
Havia ali muitas casas, cômodos, salões e corredores, que cortavam e perfuravam as muralhas do lado interno, de modo que todo o círculo aberto era vigiado por inúmeras janelas e portas escuras. Milhares podiam morar lá, trabalhadores, servidores, escravos e guerreiros com grandes estoques de armas; lobos recebiam alimento e abrigo em profundas tocas mais abaixo. A planície também era escavada e perfurada. Poços fundos tinham sido cavados no chão; suas extremidades superiores eram cobertas por montículos baixos e abóbadas de pedra, de modo que ao luar o Círculo de Isengard parecia um cemitério de mortos inquietos. Pois a terra tremia. Os poços desciam por muitas rampas e escadas espirais até cavernas muito abaixo; ali Saruman tinha tesouros, depósitos de provisões, arsenais, ferrarias e grandes fornos. Rodas de ferro giravam sem parar, e martelos batiam. Durante a noite, nuvens de vapor subiam das aberturas, iluminadas de baixo por uma luz vermelha, azul ou de um verde venenoso.
Para o centro conduziam todas as estradas, ladeadas por suas correntes.
Ali ficava uma torre de formato maravilhoso. Fora feita pelos construtores de antigamente, que aplainaram o Círculo de Isengard e mesmo assim não parecia algo feito pela arte dos homens, mas arrancada dos ossos da terra durante uma aflição antiga das colinas.
Era um pico e uma ilha de pedra, negros e de um brilho estonteante: quatro pilares multifacetados foram unidos num só, mas perto do topo eles se abriam em chifres escancarados, seus pináculos agudos como as pontas de lanças, as bordas cortantes como facas. Entre eles havia um espaço estreito, e ali, sobre um chão de pedra polida e com inscrições estranhas, um homem poderia ficar de pé cento e cinqüenta metros acima da planície. Esta era Orthanc, a cidadela de Saruman, cujo nome tinha (por desígnio ou por acaso) um duplo significado: pois na língua dos elfos orthanc significa Monte Presa, mas na língua antiga de Rohan quer dizer Mente Esperta.
Isengard era um lugar forte e maravilhoso, e fora belo por muito tempo; ali moraram grandes senhores, os guardiões de Gondor no oeste, e homens sábios que observavam as estrelas. Mas Saruman lentamente transformou o lugar para seus propósitos mutantes, e o melhorou, na sua opinião; mas se enganava — pois todas as artes e sutis artifícios, pelos quais abandonou sua sabedoria antiga, e que ingenuamente imaginou serem seus, vinham de Mordor; assim tudo o que fez não passou de uma pequena cópia, um modelo infantil ou uma adulação de escravo, daquela vasta fortaleza, do arsenal, da prisão, da fornalha de grande poder, Barad-dôr, a Torre Escura, que não tinha rival, e ria da adulação, ganhando tempo, segura de seu orgulho e de sua força incomensurável.
Essa era a fortaleza de Saruman, como a fama a relatava; pois dentro da memória viva nenhum homem de Rohan ultrapassara seus portões, exceto talvez uns poucos, como Língua de Cobra, que vieram em segredo e não contaram a ninguém o que viram.
Gandalf cavalgou em direção ao pilar da Mão, e passou por ele; no momento em que fez isso, os Cavaleiros viram, para sua surpresa, que a Mão não parecia mais ser branca. Estava manchada de sangue seco; olhando mais de perto, eles perceberam que as unhas estavam vermelhas. Indiferente, Gandalf avançou para dentro da névoa, e os outros o seguiram com relutância. Por todo lado em volta deles agora, como se tivesse havido uma enchente súbita, grandes poças de água margeavam a estrada, enchendo as concavidades, e córregos corriam borbulhantes por entre as pedras.
Finalmente Gandalf parou e fez um sinal para os outros; eles vieram e viram que adiante dele a névoa tinha diminuído e um sol pálido brilhava.
A hora do meio-dia tinha passado. Estavam às portas de Isengard.
Mas as portas jaziam por terra, retorcidas e por toda a volta a rocha rachada e estilhaçada em incontáveis cacos pontudos, espalhava-se em todas as direções, ou se empilhava em montes de escombros. O grande arco ainda estava de pé, mas abria-se agora sobre um abismo sem teto, o túnel fora posto a descoberto, e através das muralhas que pareciam penhascos, dos dois lados, grandes fendas e brechas haviam sido abertas; suas torres estavam desfeitas em poeira. Se o Grande Mar se tivesse erguido em ira e caído sobre as colinas numa tempestade, não teria causado ruína maior.
O círculo mais adiante estava cheio de água fumegante: um caldeirão borbulhante onde surgia e boiava um entulho de vigas e vergas, arcas e barris e equipamentos quebrados. Pilares retorcidos e pensos levantavam suas hastes estilhaçadas sobre as águas, mas todas as estradas estavam submersas.
Distante, ao que parecia, meio velada por uma nuvem sinuosa, assomava a ilha de pedra. Ainda escura e alta, resistindo à tempestade, a torre de Orthanc se erguia. Águas pálidas batiam em seus pés.
O rei e toda a comitiva permaneceram montados em seus cavalos, estupefatos, percebendo que o poder de Saruman fora derrotado; mas como, eles não podiam adivinhar.
E agora voltavam seus olhos na direção do arco e dos portões em ruínas.
Ali viram bem próximo deles um grande monte de cascalho; e de repente se deram conta de duas pequenas figuras tranqüilamente deitadas sobre ele, vestidas de cinza, que mal se podiam divisar em meio às pedras. Havia garrafas e tigelas e travessas ao lado deles, como se tivessem acabado de comer bem, e agora descansassem do duro trabalho.
Um deles parecia estar adormecido; o outro, com as pernas cruzadas e os braços atrás da cabeça, recostava-se numa rocha quebrada e soltava da boca longas nuvens e pequenos anéis de fumaça tênue e azul.
Por um momento, Théoden, Éomer e todos os seus homens observaram-nos surpresos. Em meio a toda a ruína de Isengard, aquilo lhes parecia a visão mais estranha.
Mas antes que o rei conseguisse falar a pequena figura que soltava fumaça se deu conta deles, parados no limiar da névoa. Ele se ergueu. Parecia um homem jovem, ou era semelhante a um, embora com menos da metade da altura de um homem; a cabeça com cabelos castanhos e encaracolados estava descoberta, mas ele vestia uma capa manchada de viagem, da mesma cor e tipo das que usavam os companheiros de Gandalf quando chegaram a Edoras. Fez uma grande reverência, colocando a mão no peito. Depois, dando a impressão de não ter visto o mago e seus amigos, virou-se para Éomer e para o rei.
— Bem-vindos, meus senhores, a Isengard! — disse ele. — Somos os guardiões da entrada. Meriadoc, filho de Saradoc, é meu nome; e meu companheiro, que infelizmente está vencido pelo cansaço — neste ponto cutucou o outro com o pé —, é Peregrin, filho de Paladin, da casa dos Túk.
Nossa casa fica lá longe, no norte. O Senhor Saruman está, mas no momento está trancado com um tal de Língua de Cobra; caso contrário, sem dúvida estaria aqui para receber hóspedes tão honrados.
— Sem dúvida estaria — disse rindo Gandalf. — E foi Saruman quem lhes ordenou que vigiassem as portas quebradas, e que esperassem pela chegada de hóspedes, quando pudessem desviar a atenção do prato e da garrafa?
— Não, meu bom senhor, esse assunto escapou à atenção dele — respondeu Merry com gravidade. — Ele tem estado tão ocupado... As ordens que recebemos vieram de Barbárvore, que assumiu a gerência de Isengard. Ordenou-me que recebesse o Senhor de Rohan com palavras adequadas à ocasião. Fiz o melhor que pude.
— E os seus companheiros? E Legolas e eu? — gritou Gimli, incapaz de se conter por mais tempo. — Seus tratantes, seus vadios com pés e cabeça de lã! Conduziram-nos por uma boa caçada! Duzentas léguas, através de pântano e floresta, batalha e morte, para resgatá-los! E aqui os encontramos, banqueteando e descansando — e fumando! Fumando! Onde encontraram a erva, seus vilões? Martelo e tenaz! Estou tão dividido entre a raiva e a alegria, que se não explodir será por milagre!
— Faço minhas suas palavras, Gimli — disse rindo Legolas. — Embora eu preferisse saber antes como eles encontraram o vinho.
— Uma coisa vocês não encontraram em sua caçada, uma inteligência maior — disse Pippin, abrindo um olho. — Aqui vocês nos acham sentados num campo de vitória, em meio à pilhagem de exércitos, e se perguntam como encontramos alguns confortos bem merecidos!
— Bem merecidos? — disse Gimli. — Não posso acreditar nisso! Os Cavaleiros riram.
— Não se pode duvidar que estamos testemunhando o encontro de amigos muito queridos — disse Théoden. — Então estes são os perdidos de sua comitiva, Gandalf. Os dias estão destinados a se encher de maravilhas. Já vi muitas desde que deixei minha casa; e bem aqui, diante de meus olhos, estão mais duas pessoas saídas das lendas. Esses não são os Pequenos, que alguns entre nós chamam de Holbytlan?
— Hobbits, por gentileza, senhor — disse Pippin.
— Hobbits? — disse Théoden , — Sua língua está estranhamente mudada; mas assim o nome não soa inadequado, Hobbits. Nenhum relato que eu tenha escutado faz justiça à realidade.
Merry fez uma reverência, e Pippin se levantou e fez o mesmo.
— É generoso, meu senhor; ou pelo menos espero que possa entender suas palavras desse modo — disse ele. — E aqui está outra maravilha! Já vaguei por muitas terras desde que deixei minha casa, e nunca até agora encontrei pessoas que soubessem qualquer história sobre os hobbits.
— Meu povo veio do norte há muito tempo — disse Théoden. — Mas não vou enganá-los: não sabemos histórias sobre hobbits. Tudo o que se diz entre nós é que muito longe, além de muitas colinas e rios, vivem as pessoas pequenas, que moram em tocas em dunas de areia. Mas não há lendas sobre seus feitos, pois comenta-se que fazem pouca coisa, e evitam encontrar os homens, sendo capazes de desaparecer num piscar de olhos; e podem mudar suas vozes para imitar o piar dos pássaros. Mas parece que se poderiam dizer mais coisas.
— Realmente poder-se-ia, meu senhor — disse Merry.
— Para começar — disse Théoden —, nunca ouvi que eles soltavam fumaça por suas bocas.
— Isso não é de admirar — respondeu Merry — pois esta é uma arte que só praticamos há algumas gerações. Foi Tobold Corneteiro, do Vale Comprido, na Quarta Sul, quem primeiro cultivou a verdadeira erva-de-fumo em seus jardins, por volta do ano 1070, de acordo com nosso registro. Como o Velho Toby encontrou a planta...
— Você não sabe o perigo que está correndo, Théoden — interrompeu Gandalf — Esses hobbits são capazes de se sentar sobre escombros e discutir os prazeres da mesa, ou pequenos feitos de seus pais, avós e bisavós, e primos mais remotos em nono grau, se você encorajá-los com uma paciência indevida. Alguma outra hora seria mais adequada para a história da arte de fumar. Onde está Barbárvore, Merry?
— Lá adiante, no lado norte, eu acho. Foi beber alguma coisa — de água pura, a maioria dos outros ents está com ele, ainda ocupada em seu trabalho lá adiante. — Merry acenou a mão na direção do lago fumegante; conforme olharam, escutaram um grande estrondo e clangor, como se uma avalanche estivesse caindo da encosta da montanha. Da distância vinha um hum-hom, como de cornetas tocando triunfalmente.
— Então Orthanc foi deixada sem vigia? — perguntou Gandalf
— Existe a água — disse Merry. — Mas Tronquesperto e uns outros estão vigiando a torre. Nem todos aqueles postes e pilares na planície foram plantados por Saruman. Tronquesperto, eu acho, está ao lado da rocha, perto do pé da escada.
— Sim, um ent alto e cinzento está lá — disse Legolas —, mas seus braços estão ao longo do corpo, e ele está parado como um poste.
— Já passa do meio-dia — disse Gandalf —, e de qualquer forma não comemos nada desde cedo. Mesmo assim, desejo ver Barbárvore o mais depressa possível. Ele não me deixou nenhuma mensagem, ou o prato e a garrafa a varreram de sua memória?
— Ele deixou uma mensagem — disse Merry —, e eu já estava chegando lá, mas fui atrasado por muitas outras perguntas. Devia dizer que, se o Senhor de Rohan e Gandalf quiserem se dirigir à muralha norte, encontrarão Barbárvore lá, e ele lhes dará boas vindas. Quero acrescentar que também encontrarão comida da melhor qualidade, que foi descoberta e selecionada por estes humildes servidores. — Ele fez uma reverência.
Gandalf riu.
— Assim está melhor! — disse ele. — Bem, Théoden, você irá cavalgar comigo para encontrar Barbárvore? Devemos dar uma volta, mas não é longe. Quando vir Barbárvore, aprenderá muito. Pois Barbárvore é Fangorn, o mais velho e chefe dos ents, e quando conversar com ele ouvirá a fala da mais velha de todas as criaturas vivas.
— Irei com você — disse Théoden. — Até logo, meus hobbits! Que possamos nos encontrar de novo em minha casa! Então poderão sentar-se ao meu lado e contar todas as histórias que desejarem: os feitos de seus antepassados, até onde puderem relembrá-los; e também conversaremos sobre Tobold, o Velho, e seu estudo sobre as ervas. Até logo!
Os hobbits fizeram grandes reverências.
— Então este é o Rei de Rohan! — disse Pippin num tom mais baixo. Um velhinho camarada. Muito educado.
ESCOMBROS E DESTROÇOS
Gandalf e a comitiva do Rei se afastaram, rumando ao leste para contornar as paredes arruinadas de Isengard. Mas Aragorn, Gimli e Legolas ficaram para trás. Deixando Arod e Hasufel soltos pastando, foram sentar-se ao lado dos hobbits.
— Muito bem! Muito bem! A caçada terminou e finalmente nos encontramos outra vez, num lugar que nenhum de nós jamais pensou visitar — disse Aragorn.
— E agora que os grandes foram discutir questões importantes — disse Legolas — os caçadores talvez possam descobrir as respostas para seus próprios pequenos enigmas. Seguimos suas pegadas até a floresta, mas há ainda muitas coisas sobre as quais eu gostaria de saber a verdade.
— E há muita coisa, também, que queremos saber sobre vocês — disse Merry. — Soubemos algumas coisas por intermédio de Barbárvore, o Velho Ent, mas isso não é o suficiente.
— Tudo a seu tempo — disse Legolas. — Nós fomos os caçadores, e vocês devem nos fazer um relato de suas aventuras em primeiro lugar.
— Ou em segundo — disse Gimli. — O relato cairia melhor depois de uma refeição. Estou com a cabeça inchada; e já passa do meio-dia. Vocês, os vadios, podem consertar a situação conseguindo-nos um pouco das coisas que vocês disseram que saquearam. Comida e bebida poderiam compensar um pouco de sua dívida para comigo.
— Então você será servido — disse Pippin. — Vai comer aqui, ou com mais conforto no que resta da casa de guarda de Saruman — ali adiante, sob o arco? Fizemos nosso piquenique aqui, para ficarmos com um olho na estrada.
— Menos que um olho! — disse Gimli. — Mas eu não vou entrar em nenhuma casa de orc; nem tocar na carne que comem ou em qualquer coisa que eles tenham maltratado.
— Nós não pediríamos que fizesse isso — disse Merry. — Nós mesmos já estamos cheios de orcs para o resto da vida. Mas havia muitas outras pessoas em Isengard. Saruman foi sábio o suficiente para não confiar em seus orcs. Tinha homens para guardar seus portões: alguns de seus servidores mais fiéis, eu suponho. De qualquer forma eles tinham privilégios e boas provisões.
— E erva-de-fumo? — perguntou Gimli.
— Não, acho que não — disse Merry rindo. — Mas essa é outra história, que pode esperar até depois do almoço.
— Então vamos almoçar! — disse o anão.
Os hobbits foram na frente; passaram pelo arco e chegaram a uma porta larga à esquerda, no topo de uma escada, que se abria diretamente para um grande cômodo, com outras portas menores na extremidade oposta, e num canto uma lareira com chaminé. O cômodo fora cortado na rocha, e devia ter sido escuro outrora, pois suas janelas só se abriam para dentro do túnel. Mas a luz agora entrava pelo teto quebrado. Na lareira havia lenha queimando.
— Acendi uma pequena fogueira — disse Pippin. — O fogo nos alegrou em meio à neblina. Havia poucos feixes, e o pouco de lenha que conseguimos encontrar estava molhada. Mas na chaminé há uma grande corrente de ar: parece que ela sobe pela rocha, e felizmente não foi bloqueada. Uma fogueira é útil . Vou preparar umas torradas. Receio que o pão seja de três ou quatro dias atrás.
Aragorn e seus companheiros sentaram-se em uma das pontas de uma longa mesa, e os hobbits desapareceram através de uma das portas internas.
— Há uma despensa ali dentro, e fora do alcance das enchentes, por sorte — disse Pippin, conforme eles voltaram carregados de pratos, tigelas, taças, facas e comida de variados tipos.
— E você não precisa torcer o nariz para as provisões, Mestre Gimli — disse Merry. — Não é coisa de orc, mas comida humana, como diz Barbárvore. Vão querer vinho ou cerveja? Há um barril lá dentro — bem razoável. E isto aqui é carne de porco salgada da melhor qualidade. Ou então posso cortar algumas fatias de toicinho defumado e grelhá-las, se quiserem. Lamento que não haja nenhuma verdura. As entregas foram interrompidas nos últimos dias! Não posso lhes oferecer nenhuma outra coisa como acompanhamento a não ser manteiga e mel para os pães. Estão satisfeitos?
— Muito satisfeitos — disse Gimli. — A dívida está bem reduzida.
Os três logo ficaram bem ocupados com a refeição; os dois hobbits, sem qualquer embaraço, resolveram comer outra vez.
— Precisamos fazer companhia aos nossos convidados — disseram eles.
— Estão cheios de cortesias esta manhã — disse rindo Legolas. — Mas talvez, se não tivéssemos chegado, vocês estivessem comendo para fazer companhia um ao outro de novo.
— Talvez; e por que não? — disse Pippin. — Passamos muito mal com os orcs, e comemos muito pouco por vários dias antes disso. Parece que faz muito tempo que não conseguimos comer a contento.
— Parece que isso não lhes fez mal algum — disse Aragorn. — Na verdade, estão com uma aparência extremamente saudável.
— É sim — disse Gimli, olhando-os de cima a baixo por sobre a borda de sua taça. — Veja só, seus cabelos estão duas vezes mais grossos e encaracolados do que quando nos separamos; eu poderia jurar que vocês dois cresceram, se isso fosse possível para hobbits da sua idade. Pelo menos esse Barbárvore não os deixou passar fome.
— Não deixou mesmo — disse Merry. — Mas os ents só bebem, e bebida não é o suficiente para nos satisfazermos. As bebidas de Barbárvore podem ser nutritivas, mas a gente sente a necessidade de alguma coisa sólida. Até mesmo lembas não seria nada mal para variar.
— Vocês beberam as águas dos ents, é? — disse Legolas. — Então acho provável que os olhos de Gimli não estejam enganados. Muitas canções estranhas foram cantadas sobre as bebidas de Fangorn.
— Já me contaram muitas histórias esquisitas sobre aquela terra — disse Aragorn. — Nunca entrei ali. Vamos, contem-me alguma coisa sobre ela e sobre os ents!
— Os ents — disse Pippin. — Os ents são... bem, os ents são completamente diferentes, para começo de conversa. Mas os olhos, os olhos são muito esquisitos. — Ele tentou algumas palavras desajeitadas que foram acabando em silêncio. — Oh, bem — continuou ele, vocês já viram alguns de longe... eles os viram, de qualquer forma, e disseram que vocês estavam a caminho... e verão muitos outros, eu espero, antes que deixemos este lugar. Vocês devem tirar suas próprias conclusões.
— Calma! Calma — disse Gimli. — Estamos começando a história pelo meio. Gostaria de uma narrativa na ordem correta, começando pelo dia estranho em que nossa sociedade foi rompida.
— Você vai ouvi-la, se houver tempo — disse Merry. — Mas primeiro se já terminaram de comer — vocês devem encher seus cachimbos e acendê-los. E então, por um tempo, podemos fingir que estamos a salvo outra vez em Bri, ou em Valfenda.
Pegou uma pequena bolsa de couro cheia de tabaco. — Temos um monte — disse ele.
— Vocês podem levar o quanto quiserem, quando partirmos. Fizemos um bom trabalho de salvamento esta manhã, Pippin e eu. Há um monte de coisas flutuando por aí. Foi Pippin quem achou dois pequenos barris, que as aguas carregaram de alguma despensa, julgo eu.
Quando os abrimos, descobrimos que estavam cheios disto: uma erva-de-fumo tão boa que melhor não se poderia desejar, em ótimo estado.
Gimli pegou um pouco, esfregou-a contra a palma das mãos e cheirou.
— Parece boa, e o cheiro também é ótimo — disse ele.
— E é boa! — disse Merry. — Meu caro Gimli, isso é Folha do Vale Comprido! Nos barris havia a marca registrada dos Corneteiros, para quem quisesse ver. Como chegou até aqui eu não posso imaginar. Talvez para uso particular de Saruman. Nunca soube que a folha chegasse até tão longe. Mas agora vem bem a calhar.
— Viria — disse Gimli —, se eu tivesse um cachimbo adequado. Infelizmente perdi o meu em Moria, ou antes. Não há nenhum cachimbo no meio de todas as coisas que vocês saquearam?
— Não, receio que não. Não encontrei nenhum, nem mesmo aqui nas salas de guarda. Saruman guardou esse regalo para si mesmo, ao que parece. E acho que não adiantaria nada bater às portas de Orthanc e pedir-lhe um cachimbo! Vamos ter de compartilhar os cachimbos, como os amigos fazem quando a necessidade aperta.
— Espere um segundo! — disse Pippin. Colocando a mão dentro de seu casaco, retirou uma pequena bolsa macia pendurada num cordão. — Guardo um ou dois tesouros junto ao corpo, que são para mim preciosos como Anéis. Aqui está um deles: meu velho cachimbo de madeira. E aqui está outro: que nunca foi usado. Venho carregando-o comigo há muito tempo, embora não saiba por quê. Na verdade nunca esperei encontrar nenhuma erva-de-fumo na viagem, quando o meu suprimento acabasse. Mas agora acabou sendo útil, afinal de contas. — Ergueu um pequeno cachimbo com um fornilho largo e achatado, entregando-o a Gimli. — Isso anula a dívida entre nós? — perguntou ele.
— Sem dúvida — exclamou Gimli. — Meu nobre hobbit, isso me deixa profundamente endividado para com você.
— Bem, vou voltar ao ar livre, para ver o que o vento e o céu estão fazendo! — disse Legolas.
— Vamos com você — disse Aragorn.
Saíram e se sentaram sobre as pedras empilhadas à frente do portão. Agora conseguiam enxergar o vale lá embaixo: a névoa estava se erguendo e se dissipando na brisa.
— Agora vamos descansar aqui um pouco! — disse Aragorn. — Vamos nos sentar sobre os escombros e conversar, como diz Gandalf, enquanto ele está ocupado em algum outro lugar. Sinto um cansaço que nunca senti antes. — Embrulhou-se em sua capa cinzenta, escondendo a camisa de malha, e esticou as longas pernas.
Depois deitou-se e soltou de seus lábios um tênue fio de fumaça.
— Vejam! — disse Pippin. — Passolargo, o guardião, está de volta!
— Ele nunca esteve ausente — disse Aragorn. — Sou Passolargo e Dúnadan também, e pertenço a Gondor e ao norte.
Fumaram em silêncio por um tempo, ao sol, que oblíquo penetrava no vale, através de nuvens brancas suspensas no oeste. Legolas estava deitado e quieto, olhando para o céu e o sol com olhos fixos, cantando baixinho para si mesmo. Finalmente sentou-se.
— Venham agora! — disse ele. — O tempo está passando e a névoa se dissipando, ou pelo menos estaria se vocês, pessoas estranhas, não se cobrissem de fumaça. E a história?
— Bem, minha história começa comigo acordando no escuro e me vendo todo amarrado num acampamento de orcs — disse Pippin. — Deixe-me ver, que dia é hoje?
— Cinco de março, no Registro do Condado — disse Aragorn. Pippin fez alguns cálculos nos dedos. — Apenas nove dias atrás! — disse ele: Parece que já faz um ano que fomos capturados. Bem, apesar de metade disso ter sido como um sonho ruim, devo dizer que vieram depois três dias horríveis. Merry vai me corrigir, se eu me esquecer de alguma coisa importante: não vou entrar em detalhes: as chicotadas, a nojeira, o mau cheiro, e tudo aquilo; não vale a pena recordar. — Com isso ele mergulhou num relato do último combate de Boromir e da marcha dos orcs dos Emyn Muil até a Floresta. Os outros faziam sinais afirmativos com a cabeça nos pontos em que o relato se encaixava com suas suposições.
— Aqui estão alguns tesouros que vocês deixaram cair — disse Aragorn. — Ficarão felizes em tê-los de volta. — Desafivelou o cinto embaixo de sua capa e tirou dele as duas facas nas respectivas bainhas.
— Ora, ora! — disse Merry. — Nunca esperava vê-las outra vez! Marquei, alguns orcs com a minha, mas Uglúk tirou-nos as facas. O ódio com que ele as olhava! No início achei que ia me golpear, mas ele as jogou longe, como se queimassem suas mãos.
— E aqui também está seu broche, Pippin — disse Aragorn. — Guardei-o a salvo, pois é um objeto muito precioso.
— Eu sei — disse Pippin. — Foi um sofrimento separar-me dele; mas que mais eu poderia fazer?
— Nada mais — respondeu Aragorn. — Alguém que, numa necessidade, não consegue jogar fora um tesouro está acorrentado. Você fez a coisa certa.
— Cortar as cordas de seus pulsos, isso foi um lance de esperteza! — disse Gimli. — Nesse momento a sorte o ajudou, mas você agarrou a oportunidade com as duas mãos, poderíamos dizer.
— E nos impôs um belo enigma — disse Legolas. — Fiquei pensando se vocês não tinham criado asas.
— Infelizmente não — disse Pippin. — Mas você não estava sabendo sobre Grishnákh. — Ele estremeceu e não disse mais nada, deixando que Merry contasse sobre aqueles momentos horríveis: as mãos em forma de pata, o hálito quente e a força terrível dos braços peludos de Grishnákh.
— Toda essa história sobre os orcs de Barad-dûr, Lugbúrz, como dizem eles, me deixa preocupado — disse Aragorn. — O Senhor do Escuro já sabia demais, e seus servidores também; e Grishnákh evidentemente enviou alguma mensagem para o outro lado do Rio depois da briga. O Olho Vermelho estará olhando na direção de Isengard. Mas, de qualquer forma, Saruman está num dilema que ele mesmo criou.
— Sim, qualquer que seja o lado vencedor, sua perspectiva é ruim disse Merry. — As coisas começaram a dar errado para ele quando seus orcs pisaram em Rohan.
— Vimos de relance o velho vilão, ou pelo menos Gandalf acha que sim — disse Gimli. — Na borda da Floresta.
— Quando foi isso? — perguntou Pippin.
— Cinco noites atrás — disse Aragorn.
— Deixe-me ver — disse Merry. — Cinco noites atrás... agora chegamos a uma parte da história sobre a qual vocês não sabem nada. Encontramos Barbárvore naquela manhã depois da batalha; e aquela noite passamos na Gruta da Nascente, uma das casas-ents. Na manhã seguinte fomos para o Entebate, quer dizer, uma reunião de ents e a coisa mais esquisita que já vi em minha vida. Durou todo aquele dia e o seguinte, e nós passamos as noites com um ent chamado Tronquesperto. E então, no fim da tarde do terceiro dia do debate, os ents de repente explodiram. Foi assustador. A Floresta estava tensa como se uma tempestade estivesse se formando dentro dela: então, em uníssono, explodiu. Gostaria que vocês pudessem ter ouvido a canção deles enquanto marchavam.
— Se Saruman tivesse ouvido, agora estaria a milhas de distância, mesmo que tivesse de correr com as próprias pernas — disse Pippin.
Se Isengard for um lugar de pedra fria e duro osso,
Nós vamos todos guerrear quebrar a pedra e seu portão!
— Havia muito mais. Grande parte da canção não tinha palavras, e era como uma música de trombetas e tambores. Era muito contagiante. Mas pensei que fosse apenas uma música de marcha e nada mais, apenas uma canção — até que cheguei aqui. Agora eu sei do que se trata.
— Descemos da última cordilheira entrando em Nan Curunír, depois do cair da noite — continuou Merry. — Foi nesse momento que senti pela primeira vez que a própria Floresta caminhava atrás de nós. Pensei que estava tendo um sonho de ent, mas Pippin também tinha notado. Estávamos os dois com medo, mas só depois descobrimos mais sobre o que estava acontecendo.
— Eram os huorns, ou pelo menos é esse o jeito como os ents os chamam na “língua curta”. Barbárvore não gosta muito de falar sobre eles, mas acho que são ents que ficaram quase como árvores, pelo menos na aparência. Ficam aqui e acolá na floresta, ou nas suas bordas, silenciosos, vigiando sem parar as árvores; mas nos vales profundos há centenas e centenas deles, eu imagino.
— Há um grande poder neles, e parece que têm a capacidade de se ocultar nas sombras: é difícil vê-los se movendo. Mas eles se movem. Podem andar muito rápido, se estiverem furiosos. Você fica parado olhando para o tempo, talvez, ou ouvindo o farfalhar das folhas, e de repente descobre que está no meio de um bosque com grandes árvores tateando à sua volta. Eles ainda têm vozes, e conseguem falar com os ents — é por isso que são chamados de huorns, pelo que diz Barbárvore — mas ficaram esquisitos e selvagens. Perigosos. Eu ficaria apavorado se os encontrasse e não houvesse nenhum ent verdadeiro para cuidar deles.
— Bem, no início da noite nós descemos uma longa ravina, para dentro da extremidade mais alta do Vale do Mago, os ents e seus huorns farfalhantes atrás. Não conseguíamos vê-los, é claro, mas todo o ar estava cheio de estalidos. Estava muito escuro, uma noite carregada de nuvens. Marcharam em grande velocidade assim que deixaram as colinas, fazendo um barulho como um vento forte. A lua não a pareceu através das nuvens, e não muito depois da meia-noite havia uma floresta alta em toda a volta da encosta norte de Isengard. Não se via sinal de inimigos ou qualquer desafio. Havia uma luz brilhando numa alta janela na torre, isso era tudo.
— Barbárvore e alguns outros ents avançaram, ficando à vista dos grandes portões. Pippin e eu estávamos com ele. Estávamos sentados nele. Mas mesmo quando estão excitados os ents conseguem ser muito cuidadosos e pacientes. Ficaram parados feito estátuas, respirando e escutando. Então, de repente, houve uma agitação tremenda. Trombetas soaram e as muralhas de Isengard ecoaram. Pensamos que tínhamos sido descobertos, e que a batalha ia começar. Mas não foi nada disso. Todo o pessoal de Saruman estava partindo em marcha. Não sei muita coisa sobre esta guerra, ou sobre os Cavaleiros de Rohan, mas parece que a intenção de Saruman era exterminar o rei e todos os seus homens com um único golpe final. Ele evacuou Isengard. Eu vi o inimigo partindo: filas intermináveis de orcs em marcha, tropas deles montadas em grandes lobos. E também havia batalhões de homens. Muitos carregavam tochas, e com a luz pude ver seus rostos. A maioria eram homens comuns, muito altos e com os cabelos escuros, sinistros na aparência, porém não especialmente maus. Mas havia uns outros que eram horríveis: da altura de homens, mas com rostos de orcs, amarelados, de olhar esguelho, torto. Sabem de uma coisa, eles me fizeram lembrar imediatamente daquele sulista de Bri: só que ele não era tão obviamente parecido com um orc como eles.
— Pensei nele também — disse Aragorn. — Tivemos de lidar com muitos desses semiorcs no Abismo de Helm. Agora fica claro que o sulista era um espião de Saruman; mas se estava trabalhando com os Cavaleiros Negros, ou só para Saruman, eu não sei. É difícil saber, com essas pessoas más, quando estão unidos e quando estão enganando uns aos outros.
— Bem, todos os tipos juntos, deviam perfazer dez mil no mínimo disse Merry. — Levaram uma hora para passar pelos portões. Alguns desceram a estrada que conduz aos Vaus, e outros se desviaram e foram para o leste. Construíram uma ponte lá embaixo, cerca de uma milha daqui, num ponto onde o rio passa por um canal muito profundo. Todos cantavam com vozes roucas, e riam, fazendo u m barulho horroroso. Pensei que as coisas estavam pretas para Rohan. Mas Barbárvore não se mexeu. Ele disse: “Meu negócio esta noite é com Isengard, com rocha e pedra.”
— Mas embora eu não pudesse ver o que estava acontecendo na escuridão, acredito que os huorns começaram a rumar para o sul, logo que os portões se fecharam de novo. Acho que o negócio deles era com os orcs. Já estavam lá embaixo no vale pela manhã; ou pelo menos havia uma sombra que ninguém conseguia atravessar com os olhos.
— Assim que Saruman tinha despachado todo o seu exército, chegou a nossa vez. Barbárvore nos pôs no chão, dirigiu-se aos portões e começou a golpear as portas, chamando Saruman. Não houve resposta, com a exceção de flechas e pedras que vieram das muralhas. Mas flechas não adiantam nada contra os ents. É claro que os machucam, e os enfurecem: como picadas de insetos. Mas um em pode ficar crivado de flechas de orcs como uma almofada de alfinetes, sem que fique seriamente ferido. Isso porque eles não podem ser envenenados, e sua pele parece ser muito grossa, mais resistente que uma casca de árvore. Seria necessário um golpe muito pesado de machado para machucá-los de fato. Eles não gostam de machados. Mas seriam necessários muitos homens com machados para cada ent: um homem que golpeia um ent uma vez não tem uma segunda oportunidade. Um murro dado pelo punho de um ent amassa o ferro como se fosse uma lata fina.
— Quando Barbárvore tinha algumas flechas em seu corpo, começou a esquentar, a ficar positivamente “apressado”, como diria ele. Soltou um grande hum-hom, e mais uns doze ents vieram avançando. Um ent furioso é aterrador. Os dedos dos pés e das mãos simplesmente agarram-se à rocha e a arrancam qual casca de pão. Foi como assistir ao trabalho de grandes raízes de árvores durante uma centena de anos, tudo condensado em alguns momentos.
— Eles empurravam, puxavam, rasgavam, chacoalhavam, e esmurravam; e clangue-bangue, crache-craque, em cinco minutos esses portões enormes estavam no chão destruídos; e alguns dos ents já estavam começando a roer as muralhas, como coelhos num poço de areia. Não sei o que Saruman pensou que estava acontecendo, mas de qualquer forma ele não sabia como lidar com aquilo. Sua magia pode ter enfraquecido nos últimos tempos, é claro; mas de qualquer jeito acho que ele não tinha bravura suficiente, nem muita coragem, sozinho num lugar apertado, sem um monte de escravos e máquinas e coisas, se entendem o que quero dizer. Muito diferente do velho Gandalf
Fico pensando se toda a sua fama não se deveu todo esse tempo à sua esperteza ao instalar-se em Isengard.
— Não — disse Aragorn. — Ele já esteve à altura de sua fama, Tinha um conhecimento profundo, um pensamento sutil, e mãos maravilhosamente habilidosas; e tinha um poder sobre as mentes dos outros. Podia persuadir os sábios e amedrontar as pessoas menores.
Esse poder certamente ele ainda conserva. Não há muitas pessoas na Terra-média que na minha opinião poderiam ficar a salvo, se fossem deixadas sozinhas para conversar com ele, mesmo agora depois de uma derrota. Gandalf, Elrond, e Galadriel, talvez, agora que sua maldade foi revelada, e quase mais ninguém.
— Os ents não correm esse risco — disse Pippin. — Parece que certa época ele os persuadiu, mas nunca mais vai conseguir isso. E de qualquer forma ele não os entendeu, e cometeu o grave erro de deixá-los fora de suas maquinações. Não tinha planos para eles, e já não havia tempo para planejar nada, uma vez que eles se puseram a trabalhar. Assim que nosso ataque começou, os poucos ratos que sobraram em Isengard começaram a fugir através de cada furo que os ents fizeram. Os ents deixaram os homens fugir, depois de têlos interrogado, restavam apenas duas ou três dúzias. Não acho que muitos do povo dos orcs, de qualquer tamanho, tenham escapado. Não dos huorns: havia uma boa quantidade deles em toda a volta de Isengard naquele momento, além daqueles que tinham descido o vale.
— Quando os ents tinham reduzido a escombros uma grande parte da muralha sul, e o que restava de seu povo tinha fugido abandonando-o, Saruman fugiu em pânico. Parece que ele estava junto ao portão quando chegamos: acho que veio assistir à partida de seu esplêndido exército. Quando os ents arrombaram os portões e entraram, ele partiu apressado. Eles não o viram no inicio. Mas a noite se abrira e havia uma forte luz das estrelas, o suficiente para que os ents enxergassem, e de repente Tronquesperto soltou um grito: “O matador de árvores, o matador de árvores!” Tronquesperto é uma criatura gentil, mas por isso mesmo odeia Saruman com todas as suas forças: seu povo sofreu cruelmente sob os machados dos orcs. Ele desceu aos saltos o caminho que vinha do portão interno, pois ele pode mover-se como o vento quando está enfurecido. Havia uma figura pálida fugindo, entrando e saindo entre as sombras dos pilares, e já quase alcançava as escadas que conduzem à porta da torre. Mas foi por pouco. Tronquesperto vinha tão veloz atrás dele que por um ou dois passos de distância Saruman não foi pego e estrangulado quando se esgueirou pela porta.
— Quando Saruman estava a salvo outra vez em Orthanc, não demorou muito para que pusesse em ação algumas de suas preciosas máquinas. Nesse momento já havia muitos ents dentro de Isengard: alguns tinham seguido Tronquesperto, e outros tinham irrompido do norte e do leste: estavam vagando de um lado para o outro e fazendo um grande estrago. De repente ergueram-se chamas e uma fumaça imunda: as aberturas dos poços em toda a planície começaram a cuspir e vomitar. Vários ents ficaram com queimaduras e bolhas. Um deles, que se chamava Ossofaia, eu acho, ficou preso no vapor de algum tipo de fogo líquido e queimou como uma tocha: uma cena horrível.
— Isso os deixou loucos. Eu achara antes que eles estavam realmente furiosos, mas estava errado. Finalmente vi como eles ficam quando se enfurecem. Foi chocante. Eles rugiram e ribombaram e produziram ruídos como trombetas, até que as rochas começaram a se partir e ruir ante O simples barulho deles. Merry e eu nos deitamos no chão e cobrimos Os Ouvidos com as capas. Dando voltas na rocha de Orthanc, os ents iam a largas passadas, produzindo uma tempestade como um furacão, quebrando pilares, lançando avalanches de pedras para dentro dos poços, jogando grandes lajes de pedra no ar como se fossem folhas. A torre ficou no meio de um tufão. Vi pilares de ferro e blocos de alvenaria subindo feito foguetes dezenas de metros, e se arrebentando contra as janelas de Orthanc. Mas Barbárvore se manteve calmo. Felizmente não sofrera nenhuma queimadura. Não queria que seu povo se ferisse em sua fúria, e não queria que Saruman escapasse por algum buraco em meio à confusão. Muitos ents estavam se lançando contra a rocha de Orthanc, mas ela os derrotou. É muito lisa e dura. Há alguma magia nela, talvez mais antiga e mais forte que a de Saruman. De qualquer forma, eles não conseguiram agarrá-la nem causar-lhe nenhuma rachadura: eles é que estavam se machucando e contundindo ao se baterem contra a torre.
— Então Barbárvore foi para dentro do círculo e gritou. Sua voz poderosíssima se ergueu acima de todo o estrondo, De repente, fez-se um silêncio mortal. Rasgando-o, pudemos ouvir uma risada aguda vinda de uma alta janela na torre. Isso provocou um estranho efeito nos ents. Antes eles estavam fervendo; nesse momento ficaram frios, sinistros como o gelo, e quietos. Deixaram a planície e se reuniram em volta de Barbárvore, completamente imóveis. Ele lhes falou em sua própria língua por uns instantes; acho que estava lhes contando sobre um plano já formado em sua mente havia muito tempo. Depois eles simplesmente desapareceram silenciosamente na luz cinzenta. O dia estava nascendo naquele momento.
— Ficaram vigiando a torre, acredito eu, mas os vigilantes estavam tão bem escondidos nas sombras e mantinham tamanho silêncio, que eu não conseguia vê-los. Os outros partiram para o norte. Ficaram ocupados todo o dia, e não os vimos. A maioria do tempo ficamos sozinhos. Foi um dia melancólico, e andamos um pouco por aí, embora procurássemos ficar o máximo possível fora do campo de visão das janelas de Orthanc: elas nos observavam ameaçadoramente. Passamos uma boa parte do tempo procurando algo para comer. E também nos sentamos e conversamos, imaginando o que estaria acontecendo em Rohan, e o que teria sucedido a todo o resto de nossa Comitiva. De vez em quando ouvíamos na distância o estrondo de pedras caindo, e baques surdos ecoando nas colinas.
— Durante a tarde caminhamos em volta do círculo, e fomos dar uma olhada no que estava acontecendo. Havia uma grande floresta sombria de huorns na cabeceira do vale, e uma outra em volta da muralha norte. Não ousamos entrar. Mas ouvimos um ruído de algo se rasgando ou se rompendo na parte de dentro. Os ents e os huorns estavam cavando grandes fossos e valas, fazendo grandes lagos e represas, recolhendo toda a água do Isen e de qualquer outra nascente ou riacho que conseguiam encontrar. Deixamos que continuassem seu trabalho.
— Quando chegou o crepúsculo, Barbárvore retornou ao portão, Estava cantarolando e ribombando para si mesmo, e parecia satisfeito. Parou e esticou os grandes braços e pernas, depois respirou fundo. Perguntei lhe se estava cansado.
— “Cansado?”, disse ele, “cansado? Bem, cansado não, mas com o corpo enrijecido. Preciso de um bom trago do Entágua. Trabalhamos muito; quebramos mais pedras e roemos mais terra hoje do que em muitos longos anos antes. Mas está quase tudo pronto. Quando chegar a noite, não fiquem perto deste portão ou no velho túnel! Pode ser que a água cubra tudo — e por um tempo será uma água ruim, até que toda a sujeira de Saruman seja levada embora. Então o Isen poderá correr limpo outra vez.” Começou a derrubar mais uma parte das muralhas, como se aquilo fosse um passatempo, apenas para se divertir.
— Estávamos pensando que lugar poderia ser seguro para deitarmos e dormirmos um pouco, quando a coisa mais surpreendente de todas aconteceu.
Ouviu-se o ruído de um cavaleiro subindo rapidamente pela estrada. Merry e eu nos deitamos e ficamos imóveis, e Barbárvore se escondeu nas sombras sob o arco. De repente, um grande cavalo veio avançando, como um clarão de prata. Já estava escuro, mas eu pude ver claramente o rosto do cavaleiro: parecia brilhar, e todas as suas roupas eram brancas. Eu me sentei, observando, de boca aberta. Tentei gritar, mas não consegui.
— Nem precisou. Ele parou bem ao nosso lado e olhou em nossa direção. “Gandalf!”, disse eu finalmente, mas minha voz era a penas um sussurro. Pensam que ele disse: “Olá, Pippin! Que surpresa agradável!”? Na verdade não! Ele disse: “Levante-se, seu Túk idiota! Onde, em nome do espanto, está Barbárvore no meio de todo este estrago? Quero vê-lo. Rápido!”
— Barbárvore ouviu sua voz e saiu das sombras imediatamente, e foi um estranho encontro. Fiquei perplexo, porque nenhum dos dois parecia surpreso. Gandalf obviamente esperava encontrar Barbárvore aqui, e Barbárvore agiu como se estivesse à toa perto dos portões de propósito para recebê-lo. Já tínhamos contado ao velho ent tudo sobre Moria. Mas quando me lembro do olhar esquisito que nos lançou naquela hora só posso supor que ele tinha visto Gandalf, ou recebido alguma notícia dele, mas não estava disposto a falar nada apressadamente. “Não tenha pressa” é seu mote; mas ninguém, nem mesmo os elfos, pode saber muito sobre os movimentos de Gandalf quando ele está ausente.
— “Hum! Gandalf”, disse Barbárvore. “Fico feliz que tenha vindo. Floresta e água, troncos e rochas eu posso dominar; mas aqui há um mago para controlarmos.”
— “Barbárvore”, disse Gandalf. “Preciso de sua ajuda. Você já fez muito, mas preciso de mais. Tenho que dar conta de cerca de dez mil orcs.”
— Então os dois saíram e fizeram uma reunião em algum canto. Deve ter parecido tudo bastante apressado para Barbárvore, pois Gandalf estava com uma ânsia tremenda, e já estava falando num ritmo bem acelerado antes que os dois desaparecessem de vista. Ficaram longe só alguns minutos, talvez um quarto de hora. Depois Gandalf voltou e veio em nossa direção, e parecia aliviado, quase contente. Só então disse que estava feliz em nos ver.
— “Mas Gandalf “, exclamei eu, “onde você esteve? Você viu os outros?”
— “Onde quer que eu tenha estado, estou de volta”, respondeu ele à sua maneira peculiar. “Sim, vi alguns dos outros. Mas as notícias devem esperar. Esta é uma noite perigosa, e preciso cavalgar rápido. A aurora pode ser mais clara e, se assim for, vamos nos encontrar outra vez. Cuidem-se e mantenham distância de Orthanc. Adeus!”
— Barbárvore ficou muito pensativo depois que Gandalf foi embora. Evidentemente, tinha sabido muita coisa em pouco tempo, e estava digerindo a informação. Olhou-nos e disse: “Hum, bem, percebo que vocês não são pessoas tão apressadas como eu pensava. Disseram muito menos que poderiam, e não mais do que deviam. Hum! Esse é um monte de notícias, sem dúvida! Bem, agora Barbárvore precisa ficar ocupado outra vez.”
— Antes que se fosse, conseguimos arrancar dele algumas notícias que não nos alegraram nem um pouco. Mas naquele momento estávamos pensando mais em vocês três do que em Frodo e Sam, ou no pobre Boromir. Pois ficamos sabendo que estava acontecendo uma grande batalha, ou aconteceria em breve, e que vocês estavam nela, e poderiam nunca mais voltar.
— “Os huorns vão ajudar”, disse Barbárvore. Depois se afastou e não o vimos outra vez até hoje cedo. Foi uma noite negra. Deitamo-nos sobre uma pilha de pedras, e não conseguíamos ver nada. Névoa ou sombras cobriam tudo como um grande cobertor em toda a nossa volta. O ar parecia quente e pesado , e estava cheio de ruídos farfalhantes, estalidos e murmúrios semelhantes a vozes passando. Acho que outras centenas de huorns estavam avançando em direção à batalha. Mais tarde houve um grande estrondo de trovão ao sul, e clarões e relâmpagos ao longe, sobre Rohan. De tempos em tempos conseguíamos ver os picos das montanhas, a milhas e milhas de distância, penetrando de súbito na escuridão, brancos e pretos, para depois como o dos trovões nas colinas, mas diferentes. Algumas vezes todo o vale ecoava.
— Devia ser por volta de meia-noite quando os ents arrebentaram as represas e derramaram sobre Isengard toda a água armazenada através de uma fenda na muralha norte. A escuridão dos huorns tinha passado, e o trovão se afastara. A lua afundava atrás das montanhas ocidentais.
— Isengard começou a se encher de córregos e lagos negros que avançavam cada vez mais. As águas reluziram na última luz da lua, enquanto se espalhavam por toda a planície. De quando em quando, escoavam através de algum POÇO ou gárgula. Um grande vapor esbranquiçado subia chiando. A fumaça se levantava em ondas. Houve explosões e rajadas de fogo. Uma grande espiral de vapor subia se enrolando, dando voltas e mais voltas em Orthanc, até transformá-la numa grande montanha de nuvem, com a parte inferior em chamas, e o topo iluminado pela lua. E ainda mais águas jorravam, até que finalmente Isengard ficou parecendo uma enorme tigela rasa, soltando fumaça e borbulhando.
— Vimos uma nuvem de fumaça e vapor vindo do sul a noite passada, quando atingimos a abertura do Nan Curunír — disse Aragorn. — Receamos que Saruman nos estivesse preparando algum feitiço.
— Não ele! — disse Pippin. — Naquela hora é mais provável que ele estivesse sufocando e não rindo. Ontem pela manhã a água tinha penetrado por todos os buracos, e havia um denso nevoeiro. Refugiamo-nos naquela casa de guarda ali, e estávamos apavorados. O lago começou a transbordar derramando-se através do velho túnel, e a água cobria os degraus com grande rapidez. Pensamos que íamos ficar presos como orcs num buraco, mas encontramos uma escada sinuosa na parte posterior da despensa, que nos levou até o topo do arco. Sair foi um aperto, já que as passagens estavam rachadas e meio bloqueadas com pedras caídas perto do topo. Ali ficamos sentados bem acima da enchente e assistimos ao afogamento de Isengard. Os ents continuavam a derramar mais água, até que todas as fogueiras estivessem apagadas e todas as cavernas cheias, A névoa lentamente se juntou e subiu formando um grande guarda-chuva de nuvens: devia ter uma milha de altura. No início da noite havia um grande arco-íris sobre as colinas orientais; e então o pôr-do-sol foi apagado por um chuvisco denso que caía sobre as encostas das montanhas. Tudo ficou muito quieto. Alguns lobos uivavam num lamento, a distância. Os ents interromperam a entrada de água à noite, e mandaram o Isen de volta ao velho curso. E isso foi o fim de tudo.
— Desde então as águas estão baixando. Deve haver saídas em algum lugar nas cavernas lá embaixo, suponho eu. Se Saruman espiar por alguma de suas janelas, vai ver tudo desarrumado, uma desordem sombria. Sentimos uma enorme solidão. Não havia nenhum ent para conversarmos em meio a toda a ruína, e nenhuma notícia. Passamos a noite ali, em cima do arco; estava frio e úmido, e não conseguimos dormir. Tínhamos a impressão de que alguma coisa podia acontecer a qualquer momento. Saruman ainda está em sua torre. Havia um ruído na noite como o de um vento subindo o vale. Suponho que os ents e os huorns que tinham se ausentado estão de volta; mas aonde tinham ido eu não sei. Estava uma manhã cheia de névoa e umidade quando descemos e olhamos ao redor de novo, e não se via ninguém . E isso é tudo o que temos para contar. Parece que o lugar está quase pacífico depois de todo o tumulto. E mais seguro, de certa forma, já que Gandalf tinha voltado. Consegui dormir!
Então todos ficaram em silêncio por um tempo. Gimli encheu seu cachimbo outra vez.
— Há uma coisa que me pergunto — disse ele enquanto o acendia com sua pederneira e pavio —, Língua de Cobra. Você disse a Théoden que ele estava com Saruman. Como ele chegou lá?
— Ah, sim, eu me esqueci dele — disse Pippin. — Só chegou aqui esta manhã. Tínhamos acabado de acender a fogueira e de comer alguma coisa quando Barbárvore apareceu de novo. Escutamos sua voz murmurando e chamando nossos nomes do lado de fora.
— “Vim saber como estão passando, meus rapazes”, disse ele, “e para lhes dar alguma notícia. Os huorns voltaram. Está tudo bem, bem mesmo!”, disse ele rindo e dando tapinhas nas coxas. “Não sobrou nenhum orc em Isengard, nem machados! E virão pessoas do sul antes do fim do dia; alguns que vocês poderão ficar alegres em ver.”
— Mal ele tinha dito isso quando ouvimos o som de cascos na estrada. Corremos para os portões, e eu parei e olhei, quase esperando ver Passolargo e Gandalf cavalgando à frente de um exército. Mas saindo da névoa veio um homem sobre um cavalo velho e cansado; ele mesmo parecia uma criatura estranha e toda torta. Não havia mais ninguém. Quando saiu da névoa, viu de repente toda a ruína e o estrago à sua frente. Parou, pasmo, e seu rosto ficou quase verde. Estava tão perplexo que a princípio não deu sinal de ter-nos visto. Quando viu, deu um grito, e tentou virar o cavalo e fugir. Mas Barbárvore deu três passadas, estendeu um braço longo e o levantou da sela. O cavalo disparou em fuga, apavorado, e ele rastejou pelo chão. Disse que era Gríma, amigo e conselheiro do rei, e tinha sido enviado trazendo mensagens importantes de Théoden para Saruman.
— “Ninguém mais ousaria cavalgar pelo campo aberto, tão cheio de orcs malignos”, disse ele, “então eu fui enviado. Fiz uma viagem perigosa, e estou cansado e faminto. Desviei de meu caminho em direção ao norte, fugindo dos lobos que me perseguiam.”
— Percebi os olhares oblíquos que ele lançou para Barbárvore, e disse para mim mesmo: “Mentiroso.” Barbárvore olhou para ele com seu jeito lento e demorado por vários minutos, até que o infame estivesse estrebuchando no chão. Então disse finalmente: “Ha, hin, estava esperando você, Mestre Língua de Cobra.” O homem teve um sobressalto ao ouvir aquele nome. “Gandalf chegou aqui primeiro. Por isso, sei sobre você o quanto preciso, e sei também o que fazer com você. Ponha todos os ratos na mesma ratoeira, disse Gandalf, e é isso o que vou fazer. Agora sou o senhor de Isengard, mas Saruman está trancado na torre; você pode ir para lá e lhe transmitir todas as mensagens que conseguir imaginar.”
— “Deixe-me ir, deixe-me ir!”, disse Língua de Cobra. “Eu sei o caminho.”
— “Você sabia o caminho, não duvido”, disse Barbárvore. “Mas as coisas mudaram um pouco por aqui. Vá e veja com seus próprios olhos!”
— Barbárvore permitiu a passagem de Língua de Cobra, e ele se foi mancando através do arco, seguido de perto por nós, até que atingiu o círculo e pôde ver toda a água que estava entre ele e Orthanc. Então voltou-se para nós.
— “Deixem-me ir embora”, choramingou ele. “Deixem-me ir embora! Minhas mensagens são inúteis agora.”
— “De fato são”, disse Barbárvore. “E você só tem duas escolhas: ficar comigo até que Gandalf e seu mestre cheguem, ou atravessar a água. O que você escolhe?”
— O homem tremeu à menção do nome de seu mestre e colocou um pé n a água; mas recuou. “Não sei nadar”, disse ele.
— “Não é fundo”, disse Barbárvore. “A água está suja, mas isso não vai lhe fazer mal, Mestre Língua de Cobra. Entre agora!”
— Com isso o patife foi aos trambolhões entrando na água, que atingiu a altura de seu pescoço antes de perder-se de vista à distância. A última visão que tive foi dele se agarrando em algum barril velho ou pedaço de madeira. Mas Barbárvore foi andando na água atrás dele, vigiando seu avanço.
— “Bem, ele entrou lá”, disse o ent ao retornar . “Vi-o se arrastando escada acima como um rato emporcalhado. Ainda há alguém na torre: uma mão apareceu e o puxou para dentro. Então ele está lá, e espero que a recepção seja a seu gosto. Agora preciso ir e me lavar desse lodo. Estarei lá em cima, na encosta norte, se alguém quiser me ver. Aqui embaixo não há água limpa, adequada para um ent beber, ou para se lavar. Então vou pedir a vocês dois, rapazes, que fiquem de olho no portão à espera das pessoas que estão chegando. Quem vem vindo é o Senhor dos Campos de Rohan, vejam bem! Devem recebê-lo da melhor maneira possível: seus homens travaram uma grande luta com os orcs. Talvez vocês conheçam melhor que os ents a maneira correta nas palavras dos homens para um senhor dessa importância. Houve muitos senhores nos campos verdes na minha época, e nunca aprendi suas falas e seus nomes. Eles vão querer comida humana, e vocês sabem tudo sobre isso, julgo eu. Então achem algo adequado para um rei comer, se puderem.” E este é o fim da história. Mas eu gostaria de saber quem é esse Língua de Cobra. Ele era mesmo o conselheiro do rei?
— Era — disse Aragorn -, e ao mesmo tempo um espião e servidor de Saruman em Rohan. A sorte não lhe foi mais gentil do que ele merecia. A visão das ruínas de tudo o que ele considerava tão forte e magnífico deve ter sido uma punição quase suficiente. Mas receio que coisas piores lhe estão reservadas.
— É sim. Não acho que Barbárvore o mandou para Orthanc por gentileza — disse Merry. — Ele parecia sinistramente satisfeito com a coisa toda, e estava rindo para si mesmo quando foi tomar seu banho e beber algo, Ficamos muito ocupados depois disso, vasculhando os escombros e vistoriando tudo. Encontramos duas ou três despensas em lugares diferentes aqui perto, acima do nível da água. Mas Barbárvore mandou uns ents aqui para baixo, e eles carregaram uma boa parte do material.
— “Queremos comida humana para vinte e cinco pessoas”, disseram os ents. Então vocês podem ver que alguém contou cuidadosamente o número de sua comitiva antes que chegassem. Evidentemente a intenção era que vocês três fossem com os grandes. Mas não teriam passado melhor. Enviamos a mesma coisa que guardamos aqui, eu juro. Melhor aqui, porque nós não mandamos bebida.
— “E bebida?”, eu perguntei aos ents.
— “Temos a água do Isen”, disseram-me eles, “e isso é bom o bastante para os ents e para os homens.” Mas espero que os ents tenham tido tempo de preparar um pouco de suas próprias bebidas com a água das nascentes das montanhas, e então poderemos ver a barba de Gandalf se enrolando toda quando ele voltar. Depois que os ents se foram, ficamos cansados e famintos. Mas não podemos reclamar. Nosso trabalho foi bem recompensado. Foi em meio à nossa busca por comida humana que Pippin descobriu a jóia de todo o escombro, aqueles barris do Vale Comprido. “Erva-de-fumo é melhor depois da comida”, disse Pippin; foi assim que tudo aconteceu.
— Agora entendemos tudo perfeitamente — disse Gimli.
— Tudo, menos uma coisa — disse Aragorn -: Folha da Quarta Sul em Isengard. Quanto mais penso nisso, mais eu acho o fato curioso. Nunca estive em Isengard, mas já viajei por esta região, e conheço bem as terras desertas que ficam entre Rohan e o Condado. Nem mercadoria nem pessoas passaram por ali em muitos longos anos, não abertamente. Acho que Saruman tinha negócios secretos com alguém no Condado. Podem-se encontrar Línguas de Cobra em várias outras casas além da do Rei Théoden. Havia uma data nos barris?
— Havia — disse Pippin. — Foi a colheita de 1417, a do ano passado; não, do ano anterior, é claro: um bom ano.
— Bem, qualquer mal que estivesse à solta está terminado agora, eu espero; ou então está além de nosso alcance no momento — disse Aragorn.
— Mas acho que vou mencionar o fato a Gandalf, embora pareça um assunto sem importância em meio às suas grandes questões.
— Fico pensando o que ele estará fazendo — disse Merry. — A tarde está avançando. Vamos dar uma olhada. De qualquer forma, você pode entrar em Isengard agora se quiser, Passolargo. Mas a vista não é muito animadora.
A VOZ DE SARUMAN
Passaram pelo túnel arruinado e pararam sobre um monte de pedras, olhando para a rocha escura de Orthanc, e para suas muitas janelas, ainda uma ameaça em meio à desolação que se espalhava ao redor. A água tinha baixado quase por completo. Aqui e ali restavam algumas poças escuras, cobertas de destroços e escória; porém a maior parte do amplo círculo estava descoberta de novo, um lugar desolado cheio de limo e pedras caídas, perfurado por buracos enegrecidos, e salpicado por pilares e postes que pendiam para um lado ou para o outro feito bêbados. Na borda da vasilha despedaçada jaziam grandes montes de entulho, como o cascalho juntado por uma grande tempestade; além deles o vale verde e irregular subia o longo precipício por entre os braços escuros das montanhas. Através da devastação eles viram cavaleiros avançando com cautela; vinham da encosta norte e já se aproximavam de Orthanc.
— Lá vêm Gandalf, Théoden e seus homens! — disse Legolas. — Vamos encontrá-los!
— Ande com cuidado! — disse Merry. — Há lajes soltas que podem virar e jogá-lo dentro de algum poço, se não for cauteloso!
Seguiram pelo que restava da estrada que vinha dos portões de Orthanc, andando devagar, pois as pedras estavam rachadas e cheias de lodo. Os cavaleiros, ao vê-los se aproximando, pararam sob a sombra da rocha e esperaram. Gandalf avançou para encontrá-los.
— Bem, Barbárvore e eu tivemos umas discussões interessantes, e fizemos alguns planos — disse ele -, e tivemos todos o mais que indispensável descanso. Agora precisamos continuar outra vez. Espero que vocês, companheiros, tenham descansado também, e recuperado as energias.
— Descansamos sim — disse Merry. — Mas nossas discussões começaram e terminaram em fumaça. Nossa disposição em relação a Saruman está um pouco melhor do que estava.
— É mesmo? — disse Gandalf — Bem, a minha não. Tenho agora uma última tarefa a desempenhar antes de partir: devo fazer uma visita de despedida a Saruman. Perigosa, e provavelmente inútil; mas isso precisa ser feito. Aqueles dentre vocês que quiserem podem me acompanhar — mas cuidado! E não façam gracejos! Agora não é hora para isso.
— Eu vou — disse Gimli. — Quero vê-lo para saber se ele realmente se parece com você.
— E como você vai saber isso, Mestre Anão? — disse Gandalf — Saruman poderia se parecer comigo aos seus olhos, se isso se adequasse aos propósitos dele em relação a você. E será que você já é sábio o suficiente para detectar todos os disfarces dele? Bem, talvez, vamos ver. Pode ser que ele se sinta acanhado em se expor diante de muitos olhos diferentes ao mesmo tempo. Mas ordenei a todos os ents que desaparecessem de vista, então talvez consigamos convencê-lo a aparecer.
— Qual é o perigo? — perguntou Pippin. — Ele vai atirar em nós, ou despejar fogo pelas janelas? Ou vai nos lançar um feitiço à distância?
— A última coisa é a mais provável, se você se dirigir à porta dele com o coração desprevenido — disse Gandalf — Mas não há como saber o que ele fará, ou o que decidirá tentar. Não é seguro se aproximar de um animal selvagem acuado. E Saruman tem poderes que você nem imagina. Tomem cuidado com a voz dele! Agora estavam ao pé de Orthanc. Era uma torre negra, e a rocha brilhava como se estivesse molhada. As muitas facetas da pedra tinham arestas perfeitas, como se tivessem sido recentemente cinzeladas.
Algumas estrias e pequenas lascas acumuladas junto da base eram as únicas marcas da fúria dos ents.
No lado oriental, no ângulo formado por duas facetas, havia uma grande porta, bem acima do solo; e sobre ela via-se uma janela que se abria em folhas sobre uma sacada cercada por grades de ferro. Conduzindo à soleira da porta subia um lance de vinte e sete degraus largos, que alguma arte desconhecida esculpira na mesma rocha negra.
Essa era a única entrada para a torre, mas várias janelas altas haviam sido cortadas em vãos fundos parede acima: lá no alto elas espiavam como pequenos olhos nas faces íngremes dos chifres.
Ao pé da escada, Gandalf e o rei desmontaram.
— Vou subir — disse Gandalf — Já estive em Orthanc, e conheço o perigo que estou correndo.
— E eu também vou subir — disse o rei. — Estou velho, e já não temo perigo nenhum. Quero falar com o inimigo que me fez tanto mal. Éomer virá comigo, para cuidar que meus pés idosos não vacilem.
— Como quiser — disse Gandalf — Aragorn me acompanhará. Que os outros esperem ao pé da escada. Vão ouvir e ver o suficiente, se houver alguma coisa para ouvir e ver.
— Não! — disse Gimli. — Legolas e eu queremos uma vista mais próxima. Somos os únicos aqui que representamos nossos povos. Também vamos.
— Então venham! — disse Gandalf Com isso subiu os degraus, com Théoden ao seu lado.
Os Cavaleiros de Rohan ficaram inquietos em seus cavalos, dos dois lados da escada, lançando olhares sombrios para a grande torre, temendo o que poderia acontecer a seu senhor. Merry e Pippin se sentaram no último degrau, sentindo-se ao mesmo tempo desimportantes e desprotegidos.
— Meia milha de lama daqui até o portão! — murmurou Pippin. Gostaria de poder me esgueirar de volta até a casa de guarda sem ser notado! Por que viemos? Não somos desejados.
Gandalf parou diante da porta de Orthanc e bateu nela com seu cajado. A porta produziu um som oco.
— Saruman, Saruman! — gritou ele, numa voz alta e imperiosa. — Saruman, apareça!
Por algum tempo não houve qualquer resposta. Finalmente a janela acima da porta foi destrancada, mas não se via ninguém através da abertura escura.
— Quem é? — perguntou uma voz. — O que deseja?
Théoden estremeceu.
— Conheço essa voz — disse ele — e amaldiçôo o dia em que dei ouvidos a ela pela primeira vez.
— Vá e traga Saruman, já que você se transformou no lacaio dele, Gríma Língua de Cobra! — disse Gandalf. — E não nos faça esperar!
A janela se fechou. Eles esperaram. De repente, uma outra voz falou, suave e melodiosa, seu próprio som um encantamento. As pessoas que escutavam aquela voz desavisadamente mal conseguiam depois reportar as palavras que tinham ouvido; e quando conseguiam titubeavam, pois pouca força restava nelas. A maior parte do que conseguiam lembrar era o prazer que sentiram ao ouvir a voz falando, e que tudo o que ela dissera parecera sábio e razoável, despertando neles um desejo de, mediante um acordo rápido, parecerem sábios também. Quando outras vozes falavam, pareciam por contraste rudes e grosseiras; e se se opusessem à voz o ódio se acendia no coração dos que estavam sob o efeito do encanto. Para alguns o encanto durava apenas enquanto a voz lhes falava, e quando ela se dirigia aos outros eles sorriam, como os homens fazem quando percebem o truque de um ilusionista diante do qual os outros ficam pasmos. Para muitos, apenas a voz era o suficiente para mantê-los cativos; mas para aqueles que eram seduzidos por ela o encantamento perdurava mesmo quando estava longe, e eles continuavam escutando a voz suave sussurrando e incitando-os. Mas ninguém ficava impassível; ninguém conseguia recusar seus pedidos e seus comandos sem um esforço de mente e de vontade, enquanto seu mestre tivesse controle dela.
— Então? — disse a voz, agora com gentileza. — Por que precisam perturbar meu descanso? Não vão me deixar em paz de modo algum, dia e noite?
— O tom era de um coração gentil machucado por insultos imerecidos.
Eles ergueram os olhos, atônitos, pois não tinham ouvido ninguém se aproximar; e viram uma figura parada perto da grade, olhando para baixo: um velho, vestido num grande manto, cuja cor era difícil de definir, pois mudava se eles mexessem os olhos, ou se ele se movimentasse. O rosto era longo, com uma fronte alta; tinha olhos profundos e escuros, difíceis de penetrar, embora a expressão que agora tinham fosse grave e benevolente, além de um pouco cansada, Os cabelos e a barba eram brancos, mas mechas negras ainda se mostravam na altura dos lábios e das orelhas.
— Parecido, e ao mesmo tempo diferente — murmurou Gimli.
— Vamos lá, agora — disse a voz suave. — Pelo menos dois de vocês eu conheço de nome. A Gandalf conheço bem demais para ter muitas esperanças de que ele procure auxílio ou conselhos aqui. Mas você, Théoden, Senhor da Terra dos Cavaleiros de Rohan, declara-se através de seu nobre brasão, e ainda mais pelo belo semblante da Casa de Eorl..ó, valoroso filho de Thengel, o Triplamente Renomado! Por que não veio antes, e como amigo? Desejava muito vê-lo, poderosíssimo rei das terras do oeste, especialmente nestes últimos dias, para salvá-lo dos conselhos ignorantes e maldosos que o cercam. Já será tarde demais? Apesar dos danos que me foram causados, nos quais os homens de Rohan, infelizmente, têm uma parcela de culpa, eu ainda o salvaria, e o livraria da ruína que se aproxima inevitavelmente, se você prosseguir por esta estrada que ora tomou. Na verdade, só eu posso ajudá-lo agora.
Théoden abriu a boca, como se fosse falar, mas não disse nada. Ergueu os olhos até o rosto de Saruman, que tinha seu olhar escuro e solene inclinado sobre ele, e depois para Gandalf ao seu lado; parecia hesitar; Gandalf não fez sinal algum, mas ficou quieto como uma pedra, como alguém que espera pacientemente algum chamado que ainda não chegou. Os Cavaleiros se agitaram a princípio, murmurando exclamações de aprovação às palavras de Saruman; depois eles também ficaram em silêncio, como se estivessem sob o domínio de um encantamento. Tinham a impressão de que Gandalf nunca tinha dito palavras tão belas e adequadas ao seu senhor. Todas as suas conversas com Théoden pareciam agora rudes e arrogantes. Sobre seus corações pairava uma sombra, o medo de um grande perigo: o fim da Terra dos Cavaleiros numa escuridão para a qual Gandalf os estivera conduzindo, enquanto Saruman estava ao lado de uma porta de saída, segurandoa semi-aberta de modo que um raio de luz entrava. Fez-se um silêncio pesado. Foi Gimli, o anão, quem o cortou subitamente.
— As palavras desse mago estão de cabeça para baixo — rosnou ele, agarrando o cabo do machado. — Na língua de Orthanc, ajuda significa ruína, e salvar significa matar, isto está claro. Mas não viemos aqui para implorar nada.
— Paz! — disse Saruman, e por um momento fugaz sua voz ficou menos suave, e uma luz faiscou em seus olhos para depois desaparecer. — Não estou falando com você ainda, Gimli, filho de Glóin — disse ele. — Sua terra fica longe daqui, e você tem pouco a ver com os problemas desta região. Mas não foi por vontade própria que você foi envolvido neles, então não vou culpá-lo pela parte que desempenhou — corajosa, não duvido. Mas, eu lhe peço, permita-me primeiro falar ao Rei de Rohan, meu vizinho, que já foi meu amigo.
— Que tem a dizer, Rei Théoden? Vai ficar com minha paz e com toda a ajuda que meu conhecimento, fundado em longos anos, pode trazer? Faremos juntos nossos planos contra dias maléficos, e repararemos nossas ofensas com tamanha boa vontade que nossos estados poderão florescer com mais beleza do que nunca?
Théoden ainda não respondeu. Se lutava contra o ódio ou a dúvida ninguém sabia dizer.
Éomer falou.
— Senhor, escute-me! — disse ele. — Agora estamos sentindo o perigo sobre o qual fomos alertados. Será que avançamos para a vitória apenas para no fim pararmos estupefatos diante de um velho mentiroso que tem mel em sua língua bifurcada? É dessa forma que um lobo aprisionado falaria aos cães de caça, se pudesse. Que ajuda pode ele lhe oferecer, na verdade? Tudo o que ele deseja é escapar desta situação. Mas o senhor vai negociar com esse perito em traição e assassinato? Lembre-se de Théodred nos Vaus, e do túmulo de Háma no Abismo de Helm.
— Se estamos falando de línguas envenenadas, que dizer da sua, jovem serpente? — disse Saruman, e o clarão de seu ódio agora ficava visível aos olhos de todos. — Mas então, Éomer, filho de Éomund! — continuou ele com sua voz suave outra vez. — Cada homem com sua função. Seu valor está nas armas, e você goza de muita honra por meio dele. Mate aqueles que seu senhor apontar como inimigos, e fique satisfeito. Não se intrometa nas políticas que não consegue entender. Talvez, se chegar a ser rei, você descubra que um rei deve escolher seus amigos com cautela. A amizade de Saruman e o poder de Orthanc não podem ser descartados sem mais nem menos, não importa quantos ressentimentos, verdadeiros ou imaginados, possam no fundo existir. Vocês venceram uma batalha e não uma guerra — e, mesmo assim, auxiliados por uma força com a qual não poderão contar outra vez. Pode ser que vocês encontrem a Sombra da Floresta em suas próprias portas em seguida: ela é intratável, insensata e não nutre amor pelos homens.
— Mas, meu senhor de Rohan, devo ser chamado de assassino porque homens valorosos caíram em batalha? Se você vai para a guerra desnecessariamente, pois eu não a desejava, então homens serão mortos. Mas se, baseado nisso, eu sou um assassino então toda a Casa de Eorl está manchada com assassinatos; pois eles lutaram em muitas guerras e atacaram muitos que os desafiaram. Apesar disso, com alguns eles fizeram as pazes depois, pelo menos para serem políticos. Eu digo, Rei Théoden: vamos ter paz e amizade, você e eu? A decisão cabe a nós.
— Vamos ter paz — disse Théoden finalmente, com uma voz inarticulada e fazendo esforço. Vários Cavaleiros gritaram de alegria. Théoden ergueu a mão. — Sim, vamos ter paz — disse ele, agora numa voz clara —, teremos paz quando você e seus feitos tiverem perecido — e os feitos de seu senhor escuro, a quem você nos entregaria. Você é um mentiroso, Saruman; um corruptor dos corações dos homens. Estende-me sua mão, e eu percebo apenas um dedo da garra de Mordor. Cruel e fria! Mesmo que sua guerra contra mim tivesse sido justa — e não foi, pois mesmo que você fosse dez vezes mais sábio não teria o direito de comandar a mim e aos meus para seus próprios lucros como desejava —, mesmo assim, que me diz de suas tochas em Folde Ocidental e das crianças que jazem mortas lá? E eles despedaçaram o corpo de Háma diante dos portões do Forte da Trombeta, depois que ele estava morto. Quando você pender de uma forca em sua própria janela para a diversão de seus próprios corvos, eu ficarei em paz com você e Orthanc. O mesmo vale para a casa de Eorl. Sou um filho menor de grandes antepassados, mas não preciso lamber seus pés. Vire-se em outra direção. Mas receio que sua voz tenha perdido o encanto.
Os Cavaleiros ergueram os olhos para Théoden como homens acordados de um sonho. A voz de seu senhor soou-lhes nos ouvidos rude como a de um velho corvo, após a música de Saruman. Mas Saruman se descontrolou por uns momentos, tomado de ira. Debruçou-se sobre a grade da sacada como se fosse golpear o rei com seu cajado.
Alguns tiveram a impressão súbita de estarem vendo uma serpente se enrolando e preparando o bote.
— Forcas e corvos! — chiou ele, e eles estremeceram diante da súbita mudança. — Velho caduco! O que é a casa de Eorl a não ser um estábulo com teto de palha, onde os bandidos bebem em meio ao mau cheiro, e seus fedelhos rolam pelo chão junto com os cachorros? Eles mesmos já escaparam da forca por muito tempo. Mas o laço vai se apertando, lento no início, sufocante e forte no fim. Enforque-se se quiser! — Agora sua voz mudava, conforme lentamente ele ia se controlando. — Não sei por que tenho paciência de conversar com você. Pois não preciso de você, nem de seu pequeno bando de galopeiros, que avançam com a mesma velocidade com que fogem, Théoden, Senhor dos Cavalos. Há muito tempo lhe ofereci uma posição acima de seu mérito e de sua sabedoria.
Acabo de oferecê-la de novo, de modo que aqueles a quem você desencaminha possam ver claramente a escolha da estrada. Você me oferece fanfarronadas e abuso. Que assim seja. Voltem para suas cabanas!
— Mas você, Gandalf. Pelo menos por você eu lamento, e me solidarizo com sua vergonha. Como é possível agüentar uma companhia dessas? Pois você é orgulhoso, Gandalf — e não sem motivo, pois tem uma mente privilegiada e olhos que enxergam longe e fundo. Mesmo agora você se recusa a escutar meus conselhos?
Gandalf estremeceu e levantou os olhos.
— O que você tem a dizer que não foi dito em nosso último encontro? — perguntou ele. — Ou talvez você tenha coisas para desdizer.
Saruman fez uma pausa.
— Desdizer? — meditou ele, como se estivesse intrigado. — Desdizer? Fiz um esforço para aconselhá-lo para seu próprio bem, mas você mal ouviu o que eu disse. É orgulhoso e não gosta de conselhos, tendo na verdade um estoque de sua boa sabedoria. Mas naquela ocasião você errou, eu acho, obstinadamente fazendo mau juízo de minhas intenções. Temo que na minha ansiedade em persuadi-lo eu tenha perdido a calma. E de fato me arrependo disso. Pois não tinha más intenções em relação a você; mesmo agora elas não existem, embora você retorne a mim em companhia dos violentos e dos ignorantes. Por que eu deveria? Então não somos ambos membros de uma ordem nobre e antiga e muito excelente da Terra-média? Nossa amizade seria benéfica a nós dois da mesma forma. Ainda poderíamos realizar muitas coisas juntos, para curar as desordens do mundo. Deixe que entendamos um ao outro, e nos livremos do pensamento de pessoas menores! Que eles aguardem nossas decisões! Para o bem de todos, estou disposto a corrigir o que já passou e recebê-lo. Está disposto a conversar comigo? Está disposto a subir?
Tão grande foi o poder que Saruman exerceu em seu último esforço que nenhum dos ouvintes permaneceu impassível. Mas agora o encanto era inteiramente diferente.
Eles ouviram o protesto educado de um rei gentil que tinha um ministro equivocado, mas muito amado. Mas estavam trancados fora, escutando através da porta palavras que não se destinavam a eles: crianças malcriadas ou servidores estúpidos que por acaso ouvem o discurso impalpável dos mais velhos, imaginando como ele os afetaria.
Aqueles dois eram feitos de matéria mais nobre: eram veneráveis e sábios.
Era inevitável que fizessem uma aliança. Gandalf subiria até a torre para discutir questões profundas, além da compreensão dos outros, nos altos cômodos de Orthanc. A porta se fecharia, e eles seriam deixados fora, dispensados para aguardarem que algum trabalho ou punição lhes fosse designado. Até mesmo na mente de Théoden o pensamento tomou forma, como uma sombra de dúvida: “Ele vai nos trair; vai subir – estaremos perdidos.”
Então Gandalf soltou uma gargalhada. A fantasia se desvaneceu como uma baforada de fumaça.
— Saruman, Saruman! — disse Gandalf ainda rindo. — Saruman, você perdeu seu rumo na vida. Deveria ter sido o bobo do rei para ganhar seu pão, e chicotadas também, arremedando seus conselheiros. Ai de mim! — interrompeu-se ele, dominando a própria hilaridade. — Entendermo-nos um ao outro? Temo estar além de sua compreensão. Mas você, Saruman, eu entendo bem demais! Lembro-me mais claramente de seus argumentos e feitos do que você supõe. Quando o visitei pela última vez, você era o carcereiro de Mordor, e para lá eu deveria ser mandado. Não, o hóspede que escapou pelo telhado pensará duas vezes antes de retornar pela porta. Não, acho que não vou subir. Mas escute, Saruman, pela última vez! Não está disposto a descer? Isengard acabou se mostrando menos forte do que sua esperança e sua imaginação a fizeram. O mesmo pode acontecer a outras coisas nas quais você ainda confia. Não seria bom deixá-la por um tempo? Recorrer a coisas novas, talvez? Pense bem, Saruman! Não está disposto a descer?
Uma sombra passou pelo rosto de Saruman, que em seguida ficou pálido como um cadáver.
Antes que ele pudesse disfarçar, todos viram atrás da máscara a angústia mental causada pela dúvida: ao mesmo tempo odiava ficar e temia deixar seu refúgio. Por um segundo ele hesitou, e ninguém respirava. Depois falou, e sua voz estava esganiçada e fria. O orgulho e o ódio o estavam conquistando.
— Se eu vou descer? — zombou ele. — É comum que um homem desarmado desça para falar com ladrões do lado de fora? Posso ouvi-lo muito bem daqui. Não sou nenhum tolo, e não confio em você, Gandalf. Eles não estão à vista na minha escada, mas eu sei onde os selvagens demônios da floresta estão à espreita, sob seu comando.
— Os traiçoeiros estão sempre desconfiados — respondeu Gandalf com uma voz cansada. — Mas você não deve temer por sua pele. Não desejo matá-lo, ou machucá-lo, como bem sabe, se realmente me entende. E tenho o poder de protegê-lo. Estou lhe dando uma última oportunidade. Pode deixar Orthanc, livre — se quiser.
— Isso soa bem — retrucou Saruman. — Bem à maneira de Gandalf, o Cinzento: tão condescendente, tão gentil. Não duvido que você acharia Orthanc confortável, e minha partida conveniente. Mas por que eu desejaria partir? E o que está querendo dizer com “livre”? Existem condições, eu presumo.
— Razões para partir você pode ver de suas janelas — respondeu Gandalf. — Outras ocorrerão à sua mente. Seus servidores estão destruídos e dispersos, seus vizinhos foram por você transformados em seus inimigos; e você enganou seu novo mestre, ou pelo menos tentou. Quando o olho dele se virar para cá, será o olho vermelho da ira. Mas, quando eu digo “livre”, quero dizer “livre”: livre de prisão, ou corrente ou comando: para ir para onde quiser, até, até para Mordor, Saruman, se você desejar. Mas primeiro deverá me entregar a Chave de Orthanc e seu cajado. Serão garantias de sua conduta, para serem devolvidos mais tarde, se os merecer.
O rosto de Saruman ficou lívido, contorcido pela raiva, e uma luz vermelha se acendeu em seus olhos. Ele riu alucinado.
— Mais tarde! — gritou ele, e sua voz se ergueu num grito. — Mais tarde! Sim, quando você também tiver as próprias Chaves de Barad-dûr, suponho eu; e as corôas de sete reis, e os cajados dos Cinco Magos, e tiver comprado para si um par de botas muito maiores do que estas que você está usando agora. Um plano modesto. Um plano em que meu auxílio quase não será necessário! Tenho outras coisas para fazer. Não seja tolo! Se quiser fazer um acordo comigo, enquanto tem a oportunidade, vá embora, e volte quando estiver sóbrio! E deixe em paz esses assassinos e essa pequena gentalha que se pendura em sua cauda! Passe um bom dia! — Virou-se e deixou a sacada.
— Volte, Saruman! — disse Gandalf numa voz imperiosa. Para a surpresa dos outros, Saruman se virou outra vez, e como se estivesse sendo arrastado contra a própria vontade voltou lentamente até a grade de ferro, debruçando-se sobre ela, respirando com dificuldade. Seu rosto estava contorcido e enrugado. A mão segurava o pesado cajado negro como uma garra.
— Não lhe dei permissão para sair — disse Gandalf numa voz firme. Ainda não terminei. Você se transformou num tolo, Saruman, e apesar disso causa pena. Poderia ainda ter desviado da loucura e do mal, e ter sido útil. Mas você escolhe ficar e ruminar as pontas de suas antigas tramas. Então fique! Mas eu o aviso, você não vai sair com facilidade outra vez. Não, a menos que as mãos escuras do leste se estendam para apanhá-lo, Saruman! — gritou ele, e sua voz cresceu em poder e autoridade.
— Olhe! Não sou Gandalf, o Cinzento, que você traiu . Sou Gandalf, o Branco, que retornou da morte. Agora você não tem cor alguma e eu o expulso da ordem e do Conselho.
Ergueu a mão e falou lentamente, numa voz límpida e fria.
— Saruman, seu cajado está quebrado. — Houve um estalido, o cajado se partiu em pedaços, e sua parte superior caiu aos pés de Gandalf — Vá! — disse Gandalf com um grito. Saruman caiu para trás e foi embora se arrastando. Nesse momento, um objeto pesado e brilhante foi arremessado lá de cima. Bateu contra a grade de ferro, no instante em que Saruman se afastou dela e, passando perto da cabeça de Gandalf, chocou-se contra a escada sob seus pés. A grade tiniu e se rompeu. A escada se trincou lançando estilhaços em faíscas brilhantes. Mas a bola não sofreu nenhum dano: rolou escada abaixo, um globo de cristal, escuro, mas reluzindo com um coração de fogo. No momento em que foi rolando em direção a uma poça, Pippin correu atrás dele e o apanhou.
— Tratante assassino! — exclamou Éomer. Mas Gandalf ficou impassível. — Não, isso não foi jogado por Saruman — disse ele —, nem mesmo por sua ordem, eu acho. Veio de uma janela bem mais acima. Um tiro de despedida do Mestre Língua de Cobra, imagino eu, mas a pontaria dele é ruim.
— A pontaria foi ruim, talvez porque ele não conseguia se decidir sobre qual dos dois ele odiava mais, Saruman ou você — disse Aragorn.
— Pode ser — disse Gandalf — Aqueles dois têm pouco consolo na companhia um do outro: vão se estraçalhar com palavras. Mas a punição é justa. Se Língua de Cobra algum dia conseguir sair de Orthanc vivo, isso já será mais do que ele merece.
— Aqui, meu rapaz, vou ficar com isso. Não pedi que você o pegasse — gritou ele, voltando-se de repente e vendo Pippin subindo os degraus, devagar, como se estivesse carregando um grande peso. Gandalf desceu para encontrá-lo e mais do que depressa tomou o globo escuro das mãos do hobbit, embrulhando-o nas dobras de sua capa.
— Vou cuidar disto — disse ele. — Não é algo, acredito eu, que Saruman escolheria para jogar fora.
— Mas ele pode ter outras coisas para jogar — disse Gimli. — Se este é o fim do debate, vamos pelo menos sair do alcance de qualquer coisa que possa ser lançada de lá de cima!
— É o fim — disse Gandalf — Vamos.
Viraram as costas para as portas de Orthanc, e desceram. Os cavaleiros aclamaram o rei com alegria, e felicitaram Gandalf. O encanto de Saruman estava quebrado: tinham-no visto aparecer ao ser chamado, e ir embora se arrastando, dispensado.
— Bem, já está feito — disse Gandalf. — Agora preciso encontrar Barbárvore e lhe contar como foram as coisas.
— Certamente ele já adivinhou — disse Merry. — Havia alguma probabilidade de isso terminar de alguma outra maneira?
— Probabilidade não havia — respondeu Gandalf —, embora a situação tenha estado por um fio. Mas eu tinha razões para tentar; algumas clementes, outras nem tanto. Primeiro, Saruman viu que o poder de sua voz estava diminuindo. Ele não pode ao mesmo tempo ser um tirano e um conselheiro. Quando o plano está maduro, deixa de ser segredo. Mas ele caiu na armadilha, e tentou lidar com suas vítimas uma a uma, enquanto as outras escutavam. Então dei a ele uma última escolha, uma escolha justa: renunciar tanto a Mordor quanto a seus planos particulares, e consertar a situação ajudando-nos em nossas necessidades. Ele sabe quais são elas, ninguém sabe melhor. Poderia ter prestado grandes serviços. Mas ele escolheu recusá-los e manter o poder de Orthanc. Ele não está disposto a servir, apenas a comandar. Agora vive aterrorizado pela sombra de Mordor, e apesar disso ainda sonha em controlar a tempestade. Tolo infeliz! Será devorado, se o poder do leste estender seus braços até Isengard. Não podemos destruir Orthanc de fora, mas Sauron — quem sabe o que ele pode fazer?
— E se Sauron não vencer? O que você fará com ele? — perguntou Pippin.
— Eu: Nada! — disse Gandalf — Não lhe farei nada. Não quero dominar as coisas. O que acontecerá com ele? Não sei dizer. Lamento que tanta coisa que foi boa agora apodreça na torre. Mesmo assim, as coisas não saíram mal para nós. Estranhos são os caminhos da sorte! Com grande freqüência o ódio fere a si mesmo! Suponho que, mesmo que tivéssemos entrado, teríamos encontrado poucos tesouros em Orthanc mais preciosos que a coisa que Língua de Cobra atirou contra nós.
Um grito agudo, subitamente interrompido, veio de uma janela aberta lá em cima.
— Parece que Saruman pensa da mesma forma — disse Gandalf. Vamos deixá-los!
Voltaram-se então para as ruínas dos portões. Mal tinham passado sob o arco quando, das sombras das pedras empilhadas onde tinham ficado, Barbárvore e outros doze ents vieram subindo a largas passadas. Aragorn, Gimli e Legolas olharam surpresos para eles.
— Aqui estão três de meus companheiros, Barbárvore — disse Gandalf. Já lhe falei deles, mas você não os tinha visto. — Disse o nome deles um a um.
O velho ent olhou para eles longa e curiosamente, e falou com cada um individualmente. Por fim voltou-se para Legolas.
— Então você veio de lá da Floresta das Trevas até aqui, meu bom elfo? Antigamente costumava ser uma grande floresta!
— E ainda é — disse Legolas. — Mas não tão grande que possa fazer com que nós, que vivemos nela, fiquemos cansados de ver novas árvores. Eu realmente adoraria viajar pela Floresta de Fangorn. Mal atravessei as bordas dela, e não senti desejo algum de lhe dar as costas.
Os olhos de Barbárvore brilharam de satisfação.
— Espero que consiga realizar seu desejo, antes que as colinas envelheçam muito — disse ele.
— Irei até lá, se tiver a sorte — disse Legolas. — Combinei com meu amigo que, se tudo correr bem, vamos primeiro visitar Fangorn juntos — se tivermos a sua permissão.
— Qualquer elfo que vier com você será bem-vindo — disse Barbárvore.
— O amigo de que falo não é um elfo — disse Legolas. — Refiro-me a Gimli, o filho de Glóin, aqui ao meu lado. — Gimli fez uma grande reverência, e o machado escorregou de seu cinto e bateu contra o chão.
— Hum, hun! Espere um pouco — disse Barbárvore, lançando ao anão um olhar sombrio. — Um anão é portador de um machado! Hum! Tenho boa vontade com os elfos, mas você está pedindo muito. Essa é uma estranha amizade!
— Pode parecer estranha — disse Legolas —, mas enquanto Gimli viver não entrarei em Fangorn sozinho. O machado dele não é para as árvores, mas para pescoços de orcs, ó Fangorn, Mestre da Floresta de Fangorn. Ele matou quarenta e dois na batalha.
— Hum, espere um pouco! — disse Barbárvore. — Essa história está melhor! Bem, bem, as coisas transcorrerão como devem; e não há necessidade de nos apressarmos ao encontro delas. Mas agora precisamos nos separar por um tempo. O dia está chegando ao fim, e apesar disso Gandalf diz que vocês devem partir antes do cair da noite, e que o Senhor da Terra dos Cavaleiros está ansioso para voltar para casa.
— Sim, precisamos ir, e ir agora — disse Gandalf — Receio que devo lhe tomar as sentinelas do portão. Mas você pode passar bem sem elas.
— Talvez eu possa — disse Barbárvore. — Mas vou sentir falta deles. Ficamos amigos em tão pouco tempo que até acho que devo estar ficando apressado — voltando à juventude, talvez. Mas, também, eles são a primeira coisa nova que vi sob sol ou lua em muitos longos, longos dias. Não os esquecerei. Coloquei os nomes deles na Longa Lista. Os ents vão se lembrar.
Ents da terra, da idade dos montes,
bebedores de água, grandes andantes;
famintos quais lobos, os hobbits crianças,
essa gente-que-ri, o povo menor.
— Permanecerão nossos amigos enquanto as folhas se renovarem. Passem bem! Mas se tiverem notícias em sua bela terra, no Condado, mandem-me uma mensagem! Sabem o que quero dizer: palavra ou sinal das entesposas. Venham vocês mesmos, se puderem!
— Viremos! — disseram Merry e Pippin juntos, e viraram-se apressadamente.
Barbárvore olhou para eles e ficou em silêncio por um tempo, balançando a cabeça pensativamente.
Depois voltou-se para Gandalf.
— Então Saruman não quis sair? — disse ele. — Não achava que iria. O coração dele está apodrecido como o de um huorn negro. Mesmo assim, se eu tivesse sido vencido, e todas as minhas árvores estivessem destruídas, eu não viria enquanto tivesse um buraco escuro para me esconder.
— É — disse Gandalf. — Mas você não planejou cobrir todo o mundo com suas árvores e sufocar todos os outros seres vivos. Mas é isso, Saruman fica para nutrir seu ódio e tecer outra vez as teias que sabe tecer. Ele tem a Chave de Orthanc. Mas não se deve permitir que ele escape.
— Certamente não! Os ents vão cuidar disso — disse Barbárvore. — Saruman não colocará um pé além da rocha sem minha permissão. Os ents vão vigiá-lo.
— Muito bom! — disse Gandalf — Era isso que eu esperava. Agora posso ir e me dedicar a outros assuntos com uma preocupação a menos. Mas vocês devem ser cautelosos. As águas baixaram. Receio que não será suficiente colocar sentinelas em toda a volta da torre. Não duvido que houvesse caminhos profundos cavados embaixo de Orthanc, e que Saruman tenha a esperança de entrar e sair sem ser visto, em breve. Se vocês estão dispostos a desempenhar a tarefa, peço-lhes que derramem as águas de novo; e que façam isso até que Isengard se transforme num lago perene, ou até que vocês descubram as saídas. Enquanto todas as passagens subterrâneas estiverem alagadas e as saídas bloqueadas, Saruman deverá ficar lá em cima e olhar pelas janelas.
— Deixe isso por conta dos ents! — disse Barbárvore. — Vamos vasculhar o vale de cima a baixo e espiar embaixo de cada cascalho. As árvores estão voltando para viver aqui, árvores velhas, selvagens. Daremos a elas o nome de Floresta Vigia. Nenhum esquilo circulará por aqui sem que eu fique sabendo. Deixe isso por conta dos ents! Até que passem sete vezes os anos durante os quais ele nos atormentou, os ents não se cansarão de vigiá-lo.
O “PALANTÍR”
O sol afundava atrás do longo braço ocidental das montanhas quando Gandalf com seus companheiros, e o rei com seus Cavaleiros, partiram de Isengard. Gandalf levou Merry na garupa do cavalo, e Aragorn levou Pippin. Dois dos homens do rei foram na frente, cavalgando rápido, e logo sumiram de vista dentro do vale. Os outros foram seguindo num passo tranqüilo.
Os ents, numa fila solene, ficaram como estátuas junto ao portão, com os longos braços erguidos, mas sem fazer qualquer ruído. Merry e Pippin olharam para trás, quando já tinham descido um bom trecho da estrada sinuosa. O sol ainda brilhava no céu, mas sombras compridas alcançavam Isengard: ruínas cinzentas caindo na escuridão.
Agora Barbárvore estava sozinho ali, como o tronco distante de uma velha árvore: os hobbits pensaram em seu primeiro encontro com ele, sobre o patamar ensolarado lá longe, nas fronteiras de Fangorn.
Chegaram ao pilar da Mão Branca. Ainda estava de pé, mas a mão esculpida tinha sido derrubada e desfeita em pedaços. Bem no meio da estrada jazia o longo dedo indicador, branco no crepúsculo, sua unha vermelha enegrecendo.
— Os ents prestam atenção a todos os detalhes! — disse Gandalf.
Continuaram cavalgando, e o anoitecer se aprofundou no vale.
— Vamos cavalgar muito esta noite, Gandalf? — perguntou Merry depois de um tempo. — Não sei como você se sente com essa gentalha pendurada atrás de você, mas a gentalha está cansada e ficaria feliz em parar de se pendurar e se deitar.
— Então você ouviu aquilo? — disse Gandalf — Não se ressinta! Fique agradecido por não ter tido palavras mais longas endereçadas a você. Ele estava com os olhos em você. Se for algum consolo para seu orgulho, eu diria que, no momento, você e Pippin estão mais nos pensamentos dele do que todos nós. Quem são, como chegaram até lá e por quê; o que sabem, se vocês foram capturados e, em caso positivo, como escaparam enquanto todos os orcs pereceram — é com esses pequenos enigmas que a grande mente de Saruman está preocupada. Uma zombaria vinda de Saruman, Meriadoc, é um elogio, se você se sente honrado com a preocupação dele.
— Obrigado! — disse Merry. — Mas é uma honra maior pendurar-me em sua cauda, Gandalf. Pelo menos por uma coisa: nessa posição se tem a oportunidade de fazer uma pergunta pela segunda vez. Vamos cavalgar muito esta noite?
Gandalf riu.
— Um hobbit insaciável! Todos os magos deveriam ter um ou dois hobbits aos seus cuidados — para ensinar-lhes o significado dessa palavra e para corrigi-los. Peço desculpas. Mas já pensei até nessas questões menores. Vamos cavalgar por algumas horas, com calma, até...
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