O “PALANTÍR”
O sol afundava atrás do longo braço ocidental das montanhas quando Gandalf com seus companheiros, e o rei com seus Cavaleiros, partiram de Isengard. Gandalf levou Merry na garupa do cavalo, e Aragorn levou Pippin. Dois dos homens do rei foram na frente, cavalgando rápido, e logo sumiram de vista dentro do vale. Os outros foram seguindo num passo tranqüilo.
Os ents, numa fila solene, ficaram como estátuas junto ao portão, com os longos braços erguidos, mas sem fazer qualquer ruído. Merry e Pippin olharam para trás, quando já tinham descido um bom trecho da estrada sinuosa. O sol ainda brilhava no céu, mas sombras compridas alcançavam Isengard: ruínas cinzentas caindo na escuridão.
Agora Barbárvore estava sozinho ali, como o tronco distante de uma velha árvore: os hobbits pensaram em seu primeiro encontro com ele, sobre o patamar ensolarado lá longe, nas fronteiras de Fangorn.
Chegaram ao pilar da Mão Branca. Ainda estava de pé, mas a mão esculpida tinha sido derrubada e desfeita em pedaços. Bem no meio da estrada jazia o longo dedo indicador, branco no crepúsculo, sua unha vermelha enegrecendo.
— Os ents prestam atenção a todos os detalhes! — disse Gandalf.
Continuaram cavalgando, e o anoitecer se aprofundou no vale.
— Vamos cavalgar muito esta noite, Gandalf? — perguntou Merry depois de um tempo. — Não sei como você se sente com essa gentalha pendurada atrás de você, mas a gentalha está cansada e ficaria feliz em parar de se pendurar e se deitar.
— Então você ouviu aquilo? — disse Gandalf — Não se ressinta! Fique agradecido por não ter tido palavras mais longas endereçadas a você. Ele estava com os olhos em você. Se for algum consolo para seu orgulho, eu diria que, no momento, você e Pippin estão mais nos pensamentos dele do que todos nós. Quem são, como chegaram até lá e por quê; o que sabem, se vocês foram capturados e, em caso positivo, como escaparam enquanto todos os orcs pereceram — é com esses pequenos enigmas que a grande mente de Saruman está preocupada. Uma zombaria vinda de Saruman, Meriadoc, é um elogio, se você se sente honrado com a preocupação dele.
— Obrigado! — disse Merry. — Mas é uma honra maior pendurar-me em sua cauda, Gandalf. Pelo menos por uma coisa: nessa posição se tem a oportunidade de fazer uma pergunta pela segunda vez. Vamos cavalgar muito esta noite?
Gandalf riu.
— Um hobbit insaciável! Todos os magos deveriam ter um ou dois hobbits aos seus cuidados — para ensinar-lhes o significado dessa palavra e para corrigi-los. Peço desculpas. Mas já pensei até nessas questões menores. Vamos cavalgar por algumas horas, com calma, até chegarmos ao fim do vale. Amanhã deveremos cavalgar mais rápido.
— Quando viemos, nossa idéia era voltar direto de Isengard para a casa do rei em Edoras através das colinas, uma cavalgada de alguns dias. Mas pensamos melhor e mudamos o plano. Mensageiros já foram na frente para o Vale do Abismo, para avisar que o rei está retornando amanhã. De lá ele partirá com muitos homens para o Templo da Colina, por trilhas que cortam as montanhas. De agora em diante não mais que dois ou três deverão ir abertamente pelos campos, de dia ou de noite, e só quando necessário.
— Com você é tudo ou nada! — disse Merry. — Receio que eu não estivesse pensando em nada além da cama de hoje à noite. Onde ficam e o que são o Abismo de Helm e todo o resto? Não sei nada sobre esta região.
— Então é melhor que aprenda alguma coisa, se desejar entender o que está acontecendo. Mas não agora, e não por meu intermédio: tenho muitas coisas urgentes em que pensar.
— Tudo bem, vou tentar com Passolargo ao lado da fogueira do acampamento: ele é menos impaciente. Mas por que todo esse segredo? Pensei que tivéssemos vencido a batalha!
— Sim, vencemos, mas foi apenas a primeira vitória, e isso em si aumenta nosso perigo. Havia algum vínculo entre Isengard e Mordor que eu ainda não descobri. Como trocavam notícias não sei ao certo; mas eles trocavam. O Olho de Barad-dûr estará olhando impacientemente na direção do Vale do Mago, eu acho; e na direção de Rohan. Quanto menos vir, melhor será.
A estrada seguia lentamente, descendo o vale com muitas curvas. Algumas vezes mais distante, outras mais próximo, corria o Isen em seu leito de pedras. A noite desceu das montanhas. Toda a névoa tinha-se dissipado. Um vento gelado soprava.
A lua, agora quase cheia, enchia o céu do leste com um reflexo pálido e frio. As saliências das montanhas à direita deles desciam até colinas nuas. A vasta planície se abria cinzenta diante deles.
Finalmente pararam. Depois mudaram de direção, abandonando a estrada e passando outra vez à macia turfa da região montanhosa. Indo uma ou duas milhas para o oeste, atingiram um valezinho. Abria-se em direção ao sul, apoiando-se na encosta do redondo Dol Baran, o último dos montes da cordilheira do norte, que tinha os pés verdes e o topo coberto por urzes. As encostas do vale estavam emaranhadas com a samambaia do ano anterior, no meio da qual os brotos encaracolados da primavera começavam a sair por sobre a terra de cheiro suave. Espinheiros cresciam espessos sobre os barrancos baixos, e sob eles o grupo montou acampamento, cerca de duas horas antes da meia-noite.
Acenderam uma fogueira numa concavidade, em meio às raízes de um espinheiro que se alastrava, alto como uma árvore, retorcido pelos anos, mas robusto em todos os seus galhos.
Brotos cresciam nas extremidades de cada ramo.
Foram designados vigias, dois para cada turno. Os outros, depois que tinham comido, embrulharam-se em capa e cobertor e dormiram. Os hobbits se deitaram num canto sozinhos, sobre um monte de samambaia velha. Merry estava com sono, mas Pippin agora parecia curiosamente inquieto. A samambaia estalava e farfalhava conforme ele se virava de um lado para o outro.
— Qual é o problema? — perguntou Merry. — Está deitado num formigueiro?
— Não — disse Pippin —, mas não me sinto confortável. Fico pensando quanto tempo faz que não durmo numa cama.
Merry bocejou.
— Descubra contando nos dedos! — disse ele. — Mas você deve saber quanto tempo faz que partimos de Lórien.
— Ah, aquilo... — disse Pippin. — Estou dizendo uma cama de verdade, num quarto.
— Bem, então Valfenda — disse Merry. — Mas esta noite eu poderia dormir em qualquer lugar.
— Você teve sorte, Merry — disse Pippin baixinho, depois de uma longa pausa. — Você estava na garupa de Gandalf.
— É, e daí?
— Conseguiu alguma notícia, alguma informação dele?
— Sim, bastante. Mais que o usual. Mas você escutou tudo ou a maior parte; estava perto e nós não estávamos falando nenhum segredo. Mas pode ir com ele amanhã, se acha que vai conseguir arrancar mais coisas dele — e se ele o aceitar.
— Posso? Muito bom! Mas ele está fechado, não está? Não mudou nada.
— Ah, mudou sim! — disse Merry, despertando um pouco de seu sono, e começando a imaginar o que estaria incomodando seu companheiro. Ele cresceu, ou algo assim. Pode ser ao mesmo tempo mais gentil e mais aterrador, mais alegre e mais solene do que antes, eu acho. Ele mudou, mas ainda não tivemos a oportunidade de ver o quanto. Mas pense na última parte daquela conversa com Saruman! Lembre-se de que Saruman já foi um superior de Gandalf. Presidente do Conselho, não importa o que isso seja exatamente. Ele era Saruman, o Branco. Gandalf é o Branco agora. Saruman voltou quando recebeu ordens, e seu cajado foi tomado; depois Gandalf lhe disse para ir, e ele simplesmente foi!
— Bem, se Gandalf mudou, então está mais reservado do que nunca, e isso é tudo — argumentou Pippin. — Aquela... bola de vidro, também. Ele pareceu muito satisfeito com ela. Sabe ou supõe algo sobre ela. Mas ele nos conta o que é? Não, nem uma palavra. Mas fui eu quem a apanhou e a impediu de rolar para dentro de uma poça. Aqui, vou ficar com isso, meu rapaz — e isso é tudo o que ele disse. Fico pensando no que seria aquilo. Era tão pesada. — A voz de Pippin ficou muito baixa, como se ele estivesse conversando consigo mesmo.
— Ei! — disse Merry. — Então é isso que o está incomodando? Agora, Pippin, meu rapaz, não se esqueça do conselho de Gildor — aquele que Sam costumava repetir: Não se intrometa nas coisas dos Magos, pois eles são sutis e se enfurecem com facilidade.
— Mas toda a nossa vida por meses tem sido uma longa intromissão nas coisas dos Magos — disse Pippin. — Eu gostaria de um pouco de informação, além do perigo. Gostaria de dar uma olhada naquela bola.
— Durma! — disse Merry. — Vai conseguir informação suficiente, mais cedo ou mais tarde. Meu caro Pippin, nenhum Túk jamais conseguiu superar um Brandebuque em questões de curiosidade. Mas eu lhe pergunto,isso são horas?
— Está certo! Qual é o problema em eu dizer que gostaria de dar um a olhada naquela pedra? Sei que não posso tê-la, com o velho Gandalf sentado em cima dela, como uma galinha chocando um ovo. Mas não ajuda muito não ouvir de você nada além de um você-não-pode-tê-la-então-durma!
— Bem, que mais eu poderia dizer? — perguntou Merry. — Sinto muito Pippin, mas você realmente vai ter de esperar até amanhã. Ficarei tão curioso quanto você desejar depois do desjejum, e vou ajudar de todas as maneiras que puder no engabela-mago. Mas não consigo mais ficar acordado. Se bocejar um pouco mais, meu rosto vai rachar de orelha a orelha. Boa noite!
Pippin não disse mais nada. Agora estava quieto, mas o sono continuava distante, e não o encorajava o som da respiração suave de Merry, que adormecera alguns minutos depois de ter dito boa noite. O pensamento do globo negro parecia ficar mais forte enquanto tudo ao redor foi ficando em silêncio. Pippin sentia de novo o peso dele em suas mãos, e via outra vez as misteriosas profundezas negras dentro das quais ele tinha olhado por um momento. Agita do, virou-se para o outro lado, tentando pensar em alguma outra coisa.
Finalmente não pôde agüentar mais, Levantou-se e olhou ao redor. Estava frio, e ele se embrulhou em sua capa. A lua brilhava branca e fria no fundo do vale, e as sombras dos arbustos eram negras. Por toda a volta se deitavam figuras adormecidas, Os dois guardas não estavam à vista: estavam em cima da colina, talvez, ou escondidos pela samambaia. Movido por algum impulso que não compreendia, Pippin caminhou suavemente até onde Gandalf estava deitado.
Olhou para ele. O mago parecia estar dormindo, mas as pálpebras não estavam completamente fechadas: havia um brilho de olhos sob os longos cílios, Pippin recuou depressa. Mas Gandalf não fez qualquer sinal; atraído para a frente mais uma vez, meio contra sua vontade, o hobbit se arrastou de novo por trás da cabeça do mago. Ele estava enrolado num cobertor, com a capa estendida por cima; bem perto dele, entre seu flanco direito e seu braço dobrado, havia uma elevação, algo redondo embrulhado num pano escuro; parecia que a mão de Gandalf tinha escorregado dela e caído ao chão.
Mal conseguindo respirar, Pippin chegou mais perto, passo a passo.
Finalmente se ajoelhou. Então estendeu as mãos sorrateiramente, e levantou o embrulho devagar: não parecia tão pesado quanto ele esperara. “Apenas algum pacote de ninharias, talvez, afinal de contas”, pensou ele, com uma estranha sensação de alívio, mas não colocou o pacote de volta no lugar. Parou um instante segurando-o nas mãos. Então ocorreu-lhe uma idéia. Afastou-se na ponta dos pés, apanhou uma pedra grande e voltou..
Rapidamente agora retirou o pano, embrulhou a pedra nele e, ajoelhando-se, colocou-o de volta perto da mão do mago. Então finalmente olhou para a coisa que tinha descoberto. Ali estava ela: um globo liso de cristal, agora escuro e sem brilho, jazendo a descoberto diante de seus joelhos. Pippin o ergueu, cobriu-o depressa com a própria capa, e deu meia volta para retornar à sua cama. Nesse momento, Gandalf se mexeu dormindo, e murmurou algumas palavras: pareciam ser de uma língua estranha; sua mão tateou e agarrou a pedra embrulhada; então o mago suspirou e não se mexeu mais.
— Seu tolo imbecil — murmurou Pippin para si mesmo. — Vai se meter numa encrenca terrível, Ponha isso de volta, rápido! — Mas agora ele percebia que seus joelhos tremiam, e não ousou se aproximar do mago o suficiente para alcançar o embrulho.
“Nunca vou conseguir colocá-lo de volta agora sem acordar Gandalf “, pensou ele, “não até que eu esteja um pouco mais calmo. Então posso muito bem dar uma olhada primeiro. Mas não aqui!” Afastou-se sorrateiramente e sentou-se sobre um montículo verde não muito distante de sua cama. A lua espiava por sobre a borda do valezinho.
Pippin estava sentado com os joelhos dobrados e a bola entre eles.
Abaixou-se muito sobre ela, como uma criança faminta sobre um prato de comida, num canto longe dos outros. Colocou de lado a capa e olhou para ela. O ar parecia parado e tenso ao seu redor. Primeiro o globo estava escuro, completamente negro, com o luar reluzindo sobre a superfície. Então apareceu um brilho fraco pulsando no centro dele, que prendia seus olhos, de modo que agora Pippin não conseguia desviar o olhar. Logo todo o interior parecia estar em chamas; a bola estava girando, ou as luzes lá dentro estavam virando.
De repente se apagaram.
Pippin soltou um suspiro e fez um esforço, mas permaneceu curvado, e depois ficou rígido; seus lábios se moveram sem fazer ruído por uns instantes. Então, com um grito estrangulado, caiu para trás e ficou imóvel no chão.
O grito foi agudo. Os guardas saltaram dos barrancos. Todo o acampamento logo ficou em polvorosa.
— Então, este é o ladrão — disse Gandalf. Jogou depressa sua capa sobre o globo. — Mas você, Pippin! Este é um acontecimento lamentável! — Ajoelhou-se ao lado do corpo de Pippin: o hobbit estava deitado de costas, rígido, com olhos cegos na direção do céu.
— O feitiço! Que mal terá esse hobbit causado a si mesmo, e a todos nós? — O rosto do mago estava contraído e lívido.
Pegou a mão de Pippin e curvou-se sobre seu rosto, tentando escutar-lhe a respiração; depois colocou a mão sobre a fronte. O hobbit estremeceu.
Seus olhos se fecharam.
Soltou um grito e sentou-se, olhando espantado para todos os rostos à sua volta, pálidos ao luar.
— Isso não é para você, Saruman! — gritou ele numa voz aguda e fraca, afastando-se de Gandalf. — Vou mandar buscá-lo imediatamente. Está entendendo? Diga apenas isso! — Então Pippin esforçou-se para se levantar e escapar, mas Gandalf o segurou com delicadeza e firmeza.
— Peregrin Túk! — disse ele. — Volte!
O hobbit relaxou o corpo e caiu para trás, segurando na mão do mago.
— Gandalf! — exclamou ele. — Gandalf! Perdôe-me!
— Perdoá-lo? — disse o mago. — Diga-me primeiro o que fez!
— Eu, eu peguei a bola e olhei para ela — gaguejou Pippin —, e vi coisas que me fizeram sentir medo. E queria me afastar, mas não consegui. Então ele veio e me interrogou; e olhou para mim, e, e isso é tudo.
— Isso não serve — disse Gandalf asperamente. — O que você viu, e o que você disse?
Pippin fechou os olhos e estremeceu, mas não disse nada. Todos o olhavam em silêncio, com a exceção de Merry, que se virou para o outro lado. Mas o rosto de Gandalf ainda estava inflexível.
— Fale! — disse ele.
Numa voz baixa e hesitante, Pippin começou outra vez, e lentamente suas palavras foram ficando mais claras e fortes.
— Vi um céu escuro, e altas ameias — disse ele. — E pequenas estrelas. Tudo parecia muito longínquo e muito distante no tempo, mas, apesar disso, nítido e frio. Então as estrelas desapareceram e reapareceram — estavam sendo bloqueadas por seres com asas. Muito grandes, eu acho, realmente; mas no cristal pareciam morcegos rodeando a torre. Tive a impressão de que havia nove deles. Um começou a voar na minha direção, ficando cada vez maior. Tinha um horrível — não, não! Não posso dizer.
— Tentei fugir, porque achei que ele ia voar para fora; mas quando ele tinha coberto todo o globo desapareceu. Então ele veio. Não falou de modo que eu pudesse ouvir palavras. Apenas olhou, e eu entendi.
— “Então você voltou? Por que deixou de dar notícias por tanto tempo?”
— Não respondi. Ele disse: “Quem é você? Eu ainda não respondi, mas isso me machucava terrivelmente; e ele me pressionou, então eu disse: “Um hobbit.”
— Então de repente ele pareceu me enxergar, e riu de mim. Foi cruel. Foi como ser cortado a facadas. Eu lutei. Mas ele disse: “Espere um momento! Logo vamos nos encontrar de novo. Diga a Saruman que esse regalo não é para ele. Vou mandar buscá-lo imediatamente. Está entendendo? Diga apenas isso!”
— Então ele olhou para mim todo satisfeito. Senti que estava sendo despedaçado. Não, não! Não posso falar mais nada. Não me lembro de mais nada.
— Olhe para mim! — disse Gandalf
Pippin olhou direto nos olhos dele. O mago prendeu o olhar do hobbit por um momento em silêncio. Então seu rosto ficou mais suave, e a sombra de um sorriso apareceu.
Colocou a mão de leve sobre a cabeça de Pippin.
— Tudo bem! — disse ele. — Não diga mais nada! Você não se tornou mau. Não há mentira em seus olhos, como eu receava. Mas ele não falou com você por muito tempo. Um tolo, mas um tolo honesto, você continua sendo, Peregrin Túk. Pessoas mais sábias poderiam ter-se saído pior numa situação dessas. Mas veja bem! Você foi salvo, e todos os seus amigos também, principalmente pela boa sorte, como se diz. Não pode contar com ela uma segunda vez. Se ele o tivesse interrogado, ali e naquela hora, é quase certeza que você lhe teria contado tudo o que sabe, para a ruína de todos nós. Mas ele foi ávido demais. Não queria apenas informação. Queria você, rápido, de modo que pudesse negociar com você na Torre Escura, sem pressa. Não trema! Se você se intromete nos assuntos dos Magos, deve estar preparado para coisas desse tipo. Mas vamos lá! Eu o perdôo. Console-se! As coisas não acabaram tão mal quanto poderiam.
Levantou Pippin com delicadeza e o conduziu de volta para a sua cama.
Merry foi atrás, e sentou-se ao lado do companheiro.
— Deite-se aí e descanse, se puder, Pippin! — disse Gandalf — Confie em mim. Se sentir de novo um prurido nas mãos, diga-me! Essas coisas têm cura. Mas de qualquer forma, meu caro hobbit, não coloque um embrulho de pedra sob meu cotovelo outra vez! Agora vou deixá-los por uns momentos.
Com isso Gandalf voltou para a companhia dos outros, que ainda estavam parados diante da pedra de Orthanc, pensativos e preocupados.
— O perigo chega na noite quando menos esperamos — disse ele. — Escapamos por pouco!
— Como está o hobbit Pippin? — perguntou Aragorn.
— Acho que tudo ficará bem agora — respondeu Gandalf — Ele não ficou preso por muito tempo, e os hobbits têm um poder de recuperação surpreendente. A memória, ou o horror que a acompanha, provavelmente vão desaparecer depressa. Depressa demais, talvez. Você poderia, Aragorn, pegar a pedra de Orthanc e guardá-la? É uma tarefa perigosa.
— Realmente perigosa, mas não para todos — disse Aragorn. — Há uma pessoa que poderá reivindicá-la por direito. Pois este é certamente o palantír de Orthanc, do tesouro de Elendil, colocado aqui pelos Reis de Gondor. Agora minha hora se aproxima. Vou ficar com ele!
Gandalf olhou para Aragorn e então, para a surpresa dos outro, ergueu a Pedra coberta, fez uma reverência e a entregou.
— Receba-o, senhor! — disse ele —, como garantia de outras coisas que serão devolvidas. Mas se posso aconselhá-lo para seu próprio bem, não o use... ainda! Tenha cuidado!
— Quando é que fui apressado ou descuidado, eu que esperei e me preparei por tantos longos anos? — disse Aragorn.
— Nunca ainda. Então não tropece no final da estrada — respondeu Gandalf. — Mas pelo menos guarde esse objeto em segredo. Você, e todos os outros aqui presentes! O hobbit, Peregrin, mais que todos, não deve saber onde foi guardado. O acesso maligno pode acometê-lo outra vez. Pois, infelizmente, ele o segurou e olhou, o que nunca deveria ter acontecido. Ele nunca deveria ter tocado na pedra em Isengard, e naquela ocasião eu deveria ter sido mais rápido. Mas minha mente estava ocupada com Saruman, e eu não percebi imediatamente a natureza da Pedra. Depois eu fiquei cansado, e enquanto estava ponderando sobre tudo o sono me dominou. Agora eu sei!
— Sim, não resta dúvida — disse Aragorn. — Finalmente ficamos sabendo qual era o elo entre Isengard e Mordor, e como funcionava. Muita coisa está explicada.
— Estranhos poderes têm nossos inimigos, e estranhas fraquezas! Disse Théoden. — Mas há muito tempo se diz: com freqüência o mal com o mal se apaga.
— Isso acontece muitas vezes — disse Gandalf. — Mas desta vez fomos estranhamente favorecidos pela sorte. Talvez. Esse hobbit me salvou de cometer um erro grave.
Tinha pensado se deveria ou não investigar eu mesmo essa Pedra, para descobrir suas utilidades. Se tivesse feito isso, eu mesmo me teria revelado a ele. Ainda não estou pronto para uma prova dessas, se é que realmente algum dia estarei.
Mas mesmo que encontrasse a força para me esquivar seria desastroso que ele me visse, agora — antes da hora em que todo o segredo já não trará mais vantagem alguma.
— Acho que essa hora já chegou — disse Aragorn.
— Ainda não — disse Gandalf. — Ainda resta um pouco de dúvida, da qual devemos tirar proveito. O Inimigo, está claro, pensou que a Pedra estivesse em Orthanc – e por que não deveria? Por esse motivo, pensou também que o hobbit fosse um prisioneiro lá, levado por Saruman a olhar no cristal e a se atormentar.
Aquela mente escura ficará repleta agora da voz e do rosto do hobbit, e de expectativas: vai demorar um pouco até que ele descubra o erro que cometeu. Temos de agarrar essa oportunidade proporcionada pelo tempo. Temos estado muito tranqüilos.
Precisamos nos mexer. A vizinhança de Isengard não é um bom lugar para permanecermos agora. Vou imediatamente na frente com Peregrin Túk. Isso será melhor para ele do que ficar deitado no escuro enquanto os outros dormem.
— Vou ficar com Éomer e dez Cavaleiros — disse o rei. — Deverão cavalgar comigo no início da manhã. O resto pode ir com Aragorn e partir assim que estiverem dispostos.
— Como quiser — disse Gandalf — Mas vá na maior velocidade possível, para o abrigo das colinas e do Abismo de Helm.
Nesse momento, uma sombra caiu sobre eles. O luar claro pareceu de repente bloqueado. Vários Cavaleiros gritaram e se agacharam, com as mãos na cabeça, como se tentassem proteger-se de um golpe que viesse de cima: foram dominados por um medo cego e um frio mortal.
Encolhendo-se, ergueram os olhos. Uma enorme figura alada passou cobrindo a lua como uma nuvem negra. Fez um rodopio e foi para o norte, voando mais rápido do que qualquer vento da Terra-média. As estrelas se apagavam diante dela. Mas logo sumiu.
Levantaram-se, rígidos como pedras. Gandalf estava olhando para cima, os braços estendidos para baixo, as mãos crispadas.
— Nazgúl! — gritou ele. — O mensageiro de Mordor. A tempestade se aproxima! Os Nazgúl atravessaram o Rio! Cavalguem, cavalguem! Não esperem pela aurora! Que os rápidos não esperem pelos lentos. Cavalguem!
Saiu de um salto, chamando Scadufax enquanto corria. Aragorn o seguiu.
Indo em direção a Pippin, Gandalf pegou-o em seus braços.
— Você virá comigo desta vez — disse ele. — Scadufax vai lhe mostrar como vôa. Depois correu para o lugar onde tinha dormido. Scadufax já estava lá. Pendurando no ombro a pequena bolsa onde guardava todas as suas coisas, o mago saltou sobre o lombo do cavalo. Aragorn levantou Pippin e o colocou nos braços de Gandalf, embrulhado em capa e cobertor.
— Até logo! Partam logo! — gritou Gandalf — Vamos, Scadufax!
O grande cavalo empinou a cabeça. Sua cauda esvoaçante brilhou no luar. Então deu um salto à frente, levantando poeira, e se foi como o Vento Norte que sopra das montanhas.
— Uma bela noite de sono! — disse Merry para Aragorn. — Algumas pessoas têm uma grande sorte. Pippin não queria dormir, e queria cavalgar com Gandalf — e lá vai ele! Em vez de ser transformado numa pedra, e ficar plantado aqui para sempre, como uma advertência.
— Se fosse você o primeiro a erguer a pedra de Orthanc, e não ele, qual seria a situação agora? — disse Aragorn. — Você poderia ter-se saído pior. Quem pode saber? Mas agora sua sorte é vir comigo, eu receio. Imediatamente. Vá e se apronte, e traga qualquer coisa que Pippin tenha deixado para trás. Apresse-se!
Scadufax voava pelas planícies, sem que fosse preciso guiá-lo ou incitá-lo. Menos de uma hora se passara, e eles já tinham alcançado e atravessado os Vaus do Isen.
O Túmulo dos Cavaleiros, com suas lanças frias, jazia cinzento atrás deles.
Pippin estava se recuperando. Estava quente, mas o vento em seu rosto era intenso e refrescante. Estava com Gandalf. O terror da pedra e da sombra hedionda sobre a lua ia desaparecendo, coisas deixadas para trás na névoa das montanhas, ou num sonho passageiro. Respirou fundo.
— Não sabia que você cavalgava em pêlo, Gandalf — disse ele. — Você está sem sela ou rédea!
— Não cavalgo à maneira dos elfos, a não ser em Scadufax — disse Gandalf.
— Mas Scadufax não aceita rédeas. Você não o cavalga: ele está disposto a carregá-lo — ou não. Se estiver disposto, isso é o suficiente. Então ele cuidará para que você permaneça sobre seu lombo, a não ser que você queira atirar-se no ar.
— Com que velocidade ele está indo? — perguntou Pippin. — Rápido como o vento, mas com muita suavidade. E como são leves suas passadas!
— Agora ele está correndo como o cavalo mais rápido poderia galopar — respondeu Gandalf —, mas isso para ele não é rápido. O terreno está subindo um pouco aqui, e está mais acidentado do que estava além do rio. Mas veja como as Montanhas Brancas estão se aproximando sob as estrelas! Mais adiante estão os picos de Thrihyrne como lanças negras. Não vai demorar muito para chegarmos até a bifurcação da estrada e atingirmos a Garganta do Abismo, onde foi travada a batalha, duas noites atrás.
Pippin ficou em silêncio outra vez por um tempo. Ouviu Gandalf cantando baixinho para si mesmo, murmurando trechos curtos de rimas em muitas línguas, enquanto as milhas corriam debaixo deles. Finalmente o mago passou a uma canção da qual o hobbit conseguiu entender as palavras: alguns versos chegaram claros aos seus ouvidos através do vento apressado.
Grandes reis e navios
Três vezes três
Que trouxeram da terra submersa
Pelo mar na fluidez?
Sete estrelas, sete pedras
Branca árvore talvez.
— O que está dizendo, Gandalf? — perguntou Pippin.
— Estava apenas repassando algumas das Rimas da Tradição em minha cabeça — respondeu o mago. — Os hobbits, eu suponho, esqueceram-nas, mesmo aqueles que as conheciam.
— Não, nem todas — disse Pippin. — E temos muitas que são nossas, que talvez não fossem de seu interesse. Mas nunca ouvi essa. De que se trata as sete estrelas e sete pedras?
— É sobre os palantíri dos Reis de Outrora — disse Gandalf.
— Que são eles?
— O nome significa que enxerga de longe. A pedra de Orthanc era um deles.
— Então ela não foi feita... não foi feita — Pippin hesitou — pelo Inimigo?
— Não — disse Gandalf — Nem por Saruman. Está além de sua arte, e além da arte de Sauron também. Os palantír vieram de além do Ponente, de Eldamar. Os Noldor os fizeram. O próprio Fêanor, talvez, os tenha feito, em dias tão distantes que o tempo não pode ser medido em anos. Mas não há nada que Sauron não possa desviar para usos malignos. Pobre Saruman! Foi sua desgraça, percebo agora. Perigosos para todos nós são os instrumentos de uma arte mais profunda do que a possuída por nós mesmos. Mesmo assim ele deve carregar a culpa. Tolo!, quis mantê-lo em segredo, para seus próprios interesses. Nunca disse uma palavra sobre a pedra a ninguém do Conselho. Não tínhamos pensado ainda no destino dos palantíri de Gondor em suas guerras desastrosas. Pelos homens foram praticamente esquecidos. Mesmo em Gondor, eram um segredo conhecido por poucos; em Arnor, eram lembrados apenas numa rima da tradição entre os Dúnedain.
— Com que finalidade os Homens de Outrora os usavam? — perguntou Pippin, deliciado e atônito ao conseguir respostas para tantas perguntas, e imaginando o quanto aquilo iria durar.
— Para enxergar à distância, e conversar em pensamento uns com os outros — disse Gandalf. — Dessa maneira protegeram e uniram por muito tempo o reino de Gondor. Colocaram Pedras em Minas Anor, em Minas Ithil e em Orthanc, no círculo de Isengard. A principal, a pedra mestra, estava sob a Cúpula das Estrelas em Osgiliath, antes de sua destruição. As outras três estavam muito distantes, no norte. Na casa de Elrond, conta-se que elas estavam em Armúminas, e em Amon Súl, e a Pedra de Elendil estava sobre as Colinas das Torres, que olhavam na direção de Mithlond no Golfo de Lúri, onde jazem os navios cinzentos. — Cada palantír se comunicava com os outros, mas todos os que estavam em Gondor estavam sempre abertos à vista de Osgiliath. Agora parece que, assim como a rocha de Orthanc resistiu às tempestades do tempo, também o palantír daquela torre permaneceu. Mas sozinho ele não poderia fazer nada além de ver pequenas imagens de coisas distantes e dias remotos. Muito útil, sem dúvida, ele era para Saruman; apesar disso, parece que ele não ficou satisfeito. Olhou mais e mais além, até que lançou seu olhar sobre Barad-dûr. Então foi pego!
— Quem pode saber onde estão agora as Pedras perdidas de Arnor e Gondor, enterradas ou debaixo de águas profundas? Acho que esta era a Pedra de Ithil, pois ele tomou Minas Ithil há muito tempo, transformando-o num lugar maligno: Minas Morgul ficou sendo seu nome.
— Agora é fácil supor com que rapidez o olho errante de Saruman caiu e ficou preso na armadilha, e como, desde então, ele foi persuadido de longe, e intimidado, quando a persuasão não surtia efeito. O feitiço contra o feiticeiro, o falcão debaixo do pé da águia, a aranha numa teia de aço! Por quanto tempo, fico imaginando, foi ele forçado a procurar com freqüência esta pedra para inspeções e instruções, e por quanto tempo a pedra de Orthanc foi de tal modo inclinada na direção de Barad-dûr que, se qualquer pessoa sem uma força de vontade extraordinária agora olhar dentro dela, a pedra levará sua mente e vista rapidamente para lá? E que poder tem ela de atrair para si as pessoas! Acaso eu não o senti? Mesmo agora meu coração deseja testar minha força de vontade sobre ela, para ver se eu não conseguiria arrancá-la dele e voltá-la para onde eu quisesse — para olhar através dos amplos mares de água e de tempo até atingir Tirion, a Bela, e perceber a mão e a mente inimagináveis de Ranor trabalhando, enquanto tanto a Árvore Branca como a Dourada estivessem em flor! — Gandalf suspirou e ficou em silêncio.
— Gostaria de ter sabido tudo isso antes — disse Pippin. — Eu não tinha noção do que estava fazendo.
— Ah, sim, você tinha — disse Gandalf — Sabia que estava se comportando de modo errado e tolo, e disse isso para si mesmo, mas não escutou. Eu não lhe disse tudo isso antes porque foi só meditando sobre tudo o que aconteceu que finalmente entendi, neste momento em que cavalgamos juntos. Mas se eu tivesse falado antes isso não teria diminuído seu desejo, ou feito com que ele ficasse mais fácil de resistir. Pelo contrário. Não! A mão queimada ensina melhor. Depois disso o conselho sobre o fogo chega ao coração.
— É verdade — disse Pippin. — Se todas as sete pedras fossem colocadas diante de mim agora, eu fecharia os olhos e poria as mãos no bolso.
— Muito bem! — disse Gandalf. — Era isso que eu esperava.
— Mas eu gostaria de saber... — começou Pippin.
— Peço clemência! — exclamou Gandalf — Se fornecer informações for a cura para sua curiosidade, vou passar o resto de meus dias respondendo a você. Que mais quer saber?
— Os nomes das estrelas, e de todos os seres vivos, e a história completa da Terra média, e do Sobrecéu e dos Mares Divisores — disse rindo Pippin. — É claro! Por que menos? Mas esta noite não estou com pressa. Por enquanto estava só pensando sobre a sombra negra. Ouvi-o gritar “mensageiro de Mordor”, que era aquilo? Que poderia fazer em Isengard?
— Era um Cavaleiro Negro com asas, um Nazgúl — disse Gandalf. Poderia tê-lo levado para a Torre Escura.
— Mas não veio em minha busca, veio? — vacilou Pippin. — Quero dizer, ele não sabia que eu tinha...
— Claro que não — disse Gandalf. — São duzentas léguas ou mais em linha reta de Barad-dûr até Orthanc, e até um Nazgúl levaria algumas horas para voar entre os dois lugares. Mas Saruman certamente olhou dentro da Pedra desde o ataque dos orcs, e não duvido que tenha sido lida uma parte de seus pensamentos secretos maior do que ele desejava. Um mensageiro foi enviado para descobrir o que ele está fazendo. E depois do que aconteceu esta noite um outro virá, eu acho, e depressa. Assim Saruman chegará ao último aperto na morsa na qual colocou a própria mão. Ele não tem nenhum prisioneiro para enviar. Não tem nenhuma Pedra com a qual possa enxergar, e não pode responder aos chamados. Sauron só poderá crer que ele está detendo o prisioneiro e se recusando a usar a Pedra. Não vai adiantar nada Saruman dizer a verdade ao mensageiro. Isengard pode estar arruinada, mas ele ainda está a salvo em Orthanc. Portanto, quer ele queira ou não, dará a impressão de ser um rebelde. E contudo ele nos rejeitou, para evitar exatamente que isso acontecesse! O que fará numa situação dessas, não posso adivinhar. Acho que ele ainda tem poder, enquanto permanecer em Orthanc, para resistir aos Nove Cavaleiros. Pode ser que ele tente. Pode ser que tente prender o Nazgúl, ou pelo menos matar a coisa na qual ele agora cavalga pelos ares. Nesse caso, que Rohan cuide de seus cavalos!
— Mas não sei dizer se o resultado será bom ou ruim para nós. Pode ser que os planos do Inimigo sejam confundidos, ou atrasados por sua ira em relação a Saruman. Pode ser que ele saiba que eu estava lá e fiquei na escada de Orthanc — com hobbits pendurados em minha cauda. Ou que um herdeiro de Elendil ainda vive e ficou ao meu lado. Se Língua de Cobra não foi iludido pela armadura de Rohan, ele poderá se lembrar de Aragorn e do título que ele reivindicou. É isto que eu temo. É por isso que precisamos fugir — não do perigo, mas em direção a um perigo maior. Cada passada de Scadufax o leva para mais perto da Terra da Sombra, Peregrin Túk.
Pippin não respondeu, mas agarrou-se à capa, como se um frio repentino o golpeasse. Terras cinzentas passavam embaixo deles.
— Veja agora! — disse Gandalf — Os vales do Folde Ocidental estão se abrindo diante de nós. Aqui retornamos à estrada que leva ao leste. A sombra escura mais à frente é a abertura da Garganta do Abismo. Daquele lado fica Aglarond, e as Cavernas Cintilantes. Não me peça para falar sobre elas. Pergunte a Gimli, se vocês se encontrarem, e pela primeira vez na vida poderá ouvir uma resposta mais longa do que deseja. Você não vai poder ver as cavernas com os próprios olhos, não nesta viagem. Logo elas já estarão distantes lá atrás.
— Pensei que você ia parar no Abismo de Helm! — disse Pippin. Então, para onde está indo?
— Para Minas Tirith, antes que os mares da guerra a envolvam.
— Ah! E a que distância fica?
— Léguas e mais léguas — respondeu Gandalf. — Três vezes mais longe que as moradias do Rei Théoden, e elas ficam a mais de cem milhas a leste deste lugar, num vôo dos mensageiros de Mordor. Scadufax deve ir por uma estrada mais longa. Qual deles se mostrará mais rápido?
— Vamos cavalgar até o nascer do dia, para o qual ainda faltam algumas horas. Depois disso, até mesmo Scadufax precisará descansar, em alguma reentrância das montanhas: em Edoras, eu espero. Durma, se conseguir! Poderá ver o primeiro raio da aurora sobre o teto dourado da casa de Eorl. E dali a dois dias verá a sombra púrpura do Monte Mindollum e as muralhas da Torre de Denethor, brancas pela manhã.
— Adiante agora, Scadufax! Corra, meu bom cavalo, corra como nunca correu antes! Agora chegaremos às terras onde você foi criado e das quais conhece cada pedra. Corra agora! A esperança repousa na rapidez!
Scadufax empinou a cabeça e soltou um relincho, como se um corneteiro o tivesse convocado para alguma batalha. Então projetou-se para a frente.
Saía fogo de suas patas: a noite corria acima dele.
Enquanto adormecia lentamente, Pippin teve uma estranha sensação: ele e Gandalf estavam imóveis como pedras, sentados sobre a estátua de um cavalo que corria, enquanto o mundo rolava sob os pés dele com um grande barulho de vento.
SMÉAGOL DOMADO
— Bem, senhor, estamos numa enrascada, sem dúvida — disse Sam Gamji.
Parou ao lado de Frodo desanimado, com os olhos caídos, e espiou a escuridão, franzindo os olhos.
Era a terceira noite desde que tinham fugido da Comitiva, pelo que podiam calcular: tinham quase perdido a noção das horas durante as quais lutaram para escalar as encostas nuas e os rochedos dos Emyn Muil, algumas vezes refazendo os passos porque não conseguiam encontrar nenhum caminho que conduzisse adiante, outras descobrindo que tinham andado em círculo, retornando ao ponto onde tinham estado horas antes. Apesar disso, tudo somado, avançaram continuamente para o leste, sempre procurando ficar o mais perto possível do lado externo daquele emaranhado de colinas estranho e retorcido. Mas com freqüência deparavam com faces externas que eram íngremes, altas e intransponíveis, franzindo-se por sobre a planície—, para além de suas bordas desmoronadas jaziam pântanos esbranquiçados e em decomposição onde nada se movia e não se via nem mesmo um pássaro.
Os hobbits encontravam-se agora sobre a crista de um alto penhasco, desolado e nu, cujos pés estavam envolvidos numa névoa; atrás deles se erguia a irregular região montanhosa, coroada por nuvens flutuantes. Um vento gelado soprava do leste. Diante deles, a noite se formava por sobre as terras disformes; seu verde doentio ia dando lugar agora a um castanho lúgubre. Mais ao longe e à direita, o Anduin, que surgira vacilante em intervalos ensolarados durante o dia, estava agora oculto em sombras. Mas os olhos dos hobbits não se voltavam para além do Rio, na direção de Gondor, onde estavam seus amigos, nas terras dos homens.
Dirigiam-se para o sul e para o leste, para onde, no limiar da noite iminente, uma linha escura pairava, como longínquas montanhas de fumaça imóvel. De quando em quando, um brilho fraco e vermelho aparecia na parte de cima, na linha formada entre a terra e o céu.
— Que enrascada! — disse Sam. — De todas as terras de que já tivemos notícia, este é o único lugar que não queremos ver mais de perto; exatamente o lugar que estamos tentando atingir! E também aonde não podemos chegar, de maneira alguma. Ao que parece, viemos por um caminho completamente errado. Não podemos descer; e se descêssemos, iríamos ver que toda aquela terra verde é um brejo nojento, eu garanto. Que nojo! Está sentindo o cheiro? — Sam farejou o vento.
— Sim, estou sentindo — disse Frodo. Mas não se mexeu, e seus olhos permaneceram fixos, em direção à linha escura e à chama trêmula. — Mordor! — murmurou ele quase sem fôlego. — Se devo ir para lá, gostaria de poder ir logo e pôr um fim a tudo isso! — Estremeceu. O vento estava frio, e mesmo assim carregado com o odor de podridão fria. — Bem — disse ele, finalmente desviando os olhos. — Não podemos ficar aqui a noite toda, com ou sem enrascada. Precisamos encontrar um lugar mais protegido, e acampar mais uma vez; talvez um outro dia nos mostre um caminho.
— Ou um outro dia, e outro e outro — murmurou Sam. — Ou talvez dia nenhum. Viemos pelo caminho errado.
— Fico pensando — disse Frodo. — Acho que é meu destino ir para aquela Sombra lá adiante, então encontrarei um caminho. Mas quem irá indicá-lo a mim: o bem ou o mal? A esperança que tínhamos repousava na rapidez. O atraso favorece o Inimigo — e aqui estou eu: atrasado. Será que é a vontade da Torre Escura que está nos guiando? Todas as minhas escolhas acabaram se mostrando ruins. Deveria ter abandonado a Comitiva muito antes, e vindo do norte, a leste do Rio e dos Emyn Muil, e depois sobre o chão seco da Planície da Batalha até as passagens para Mordor. Mas agora não é possível, para nós dois sozinhos, encontrar um caminho de volta, e os orcs estão espreitando na margem leste. Cada dia que passa é um dia precioso que perdemos. Estou cansado, Sam. Não sei o que se deve fazer. Quanto ainda temos de comida?
— Apenas aqueles, como se chamam, lembas, Sr. Frodo. Um belo suprimento. Mas são melhores que nada, de longe. Na verdade, jamais pensei, na primeira vez que mordi um deles, que eu algum dia poderia querer variar de comida. Mas agora eu quero: um pouco de pão comum, e uma caneca — bem, meia caneca — de cerveja desceriam melhor.
Venho carregando meu equipamento de cozinha desde nosso último acampamento, e para quê? Não há nada com que possamos acender uma fogueira, para início de conversa; e nada para cozinhar, nem mesmo capim!
Viraram-se e foram descendo até uma concavidade rochosa. O sol, que se dirigia para o oeste, estava preso entre nuvens, e a noite se aproximava rapidamente.
Dormiram como puderam, pois estava frio; revezaram-se num recesso em meio a grandes pináculos pontudos de pedra desgastada pelo tempo; pelo menos estavam abrigados do Vento Leste.
— Viu-os de novo, Sr. Frodo? — perguntou Sam, quando os dois estavam sentados, com os corpos endurecidos e enregelados, mastigando bolos de lembas, no cinza frio do início da manhã.
— Não — disse Frodo. — Não escutei e não vi nada nas últimas duas noites.
— Nem eu — disse Sam. — Grrr! Aqueles olhos realmente me assustaram! Mas talvez o tenhamos espantado finalmente, o caviloso miserável. Gollum! Vou dar um gollum na garganta dele, se um dia lhe puser as mãos no pescoço.
— Espero que nunca precise fazer isso — disse Frodo. — Não sei como nos seguiu, mas pode ser que tenha perdido nosso rastro outra vez, como você está dizendo. Nesta região seca e fria não se pode deixar muitas pegadas, nem muito cheiro, mesmo para seu nariz farejador.
— Espero que seja isso mesmo — disse Sam. — Gostaria que pudéssemos nos livrar dele para sempre.
— Eu também — disse Frodo -, mas ele não é meu maior problema. Gostaria que pudéssemos sair destas colinas! Odeio-as. Sinto-me completamente nu no lado leste, enfiado aqui sem nada, a não ser as planícies mortas, entre mim e aquela Sombra mais adiante. Há um Olho nela. Venha! Precisamos descer hoje de qualquer jeito.
Mas aquele dia passou e quando a tarde já se apagava, dando lugar ao inicio da noite, eles ainda continuavam aos tropeços ao longo da cordilheira e sem encontrar um caminho para escaparem.
Algumas vezes, no silêncio daquela região desolada, imaginavam estar ouvindo ruídos longínquos atrás deles, uma pedra caindo, ou passadas imaginárias de pés batendo na pedra. Mas, quando paravam e ficavam quietos escutando, não ouviam mais nada, nada além do vento suspirando sobre as bordas dos rochedos — mas mesmo aquilo lhes dava a impressão de uma respiração chiando suavemente através de dentes afiados.
Durante todo aquele dia, a cordilheira externa dos Emyn Muil inclinara-se gradativamente para o norte, conforme eles iam lutando para avançar. Ao longo de sua borda agora se estendia uma ampla planície coberta de rochas quebradas e gastas, cortada de quando em quando por fossos semelhantes a trincheiras, que desciam íngremes até fendas profundas na face do penhasco. A fim de encontrar uma trilha nessas fendas, cada vez mais fundas e freqüentes, Frodo e Sam foram levados para a esquerda, a uma grande distância da borda, e não se deram conta de que por várias milhas estiveram descendo a colina, lentamente mas sem parar: o topo do penhasco ia afundando em direção ao nível das terras baixas.
Finalmente foram obrigados a parar. A cordilheira fazia uma curva fechada para o norte e era cortada por um abismo mais profundo. Do outro lado ela subia de novo, muitas braças num único salto: um grande penhasco cinzento assomava diante deles, que dava a impressão de ter sido cortado na vertical com um golpe de faca. Os hobbits não podiam continuar à frente, e tinham de virar para o oeste ou para o leste. Mas o oeste só os conduziria em direção a mais trabalho e atraso, de volta para o coração das colinas; o leste os levaria para o precipício externo.
— Não há outra escolha a não ser ir descendo este fosso, Sam — disse Frodo. — Vamos ver para onde ele conduz!
— Para um tombo feio, eu aposto! — disse Sam.
O fosso era mais longo e profundo do que parecera. Um pouco mais abaixo encontraram algumas árvores raquíticas e nodosas, as primeiras que viam em dias: na maioria, bétulas retorcidas, com um abeto aqui ou ali. Muitas dessas árvores estavam mortas e secas, mordidas até o cerne p elos ventos do leste.
Outrora, em dias mais amenos, deveria ter havido um belo conjunto de árvores no precipício, mas agora, depois de uns cinquenta metros, as árvores chegavam ao fim, embora velhos troncos quebrados se espalhassem por quase toda a borda do penhasco. O fundo do fosso, que se estendia ao longo da borda de uma falha na rocha, era áspero, cheio de pedras quebradas, e descia de modo abrupto. Quando finalmente saíram dele, Frodo se agachou e se inclinou à frente.
— Olhe! — disse ele. — Acho que descemos um longo trecho, ou então o penhasco afundou. Está muito mais baixo do que estava, e também parece mais fácil.
Sam se ajoelhou ao lado dele e com relutância espiou por sobre a borda, Depois ergueu os olhos para o grande penhasco, mais ao longe e à esquerda de onde estavam.
— Mais fácil! — grunhiu ele. — Bem, suponho que descer seja sempre mais fácil que subir. Aqueles que não podem voar, podem saltar!
— Mesmo assim, seria um grande salto — disse Frodo. — Cerca, bem ficou de pé por um instante, medindo com os olhos —, cerca de dezoito braças, eu acho. Não mais que isso,
— E isso é o bastante — disse Sam. — Ugh! Como eu odeio olhar de um lugar alto lá para baixo! Mas olhar é melhor que descer.
— Mesmo assim — disse Frodo. — Acho que deveríamos descer por aqui; e acho que vamos ter de tentar. Veja, a rocha aqui é bem diferente do que aquela que encontramos algumas milhas atrás. Deslizou e se fendeu.
A face externa realmente deixara de ser perpendicular, mas ainda se inclinava um pouco para fora. Parecia uma grande trincheira ou dique cujos alicerces tinham se alterado, de modo que seus cursos estavam todos trançados e desordenados, deixando grandes fissuras e bordas longas e inclinadas que em alguns lugares eram largas como escadas.
— E, se vamos tentar descer, é melhor tentarmos já. Está escurecendo cedo. Acho que uma tempestade vem aí.
A mancha enfumaçada das montanhas no leste se perdeu numa negrura mais profunda que já estava estendendo seus longos braços em direção ao oeste.
Ouvia-se o murmurar distante de trovões, trazido na brisa que ia ficando mais intensa. Frodo farejou o ar e olhou desconfiado para o céu. Passou o cinto por fora da capa e o apertou, colocando nas costas a mochila leve; então dirigiu-se para a borda.
— Vou tentar — disse ele.
— Muito bem! — disse Sam desanimado. — Mas eu vou primeiro.
— Você? — disse Frodo. — O que o fez mudar de idéia sobre descer? Não mudei de idéia. É apenas bom senso: que vá primeiro aquele que tem mais probabilidade de escorregar. Não quero cair em cima do senhor e derrubá-lo — é insensatez matar dois numa só queda.
Antes que Frodo pudesse detê-lo, Sam se sentou, passou as pernas por sobre a borda, e virou-se, tateando com os pés em busca de um apoio. É de duvidar que ele um dia tenha feito qualquer coisa mais corajosa a sangue frio, ou mais imprudente.
— Não, não! Sam, seu idiota! — disse Frodo. — Com certeza vai se matar indo desse jeito, sem nem olhar por onde está indo. Volte! — Pegou-o pelas axilas e o puxou de volta.
— Agora espere um pouco e tenha paciência! Disse ele. Então deitou-se no chão, debruçando-se sobre a borda e olhando para baixo: mas a luz parecia estar se apagando rapidamente, embora o sol ainda não se tivesse posto. — Acho que poderíamos conseguir — disse ele nesse momento. — De qualquer forma, eu poderia; e você também, se mantivesse a calma e me seguisse com cuidado.
— Não sei como pode ter certeza — disse Sam. — Veja bem, o senhor não pode enxergar o fundo com esta luz. E se atingirmos um ponto onde não haja nenhum lugar para apoiar os pés e as mãos?
— Voltaremos, eu suponho — disse Frodo.
— É fácil falar — objetou Sam. — Melhor esperar pela manhã, quando houver mais luz.
— Não! Não se eu puder evitar — disse Frodo, com uma estranha e súbita veemência.
— Não me siga até que eu volte ou o chame.
Agarrando com os dedos a borda rochosa da encosta, deixou-se descer suavemente, até que seus braços estivessem quase que totalmente esticados, seus pés encontraram uma saliência. — Um passo abaixo! — disse ele.
— E essa saliência fica mais larga à direita. Eu poderia ficar de pé lá sem segurar em lugar nenhum. Vou... — suas palavras foram interrompidas.
A escuridão apressada, agora se adensando com grande rapidez, precipitou-se do leste e engoliu o céu. Houve o ruído seco e cortante de um trovão bem acima deles.
Um relâmpago de fogo golpeou as colinas. Então veio uma rajada de vento incontrolável, e com ela, misturado ao seu rugido, chegou um guincho alto e agudo. Os hobbits tinham ouvido um grito exatamente igual lá longe no Pântano, quando estavam fugindo da Vila dos Hobbits, e mesmo lá, nas florestas do Condado, aquele som lhes congelara o sangue. No lugar deserto onde estavam agora, o pavor que provocava era ainda maior: perfurava-os com lâminas frias de medo e desespero, paralisando coração e respiração.
Sam caiu duro com o rosto virado para o chão. Involuntariamente, Frodo soltou as mãos da rocha e cobriu os ouvidos e a cabeça. Desequilibrou-se, escorregou e deslizou para baixo com um grito desesperado.
Sam o ouviu e se arrastou com dificuldade até a borda.
— Senhor, senhor! — chamou ele. — Senhor!
Não ouviu resposta. Viu-se tremendo da cabeça aos pés, mas tomou fôlego e mais uma vez gritou: — Senhor! — O vento parecia empurrar sua voz de volta para a garganta, mas conforme passava, rugindo fosso acima e por sobre as colinas, um grito fraco de resposta chegou aos ouvidos de Sam:
— Tudo bem, tudo bem! Estou aqui. Mas não consigo enxergar nada. Frodo estava chamando com uma voz fraca. Na verdade não estava muito longe.
Tinha escorregado, e não caído; num solavanco tinha ficado de pé sobre uma saliência larga, não muitos metros abaixo. Felizmente, a superfície da rocha naquele ponto se inclinava bastante para trás, e o vento o pressionara contra o penhasco, d e modo que ele não tinha caído.
Firmou-se um pouco, apoiando o rosto contra a rocha fria, sentindo o coração disparado. Mas ou a escuridão fechara-se completamente, ou então seus olhos tinham perdido a capacidade de enxergar. Tudo estava negro ao redor. Ficou imaginando se tinha ficado cego. Respirou fundo.
— Volte! Volte! — gritou a voz de Sam, vinda da escuridão acima.
— Não posso — disse ele. — Não estou enxergando nada. E não consigo achar nenhum lugar onde possa me apoiar. Não posso me mexer ainda.
— Que posso fazer, Sr. Frodo? Que posso fazer? — gritou Sam, debruçando-se perigosamente sobre a borda. Por que seu mestre não enxergava nada? Estava escuro, certamente, mas não tão escuro assim. Ele conseguia ver Frodo mais embaixo, uma figura cinzenta e desamparada, chapada contra o penhasco. Mas estava muito além do alcance de qualquer mão que pudesse ajudá-lo.
Houve um outro ruído de trovão; então veio a chuva. Numa cortina que cegava, misturada com granizo, batia contra o penhasco, extremamente fria.
— Vou descer até aí — gritou Sam, embora não pudesse dizer como pretendia fazer isso.
— Não, não! Espere! — gritou Frodo, agora numa voz mais forte. Logo devo melhorar. Já me sinto melhor. Espere! Você não pode fazer nada, sem uma corda.
— Corda! — exclamou Sam, conversando alucinadamente consigo mesmo cheio de excitação e alívio. — Eu bem que mereço ser enforcado na ponta de uma, como uma advertência contra minha cabeça-de-vento. Você não passa de um idiota cabeça-dura, Sam Gamgi: é isso que o Feitor me dizia sempre, nas palavras dele. Corda!
— Pare de resmungar! — gritou Frodo, agora recuperado o suficiente para se sentir ao mesmo tempo de bom humor e irritado. — Esqueça o velho Feitor. Você está tentando dizer a si mesmo que tem um pedaço de corda em seu bolso? Se for isso, trate de usá-la!
— Sim, Sr. Frodo, em minha mochila. Carreguei-a por centenas de milhas, e me esqueci completamente dela!
— Então mexa-se, e jogue uma ponta aqui para baixo!
Rapidamente Sam desafivelou a mochila e a remexeu. Realmente, no fundo, havia um rolo da corda cinza-prateada feita pelo povo de Lórien. Jogou uma ponta para Frodo.
A escuridão pareceu se desvanecer aos olhos dele, ou então sua visão estava voltando. Conseguiu ver a linha cinzenta conforme ela veio descendo e balançando, e teve a impressão de que ela emanava um leve brilho prateado. Agora que achara algum ponto na escuridão para fixar os olhos, sentia-se menos zonzo.
Jogando o peso do corpo para frente, amarrou firmemente a ponta da corda em volta da cintura, e depois agarrou-a com as duas mãos.
Sam recuou e escorou os pés num tronco, a um ou dois metros da borda.
Sendo em parte puxado, e em parte escalando, Frodo subiu e se jogou no chão.
Trovões rosnavam e roncavam na distância, e a chuva ainda caía pesada. Os hobbits se arrastaram de volta para dentro do fosso, mas lá não encontraram muito abrigo.
Filetes de água começavam a descer; logo se transformaram em jatos que espirravam e borrifavam nas pedras, jorrando por sobre o penhasco como as calhas de um vasto telhado.
— Eu já estaria quase afogado lá embaixo, ou já teria sido levado pelas águas — disse Frodo. — Que sorte você ter aquela corda!
— A sorte teria sido maior se eu tivesse pensado nela antes — disse Sam.
— Talvez o senhor se lembre deles colocando as cordas no barco, quando estávamos partindo: na terra dos elfos. Gostei delas, e enfiei um rolo na minha mochila. Parece que foi anos atrás. “Pode ser uma ajuda em muitas necessidades”, disse ele: Haldir, ou um deles. E estava certo.
— É uma pena que eu não tenha pensado em trazer um outro pedaço disse Frodo —, mas nós deixamos a Comitiva em meio a tanta pressa e confusão.
Se tivéssemos corda suficiente, poderíamos usá-la para descer. Qual é o comprimento da sua? Sam a examinou lentamente, medindo-a com os braços: — Cinco, dez, vinte, trinta varas, mais ou menos — disse ele.
— Quem teria imaginado! — exclamou Frodo.
— Quem? — disse Sam. — Os elfos são pessoas maravilhosas. A corda parece um pouco fina, mas é resistente: e macia como leite nas mãos. E comprime-se bem, e é levíssima. Um povo maravilhoso, sem dúvida.
— Trinta varas! — disse Frodo fazendo cálculos. — Acho que seria o suficiente. Se a tempestade passar antes do cair da noite, eu vou tentar.
— A chuva já está quase parando — disse Sam -, mas não vá fazer nada arriscado no escuro de novo, Sr. Frodo! Ainda não me recuperei daquele grito no vento, se é que o senhor conseguiu se recuperar. O som era parecido com o de um Cavaleiro Negro — mas de um pairando no ar, se é que eles podem voar. Estou pensando que seria melhor nos deitarmos nesta fenda até o fim da noite.
— E eu estou pensando que não vou desperdiçar nenhum momento além do necessário, preso nessa borda com os Olhos da Terra Escura olhando por sobre o pântano — disse Frodo.
Com isso se levantou e dirigiu-se ao fundo do fosso outra vez. Olhou para cima. O céu clareava de novo no leste. A orla da tempestade se erguia, rasgada e molhada, e a batalha principal tinha passado, indo estender suas grandes asas sobre os Emyn Muil, onde os pensamentos escuros de Sauron se concentraram por um tempo. Desse ponto mudou de rumo, golpeando o Vale do Anduin com granizo e relâmpagos, e lançando sua sombra sobre Minas Tirith com a ameaça da guerra. Então, caindo sobre as montanhas, e se formando em grandes espirais, rolou lentamente por sobre Gondor e as fronteiras de Rohan, até que bem distante os Cavaleiros na planície viram suas torres negras se movendo atrás do sol, conforme cavalgavam para o oeste.
Mas ali, sobre o deserto e os pântanos mal cheirosos, o céu do início da noite, de um azul profundo, se abria mais uma vez, e algumas estrelas pálidas apareciam, como pequenos buracos brancos no dossel sobre a lua crescente.
— É bom conseguir enxergar outra vez — disse Frodo, respirando fundo.
— Sabe, pensei por uns momentos que tinha perdido a visão. Devido ao relâmpago ou coisa pior. Não conseguia enxergar nada, de jeito nenhum, até que a corda cinzenta foi descendo. Ela parecia tremeluzir, de alguma forma.
— Ela realmente tem uma aparência de prata no escuro — disse Sam. Não tinha notado antes, embora não possa me lembrar de tê-la tirado da mochila desde que a enfiei lá. Mas se está tão decidido a descer, Sr. Frodo, como vai usá-la? Trinta varas, ou digamos cerca de dezoito braças: isso não é mais do que o senhor supôs ser a altura do Penhasco.
Frodo pensou um pouco. — Amarre-a naquele tronco, Sam! — disse ele.
— Então acho que vou atender a seu pedido desta vez e deixá-lo ir primeiro. Vou abaixá-lo, e você não precisa fazer nada além de usar seus pés e mãos para se afastar da rocha. Vai ajudar, porém, se você se apoiar em alguma saliência e me der um descanso.
Quando estiver lá embaixo, eu descerei.
— Muito bem — disse Sam num tom pesado. — Se precisa ser assim, façamos isso logo! — Pegou a corda e fixou-a firmemente no tronco mais próximo à borda; então amarrou a outra ponta na própria cintura. Relutante, voltou-se e se preparou para passar por cima da borda mais uma vez.
Não teve, entretanto, nem metade da dificuldade que esperara. Parecia que a corda lhe dava confiança, embora ele tenha fechado os olhos uma ou duas vezes quando olhou para baixo por entre seus pés. Havia um ponto incômodo, onde não havia saliência e a parede era íngreme e até socavada num pequeno trecho; ali ele escorregou e ficou pendurado na linha prateada. Mas Frodo o abaixou devagar e com firmeza, e finalmente tudo se acabou. O maior medo de Sam era de que a corda terminasse enquanto ele ainda estivesse muito elevado, mas ainda havia uma boa laçada nas mãos de Frodo quando ele chegou ao fundo e gritou:
— Estou no chão! — A voz veio clara lá de baixo, mas Frodo não conseguia vê-lo; a capa cinzenta dos elfos se confundia com o crepúsculo.
Frodo levou um tempo bem maior para descer. Estava com a corda em volta da cintura e ela estava presa em cima, e ele a tinha diminuído de modo que o segurasse no ar antes que ele atingisse o solo; ainda assim, Frodo não queria arriscar uma queda, e não tinha a mesma confiança que Sam naquela linha cinzenta e fina. Mesmo assim, encontrou dois pontos onde teve de confiar unicamente nela: superfícies lisas onde não havia apoio nem mesmo para seus fortes dedos de hobbit, e onde as saliências eram muito separadas.
Mas finalmente ele também conseguiu descer.
— Bem! — exclamou ele. — Conseguimos! Escapamos das Emyn Muil E agora, o que temos à frente, eu me pergunto? Talvez logo estejamos suspirando por uma boa rocha firme sob os pés outra vez.
Mas Sam não respondeu: estava olhando para trás, em direção ao penhasco.
— Idiotas cabeças-duras! — disse ele. — Parvos! Minha bela corda! Ali está ela, amarrada a um tronco, e nós aqui no fundo. Uma ótima escadinha para aquele Gollum caviloso, a melhor que poderíamos ter deixado. Melhor colocar uma placa dizendo por onde formos! Achei que tudo estava parecendo fácil demais.
— Se você conseguir pensar em alguma forma pela qual pudéssemos ao mesmo tempo ter usado a corda e tê-la trazido conosco, então pode passar o título de idiota cabeça-dura para mim, ou qualquer outro nome que o velho Feitor lhe tenha dado — disse Frodo. — Suba lá, desamarre a corda e pule, se quiser!
Sam coçou a cabeça.
— Não, não consigo pensar agora, com as suas desculpas — disse ele. — Mas não gosto de deixá-la aqui, e isso é fato. — Acariciou a ponta da corda e mexeu nela suavemente. — É difícil separar-me de alguma coisa trazida da terra dos elfos. Feita pela própria Galadriel, talvez. Galadriel — murmurou ele, balançando a cabeça com tristeza. Ergueu os olhos e deu um último puxão na corda, como se estivesse dizendo adeus.
Para a total surpresa de ambos os hobbits, a corda se soltou. Sam caiu para trás, e a corda deslizou e foi se enrolando sobre seu corpo, laçada após laçada. Frodo riu.
— Quem amarrou a corda? — disse ele. — Ainda bem que não se soltou antes. E pensar que confiei todo o meu peso em seu nó!
Sam não riu.
— Posso não ser muito bom para escalar penhascos, Sr. Frodo — disse ele num tom ofendido —, mas eu sei alguma coisa sobre cordas e nós. É de família, como se diz. Meu bisavô e meu tio Andy depois dele, aquele que era o irmão mais velho do Feitor, ele teve uma cordoaria perto do Campo da Corda por muitos anos.
E eu a amarrei muito firme ao tronco, da melhor maneira que qualquer um poderia ter feito, no Condado ou fora dele.
— Então a corda deve ter-se partido — esgarçada pela borda da rocha, eu acho — disse Frodo.
— Aposto que não! — disse Sam numa voz ainda mais ofendida. Abaixou-se e examinou as pontas. — Nenhuma das duas coisas. Nenhum fiapo!
— Então receio que tenha sido o nó — disse Frodo.
Sam balançou a cabeça e não respondeu. Estava passando a corda pelos dedos pensativamente.
— Pense o que quiser, Sr. Frodo — disse ele finalmente —, mas eu acho que a corda se soltou sozinha — quando eu chamei. — Enrolou-a e a colocou carinhosamente na mochila.
— Certamente se soltou — disse Frodo —, e esta é a coisa mais importante. Mas agora temos de pensar em nosso próximo passo. A noite caíra em breve. Como são belas as estrelas e a lua!
— Elas realmente alegram o coração, não é? — disse Sam erguendo os olhos.
— São élficas, de alguma forma. E a lua está crescendo. Não a vemos há uma ou duas noites neste clima nebuloso. Agora está começando a fornecer uma bela luz.
— Sim — disse Frodo -, mas não estará cheia a não ser dentro de alguns dias. Não acho que devemos tentar os pântanos com a luz de uma meia-lua.
Sob as primeiras sombras da noite eles partiram no estágio seguinte de sua jornada.
Depois de um tempo, Sam se voltou e olhou para o caminho pelo qual tinham vindo. A boca do fosso era uma fenda negra no penhasco escuro.
— Estou feliz porque temos a corda — disse ele. Deixamos um pequeno enigma para o salteador, de qualquer forma. Ele pode testar seus nojentos pés chatos naquelas saliências!
Foram andando com cuidado e afastando-se da borda do penhasco, em meio a uma região erma feita de seixos e pedras rudes, molhadas e escorregadias devido à chuva pesada. O solo ainda descia com grande inclinação. Não tinham avançado muito quando encontraram uma grande fissura que se abria subitamente negra diante de seus pés. Não era larga, mas era larga demais para se saltar sobre ela na luz fraca. Tiveram a impressão de escutar a água borbulhando nas suas profundezas. A fenda descrevia uma curva à esquerda deles, em direção ao norte, voltando para as colinas, barrando assim a estrada naquela direção, pelo menos enquanto estivesse escuro.
É melhor tentarmos um caminho de volta em direção ao sul, ao longo da linha do penhasco, eu acho — disse Sam. — Podemos encontrar algum canto lá, ou até uma caverna, ou algo parecido.
— Suponho que sim — disse Frodo. — Estou cansado, e acho que não posso ir tropeçando em pedras por muito mais tempo esta noite — embora odeie pensar no atraso.
Gostaria que houvesse uma trilha bem visível à nossa frente: então continuaria até que minhas pernas fraquejassem.
Não foi nem um pouco mais fácil o caminho ao longo dos pés quebrados das Emyn Muil. Nem Sam achou qualquer canto ou saliência onde pudessem se abrigar: apenas encostas nuas e rochosas se enrugavam junto ao penhasco, que agora subia de novo, mais alto e mais íngreme conforme eles iam voltando. No fim, exaustos, eles apenas se jogaram no solo sob o abrigo de uma pedra que jazia não muito longe do pé do precipício.
Ali ficaram algum tempo sentados, aconchegados tristemente um ao outro na noite fria e rochosa, enquanto o sono se apoderava deles, apesar de tudo o que fizessem para afastálo.
A lua agora subia alta e clara. Sua luz tênue e branca acendia as faces das rochas e molhava as paredes frias e enrugadas do precipício, transformando toda a ampla escuridão ao redor num cinza pálido e frio, cortado por sombras negras.
— Bem! — disse Frodo, levantando-se e trazendo a capa para mais perto do corpo. — Durma um pouco, Sam, e pegue meu cobertor. Vou caminhar por aí e montar guarda.
— De repente ficou imóvel, e agachando-se agarrou Sam pelo braço. — O que é aquilo? — sussurrou ele. — Olhe lá, em cima do penhasco!
Sam olhou e puxou o ar fortemente através dos dentes.
— Ssss! — disse ele. — É exatamente isso. É aquele Gollum! Cobras e lagartos! E pensar que eu imaginei que tínhamos confundido a criatura com nossa pequena descida pela rocha! Olhe para ele!
Parece uma aranha rastejando numa parede.
Descendo a face de um precipício, íngreme e quase lisa ao que parecia no luar pálido, uma pequena figura negra vinha com suas finas pernas abertas. Talvez suas mãos e pés moles e pegajosos estivessem encontrando fendas e apoios que um hobbit jamais poderia ter visto ou usado, mas parecia que ele estava simplesmente descendo com patas viscosas, como algum bicho grande à espreita, semelhante a um inseto. E estava descendo de cabeça para baixo, como se farejasse o caminho. De vez em quando erguia a cabeça devagar, jogando-a para trás sobre seu pescoço longo e fino, e os hobbits viram de relance duas pequenas luzes brilhantes, os olhos dele, que Piscavam à luz da lua por um instante, e em seguida eram rapidamente cobertos pelas pálpebras outra vez.
— O senhor acha que ele consegue nos enxergar? — disse Sam.
— Não sei — disse Frodo baixinho —, mas acho que não. Mesmo para olhos amigos é difícil enxergar essas capas élficas: eu não posso vê-lo na sombra, mesmo a apenas alguns passos de distância. E ouvi dizer que ele não gosta de sol ou lua.
— Então por que está descendo exatamente por aqui? — perguntou Sam.
— Quieto, Sam! — disse Frodo. — Talvez ele possa nos farejar. E tem o ouvido tão aguçado quanto o dos elfos, julgo eu. Acho que agora ouviu alguma coisa: nossas vozes, provavelmente. Gritamos um bocado lá atrás, e estávamos conversando alto demais até um minuto atrás.
— Bem, não o agüento mais — disse Sam. — Desta vez ele está exagerando, e vou lhe dizer umas palavrinhas, se puder, Não acho agora que conseguiríamos escapar dele, de qualquer forma. — Cobrindo bem o rosto com o capuz cinza, Sam se arrastou furtivamente na direção do penhasco.
— Cuidado! — sussurrou Frodo, vindo atrás. — Não o assuste! Ele é mais perigoso do que parece.
A figura negra e rastejante já tinha descido três quartos do penhasco, e talvez já estivesse a uns quinze metros ou menos da base. Agachados e imóveis como pedras à sombra de um grande rochedo, os hobbits o vigiavam. Parecia que ele estava passando por um trecho difícil, ou que estava preocupado com alguma coisa. Podiam ouvi-lo farejando, e de vez em quando percebiam também o som de sua respiração chiada, que soava como uma praga. Ergueu a cabeça, e os hobbits tiveram a impressão de tê-lo ouvido cuspir. Depois continuou outra vez. Agora podiam ouvir sua voz rangendo e assobiando.
— Ach, sss! Cuidado, meu precioso! Devagar se vai ao longe. Não devemos arrisscar nosso pessscoço, devemos, precioso? Não, precioso gollum. — Ergueu a cabeça de novo, piscou para a lua, e rapidamente fechou os olhos. — Odiamos ela — chiou ele. — Sssórdida, ssórdida luz que fica tremendo e nos esspionando, precioso — machuca nossos olhos.
Estava chegando embaixo, e seus chiados ficaram mais agudos e audíveis.
— Onde esstá, onde esstá: meu Precioso, meu Precioso? É nosso, é sim, e nós quer ele. Os ladrões, os ladrões, os ladrõezinhos nojentos. Onde estão com meu Precioso? Malditos! Nós odeia eles.
— Não parece que ele sabia que estávamos aqui, parece? — sussurrou Sam. — E o que é o Precioso dele? Ele quer dizer o...
— Pssiu! — fez Frodo. — Ele está chegando perto agora, perto o suficiente para escutar um sussurro.
Realmente, Gollum parara de repente outra vez, e a grande cabeça sobre o pescoço esquelético virava de um lado para o outro, como se ele tentasse escutar algo. Os olhos opacos estavam semicerrados. Sam se conteve embora seus dedos estivessem crispados.
Seus olhos, cheios de ódio e,nojo, estavam fixos na miserável criatura, que agora começava a se mexer outra vez, ainda sussurrando e chiando para si mesma.
Finalmente já estava a menos de quatro metros do chão, bem acima da cabeça deles. Naquele ponto havia uma descida brusca, pois a rocha estava levemente socavada, e até mesmo Gollum não conseguia encontrar qualquer tipo de apoio.
Parecia estar tentando se virar, de modo que descesse com as pernas primeiro, quando de repente, com um guincho agudo, ele caiu. Conforme caía, enroscou os braços e as pernas em volta do corpo, como uma aranha cujo fio do qual pende se rompe.
Sam saiu do esconderijo e num instante atravessou o espaço que o separava do penhasco com alguns saltos. Antes que Gollum pudesse se levantar, já estava em cima dele. Mas Gollum superou suas expectativas, mesmo pego daquele jeito, de repente, de surpresa depois de uma queda. Antes que Sam pudesse prendê-lo, pernas e braços compridos estavam em volta de seu corpo, segurando-lhe os braços, e um agarrão firme, mole mas terrivelmente forte, o esmagava como cordas que se apertam lentamente; dedos pegajosos tateavam à procura de sua garganta. Depois dentes afiados morderam-lhe o ombro. Tudo que Sam podia fazer era projetar para o lado sua cabeça dura e redonda contra o rosto da criatura. Gollum chiava e cuspia, mas não o soltava.
Sam se teria dado mal se estivesse sozinho. Mas Frodo deu um salto e tirou Ferroada da bainha. Com a mão esquerda, puxou para trás a cabeça de Gollum, agarrando-lhe os cabelos finos e escassos, esticando-lhe o longo pescoço, forçando seus olhos opacos e venenosos a olhar para o céu.
— Solte, Gollum! — disse ele. — Esta é Ferroada. Você já a viu antes. Solte, ou vai senti-la desta vez! Vou lhe cortar a goela!
Gollum teve um colapso e ficou solto como barbante molhado. Sam se levantou, apalpando o ombro. Os olhos queimavam de ódio, mas ele não pôde se vingar: seu miserável inimigo estava rastejando sobre as pedras, choramingando.
— Não nos machuquem! Não deixe que nos machuquem, Precioso. Não vão nos machucar, vão, esses bons e pequenos hobbitses? Não queríamos fazer mal algum, mas eles pulou em nós como gatos em cima de pobres ratinhos, é sim, precioso. E estamos tão sozinhos, gollum. Vamos ser bonzinhos para eles, muito bonzinhos, se eles forem bonzinhos para nós, não é? Sim, sssim.
— Bem, que vamos fazer com essa coisa? — disse Sam. — Amarrá-lo, para que não possa mais ficar nos seguindo e nos espionando, eu diria.
— Mas isso nos mataria, nos mataria — choramingou Gollum. Hobbitsezinhos cruéis.
Amarrar nós neste lugar frio e nos deixar, gollum, Gollum. — Soluços subiram-lhe pela garganta gorgolejante.
— Não — disse Frodo. — Se vamos matá-lo, é melhor fazer o serviço direito. Mas não podemos fazer isso, não no pé em que estão as coisas. Pobre patife! Não nos fez mal algum.
— Ah não, é? — disse Sam esfregando o ombro. — De qualquer forma, teve a intenção, e continua tendo, eu garanto. Estrangular-nos enquanto dormimos, esse é o plano dele.
— Suponho que sim — disse Frodo. — Mas o que pretende fazer é outro assunto. — Fez uma pausa e ficou pensando. Gollum ficou imóvel, mas parou de choramingar. Sam tinha os olhos cravados nele, furioso.
Frodo teve a impressão de ouvir, claras mas distantes, vozes vindas do passado:
— É uma pena que Bilbo não tenha apunhalado aquela criatura vil, quando teve a chance!
— Pena? Foi justamente Pena que ele teve. E misericórdia. Não atacar sem necessidade.
— Não sinto nenhuma pena de Gollum. Ele merece morrer.
— Merece! Suponho que sim. Muitos que vivem merecem morrer E alguns que merecem viver morrem. Você Pode dar-lhes vida? Então não seja tão ávido para condenar à morte em nome da justiça, temendo por sua própria segurança. Nem mesmo os sábios conseguem ver os dois lados.
— Muito bem — respondeu ele em voz alta, abaixando a espada. — Mas ainda estou com medo. E mesmo assim, como você pode ver, não vou tocar na criatura. Pois, agora que o vejo, realmente sinto pena dele.
Sam ficou olhando para seu mestre, que parecia estar conversando com alguém que não estava lá. Gollum ergueu a cabeça.
— Sssim, somos patifes, precioso — choramingou ele. — Miséria, miséria! Os hobbits não vão matar nós, hobbits bonzinhos.
— Não, não vamos — disse Frodo. — Mas também não vamos soltá-lo, Você está cheio de maldade e traição, Gollum. Vai ter de vir conosco, isso é tudo, e vamos vigiá-lo. Mas deve nos ajudar, se puder. O bem com o bem se paga.
— Sssim, realmente! — disse Gollum sentando-se. — Hobbits bonzinhos. Vamos com eles. Achar para eles caminhos seguros na escuridão, sim, vamos. E para onde vão nestas terras frias e escuras? Nós fica pensando, sim, nós fica pensando. — Olhou para eles, e um brilho fraco de esperteza e avidez iluminou por um segundo seus olhos opacos que piscavam.
Sam lhe fez uma careta e chupou os dentes; mas teve a impressão de sentir que havia algo estranho sobre a disposição de seu mestre e que o assunto estava acima de qualquer discussão. Mesmo assim, ficou assustado com a resposta de Frodo.
Frodo olhou direto nos olhos de Gollum, que se esquivaram e se voltaram para o outro lado.
— Isso você sabe, ou pode imaginar, Sméagol disse ele numa voz baixa e severa. — Estamos indo para Mordor, é claro. E você sabe o caminho para lá, eu suponho.
— Ach, sss! — disse Gollum, cobrindo os ouvidos com as mãos, como se aquela franqueza, e a menção direta dos nomes, o machucassem. — Imaginamos, sim, imaginamos — sussurrou ele —, e não queríamos que eles fossem, queríamos? Não, precioso, não os hobbits bonzinhos. Cinzas, cinzas e poeira, e sede há lá; e poços, poços, poços, e orcs, milhares de orcs. Hobbits bonzinhos não devem ir para — ss — lugares assim.
— Então você esteve lá? — insistiu Frodo. — E está sendo atraído de volta, não está?
— Sssim, sssim. Não! — gritou Gollum. — Uma vez, foi por acaso, não foi, precioso? Sim, por acaso. Mas não vamos voltar, não, não! — Então, de repente, sua voz e sua língua mudaram, e ele emitiu um soluço gutural, e falou, mas não para eles, — Deixe-me em paz, gollum! Você me machuca. Olhe minhas pobres mãos, gollum. Eu, nós, eu não quero voltar. Não consigo encontrá-lo. Estou cansado. Eu, nós não conseguimos encontrá-lo, gollum, gollum, não, não, em lugar nenhum. Estão sempre acordados. Anões, homens, e elfos, elfos terríveis de olhos brilhantes. Não consigo encontrá-lo. Ach! — Levantou-se e cerrou a mão comprida num punho ossudo e descarnado, acenando na direção do leste. — Não vamos! — gritou ele. — Não por você. — Então teve outro colapso. — Gollum, gollum — choramingou ele com o rosto virado para o chão. — Não olhe para nós! Vá embora! Vá dormir!
— Ele não vai dormir nem vai embora porque você mandou, Sméagol! Disse Frodo.
— Mas se realmente quer ficar livre dele de novo, então deve me ajudar. E receio que isso signifique encontrar para nós um caminho que leve a ele. Mas não precisa fazer o caminho todo, só até os portões da terra dele.
Gollum sentou-se de novo e olhou-o por debaixo das pálpebras. — Ele está lá — grasnou ele. — Sempre lá. Os orcs vão levá-los por todo o caminho. Fácil achar orcs a leste do Rio. Não peça para Sméagol. Pobre, pobre Sméagol, ele foi embora faz tempo. Eles tomaram seu Precioso, e ele está perdido agora.
— Talvez possamos encontrá-lo de novo, se você vier conosco — disse Frodo.
— Não, não, nunca! Ele perdeu seu Precioso — disse Gollum.
— Levante-se! — disse Frodo.
Gollum se levantou e encostou-se contra o penhasco.
— Agora! — disse Frodo. — É mais fácil Para você achar um caminho de dia ou de noite? Estamos cansados; mas se escolher a noite, partiremos esta noite.
— As grandes luzes machucam nossos olhos, machucam sim — choramingou Gollum. — Não sob a Cara Branca, ainda não. Ela vai para trás das colinas logo, ssim. Descansem um pouco primeiro, hobbits bonzinhos!
— Então sente-se — disse Frodo. — E não se mexa!
Os hobbits se sentaram perto dele, um de cada lado, com as costas contra a parede rochosa, descansando as pernas. Não houve necessidade de qualquer combinação por meio de palavras: sabiam que não deviam dormir nem por um segundo.
Lentamente a lua desapareceu. Sombras caíram das colinas, e tudo ficou escuro diante deles. O céu se encheu de estrelas claras. Ninguém se mexia. Gollum estava sentado com as pernas dobradas, os joelhos sob o queixo, as mãos e os pés chatos esborrachados no chão, os olhos fechados; mas parecia tenso, como se estivesse pensando ou tentando escutar algo.
Frodo olhou de lado para Sam. Os olhos se encontraram e eles entenderam.
Relaxaram, recostando as cabeças, fechando ou dando a impressão de fechar os olhos. Logo se podia ouvir o som de sua respiração suave. As mãos de Gollum se crisparam um pouco. Quase imperceptivelmente, sua cabeça virou para a direita e para a esquerda, e primeiro um olho e depois o outro abriram uma fresta. Os hobbits não fizeram nenhum sinal.
De repente, com velocidade e agilidade assustadoras, direto do chão, com um salto de um gafanhoto ou um sapo, Gollum pulou à frente dentro da escuridão. Mas era exatamente isso que os hobbits esperavam. Sam estava em cima dele antes que tivesse dado dois passos depois do salto. Frodo, vindo atrás, agarrou-lhe as pernas e o jogou no chão.
— Sua corda pode se mostrar útil de novo, Sam — disse ele.
Sam pegou a corda. — E aonde o senhor estava indo nessas terras frias e desertas, Sr. Gollum? — rosnou ele. — Nós se pergunta, é sim, nós se pergunta. Estava procurando algum de seus amigos orcs, eu garanto. Criatura má e traiçoeira. É em volta de seu pescoço que esta corda vai ficar, e com um nó bem apertado.
Gollum ficou quieto e não tentou mais nenhum truque. Não respondeu a pergunta de Sam, mas lançou-lhe um olhar rápido e venenoso.
— Só precisamos de alguma coisa para controlá-lo — disse Frodo. Queremos que ele ande, então não adianta amarrar-lhe as pernas — ou os braços, parece que ele os usa bastante. Amarre uma ponta no tornozelo, e agarre firme a outra ponta.
Segurou Gollum com os pés, enquanto Sam fazia o nó. O resultado disso surpreendeu aos dois. Gollum começou a gritar, um som fraco, cortante, muito horrível de escutar.
Contorceu o corpo, tentando levar a boca até o tornozelo e morder a corda. Continuou gritando.
Finalmente Frodo se convenceu de que ele estava realmente sofrendo; mas não podia ser por causa do nó. Examinou-o e viu que não estava apertado demais, na verdade nem apertado o suficiente. O gesto de Sam fora mais gentil que suas palavras.
— Que há com você? — perguntou ele. — Se vai tentar fugir, precisa ser amarrado; mas não queremos machucá-lo.
— Isso machuca nós, isso machuca nós — chiou Gollum. — Congela, morde! Os elfos trançaram a corda, malditos! Hobbits maldosos e cruéis! É por isso que nós está tentando escapar, é claro que é por isso, precioso. Já desconfiava que eles eram hobbits cruéis. Eles visita os elfos, elfos ferozes com olhos brilhantes. Tire essa corda de nós, ela machuca nós.
— Não, não vou tirá-la de você — disse Frodo —, a não ser — parou por um momento, pensando —, a não ser que haja uma promessa que você possa fazer e na qual eu possa confiar.
— Sim, ssim — disse Gollum, ainda se contorcendo e agarrando o tornozelo. — Isso nos machuca. Nós juramos fazer o que ele deseja.
— Jura? — disse Frodo.
— Sméagol — disse Gollum de repente e numa voz clara, abrindo completamente os olhos e lançando a Frodo um olhar estranho. — Sméagol vai jurar sobre o Precioso.
Frodo empertigou-se, e Sam mais uma vez se assustou com suas palavras e sua voz severa.
— Sobre o Precioso? Como ousa? — disse ele. — Pense! Um anel para todos governar e na Escuridão aprisioná-los. — Você faria sua promessa em nome disso, Sméagol? Isso irá prendê-lo. Mas isso é mais traiçoeiro que você. Pode torcer suas palavras. Cuidado!
Gollum se agachou.
— Sobre o Precioso, sobre o Precioso! — repetiu ele.
— E o que você juraria? — perguntou Frodo.
— Ser muito, muito bom — disse Gollum. Depois, arrastando-se até os pés de Frodo, ajoelhou-se diante dele, sussurrando numa voz rouca: um tremor tomou conta de seu corpo, como se as palavras lhe abalassem os próprios ossos de medo.
— Sméagol jura que nunca, nunca permitirá que Ele o tenha. Nunca. Sméagol vai salvá-lo. Mas precisa jurar sobre o Precioso.
— Não, não sobre ele — disse Frodo, descendo os olhos até ele e sentindo uma compaixão austera. — Tudo o que deseja é vê-lo e tocá-lo, se puder, embora saiba que isso o deixaria louco. Não sobre ele. Jure por ele, se quiser. Pois você sabe onde ele está. Sim, você sabe, Sméagol. Está diante de você.
Por um momento, Sam teve a impressão de que seu mestre crescera e de que Gollum havia encolhido: uma sombra altiva e austera, um senhor Poderoso que escondia seu brilho numa nuvem cinzenta, e aos seus pés tinha um cachorrinho ganindo. Apesar disso, os dois eram de alguma forma aparentados e não estranhos: podiam atingir a mente um do outro. Gollum se levantou e começou a bater de leve com as patas em Frodo, acariciando seus joelhos.
— Para o chão, para o chão! — disse Frodo. — Agora, fale de sua promessa!
— Nós promete, sim, nós promete! — disse Gollum. — Vou servir ao mestre do Precioso. Bom mestre, bom Sméagol, gollum, gollum! — De repente, começou a chorar e a morder o tornozelo outra vez.
— Desamarre a corda, Sam! — disse Frodo.
Relutante, Sam obedeceu. Imediatamente, Gollum se levantou e começou a saltitar, como um vira-latas que depois de açoitado é acariciado pelo dono. Desde esse momento, uma mudança, que durou algum tempo, operou-se nele. Ao falar chiava e choramingava menos, e se dirigia aos seus companheiros diretamente, e não à sua própria e preciosa pessoa. Se os hobbits se aproximassem ou fizessem qualquer movimento súbito, ele se encolhia e recuava, e também evitava o toque de suas capas élficas; mas era amigável e na verdade dava pena ver como se esforçava para agradar. Era capaz de rir às gargalhadas e fazer cabriolagens, por qualquer brincadeira, ou até mesmo se Frodo lhe dirigisse a palavra com gentileza, e de chorar se Frodo o repelisse.
Sam não lhe dizia quase nada. Suspeitava dele agora mais do que nunca e, se isso fosse possível, gostava menos do novo Gollum, o Sméagol, do que do antigo.
— Bem, Gollum, ou como quer que devamos chamá-lo — disse ele. Agora vamos! A lua já se foi, e a noite está passando. É melhor partirmos!
— Sim, sim — concordou Gollum, saltitando. — Vamos! Só há um caminho que vai da extremidade norte até a extremidade sul. Eu o encontrei, é sim. Os orcs não o usam. Os orcs não atravessam o Pântano, eles o contornam andando milhas e milhas. Muita sorte que vocês vieram por aqui. Muita sorte que encontraram Sméagol, é sim. Sigam Sméagol!
Deu alguns passos e olhou para trás de um modo inquisitivo, como um cachorro que os convidasse para um passeio.
— Espere um pouco, Gollum! — gritou Sam. — Não vá muito na frente! Vou ficar nos seus calcanhares, e tenho a corda à mão.
— Não, não! — disse Gollum. — Sméagol prometeu.
Nas profundezas da noite, sob estrelas claras e agudas, eles partiram.
Gollum os conduziu de volta em direção ao norte, pelo caminho através do qual tinham vindo; então desviou bruscamente para a direita, distanciando-se da borda íngreme dos Emyn Muil, descendo as encostas partidas e pedregosas em direção aos brejos lá embaixo.
Eles iam sumindo rápida e suavemente na escuridão. Ao longo de todas as léguas de desolação que ficavam diante dos portões de Mordor, fazia-se um silencio negro.
A PASSAGEM DOS PÂNTANOS
Gollum se movimentava com rapidez, com a cabeça e o pescoço jogados para frente, muitas vezes usando as mãos além dos pés. Frodo e Sam tinham de se esforçar para manter o ritmo dele; mas não parecia que Gollum tinha qualquer idéia de escapar, e se os hobbits ficavam para trás, ele se virava e os esperava. Depois de um tempo chegaram à borda do fosso estreito que já tinham atingido antes, mas agora estavam mais distantes das colinas.
— Aqui está! — gritou ele. — Há uma descida por dentro, é sim. Agora nós segue por ela — ali, por ali. — Apontou ao sul e ao leste, na direção dos pântanos. O cheiro nauseabundo chegava-lhes às narinas, pesado e pestilento mesmo no ar fresco da noite.
Gollum subiu e desceu ao longo da borda, e finalmente os chamou. Aqui! Podemos descer por aqui. Sméagol foi por esse caminho uma vez: fui por aqui, escondendo-me dos orcs.
Foi na frente, e seguindo-o os hobbits desceram para dentro da escuridão.
Não foi difícil, pois a fenda nesse ponto tinha uma profundidade de apenas uns quatro metros e meio, e cerca de três metros e meio de largura. No fundo corria um fio de água: de fato era o leito de um dos muitos pequenos riachos que desciam das colinas para alimentar as Poças estagnadas e os atoleiros mais além. Gollum virou à direita, mais ou menos em direção ao sul, e avançou afundando os pés no riacho raso e pedregoso.
Parecia muito satisfeito por sentir a água, e ria consigo mesmo, algumas vezes até grasnando numa espécie de canção.
Frio seco chão que morde a mão, pros pés é duro.
Pedra e seixo
sem carne veja , é osso puro.
Mas lago e rio molhado e frio:
tão bom pros pés! E agora me deixe...
— Ha! Ha! Deixe o quê? — disse ele, olhando de lado para os hobbits. Vou lhes dizer — grasnou ele. — Ele já adivinhou há muito tempo, Bolseiro adivinhou. — Um brilho surgiu em seus olhos e Sam, captando-o na escuridão, achou aquilo muito pouco agradável.
Como a morte sem calor; vive sem respirar;
sem sede, sempre a beber; encouraçado sem tilintar
No seco sua derrota, acha que uma ilhota é alto monte;
acha que uma fonte é sopro de brisa. Macio, desliza!
Como é bom vê-lo! Só quero que me deixe
Pegar meu peixe, e depois comê-lo!
Essas palavras só deixaram Sam mais preocupado com um problema que já vinha incomodando sua mente desde a hora em que ele percebera que seu mestre ia adotar Gollum como um guia: o problema da comida. Não lhe ocorreu que seu mestre também poderia ter pensado nisso, mas ele supunha que Gollum pensara. Pensando bem, como Gollum tinha se mantido durante todo o tempo que vagou sozinho? “Não muito bem”, pensou Sam. “Ele parece bastante esfomeado. E não exigente demais para não experimentar o gosto da carne de hobbits, se não conseguir encontrar nenhum peixe, eu aposto — supondo que ele pudesse nos pegar enquanto estivéssemos cochilando. Não, ele não vai: não Sam Gamgi, pelo menos.”
Avançaram aos tropeços para dentro do fosso escuro e sinuoso por um longo tempo, ou pelo menos assim pareceu para os pés cansados de Frodo e Sam. O fosso virava para o leste, e conforme iam avançando ficava mais largo e gradualmente mais raso. Finalmente o céu começou a clarear com o primeiro cinza da manhã. Gollum não mostrava sinais de cansaço, mas agora erguera os olhos e parara.
— O Dia está chegando — sussurrou, como se o Dia fosse algo que pudesse ouvi-lo e saltar sobre ele. — Sméagol vai ficar aqui: vou ficar aqui, e o Cara Amarela não vai me ver.
— Nós ficaríamos contentes em ver o sol — disse Frodo —, mas vamos ficar aqui: estamos cansados demais para ir mais longe, por enquanto.
— Vocês não demonstram sabedoria quando se alegram com o Cara Amarela — disse Gollum. — Ele os mostra. Hobbits sensatos e bonzinhos ficam com Sméagol. Orcs e seres maus estão à solta. Eles podem enxergar de longe. Fiquem e se escondam comigo!
Os três pararam para descansar ao pé da parede rochosa do fosso. Naquele ponto, a altura era pouco maior que a de um homem grande, e na base havia saliências planas de pedra seca; a água corria num canal do outro lado. Frodo e Sam se sentaram em uma das saliências, descansando as costas. Gollum se arrastava e chapinhava na água.
— Precisamos comer um pouco — disse Frodo. — Está com fome, Sméagol? Temos muito pouco para dividir, mas vamos lhe oferecer o que pudermos. À menção da palavra fome, uma luz esverdeada se acendeu nos olhos opacos de Gollum, que pareceram saltar mais que nunca daquele rosto magro e de aparência doentia. Por um momento, ele teve uma recaída, voltando ao seu jeito antigo de Gollum. — Estamosss famintos, sim, famintos estamos, precioso — disse ele. — Que é que eles come? Têm uns peixes gostosos? — Pôs a língua para fora, entre os dentes pontudos e amarelos, lambendo os lábios descorados.
— Não, não temos peixe — disse Frodo. — Só temos isto — ergueu um pedaço de lembas — e água, se esta água aqui for boa para beber.
— Sssim, sssim, agua boa — disse Gollum. — Bebam, bebam, enquanto pudermos!
Mas o que é isso aí, precioso? É mastigável? É gostoso? Frodo partiu uma parte do bolo e o entregou a Gollum no seu embrulho de folhas. Gollum farejou a folha e seu rosto se alterou: um espasmo de asco tomou conta dele, juntamente com um traço da velha malícia. Sméagol sente o cheiro! — disse ele. — Folhas da terra dos elfos, gah! Eles fede.
Ele subiu naquelas árvores, e não pode tirar o cheiro de suas mãos nem lavando, minhas pobres mãozinhas.
— Jogando a folha, ele pegou um canto do lembas e o mordiscou. Cuspiu e teve um acesso de tosse.
— Ach! Não! — gaguejou ele. — Estão tentando sufocar o pobre Sméagol. Poeira e cinzas, ele não pode comer essas coisas. Vai ter de passar fome. Mas Sméagol não se importa. Hobbits bonzinhos! Sméagol prometeu. Vai passar fome. Ele não pode comer comida de hobbits. Vai passar fome. Pobre do magro Sméagol!
— Sinto muito — disse Frodo -, mas receio que não possa ajudá-lo. Acho que esta comida lhe faria bem, se você quisesse experimentar. Mas talvez não possa nem experimentar, não por enquanto, de qualquer forma.
Os hobbits mastigaram seus lembas em silêncio. Sam teve a impressão de que o gosto estava muito melhor, de alguma forma, do que estivera por um bom tempo: o comportamento de Gollum o fizera atentar para o sabor outra vez. Mas ele não se sentiu à vontade. Gollum ficava vigiando cada pedaço que ia da mão à boca, como um cachorro esperançoso perto da cadeira de alguém que está jantando. Só quando eles tinham terminado e se preparavam para descansar é que ele se convenceu de que os hobbits não tinham guloseimas escondidas para dividir. Depois foi se sentar sozinho a alguns passos de distância, e se lamuriou um pouquinho.
— Olhe aqui — sussurrou Sam para Frodo, numa voz não muito baixa: realmente não estava preocupado se Gollum podia ou não ouvi-lo. — Precisamos dormir um pouco; mas não os dois ao mesmo tempo, com esse vilão faminto por perto, com ou sem promessa.
Sméagol ou Gollum, não é de uma hora para a outra que ele vai mudar seus hábitos, isso eu garanto. Vá dormir, Sr. Frodo, e eu o chamo quando não conseguir manter minhas pálpebras abertas por mais tempo. Vamos revezar, como antes, enquanto ele estiver solto.
— Talvez esteja certo, Sam — disse Frodo falando abertamente. — Há uma mudança nele, mas que tipo de mudança, e qual a sua extensão, ainda não sei ao certo. Mas agora, falando sério, acho que não há necessidade de sentirmos medo — por enquanto. Mesmo assim, vigie, se quiser. Dê-me umas duas horas, não mais que isso, e me chame.
Frodo estava tão cansado que sua cabeça caiu sobre o peito e ele adormeceu, quase no mesmo momento em que terminara de dizer aquelas palavras. Agora Gollum não parecia mais temer coisa alguma. Enrolou-se todo e adormeceu rapidamente, sem qualquer preocupação. Naquele momento, sua respiração produzia um chiado suave por entre os dentes cerrados, mas ele estava imóvel como uma pedra. Depois de um tempo, temendo ele mesmo cochilar, se ficasse sentado ali ouvindo a respiração dos dois companheiros, Sam se levantou e deu um leve cutucão em Gollum. Suas mãos se abriram e se contraíram, mas ele não fez mais nenhum outro movimento. Sam se abaixou e lhe disse peixxxe ao ouvido, mas não houve resposta, nem mesmo qualquer sobressalto na respiração de Gollum.
Sam coçou a cabeça.
— Deve estar dormindo de verdade — murmurou ele. — E, se eu fosse como Gollum, ele jamais acordaria outra vez. — Sam reprimiu o pensamento da espada e da corda que lhe vieram à mente, e foi se sentar ao lado de seu mestre.
Quando acordou o céu já estava apagado, não mais claro e sim mais escuro do que quando tinham feito o desjejum. Sam pulou de pé. Percebeu de repente, sobretudo por sua sensação de vigor e de fome, que tinha dormido durante todo o dia, pelo menos umas nove horas. Frodo ainda estava num sono profundo, deitado agora de lado, com o corpo estendido. Gollum não estava à vista. Várias palavras de reprovação destinadas a si mesmo vieram à mente de Sam, retiradas do grande acervo paternal de palavras do Feitor; então ocorreu-lhe também que seu mestre estivera certo: até o momento não tinham tido nada do que se proteger. Os dois estavam, de qualquer forma, vivos e não estrangulados.
— Pobre patife! — disse ele sentindo um certo remorso. — Agora fico pensando onde se meteu.
— Não muito longe, não muito longe! — disse uma voz acima dele. Sam ergueu os olhos e viu a figura da grande cabeça e das orelhas de Gollum, contra o céu do início da noite.
— Que está fazendo? — gritou Sam, e suas suspeitas retornaram assim que viu aquela figura.
— Sméagol está com fome — disse Gollum. — Volto logo.
— Volte já! — gritou Sam. — Ei! Volte! — Mas Gollum tinha desaparecido.
Frodo acordou com o grito de Sam e se sentou, esfregando os olhos.
— Olá! — disse ele. — Alguma coisa errada? Que horas são?
— Não sei — disse Sam. — O sol já se pôs, eu calculo. E ele saiu. Disse que está com fome.
— Não se preocupe! — disse Frodo. — Não há como evitar, mas ele vai voltar, você vai ver. A promessa terá efeito por um tempo. E ele não vai deixar seu Precioso, de qualquer forma.
Frodo não deu muita importância ao saber que eles tinham dormido profundamente horas e horas com Gollum, e ainda por cima um Gollum bem faminto, solto ao lado deles.
— Não pense em nenhuma das palavras duras de seu Feitor — disse ele. — Você estava exausto e tudo deu certo no fim: agora nós dois estamos descansados. E temos uma estrada difícil à frente, a pior de todas as estradas.
— A respeito da comida — disse Sam. — Quanto tempo vai levar para fazermos este serviço? E quando terminarmos, que vamos fazer então? Esse pão de viagem mantém você sobre suas pernas de uma forma maravilhosa, mas não satisfaz a barriga de maneira apropriada, como se poderia dizer: não para o meu gosto, de qualquer forma, sem querer desrespeitar aqueles que o fizeram. Mas temos de comer um pouco todo dia, e ele não nasce do chão. Calculo que temos uma quantia que vai durar, vamos dizer, mais ou menos três semanas, e isso apertando os cintos e maneirando a boca, veja bem. Até agora fomos meio pródigos com as provisões.
— Não sei quanto tempo vai levar para... para terminarmos — disse Frodo.
— Demoramos demais nas colinas. Mas Samwise Gamgi, meu querido hobbit — na verdade, meu hobbit predileto, amigo dos amigos —, não acho que devemos pensar no que acontecerá depois disso. Fazer o serviço, como você diz — que esperança temos de consegui-lo? E, se conseguirmos, quem sabe o que resultará disso? Se o Um for para o Fogo e estivermos por perto? Pergunto a você, Sam, será que vamos precisar de alguma comida outra vez? Acho que não. Se conseguirmos alimentar nossas pernas para que nos levem até a Montanha da Perdição, isso será tudo o que poderemos fazer. Mais do que eu posso, começo a sentir.
Sam fez um sinal com a cabeça concordando, em silêncio. Tomou a mão de seu mestre e se inclinou sobre ela. Não a beijou, mas suas lágrimas caíram sobre ela. Então virou-se para o outro lado, passou a manga da camisa pelo nariz, levantou-se e saiu pisando firme, tentando assobiar, e dizendo com esforço: — Onde está a maldita criatura?
Realmente não demorou muito para que Gollum retornasse; mas se aproximou tão silenciosamente que eles não o ouviram até que estivesse diante deles. Seus dedos e seu rosto estavam sujos de lama preta. Ainda estava mastigando e babando.
O que mastigava os hobbits não perguntaram, e nem queriam imaginar.
“Vermes e besouros ou alguma coisa lodosa que achou nalgum buraco”, pensou Sam. “Brrr! Criatura nojenta; pobre patife!”
Gollum não lhes disse nada antes de beber muita água e lavar-se no riacho. Depois foi para perto deles, lambendo os beiços.
— Bem melhor agora disse ele. — Estamos descansados? Prontos para partir? Hobbits bonzinhos, dormem bastante. Confiam em Sméagol agora? Muito bom, muito bom.
A etapa seguinte da jornada foi muito parecida com a anterior. Conforme avançavam, o fosso ia ficando cada vez mais raso e a descida mais suave.
O fundo ia ficando menos pedregoso e mais cheio de terra, e lentamente as laterais iam se transformando em meras margens. O fosso começou a ficar sinuoso e mudar de rumo. Aquela noite chegou ao fim, mas nuvens agora cobriam lua e estrelas, e eles perceberam a chegada do dia apenas pela luz tênue e cinzenta que se espalhava lentamente.
Numa hora fria eles atingiram o fim do curso de água. As margens se transformaram em montículos cobertos de musgo. Por sobre a última saliência de pedra em decomposição, o riacho gorgolejava e caía dentro de um brejo amarronzado, onde se perdia. Juncos secos chiavam e farfalhavam, embora eles não sentissem vento algum.
Dos dois lados e à frente, jaziam amplos brejos e atoleiros, espraiando-se em direção ao sul e ao leste, na tênue meia-luz. A névoa se enrolava e esfumaçava, vinda das poças escuras e fétidas. O mau cheiro provocado por elas pairava no ar. Ao longe, agora quase ao sul, as paredes das montanhas d e Mordor assomavam, como uma barra negra de nuvens de tormenta flutuando sobre um perigoso mar cercado de névoa.
Os hobbits estavam agora inteiramente nas mãos de Gollum. Não sabiam, e não podiam adivinhar naquela luz enevoada, que naquele momento estavam na verdade entrando no pântano pela fronteira do norte, quando a maior parte dele ficava ao sul de onde estavam. Poderiam, se conhecessem a região, ter com algum atraso refeito um pouco do caminho, e depois, virando para o leste, dado a volta pelas estradas secas até a planície descoberta de Dagorlad: o campo da antiga batalha, travada diante dos portões de Mordor.
Não que houvesse muita esperança nesse caminho. Naquela planície pedregosa não havia abrigo, e por ela passavam as estradas dos orcs e dos soldados do Inimigo. Nem mesmo as capas de Lórien poderiam escondê-los ali.
— Qual é o plano de nossa rota agora, Sméagol? — perguntou Frodo. Vamos ter de atravessar esses brejos pestilentos?
— Não há necessidade, não há nenhuma necessidade — disse Gollum.
— Não se os hobbits quiserem atingir as montanhas escuras e logo dar de cara com Ele. Um pouco para trás, e dando uma volta pequena — o braço descarnado acenava para o norte e para o leste —, e vocês poderão chegar, por estradas secas e frias, exatamente até os portões da terra d’Ele. Seu pessoal estará lá aos montes, à espera de convidados, e ficarão muito satisfeitos em levá-los diretamente a Ele. É, sim, o Olho d’Ele vigia a estrada o tempo todo. Pegou Sméagol ali, muito tempo atrás — Gollum estremeceu.
— Mas desde esse dia Sméagol usou os próprios olhos, é, sim: usei olhos e pés e nariz desde então. Conheço outros caminhos. Mais difíceis, não tão rápidos; mas melhores, se não queremos que Ele veja. Sigam Sméagol! Ele pode levá-los através dos pântanos, através da névoa, névoa espessa e agradável. Sigam Sméagol com muito cuidado, e podem chegar longe, muito longe, antes que Ele pegue vocês, sim talvez possam.
Já era dia, uma manhã lúgubre e sem vento, e o vapor malcheiroso dos pântanos pairava em pesadas camadas. Nenhum raio de sol atravessava o céu nebuloso, e Gollum parecia ansioso por continuar a viagem imediatamente. Portanto, depois de um breve descanso, eles partiram outra vez e logo estavam perdidos num mundo sombrio e silencioso, privados de toda a vista da região ao redor, quer fossem as colinas deixadas para trás, ou então as montanhas almejadas. Seguiam lentamente em fila indiana: Gollum, Sam, Frodo.
Frodo parecia o mais cansado dos três, e, embora avançassem lentamente, ele com freqüência ficava para trás. Os hobbits logo perceberam que o que parecera um vasto brejo era na verdade uma interminável cadeia de poças e atoleiros, e cursos de água sinuosos e semi-estrangulados. Em meio a estes, olhos e pés hábeis poderiam traçar um caminho errante. Gollum certamente tinha essa habilidade e precisou dela toda. Sua cabeça e seu longo pescoço estavam sempre se voltando para um lado e para o outro, enquanto ele farejava e murmurava o tempo todo consigo mesmo. Algumas vezes, erguia uma mão e os detinha, enquanto ele avançava um pouco, agachado, testando o solo com os dedos das mãos ou dos pés, ou simplesmente escutando com uma orelha colada ao chão.
O lugar era monótono e cansativo. O inverno frio e úmido ainda dominava aquela região abandonada. A única coisa verde que se via era a escória de ervas esbranquiçadas sobre as superfícies escuras e oleosas das águas sombrias. Capim morto e juncos apodrecidos assomavam por entre a névoa como sombras esfarrapadas de verões há muito esquecidos.
À medida que o dia avançava, a luminosidade ficou um pouco mais intensa, e a névoa subiu, ficando mais fina e mais transparente. Bem acima da podridão e dos vapores daquele mundo, o sol agora passava alto e dourado, numa região serena sobre um chão de névoa luminosa; mas lá embaixo eles só conseguiam ver dele um fantasma fugidio, ofuscado, opaco, incapaz de dar cor ou calor. Mas até mesmo diante desse pequeno lembrete de sua presença Gollum franziu a testa e recuou.
Interrompeu a viagem, e eles descansaram, de cócoras como pequenos animais acuados, nas bordas de uma grande moita de juncos castanhos. Fez-se um silêncio profundo, apenas arranhado em sua superfície pelo tremor fraco de plúmulas de sementes vazias, ou folhas de capim quebradas causando pequenas vibrações do ar que eles nem conseguiam perceber.
— Nem um pássaro — disse Sam num lamento.
— Não, nem um pássaro — disse Gollum. — Pássaros bonzinhos! — continuou ele, lambendo os beiços. — Nenhum pássaro aqui. Há cobrasas, vermeses, coisas nas poças. Muitas coisas, muitas coisas ruins. Nenhum pássaro — terminou ele com tristeza. Sam olhou-o com aversão.
Assim passou o terceiro dia da jornada com Gollum. Antes que as sombras da tarde ficassem longas em terras mais felizes, eles partiram de novo, avançando sempre e fazendo apenas breves pausas. Paravam nem tanto para descansar, mas para ajudar Gollum; pois agora até mesmo ele tinha de avançar com grande cuidado, e algumas vezes ficava perdido por um tempo. Tinham chegado bem ao centro dos Pântanos Mortos, e estava escuro.
Caminhavam devagar, abaixados e mantendo-se em fila, seguindo atentamente cada movimento que Gollum fazia. Os brejos iam ficando mais úmidos, abrindo-se em amplos pântanos estagnados, entre os quais ficava cada vez mais difícil encontrar lugares mais firmes onde pudessem pisar sem que os pés afundassem numa lama gorgolejante.
Os viajantes eram leves; caso contrário talvez nenhum deles tivesse conseguido atravessar.
Logo tudo ficou completamente escuro: o próprio ar parecia negro e pesado de se respirar. Quando luzes apareceram, Sam esfregou os olhos: teve a impressão de que sua cabeça estava ficando estranha. Primeiro viu um com o canto do olho esquerdo, um fogofátuo de brilho opaco que desapareceu; mas outros apareceram logo depois: alguns semelhantes a uma fumaça de brilho fraco, outros como chamas enevoadas piscando lentamente sobre velas invisíveis; aqui e ali se retorciam como lençóis fantasmagóricos desfraldados por mãos ocultas Mas nenhum de seus companheiros disse nada.
Finalmente Sam não pôde mais se segurar.
— Que são essas coisas, Gollum? — disse ele num sussurro. — Essas luzes? Estão em toda a nossa volta. Estamos numa armadilha? Quem são elas?
Gollum ergueu os olhos. Uma água escura se espalhava à sua frente, e ele se arrastava no chão, de um lado para o outro, sem certeza do caminho. — Sim, estão em toda a nossa volta — sussurrou ele. — As luzes enganosas. Velas de cadáveres, sim, sim. Não dê atenção a elas! Não olhe! Não as siga! Onde está o mestre?
Sam virou-se e viu que Frodo ficara para trás. Não conseguia enxergá-lo.
Voltou alguns passos para dentro da escuridão, sem ousar ir muito longe, ou chamá-lo numa voz mais alta que um sussurro rouco. De repente, trombou com Frodo, que estava parado, perdido em pensamentos, olhando para as luzes opacas. As mãos estavam imóveis ao longo do corpo; água e lama pingavam delas.
— Venha, Sr. Frodo! Não olhe para elas! Gollum disse que não devemos! Vamos alcançá-lo e sair desse lugar amaldiçoado o mais rápido possível — se pudermos!
— Tudo bem — disse Frodo, como se retornasse de um sonho. — Estou indo! Vá!
Correndo outra vez para frente, Sam tropeçou, prendendo o pé em alguma raiz ou touceira velha. Caiu pesadamente sobre as mãos, que afundaram muito num lodo pegajoso, de modo que seu rosto ficou próximo à superfície do pântano escuro.
Ouviu-se um chiado fraco, um cheiro fétido subiu, a s luzes piscaram, dançaram e se contorceram.
Por um momento, a água embaixo dele ficou semelhante a uma janela, coberta por um vidro encardido, através do qual ele espiou. Arrancando as mãos do brejo, ele deu um salto para trás e gritou. — Há coisas mortas, rostos mortos na água disse ele cheio de terror.
— Rostos mortos!
Gollum riu.
— Os Pântanos Mortos, é, sim: esse é o nome deles — disse ele gargalhando. — Você não deve olhar quando as velas estão acesas.
— Quem são eles? O que são eles? — perguntou Sam tremendo, voltando-se para Frodo que agora vinha logo atrás.
— Não sei — disse Frodo numa voz que parecia saída de um sonho. Mas também os vi. Nas poças, quando as velas estão acesas. Jazem em todas as poças, rostos pálidos, nas profundezas das águas escuras. Eu os vi: rostos repugnantes e maus, e rostos nobres e tristes. Muitos rostos altivos e belos, e ervas em seus cabelos prateados. Mas todos nojentos, podres, todos mortos. Há uma luz terrível neles. — Frodo cobriu os olhos com as mãos. — Não sei quem são; mas tive a impressão de ter visto ali homens e elfos, e orcs ao lado deles.
— É, sim — disse Gollum. — Todos mortos, todos podres. Elfos e homens e orcs. Os Pântanos Mortos. Houve uma grande batalha há muito tempo, sim, assim lhe disseram quando Sméagol era jovem, quando eu era jovem antes de o Precioso chegar. Foi uma grande batalha. Homens altos com grandes espadas, e elfos terríveis, e orcses gritando.
Lutaram sobre a planície por dias e meses diante dos Portões Negros. Mas os Pântanos cresceram desde então, engoliram os túmulos, sempre se espalhando, se espalhando.
— Mas isso foi há uma ou duas eras — disse Sam. — Os Mortos não podem realmente estar lá. Isso é alguma feitiçaria criada na Terra Escura?
— Quem pode saber? Sméagol não sabe — respondeu Gollum. — Você não consegue alcançá-los, não consegue atingi-los. Nós tentamos uma vez, sim, precioso. Eu tentei uma vez; mas não é possível alcançá-los. Apenas figuras para se ver, talvez, não para se tocar. Não, precioso. Todos mortos.
Sam lançou-lhe um olhar obscuro e estremeceu de novo, pensando que podia adivinhar por que Gollum tinha tentado tocá-los.
— Bem, eu não quero vê-los — disse ele. — Nunca mais! Podemos continuar e sair daqui?
— Sim, sim — disse Gollum. — Mas devagar, muito devagar. Com muito cuidado! Ou os hobbits vão descer para se juntar aos mortos e acender pequenas velas. Sigam Sméagol! Não olhem para as luzes!
Arrastou-se outra vez para a direita, procurando um caminho que contornasse o brejo. Os outros vinham logo atrás, abaixando-se, com freqüência usando as mãos como ele fazia. “Seremos três Gollums preciosos numa fileira, se isso continuar por muito tempo”, pensou Sam.
Finalmente chegaram à extremidade do pântano negro, e o atravessaram, perigosamente, rastejando, ou saltando de uma traiçoeira ilha de moita para a outra. Com freqüência perdiam o pé, tropeçando ou caindo com as mãos em águas fétidas semelhantes a fossas, até ficarem cobertos de lodo e sujos quase até o pescoço, fedendo às narinas uns dos outros.
Já era tarde da noite quando finalmente atingiram terra mais firme de novo.
Gollum chiou e sussurrou consigo mesmo, mas parecia que ele estava satisfeito: de um modo misterioso, graças a algum sentido que misturava tato, olfato, e uma memória prodigiosa para formas no escuro, ele parecia saber outra vez exatamente onde estava, e ter certeza da estrada de novo.
— Agora vamos em frente! — disse ele. — Hobbits bonzinhos! Hobbits corajosos!
Muito, muito cansados, é claro; nós também estamos, meu precioso, todos nós. Mas precisamos levar o mestre para longe das luzes maldosas, é, sim, precisamos. — Com essas palavras partiu de novo, quase num trote, descendo o que parecia ser uma alameda comprida entre os juncos, e os hobbits foram aos tropeços atrás dele, o mais rápido que conseguiam. Mas logo ele parou de repente e farejou o ar cheio de dúvidas, chiando como se estivesse preocupado ou incomodado com alguma coisa outra vez.
— O que foi — rosnou Sam, interpretando os sinais de modo errado. Para que farejar?
O mau cheiro quase me derruba com o nariz tampado. Você fede, e o mestre fede, e tudo em volta fede.
— É, sim, e Sam fede — respondeu Gollum. — O pobre Sméagol sente o cheiro, mas o bom Sméagol o suporta. Ajuda o mestre bonzinho. Mas isso não é problema. O ar está se mexendo, uma mudança está chegando. Sméagol fica pensando; não está feliz.
Continuou outra vez, mas seu desconforto cresceu, e de vez em quando ele se levantava totalmente, virando o pescoço para o leste e para o sul. Por algum tempo, os hobbits não conseguiram ouvir ou sentir o que o estava preocupando.
Então, de repente, todos os três pararam, imóveis e escutando. Frodo e Sam tiveram a impressão de ouvir, distante, um longo grito lamentoso, alto, agudo e cruel. Eles tremeram. No mesmo momento, puderam perceber a agitação do ar; ficou muito frio.
Quando pararam, forçando os ouvidos, escutaram um barulho como um vento vindo na distância. As luzes embaçadas tremeram, diminuíram e se apagaram.
Gollum não se mexia. Ficou parado, tremendo e balbuciando para si mesmo, até que numa rajada o vento os atingiu, chiando e rosnando por sobre os pântanos. A noite ficou menos escura, com luz suficiente para que eles pudessem ver, ou quase ver, tufos disformes de névoa se enrolando e se contorcendo conforme rolavam e passavam por eles. Erguendo os olhos, eles viram as nuvens se partindo e se dividindo; então, acima e ao sul, a lua tremeluziu, vagando por sobre a ruína que havia no céu.
Por um momento, a visão dela alegrou os corações dos hobbits: mas Gollum se abaixou, murmurando maldições para a Cara Branca. Então Frodo e Sam, olhando para o céu, respirando profundamente o ar mais fresco, viram-na se aproximar: uma pequena nuvem voando das colinas malditas; uma sombra negra enviada de Mordor; uma figura enorme, alada e agourenta. Passou através da lua, e com um grito mortal foi embora em direção ao oeste, superando o vento em sua velocidade alucinante.
Eles caíram para frente, rastejando sem cuidado sobre aterra fria. Mas a sombra de terror fez um círculo e retornou, passando agora mais baixo, bem acima deles, deslizando sobre o fedor do brejo com suas asas horríveis. E depois se foi, voando de volta para Mordor com a velocidade da ira de Sauron; e atrás dela foi-se o vento rugindo, deixando os Pântanos Mortos vazios e abandonados. O deserto nu, até onde a vista podia alcançar, mesmo até a ameaça distante das montanhas, estava salpicado pelo luar intermitente.
Frodo e Sam se levantaram, esfregando os olhos, como crianças que acordam de um pesadelo para encontrar a noite familiar ainda sobre o mundo. Mas Gollum ficou deitado no chão, como se estivesse atordoado. Reanimaram-no com dificuldade, e por um tempo ele se recusou a erguer o rosto, mas de joelhos se apoiou nos cotovelos, cobrindo a cabeça com as grandes mãos chatas.
— Espectros! — gemeu ele. — Espectros com asas! O Precioso é o mestre deles. Eles enxergam tudo, tudo. Nada pode se esconder deles. Maldita Cara Branca! E eles contam tudo para Ele. Ele vê, Ele sabe. Ach, gollum, Gollum, gollum! — Foi só quando a lua tinha descido, avançando muito a oeste do Tol Brandir, que ele se levantou e fez um movimento.
A partir daquele incidente Sam teve a impressão de sentir uma mudança em Gollum de novo. Estava mais carinhoso e supostamente amigável; mas Sam algumas vezes o surpreendia lançando uns olhares estranhos, especialmente em direção a Frodo; e ele voltava cada vez mais à sua velha maneira de falar. E Sam tinha outra ansiedade crescente. Frodo parecia estar cansado, cansado a ponto da exaustão. Não dizia nada, na verdade dificilmente falava alguma coisa; e também não reclamava, mas caminhava como alguém que carrega um fardo cujo peso está constantemente aumentando; arrastava-se cada vez mais devagar, de modo que Sam freqüentemente precisava pedir a Gollum que esperasse e não deixasse seu mestre para trás.
De fato, a cada passo que dava na direção dos portões de Mordor, Frodo sentia o Anel na corrente em volta de seu pescoço ficar mais difícil de carregar. Começava agora a senti-lo como um verdadeiro peso que o atraía para o leste. Mas, muito mais que isso, ele estava preocupado com o Olho: era esse o nome que lhe dava quando falava consigo mesmo. Era isso, mais que o peso do Anel, que o fazia se curvar e se abaixar conforme caminhava. O Olho: aquela horrível sensação crescente de uma vontade hostil que lutava com grande força para penetrar todas as sombras de nuvens, e a terra e a carne, para vê-lo: para cravá-lo sob seu olhar mortal, nu, imóvel.
Tão tênues, tão frágeis e tênues estavam ficando os véus que ainda ofereciam proteção contra ele. Frodo sabia exatamente onde a moradia atual e o coração daquela vontade estavam: e com a certeza com a qual um homem diz a direção do sol com os olhos fechados. Ele a estava encarando, e sua potência pesava-lhe sobre as pálpebras.
Gollum provavelmente estava sentindo algo do mesmo tipo. Mas o que acontecia em seu coração ignóbil, dividido entre a pressão do Olho e o desejo de possuir o Anel, e sua promessa forçada feita em parte pelo medo do ferro frio, os hobbits não podiam adivinhar. Frodo não pensava nisso. A mente de Sam estava quase totalmente ocupada com seu mestre, mal notando a nuvem escura que se abatera sobre o seu próprio coração.
Colocara Frodo à sua frente agora, e ficava de olho em cada movimento seu, apoiando-o quando tropeçava, tentando encorajá-lo com palavras desajeitadas.
Quando finalmente o dia chegou, os hobbits ficaram surpresos em ver como as ominosas montanhas já estavam mais perto. O ar agora estava mais claro e frio e, embora ainda muito distantes, as muralhas de Mordor deixavam de ser uma ameaça nebulosa no limiar da visão, e já apareciam corno torres negras e inflexíveis olhando carrancudas através de uma região abandonada e sombria. Os pântanos estavam chegando ao fim, esvaindo-se em turfas mortas e amplas planícies de lama seca e rachada. O terreno à frente subia em longas encostas rasas, desertas e cruéis, em direção ao deserto que se estendia até o portão de Sauron.
Enquanto a luz cinzenta durou, eles se agacharam sob uma pedra negra como vermes, tremendo, com medo de que o terror alado passasse e os espiasse com seus olhos cruéis. O restante daquela viagem foi uma sombra de medo crescente, na qual a memória não podia encontrar nada em que se apoiar. Por mais duas noites eles continuaram lutando através daquela terra cansativa e sem trilhas. Tinham a impressão de que o ar ficava mais pesado, repleto de um terrível mau cheiro que lhes afetava a respiração e secava suas bocas.
Finalmente, na quinta noite desde que tinham pegado a estrada com Gollum, pararam mais uma vez. Diante deles, escuras no alvorecer, as grandes montanhas atingiam tetos de fumaça e nuvem. De seus pés saltavam enormes contrafortes e colinas quebradas que estavam agora no máximo a uns vinte quilômetros.
Frodo olhava em volta aterrorizado. Por mais pavorosos que tivessem sido os Pântanos dos Mortos, e as áridas charnecas das Terras-de-Ninguém, muito mais odioso era aquele lugar que o dia lento agora revelava gradativamente aos seus olhos contraídos.
Até mesmo ao Brejo dos Rostos Mortos algum espectro desfigurado de primavera poderia chegar; mas no ponto onde estavam agora nem a primavera nem o verão jamais chegariam outra vez. Ali nada vivia, nem mesmo as excrescências leprosas que se alimentam da podridão.
As poças sufocantes estavam cheias de cinzas e lama que se espalhava, num branco-acinzentado repugnante, como se as montanhas tivessem vomitado a imundície de suas entranhas sobre as terras que as circundavam. Altos montes de pedra esmigalhada e esmagada, grandes cones de terra arruinados pelo fogo e manchados de veneno jaziam como um cemitério obsceno em fileiras intermináveis, lentamente reveladas na luz relutante.
Tinham chegado à desolação que jazia diante d e Mordor: o monumento permanente do trabalho escuro de seus escravos, que deveria perdurar quando todos os seus propósitos se tornassem inócuos: uma terra aviltada, adoecida além de qualquer cura — a não ser que o Grande Mar a cobrisse e a lavasse com o esquecimento.
— Estou enjoado — disse Sam, Frodo não disse nada.
Por um tempo ficaram ali, como homens no limiar de um sono em que ronda o pesadelo, evitando-o, embora saibam que apenas podem chegar ao dia através das sombras.
A luz se espraiou e ficou mais intensa. Os poços sufocantes e os montes venenosos ficaram medonhamente visíveis. O sol subira no céu, andando por entre nuvens e longas bandeiras de fumaça, mas até mesmo a luz do sol estava aviltada.
Os hobbits não receberam bem aquela luz; parecia hostil, revelando-os em seu desamparo — pequenos fantasmas guinchadores que vagavam em meio aos montes de cinza do Senhor do Escuro.
Cansados demais para avançar, procuraram algum lugar onde pudessem descansar.
Por um tempo ficaram sem dizer nada, sob a sombra de um monte de escória; mas vapores sujos saíam dele, afetando-lhes a garganta e sufocando-os. Gollum foi o primeiro a se levantar. Ergueu-se resmungando e amaldiçoando, e sem qualquer palavra ou olhar para os hobbits afastou-se, andando sobre as quatro patas. Frodo e Sam se arrastaram atrás dele, até que chegaram a um poço grande e quase circular, com altos barrancos do lado oeste. Era frio e parado, e uma fossa imunda de lodo oleoso e multicor jazia no fundo. Nesse buraco maligno se esconderam, esperando que em sua sombra pudessem escapar da atenção do Olho.
Aquele dia passou lentamente. Uma terrível sede os incomodava , mas eles beberam apenas alguns goles de seus cantis — enchidos pela última vez no fosso que agora, quando se lembravam, parecia-lhes um lugar de paz e beleza. Os hobbits se revezaram para vigiar. No início, por mais cansados que estivessem, nenhum deles conseguiu dormir de modo algum; mas, à medida que o sol distante foi descendo para dentro de nuvens que se moviam lentamente, Sam cochilou. Era a vez de Frodo ficar de guarda.
Recostou-se no barranco do poço, mas isso não aliviou a sensação de peso que sentia. Ergueu os olhos para o céu riscado de fumaça e viu espectros estranhos, figuras escuras cavalgando, e rostos vindos do passado. Perdeu a noção do tempo, suspenso entre o sono e a consciência, até que o esquecimento tomou conta dele.
De repente Sam acordou com a impressão de que ouvira seu mestre chamando.
A noite já caíra. Frodo não poderia ter chamado, pois adormecera e tinha escorregado para baixo, chegando quase ao fundo do poço. Gollum estava ao lado dele.
Por um momento, Sam pensou que ele estava tentando acordar Frodo; depois viu que não se tratava disso.
Gollum estava conversando consigo mesmo. Sméagol travava um debate com algum outro pensamento que usava a mesma voz, mas a fazia guinchar e chiar. Uma luz opaca e uma luz verde alternavam em seus olhos, conforme falava.
— Sméagol prometeu — disse o primeiro pensamento.
— Sim, sim, meu precioso — veio a resposta. — Nós prometemos: salvar nosso precioso, não deixar que Ele o tenha — nunca. Mas está indo para Ele, sim, mais próximo a cada passo, O que o hobbit vai fazer com Ele? Nós fica pensando, sim, nós fica.
— Não sei, Não posso fazer nada. O mestre está com Ele. Sméagol prometeu ajudar o mestre.
— Sim, sim, ajudar o mestre: o mestre do Precioso. Mas se nós fosse mestre, então nós poderia se salvar, sim, e ainda assim manter a promessa.
— Mas Sméagol disse que seria muito, muito bom. Hobbit bonzinho! Tirou a corda cruel da perna de Sméagol. Ele fala comigo com gentileza.
— Muito, muito bom, hein, meu precioso? Vamos ser bons, bons como peixes, minha doçura, para nós mesmo. Não machucar o hobbit bonzinho, claro que não, não.
— Mas o Precioso mantém a promessa — objetou a voz de Sméagol. Então pegue ele — disse a outra —, e vamos ter ele nós mesmo! Então vamos ser mestre, gollum! Fazer o outro hobbit, o hobbit mau e desconfiado, fazer ele rastejar, sim, Gollum!
— Mas não o hobbit bonzinho?
— Oh, não, não se isso não nos agrada. Mas ele é um Bolseiro, meu precioso, sim, um Bolseiro. Um Bolseiro roubou ele. Encontrou ele e não disse nada, nada. Nós odeia os Bolseiros.
— Não, não este Bolseiro.
— Sim, qualquer Bolseiro. Todas as pessoas que têm o Precioso. Precisamos tomar ele.
— Mas Ele vai ver, Ele vai saber. Vai tirá-lo de nós!
— Ele vê. Ele sabe. Ele nos escutou fazendo promessas bobas— contra as ordens d’Ele, sim. Precisamos ter ele. Os Espectros estão procurando. Precisamos pegá-lo.
— Não para Ele!
— Não, minha doçura. Veja bem, meu precioso: se nós o tivermos, então Poderemos escapar, até mesmo d’Ele, hein? Talvez nós fique muito forte, mais forte que os Espectros. Senhor Sméagol? Gollum, o Grande? O Gollum! Comer peixe todo dia, três vezes por dia, peixes frescos do mar. Preciosíssimo Gollum! Nós quer ele, nós quer ele, nós quer ele!
— Mas tem eles dois. Eles vão acordar rápido demais e nos matar choramingou Sméagol num último esforço. — Não agora. Ainda não.
— Nós quer ele! Mas — e aqui houve uma longa pausa, como se um novo pensamento tivesse acordado. — Não, ainda não, é? Ela pode ajudar. Ela pode, sim.
— Não, não! Desse jeito não! — gemeu Sméagol.
— Sim, nós quer ele! Nós quer ele!
Cada vez que o segundo pensamento falava a mão comprida de Gollum se estendia lentamente, procurando Frodo, e depois era retirada de sopetão, quando Sméagol falava de novo. Finalmente os dois braços, com longos dedos flexionados e crispados, buscaram o pescoço dele.
Sam estivera deitado e quieto, fascinado pelo debate, mas vigiando cada movimento que Gollum fazia, com os olhos semicerrados. Em sua mente simples, a fome comum, o desejo de comer hobbits, tinha parecido o principal perigo em Gollum.
Percebia agora que não era assim: Gollum sentia o terrível apelo do Anel. O Senhor do Escuro era Ele, é claro; mas Sam não podia imaginar quem era Ela. Alguma das amizades repulsivas que o pequeno patife tinha feito em suas viagens, ele supunha. Depois esqueceu o assunto, pois estava claro que as coisas tinham ido longe demais, e estavam ficando perigosas. Sentia um grande peso nas pernas, mas despertou e sentou-se. Alguma coisa o aconselhava a ter cuidado e não revelar que tinha ouvido o debate. Soltou um suspiro alto e bocejou ruidosamente.
— Que horas são? — disse ele numa voz sonolenta.
Gollum soltou um longo chiado através dos dentes. Levanto u-se por um momento, tenso e ameaçador, e então desfaleceu, caindo de quatro para frente e arrastando-se até a parede do poço. — Hobbits bonzinhos! Sam bonzinho! — disse ele.
— Cabeças sonolentas, sim, cabeças sonolentas! Deixe que o bom Sméagol fique de guarda! Mas já e quase noite. O crepúsculo está caindo. Hora de ir.
“Está mais que na hora”, pensou Sam. “E na hora de nos separarmos também.”
Apesar disso, passou-lhe pela cabeça a dúvida se Gollum solto não seria agora tão perigoso quanto se mantido com eles. — Maldito! Gostaria que fosse estrangulado — murmurou ele. Foi descendo pelo barranco e acordou seu mestre.
Muito estranhamente, Frodo se sentia reconfortado. Estivera sonhando. A sombra escura passara, e uma bela visão o havia visitado naquela terra de doença. Dela nada permanecera em sua memória; mesmo assim, por causa da visão, ele se sentia alegre e com o coração mais leve. O fardo ficara menos pesado sobre seus ombros. Gollum o recebeu alegre feito um cão. Ria e tagarelava, estalando os longos dedos, e acariciando com as patas os joelhos de Frodo.
Frodo lhe sorriu.
— Venha! — disse ele. — Você nos guiou bem e fielmente. Esta é a última etapa. — Leve-nos até o Portão, e depois eu não pedirei que vá mais à frente. Leve-nos ao Portão, e você pode ir para onde quiser — menos ao encontro de nossos inimigos.
— Para o Portão, é? — chiou Gollum, parecendo surpreso e amedrontado. — Para o Portão, diz o mestre! Sim, ele diz! E o bom Sméagol faz o que ele manda. Oh, sim. Mas quando nós chega perto, nós vai ver, talvez, nós vai ver então. Não vai ser bonito de jeito nenhum, oh, não! Oh, não!
— Ande logo — disse Sam. — Vamos acabar com isso!
Na caída da noite eles saíram do poço e lentamente traçaram seu caminho através da terra morta. Não tinham ido muito longe quando sentiram mais uma vez o medo que os acometera quando a figura alada passou varrendo os pântanos. Pararam, abaixando-se sobre o chão malcheiroso; mas não viram nada no céu escuro do início da noite, e logo a ameaça passou, muito acima, talvez indo em alguma missão urgente de Barad-dûr. Depois de um tempo Gollum se levantou e avançou de novo, murmurando e tremendo.
Cerca de uma hora após a meia-noite o medo lhes sobreveio uma terceira vez, mas agora parecia mais remoto, como se a criatura estivesse passando muito acima das nuvens, indo para o oeste a uma velocidade terrível. Gollum, entretanto, estava desesperado de medo, e convencido de que eles estavam sendo caçados, e de que sua aproximação já era conhecida.
— Três vezes — lamuriou-se ele. — Três vezes é uma ameaça. Eles nos sentem aqui, sentem o Precioso. O Precioso é o mestre deles. Não podemos avançar nem mais um pouco por aqui, não. É inútil, é inútil!
Pedidos e palavras gentis não tinham mais força. Só depois que Frodo ordenou energicamente e colocou a mão sobre o punho da espada é que Gollum concordou em levantar-se.
Então, finalmente, ele se ergueu com um rosnado, e foi na frente deles como um cachorro que levara uma surra.
Assim eles foram aos tropeços através do exaustivo final de noite, e até a chegada de um outro dia de medo eles andaram em silêncio com as cabeças baixas, sem enxergar nada, e sem ouvir nada além do vento chiando em suas orelhas.
O PORTÃO NEGRO ESTÁ FECHADO
Antes que o dia seguinte raiasse, a viagem a Mordor estava terminada. Os pântanos e o deserto haviam ficado para trás. Adiante, escuras contra um céu pálido, as grandes montanhas erguiam suas frontes ameaçadoras.
Erguia-se a oeste de Mordor a escura cordilheira de Ephel Dúath, as Montanhas da Sombra, e ao norte os picos quebrados e as cristas desoladas de Ered Lithui, da cor da cinza. Mas, à medida que essas cordilheiras se aproximavam uma da outra, sendo ambas na realidade partes de uma grande muralha que circundava as planícies lúgubres de Lithlad e de Gorgoroth, com o amargo mar interno de Númen ao meio, elas estendiam longos braços em direção ao norte; entre esses braços havia um desfiladeiro profundo. Era Cirith Gorgor, a Passagem Assombrada, a entrada para a terra do inimigo. Altos penhascos desciam dos dois lados, e saltando à frente de sua abertura viam-se duas colinas íngremes, negras e escalvadas. Sobre elas assomavam os Dentes de Mordor, duas torres altas e fortes. Em dias distantes, tinham sido construídas pelos homens de Gondor, altivos e poderosos, depois da derrota e fuga de Sauron, para evitar que ele tentasse retornar ao seu velho reino. Mas a força de Gondor fracassou, os homens dormiram, e por muitos longos anos as torres permaneceram vazias. Então Sauron retornou. Agora as torres de vigia, outrora em ruína, estavam reformadas, cheias de armas e guarnecidas de uma vigilância contínua.
Tinham faces de pedra, com janelas escuras que olhavam para o norte, o leste e o oeste, cada janela repleta de olhos que jamais dormiam.
Através da abertura da passagem, de penhasco a penhasco, o Senhor do Escuro construíra um baluarte de pedra. Nele se erguia um único portão de ferro, e na parte superior sentinelas andavam continuamente. Sob as colinas, de cada um dos lados, a rocha fora perfurada com uma centena de cavernas e buracos de vermes: ali uma tropa de orcs espreitava, pronta para a qualquer sinal avançar como formigas negras indo à guerra.
Ninguém podia passar pelos Dentes de Mordor sem sentir sua mordida, a não ser que fosse chamado por Sauron, ou soubesse as senhas secretas que abriam o Morarmon, o portão negro da sua terra.
Os dois hobbits olharam desesperados para as torres e para a muralha.
Mesmo à distância, podiam ver na luz fraca o movimento dos guardas negros sobre a muralha, e as patrulhas diante do portão. Estavam agora espiando por sobre a borda de uma concavidade rochosa, sob a sombra estendida do contraforte no extremo norte das Epliel Dúath. Atravessando o ar pesado em linha reta, talvez um corvo não voasse mais que duzentos metros entre o esconderijo deles e o topo negro da torre mais próxima.
Uma fumaça apagada se espiralava sobre ela, como se um fogo queimasse na colina mais abaixo.
O dia chegou e o sol fraco cintilava sobre as cordilheiras mortas de Ered Lithui.
Então, de súbito, ouviu-se o clangor de trombetas com garganta de bronze: soaram das torres de vigia, e distantes, de fortalezas ocultas e de postos avançados nas colinas, chegaram toques em resposta; e ainda mais distantes, remotos mas profundos e agourentos, ecoaram mais além na terra oca as trombetas e os poderosos tambores de Barad-dûr. Mais UM dia terrível de medo e trabalho chegara a Mordor; os vigias da noite foram chamados às suas masmorras e salões profundos, e os vigias diurnos, cruéis e com olhares malignos, marchavam para seus postos, O aço reluzia fracamente sobre a muralha.
— Bem, aqui estamos — disse Sam. — Aí está o Portão, e agora me parece que não conseguiremos ir mais adiante. Palavra de honra, o Feitor teria uma ou duas coisas a dizer se me visse agora! Sempre dizia que eu me sairia mal, se não olhasse por onde andava, dizia sim. Mas agora não suponho que verei o velho outra vez. Ele não vai ter a oportunidade para um Eu te disse, Sam: tanto pior. Eu o deixaria continuar falando enquanto tivesse fôlego, se pudesse ver seu velho rosto de novo. Mas primeiro precisaria de um banho, caso contrário ele não me reconheceria.
— Acho que não adianta perguntar “que caminho tomaremos agora?”. Não podemos ir adiante — a não ser que queiramos pedir aos orcs uma carona.
— Não, não! — disse Gollum. — Não adianta. Não podemos ir adiante. Sméagol disse. Ele disse: vamos até o Portão, e depois veremos. E estamos vendo. Oh, sim, meu precioso, estamos vendo. Sméagol sabia que os hobbits não podiam vir por aqui. Oh, sim, Sméagol sabia.
— Então por que raios nos trouxe até aqui? — disse Sam, sem disposição para ser justo ou razoável.
— O mestre mandou, O mestre diz: Leve-nos ao Portão. Aí o bom Sméagol faz isso. O mestre mandou, mestre sábio.
— Mandei — disse Frodo. Seu rosto estava fechado e sinistro, mas resoluto. Estava sujo, desfigurado e moído de cansaço, mas deixara de se curvar, e tinha os olhos límpidos.
— Eu mandei, porque pretendo entrar em Mordor, e não conheço outro caminho, Portanto, vou por aqui. Não peço que ninguém me acompanhe.
— Não, não, mestre! — gemeu Gollum, dando-lhe uns tapinhas leves e demonstrando uma grande perturbação. — Não adianta ir por aqui! Não adianta! Não leve o Precioso para Ele. Ele vai nos devorar, se consegui-lo, devorar todo o mundo. Guarde-o, querido mestre, e seja bom para Sméagol. Não deixe que Ele o tenha. Ou vá embora, vá para lugares agradáveis e devolva-o ao Sméagolzinho. Sim, sim, mestre: devolvê-o. Que tal? Sméagol vai Mantê-lo a salvo: vai fazer um monte de coisas boas, especialmente para hobbits bonzinhos. Hobbits vão para casa, não vão para o Portão!
— Recebi ordens de ir à terra de Mordor, e portanto irei — disse Frodo. Se só há um caminho, então deverei tomá-lo. Aconteça o que acontecer.
Sam não disse nada. O olhar no rosto de Frodo foi o suficiente para ele; sabia que suas palavras seriam inúteis. E, afinal de contas, não tivera qualquer esperança verdadeira na história toda desde o inicio; mas sendo um hobbit alegre não precisou de esperança, enquanto o desespero pôde ser prorrogado.
Agora tinham atingido o mais amargo fim. Sam permanecera ao lado de seu mestre o tempo todo; esse era o motivo principal de sua vinda, por isso continuaria ao lado dele.
Seu mestre não iria a Mordor sozinho. Sam iria com ele — e de qualquer forma os dois se livrariam de Gollum.
Gollum, entretanto, não pretendia deixar que se livrassem dele, por enquanto.
Ajoelhou-se aos pés de Frodo, torcendo as mãos e guinchando.
— Não por aqui, mestre! — implorava ele. — Há um outro caminho. Oh, sim, há. Outro caminho, mais escuro, mais difícil de encontrar, mais secreto. Mas Sméagol o conhece. Deixe que Sméagol lhe mostre.
— Outro caminho! — disse Frodo desconfiado, voltando-se para Gollum com olhos perscrutadores.
— Ssssim! Ssim, é verdade! Havia um outro caminho. Sméagol o encontrou. Vamos ver se ainda está lá!
— Você não o mencionou antes.
— Não, o mestre não pediu. O mestre não disse o que pretendia fazer. Ele não conta para o pobre Sméagol. Ele diz: Sméagol, leve-me ao Portão — e depois adeus! Sméagol pode fugir e ser bonzinho. Mas agora ele diz: pretendo entrar em Mordor por este caminho. Então Sméagol está com muito medo. Não quer perder o mestre bonzinho. E ele prometeu, o mestre o fez prometer, salvar o Precioso. Mas o mestre vai levá-lo direto para Ele, direto para a Mão Negra, se o mestre for por aqui. Então Sméagol precisa salvar os dois, e pensa num outro caminho que havia, uma vez. Mestre bonzinho. Sméagol muito bom, sempre ajuda.
Sam franziu a testa. Se pudesse perfurar Gollum com os olhos, teria Perfurado. Sua mente se enchia de dúvidas. Ao que parecia, Gollum estava verdadeiramente preocupado e ansioso por ajudar Frodo. Mas Sam, lembrando o debate que ouvira, achava difícil acreditar que o Sméagol há muito submerso tivesse saído vencedor: de qualquer forma, aquela voz não dissera a última palavra no debate. Sam supunha que as metades Gollum e Sméagol (ou, como ele as denominava em sua mente, Caviloso e Fedegoso) tinham feito uma trégua e uma aliança temporária: nenhuma das partes queria que o Inimigo obtivesse o Anel; ambas desejavam evitar que Frodo fosse capturado, e mantê-lo sob sua vista, enquanto fosse possível — pelo menos enquanto Fedegoso tivesse uma chance de colocar as mãos em seu “Precioso”. Que houvesse realmente um outro caminho de entrada para Mordor Sam duvidava.
“O bom é que nenhuma das metades do velho vilã o sabe o que o mestre pretende fazer”, pensou ele. “Se ele soubesse que o Sr. Frodo está tentando pôr um fim em seu Precioso de uma vez por todas, haveria problemas logo, logo, eu aposto. De qualquer forma, o velho Fedegoso está com tanto medo do Inimigo — e está obedecendo a algum tipo de ordem dele, ou estava — que preferiria nos entregar a ser pego nos ajudando, ou talvez a permitir que seu precioso fosse derretido. Pelo menos é isso que penso. E espero que o mestre considere o assunto com cuidado. Sabedoria não lhe falta, mas tem o coração mole, esse é o jeito dele. Está fora do alcance de qualquer Gamgi adivinhar o que ele fará em seguida.”
Frodo não respondeu a Gollum imediatamente. Enquanto essas dúvidas passavam através da mente de Sam, que era vagarosa mas perspicaz, ele ficou parado, olhando na direção do escuro penhasco de Cirith Gorgor. A concavidade na qual tinham-se refugiado era cavada na encosta de uma colina baixa, um pouco acima de um vale comprido em forma de trincheira, que se abria entre ela e o contraforte externo das montanhas. No meio do vale ficavam os negros alicerces da torre de vigia ocidental. À luz do dia as estradas que convergiam para o Portão de Mordor eram agora bem visíveis, claras e poeirentas; uma retornando numa curva para o norte; outra sumindo ao leste, para dentro da névoa que se adensava aos pés de Ered Lithuí; e uma terceira que vinha em sua direção.
Conforme desenhava uma curva brusca em torno da torre, a estrada prosseguia por um desfiladeiro estreito passando não muito abaixo da concavidade onde Frodo estava. A oeste, à sua direita, fazia uma curva, margeando os ombros das montanhas, e seguia para o sul, entrando nas profundas sombras que cobriam todas as encostas do lado oeste das Epliel Dúath; além do alcance da vista, ela continuava adiante, entrando na terra estreita entre as montanhas e o Grande Rio.
Conforme olhava, Frodo percebeu que havia uma grande agitação e movimento na planície. Era como se exércitos inteiros estivessem marchando, embora em sua maioria fossem escondidos pelos vapores e pela fumaça que subia dos brejos e das regiões desoladas mais adiante. Mas em alguns pontos ele captava o reluzir de lanças e capacetes;. e sobre as áreas planas ao lado das estradas podiam-se ver cavaleiros avançando em muitos grupos. Frodo se lembrou da visão que tivera á distância, quando estivera sobre o Amon Hen, havia apenas poucos dias, embora agora lhe parecesse que fora muitos anos atrás. Então se deu conta de que era vã a esperança que se agi tara em seu coração por um momento alucinado. As trombetas não tinham soado em desafio, mas em saudação. O Senhor do Escuro não estava sendo atacado pelos homens de Gondor, erguendo-se, como fantasmas vingadores, de túmulos onde a coragem havia muito tempo estava sepultada.
Estes eram homens de outra raça, vindos das selvagens terras do leste, reunindo-se ao chamado de seu Senhor Supremo; exércitos que tinham acampado diante de seu Portão durante a noite e agora marchavam para aumentar seu poder crescente. Como se de súbito percebesse completamente o perigo da posição deles, sozinhos, à luz crescente do dia, tão próximos daquela ameaça devastadora, Frodo puxou rápido seu frágil capuz cinzento sobre a cabeça, e desceu para dentro do valezinho. Depois voltou-se para Gollum.
— Sméagol — disse ele. — Vou confiar em você mais uma vez. Na verdade, parece que devo fazer isso, e que é meu destino receber sua ajuda, quando menos esperava, e que o seu destino é me ajudar, a mim, que você perseguiu por tanto tempo com propósitos malignos. Até agora, você honrou minha confiança e manteve sua promessa com sinceridade. Com sinceridade, eu digo e repito — acrescentou ele, com um olhar para Sam.
— Por duas vezes agora estivemos em suas mãos, e você não nos fez mal. Nem tentou tomar de mim aquilo que outrora buscava. Que a terceira vez seja a melhor! Mas eu o aviso, Sméagol, você está correndo perigo.
— Sim, sim, mestre! — disse Gollum. — Perigo terrível! Os ossos de Sméagol tremem só de pensar, mas ele não foge. Precisa ajudar o mestre bonzinho.
— Não quero dizer o perigo que todos nós corremos disse Frodo. — Estou dizendo um perigo que você corre sozinho. Você fez uma promessa em nome daquilo que chama o Precioso. Lembre-se disso! Isso o une a ele. Mas ele vai procurar um jeito de deformar suas palavras para que você mesmo traia a promessa e encontre a desgraça. Você já está sendo forçado. Revelou-se a mim agora há pouco, de maneira tola. Devolva-o para Sméagol, você disse. Não diga isso de novo! Não permita que esse pensamento cresça em seu íntimo! Você nunca vai tê-lo de volta. Mas o desejo de possuí-lo pode atraiçoá-lo e conduzi-lo a um fim amargo. Você nunca vai tê-lo de volta. Em extrema necessidade, Sméagol, eu colocaria no dedo o Precioso, e o Precioso o dominou há muito tempo. Se eu, usando-o, precisasse comandá-lo, você obedeceria, mesmo que fosse para pular de um precipício ou se jogar no fogo. E esta seria minha ordem. Então, tome cuidado, Sméagol!
Sam lançou para seu mestre um olhar de aprovação, misturado com surpresa: havia uma expressão em seu rosto e um tom em sua voz que ele nunca percebera antes.
Sempre lhe parecera que a gentileza do caro Sr. Frodo era tanta que deveria implicar uma grande dose de cegueira. É claro que ele também tinha a incompatível certeza de que o Sr. Frodo era a pessoa mais sábia do mundo (talvez com exceção do velho Sr. Bilbo e de Gandalf). Gollum, à sua própria maneira e com muito mais ressalvas, por conhecer Frodo por menos tempo, pode ter cometido o mesmo equívoco, confundindo gentileza com cegueira. De qualquer forma, as palavras de Frodo o consternaram e apavoraram. Começou a rastejar no chão, sem conseguir falar qualquer coisa inteligível além de mestre bonzinho.
Frodo esperou pacientemente por um tempo, e então falou outra vez com menos severidade.
— Vamos agora, Gollum, ou Sméagol, se deseja assim, fale-me sobre esse outro caminho, e me mostre, se puder, que esperança há nele, suficiente para justificar meu desvio do caminho direto. Estou com pressa.
Mas Gollum estava num estado lastimável, e a ameaça de Frodo o debilitara. Não foi fácil arrancar dele qualquer relatório, entre seus balbúcios e chiados e as frequentes interrupções durante as quais ele rastejava no chão e implorava para que os dois fossem gentis para com o “pobrezinho do Sméagol”. Depois de um tempo ficou um pouco mais calmo, e lentamente Frodo ficou sabendo que se um viajante seguisse a estrada que virava a oeste das Ephel Dúath, chegaria depois de um tempo a uma encruzilhada em meio a um circulo de árvores escuras. À direita uma estrada descia a Osgiliath e às pontes do Anduin; no meio a estrada conduzia para o sul.
— Sempre em frente, toda a vida — disse Gollum. — Nós nunca fomos por aquele caminho, mas dizem que ele continua por umas cem léguas, até que você vê a Grande Água que nunca está parada. Há um monte de peixes lá, e pássaros grandes comem peixes, pássaros bonzinhos: mas nunca fomos lá, infelizmente não!, nunca tivemos uma oportunidade. E mais adiante tem mais terras, eles dizem, mas o Cara Amarela é muito quente lá, e quase nunca há nuvens, e os homens são cruéis e têm caras escuras. Não queremos ver aquela terra.
— Não — disse Frodo. — Mas não se desvie de sua rota. E o terceiro caminho?
— Ah, sim, ah, sim, há um terceiro caminho — disse Gollum. — É a estrada à esquerda. Começa logo a subir, subir, virando e subindo de volta na direção das sombras altas. Quando contornar a pedra preta, o senhor vai ver, de repente vai ver diante do senhor, e vai querer se esconder.
— Ver, ver? Ver o quê?
— A velha fortaleza, muito velha, muito horrível agora. Costumávamos ouvir histórias do sul, quando Sméagol era jovem, há muito tempo. Oh, sim, costumávamos contar um monte de histórias à noite, sentados às margens do Grande Rio, nas terras dos salgueiros, quando o Rio também era mais jovem, gollum, gollum. — Começou a chorar e resmungar. Os hobbits esperaram pacientemente.
— Histórias do sul — Gollum continuou —, sobre os homens altos com olhos brilhantes, e suas casas como colinas de pedra, e a corôa de prata do rei deles e sua Árvore Branca: histórias maravilhosas. Construíram torres muito altas, e uma delas era prateada, e nela havia uma pedra como a lua, e em volta havia grandes muralhas brancas.
Oh, sim, havia muitas histórias sobre a Torre da Lua.
— Seria Minas Ithil, que Isildur, filho de Elendil, construiu — disse Frodo. — Foi Isildur quem decepou o dedo do Inimigo.
— Sim, Ele só tem quatro na Mão Negra, mas são suficientes — disse Gollum tremendo. — E Ele odiava a cidade de Isildur.
— E o que Ele não odeia? — disse Frodo. — Mas o que tem a Torre da Lua a ver conosco?
— Bem, mestre, ela estava lá, e está agora: a torre alta, e as casas brancas e a muralha; mas não novas agora, não bonitas. Ele a conquistou há muito tempo. Agora é um lugar terrível. Os viajantes estremecem ao avistá-la, escondem-se sorrateiramente, evitam sua sombra. Mas o mestre precisará ir por ali. É o único caminho alternativo. Pois lá as montanhas são mais baixas, e a velha estrada sobe sempre, até atingir uma passagem escura no topo, e então desce, desce outra vez — até Gorgoroth. — A voz de Gollum se transformou num sussurro e ele estremeceu.
— Mas qual será a vantagem? — perguntou Sam. — Com certeza, o Inimigo sabe tudo sobre suas próprias montanhas, e aquela estrada estará sendo tão vigiada quanto esta. A torre não está vazia, está?
— Oh, não, não vazia! — sussurrou Gollum. — Parece vazia, mas não está. Oh, não! Seres horripilantes vivem lá. Orcs, sim, sempre os orcs; mas bichos piores, bichos piores vivem lá também. A estrada sobe direto sob a sombra das muralhas e passa pelo portão. Nada se move na estrada sem que eles saibam. Os bichos lá dentro sabem: os Vigilantes Silenciosos.
— Então esse é o seu conselho, hein? — disse Sam. — Que devemos fazer outra longa marcha em direção ao sul, para nos vermos na mesma enrascada ou numa ainda pior quando chegarmos lá, se por acaso conseguirmos?
— Não, na verdade não — disse Gollum. — Os hobbits precisam ver, precisam tentar entender. Ele não espera ser atacado por aquele lado. Seu Olho está por toda a volta, mas dá mais atenção a alguns lugares que a outros. Ele não pode ver tudo ao mesmo tempo, ainda não. Vejam vocês. Ele conquistou toda a região a oeste das Montanhas da Sombra até o Rio, e agora se apossou das pontes. Acha que ninguém pode atingir a Torre da Lua sem travar uma grande batalha nas pontes, ou sem usar um monte de barcos que será impossível esconder e de que Ele saberá.
— Parece que você sabe muita coisa sobre o que Ele está fazendo e pensando — disse Sam. — Tem conversado com Ele ultimamente? Ou passado horas agradáveis com os orcs?
— Hobbit não bonzinho, não sensato — disse Gollum, lançando um olhar furioso para Sam e dirigindo-se a Frodo. — Sméagol conversou com os orcs, sim, é claro, antes de encontrar o mestre, e com vários povos: caminhou muito. E o que diz agora muitos povos estão dizendo. É aqui, no norte, que está o maior perigo dele, e o nosso. Um dia Ele virá ao Portão Negro, em breve. Grandes exércitos só podem vir por este caminho. Mas lá no oeste Ele nada teme, e há os Vigilantes Silenciosos.
— Certamente! — disse Sam, não se dando por vencido. — Então nós vamos subir e bater nos portões deles e perguntar se estamos na estrada certa para Mordor? Ou eles são silenciosos demais para responder? Não faz sentido. É melhor fazermos isso aqui, poupando uma longa viagem.
— Não faça piada sobre isso — chiou Gollum. — Não é nada engraçado! Não é não! Não é divertido. Não faz sentido tentar entrar em Mordor de jeito nenhum. Mas se o mestre diz eu preciso ir ou eu irei, então devemos tentar de alguma forma. Mas ele não precisa ir à terrível cidade, isso não, é claro que não. É aí que entra a ajuda de Sméagol, Sméagol bonzinho, embora ninguém conte para ele o que está acontecendo. Sméagol ajuda de novo. Ele achou. Ele sabe.
— O que é que você achou? — perguntou Frodo.
Gollum se agachou e sua voz se transformou de novo num sussurro.
— Uma pequena trilha que sobe até as montanhas; depois uma escada, uma escada estreita, ah, sim, muito comprida e estreita. E depois mais escadas. E depois — a voz ficou ainda mais baixa — um túnel, um túnel escuro; e finalmente uma pequena fissura, e uma trilha bem acima da trilha principal. Foi por ali que Sméagol saiu da escuridão. Mas isso foi anos atrás. A trilha pode ter desaparecido agora; mas talvez não, talvez não.
— Isso não me soa nada bem — disse Sam. De qualquer forma, você contando parece fácil demais. Se essa trilha ainda está lá, também estará sendo vigiada. Ela não era vigiada, Gollum? — Conforme dizia isso, percebeu, ou imaginou perceber, um brilho verde nos olhos dele. Gollum resmungou, mas n ão respondeu.
— Não é vigiada? — perguntou Frodo com rispidez. — E você escapou da escuridão, Sméagol? Ou será que teve permissão de partir, na verdade, em alguma missão? Pelo menos foi isso o que pensou Aragorn, que o encontrou nos Pântanos Mortos alguns anos atrás.
— Isso é mentira! — chiou Gollum, e uma luz maligna surgiu em seus olhos à menção do nome de Aragorn. — Ele mentiu a meu respeito, mentiu. Na verdade eu escapei, sem que ninguém me ajudasse. De fato, foi-me ordenado que procurasse o Precioso; e eu procurei e procurei, é claro que eu procurei. Mas não para o Senhor do Escuro. O Precioso era nosso, era meu, digo a vocês. Eu realmente escapei.
Frodo teve uma estranha certeza de que, nesse assunto, pela primeira vez Gollum não estava tão longe da verdade como se poderia suspeitar; de que de alguma forma ele tinha encontrado um modo de escapar de Mordor, e de que pelo menos acreditava que tinha sido por sua própria esperteza. Como primeiro sinal de evidência, Frodo notou que Gollum usou eu, e isso parecia geralmente ser um sinal, em suas raras manifestações, de que alguns resquícios de uma antiga sinceridade estavam predominando naquele momento. Mas, mesmo se pudesse confiar em Gollum nesse ponto, Frodo não se esquecia dos ardis do Inimigo. A “escapada” poderia ter sido permitida ou arranjada, com o consentimento da Torre Escura. De qualquer forma, era visível que Gollum estava ocultando muita coisa.
— Pergunto outra vez — disse ele -: esse caminho secreto não é vigiado? Mas a menção do nome de Aragorn deixara Gollum de mau humor.
Exibia todo o ar injuriado de um mentiroso do qual se suspeita na primeira vez em que ele diz a verdade, ou parte dela. Não respondeu.
— Não é vigiada? — repetiu Frodo.
— Sim, sim, talvez. Não há lugares seguros nesta região — disse Gollum num tom zangado. — Nenhum lugar seguro. Mas o mestre precisa tentar, ou ir para casa. Não há outra saída. — Não conseguiram arrancar-lhe mais nada. O nome do local perigoso e da passagem alta ele não podia, ou não estava disposto a dizer.
O nome era Cirith Ungol, um nome de terrível repercussão. Aragorn talvez pudesse ter-lhes dito esse nome e seu significado; Gandalf os teria advertido. Mas estavam sozinhos, e Aragorn estava distante; Gandalf se encontrava em meio às ruínas de Isengard, lutando contra Saruman, atrasado pela traição. Apesar disso, no momento em que dizia suas últimas palavras a Saruman, e o palantír explodia em chamas contra os degraus de Orthanc, seus pensamentos se voltavam para Frodo e Samwise; através de longas léguas sua mente os procurava, com esperança e pena.
Talvez Frodo tenha sentido isso, sem perceber, como acontecera sobre o Amon Hen, apesar de acreditar que Gandalf tinha partido, partido para sempre dentro das sombras, na distante região de Moria.
Sentou-se no chão por um longo tempo com a cabeça abaixada, lutando para recordar tudo o que Gandalf lhe dissera. Mas para essa escolha não conseguia lembrar de conselho algum. Na verdade, a orientação de Gandalf lhes fora tomada cedo demais, cedo demais, quando a Terra Escura ainda estava muito distante. Como finalmente entrariam nela Gandalf não dissera. Talvez não pudesse dizer. A entrar na fortaleza do Inimigo no norte, em Doí Guldur, ele certa vez se aventurara. Mas em Mordor, na Montanha de Fogo e em Barad-dûr, desde que o Senhor do Escuro se alçara em poder novamente, teria ele se aventurado ali? Frodo achava que não. E ali ele era um insignificante pequeno do Condado, um simples hobbit do pacifico interior, do qual se esperava que encontrasse um caminho pelo qual os grandes não podiam, ou não ousavam passar. Era um destino cruel.
Mas Frodo o assumira em sua própria sala de estar, na distante primavera de um outro ano, tão remota agora que parecia um capitulo na história da juventude do mundo, quando as Árvores de Prata e de Ouro ainda estavam em flor.
Era uma escolha cruel. Que caminho deveria escolher? E se os dois conduzissem ao terror e á morte, que vantagem havia na escolha? O dia passou. Um silêncio profundo caiu sobre a concavidade cinzenta onde eles estavam, tão próxima das fronteiras da terra do medo: um silêncio perceptível, como se fosse um véu espesso que os isolava de todo o mundo ao redor.
Coberta de fumaça fugidia, estendia-se uma cúpula de céu pálido, mas parecia alta e distante, como se vista através de grandes camadas de ar impregnadas de meditações soturnas.
Nem mesmo uma águia voando a favor do sol teria notado os hobbits sentados ali, sob o peso do destino, silenciosos, imóveis, ocultos por suas capas cinzentas.
Poderia, por um momento, ter parado para observar Gollum, uma figura miúda esparramada no chão: ali talvez estivesse o esqueleto minguado de algum filho dos homens, com a veste rasgada ainda presa ao corpo, os longos braços e pernas quase tão brancos e finos como ossos: nenhuma carne que valesse uma bicada.
Frodo estava com a cabeça apoiada nos joelhos, mas Sam se recostara, com as mãos atrás da cabeça, olhando de seu capuz para o céu vazio. Pelo menos, por um longo tempo permanecera vazio. Então, de repente, Sam pensou ter visto uma figura semelhante a um pássaro rodopiar para dentro de seu campo de visão, e planar, para depois fazer outro rodopio. Duas outras a seguiram, e depois uma quarta. Eram muito pequenas para os olhos, mas ele sabia, de alguma forma, que eram enormes, com uma ampla envergadura, voando a grandes alturas. Sentiu o mesmo medo preventivo que sentira na presença dos Cavaleiros Negros, o terror desamparado que lhe chegara junto com o grito do vento e a sombra sobre a lua, embora naquele momento essas sensações não fossem tão esmagadoras ou constrangedoras: a ameaça era mais remota. Mas era uma ameaça.
Frodo também a sentiu. Seu pensamento foi interrompido. Seu corpo se agitou e estremeceu, mas ele não ergueu os olhos. Gollum se encolheu todo como uma aranha acuada. As formas aladas rodopiaram, e baixaram rapidamente, voltando depressa para Mordor.Sam respirou fundo. — Os Cavaleiros estão rondando outra vez, lá no céu disse ele num sussurro rouco. — Eu os vi. Vocês acham que eles conseguiram nos ver?
Estavam voando muito alto. E se são Cavaleiros Negros, os mesmos de antes, não conseguem ver muita coisa à luz do dia, conseguem?
— Não, talvez não — disse Frodo. — Mas os cavalos enxergavam. E essas criaturas aladas que eles montam agora provavelmente podem enxergar melhor do que qualquer outra criatura. São como grandes pássaros carniceiros. Estão procurando algo: o Inimigo está vigiando, eu receio.
A sensação de medo passou, mas o silêncio que os envolvia foi quebrado. Por algum tempo eles estiveram isolados do mundo, como se numa ilha invisível; agora jaziam sem proteção de novo, o perigo retornara. Mas Frodo ainda não dissera nada a Gollum, nem fizera sua escolha. Tinha os olhos fechados, como se estivesse sonhando, ou olhando para dentro de seu coração e de sua memória. Finalmente se mexeu e levantouse, e parecia que estava prestes a falar e decidir. — Mas, escutem — disse ele. — O que é isso?
Um novo temor se apoderou deles. Ouviram o som de cantorias e gritos roucos.
Primeiro parecera muito distante, mas foi se aproximando.
Assaltou-os o pensamento de que os Asas Negras os tinham visto e enviado soldados armados para capturá-los: nenhuma velocidade parecia demasiada para aqueles terríveis servidores de Sauron.
Os três se agacharam e ficaram escutando. As vozes e o tinido de armas e armaduras estavam muito próximos. Frodo e Sam afrouxavam suas pequenas espadas nas bainhas.
Era impossível fugir.
Gollum se ergueu lentamente e se arrastou como um inseto até a borda da concavidade. Com todo cuidado, ergueu-se centímetro por centímetro, até conseguir espiar por entre duas pontas quebradas na rocha. Permaneceu ali imóvel por algum tempo, sem fazer qualquer ruído. De repente as vozes começaram a diminuir outra vez, e então lentamente sumiram. Distante, uma trombeta soou sobre os contrafortes do Morannon.
Depois Gollum silenciosamente recuou e escorregou para dentro da concavidade.
— Mais homens indo para Mordor — disse ele em voz baixa. — Caras escuras. Nunca tínhamos visto homens como esses antes, não, Sméagol nunca viu. São cruéis.
Têm olhos negros, e longos cabelos negros, e argolas de ouro nas orelhas; sim, um monte de ouro bonito. E alguns têm tinta vermelha nas faces, e capas vermelhas; e levam bandeiras vermelhas, e vermelhas são as pontas de suas lanças; e têm escudos redondos, amarelos e negros com grandes cravos. Não são bonzinhos; parecem homens muito, muito cruéis. Quase tão maus quanto os orcs, e muito maiores. Sméagol acha que eles vieram do sul, de além do fim do Grande Rio: vieram por aquela estrada. Passaram pelo Portão Negro; mas outros podem segui-los. Cada vez mais gente vindo para Mordor. Um dia, todos os povos estarão lá dentro.
— Você viu algum olifante? — perguntou Sam, esquecendo o medo em sua avidez por novidades de lugares estranhos.
— Não, nenhum olifante. O que são olifantes? — disse Gollum.
Sam levantou-se e, com as mãos para trás (como sempre fazia quando “falava poesia”), começou:
Qual rato, sou cinzento,
Sou grande, um monumento,
Nariz feito um laço,
A terra tremer eu faço,
Quando piso na relva;
Galhos quebro na selva.
Tenho chifre no dente
E caminho pra frente,
Orelhonas abano
Entra ano, sai ano,
O chão piso sem jeito,
Mas no chão nunca deito,
Nem que a morte me tome.
Olifante é meu nome,
Maior de todos, penso,
Alto, velho, sou imenso.
Quem um dia me conhece
De mim jamais se esquece.
Quem não tem essa dita
Em mim não acredita;
Mas sou um Olifante antigo,
Mentir não é comigo.
— Essa — disse Sam, quando terminou de recitar, essa é uma rima que temos no Condado. Besteira, talvez, ou talvez não. Mas também temos nossas histórias, e notícias vindas do sul, você sabe. Antigamente os hobbits costumavam viajar de vez em quando.
Não que muitos tenham retornado, e não que se acreditasse em tudo o que diziam: notícias de Bri, e não certeza de conversa do Condado, como dizem os ditados. Mas ouvi histórias sobre as pessoas grandes lá das Terras do Sol. Nós os chamamos de Morenos em nossas histórias; e eles montam em olifantes, pelo que se diz, quando lutam. Colocam casas e torres nos lombos dos olifantes, e os olifantes jogam pedras e árvores uns nos outros.
Por isso, quando você disse “Homens do Sul, todos de vermelho e dourado”, eu disse “você viu algum olifante?”. Pois se tivesse visto, eu ia dar uma olhada, com ou sem risco. — Mas agora acho que nunca verei um olifante. Talvez nem exista um animal assim.
— Sam suspirou.
— Não, nenhum olifante — disse Gollum outra vez. — Sméagol nunca ouviu falar deles. Não quer vê-los. Não quer que eles existam. Sméagol quer sair daqui para se esconder em algum lugar mais seguro. Sméagol quer que o mestre vá. Mestre bonzinho, não virá com Sméagol?
Frodo se levantou. Tinha rido em meio a todas a s suas preocupações, quando Sam repetiu a velha rima caseira do olifante, e o riso o libertara de sua hesitação.
— Gostaria de ver mil olifantes, com Gandalf em cima de um branco vindo à frente — disse ele. — Então talvez pudéssemos abrir um caminho nesta terra maligna. Mas não vimos nada disso: só temos nossas próprias pernas cansadas, e isso é tudo. Bem, Sméagol, a terceira vez pode ser a melhor. Vou com você.
— Bom mestre, mestre sábio, mestre bonzinho! — gritou Gollum deliciado, dando tapinhas nos joelhos de Frodo. — Bom mestre! Então descansem agora, hobbits bonzinhos, na sombra das pedras, bem debaixo das pedras! Descansem e deitem-se quietos, até que o Cara Amarela vá embora. Então poderemos ir rapidamente. Macio e rápido, como devem ir as sombras.
DE ERVAS E COELHO COZIDO
Durante as últimas horas que restavam do dia eles descansaram, escondendo-se do sol conforme este se movia, até que finalmente a sombra da borda oeste do valezinho onde estavam se alongou, e a escuridão cobriu toda a concavidade. Então comeram um pouco, e beberam moderadamente. Gollum não comeu nada, mas aceitou de bom grado uns goles de água.
— Logo conseguimos mais — disse ele, lambendo os beiços. — Agua boa desce pelos riachos até o Grande Rio, água limpa nas terras para onde estamos indo. Sméagol vai conseguir comida lá também, talvez. Está com muita fome, é sim, Gollum! — Bateu com as duas mãos chatas na barriga encolhida, e uma luz verde e opaca brilhou em seus olhos.
Já era quase noite quando finalmente partiram, transpondo a borda oeste do valezinho e desaparecendo como fantasmas dentro do terreno irregular às margens da estrada. A lua, que dali a três noites estaria cheia, só subiu acima das montanhas quase à meia-noite, e o inicio da noite foi muito escuro.
Uma única luz vermelha queimava lá em cima, nas Torres dos Dentes, mas esse era o único sinal que se via ou se ouvia da vigilância sempre atenta do Morannon.
Por várias milhas o olho vermelho parecia observá-los, enquanto fugiam aos tropeços através de uma região desolada e pedregosa. Não ousaram pegar a estrada, mas ficaram à direita dela, seguindo-lhe a trilha da maneira possível, a uma pequena distância.
Finalmente, quando a noite estava terminando e eles já se sentiam cansados, pois tinham feito apenas uma breve pausa, o olho foi diminuindo até se transformar num pequeno ponto de fogo, para depois desaparecer: eles tinham contornado a escura encosta norte das montanhas mais baixas, e agora se dirigiam para o sul.
Com os corações estranhamente aliviados, pararam para descansar outra vez, mas não por muito tempo. Não estavam avançando com a rapidez que Gollum queria. Pelos seus cálculos, eram quase trinta léguas do Morannon até a encruzilhada sobre Osgiliath, e ele esperava cobrir a distância em quatro jornadas. Então logo estavam marchando outra vez, até que a aurora começou a se espalhar lentamente na solidão vasta e cinzenta. Nesse ponto, já tinham caminhado quase oito léguas, e os hobbits não teriam conseguido avançar mais, mesmo que tivessem tentado.
A luz crescente revelou-lhes uma região já menos deserta e arruinada. As montanhas ainda assomavam ominosas á esquerda, mas bem perto eles já conseguiam visualizar a estrada que ia para o sul, agora distanciando-se das raízes negras das colinas e inclinando-se para o oeste. Além dela viam-se encostas cobertas de árvores sombrias semelhantes a nuvens escuras, mas em toda a volta jazia uma charneca emaranhada, onde cresciam urzes, giesteiras e cornisos, além de outros arbustos que eles não conheciam. Em alguns pontos havia aglomerados de altos pinheiros. Os corações dos hobbits ficaram outra vez um pouco mais leves, apesar de seu cansaço: o ar era fresco e perfumado, fazendo-os lembrar das regiões montanhosas da distante Quarta Norte. Era boa a sensação de alivio, de poder caminhar numa terra que estava sob o domínio do Senhor do Escuro havia apenas alguns anos, e ainda não fora totalmente arruinada. Mas eles não se esqueciam do perigo que corriam, nem de que o Portão Negro ainda estava perto demais, embora escondido atrás das montanhas sombrias. Olharam em volta procurando um esconderijo onde pudessem proteger-se de olhos malignos enquanto durasse a luz.
O dia passou em desconforto. Ficaram deitados na charneca, contando uma a uma as horas arrastadas nas quais parecia haver pouca mudança; ainda estavam sob as sombras das Ephel Dúath, e o sol estava velado. Frodo às vezes dormia, um sono profundo e tranquilo, ou por confiar em Gollum ou por estar cansado demais para se preocupar com ele; mas Sam conseguia apenas cochilar, mesmo nos momentos em que era visível que Gollum dormia profundamente, silvando e se contorcendo em seus sonhos secretos.
Talvez a fome, mais que a desconfiança, o impedissem de dormir: começara a desejar uma boa comida caseira, “alguma coisa quentinha, saindo do fogo”.
Assim que a região desapareceu num cinza disforme sob a noite que chegava, eles partiram outra vez. Em pouco tempo, Gollum os conduziu para a estrada em direção ao sul; depois disso, avançaram com mais rapidez, embora o perigo fosse maior. Aguçaram os ouvidos tentando captar o som de cascos ou pés na estrada, adiante ou atrás; mas a noite passou e eles não ouviram som algum, de caminhante ou cavaleiro.
A estrada fora feita numa época longínqua, e por cerca de trinta milhas abaixo do Morannon tinha sido reparada, mas, conforme avançava para o sul, era invadida pela vegetação indomada. Ainda era possível ver o trabalho dos homens de antigamente, no seu traçado reto e no percurso plano: em alguns pontos a estrada cortava caminho através de encostas de colinas, ou saltava sobre um riacho por meio de um arco amplo e elegante de alvenaria resistente; mas depois todos os sinais de construções de pedra desapareceram, a não ser por um ou outro pilar quebrado, espiando de trás dos arbustos da margem, ou antigas pedras de pavimentação ainda espreitando por entre o mato e o musgo. Urzes, árvores e samambaias caíam e se penduravam nos barrancos, ou se espalhavam pela superfície. Finalmente a estrada diminuiu até se transformar numa trilha campestre para o uso de carroças, mas sem fazer curvas: continuava em seu próprio curso e os conduzia pelo caminho mais rápido.
Assim eles entraram pelas fronteiras do norte daquela região que os homens outrora chamavam de Ithilien, um belo lugar de florestas em encostas e riachos velozes. A noite ficou agradável sob as estrelas e a lua redonda, e os hobbits tiveram a impressão de que a fragrância do ar ficava mais intensa conforme eles avançavam: e pelos suspiros e murmúrios de Gollum parecia que ele também notara, e não gostava nada daquilo. Aos primeiros sinais do dia, pararam novamente.
Tinham chegado ao fim de um longo corte, profundo e com encostas íngremes na parte central, pelo qual a estrada abria seu caminho através de uma cordilheira rochosa.
Agora tinham subido o barranco a oeste e olhavam em volta.
O dia se abria no céu, e eles viram que as montanhas estavam agora bem distantes, recuando para o leste numa longa curva que se perdia na distância.
Diante deles, conforme viraram para o oeste, encostas suaves desciam e invadiam a névoa apagada mais abaixo. Por toda a volta havia pequenos bosques de árvores resinosas, abetos, cedros e ciprestes, e outras espécies desconhecidas no Condado, com amplas clareiras entre elas; por toda a volta se espalhava uma opulência de ervas e arbustos de aroma suave. A longa viagem de Valfenda os trouxera muito ao sul de sua própria terra, mas só agora, naquela região mais protegida, os hobbits sentiam a mudança de clima. Ali a primavera já se manifestava: as folhagens brotavam perfurando o musgo e o humo; os lariços exibiam dedos verdes, pequenas flores se abriam na turfa, pássaros cantavam. Ithilien, o jardim de Gondor agora desolado, ainda guardava uma beleza desgrenhada de driade.
Ao sul e ao oeste o jardim dava para os vales mornos e mais baixos do Anduin, protegido ao leste pelas Ephel Dúath, ficando, contudo, livre da sombra da montanha, protegido ao norte pelas Emyn Muil, aberto aos ares do sul e aos ventos úmidos do Mar distante. Muitas árvores grandes cresciam ali, plantadas havia muito tempo, envelhecendo em meio à falta de cuidados, numa confusão de descendentes desleixadas; havia também bosques e maciços de tamargueiras e terebintos fragrantes, de oliveiras e louros; e havia juníperos e mirtos; e tomilhos que cresciam em arbustos, ou cobrindo as pedras escondidas com seus galhos folhudos e rasteiros que se trançavam formando altas tapeçarias; sálvias de vários tipos exibindo flores azuis, ou vermelhas, ou de um verdeclaro; manjeronas e salsas recém-brotadas, e muitas ervas de formas e aromas que estavam além do estudo de jardinagem de Sam. As grutas e muralhas rochosas já estavam salpicadas de saxifragas e sajões. Prímulas e anêmonas acordavam nas moitas de aveleiras; asfódelos e muitos lírios balançavam suas cabeças entreaberta s na relva: relva alta e verde ao lado das poças, onde riachos cadentes se detinham em concavidades frescas, em sua descida para o Anduin.
Os viajantes deram as costas para a estrada e desceram as colinas. Conforme andavam, abrindo caminho através de arbustos e ervas, perfumes suaves subiam enchendo-lhes as narinas. Gollum tossia e tinha ânsias de vômito, mas os hobbits respiravam fundo, e de repente Sam riu, não por achar graça, mas por sentir o coração mais leve. Seguiram um riacho que corria veloz diante deles. De repente ele os conduziu até um pequeno lago límpido num valezinho raso: ficava nas ruínas partidas de uma antiga bacia de pedra, cuja borda esculpida estava quase totalmente coberta de musgo e roseiras-bravas; espadas-de-íris cresciam em fileiras à sua volta, e folhas de nenúfares boiavam em sua superfície escura e levemente ondulada; o lago era fundo e de água potável, e extravasava suavemente por sobre uma borda rochosa na extremidade oposta.
Ali os três se banharam e beberam bastante água do riacho que alimentava o lago.
Depois procuraram um lugar para descansar, e que servisse também de esconderijo: pois aquela terra, embora ainda bela, fazia parte agora do território do Inimigo. Eles não estavam muito longe da estrada, e mesmo assim, num espaço tão pequeno, puderam ver as cicatrizes de antigas guerras, e os ferimentos mais recentes feitos pelos orcs e outros vis servidores do Senhor do Escuro: um fosso a céu aberto de dejetos e sujeira, árvores derrubadas arbitrariamente e abandonadas à morte, com runas malignas e o sinal cruel do Olho marcado a rudes golpes em sua casca.
Sam, que descera abaixo da desembocadura do riacho, cheirando e tocando as plantas e árvores desconhecidas, esquecido naquele momento de Mordor, de repente lembrou-se do perigo constante que os ameaçava. Tropeçou num círculo ainda queimado pelo fogo, e no meio encontrou uma pilha de ossos e crânios quebrados e carbonizados.
Uma camada de espinheiros e madressilvas-dos-bosques e clematites rastejantes já começara a cobrir com um véu aquele lugar de matança e banquete macabro; mas os vestígios não eram muito antigos. Correu de volta ao encontro dos companheiros, mas não disse nada: era melhor que os ossos descansassem em paz, e não fossem tocados e fuçados por Gollum.
— Vamos encontrar um lugar onde possamos deitar — disse ele. — Não lá embaixo, para mim é melhor mais para cima.
Um pouco acima do lago encontraram uma camada espessa e castanha de samambaias do ano anterior. Um pouco mais adiante havia um maciço de loureiros de folhas escuras sobre um barranco íngreme, em cujo topo havia velhos cedros. Ali decidiram descansar e passar o dia, que já prometia ser claro e quente. Um bom dia para passear ao longo dos bosques e clareiras de Ithilien, mas embora fosse provável que os orcs evitassem a luz do sol havia muitos locais onde poderiam se esconder e espreitar; e outros olhos malignos estavam por ali: Sauron tinha muitos servidores.
Gollum, de qualquer forma, não caminharia sob o Cara Amarela. Logo ele olharia por sobre as cordilheiras escuras das Ephel Dúath, e Gollum iria desfalecer e se esconder da luz e do calor.
Sam estivera pensando seriamente em comida conforme caminhavam.
Agora que o desespero do Portão intransponível ficara para trás, ele não se sentia tão inclinado quanto seu mestre a deixar de pensar em sua sobrevivência depois do fim da missão; de qualquer forma, parecia-lhe mais sensato guardar o pão de viagem dos elfos para as ocasiões piores no futuro. Já tinham passado seis dias ou mais desde que ele calculara que só havia um suprimento escasso para três semanas.
“Teremos sorte se alcançarmos o Fogo nesse tempo”, pensou ele. “E pode ser que queiramos voltar. Pode ser!”
Além disso, ao fim de uma longa marcha noturna, e depois de ter tomado um banho e bebido água, ele se sentia ainda mais faminto que o habitual. Uma ceia ou um desjejum ao lado do fogo na velha cozinha na rua do Bolsinho era o que ele realmente queria. Teve uma idéia e virou-se para Gollum. Este tinha começado a se esgueirar por conta própria, e rastejava de quatro através das samambaias.
— Ei! Gollum! — disse Sam. — Aonde vai? Caçar? Bem, olhe aqui, velho farejador, você não gosta de nossa comida, e eu mesmo não me incomodaria de variar. Seu novo mote é sempre pronto a ajudar. Poderia encontrar alguma coisa boa para um hobbit faminto?
— Sim, talvez, sim — disse Gollum. — Sméagol sempre ajuda, se eles pede — se eles pede com educação.
— Certo! — disse Sam. — Nós pede. E se isso não for educado o suficiente, nós implora.
Gollum desapareceu. Ficou longe algum tempo e Frodo, depois de alguns bocados de lembas, se afundou na samambaia castanha e adormeceu.
Sam olhava para ele.
A luz precoce do dia estava apenas começando a penetrar as sombras sob as árvores, mas ele via o rosto de seu mestre perfeitamente, e as mãos também, repousando no chão ao longo do corpo. Lembrou-se de repente de Frodo deitado, adormecido na casa de Elrond, depois daquele ferimento mortal. Naquela época, enquanto vigiava, Sam notara que algumas vezes uma luz parecia emanar de seu interior com um brilho fraco; mas agora a luz estava mais visível e forte. O rosto de Frodo estava tranquilo, as marcas do medo e da preocupação haviam sumido; mas parecia velho, velho e bonito, como se o cinzela r dos anos agora se revelasse em muitas linhas finas que antes estiveram escondidas, embora a identidade do rosto não estivesse alterada. Não que Sam colocasse as coisas para si mesmo desse modo. Balançou a cabeça, como se as palavras lhe parecessem inúteis, e murmurou: — Eu o amo. Ele é assim, e algumas vezes isso se manifesta, de alguma forma. Mas eu o amo, quer isso aconteça ou não.
Gollum voltou em silêncio e espiou por sobre o ombro de Sam.
Olhando para Frodo, fechou os olhos e se afastou se m qualquer ruído. Sam o alcançou um minuto depois, e o encontrou mastigando alguma coisa e murmurando consigo mesmo.
No chão ao lado dele jaziam dois pequenos coelhos, que ele já começava a olhar com avidez.
— Sméagol sempre ajuda — disse ele. — Trouxe coelhos, coelhos bonzinhos. Mas o mestre está dormindo, e talvez Sam queira dormir. Não quer os coelhos agora? Sméagol tenta ajudar, mas não consegue pegar tudo num minuto.
Sam, entretanto, não tinha nenhuma objeção a coelhos, e disse isso. Pelo menos não a coelhos cozidos. Todos os hobbits, é claro, sabem cozinhar, pois começam a aprender a arte antes de aprender a ler (o que muitos nunca fazem); mas Sam era um bom cozinheiro, mesmo para os padrões dos hobbits, e muitas vezes tinha feito a comida do acampamento quando em viagem, sempre que havia uma oportunidade. Ainda esperançoso, continuava carregando parte de seu equipamento: trazia acondicionados em sua mochila uma pequena caixa de pederneiras, duas pequenas panelas rasas, a menor se encaixando na maior; dentro delas uma colher de madeira, um pequeno garfo de duas pontas e alguns espetos; e escondido no fundo, numa caixinha rasa de madeira, um tesouro que minguava: um pouco de sal. Mas ele precisava de uma fogueira, além de outras coisas. Pensou um pouco, enquanto sacava sua faca para limpá-la e afiá-la, e começou a preparar os coelhos. Não ia deixar Frodo sozinho e dormindo nem por alguns minutos.
— Agora, Gollum — disse ele. — Tenho um outro serviço para você. Vá encher essas panelas com água, e traga-as de volta.
— Sméagol vai buscar a água, vai sim — disse Gollum. — Mas por que o hobbit quer essa água toda? Ele já bebeu, e já se lavou.
— Não se preocupe — disse Sam. — Se não puder adivinhar, logo vai descobrir. E quanto mais cedo trouxer a água, mais cedo saberá. Não estrague minhas panelas, ou vou fazer picadinho de você.
Enquanto Gollum estava longe, Sam deu outra olhada em Frodo. Ele ainda dormia tranquilo, mas o que mais assustava Sam agora era a magreza de suas mãos e rosto. — Está muito magro e abatido — murmurou ele. — Não é bom para um hobbit. Se eu conseguir cozinhar esses coelhos, vou acordá-lo.
Sam fez uma pilha com a samambaia mais seca, e depois subiu o barranco recolhendo um feixe de gravetos e pedaços de madeira; no topo um galho de cedro caído forneceu-lhe um bom suprimento. Cortou um pouco da turfa que estava ao pé do barranco, bem ao lado da moita de samambaia, fez um buraco raso e colocou nele seu combustível.
Como era hábil com pederneiras e isqueiro, ele logo tinha uma pequena fogueira queimando, que quase não produzia fumaça, mas exalava um odor aromático. Estava debruçado sobre a fogueira, protegendo-a e alimentando-a com lenha mais grossa, quando Gollum retomou, carregando cuidadosamente as panelas e resmungando consigo mesmo.
Colocou as panelas no chão, e então de repente viu o que Sam estava fazendo.
Soltou um guincho agudo, e demonstrou ao mesmo tempo estar furioso e com medo.
— Ach! Sss — não! Não! Hobbits tolos, sim, tolos. Não devem fazer isso!
— Não devem fazer o quê? — perguntou Sam surpreso.
— Fazer as nojentass línguas vermelhas — chiou Gollum. — Fogo, fogo! É perigoso, é sim. Queima, mata. E vai atrair inimigos, vai sim.
— Eu não acho — disse Sam. — Não vejo por que deveria, se não pusermos coisas molhadas nele para fazer uma fumaceira. Mas, se atrair, que atraia. Vou arriscar, de qualquer jeito. Vou cozinhar esses coelhos.
— Cozinhar os coelhos! — guinchou Gollum frustrado. — Estragar a bela carne que Sméagol conseguiu para você, o pobre e faminto Sméagol! Para quê? Para quê, hobbit tolo? Eles são jovens, e são tenros, são gostosos. Coma ele s, coma eles! — Gollum agarrou o coelho mais próximo, já sem a pele e ao lado do fogo.
— Espere aí! — disse Sam. — Cada um ao seu modo. Você engasga com nosso pão e eu engasgo com coelho cru. Se você me dá um coelho, o coelho é meu, veja bem, e eu posso cozinhá-lo, se quiser. E eu quero. Não precisa ficar me olhando. Vá pegar um outro e coma-o como quiser — em algum lugar escondido e fora de minha vista.
Assim você não vê o fogo e eu não vejo você e nós dois ficamos mais felizes. Vou cuidar para que a fogueira não faça fumaça, se isso o consola.
Gollum se retirou resmungando, e se afundou na samambaia. Sam se ocupou com suas panelas. — O que um hobbit necessita para acompanhar um coelho — disse ele para si mesmo — são algumas ervas e raízes, especialmente batatas — para não falar de pão. Ervas podemos conseguir, ao que parece.
— Gollum! — chamou ele em voz baixa. — A terceira vez é a que conta. Quero umas ervas. — A cabeça de Gollum apareceu em meio á samambaia, mas sua expressão não era nem prestativa nem amigável. — Umas folhas de louro, um pouco de tomilho e sálvia vão bem — antes que a água ferva — disse Sam.
— Não — disse Gollum. — Sméagol não está contente. E Sméagol não gosta de folhas cheirosas. Não come capim ou raízes, não, precioso, não até que esteja morrendo de fome, ou muito doente, pobre Sméagol.
— Sméagol vai se queimar de verdade quando esta água ferver, se não fizer o que estou pedindo — rosnou Sam. — Sam vai pôr a cabeça dele aqui, é sim, precioso. E eu o faria procurar nabos e cenouras e batatas também, se fosse a época do ano. Aposto que há todo tipo de coisas boas espalhadas por esta terra. Daria qualquer coisa por meia dúzia de batatas.
— Sméagol não vai, não vai não, precioso, não desta vez — chiou Gollum. — Está com medo e está muito cansado, e esse hobbit não é bonzinho, nem um pouco bonzinho.
Sméagol não vai cavar procurando raízes e cenouras e — batatas. Que são batatas, precioso, hein, que são batatas ?
— Be a bá, te a tá — Batatas — disse Sam. — A delícia do Feitor, e um sustento excelente para uma barriga vazia. Mas você não vai achar nenhuma, então não precisa procurar. Mas seja o bom Sméagol e me traga as ervas, e vou pensar coisa melhor de você. Além do mais, se você virar a página, e a mantiver virada, vou cozinhar umas batatas para você um dia desses. Vou sim: peixe frito com batatas fritas, servidos por S. Gamgi. Você não conseguiria recusar uma coisa dessas.
— Sim, sim, nós conseguia. Estragando peixe bonzinho, queimando ele. Dê para mim um peixe agora, e fique com as malditass batatass fritass!
— É, você não tem conserto — disse Sam. — Vá dormir!
No fim ele teve de encontrar sozinho o que que ria; mas não precisou ir muito longe, nem perder de vista o lugar em que seu mestre estava, ainda dormindo.
Por um tempo Sam ficou sentado meditando, cuidando do fogo até que a água fervesse. A luz do dia se intensificou, e o ar ficou quente; o orvalho desapareceu da turfa e das folhas. Logo os coelhos, aos pedaços, estavam cozinhando nas respectivas panelas com o maço de ervas. Sam quase dormiu enquanto o tempo passava. Deixou-os cozinhar por quase uma hora, testando-os de vez em quando com seu garfo, e experimentando o caldo.
Quando achou que estava tudo pronto, retirou as panelas do fogo e dirigiu-se até Frodo. Este entreabriu os olhos quando Sam se debruçou sobre ele e o despertou de seu sonho: outro suave, irrecuperável sonho de paz.
— Olá, Sam! — disse ele. — Não está descansando? Alguma coisa errada? Que horas são?
— Algumas horas depois do nascer do dia — disse Sam – e perto de oito e meia nos relógios do Condado, talvez. Mas não há nada errado. Embora isso não seja exatamente o que eu chamo de certo: sem caldo de carne, sem cebola, sem batatas. Tenho um pouco de cozido para o senhor, e um pouco de caldo, Sr. Frodo. Vão lhe fazer bem. Vai ter de beber em sua caneca, ou comer direto da panela, quando tiver esfriado um pouco. Não trouxe nenhuma tigela, nem qualquer coisa adequada.
Frodo bocejou e se espreguiçou.
— Você deveria ter descansado, Sam — disse ele. — E acender uma fogueira nestas partes foi perigoso. Mas eu realmente estou com fome. Hummm! Estou sentindo o cheiro daqui? O que você cozinhou?
— Um presente de Sméagol — disse Sam —: um par de coelhos tenros; embora eu imagine que Sméagol esteja arrependido agora. Mas não há nada para acompanhá-los a não ser algumas ervas.
Sam e seu mestre sentaram-se bem no meio da moita de samambaia e comeram o cozido das panelas, dividindo o velho garfo e a colher.
Permitiram-se meio pedaço do pão de viagem élfico para cada um. Parecia um banquete.
— Ei! Gollum — chamou Sam assobiando baixinho. — Venha! Ainda é tempo de mudar de idéia. Sobrou um pouco, se você quiser experimentar coelho cozido. — Não houve resposta.
— Bem, acho que ele foi procurar alguma coisa para si mesmo. Nós damos conta disso — disse Sam.
— E então você deve dormir um pouco — disse Frodo.
— Não cochile na hora em que eu estiver dormindo, Sr. Frodo. Não me sinto muito seguro em relação a ele. Há um bocado do Fedegoso — o Gollum mau, se o senhor me entende — nele ainda, e está se fortalecendo de novo. O que eu acho é que ele tentaria me esganar primeiro desta vez. Ele não me olha nos olhos, e não está satisfeito com Sam, não mesmo, precioso, nem um pouco satisfeito.
Terminaram de comer e Sam foi até o riacho enxaguar seu equipamento. Conforme se levantou para retornar, voltou-se e olhou a encosta. Nesse momento, viu o sol se erguer acima do vapor, ou névoa, ou sombra escura ou o que quer que fosse aquilo que sempre havia ao leste, e enviar seus raios dourados sobre as árvores e clareiras ao redor. Então percebeu uma espiral de fumaça azul acinzentada, perfeitamente visível contra a luz do sol, que subia de uma moita mais acima. Chocado, Sam percebeu que era a fumaça de sua pequena fogueira, que ele esquecera de apagar.
— Isso não vai dar certo! Nunca pensei que o fogo apareceria dessa maneira! — murmurou ele, e correu de volta. De repente parou para escutar. Teria escutado um assobio ou não? Se fosse um assobio , não vinha de onde Frodo estava. Agora soava de novo de um outro lugar! Sam começou a subir a colina o mais rápido que pôde.
Descobriu que um pequeno tição, ainda aceso em sua extremidade externa, tinha queimado uma porção da samambaia na borda da fogueira, e que a samambaia acesa tinha queimado a turfa. Rapidamente pisou no que sobrara da fogueira, espalhou as cinzas, e cobriu o buraco com um pouco da turfa. Depois se esgueirou em direção a Frodo.
— O senhor ouviu um assobio, e o que parecia ser uma resposta? — perguntou ele. — Há alguns minutos. Espero que tenha sido apenas um pássaro, mas não é o que pareceu: tive a impressão de que era mais como alguém imitando o chamado de um pássaro. E receio que minha fogueirinha tenha feito muita fumaça. Agora, se eu fui arranjar problemas, nunca me perdoarei. Talvez nem tenha uma chance!
— Pssiu! — sussurrou Frodo. — Acho que ouvi vozes.
Os dois hobbits arrumaram as pequenas mochilas, aprontaram-nas para uma fuga, e então se afundaram mais na samambaia. Ficaram ali agachados, escutando.
Não restava mais dúvida sobre as vozes. Falavam baixo e furtivamente, mas estavam próximas, e chegando mais perto. Então, de repente, uma falou claro, e ali perto.
— Aqui! É daqui que a fumaça veio! — disse a voz. — Está por perto. Na samambaia, sem dúvida. Vamos pegar essa coisa como um coelho numa armadilha. Então saberemos que tipo de criatura é essa.
— É, e também o que sabe! — disse uma segunda voz.
De uma só vez, quatro homens avançaram a passos largos através da samambaia, partindo de pontos diferentes. Já que era impossível fugir ou se esconder, Frodo e Sam pularam de pé, virando as costas um para o outro e puxando suas pequenas espadas.
Se ficaram atônitos com o que viram, seus caçadores ficaram ainda mais. Quatro homens altos estavam ali. Dois seguravam lanças com pontas largas e brilhantes.
Dois tinham grandes arcos, quase de sua própria altura, e grandes aljavas cheias de longas flechas adornadas com penas verdes. Todos levavam espadas, e estavam vestidos de verde e marrom de várias tonalidades, aparentemente para caminhar com mais facilidade sem serem notados nas clareiras d e Ithilien. Luvas verdes cobriam-lhes as mãos, e os rostos estavam encapuzados e mascarados de verde, com exceção dos olhos, que eram muito penetrantes e brilhantes. Frodo pensou imediatamente em Boromir, pois esses homens eram semelhantes a ele em estatura e aparência, e no modo de falar.
— Não encontramos o que procurávamos — disse um deles. — Mas o que foi que encontramos?
— Não são orcs — disse um outro, soltando o cabo de sua espada, que estivera segurando desde que vira o brilho de Ferroada na mão de Frodo.
— Elfos? — disse um terceiro, indeciso.
— Não! Não são elfos — disse o quarto, o mais alto e aparentemente o chefe de todos. — Os elfos não andam em Ithilien nestes tempos. E os elfos são extremamente belos de se olhar, ou pelo menos é o que se diz.
— Quer dizer que nós não somos, se o entendo bem – disse Sam. — Muito agradecido. E, quando terminarem a discussão, talvez digam quem vocês são, e por que não podem deixar dois viajantes cansados em paz.
O alto homem verde riu com austeridade.
— Sou Faramir, Capitão de Gondor — disse ele. — Mas não há viajantes nesta terra: só os servidores da Torre Escura, ou da Branca.
— Mas não somos nem uma coisa nem outra disse Frodo. — E somos viajantes, não importa o que o Capitão Faramir possa dizer.
— Então apressem-se em declarar seus nomes e sua missão — disse Faramir. — Temos trabalho a fazer, e não é lugar nem hora para enigmas ou conversas. Digam! Onde está o terceiro de seu grupo?
— O terceiro?
— Sim, o camarada esquivo que vimos com o nariz na poça lá embaixo. Tinha uma aparência desagradável. Alguma raça de orc espião, suponho eu, ou alguma criatura deles.
Mas nos escapou usando algum truque de raposa.
— Não sei onde ele está — disse Frodo. — É apenas um companheiro casual que encontramos na estrada, e não sou responsável por ele. Se o encontrarem, poupem-no.
Tragam-no ou enviem-no até nós. É apenas um vagabundo miserável, mas está sob meus cuidados temporariamente. Quanto a nós, somos hobbits do Condado, uma terra distante, ao norte e ao oeste, além de muitos rios. Frodo, filho de Drogo, é meu nome, e este é Samwise, filho de Hamfast, um hobbit valoroso aos meus serviços. Viemos por longos caminhos — de Valfenda, ou Imíadris, como dizem alguns. — Neste ponto, Faramir se assustou e ficou atento. — Tínhamos sete companheiros: um perdemos em Moria, os outros deixamos no Parth Galen, sobre Rauros; dois da minha raça; havia também um anão, e um elfo, e dois homens. Um deles era Aragorn, e o outro Boromir, que dizia ter vindo de Minas Tirith, uma cidade do sul.
— Boromir! — exclamaram todos os quatro homens.
— Boromir, filho do Senhor Denethor? — disse Faramir, e uma expressão estranha e austera cobriu-lhe o rosto. — Vieram com ele? Isso realmente é novidade, se for verdade. Saibam, pequenos forasteiros, que Boromir era um Alto Vigilante da Torre Branca, e nosso Capitão-geral: sentimos muito a falta dele. Então quem são vocês, e o que tinham a ver com ele? Sejam rápidos, o sol está subindo.
— Vocês conhecem as palavras-enigmas que Boromir levou a Valfenda? — replicou Frodo.
Procure a Espada que foi Quebrada.
Em Imíadris ela está.
— As palavras são realmente conhecidas — disse Faramir atônito. — É sinal de sua sinceridade que vocês também as conheçam.
— Aragorn, que eu mencionei, é o portador da Espada que foi Quebrada — disse Frodo. — E nós somos os Pequenos de que a rima fala.
— Isso estou vendo — disse Faramir pensativo. — Ou percebo que deve ser assim. E o que é a Ruína de Isildur?
— Isso ainda não foi revelado — respondeu Frodo. — Sem dúvida será esclarecido no momento oportuno.
— Precisamos saber mais sobre isso — disse Faramir – e descobrir o que os traz tão longe no leste, sob a sombra daquele — ele apontou e não disse nome algum. — Mas não agora. Temos muito o que fazer. Vocês estão correndo perigo, e não teriam ido muito longe hoje, por campo ou estrada.
Haverá duros golpes aqui perto antes que o dia avance muito. Depois morte, ou então uma fuga rápida para o Anduin. Vou deixar dois para vigiá-los, para o bem de vocês e meu também. Homens sábios não confiam em encontros casuais pela estrada nesta terra. Se eu retornar, conversarei mais com vocês.
— Até logo — disse Frodo, fazendo uma grande reverência. — Pensem o que quiserem, eu sou amigo de todos os inimigos do Um Inimigo . Iríamos com vocês se nós, Pequenos, pudéssemos ter esperança de ajudá-los, homens que parecem ser tão fortes e valorosos, e se minha missão o permitisse. Que a luz brilhe em suas espadas!
— Os Pequenos são um povo cortês, independentemente do que mais possam ser — disse Faramir. — Até logo!
Os hobbits sentaram-se de novo, mas não disseram nada um ao outro sobre seus pensamentos e dúvidas. Por perto, bem embaixo da sombra salpicada dos escuros loureiros, dois homens permaneceram de guarda. De vez em quando tiravam as máscaras para se refrescar, conforme o calor do dia aumentava, e Frodo viu que eram homens belos, de pele clara, cabelos escuros, com olhos cinzentos e rostos tristes e altivos.
Conversaram entre si em voz baixa, no início usando a Língua Geral, mas à maneira dos dias mais antigos, e depois mudando para uma outra língua própria deles. Para a sua surpresa, Frodo percebeu, conforme ouvia, que estavam falando a língua élfica, ou uma outra bastante semelhante, e olhou p ara eles admirado, pois soube então que deveriam ser dúnedain do sul, homens da linhagem dos Senhores do Ponente.
Depois de um tempo, Frodo lhes dirigiu a palavra, mas eles foram cautelosos e demoraram para responder. Disseram que seus nomes eram Mablung e Damrod, soldados de Gondor, e que eram Guardiães de Ithilien; descendiam de povos que viveram em Ithilien numa outra época, antes que aquela região fosse assolada. Dentre esses homens, o Senhor Denethor escolhia seus batedores, que atravessavam o Anduin em segredo (como e onde, eles não estavam dispostos a dizer) para perseguir os orcs e outros inimigos que perambulavam entre os Ephel Dúath e o Rio.
— São cerca de dez léguas daqui até a praia oriental do Anduin — disse Mablung —, raramente chegamos tão longe. Mas temos uma nova missão nesta jornada: viemos preparar uma emboscada para os homens de Harad. Malditos sejam!
— E, malditos sejam os sulistas! — disse Damrod. — Comenta-se que havia transações antigamente entre Gondor e os reinos de Harad do extremo sul, embora nunca tenha existido amizade. Naqueles dias, nossas fronteiras ficavam lá no sul, além da foz do Anduin, e Umbar , o mais próximo dos reinos deles, reconhecia nosso poder. Mas muito tempo se passou. Já faz muitas vidas de homem que um sulista passou, indo ou vindo, entre nós. Ultimamente soubemos que o Inimigo esteve entre eles, que passaram para o lado d’Ele, ou retornaram a Ele — estavam sempre á sua disposição — como também fizeram tantos outros no leste. Não duvido que os dias de Gondor estejam chegando ao fim, e que as muralhas de Minas Tirith estejam condenadas, tão grandes são sua malícia e força.
— Mesmo assim, não vamos ficar de braços cruzados e deixar que Ele faça tudo como desejar — disse Mablung. — Esses malditos sulistas vêm agora marchando pelas estradas antigas para aumentar os exércitos da Torre Escura. Sim, pelas mesmas estradas que o trabalho de Gondor construiu. E cada vez avançam com menos cautela, pensando que o poder de seu novo senhor é grande o suficiente, de modo que a mera sombra de suas colinas irá protegê-los. Viemos para lhes ensinar uma outra lição.
Foi-nos reportado há alguns dias que uma grande força deles agora marcha para o norte. Pelos nossos cálculos, um dos regimentos deve passar por volta do meio-dia — na estrada lá em cima, no ponto onde ela atravessa uma fenda. A estrada pode atravessar, mas eles não! Não enquanto Faramir for Capitão. Agora ele lidera em todas as ocasiões perigosas. Mas sua vida tem algum encantamento, ou o destino o poupa para algum outro fim.
A conversa foi morrendo num silêncio de escuta. Todos pareciam quietos e vigilantes. Sam, agachado na borda da moita de samambaia, espiava para fora. Com seus olhos penetrantes de hobbit, viu que muitos outros homens estavam por perto. Podia vêlos subindo secretamente as colinas, isolados ou em longas filas, sempre se mantendo na sombra de bosques ou maciços de árvores, ou se arrastando, quase invisíveis em suas vestes verdes e marrons, através de relva e mato. Todos estavam encapuzados e mascarados, com luvas nas mãos, e armados como Faramir e seus companheiros. Em breve todos tinham passado e desaparecido. O sol subiu até se aproximar do sul. As sombras diminuíram.
“Fico pensando onde estará o infame do Gollum”, pensou Sam, conforme se escondia numa sombra mais profunda. “É bem provável que tenha sido espetado, tomado por orc, ou torrado pelo Cara Amarela. Mas acho que ele vai se cuidar.” Deitou-se ao lado de Frodo e começou a cochilar.
Acordou, com a impressão de ter ouvido trombetas. Sentou-se. O sol já estava alto.
Os guardas permaneciam em estado de alerta e tensos sob as sombras das árvores. De repente as trombetas soaram mais fortes e audíveis lá em cima, sobre o topo da encosta.
Sam teve a impressão de ouvir gritos e berros alucinados também, mas o som era fraco, como se viesse de alguma caverna distante. Então, subitamente, rompeu bem próximo o som de guerra, bem acima do esconderijo deles. Podia ouvir claramente o rilhar de aço sobre aço, o clangor de espadas em toucas de malha de ferro, a batida surda das espadas nos escudos; homens berravam e gritavam, e uma voz clara e alta clamava Gondor! Gondor!
— Isso soa como uma centena de ferreiros trabalhando todos ao mesmo tempo — disse Sam a Frodo. — Agora estão tão próximos quanto eu queria.
Mas o ruído se aproximou mais.
— Eles estão vindo! — gritou Damrod.
— Vejam! Alguns sulistas escaparam da armadilha e estão fugindo da estrada. Lá vão eles! Nossos homens atrás, e o Capitão liderando.
Sam, aflito para ver mais, foi juntar-se aos guardas. Subiu um pouco num dos loureiros maiores. Por um instante viu, de relance e a alguma distância, homens morenos de vermelho descendo a encosta, e guerreiros vestidos de verde aos saltos atrás deles, derrubando-os enquanto fugiam. Flechas enchiam o ar. Então, de repente, pela borda do barranco onde estavam escondidos, um homem caiu, batendo contra as árvores esguias, quase em cima deles. Foi parar na samambaia a pouca distância deles, o rosto para baixo, com flechas adornadas com penas verdes enfiadas em seu pescoço, sob um colarinho de ouro. Suas vestes vermelhas estavam rasgadas, seu corselete de placas de bronze justapostas estava partido e despedaçado, suas tranças negras adornadas com ouro ensangüentadas. A mão morena ainda agarrava o punho de uma espada quebrada.
Era a primeira vez que Sam via uma batalha de homens contra homens, e não estava gostando muito do espetáculo. Ficou feliz por não conseguir ver o rosto morto.
Perguntava-se qual seria o nome do homem e de onde teria vindo, e se realmente tinha o coração mau, ou que mentiras ou ameaças o teriam conduzido na longa marcha desde seu lar, e se realmente não teria preferido ficar lá em paz — tudo num lampejo de pensamento que logo foi afastado de sua mente. Pois, no mesmo momento em que Mablung ia em direção ao corpo caido, ouviu-se outro barulho. Grande gritaria. Em meio a ela Sam ouviu o ruido de rugidos ou trombetas. E depois um grande baque de batidas e golpes surdos, como enormes aríetes estrondeando no chão.
— Cuidado! Cuidado! — gritou Damrod aos seus companheiros. — Que os Valar consigam desviá-lo! Múmak! Múmak!
Para seu assombro, terror e enorme prazer, Sam viu um vulto enorme romper dentre as árvores e vir descendo a encosta. Grande como uma casa, muito maior que uma casa, pareceu-lhe, uma colina móvel revestida de cinza.
O medo e a surpresa talvez tenham aumentado seu tamanho aos olhos do hobbit, mas o Múmak de Harad era realmente um animal enorme, e como aquele não há mais hoje em dia na Terra-média; seu parente que ainda vive nos últimos tempos é apenas uma lembrança de seu tamanho e majestade. Veio avançando, direto para os vigias, e então desviou no momento exato, passando a apenas alguns metros, fazendo tremer o chão sob seus pés: as grandes pernas como árvores, enormes orelhas semelhantes a velas abertas, a longa tromba erguida como uma enorme serpente pronta para atacar, os pequenos olhos vermelhos coléricos. Suas presas levantadas semelhantes a chifres estavam fixadas com bandas de ouro e pingavam sangue. Os arreios ricamente enfeitados de vermelho e dourado pendiam em farrapos soltos. Os escombros do que parecia ter sido uma verdadeira torre de guerra jaziam sobre seu lombo ofegante, destroçados em sua passagem furiosa através do bosque; e em cima de seu pescoço ainda se pendurava desesperadamente um pequeno vulto — o corpo de um guerreiro poderoso, um gigante entre os Morenos.
O grande animal avançava retumbando, cambaleando numa ira cega através de poças e moitas. Flechas inofensivas batiam e ricocheteavam na pele grossa de seus flancos. Homens dos dois lados corriam fugindo dele, mas vários ele alcançou e esmagou contra o chão. Logo sumiu de vista, ainda trombeteando e estremecendo o solo em algum ponto distante. O que aconteceu com ele Sam nunca soube: se escapou para perambular no ermo por um tempo, até que perecesse longe de sua casa ou ficasse preso em algum poço fundo; ou ainda se continuou até mergulhar no Grande Rio e ser engolido pelas águas.
Sam respirou fundo. — Era um Olifante! — disse ele. — Então existem Olifantes, e eu vi um. Que vida! Mas ninguém lá em casa vai acreditar em mim. Bem, se tudo acabou, vou dormir um pouco.
— Durma enquanto puder — disse Mablung. — Mas o Capitão retornará se não estiver ferido, e quando chegar deveremos partir depressa. Seremos perseguidos assim que as notícias de nosso feito chegarem ao Inimigo, e não vai demorar muito.
— Partam em silêncio quando for a hora! — disse Sam. — Não há necessidade de perturbarem meu sono. Caminhei a noite toda.
Mablung riu.
— Não acho que o Capitão vá deixá-los aqui, Mestre Samwise — disse ele. — Mas isso vocês verão!
A JANELA SOBRE O OESTE
Com a impressão de ter cochilado apenas alguns minutos, Sam acordou e viu que já era fim de tarde e Faramir tinha voltado. Trouxera muitos homens consigo; na verdade, todos os sobreviventes da emboscada estavam agora reunidos na encosta ali perto, cerca de duzentos a trezentos combatentes. Estavam sentados num amplo semicírculo, Faramir no centro e Frodo em pé diante dele. A situação era estranhamente semelhante ao julgamento de um prisioneiro.
Sem que ninguém se desse conta dele, Sam saiu da samambaia e se posicionou atrás das fileiras de homens, de onde podia ver e ouvir tudo o que estava acontecendo.
Observava e escutava tudo com atenção, pronto para correr em auxilio de seu mestre, caso fosse necessário. Estava enxergando o rosto de Faramir, agora sem a máscara: era austero e dominador, e uma sagacidade aguda se escondia atrás de seu olhar penetrante. Havia dúvida nos olhos, que mantinha fixos em Frodo.
Logo Sam descobriu que o Capitão não estava satisfeito em vários pontos com o que Frodo dissera sobre si mesmo: qual era sua função na Comitiva que partira de Valfenda; por que ele havia abandonado Boromir e aonde estava indo agora. Em especial, mencionou várias vezes a Ruína de Isildur. Estava claro para Faramir que Frodo escondera algum assunto de grande importância.
— Mas era com a chegada do Pequeno que a Ruína de Isildur despertaria, ou pelo menos é o que se pode interpretar daquelas palavras — insistiu ele. — Então, se você é realmente o Pequeno que foi mencionado, não há dúvida de que levou essa coisa, o que quer que seja ela, para o Conselho do qual está falando, e de que lá Boromir a viu. Você nega o que estou dizendo?
Frodo não respondeu. — Então! — disse Faramir. — Quero que você me diga mais sobre isso; pois o que diz respeito a Boromir diz respeito a mim. Uma flecha de orc matou Isildur, pelo que contam as velhas histórias. Mas flechas de orcs são muito comuns, e Boromir de Condor, ao deparar com uma, não consideraria isso como um sinal do Destino. Essa coisa estava em seu poder? Está oculta, você diz; mas não seria porque você mesmo faz a opção de ocultá-la?
— Não, não é uma opção minha — respondeu Frodo. — Não pertence a mim. Não pertence a nenhum mortal, grande ou pequeno; mas se houver alguém para reivindicá-la, essa pessoa será Aragorn, filho de Arathorn, que eu mencionei, o líder da nossa Comitiva de Moria até Rauros.
— Por que ele, e não Boromir, príncipe da Cidade que os filhos de Elendil fundaram?
— Porque Aragorn é descendente em linhagem direta de Isildur, o próprio filho de Elendil. E a espada em seu poder é a espada de Elendil.
Um murmúrio de assombro percorreu todo o semi-círculo formado pelos homens.
Alguns gritaram:
— A espada de Elendil! A espada de Elendil vem a Minas Tirith! Alvíssaras! — Mas o rosto de Faramir permanecia impassível.
— Talvez! — disse ele. — Mas uma reivindicação tão importante precisa ser verificada, e provas concretas serão requeridas, caso esse Aragorn chegue a Minas Tirith. Ele não havia chegado, nem qualquer outro membro de sua Comitiva, quando parti seis dias atrás.
— Boromir concordou com a reivindicação — disse Frodo. — Na verdade, se Boromir estivesse aqui, responderia todas as suas perguntas. E uma vez que ele já estava em Rauros havia muitos dias e pretendia ir direto de lá para a sua cidade, quando você retornar poderá ter todas as respostas lá. Ele conhecia minha função na Comitiva, e todos os outros também, pois ela me foi designada pelo próprio Elrond de Imíadris, diante de todo o Conselho. Eu vim a esta terra com essa missão, que não cabe a mim revelar a qualquer pessoa que não faça parte da Comitiva. Apesar disso, seria melhor que aqueles que dizem se opor ao Inimigo não a dificultassem.
O tom de Frodo era altivo, independentemente do que se passava dentro dele, e Sam aprovou suas palavras; mas Faramir não parecia satisfeito.
— Muito bem! — disse ele. — Você me pede que eu cuide de meus próprios assuntos, e que retorne para casa, deixando-o em paz. Boromir contará tudo, quando chegar. Quando chegar, você diz! Você era amigo de Boromir?
Em sua mente, Frodo relembrou com perfeita nitidez a cena do ataque de Boromir, e por um momento hesitou. A expressão dos olhos atentos de Faramir ficou mais dura.
— Boromir era um valoroso membro de nossa Comitiva — disse Frodo finalmente. — Sim, de minha parte, eu era amigo dele.
O rosto de Faramir se abriu num sorriso sinistro.
— Então você lamentaria se soubesse que Boromir está morto ?
— Lamentaria realmente — disse Frodo. Então, captando o olhar de Faramir, ele vacilou. — Morto? — disse ele. — Está querendo dizer que ele está morto, e que você já sabia disso? Esteve tentando me prender numa armadilha de palavras, jogando comigo? Ou está tentando me enganar com uma mentira?
— Eu não enganaria nem mesmo um orc com uma mentira — disse Faramir.
— Como foi então que ele morreu, e como você soube disso, já que está dizendo que nenhum membro da Comitiva havia chegado à cidade até a sua partida?
— Quanto ao modo como morreu, eu tinha esperança de que seu amigo e companheiro me contasse como foi.
— Mas ele estava vivo e forte quando nos separamos. E pelo que sei, ainda está. Embora certamente haja muitos perigos no mundo.
— De fato, há muitos — disse Faramir —, e a traição não é o menor deles.
Sam estava ficando cada vez mais impaciente e furioso com toda a conversa.
Aquelas últimas palavras excederam o que conseguia suportar, e, avançando subitamente para o meio do circulo, colocou-se ao lado de seu mestre.
— Perdoe-me, Sr. Frodo — disse ele —, mas isso já foi longe demais. Ele não tem o direito de falar com o senhor dessa maneira. Não depois de tudo o que o senhor passou, tanto para o bem dele e de todos esses grandes homens, quanto para o de qualquer pessoa.
— Olhe aqui, Capitão! — disse ele, plantando-se bem à frente de Faramir, com as mãos na cintura, como se estivesse se dirigindo a um jovem hobbit que lhe respondesse num tom que Sam chamava de “topetudo” quando questionado em relação a alguma visita ao pomar. Houve alguns murmúrios, e também risos nos rostos dos homens que assistiam: a cena de seu Capitão, sentado no chão, cara a cara com um jovem hobbit de pernas bem abertas, fervendo de raiva, era algo totalmente novo para eles.
— Olhe aqui! — disse ele. — Aonde está querendo chegar? Vamos ao ponto antes de todos os orcs de Mordor nos atacarem! Se o senhor pensa que meu mestre matou esse Boromir e depois fugiu, o senhor está louco; mas diga claramente, e termine com isso de uma vez por todas! E então nos permita saber o que pretende fazer sobre o assunto. Mas é uma pena que pessoas que ficam falando em lutar contra o Inimigo não sejam capazes de deixar que outros façam a sua parte à sua própria maneira, e sem interferências. Ele ficaria muito satisfeito, se pudesse vê-lo agora. Iria pensar que conseguiu um novo amigo, sem dúvida.
— Calma! — disse Faramir sem raiva. — Não fale antes de seu mestre, cuja inteligência é maior que a sua. E eu não preciso que ninguém me advirta sobre o perigo que corremos. Mesmo assim, disponho de um curto espaço de tempo para julgar com justiça uma questão difícil. Se eu fosse tão apressado quanto você, provavelmente já os teria matado há muito tempo. Pois recebi ordens de matar qualquer um que entrasse nesta terra sem a permissão do Senhor de Gondor. Mas não mato homens nem animais sem necessidade, e não me sinto feliz em fazê-lo mesmo quando é necessário. E também não estou falando em vão. Então sossegue. Sente-se ao lado de seu mestre, e fique quieto!
Sam se sentou furioso e com o rosto vermelho. Faramir voltou-se para Frodo outra vez.
— Você perguntou como eu sei que o filho d e Denethor está morto. As notícias de morte têm muitas asas. Com frequência a noite traz notícias para parentes próximos, como diz o ditado. Boromir era meu irmão.
Uma sombra de tristeza cobriu-lhe o rosto.
— Você se lembra de alguma coisa característica que o Sr. Boromir carregava junto aos seus pertences?
Frodo pensou por um momento, temendo uma nova armadilha, e perguntando-se como esse debate terminaria. Mal conseguira salvar o Anel da ambiciosa mão de Boromir; como se sairia agora em meio a tantos homens, fortes guerreiros, ele não sabia.
Apesar disso, sentia em seu coração que Faramir, embora fosse muito semelhante ao irmão na aparência, era um homem menos arrogante, ao mesmo tempo mais austero e mais sábio.
— Recordo-me de que Boromir levava uma corneta — disse Frodo finalmente.
— Recorda-se bem, e como uma pessoa que esteve realmente com ele — disse Faramir. — Então talvez consiga ver com os olhos de sua mente: uma grande corneta, feita do chifre do boi selvagem do leste, adornada de prata, e com inscrições em caracteres antigos. Essa corneta os primogênitos de nossa casa carregaram por várias gerações; e afirma-se que se ela fosse tocada num momento de necessidade em qualquer lugar dentro das fronteiras de Gondor, como era o reinado antigamente, sua voz não passaria despercebida.
— Cinco dias antes de minha partida nesta jornada, há onze dias, por volta desta hora, ouvi o soar daquela corneta: parecia vir do norte, mas chegava fraco, como se fosse um eco na mente. Achamos que era um mau presságio, meu pai e eu, pois não tivéramos notícias de Boromir desde sua partida, e nenhuma sentinela em nossas fronteiras o tinha visto passar. E três noites depois uma outra coisa, ainda mais estranha, me aconteceu.
— Estava sentado á noite à beira do Anduin, na escuridão cinzenta sob uma pálida lua nova, observando a correnteza sempre em movimento, e ouvindo o farfalhar dos juncos tristonhos. Temos sempre o costume de vigiar as margens perto de Osgiliath, que nossos inimigos agora em parte detém, e através das quais enviam expedições para saquear nossas terras. Mas naquele dia o mundo todo adormeceu à meia-noite. Então eu vi, ou tive a impressão de ter visto, um barco flutuando na água, emitindo um vago brilho cinzento, um pequeno barco de formato esquisito com uma proa alta, e não havia ninguém para remar ou conduzi-lo.
— Fui tomado de espanto, pois uma luz pálida o envolvia. Mas levantei-me e me dirigi à margem, e comecei a caminhar para dentro da correnteza, pois me sentia atraído por ele. Então o barco se virou na minha direção, diminuindo de velocidade e flutuando lentamente até chegar ao alcance de minha mão, mas eu não ousei tocá-lo.
Calava fundo, como se carregasse um grande peso, e conforme passou sob meu olhar tive a impressão de que estava quase totalmente repleto de água limpa, da qual emanava a luz; no seio da água, um guerreiro jazia dormindo.
— Havia uma espada quebrada sobre seu joelho. Vi muitos ferimentos em seu corpo. Era Boromir, meu irmão, morto. Reconheci seus indumentos, sua espada, seu amado rosto. De uma coisa apenas senti falta: a corneta. Uma coisa apenas não reconheci: um belo cinto, que parecia ser feito de folhas de ouro, cingindo-lhe a cintura. Boromir!, gritei eu. Onde está tua corneta? Aonde vais tu, ó Boromir? Mas ele se fora, O barco voltou a acompanhar a correnteza e desapareceu tremeluzindo noite adentro. Foi como um sonho, mas não foi um sonho, pois não houve despertar. E não tenho dúvidas de que ele está morto e passou descendo o Rio em direção ao Mar.
— Lamento! — disse Frodo. — Esse era realmente Boromir como o conheci. Pois o cinto de ouro lhe foi dado em Lothlórien, pela Sra. Galadriel. Foi ela quem nos vestiu assim, de cinza élfico. Este broche é da mesma lavra.
— Tocou a folha verde e prateada que lhe prendia a capa ao pescoço.
Faramir a examinou de perto. — É linda — disse ele. — Sim, é da mesma lavra. Então vocês passaram pela Terra de Lórien? Antigamente se chamava Laurelindórenan, mas já faz tempo que está além do conhecimento dos homens — acrescentou ele baixinho, observando Frodo com uma nova admiração em seus olhos. — Começo a entender muitas coisas que achava estranhas em você. Não vai nos contar mais coisas? Pois é triste pensar que Boromir tenha morrido às vistas de sua terra natal.
— Não posso contar nada além do que já contei — respondeu Frodo.
— Embora sua história me traga muitos presságios. Acho que foi uma visão que você teve, nada além disso; alguma sombra de má fortuna que aconteceu ou vai acontecer. A não ser que seja na verdade algum truque mentiroso do Inimigo. Vi rostos de belos guerreiros de antigamente jazendo adormecidos no fundo das poças dos Pântanos Mortos, ou pelo menos era isso que suas artes malignas faziam parecer.
— Não, não foi uma visão — disse Faramir. — Pois os trabalhos dele enchem o coração de ódio; mas meu coração se encheu de tristeza e pena.
— Mas como uma coisa dessas poderia ter realmente acontecido? — perguntou Frodo. — Nenhum barco poderia ter sido carregado do Tol Brandir através das colinas rochosas; e Boromir tinha o propósito de ir para casa através do Entágua e dos campos de Rohan. E como poderia qualquer embarcação navegar nas espumas das grandes cachoeiras e não afundar nos lagos borbulhantes, mesmo estando cheia de água?
— Não sei — disse Faramir. — Mas de onde veio esse barco?
— De Lórien — disse Frodo. — Descemos o Anduin em três barcos, até chegarmos às Cachoeiras. Eles também foram feitos pelos elfos.
— Vocês atravessaram a Terra Oculta — disse Faramir —, mas parece que entendem muito pouco do poder dela. Se homens têm contato com a Senhora da Magia que mora na Floresta Dourada, então podem esperar que coisas estranhas aconteçam. Pois é perigoso para os mortais sair do mundo deste sol, e poucos antigamente conseguiram sair de lá incólumes, pelo que se diz.
— Boromir ó Boromir! — gritou ele. — O que lhe disse ela, a Senhora que não morre?
O que foi que ela viu? O que terá despertado em seu coração? Por que foi você para Laurelindórenan, e não seguiu sua própria estrada, cavalgando para casa nos cavalos de Rohan pela manhã?
Então, voltando-se para Frodo, falou mais uma vez em voz baixa. — Essas perguntas acho que você poderia responder, Frodo, filho de Drogo. Mas talvez não aqui nem agora. Mas para evitar que você continue achando que o que lhe contei foi uma visão, vou acrescentar isto: a corneta de Boromir finalmente retornou, na realidade, e não em sonho. A corneta chegou mas estava partida em duas, como se tivesse sido golpeada por um machado ou uma espada. Os pedaços chegaram à praia separadamente: um foi encontrado em meio aos juncos onde ficam as sentinelas de Gondor, ao norte, sob as cachoeiras que alimentam o Entágua; o outro foi encontrado rodopiando na correnteza, por uma pessoa que por algum motivo fora ao rio. Acasos estranhos, mas a verdade virá à tona, como se diz.
— E agora a corneta do primogênito jaz em dois pedaços sobre o colo de Denethor, que está sentado em sua alta cadeira, aguardando notícias. Você não sabe me dizer nada sobre a corneta partida?
— Não, eu não sabia disso — disse Frodo. — Mas o dia em que você a ouviu soando, se seus cálculos estão certos, foi o dia em que nos separamos, quando eu e meu servidor abandonamos a Comitiva. E agora sua história me enche de temor. Pois, se Boromir estava em perigo e foi morto, receio que todos o s meus companheiros tenham perecido também. E eram meus parentes e meus amigos.
— Você não está disposto a ignorar sua dúvida a meu respeito e me deixar partir?
Estou cansado, cheio de tristeza e com medo. Mas tenho um feito a cumprir, ou tentar, antes que eu também seja morto. E ainda precisarei me apressar mais, se dois Pequenos são tudo o que sobrou de nossa sociedade.
— Volte, Faramir, valoroso Capitão de Gondor, e defenda sua cidade enquanto puder, e deixe-me ir para onde meu destino me conduz.
— Para mim não há consolo em nossa conversa — disse Faramir —, mas certamente você extrai dela mais pavor do que é necessário. A não ser que a própria gente de Lórien tenha vindo até ele, quem ataviou Boromir como se fosse para um funeral? Não os orcs, e nem os servidores do Inominável. Alguém de sua Comitiva, suponho eu, ainda vive.
— Mas o que quer que tenha acontecido na Fronteira Norte, de você, Frodo, não duvido mais. Se os dias difíceis me fizeram um juiz de palavras e rostos, então posso fazer uma suposição sobre os Pequenos! Embora nesse ponto ele sorriu — haja algo estranho em você, Frodo, um ar élfico, talvez. Mas há mais coisas em nossas palavras do que eu a princípio imaginara. Eu deveria levá-lo agora para Minas Tirith, para responder lá a Denethor, e terei de pagar com a vida, se neste momento escolher um caminho que acabe se mostrando ruim para minha cidade. Por isso, não vou decidir apressadamente o que deve ser feito. Mesmo assim, devemos sair daqui sem mais demora.
Levantou-se e deu algumas ordens. Imediatamente, os homens que estavam reunidos à sua volta se separaram em pequenos grupos, e foram em várias direções, desaparecendo rapidamente nas sombras das rochas e árvores. Logo apenas Mablung e Damrod permaneciam.
— E vocês, Frodo e Samwise, virão comigo e meus guardas — disse Faramir. — Não podem ir pela estrada em direção ao sul, se este era o seu propósito.
Aquela região será mais perigosa por alguns dias, e depois desse tumulto ainda mais vigiada do que antes. E não poderão, de qualquer forma, avançar muito hoje, pois estão cansados. Nós também estamos. Estamos indo para um de nossos esconderijos, a menos de dez milhas daqui. Os orcs e os espiões do Inimigo ainda não o encontraram, e, se o encontrassem, poderíamos defendê-lo por muito tempo, mesmo contra muitos inimigos. Lá poderemos nos deitar e descansar um pouco, e vocês também. Pela manhã decidirei qual é a melhor coisa a fazer. Para mim e para vocês.
A Frodo nada restava a não ser ceder àquele pedido, ou ordem. Em qualquer caso, parecia uma decisão sábia naquele momento, uma vez que a emboscada dos homens de Gondor transformara uma viagem através de Ithilien numa aventura mais perigosa do que nunca.
Partiram imediatamente: Mablung e Damrod um pouco à frente, e Faramir, Frodo e Sam atrás. Contornando o lado mais próximo do lago onde os hobbits tinham se banhado, atingiram a margem oposta, subiram um longo barranco, e penetraram nas florestas de sombras verdes, que avançavam sempre descendo para o oeste. Enquanto caminhavam, o mais rápido que os hobbits conseguiam, iam conversando em voz baixa.
— Interrompi nossa conversa — disse Faramir — não só porque o tempo urgia, como bem disse o Mestre Samwise, mas também porque estávamos nos aproximando de assuntos que não deviam ser discutidos abertamente diante de muitos homens. Foi por esse motivo que preferi discutir o assunto de meu irmão, e deixei de lado a Ruína de Isildur. Você não foi totalmente franco comigo, Frodo.
— Não contei nenhuma mentira, e disse todas as verdades que podia — disse Frodo.
— Não o culpo — disse Faramir. — Você falou com habilidade numa posição difícil, e de maneira sábia, ao que me pareceu. Mas eu percebi ou supus mais do que disseram suas palavras. Você não era amigo de Boromir, ou pelo menos vocês não se separaram como amigos. Você, e Mestre Samwise também, suponho eu, têm alguma mágoa. Eu o amava muito, e de bom grado vingaria sua morte; apesar disso, conhecia-o bem. A Ruína de Isildur — arriscaria dizer que a Ruína de Isildur estava entre vocês e era causa de contenda em sua Comitiva. Está claro que é algum tipo de legado, e essas coisas não trazem paz entre aliados, não se as histórias antigas podem ensinar alguma coisa. Não estou quase atingindo o alvo?
— Quase — disse Frodo. — Mas não exatamente o centro. Não houve contenda em nossa Comitiva, embora tenha havido dúvida: dúvida sobre que caminho deveríamos tomar além das Emyn Muil. Mas, seja como for, as histórias antigas também nos ensinam o perigo de palavras precipitadas em se tratando de coisas como legados.
— Então é como eu pensava: seu problema era apenas com Boromir: ele queria que essa coisa fosse trazida a Minas Tirith. Ai de mim! É crueldade do destino que você, a última pessoa que o viu, tenha seus lábios selados, e esconda de mim o que mais quero saber: o que se passava no coração e no pensamento dele em suas últimas horas. Tendo ou não errado, disto tenho certeza: ele morreu com dignidade, realizando algo de bom. Seu rosto estava ainda mais belo do que em vida.
— Mas, Frodo, a principio eu o pressionei muito com perguntas sobre a Ruína de Isildur. Perdoe-me! Foi uma insensatez, naquela hora e lugar. Não tive tempo para pensar.
Tínhamos tido uma luta difícil, e havia coisas demais em minha cabeça. Mas no próprio momento em que lhe falava, eu me aproximei do alvo, e então deliberadamente desviei o tiro. Pois você deve saber que muitas coisas ainda se preservam da antiga tradição dos Governantes da cidade, e são mantidas em segredo. Nós da minha casa não somos da linhagem de Elendil, embora o sangue de Númenor corra em nossas veias. Sabemos que nossa linhagem remonta a Mardíl, o bom regente, que governou no lugar do rei quando este foi para a guerra. E este era o Rei Eãmur, o último da linhagem de Anárion, que não tinha filhos e jamais retornou. E os regentes têm governado a cidade desde esse dia, embora isso tenha acontecido há muitas gerações de homens.
— E disso eu me lembro a respeito de Boromir, quando ele era um menino e nós dois juntos aprendíamos a história de nossos antepassados e de nossa cidade: ele era um eterno insatisfeito com o fato de nosso pai não ser rei. “Quanto tempo leva para que um regente se torne um rei, se o rei não retornar?”, perguntava ele. “Alguns anos, talvez, em outros lugares de menor realeza”, meu pai respondia. “Em Gondor dez mil anos não seriam suficientes.” Ai de mim! Pobre Boromir. Isso não lhe diz algo sobre ele?
— Realmente — disse Frodo. — Mas ele sempre tratou Aragorn com respeito.
— Não duvido disso — disse Faramir. — Se ele concordava com a reivindicação de Aragorn, como você diz, provavelmente o reverenciaria muito. Mas o momento crucial ainda não chegara. Eles ainda não tinham chegado a Minas Tirith, nem se tornado rivais nas guerras locais.
— Mas estou me desviando do assunto. Nós, da casa de Denethor, sabemos muito da antiga tradição, transmitida de pai para filho, e além disso preservamos muita coisa em nossos tesouros: livros e cadernos escritos em pergaminhos envelhecidos, sim, e na pedra, e em folhas de prata e ouro, em vários caracteres diferentes. Alguns ninguém consegue decifrar, e, quanto ao resto, poucos agora os manuseiam. Posso ler alguma coisa neles, pois fui ensinado. Foram esses registros que trouxeram o Peregrino Cinzento até nós. Vi-o pela primeira vez quando era criança, e ele esteve em nossa cidade duas ou três vezes depois disso.
— O Peregrino Cinzento? — perguntou Frodo. — Ele tinha um nome?
— Nós o chamávamos de Mithrandir, à maneira dos elfos — disse Faramir — e ele ficava satisfeito. Tenho muitos nomes em diferentes lugares, dizia ele. Mithrandir entre os elfos, Tharkún para os anões; eu era Olórin em minha juventude no Ocidente que está esquecido; no sul, Incánus, no norte Gandalf para o leste eu nunca vou.
— Gandalf! — disse Frodo. — Pensei que fosse ele, Gandalf, o Cinzento, o mais querido dos conselheiros, Líder de nossa Comitiva. Nós o perdemos em Moria.
— Perderam Mithrandir! — disse Faramir. — Parece que um destino mau perseguia sua sociedade. Realmente é difícil acreditar que alguém possuidor de tanta sabedoria e poder — pois fez coisas maravilhosas entre nós — possa ter perecido, e desse modo o mundo tenha perdido tanta sabedoria. Você tem certeza disso, de que ele não os deixou apenas, partindo quando julgou necessário?
— Infelizmente sim — disse Frodo. Eu o vi cair no abismo.
— Percebo que há uma grande história de terror nisso — disse Faramir — que talvez você possa me contar à noite. Esse Mithrandir era mais que um mestre das tradições, percebo agora: um grande promotor dos feitos de nossa época. Se tivesse estado entre nós para que pudéssemos consultá-lo sobre as palavras duras de nosso sonho, poderia tê-las esclarecido sem a necessidade de um mensageiro. Mas talvez não tivesse feito isso, e a viagem de Boromir já estivesse marcada pelo destino.
Mithrandir nunca nos falava sobre o que ainda iria acontecer, e nunca revelou seus propósitos. Conseguiu a permissão de Denethor, não sei como, para examinar os segredos de nossos tesouros, e eu aprendi um pouco com ele, quando estava disposto a ensinar (e isso era raro). Sempre procurava e nos perguntava acima de tudo sobre a Grande Batalha que foi travada em Dagorlad nos primórdios de Gondor, na qual Aquele que não nomeamos foi derrotado. Era ávido por saber histórias sobre Isildur, embora dele tivéssemos pouco para contar, pois nunca soubemos nada de concreto sobre seu fim.
Nesse ponto, a voz de Faramir reduziu-se a um sussurro. — Mas isso eu aprendi, ou adivinhei, e desde então guardei em segredo em meu coração: que Isildur tomou alguma coisa da mão do Inominado, antes de partir de Gondor, para nunca mais ser visto entre os homens mortais. Eu achava que aqui estava a resposta para a indagação de Mithrandir.
Mas na época parecia um problema que dizia respeito apenas aos que procuravam os ensinamentos antigos. E também eu não achei, quando as palavras enigmáticas de nosso sonho foram discutidas entre nós, que a Ruína de Isildur fosse essa mesma coisa. Pois Isildur foi vítima de uma emboscada e morto por flechas de orcs, de acordo com a única lenda que conhecemos, e Mithrandir nunca me contou mais sobre isso.
— O que é na verdade essa Coisa não posso adivinhar, mas deve ser algum legado de poder e perigo. Talvez uma arma mortal, feita pelo Senhor do Escuro. Se fosse uma coisa que trouxesse vantagem na batalha, posso muito bem crer que Boromir, o altivo e destemido, frequentemente impetuoso, sempre ansioso pela vitória de Minas Tirith (que traria também sua grande glória), possa ter desejado essa coisa e ter sido atraído por ela.
Lamento que tenha ido em tal missão! Eu teria sido escolhido por meu pai e pelos anciões, mas ele se ofereceu, por ser o mais velho e o mais corajoso (ambas as coisas verdadeiras), e ninguém conseguiria detê-lo.
— Mas não tema mais nada! Eu não tomaria essa coisa, nem que a encontrasse na estrada. Nem que Minas Tirith estivesse sendo destruída e apenas eu pudesse salvá-la desse modo, usando a arma do Senhor do Escuro para o bem dela e para minha glória.
Não. Não anseio por tais triunfos, Frodo, filho de Drogo.
— O Conselho também não — disse Frodo. — Nem eu. Eu preferiria não ter nada a ver com tais assuntos.
— Quanto a mim — disse Faramir — gostaria de ver a Arvore Branca outra vez em flor nos pátios dos reis, e a Corôa de Prata retornar, e Minas
Tirith em paz: Minas Anor de novo como era antiga mente, cheia de luz, altiva e bela, bonita como uma rainha entre outras rainhas: não uma senhora de muitos escravos, não, nem sequer uma senhora gentil de escravos voluntários. A guerra deve acontecer, enquanto estivermos defendendo nossas vidas contra um destruidor que poderia devorar tudo; mas não amo a espada brilhante por sua agudeza, nem a flecha por sua rapidez, nem o guerreiro por sua glória. Só amo aquilo que eles defendem: a cidade dos homens de Númenor, e gostaria que ela fosse amada por seu passa do, sua tradição, sua beleza e sua sabedoria presente. Não que ela fosse temida, a não ser da maneira que os homens temem a dignidade de um homem velho e sábio.
— Por isso, não tenha medo de mim! Não peço que me conte mais nada. Não peço nem que me diga se agora eu estou chegando mais perto do alvo. Mas se estiver disposto a confiar em mim, é possível que eu possa aconselhá-lo em sua demanda atual, qualquer que seja ela — talvez até mesmo ajudá-lo.
Frodo não respondeu. Quase cedeu ao desejo de ser aconselhado, e ajudado, de contar àquele jovem digno, cujas palavras pareciam tão belas e sábias, tudo o que passava por sua cabeça. Mas alguma coisa o impediu. Tinha o coração tomado de medo e tristeza: se ele e Sam realmente fossem, como parecia provável, tudo o que sobrara dos Nove Andantes, então ele era o único que sabia do segredo de sua missão. Mais valia uma desconfiança imerecida do que palavras incautas. E a lembrança de Boromir, da terrível mudança que a atração pelo Anel causara nele, estava muito presente em sua memória, quando olhava para Faramir e ouvia sua voz: os dois eram diferentes, mas ao mesmo tempo muito parecidos.
Continuaram caminhando em silêncio, passando como sombras cinzentas e verdes sob as velhas árvores, os pés não fazendo ruído algum; sobre eles muitos pássaros cantavam, e o sol reluzia sobre o teto polido de folhas escuras das florestas perenes de Ithilien.
Sam não participara da conversa, embora tivesse escutado tudo, ao mesmo tempo em que estivera prestando atenção, com seus sensíveis ouvidos de hobbit, a todos os ruídos suaves da floresta ao redor deles. Notou uma coisa: em toda a conversa, o nome de Gollum não fora mencionado uma só vez. Estava feliz por isso, embora achasse que seria um exagero esperar que jamais ouviria aquele nome de novo. Logo percebeu também que, embora estivessem caminhando sozinhos, havia muitos homens por perto: não apenas Damrod e Mablung, entrando e saindo das sombras à frente, mas outros, dos dois lados, todos trilhando seu caminho secreto na direção de algum lugar indicado.
Uma vez, olhando de repente para trás, como se alguma comichão na pele o avisasse de que estava sendo observado, teve a impressão de captar de relance um pequeno vulto escuro se escondendo atrás de um tronco de árvore. Abriu a boca para falar e a fechou em seguida. — Não tenho certeza — disse para si mesmo — e por que motivo deveria lembrá-los do velho vilão, se eles preferem esquecê-lo? Eu gostaria de conseguir fazer o mesmo!
Assim foram caminhando, até que as florestas ficaram menos densas e o terreno começou a descer mais abruptamente. Então desviaram outra vez, à direita, e chegaram logo a um pequeno rio numa garganta estreita: era o mesmo riacho que descia do lago redondo mais acima, já agora uma correnteza veloz, saltando sobre muitas pedras num leito profundo, coberto por azevinheiros e buxos. Olhando ao oeste podiam ver, mais abaixo e numa névoa de luz, planícies e amplas campinas, e, tremeluzindo distantes ao sol que se punha, as águas caudalosas do Anduin.
— Aqui, infelizmente, terei de tratá-lo com descortesia — disse Faramir.
— Espero que perdôe esse gesto, partindo de uma pessoa que até agora tem dado suas ordens movida pela cortesia , e evitando que vocês fossem mortos ou presos.
Mas não é permitido a nenhum forasteiro, nem mesmo a alguém de Rohan que lute ao nosso lado, ver a trilha pela qual agora iremos com os olhos abertos. Devo vendar seus olhos.
— Como quiser — disse Frodo. — Até os elfos se comportam dessa maneira quando há necessidade, e de olhos vendados nós atravessamos as fronteiras da bela Lothlórien.
Gimli, o anão, levou isso a mal, mas os hobbits suportaram bem.
— Não é por um lugar tão belo que deverei conduzi-los — disse Faramir.
— Mas fico satisfeito em saber que vocês aceitam a imposição voluntariamente, e não à força.
Chamou em voz baixa e imediatamente Mablung e Damrod surgiram das árvores e vieram na direção deles. — Vendem os olhos destes hóspedes — disse Faramir. — De modo seguro, mas sem incomodá-los. Não amarrem suas mãos. Eles darão sua palavra de que não tentarão olhar. Poderia confiar que eles fechassem os olhos por sua própria conta, mas os olhos podem se abrir, se os pés tropeçarem. Conduzam-nos e cuidem para que não vacilem.Com cachecóis verdes os dois guardas vendaram os olhos dos hobbits, e puxaramlhes os capuzes quase até a boca; então rapidamente tomaram cada um pela mão e continuaram em seu caminho. Tudo o que Frodo e Sam souberam dessa última milha da estrada depreenderam adivinhando no escuro. Um pouco depois perceberam que estavam numa trilha que descia abruptamente; logo ficou tão estreita que eles precisaram ir em fila indiana, roçando os corpos em muralhas rochosas de ambos os lados; os guardas vinham atrás e os guiavam, com mãos firmes sobre os seus ombros.
Em alguns momentos passavam por lugares difíceis e eram carregados por um trecho, e depois recolocados no chão. Todo o tempo o ruido de água correndo os acompanhava do lado direito, e ia ficando mais próximo e mais alto. Finalmente pararam.
Rapidamente Mablung e Damrod fizeram-nos girar várias vezes, e eles perderam todo o senso de direção. Subiram por um trecho: parecia frio e o ruido da água ficara fraco.
Depois foram carregados e levados para baixo, descendo muitos degraus, e fazendo uma curva em cotovelo. De repente ouviram a água outra vez, agora produzindo um ruído alto, correndo e espirrando. Parecia estar por toda a volta deles, sentiam uma chuva fina nas mãos e faces. Finalmente foram colocados de volta no chão.
Por um momento ficaram ali parados, sentindo um pouco de medo, com os olhos vendados, sem saber onde estavam; ninguém falou nada.
Então veio por trás a voz de Faramir, bem próxima. — Deixem-nos ver! — disse ele.
Os cachecóis foram removidos e os capuzes puxados para trás; os hobbits piscaram e ficaram boquiabertos.
Estavam sobre um chão molhado de pedra polida, que era a soleira, por assim dizer, de um tosco portão de pedra, que se abria escuro atrás deles. Mas à frente caia um fino véu de água, tão próximo que Frodo poderia tê-lo alcançado se esticasse o braço.
Dava para o oeste. Os raios horizontais do sol que se punha atrás batiam nele e a luz vermelha se partia em muitos raios bruxuleantes de cores iridescentes. Era como se estivessem à janela de alguma torre élfica, cuja cortina fosse feita com cordões de ouro e prata, rubis, safiras e ametistas, tudo ardendo num fogo que não consumia.
— Ao menos tivemos a sorte de chegar à hora certa de recompensá-los por sua paciência — disse Faramir. Esta é a Janela do Pôr-do-Sol, Henneth Annún, a mais bela de todas as cachoeiras de Ithilien, terra de muitas fontes. Poucos forasteiros tiveram oportunidade de vê-la. Mas não há um salão real por trás que lhe esteja à altura. Entrem agora e vejam!
No momento em que falava, o sol se pôs, e o fogo mergulhou no fluxo das águas.
Eles se viraram e passaram por um arco baixo e austero.
Imediatamente se viram num cômodo de pedra, largo e tosco, com um teto irregular e inclinado. Algumas tochas estavam acesas e lançavam uma luz fraca nas paredes tremeluzentes. Muitos homens já estavam lá. Outros ainda vinham chegando em grupos de dois ou três através de uma porta lateral estreita e escura. Quando seus olhos começaram a se acostumar à escuridão, os hobbits viram que a caverna era maior do que tinham suposto e estava repleta com um bom estoque de armas e mantimentos.
— Bem, este é nosso refugio — disse Faramir. — Não é um lugar muito confortável, mas aqui vocês poderão passar a noite em paz. Pelo menos é seco, e há comida, embora não tenhamos fogo. Houve um tempo em que a água passava através desta caverna e saia pelo arco, mas esse curso foi alterado mais acima da garganta, por trabalhadores de antigamente, e a correnteza foi desviada para uma queda de altura duas vezes maior por sobre as pedras lá em cima. Depois todos os caminhos que conduziam a esta gruta foram obstruídos para evitar a entrada de água ou qualquer outra coisa, todos menos um. Agora só há duas saídas: a passagem mais além, pela qual vocês entraram com os olhos vendados, e através da Cortina da Janela, entrando numa bacia profunda cheia de facas de pedra. Agora descansem um pouco, até a hora da refeição noturna.
Os hobbits foram levados até um canto, onde lhes foi oferecida uma cama baixa para deitarem, se quisessem. Enquanto isso os homens se ocupavam pela caverna, em silêncio e numa pressa ordenada. Tábuas leves foram retiradas das paredes e colocadas sobre cavaletes e guarnecidas com material de cozinha. Quase tudo era simples e sem adornos, mas bem-feito e bonito: travessas redondas, tigelas e pratos de barro vitrificado marrom ou de buxo torneado, polido e limpo. Aqui e ali se via uma taça ou bacia de bronze polido; um cálice liso de prata foi colocado no lugar do Capitão, no meio da mesa no fundo da caverna.
Faramir caminhava entre os homens, interrogando cada um conforme entravam, numa voz baixa. Alguns haviam retornado da perseguição aos sulistas, outros, deixados para trás como vigias perto da estrada, entraram por último. Todos os sulistas haviam sido destruídos, exceto o grande múmak: o que lhe acontecera ninguém sabia dizer. Do inimigo nenhum movimento se via, nem sequer um espião-orc.
— Você não viu nem ouviu nada, Anborn? — perguntou Faramir ao último que chegou.
— Bem, senhor, não — disse o homem. — Pelo menos nenhum orc. Mas eu vi, ou tive a impressão de ter visto, uma coisa meio estranha. Já tinha quase anoitecido, naquela hora em que os olhos fazem as coisas ficarem maiores do que são. Por isso, talvez não tenha sido nada além de um esquilo. — Ao ouvir isso, Sam ficou de orelha em pé. — Mas, se for esse o caso, era um esquilo preto, e não vi nenhum rabo. Era como uma sombra no chão, e se escondeu atrás de um tronco de árvore quando me aproximei, e subiu nela com a mesma velocidade de um esquilo. O senhor não permite que matemos animais selvagens sem motivo, e me pareceu que aquilo não passava de um animal selvagem, por isso não tentei atirar nenhuma flecha.
De qualquer forma, estava escuro demais para um tiro certeiro e a criatura entrou na escuridão das folhas num piscar de olhos. Mas fiquei lá um tempo, pois ela parecia estranha, e depois corri de volta. Tive a impressão de ouvir o bicho chiar para mim de cima da árvore conforme me virei. Talvez um grande esquilo. Pode ser que, sob a sombra do Inominado, alguns animais da Floresta das Trevas estejam fugindo para as nossas florestas. Comenta-se que lá eles têm esquilos pretos.
— Talvez — disse Faramir. — Mas, se for verdade, isso será um mau presságio. Não queremos os fugitivos da Floresta das Trevas em Ithilien.
— Sam imaginou que ele tinha lançado um olhar rápido em direção aos hobbits enquanto falava; mas Sam não disse nada. Por um tempo ele e Frodo ficaram deitados observando a luz das tochas, e os homens andando de um lado para o outro e conversando aos sussurros. Então, de repente, Frodo adormeceu.
Sam discutia consigo mesmo, ponderando prós e contras. “Ele pode estar sendo sincero”, pensou ele, “e também pode não estar. Palavras belas podem ocultar um coração maligno.” Sam bocejou. “Poderia dormir uma semana inteira, e isso me faria bem. E o que posso fazer, se ficar acordado, só eu sozinho, com todos esses homens grandes ao redor? Nada, Sam Gamgi; mas mesmo assim você tem de ficar acordado.” E de alguma forma conseguiu. A luz desapareceu na porta da caverna, e o grande véu de água que caía ficou escuro e se perdeu na sombra que sobreveio. O som da água continuava, nunca mudando de tom, de manhã, de tarde ou de noite. Sam passou os dedos nos olhos.
Agora mais tochas estavam sendo acesas. Um barril de vinho foi perfurado.
Barricas com mantimentos estavam sendo abertas. Homens traziam água da cachoeira.
Alguns lavavam as mãos em bacias. Uma grande vasilha de cobre e uma toalha branca foram trazidas para Faramir, e ele se lavou.
— Acorde nossos convidados — disse ele — e leve-lhes água.
Está na hora de comer.
Frodo se sentou, bocejou e espreguiçou-se. Sam, não habituado a ser servido, olhou meio surpreso para o homem alto que se curvou, segurando uma bacia de água diante dele.
— Coloque-a no chão, mestre, por favor! — disse ele. — Fica mais fácil para você e para mim. — Então, para a surpresa de todos, mergulhou a cabeça na água fria e lavou o pescoço e as orelhas.
— É costume em sua terra lavar a cabeça antes da ceia? — perguntou o homem que estava servindo os hobbits.
— Não, antes do desjejum — disse Sam. — Mas se você dormiu pouco, a água fria no pescoço é como chuva sobre um pé de alface murcho. Pronto! Agora posso ficar acordado o suficiente para conseguir comer alguma coisa.
Conduziram-nos para os assentos ao lado de Faramir: barris cobertos com peles e suficientemente mais altos que os bancos dos homens, para a conveniência dos hobbits.
Antes de comer, Faramir e todos os seus homens se viraram e olharam para o oeste, num momento de silêncio. Faramir fez um sinal para Frodo e Sam de que eles deveriam proceder da mesma forma.
Fazemos sempre assim — disse ele, quando se sentaram -: olhamos na direção de Númenor que era, e mais além na direção de Casadelfos que é, e para aquela que fica além de Casadelfos e sempre será. Vocês não têm esse costume às refeições?
— Não — disse Frodo, sentindo-se estranhamente rústico e inculto. — Mas se somos convidados, fazemos uma reverência diante de nosso anfitrião, e depois de termos comido nos levantamos e lhe agradecemos.
— Isso nós também fazemos — disse Faramir.
Depois de terem viajado e acampado por tanto tempo, depois de dias passados em regiões desertas e solitárias, a refeição noturna pareceu um banquete para os hobbits: beber um vinho clarete, fresco e perfumado, comer pão com manteiga, e carnes salgadas, e frutas secas, e um bom queijo vermelho, com as mãos limpas e com facas e pratos limpos. Nem Frodo nem Sam recusaram nada do que lhes foi oferecido, nem uma segunda, e na verdade nem uma terceira porção. O vinho correu em suas veias e pernas cansadas, e eles se sentiram alegres e com os corações leves, como não se sentiam desde que partiram da terra de Lórien.
Quando tudo estava terminado, Faramir os levou a um cômodo na parte de trás da caverna, parcialmente protegido por cortinas; uma cadeira e dois bancos foram levados para lá. Uma pequena lamparina de barro queimava num nicho.
— Pode ser que logo desejem dormir — disse ele —, especialmente o bom Samwise que não conseguiu pregar os olhos antes de comer — talvez por medo de cegar a lâmina de uma nobre fome, ou por medo de mim, isso eu não sei. Mas não é bom dormir logo depois de uma refeição, e pior ainda se a refeição foi precedida de um período de abstinência. Vamos conversar um pouco. Em sua viagem desde Valfenda deve ter havido muitas coisas para contar. E vocês, também, talvez desejassem aprender alguma coisa sobre nós e sobre as terras onde estão agora. Contem-me sobre Boromir, meu irmão, e sobre o nobre Mithrandir, e sobre o belo povo de Lothlórien.
Frodo deixara de se sentir sonolento, e estava disposto a conversar. Mas, embora a comida e o vinho o tivessem deixado relaxado, ele não perdera de todo a sua cautela. Sam sorria e cantarolava para si mesmo, mas quando Frodo falou ficou imediatamente satisfeito em escutar, arriscando-se apenas algumas vezes a fazer uma exclamação para indicar que estava de acordo.
Frodo contou muitas histórias, mas sempre desviava do assunto da demanda da Comitiva, e do Anel, alongando-se mais na função valorosa desempenhada por Boromir em todas as suas aventuras, com os lobos no ermo, na neve sob Caradhras, e nas Minas de Moria, onde Gandalf caíra. Faramir ficou muito comovido com a história da fuga na ponte.
— Boromir deve ter ficado constrangido ao fugir dos orcs — disse ele —, ou até mesmo da coisa má que você mencionou, o balrog — mesmo que tenha sido o último a sair de lá.
— Ele foi o último — disse Frodo —, mas Aragorn se viu forçado a nos conduzir. Só ele sabia o caminho depois da queda de Gandalf. Mas, se não houvesse nós, pessoas menores, para cuidarem, acho que nem ele nem Boromir teriam fugido.
— Talvez tivesse sido melhor se Boromir caísse lá com Mithrandir — disse Faramir —, não indo ao encontro do destino que o aguardava sobre as cachoeiras de Rauros.
— Talvez. Mas agora me conte sobre suas aventuras — disse Frodo, colocando o assunto de lado mais uma vez. — Eu gostaria de saber mais sobre Minas Ithil e Osgiliath, e sobre Minas Tirith, a que resiste por tanto tempo. Que esperança vocês alimentam em relação à sua cidade nessa longa guerra?
— Que esperança alimentamos? — disse Faramir. — Faz tempo que já não temos esperança alguma. A espada de Elendil, se realmente retornar, talvez possa renová-la, mas não acho que conseguirá mais do que postergar o dia fatal, a não ser que outra ajuda inesperada chegue, dos elfos ou homens. Pois o Inimigo cresce e nós diminuímos. Somos um povo em extinção, um outono sem primavera.
— Os homens de Númenor se estabeleceram por toda a volta das praias e regiões próximas ao mar das Grandes Terras, mas a maior parte deles se entregou ao mal e á loucura. Muitos se enamoraram da Escuridão e das artes negras; outros se entregaram inteiramente ao ócio e ao prazer, e outros ainda lutaram entre si até que, enfraquecidos, foram conquistados pelos homens selvagens.
— Não se afirma que alguma vez artes malignas tenham sido praticadas em Gondor, ou que o Inominável tenha sido evocado com deferência por lá; a antiga sabedoria e beleza trazidas do oeste permaneceram por muito tempo no reino dos filhos de Elendil, o Belo, e ainda perduram. Mesmo assim, foi Gondor que provocou sua própria ruína, caindo passo a passo no desvario, e achando que o Inimigo estava adormecido, aquele que na verdade estava apenas banido, e não destruído.
— A morte esteve sempre presente, pois os numenorianos ainda estavam (como sempre estiveram em seu reino antigo, e foi por isso que o perderam) com fome de vida eterna e imutável. Reis construíam túmulos mais esplêndidos que as casas dos viventes, e consideravam velhos nomes nas listas de seus ancestrais mais caros do que os nomes de filhos. Senhores sem filhos sentavam-se em salões antigos e ficavam meditando sobre heráldica; em câmaras secretas homens mirrados preparavam fortes elixires, ou nas altas e frias torres faziam perguntas às estrelas. E o último rei da linhagem de Anárion não tinha herdeiros.
— Mas os regentes eram mais sábios e mais afortunados.
Mais sábios, porque recrutaram a força de nosso povo entre a gente vigorosa da costa marítima, e entre os fortes montanheses das Ered Nimrais. E fizeram uma trégua com os povos altivos do norte, que nos tinham frequentemente assaltado, homens violentos, mas nossos parentes distantes, diferentes dos selvagens orientais e dos cruéis haradrim.
— Então aconteceu que nos dias de Cirion, o Décimo Segundo Regente (e meu pai é o vigésimo sexto), eles cavalgaram em nossa ajuda e no grande Campo de Celebrant destruíram nossos inimigos, que nos tinham tomado as províncias do norte. Esses são os rohirrim, como os chamamos, senhores dos cavalos, e cedemos a eles os campos de Calenardhon, que desde então se chamam Rohan, pois aquela província sempre fora esparsamente habitada. E tornaram-se nossos aliados, e sempre se mostraram sinceros para conosco, ajudando-nos na necessidade, e guardando nossas fronteiras do norte e o Desfiladeiro de Rohan.
— De nossa tradição e maneiras aprenderam o que lhes agradou, e seus senhores falam nossa língua quando necessário; mas na maioria dos casos mantêm as maneiras de seus antepassados e suas próprias lembranças, e conversam entre si na sua língua do norte. E nós os amamos: homens altos e belas mulheres , valorosos na mesma medida, de cabelos dourados, olhos claros, e muita força; fazem-nos lembrar da juventude dos homens, como eram nos Dias Antigos. Na verdade, os nossos mestres na tradição afirmam que é antiga essa afinidade com eles, que descendem das mesmas Três Casas dos homens, que eram os numenorianos em seu princípio; talvez não de Hador — o dos Cabelos Dourados, o Amigo-dos-elfos, mas de algum dentre seus filhos e sua gente que não atravessaram o Mar rumo ao oeste, recusando o chamado.
— Pois assim consideramos os homens em nossa tradição, chamando-os de Altos, ou homens do oeste, que eram os numenorianos; e os Povos Médios, homens do Crepúsculo, que são os rohirrim e seus parentes que ainda moram no norte, e os bárbaros, os homens da Escuridão.
— Mas agora, se os rohirrim ficaram em alguns aspectos mais semelhantes a nós, realçando artes e boas maneiras, nós também ficamos mais parecidos com eles, e mal podemos reivindicar o título de Altos. Nós nos tornamos Homens Médios, do crepúsculo, mas com a memória de outra realidade. Pois agora, como os rohirrim, amamos a guerra e a coragem como coisas boas em si mesmas, como um esporte e uma finalidade; e, embora ainda consideremos que um guerreiro deve ter mais habilidades e conhecimentos além do oficio das armas e da morte, estimamos um guerreiro, não obstante, acima dos homens de outros ofícios. Essa é a necessidade de nossos dias.
Até Boromir, meu irmão, era assim: um homem de bravura, e por esse motivo era considerado o melhor homem de Gondor. E realmente era muito valoroso: nenhum herdeiro de Minas Tirith foi por tanto tempo tão dedicado em seu trabalho, tão entusiasta na batalha, nem tocou nota mais poderosa na Grande Corneta. — Faramir suspirou e ficou em silêncio por um tempo.
— Em todas as suas histórias, senhor, o senhor não fala muito sobre os elfos — disse Sam, criando coragem de repente. Tinha notado que Faramir parecia se referir aos elfos com reverência, e isso, mais até que sua cortesia, seu vinho ou sua comida, tinha angariado o respeito de Sam e apaziguado suas suspeitas.
— De fato, mestre Samwise — disse Faramir —, pois não sei muita coisa sobre a tradição dos elfos. Mas aí você toca em outro ponto no qual mudamos, decaindo de Númenor para a Terra-média. Pois como deve saber, se Mithrandir foi seu companheiro e se conversaram com Elrond, os edain, Pais dos numenorianos, lutaram ao lado dos elfos nas primeiras guerras, e foram recompensados pela dádiva do reino no meio do Mar, à vista de Casadelfos. Mas na Terra-média homens e elfos se tornaram estranhos nos dias de treva, devido às artes do Inimigo, e pelas lentas mudanças do tempo durante as quais cada espécie avançou mais em duas estradas divididas. Nós, os homens de Gondor, estamos ficando como outros homens, como os homens de Rohan, pois mesmo eles, que são adversários do Senhor do Escuro, evitam os elfos e falam da Floresta Dourada com receio.
— Apesar disso, ainda há entre nós alguns que têm relacionamento com os elfos quando precisam, e vez por outra alguém vai em segredo até Lórien, e quase nunca retorna. Não eu. Pois considero perigoso para homens mortais nos dias de hoje irem voluntariamente procurar o Povo Antigo. Apesar disso invejo vocês, que conversaram com a Senhora Branca.
— A Senhora de Lórien! Galadriel! — exclamou Sam. — O senhor deveria vê-la, realmente deveria, senhor. Sou apenas um hobbit, e trabalho como jardineiro em casa, senhor, se o senhor me entende, e não sou muito bom em poesia — não para compor poesia: algumas rimas cômicas, talvez, mas não poesia de verdade —, por isso não posso expressar meus sentimentos. Precisariam ser cantados. Seria necessário Passolargo, quer dizer, Aragorn, ou o velho Sr. Bilbo, para isso. Mas eu gostaria de poder fazer uma canção sobre ela. Ela é bonita, senhor! Adorável! Algumas vezes como uma grande árvore florida, outras vezes como um narciso silvestre, esbelta e bela. Dura como os diamantes, suave como o luar. Quente como a luz do sol, fresca como o gelo sob as estrelas. Altiva e distante como uma montanha de neve, e alegre como qualquer donzela que já vi, com margaridas no cabelo durante a primavera. Mas estou dizendo um monte de besteiras, e fugindo do que queria falar.
— Então ela deve ser realmente adorável — disse Faramir. — Perigosamente bela.
— Não sei se é perigosa — disse Sam. — Parece-me que as pessoas levam consigo seus perigos quando vão para Lórien, e os descobrem lá porque os levaram. Mas talvez o senhor a pudesse chamar de perigosa, porque ela é tão forte em si mesma. O senhor poderia se despedaçar contra ela, como um navio contra uma pedra; ou poderia se afogar, como um hobbit num rio. Mas nem a pedra nem o rio devem ser responsabilizados.
Agora, Boro... — Sam parou e ficou com o rosto vermelho.
— Sim? Agora, Boromir, você estava dizendo? — disse Faramir. — O que ia dizer? Ele levou esse perigo consigo?
— Sim, senhor, com as suas desculpas, e seu irmão era um homem bom, se me permite dizer. Mas o senhor sempre esteve no rastro certo. Eu observei Boromir e o escutei, de Valfenda, por toda a estrada — tomando conta de meu mestre, se o senhor me entende, e não desejando qualquer mal a Boromir —, e minha opinião é que em Lórien ele pela primeira vez viu claramente o que eu adivinhei antes: o que queria. Desde a primeira vez que o viu, ele quis o Anel do Inimigo.
— Sam! — gritou Frodo horrorizado. Ficara mergulhado nos próprios pensamentos por um tempo, e saiu deles repentinamente e tarde demais.
— Salve-me! — disse Sam ficando com o rosto lívido, e em seguida completamente vermelho. — Lá vou eu de novo! Toda vez que você abre essa sua boca enorme, você atola seu pé, o Feitor costumava me dizer. E com toda razão. E essa agora, e essa agora!
— Agora, olhe aqui, senhor! — voltou-se ele, dirigindo-se a Faramir com toda a coragem que conseguiu reunir. — Não vá tirar vantagem de meu mestre porque o servidor dele não passa de um tolo. O senhor falou bonito o tempo todo. Mas beleza que vale é beleza que faz, como se diz. Agora o senhor tem uma chance para mostrar seu valor.
— É o que parece — disse Faramir, devagar e muito baixo, com um sorriso estranho. — Então esta é a resposta a todos os enigmas! O Um Anel que se acreditava desaparecido do mundo, E Boromir tentou tomá-lo à força? E você escapou? E correu todo o caminho até mim! E aqui, nesta região deserta, tenho vocês: dois pequenos, e um exército de homens às minhas ordens, e o Anel dos Anéis. Um belo lance de sorte! Uma chance para Faramir, Capitão de Gondor, mostrar seu valor! Ha! — Ficou de pé, muito altivo e grave, os olhos cinzentos faiscando.
Frodo e Sam saltaram de seus bancos e ficaram lado a lado, com as costas contra a parede, procurando com as mãos os punhos das espadas.
Fez-se silêncio.
Todos os homens na caverna pararam de conversar e olharam para eles, surpresos.
Mas Faramir sentou-se outra vez na cadeira e começou a rir baixinho, e de repente assumiu outra vez a expressão grave.
— Que infelicidade para Boromir! Foi uma provação grande demais! — disse ele. — Que capacidade vocês tiveram de aumentar minha tristeza, vocês dois, viajantes de uma terra estranha, carregando o perigo dos homens! Mas vocês fazem pior juízo dos homens do que eu faço dos pequenos. Somos sinceros, nós, homens de Gondor. Raramente nos vangloriamos, e então confirmamos nossas palavras, ou morremos na tentativa. Nem que o encontrasse na estrada, o tomaria, disse eu. Mesmo que fosse um homem que desejasse esse objeto, e mesmo que não soubesse direito de que se tratava quando falei, ainda honraria minhas palavras como um juramento, e me pautaria por elas.
— Mas não sou esse homem. Ou pelo menos sou sábio o suficiente para saber que há alguns perigos dos quais os homens devem fugir. Sentem-se tranqüilos! E console-se, Samwise. Se tiver a impressão de ter tropeçado, considere que isto estava fadado a acontecer. Seu coração é perspicaz além de fiel, e enxergou com mais clareza que seus olhos. Pode parecer estranho, mas não houve risco em declarar isso a mim. Pode até ajudar o mestre que você ama. Será para o bem dele, se estiver ao meu alcance. Por isso, console-se. Mas nem mesmo mencione essa coisa em voz alta de novo. Uma vez é o suficiente.
Os hobbits voltaram aos seus lugares e se sentaram bem quietos.
Os homens retomaram à bebida e à conversa, percebendo que seu capitão tinha feito alguma brincadeira com seus pequenos convidados, e que tudo terminara.
— Bem, Frodo, finalmente nos entendemos — disse Faramir. — Se você assumiu essa missão involuntariamente, a pedido de outros, então merece minha compaixão e respeito.
E admiro você: mantê-lo escondido e não usá-lo. Vocês são um povo novo, e um mundo novo para mim. Todo o seu povo é assim? Sua terra deve ser um reino de paz e felicidade, e lá os jardineiros devem ser muito respeitados.
— Nem tudo está bem por lá — disse Frodo —, mas certamente os jardineiros são respeitados.
— Mas as pessoas lá devem se cansar, mesmo nos próprios jardins, como acontece com todos os seres sob o sol deste mundo. E vocês estão longe de casa e exaustos. Chega por hoje. Durmam, você s dois — em paz, se puderem. Nada temam! Não desejo vê-lo, ou tocá-lo, ou saber mais sobre ele do que já sei (e que já é suficiente), para que o perigo fortuito não me desvie de meu caminho, e eu tenha pior resultado nesse teste do que Frodo, filho de Drogo. Vão agora e descansem — mas primeiro me digam só uma coisa, se quiserem. Aonde desejam ir, e com que finalidade. Pois preciso vigiar e esperar, e pensar.
O tempo passa. Pela manhã deveremos cada um ir depressa pelos caminhos a nós designados.
Frodo se viu tremendo, quando o primeiro choque do medo passou.
Agora um grande cansaço tomava conta de seu corpo, envolvendo-o como uma nuvem. Não conseguia mais dissimular ou resistir.
— Eu pretendia achar um caminho para entrar em Mordor — disse ele numa voz baixa. — Estava indo para Gorgoroth. Preciso achar a Montanha de Fogo e jogar a coisa no abismo da Perdição. Gandalf me disse que fizesse isso. Não acho que conseguirei chegar lá.
Faramir o observou por um momento, num assombro grave. Então de repente apanhou o hobbit que se desequilibrava, e, erguendo-o suavemente, carregou-o para a cama, deitou-o ali e o cobriu bem agasalhado.
Imediatamente, Frodo caiu num sono profundo.
Uma outra cama foi colocada ao lado para seu servidor. Sam hesitou um momento, e depois fez uma grande reverência. — Boa noite, Capitão, meu senhor — disse ele. — Arriscou-se, senhor!
— Arrisquei-me? — disse Faramir.
— Sim, senhor, e demonstrou seu valor: o maior de todos.
Faramir sorriu. — Um servidor esperto, o Mestre Samwise. Mas não é nada disso: o elogio que vem daquele que merece o elogio está acima de todas as recompensas. Mesmo assim, esse elogio nada significa. Eu não tinha vontade ou desejo de fazer nada diferente do que fiz.
— Muito bem, senhor — disse Sam. — O senhor disse que meu mestre tinha um ar élfico; e isso foi bom e verdadeiro. Mas posso dizer isto: o senhor tem um ar também, senhor, que me faz lembrar de, de... bem, de Gandalf, dos magos.
— Talvez — disse Faramir. — Talvez você tenha a capacidade de discernir à distância o ar de Númenor. Boa noite!
O LAGO PROIBIDO
Frodo acordou e viu Faramir debruçado sobre ele. Por um segundo, foi dominado por velhos temores, que o fizeram sentar-se e se esquivar.
— Não há nada a temer — disse Faramir.
— Já amanheceu? — disse Frodo bocejando.
— Ainda não, mas a noite está chegando ao fim, e a lua cheia está se pondo. Quer vir vê-la? Além disso, há um assunto sobre o qual preciso de sua opinião. Lamento muito acordá-lo, mas você pode vir?
— Eu vou — disse Frodo, levantando-se e tremendo um pouco ao deixar os cobertores e as peles quentes. Estava frio na caverna sem fogueiras. O ruído da água crescera na quietude. Frodo colocou a capa e seguiu Faramir.
Sam, acordando de repente por algum instinto de vigilância, viu primeiro a cama vazia do mestre e pulou de pé. Depois viu dois vultos escuros, Frodo e um homem, recortados contra o arco, que agora se enchia de uma luz opaca e branca. Correu atrás deles, passando por fileiras de homens adormecidos sobre colchões ao longo da parede.
Ao atravessar a abertura da caverna, viu que a Cortina se transformara agora num véu deslumbrante de seda e pérolas e fios de prata: pingentes de luar se derretendo. Mas não parou para admirá-la, e virando-se seguiu seu mestre através da porta estreita na parede da caverna.
Primeiro foram ao longo de um corredor negro, depois subiram muitos degraus úmidos, e então chegaram a uma pequena plataforma plana cortada na pedra e iluminada pelo céu claro, que se vislumbrava lá em cima através de uma abertura longa e funda.
Desse ponto saiam dois lances de escada: um que aparentemente subia, levando à alta margem do rio, e o outro fazendo uma curva à esquerda. Foram por este, que subia em espiral como a escada de um torreão. Finalmente saíram da escuridão rochosa e olharam ao redor.
Estavam sobre uma rocha larga e plana sem muro ou parapeito. À direita, a leste, a correnteza caia, esparramando-se sobre vários patamares, e depois, descendo uma canaleta íngreme, enchia um canal não muito fundo com uma força sombria de água salpicada de espuma, e dando voltas e correndo quase aos pés deles mergulhava subitamente por sobre a borda que se abria à esquerda. Um homem estava ali, perto da borda, quieto, olhando para baixo.
Frodo virou-se para ver os filetes lisos das águas que arqueavam e mergulhavam.
Depois fixou seu olhar na vastidão. O mundo estava quieto e frio, como se a aurora se aproximasse. Na distância, a oeste, a lua cheia estava descendo, redonda e branca. Uma névoa clara tremeluzia no grande vale abaixo deles: um abismo largo cheio de vapor prateado, no fundo do qual rolavam as frias águas noturnas do Anduin. Uma escuridão negra assomava mais além, e nela faiscavam, aqui e acolá, frios, afiados, remotos, brancos como dentes de fantasmas, os picos das Ered Nimrais, as Montanhas Brancas do Reino de Gondor, cobertas pela neve eterna.
Por um tempo Frodo ficou ali parado sobre a elevada pedra, e um tremor percorreu-lhe o corpo, quando ele pensou se em algum lugar na vastidão das terras da noite seus velhos companheiros estariam dormindo ou caminhando, ou mortos, envoltos na névoa. Por que fora levado para aquele lugar, depois de ser acordado de um sono de esquecimento?
Sam ansiava por uma resposta para a mesma pergunta, e não pôde evitar murmurar, apenas para o ouvido de seu mestre, pensava ele: — É uma bela vista, sem dúvida, Sr. Frodo, mas gela o coração, para não mencionar os ossos! O que está acontecendo?
Faramir ouviu e respondeu. — Pôr-da-lua sobre Gondor. A bela Ithil, quando parte da Terra-média, lança um olhar sobre os cachos brancos do velho Mindolluin.
Vale alguns calafrios. Mas não foi para mostrar isto que os trouxe aqui — embora no que se refere a você, Mestre Samwise, você não foi trazido, e só está pagando a pena por sua vigilância. Um gole de vinho pode consertar as coisas.
Venham, olhem agora!
Subiu ao lado da silenciosa sentinela na borda escura, e Frodo o seguiu. Sam ficou para trás. Já se sentia inseguro o suficiente naquela plataforma alta e molhada. Faramir e Frodo olharam para baixo. Viram as águas brancas se derramando numa vasilha espumante, para depois rodopiarem numa bacia oval nas rochas, até saírem outra vez através de uma passagem estreita, indo correr, espumando e tagarelando, por regiões mais calmas e planas. O luar ainda caia oblíquo sobre os pés da cachoeira, e tremeluzia nas ondas da bacia. De repente Frodo percebeu uma pequena coisa preta na margem próxima, mas, no mesmo momento em que a viu, ela mergulhou e desapareceu bem atrás da fervura borbulhante da cachoeira, furando a água negra com a precisão de uma flecha ou de uma pedra cortante.
Faramir voltou-se para o homem ao seu lado. — Agora, o que você diria que é isso, Anborn? Um esquilo ou um martim-pescador? Existem martins-pescadores pretos nos lagos noturnos da Floresta das Trevas?
— O que quer que seja, não é um pássaro — respondeu Anborn. — Tem quatro membros e mergulha como um homem; demonstra um grande domínio nessa prática, também. O que estará fazendo? Procurando uma subida por trás da Cortina, que conduza ao nosso esconderijo? Parece que finalmente fomos descobertos. Estou com meu arco aqui, e posicionei outros arqueiros, quase todos com pontarias tão boas como a minha, em ambas as margens. Estamos aguardando apenas sua ordem para atirar, Capitão.
— Devemos atirar? — perguntou Faramir, virando-se depressa para Frodo.
Frodo ficou sem responder por um momento. Então disse:
— Não! Não! Imploro que não atire. — Se Sam tivesse tido coragem, teria dito “Sim”, mais rápido e mais alto. Não estava enxergando, mas podia muito bem supor pelas palavras deles o que estavam vendo.
— Então você sabe o que é esta coisa? — disse Faramir. — Vamos lá, agora que já viu, diga-me por que deve ser poupada. Em todas as nossas conversas você não mencionou uma só vez seu companheiro vagabundo, e eu deixei o assunto de lado. Ele podia esperar até ser capturado e trazido á minha presença. Enviei meus caçadores mais hábeis para procurá-lo, mas ele os despistou, e meus homens só o acharam agora, com a exceção de Anborn, que o viu uma vez na noite passada. Mas agora ele cometeu transgressão maior do que apenas preparar armadilhas para coelhos nas terras altas: ousou vir a Henneth Annún, deverá pagar com a vida. Fico assombrado com ele: é tão secreto e furtivo, e agora vem se divertir no lago, bem diante de nossa janela. Será que acha que os homens dormem à noite sem montar guarda? Por que pensa assim?
— Acho que há duas respostas — disse Frodo. — Por um lado, ele sabe pouco sobre os homens, e, embora seja matreiro, seu refúgio é tão oculto que é possível que ele não saiba que há homens escondidos aqui. Por outro lado, acho que está sendo atraído para cá por um desejo dominador, maior que sua cautela.
— Você diz que ele está sendo atraído para cá? — disse Faramir em voz baixa. — Então ele pode saber, ele sabe de seu fardo?
— Na verdade sabe. Ele mesmo o carregou por muitos anos.
— Ele o carregou? — disse Faramir, ofegando em sua surpresa. — Esse assunto a cada vez se enreda em novos enigmas. Então ele persegue essa coisa?
— Talvez. É precioso para ele. Mas não falei disso.
— O que então a criatura está procurando?
— Peixe — disse Frodo. — Olhe!
Espiaram lá embaixo, no lago escuro. Uma pequena cabeça preta apareceu na extremidade da bacia, mal contrastando com a sombra profunda das rochas. Houve um rápido cintilar prateado, e um rodamoinho de pequenas ondas, que se aproximou da margem. Então, com uma enorme agilidade, uma figura semelhante a uma rã saiu da água e subiu o barranco. Imediatamente se sentou e começou a morder a pequena coisa prateada que faiscava conforme ia virando em suas mãos: os últimos raios da lua estavam agora caindo atrás da parede rochosa, na extremidade do lago.
Faramir riu baixinho.
— Peixe! — disse ele. — É uma fome menos perigosa. Ou talvez não: os peixes do lago de Henneth Annûn podem lhe custar tudo o que tem.
— Agora eu o tenho bem na mira — disse Anborn. — Não devo atirar, Capitão? Nossa pena para os que vêm a este lugar sem permissão é a morte.
— Espere, Anborn — disse Faramir. — Esse assunto é mais complexo do que parece. O que você tem a dizer agora, Frodo? Por que deveríamos poupá-lo?
— A criatura está desgraçada e faminta — disse Frodo. — Não sabe do perigo que está correndo. E Gandalf, o seu Mithrandir, teria ordenado a você que não o matasse por essa razão, e por outras. Proibiu que os elfos o fizessem. Não sei muito bem por quê, e do que suponho não posso falar abertamente aqui. Mas essa criatura está de alguma forma ligada à minha missão. Até você nos encontrar e nos levar, ele era meu guia.
— Seu guia! — disse Faramir. — O assunto cada vez fica mais estranho. Eu faria muito por você, Frodo, mas isso não posso garantir: deixar que esse viajante clandestino parta daqui livremente, par a reunir-se a você mais tarde se quiser, ou para ser capturado por orcs e dizer tudo o que sabe sob ameaça de tortura.
Deve ser capturado ou morto. Morto, se não for capturado depressa. Mas como se pode capturar essa criatura escorregadia de muitos aspectos , a não ser com uma flecha emplumada?
— Deixe-me chegar perto dele devagar — disse Frodo. — Vocês podem deixar seus arcos preparados, e pelo menos atirar em mim, se eu falhar. Não vou fugir.
— Então vá e seja rápido! — disse Faramir. — Se ele escapar ileso, deverá ser seu fiel servidor pelo resto de seus infelizes dias. Conduza Frodo até a margem, Anborn, e vá com cuidado. Essa coisa tem nariz e ouvidos. Dê-me seu arco.
Anborn resmungou e foi descendo a escada até o pata mar, e depois subiu a outra escada, até que finalmente ele e Frodo chegaram a uma abertura estreita coberta por densos arbustos. Atravessando silenciosamente, Frodo se viu no topo do barranco ao sul do lago. As águas estavam escuras e a cachoeira pálida e cinzenta, refletindo apenas os últimos raios de luar do céu a oeste. Não conseguiu ver Gollum . Avançou um pouco e Anborn o seguiu de perto.
— Siga em frente! — sussurrou ele ao ouvido de Frodo. — Tome cuidado com a sua direita. Se você cai r no lago, ninguém exceto seu amigo pescador poderá ajudá-lo. E não se esqueça de que os arqueiros estão por perto, embora não possa vê-los.
Frodo se esgueirou para frente, usando as mãos á moda de Gollum para ir achando o caminho e para se equilibrar. A maioria das rochas eram planas e lisas, mas escorregadias. Parou para escutar. Primeiro não ouviu nada além do ruído incessante da cachoeira atrás dele. Então, de repente, não muito longe, um murmúrio chiado.
— Peixxe, peixxe bonzinho. A Cara Branca desapareceu, meu precioso, até que enfim, é sim. Agora podemos comer peixe em paz. Não, não em paz, precioso. Pois o Precioso está perdido, é sim, perdido. Hobbits sujos, hobbits malvados. Foram e nos deixaram, Gollum; e o Precioso se foi. Só o pobre Sméagol sozinho. Não, Precioso, homens maus vão pegá-lo, roubar meu Precioso. Ladrões. Nós odeia eles. Peixxe, peixxe bonzinho. Nos deixa fortes, com os olhos atentos e os dedos ágeis, é sim. Estrangular eles, precioso. Estrangular todos eles, é sim, se nós tiver uma chance. Peixxess bonzinhos, peixxess bonzinhos.
Assim continuou sua fala, quase tão incessante quanto a cachoeira, apenas Interrompida por um lamber de beiços ou um gorgolejar.
Frodo estremeceu, ouvindo com pena e nojo. Gostaria que aquilo parasse, que nunca precisasse ouvir aquela voz de novo. Anborn não estava muito longe. Frodo podia se esgueirar de volta e pedir a ele que mandasse os arqueiros atirarem. Provavelmente chegariam perto o suficiente, enquanto Gollum devorava peixes e estava desatento.
Apenas um tiro certeiro e Frodo estaria livre daquela voz miserável para sempre. Mas não, agora Gollum tinha um direito sobre ele. O servo tem um direito sobre o mestre pelos serviços prestados, mesmo se prestados por medo. Teriam soçobrado nos Pântanos Mortos se não fosse por Gollum. Frodo também percebia claramente, de alguma forma, que Gandalf não teria desejado aquilo.
— Sméagol! — disse ele baixinho.
— Peixxess, peixxess bonzinhos — disse a voz.
— Sméagol! — disse ele um pouco mais alto. A voz parou. — Sméagol, o Mestre veio procurar você. O Mestre está aqui. Venha, Sméagol! — Não houve resposta a não ser um chiado, como o de alguém inalando ar.
— Venha, Sméagol! — disse Frodo. — Estamos em perigo. Os homens vão matá-lo, se o encontrarem aqui. Venha depressa, se quiser escapar da morte. Venha até o Mestre!
— Não — disse a voz. — Mestre não bonzinho. Deixa o pobre Sméagol e vai com novos amigos. O Mestre pode esperar. Sméagol não terminou.
— Não há tempo — disse Frodo. — Traga peixes com você. Venha!
— Não! Preciso terminar o peixe.
— Sméagol! — disse Frodo desesperado. — O Precioso vai ficar bravo. Vou pegar o Precioso e dizer a ele: faça Gollum engolir os ossos e engasgar. Para nunca experimentar peixe de novo. Venha, o Precioso está esperando! Houve um chiado agudo. De repente, da escuridão surgiu Gollum , se arrastando de quatro, como um cachorro que fez algo errado e foi repreendido. Trazia um peixe parcialmente devorado na boca e um outro na mão.
Chegou perto de Frodo, quase cara a cara, e o farejou. Seus olhos opacos estavam brilhando. Depois tirou o peixe da boca e se levantou.
— Mestre bonzinho! — sussurrou ele. — Hobbit bonzinho voltou para o pobre Sméagol. O bom Sméagol vem. Agora vamos depressa, vamos sim. Através das árvores, enquanto os Caras estão escuros. Sim, vamos!
— Sim, vamos logo — disse Frodo. — Mas não já. Vou com você como prometi.
Prometo de novo. Mas não agora. Você ainda não está a salvo. Vou salvá-lo, mas precisa confiar em mim.
— Precisamos confiar no Mestre? — disse Gollum desconfiado. — Por quê? Por que não já? Onde está o outro, o hobbit rabugento e bruto? Onde está ele?
— Lá em cima — disse Frodo, apontando para a cachoeira. — Não vou sem ele.
Devemos voltar para encontrá-lo. — Sentiu o coração apertado. Isso era quase um truque sujo. Na verdade ele não temia que Faramir fosse permitir que Gollum fosse morto, mas provavelmente o faria prisioneiro e o prenderia; certamente o que Frodo estava fazendo iria parecer uma traição para a pobre criatura traidora. Provavelmente seria impossível fazê-lo entender ou acreditar que Frodo lhe salvara a vida da única forma possível. Que mais poderia fazer? — ser fiel, o máximo possível, aos dois lados. — Venha! — disse ele. — Senão o Precioso vai ficar bravo. Vamos voltar agora, subindo o rio. Vá andando, vá andando, você na frente!
Gollum foi se arrastando perto da borda por um trecho, bufando e desconfiado. De repente parou e levantou a cabeça.
— Tem alguma coisa ali! — disse ele. — Não é um hobbit. — De repente se virou. Uma luz verde faiscava em seus olhos protuberantes. — Messtre, messtre! — chiou ele. — Maldito! Traidor! Falso! — Cuspiu e esticou seus longos braços, estalando os dedos brancos.
Naquele momento, o vulto grande e negro de Anborn surgiu por trás e caiu sobre ele. Uma grande mão forte o pegou pela nuca e o ergueu.
Gollum se torcia feito um raio, todo molhado e cheio de lodo como estava, serpenteando como uma enguia, mordendo e arranhando como um gato. Mas outros dois homens surgiram das sombras.
— Fique quieto! — disse um deles. — Senão vamos enchê-lo de flechas e deixá-lo como um ouriço. Fique quieto!
Gollum amoleceu o corpo, e começou a gemer e chorar. Eles o amarraram, sem qualquer delicadeza.
— Calma, calma! — disse Frodo. — Ele não tem força para enfrentar vocês. Não o machuquem, se for possível. Ficará mais quieto se não for ferido. Sméagol! Eles não vão machucá-lo. Vou com você e ninguém vai lhe fazer mal. A não ser que me matem também. Confie no Mestre.
Gollum virou-se e cuspiu em Frodo. Os homens o pegaram, cobriram-lhe os olhos com um capuz, e o carregaram.
Frodo os seguiu, sentindo-se um perfeito patife. Foram pela abertura atrás dos arbustos, e voltaram, pelas escadas e corredores, para a caverna. Duas ou três tochas estavam acesas. Os homens começavam a se levantar. Sam estava lá, e lançou um olhar estranho para o fardo inerte que os homens traziam. — Pegaram-no? — disse ele a Frodo.
— Sim. Ou melhor, não, eu não o peguei. Ele veio até mim, porque num primeiro momento confiou no que eu disse, eu receio. Não queria que o amarrassem desse jeito.
Espero que esteja bem; mas odeio tudo isso.
— Eu também — disse Sam. — E nunca nada vai ficar bem onde esse pedaço de desgraça estiver.
Um homem veio e acenou para os hobbits, e os levou para o cômodo no fundo da caverna. Faramir estava sentado em sua cadeira, e a lamparina fora reacendida no nicho sobre a cabeça dele. Fez um sinal para que se sentassem nos bancos perto dele. — Tragam vinho para os convidados — disse ele. — E tragam-me o prisioneiro.
O vinho foi trazido e então veio Anborn carregando Gollum.
Retirou-lhe o capuz da cabeça e o colocou de pé, ficando atrás dele para apoiá-lo.
Gollum piscou, encobrindo a malícia de seus olhos com as pálpebras pesadas e pálidas. Tinha a aparência de uma criatura absolutamente miserável, ensopado e pingando, cheirando a peixe (ainda segurava um na mão). Os cabelos ralos caiam como mato viscoso pela sua fronte ossuda, o nariz escorria.
— Soltem nós! Soltem nós! — disse ele. — A corda nos machuca, machuca sim, machuca nós, e não fizemos nada.
— Nada? — disse Faramir, observando a criatura miserável com um olhar agudo, mas seu rosto não tinha qualquer expressão de ódio, ou pena, ou surpresa:
— Nada? Você nunca fez nada para merecer ser amarrado ou punido de forma ainda mais severa? Entretanto, felizmente não sou eu quem deve julgar isso. Mas esta noite você entrou num lugar onde a entrada se paga com a morte. Os peixes deste lago se compram a um alto preço.
Gollum soltou o peixe da mão. — Não quero peixe — disse ele.
— O preço não está fixado no peixe — disse Faramir. — Apenas vir aqui e olhar para o lago acarreta pena de morte. Poupei-o até agora por causa das súplicas de Frodo, que diz que dele pelo menos você merece alguma gratidão. Mas a mim também você deve satisfações. Qual é o seu nome? De onde vem? E para onde vai? Qual é a sua ocupação?
— Estamos perdidos, perdidos — disse Gollum. — Sem nome, sem ocupação, sem Precioso, sem nada. Só vazio. Só faminto; é sim, estamos com fome. Alguns peixinhos, peixinhos ruins e magros, para uma pobre criatura, e eles dizem morte. São tão sábios, tão justos, muito justos.
— Não muito sábios — disse Faramir. — Mas justos, sim, talvez justos o quanto permite nossa pouca sabedoria. Solte-o, Frodo! — Faramir pegou uma pequena faca de seu cinto e a entregou a Frodo. Gollum interpretou o gesto de forma errada, gritou e caiu no chão.
— Agora, Sméagol! — disse Frodo. — Você tem de confiar em mim. Não vou abandoná-lo. Responda com sinceridade, se puder. Será para o seu bem, não para seu mal.
— Cortou as cordas dos pulsos e tornozelos de Gollum e o colocou de pé.
— Venha até aqui — disse Faramir. — Olhe para mim! Sabe o nome deste lugar? Já esteve aqui antes?
Lentamente Gollum ergueu os olhos e olhou com má vontade nos de Faramir.
Toda a luz desapareceu deles, que por um momento fitaram desolados e opacos os olhos resolutos do homem de Gondor. Fez-se completo silêncio. Depois Gollum deixou cair a cabeça e foi se encolhendo no chão até ficar agachado, tremendo.
— Nós não sabe e nós não quer saber — choramingou ele. — Nunca veio aqui, nunca vem de novo.
— Há portas trancadas e janelas cerradas em sua mente, e salas escuras atrás delas — disse Faramir. — Mas neste assunto julgo que está falando a verdade. Isto é bom para você. Que juramento pode fazer garantindo nunca mais voltar, e nunca trazer qualquer criatura viva para cá, oralmente ou por escrito?
— O Mestre sabe — disse Gollum com um olhar oblíquo para Frodo. — É sim, ele sabe. Nós vai prometer ao Mestre, se ele nos salvar. Vamos prometer por Ele, é sim. — Arrastou-se em direção aos pés de Frodo. — Salve nós, Mestre bonzinho! — gemeu ele. — Sméagol promete pelo Precioso, promete sinceramente. Nunca voltar de novo, nunca falar, não, nunca! Não, precioso, não!
— Está satisfeito? — perguntou Faramir.
— Estou — disse Frodo. — No mínimo, ou você terá de aceitar essa promessa ou fazer cumprir a sua lei. Nada vai conseguir além disso. Mas eu prometi que, se ele viesse até mim, nada de mau lhe aconteceria. E eu não gostaria de passar por mentiroso.
Faramir parou por um momento, pensando.
— Muito bem — disse ele finalmente. — Eu o entrego ao seu mestre, a Frodo, filho de Drogo. Que ele declare o que fará com você!
— Mas, Senhor Faramir — disse Frodo curvando-se —, ainda não declarou sua vontade no que concerne ao referido Frodo, e até que isso seja conhecido, ele não pode fazer planos próprios para si ou para seus companheiros. Seu julgamento foi prorrogado para o amanhecer, mas não falta muito.
— Então vou declarar minha sentença — disse Faramir. — Quanto a você, Frodo, usando meu poder, que está sob autoridade maior, declaro-o livre no reino de Gondor, até a mais distante das antigas fronteiras; a única restrição que faço é que nem você nem os que o acompanham têm permissão de vir para este lugar espontaneamente. Essa sentença deverá valer por um ano e um dia, e depois cessará, a não ser que antes disso você venha a Minas Tirith e se apresente ao Senhor e Regente da Cidade. Então solicitarei a ele que confirme o que fiz e que o faça valer por toda a vida.
Enquanto isso, quem quer que seja que você tome sob a sua proteção, estará sob a minha proteção e sob o escudo de Gondor. Respondi sua pergunta?
Frodo fez uma grande reverência.
— Respondeu perfeitamente — disse ele —, e coloco-me aos seus serviços, se isso valer alguma coisa para alguém tão nobre e honrado.
— Tem grande valor — disse Faramir. — E agora, você toma essa criatura, esse Sméagol, sob sua proteção?
— Tomo Sméagol sob minha proteção — disse Frodo. Sam deu um suspiro perfeitamente audível, e não foi pela troca de cortesias, a qual, como faria qualquer hobbit, ele aprovou completamente. Na verdade, no Condado um assunto desses demandaria muito mais palavras e reverências.
— Então digo a você — disse Faramir, voltando-se para Gollum. — Você está sob uma sentença de morte; mas enquanto acompanhar Frodo estará livre, de nossa parte. Mas se alguma vez for encontrado por qualquer homem de Gondor sozinho, sem estar na companhia dele, a sentença será cumprida. E que a morte possa encontrá-lo depressa, dentro ou fora de Gondor, se você não lhe servir bem. Agora me responda: para onde estava indo? Ele disse que você era o seu guia. Para onde o estava levando?
Gollum não respondeu.
— Isso eu não permito que fique em segredo — disse Faramir. — Responda-me, ou reverterei meu julgamento! — Ainda assim Gollum não respondeu.
— Vou responder por ele — disse Frodo. — Ele me trouxe ao Portão Negro, como eu pedi, mas não houve como passarmos por ele.
— Não há portões abertos para a Terra Inominada — disse Faramir.
— Em vista disso, nós nos desviamos e viemos pela estrada que vai para o sul — Frodo continuou —, pois ele disse que há, ou pode haver, uma trilha perto de Minas Ithil.
— Minas Morgul — disse Faramir.
— Não sei bem ao certo — disse Frodo —, mas a trilha sobe, eu acho, pelas montanhas na encosta norte daquele vale onde fica a velha cidade. Sobe até uma fenda alta e depois desce até o que fica além dela.
— Você sabe o nome da passagem alta? — perguntou Faramir.
— Não — disse Frodo.
— Chama-se Cirith Ungol. — Gollum soltou um chiado agudo e começou a murmurar consigo mesmo. — Não é esse o nome? — perguntou Faramir virando-se para ele.
— Não! — disse Gollum, e depois deu um grito estridente, como se alguém o tivesse apunhalado. — Sim, sim, escutamos o nome uma vez. Mas que importância tem o nome para nós? O Mestre diz que precisa entrar. Então precisamos tentar algum caminho. Não há outro modo de tentar, não há.
— Nenhum outro modo? — disse Faramir. — Como sabe disso? E quem já explorou todos os confins desse reino negro? — Fitou Gollum longa e pensativamente. De repente, falou de novo. — Leve embora essa criatura, Anborn. Trate-o com gentileza, mas fique vigiando. E você, Sméagol, não tente mergulhar na cachoeira. As rochas têm dentes que poderiam matá-lo antes de sua hora. Deixe-nos agora e leve seu peixe.
Anborn saiu e Gollum foi andando agachado diante dele. A cortina do cômodo foi fechada.
— Frodo, acho que você está agindo de maneira incauta nesse assunto — disse Faramir. — Não acho que você deveria ir com essa criatura. Sméagol é mau.
— Não, não totalmente mau — disse Frodo.
— Não totalmente, talvez — disse Faramir. — Mas a maldade o devora como um cancro, e está crescendo. Ele não o conduzirá para o bem. Se vocês se separarem, dar-lhe ei um salvo-conduto e orientação para qualquer ponto nas fronteiras de Gondor que ele queira escolher.
— Ele não aceitaria — disse Frodo. — Iria me seguir como já faz há muito tempo. E já prometi muitas vezes tomá-lo sob minha proteção, e ir aonde ele me conduzisse. Você não poderia pedir que eu quebrasse o juramento que fiz a ele.
— Não — disse Faramir. — Mas meu coração poderia. Pois me parece um mal menor alguém aconselhar outro homem a quebrar um juramento do que a própria pessoa quebrá-lo, especialmente se vir um amigo inconscientemente atado ao seu próprio mal. Mas não — se ele o acompanhar, você precisa agora aturá-lo. Mas não acho que você deva ir a Cirith Ungol, sobre a qual ele lhe disse menos do que sabe. Isso eu percebi com clareza na mente dele. Não vá para Cirith Ungol!
— Aonde então deverei ir? — perguntou Frodo. — De volta ao Portão Negro, para me entregar à guarda? O que você sabe sobre esse lugar que torna seu nome tão terrível?
— Nada ao certo — disse Faramir. — Nós de Gondor nunca passamos para o lado leste da Estrada nestes dias, e nenhum de nós, homens mais jovens, jamais passou, nem qualquer um jamais colocou os pés nas Montanhas da Sombra. Delas só conhecemos velhos relatos e rumores de dias passados. Mas há algum terror escuro que habita as passagens acima de Minas Morgul. Quando se menciona Cirith Ungol, velhos e mestres na tradição ficam pálidos e calados.
— O vale de Minas Morgul passou para o mal há muito e muito tempo, e era uma ameaça e um terror enquanto o Inimigo banido ainda morava longe, e Ithilien ainda estava quase totalmente em nosso poder. Tomo você sabe, aquela cidade já foi um lugar forte, altivo e belo, Minas Ithil, a irmã gêmea de nossa própria cidade. Mas foi tomada por homens cruéis que o Inimigo dominara durante sua primeira demonstração de força, e que vagavam sem lar e sem senhor depois da queda dele.
Comenta-se que serviram a homens de Númenor que haviam caído numa maldade escura; o Inimigo deu-lhes anéis de poder, e assim os devorou: transformaram-se em fantasmas vivos, terríveis e maus. Depois que ele partiu, tomaram Minas Ithil e lá se estabeleceram, e a encheram, e também todo o vale ao seu redor, de ruína: parecia vazia mas não estava, pois um terror disforme morava dentro das paredes arruinadas. Eram nove Senhores, e depois do retorno de seu mestre, que eles auxiliaram e prepararam em segredo, fortaleceram-se de novo. Então os Nove Cavaleiros saíram dos portões de horror, e não conseguimos opor-lhes resistência. Não se aproxime da cidadela deles. Será avistado. É um lugar de maldade que nunca adormece, cheio de olhos sem pálpebras. Não vá por ali.
— Mas qual outro caminho você me indicaria? — perguntou Frodo. — Disse que não pode me conduzir em pessoa até as montanhas, nem atravessá-las. Mas eu as preciso atravessar, pois assumi solenemente perante o Conselho o compromisso de encontrar um caminho, ou perecer na busca. E se eu voltar atrás, recusando a estrada em seu fim amargo, haverá lugar para mim entre elfos ou homens? Você gostaria que eu fosse a Gondor com essa Coisa, a Coisa que alucinou de desejo seu irmão? Que feitiço operaria em Minas Tirith? Deverá haver duas cidades de Minas Morgul, sorrindo uma para a outra, através da terra morta coberta de podridão?
— Eu não gostaria disso — disse Faramir.
— Então o que me aconselharia a fazer?
— Não sei. Apenas não aconselharia você a ir em direção à morte ou ao tormento. E não acho que Mithrandir teria escolhido esse caminho.
— Mas, já que ele se foi, devo tomar as trilhas que puder encontrar. E não há muito tempo para procurar — disse Frodo.
— É um destino terrível e uma missão desesperada — disse Faramir. — Mas pelo menos lembre-se de minha advertência: tome cuidado com esse guia, Sméagol. Ele já cometeu assassinatos antes. Leio isso nele. — Faramir suspirou.
— Bem, assim nos encontramos e nos despedimos, Frodo, filho de Drogo. Não há necessidade de palavras gentis: não espero revê-lo em qualquer outro dia sob este sol.
Mas agora você deve partir com minha bênção sobre você e sobre todo o seu povo.
Descanse um pouco enquanto lhe preparam a comida. Gostaria muito de saber como esse Sméagol rastejante tomou posse Á da Coisa da qual falamos, e como a perdeu, mas não vou incomodá-lo agora. Se um dia, além de qualquer esperança, você retornar a terra dos vivos e nós recontarmos nossas histórias, sentados perto de uma muralha ao sol, rindo das tristezas antigas, então você poderá me contar. Até esse dia, ou outro dia além da visão das Pedras-videntes de Númenor, boa sorte!
Levantou-se e fez uma grande reverência para Frodo, e abrindo a cortina passou para a caverna.
VIAGEM ATÉ A ENCRUZILHADA
Frodo e Sam voltaram a suas camas e ficaram ali deitados em silêncio, descansando um pouco, enquanto os homens se punham em movimento e a atividade do dia começava. Depois de um tempo trouxeram-lhes água, e então foram levados a uma mesa onde havia comida para três. Faramir quebrou o jejum com eles.
Não dormira desde a batalha no dia anterior, e mesmo assim não parecia cansado.
Quando terminaram a refeição, levantaram-se. — Que a fome não os incomode na estrada — disse Faramir. — Vocês têm poucas provisões, mas mandei colocar em suas mochilas um pequeno estoque de comida adequada para viajantes. Não lhes faltará água enquanto caminharem por Ithilien, mas não bebam de nenhum riacho que corre de Imlad Morgul, o Vale da Morte Viva. Também devo dizer-lhes isto: meus batedores e sentinelas voltaram todos, até alguns que se esgueiraram sob a vista do Morannon. Todos acham uma coisa estranha. A terra está vazia.
Nada na estrada, nem sons de passos, ou de cornetas, ou de cordas de arcos se ouvem em lugar algum. Um silêncio de espera cresce acima da Terra Inominada. Não sei o que isso pressagia. Mas o tempo caminha rapidamente para alguma grande conclusão. A tempestade está chegando. Apressem-se enquanto podem! Se estão prontos, vamos. O sol vai logo subir acima da sombra.
As mochilas dos hobbits lhes foram trazidas (um pouco mais pesadas que antes), e também dois cajados de madeira polida, com ponteiras de ferro, e com cabeças esculpidas através das quais passavam correias de couro trançadas.
— Não possuo presentes adequados para lhes oferecer em nossa despedida — disse Faramir —, mas recebam estes cajados. Podem ser de utilidade para os que caminham ou escalam no ermo. Os homens das Montanhas Brancas os usam, mas estes foram diminuídos para que ficassem adequados ao seu tamanho, e receberam ponteiras novas.
São feitos da bela árvore lebethron, amada p elos artesãos de Gondor, e foi-lhes conferido um poder de encontrar e retomar. Que esse poder não fracasse totalmente sob a Sombra em direção á qual vocês vão!
Os hobbits fizeram uma grande reverência.
— Nobilíssimo anfitrião — disse Frodo. — Foi-me dito por Elrond Meio-elfo que eu encontraria amizade no caminho, secreta e inesperada. Certamente eu não esperava encontrar uma amizade como a demonstrada aqui. Tê-la encontrado transforma o mal num grande bem.
Agora estavam prontos para partir. Gollum foi trazido de algum canto ou esconderijo, e parecia agora mais satisfeito consigo mesmo, embora se mantivesse perto de Frodo e evitasse o olhar de Faramir.
— Seu guia deverá ter os olhos vendados — disse Faramir —, mas você e seu servidor Samwise estão liberados dessa exigência, se desejarem.
Gollum soltou um grito estridente, contorceu-se e se agarrou em Frodo, quando vieram para vendar-lhe os olhos; Frodo então disse:
— Cubram os olhos de nós três, e cubram os meus primeiro, e talvez ele perceba que não há nenhuma intenção de lhe fazer mal. — Isso foi feito e os três foram levados da caverna de Henneth Annûn. Depois de percorrerem os corredores e as escadas, sentiram o ar fresco da manhã, leve e suave, á sua volta. Ainda continuaram de olhos vendados por mais um tempo, subindo e depois descendo suavemente. Finalmente a voz de Faramir ordenou que as vendas fossem retiradas.
Estavam sob os galhos das árvores outra vez. Não se ouvia o ruído da cachoeira, pois uma longa ladeira que conduzia ao sul estava agora entre eles e o precipício no qual o rio corria. A oeste podiam ver a luz através das árvores, como se o mundo de repente terminasse ali, numa borda que se abria apenas para o céu.
— Aqui nossos caminhos se separam pela última vez — disse Faramir. — Se seguirem meu conselho, não rumarão para o leste já. Sigam em frente, pois assim terão a proteção da floresta por muitas milhas. A oeste há uma borda onde a terra cai dentro de grandes vales , algumas vezes de forma abrupta e íngreme, outras vezes em longas encostas. Fiquem perto das bordas e arredores da floresta. No início da jornada, poderão caminhar durante o dia, suponho eu. A terra sonha em falsa paz, e por um tempo todo o mal está afastado. Passem bem, enquanto puderem!
Então abraçou os hobbits á maneira de seu povo, abaixando-se e colocando as mãos sobre os ombros deles, e beijando-lhes as testas.
— Partam com a boa vontade de todos os homens bons! — disse ele.
Os hobbits se curvaram até o chão. Então ele se virou e sem olhar para trás deixou-os e se foi com os dois guardas que esperavam a pouca distância dali.
Frodo e Sam ficaram assombrados ao ver a rapidez com que os homens vestidos de verde se moviam agora, desaparecendo quase num piscar de olhos. A floresta onde Faramir estivera parecia vazia e melancólica, como se um sonho tivesse passado.
Frodo suspirou e virou-se para o sul. Como se quisesse expressar seu pouco-caso diante de tanta cortesia, Gollum estava escarafunchando na terra ao pé de uma árvore.
“Já com fome outra vez?”, pensou Sam. “Bem, lá vamos nós de novo.”
— Eles se foram finalmente? — disse Gollum. — Homenss ssujos e malvados! O pescoço de Sméagol ainda está doendo, está sim. Vamos!
— Sim, vamos — disse Frodo. — Mas se você só consegue falar mal daqueles que lhe ofereceram clemência, fique quieto!
— Mestre bonzinho! — disse Gollum. — Sméagol só estava brincando. Sempre perdôa, perdôa sim, é sim, mesmo as pequenas mentiras do Mestre. E sim, Mestre bonzinho, Sméagol bonzinho!
Frodo e Sam não responderam. Pegando as mochilas e segurando os cajados, entraram na floresta de Ithilien.
Duas vezes naquele dia descansaram e comeram um pouco da comida fornecida por Faramir: frutas secas e carne salgada em quantidade para muitos dias, e pão bastante para durar enquanto estivesse fresco. Gollum não comeu nada.
O sol subiu e passou sobre suas cabeças sem ser visto; depois começou a descer, e a luz através das árvores a oeste ficou dourada. O tempo todo andaram na sombra fresca e verde, e tudo ao redor deles estava em silêncio. Os pássaros pareciam ter todos voado para longe ou emudecido.
A escuridão chegou cedo à floresta silenciosa, e antes do cair da noite eles pararam, cansados, pois tinham caminhado sete léguas ou mais desde Henneth Annûn.
Frodo se deitou e dormiu a noite toda no chão fofo atrás de uma velha árvore. Sam, ao seu lado, estava mais inquieto: acordou várias vezes, mas em nenhuma delas viu sinal de Gollum, que escapara assim que os outros se acomodaram para dormir. Se tinha dormido sozinho em algum buraco ali perto, ou se vagara sem descanso, rondando por toda a noite, não disse; mas retornou com o primeiro raio de sol, e acordou os companheiros.
— Precisa acordar, é sim, eles precisa! — disse ele. — Longos caminhos ainda a percorrer, para o sul e para o leste. Os hobbits precisam se apressar!
Aquele dia foi quase como o anterior, a não se r pelo silêncio, que parecia mais profundo; o ar ficou pesado, e começou a ficar abafado sob as árvores. Parecia que uma tempestade estava se formando. Gollum frequentemente parava, farejando o ar, e nesses momentos dizia baixinho a si mesmo que deveria fazê-los caminhar com mais rapidez.
Quando o terceiro estágio da marcha do dia avançava e a tarde ia terminando, a floresta se abriu, e as árvores ficaram maiores e mais espaçadas. Grandes azevinhos com circunferências enormes se erguiam escuros e solenes em amplas clareiras, acompanhados em alguns pontos por freixos esbranquiçados e carvalhos gigantes que começavam a exibir brotos verde-amarronzados. Ao redor deles se espalhavam longos trechos de gramado verde, salpicados de celidônias e anêmonas, brancas e azuis, agora fechadas para dormir; havia também acres cheios de jacintos silvestres: seus caules lustrosos em forma de sino já apareciam através da terra. Não se via nenhuma criatura viva, animal ou pássaro, mas naqueles lugares abertos Gollum sentia medo, e agora eles caminhavam com cautela, correndo de uma sombra longa para a outra.
A luz estava rapidamente sumindo quando chegaram ao fim da floresta. Ali sentaram-se sob um velho carvalho nodoso que lançava suas raízes, retorcidas como cobras, através de um barranco íngreme e esburacado. Um vale profundo e escuro jazia diante deles. Do lado oposto a floresta se fechava de novo, azul e cinzenta no fim de tarde sombrio, e avançava em direção ao sul . A direita as Montanhas de Gondor reluziam, remotas no oeste, sob um céu manchado de fogo. A esquerda estava a escuridão: as altas muralhas de Mordor; da escuridão vinha o longo vale, caindo abruptamente num fosso que se alargava cada vez mais na direção do Anduin. Lá no fundo corria um riacho veloz: Frodo podia ouvir-lhe a voz pedregosa subindo através do silêncio, e no lado mais próximo dele uma estrada se desenhava como uma fita clara, descendo até a névoa cinzenta e fria que nenhum raio do pôr-do-sol conseguia atingir. Frodo teve a impressão de divisar ao longe, flutuando como se estivessem num mar de sombras, os topos altos e apagados e os pináculos quebrados de velhas torres, arruinadas e escuras.
Virou-se para Gollum. — Você sabe onde estamos? — perguntou ele.
— Sei, Mestre. Lugares perigosos. Esta é a estrada que vem da Torre da Lua, Mestre, descendo até a cidade arruinada perto das margens do Rio. A cidade arruinada, é sim, lugar muito desagradável, cheio de inimigos. Não deveríamos ter seguido o conselho dos homens. Os hobbits desviaram muito da trilha. Agora devem ir para o leste, subindo por ali. — Acenou com seu braço ossudo na direção das montanhas obscuras. — E não podemos usar esta estrada. Ah, não! Povos cruéis vêm por este caminho, descendo da Torre.
Frodo baixou os olhos até a estrada. De qualquer forma, nada se movia nela agora.
Parecia solitária e abandonada, descendo até ruínas vazias na névoa. Mas havia uma sensação maligna no ar, como se seres que os olhos não podiam enxergar realmente estivessem subindo e descendo. Frodo estremeceu ao olhar outra vez os distantes pináculos que agora desapareciam na noite, e o som da água parecia frio e cruel: a voz de Morgulduin, o riacho poluído que corria do Vale dos Espectros.
— Que faremos? — disse ele. — Caminhamos muito. Devemos procurar algum lugar na floresta lá atrás onde possamos nos deitar sem sermos vistos?
— Não há bom esconderijo no escuro — disse Gollum. — É de dia que os hobbits devem se esconder agora, é sim, de dia.
— Ora, vamos! — disse Sam. — Precisamos descansar um pouco, mesmo que acordemos outra vez no meio da noite. Ainda haverá horas de escuridão pela frente, tempo suficiente para você nos conduzir numa longa marcha. Se souber o caminho.
Gollum concordou com relutância, e virou-se na direção das árvores, indo um pouco para o leste ao longo das bordas esparsas da floresta. Não estava disposto a descansar no chão tão próximo da estrada maligna, e depois de alguma discussão todos eles se acomodaram na forquilha de uma grande azinheira, cujos galhos grossos, saindo juntos do tronco, formavam um bom esconderijo e um refugio razoavelmente confortável.
A noite caiu e ficou totalmente escuro sob a abóbada da árvore. Frodo e Sam beberam um pouco de água e comeram uns pedaços de pão e frutas secas, mas Gollum imediatamente se acomodou e adormeceu. Os hobbits não pregaram os olhos.
Devia ser um pouco mais de meia-noite quando Gollum acordou: de repente viram aqueles olhos opacos brilhando na direção deles. Ficou escutando e farejando, o que parecia ser, como os hobbits já tinham notado antes, o seu método de descobrir a hora da noite.
— Estamos descansados? Dormimos um belo sono? — disse ele. — Vamos!
— Não estamos, e não dormimos — resmungou Sam. — Mas vamos se é necessário.
Gollum imediatamente desceu dos galhos da árvore, caindo de quatro, e os hobbits o seguiram com mais lentidão.
Assim que desceram partiram de novo, com Gollum na frente, na direção do leste, subindo a terra escura e montanhosa. Podiam enxergar pouca coisa, pois a noite era agora tão profunda que eles mal conseguiam perceber os troncos das árvores antes de esbarrarem neles. A irregularidade do terreno aumentava cada vez mais, e caminhar era mais difícil, mas Gollum não parecia se incomodar de forma alguma. Conduziu-os através de moitas e restos de sarças, algumas vezes contornando a borda de uma fenda profunda ou um poço escuro, outras descendo em concavidades negras cobertas de arbustos, para depois sair delas; mas, a cada vez que desciam um pouco, a subida seguinte era mais longa e íngreme. Estavam constantemente subindo. Em sua primeira pausa olharam para trás, e mal puderam divisar o teto da floresta que tinham deixado lá embaixo, jazendo como uma vasta e densa sombra, um pedaço de noite mais escuro sob um céu escuro e vazio. Parecia haver um grande negrume assomando lentamente a leste, devorando as estrelas apagadas e indistintas. Mais tarde, a lua que descia livrou-se da perseguição de uma nuvem, mas estava completamente cercada por uma aura amarela e doentia.
Finalmente Gollum virou-se para os hobbits.
— Dia logo — disse ele. — Os hobbits precisam se apressar. Não é seguro ficar exposto nestes lugares. Apressem-se!
Apertou o passo, e eles o seguiram com dificuldade. Logo começaram a subir uma grande vertente. Na maior parte estava coberta com uma profusão de tojos e mirtilos, e espinheiros baixos e ásperos, embora em alguns pontos se abrissem clareiras, cicatrizes de fogueiras recentes. Os arbustos de tojo iam ficando mais frequentes conforme chegavam perto do topo; eram muito velhos e altos, magros e pernudos na base, mas espessos em cima, já mostrando flores amarelas que luziam fracamente na escuridão e exalavam um cheiro suave. Eram tão altos os arbustos espinhosos que os hobbits podiam andar eretos debaixo deles, passando através de corredores secos forrados por uma camada fofa e cheia de espinhos.
Na borda oposta dessa larga lombada eles detiveram sua marcha e se arrastaram para se esconderem numa moita emaranhada de espinheiros. Os galhos retorcidos, inclinando-se até o chão, suportavam um labirinto de velhas sarças trepadeiras. No interior, bem no fundo havia um espaço vazio, com caibros formados por galhos e espinheiros mortos, e com um teto feito pelas primeiras folhas e brotos da primavera.
Deitaram-se ali durante um tempo, cansados demais para comerem; olhando através de buracos na cobertura eles esperaram pelo desabrochar lento do dia.
Mas nenhum dia chegou, apenas um crepúsculo escuro e morto. No leste havia um brilho vermelho opaco sob as nuvens baixas: não era o vermelho da aurora. Além de uma extensão de terras confusas, as montanhas de Ephel Dúath franziam-lhes o cenho, negras e disformes na parte inferior onde a noite se deitava espessa e não passava, e ostentando na parte superior topos dentados e pontas nítidas e ameaçadoras projetadas contra o brilho do fogo. Mais adiante, à direita, uma grande encosta das montanhas se sobressaía, escura e negra em meio às sombras, lançando-se para o oeste.
— Para onde vamos agora? — perguntou Frodo. — E aquela a abertura do... do Vale Morgul, lá adiante, além daquela massa negra?
— Precisamos pensar nisso já? — disse Sam. — Com certeza não caminharemos mais hoje, enquanto for de dia.
— Talvez não, talvez não — disse Gollum. — Mas devemos partir logo, para a Encruzilhada. É sim, para a Encruzilhada. Ali está o caminho, é sim, Mestre.
O brilho vermelho sobre Mordor se extinguiu. O crepúsculo foi ficando mais profundo enquanto grandes quantidades de vapor subiam no leste e se espalhavam acima deles. Frodo e Sam comeram um pouco e depois se deitaram, mas Gollum estava inquieto.
Não estava disposto a comer da comida deles, mas bebeu um pouco de água e depois se arrastou pelo lugar, sob os arbustos, farejando e resmungando. Então, de repente, desapareceu.
— Foi caçar, suponho eu — disse Sam e bocejou. Era sua vez de dormir primeiro, e logo adormeceu profundamente. Sonhou estar de volta no jardim do Bolsão, procurando algo; mas tinha uma mochila pesada nas costas, que o fazia se abaixar. Tudo parecia cheio de capim e mato áspero. E espinhos e samambaias estavam invadindo os canteiros próximos do pé da cerca-viva.
— Tem muito serviço para mim, estou percebendo; mas estou cansado demais — ficava ele repetindo. De repente se lembrou do que estava procurando. — Meu cachimbo! — disse ele, e com isso acordou.
— Idiota! — disse ele para si mesmo, ao abrir os olhos e perguntando-se por que estava deitado sob a cerca-viva. — Esteve na sua mochila o tempo todo!
— Então percebeu, em primeiro lugar, que seu cachimbo poderia estar na mochila, mas ele não tinha fumo, e depois que estava a centenas de milhas do Bolsão. Sentou-se.
Parecia estar quase escuro. Por que seu mestre havia permitido que continuasse dormindo no turno dele, direto até o anoitecer?
— O senhor não dormiu nem um pouco, Sr. Frodo? — disse ele. — Que horas são?
Parece que está ficando tarde.
— Não, não está — disse Frodo. — Mas o dia está escurecendo em vez de clarear: escurecendo cada vez mais. Pelo que calculo, ainda não é meio-dia, e você só dormiu umas três horas.
— Fico pensando no que estará acontecendo — disse Sam. — Será uma tempestade se formando? Se for, será a pior que jamais houve. Desejaremos estar num buraco fundo, e não apenas enfiados embaixo de uma cerca-viva. Parou para escutar. — O que é aquilo? Trovões ou tambores, ou o quê?
— Não sei — disse Frodo. — Está assim faz algum tempo. Algumas vezes parece que o chão treme, outras parece o ar pesado latejando em nossos ouvidos.
Sam olhou em volta. — Onde está Gollum? — disse ele. — Ainda não voltou?
— Não — disse Frodo. — Não houve nenhum sinal ou ruido dele.
— Bem, não posso suportá-lo — disse Sam. — Na verdade, nunca levei alguma coisa numa viagem que sentisse menos pesar em perder no caminho. Mas seria bem ao estilo dele, depois de todas essas milhas, sair e se perder agora, exatamente quando vamos precisar dele — quer dizer, se é que ele algum dia vai ser de alguma utilidade, o que eu duvido.
— Você está esquecendo os Pântanos — disse Frodo. — Espero que nada lhe tenha acontecido.
— E eu espero que ele não esteja preparando nenhum truque. E de qualquer forma espero que não caia em outras mãos, como se poderia dizer. Porque, se isso acontecer, logo estaremos em apuros.
Nesse momento, um ruído retumbante soou de novo, agora mais alto e profundo. O chão pareceu tremer sob os pés deles. — Acho que já estamos em apuros, de qualquer forma — disse Frodo. — Receio que nossa jornada esteja chegando ao fim.
— Talvez — disse Sam —, mas onde há vida há esperança, como meu Feitor costumava dizer; e necessidade de comida, como ele na maioria das vezes costumava acrescentar. O senhor coma alguma coisa, Sr. Frodo. E depois vá dormir.
A tarde, como Sam supunha chamar-se aquele período, avançava.
Olhando pela cobertura eles conseguiam ver apenas um mundo pardacento, sem sombras, desaparecendo lentamente numa escuridão sem cor e sem forma. Estava abafado mas não quente. Frodo dormiu um sono inquieto, virando-se de um lado para o outro, e algumas vezes murmurando. Duas vezes Sam teve a impressão de que ele estava pronunciando o nome de Gandalf. O tempo parecia se arrastar interminavelmente. De repente Sam ouviu um chiado atrás dele, e lá estava Gollum de quatro, espiando-os com olhos brilhantes.
— Acordem, acordem! Acordem, dorminhocos! — sussurrou ele. — Acordem! Nenhum tempo para perder. Devemos ir, é sim, devemos ir já. Nenhum tempo para perder!
Sam o fitou desconfiado: Gollum parecia amedrontado ou excitado.
— Ir já? Qual é o seu joguinho? Ainda não está na hora. Ainda não deve ser nem hora do chá, pelo menos em lugares decentes onde existe hora do chá.
— Idiota! — chiou Gollum. — Não estamos em lugares decentes. O tempo está ficando curto, é sim, passando rápido. Nenhum tempo para perder. Devemos ir. Acorde, Mestre, acorde! — Cutucou Frodo, e este, subitamente acordando de seu sono, sentou-se e o segurou pelo braço. Gollum se soltou e recuou.
— Não devem ser tolos — chiou ele. — Devemos ir. Nenhum tempo para perder! — E não conseguiram arrancar mais nada dele. Onde estivera, e o que julgava estar acontecendo para ficar com tanta pressa, ele não dizia. Sam estava cheio de profundas suspeitas, e demonstrou isso; mas Frodo não deu sinal do que se passava em sua mente.
Suspirou, pegou a mochila e se preparou para partir e entrar na escuridão sempre crescente.
Muito furtivamente Gollum os conduziu encosta abaixo, mantendo-se sob alguma cobertura sempre que podia, e correndo, quase abaixado até o chão, através de qualquer lugar aberto; mas agora a luz estava tão fraca que mesmo um animal de olhar agudo daquela região erma mal poderia ter visto os hobbits, encapuzados, em suas capas cinzentas, nem tê-los ouvido, caminhando com a cautela das pessoas pequenas. Sem o estalido de um graveto ou o farfalhar de uma folha, eles passaram e desapareceram.
Por cerca de uma hora eles continuaram, em silêncio, em fila indiana, oprimidos pela escuridão e pela quietude absoluta do lugar, quebrada apenas de vez em quando pelo retumbar fraco, que parecia ser de um trovão distante ou de batidas de tambores em alguma concavidade das colinas. Desceram do esconderijo e depois, virando-se para o sul, foram pela trilha mais direta que Gollum pôde encontrar através de uma encosta longa e irregular, que subia em direção às montanhas. De repente, não muito à frente, assomando como uma muralha negra, eles viram um cinturão de árvores. Quando se aproximaram, perceberam que eram de grande porte, muito antigas ao que parecia, e ainda se erguendo altas embora os topos estivessem esqueléticos e quebrados, como se uma tempestade e golpes de raios as tivessem castigado, mas sem conseguir matá-las ou abalar suas raízes insondáveis.
— A Encruzilhada, é sim — sussurrou Gollum, as primeiras palavras ditas desde que haviam deixado o esconderijo. — Devemos ir por ali. — Virando para o leste agora, ele os conduziu encosta acima, e então, de repente, estava diante deles: a Estrada do Sul, desenhando seu caminho ao redor dos sopés externos das montanhas, até mergulhar subitamente no grande circulo de árvores.
— Este é único caminho — sussurrou Gollum. — Nenhum caminho além da estrada.
Nenhum caminho. Devemos ir para a Encruzilhada. Mas se apressem! Façam silêncio!
Tão furtivos como batedores dentro do acampamento inimigo, esgueiraram-se até a estrada e foram ao longo de sua borda oeste sob o barranco pedregoso, cinzentos como as próprias pedras, com os pés leves de gatos caçando. Finalmente alcançaram as árvores, e descobriram que estavam num grande círculo descoberto, que se abria no centro para o céu sombrio; os espaços entre as imensas copas eram como grandes arcos escuros de algum palácio arruinado. Exatamente no centro quatro caminhos se encontravam. Atrás deles estava a estrada que conduzia ao Morannon; à frente a que continuava em sua longa viagem para o sul; à direita a estrada que vinha da antiga Osgiliath, subindo e cruzando, passava para o leste e entrava na escuridão; o quarto caminho, a estrada que deviam tomar.
Parado ali por um momento, cheio de pavor, Frodo percebeu uma luz brilhando; viu-a reluzir no rosto de Sam, ao seu lado. Voltando-se em direção a ela, ele viu, além de um arco de galhos, a estrada para Osgiliath se estendendo quase reta como uma fita esticada, sempre descendo e entrando no oeste.
Lá, distante, além da triste Gondor agora subjugada pela escuridão, o sol estava descendo, encontrando finalmente a orla da grande muralha de nuvens lentas, e caindo num fogo agourento na direção do Mar ainda não poluído. A breve luz bateu num enorme vulto sentado, parado e solene como os grandes reis de pedra dos Argonath. Os anos o haviam corroído, e mãos violentas o tinham mutilado. A cabeça se fora, e em seu lugar estava colocada em arremedo uma pedra redonda e áspera, rudemente pintada por mãos selvagens á semelhança de um rosto sorridente com um grande olho vermelho no meio da testa. Sobre os joelhos e sobre a cadeira imponente, e ao redor de todo o pedestal, havia garranchos ociosos, misturados aos símbolos grosseiros usados pelos vermes que habitavam Mordor.
De repente, capturado pelos raios horizontais do sol, Frodo viu a cabeça do velho rei: rolara e jazia ao lado da estrada. — Olhe, Sam! — disse ele, falando impelido pelo espanto. — Olhe! O rei está coroado outra vez!
Os olhos estavam vazados e a barba esculpida quebrada, mas ao redor da fronte alta e austera havia uma grinalda de ouro e prata. Uma planta rasteira com flores semelhantes a pequenas estrelas brancas se enredara através da fronte, como se em reverência ao rei caído, e nas rachaduras de seu cabelo de pedra reluziam saiões amarelos.
— Eles não podem conquistar para sempre! — disse Frodo. Então, de repente, a breve luz desapareceu. O sol afundou e sumiu e, como quando se apaga uma lamparina, caiu a noite negra.
AS ESCADARIAS DE CIRITH UNGOL
Gollum estava puxando a capa de Frodo e chiando de medo e impaciência.
— Devemos ir — disse ele. — Não podemos ficar aqui. Apressem-se!
Com relutância Frodo deu as costas para o oeste e foi seguindo os passos de seu guia, entrando na escuridão do leste. Deixaram o circulo de árvores e foram ao longo da estrada na direção das montanhas. Essa estrada também continuava reta por um trecho, mas logo começou a desviar para o sul, até passar exatamente embaixo da grande saliência de pedra que tinham visto à distância. Negra e ameaçadora ela se erguia, mais escura que o céu negro que a emoldurava.
Esgueirando-se sob sua sombra, a estrada continuava, e fazendo o contorno projetava -se de novo para o leste, começando a subir vertiginosamente.
Frodo e Sam iam com passadas lentas e os corações pesados, incapazes agora de se preocupar muito com o perigo que corriam. A cabeça de Frodo estava pensa, seu fardo o forçava a se curvar outra vez. Logo que a grande Encruzilhada ficou para trás, aquele peso, quase esquecido em Ithilien, começara a aumentar de novo.
Agora, sentindo o caminho se tornar íngreme diante de seus pés, Frodo ergueu os olhos cansados, e então a viu, exatamente da forma que Gollum dissera que veria: a cidade dos Espectros do Anel. Encolheu-se contra o paredão de pedra.
Um vale longo e inclinado, um abismo fundo de sombra, penetrava as montanhas.
Do lado oposto, um pouco para dentro dos braços do vale, altas sobre um assento de pedra nas encostas negras das Ephel Dúath, erguiam-se as muralhas e a torre de Minas Morgul. Tudo era negro à sua volta, a terra e o céu, mas a torre estava iluminada por uma luz. Não pela luz aprisionada do luar, que outrora jorrava através das paredes de mármore de Minas Ithil, a Torre da Lua, bela e radiante na concavidade das colinas. Na realidade, a luz que agora brilhava ali era mais pálida que a lua doentia passando por algum eclipse lento, vacilando e bruxuleando como alguma exalação repugnante de podridão, uma luz cadavérica, uma luz que nada iluminava.
Nas muralhas e na torre apareciam janelas, como incontáveis buracos negros olhando para dentro na escuridão; mas a parte superior da torre girava lentamente, primeiro para um lado e depois para outro, uma enorme cabeça fantasmagórica dirigindo seu olhar de soslaio para dentro da noite. Por um momento os três companheiros ficaram ali parados, encolhidos, os olhos fixos no alto contra a própria vontade.
Gollum foi o primeiro a se recuperar. Mais uma vez puxou as capas dos hobbits apressando-os. Mas sem dizer nada. Quase os arrastou para a frente. Cada passo era relutante, e o tempo parecia diminuir seu ritmo, de modo que entre o ato de erguer um pé e o de colocá-lo no chão de novo minutos de aversão se passavam.
Assim chegaram lentamente à ponte branca. Ali a estrada, reluzindo desmaiada, passava por sobre o rio em meio ao vale e continuava, subindo em curvas, na direção do portão da cidade: uma boca negra que se abria no círculo exterior das muralhas ao norte.
Amplos planos jaziam nas duas margens, prados sombrios cobertos de pálidas flores brancas. Eram também luminosas, belas e apesar disso tinham formatos horrorosos, como as formas dementes de um sonho ruim; exalavam um fraco odor, sepulcral e nauseabundo; um cheiro podre enchia o ar. De um prado a outro a ponte saltava. Viam-se figuras na cabeceira, esculpidas habilmente e representando formas humanas e animais, mas todas deformadas e abomináveis. A água que corria embaixo era silenciosa, e dela subia um vapor, mas essa névoa, enrolando — Se e girando em volta da ponte, era fria como a morte. Os sentidos de Frodo começaram a vacilar e sua mente escureceu. Então, de repente, como se alguma força estivesse operando contra a sua vontade, começou a correr, cambaleando para a frente, com as mãos estendidas tateando o ar, e a cabeça balançando de um lado para o outro. Gollum e Sam correram atrás dele. Sam amparou o mestre em seus braços, no momento em que ele tropeçou e quase caiu, exatamente no limiar da ponte.
— Não, não por ali! Não, não por ali! — sussurrou Gollum, mas a respiração entre seus dentes pareceu rasgar a quietude pesada como um assobio, e ele se abaixou no chão aterrorizado.
— Pare, Sr. Frodo! — murmurou Sam ao ouvido de Frodo. — Volte! Por ali não.
Gollum diz que não, e pela primeira vez concordo com ele.
Frodo passou a mão sobre a fronte e num esforço violento desviou os olhos da cidade sobre a colina. A torre luminosa o fascinava, e ele lutava contra o desejo que sentia de subir pela estrada reluzente na direção do portão.
Finalmente, fazendo um novo esforço, virou as costas, e no momento em que fazia isso sentiu o Anel resistindo ao seu movimento, puxando a corrente em seu pescoço; também os olhos, quando Frodo os desviou, pareceram naquele momento ter sido cegados. A escuridão diante dele era impenetrável.
Gollum, rastejando no chão como um animal amedrontado, já estava desaparecendo no escuro. Sam, apoiando e guiando seu trôpego mestre, foi atrás dele o mais rápido que conseguiu. Não muito longe da margem mais próxima do rio havia um vão na muralha rochosa que ladeava a estrada. Passaram por ele, e Sam percebeu que estavam numa trilha estreita que num primeiro momento reluziu fracamente, como reluzia a estrada principal, até que subindo acima dos prados de flores mortas a trilha desaparecia e ficava escura, subindo em seu traçado tortuoso e entrando nas encostas do lado norte do vale.
Ao longo dessa trilha os hobbits foram se arrastando, lado a lado, incapazes de ver Gollum na sua frente, a não ser quando ele se virava e lhes acenava para que avançassem.
Nesses momentos os olhos brilhavam com uma luz verde-esbranquiçada, refletindo talvez o brilho pernicioso de Morgul, ou iluminados por alguma disposição que reagia dentro dele. Daquele brilho mortal e das órbitas escuras Frodo e Sam estavam sempre conscientes, todo o tempo espiando cheios de temor por sobre os ombros, e sempre se esforçando para recuperar o controle dos próprios olhos para poderem achar a trilha escura. Lentamente avançaram, com esforço. Quando subiram acima do mau cheiro e dos vapores do riacho envenenado, a respiração ficou mais fácil e a cabeça mais lúcida, mas agora sentiam as pernas mortas de cansaço, como se tivessem andado a noite toda carregando um fardo, ou tivessem nadado muito contra uma maré de águas pesadas.
Finalmente não conseguiam avançar m ais sem uma pausa.
Frodo parou e sentou-se numa pedra. Tinham agora escalado até o topo de uma grande corcova de rocha nua. A frente deles havia um fosso na encosta do vale, e em volta da cabeceira dele a trilha continuava, apenas uma saliência ampla com um abismo à direita; através da íngreme face sul da montanha ela subia, até desaparecer no alto do negrume.
— Preciso descansar um pouco, Sam — sussurrou Frodo. — Está pesado para mim, Sam, meu rapaz. Fico pensando quanto tempo conseguirei carregá-lo. De qualquer forma, preciso descansar antes que nos aventuremos por ali — disse ele, apontando para o caminho estreito a frente.
— Pssiu! Pssiu! — chiou Gollum correndo na direção deles. — Pssiu! — Tinha os dedos nos lábios e balançava a cabeça insistentemente.
Puxando a manga de Frodo, apontou na direção da trilha, mas Frodo nem se mexeu.
— Ainda não — disse ele —, ainda não. — O cansaço e algo mais que o cansaço o oprimiam. Parecia que um encantamento pesado tinha sido lançado sobre sua mente e seu corpo. — Preciso descansar — murmurou ele.
Ao ouvir isso, o medo e a agitação de Gollum cresceram tanto que ele falou de novo, chiando e cobrindo a boca com a mão, como se quisesse impedir que o som chegasse até ouvintes invisíveis no ar. — Não, aqui não. Não descansar aqui. Tolos! Olhos podem nos ver. Quando vierem até a ponte vão nos ver. Vamos! Subam, subam! Venham!
— Venha, Sr. Frodo — disse Sam. — Ele está certo outra vez. Não podemos ficar aqui.
— Está certo — disse Frodo com uma voz remota, como a de alguém que fala semiadormecido.
— Vou tentar. — Mesmo exausto, pôs-se de pé.
Mas era tarde demais. Naquele momento a rocha se agitou e tremeu embaixo deles.
O grande ruído retumbante, mais alto d o que nunca, reboou sob o chão e ecoou nas montanhas. Então, com uma rapidez estonteante, surgiu um grande clarão vermelho. De trás das montanhas orientais ele saltou no céu e tingiu de escarlate as nuvens baixas.
Naquele vale de sombra e de luz fria e mortal parecia insuportavelmente violento e cruel.
Picos de rocha e montanhas, como espadas chanfradas, surgiram negros e assustados contra a chama crescente de Gorgoroth. Então ouviu-se um enorme estrondo de trovão.
E Minas Morgul respondeu. Houve um clarão de relâmpagos lívidos: garfos de fogo azul saltando da torre e das colinas ao redor para dentro das nuvens sombrias. A terra rosnou e da cidade veio um grito. Misturado a vozes roucas como as das aves de rapina, e ao relinchar agudo de cavalos alucinados de raiva e medo, veio um guincho dilacerante, que foi rapidamente aumentando num tom agudo, ultrapassando o alcance da audição. Os hobbits se viraram na direção dele, e se jogaram ao chão, com as mãos nos ouvidos.
Quando o terrível grito acabou, morrendo num longo gemido repugnante e depois silenciando, Frodo lentamente levantou a cabeça.
Cortando o vale estreito, agora quase ao nível de seus olhos, as muralhas da cidade maligna se erguiam, e seu portão cavernoso, na forma de uma boca aberta com dentes reluzentes, abriu-se ainda mais. E através do portão avançou um exército.
Toda aquela tropa vestia fardas pretas, escuras como a noite.
Contra as muralhas descoradas e o pavimento luminoso da estrada Frodo podia vê-los, pequenas figuras negras em inúmeras fileiras, marchando rápida e silenciosamente, passando para o lado de fora numa correnteza infinita. Diante deles um grande grupo de cavaleiros avançando como sombras ordenadas, e na frente destes vinha um, maior que todos os outros: um Cavaleiro, todo negro, a não ser por sua cabeça encapuzada que tinha um elmo semelhante a uma corôa, que faiscava com uma luz perigosa. Agora estava se aproximando da ponte, e os olhos atentos de F rodo o seguiam, incapazes de piscar ou desviar-se. Seria ele o Senhor dos Nove Cavaleiros, que retornara à terra para conduzir sua horrenda tropa à batalha? Sim, sem dúvida ali estava o rei desfigurado cuja mão fria apunhalara o Portador do Anel com sua faca mortal. O antigo ferimento latejou de dor e um grande arrepio se espalhou na direção do coração de Frodo.
No momento em que esses pensamentos o enchiam de medo e o mantinham preso, como se sob o efeito de algum tipo de encantamento, o Cavaleiro de repente parou, bem em frente à entrada da ponte, e atrás dele toda a tropa ficou imóvel.
Houve uma pausa, um silêncio total. Talvez fosse o Anel chamando o Senhor dos Espectros, e por um momento ele ficou perturbado, sentindo algum outro poder dentro de seu vale. Para um e outro lado sua cabeça voltou-se, coberta pelo elmo e coroada de terror, esquadrinhando as sombras com olhos invisíveis. Frodo esperou, como um pássaro sentindo a aproximação de uma cobra, incapaz de se mexer. E enquanto esperava sentiu, mais insistente que nunca, a ordem para que colocasse o Anel. Mas, embora a pressão fosse grande, Frodo não se sentia inclinado a ceder a ela. Sabia que o Anel só iria traí-lo, e que não tinha, mesmo que o colocasse, poder para enfrentar o Rei de Morgul — ainda não.
Não havia mais qualquer resposta àquela ordem em sua própria vontade, embora estivesse enfraquecida pelo medo, e Frodo sentia apenas os golpes de um grande poder que vinha de fora. Essa força externa tomou sua mão, e enquanto Frodo observava com sua mente, não deliberadamente mas em estado de expectativa (como se estivesse assistindo a alguma distante história antiga), moveu a mão centímetro por centímetro na direção da corrente em seu pescoço. Então sua própria vontade se agitou; lentamente forçou a mão de volta e a pôs à busca de alguma outra coisa, uma coisa escondida perto de seu peito. Parecia fria e dura quando a mão se fechou em volta dela: o frasco de Galadriel, há tanto tempo guardado, e quase esquecido até aquele momento. Quando o tocou, por uns momentos todo o pensamento do Anel foi banido de sua mente. Suspirou e abaixou a cabeça.
Nessa hora o Rei dos Espectros se virou, cravou as esporas no lombo do cavalo e começou a atravessar a ponte, e toda a sua tropa escura o seguiu. Talvez os capuzes élficos tivessem desafiado seu olhar, e a mente de seu pequeno inimigo, fortalecida, tivesse desviado seu pensamento. Mas ele estava com pressa. A hora já tinha soado, e ao comando de seu grande Mestre ele devia marchar levando a guerra para o oeste.
Logo desapareceu, como uma sombra entrando na sombra, descendo a estrada tortuosa, e atrás dele ainda as fileiras negras atravessavam a ponte. Um exército tão grande nunca saíra daquele vale desde os dias do poder de Isildur; nenhuma tropa tão desumana e forte em armas houvera investido contra os vaus do Anduin; apesar disso, era apenas uma, e não a maior tropa que Mordor podia enviar.
Frodo se mexeu. E de repente seu coração buscou Faramir. “A tempestade finalmente irrompeu”, pensou ele. “Esse grande conjunto de lanças e espadas está indo para Osgiliath. Poderá Faramir chegar a tempo? Ele supunha, mas será que realmente sabia a hora? E quem poderá proteger os vaus quando o Rei dos Nove Cavaleiros chegar? E outros exércitos virão. Estou atrasado demais. Tudo está perdido. Hesitei no caminho. Tudo está perdido. Mesmo que consiga cumprir minha missão, ninguém jamais saberá. Não haverá ninguém a quem eu possa contar. Terá sido em vão.”
Tomado de fraqueza, Frodo chorou. E a tropa de Morgul ainda atravessava a ponte.
Então, a uma grande distância, como se saísse de lembranças do Condado, nalguma tenra manhã ensolarada, quando o dia chegava e as portas estavam se abrindo, Frodo ouviu a voz de Sam falando.
— Acorde, Sr. Frodo! Acorde! — Se a voz tivesse acrescentado: “Seu desjejum está pronto”, ele mal se teria surpreendido.
Certamente Sam tinha pressa.
— Acorde, Sr. Frodo! Eles se foram — disse ele.
Houve um clangor surdo. Os portões de Minas Morgul tinham se fechado. A última fileira de lanças desaparecera pela estrada. A torre ainda arreganhava os dentes através do vale, mas a sua luz estava sumindo. Toda a cidade voltava a mergulhar numa sombra escura e sinistra, e no silêncio. Mesmo assim, ainda havia muita vigilância.
— Acorde, Sr. Frodo! Eles se foram, e é melhor irmos também. Ainda há alguma coisa viva naquele lugar, alguma coisa com olhos, ou uma mente que vê, se o senhor me entende; e quanto mais ficarmos parados em um ponto, mais depressa vão nos encontrar. Vamos, Sr. Frodo!
Frodo levantou a cabeça, e então se pôs de pé. O desespero não o abandonara, mas a fraqueza tinha passado. Ele até ensaiou um sorriso sério, sentindo agora claramente o contrário do que sentira no momento anterior, que devia fazer o que precisava ser feito, se pudesse, e que não vinha ao caso se Faramir ou Aragorn ou Elrond ou Galadriel ou Gandalf, ou qualquer outra pessoa, saberiam ou não disso. Pegou seu cajado em uma mão e o frasco na outra. Quando viu que a luz clara já começava a verter através de seus dedos, colocou-o junto ao peito e o apertou contra o coração. Depois, dando as costas à cidade de Morgul, agora não mais que um brilho cinzento através do fosso escuro, ele se preparou para tomar a estrada que subia.
Gollum, ao que parecia, tinha fugido ao longo da borda para dentro da escuridão mais além, quando os portões de Minas Morgul se abriram, deixando os hobbits onde estavam. Agora voltava rastejando, com os dentes tiritando e os dedos estalando.
— Tolos! Idiotas! — chiou ele. — Apressem-se! Não devem pensar que o perigo passou. Não passou. Apressem-se!
Eles não responderam, mas o seguiram pela borda ascendente.
Nenhum dos dois gostou muito daquilo, mesmo depois de terem enfrentado tantos outros perigos; mas não durou muito. Logo a trilha atingiu um canto arredondado, onde a encosta da montanha se projetava outra vez, e ali de repente entrava por uma abertura estreita na rocha. Tinham chegado á primeira escada sobre a qual Gollum havia falado. A escuridão era quase completa, e não conseguiam ver nada além do alcance das mãos; mas os olhos de Gollum brilhavam claros, alguns metros acima, quando se voltavam para eles.
— Cuidado! — sussurrou ele. — Degraus. Um monte de degraus. Devem ter cuidado!
Certamente era preciso cautela. Frodo e Sam num primeiro momento se sentiram mais tranqüilos, tendo agora uma parede de cada lado, mas a escadaria era quase tão íngreme quanto uma escada de mão, e conforme iam subindo ficavam mais conscientes do grande abismo negro atrás deles. E os degraus eram estreitos, com espaços irregulares, e frequentemente traiçoeiros: estavam gastos e lisos nas bordas, alguns estavam quebrados, e outros se rachavam no momento em que eram pisados.
Os hobbits iam subindo com esforço, até que no fim já se agarravam com dedos desesperados aos degraus à frente, forçando os joelhos doloridos a se dobrarem e depois se esticarem; e, enquanto a escada cortava seu caminho cada vez mais fundo dentro da montanha íngreme, as paredes rochosas se erguiam cada vez mais altas sobre suas cabeças.
Depois de muito tempo, exatamente na hora em que sentiam que não poderiam aguentar mais, viram os olhos de Gollum voltando-se para eles.
— Subimos — sussurrou ele. — A primeira escada já passou. Hobbits espertos, que sobem tão alto, hobbits muito espertos. Apenas mais alguns degraus e tudo estará terminado, é sim.
Zonzos e muito cansados, Sam, e Frodo atrás dele, arrastaram-se pelo último degrau, depois sentaram-se massageando as pernas e os joelhos. Estavam num corredor escuro e profundo que parecia ainda subir diante deles, embora com uma inclinação mais suave e sem degraus. Gollum não permitiu que descansassem por muito tempo.
— Ainda há outra escada — disse ele. — Escada muito mais comprida. Descansem quando chegarmos no topo da próxima escada. Ainda não!
Sam resmungou. — Você disse mais comprida? — perguntou ele.
— Sim, ssim, mais comprida — disse Gollum. — Mas não tão difícil. Os hobbits subiram a Escada Reta. Em seguida vem a Escada Tortuosa.
— E o que vem depois disso? — disse Sam.
— Veremos — disse Gollum baixinho. — É sim, veremos!
— Pensei que você tinha dito que havia um túnel – disse Sam. — Não há um túnel ou alguma coisa para se atravessar?
— Ah, sim, há um túnel — disse Gollum. — Mas os hobbits podem descansar antes de tentarmos isso. Se o atravessarem, estaremos quase no topo. Quase, quase, se eles atravessarem, é sim!
Frodo estremeceu. A subida o fizera suar, mas agora ele sentia seu corpo frio e pegajoso, e havia uma corrente de ar gelado no corredor escuro, soprando das alturas invisíveis. Levantou-se e mexeu o corpo.
— Bem, vamos continuar! — disse ele. — Isto aqui não é lugar para se ficar sentado.
O corredor parecia continuar por milhas, e sempre o ar gelado soprava sobre eles, transformando-se, enquanto os três continuavam, num vento cortante. As montanhas pareciam estar tentando, com seu hálito mortal, intimidá-los, afastá-los dos segredos dos lugares altos, ou varrê-los para dentro da escuridão deixada para trás. Eles só perceberam que tinham chegado ao fim quando de repente deixaram de sentir a parede à sua direita.
Não conseguiam enxergar quase nada.
Grandes massas negras e disformes, sombras profundas e cinzentas assomavam acima e ao redor deles, mas de vez em quando uma opaca luz vermelha piscava lá no alto, sob as nuvens carrancudas, e por um momento eles puderam divisar picos altos, à frente e dos dois lados, como pilares sustentando um vasto teto propenso a ceder.
Parecia que tinham escalado centenas de metros, chegando a um amplo patamar.
Havia um penhasco à esquerda e uma fenda à direita.
Gollum foi na frente, mantendo-se próximo ao penhasco. Já não estavam mais subindo, mas o chão agora estava mais irregular e perigoso no escuro, e havia blocos e pedaços de pedra caídos no caminho. Avançavam lenta e cuidadosamente. Quantas horas haviam se passado desde a entra da no Vale Morgul Frodo e Sam já não conseguiam mais calcular. A noite parecia interminável.
Finalmente perceberam mais uma vez uma parede assomando, e outra vez uma escadaria se abriu diante deles. Pararam de novo, e mais uma vez começaram a subir.
Era uma escalada longa e cansativa; mas esta escadaria não afundava na encosta da montanha. Aqui a enorme face do penhasco inclinava-se para trás e a trilha, como uma cobra, ziguezagueava encosta acima. Em um ponto ela se aproximava da borda da fenda escura, e Frodo, olhando para baixo, viu, como um vasto poço profundo, o grande abismo na cabeceira do Vale Morgul. Em suas profundezas brilhava, como um fio de vaga-lumes, a estrada dos espectros que ia da Cidade Morta para a Passagem Inominada. Rapidamente voltou-se para o outro lado.
Sempre subindo, a escadaria fazia curvas e avançava, até que finalmente, num último lance, curto e reto, atingia de novo um outro nível. A trilha desviara da passagem principal no grande desfiladeiro, e agora seguia seu próprio curso perigoso, no fundo de uma fenda menor em meio às regiões mais altas das Ephel Dúath.
Os hobbits podiam vagamente discernir altos pilares e pináculos pontudos de pedra dos dois lados, entre os quais havia grandes rachaduras e fendas, mais negras que a noite, onde invernos esquecidos tinham corroído e esculpido a rocha esquecida pelo sol. E agora a luz vermelha no céu parecia mais forte; embora não pudessem saber se uma manhã terrível realmente estava chegando àquele lugar de sombra, ou se estavam vendo apenas a chama de alguma grande violência de Sauron no tormento de Gorgoroth mais além. Ainda muito à frente e ainda muito acima Frodo, erguendo os olhos, viu o que supôs ser exatamente o coroamento daquela triste estrada. Contra a vermelhidão sombria do céu do leste, uma fenda se desenhava na borda mais alta, estreita, profunda, entre duas saliências negras; e em cada saliência havia um chifre de pedra.
Parou e olhou com mais atenção. O chifre à esquerda era esguio e alto, e nele queimava uma luz vermelha, ou então a luz vermelha da terra mais além estava brilhando através de um buraco. Agora ele via: era uma torre negra que se erguia acima da passagem extrema. Frodo tocou o braço de Sam e apontou.
— Não gosto nada daquilo! — disse Sam. — Então esta sua passagem secreta afinal de contas está sendo vigiada — rosnou ele, virando-se para Gollum.
— Como você já sabia, o tempo todo, eu suponho?
— Todos os caminhos são vigiados, é sim — disse Gollum. — Claro que são. Mas os hobbits precisam tentar algum caminho. Este pode ser menos vigiado. Talvez eles tenham todos ido embora, para a grande batalha, talvez!
— Talvez! — grunhiu Sam. — Bem, parece que ainda temos muito chão pela frente, e ainda temos de subir muito antes de chegarmos lá. E ainda há o túnel. Acho que o senhor devia descansar agora, Sr. Frodo. Não sei que horas são do dia ou da noite, mas estamos caminhando há muitas e muitas horas.
— Sim, precisamos descansar — disse Frodo. — Vamos achar algum canto protegido do vento, e reunir nossas forças — para a etapa final. — Era isso o que ele sentia. Os terrores da terra além, e o feito a ser realizado lá, pareciam ainda remotos, remotos demais para se preocupar. Toda a sua mente estava concentrada em atravessar ou livrar-se daquela parede e daquela guarda impenetráveis. Se uma vez conseguisse realizar aquela coisa impossível, então de alguma forma a missão seria cumprida, ou assim lhe parecia naquela hora escura de cansaço, ainda lutando nas sombras rochosas sob Cirith Ungol.
Numa fenda escura entre dois pilares de pedra eles se sentaram: Frodo e Sam na parte interna, e Gollum agachado no chão perto da abertura. Ali os hobbits fizeram o que imaginavam ser sua última refeição antes de descer à Terra Inominada, talvez a última que fariam juntos. Comeram um pouco da comida de Gondor, e pedaços do pão-deviagem dos elfos, e beberam. Mas estavam racionando a água e beberam apenas o suficiente para molhar as bocas secas.
— Pergunto-me quando encontraremos água de novo – disse Sam. — Mas suponho que mesmo lá eles bebam. Os orcs bebem, não bebem?
— Sim, eles bebem — disse Frodo. — Mas não vamos falar nisso. Aquela bebida não é para nós.
— Então é maior ainda a necessidade de enchermos nossas garrafas — disse Sam. — Mas não há água aqui em cima: não ouvi nenhum ruido ou borbulho. E de qualquer forma Faramir nos disse que não bebêssemos água nenhuma em Morgul.
— Nenhuma água que venha de Imlad Morgul, foram suas palavras — disse Frodo. — Não estamos naquele vale agora, e, se encontrássemos uma nascente, ela estaria correndo para ele, e não dele.
— Eu não confiaria nisso — disse Sam —, não até estar morrendo de sede. Há uma sensação maligna neste lugar. — Sam farejou. — E um cheiro, eu acho.
O senhor está percebendo? Um tipo estranho de cheiro, abafado. Não gosto dele.
— Não gosto de nada por aqui — disse Frodo —, pedra ou poço, água ou osso. Terra, ar e água, tudo parece amaldiçoado. Mas nessa direção vai nossa trilha.
— É, é isso mesmo — disse Sam. — E de modo algum estaríamos aqui se estivéssemos mais bem informados antes de partir. Mas suponho que seja sempre assim.
Os feitos corajosos das velhas canções e histórias, Sr. Frodo: aventuras, como eu as costumava chamar. Costumava pensar que eram coisas à procura das quais as pessoas maravilhosas das histórias saiam, porque as queriam, porque eram excitantes e a vida era um pouco enfadonha, um tipo de esporte, como se poderia dizer. Mas não foi assim com as histórias que realmente importaram, ou aquelas que ficam na memória. As pessoas parecem ter sido simplesmente embarcadas nelas, geralmente — seus caminhos apontavam naquela direção, como se diz. Mas acho que eles tiveram um monte de oportunidades, como nós, de dar as costas, apenas não o fizeram. E, se tivessem feito, não saberíamos, porque eles seriam esquecidos. Ouvimos sobre aqueles que simplesmente continuaram — nem todos para chegar a um final feliz, veja bem; pelo menos não para chegar àquilo que as pessoas dentro de uma história, e não fora dela, chamam de final feliz. O senhor sabe, voltar para casa, descobrir que as coisas estão muito bem, embora não sejam exatamente iguais ao que eram — como aconteceu com o velho Sr. Bilbo. Mas essas não são sempre as melhores histórias de se escutar, embora possam ser as melhores histórias para se embarcar nelas! Em que tipo de história teremos caído?
— Também fico pensando — disse Frodo. — Mas não sei. E é assim que acontece com uma história de verdade. Pegue qualquer uma de que você goste. Você pode saber, ou supor, que tipo de história é, com final triste ou final feliz, mas as pessoas que fazem parte dela não sabem. E você não quer que elas saibam.
— Não, senhor, claro que não. Veja o caso de Beren: ele nunca pensou que ia pegar aquela Silmaril da Corôa de Ferro em Thangorodrim. E apesar disso ele conseguiu, e aquele lugar era pior e o perigo era mais negro que o nosso. Mas é uma longa história, é claro, e passa da alegria para a tristeza e além dela — e a Silmaril foi adiante e chegou a Eärendil. E veja, senhor, eu nunca tinha pensado nisso antes! Nós temos — o senhor tem um pouco da luz dele naquela estrela de cristal que a Senhora lhe deu! Veja só, pensando assim, estamos ainda na mesma história! Ela está continuando. Será que as grandes histórias nunca terminam?
— Não, nunca terminam como histórias — disse Frodo. — Mas as pessoas nelas vêm e vão quando seu papel termina. Nosso papel vai terminar mais tarde — ou mais cedo.
— E então poderemos descansar e dormir um pouco – disse Sam. Sorriu de um modo sombrio. — E quero dizer exatamente isso, Sr. Frodo. Quero dizer um simples descanso comum, e sono, e acordar para uma manhã de trabalho no jardim. Receio que isso seja tudo que estou esperando todo o tempo. Todos os grandes planos importantes não são para pessoas como eu. Mesmo assim, fico imaginando se seremos colocados em canções e histórias. Estamos numa, é claro; mas quero dizer: transformados em palavras, o senhor sabe, contadas perto da lareira, ou lidas de grandes livros com letras pretas e vermelhas, anos e anos depois. E as pessoas vão dizer: “Vamos escutar sobre Frodo e o Anel!” E eles vão dizer: “Sim, essa é uma de minhas histórias favoritas. Frodo foi muito corajoso, não foi, papai?” Sim, meu filho, o mais famoso dos hobbits, e isso significa muito.”
— Significa muito demais — disse Frodo e riu, um riso longo e claro, que vinha do fundo de seu coração. Um som assim não se ouvia naquelas partes desde que Sauron chegara à Terra-média. Sam de repente teve a impressão de que todas as pedras estavam escutando e todas as rochas se debruçavam sobre eles. Mas Frodo não deu atenção a elas e riu de novo. — Olhe, Sam, ouvir você me faz rir como se a história já estivesse escrita. Mas você deixou de fora um dos principais personagens Samwise, o bravo. “Quero ouvir mais sobre Sam, papai. Por que ele não falou mais coisas, papai? É disso que eu gosto. Acho engraçado. E Frodo não teria ido muito longe sem Sam, teria, papai?”
— Ora, Sr. Frodo — disse Sam —, o senhor não devia caçoar. Eu estava falando sério.
— Eu também estava — disse Frodo. — Eu também estou. Estamos indo meio rápido demais. Você e eu, Sam, ainda estamos enfiados nos piores lugares da história, e é bem provável que alguns digam neste ponto: “Feche o livro, papai, não queremos ler mais nada.”
— Pode ser — disse Sam —: mas eu não diria isso. Coisas feitas e terminadas, que já fazem parte das grandes histórias, são diferentes. Veja bem, até Gollum poderia ser bom numa história, melhor do que tê-lo ao seu lado, de qualquer forma. E houve um tempo em que ele mesmo gostava de histórias, por conta própria. Será que ele se considera o herói ou o vilão?
— Gollum! — chamou ele — Você gostaria de ser o herói ora, onde ele se meteu de novo?
Não havia sinal de Gollum na abertura do patamar onde estavam, nem nas sombras ao redor. Recusara a comida deles, embora tivesse aceitado, como de costume, um gole de água; depois aparentemente se aconchegara para dormir. Os hobbits tinham suposto que pelo menos um de seus objetivos durante sua longa ausência do dia anterior fora procurar comida que lhe apetecesse, e agora ele evidentemente fugira de novo, enquanto os dois conversaram. Mas para quê, desta vez?
— Não gosto que ele desapareça sem avisar — disse Sam. — Muito menos agora. Não pode estar procurando comida aqui em cima, a não ser que haja algum tipo de rocha que lhe apeteça. Por aqui não existe nem um pouquinho de musgo!
— Não adianta nos preocuparmos com ele agora – disse Frodo. — Não teríamos ido longe, nem teríamos chegado a ver a passagem, sem ele, e por isso vamos ter de aturar o jeito dele. E, se ele é falso, então é falso.
— Mesmo assim, preferia tê-lo diante de meus olhos – disse Sam. — Ainda mais se ele for falso. O senhor se recorda de que ele nunca disse se a passagem era ou não vigiada? E agora vemos uma torre lá — que pode estar abandonada, e pode não estar. O senhor acha que ele foi buscá-los, orcs ou o que quer que sejam?
— Não, acho que não — respondeu Frodo. — Mesmo que esteja se ocupando com alguma maldade, não acho que seja isso: não buscando orcs, ou qualquer servidor do Inimigo. Por que teria esperado até agora, e passado por todo o trabalho da subida, e chegado tão perto do lugar que teme? Provavelmente poderia ter-nos entregado aos orcs muitas vezes desde que o encontramos. Não, se houver alguma coisa, será algum pequeno truque particular e próprio, que ele considera muito secreto.
— Bem, acho que o senhor tem razão, Sr . Frodo — disse Sam.
— Não que isso me console muito. E eu não me engano: não duvido que ele me entregaria aos orcs com a mesma satisfação com a qual estenderia a mão para que fosse beijada. Mas eu estava esquecendo o Precioso. Não, creio que todo o tempo foi O Precioso para o pobre Sméagol. Essa é a única idéia em todos os pequenos planos dele, se é que ele tem algum. Mas como nos trazer aqui vai ajudá-lo nesses planos é mais do que posso adivinhar.
— Muito provavelmente nem mesmo ele pode adivinhar — disse Frodo.
— E não acho que ele tenha apenas um plano definido naquela cabeça confusa.
Acho que realmente, em parte, ele está tentando salvar seu Precioso do Inimigo, enquanto puder. Pois seria o desastre final para ele também, se o Inimigo o conseguisse. E por outro lado, talvez, ele esteja apenas ganhando tempo e aguardando uma oportunidade.
— É, Caviloso e Fedegoso, como eu já disse – continuou Sam. — Mas quanto mais chegarem perto da terra do Inimigo, mais parecido com Fedegoso Caviloso ficará. Guarde minhas palavras: se conseguirmos chegar até a passagem, ele realmente não vai permitir que levemos a coisa preciosa através da fronteira sem arranjar algum tipo de problema.
— Ainda não chegamos lá — disse Frodo.
— Não, mas é melhor ficarmos de olhos abertos até chegarmos. Se formos pegos cochilando, Fedegoso vai dar a volta por cima bem rápido. Mesmo assim seria seguro o senhor dar uma dormidinha agora, mestre. Seguro, se se deitar perto de mim. Ficaria muito satisfeito em vê-lo dormindo. Eu ficaria vigiando; e de qualquer forma, se o senhor se deitar perto, com meu braço em volta de seu corpo, ninguém poderia tocá-lo sem que o seu Sam ficasse sabendo.
— Dormir! — disse Frodo e suspirou, como se num deserto tivesse avistado uma miragem de frescor verde. — Sim, até mesmo aqui eu conseguiria dormir.
— Então durma, mestre! Deite sua cabeça em meu colo.
E assim Gollum os encontrou horas mais tarde, quando retornou, arrastando-se pela trilha, saindo da escuridão adiante. Sam estava sentado, recostado na pedra, a cabeça caindo de lado e com a respiração pesada. Em seu colo a cabeça de Frodo, imersa num sono profundo; sobre sua fronte branca descansava uma das mãos morenas de Sam, e a outra pousava suavemente sobre o peito de seu mestre. Havia paz no rosto dos dois.
Gollum olhou para eles. Uma expressão estranha passou por seu rosto magro e faminto. Apagou-se o brilho de seus olhos, que ficaram opacos e cinzentos, velhos e cansados. Um espasmo de dor pareceu contorcer seu corpo, e ele se virou, olhando para trás na direção da passagem, balançando a cabeça, como se empenhado em alguma discussão interior. Depois voltou, e lentamente, estendendo uma mão trêmula, com todo o cuidado tocou o joelho de Frodo — mas o toque foi quase uma carícia. Por um momento fugaz, se os que dormiam pudessem tê-lo visto, pensariam que estavam observando um velho hobbit cansado, encolhido pelos anos que o tinham carregado para longe de seu tempo, para longe dos amigos e parentes, e dos campos e riachos da juventude, um ser velho e faminto merecedor de compaixão.
Mas àquele toque Frodo se mexeu e chamou baixinho em seu sono, e imediatamente Sam despertou completamente. A primeira coisa que viu foi Gollum — “passando as patas no mestre”, como pensou.
— Ei, você! — disse ele num modo áspero. — Que está fazendo?
— Nada, nada — disse Gollum baixinho. — Mestre bonzinho!
— Sem dúvida — disse Sam. Mas onde você esteve — safando-se sorrateiramente e voltando do mesmo jeito, seu velho vilão?
Gollum se retirou, e um brilho verde faiscou sob suas pálpebras pesadas. Agora quase parecia uma aranha, agachado sobre as pernas dobradas, com seus olhos protuberantes. O momento fugaz passara e não poderia mais ser relembrado.
— Safando-me, safando-me! — chiou ele. — Os hobbits são sempre tão educados, é sim. O hobbits bonzinhos! Sméagol os traz por caminhos secretos que ninguém mais poderia encontrar. Está cansado, está com sede, é sim, com sede; e ele os leva e procura trilhas, e então eles dizem safado, safado. Amigos muito bonzinhos, é sim, meu precioso, muito bonzinhos.
Sam sentiu um pouco de remorso, embora não sentisse mais confiança.
— Sinto muito — disse ele. — Sinto muito, mas você me assustou e me acordou de meu sono. E eu não deveria estar dormindo, e isso me fez ser um pouco rude. Mas o Sr. Frodo está muito cansado, e eu pedi que ele tirasse um cochilo; e, bem, foi isso que aconteceu. Sinto muito. Mas onde você esteve?
— Safei-me sorrateiramente — disse Gollum, e o brilho verde não abandonava seus olhos.
— Oh, muito bem — disse Sam —, diga como quiser! Não acho que está muito longe da verdade. E agora é melhor todos nós começarmos a nos safar sorrateiramente juntos. Que horas são? É hoje ou amanhã?
— É amanhã — disse Gollum —, ou era amanhã quando os hobbits foram dormir. Muito tolos, muito perigoso — se o pobre Sméagol não estivesse por aí, vigiando sorrateiramente.
— Acho que logo vamos enjoar dessa palavra — disse Sam. — Mas não se incomode, eu vou acordar o mestre. — Suavemente afastou o cabelo da fronte de Frodo, e curvando-se falou-lhe baixinho.
— Acorde, Sr. Frodo! Acorde!
Frodo se mexeu, abriu os olhos e sorriu, vendo o rosto de Sam debruçado sobre o dele.
— Está me chamando cedo, não é, Sam? — disse ele. — Ainda está escuro!
— Sim, está sempre escuro aqui — disse Sam. — Mas Gollum voltou, Sr. Frodo, e diz que já é amanhã. Então devemos ir andando. O inicio do fim.
Frodo respirou fundo e se sentou.
— O inicio do fim! — disse ele. — Olá, Sméagol! Achou alguma comida? Você descansou?
— Sem comida, sem descanso, nada para Sméagol — disse Gollum. — Ele é um safado.
Sam estalou a língua, mas se conteve.
— Não dê nomes a si mesmo, Sméagol — disse Frodo. — Não é uma atitude inteligente, sejam eles verdadeiros ou falsos.
— Sméagol precisa aceitar o que lhe é dado — respondeu Gollum. — Quem lhe deu esse nome foi o gentil Mestre Samwise, o hobbit que é tão inteligente.
Frodo olhou para Sam.
— Sim, senhor — disse ele. — Eu usei essa palavra, quando acordei de meu sono de repente e tudo o mais, e o encontrei por perto. Eu disse que estava arrependido, mas logo não vou estar mais.
— Vamos lá, deixem isso de lado então — disse Frodo. — Mas agora parece que chegamos ao ponto, você e eu, Sméagol. Diga-me. Agora nós podemos achar o caminho sozinhos? Estamos vendo a passagem, uma entrada, e, se pudermos encontrá-la agora, então acho que nosso acordo pode terminar aqui. Você fez o que prometeu, e está livre: livre para procurar comida e descanso, aonde quer que deseje ir, exceto para os servidores do Inimigo. E um dia poderei recompensá-lo, eu ou aqueles que se lembrarem de mim.
— Não, não, ainda não — choramingou Gollum. — Oh, não! Eles não podem encontrar o caminho sozinhos, podem? Não, de jeito nenhum. O túnel está se aproximando.
Sméagol precisa continuar. Sem comida. Sem descanso. Por enquanto.
A TOCA DE LARACNA
Podia realmente ser dia agora, como dizia Gollum, mas os hobbits quase não notavam diferença alguma, a não ser talvez pelo céu, que estava um pouco menos escuro, parecendo um grande teto de fumaça, enquanto em vez da escuridão da noite profunda, que ainda perdurava em fendas e buracos, uma sombra cinzenta e indistinta cobria o mundo rochoso ao redor deles. Foram adiante, Gollum na frente e os hobbits agora lado a lado, subindo o longo desfiladeiro entre pilares e colunas de rocha dilacerada e gasta, que se erguiam como imensas estátuas disformes dos dois lados. Não se ouvia som algum.
Um pouco à frente, talvez uma milha ou mais, havia uma grande muralha, uma última massa de rocha que se arremessava para o alto.
Cada vez mais escura assomava, elevando-se gradativamente conforme iam se aproximando, até subir muito além das cabeças deles, barrando a visão de tudo o que ficava além. Uma sombra profunda jazia aos seus pés. Sam farejou o ar.
— Ugh! Aquele cheiro! — disse ele. — Está ficando cada vez mais forte. De repente estavam sob a sombra, e ali no meio dela viram a abertura de uma caverna.
— A entrada é por ali — disse Gollum baixinho. — Esta é a entrada do túnel. — Não disse o nome: Torech Ungol, Toca de Laracna. Dele vinha um fedor, não o cheiro repugnante de podridão dos prados de Morgul, mas um odor nauseabundo, como se uma imundície inominável estivesse empilhada e guardada na escuridão lá dentro.
— É o único caminho, Sméagol? — perguntou Frodo.
— É, sim — respondeu ele. — Sim, devemos ir por aqui agora.
— Você está querendo dizer que já atravessou este buraco? — disse Sam.
— Arre! Mas talvez você não se incomode com cheiros ruins.
Os olhos de Gollum cintilaram. — Ele não sabe com o que nós se incomoda, não é, precioso? Não, ele não sabe. Mas Sméagol pode aturar coisas. Sim, ele atravessou. É sim, atravessou exatamente por ali. É o único caminho.
— E o que produz esse cheiro, eu gostaria de saber – disse Sam. — Parece... bem, não gostaria de dizer. Algum buraco abominável de orcs, eu garanto, com uns cem anos da sujeira deles lá dentro.
— Bem — disse Frodo. — Com ou sem orcs, se for o único caminho, devemos tomá-lo.
Respiraram fundo e entraram. Alguns passos e já estavam num a escuridão total e impenetrável. Só nos corredores sem luz de Moria Frodo e Sam não tinham visto escuridão semelhante, e se possível aqui ela era mais profunda e mais densa. Lá havia ares circulando, e ecos, e uma sensação de espaço. Onde estavam agora o ar era parado, estagnado, pesado, e o silêncio era total.
Caminhavam por assim dizer num vapor negro, composto da própria escuridão em si mesma que, quando era inalada, trazia cegueira não apenas para os olhos, mas também para a mente, de modo que até a lembrança de cores e formas e de qualquer luz se apagavam do pensamento.
A noite sempre existira, e sempre existiria, e a noite era tudo.
Mas por um tempo eles ainda conservaram o tato, e na verdade a sensibilidade de seus pés e mãos pareceu a princípio se aguçar quase dolorosamente. As paredes eram, para a surpresa deles, lisas; o chão, com a exceção de um ou outro degrau que surgia de vez em quando, era reto e regular, sempre subindo com a mesma inclinação acentuada. O túnel era alto e amplo, tão amplo que, embora os hobbits caminhassem lado a lado, apenas tocando as paredes laterais com os braços abertos, estavam separados, isolados na escuridão.
Gollum tinha entrado primeiro, e parecia estar apenas alguns passos à frente.
Enquanto ainda conseguiam dar atenção a coisas desse tipo, os hobbits ouviam sua respiração chiada e ofegante bem na frente deles. Mas depois de um tempo seus sentidos ficaram menos aguçados, o tato e a audição pareciam estar adormecendo, e eles continuavam, tateando, caminhando, sempre em frente, principalmente pela força de vontade com a qual tinham entrado, vontade de atravessar e desejo de chegar finalmente ao alto portão que ficava mais além.
Ainda não tinham avançado muito, talvez, mas a noção de tempo e distância logo havia desaparecido de sua mente; Sam, à direita, tateando a parede, percebeu a presença de uma abertura lateral: por um momento detectou um sopro fraco de algum ar menos pesado, que logo ficou para trás.
— Há mais de um corredor aqui — sussurrou ele com um esforço: parecia difícil fazer com que sua respiração produzisse algum ruido. — É o lugar mais parecido com moradias de orcs que poderia existir!
Depois disso, primeiro ele à direita, e depois Frodo à esquerda, passaram por três ou quatro dessas aberturas, algumas mais largas, outras menores; mas por enquanto não havia dúvidas quanto ao caminho principal, pois era reto, e não fazia curvas, e ainda continuava subindo sempre. Mas qual seria seu comprimento, e quanto mais daquilo teriam de aturar, ou conseguiriam aturar? O ar ficava cada vez mais irrespirável conforme subiam, e agora eles tinham frequentemente a sensação de estarem, naquela escuridão cega, experimentando alguma resistência mais espessa que o ar pestilento. Enquanto se lançavam à frente, sentiam coisas roçarem contra suas cabeças, ou suas mãos, longos tentáculos, ou plantas penduradas talvez: não conseguiam saber o que eram. E o fedor ainda aumentava. Aumentou até quase ficarem com a impressão de que o olfato era o único sentido que lhes restava, e isso para o tormento deles. Uma hora, duas horas, três horas: quantas se tinham passado naquele buraco sem luz? Horas, dias, talvez semanas.
Sam se afastou da lateral do túnel e se achegou na direção de Frodo, e as mãos deles se encontraram e se apertaram, e desse modo, juntos, eles continuaram sempre em frente.
Finalmente Frodo, tateando ao longo da parede á esquerda, descobriu de repente uma lacuna. Quase caiu de lado, dentro do vazio. Ali havia alguma abertura na rocha muito maior do que qualquer outra pela qual tinham passado; e dela vinha um cheiro tão nauseabundo, e uma sensação tão intensa de maldade à espreita, que Frodo cambaleou.
Naquele momento 8am também perdeu o equilíbrio e caiu para a frente.
Lutando ao mesmo tempo contra a ânsia de vômito e o medo, Frodo agarrou a mão de Sam. — Levante-se! — disse ele numa respiração rouca e surda. — Tudo vem daqui, o fedor e o perigo. Vamos embora! Rápido!
Reunindo a força e a resolução que lhe restavam, colocou Sam de pé, e forçou as próprias pernas a se moverem. Sam tropeçava ao lado dele.
Um passo, dois passos, três passos — finalmente seis passos. Talvez tivessem passado a terrível abertura invisível, mas, fosse ou não por isso, de repente os movimentos ficaram mais fáceis, como se alguma vontade má os tivesse libertado por um tempo.
Avançaram com muito esforço, ainda de mãos dadas.
Mas quase imediatamente encontraram uma nova dificuldade. O túnel se bifurcava, ou assim parecia, e no escuro não conseguiam saber qual era o caminho mais largo, ou qual deles ficava mais próximo do caminho direto. Qual deveriam tomar, o da direita ou o da esquerda? Não sabiam de nada que pudesse guiá-los, e no entanto uma escolha errada certamente seria fatal.
— Por qual caminho Gollum foi? — perguntou Sam ofegante. — E por que não esperou?
— Sméagol! — disse Frodo, tentando chamá-lo. — Sméagol! — mas sua voz era um grasnido, e o nome morreu quase no mesmo momento em que deixou seus lábios.
Não houve resposta, nem um eco, nem mesmo um tremor no ar.
— Acho que desta vez ele realmente se foi — murmurou Sam. — Acho que sua intenção era nos trazer exatamente para este lugar. Gollum! Se algum dia conseguir colocar-lhe as mãos em cima, ele vai se arrepender disso.
De repente, tateando e apalpando no escuro, perceberam que a abertura à esquerda estava bloqueada: ou não tinha saída, ou alguma grande pedra caíra na passagem.
— Este não pode ser o caminho — sussurrou Frodo.
— Certo ou errado, devemos tomar o outro.
— E logo! — ofegou Sam. — Há alguma coisa pior que Gollum por aqui. Posso sentir algo nos observando.
Não tinham avançado mais que alguns metros quando ouviram um som que se aproximava por trás, assustador e horrível no silêncio pesado, abafado, um som gorgolejante, borbulhante, e um chiado longo e venenoso.
Viraram-se, mas não conseguiram ver nada. Ficaram parados como pedras, observando, esperando, sem saber o que.
— É uma armadilha! — disse Sam, colocando a mão sobre o punho de sua espada; e no momento em que fez isso, pensou na escuridão do túmulo de onde ela vinha.
“Gostaria que o velho Tom estivesse por perto agora!”, pensou ele.
Depois, parado, com a escuridão ao redor e um negrume de desespero e raiva em seu coração, teve a impressão de ver uma luz: uma luz em sua mente, quase insuportavelmente clara no início, como um raio de sol para os olhos de alguém há muito tempo escondido numa caverna sem janelas. Depois a luz ficou colorida. Verde, dourada, prateada, branca. Distante, como se estivesse num pequeno quadro desenhado por dedos élficos, Sam viu a Senhora Galadriel, em pé sobre a relva de Lórien, e havia presentes nas mãos dela. E para você, portador do Anel, ele a ouviu dizer, numa voz remota mas clara, para você eu preparei isto.
O chiado borbulhante se aproximou e ouviu-se um rangido, como se uma grande criatura com muitas juntas estivesse se movendo deliberadamente devagar no escuro. Um cheiro pestilento a precedia. — Mestre, mestre! — gritou Sam, o tom vivo e insistente voltando à sua voz. — o presente da Senhora! A estrela de cristal!
Uma luz para o senhor em lugares escuros, foi o que ela disse que seria. A estrela de cristal!
— A estrela de cristal? — murmurou Frodo, como alguém que responde enquanto dorme, quase sem entender. — Oh, sim! Por que a esqueci? Uma luz para quando todas as outras luzes se apagarem! Realmente agora só a luz pode nos ajudar.
Lentamente aproximou a mão do peito, e devagar ergueu o Frasco de Galadriel.
Por um momento ele tremeluziu, fraco como uma estrela que sobe, lutando contra as pesadas névoas caindo sobre a terra, e então, à medida que seu poder crescia e aumentava a esperança no coração de Frodo, começou a queimar e se acendeu numa chama de prata, um coração diminuto de luz ofuscante, como se o próprio Eãrendil tivesse descido dos altos caminhos do pôr-do-sol com a última Silmaril em sua fronte.
A escuridão se afastou do Frasco até que a luz pareceu brilhar no centro de um globo de cristal tênue, e a mão que o segurava coruscava com um fogo branco.
Frodo fitou assombrado aquele presente maravilhoso que havia carregado por tanto tempo, sem imaginar todo o seu valor e potência.
Raras vezes se lembrara dele na estrada, até que chegaram ao Vale Morgul, e nunca o usara por medo de sua luz reveladora.
— Aiya Eãrendil Elenion Ancalima! — gritou ele, sem saber o que tinha dito, pois parecia que outra voz falara através da sua, límpida, não molestada pelo ar pestilento da caverna.Mas há outros poderes na Terra-média, forças da noite, que são antigas e poderosas. E Aquela que andava na escuridão ouvira os elfos gritando aquele grito antigamente, nas profundezas do tempo, e não dera importância a ele, que também não a amedrontava agora. No momento em que Frodo falou, sentiu uma grande força maligna pesar sobre si, e um olhar mortal examinando a sua pessoa. Não muito distante no túnel, entre eles e a abertura onde tinham cambaleado e tropeçado, ele percebeu olhos ficando cada vez mais visíveis, dois grandes aglomerados de olhos com muitas janelas — a ameaça que se aproximava finalmente se desmascarou. A radiação da estrela de cristal se partiu naqueles milhares de facetas e foi lançada de volta, mas atrás do clarão um fogo pálido e mortal começou a brilhar fixo lá dentro, uma chama acesa em alguma escura caverna de pensamento maligno. Eram olhos monstruosos e abomináveis, bestiais e ao mesmo tempo cheios de propósito e de um prazer horrendo, exultando sobre suas vítimas, presas e sem qualquer esperança de escaparem.
Frodo e Sam, tomados de terror, começaram a recuar devagar, a própria vista presa do olhar terrível daqueles maléficos olhos; mas, conforme recuavam, os olhos avançavam. A mão de Frodo vacilou e lentamente o Frasco foi descendo. Então, de repente, libertados do fascínio que os prendia a fim de que pudessem correr um pouco em pânico inútil, para o divertimento dos olhos, os dois se viraram e correram juntos; mas no momento em que arrancaram Frodo se virou e viu aterrorizado que imediatamente os olhos começaram a persegui-los aos saltos. O odor de morte era como uma nuvem ao seu redor.
— Pare! Pare! — gritou ele desesperado. — Não adianta correr.
Lentamente os olhos se aproximaram.
— Galadriel! — chamou ele, e criando coragem ergueu o Frasco mais uma vez. Os olhos pararam. Por um momento a expressão neles se abrandou, como se alguma sombra de dúvida os afligisse. Então o coração de Frodo ferveu dentro dele, e, sem pensar no que estava fazendo, se era loucura ou desespero ou coragem, ele pegou o Frasco com a mão esquerda, e com a direita puxou sua espada. Ferroada reluziu, e a afiada lâmina élfica faiscou na luz prateada, mas nas bordas adejava um fogo azul. Então, erguendo a estrela e brandindo a espada, Frodo, hobbit do Condado, deu passos firmes em direção aos olhos.
Os olhos vacilaram. Iam-se enchendo de dúvidas conforme a luz se aproximava.
Um a um foram escurecendo, e devagar recuaram. Nenhum clarão tão mortal jamais os afligira antes. Do sol, da lua e das estrelas eles tinham estado a salvo no subterrâneo, mas agora uma estrela penetrara o próprio coração da terra. A luz ainda se aproximava, e os olhos começavam a enfraquecer.
Um a um todos se apagaram; viraram-se e um grande corpo, além do alcance da luz, içou sua enorme sombra no espaço escuro. Desapareceram.
— Mestre, mestre! — gritou Sam. Estava logo atrás, com sua espada em punho e preparada. — Estrelas e glória! Mas os elfos fariam uma canção sobre isso, se viessem a saber o que aconteceu aqui! E que eu possa viver para contar — lhes e escutá-los cantar.
Mas não avance mais, mestre. Não desça naquele fosso. Agora é nossa única oportunidade. Vamos sair deste buraco imundo!
E assim viraram-se mais uma vez, primeiro andando, depois correndo; pois conforme avançavam o chão da caverna começou a subir vertiginosamente, e a cada passo eles ficavam mais acima dos fedores da toca invisível, e a força retomou aos corações e às pernas. Mas ainda o ódio da Vigia espreitava atrás deles, cego talvez por um período, mas não derrotado, ainda determinado a matar. E agora um sopro de ar veio ao encontro deles, frio e leve. A abertura, o fim do túnel, finalmente estava ali. Ofegantes, ansiando por um lugar descoberto, os hobbits se jogaram para a frente; então, surpresos, cambalearam e caíram para trás.
A saída estava bloqueada por algum tipo de barreira, que não era feita de pedra: parecia macia e um pouco elástica, e ao mesmo tempo forte e impenetrável; o ar passava por ela, mas não se via qualquer sinal de luz. Mais uma vez avançaram e foram arremessados para trás.
Erguendo o Frasco, Frodo olhou e viu à sua frente algo cinzento que a radiação da estrela de cristal não atravessava e não iluminava, como se fosse uma sombra que, não sendo projetada por luz alguma, nenhuma luz podia dissipar.
Cruzando a extensão horizontal e vertical do túnel, uma grande teia fora tecida, metodicamente como a teia de uma enorme aranha, mas com uma textura mais densa e muito maior, e cada fio era grosso como uma corda.
Sam riu de modo sinistro. — Teias de aranha! — disse ele. — Isso é tudo? Mas que aranha! Vamos a elas, acabemos com elas!
Num acesso de fúria, golpeou as teias com sua espada, mas o fio atingido não se quebrou. Cedeu um pouco e depois saltou de volta como a corda esticada de um arco, desviando a lâmina e empurrando para o alto tanto a espada quanto o braço. Três vezes Sam golpeou com toda a sua força, e finalmente uma única entre as inúmeras cordas se partiu e se torceu, enrolando-se e chicoteando o ar.
Uma extremidade açoitou a mão de Sam, que gritou de dor, recuando e levando a mão à boca.
— Vai levar dias até que consigamos abrir caminho desse jeito — disse ele. — Que devemos fazer? Aqueles olhos retornaram?
— Não que eu tenha visto — disse Frodo. — Mas ainda sinto que estão me observando, ou pensando em mim: fazendo algum outro plano, talvez. Se essa luz diminuísse, ou se falhasse, logo eles voltariam.
— Sem saída, no fim! — disse Sam num tom amargo, com o ódio subindo de novo acima do cansaço e do desespero. — Moscas numa teia. Que a praga de Faramir pegue aquele Gollum, e pegue depressa!
— Isso não nos ajudaria em nada — disse Frodo. — Venha! Vamos ver o que Ferroada pode fazer. É uma lâmina élfica. Havia teias de horror nos abismos escuros de Beleriand onde foi forjada. Mas você deve ser o vigia e afastar os olhos. Aqui, pegue a estrela de cristal. Não tenha medo. Segure bem alto e fique atento!
Então Frodo se aproximou da grande teia cinzenta, e a atacou com um grande golpe de espada, forçando a borda afiada através de uma rede de cordas firmemente tecida, e imediatamente saltou para trás. Com seu brilho azulado a lâmina cortou os fios como uma foice corta a grama, e eles recuaram e se retorceram, e depois ficaram soltos.
Um grande rasgo fora feito.
Golpe a golpe foi trabalhando, até que finalmente toda a teia ao seu alcance estava despedaçada, e a parte superior ficou esvoaçando e balançando no vento que entrava. A armadilha estava desfeita.
— Venha! — gritou Frodo. — Vamos! Vamos! — De súbito sua mente se encheu de uma alegria alucinada por terem conseguido escapar exatamente na beira do desespero.
A cabeça do hobbit girava como se estivesse sob o efeito de um vinho possante.
Deu um salto, e gritou conforme saltava.
Aquele lugar escuro parecia claro para seus olhos, que tinham passado pelo fosso da noite. A grande concentração de fumaça tinha subido e ficado mais tênue, e as últimas horas de um dia sombrio estavam terminando; o brilho vermelho de Mordor tinha se extinguido numa escuridão melancólica. Mas Frodo tinha a impressão de estar olhando para uma manhã de súbita esperança. Tinha quase atingido o topo da muralha. Só tinha de subir mais um pouco. A Fenda, Cirith Ungol, estava diante dele, um desfiladeiro escuro na cordilheira negra, e os chifres de pedra escurecendo no céu dos dois lados. Uma pequena corrida, uma corrida de curta distância, e ele teria atravessado!
— A passagem, Sam — gritou ele, sem dar atenção ao tom agudo de sua voz, que, liberta dos ares sufocantes do túnel, agora ecoava alta e forte. — A passagem! Corra, corra, e conseguiremos passar — passar antes que alguém possa nos impedir!
Sam veio atrás com a maior velocidade que conseguiu imprimir às suas pernas; mas mesmo estando alegre por estar livre, sentia-se inquieto, e, enquanto corria, repetidas vezes olhava para trás, na direção do arco escuro do túnel, temendo ver olhos, ou algum vulto além de sua imaginação, saltarem em perseguição.
Sam e seu mestre sabiam muito pouco sobre a astúcia de Laracna. Ela tinha muitas saídas de sua toca.
Ali morara por muitas eras um ser mau na forma de uma aranha, semelhante àqueles que tinham outrora vivido na Terra dos elfos no oeste, que jaz agora sob o Mar, semelhante àqueles contra os quais Beren lutara nas Montanhas de Terror em Doriath, e assim encontrou Lúthien sobre a verde relva em meio às cicutas sob o luar, há muito tempo. Como Laracna chegara ali, fugindo da ruína, ninguém sabe, pois dos Anos Escuros poucas histórias restaram. Mas ela ainda estava lá, ela que chegara antes de Sauron, e antes da primeira pedra de Barad-dûr; nunca servira a ninguém a não ser a si própria, bebendo o sangue de elfos e homens, intumescida e gorda, remoendo sem cessar seus banquetes, tecendo teias de sombra; pois todos os seres vivos eram sua comida, e seu vômito a escuridão. Por toda a volta suas crias menores, bastardos dos companheiros miseráveis, seus próprios filhos que ela matava, espalharam-se de vale em vale, das Ephel Dúath até as colinas do leste, até Doí Guldur e as fortalezas da Floresta das Trevas. Mas nenhuma se comparava a ela, Laracna, a Grande, última filha de Ungoliant a importunar o mundo infeliz.
Gollum, anos antes, já a vira, Sméagol que penetrava todos os buracos escuros, e em dias passados se curvara diante dela em adoração, e a escuridão de sua vontade maligna o acompanhara através de todos os caminhos de sua fadiga, isolando-o da luz e do arrependimento. E ele lhe prometera trazer comida.
Mas a ganância dela não era a dele. Ela pouco sabia e não se preocupava com torres ou anéis ou qualquer coisa criada por mentes ou mãos, ela que só desejava a morte para todos os outros, mentes e corpos, e para si mesma uma fartação de vida, solitária, inchada até que as montanhas não mais conseguissem abrigá-la, até que a escuridão não a pudesse conter.
Mas esse desejo estava muito distante, e havia muito tempo ela estava faminta, espreitando no seu covil, enquanto o poder de Sauron crescia, e a luz e os seres vivos abandonavam suas fronteiras, e a cidade no vale ficou morta, e nenhum elfo ou homem se aproximava, apenas os infelizes orcs. Comida ruim e arisca. Mas ela precisava comer, e, por mais que se empenhassem em cavar novos caminhos sinuosos que vinham da passagem e de sua torre, ela sempre achava um modo de enganá-los.
Mas ela desejava carne mais tenra. E Gollum lhe trouxera.
— Veremos, veremos — ele sempre dizia a si mesmo, quando a disposição maligna o atacava, quando andava nas estradas perigosas que vinham das Emyn Muil para o vale Morgul — vamos ver. Pode muito bem ser, sim, pode muito bem ser que, quando Ela jogar fora os ossos e as vestes vazias, nós possamos encontrá-lo, e vamos pegá-lo, o Precioso, uma recompensa para o pobre Sméagol, que traz comida boazinha. E vamos salvar o Precioso, como prometemos. É sim. E, quando o tivermos a salvo, então Ela vai ficar sabendo, é sim, e então vamos dar-lhe o troco, meu precioso. Então vamos dar o troco a todo o mundo! Assim pensava num canto escondido de sua mente, que ele ainda tinha esperança de esconder dela, mesmo quando viera até ela de novo e lhe fizera uma grande reverência, enquanto seus companheiros dormiam.
Quanto a Sauron, ele sabia onde ela estava entocada. Prezava a idéia de tê-la morando lá, faminta mas não diminuída em malícia, uma sentinela mais eficiente daquela passagem antiga para suas terras que qualquer outra que seu talento poderia ter criado. E os orcs eram escravos úteis, mas ele os tinha em abundância. Se de vez em quando Laracna capturasse algum para amenizar seu apetite, era bem-vinda: Sauron podia dispor deles. E algumas vezes, como um homem pode jogar uma guloseima para sua gata (chama-a de minha gata, mas ela não é dele), Sauron costumava enviar-lhe prisioneiros para os quais não tinha melhores usos: ordenava que fossem conduzidos até a toca, e que lhe fossem trazidos relatórios das brincadeiras que ela aprontava.
Assim viviam ambos, deliciando-se com as próprias tramóias, sem temer ataque ou ira ou o fim de suas maldades. Nunca jamais qualquer mosca escapara das teias de Laracna, e sua fome e sua ira estavam agora maiores do que nunca.
Mas o pobre Sam nada sabia desse mal preparado para eles, a não ser por um medo que crescia dentro dele, uma ameaça que não conseguia ver, e que se transformou num peso tão grande que ele tinha dificuldades para correr, e seus pés pareciam de chumbo.
O terror estava ao seu redor, e havia inimigos diante dele na passagem, e seu mestre estava numa disposição desvairada, correndo descuidadamente na direção deles.
Desviando os olhos da sombra atrás, e da profunda escuridão abaixo do penhasco à esquerda, Sam olhou para a frente, e viu duas coisas que aumentaram seu desânimo.
Viu que a espada que Frodo ainda segurava nas mãos estava emitindo uma chama azul, e viu que, embora o céu atrás dele agora estivesse escuro, ainda a janela na torre emanava um brilho vermelho.
— Orcs! — murmurou ele. — Nunca vamos conseguir deste jeito. Há orcs à solta, e coisas piores que orcs. — Então, voltando rapidamente ao seu antigo hábito de agir em segredo, fechou a mão em volta do precioso Frasco, que ainda carregava. Por um momento sua mão brilhou com seu próprio sangue vivo, e então ele colocou a luz reveladora num bolso junto ao peito e cobriu-se com a capa élfica. Tentava agora apressar o passo. Seu mestre estava se distanciando dele; já estava uns vinte passos adiante, deslizando como uma sombra; logo se perderia de vista naquele mundo cinzento.
Sam mal tinha escondido a luz da estrela de cristal quando ela veio. Um pouco à frente e à esquerda ele a viu, saindo de um buraco negro de sombra sob o penhasco, a forma mais odiosa que ele jamais vira, horrível além do horror de um pesadelo. Era muito semelhante a uma aranha, mas maior que as grandes feras caçadoras, e mais terrível que elas por causa do propósito maligno em seus olhos sem remorso. Os mesmos olhos que ele pensava estarem derrotados e vencidos acendiam-se outra vez numa luz cruel, agrupados em sua cabeça protuberante. Tinha grandes chifres, e atrás de seu curto pescoço em forma de haste estava um enorme corpo inchado, um vasto saco intumescido, balançando e caído por entre as pernas o tronco era preto, manchado com marcas lívidas, mas a barriga embaixo era clara e luminosa, exalando um cheiro ruim. As pernas eram curvas, com grandes juntas nodosas bem acima de suas costas, e tinha pêlos espetados como espinhos de aço, e na extremidade de cada perna havia uma garra.
Assim que, apertando o corpo mole e pesado e dobrando as pernas, ela saiu pela abertura superior de sua toca, moveu-se a uma terrível velocidade, ora correndo sobre suas pernas rangentes, ora dando um salto repentino. Estava entre Sam e seu mestre. Ou não estava enxergando Sam ou o evitava naquele momento por ser ele o portador da luz, e fixava toda a sua atenção em uma presa, em Frodo, privado de seu Frasco, correndo descuidadamente pela trilha, inconsciente ainda do perigo que o ameaçava. Ele corria rápido, mas Laracna era mais rápida; em alguns saltos poderia capturá-lo.
Sam respirou fundo e reuniu todo o fôlego que lhe restava para gritar.
— Cuidado atrás! — berrou ele. — Cuidado, mestre! Eu... — mas de repente seu grito foi emudecido.
Uma longa mão pegajosa cobriu-lhe a boca e uma outra o pegou pelo pescoço, enquanto alguma coisa se enrolava em torno de sua perna. Pego de surpresa, ele tombou para trás e caiu nos braços de quem o atacara.
— Pegamos ele! — chiou Gollum ao seu ouvido. — Finalmente, meu precioso, nós pegamos ele, é sim, o hobbit malvado. Nós fica com este. Ela fica com o outro. E sim, Laracna vai pegar ele, não Sméagol: ele prometeu; não vai machucar o Mestre de jeito nenhum. Mas ele pegou você, seu nojento, malvado, hobbitzinho ssafado!
— Gollum cuspiu no pescoço de Sam.
A fúria diante da traição e o desespero em ser detido quando seu mestre corria um perigo mortal deram a Sam uma repentina violência e uma força que estava além de qualquer coisa que Gollum tinha esperado daquele hobbit que considerava parvo e estúpido. Nem mesmo o próprio Gollum poderia ter-se virado com maior rapidez ou força. A mão que cobria a boca de Sam escorregou, e Sam se abaixou e se jogou para a frente de novo, tentando se livrar da outra mão que lhe agarrava o pescoço. A mão direita ainda segurava a espada, e no braço esquerdo, pendurado pela correia, estava o cajado de Faramir.
Desesperadamente tentou se virar e apunhalar o inimigo. Mas Gollum foi rápido demais. Arremessou seu comprido braço direito, e agarrou o pulso de Sam: os dedos eram como um torno; lenta e inexoravelmente ele puxou a mão para baixo e para a frente, até que com um grito de dor Sam soltou a espada, que caiu no chão; e todo o tempo a outra mão de Gollum estava apertando o pescoço de Sam.
Então Sam tentou seu último truque. Com toda a força desvencilhou-se e firmou bem os pés; então, de repente, dobrou as pernas contra o chão e com toda a força que tinha jogou-se para trás.
Sem esperar nem mesmo esse simples truque de Sam, Gollum desequilibrou-se e foi ao chão com Sam em cima dele, recebendo o peso do robusto hobbit em seu estômago.
Soltou um chiado agudo, e por um segundo a mão soltou a garganta de Sam; mas seus dedos ainda agarravam a mão da espada. Sam se jogou para a frente e para o lado e ficou de pé, e então rapidamente rodopiou à direita, em torno do pulso que Gollum segurava. Pegando o cajado com a mão esquerda, Sam o ergueu e o fez descer assobiando e estalando sobre o braço esticado de Gollum, logo abaixo do cotovelo.
Com um grito Gollum soltou o braço de Sam, que então fez seu serviço; sem perder tempo mudando o cajado da mão esquerda para a direita, deu um outro golpe forte.
Rápido como uma cobra, Gollum deslizou para o lado, e o golpe destinado à cabeça atingiu-o nas costas. O cajado rachou e se partiu.
Isso foi o suficiente para ele. Agarrar por trás era um velho jogo seu, no qual ele raramente falhava. Mas dessa vez, iludido pelo ódio, cometera o erro de falar e se gabar antes de ter as duas mãos sobre o pescoço de sua vitima. Tudo dera errado com seu belo plano, desde que aquela luz horrível tinha tão inesperadamente aparecido na escuridão.
Agora estava cara a cara com um inimigo furioso, quase do seu tamanho.
Essa luta não era para ele. Sam pegou a espada do chão e a ergueu. Gollum soltou um grito agudo, pulou para o lado e, ficando de quatro, fugiu num grande pulo, como uma rã. Antes que Sam pudesse agarrá-lo, já estava longe, correndo numa velocidade assustadora na direção do túnel.
Com a espada na mão, Sam correu atrás dele. Naquele momento se esquecera de tudo a não ser da louca fúria em sua mente e do desejo de matar Gollum. Mas, antes que pudesse alcançá-lo, Gollum se fora. Então, quando o buraco escuro apareceu-lhe à frente e o fedor veio em sua direção, como o explodir de um trovão o pensamento de Frodo e do monstro abateu-se sobre a mente de Sam. Deu um giro e correu alucinadamente pela trilha, chamando e chamando o nome de seu mestre. Era tarde demais. Até ali, o plano de Gollum dera certo.
AS ESCOLHAS DE MESTRE SAMWISE
Frodo jazia no chão com o rosto para cima e aquela criatura monstruosa se debruçava sobre ele, tão concentrada em sua vítima que não se deu conta de Sam e de seus gritos até que ele estivesse bem próximo. Quando Sam veio correndo na direção deles, viu que Frodo já estava preso por cordas passadas em torno de seu corpo, dos tornozelos até os ombros, e Laracna, com suas grandes patas dianteiras, começava a erguê-lo e arrastá-lo dali.
Perto de Frodo jazia, luzindo no chão, a espada élfica, no local onde caíra inútil de sua mão. Sam não parou para pensar no que se deveria fazer, se estava sendo corajoso ou leal, ou se estava possesso de raiva. Deu um salto à frente e gritou, agarrando a espada de seu mestre com a mão esquerda.
Então avançou. Nunca se vira um ataque tão violento no mundo selvagem dos animais, no qual uma pequena criatura, armada apenas com minúsculos dentes, é capaz de saltar sobre uma torre de chifres e carapaça que pisa sobre seu companheiro caído.
Perturbada, como se tivesse sido despertada de algum sonho de volúpia pelo pequeno grito do hobbit, lentamente voltou a malícia apavorante de seu olhar na direção dele. Mas quase antes de ela perceber que avançava sobre ela uma fúria maior do que qualquer outra provada em anos incontáveis, a espada brilhante golpeou sua pata e decepou a garra. Sam saltou para dentro dos arcos de suas pernas, e com um rápido impulso de sua outra mão desferiu um golpe contra o aglomerado de olhos na cabeça abaixada. Um grande olho escureceu.
Agora a infeliz criatura estava bem debaixo dela, no momento longe do alcance de seu ferrão e suas garras. Sua vasta barriga estava sobre Sam com sua luz pútrida, e o mau cheiro que vinha dela quase o derrubou. Mas ainda lhe restava fúria para mais um golpe, e antes que ela pudesse cair com o corpo sobre ele, sufocando-o com toda a sua pequena coragem atrevida, ele, num esforço desesperado, rasgou-lhe um talho no corpo com a reluzente espada élfica.
Mas Laracna não era como os dragões, e não tinha nenhum outro ponto frágil a não ser os olhos. Calombosa, esburacada e corrompida era a sua carapaça antiga como a eternidade, mas sua espessura era sempre alimentada de dentro para fora, formando camada sobre camada de excrescência maligna. A lâmina fez um talho horroroso, mas aquelas dobras hediondas não podiam ser perfuradas pela força humana, nem mesmo se elfos ou anões forjassem o aço, nem se a mão de Beren ou de Túrin o brandissem. Ela recuou quando golpeada, e então ergueu a enorme bolsa de sua barriga bem acima da cabeça de Sam. O veneno espumava e borbulhava do ferimento. Abrindo agora as pernas, ela fez seu enorme peso cair sobre ele outra vez. Cedo demais.
Pois Sam ainda estava de pé e, deixando cair sua própria espada, segurou com as duas mãos a espada élfica com a ponta para cima, afastando aquele teto horrível; e assim Laracna, com o impulso de sua própria disposição maligna, num esforço maior que o da mão de qualquer guerreiro, jogou-se sobre um cravo cruel. A espada foi penetrando cada vez mais fundo, enquanto Sam era lentamente prensado contra o chão.
Laracna jamais conhecera tal aflição, nem sonhara conhecer, em todo o seu vasto mundo de maldades. Nem o soldado mais valente da antiga Gondor, nem o orc mais selvagem preso numa armadilha, jamais lhe tinham resistido daquela maneira, ou enfiado uma lâmina em sua amada carne. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Erguendo-se de novo, num repelão violento devido à dor, encolheu sob o corpo as pernas contorcidas e pulou para trás num salto convulsivo.
Sam caíra de joelhos ao lado da cabeça de Frodo, os sentidos confusos devido ao terrível fedor, as duas mãos ainda agarrando o punho da espada. Apesar da névoa diante de seus olhos, ele percebia vagamente o rosto de Frodo, e tenazmente lutava para se controlar e se libertar do desfalecimento que o ameaçava. Lentamente ergueu a cabeça e a viu, apenas a alguns passos de distância, fitando-o, a boca emporcalhada por um cuspe venenoso, e um líquido esverdeado escorrendo de seu olho ferido. Estava agachada, com a barriga trêmula estatelada sobre o chão, os grandes arcos das pernas tremendo, enquanto reunia forças para um outro salto — desta vez para esmagar e ferroar até a morte: nada de pequenas picadas venenosas para acalmar a luta de sua comida; desta vez para matar e depois estraçalhar.
No momento em que o próprio Sam se agachava, olhando para ela, enxergando sua morte naqueles olhos, um pensamento lhe ocorreu, como se alguma voz remota lhe tivesse falado, e ele tateou o peito com a mão esquerda e encontrou o que procurava: frio, duro e sólido pareceu-lhe ao tato, naquele mundo fantasmagórico de horror, o Frasco de Galadriel.
— Galadriel! — disse ele numa voz sumida, e então ouviu vozes distantes mas nítidas: o clamor dos elfos andando sob as estrelas nas amadas sombras do Condado, e a música dos elfos como lhe chegara em sonhos no Salão de Fogo da casa de Elrond.
Então sua língua se soltou e sua voz gritou numa língua desconhecida:
Gilthoniel! A Elbereth!
A Elbereth Gilthoniel
o menel palan-diriel,
le nallon si di’nguruthos!
A tiro nin, Fanuilos!
Com isso levantou-se cambaleando e outra vez era Samwise, o hobbit, filho de Hamfast.
— Agora venha, sua nojenta! — gritou ele. — Você machucou meu mestre, sua bruta, e vai pagar por isso. Nós vamos seguir em frente, mas primeiro vamos acertar as contas com você. Venha, e experimente isso de novo!
Como se o espírito indomável do hobbit tivesse colocado sua força em ação, o cristal se acendeu de repente como uma tocha branca em sua mão. Queimava como uma estrela que, saltando do firmamento, corta o ar escuro com uma luz intolerável. Nenhum terror igual vindo do céu jamais queimara no rosto de Laracna antes. Os raios daquela luz penetraram sua cabeça machucada e a cortaram com uma dor insuportável, e a terrível infecção de luz se espalhou de um olho para outro. Ela caiu para trás, golpeando o ar com as patas dianteiras, sua visão fulminada por relâmpagos internos, sua mente agonizando.
Então, virando sua cabeça mutilada, rolou no chão e começou a se arrastar, garra após garra, na direção da abertura no penhasco escuro lá atrás.
Sam avançou. Cambaleava como um bêbado, mas avançou. E Laracna finalmente recuou, encolhida e derrotada, tentando aos trancos e barrancos correr dele. Atingiu o buraco e, passando apertada, deixou um rastro de muco verde-amarelado e esgueirou-se para dentro, no momento em que Sam desfechava um último golpe em suas pernas rastejantes. Depois ele caiu no chão.
Laracna se fora, e se porventura permaneceu por muito tempo em sua toca, cuidando de sua malícia e miséria, e em lentos anos de escuridão se curou de dentro para fora, reconstruindo o aglomerado de olhos, até poder, com fome mortal, armar mais uma vez suas horripilantes ciladas nas fendas das Montanhas da Sombra, esta história não conta.
Sam foi deixado em paz. Exausto, enquanto a noite da Terra Inominada caía sobre o lugar da batalha, arrastou-se de volta ao seu mestre.
— Mestre, querido mestre — disse ele, mas Frodo não dizia nada.
Assim que ele saíra correndo, ávido, alegre por se ver livre, Laracna se aproximara por trás, com uma velocidade espantosa, e com um golpe certeiro lhe ferroara o pescoço.
Agora ele jazia pálido, imóvel e sem nada ouvir.
— Mestre, querido mestre! — disse Sam, e esperou durante um longo silêncio, escutando em vão.
Então, o mais rápido possível, cortou as cordas que o prendiam e pousou a cabeça sobre o peito de Frodo e aproximou-a de sua boca, mas não percebeu qualquer sopro de vida, nem sentiu a mais leve palpitação em seu coração. Várias vezes esfregou as mãos do mestre, e tocou sua testa, mas seu corpo estava todo frio.
— Frodo, Sr. Frodo! — chamou ele. — Não me deixe aqui sozinho! É o seu Sam que está chamando. Não vá para onde eu não possa segui-lo! Acorde, Sr. Frodo! Oh, acorde, Frodo, meu querido, meu querido. Acorde!
Então uma onda de ódio tomou conta dele, que se pôs a correr em volta do corpo de seu mestre, furioso, apunhalando o ar, golpeando as pedras e gritando desafios.
De repente voltou a si, e curvando-se olhou para o rosto de Frodo, pálido, estendido sobre o chão no crepúsculo. E subitamente percebeu que estava no quadro que lhe fora revelado no espelho de Galadriel, em Lórien: Frodo com o rosto pálido, jazendo num sono profundo sob um grande penhasco escuro. Ou essa foi a impressão que tivera na ocasião.
— Está morto! — disse ele. — Não está dormindo, está morto! — E quando disse isso, como se as palavras tivessem colocado o veneno em ação outra vez, teve a impressão de que o rosto de Frodo ficou ainda mais lívido.
Então um desespero negro se abateu sobre ele, e Sam se curvou até o chão, cobrindo a cabeça com o capuz cinzento; a noite se apoderou de seu coração, e ele perdeu os sentidos.
Quando finalmente a escuridão passou, Sam ergueu os olhos e viu que as sombras o envolviam, mas por quantos minutos ou horas o mundo continuara se arrastando ele não sabia dizer. Estava ainda no mesmo lugar, e ainda seu mestre jazia morto ao seu lado. As montanhas não tinham esboroado, e nem a terra caído em ruína.
— Que devo fazer, que devo fazer? — disse ele. — Será que o acompanhei por todo esse longo caminho para nada? — Então lembrou-se de sua própria voz dizendo palavras que na ocasião lhe pareceram sem sentido, no início de sua jornada: Tenho algo a fazer antes do fim. Devo passar por isso, senhor, se o senhor me entende.
— Mas o que posso fazer? De forma alguma deixar o Sr. Frodo morto, insepulto no topo das montanhas e ir para casa. Ou será que devo prosseguir? Prosseguir? — repetiu ele, e por um momento a dúvida e o medo o agitaram. — Prosseguir? É isso que devo fazer? E deixá-lo?
Então finalmente começou a chorar; e aproximando-se de Frodo compôs-lhe o corpo, juntando as mãos frias sobre o peito, e embrulhou-o com a capa; colocou a própria espada de um lado, e o cajado oferecido por Faramir do outro.
— Se devo prosseguir — disse ele —, então preciso levar sua espada, com a sua permissão, Sr. Frodo, mas vou colocar esta ao seu lado, exatamente como estava ao lado do velho rei no túmulo, e o senhor tem o seu belo casaco de mithril que o Sr. Bilbo lhe deu. E sua estrela de cristal, Sr. Frodo, o senhor a emprestou a mim e vou precisar dela, pois agora sempre estarei no escuro. Não sou digno dela, e a Senhora a deu ao senhor, mas talvez ela entendesse. O senhor entende, Sr. Frodo? Preciso prosseguir.
Mas não conseguia partir, ainda não. Ajoelhou-se e segurou a mão de Frodo, sem conseguir soltá-la. O tempo passou e ele continuava ali ajoelhado, segurando a mão de seu mestre, e travando um debate em seu coração.
Agora tentava encontrar forças para se separar e partir numa jornada solitária — de vingança. Se conseguisse ir, seu ódio o carregaria em todas as estradas do mundo, procurando, até que finalmente o encontrasse: Gollum. Então Gollum morreria encurralado. Mas não era essa a sua tarefa. Não valeria a pena deixar seu mestre por esse motivo. Isso não o traria de volta. Nada poderia trazê-lo de volta. Seria melhor que os dois tivessem morrido juntos. E essa também seria uma viagem solitária.
Fixou a ponta brilhante da espada. Pensou nos lugares pelos quais passara e onde havia um precipício negro, onde poderia cair no escuro, dentro do nada.
Por ali não havia como escapar. Isso seria o mesmo que não fazer nada, nem mesmo chorar. Não era essa a sua tarefa.
— Que devo fazer então? — gritou ele de novo, e agora parecia saber perfeitamente a dura resposta: passar por isso. Outra jornada solitária, e a pior de todas.
— O quê? Eu, sozinho, ir até a Fenda da Perdição e tudo o mais? — Ainda vacilava um pouco, mas a resolução crescia dentro dele. — O quê? Eu tirar o Anel dele? O Conselho o deu a ele.
Mas a resposta veio imediatamente: — E o Conselho lhe deu companheiros, para que a missão não fracassasse. E você é o último membro de toda a Comitiva. A missão não deve fracassar.
— Gostaria de não ser o último — gemeu Sam. — Gostaria que o velho Gandalf estivesse aqui, ou alguém. Por que fui deixado sozinho para tomar uma decisão? Com certeza fracassarei. E não devo pegar o Anel, tomando a dianteira.
— Mas não foi você quem tomou a dianteira, você foi colocado nessa posição. E quanto a ser a pessoa certa e adequada, bem, o Sr. Frodo também não era, como se pode dizer, nem o Sr. Bilbo. Eles não se elegeram.
— Está bem, devo decidir sozinho. Vou decidir. Mas com certeza vou fracassar: isso seria absolutamente típico de Sam Gamgi.
— Deixe-me ver agora: se formos encontrados aqui, ou se o Sr. Frodo for encontrado, e a Coisa estiver com ele, bem, o Inimigo vai se apoderar dela. E isso será o fim de todos nós, de Lórien, de Valfenda e do Condado, e de tudo. E não há tempo a perder, ou de qualquer jeito será o fim. A guerra começou, e é mais que provável que as coisas já estejam indo bem para o Inimigo. Não há chance de voltar com a Coisa para obter conselhos ou permissão. Só há duas escolhas: ficar sentado aqui até que eles venham e me derrubem morto sobre o corpo de meu mestre, e A levem; ou pegá-La e partir. — Respirou fundo. — Então é pegá-La!
Abaixou-se. Com toda a delicadeza abriu o fecho no pescoço e deslizou a mão dentro da túnica de Frodo; então, levantando a cabeça com a outra mão, beijou-lhe a fronte, e suavemente passou a corrente por cima dela. E depois a cabeça voltou a jazer em repouso. Nenhuma alteração se manifestou no rosto imóvel, e por isso, mais que por todos os outros sinais, Sam se convenceu finalmente de que Frodo estava morto e abandonara a Demanda.
— Adeus, mestre, meu querido! — murmurou ele. — Desculpe O seu Sam. Ele voltará a este lugar quando o serviço estiver terminado — se conseguir terminá-lo. E então não vai deixá-lo novamente. Descanse em paz até eu voltar; e que nenhuma criatura suja se aproxime do senhor! E se a Senhora pudesse me ouvir e me conceder um desejo, eu gostaria de voltar e encontrá-lo de novo. Adeus!
Então curvou o próprio pescoço, e colocou nele a corrente, e de imediato sua cabeça foi puxada para o chão pelo peso do Anel, como se uma grande pedra tivesse sido pendurada em seu pescoço. Mas lentamente, como se o peso ficasse menor, ou como se uma nova força crescesse nele, Sam levantou a cabeça, e com um grande esforço ficou de pé e percebeu que conseguiria caminhar e carregar seu fardo. E por um momento ergueu o Frasco e olhou seu mestre, e a luz agora brilhava suavemente, com a radiação fraca da estrela vespertina no verão, e naquela luz o rosto de Frodo ficou com uma tonalidade bonita de novo, pálido mas belo, de uma beleza élfica, como o de alguém que por muito tempo andou pelas sombras. E com o consolo amargo dessa última visão Sam virou-se, escondeu a luz e foi cambaleando ao encontro da escuridão crescente.
Não precisou ir muito longe. O túnel ficara para trás a certa distância a Fenda estava a algumas centenas de metros à frente, ou menos.
A trilha estava visível no crepúsculo, um sulco profundo cavado pela passagem de usuários durante séculos, agora subindo suavemente numa vala comprida, com penhascos dos dois lados. A vala estreitou-se rapidamente. Logo Sam atingiu um longo lance de degraus largos e rasos. Agora a torre dos orcs estava bem acima dele, franzindo— Se negra, e nela o olho vermelho ardia. Agora Sam estava oculto na sombra escura abaixo dele.
Finalmente estava chegando ao topo da escada e à Fenda.
— Tomei a decisão — ficava ele dizendo a si mesmo. Mas não tinha tomado. Embora tivesse feito o máximo para resolver a questão, o que estava fazendo era totalmente contra a sua tendência natural — Será que fracassei? — murmurou ele. — O que deveria ter feito?
Conforme as encostas íngremes da Fenda se fechavam em torno dele, antes que realmente atingisse o topo, antes que finalmente olhasse a trilha que descia para a Terra inominada, Sam se voltou. Por um momento, imóvel numa dúvida insuportável, olhou para trás. Ainda conseguia ver, como uma pequena mancha na escuridão crescente, a boca do túnel, e teve a impressão de vislumbrar ou adivinhar onde Frodo jazia. Imaginou ter visto algo tremeluzindo no chão lá embaixo, ou talvez fosse alguma peça que lhe pregavam suas lágrimas, ao olhar daquela altura de pedra onde toda a sua vida se arruinara.
— Se ao menos me fosse concedido meu desejo, meu único desejo — suspirou ele —, o de voltar e encontrá-lo. — Depois finalmente virou-se para a estrada à frente e deu alguns passos: os mais pesados e mais relutantes que jamais dera.
Apenas alguns passos, e agora alguns outros e ele já estaria descendo para jamais ver aquele lugar alto outra vez. E então, de repente, ouviu gritos e vozes.
Ficou paralisado como uma pedra. Vozes de orcs. Estavam atrás e adiante dele.
Um ruido de pés batendo no chão e gritos roucos: orcs estavam subindo para a Fenda, vindo do lado oposto, de alguma entrada para a torre, talvez. Pés avançando e gritos atrás.
Sam girou o corpo. Viu pequenas luzes vermelhas, tochas, piscando lá embaixo conforme saíam do túnel. Finalmente a caçada começara. O olho vermelho da torre não estivera cego. Sam fora apanhado.
Agora o faiscar das tochas que se aproximavam e o tinido do aço à frente estavam muito próximos. Em um minuto atingiriam o topo e cairiam sobre ele. Sam demorara muito para tomar a decisão, e agora não adiantava mais nada.
Como poderia escapar, ou salvar-se, ou salvar o Anel? O Anel. Não se deu conta de qualquer pensamento ou decisão. Simplesmente se viu tirando a corrente e pegando o Anel na mão. O chefe do grupo de orcs apareceu na Fenda bem diante dele.
Então Sam colocou o Anel no dedo.
O mundo mudou, e um único momento de tempo se encheu de uma hora de ponderação. Imediatamente Sam percebeu que sua audição se aguçara, enquanto a visão ficara obscurecida, mas de modo diferente do obscurecimento ocorrido na toca de Laracna. Agora todas as coisas ao seu redor não estavam escuras, mas difusas; enquanto ele mesmo estava lá, num mundo cinzento e enevoado, sozinho, como uma pequena rocha sólida e negra, e o Anel, pesando em sua mão esquerda. Era como um círculo de ouro escaldante. Sam não se sentia invisível de forma alguma, mas terrível e singularmente visível; e sabia que em algum lugar um Olho o procurava.
Ouviu o estalido de pedras, o murmúrio de águas distantes no Vale Morgul, e muito abaixo, sob a rocha, a miséria borbulhante de Laracna, tateando, perdida em alguma passagem sem saída; ouviu vozes nos calabouços da torre, e os gritos dos orcs que saiam do túnel; e ensurdecedores, rugindo em seus ouvidos, a batida dos pés e o clamor dilacerante dos orcs diante dele. Encolheu-se contra o penhasco. Mas eles avançavam como uma tropa de fantasmas, figuras cinzentas distorcidas numa névoa, apenas sonhos de medo com chamas pálidas nas mãos. E passaram por ele. Sam se agachou, tentando se esgueirar para dentro de alguma fissura e se esconder.
Ficou escutando. Os orcs do túnel e os outros descendo em marcha tinham avistado uns aos outros, e agora os dois grupos corriam e gritavam. Sam ouvia ambos claramente, e entendia o que estavam dizendo. Talvez o Anel proporcionasse o entendimento de línguas, ou simplesmente o entendimento, especialmente dos servidores de Sauron, seu criador, de modo que se Sam prestava atenção conseguia entender e traduzir o pensamento para si mesmo. Com certeza o poder do Anel crescera muito, à medida que se aproximara dos lugares onde fora forjado; mas uma coisa ele não conferia, e esta coisa era a coragem. No momento Sam ainda só pensava em se esconder, em ficar agachado até que tudo se aquietasse de novo; e escutava com atenção. Não conseguia saber a que distância estavam as vozes, as palavras pareciam estar quase em seus ouvidos.
— Olá! Gorbag! Que está fazendo aqui em cima? Já guerreou bastante por hoje?
— Ordens, seu brutamontes. E o que você está fazendo, Shagrat? Cansado de ficar espreitando lá em cima? Pensando em descer e lutar?
— Ordens para você. Estou no comando desta passagem agora.
— Então fale com respeito. Que tem a relatar?
— Nada.
— Hai! Hai! Yoi! — Um grito interrompeu a troca de palavras dos líderes. Os orcs que estavam mais embaixo tinham avistado algo de repente. Começaram a correr. Os outros fizeram o mesmo.
— Hai! Olá! Alguma coisa aqui! Bem na estrada. Um espião, um espião!
— Ouviu-se uma algazarra de buzinas ríspidas e uma babel de vozes ladrando.
Com um golpe pavoroso Sam despertou de seu estado acovardado.
Avistaram seu mestre. O que iriam fazer? Ouvira sobre os orcs histórias de congelar o sangue.
Não poderia suportar aquilo. Saltou de pé. Afastou a Demanda e todas as decisões de sua mente, juntamente com o medo e a dúvida. Sabia agora onde era e onde sempre fora o seu lugar: ao lado de seu mestre, embora não soubesse ao certo o que poderia fazer lá. Desceu correndo os degraus e foi pela trilha na direção de Frodo.
“Quantos são?”, pensou ele. “No mínimo trinta ou quarenta descendo da torre, e muitos mais que estão vindo lá de baixo, suponho eu.
Quantos poderei matar antes que me peguem? Eles vão ver a chama da espada logo que eu a puxar, e vão me pegar mais cedo ou mais tarde. Pergunto-me se algum dia uma canção vai mencionar este fato: Como Samwise caiu na Passagem Alta e construiu uma parede de corpos em volta de seu mestre. Não, canção não. Claro que não, pois o Anel será encontrado, e não haverá mais canções. Não posso evitar. Meu lugar é ao lado do Sr. Frodo. Eles precisam entender isso — Elrond, o Conselho, e os grandes Senhores e Senhoras, com toda a sua sabedoria. Os planos que fizeram fracassaram. Não posso ser o Portador do Anel. Não sem o Sr. Frodo.”
Mas os orcs agora estavam fora do alcance de sua visão obscurecida. Sam não tivera tempo para pensar em si mesmo, mas agora percebia que estava cansado, cansado à beira da exaustão: suas pernas não o levavam aonde desejava.
Estava lento demais. Parecia que a trilha tinha milhas de comprimento.
Aonde tinham ido todos naquela névoa?
Lá estavam eles de novo! Ainda a uma boa distância. Um aglomerado de figuras em volta de alguma coisa que jazia no solo; alguns pareciam estar se atirando de um lado para o outro, curvados como cães sobre um rastro. Sam tentou se sacudir.
— Vamos, Sam! — disse ele — ou você chegará tarde demais outra vez.
— Soltou a espada em seu cinto. Num minuto iria puxá-la, e então...
Ouviu-se um clamor alucinado, risos e buzinas, enquanto algo era erguido do chão.
— Ya hoi! Ya harri hoi! Para cima! Para cima! Então uma voz gritou: — Agora vamos! Pelo caminho rápido. De volta para o Portão de Baixo! Tudo indica que esta noite ela não vai nos incomodar. — O bando de vultos de orcs começou a se mexer. Quatro ao centro carregavam um corpo por sobre os ombros. — Ya hoi!
Tinham levado o corpo de Frodo. Tinham-se ido. Sam não conseguia alcançá-los.
Mesmo assim se esforçava. Os orcs atingiram o túnel e estavam entrando. Os que levavam o fardo foram primeiro, e atrás deles havia muita luta e empurrão. Sam se aproximou. Puxou a espada, uma faísca azul na sua mão trêmula, mas eles nada viram.
No momento em que chegou ofegante, o último deles desapareceu dentro do buraco negro.
Por um momento parou, arquejante, com a mão no peito. Então passou a manga da camisa pelo rosto, limpando a sujeira, o suor e as lágrimas. — Malditos imundos! — disse ele, e saltou atrás deles para dentro da escuridão.
O interior do túnel já não lhe parecia tão escuro; era mais como se ele tivesse saído de uma névoa tênue para entrar num nevoeiro mais espesso. O cansaço aumentava, mas sua vontade se consolidava cada vez mais. Teve a impressão de ver a luz de tochas um pouco à frente, mas por mais que tentasse não conseguia alcançá-las. Os orcs andam rápido em túneis, e este túnel eles conheciam bem; apesar de Laracna, eles frequentemente eram forçados a usá-lo como o caminho mais curto que vinha da Cidade Morta por sobre as montanhas. Em que tempo distante tinham sido feitos o túnel principal e a grande caverna redonda, a moradia de Laracna desde eras passadas, eles não sabiam; mas os próprios orcs tinham cavado muitos caminhos secundários ao redor do túnel dos dois lados, para escapar da toca em suas longas idas e vindas a mando de seus mestres.
Esta noite eles não tinham a intenção de descer muito, mas se apressavam para encontrar uma passagem lateral que os conduzisse de volta à torre de vigia no penhasco. Muitos deles estavam contentes, deliciados com o que tinham visto e encontrado, e enquanto corriam tagarelavam e resmungavam á maneira de sua espécie. Sam ouvia o ruido de suas vozes roucas, graves e ríspidas no ar parado, e conseguia distinguir duas vozes em meio a todas as outras: eram mais altas, e estavam mais próximas. Os capitães dos dois grupos pareciam fechar a retaguarda, discutindo enquanto avançavam.
— Pode fazer sua gentalha parar com tanta algazarra, Shagrat? — resmungou um deles. — Não queremos Laracna em cima de nós.
— Que é isso, Gorbag! Os seus estão fazendo mais da metade do barulho — disse o outro. — Mas deixe os rapazes brincarem! Não precisamos nos preocupar com Laracna por algum tempo, eu acho. Parece que ela sentou num prego, e não vamos chorar por causa disso. Você viu uma nojeira por todo o caminho que vai até aquela maldita fenda onde ela mora? Já tentamos interromper a algazarra mais de cem vezes e não conseguimos nunca.
Então deixe que riam. E finalmente tivemos um pouco de sorte: conseguimos alguma coisa que Lugbúrz deseja.
— Lugbúrz deseja, é? E o que você acha que é isso? Tive a impressão de que é alguma coisa élfica, mas de tamanho menor. Qual é o perigo numa coisa dessas?
— Só vou saber quando der uma olhada.
— Oho! Então eles não lhe disseram o que esperar? Eles não nos dizem tudo o que sabem, dizem? Nem metade. Mas podem cometer erros, até mesmo os Chefões podem.
— Pssiu. Gorbag! — Shagrat diminuiu o tom da voz, de forma que mesmo com sua audição estranhamente aguçada Sam podia apenas ter uma idéia do que estava sendo dito.
— Eles podem, mas tem olhos e ouvidos por toda a parte; alguns entre meu grupo, muito provavelmente. Mas não há dúvidas sobre isso, eles estão preocupados com alguma coisa.
Os nazgúl lá embaixo estão, pelo que você me contou; e Lugbúrz também está. Alguma coisa quase escapou.
— Quase, você diz! — disse Gorbag.
— Está certo — disse Shagrat —, mas vamos falar sobre isso mais tarde. Espere até chegarmos ao Caminho de Baixo. Lá há um lugar onde podemos conversar um pouco, enquanto os rapazes continuam avançando.
Logo depois Sam viu as tochas desaparecerem. Então ouviu-se um ribombar e, no momento em que ele corria, um baque. Pelo que pôde adivinhar, os orcs tinham virado e entrado exatamente pela abertura pela qual Frodo e ele tentaram passar e que acharam bloqueada. Ainda estava bloqueada.
Parecia haver uma grande pedra no caminho, mas os orcs de alguma forma a tinham transposto, pois Sam ouvia suas vozes do outro lado.
Estavam ainda correndo, afundando cada vez mais na montanha, de volta para a torre. Sam ficou desesperado. Eles estavam levando embora o corpo de seu mestre para alguma finalidade maligna e ele não conseguia segui-los. Forçou a pedra e a empurrou, arremeteu contra ela, mas a rocha não cedeu. Então, não muito distantes lá dentro, ou pelo menos foi essa a impressão que teve, Sam ouviu as vozes dos dois capitães conversando de novo. Parou para escutar um pouco, talvez esperando descobrir alguma coisa útil.
Talvez Gorbag, que parecia pertencer a Minas Morgul, saísse, e então ele entraria sorrateiramente.
— Não, eu não sei — disse a voz de Gorbag. — As notícias chegam voando mais rápido do que qualquer pássaro, geralmente. Mas não quero saber como isso acontece. É mais seguro não perguntar. Grr! Aqueles nazgúl me dão arrepios. E tiram a pele de seu corpo assim que olham para você, e o deixam morrendo de frio no escuro do outro lado.
Mas Ele gosta deles; são seus favoritos atualmente, então não adianta reclamar. Eu lhe digo, não é brincadeira trabalhar lá embaixo na cidade.
— Você deveria tentar ficar aqui em cima tendo Laracna por companhia — disse Shagrat.
— Eu gostaria de tentar em algum lugar onde não haja nenhum deles. Mas a guerra já começou, e quando estiver terminada pode ser que as coisas fiquem mais fáceis.
— Está indo bem, pelo que dizem.
— Já era de esperar isso deles — resmungou Gorbag. — Veremos. Mas de qualquer forma, se tudo for bem, haverá muito mais espaço. Que você me diz? — se tivermos uma oportunidade, você e eu vamos fugir para algum outro lugar, onde nos estabeleceremos por conta própria com alguns rapazes confiáveis, nalgum lugar onde haja coisas boas e fáceis de saquear, e sem chefes.
— Ah! — disse Shagrat. — Como nos velhos tempos.
— Sim — disse Gorbag. — Mas não conte com isso. Minha cabeça não está muito tranquila. Como eu disse, os Grandes Chefes, bem — sua voz se transformou quase num sussurro —, bem, mesmo os Maiorais podem cometer erros. Alguma coisa quase escapou, diz você. E eu digo, alguma coisa realmente escapou. E temos de ficar de olhos abertos. E sempre os pobres uruks devem consertar a situação quando alguém escapa, e ninguém agradece. Mas não esqueça: os inimigos não nos amam mais do que amam a Ele, e se o derrotarem estaremos acabados também. Mas olhe aqui: quando é que mandaram você sair?
— Mais ou menos uma hora atrás, um pouco antes de você nos ver. Chegou uma mensagem: Nazgúl preocupados. Suspeita de espiões nas Escadas. Vigilância redobrada.
Patrulha deve dirigir-se ao topo das Escadas. Vim imediatamente.
— Mau negócio — disse Gorbag. — Olhe aqui... nossos Vigilantes Silenciosos já estavam preocupados há mais de dois dias, isso eu sei. Mas minha patrulha só foi receber ordens para sair no dia seguinte, e nenhuma mensagem foi enviada a Lugbúrz: isso devido ao Grande Sinal que subiu, e o Nazgúl Supremo que saiu para a guerra, e tudo aquilo. E conseguiram que Lugbúrz prestasse atenção por um bom tempo, pelo que me disseram.
— O Olho estava ocupado em algum outro lugar, julgo eu — disse Shagrat. — Grandes coisas acontecendo lá no oeste, pelo que dizem.
— Acho que sim — rosnou Gorbag. — Mas enquanto isso os inimigos subiram as
Escadas. E o que você estava fazendo? Seu dever é ficar vigiando, não é, com ou sem ordens especiais? O que está pretendendo?
— Basta! Não tente me ensinar meu serviço. Estávamos muito bem acordados.
Sabíamos que havia coisas muito estranhas acontecendo!
— Muito estranhas!
— Sim, muito estranhas: luzes e gritos e tudo mais. Mas Laracna estava em ação.
Meus rapazes a viram com o Safado dela.
— O Safado dela? Que é isso?
— Você deveria ter visto: um sujeitinho magro e preto; parecido com uma aranha, ou talvez mais parecido com uma rã morta de fome. Já esteve aqui antes. Veio de Lugbúrz da primeira vez, anos atrás, e recebemos ordens de Lá de Cima para deixá-lo passar. Já subiu a escada uma ou duas vezes desde então, mas nós o deixamos em paz. Parece que tem algum entendimento com a Nobre Senhora. Suponho que não seja bom de comer: ela não se importaria com ordens de Lá de Cima. Mas que bela guarda você tem no vale: ele esteve aqui em cima um dia antes de toda essa balbúrdia. Nós o vimos no inicio da noite passada. De qualquer forma, meus rapazes reportaram que a Nobre Senhora estava se divertindo um pouco, e essa noticia me pareceu satisfatória, até que a mensagem chegou.
Pensei que o Safado lhe trouxera um brinquedo, ou que vocês provavelmente lhe mandariam um presente, um prisioneiro de guerra ou qualquer coisa do tipo. Não interfiro nas brincadeiras dela. Nada passa por Laracna quando ela está caçando.
— Nada, você diz! Não usou seus olhos lá atrás? Eu lhe digo, minha cabeça não está muito tranquila. O que quer que seja que subiu as Escadas, conseguiu passar. Cortou a teia dela e conseguiu se livrar do buraco. Isso é algo a se considerar!
— Ah, bem, mas ela o pegou no fim, não pegou?
— Pegou? Pegou quem? Esse sujeitinho? Mas se era o único, então ela o teria levado para sua despensa há muito tempo, onde ele estaria agora. E se Lugbúrz o quisesse, você teria de ir e pegá-lo. Bom para você. Mas havia mais de um.
Nesse ponto, Sam começou a escutar com mais atenção, pressionando o ouvido contra a rocha.
— Quem cortou as cordas que ela passou em volta dele, Shagrat? O mesmo que cortou a teia. Você não percebeu isso? E quem enterrou um prego na Nobre Senhora? A mesma pessoa, julgo eu. E onde está ele? Onde está ele, Shagrat?
Shagrat não respondeu.
— É melhor pôr os miolos para funcionar, se é que você tem algum. Isso não é brincadeira. Ninguém, ninguém jamais enterrou um prego em Laracna, como você deveria muito bem saber. Não há o que lamentar sobre o fato, mas pense — há alguém solto nas redondezas que é mais perigoso que qualquer outro maldito rebelde que jamais andou por aí desde os maus e velhos tempos, desde o Grande Cerco. Alguma coisa realmente escapou.
— O que será, então? — resmungou Shagrat.
— Ao que tudo indica, Capitão Shagrat, eu diria que há um grande guerreiro à solta, mais provavelmente um elfo, de qualquer forma com uma espada élfica, além de um machado, talvez; e mais, está solto dentro das suas fronteiras, e você nunca pôs os olhos em cima dele. Muito estranho, realmente! — Gorbag cuspiu. Sam deu um sorriso sinistro ao ouvir tal descrição de si mesmo.
— Ah, bem, você está sempre vendo as coisas com pessimismo — disse Shagrat. —
Você pode interpretar os vestígios como quiser, mas pode haver outras formas de explicálos.
De qualquer forma, tenho vigias em todos os pontos, e vou cuidar de uma coisa de cada vez. Depois de dar uma olhada no sujeito que nós pegamos, então vou começar a me preocupar com outras coisas.
— Suponho que você não vai achar muita coisa naquele sujeitinho — disse Gorbag. — Pode ser que ele não tenha tido nada a ver com o verdadeiro malfeitor. O grande sujeito com a espada afiada parece não ter achado que ele valesse muito, de qualquer forma — simplesmente o largou lá: truque comum dos elfos.
— Veremos. Venha agora! Já conversamos bastante. Vamos dar uma olhada no prisioneiro!
— Que vai fazer com ele? Não se esqueça de que o vi primeiro. Se houver algum jogo, eu e meus rapazes devemos tomar parte nele.
— Calma, calma — resmungou Shagrat. — Tenho minhas ordens a cumprir. E desrespeitá-las custa mais do que a minha barriga, ou a sua.
Qualquer intruso encontrado pela guarda deve ser aprisionado na torre. O prisioneiro deve ser despido. Uma descrição completa de todos os ítens, roupa, arma, carta, anel ou adorno, deve ser enviada a Lugbúrz imediatamente, e somente a Lugbúrz. E o prisioneiro deve ser mantido a salvo e intacto, sob risco de morte para todos os membros da guarda, até que Ele mande alguém ou venha em pessoa. As ordens são bem claras, e é isso que vou fazer.
— Despido, é? — disse Gorbag. — Quer dizer, dentes, unhas, cabelo e tudo mais?
— Não, nada disso. Estou dizendo que ele se destina a Lugbúrz. E o querem a salvo e inteiro.
— Isso vai ser difícil — riu Gorbag. — A esta altura ele não passa de carniça. O que Lugbúrz fará com esse material eu não posso imaginar. Poderia muito bem acabar num caldeirão.
— Seu tolo — rosnou Shagrat. — Até agora você falou de modo muito inteligente, mas há muita coisa que não sabe, embora a maioria das outras pessoas saibam. Você irá para o caldeirão ou para Laracna, se não tomar cuidado. Carniça! Isso é tudo o que você sabe sobre a Nobre Senhora? Quando ela prende com cordas, está atrás de carne. Ela não come carne morta, nem chupa sangue frio. Esse sujeito não está morto!
Sam teve uma tontura e se agarrou na pedra. Sentiu-se como se todo o mundo escuro estivesse de cabeça para baixo. O choque foi tão grande que ele quase desmaiou mas, mesmo fazendo força para manter os sentidos, em suas entranhas ouviu o comentário: “Seu tolo, ele não está morto, e seu coração sabia disso. Não confie em sua cabeça, Samwise, que não é a sua melhor parte. O seu problema é que você nunca realmente teve esperanças. Agora, o que se deve fazer?” Por enquanto nada, exceto escorar-se na pedra imóvel e escutar, escutar as vozes vis dos orcs.
— Bobagem! — disse Shagrat. — Ela tem mais de um veneno. Quando está caçando, dá apenas uma leve ferroada no pescoço das vítimas, e elas ficam moles como filés de peixe, e faz então com eles o que ela gosta. Você se lembra do velho Ufthak? Nós o perdemos por dias. Então o encontramos num canto; estava pendurado, mas acordado e de olhos bem abertos. Como rimos! Ela havia se esquecido dele, talvez, mas não o tocamos — não convém se intrometer nas coisas d’Ela. Agora, esse nojentinho, ele vai acordar, daqui a algumas horas, e, além de sentir um pouco de enjôo por um tempo, vai ficar bem. Ou ficaria, se Lugbúrz o deixasse em paz. E, é claro, se não tivesse de tentar adivinhar onde está e o que aconteceu com ele.
— E o que vai acontecer com ele — riu Gorbag. — De qualquer forma podemos lhe contar algumas histórias, se não pudermos fazer mais nada. Não acho que já tenha estado na adorável Lugbúrz, então pode ser que ele goste de saber o que esperar. Isso vai ser mais divertido do que eu pensei. Vamos!
— Não vai haver diversão nenhuma, estou lhe dizendo — disse Shagrat.
— E é preciso mantê-lo a salvo, ou já estamos mortos.
— Está certo! Mas se eu fosse você, pegaria o grande que está solto, antes de enviar qualquer relatório a Lugbúrz. Não vai soar muito bem se você disser que pegou o gatinho e deixou o gatão escapar.
As vozes começaram a se afastar. Sam ouviu o som de passos indo embora. Estava se recuperando do choque, e agora era tomado por uma fúria alucinada.
— Fiz tudo errado! — gritou ele. — Sabia que faria! Agora eles o pegaram, os demônios! Os sujos! Nunca abandone seu mestre, nunca, nunca: essa era a lei que deveria ter seguido. E sabia disso em meu coração. Que me perdoem! Agora tenho de consegui-lo de volta. De alguma forma, de alguma forma!
Puxou a espada de novo e bateu na pedra com o cabo, mas só ouviu um ruido surdo. A espada, entretanto, brilhou tanto que ele conseguiu vagamente enxergar em sua luz. Para sua surpresa, notou que o grande bloco tinha o formato de uma porta pesada, com menos do dobro de sua altura. Em cima havia um espaço vazio e escuro, entre o topo e o arco baixo da abertura. Provavelmente a porta estava ali apenas para impedir a invasão de Laracna, e era fechada por dentro com algum trinco ou ferrolho fora do alcance de sua sagacidade. Com a força que lhe restava, Sam pulou e se agarrou na parte de cima, subiu e desceu do outro lado; depois correu alucinadamente, a espada reluzente na mão, contornando uma curva e subindo através de um túnel sinuoso.
A notícia de que seu mestre ainda estava vivo despertou-o para um último esforço além de qualquer noção de cansaço. Sam não conseguia ver nada à frente, pois esse novo corredor fazia curvas e ziguezagueava constantemente, mas ele tinha a impressão de estar alcançando os dois orcs: as vozes estavam se aproximando outra vez. Agora pareciam estar bem perto.
— É isso o que eu vou fazer — disse Shagrat num tom raivoso. — Colocá-lo lá em cima, no cômodo superior.
— Para quê? — resmungou Gorbag. — Você não tem nenhum cárcere aqui embaixo?
— Lá ele estará a salvo, estou lhe dizendo — respondeu Shagrat. — Percebe? Ele é precioso. Não confio em todos os meus rapazes, e em nenhum dos seus, nem mesmo em você, quando está louco por uma diversão. Ele vai para onde eu quiser, e aonde você não possa chegar, se não se comportar. Lá para cima, estou dizendo. Lá estará a salvo.
— É mesmo? — disse Sam. — Você está se esquecendo do grande guerreiro élfico que está à solta! — E com isso correu contornando a última esquina, apenas para descobrir que por algum truque do túnel, ou pela audição que o Anel lhe proporcionava, calculara mal a distância.
Os vultos dos dois orcs ainda estavam um pouco á frente. Agora conseguia vê-los, negros e agachados contra um clarão vermelho. O corredor finalmente ficara reto, subindo numa ladeira e no fim, escancaradas, viam-se as grandes portas duplas, que provavelmente conduziam a cômodos profundos bem embaixo do alto chifre da torre. Os orcs, carregando o seu fardo, já haviam entrado. Gorbag e Shagrat estavam se aproximando do portão.
Sam ouviu uma explosão de cantoria rude, clangores de cornetas e o ressoar de gongos, um clamor hediondo. Gorbag e Shagrat já estavam no limiar.
Sam gritou e brandiu Ferroada, mas sua voz fraca se afogou no tumulto. Ninguém lhe deu atenção.
As grandes portas bateram. Bum. As barras de ferro caíram em seu encaixe, do lado de dentro. Clangue. O portão se fechou. Sam se jogou contra as placas de bronze trancadas e caiu no chão sem sentidos. Ficara do lado de fora e no escuro. Frodo estava vivo, mas o Inimigo o levara.
J. R. R. Tolkien
O melhor da literatura para todos os gostos e idades