A Domus Publica era uma residência muito antiga e nunca fora vítima das chamas. Gerações de abastados Pontifices Maximi haviam canalizado dinheiro e cuidados para aquela residência, apesar de saberem que todos os objectos que para lá levavam, desde as mesas revestidas a ouro e marfim aos divãs egípcios com jóias e outras preciosidades incrustadas, não poderiam ser devolvidos mais tarde aos seus herdeiros.
Tal como todos os edifícios dos primeiros tempos do Fórum Republicano, a Domus Publica fazia um estranho ângulo em relação ao eixo vertical do próprio Fórum, já que, na época em que fora construída, todas as estruturas sagradas e públicas tinham de ficar orientadas de norte para sul; o Fórum, que era um declive natural, tinha uma orientação de nordeste para sudoeste. Os edifícios posteriores foram construídos segundo a linha do Fórum, facto que contribuía decisivamente para que a paisagem global do Fórum fosse mais organizada e atraente. Sendo um dos maiores edifícios do Fórum, a Domus Publica não escaparia ao olhar do observador mais distraído; no entanto, esse observador não ficaria propriamente encantado com o que via. Parcialmente tapada pela Régia e pelos escritórios do Pontifex Maximus, a elevada fachada da Domus Publica fora construída — no que toca ao rés-do-chão, o piso original — com blocos de tufo calcário sem qualquer trabalho artístico, e possuía janelas rectangulares; o piso superior, acrescentado por esse singular Pontifex Maximus que fora Aenobarbo, era um trabalho em tijolo opus incertum e possuía janelas arqueadas. Uma combinação infeliz que — pelo menos se vista de frente, a partir da Sacra Via — poderia ser muito melhorada pela adição de um pórtico e de um pedimento imponentes, dignos de um templo. Foi isso pelo menos o que César pensou, decidindo, nesse mesmo momento, qual seria a sua contribuição para a Domus Publica. Era um templo consagrado e, portanto, não havia nenhuma lei que o impedisse de fazer isso.
No que toca à forma, o edifício era mais ou menos quadrado, embora tivesse uma saliência de cada lado que o alargava. Atrás dele, situava-se a pequena elevação (com uma altura de trinta pés) que formava o socalco mais baixo do Palatino. No alto dessa elevação, ficava a Via Nova, uma rua muito movimentada, cheia de tabernas, lojas e insulae; uma ruela partia das traseiras da Domus Publica e dava acesso à subestrutura dos edifícios da Via Nova. Todas estas construções se erguiam muito acima do nível daquela elevação, pelo que as suas janelas das traseiras tinham uma vista perfeita para tudo o que se passava nos pátios da Domus Publica. Além disso, impediam que o sol da tarde chegasse à residência do Pontifex Maximus e das vestais.
A Domus Publica, desde logo prejudicada pela sua localização na base do Palatino, teria de ser forçosamente um frio lar, tanto mais que acolhia jovens condenadas, enquanto fossem sacerdotisas, à virgindade. Aliás, o Porticus Margaritaria, uma gigantesca arcada rectangular ocupada por lojas, que ficava imediatamente atrás da Domus Publica e que seguia a orientação do eixo do Fórum, colava-se às traseiras da residência das vestais e cortava-lhe uma dos cantos.
Contudo, nenhum Romano — nem mesmo um indivíduo tão lógico como César — achava estranhos os edifícios com formas peculiares, os edifícios a que faltava um canto ou que exibiam uma excrescência; aquilo que podia ser construído em linha recta era construído em linha recta; e aquilo que tinha de rodear estruturas adjacentes, ou limites tão antigos que os sacerdotes que os tinham definido tinham provavelmente seguido o rasto de alguma ave de capoeira, rodeava as estruturas ou os limites. Se se olhasse para a Domus Publica desse ponto de vista, concluir-se-ia que, afinal, o edifício não era muito irregular. Apenas enorme e feio, frio e húmido.
A escolta de clientes parou respeitosamente quando César avançou na direcção das portas principais, que eram de bronze e exibiam painéis esculpidos que contavam a história de Clélia. Em circunstâncias normais, essas portas não eram usadas, já que ambos os lados do edifício tinham entradas. No entanto, aquele não era um dia normal. Naquele dia, o novo Pontifex Maximus tomava posse do seu domínio e esse era um acto que impunha uma extrema formalidade. César bateu três vezes com a palma da mão direita na porta da direita, que se abriu imediatamente. A chefe das vestais saudou-o com uma respeitosa vénia, fechando depois as portas perante a horda de clientes, os quais, com suspiros e lágrimas, se preparavam para uma longa espera na rua e começavam já a trocar comentários e a pensar em comer qualquer coisa.
Perpénia e Fonteia tinham-se retirado alguns anos antes: a actual chefe das vestais era Licínia, prima direita de Murena, prima mais afastada de Crasso.
— Mas tenciono retirar-me o mais depressa possível — disse ela, enquanto subia com César a rampa central da entrada até chegarem a um novo par de belas portas de bronze. — O meu primo Murena vai disputar este ano o cargo de cônsul e pediu-me que me mantivesse no cargo o tempo necessário para o ajudar na sua campanha.
Licínia era uma mulher simples e agradável, mas não possuía a força suficiente para exercer adequadamente o seu cargo — e César estava ciente disso. Na sua qualidade de pontífice, tivera muitos contactos com as vestais, mais velhas do que ele, e, nessa mesma qualidade, lamentara o destino dessas sacerdotisas desde o dia em que Metelo Pio, o Bacorinho, se tornara o seu paterfamilias. Em primeiro lugar, Metelo Pio passara dez anos na Hispânia, por causa da guerra contra Sertório; depois, regressara a Roma mais velho do que realmente era e sem disposição nem vontade para se preocupar com as seis mulheres que devia assistir, dirigir, instruir, aconselhar. A sua esposa, uma mulher depressiva, negativa, também não fora uma grande ajuda, bem pelo contrário. E, dada a forma como as coisas normalmente se passavam, nenhuma das três mulheres que sucessivamente ocuparam o cargo de chefe das vestais poderia ter êxito sem uma mão firme a orientá-las. Daí que o Colégio das Vestais atravessasse uma fase de profundo declínio. Claro que o fogo sagrado era rigorosamente alimentado e que as diversas festas e cerimónias eram adequadamente realizadas. Mas o escândalo levantado pelas acusações de Públio Clódio continuava a ensombrar aquelas seis mulheres que eram consideradas a personificação da boa sorte de Roma; todas as vestais que, na altura, estavam no Colégio, ficaram profundamente marcadas por esse escândalo.
Licínia bateu por três vezes na porta direita, com a palma da mão direita, e Fábia acolheu-os no templo com uma vénia respeitosa. Para lá dessas portas sagradas, as virgens vestais tinham-se reunido para saudar o seu novo paterfamilias no único local da Domus Publica que era comum aos seus habitantes.
E que fez o novo paterfamilias Pois brindou-as com um sorriso jovial e muito pouco religioso e irrompeu pelo meio delas, na direcção de um terceiro par de portas, situado na extremidade daquela sala escassamente iluminada!
— Lá para fora, raparigas! — disse ele, virando a cabeça para trás.
No gelado recinto do jardim do peristilo, César encontrou num local abrigado da colunata três bancos de pedra alinhados; aparentemente sem grande dificuldade, levantou um dos bancos e pô-lo em frente dos outros. César envergava a magnífica toga com faixas escarlate e púrpura e também a túnica com faixas escarlate e púrpura do Pontifex Maximus por debaixo da toga. Com um aceno, indicou-lhes que se sentassem. Fez-se um silêncio impregnado de medo e respeito, durante o qual César examinou atentamente as suas novas mulheres.
Alvo das investidas amorosas de Catilina e Clódio, Fábia era considerada a mais bela das virgens vestais das últimas gerações. Sendo a segunda mais velha, sucederia a Licínia depois de esta se retirar, o que aconteceria em breve. Não era uma perspectiva muito satisfatória; de facto, Fábia só fora admitida porque, quando entrara para o Colégio, as candidatas eram muito poucas. Cévola, que era o Pontifex Maximus da altura, não teve outra alternativa senão sufocar o seu desejo de admitir uma rapariga sem nada de especial e aceitar aquele encantador rebento da mais velha (apesar de, agora, ser inteiramente adoptiva) das Famílias Famosas de Roma, os Fábios. Fábia e a mulher de Cícero, Terência, partilhavam a mesma mãe. Contudo, Terência não possuía a beleza nem a natureza doce de Fábia — embora fosse, e de longe, a mais inteligente das duas. Actualmente, Fábia tinha vinte e oito anos, o que significava que permaneceria no Colégio por mais oito a dez anos.
Depois, havia duas vestais com a mesma idade, Popília e Arúncia. Ambas acusadas de violação da regra de castidade por Clódio, na sequência do processo que movera a Catilina. Muito menos bonitas que Fábia, graças a todos os deuses! Quando foram a tribunal, o júri não teve a menor dificuldade em considerá-las inocentes. Mas César pensava já num problema evidente: três daquelas seis vestais retirar-se-iam com intervalos de dois anos, e isso obrigá-lo-ia a procurar três novas vestais para as substituir. Contudo, ainda faltavam dez anos para isso. Popília era uma prima próxima de César, ao passo que Arúncia, vinda de uma família menos augusta, não tinha praticamente nenhum laço de sangue com a família de César. Nenhuma delas recuperara ainda do estigma da alegada violação da norma da castidade; de tal forma que levavam uma vida de recolhimento e andavam quase sempre juntas.
As duas substitutas de Perpénia e Fonteia eram ainda crianças, e, uma vez mais, tinham a mesma idade, onze anos. Uma delas era uma Júnia, irmã de Décimo Bruto, filha de Semprónia Tuditanos. Era fácil entender por que fora oferecida ao Colégio aos seis anos de idade: Semprónia Tuditanos não suportaria que a filha se transformasse numa rival e Décimo Bruto gastava tanto e tão pouco que estava a um passo da ruína. A maior parte das meninas admitidas no Colégio recebia das famílias uma boa soma; Júnia, no entanto, não tinha dote. Não era um problema insuperável, já que o Estado se dispunha a dar um dote àquelas que o não tinham. Seria uma rapariga muito atraente depois dos sobressaltos da puberdade — como é que aquelas pobres criaturas conseguiam lidar com todos esses problemas num círculo tão confinado e, ainda por cima, sem qualquer ajuda maternal?
A outra criança era uma patrícia de uma família antiga mas algo decadente, uma Quintília que era bastante anafada. Também ela não tinha dote. Uma indicação clara, pensou César com alguma tristeza, sobre a actual reputação do Colégio: quem não tinha dote para uma filha (e, sem o dote, dificilmente conseguiria arranjar-lhe um bom marido), oferecia-a às vestais. O que, para além de ser um passo infeliz nas vidas das raparigas, significava grandes despesas para o Estado. Claro que o Colégio recebera ofertas muito tentadoras: uma Pompeia, uma Luceia, até mesmo uma Afrânia, uma Lólia, uma Petreia; Pompeu, o Grande, estava desejoso de se implantar (e de implantar os seus adeptos picentinos) nas mais reverenciadas instituições de Roma. No entanto, por muito velho e doente que estivesse, o Bacorinho nunca aceitara jovens com tal linhagem. Considerava preferível que o Estado pagasse os dotes de meninas relativamente pobres mas com a linhagem correcta — ou pelo menos com um pai que tivesse ganho a Coroa de Erva, como era o caso de Fonteia.
As vestais adultas conheciam César tão bem como ele as conhecia a elas, um conhecimento obtido basicamente através da participação em banquetes oficiais e em cerimónias realizadas nos colégios sacerdotais — não era, portanto, um conhecimento profundo, nem mesmo particularmente amistoso. Algumas festas privadas de Roma degeneravam em excessos alcoólicos e em excessos de confidências, mas isso nunca acontecia com as festas religiosas. Que sentimentos se escondiam por detrás daquelas seis faces...? Seria preciso mais tempo para o descobrir. Contudo, os modos joviais e animados de César tinham-nas deixado algo perturbadas. Fora uma atitude deliberada da parte de César; não queria que elas se fechassem, que elas lhe escondessem o que quer que fosse, e nenhuma daquelas vestais conhecera um Pontifex Maximus jovem, pois o último nessas condições fora Aenobarbo. Era portanto essencial levá-las a pensar que o novo Pontifex Maximus seria um paterfamilias com quem se poderiam abrir em total segurança. Nunca lhes lançaria um único olhar impudico, nunca lhes tocaria com um só dedo que fosse, nunca da sua boca sairiam insinuações mais íntimas. Mas César também não tencionava mostrar-se frio, antipático, excessivamente formal, constrangedor.
Licínia tossiu nervosamente, molhou os lábios, atreveu-se a falar. — Quando te mudas, domine?
Na verdade, César era o amo daquelas mulheres e decidira já que era adequado que elas o tratassem por domine. Poderia chamar-lhes as suas raparigas, mas seria imperdoável que elas lhe chamassem o seu homem.
— Talvez depois de amanhã — disse ele com um sorriso, esticando as pernas e suspirando.
— Vais querer por certo que te mostremos todo o edifício.
— Sim, sem dúvida. E amanhã também, quando trouxer a minha mãe.
As vestais não se tinham esquecido de que a mãe de César era uma mulher extremamente respeitada, nem desconheciam os vários aspectos da sua estrutura familiar, desde o noivado da sua filha com Cepião Bruto até à gente de reputação duvidosa com quem a sua tonta esposa se dava. A resposta dele indicou-lhes claramente qual seria a ordem hierárquica: a mãe em primeiro lugar. O que era, para elas, um verdadeiro alívio!
— E a tua esposa? — perguntou Fábia, que, em privado, achava Pompeia muito bela e sedutora.
— A minha esposa — retorquiu friamente César — não é importante. Duvido que alguma vez venham a vê-la, já que ela leva uma vida social muito intensa. Ao passo que a minha mãe é uma pessoa que se interessa por tudo. — Concluiu esta frase com mais um dos seus encantadores sorrisos, pensou por um momento, e acrescentou:
— A minha mãe é uma pérola sem preço. Não tenham medo dela, não receiem falar com ela. Embora eu seja o vosso paterfamilias, há questões nas vossas vidas que, por certo, preferirão discutir com uma mulher. Até agora, tiveram apenas duas alternativas sempre que desejaram discutir essas questões: sair desta casa e falar com alguém de fora ou limitar tais discussões às conversas com as colegas. A minha mãe é uma verdadeira fonte de experiências e uma mina de senso comum. Banhem-se na primeira, sondem a segunda, é este o meu conselho. Além disso, a minha mãe nunca fala da vida alheia. Nem mesmo comigo.
— Teremos muito gosto em recebê-la — disse Licínia, e não podia ser mais formal.
— Quanto a vocês duas — disse César, dirigindo-se às meninas —, a minha filha pouco mais velha é do que vocês. E é também uma pérola sem preço. Terão uma amiga com quem brincar.
O que produziu uns sorrisos tímidos, mas nenhuma tentativa de entabular conversa. César e a sua família, compreendeu ele com um suspiro interior, tinham ainda muito que fazer para que aquelas vítimas indefesas da mós maiorum aceitassem a nova ordem.
César prolongou a entrevista por mais algum tempo, sempre no mesmo tom descontraído, após o que se levantou. — Pois bem, raparigas, por hoje chega. Licínia, podes mostrar-me agora a Domus Publica.
Começaram pelo jardim do peristilo, onde o sol não penetrava.
— Aqui, como sabes, é o pátio público — disse Licínia. — Sabe-lo aliás muito bem, dadas as festividades em que aqui participaste.
— Nessas festividades, nunca dispus do tempo ou do isolamento necessários para apreciar bem o pátio — disse César. — Quando alguma coisa nos pertence, vemo-la com outros olhos.
O centro daquele peristilo principal era o local em que a altura da Domus Publica se tornava mais evidente; as paredes erguiam-se, imensas, dos quatro lados do pátio. Uma colunata coberta, com colunas dóricas pintadas de um intenso vermelho, rodeavam o peristilo, com as janelas arqueadas, dotadas de persianas, do piso superior, erguendo-se sobre as suas paredes primorosamente pintadas, também de vermelho, e exibindo, sobre esse pano de fundo esplendoroso, algumas das vestais famosas, bem como uma descrição dos seus feitos; os rostos eram fielmente reproduzidos porque as chefes das vestais tinham direito a possuir imagines, máscaras de cera que eram coloridas de forma a imitarem o mais possível a realidade e que eram encimadas por cabeleiras absolutamente iguais às originais, tanto na cor, como no estilo do penteado.
— As estátuas de mármore são todas de Leucipo e os bronzes são de Estronguilião — disse Licínia. — Foram oferecidas por um dos meus antepassados, Crasso Pontifex Maximus.
— E o lago? É uma maravilha.
— Foi oferecido por Cévola Pontifex Maximus, domine. Era evidente que alguém cuidava do jardim, mas César sabia
muito bem quem iria ser o seu novo guia, nesse particular: Caio Macio. Nesse momento, virou-se para observar uma das paredes e viu o que pareciam ser centenas de janelas espreitando da Via Nova, a maior parte delas cheias de rostos; toda a gente sabia que o novo Pontifex Maximus tomara posse do seu cargo e que, naquele momento, devia estar a visitar a sua residência e as suas pupilas, as vestais.
— Vocês não têm nenhuma privacidade — disse ele, apontando para as janelas.
— Nenhuma, de facto, domine, pelo menos no peristilo principal. O nosso peristilo privado foi acrescentado por Aenobarbo Pontifex Maximus. Tem paredes tão altas que ninguém nos vê. — Suspirou e acrescentou: — Infelizmente, não entra lá o sol.
Seguiram depois para a única sala pública, a relia entre as duas partes do edifício que constituíam o templo. Embora não tivesse estátuas, a cella possuía frescos e muitos dourados; infortunadamente, a luz era tão escassa que não seria fácil apreciar a qualidade do trabalho. De ambos os lados da cella, havia uma fila de templos miniaturais, que albergavam as imagines das chefes das vestais desde que, nos nebulosos tempos dos primeiros reis de Roma, a ordem fora criada. Não valia a pena abrir um dos templos para examinar a cor da pele de Claudia ou o estilo da sua cabeleira; a luz era demasiado fraca.
— Teremos de ver o que se pode fazer no que se refere à luz — disse César, regressando à entrada.
Era aí que a antiguidade do templo se tornava mais evidente; era tão velho aquele edifício que Licínia não lhe saberia explicar porque é que determinada coisa era assim como era, ou que sentido fazia este ou aquele traço. O chão erguia-se a uma altura de dez pés a partir das portas exteriores e até às portas do templo propriamente dito, em três rampas separadas, cobertas com mosaicos verdadeiramente fabulosos; estes mosaicos, adivinhou César, seriam de vidro ou faiança, e os seus desenhos eram em padrões convolutos, mas abstractos. Separando as rampas umas das outras e dando-lhes um perfil curvo, havia duas amygdalae, cavidades em forma de amêndoa, pavimentadas com blocos de tufo enegrecidos pelos séculos; cada uma dessas amygdalae continha no seu centro ritual um pedestal de pedra negra polida, sobre o qual se erguia uma rocha esférica oca, revestida com cristais de um tom vermelho-granada, cintilando como gotinhas de sangue. De cada lado das portas exteriores havia também uma cavidade pavimentada com tufo. As paredes e o tecto eram muito mais recentes, um complexo tumulto de flores e treliças de gesso, pintado de vários tons de verde e realçado a ouro.
— O carro sagrado em que transportamos os nossos mortos desce facilmente as duas rampas laterais — as vestais usam uma dessas rampas, o Pontifex Maximus usa a outra —, mas não sabemos quem usou a rampa central, ou com que objectivo a usou. Talvez fosse para o carro funerário do rei, mas francamente não faço a mínima ideia. É um mistério — disse Licínia.
— Deve haver respostas para esse mistério — disse César, fascinado. Fitou a chefe das vestais com as sobrancelhas muito erguidas. — E agora?
— Que parte desejas ver primeiro, domine?
— Os vossos aposentos.
A parte da Domus Publica que alojava as vestais albergava também uma indústria, como César pôde ver quando Licínia o conduziu até uma sala em forma de L, com cinquenta pés de comprimento. Aquele que teria sido o atrium ou sala de recepção de uma domus era o local de trabalho das vestais, que eram as guardiãs formais dos testamentos romanos. A sala fora inteligentemente reconvertida para servir os objectivos de quem lá trabalhava; possuía estantes, que quase chegavam ao tecto, e que se dividiam em compartimentos com livros ou pergaminhos que de outra maneira não encontrariam protecção; e tinha ainda muitas secretárias e cadeiras, escadas e bancos, e uma série de suportes onde eram dependuradas grandes folhas de pergaminho de Pérgamo, feito com rectângulos mais pequenos, cuidadosa e minuciosamente reunidos pelas artes da costura.
— Ali, é onde aceitamos a custódia dos testamentos — disse a chefe das vestais, apontando para uma área próxima das portas exteriores por onde entravam aqueles que pretendiam depositar os seus testamentos no Atrium Vestae. — Como vês, aquela zona é separada por uma parede da parte principal da sala. Queres vê-la mais de perto, domine?
— Obrigado, eu conheço bem essa parte — disse César, executor de muitos testamentos.
— Como hoje temos feriae, as portas estão fechadas e ninguém trabalha. Mas amanhã vamos ter muito que fazer.
— E é nesta parte da sala que são guardados os testamentos.
— Oh, não! — exclamou Licínia, horrorizada. — Esta é apenas a nossa sala dos arquivos, domine.
— Sala dos arquivos?
— Sim. Nós mantemos um registo de todos os testamentos que nos são entregues, para além de guardarmos o testamento propriamente dito — nome, tribo, a idade na altura em que o testamento foi depositado, e assim por diante. O testamento só abandona este edifício quando é executado. Mas os registos ficam cá sempre. Nunca nos desfazemos deles.
— Isso quer dizer que aqueles compartimentos para livros e aqueles escaninhos estão cheios de registos, não mais que registos?
— Precisamente.
— E isto? — perguntou ele, encaminhando-se na direcção de um dos suportes, para contar o número de folhas de pergaminho suspensas.
— Isso é uma espécie de guia, uma espécie de manual de instruções que nos permite encontrar tudo, desde os nomes das tribos às listas dos município, passando pelos nomes de todas as cidades do mundo ou pelos mapas do nosso sistema de arquivamento. Ou ainda o censo integral dos cidadãos romanos.
Naquele suporte estavam dependuradas seis folhas de pergaminho com dois pés de largura e cinco pés de comprimento, cada uma delas escrita dos dois lados, a caligrafia muito clara e fina e delineada a negro, uma caligrafia ao nível dos melhores escribas gregos, como César disse para si mesmo. Os seus olhos deambularam pela sala e contaram um total de trinta suportes. — Estas folhas contêm mais dados do que aqueles que me disseste.
— Claro, domine. Nós arquivamos tudo o que é possível arquivarmos. É do nosso interesse que procedamos assim. A primeira Emília a ser vestal teve a inteligência suficiente para compreender que as tarefas quotidianas, desde a manutenção do fogo sagrado à necessidade de ir buscar água ao poço — nessa altura, era a Fonte de Egéria, que ficava muito mais longe do que Juturna —, não chegavam para assegurar a ocupação das nossas mentes e a pureza dos nossos votos e intenções. Nós éramos guardiãs dos testamentos quando todas as vestais eram filhas do rei. Porém, sob a chefia de Emília, expandimos o nosso trabalho e começámos a arquivar.
— Portanto, aquilo que aqui está é um verdadeiro tesouro de informações.
— Precisamente, domine.
— Quantos testamentos têm à vossa guarda?
— Cerca de um milhão.
— E todos esses testamentos estão registados aqui — disse ele, abarcando com um gesto largo as paredes altas e apinhadas de estantes.
— Sim e não. Os testamentos que ainda não foram executados vão para os escaninhos; é mais fácil consultar um pergaminho do que andar à procura nos livros. Nos compartimentos com livros, encontrarás os registos dos testamentos que, por terem sido executados, deixaram de se encontrar sob a nossa guarda.
— Até onde remontam os vossos registos, Licínia?
— Às duas filhas mais novas do rei Anco Márcio, embora não da forma pormenorizada que Emília instituiu.
— Começo a perceber por que motivo Aenobarbo, esse Pontifex Maximus tão pouco ortodoxo, instalou água canalizada neste edifício e reduziu as muitas deslocações ao Poço de Juturna a uma única viagem diária. Vocês têm outros trabalhos mais importantes para fazer. Contudo, quando tomou essas medidas, Aenobarbo não deixou de suscitar muita polémica.
— Sentimos uma gratidão imensa por Aenobarbo Pontifex Maximus — disse Licínia, conduzindo-o a um lanço de escadas. — Ele acrescentou o segundo piso não só para que pudéssemos levar vidas mais confortáveis e saudáveis, mas também para nos dar espaço para depositarmos os testamentos propriamente ditos. Os testamentos costumavam estar no primeiro piso, não tínhamos outro sítio onde os pôr. Mesmo assim, o depósito dos testamentos volta a ser um problema. Nos tempos mais remotos, só os cidadãos romanos faziam testamentos, e sobretudo cidadãos que viviam em Roma. Actualmente, aceitamos testamentos de cidadãos e não-cidadãos do mundo inteiro — pigarreou e fungou ao chegar ao alto das escadas, e abriu a porta para uma vasta caverna iluminada pelas janelas de um único lado, o que dava para a Casa de Vesta.
César compreendeu as súbitas perturbações respiratórias de Licínia; aquele local libertava uma densa emanação de poeira seca e partículas de papel.
— É aqui que guardamos os testamentos dos cidadãos romanos, talvez três quartos de um milhão — disse Licínia. — Roma, ali, Itália, aqui. As várias províncias de Roma, ali, ali, ali. Outros países, ali. E uma nova secção para a Gália Italiana, aqui. Tornou-se necessária depois da Guerra Italiana, quando foi concedida a cidadania a todas as comunidades a sul do rio Pó. Também tivemos de expandir a nossa secção relativa à Itália.
Os testamentos estavam guardados em sucessivos compartimentos de sucessivas estantes; cada um deles estava etiquetado e rotulado; em cada compartimento, haveria talvez uns cinquenta. César retirou um testamento da Gália Italiana, depois outro e outro. Todos eles diferentes no tamanho e na espessura e no tipo de papel, todos eles selados com cera e com a insígnia de alguém. Este era de um indivíduo abastado — quantas propriedades! Aquele era um testamento mais escasso, mais humilde — provavelmente, os seus herdeiros não receberiam mais do que uma pequena casa e um porco.
— E onde é que estão os testamentos dos não-cidadãos? — perguntou, enquanto desciam as escadas.
— Estão no piso de baixo, domine, juntamente com os registos de todos os testamentos de militares e das mortes no cumprimento dos deveres militares. Claro que nunca fomos guardiãs dos testamentos dos soldados — esses testamentos foram sempre confiados aos sacerdotes das legiões e, quando um homem termina o seu serviço, o sacerdote da respectiva legião destrói o testamento. Depois, o militar faz um novo e é então que o confia à nossa guarda — suspirou com um ar pesaroso. — Ainda temos algum espaço lá em baixo, mas receio que em breve tenhamos de mudar os testamentos de alguns cidadãos provinciais para o piso de baixo, o qual, além do mais, também tem de albergar muito do equipamento sagrado de que precisamos — tanto nós como tu, domine — para as cerimónias. Que iremos fazer quando o piso de baixo estiver tão cheio como no tempo de Aenobarbo? — perguntou ela num tom queixoso.
— Felizmente para ti, Licínia, não terás de enfrentar esse problema — disse César. — Mas eu terei de resolvê-lo, sem dúvida.
É extraordinário que a eficiência e a atenção ao pormenor das mulheres de Roma tenham produzido um repositório como nunca houve no mundo! Toda a gente quer o seu testamento a salvo de olhares gananciosos e de penas que possam falsificá-los. E onde é isso possível, a não ser no Atrium Vestae?
A admiração implícita neste comentário escapou por completo a Licínia, que estava demasiado perturbada pois, de repente, lembrara-se de uma omissão. — Domine, esqueci-me de te mostrar a secção dos testamentos das mulheres! — exclamou Licínia.
— Sim, as mulheres também fazem testamentos — disse ele, mantendo a gravidade. — É um grande conforto saber que vocês separam os sexos, mesmo na morte. — Verificando que não havia da parte dela qualquer resposta, César pensou noutra coisa. — Surpreende-me que tantas pessoas guardem os seus testamentos aqui em Roma, apesar de muitas delas viverem em locais distantes e terem de fazer viagens de vários meses para se deslocarem a Roma. Seria de esperar que muitas dessas propriedades e muito desse dinheiro houvessem já desaparecido antes que os testamentos tivessem sido executados.
— Não sei, domine, porque nós nunca nos debruçamos sobre esses aspectos. Mas se as pessoas vêm de tão longe para guardar aqui os seus testamentos, será certamente porque se sentem seguras ao fazê-lo. Imagino — concluiu ela, com a maior simplicidade — que toda a gente teme Roma e a justiça romana. Pensa por exemplo no testamento do rei Ptolemeu Alexandre! O actual rei do Egipto tem um medo horrível de Roma porque sabe que o Egipto, na realidade, pertence a Roma. E tudo por causa desse testamento!
— É verdade — disse César solenemente.
Do local de trabalho (onde, como César reparou, até as duas crianças estavam agora a trabalhar, apesar das feriae), Licínia conduziu-o aos aposentos das vestais. Estes, concluiu César, constituíam uma compensação adequada para uma existência conventual. Contudo, a sala de jantar era ao jeito das salas de jantar do campo, com as cadeiras à volta de uma mesa.
— Não vêm homens comer aqui? — perguntou ele. Licínia pôs um ar horrorizado. — Nos nossos aposentos, nunca, domine! Tu és o único homem que pode entrar aqui.
— E quanto a médicos e carpinteiros, por exemplo?
— Há mulheres que são óptimos médicos e também há mulheres que são grandes artistas em todos os campos. Roma não sente qualquer preconceito em relação ao facto de haver mulheres exercendo essas profissões.
— Isso não sabia eu, apesar de ter sido pontífice durante mais de dez anos — retorquiu César, abanando a cabeça.
— Bom, tu não estavas em Roma quando ocorreram os nossos julgamentos — disse Licínia; a voz tremia-lhe. — Nessa altura, os nossos hábitos de vida foram publicamente divulgados. Porém, em circunstâncias normais, só o Pontifex Maximus, entre todos os sacerdotes, se preocupa com o nosso modo de vida. Para além dos nossos parentes e amigos, naturalmente.
— Claro. A última Júlia que esteve no Colégio foi Mia Estrabão, que teve uma morte prematura. Há muitos casos desses no vosso Colégio, Licínia?
— Actualmente, são muito raros, mas creio que eram bastante comuns antes de termos água canalizada. Queres ver as casas de banho e as latrinas? Aenobarbo defendia que toda a gente devia praticar a higiene e por isso até às servas deu casas de banho e latrinas.
— Um homem notável — disse César. — E insultaram-no tanto por ele ter mudado a lei...! E por ter sido eleito Pontifex Maximus na mesma altura...! Lembro-me de Caio Mário me dizer que havia uma epidemia de anedotas sobre os assentos de mármore das latrinas, depois de Aenobarbo ter concluído as obras na Domus Publica.
Apesar da relutância de César, Licínia insistiu para que visse os cubículos onde dormiam as vestais.
— Metelo Pio Pontifex Maximus pensou nesta solução depois de ter regressado de Espanha. Estás a ver? — perguntou ela, conduzindo-o por uma série de arcadas com cortinas que levavam ao seu próprio cubículo. — Só há uma saída: pelo meu quarto. Costumávamos ter todas portas para o corredor, mas Metelo Pio Pontifex Maximus tirou-as e pôs tijolos no lugar delas. Ele achava que devíamos proteger-nos antecipadamente de todas as eventuais acusações.
César nada respondeu; regressaram imediatamente ao local de trabalho. E César retomou o assunto dos testamentos, que o fascinava.
— Os teus números espantaram-me — disse ele —, mas realmente não devia ter ficado espantado. Passei muita da minha vida no bairro de Subura e muitas vezes vi, com os meus próprios olhos, membros dos Capite Censi deslocando-se solenemente ao Atrium Vestae, a fim de depositar o seu testamento. Homens que não tinham mais do que um escravo...! E que tinham eles para deixar? Um broche, algumas cadeiras e uma mesa, um forno primitivo, um escravo! Mas lá iam eles, envergando a sua toga de cidadão e empunhando a sua senha para receber cereais, tão orgulhosos como Tarquínio, o Soberbo. Não podem votar nas Centúrias e as suas tribos urbanas tornam inúteis os seus votos comiciais, mas servem nas nossas legiões e guardam aqui os seus testamentos.
— Esqueceste-te de dizer, domine, que muitos desses homens vêm contigo, porque és o seu patrono — disse Licínia. — Nós sabemos quem são os patronos que arranjam sempre tempo para acompanharem os seus clientes e aqueles que, em vez de virem, mandam um dos seus libertos.
— Quem é que vem pessoalmente? — perguntou César, curioso.
— Tu e Marco Crasso, sempre. Catão também vem, e os Domícios Aenobarbos. Quanto aos outros, são raros os que aparecem.
— Esses nomes não me surpreendem!
Era tempo de mudar de assunto e de falar mais alto. Uma voz bem alta seria ouvida por todas aquelas figuras vestidas de branco que se entregavam à sua azáfama. — Vocês trabalham muito — disse ele. — Eu já trouxe muitos testamentos e também já pedi muitos para verificação, mas nunca me tinha apercebido do trabalho impressionante que é preciso para cuidar dos testamentos de Roma. São dignas de todos os encómios.
Não admira que tenha sido conduzido de novo à entrada por uma chefe das vestais feliz e satisfeita; Licínia entregou-lhe então as chaves do seu domínio.
Que maravilha!
A sala de recepção, em forma de L, era irmã gémea da sala de trabalho das vestais, com cinquenta pés de comprimento. Não faltavam os elementos luxuosos, desde os gloriosos frescos aos ornamentos dourados, passando pelos móveis magníficos e pelos objectos de arte espalhados por todo o lado. Chão de mosaico, um tecto fabuloso decorado com rosas de estuque e alvéolos de ouro, pilastras de mármore colorido nas paredes e revestimento de mármore colorido na única coluna.
Um escritório e um cubículo para dormir para o Pontifex Maximus, aposentos mais pequenos para a sua mulher. Uma sala de jantar com seis divãs. Um jardim do peristilo de um dos lados, adjacente ao Porticus Margaritaria e com vistas para as janelas das insulae da Via Nova. A cozinha podia servir trinta refeições; embora ficasse na estrutura principal, faltava-lhe a maior parte da parede exterior; daí que, quando fosse preciso um fogo mais potente (e mais perigoso) para os cozinhados, se recorresse ao quintal. Também no quintal, encontrava-se uma cisterna suficientemente grande para lavar as roupas e para servir de reservatório em caso de fogo.
— Aenobarbo Pontifex Maximus fez a ligação à Cloaca Máxima, e isso tornou-o também muito popular entre os habitantes da Via Nova — disse Licínia, sorrindo porque estava a falar do seu ídolo. — Quando pôs os esgotos na ruela de trás, permitiu que as insulae também os usassem, bem como o Porticus Margaritaria.
— E a água? — perguntou César.
— Não faltam as fontes neste lado do Fórum Romanum, domine. Uma delas abastece a tua cisterna e outra abastece a cisterna do nosso quintal.
Havia aposentos para os criados tanto no piso de cima como no de baixo, incluindo uma suite que albergaria Burgundo, Cardixa e os seus filhos, todos solteiros ainda. Ah, e Eutico, Eutico ia ficar extasiado com o seu pequeno ninho!
Contudo, a secção frontal do piso superior foi a que mais excitou a gratidão de César por ter sido eleito e por poder mudar-se para aquela residência. As escadas da frente ascendiam entre a sala de recepção e o seu escritório, e, muito convenientemente, dividiam a área em duas partes. Daria todos os quartos que ficavam atrás das escadas a Pompeia, o que significava que não seriam obrigados a vê-la ou ouvi-la! Júlia poderia ficar com a espaçosa suite atrás das escadas frontais, já que havia duas para convidados com entrada pelas escadas das traseiras.
Nesse caso, quem tencionava César instalar na suite da esposa, no piso de baixo? Claro que era a sua mãe! Quem poderia ser, senão Aurélia?
— Que achas? — perguntou ele à mãe, no dia seguinte, enquanto subiam a Clivus Orbius, depois de terem inspeccionado conjuntamente a Domus Publica.
— É uma residência soberba, César — franziu o sobrolho. — Só há um aspecto que me preocupa: Pompeia. Será demasiado fácil subir aos aposentos dela! O edifício é muito vasto, ninguém verá quem entra ou sai.
— Oh, mater, não me obrigues a pô-la no piso de baixo, mesmo ao lado de mim! — exclamou ele.
— Não, meu filho, não farei isso. Contudo, temos de arranjar maneira de policiar as idas e vindas de Pompeia. No apartamento, era fácil controlá-la: sempre que saía, lá estava Polixena para a acompanhar. Mas aqui? Impossível... Nunca poderemos controlá-la. No apartamento, nunca poderia introduzir homens em casa, ao passo que aqui... Impossível saber o que ela faz ou deixa de fazer.
— Bom — disse César, com um suspiro. — A minha nova posição implica que disporei de um bom número de escravos públicos. Normalmente, são preguiçosos e irresponsáveis porque ninguém os controla e ninguém pensa em elogiá-los se por acaso fazem um bom trabalho. Pois isso mudará radicalmente. Eutico está a ficar velho, mas ainda é um magnífico chefe de criados. Burgundo e Cardixa podem voltar de Bovilas com os seus quatro filhos mais novos. Os quatro filhos mais velhos podem ficar a tomar conta de Bovilas. O teu trabalho consistirá em organizar um novo regime e em incutir uma disposição de espírito diferente nos criados, tanto os que nós trazemos como os que já se encontram na Domus Publica. Eu não terei tempo para isso, daí que tenhas de ser tu a executar tal tarefa.
— Eu compreendo a tua ideia — disse ela. — Mas isso não responde ao nosso problema com Pompeia.
— A solução, mater, é só uma: um controlo adequado. Ambos sabemos que não podes pôr só um criado à porta ou em qualquer tarefa de vigilância. Um criado sozinho acaba por adormecer, seja de tédio, seja de cansaço. Portanto, deixaremos dois criados, permanentemente, no fundo das escadas da frente. De dia e de noite. E atribuímos-lhe uma tarefa qualquer — dobrar a roupa de cama, polir as facas e as colheres, lavar pratos, remendar roupas — tu conheces essas coisas melhor do que eu. Um determinado número dessas tarefas deve ser executado em cada turno. Felizmente, há um nicho bastante amplo entre o princípio das escadas e a parede do fundo. Porei uma daquelas portas que rangem muito a fechar esse nicho, a fim de que esse espaço não seja visto da sala de recepção, e isso significa que quem usar as escadas terá de abrir primeiro essa porta. Se as nossas sentinelas adormecerem, o barulho da porta a abrir-se acabará por acordá-las. Quando Pompeia aparecer no fundo das escadas para sair, uma das sentinelas avisará Polixena imediatamente. Ainda bem que Pompeia não tem tomado a iniciativa de sair sem Polixena!
Se Clódia, a amiga dela, a convencer a sair sem Polixena, garanto-te que isso acontecerá uma única vez. Informarei Pompeia de que esse tipo de comportamento é motivo suficiente para o divórcio. Instruirei também Eutico para que escolha sentinelas de confiança, criados que não se conluiem uns com os outros para aceitar subornos.
— Oh, César, odeio isso! — exclamou Aurélia. — Seremos nós porventura legionários, guardando o acampamento de um possível ataque?
— Sim, mater, acho que é isso que nós somos. Mas a culpa é toda dela. Ela é que anda com a gente errada e que se recusa a deixar de andar.
— E por isso somos obrigados a encarcerá-la.
— Encarcerá-la, não, mater. Sê justa! Eu não a proibi de se dar com as amigas, seja aqui, seja lá fora. Pompeia e as amigas podem sair e voltar como muito bem lhes apetecer, podem até dar-se com beldades como Semprónia Tuditanos e Pala ou com o pavoroso Pompeu Rufo. Mas Pompeia é agora a mulher de César Pontifex Maximus. O cargo que agora assumi não é propriamente desprezível. Nem mesmo para uma neta de Sila. Não posso confiar no bom senso dela, porque bom senso é coisa que ela não tem. Todos conhecemos a história de Metela Dalmática: como ela conseguiu, apesar de Escauro Princeps Senatus, transformar a vida de Sila num tormento, quando ele tentava ser eleito pretor. Sila rejeitou-a então — mostrando pelo menos que tinha um forte instinto de autopreservação. Mas consegues imaginar Clódio ou Décimo Bruto ou o jovem Poplicola comportando-se com a circunspecção de Sila? Hah! Chamavam um figo a Pompeia!
— Nesse caso — disse Aurélia, armada de determinação — quando resolveres informar Pompeia das suas novas regras, sugiro-te que convoques a mãe dela. Cornélia Sila é uma esplêndida pessoa. E sabe muito bem que a filha é uma tonta. Reforça a tua autoridade com a autoridade da mãe dela. Não vale a pena convocares-me, pois Pompeia detesta-me por lhe impor a presença de Polixena.
Meu dito, meu feito. Embora a mudança para a Domiis Publica decorresse no dia seguinte, Pompeia já sabia das novas regras quando, acompanhada pelos seus criados particulares, viu pela primeira vez os seus aposentos do piso de cima. Chorara, como seria previsível, e protestara a inocência das suas intenções, mas isso de nada lhe valeu. Cornélia Sila mostrou-se ainda mais rigorosa que César e garantiu à filha que, se caísse em desgraça por motivo de adultério, dificilmente poderia regressar a casa do tio Mamerco. Afortunadamente, Pompeia não era criatura para guardar ressentimentos; por isso, quando ocorreu a mudança, já só pensava na transferência de todas as suas dispendiosas bugigangas e em fazer mais compras para encher as áreas que considerava desnudadas.
César perguntava-se como reagiria Aurélia à mudança do seu próprio estatuto — de senhoria de uma próspera ínsula para decana dos habitantes do edifício que, em Roma, mais se assemelhava a um palácio. Insistiria em tratar dos seus livros de contabilidade? Seria capaz de romper os laços de mais de quarenta anos no bairro de Subura? Porém, na tarde da festa da sua investidura, César já sabia que não precisava de se ter preocupado com aquela mulher verdadeiramente notável. Embora as vigiasse pessoalmente, disse-lhe ela, as contas da ínsula passariam a ser feitas por um homem que Lúcio Decúmio recomendara. E veio então a saber-se que a maior parte do trabalho que Aurélia fazia não dizia respeito directamente às suas propriedades; para ocupar o seu tempo, actuara como representante de mais de uma dúzia de outros senhorios. Quão horrorizado teria ficado o seu marido se soubesse disso! César limitou-se a rir.
De facto, como depressa se apercebeu, a sua elevação ao cargo de Pontifex Maximus dera uma nova vida a Aurélia. Estava em todo o lado onde era precisa, estabelecera a sua ascendência sobre Licínia sem grande esforço da sua parte e sem grande sofrimento da parte de Licínia, tornara-se querida de todas as vestais e, muito em breve, pensou o filho com um riso silencioso, encarregar-se-ia de aumentar a eficiência não só da Domus Publica, como também da indústria testamentária do Colégio das Vestais.
— César, devíamos cobrar honorários por este serviço — disse-lhe ela, pouco tempo depois, com um ar determinado. — Tanto trabalho, tanto esforço! A bolsa de Roma devia receber uma compensação. Mas César recusou.
— Concordo que esses honorários fariam subir os lucros do Tesouro, mater, mas também privariam as pessoas mais pobres de um dos seus maiores prazeres. Não. De um modo geral, Roma não tem problemas com os seus proletani. Basta que tenham a barriga cheia e jogos para se divertirem. Isso chega-lhes para se sentirem bem. Se começássemos a cobrar-lhes dinheiro pelos actos decorrentes da sua cidadania, acabaríamos por transformar os Capite Censi num monstro muito capaz de nos devorar a todos.
Como Crasso previra, a eleição de César para o cargo de Pontifex Maximus, como que por artes mágicas, acalmara os seus credores. Além disso, tais funções proporcionavam-lhe um salário considerável, naturalmente pago pelo Estado; o mesmo sucedia, aliás, com os três principais flamines: Dialis, Martialis e Quirinalis. As residências destes sacerdotes ficavam na Sacra Via, no lado oposto à Domus Publica; porém, como era sabido, não havia flamen Dialis desde que Sila deixara César despir a capa e o elmo do pontífice especial de Júpiter Optimus Maximus; o contrato fora muito claro — só voltaria a haver um flamen Dialis depois da morte de César. Sem dúvida que a casa do flamen Dialis devia estar meio arruinada, já que perdera o seu zelador, Merula, vinte e cinco anos antes. Como essa casa estava agora sob a sua alçada, César teria de examiná-la, decidir o que havia de fazer e obter os fundos necessários para as reparações (bastaria recorrer ao salário que ganharia se tivesse continuado a ser flamen Dialis). Depois, arrendá-la-ia por uma fortuna a um cavaleiro em ascensão, desejoso de possuir uma residência no Fórum Romanum. Roma seria recompensada.
Mas primeiro tinha de pensar na Régia e nos escritórios do Pontifex Maximus.
A Régia era o mais velho edifício do Fórum, pois, segundo se dizia, fora a casa de Numa Pompílio, o segundo rei de Roma. Nenhum sacerdote, excepto o Pontifex Maximus e o Rex Sacrorum, podia entrar na Régia, embora as vestais assistissem o Pontifex Maximus quando este fazia as oferendas a Ops; por outro lado, quando sacrificava o seu carneiro na Régia, o Rex Sacrorum também recorria aos sacerdotes habituais para o ajudarem e o lavarem depois do sacrifício.
Quando César entrou na Régia, sentiu a pele arrepiar-se e o cabelo eriçar-se, tão terrível e profunda era para ele aquela experiência. Tremores de terra haviam obrigado à sua reconstrução em pelo menos duas ocasiões durante a República, mas sempre com os mesmos alicerces e sempre com os mesmos blocos de tufo sem qualquer adorno. Não, pensou César, olhando à sua volta, a Régia nunca fora uma casa. Era demasiado pequena e não tinha janelas. A sua configuração, decidiu, era provavelmente deliberada, para além de muito estranha — tão estranha que só poderia ser entendida como parte de algum mistério ritual. Era um quadrilátero do género a que os Gregos chamavam trapézio; para mais, não havia nesse trapézio lados paralelos. Que significado religioso tivera a Régia para aquela gente que vivera há tanto, tanto tempo? O edifício nem sequer estava virado numa direcção particular (aliás, antes de se pensar nesse aspecto, ter-se-ia de descobrir qual das quatro paredes era a fachada). Provavelmente, a solução estava aí — não te vires para nenhum ponto cardeal e não ofendas nenhum Deus. Sim, aquele edifício fora um templo desde o momento da sua concepção. Fora ali que o rei Numa Pompílio celebrara os ritos da infância de Roma.
Havia um santuário encostado à parede mais curta; claro que também lá estava Ops, um numen sem rosto nem substância ou sexo (por uma questão de conveniência, Ops era um nome feminino), que dirigia as forças que mantinham o Tesouro de Roma repleto e o seu povo bem alimentado. Num extremo do telhado havia um buraco sob o qual, num pátio minúsculo, cresciam dois loureiros, muito esguios e sem ramos até à altura em que espreitavam pelo buraco para absorver um pouco de sol. Este pátio não tinha paredes à sua volta até ao tecto — o construtor limitara-se a rodear os loureiros com um bloco de tufo que dava pela cintura de um homem. E entre esta cerca de tufo e a parede do fundo, encontravam-se os vinte e quatro Escudos de Marte, convenientemente empilhados em quatro séries, e também as vinte e quatro Lanças de Marte, arrumadas no canto mais próximo da Sacra Via.
Parecia a coisa mais natural do mundo que César entrasse ali, como servo daquele lugar! Ele, um Júlio descendente de Marte. Com uma invocação ao deus da Guerra, retirou cuidadosamente a cobertura de cabedal de uma das pilhas de escudos; com a respiração suspensa, fitou os escudos. Vinte e três eram réplicas; apenas um deles era o verdadeiro escudo que caíra do céu por ordem de Júpiter, para proteger o rei Numa Pompílio dos seus inimigos. Mas as réplicas tinham a mesma idade que o escudo oferecido por Júpiter, e só o rei Numa Pompílio ficara a saber qual dos escudos era o original. De acordo com a lenda, o rei fizera isso propositadamente, a fim de confundir os potenciais ladrões; só o escudo enviado por Júpiter tinha poderes mágicos. Os outros escudos iguais a esse estavam em pinturas murais em Creta e no Peloponeso grego; tinham quase a altura de um homem e a sua forma fazia lembrar duas lágrimas que se juntavam para formar uma cintura estreita; haviam sido feitos com madeira-de-lei, maravilhosamente trabalhada, e cobertos com peles (todas em branco e preto) de animais, bem retesadas. Encontravam-se ainda em condições razoáveis, muito provavelmente porque, todos os meses de Março e Outubro, eram arejados: precisamente na altura em que os Sálios, sacerdotes patrícios, faziam a sua dança de guerra pelas ruas de Roma, a fim de marcarem o princípio e o final da velha época das campanhas. E ali estavam eles, os seus escudos. As suas lanças. Nunca os vira tão perto, já que, na idade em que poderia ter sido um dos Sálios, fora obrigado a desempenhar o cargo de flamen Dialis.
O local encontrava-se imundo e delapidado — teria de falar com Lúcio Cláudio, o Rex Sacrorum, para que obrigasse o seu grupo de ajudantes sacerdotais a trabalhar mais! Sentia-se um fedor a sangue velho por todo o lado, apesar do buraco que havia no telhado; além disso, o chão estava cheio de excrementos de rato. Era um milagre que os Escudos Sagrados não tivessem sofrido grandes danos. Há séculos que os ratos deveriam ter comido as peles que os cobriam. Uma série de compartimentos para livros, encostados à parede mais comprida, não tivera a mesma sorte, mas umas quantas dúzias de tábuas de pedra, arrumadas ao lado, derrotariam os dentes mais aguçados. Pois bem, estava na hora de reparar os danos causados pelo tempo e pelos roedores!
— Suponho — disse ele a Aurélia, nessa tarde — que não posso levar para a Régia um bom cão de caça ou umas gatas com ninhadas. Isso é muito capaz de constituir uma infracção às nossas leis religiosas. Mas sem cão nem gato, como poderei ver-me livre dos ratos?
— Quer-me parecer que a existência de ratos na Régia deveria ser uma infracção tão grave como a presença de um cão ou de um gato — retorquiu Aurélia. — Mas entendo o que queres dizer. Contudo, César, não é uma grande dificuldade. As duas velhas que cuidam das latrinas públicas na Subura Minor conhecem um homem que faz umas ratoeiras espantosas. Umas caixinhas alongadas com uma porta numa das extremidades. A porta está equilibrada sobre um ponteiro e o ponteiro está ligado a um fio, o qual, por sua vez, está preso a um bocado de queijo espetado num gancho no fundo da caixa. Quando o rato tenta tirar o queijo, a porta fecha-se. Mas atenção: é preciso que o indivíduo que for tirar os ratos das caixas para os matar não tenha medo deles. Se tiver medo, os ratos fogem.
— Mater, tu sabes tudo...! Posso deixar a teu cargo a compra de umas quantas ratoeiras?
— Claro — disse ela, satisfeita consigo mesma.
— Nunca houve ratos na nossa ínsula.
— Nem poderia haver! Sabes perfeitamente que o nosso querido Lúcio Decúmio não passa sem um cão.
— E todos os cães que teve se chamaram Fido.
— E todos eles excelentes caçadores...
— Já reparei que as nossas vestais preferem os gatos.
— São animais muito úteis, conquanto que sejam fêmeas. — Havia alguma malícia no seu olhar. — Percebe-se porque é que as vestais não têm gatos machos, mas a verdade é que, no caso dos gatos, são as fêmeas que caçam. Em contrapartida, entre os cães, são os machos que costumam dar bons caçadores. O problema das gatas, segundo Licínia, é as ninhadas; mas ela mostra-se muito firme a esse respeito, mesmo quando as crianças lhe pedem por tudo que fique com os gatinhes. Licínia não cede: afoga os gatinhes mal eles nascem.
— E Júnia e Quintília desfazem-se em lágrimas...
— Todos nós — disse Aurélia — nos devemos habituar à ideia da morte. E também à ideia de que nem sempre os nossos desejos podem ser satisfeitos.
Como isto era incontestável, César mudou de assunto. — Consegui salvar cerca de vinte compartimentos para livros, mais o seu conteúdo, naturalmente, um tanto desfigurado mas razoavelmente intacto. Parece que os meus antecessores pensaram em pôr o conteúdo em novos compartimentos sempre que os velhos começavam a desintegrar-se devido à acção dos ratos, mas teria sido mais sensato eliminar os ratos. Para já, vou guardar os documentos aqui no meu gabinete — quero lê-los e catalogá-los.
— Arquivos, César?
— Sim, mas não da República. Remontam a alguns dos nossos primeiros reis.
— Ah! Compreendo por que te interessam tanto esses documentos. Sempre tiveste uma grande paixão por leis e arquivos antigos. Mas conseguirás lê-los? São indecifráveis, com toda a certeza...
— Não. Estão escritos em bom latim, enfim, no latim que se escrevia há cerca de trezentos anos, e além disso o pergaminho é de Pérgamo. Imagino que um dos Pontífices Maximi dessa época decifrou os originais e fez estas cópias — recostou-se no seu divã.
— Também encontrei tábuas de pedra, com a mesma escrita da esteia do poço do Lápis Niger. Uma escrita tão arcaica que nem parece latim. Provavelmente, é uma língua precursora do latim, como a que é usada nas canções dos Sálios. Mas não te preocupes que eu acabarei por decifrar as tábuas!
A mãe fitou-o com muito afecto, mas também com alguma gravidade. — Espero que, no meio dessa exploração religiosa e histórica, encontres tempo para te lembrares de que vais disputar este ano o cargo de pretor. É evidente que tens de prestar a devida atenção aos teus deveres de Pontifex Maximus, mas não podes negligenciar a tua carreira no Fórum.
César não se esquecera das eleições; o vigor e o ritmo da sua campanha eleitoral não foram afectados pelo facto de as lamparinas do seu gabinete arderem até altas horas da noite, enquanto trabalhava naquilo a que decidira chamar os Comentários dos Reis. E graças a todos os deuses que aquele Pontifex Maximus desconhecido decifrara esses Comentários e os copiara em pergaminho de Pérgamo! Onde estavam os originais, ou como eram os originais, César não sabia. Na Régia não estavam; e não seriam por certo idênticos às tábuas de pedra que descobrira. Quanto às tábuas — decidiu ele, após um estudo preliminar —, não havia dúvida que eram registos históricos e que datavam dos primeiros reis, talvez mesmo de Numa Pompílio. Ou de Rómulo? Só de pensar nisso sentia um calafrio. Contudo, nada do que encontrava no pergaminho ou na pedra apontava para uma crónica desses tempos remotos. Todos os textos diziam respeito a leis, normas, ritos religiosos, preceitos, funções e funcionários. Em breve teriam de ser publicados; toda a Roma devia conhecer o que estava guardado na Régia. Varrão ficaria extasiado, e Cícero fascinado. César daria uma festa.
Como que para coroar aquele que fora um ano extraordinário de altos e baixos para César, quando as eleições curuis se realizaram no princípio de Quinctilis, o seu nome foi o mais votado nas eleições pretorianas. Todas as Centúrias o escolheram como pretor; podia sossegar até que fosse eleito o último dos pretores. Filipe, o seu amigo dos tempos de Mitilene, seria seu colega; tal como o irmão mais novo de Cícero, o pequeno e irascível Quinto Cícero. Infelizmente, porém, Bíbulo também seria pretor.
Quando o sorteio decidiu que tarefas teria cada um dos pretores, a vitória de César foi total. O seu nome surgiu na primeira bola; seria pretor urbano, o pretor mais importante entre os oito eleitos. Isso significava que Bíbulo não poderia incomodá-lo (ficara com o tribunal que julgava os casos de violência) — mas que ele poderia certamente incomodar Bíbulo!
Era tempo de fazer sofrer Domícia, rejeitando-a. Domícia revelara-se discreta, daí que Bíbulo não fizesse a mínima ideia de que a sua esposa o enganava com César. Mas desconfiaria, mal a visse chorar e lastimar-se. Todas choravam, todas se lastimavam. Uma única excepção: Servília. Talvez fosse por isso que, entre tantas, só ela continuasse, ao fim de tanto tempo, a ser sua amante.
Para grande infortúnio de Cícero, o seu consulado começou com uma severa depressão económica; não podia ser mais profundo o seu desalento, já que a economia não era propriamente a sua especialidade. Não, de facto aquele não era o consulado com que sonhara! Queria que as pessoas dissessem, depois de deixar o cargo, que ele dera a Roma o mesmo tipo de prosperidade tranquila que normalmente era associado ao consulado de Pompeu e Crasso, exercido sete anos antes. Sendo Híbrida o seu colega júnior, era inevitável que todos os louros fossem para ele, o que significava que não teria de acabar o ano de relações cortadas com Híbrida, como acontecera com Pompeu e Crasso.
Os problemas económicos de Roma vinham do Oriente, que estivera fechado aos homens de negócios romanos durante mais de vinte anos. Primeiro, o rei Mitridates conquistara o Oriente; depois, Sila vencera Mitridates, mas introduzira regulamentos financeiros muito engenhosos, que impediam os cavaleiros de Roma de voltarem aos bons velhos tempos em que podiam sugar à vontade as riquezas orientais. Além disso, o problema da pirataria não encorajava os negócios a leste da Macedónia e da Grécia. Por conseguinte, aqueles que cobravam impostos, que emprestavam dinheiro, ou que negociavam mercadorias como o trigo, o vinho e a lã, guardavam o capital em casa; um fenómeno que se ampliou no seguimento da guerra contra Quinto Sertório na Hispânia e também em consequência de sucessivos anos de seca que originaram um decréscimo nas colheitas. As duas extremidades do Nosso Mar tinham-se tornado áreas arriscadas ou impraticáveis para os eventuais empresários e investidores.
Tudo isto contribuíra para que, durante vinte anos, o capital e o investimento se concentrassem em Roma e na Itália. Os cavaleiros ou homens de negócios romanos não encontravam oportunidades sedutoras nas regiões ultramarinas; daí que não precisassem de procurar grandes maquias. A taxa de juro dos empréstimos era baixa, as rendas eram baixas, a inflação era elevada, e os credores não tinham pressa nenhuma em que as suas dívidas fossem liquidadas.
O infortúnio de Cícero teria de ser inteiramente imputado a Pompeu. Em primeiro lugar, o Grande Homem acabara com os piratas; depois, expulsara Mitridates e Tigranes das regiões que, noutros tempos, costumavam integrar-se na esfera comercial e financeira romana. Abolira também os regulamentos financeiros de Sila, embora Lúculo tivesse teimado em mantê-los — e essa fora a razão, a única razão, por que os cavaleiros tinham pressionado o poder para que substituísse Lúculo por Pompeu. Assim, quando Cícero e Híbrida assumiram os seus cargos, uma verdadeira cornucópia de oportunidades para negócios surgia finalmente no Oriente. A província da Ásia e a Cilícia eram agora quatro províncias; Pompeu acrescentara ao império as novas províncias de Bitínia-Ponto e da Síria. Impôs-lhes uma organização idêntica à das outras duas, atribuindo às grandes companhias de publicam sediadas em Roma o direito de cobrar taxas, impostos e tributos. Os contratos privados firmados pelos censores poupavam ao Estado o fardo da cobrança das taxas e obstavam à proliferação de funcionários civis. Os publicani que tivessem as dores de cabeça! Tudo o que o Tesouro queria era a sua parte nos lucros.
Em consequência desta nova tendência, o capital começou a sair de Roma, atraído pelos negócios orientais. Daí que a taxa de juro subisse dramaticamente, que os usurários decidissem de súbito reivindicar o pagamento das dívidas, que o crédito se tornasse difícil. Nas cidades, as rendas subiram em flecha; no campo, os agricultores ficavam sem dinheiro por causa das hipotecas que tinham de pagar. Inevitavelmente, o preço dos cereais — incluindo os cereais distribuídos pelo Estado — subiu muito. Somas monumentais escapavam-se de Roma e ninguém no governo sabia como controlar a situação.
Informado por amigos como o cavaleiro plutocrata Tito Pompónio Ático (que não tencionava revelar a Cícero demasiados segredos comerciais) de que o escoamento de dinheiro se devia ao facto de os Judeus residentes em Roma enviarem os seus lucros para a Judeia natal, Cícero depressa promulgou uma lei proibindo os Judeus de mandarem dinheiro para casa. Claro que a lei poucos efeitos teve, mas o cônsul sénior não sabia o que mais fazer — nem Ático estava disposto a elucidá-lo.
Não estava na natureza de Cícero aceitar que o seu ano no consulado se transformasse numa missão tão vã quanto impopular; daí que resolvesse concentrar-se em matérias em que se considerava excelente; a situação económica acabaria por encontrar um ponto de equilíbrio, sem qualquer intervenção, ao passo que as leis, bom, as leis não podiam passar sem um toque pessoal. O seu ano significava que Roma, por uma vez, tinha um cônsul legislador. Logo, Cícero legislaria.
Em primeiro lugar, atacou a lei que o cônsul Caio Pisão promulgara quatro anos antes contra o suborno nas eleições consulares. Também ele culpado de subornar em massa, Pisão fora obrigado a legislar contra esse crime. Talvez não ilogicamente, a lei de Pisão estava cheia de buracos, que permitiam aos infractores um sem número de saídas; Cícero tratou de tapar os buracos mais ofensivos e a lei começou a ficar com um aspecto apresentável.
E depois disso, que outra lei clamava a sua intervenção? Ah, sim, uma lei muito especial... Os homens que acabavam de governar uma província pretoriana e que tinham praticado extorsão nessa província e que tencionavam escapar ao julgamento fazendo-se eleger cônsules in absentia! Os pretores enviados para o governo de províncias tinham mais tendência a praticar a extorsão do que os governadores-cônsules; havia oito governadores-pretores nesse caso, para apenas dois governadores-cônsules, o que significava que a maior parte deles sabia que a sua única hipótese de fazer fortuna no governo de uma província era na qualidade de governador-pretor. No entanto, como é que, depois de ter sugado todas as riquezas da sua província, um governador-pretor conseguia evitar o julgamento por extorsão? Se fosse um forte candidato ao consulado, o melhor processo consistia em pedir ao Senado que o autorizasse a disputar as eleições consulares in absentia. Um detentor de imperium não podia ser processado. Se esse governador-pretor não atravessasse os limites sagrados de Roma, manteria o imperium que Roma lhe dera para governar a sua província. Portanto, podia esperar no Campus Martius, às portas da cidade, com o imperium intacto, e conduzir a sua campanha a partir do Campus Martius; depois, se tivesse sorte e fosse eleito cônsul, reentraria em Roma com um novo imperium. Graças a este estratagema, o governador-pretor conseguiria afastar o espectro do julgamento por mais dois anos. Ao fim desses dois anos, já os habitantes da província que tencionavam processá-lo teriam desistido e regressado a casa. Pois bem, atroou Cícero no Senado e nos Comitia, esse género de coisas tem de acabar! Portanto, ele e o seu colega júnior, Híbrida, propunham que qualquer governador-pretor prestes a regressar a Roma fosse impedido de disputar as eleições consulares in absentia. Ele que entrasse em Roma e se submetesse ao julgamento! E como o Senado e o Povo consideravam esta medida excelente, a nova lei foi aprovada. E que mais havia Cícero de fazer? Cícero pensou, reflectiu, matutou. Estudou todas as leis que poderiam elevar a sua reputação. A sua reputação de luminar das leis, e não de cônsul, infelizmente. Do que Cícero precisava era de uma crise, mas de uma crise que não fosse económica.
Não ocorreu a Cícero que a segunda metade do seu consulado lhe pudesse proporcionar essa tão desejada crise, nem mesmo quando, na sequência do sorteio, ficou com o dever de presidir às eleições a realizar em Quinctilis. De início, nem sequer se apercebeu claramente das ramificações que decorreriam da intempestiva invasão da sua privacidade pela mulher, Terência, não muito antes dessas eleições.
Terência irrompeu pelo escritório do marido, com a sua habitual sem cerimónia e sem o mínimo respeito pelo carácter sagrado das elucubrações do marido.
— Cícero, pára imediatamente com o que estás a fazer! — clamou ela.
Cícero largou imediatamente a pena; ergueu os olhos, procurando não trair o desânimo criativo que a brutal invasão provocara. — Sim, minha querida, o que é? — perguntou ele, sem azedume.
Terência afundou-se na cadeira dos clientes. Estava com um ar soturno, mas, como não lhe conhecia outro ar, Cícero não fazia a mínima ideia da causa daquela soturnidade específica; só esperava, sinceramente esperava, que não fosse nada que ele tivesse feito.
— Tive uma visita esta manhã — disse ela.
Cícero preparava-se para lhe perguntar o que havia de especial no facto de ter visitas; contudo, conteve a língua, um órgão que, nele, não costumava obedecer a normas; parecia que só Terência conseguia ter algum poder sobre tão indomável órgão. Daí que Cícero decidisse fingir-se interessado, esperando que a mulher prosseguisse.
— Uma visita — repetiu ela. Fungou, e acrescentou: — Ninguém que pertença ao meu círculo de amigas! Garanto-te que não pertence, marido! Sabes quem foi? Fúlvia!
— A mulher de Públio Clódio? — perguntou ele, estupefacto.
— Não, não! Fúlvia Nobilioris.
Este esclarecimento não contribuiu para diminuir a estupefacção, já que a Fúlvia em causa era uma criatura de péssima reputação. Embora de excelentes famílias, Fúlvia Nobilioris caíra em desgraça devido ao divórcio; não tinha bens nem rendimentos dignos de nota e, para cúmulo, mantinha uma ligação com Quinto Curió, o mesmo que fora expulso do Senado durante a famosa purga de Poplicola e Lêntulo Clodiano, ocorrida sete anos antes. Uma visita absolutamente inapropriada para uma mulher como Terência, tão famosa pela rectidão como pelo mau humor.
— Por todos os deuses...! Mas que raio é que essa mulher queria de ti?
— Para dizer a verdade, até nem desgostei dela — retorquiu Terência, com um ar pensativo. — Coitada, não passa de mais uma vítima dos homens...!
Que havia ele de responder àquilo? Resposta nenhuma... Um balbucio inarticulado, foi tudo o que Cícero conseguiu produzir.
— Ela foi visitar-me porque esse é o procedimento que uma mulher deve adoptar quando pretende falar com um homem casado e tão proeminente como tu.
E um homem casado contigo, acrescentou Cícero, silenciosamente.
— Claro que não te vais negar a recebê-la, mas eu vou dar-te desde já as informações que ela me deu — disse a mulher cujo olhar era capaz de transformar Cícero numa pedra. — Parece que o... enfim... o protector dela, Curió, se tem comportado de uma forma muito estranha ultimamente. Depois da sua expulsão do Senado, a situação financeira de Curió passou por problemas gravíssimos. De tal modo que, agora, ele não consegue sequer disputar um cargo de tribuno da plebe, o que seria uma forma, provavelmente a única, de voltar à vida pública. Contudo, de súbito, desatou a falar das suas grandes expectativas, chegando mesmo a dizer que em breve será rico e que chegará a uma posição elevada. Ao que parece — prosseguiu Terência, num tom condenatório — esta mudança adveio da sua convicção de que Catilina e Lúcio Cássio serão os cônsules do próximo ano.
— Ah... com que então foi para esse lado que Catilina caiu, ha? Quer ser cônsul com esse gordo idiota e letárgico que dá pelo nome de Lúcio Cássio...! — disse Cícero.
— E vão apresentar as suas candidaturas amanhã, quando abrires o tribunal eleitoral.
— Tudo isso está muito bem, minha querida, mas não estou a ver como é que um consulado de Catilina e Lúcio Cássio poderá promover Curió a uma súbita abastança e eminência.
— Curió tem falado de um cancelamento geral das dívidas. Cícero ficou de queixo caído. — Não seriam idiotas a esse
ponto...!
— Porque não? — perguntou Terência, encarando friamente o assunto. — Pensa um pouco, Cícero! Catilina sabe que, se não for eleito este ano, nunca mais terá hipóteses de se tornar cônsul. Será para ele uma batalha terrível, caso se candidatem todos os homens que estão a pensar candidatar-se. Silano está muito melhor de saúde e ninguém duvida que disputará as eleições. Pelo menos é o que me tem dito a minha querida amiga Servília. Murena é apoiado por muita gente influente; disse-me Fábia que Murena está a usar ao máximo a sua ligação às vestais, através de Licínia, sua prima. Quem é que temos mais? O teu amigo Sérvio Sulpício Rufo, que conta grandes apoios entre as Dezoito e os tribuni aerarii, o que significa que terá bons resultados na Primeira Classe. Que podem Catilina e um parceiro como Lúcio Cássio oferecer, contra homens tão valorosos como Silano, Murena e Sulpício? Dos dois cônsules, só um poderá ser patrício, o que significa que a votação nos patrícios dividir-se-á entre Catilina e Sulpício. Eu, se votasse, escolheria Sulpício!
Franzindo muito a testa, Cícero esqueceu por um momento o terror que a mulher lhe infundia e falou-lhe como se ela fosse um dos seus colegas do Fórum. — Então, pelo que me dizes, a grande proposta de Catilina é um cancelamento geral das dívidas... É isso, não é?
— Bom, isso foi o que Fúlvia me disse. Limitei-me a citá-la textualmente.
— Tenho de vê-la imediatamente! — exclamou Cícero, levantando-se repentinamente.
— Deixa isso comigo, eu mando-a chamar! — retorquiu Terência.
O que, evidentemente, significava que Cícero não poderia falar a sós com Fúlvia Nobilioris; Terência tencionava estar presente — presente e muito atenta a todas as palavras e, sobretudo, a todos os olhares.
O problema é que Fúlvia Nobilioris pouco mais adiantou; limitou-se a repetir a sua história, com um ar extremamente perturbado. Curió estava cheio de dívidas e não largava o vício do jogo, tão-pouco o da bebida; só se dava com Catilina, Lúcio Cássio e os amigos destes, e, sempre que regressava de alguma reunião com eles, prometia à amante todo o tipo de venturas e prosperidades.
— Por que razão vieste contar-me isso, Fúlvia? — perguntou Cícero, tão perplexo como ela parecia estar, já que não conseguia perceber que motivos originavam tão profundo terror. Um cancelamento geral das dívidas era uma má notícia, mas.
— Tu és o cônsul sénior! — exclamou ela, chorando e batendo no peito. — Eu tinha de dizer a alguém!
— O problema é que não me trouxeste nenhuma prova de que Catilina tenciona realmente propor um cancelamento geral das dívidas. Preciso de um panfleto, de uma testemunha em que possa confiar! Tudo o que me deste foi uma história e eu não posso ir para o Senado com uma coisa tão pouco concreta como uma história contada por uma mulher.
— Mas é errado o que eles estão a fazer, não é? — perguntou ela, limpando as lágrimas.
— É, é profundamente errado, e tu fizeste muito bem em vir contar-me. Mas preciso de provas — disse Cícero.
— O máximo que posso dar-te são alguns nomes.
— Dize lá então.
— Dois homens que foram centuriões de Sila — Caio Mânlio e Públio Fúrio. Possuem terras na Etrúria. Têm andado a dizer às pessoas que virão a Roma por causa das eleições que, se Catilina e Cássio ganharem, as dívidas serão canceladas.
— Mas dize-me uma coisa, Fúlvia: como é que eu vou relacionar, perante os senadores, dois ex-centuriões das legiões de Sila com Catilina e Cássio?
— Não sei!
Suspirando, Cícero levantou-se. — Muito bem, Fúlvia, agradeço muito sinceramente a tua colaboração — disse ele. — Continua atenta. Procura descobrir exactamente o que se está a passar. Logo que tenhas provas concretas das irregularidades dessa gente, vem ter comigo. — Sorriu para ela, fazendo votos para que o sorriso fosse unicamente platónico. — Mantém-te em contacto com a minha mulher. Terência manter-me-á informado.
Depois de Terência ter acompanhado Fúlvia à porta, Cícero sentou-se de novo, a fim de ponderar sobre aquela estranha história. Mas não teve muito tempo para se entregar a tal luxo: Terência regressou ao seu escritório momentos depois.
— Que achas disto tudo? — perguntou ela.
— Quem me dera saber, minha querida.
— Pois bem — disse ela, curvando-se sobre a secretária toda entusiasmada, porque, se havia coisa de que gostava, era de dar conselhos políticos ao marido. — Vou dizer-te o que acho! Acho que Catilina está a preparar uma revolução!
Cícero ficou de boca aberta. — Revolução?! — exclamou, com uma voz aguda.
— Exactamente: revolução!
— Terência... Entre uma campanha eleitoral que promete um cancelamento geral das dívidas e uma revolução — uma revolução, Terência! —, vai uma grande, uma imensa, distância...!
— Não vai, não, Cícero. Como podem cônsules legalmente eleitos lançar uma medida revolucionária como um cancelamento geral das dívidas? Sabes perfeitamente que isso não passa de uma manobra cujo objectivo final é o derrube do Estado. Lembra-te de Saturnino. De Sertório. Como é que cônsules legalmente eleitos poderiam pôr a hipótese de legislar tal medida? Mesmo que a apresentassem ao Povo nas tribos, pelo menos um tribuno da plebe vetá-la-ia na contio, quanto mais na promulgação formal. E achas que aqueles que defendem um cancelamento geral das dívidas não sabem disso tudo? Claro que sabem! Quem votar em cônsules que advoguem tal política, estará a optar por uma única cor, a da revolução!
— E essa cor — disse Cícero, com um ar grave —, é o vermelho. A cor do sangue. Ah, Terência, isso não acontecerá no meu consulado!
— Tens de impedir a candidatura de Catilina — disse Terência.
— Só o posso fazer se tiver provas.
— Nesse caso, só temos uma coisa a fazer: encontrar provas. — Levantou-se e encaminhou-se para a porta. — Quem sabe? Pode ser que eu e Fúlvia consigamos convencer Quinto Curió a testemunhar.
— Isso seria uma grande ajuda — disse Cícero, algo desanimado.
A semente estava lançada; Catilina planeava uma revolução, só podia estar a planear uma revolução. E embora os acontecimentos dos meses seguintes parecessem confirmar essa hipótese, Cícero nunca veio a saber, de facto, se a ideia de uma revolução ocorrera a Lúcio Sérgio Catilina antes ou depois das fatídicas eleições.
Lançada a semente, o cônsul sénior tratou de desenterrar o máximo possível de informações. Mandou agentes à Etrúria, e também ao outro núcleo tradicional de sedição, a Apúlia samnita. E, de facto, todos esses agentes regressaram com a confirmação de que corria o boato de que, se Catilina e Lúcio Cássio fossem eleitos, o cancelamento geral das dívidas seria promulgado. Quanto a provas mais tangíveis, como a obtenção e distribuição de armas ou o recrutamento oculto de forças, não as havia. Contudo, disse Cícero para si mesmo, tinha ainda tempo para tentar encontrá-las.
As eleições curuis para cônsules e pretores decorreriam no décimo dia de Quinctilis; no nono dia, Cícero adiou-as sumariamente para o décimo primeiro dia e convocou o Senado para o décimo dia.
Como seria de esperar, registou-se nesse dia uma invulgar afluência de senadores; excitada a sua curiosidade, todos os que não se encontravam prostrados pela doença ou ausentes de Roma apareceram suficientemente cedo para verem com os seus próprios olhos o muito admirado Catão, com um monte de rolos de pergaminhos aos seus pés e um outro rolo na mão, bem esticado, lendo-o lentamente e com toda a concentração.
— Patres Conscripti — disse o cônsul sénior, depois de concluídos todos os rituais e formalidades —, convoquei-os não para as eleições nas saepta, mas para me ajudarem a solucionar um mistério. Peço desde já desculpa àqueles que, por esse motivo, sofreram prejuízos, e só posso esperar que o resultado da nossa sessão permita que as eleições se realizem amanhã.
Os senadores desejavam avidamente uma explicação, quanto a isso não restavam dúvidas: bastava olhar para aquelas expressões expectantes. Mas, por uma vez, Cícero não estava com disposição para brincar com a sua audiência. A sua intenção era outra: revelar o caso, fazer com que Catilina e Lúcio Cássio entendessem que a sua manobra, depois de conhecida, se tornava inútil, e cortar pela raiz quaisquer desígnios sediciosos de Catilina. Nem por um momento pensou que a visão que Terência tinha de uma revolução abarcasse mais do que conversas ociosas bem regadas pelo vinho e umas quantas medidas económicas normalmente mais associadas a desígnios revolucionários do que a cônsules respeitadores da lei. Depois de Mário, Cina, Carbão, Sila, Sertório e Lépido, até mesmo Catilina devia ter aprendido que não era fácil destruir a República. Catilina era um indivíduo nocivo — toda a gente estava consciente disso —, mas nunca desempenhara uma magistratura, nunca possuíra imperium ou um exército, e tinha muito menos clientes na Etrúria do que um Mário ou um Lépido. Portanto, do que Catilina precisava era de um susto que o fizesse entrar na linha.
Ninguém — pensou o cônsul sénior, enquanto o seu olhar passeava pelas várias bancadas do Senado —, ninguém fazia a mínima ideia do que eventualmente pudesse estar a acontecer. Crasso mostrava um ar impassível, Catulo parecia simplesmente mais velho e o seu cunhado Hortênsio um pouco mais usado, Catão, como sempre, parecia um cão agressivo pronto a atacar, César afagava o cocuruto da cabeça, certificando-se de que o cabelo, cada vez mais escasso, ainda chegava para lhe cobrir o couro cabeludo, Murena estava sem dúvida furioso com o adiamento, e Silano não parecia tão bem de saúde como os seus apoiantes diziam. E finalmente entre os consulares sentava-se o grande Lúcio Licínio Lúculo, triunfador. Cícero, Catulo e Hortênsio tinham usado de toda a sua eloquência para convencerem o Senado de que devia conceder o triunfo a Lúculo, o que significava que o verdadeiro conquistador do Oriente já podia atravessar o pomerium e sentar-se no assento a que tinha direito, tanto no Senado como nos Comitia.
— Lúcio Sérgio Catilina — disse Cícero, do estrado curul —, gostaria que te levantasses.
De início, Cícero pensara em acusar também Lúcio Cássio; porém, depois de muito pensar, resolvera que seria melhor virar-se inteiramente para Catilina. O qual já se tinha levantado, exibindo uma expressão tão perplexa quanto preocupada. Um homem belíssimo! Alto, dotado de uma constituição física muito harmoniosa, tudo nele fazia pensar nos grandes aristocratas patrícios. Como Cícero os odiava, a todos eles, os Catilinas e os Césares! Que viam eles de estranho na sua origem, tão respeitável como a deles, porque o rejeitavam, considerando-o um tumor maligno no saudável corpo romano?
— Já me levantei, Marco Túlio Cícero — disse-lhe Catilina num tom afável.
— Lúcio Sérgio Catilina, conheces dois homens chamados Caio Mânlio e Públio Fúrio?
— Sim, tenho dois clientes com esses nomes.
— Sabes onde se encontram eles actualmente?
— Em Roma, espero! Neste momento, deveriam estar no Campus Martius, votando em mim. Em vez disso, imagino que devem estar algures numa taberna qualquer.
— E por onde têm andado recentemente?
Catilina ergueu muito as sobrancelhas negras. — Marco Túlio, eu não exijo aos meus clientes que me comuniquem todos os seus movimentos! Eu sei que vales muito pouco, mas terás assim tão poucos clientes, ao ponto de não conheceres o protocolo que rege as relações entre clientes e patrono?
Cícero ficou vermelho. — Ficarias surpreendido se te dissesse que Mânlio e Fúrio têm sido vistos, nos últimos tempos, em Fesulas, Volaterras, Clúsio, Satúrnia, Larino e Venúsia?
Catilina pestanejou. — Como poderia ficar surpreendido, Marco Túlio? Ambos têm terras na Etrúria e Fúrio também tem terras na Apúlia.
— E ficarias surpreendido se te dissesse que Mânlio e Fúrio têm andado a dizer a todas as pessoas cujos votos contam nas eleições centuriais que tu e o teu colega, Lúcio Cássio, tencionam promulgar um cancelamento geral das dívidas logo que se inicie o vosso consulado?
Esta pergunta provocou um riso divertido. Quando parou de rir, Catilina olhou para Cícero como se este tivesse de repente enlouquecido. — Ah, Marco Túlio, claro que ficaria surpreendido! Muito surpreendido! — disse ele.
O Senado, que começara a agitar-se no instante em que Cícero pronunciara aquela horrenda expressão — cancelamento geral das dívidas —, lançava-se agora numa murmuração perfeitamente audível. Claro que muitos dos presentes necessitavam desesperadamente de tão radical medida, agora que os usurários os perseguiam, exigindo o pagamento das dívidas — incluindo César, o novo Pontifex Maximus —, mas poucos eram aqueles que não se apercebiam das dramáticas consequências económicas que um cancelamento geral das dívidas significaria. Apesar dos seus problemas financeiros, os membros do Senado revelavam-se conservadores empedernidos sempre que debatiam mudanças radicais, incluindo as que diziam respeito à organização financeira. E para cada senador com problemas de dinheiro, havia três que perderiam muito dinheiro se houvesse um cancelamento geral das dívidas — homens como Crasso, Lúculo, o ausente Pompeu Magno. Não era, pois, surpreendente que tanto César como Crasso se espetassem agora todos para a frente, como cães furiosos por lhes terem posto a trela.
— Tenho investigado exaustivamente na Etrúria e na Apúlia, Lúcio Sérgio Catilina — disse Cícero. — E lamento dizê-lo, mas creio que esses boatos são verdadeiros. Creio que tencionas cancelar as dívidas.
A reacção de Catilina foi só uma — rir. Um riso que parecia não ter fim. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto; segurava o corpo; tentou ardorosamente controlar a sua hilaridade e por várias vezes perdeu a batalha. Lúcio Cássio, que não estava muito longe dele, preferiu a indignação; estava literalmente vermelho de raiva.
— Que disparate! — exclamou Catilina logo que pôde, limpando o rosto com uma dobra da toga, porque não conseguira ainda controlar-se o suficiente para descobrir o lenço. — Nunca ouvi maior disparate!
— Estás disposto a jurar que não são essas as tuas intenções? — perguntou Cícero.
— Não, nem pensar! — atirou-lhe Catilina, empertigando-se. — Eu, um patrício Sérgio, fazer um juramento por causa das queixas infundadas e maliciosas de um imigrante de Arpino? Mas quem é que tu pensas que és, Cícero?
— Sou o cônsul sénior do Senado e do Povo de Roma — retorquiu Cícero com dolorosa dignidade. — Não sei se te lembras, mas sou o homem que te derrotou nas últimas eleições curuis! E, como cônsul sénior, sou o chefe deste Estado.
Outro acesso de riso, e Catilina respondeu: — Diz-se que Roma tem dois corpos, Cícero! Um é fraco e tem a cabeça de um idiota, o outro é forte mas não tem cabeça nenhuma. Com qual desses corpos te identificas, ó chefe deste Estado?
— Por certo não me identifico com o que tem a cabeça de um idiota, Catilina! Eu sou o pai e guardião de Roma durante este ano e tenciono cumprir o meu dever, mesmo em situações tão bizarras como esta! Negas por completo que planeias cancelar todas as dívidas?
— Claro que nego!
— Mas não estás disposto a jurar.
— Nem pensar! — Catilina respirou fundo. — Não, não jurarei! Contudo, ó chefe deste Estado, a tua indigna conduta e as tuas acusações infundadas são de molde a levar um homem na minha posição a pensar que se o corpo de Roma, forte mas sem cabeça, tivesse de encontrar uma cabeça, talvez fizesse bem em escolher a minha! É que pelo menos a minha é romana! Pelo menos a minha tem antepassados valorosos! Tu estás apostado em arruinar-me, Cícero, em minar as minhas possibilidades naquelas que, ainda ontem, eram eleições equilibradas e limpas! Eis-me difamado e injustamente acusado, eis-me transformado na vítima inocente de um presunçoso arrivista que veio das montanhas e que, no seu sangue, não tem nem uma gota nobre ou romana!
Cícero teve de fazer um grande esforço para não reagir a estas injúrias, mas, apesar de tudo, conseguiu manter a calma. Se assim não fosse, perderia a batalha. Já tinha percebido que Fúlvia Nobilioris tinha toda a razão. Lúcio Sérgio Catilina podia rir-se, podia negar, mas era evidente que planeava uma revolução. Um advogado que havia enfrentado (e defendido) tantos e tantos vilões sabia reconhecer a linguagem do rosto e do corpo de um homem que não se envergonhava de comportamentos ilícitos, que adoptava a agressão, a irrisão e o teatro da virtude ofendida como a melhor de todas as defesas possíveis. Catilina era culpado — quanto a isso, Cícero deixara de ter qualquer dúvida.
E o resto do Senado, teria as mesmas certezas que ele?
— Gostaria de ouvir os vossos comentários, Paires Conscripti.
— Não, não ouvirás comentários nenhuns! — gritou Catilina, saltando do seu assento e dirigindo-se para o meio do chão preto e branco, onde parou para erguer o punho fechado na direcção de Cícero. Depois, encaminhou-se a toda a velocidade para as portas do Senado, virou-se quando lá chegou e enfrentou aquela multidão de senadores fascinados.
— Lúcio Sérgio Catilina, estás a desrespeitar as normas desta casa! — gritou-lhe Cícero, de súbito consciente de que podia estar a perder o controlo da situação. — Volta imediatamente para o teu banco!
— Não volto! Não permanecerei aqui nem mais um minuto, pois não estou disposto a ouvir esse impudente arrivista sem linhagem digna desse nome acusar-me daquilo que, segundo a minha interpretação, é pura e simplesmente traição! E oiçam bem, Paires Conscripti, isto que agora lhes digo: amanhã de manhã, estarei nas saepta para disputar as eleições! Espero sinceramente que recuperem a razão e que obriguem este idiota que dirige o Estado a cumprir o dever que o sorteio lhe atribuiu: realizar as eleições! Porque de uma coisa os aviso: se as saepta estiveram vazias amanhã de manhã, será melhor que apareças com os teus lictores, Marco Túlio Cícero, que me prendas e que me acuses de perduellio! Sim, de perduellio, porque uma acusação de maiestas é pouco para alguém cuja linhagem remonta aos conselheiros do rei Tulo Hostílio!
Catilina virou-se para as portas, abriu-as e desapareceu.
— Que tencionas fazer agora, Marco Túlio Cícero? — perguntou César, bocejando enquanto se recostava. — Ele tem razão. Partindo do mais frágil dos pretextos, acabaste, na prática, por impugnar a sua eleição.
Com os olhos enevoados, Cícero procurou um rosto que estivesse do seu lado, o rosto de alguém que acreditasse nele. Catulo? Não. Hortênsio? Não. Catão? Não. Crasso? Não. Lúculo? Não. Poplicola? Não.
Ergueu os ombros, endireitou-se. — Proponho uma divisão desta casa — disse ele, num tom firme. — Todos os que acharem que as eleições se devem realizar amanhã e que Lúcio Sérgio Catilina deve ser autorizado a disputá-las, passem para a minha esquerda. Aqueles que acham que as eleições curuis devem ser novamente adiadas, para que se possa investigar a candidatura de Lúcio Sérgio Catilina, passem para a minha direita.
Era uma iniciativa muito arriscada, apesar da astúcia de Cícero ao propor que passassem para a sua direita os senadores que eventualmente o apoiassem; quando havia divisões, ou votações, nenhum senador gostava de ir para a esquerda do cônsul — isso era entendido como um mau presságio. Mas, por uma vez, a prudência venceu a superstição. Todo o Senado foi para o lado esquerdo, permitindo assim que as eleições se realizassem na manhã seguinte e que Lúcio Sérgio Catilina as disputasse.
Cícero deu por encerrada a sessão. Nesse momento, não queria outra coisa senão refugiar-se em casa, onde poderia chorar à vontade.
Mandava o orgulho que Cícero não recuasse; e por isso presidiu às eleições curuis com uma armadura debaixo da toga, depois de ter colocado várias centenas de jovens na vizinhança das saepta, a fim de impedir quaisquer conflitos ou perturbações. Entre esses jovens encontrava-se Públio Clódio, cujo ódio a Catilina era muito mais forte do que a moderada irritação que Cícero nele provocava. E se Clódio lá estava, também o jovem Poplicola, o jovem Curião, Décimo Bruto e Marco António teriam de lá estar — todos eles eram membros do agora florescente Clube de Clódio.
Foi com profundo alívio que Cícero verificou que a Ordo Equester acreditara naquilo que o Senado não quisera aceitar. Nada podia ser mais assustador para um cavaleiro-homem de negócios do que o espectro de um cancelamento geral das dívidas, ainda que esse cavaleiro tivesse dívidas. Uma a uma, as Centúrias foram votando; e o resultado da votação acabou por ser muito claro: Décimo Júnio Silano e Lúcio Licínio Murena venceram por larga margem. Seriam eles os cônsules do próximo ano. Catilina teve menos votos do que Sérvio Sulpício, embora suplantasse Lúcio Cássio.
— Não passas de um miserável caluniador! — rosnou um dos
pretores daquele ano, o patrício Lêntulo Sura, no final daquele longo dia em que dois cônsules e oito pretores haviam sido eleitos.
— O quê? — perguntou Cícero estupefacto, oprimido pelo peso da hedionda armadura e desejoso de libertar uma cintura que, de tão larga, já não suportava tais apertos.
— Ouviste bem! Foi por tua culpa que Catilina e Cássio não ganharam as eleições, miserável caluniador! Assustaste deliberadamente os eleitores com os teus tresloucados boatos sobre as dívidas! Sim senhor, foi uma ideia muito inteligente! Para quê processá-los e dar-lhes uma hipótese de responderem? Encontraste a arma perfeita no arsenal político, não foi? A alegação irrefutável! Difamar, macular, enlamear! Catilina tinha razão a teu respeito — não passas de um impudente arrivista sem linhagem digna desse nome! E chegou a hora de pormos no seu lugar os camponeses como tu!
Cícero ficou a olhar boquiaberto, reprimindo as lágrimas que ameaçavam romper, enquanto Lêntulo Sura se afastava. Ele tinha razão a respeito de Catilina, ele tinha razão! Catilina acabaria por destruir Roma e a República!
— Não sei se te serve de consolação, Cícero — disse uma voz serena, por detrás dele —, mas gostaria de te dizer que manterei os olhos bem abertos e o faro bem apurado nos meses que se vão seguir. Reflectindo bem, creio que és muito capaz de ter razão quanto a Catilina e Cássio. Eles hoje não estavam nada satisfeitos...!
Cícero virou-se e deu com Crasso; finalmente, perdeu a calma.
— Tu! — gritou ele, com uma voz que era só raiva. — Tu é que és o grande responsável por tudo isto! Foste tu quem salvou Catilina no seu último julgamento! Foste tu que compraste o júri e que levaste Catilina a pensar que havia homens em Roma que gostariam muito de vê-lo como ditador!
— Eu não comprei o júri — retorquiu Crasso, que não parecia nada ofendido.
— Ora, não me venhas com histórias! — atirou-lhe Cícero, e desandou.
— Por que raio é que ele me respondeu assim? — perguntou Crasso a César.
— Porque pensa que tem uma crise entre mãos e não admite que o Senado não tenha concordado com ele.
— Mas eu acabei de lhe dizer que concordava com ele!
— Não penses mais nisso, Marco. Vem ajudar-me a celebrar a minha vitória eleitoral na Domus Publica do Pontifex Maximus. Ah, que bela residência, Marco! Quanto a Cícero, o que eu acho é que o pobre coitado anda desejoso de causar sensação. E agora que pensa que encontrou motivos para tal, é evidente que não vai desarmar. Cícero adoraria salvar a República — disse César, com um sorriso trocista.
— Mas eu não vou desistir! — desabafou Cícero para a mulher.
— Eu não estou vencido! Terência, mantém-te em contacto com Fúlvia e não abrandes a tua vigilância! Mesmo que Fúlvia tenha de escutar às portas, quero que ela descubra tudo o que puder — com quem se encontra Curió, para onde é que ele vai, o que é que ele faz. E se, como nós pensamos, se está a preparar uma revolução, Fúlvia terá de convencer Curió de que será melhor colaborar comigo.
— Não te preocupes que eu sei muito bem o que ando a fazer — disse ela, extremamente animada. — O Senado arrepender-se-á amargamente do dia em que decidiu defender Catilina. Tenho estado frequentemente com Fúlvia e, além disso, conheço-te muito bem. Podes ser um idiota em muitas coisas, mas quando se trata de reconhecer um vilão, nunca falhas!
— Idiota? Em que é que sou idiota? — perguntou ele, indignado.
— És idiota quando escreves poemas que não valem nada. És idiota quando procuras ganhar reputação de perito em arte. E quando gastas demasiado, em particular quando compras uma série infindável de villae, onde nunca poderias residir mesmo que estivesses constantemente a viajar, e viajar é coisa que fazes muito pouco. E quando mimas Túlia. E quando bajulas gente como Pompeu Magno.
— Basta!
Terência desistiu, observando-o com olhos que o amor nunca iluminava. O que era uma pena, pois amava-o sinceramente. Mas conhecia todas as suas fraquezas, que eram muitas, e ela não era uma mulher dada a fraquezas. Embora não nutrisse a ambição de ser considerada a nova Cornélia, mãe dos Gracos, Terência possuía todas as virtudes da matrona romana, o que fazia com que um homem com o carácter de Cícero sentisse extremas dificuldades para viver com ela. Frugal, industriosa, fria, prática, intransigente, sem papas na língua, sem medo de ninguém, e consciente de que, no que tocava à força mental, era igual a qualquer homem. Assim era Terência, que não suportava idiotas, nem mesmo quando o idiota era o marido. Nunca entendera a insegurança e o sentimento de inferioridade do marido, já que ela nascera numa família impecável e a sua linhagem não podia ser mais romana. Para Terência, o melhor que o marido tinha a fazer era descontrair-se e avançar para o coração da sociedade romana agarrado às saias dela; em vez disso, Cícero insistia em condená-la à obscuridade doméstica e fazia mil e um esforços inúteis para se reclamar de uma aristocracia a que, obviamente, nunca poderia pertencer.
— Devias falar com Quinto — disse ela.
Mas Cícero e o seu irmão mais novo eram tão incompatíveis como Cícero e Terência; daí que o cônsul sénior pusesse uma expressão de desagrado e abanasse a cabeça. — Quinto é tão mau como os outros. Acha que estou a fazer uma montanha de um balde de areia. Mas vou encontrar-me com Ático amanhã. Ático acreditou. Claro, ele é um cavaleiro e os cavaleiros possuem essa coisa preciosa que é o senso comum — pensou por um momento, e acrescentou: — Lêntulo Sura foi extremamente grosseiro comigo, hoje, nas saepta. Não consigo perceber porquê. Sei que muitos senadores me acusam de ter liquidado as possibilidades de Catilina, mas havia algo de muito estranho em Lêntulo Sura. Parecia... parecia demasiado agastado com o caso.
— Ele e a sua Júlia Antónia mais os seus hediondos enteados! — comentou Terência com o maior desprezo. — Seria difícil encontrar gente mais inepta! Francamente, não sei qual deles me irrita mais, se Lêntulo, se Júlia Antónia, se algum dos horrendos filhos dela.
— Lêntulo Sura tem-se saído muito bem ultimamente, tendo em conta que os censores o expulsaram há sete anos — disse Cícero, contemporizando. — Voltou para o Senado graças ao cargo de questor e começou tudo de novo. Ele foi cônsul antes da sua expulsão, Terência. Deve ser para ele um choque ter de voltar a ser pretor com a idade que tem.
— Ele é como a mulher: não passam de uns fracos! — retorquiu Terência, muito pouco disposta a contemporizar.
— Seja como for, uma coisa é certa: hoje foi um dia muito estranho.
Terência pôs um sorriso de desdém. — E não foi só por causa de Lêntulo Sura.
— Amanhã saberei o que Ático descobriu. É provável que seja algo de interessante — disse Cícero, bocejando, já com os olhos molhados de cansaço. — Estou cansado, minha querida. Importas-te de chamar o nosso querido Tiro? Vou ditar-lhe alguns textos.
— Realmente deves estar cansado! Não é teu costume ditar seja o que for, preferes ser tu a escrever. Está bem, eu vou chamar Tiro, mas só por um bocadinho. Precisas de dormir.
Quando ela se levantou da cadeira, Cícero estendeu-lhe a mão impulsivamente e sorriu. — Obrigado, Terência, obrigado por tudo! A diferença que faz ter-te a meu lado...!
Ela pegou na mão dele, apertou-a com toda a força e brindou-o com um sorriso tímido, imaturo. — Deixa-te disso, marido — disse ela, e escapuliu-se antes que a pieguice tomasse conta dos dois.
Se alguém lhe perguntasse se amava a mulher e o irmão, Cícero responderia imediatamente que sim; e não se duvide da verdade dessa resposta. No entanto, o coração de Cícero albergava afectos mais poderosos do que esses; e, entre tais afectos, apenas um tinha a marcá-lo os laços de sangue. Tratava-se obviamente da filha, Túlia, que em nada se parecia com a mãe. O filho de Cícero era ainda demasiado jovem para conseguir um lugar de relevo no coração de Cícero; talvez o pequeno Marco nunca o conseguisse, já que era mais parecido com o tio do que com o pai — impulsivo, irascível, vaidoso, e sem nada que o aparentasse a um prodígio.
Mas quem eram afinal essoutros amores de Cícero, para além da filha?
O nome que ocorreria primeiro a Cícero seria sem dúvida o de Tiro. Tiro era seu escravo, mas também, literalmente, um membro da sua família, como frequentemente acontecia numa sociedade que via os escravos não tanto como seres inferiores, mas sobretudo como criaturas pouco afortunadas, sujeitas às leis da propriedade e do estatuto social. Como viviam numa proximidade extrema (poder-se-ia mesmo falar de intimidade) com os membros livres da família, os escravos domésticos romanos acabavam por se ver integrados, até certo ponto, na família, e suportavam todas as vantagens e desvantagens desse estado. Esta imbricação de personalidades era francamente complexa; os conflitos, mais ou menos importantes, iam e vinham; o poder formal estava do lado dos livres, mas, por meios indirectos, também os criados exerciam algum poder; e só um amo muito inflexível conseguia manter-se impermeável às pressões dos criados. Na casa de Marco Túlio Cícero, era com Terência que os escravos tinham de se entender, mas até mesmo Terência era incapaz de resistir a Tiro, o qual conseguia acalmar o pequeno Marco tão facilmente como conseguia persuadir Túlia de que era a mãe quem tinha razão.
O grego Tiro viera ainda jovem para a casa de Marco Túlio; vendera-se como escravo, pois preferira essa alternativa a estagnar numa cidade pobre e obscura da Beócia. Era inevitável que agradasse a Cícero, já que, para além de muito meigo e afável, era um excelente secretário, o tipo de pessoa de que era difícil não gostar. Como era cortês e atencioso por natureza, nem mesmo o mais preverso e egoísta dos seus colegas poderia acusá-lo de bajular os amos; a sua doçura impregnava o relacionamento com os colegas, de tal forma que até os mais empedernidos acabavam por gostar dele.
Todavia, quem mais gostava dele era, sem dúvida, Cícero. Tiro falava e escrevia superlativamente grego e latim, para além de possuir um apuradíssimo instinto literário; e quando lançava um rápido olhar reprovador para uma frase ou um mero adjectivo, Cícero parava para reconsiderar o que escrevera. Tiro era também um estenógrafo notável, e transcrevia os textos com uma caligrafia impecável; por outro lado, nunca se atrevia a alterar uma palavra que fosse.
Quando Cícero foi eleito cônsul, este criado modelar estava há cinco anos no seio da família. Claro que Cícero o emancipara no seu testamento, mas, segundo o esquema habitualmente seguido, o seu serviço como escravo teria de prosseguir por mais dez anos, após o que integraria a clientela de Cícero como um próspero liberto; o seu salário já era elevado e era sempre o primeiro a beneficiar de eventuais aumentos. Quem se propusesse conhecer o modo de vida da família de Cícero, acabaria forçosamente por pôr esta questão: como poderia aquela casa existir sem Tiro? Como poderia Cícero existir sem Tiro?
O segundo da lista era Tito Pompónio Ático. Era uma amizade que já durava há muitos, muitos anos. Ático e Cícero tinham-se conhecido no Fórum; Cícero era então um jovem prodígio e Ático preparava-se para conduzir os múltiplos negócios do pai. Após a morte do filho mais velho de Sila (que fora o maior amigo de Cícero), foi Ático que ocupou no coração de Cícero o lugar do jovem Sila, apesar de ser mais velho quatro anos do que os dois. Pompónio era um apelido de família extremamente distinto, já que os Pompónios eram, na realidade, um ramo dos Cecílios Metelos, e isso significava que pertenciam ao núcleo central da alta sociedade romana. Significava também (caso Ático o tivesse desejado) que uma carreira no Senado, e talvez mesmo o consulado, não eram metas inatingíveis. Contudo, o pai de Ático sempre ansiara pela distinção senatorial e por isso sofrera e penara, enquanto as facções que controlavam Roma durante esses anos terríveis se iam sucedendo no poder. Dispondo de uma posição firme nas Dezoito — as Dezoito Centúrias séniores da Primeira Classe —, Ático rejeitara tanto o Senado como os cargos públicos. As suas inclinações iam a par com a sua ambição, que era acumular tanto dinheiro quanto possível e ficar na história como um dos maiores plutocratas de Roma.
Nos tempos da sua juventude, Ático, tal como o seu pai, chamava-se ainda e apenas Tito Pompónio. Não tinha ainda um terceiro nome. Depois, nos anos conturbados do governo de Cina, Ático e Crasso elaboraram um plano e criaram uma companhia para explorarem as taxas e os bens da província da Ásia, que Sila conquistara ao rei Mitridates. Obtiveram o capital necessário junto de uma multidão de investidores, mas acabaram por verificar que Sila preferia dirigir a administração da província da Ásia de uma forma que impedia os publicam romanos de alcançarem grandes lucros. Crasso e Ático viram-se então obrigados a fugir dos credores, embora Ático conseguisse salvar a sua fortuna pessoal e tivesse, portanto, os recursos necessários para viver no maior conforto enquanto durasse o exílio. Instalou-se em Atenas e gostou tanto dessa experiência que Atenas, entre todas as cidades que conhecia, ficou a ocupar o primeiro lugar no seu coração.
Depois de Sila ter regressado a Roma como ditador, Ático (que já usava esse apelido, devido às suas preferências pela região de Atenas, a Ática) recuperou a liberdade de viver em Roma e não teve grandes problemas em reatar os seus negócios. Mas nem sempre estava em Roma; de facto, visitava regularmente Atenas e não estava disposto a abandonar a casa que possuía nessa cidade. Por outro lado, adquirira grandes extensões de terra no Epiro, essa zona da Grécia na costa do mar Adriático, a norte do golfo de Corinto.
A predilecção de Ático por jovens amantes do sexo masculino era bem conhecida; no entanto, não deixava de ser notável que, num local tão homofóbico corno Roma, esse aspecto particular não tivesse maculado a sua vida. Isso devia-se ao facto de Ático manter apenas esse tipo de ligações na Grécia, onde tais preferências, para além de serem a norma, contribuíam mesmo para firmar a reputação de um homem. Quando estava em Roma, coibia-se de manifestar, fosse por palavras, fosse por olhares, a sua inclinação pelo chamado amor grego. Graças a esse rígido autocontrole, a família, os amigos e os pares sociais de Ático podiam fingir que ignoravam o lado grego do plutocrata. E isso era também importante porque Ático se tornara extremamente rico, dispondo de um grande poder nos círculos financeiros. Entre os publicam (os homens de negócios que disputavam os contratos públicos), Ático era o mais poderoso e o mais influente. Banqueiro, magnata da navegação, príncipe dos mercadores, Ático tinha um peso imenso na sociedade romana. Se não podia fazer de um homem cônsul, podia pelo menos ser uma grande ajuda — nomeadamente, manifestando-lhe publicamente o seu apoio, como acontecera no caso de Cícero.
Além disso, era ele o editor de Cícero, pois decidira que o dinheiro era uma maçada e que a literatura constituía uma mudança refrescante. Possuindo uma educação esmeradíssima, Ático sentia uma afinidade natural em relação aos homens de letras e admirava o trabalho de Cícero porque o entendia profundamente, o que não acontecia com muitos dos admiradores de Cícero. Divertia-o e satisfazia-o tornar-se um patrono de escritores —- o que também lhe permitia ganhar dinheiro graças aos textos destes. A editora que criara no Argileto rivalizava com os livreiros Sósios e florescia francamente. As suas ligações permitiam-lhe ter acesso a um leque sempre crescente de novos talentos e os seus copistas produziam manuscritos extremamente apreciados.
Alto, magro, de aspecto austero, Ático poderia ter passado por pai de Metelo Cipião, ainda que os laços de sangue entre os dois fossem muito escassos, pois Metelo Cipião era um Cecílio Metelo unicamente porque fora adoptado. No entanto, tal semelhança significava que todos os membros das Famílias Famosas entendiam que a sua linhagem era impecável e extremamente antiga.
Ático gostava sinceramente de Cícero, mas era impermeável às fraquezas do grande orador — no que seguia o exemplo de Terência; apesar de ser um homem muito rico, nunca estava disposto a ajudar Cícero quando as finanças deste precisavam de um suplemento. Da única vez em que Cícero ganhara coragem para pedir a Ático um empréstimo insignificante, o seu amigo recusara tão veementemente que Cícero nunca mais lhe pedira nada. De quando em quando, ainda nutria a vaga esperança de que Ático se oferecesse para lhe emprestar algum dinheiro; mas a verdade é que isso nunca acontecia. Embora procurasse estátuas e outras obras de arte para Cícero, durante as suas longas viagens à Grécia, Ático insistia também em que o amigo lhe pagasse — não só o preço das obras de arte, mas também o custo do transporte da Grécia para Itália. Cícero achava que Ático só não lhe cobrava o tempo que perdia a procurá-las. À luz de tudo isto, seria lícito concluir que Ático era um avarento incurável? Cícero achava que não, pois, ao contrário de Crasso, Ático era um anfitrião generoso, para além de pagar bons salários aos seus escravos e empregados. Não, a questão era outra: é que Ático dava grande importância ao dinheiro, encarava-o como algo que merecia um profundo respeito, e não suportava distribuí-lo por pessoas que não sentiam esse respeito. Cícero era um diletante que se imaginava um grande apreciador de arte, um esbanjador, alguém que mudava com o vento. Logo, não tinha — não poderia ter — pelo dinheiro a estima que o dinheiro merecia.
O terceiro da lista de Cícero era Públio Nigídio Fígulo, de uma família tão antiga e venerada como a de Ático. Tal como Ático, também Nigídio Fígulo (o apelido Fígulo significava oleiro embora a família ignorasse por que razão o primeiro Nigídio a usá-lo merecera tal epíteto) rejeitara a vida pública. No caso de Ático, a vida pública teria implicado o abandono de todas as actividades comerciais não decorrentes da propriedade da terra, e Ático gostava mais de comércio do que de política. No caso de Nigídio Fígulo, a vida pública teria por certo destruído o maior dos seus amores: os aspectos mais esotéricos da religião. Reconhecido como o grande perito na arte da adivinhação como era praticada pelos remotos Etruscos, Nigídio Fígulo sabia mais acerca do fígado de uma ovelha do que todos os veterinários ou talhantes. Era um verdadeiro erudito nesse tipo de matérias: no voo das aves, nos padrões dos relâmpagos, nos sons dos trovões ou nos movimentos da terra, e também nos números, nas bolas de fogo ou estrelas cadentes ou eclipses, em obeliscos e outros monumentos do género, em pilonos, pirâmides, esferas, túmulos, na obsidiana, no sílex, na forma e na cor das chamas, nas galinhas sagradas, e em todas as convoluções que poderia haver num intestino animal.
Claro que Fígulo teria de ser um dos guardiães dos livros proféticos de Roma. Além disso, era uma verdadeira mina de informações para o Colégio dos Augures; nenhum dos membros deste Colégio era uma autoridade em augúrios, já que os augures eram, muito simplesmente, personalidades eleitas e que, por força da lei, eram obrigadas a consultar uma carta antes de pronunciarem os augúrios auspiciosos ou inauspiciosos. Cícero desejava ardentemente ser eleito augure (não caía na idiotice de pensar que tinha possibilidades de ser eleito pontífice); havia jurado que, quando fosse eleito augure, saberia mais sobre augúrios do que qualquer dos seus colegas, os quais, eleitos ou cooptados, acabavam por assumir cargos religiosos unicamente porque vinham das famílias certas.
Cícero começara por dar-se com Nigídio Fígulo apenas por causa dos vastos conhecimentos que este possuía; contudo, depressa sucumbiu ao encanto da sua natureza, serena e terna, humilde e sensível. Fígulo não se presumia superior aos outros, apesar da sua proeminência social; adorava a companhia de gente espirituosa e viva, e estava sempre pronto para passar uma noite de animada conversa com Cícero, famoso pela sua vivacidade e pelos seus ditos espirituosos. Tal como Ático, também Nigídio Fígulo era um celibatário; porém, ao contrário de Ático, escolhera esse estado por razões religiosas; acreditava firmemente que introduzir uma mulher no seu lar destruiria as suas místicas ligações ao mundo das forças e potências invisíveis. As mulheres eram criaturas da terra. Nigídio Fígulo era uma criatura do céu. E o ar e a terra nunca poderiam misturar-se; esses dois elementos só se realçavam um ao outro para melhor se entredevorarem. Além disso, tinha horror a sangue, excepto nos locais sagrados, e as mulheres sangravam. Daí que todos os seus escravos fossem homens e que tivesse convencido a mãe a viver com a sua irmã e o marido desta.
Cícero pretendia falar a sós com Ático no dia a seguir às eleições curuis, mas assuntos familiares impediram a consumação dos seus desejos. O seu irmão Quinto fora eleito pretor. Naturalmente que isso exigia uma celebração, tanto mais que Quinto seguira o exemplo do irmão mais velho e fora eleito in suo anno, exactamente com a idade certa (tinha trinta e nove anos). Este segundo filho de um humilde proprietário de Arpino vivia na casa das Carinas, que o velho pai comprara quando se mudara com a família para Roma a fim de proporcionar ao menino prodígio Marco todas as vantagens que o seu intelecto exigia. Daí que Cícero e a sua família se tivessem deslocado do Palatino às Carinas pouco antes da hora do jantar, embora esta obrigação fraternal não impedisse uma conversa com Ático — Ático estaria na festa, pois Quinto era casado com a sua irmã, Pompónia.
Havia uma grande semelhança entre Cícero e o irmão, mas Cícero era indiscutivelmente o mais atraente dos dois. Em primeiro lugar, porque era muito mais alto e possuía uma melhor constituição física; Quinto era pequenino e magro que nem um fuso. Em segundo lugar, porque Cícero não perdera cabelo nenhum e Quinto era já muito calvo. As orelhas de Quinto pareciam-se mais com um abano do que as de Cícero, embora isso não passasse de uma ilusão visual, provocada pelo tamanho imponente do crânio de Cícero, que menorizava a presença de tais apêndices. Tinham ambos olhos e cabelo castanhos e uma bela pele morena.
Havia um outro aspecto em que tinham muito em comum: ambos haviam casado com abastadas viragos que, na opinião dos desesperados parentes, dificilmente encontrariam marido. Terência tornara-se famosa, e com toda a justiça, por ser tão desagradável como difícil; de tal forma que nenhum homem, por muito necessitado que estivesse, conseguia reunir a coragem suficiente para pedi-la em casamento. Tanto mais que ela só casaria com quem muito bem entendesse. Aliás, fora ela quem escolhera Cícero, mais do que o contrário. Quanto a Pompónia, bastava dizer que Ático por duas vezes desesperara de lhe encontrar marido. Era feia, agressiva, rude, amarga, truculenta, vingativa, e podia ser cruel. O seu primeiro marido subira na escala comercial romana graças ao apoio de Ático; porém, mal viu que podia dispensar esse apoio, divorciou-se dela, deixando-a à porta do irmão. Embora o motivo invocado para o divórcio fosse a esterilidade, toda a Roma concluíra (correctamente) que a verdadeira razão era a ausência de desejo de viver com a temível criatura. Foi Cícero quem sugeriu que talvez fosse possível convencer Quinto a casar-se com ela; e Cícero e Ático lançaram-se logo ao trabalho. A união dera-se treze anos antes; o noivo era muito mais jovem do que a noiva. Ao fim de dez anos, Pompónia desmentiu a esterilidade, dando à luz um rapaz, também chamado Quinto.
Brigavam constantemente, e usavam já a pobre criança como munição na sua infindável guerra pela supremacia psíquica, fazendo do indefeso menino um joguete nas suas mãos. Isso preocupava seriamente Ático (aquela criança era seu herdeiro) e Cícero, mas nenhum deles conseguia convencer os beligerantes de que quem realmente sofria com a guerra era o pequeno Quinto. Se ao menos o irmão Quinto fosse tão astucioso como Cícero e fingisse submeter-se para aplacar a fúria da mulher e fizesse o possível para não chamar as atenções dela, o casamento teria provavelmente funcionado melhor do que o de Cícero, pois tudo o que Pompónia queria era mandar em casa, ao passo que Terência ansiava pela influência política. Infelizmente, o irmão Quinto era mais parecido com o pai do que Cícero; custasse o que custasse, quem tinha de mandar lá em casa era ele.
A guerra continuava bem acesa, concluíram Cícero, Terência, Túlia e o pequeno Marco, mal entraram em casa de Quinto. Foi o chefe dos criados quem levou Túlia e Marco para os aposentos das crianças; Pompónia estava demasiado ocupada a gritar com Quinto, e Quinto não lhe ficava atrás.
— Ainda bem que só têm por vizinhos o Templo de Telo! — atroou Cícero, como se estivesse no Fórum. — Caso contrário, não faltariam as queixas!
Mas a intervenção de Cícero não desarmou os contendores. Persistiram na batalha, como se os recém-chegados não existissem, até que Ático apareceu. A sua técnica para acabar com a disputa era tão directa como elementar: avançou na direcção do casal, agarrou na irmã pelos ombros e abanou-a com toda a sua força.
— Vai-te embora, Pompónia! — atirou-lhe. — Vá, vai com Terência para qualquer lado e confia-lhe os teus problemas!
— Eu também a abano — disse Quinto, num tom queixoso —, mas não resulta. A resposta dela é dar-me uma joelhada no sítio que vocês sabem.
— Se ela me fizesse isso, matava-a — disse Ático, com um ar severo.
— Se eu a matasse, acusavas-me de homicídio — retorquiu Quinto.
— Pois é — disse Ático, com um sorriso. — Pobre Quinto! Eu vou ter uma conversa com ela. Pode ser que resulte.
Cícero não participou neste diálogo, pois retirara-se antes da chegada de Ático. Aparecia agora, vindo do escritório de Quinto, com um rolo de pergaminho aberto entre as mãos.
— De novo a escrever, irmão? — perguntou ele, erguendo os olhos.
— Uma tragédia ao estilo de Sófocles.
— Tens melhorado muito.
— Espero bem que sim! Tu usurpaste a reputação da família no que toca aos discursos e à poesia, e por isso só posso escolher entre a história, a comédia e a tragédia. Não tenho tempo para a pesquisa histórica e a tragédia é para mim um terreno mais fácil do que a comédia, dado a atmosfera em que vivo.
— Sempre achei que essa atmosfera pedia mais uma farsa do que uma tragédia — disse Cícero, com toda a seriedade.
— Ah, deixa-te de piadas!
— Há sempre a filosofia e as ciências naturais.
— A minha filosofia é simples e não tenho o mínimo apetite por ciências naturais. Portanto, continuo limitado à história, à comédia ou à tragédia.
Ático saíra por um momento e falava agora de uma das extremidades do atrium. — Que é isto, Quinto? — perguntou ele, com uma sugestão de riso na sua voz.
— Ah, encontraste-o antes de eu to mostrar! — exclamou Quinto, correndo na direcção de Ático, com Cícero atrás dele. — Agora sou pretor, portanto é permitido.
— Certamente que é — disse Ático gravemente; só os olhos traíam a sua hilaridade.
Cícero meteu-se entre os dois e, com uma expressão muito solene, manteve-se à distância adequada para apreender toda a glória do objecto em causa. Era um gigantesco busto de Quinto, tão gigantesco que nunca poderia ser exibido num local público, já que só os deuses podiam exceder a estatura de um homem. O autor do busto usara o barro e cozera-o antes de aplicar as cores, o que tivera resultados positivos e negativos. Positivos, porque a semelhança era notável e as cores muito belas; negativos, porque o trabalho do barro era barato e os riscos de destruição consideráveis. Ninguém sabia melhor do que Cícero e Ático que a bolsa de Quinto não chegava para um busto de mármore ou de bronze.
— Claro que não é permanente — disse Quinto, com um ar radiante. — Mas vai servir até que eu possa usá-lo como molde para um bronze magnífico. O autor foi o homem que está a fazer a minha imago. Acho uma pena que se tenha de encerrar a imago num armário para que ninguém a veja. — Olhou de soslaio para Cícero, que não conseguira ainda desviar os olhos do busto. — Que achas, Marco? — perguntou Quinto.
— Acho — retorquiu Cícero, pesando bem as palavras —, que é a primeira vez na minha vida que vejo uma metade maior do que o todo.
Aquilo era de mais para Ático; desatou a rir, e tanto riu que teve de se sentar no chão, onde Cícero se juntou a ele. O que deixou o pobre Quinto com duas opções possíveis: ou tinha um ataque de raiva ou juntava-se àqueles dois que se divertiam à sua custa. Por alguma razão era irmão de Cícero: preferiu divertir-se a enraivecer-se.
Mas logo chegou a hora da refeição, servida por Pompónia, já mais serena, Terência e Túlia; a filha de Cícero era quem melhor sabia lidar com a tia.
— Então, para quando é o casamento? — perguntou Ático, que, por não ver Túlia há muito tempo, ficou surpreendido com as diferenças que lhe encontrava. Uma menina tão bonita! Um cabelo e uns olhos castanho-claros, muito parecida com o pai, tanto física como intelectualmente. Fora prometida em casamento a Caio Calpúrnio Pisão Frugi e era um bom casamento não só no que tocava ao dinheiro e à influência; Pisão Frugi era, de longe, o membro mais atraente de um clã mais famoso pela perversidade do que pela bondade, pela dureza do que pela afabilidade.
— Daqui a dois anos — respondeu Túlia com um suspiro.
— Uma longa espera — disse Ático, compreensivo.
— Demasiado longa — disse Túlia, de novo suspirando.
— Bom, isso é um caso a ver — comentou jovialmente Cícero.
— Talvez consigamos antecipá-lo.
Este comentário deixou Pompónia, Terência e Túlia extremamente excitadas; foram logo para a sala de estar da primeira planear o casamento.
— Não há nada como os casamentos para fazer as mulheres felizes — disse Cícero.
— Ela está apaixonada, Marco, e isso é raro nos casamentos combinados. Como creio que Pisão Frugi também está apaixonado, por que não deixá-los casar antes de Túlia chegar aos dezoito anos? — perguntou Ático, com um sorriso. — Que idade tem ela agora? Dezasseis?
— Quase.
— Então, deixa-os casar no fim deste ano.
— Concordo inteiramente — disse Quinto. — É tão agradável vê-los juntos...! Dão-se tão bem que até parecem dois amigos...!
Nenhum dos presentes comentou esta observação, mas, para Cícero, ela representava a oportunidade perfeita para mudar de assunto — para falar de Catilina, um assunto mais interessante e também mais fácil de enfrentar do que o casamento e as mulheres.
— Acreditas que ele tencionava cancelar as dívidas? — perguntou ansiosamente a Ático.
— Não sei se acreditei, Marco, mas não me posso dar ao luxo de ignorar a ameaça — retorquiu Ático, usando da maior franqueza.
— A acusação basta para assustar a maior parte dos homens de negócios, especialmente numa altura em que é tão difícil obter crédito e em que as taxas de juro são tão altas. Claro que essa medida seria recebida de braços abertos por muita gente; contudo, essas pessoas não constituem a maioria e são poucas as que se encontram no topo do mundo dos negócios. Um cancelamento geral das dívidas seduziria sobretudo os pequenos negociantes e aqueles que não têm a liquidez bastante para manter um bom fluxo monetário.
— O que estás a dizer é que a Primeira Classe, por uma questão de prudência, virou as costas a Catilina e a Lúcio Cássio. É isso, não é? — perguntou Cícero.
— Precisamente.
— Então César tinha razão — intrometeu-se Quinto. — Na prática, impugnaste a eleição de Catilina, recorrendo ao mais frágil dos pretextos. Por outras palavras: lançaste um boato.
— Não lancei boato nenhum! — berrou Cícero, dando um murro numa almofada do seu divã. — Não lancei boato nenhum, Quinto! Não seria irresponsável a esse ponto! Como é possível que não vejas as coisas, Quinto? Aqueles dois planeavam derrubar o Governo da República, não sei se como cônsules, se como revolucionários, mas a verdade é que planeavam! Como Terência disse, e com toda a razão, dois candidatos a cônsules só planeiam um cancelamento geral de dívidas se pretenderem seduzir as classes inferiores à Primeira. É o estratagema típico dos homens que querem impor uma ditadura.
— Sila foi ditador e não cancelou as dívidas — replicou o obstinado Quinto.
— Não cancelou as dívidas, mas cancelou as vidas de dois mil cavaleiros! — exclamou Ático. — A confiscação das propriedades desses homens encheu os cofres do Estado e muitos foram os arrivistas que engordaram graças a esse procedimento. De tal forma que não foi preciso tomar outras medidas de carácter económico.
— Sila não te proscreveu — disse Quinto, furioso.
— Nunca esperei que o fizesse...! Sila podia ser um indivíduo cruel, mas nunca foi um idiota.
— Estás a chamar-me idiota?
— Está, Quinto, está a chamar-te idiota, porque é isso mesmo que tu és! — atirou-lhe Cícero, poupando a Ático o trabalho de procurar uma resposta mais suave. — Porque é que tens de ser sempre tão agressivo? Não admira que tu e Pompónia não se dêem bem. Pois se vocês são iguais...!
— Grrr! — rosnou Quinto, decidido a não dizer mais nada.
— Pois bem, Marco, o mal, ou o bem, está feito — disse Ático pacificamente. — E é muito provável que tenhas feito bem em agir antes das eleições. Acho a tua fonte de informação suspeita porque conheço razoavelmente a senhora em questão. Mas, por outro lado, aposto que os conhecimentos de economia dessa senhora se resumem a nada. Ora, uma pessoa que não sabe nada de economia e que vem com uma expressão, tão complicada para ela, como “cancelamento geral das dívidas”... bom, com certeza que a mulher ouviu falar disso um ror de vezes! Francamente, Cícero, acho que fizeste bem em agir como agiste.
— Uma coisa vos peço, por todos os deuses! — exclamou Cícero, dando-se conta subitamente de que o irmão e o amigo sabiam já demasiado acerca de Fúlvia Nobilioris. — Nunca mencionem o nome dela a ninguém! Nunca sugiram, seja de que maneira for, que tenho um espião no campo de Catilina! Quero continuar a usá-la.
Até mesmo Quinto entendeu a razão daquele apelo e, obviamente, concordou. Quanto a Ático, um homem eminentemente lógico, defendia muito claramente uma vigilância constante das actividades de Catilina e dos seus amigos.
— Pode ser que Catilina não esteja pessoalmente envolvido — foi o último comentário de Ático. — Mas do que eu não duvido é de que o seu círculo exige a nossa vigilância. A Etrúria e o Sâmnio têm estado numa efervescência constante desde a Guerra Italiana, e a queda de Caio Mário só veio exacerbar a situação. Isto já para não falar das medidas de Sila, claro.
E foi assim que Quinto Cícero, mal chegou o mês de Sextilis, teve de acompanhar a mulher, a cunhada, mais os filhos e os criados de ambos os lares, à estância balnear onde passavam férias, enquanto Marco Cícero permanecia em Roma para controlar os acontecimentos; o casal Curió não tinha dinheiro para férias em Cumas ou Miseno e por isso Fúlvia Nobilioris tinha de ficar em Roma, aguentando o calor do Verão. Calor que era também um fardo difícil para Cícero, mas um fardo que, suspeitava ele, valeria a pena suportar.
Nas Calendas de Setembro, era tradicional o Senado reunir-se; assim sucedeu, mas a reunião não trouxe nada de especial. Depois dela, a maior parte dos senadores regressou às estâncias balneares, já que, estando o calendário tão adiantado em relação às estações, o maior calor ainda estava para vir. César permaneceu na cidade; tal como Nigídio Fígulo e Varrão, e pelo mesmo motivo: o novo Pontifex Maximus anunciara a descoberta daquilo a que chamava os Anais de Pedra e os Comentários dos Reis. Depois de ter convocado o Colégio dos Sacerdotes para o último dia de Sextilis, a fim de o informar do achado e de lhe dar uma oportunidade de examinar as tábuas e o manuscrito, César utilizou a reunião do Senado nas Calendas de Setembro para mostrar a sua descoberta. A maior parte dos presentes (incluindo alguns dos sacerdotes) limitou-se a bocejar, mas Cícero, Varrão e Nigídio Fígulo foram alguns dos que consideraram o achado verdadeiramente excitante, dedicando muito do seu tempo ao exame daqueles antiquíssimos documentos.
Ainda pouco habituado à vastidão e ao luxo da sua nova casa, César ofereceu um jantar nos Idos do mesmo mês a Nigídio Fígulo, Varrão, Cícero e dois dos homens que haviam sido seus colegas no cerco de Mitilene, Filipe Júnior e Caio Octávio. Filipe era mais velho dois anos do que César e seria pretor no ano seguinte; Octávio, no que tocava à idade, estava entre os dois, o que significava que a sua primeira oportunidade para se tornar pretor só surgiria dois anos depois; em contrapartida, o patrício César podia desempenhar qualquer cargo curul dois anos antes de qualquer plebeu.
O velho Filipe, um homem maligno e amoral, famoso sobretudo pelo número de vezes que mudara de casaca, estava ainda vivo e, de quando em quando, ainda assistia a uma reunião do Senado; contudo, há muito que deixara de ser uma força no parlamento romano. E o seu filho nunca ocuparia o seu lugar, tanto na malignidade, como no poder — pelo menos era o que César pensava. O jovem
Filipe era demasiado epicurista, demasiado viciado nos requintados prazeres do divã e das artes; contentava-se em cumprir o seu dever no Senado e em subir o cursus honorum unicamente porque isso era lógico e correcto; ao contrário do pai, seria incapaz de suscitar a inimizade de qualquer facção política. Dava-se tão bem com Catão como com César, embora preferisse a companhia do segundo à do primeiro. Casara com uma Gélia e, depois da morte desta, decidira não voltar a casar-se, pois não queria que os filhos, um rapaz e uma rapariga, tivessem uma madrasta.
Entre César e Caio Octávio existia um incentivo extra para a amizade; depois da morte da sua primeira mulher (uma Ancária da abastada família pretoriana), Octávio pedira a mão da sobrinha de César, Átia, filha da irmã mais nova de César. O pai dela, Marco Átio Balbo, pedira a opinião de César, já que Caio Octávio não pertencia a uma família nobre, mas apenas a uma família muito rica, originária de Velitras, no Lácio. Lembrando-se da lealdade de Octávio em Mitilene e sabendo que ele amava loucamente a bela Átia, César aprovou o casamento. Do primeiro casamento de Octávio, havia uma enteada, felizmente uma menina encantadora, mas nenhum filho rapaz; logo, se Átia tivesse algum filho varão, seria ele a herdar a fortuna de Octávio. O casamento realizou-se e Átia foi viver para uma das mais belas casas de Roma, embora peculiarmente situada no lado errado do Palatino, ao fundo de uma ruela chamada Cabeças-de-Boi. Estava quase a fazer dois anos, Átia dera à luz o seu primeiro filho — infelizmente uma rapariga.
Como seria de esperar, a conversa girou em torno dos Anais de Pedra e dos Comentários dos Reis, embora, por consideração para com Octávio e Filipe, César fizesse um esforço considerável para desviar as atenções dos seus convidados mais eruditos das maravilhas que descobrira.
— É claro que tu és, reconhecidamente, a maior autoridade em leis antigas — disse Cícero, preparado para aceitar a superioridade alheia numa área que considerava pouco importante na moderna Roma.
— Obrigado — disse César, gravemente.
— É pena que não haja mais informações sobre as actividades quotidianas na corte do rei — disse Varrão, acabado de regressar de um longo período no Oriente, onde desempenhara as funções de cientista natural e biógrafo de Pompeu.
— Sim, mas graças a estes dois documentos, podemos ter agora uma ideia muitíssimo clara do que era um julgamento por perduellio e isso, por si só, já é fascinante — disse Nigídio Fígulo. — Basta comparar com o julgamento por maiestas.
— Maiestas foi uma invenção de Saturnino — disse César.
— Saturnino só inventou a maiestas porque não era possível condenar ninguém por traição segundo a velha fórmula — interveio rapidamente Cícero.
— É pena que Saturnino não tivesse conhecido as tuas descobertas, César — disse Varrão, com um ar pensativo. — O facto de haver dois juizes e de não haver júri por certo que marca uma grande diferença relativamente ao desfecho de um julgamento!
— Que disparate! — exclamou Cícero, sentando-se muito direito.
— Nem o Senado nem os Comitia permitiriam um julgamento criminal sem júri!
— O que eu acho mais interessante — disse Nigídio Fígulo
— é que há apenas quatro homens vivos actualmente que poderiam exercer o cargo de juiz. Tu, César, o teu primo Lúcio César, Fábio Sanga e, por estranho que pareça, Catilina! As outras famílias patrícias não existiam ainda como tal quando Horácio foi julgado pelo assassínio da irmã.
Filipe e Octávio pareciam um pouco perdidos, para além de particularmente entediados. Daí que César tenha feito mais uma tentativa para mudar de assunto.
— Quando é o grande dia, Octávio? — perguntou ele.
— Já falta pouco tempo: quando muito, um intervalo entre dois mercados.
— E será rapaz ou rapariga?
— Cremos que, desta feita, será um rapaz. Uma terceira rapariga, e com duas esposas, seria uma cruel decepção — disse Caio Octávio, com um suspiro.
— Lembro-me de que, antes de Túlia nascer, tinha a certeza de que era um rapaz — disse Cícero, com um sorriso radiante. — Terência também tinha a certeza. E afinal tivemos de esperar catorze anos por um rapaz.
— Mas durante esses catorze anos, tentaste algumas vezes, ou não, Cícero? — perguntou Filipe.
Ao que Cícero só respondeu enrubescendo; tal como a maior parte dos ambiciosos Homens Novos que haviam subido na escala social, Cícero era normalmente muito púdico — a menos que lhe ocorresse um dito particularmente espirituoso. Os aristocratas podiam dar-se ao luxo da malícia; Cícero não podia.
— A mulher do zelador das Velhas Assembleias diz que é um rapaz — disse Octávio. — Atou um fio à aliança de Átia e depois suspendeu-a sobre o ventre dela. A aliança rodou rapidamente para a direita — ela diz que é um sinal seguro de que será um rapaz.
— Bom, esperemos que tenha razão — disse César. — A minha irmã mais velha teve rapazes, mas as raparigas abundam na família.
— Há uma coisa que me intriga — disse Varrão. — Quantos homens foram realmente julgados por perduellio nos tempos de Tulo Hostílio?
César sufocou um suspiro de impaciência; convidar três eruditos e apenas dois epicuristas para um jantar decididamente não resultava. Felizmente que o vinho e os cozinheiros da Domus Publica eram magníficos.
As notícias da Etrúria chegaram não muitos dias depois deste jantar com o Pontifex Maximus e foi Fúlvia Nobilioris quem as trouxe.
— Catilina mandou Caio Mânlio a Fesulas, a fim de recrutar um exército — disse ela a Cícero, sentando-se na beira de um divã e limpando a testa coberta de suor. — E Públio Fúrio está a fazer o mesmo na Apúlia.
— Provas? — perguntou Cícero, sentindo de súbito que a sua testa também estava molhada.
— Não tenho prova nenhuma, Marco Túlio.
— Foi Quinto Curió que to disse?
— Não. Eu ouvi-o falar com Lúcio Cássio a noite passada, depois do jantar. Eles pensavam que eu tinha ido para a cama. Desde as eleições que andavam muito calmos, incluindo Quinto Curió. Foi um rude golpe para Catilina e creio que ele precisou de algum tempo para se recompor. A noite passada foi a primeira vez que ouvi falar de exércitos.
— Sabes quando é que Mânlio e Fúrio começaram as suas operações?
— Não.
— Portanto, não fazes ideia se o recrutamento está ou não avançado? Achas que poderia confirmar a tua história se mandasse alguém a Fesulas?
— Não sei, Marco Túlio. Quem me dera saber!
— E quanto a Quinto Curió? Achas que ele apoia claramente uma revolução?
— Não tenho a certeza.
— Nesse caso, tenta saber, Fúlvia — disse Cícero, procurando esconder a sua exasperação. — Se conseguires convencê-lo a depor perante o Senado, os senadores não terão outra alternativa senão acreditar em mim.
— Não te inquietes, marido, Fúlvia fará o seu melhor — disse Terência, preparando-se para acompanhar Fúlvia à porta.
Seguro de que as forças insurrectas pretendiam recrutar escravos, Cícero enviou um escravo muito perspicaz e apresentável a Fesulas, com instruções para se oferecer como voluntário. Consciente de que certos senadores achavam que ele ansiava por uma crise, a fim de que o seu consulado ficasse na história, Cícero pediu o escravo emprestado a Ático; o escravo poderia portanto testemunhar que não tinha quaisquer obrigações perante Cícero. Infelizmente, porém, o homem, quando regressou, pouco tinha para contar. Estava de facto a passar-se qualquer coisa e não só em Fesulas. O problema, tinham-lhe dito, era que os escravos não eram da Etrúna, uma região que, acrescentavam, possuía suficientes homens livres para servirem os seus próprios interesses regionais. Era difícil entender o que essa informação significava, já que a Etrúria, evidentemente, tinha tantos escravos como qualquer outra região dentro ou fora da Itália. O mundo inteiro dependia dos escravos!
— Se realmente é uma insurreição — concluiu o criado de Ático —, então é uma insurreição limitada a homens livres.
— E agora, marido? — perguntou Terência ao jantar.
— Francamente não sei, minha querida. Que hei-de fazer? Reúno o Senado e faço mais uma tentativa, ou espero até ter vários agentes que sejam homens livres e que consigam obter provas concludentes?
— Tenho a impressão de que será muito difícil encontrar tais provas. Os naturais da Etrúria não confiam em forasteiros, livres ou servis. Funcionam como um clã, são extremamente secretivos.
— Pois bem — disse Cícero, com um suspiro —, convocarei o Senado para depois de amanhã. Pelo menos servirá para dizer a Catilina que continuo atento aos seus movimentos.
E, como Cícero previra, a sessão do Senado serviu apenas para isso. Os senadores que ainda não tinham ido de férias mostraram-se cépticos, nos casos mais brandos, ou francamente insultuosos, nos piores casos. Especialmente Catilina, que estava presente e até falou, mas que se mostrou demasiado frio para um homem cujas esperanças de chegar a cônsul haviam sido sempre destruídas. Desta feita, não fez qualquer tentativa para arengar contra Cícero ou contra a adversidade; ficou sentado no seu banco e respondeu com a maior paciência e calma. Uma boa táctica, que impressionou os cépticos e permitiu que os seus partidários regozijassem. Não admira que aquele que poderia ter sido um debate turbulento se tivesse transformado gradualmente numa reunião morna, agitada apenas pela súbita aparição de Caio Octávio, dançando e dando vidas.
— É um rapaz! É um rapaz! — gritava Octávio. Grato por ter um pretexto para acabar com a reunião, Cícero mandou embora os seus funcionários e juntou-se à multidão que rodeava Octávio.
— O horóscopo é auspicioso? — perguntou César. — Olha que nem sempre são...
— É mais miraculoso do que auspicioso, César. Se for verdade o que diz o astrólogo, o meu filho Caio Octávio Júnior virá a governar o mundo. — O pai babado deu um risinho de satisfação, e acrescentou: — O homem convenceu-me! Até lhe dei um bónus!
— Segundo a minha mãe, o meu horóscopo natal só falava de misteriosas doenças do peito — disse César. — O problema é que a minha mãe jurou que nunca mo mostraria.
— O meu horóscopo dizia que eu nunca conseguiria ser rico — disse Crasso.
— A astrologia deixa as mulheres felizes e contentes — comentou Filipe.
— Quem quer vir comigo registar o nascimento junto de Juno Lucina? — perguntou Octávio, com um sorriso radiante.
— Quem há-de ir contigo senão o tio César Pontifex Maximus? — disse César, pondo o braço por cima dos ombros de Octávio. — E depois disso, quero ir ver o meu sobrinho!
Dezoito dias de Outubro transcorreram sem informações significativas tanto da Etrúria como da Apúlia, nem qualquer palavra de Fúlvia Nobilioris. As cartas ocasionais dos agentes que Cícero e Ático tinham mandado manifestavam poucas esperanças de que fossem encontradas provas concludentes, embora todas elas jurassem que se passava algo de estranho. O principal problema parecia residir no facto de que não havia um núcleo digno desse nome, apenas alguma azáfama ou agitação nesta ou naquela aldeia, nalguma quinta arruinada de alguns centuriões de Sila, nalguma taberna frequentada por veteranos de Sila. Contudo, mal viam um forasteiro, os suspeitos punham o ar mais inocente deste mundo. Dentro das muralhas de Fesulas, Arécio, Volaterras, Esérnia, Larino e de todas as outras cidades da Etrúria e da Apúlia, a única coisa que saltava aos olhos era a depressão económica e uma pobreza impressionante. Por todo o lado se viam casas e quintas à venda para cobrir dívidas desesperadas, mas dos seus antigos donos, não havia sinal.
E Cícero estava cansado, cansado, cansado. Cícero sabia que as coisas estavam a acontecer mesmo nas suas barbas; contudo, não podia provar nada e começava a acreditar que só conseguiria provar a revolta no dia em que esta eclodisse. Também Terência estava desesperada, um estado que, surpreendentemente, parecia tornar-lhe a vida mais fácil; embora o marido não fosse um homem exuberante do ponto de vista sexual, a verdade é que, ultimamente, costumava retirar-se mais cedo e procurar no corpo dela um alívio que, concluía ele, era tão ilusório como incongruente.
Estavam ambos mergulhados num sono profundo quando Tiro, a altas horas da noite, correu a acordá-los. Era o décimo oitavo dia de Outubro.
— Domine, domine! — murmurou o escravo pela porta entreaberta, o seu rosto de rapaz transformado, pela luz da lamparina, numa visão fantasmagórica. — Domine, tens visitas!
— Que horas são? — conseguiu dizer Cícero, erguendo-se da cama, enquanto Terência se mexia e abria os olhos.
— É muito tarde, domine.
— Visitas?!
— Sim, domine.
Terência procurou sentar-se no seu lado da cama, mas não fez nenhum esforço para se vestir; ela sabia que, sendo mulher, seria forçosamente excluída daquela reunião, fossem quais fossem os assuntos a tratar. Por outro lado, também não poderia adormecer de novo. Teria muito simplesmente de conter-se, até que Cícero voltasse ao quarto e a informasse do que se passava.
— Quem é, Tiro? — perguntou Cícero, enfiando a cabeça numa túnica.
— Marco Licínio Crasso e dois outros nobres, domine.
— Por todos os deuses!
Não havia tempo para abluções, tão-pouco para se calçar; Cícero correu na direcção do atrium da casa, que agora lhe parecia demasiado pequeno e trivial para alguém que, no final desse ano, passaria a ser um consular.
Sim, de facto era Crasso! Acompanhado por Marco Cláudio Marcelo e Metelo Cipião! O chefe dos criados andava numa azáfama a acender lamparinas, Tiro trouxera papel, penas e tábuas de cera para o caso de serem precisas, e ouviam-se ruídos que indicavam que o vinho e os refrescos não demorariam a aparecer.
— Que se passa? — perguntou Cícero, dispensando as formalidades.
— Tinhas razão, meu amigo — disse Crasso, mostrando o que tinha nas mãos. Na mão direita tinha uma folha; na mão esquerda, várias cartas ainda dobradas e seladas. Entregou a folha a Cícero. — Lê esta carta e ficarás logo a saber o que se passa.
Era uma carta muito curta, mas escrita por alguém com instrução; o destinatário era Crasso.
Sou um patriota que, infortunadamente, se viu envolvido numa insurreição. Envio-te estas cartas a ti, e não a Marco Cícero, devido à posição que ocupas em Roma. Ninguém acreditou em Marco Cícero. Espero que toda a gente acredite em ti. As cartas são cópias; não consegui ficar com os originais. Nem me atrevo a revelar-te nomes. O que te posso dizer é que a destruição e a revolução estão prestes a chegar a Roma. Abandona Roma, Marco Crasso, e leva contigo todos aqueles cuja morte quiseres evitar.
Embora não pudesse competir com César na rapidez da leitura, Cícero não andava longe das façanhas do Pontifex Maximus; por certo lia muito mais depressa do que Crasso.
— Por Júpiter, Marco Crasso! Como é que isto te foi parar às mãos?
Crasso sentou-se pesadamente numa cadeira, Metelo Cipião e Marcelo instalaram-se os dois num divã. Um criado ofereceu vinho a Crasso, mas este rejeitou-o.
— Estávamos a cear em minha casa — disse ele —, e creio que, a certa altura, me deixei entusiasmar pela conversa. Marco Marcelo e Quinto Cipião tinham uma ideia em mente para engordar as fortunas das suas famílias, mas não queriam quebrar os precedentes senatoriais e por isso vieram ter comigo. Queriam que os aconselhasse.
— É verdade — disse Marcelo, à cautela; temia que Cícero não primasse pela discrição e espalhasse que ele e Quinto Cipião pretendiam envolver-se em empreendimentos ilegais.
Mas o que preocupava Cícero nesse momento não era a ténue linha que separava as práticas senatoriais legais das ilegais; daí que tenha dito a Marcelo, impacientemente: — Está bem, isso agora não interessa!
E logo se virou para Crasso, instando-o a que continuasse.
— Alguém bateu à minha porta há cerca de uma hora, mas quando o chefe dos criados foi abrir, não estava lá ninguém. De início, não reparou nas cartas, que tinham sido deixadas no degrau. Foi o barulho produzido pela pilha de cartas a cair que lhe chamou a atenção. A carta que eu abri era-me dirigida pessoalmente, como podes verificar, embora a tivesse aberto mais por curiosidade do que por qualquer pressentimento alarmista — de facto, quem iria escolher um meio tão estranho para entregar correio e a uma hora tão pouco apropriada? — Crasso fez uma pausa; a sua expressão não podia ser mais severa. — Quando li a carta e a mostrei a Marco e a Quinto, decidimos que o melhor seria trazer-te tudo isto sem demora. De facto, tu és a única pessoa que tem feito barulho à volta disto.
Cícero pegou nas cinco cartas por abrir e sentou-se com um cotovelo sobre a mesa de citrus com veios em forma de cauda de pavão que lhe custara meio milhão de sestércios, sem pensar na eventual depreciação da mesa caso a arranhasse. Uma a uma, ergueu as cartas à luz, examinando a lacragem barata.
— Um selo com o emblema do lobo e o mais vulgar lacre vermelho — disse ele, com um suspiro. — Pode-se comprar em qualquer loja. — Pegou numa das cartas e rompeu o pequeno emblema redondo, perante os olhos impacientes de Crasso, Marco Marcelo e Quinto Cipião. — Vou lê-la em voz alta — disse Cícero, estendendo a folha. — Não está assinada, mas vejo que é dirigida a Caio Mânlio — disse ele, após o que tratou de decifrar a tortuosa caligrafia.
Lançarás a revolução cinco dias antes das Calendas de Novembro, reunindo as tuas tropas e invadindo Fesulas. Asseguraste-nos que a cidade render-se-á em massa. Acreditamos em ti. De qualquer forma, dirige-te imediatamente ao arsenal. Ao dealbar desse mesmo dia, os teus quatro colegas avançarão também: Públio Fúrio avançará sobre Volaterras, Minúcia sobre Arécio, Publício sobre Satúrnia, Aulo Fúlvio sobre Clúsio. Esperamos que, ao pôr do Sol, todas estas cidades estejam nas vossas mãos e que o nosso exército seja já muito maior, para além de melhor equipado, graças ao armamento retirado dos arsenais.
No quarto dia antes das Calendas, os nossos homens em Roma atacarão. Não é necessário um exército. Actuando pela calada, cumpriremos mais facilmente os nossos objectivos. Mataremos os dois cônsules e os oito pretores. O que acontecer aos cônsules e aos pretores eleitos para o próximo ano, dependerá unicamente do seu bom senso, mas certas potências da esfera dos negócios terão de morrer: Marco Crasso, Servílio Cepião Bruto, Tito Ático. As suas fortunas servirão para custear a nossa luta e restará ainda muito dinheiro.
Teríamos preferido esperar mais tempo, teríamos preferido organizar melhor as nossas forças e fortalecer a nossa resistência, mas não podemos dar-nos ao luxo de ter Pompeu Magno demasiado perto para nos atacar antes de estarmos preparados para ele. A vez dele há-de chegar, mas antes disso há outras coisas a tratar. Que os deuses estejam contigo.
Cícero arrumou a carta e olhou horrorizado para Crasso. — Por Júpiter, Marco Crasso! — exclamou, com as mãos a tremer. — Só faltam nove dias!
Àquela luz bruxuleante, os dois homens mais jovens pareciam muito pálidos; os seus olhos fixavam-se ora em Cícero, ora em Crasso; as suas mentes pareciam ter entendido unicamente o significado de uma palavra:
“matar”.
— Abre as outras — disse Crasso.
Mas as outras cartas revelaram-se idênticas à primeira, embora dirigidas a cada um dos outros quatro homens mencionados na carta endereçada a Caio Mânlio.
— Ele é esperto — disse Cícero, abanando a cabeça. — A primeira pessoa do singular nunca é utilizada. Não há em nenhuma das cartas nada que incrimine Catilina. Não há nenhuma indicação de quem está envolvido em Roma. Tudo o que realmente tenho são os nomes dos seus ajudantes militares na Etrúria e como esses já estão empenhados na revolução, não contam. Muito esperto!
Metelo Cipião molhou os lábios e conseguiu finalmente falar. — Quem escreveu a carta dirigida a Marco Crasso, Cícero? — perguntou.
— Quer-me parecer que foi Quinto Curião.
— Curião? Aquele que foi expulso do Senado?
— Esse mesmo.
— Nesse caso, não podemos obrigá-lo a depor? — perguntou Marcelo.
Foi Crasso quem abanou a cabeça. — Não, é melhor não fazermos isso. Eles matavam-no e nós ficávamos tal e qual como estamos agora, ou pior ainda, pois ficaríamos sem um informador.
— Podíamos pô-lo sob protecção antes de ele depor — disse Metelo Cipião.
— E calar-lhe a boca? — perguntou Cícero. — Qualquer medida de protecção teria esse efeito. Do que nós realmente precisamos é de levar Catilina a confessar.
— E se o cabecilha não é Catilina? — perguntou Marcelo, de sobrolho franzido.
— É uma hipótese com que temos de contar.
— Que terei eu de fazer para vos meter nessas cabeças embotadas que o cabecilha disto tudo é Catilina? — berrou Cícero, batendo com tanta força no precioso tampo da sua mesa que o pedestal de ouro e marfim até tremeu. — É Catilina! É Catilina!
— Provas, Marco — disse Crasso. — Precisas de provas.
— Eu acabarei por arranjar provas — disse Cícero. — O problema é que, entretanto, temos uma revolução na Etrúria. Vou convocar o Senado para amanhã à quarta hora.
— Óptimo — disse Crasso, erguendo-se. — Nesse caso, vou para casa dormir.
— E tu, Marco Crasso? — perguntou Cícero, acompanhando as visitas à porta. — Acreditas que Catilina é o responsável?
— É muito provável, mas não inteiramente certo — foi a resposta.
— Uma resposta típica de Marco Crasso...! — comentou Terência momentos depois, sentando-se na cama. — Marco Crasso nem com Júpiter Optimus Maximus faria uma aliança...!
— E prevejo que muitos senadores terão a mesma reacção que ele — disse Cícero. — Contudo, minha querida, creio que é tempo de procurares Fúlvia. Há muito que não temos notícias dela. — Deitou-se. — Apaga a lamparina, preciso de dormir.
Do que Cícero não estava à espera era das insuperáveis dúvidas do Senado quanto à possibilidade de Catilina ser o cabecilha daquilo que parecia ser uma insurreição nascente. Esperava cepticismo, mas não contava com uma oposição firme. Mas foi com uma oposição firme que teve de se haver, depois de ter apresentado e lido as cartas. Pensara que o facto de Crasso ser referido nas cartas levaria o Senado a concordar com um senatus consultum de ré publica defendendo, o decreto que proclamava a lei marcial. No entanto, o Senado rejeitou essa possibilidade.
— Só devias ter aberto as cartas depois de o Senado estar reunido — disse Catão, num tom agressivo. Catão era agora um tribuno da plebe eleito e, nessa qualidade, tinha direito a usar da palavra.
— Mas eu abri-as perante testemunhas irrepreensíveis!
— Não interessa — retorquiu Catulo. — Usurpaste uma prerrogativa do Senado!
Enquanto o debate prosseguia, Catilina limitava-se a escutar, embora a sua expressão reflectisse as emoções esperadas — indignação, calma, inocência, incredulidade, alguma exasperação.
Já com a paciência esgotada, Cícero virou-se para ele. — Lúcio Sérgio Catilina, admites que és o impulsionador destes acontecimentos? — perguntou ele, com uma voz portentosa.
— Não, Marco Túlio Cícero, não admito.
— Algum dos presentes me apoia? — perguntou o cônsul sénior, o olhar percorrendo uma série de rostos, desde Crasso a César, desde Catulo a Catão.
— Sugiro — disse Crasso, após um longo silêncio — que esta casa peça ao cônsul sénior que investigue mais profundamente todos os lados do problema. Não ficaria supreendido se a Etrúria se revoltasse — quanto a isso, Marco Túlio, tenho de concordar contigo. Mas quando o teu próprio colega no consulado diz que tudo isto não passa de uma brincadeira de mau gosto e anuncia que vai voltar para Cumas amanhã, como podes esperar que fiquemos todos em pânico?
E as coisas ficaram por aí. Cícero tinha de encontrar mais provas.
— Foi Quinto Curião quem mandou as cartas a Marco Crasso — disse Fúlvia Nobilioris às primeiras horas da manhã seguinte. — Mas ele recusa-se a depor. Tem medo.
— Vocês falaram disto?
— Falámos.
— Nesse caso, Fúlvia, podes dar-me alguns nomes?
— Só te posso dar os nomes dos amigos de Quinto Curião.
— Quem são eles?
— Lúcio Cássio, como sabes. Caio Cornélio e Lúcio Vargunteio, que foram expulsos do Senado juntamente com o meu Curião.
As palavras de Fúlvia fizeram com que Cícero se lembrasse subitamente de um facto que há muito esquecera. — O pretor Lêntulo Sura não será também um desses amigos? — perguntou, recordando-se da forma insultuosa como Sura o tratara no dia das eleições. Sim, Lêntulo Sura fora um dos setenta homens expulsos pelos censores Clodiano e Poplicola! Apesar de ter sido cônsul.
Mas Fúlvia nada sabia quanto a Lêntulo Sura. — No entanto — disse ela —, tenho visto o jovem Cetego — chama-se Caio Cetego, não é? — com Lúcio Cássio. E também Lúcio Estatílio e Gabínio Capitão. Não são amigos íntimos, por isso é difícil dizer se estão ou não envolvidos na revolta.
— E quanto à insurreição na Etrúria?
— Só sei que Quinto Curião diz que vai rebentar.
— Quinto Curião diz que vai rebentar — repetiu Cícero a Terência, depois de esta ter acompanhado Fúlvia Nobilioris à porta. — Catilina é demasiado esperto para Roma, minha querida. Alguma vez conheceste um Romano capaz de guardar um segredo? Contudo, para onde quer que me vire, vejo-me sem saída. Quem me dera ser de origem nobre! Se o meu nome fosse Licínio ou Fábio ou Cecílio, Roma a esta hora já estaria sob a lei marcial e Catilina seria um inimigo público! Mas como o meu nome é Túlio e as minhas raízes estão em Arpino — a região de Mário, precisamente! — nada do que digo tem efeito algum.
— Sem dúvida — disse Terência.
O que provocou um olhar pesaroso de Cícero, mas nenhum comentário.
Momentos depois, bateu com as mãos nas coxas e disse: — Pois bem, já que não tenho outra saída, vou continuar a procurar as provas que eles pediram!
— Mandaste homens bastantes à Etrúria. Com certeza descobrirão alguma coisa...
— Tudo leva a crer que sim... Mas as cartas indicam que a rebelião não está concentrada nas cidades, que as cidades serão conquistadas a partir de bases situadas no campo.
— As cartas também dão a entender que eles têm falta de armamentos.
— Precisamente. Quando Pompeu Magno foi cônsul e insistiu que devia haver depósitos de armamentos a norte de Roma, muitos foram os que não gostaram da ideia. Admito que os arsenais dele são tão inexpugnáveis como Nola, mas se as cidades se revoltarem...
— Até agora, as cidades não se revoltaram. Têm demasiado medo.
— Estão cheias de Etruscos e os Estruscos odeiam Roma.
— Esta revolta é obra dos veteranos de Sila.
— Que não vivem nas cidades.
— Precisamente.
— Achas que tente de novo no Senado?
— Acho, marido. Não tens nada a perder. Por que não hás-de tentar?
E Cícero assim fez, um dia depois, o vigésimo primeiro dia de Outubro. A sua reunião teve uma escassa audiência — mais uma indicação do que pensavam os senadores de Roma do seu cônsul sénior: um ambicioso Homem Novo, decidido a transformar uma coisa de nada num grande acontecimento, determinado a encontrar uma causa suficientemente séria e, por isso mesmo, susceptível de produzir discursos para a posteridade. Catão, Crasso, Catulo, César e Lúculo estavam presentes, mas muito do espaço das três bancadas ficou por ocupar. Contudo, Catilina não parava de se pavonear, solidamente apoiado por homens que tinham dele a melhor opinião e que o consideravam uma vítima. Lúcio Cássio, Públio Sila, sobrinho do ditador, o seu amigo Autrónio, Quinto Ánio Quilão, os dois filhos do falecido Cetego, os dois irmãos Sila que não pertenciam ao clã do ditador mas que, apesar disso, estavam muito bem relacionados, o espirituoso tribuno da plebe eleito Lúcio Calpúrnio Béstia, e Marco Pórcio Leca. Estarão todos envolvidos na conspiração?, perguntou-se Cícero. Estarei eu a olhar para a nova ordem que espera Roma? Se assim é, não creio que vão muito longe... São todos uns vilões, não mais do que isso! Respirou fundo e começou...
— Estou cansado de usar uma expressão tão longa como senatus consultum de ré publica defendendo — anunciou ele, ao fim de uma hora de palavras muito bem escolhidas. — Por isso, vou dar um novo nome a esse decreto do Senado, o único decreto aprovado pelo Senado que vincula todos os Comitia, todas as instituições governamentais, as instituições em geral e os cidadãos. Vou chamar-lhe Senatus Consultum Ultimum. E, Patres Conscripti, aquilo que vos proponho é precisamente a aprovação de um Senatus Consultum Ultimum.
— Contra mim, Marco Túlio? — perguntou Catilina, sorridente.
— Contra a revolução, Lúcio Sérgio.
— Mas tu não provaste nada, Marco Túlio. Dá-nos provas e não palavras!
Não havia dúvida: ia falhar de novo.
— Marco Túlio, talvez nos sentíssemos mais tentados a acreditar na rebelião da Etrúria, se deixasses de atacar pessoalmente Lúcio Sérgio — disse Catulo. — As tuas acusações contra ele não se baseiam em factos e isso, por sua vez, lança imensas dúvidas sobre uma perturbação invulgar a noroeste do Tibre. A Etrúria é uma velha conhecida nossa no que toca a perturbações e Lúcio Sérgio é muito claramente um bode expiatório. Não, Marco Túlio, não acreditaremos em nenhuma das tuas acusações sem provas mais concretas. Os belos discursos não bastam.
— Eu tenho provas bem concretas! — atroou uma voz vinda das portas do Senado. Era o ex-pretor Quinto Árrio.
Com os joelhos vacilantes, Cícero sentou-se abruptamente na sua cadeira de marfim e ficou boquiaberto a olhar para Árrio, ainda vestido com traje de montar e todo desalinhado por causa da viagem.
O Senado rompeu num murmúrio ao mesmo tempo que olhava para Catilina, o qual, rodeado ainda pelos seus amigos, parecia estupefacto.
— Vem para o estrado, Quinto Árrio, e dize-nos o que nos trazes.
— Há de facto uma revolução na Etrúria — disse Árrio. — Eu vi-o com os meus próprios olhos. Os veteranos de Sila abandonaram as suas quintas e estão a treinar voluntários, na sua maior parte homens que perderam as suas casas ou propriedades nestes tempos difíceis. Descobri o seu acampamento a algumas milhas de Fesulas.
— Quantos homens, Árrio? — perguntou César.
— Cerca de dois mil.
Este esclarecimento produziu um suspiro de alívio, mas as expressões de preocupação voltaram quando Árrio explicou que havia acampamentos idênticos em Arrécio, Volaterras e Satúrnia, e que era muito provável que também Clúsio estivesse envolvida nas manobras.
— E quanto a mim, Quinto Árrio? — perguntou Catilina com sonora voz. — Serei eu o chefe dessa gente, apesar de estar aqui em Roma?
— O chefe deles, tanto quanto consegui saber, é um homem chamado Caio Mânlio, que foi um dos centuriões de Sila. Não ouvi qualquer referência ao teu nome, nem possuo quaisquer provas susceptíveis de te incriminarem.
Ao ouvirem isto, os homens que rodeavam Catilina romperam em vivas; quanto ao resto do Senado, parecia aliviado. Engolindo o seu pesar, o cônsul sénior agradeceu a Quinto Árrio e pediu de novo ao Senado que aprovasse o seu Senatus Consultum Ultimum e que lhe permitisse a ele e ao seu governo organizar a guerra contra os rebeldes da Etrúria.
— Proponho uma divisão — disse ele. — Todos aqueles que aprovam a promulgação de um Senatus Consultum Ultimum para enfrentar a rebelião da Etrúria, deverão passar para a minha direita. Aqueles que se opõem, deverão passar para a minha esquerda.
Toda a gente passou para a direita, incluindo Catilina e os seus adeptos; Catilina estava com uma expressão que parecia dizer,
Como vês, ó arrivista de Arpino, ainda não foi desta que me “apanhaste!”
— No entanto — disse o pretor Lêntulo Sura depois de todos os senadores terem regressado aos seus lugares —, as concentrações de tropas não significam necessariamente que esteja em marcha uma insurreição, pelo menos por ora. Ouviste por acaso alguma data, Quinto Árrio? Cindo dias antes das Calendas de Novembro, por exemplo, já que essa é a data das famosas cartas enviadas a Marco Crasso?
— Não ouvi nenhuma data — respondeu Árrio.
— Eu fiz essa pergunta — prosseguiu Lêntulo Sura — porque o Tesouro não está em condições de reunir largas somas de dinheiro tendo em vista um recrutamento em massa. Posso sugerir, Marco Túlio, que, por ora, exerças o teu... como é que é?... ah, sim, Senatus Consultum Ultimum, de uma forma restrita?
Era visível que os senadores aprovavam essa via — bastava olhar para as suas caras. Cícero contentou-se por isso com uma medida que afastava de Roma todos os gladiadores profissionais.
— Só isso, Marco Túlio? Não há nenhuma directiva para distribuir armas por todos os cidadãos desta cidade que deveriam empunhá-las em casos de emergência? — perguntou Catilina com uma expressão afável.
— Não, Lúcio Sérgio, eu não tenciono dar essa directiva enquanto não tiver provado que tu e os teus amigos são inimigos públicos! — atirou-lhe Cícero. — Por que haveria de dar armas a pessoas que acabariam por virar essas armas contra todos os cidadãos leais?
— Este indivíduo é pernicioso! — exclamou Catilina, de braços erguidos. — Não tem a mínima prova e, no entanto, persiste em perseguir-me!
Mas Catulo lembrava-se bem de como ele e Hortênsio se tinham sentido no ano anterior, quando haviam conspirado para excluir Catilina da cadeira que, na prática, tinham entregue a Cícero, já que este era uma alternativa preferível. Seria possível que Catilina fosse o cabecilha? Caio Mânlio era seu cliente. Tal como outro dos revolucionários, Públio Fúrio. Talvez fosse boa ideia descobrir se Minúcio, Publício e Aulo Fúlvio eram também clientes de Catilina. No fim de contas, nenhum dos homens que apoiavam Catilina era um pilar de rectidão! Lúcio Cássio não passava de um imbecil, e quanto a Públio Sila e Públio Autrónio... não tinham eles sido afastados do consulado ainda antes de assumirem funções? E não correra nessa altura o boato de que planeavam assassinar Lúcio Cota e Torquato, os seus substitutos? Catulo decidiu falar.
— Deixa Marco Túlio em paz, Lúcio Sérgio! — ordenou ele, já farto. — Podem obrigar-nos a suportar uma guerrinha privada entre vocês os dois, mas nada nos obriga a tolerar que um privatus tente dizer ao cônsul sénior legalmente eleito como deve ou não deve pôr em prática o seu... o seu Senatus Consultam Ultimum. Estou inteiramente de acordo com Marco Túlio. A partir de agora, as concentrações de tropas na Etrúria deverão ser rigorosamente controladas. Portanto, ninguém nesta cidade precisa, por ora, de armas.
— Estás quase a lá chegar, Cícero — disse César, enquanto os senadores debandavam. — Catulo já está desconfiado de Catilina.
— E tu?
— Eu? Eu acho que Catilina é a maldade em pessoa. Foi por isso que pedi a Quinto Árrio que fizesse uma pequena investigação na Etrúria.
— Tu? Foste tu quem mandou Árrio?
— Bom, tu não estavas a dar conta do recado, pois não? Escolhi Árrio porque ele combateu ao lado de Sila. Os veteranos de Sila adoram-no. Poucos são os membros das classes altas de Roma que não levantam suspeitas entre esses veteranos descontentes. Árrio é um desses homens — disse César.
— Nesse caso, não posso deixar de te manifestar a minha gratidão, César.
— Ora, deixa-te disso! Tal como todos os membros da minha classe, é claro que sinto grande relutância em abandonar um patrício. No entanto, Cícero, também não sou propriamente um idiota. Não quero insurreições, nem quero que me identifiquem com um patrício que as fomenta. A minha estrela ainda está a subir. É uma pena que a estrela de Catilina se tenha apagado, mas a verdade é que se apagou. Portanto, Catilina é um peso morto na política romana. — César encolheu os ombros, e acrescentou: — E eu não posso envolver-me com pesos mortos. O mesmo se pode dizer de muitos de nós, desde Crasso a Catulo. Como agora podes verificar.
— Eu tenho homens na Etrúria. Se a insurreição eclodir realmente cinco dias antes das Calendas, Roma saberá disso no prazo de um dia.
Mas Roma não soube da insurreição no prazo de um dia. Quando chegou o quarto dia antes das Calendas de Novembro, nada de nada se passou. Os cônsules e os pretores que, segundo as cartas, deveriam ser mortos, continuaram a desempenhar os seus cargos sem que ninguém os molestasse, e, da Etrúria, não veio notícia nenhuma sobre rebeliões.
Cícero andava num frenesim de dúvidas e expectativas. Além disso, sentia-se extremamente desanimado, não só por causa da troça constante de Catilina, mas também devido à súbita frieza de Catulo e Crasso. Que acontecera? Por que motivo não vinham notícias?
As Calendas de Novembro chegaram, mas, quanto a notícias, nada. Não que Cícero estivesse parado durante esses dias horríveis em que teve de aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Protegeu a cidade com destacamentos de tropas de Cápua, instalou uma corte em Ocrículo, outra em Tibur, outra em Óstia, outra em Preneste, e duas em Veios; mais do que isso não podia fazer, já que não havia mais tropas suficientemente preparadas para combater, nem mesmo em Cápua.
Até que, pouco depois do meio-dia das Calendas de Novembro, tudo aconteceu de repente. Uma mensagem pedindo ajuda veio de Preneste; os militares que se encontravam em Preneste afirmavam estar a ser alvo de um ataque. Idêntica mensagem veio logo a seguir de Fesulas. A insurreição começara de facto cinco dias antes, exactamente como as cartas indicavam. Ao fim do dia, mensagens vindas de Cápua e da Apúlia indicavam que os escravos se tinham revoltado. Cícero convocou o Senado para as primeiras horas do dia seguinte.
Quão conveniente podia ser para Roma a reivindicação de um triunfo! Há cinquenta anos que a presença de um exército de um triunfador no Campus Martius livrava Roma de perigos vários em tempos de crise. E a crise actual não era diferente. Quinto Márcio Rei e Metelo Cabrito Crético estavam ambos no Campo de Marte à espera dos seus triunfos. Claro que nenhum deles tinha mais do que uma legião, mas a verdade é que essas legiões eram constituídas exclusivamente por veteranos. Com o total assentimento do Senado, Cícero ordenou a Metelo Cabrito que seguisse para sul, para a Apúlia, e que, pelo caminho, libertasse Preneste, e a Márcio Rei que seguisse para norte, na direcção de Fesulas.
Cícero tinha oito pretores à sua disposição, ainda que à partida houvesse excluído Lêntulo Sura; ordenou a Quinto Pompeu Rufo que fosse para Cápua e começasse a recrutar soldados entre os muitos veteranos instalados na Campânia. E quem mais tinha ele? Caio Pontino era um Homem Militar e além disso um bom amigo, o que significava que seria melhor retê-lo em Roma para funções mais importantes. Coscónio era filho de um brilhante general, mas nada adequado para o campo de batalha. Pórcio Otão era um grande amigo de Cícero, mas mais eficiente a bajular do que a comandar tropas ou a recrutar. Sulpício, embora não fosse um patrício, parecia simpatizar um pouco com Catilina, e o patrício Valério Flaco era outro em que Cícero não podia confiar. Só lhe restava o praetor urbanus, Metelo Célere. Um homem de Pompeu e absolutamente leal.
— Quinto Metelo Célere, ordeno-te que vás para Piceno e que comeces a recrutar soldados na região — disse-lhe Cícero.
Célere levantou-se, com um ar preocupado. — Claro que gostaria muito de cumprir as tuas ordens, Marco Túlio, mas há um problema. Na minha qualidade de praetor urbanus, não posso estar ausente de Roma mais de dez dias seguidos.
— Sob um Senatus Consultum Ultimum, podes fazer tudo o que o Estado te mandar fazer, sem que isso constitua uma infracção à lei ou às tradições.
— Gostaria de concordar com a tua interpretação — interrompeu César —, mas não posso. O Consultum Ultimum abarca apenas a crise, não altera as funções normais dos magistrados.
— Mas eu preciso de Célere precisamente para lidar com a crise! — exclamou Cícero.
— Tens mais cinco pretores — contrapôs César.
— Eu sou o cônsul sénior, e mandarei o pretor que melhor se adeque a tais funções!
— Mesmo agindo ilegalmente?
— Eu não estou a agir ilegalmente! O Senatus Consultum Ultimum sobrepõe-se a todas as outras considerações, incluindo aquilo a que chamas “funções normais dos magistrados”! — Com o rosto todo congestionado, Cícero já gritava. — Serias capaz de questionar o direito de um ditador formalmente nomeado de mandar Célere para fora da cidade durante mais de dez dias seguidos?
— Não, Marco Túlio, não seria — retorquiu César, muito mais calmo. — Portanto, por que não havemos de fazer as coisas como deve ser? Revoga o decreto que invocas e pede a esta casa que nomeie um ditador e um senhor do cavalo para combater Caio Mânlio.
— Ora aí está uma ideia brilhante! — comentou Catilina, com um ar trocista, sentado no seu assento habitual e rodeado por todos os homens que o apoiavam.
— Da última vez que Roma teve um ditador, este acabou por governar como se fosse um rei! — exclamou Cícero. — O Senatus Consultum Ultimum foi concebido para lidar com crises civis de forma a que o poder não ficasse todo nas mãos de um homem!
— O quê?! Pois tu não tens o poder todo nas tuas mãos, Cícero? — perguntou Catilina.
— Eu sou o cônsul sénior!
— E tomas todas as decisões, como se fosses um ditador! — escarneceu Catilina.
— Eu sou o instrumento do Senatus Consultum Ultimum!
— Tu és o instrumento do caos magisterial — disse César. — Dentro de pouco mais de um mês, os novos tribunos da plebe assumirão funções e o pretor urbano terá de estar em Roma alguns dias antes e alguns dias depois desse evento.
— Não há nenhuma lei que diga isso!
— Mas há uma lei que diz que o pretor urbano não pode estar ausente de Roma mais de dez dias seguidos.
— Está bem, está bem! — berrou Cícero. — Quinto Cecílio Metelo Célere, ordeno-te que vás para Piceno, mas que voltes a Roma de dez em dez dias! Regressarás também a Roma seis dias antes da investidura dos novos tribunos da plebe e permanecerás em Roma nos seis dias seguintes!
Nesse instante, um escriba entregou uma mensagem ao irado cônsul sénior. Cícero leu-a e riu-se. — Muito bem, Lúcio Sérgio...! — disse ele para Catilina. — Parece que tens mais um problema! Lúcio Emílio Paulo tenciona processar-te por infracção à lex Plautia de vi, como acaba de anunciar nos rostra! — Cícero tossicou ostensivamente. — Estou certo de que conheces bem Lúcio Emílio Paulo...! Um patrício e um revolucionário! Voltou a Roma após alguns anos de exílio e muito atrasado em relação ao seu irmão mais novo, Lépido, em termos de vida pública, mas, pelos vistos, está desejoso de mostrar que já está curado das suas tendências revolucionárias. Tu bem dizes que só nós, os Homens Novos, os arrivistas, é que estamos contra ti, mas não podes chamar arrivista e Homem Novo a um Emílio, pois não?
— Oh, oh, oh! — exclamou Catilina, troçando de Cícero. Estendeu a mão direita e fê-la flutuar e tremer. — Vê só como eu tremo, Marco Túlio...! Vou ser acusado de incitamento à violência pública? Mas quando é que eu fiz isso? — Catilina manteve-se sentado, mas olhava à sua volta com um ar terrivelmente magoado. — Talvez deva ficar sob a custódia de algum nobre... que achas, Marco Túlio? Agrada-te tal solução? — Virou-se para Mamerco e perguntou-lhe: — Mamerco Emílio Lépido Princeps Senatus, levas-me para tua casa como teu prisioneiro?
Chefe dos Emílios Lépidos e, portanto, intimamente ligado ao tribuno Paulo que estivera exilado, Mamerco limitou-se a abanar a cabeça e a sorrir. — Não, Lúcio Sérgio, não te levo para minha casa — retorquiu.
— E tu, cônsul sénior? — perguntou Catilina a Cícero.
— O quê?! Achas que ia deixar entrar na minha casa o meu potencial assassino? Não, muito obrigado! — disse Cícero.
— E tu, praetor urbanas?
— Impossível — replicou Metelo Célere. — Amanhã de manhã parto para Piceno.
— E que tal um Cláudio plebeu? Aceitas-me como teu prisioneiro, Marco Cláudio Marcelo? Ainda há dias te apressaste a seguir o teu chefe Marco Crasso... por que não te apressas agora a receber-me em tua casa?
— Recuso-me — disse Marcelo.
— Tenho uma ideia melhor, Lúcio Sérgio — disse Cícero.
— Por que não sais de Roma e te juntas abertamente à tua insurreição?
— Não vou sair de Roma, Marco Túlio, e a insurreição não é minha — retorquiu Catilina.
— Nesse caso, declaro encerrada a sessão. — disse Cícero.
— Roma encontra-se o melhor protegida possível. Tudo o que podemos fazer agora é esperar e ver o que acontece. Mais tarde ou mais cedo, Catilina, acabarás por denunciar os teus verdadeiros desígnios.
— Daria tudo para que o meu colega Híbrida, esse amante inveterado do prazer, regressasse a Roma! — disse Cícero, algumas horas depois, a Terência. — O estado de emergência foi oficialmente declarado e onde é que está Caio António Híbrida? Todo refastelado na sua praia privativa em Cumas!
— O Senatus Consultum Ultimum não te permite ordenar-lhe que regresse imediatamente a Roma?
— Creio que sim.
— Então manda-o regressar, Cícero! Podes vir a precisar dele.
— Ele diz que tem gota.
— Ele tem gota mas é na cabeça! — foi o veredicto de Terência.
Cerca de cinco horas antes do amanhecer do sétimo dia de Novembro, Tiro voltou a despertar Cícero e Terência de um sono bem profundo.
— Tens uma visita, domina — disse o escravo que o casal adorava.
Famosa pelo seu reumatismo, a mulher do cônsul sénior mostrou não padecer dessa doença ao saltar com toda a destreza da cama (decentemente vestida com uma camisa de dormir — na casa de Cícero ninguém dormia nu!).
— É Fúlvia Nobilioris — disse ela, abanando Cícero. — Acorda, marido, acorda! — Ah, que maravilha! Finalmente participaria num conselho de guerra!
— Foi Quinto Curião quem me mandou — anunciou Fúlvia Nobilioris, o rosto exibindo claros sinais de velhice, pois não tivera tempo para se maquilhar.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Cícero com um ar duro.
— Sim. — Fúlvia pegou na taça de vinho sem água que Terência lhe deu e, tremendo da cabeça aos pés, bebeu. — Encontraram-se à meia-noite na casa de Marco Pórcio Leca.
— Quem?
— Catilina, Lúcio Cássio, o meu Quinto Curió, Caio Cetego, os dois irmãos Sila, Gabínio Capitão, Lúcio Estatílio, Lúcio Vargunteio e Caio Cornélio.
— E Lêntulo Sura?
— Não, Lêntulo Sura não estava.
— Então parece que me enganei a respeito dele. Mas continua, mulher, continua! Que aconteceu?
— Eles reuniram-se para planear a queda de Roma e promover a rebelião — disse Fúlvia Nobilioris, já com um pouco de cor nas suas faces. — Caio Cetego queria tomar Roma imediatamente, mas Catilina quer esperar até que a insurreição chegue à Apúlia, à Úmbria e ao Brútio. Sugeriu a noite das Saturnais, argumentando que, nessa noite, Roma fica na maior confusão, pois os escravos mandam e os livres servem e toda a gente se embebeda. Além disso, acha que será preciso esperar até lá para engrossar as hostes revolucionárias.
Aquiescendo, Cícero entendia perfeitamente os argumentos de Catilina: as Saturnais decorriam no décimo sétimo dia de Dezembro; faltavam seis intervalos entre mercados. Nessa altura, toda a Itália deveria estar já ao rubro. — Quem venceu, Fúlvia? — perguntou.
— Catilina, embora Cetego tenha vencido num outro ponto.
— Que ponto? — perguntou imediatamente o cônsul sénior, vendo-a tremer de novo.
— Decidiram que devias ser assassinado imediatamente. Desde que lera as cartas que Cícero sabia que era um dos alvos dos insurrectos; agora, porém, ao ouvir aquilo dos lábios da aterrada Fúlvia, Cícero sentiu pela primeira vez um horror incomensurável. Assassinado imediatamente! Imediatamente! — Como e quando? — perguntou. — Vá lá, Fúlvia, dize-me! Eu não te vou levar a tribunal, pois tu mereces prémios e não castigos! Dize-me!
— Lúcio Vargunteio e Caio Cornélio estarão aqui ao amanhecer, juntamente com os teus clientes — disse ela.
— Mas eles não são meus clientes! — retorquiu Cícero espantado.
— Eu sei. Mas foi decidido que eles te pediriam que os aceitasses como clientes, na esperança de que viesses a apoiar o seu regresso à vida pública. Uma vez dentro da tua casa, pedirão uma entrevista privada no teu gabinete, a fim de te explicarem os seus problemas. Nessa altura, apunhalar-te-ão e fugirão antes que os teus clientes se apercebam do que aconteceu. — disse Fúlvia.
— Então é muito simples — disse Cícero, suspirando de alívio. — Trancarei as portas, deixarei uma sentinela no peristilo e recusar-me-ei a ver os meus clientes invocando doença. Aliás, não sairei durante todo o dia. É tempo de fazer as reuniões necessárias. — Levantou-se e afagou as mãos de Fúlvia Nobilioris. — Agradeço-te muito sinceramente, Fúlvia. Dize a Quinto Curió que a sua intervenção já lhe valeu o perdão de Roma. Mas dize-lhe também que se ele depuser no Senado depois de amanhã, será um herói de Roma. Dou-lhe a minha palavra de honra de que não deixarei que nada lhe aconteça.
— Eu digo-lhe.
— Qual é exactamente o plano de Catilina para as Saturnais?
— Eles têm um vasto depósito de armas algures — Quinto Curió não sabe onde — e essas armas serão distribuídas por todos os revoltosos. Provocarão doze incêndios em toda a cidade, incluindo um no Capitólio, dois no Palatino, dois nas Carinas, e um em cada extremidade do Fórum. Alguns homens invadirão as casas de todos os magistrados e matá-los-ão.
— Mas eu nessa altura já estarei morto.
— Sim.
— É melhor ires andando, Fúlvia — disse Cícero, acenando para a mulher. — Vargunteio e Cornélio podem chegar mais cedo e não quero que eles te vejam. Trouxeste escolta?
— Não — murmurou ela, de novo pálida.
— Então vou mandar Tiro e mais quatro criados contigo.
— Mas que conspiração, ha? — atroou Terência, regressando ao gabinete de Cícero, depois de ter organizado a fuga de Fúlvia Nobilioris.
— Minha querida, sem ti eu já estaria morto.
— Está visto que sim — disse Terência, sentando-se. — Dei ordens aos criados para trancarem todas as portas logo que Tiro e os outros voltem. Mas agora escreve uma mensagem dizendo que estás doente e que não recebes ninguém, que eu vou já pô-la na porta da frente.
Cícero obedeceu, entregou a nota à mulher e deixou que esta cuidasse da logística. O general que ela não daria...! Nada lhe escapava, não se esquecia de nada. A casa depressa se transformaria numa fortaleza.
— Vais precisar de falar com Catulo, com Crasso, com Hortênsio, se por acaso Hortênsio já voltou das férias, Mamerco e César — disse ela, depois de concluídos todos os preparativos.
— Mas só à tarde — murmurou Cícero. — Primeiro, temos de nos certificar de que estou livre de perigo.
Tiro foi para o piso de cima, postando-se junto a uma janela de onde se via bem a porta da frente; e, uma hora depois, anunciou que Vargunteio e Cornélio se tinham finalmente ido embora; no entanto, enquanto esperavam, tinham tentado forçar a fechadura da porta mais do que uma vez.
— Ah, isto é verdadeiramente revoltante! — exclamou o cônsul sénior. — Eu, que sou o cônsul sénior, trancado na minha própria casa? Tiro, manda chamar todos os consulares que se encontram em Roma! Eu amanhã trato da saúde a Catilina.
Apareceram quinze consulares — Mamerco, Poplicola, Catulo, Torquato, Crasso, Lúcio Cota, Vátia Isáurico, Curió, Lúculo, Varrão Lúculo, Volcácio Tulo, Caio Márcio Fígulo, Glabrião, Lúcio César e Caio Pisão. Os cônsules eleitos e o pretor urbano eleito, César, não foram convidados; Cícero decidira que o conselho de guerra seria apenas consultivo.
— Infelizmente — disse ele com um ar soturno, quando todos os homens estavam já acomodados num atrium demasiado pequeno para que se sentissem confortáveis — ah sim, teria de ganhar dinheiro, bastante dinheiro, para comprar uma casa maior! — não consigo convencer Quinto Curió a depor e isso significa que não poderei apresentar uma acusação sólida e fundamentada. Fúlvia Nobilioris também não testemunharia, mesmo que o Senado aceitasse ouvir as provas da boca de uma mulher.
— Provavelmente não vai servir de nada, Cícero, mas a verdade é que agora já acredito em ti — disse Catulo. — Não creio que possas ter imaginado todos esses nomes.
— Ah, muito obrigado, Quinto Lutácio! — atirou-lhe Cícero, com um olhar faiscante. — A tua aprovação é um bálsamo para o meu coração, mas não me ajuda a decidir o que vou dizer amanhã no Senado!
— Concentra-te em Catilina e esquece os outros — foi o conselho de Crasso. — Tira um daqueles discursos magníficos da tua caixa mágica e faz pontaria a Catilina. O que tens de fazer é levá-lo a abandonar Roma. O resto do bando pode ficar — mas é claro que vamos vigiá-los. O que é preciso é que cortes a cabeça que Catilina é e que Catilina pretende impor no corpo de Roma, naquele corpo que é forte mas que não tem cabeça.
— Se ele até agora não abandonou Roma, nada me garante que venha a abandonar — disse Cícero com um ar triste.
— Pode ser que abandone — disse Lúcio Cota. — Primeiro, precisamos de convencer certas pessoas a evitá-lo no Senado. Eu falarei com Públio Sila e Crasso pode falar com Autrónio, Crasso conhece-o bem. Públio Sila e Autrónio são, de longe, os dois maiores peixes no lago de Catilina. Se eles o evitarem no Senado, aposto que mesmo os homens cujos nomes acabamos de ouvir acabarão por abandoná-lo. O instinto de conservação tende a minar a lealdade. — Lúcio Cota levantou-se, sorridente, e virou-se para os seus colegas. — Vamos, consulares, levantem-me esses rabos! Deixemos Cícero tranquilo, a escrever o melhor de todos os seus discursos!
Que Cícero trabalhara, e muito, tornou-se evidente na manhã do dia seguinte, quando reuniu o Senado no templo de Júpiter Stator, na esquina da Velia, um local difícil de atacar e fácil de defender. Havia guardas ostensivamente colocados à volta do templo, e isso, como seria de esperar, atraiu uma vasta e curiosa audiência de frequentadores do Fórum. Catilina veio cedo, tal como Lúcio Cota previra e, por isso, a técnica do ostracismo teve resultados gritantes. Apenas Lúcio Cássio, Caio Cetego, o tribuno da plebe eleito Béstia e Marco Pórcio Leca se sentaram ao pé dele, fitando furiosamente Públio Sila e Autrónio.
Então, operou-se uma transformação visível em Catilina. Virou-se primeiro para Lúcio Cássio, segredou-lhe qualquer coisa, após o que murmurou também qualquer coisa para os outros. Os seus quatro apoiantes abanaram violentamente as cabeças, mas a opinião de Catilina prevaleceu. Silenciosamente, os quatro homens levantaram-se e abandonaram Catilina.
Foi nesse instante que Cícero deu início ao seu discurso, descrevendo uma reunião nocturna para planear a queda de Roma, revelando todos os nomes dos homens presentes e o nome do homem em cuja casa a reunião decorrera. De quando em quando, Cícero pedia a Lúcio Sérgio Catilina que deixasse Roma, que não impusesse à cidade a sua presença maléfica.
Catilina interrompeu-o uma única vez.
— Queres que eu me exile voluntariamente, Cícero? — perguntou ele bem alto porque as portas estavam abertas e a multidão que estava na rua queria ouvir tudo o que se dizia lá dentro. — Vá lá, Cícero, pergunta ao Senado se eu devo ou não exilar-me voluntariamente! Se o Senado disser que sim, eu exilar-me-ei!
Ao que Cícero nada respondeu. Limitou-se a prosseguir. Vai-te embora, parte, deixa Roma, esse era o seu tema.
E depois de tantas incertezas, tudo afinal se revelou fácil. Quando Cícero terminou, Catilina levantou-se e pôs um ar majestoso.
— Eu vou-me embora, Cícero! Eu abandono Roma! Eu não quero ficar aqui enquanto Roma for governada por um hóspede de Arpino, por um forasteiro que não é Romano, nem Latino! Não passas de um rústico samnita, Cícero, um grosseiro camponês das montanhas, sem antepassados nem influência! Achas que me obrigaste a partir? Pois não obrigaste! Foram Catulo, Mamerco, Cota, Torquato, que me convenceram! Eu parto porque eles me abandonaram, e não por aquilo que disseste! Quando os nossos pares nos abandonam, então é porque tudo está acabado. E é por isso que parto.
Na rua, ouviram-se ruídos confusos enquanto Catilina passava pelo meio dos frequentadores do Fórum. Depois, foi o silêncio. Os senadores levantaram-se por fim, tendo o cuidado de se afastarem dos homens cujos nomes Cícero referira. Havia até irmãos separados: Públio Cetego decidira claramente afastar-se de Caio, bem como da conspiração.
— Espero que estejas contente, Marco Túlio — disse-lhe César.
Era uma vitória, claro que era uma vitória. E, no entanto, a vitória parecia conter em si sementes de fracasso. Mesmo depois de Cícero se ter dirigido ao Fórum, dos rostra, no dia seguinte. Visivelmente espicaçado pelas observações concludentes de Catilina, Catulo usou da palavra no Senado, dois dias depois, e leu uma carta de Catilina em que este protestava a sua inocência e entregava a esposa, Aurélia Orestila, aos cuidados e à custódia do próprio Catulo. Entretanto, começaram a circular rumores de que Catilina se ia realmente exilar; teria seguido pela Via Aurélia (a direcção certa), apenas com três companheiros dignos de nota (entre os quais o seu amigo de infância Tongílio). O quadro estava completo; as pessoas voltavam a ver Catilina como vítima e não como culpado.
As coisas poderiam ter-se tornado intoleráveis para Cícero se, poucos dias depois, não tivessem chegado novidades da Etrúria. Catilina não fora afinal para o exílio em Massília; em vez disso, envergara a toga praetexta e as insígnias de um cônsul e vestira doze homens com túnicas escarlates, para além de lhes ter dado os fasces com as machadinhas. Fora visto em Arrécio com um simpatizante, Caio Flamínio (membro de uma família patrícia decadente), e exibia agora uma águia de prata que, segundo ele, era a águia original que Caio Mário dera às suas legiões. A Etrúria, que fora sempre o principal foco de apoio a Mário, ia agora aliar-se àquela águia.
Claro que isto bastou para reinstaurar a reprovação de consulares como Catulo e Mamerco (Hortênsio parecia ter decidido que a gota em Miseno era preferível a uma dor de cabeça em Roma, mas a gota de António Híbrida, que continuava em Cumas, estava a tornar-se um pretexto indecoroso para permanecer longe de Roma e escapar aos seus deveres de cônsul júnior).
Contudo, algum do peixe miúdo senatorial continuava convencido de que os acontecimentos haviam sido causados por Cícero, de que fora a incansável perseguição de Cícero que empurrara Catilina para a revolta. Um desses senadores era o irmão mais novo de Célere, Metelo Nepos, que em breve assumiria o cargo de tribuno da plebe. Catão, que seria também tribuno da plebe, elogiava Cícero — o que só servia para que Nepos desatasse a berrar, pois odiava Catão.
— Alguma vez uma insurreição se terá transformado num assunto tão controverso e rarefeito? — perguntou Cícero a Terência.
— Lépido, ao menos, declarou de que lado estava! Patrícios, patrícios...! Não podem fazer nada de errado...! E aqui estou eu com um bando de canalhas nas mãos e não posso condená-los por roubarem os serviços de distribuição de água, quanto mais por traição!
— Anima-te, marido — disse Terência que, pelos vistos, gostava de ver Cícero mais triste do que ela. — Espera e verás: o processo que agora começou há-de continuar. Em breve, todos os que duvidam
— desde Metelo Nepos a César — terão de admitir que tens razão.
— César podia ter-me ajudado mais — disse Cícero, descoroçoado.
— Não te esqueças que foi ele quem mandou Quinto Árrio — disse Terência, que ultimamente defendia muito César, pois a meia-irmã dela, Fúlvia, a vestal, cobria de elogios o novo Pontifex Maximus.
— Mas não me apoia no Senado, passa o tempo a atacar-me por causa da forma como eu interpreto o Senatus Consultam Ultimum. Parece-me que ele ainda pensa que Catilina foi vítima de uma injustiça.
— Catulo também pensa isso e, no entanto, Catulo e César não morrem de amores um pelo outro — disse Terência.
Dois dias depois, chegou a Roma a notícia de que Catilina e Mânlio tinham finalmente juntado as suas forças. Tinham duas legiões de experientes soldados, mais alguns milhares ainda em fase de treinos. Fesulas não caíra, o que significava que o seu arsenal permanecia intacto; aliás, nenhuma das grandes cidades da Etrúria aceitara entregar o conteúdo dos seus arsenais à causa de Catilina. Uma indicação de que uma grande parte da Etrúria não confiava em Catilina.
A Assembleia Popular ratificou um decreto senatorial e declarou Catilina e Mânlio inimigos públicos; isto significava que lhes fora retirada a cidadania e as suas prerrogativas, incluindo o julgamento por traição caso fossem capturados. Como Caio António Híbrida regressara finalmente a Roma, apesar da gota, Cícero ordenou-lhe imediatamente que se encarregasse dos soldados recrutados em Cápua e Piceno (todos eles veteranos de guerras anteriores) e marchasse contra Catilina e Mânlio nos arredores de Fesulas. Tendo em conta que a gota podia voltar a atacar, o cônsul sénior tratou de nomear um excelente vice-comandante das tropas, o vir militaris Marco Petreio. O próprio Cícero encarregou-se de organizar as defesas da cidade de Roma e começou a distribuir os armamentos previstos pela lei para os casos de emergência — mas não deu uma única arma àqueles que ele, Ático, Crasso ou Catulo (agora inteiramente convertido) consideravam suspeitos. Ninguém sabia o que planeava agora Catilina, embora Mânlio tivesse mandado uma carta ao triunfador Rei, que ainda se encontrava na Umbria; toda a gente ficou surpreendida com o facto, mas a carta não iria alterar nada. E foi precisamente nessa altura — estando Roma preparada para repelir um ataque do Norte, e Pompeu Rufo em Cápua e Metelo Cabrito na Apúlia preparados para enfrentar tudo, desde uma força de gladiadores a uma insurreição de escravos — que Catão resolveu perturbar os estratagemas de Cícero e pôr em perigo a capacidade de Roma para lidar com a mudança iminente de cônsules. Foi em fins de Novembro que Catão se levantou no Senado e anunciou que iria processar o cônsul júnior eleito, Lúcio Licínio Murena, por ter sido eleito, segundo ele, graças ao suborno dos votantes. Na sua qualidade de tribuno da plebe eleito, gritou Catão, sentia que não podia perder tempo com a acusação; por isso, o candidato derrotado Sérvio Sulpício Rufo seria o acusador, assistido pelo filho (acabado de chegar à idade adulta) e pelo patrício Caio Postúmio. O julgamento decorria no Tribunal dos Subornos, já que os acusadores eram todos patrícios e, portanto, não poderiam recorrer a Catão, nem à Assembleia Plebeia.
— Não podes fazer isso, Marco Pórcio Catão! — gritou Cícero, profundamente chocado, erguendo-se num repente. — A culpa ou a inocência de Lúcio Murena não é importante neste momento! Esqueceste-te de que temos de enfrentar uma rebelião? É evidente que não podemos entrar no Ano Novo sem um dos cônsules...! Se era tua intenção processar Lúcio Murena, porque é que só agora o fazes? Precisamente agora que o ano está prestes a terminar?
— Dever é dever! — retorquiu Catão, imperturbável. — Só agora é que disponho de provas e não te esqueças de que, há alguns meses, jurei nesta casa que, se soubesse que algum candidato a cônsul tinha subornado alguém, eu próprio trataria de acusar e processar o infractor. Pouco me importa qual será ou deixará de ser a situação de Roma no Ano Novo! Suborno é suborno! E deverá ser erradicado, custe o que custe!
— Mas não vês que o custo poderá ser a queda de Roma? Adia o julgamento!
— Nunca! — berrou Catão. — Eu não sou marioneta de ninguém! Limito-me a cumprir o meu dever!
— Não duvido que cumpririas o teu dever e que processarias um desgraçado qualquer mesmo que Roma se estivesse a afundar no mar Toscano!
— Enquanto eu não me afogasse, podes crer que cumpriria o meu dever!
— Que os deuses nos livrem de gente como tu, Catão!
— Roma estaria muito melhor, se houvesse mais gente como eu!
— Houvesse mais gente como tu e Roma não funcionaria! — gritou Cícero, com os braços erguidos, as mãos transformadas em garras. — As rodas, quando estão demasiado limpas, rangem e emperram, Marco Pórcio Catão! As coisas correm muito melhor com um pouco de gordura suja!
— Lá isso correm, lá isso correm... — comentou César, com um sorriso malicioso.
— Adia o caso, Catão — pediu Crasso, já farto.
— O caso já não está nas minhas mãos — retorquiu Catão, com um ar altivo. — Sérvio Sulpício está decidido a ir em frente.
— E pensar eu que tive em tempos tão boa opinião de Sérvio Sulpício...! — disse Cícero a Terência, algumas horas mais tarde.
— Ora, marido, foi Catão que o meteu nisso...! Não tenho a mínima dúvida!
— Que quer realmente Catão? Quer ver Roma cair só porque a justiça tem de ser célere? Será que ele não vê o perigo de termos apenas um cônsul no dia do Ano Novo — e, ainda por cima, Silano, que é um homem doente? — Cícero bateu as mãos, angustiado.
— Começo a pensar que um Catão ameaça muito mais Roma do que cem Catilinas!
— Bom, nesse caso só tens uma coisa a fazer: impede Sulpício de condenar Murena — disse Terência, prática como sempre.
— Defende Murena no tribunal, Cícero! E pede a Hortênsio e Crasso que te apoiem.
— Os cônsules em funções não costumam defender cônsules eleitos.
— Nesse caso, abre um precedente. Tu és bom nisso. E costumas ter sorte em casos desses.
— Hortênsio continua em Miseno com o dedo grande do pé todo inchado por causa da gota.
— Então fá-lo voltar para Roma, nem que para isso tenhas de raptá-lo.
— E acaba de uma vez por todas com esta história. Tens toda a razão, Terência. Valério Flaco é iudex no Tribunal dos Subornos. Flaco é um patrício... Esperemos que tenha o bom senso de me dar razão...
— Dar-te-á razão — assegurou Terência, com um sorriso de todo o tamanho. — Flaco não censurará Sulpício, mas sim Catão. Nenhum patrício gosta de Catão, a menos que se considere ilegalmente afastado do consulado, como é o caso de Sérvio Sulpício.
Nos olhos de Cícero notava-se já um brilho, que era tanto de esperança como de malícia. — Será que Murena me vai agradecer, dando-me uma esplêndida casa nova?
— Nem penses, Cícero! Tu é que precisas de Murena e não o contrário! Espera por um cliente muito mais desesperado para lhe pedires um pagamento desse gênero!
E Cícero nem por sombras sugeriu a Murena que precisava de uma casa nova. Defendeu o cônsul eleito em troca de um pequeno prêmio: uma pintura apenas interessante, obra de um artista grego menor executada dois séculos antes. Irritado e choroso, Hortênsio foi arrancado às suas férias em Miseno. Crasso também participou na batalha com toda a sua meticulosidade e paciência. Cícero, Hortênsio e Crasso formavam um triunvirato de advogados demasiado imponente para o pesaroso Sérvio Sulpício Rufo. Não admira que tenham conseguido a absolvição de Murena, sem precisarem de subornar o júri — uma hipótese em que nem sequer pensaram, já que Catão estava presente e muito atento a tudo.
Que mais poderá acontecer depois disto?, perguntou-se Cícero, dirigindo-se para casa a partir do Fórum, desejoso de saber se Murena já tinha enviado a pintura. Fizera um belo discurso! O último discurso, é claro, antes de o júri pronunciar o veredicto. Um dos maiores trunfos de Cícero era a sua capacidade para adaptar o teor do seu discurso às características do júri — homens que, na sua maior parte, ele conhecia bem. Felizmente, o júri de Murena era formado por homens que gostavam de comentários espirituosos e adoravam rir. Daí que Cícero tenha dado um tom humorístico ao seu discurso; conseguiu mesmo provocar a hilaridade dos presentes, quando troçou da adesão de Catão à filosofia estóica (de um modo geral impopular), fundada, segundo ele, por aquele Grego horrendo e chato que se chamava Zenão. O júri ficou extasiado com a sua actuação. Adorou todas as palavras do discurso, todas as nuances — e, em particular, a brilhante imitação que Cícero fez de Catão; brilhante, porque parecia o próprio Catão, tanto na voz, como na atitude; claro que não faltaram as referências ao gigantesco nariz de Catão, que Cícero imitou usando a mão. De tal forma que quando Cícero terminou, todo o júri se rebolava de tanto rir.
— Nunca pensei que o nosso cônsul sénior fosse tão bom actor! — gritou Catão depois de o veredicto de ABSOLVO ter sido pronunciado. O que só serviu para que o júri desatasse de novo a rir e considerasse Catão um mau perdedor.
— Isto faz-me lembrar a história que ouvi acerca de Catão na Síria, depois de o irmão dele, Cepião, ter morrido — disse Ático ao almoço.
— Que história? — perguntou Cícero sem grande entusiasmo; não estava nada interessado em ouvir as histórias de Catão, mas tinha razões para se sentir grato para com Ático, presidente do júri.
— Bom, ia ele pela estrada como um mendigo, acompanhado por três escravos, mais Munácio Rufo e Atenodoro Cordilião, quando, ao longe, viu as portas de Antióquia. E viu também uma imensa multidão que se aproximava deles gritando vivas.
Vejam só...!
disse ele para os outros, “A minha fama já chegou aqui!”.
Todos os habitantes de Antióquia saíram da cidade para me prestarem homenagem, pois eu sou o exemplo consumado do que todos os Romanos deviam ser — humilde, frugal, um honroso representante da mós maiorum. Munácio Rufo — foi ele quem me contou esta história uma vez que nos encontrámos em Atenas — diz que duvidou de Catão, mas o velho Atenodoro Cordilião acreditou em todas as suas palavras e desatou a tratá-lo com a deferência de um servo. A multidão alcançou-os finalmente. Traziam imensas grinaldas e as donzelas lançavam pétalas de rosas para o caminho. O etnarca dirigiu-se então aos forasteiros:
Qual de vós é o grande Demétno, liberto do glorioso Cneu Pompeu Magno?
perguntou. Ao ouvirem isto, Munácio Rufo e os três escravos desataram a rir que nem doidos, e nem Atenodoro Cordilião resistiu às gargalhadas, pois nunca vira expressão tão pasmada como a de Catão. Mas Catão estava lívido! Não conseguiu perceber onde é que estava a graça, tanto mais que o liberto Demétrio era um indivíduo extremamente efeminado!
Era sem dúvida uma boa história e Cícero riu-se sinceramente.
— Ouvi dizer que o esperto do Hortênsio, apesar de manco, já está em Miseno!
— É a sua pátria espiritual — lá não faltam os pavões...
— E até agora ninguém se rendeu, Marco. Ninguém quis aproveitar a amnistia do Senado... Que vai acontecer agora?
— Quem me dera saber, Tito, quem me dera saber!
Ninguém poderia ter previsto que o desenvolvimento seguinte decorresse da presença em Roma de uma delegação de Alóbroges, um povo que vivia junto ao Ródano, na Gália Narbonense. Chefiados por um dos seus anciãos, Brogo, os Alóbroges deslocaram-se ao Senado para protestar contra o tratamento que lhes era infligido por uma série de governadores como Caio Calpúrnio Pisão e por certos usurários mascarados de banqueiros. Desconhecendo que a lex Gabinia limitava tais audiências ao mês de Fevereiro, os Gauleses não conseguiram obter uma autorização para que a sua petição fosse antecipada. Por isso, ou voltavam para a Gália Narbonense, ou permaneciam em Roma mais dois meses, gastando uma fortuna para se hospedarem e para subornarem os senadores mais gananciosos. Decidiram que seria melhor regressar à sua terra e voltar no início de Fevereiro. Mas os enviados dos Alóbroges — desde o mais humilde dos escravos ao chefe Brogo — não estavam nada contentes. Como Brogo disse ao seu melhor amigo entre os Romanos, o liberto e banqueiro Públio Umbreno: — Parece-me uma causa perdida, Umbreno, mas regressaremos a Roma se eu conseguir incutir alguma paciência nas nossas tribos. Há entre nós quem fale já em guerra.
— O teu povo tem uma longa tradição de guerras com Roma — comentou Umbreno, que tivera uma ideia brilhante nesse preciso momento. — Vê só o que vocês fizeram a Pompeu Magno quando ele ia para a Hispânia combater Sertório.
— Creio que a guerra contra Roma é uma empresa fútil — retorquiu Brogo, desanimado. — As legiões são como a pedra do moinho, não param nunca de moer. Matamos os legionários numa batalha e convencemo-nos de que os derrotámos, mas, na estação seguinte, lá estão eles outra vez preparados para a batalha.
— E se tivesses o apoio de Roma numa guerra? — perguntou Umbreno, num tom insinuante.
Brogo ficou pasmado. — Não estou a perceber!
— Roma não é propriamente um todo coeso, Brogo. Pelo contrário: é uma associação de muitas facções. Neste momento, como sabes, há uma facção poderosa, chefiada por alguns homens muito inteligentes, que decidiu contestar o domínio do Senado e do Povo de Roma.
— Catilina?
— Catilina. Que me dizes se eu conseguisse uma garantia de Catilina de que, depois de ele se tornar ditador, os Alóbroges ficariam na posse de todo o vale do Ródano, a norte de, digamos... Valência?
Brogo parecia pensativo; só ao fim de um momento respondeu: — É uma oferta tentadora, Umbreno.
— Uma oferta sincera, garanto-te.
Brogo suspirou, sorriu. — O problema, Públio, é que não temos possibilidade de saber até onde vai a estima que um homem como Catilina, um grande aristocrata, tem por ti.
Noutras circunstâncias, Umbreno talvez contestasse aquelas dúvidas quanto à sua verdadeira influência; mas não o faria agora, não, de modo nenhum, pelo menos enquanto tivesse possibilidades de pôr em prática aquela brilhante ideia. — Sim, Brogo, eu percebo onde queres chegar. Claro que percebo! Ficarias mais tranquilo se eu te arranjasse um encontro com um pretor que é um patrício Cornélio, e cujo rosto conheces bem?
— Sim, ficaria mais tranquilo — disse Brogo.
— A casa de Semprónia Tuditanos seria o sítio ideal — é perto e o marido dela não está. Mas eu não tenho tempo para te levar lá, por isso terá de ser nas traseiras do templo de Saio, na Alta Semita, dentro de duas horas — disse Umbreno, e desandou. E, em duas horas apenas, sem saber bem como, Públio Umbreno conseguiu organizar tudo. Teve de falar com o pretor Públio Cornélio Lêntulo Sura, com os senadores Lúcio Cássio e Caio Cetego, e com os cavaleiros Públio Gabínio Capitão e Marco Cepário. Mas, ao fim de duas horas, Umbreno aparecia na ruela por detrás do templo de Saio — um local desolado — com Lêntulo Sura e Gabínio Capitão.
Lêntulo Sura ficou apenas o tempo necessário para saudar Brogo; era visível que não estava nada à vontade e que não queria outra coisa senão desaparecer dali para fora. Coube portanto a Umbreno e Gabínio Capitão negociarem com Brogo. Capitão, naturalmente, era o porta-voz dos conspiradores. Os cinco Alóbroges escutaram-no com toda a atenção, mas, depois de Capitão ter falado, os Gauleses evitaram comprometer-se, mostrando-se tímidos e desconfiados.
— Bom, não sei... — disse Brogo.
— Que é preciso fazer para ficares convencido de que estamos a falar a sério? — perguntou-lhe Umbreno.
— Não tenho a certeza — disse Brogo, com um ar confuso.
— Deixa-nos reflectir sobre o assunto esta noite, Umbreno. Podemos encontrar-nos aqui amanhã cedo?
E assim ficou combinado quando se separaram.
Os Alóbroges regressaram à estalagem situada à saída do Fórum, uma coincidência curiosa, já que, um pouco mais acima, na Sacra Via, ficava o arco triunfal erigido por Quinto Fábio Máximo Alobrógico, que conseguira (temporariamente) dominar aquela tribo gaulesa, muitas décadas antes, e que, por isso mesmo, juntara aquele apelido ao seu nome. Brogo e os seus compatriotas deram consigo a observar uma estrutura que lhes lembrava que pertenciam à clientela dos descendentes de Alobrógico. O seu actual patrono era Quinto Fábio Sanga, o bisneto de Alobrógico.
— Parece uma proposta atraente, quanto a isso não duvido — disse Brogo para os seus companheiros enquanto apreciava o arco.
— Contudo, também pode significar uma catástrofe. Se alguns dos membros mais fogosos do nosso povo sabem desta proposta, nem param para pensar: vão imediatamente para a guerra. Eu, em contrapartida, tenho o pressentimento de que é melhor recusar.
Como não havia nenhum desses elementos fogosos na delegação, os Alóbroges decidiram ir ter com o seu patrono, Quinto Fábio Sanga.
E, pelo que se veio a ver, foi uma decisão inteligente. Fábio Sanga foi ter imediatamente com Cícero.
— Temo-los finalmente nas nossas mãos, Quinto Fábio! — exclamou Cícero.
— Como? — perguntou Sanga, um homem tão obtuso que dificilmente chegaria a altos cargos e que precisava sempre que lhe explicassem tudo muito bem.
— Vai ter com os Alóbroges e dize-lhes para pedirem cartas a Lêntulo Sura — eu tinha razão, eu tinha razão! — e a mais três dos chefes da conspiração. Têm de insistir que os levem até Catilina
— é um pedido lógico, tendo em conta o que os conspiradores lhes pedem. E isso também implica uma deslocação para fora de Roma e a presença de um guia, ou seja, um dos conspiradores.
— Qual é a importância do guia? — perguntou Sanga, pestanejando.
— Se um dos conspiradores os acompanhar, será mais prudente deixarem Roma furtivamente e pela calada da noite — disse Cícero pacientemente.
— É necessário que partam de noite?
— Absolutamente necessário, Quinto Fábio! Eu vou colocar homens em cada ponta da Ponte Múlvia e isso, à noite, é mais fácil de fazer. Quando os Alóbroges e o conspirador estiverem na ponte, os meus homens atacarão. E disporemos finalmente de provas concretas — as cartas!
— Não tencionas fazer mal aos Alóbroges, pois não? — perguntou Sanga, muito alarmado perante a evocação de uma batalha na ponte.
— Claro que não! Eles farão parte do plano. Não te esqueças de lhes dizer que não ofereçam resistência. Dize também a Brogo para ficar com as cartas e para se rodear dos seus homens, não vá o guia tentar destruir as provas. — Cícero olhou gravemente para Fábio Sanga. — Entendido, Quinto Fábio? Consegues lembrar-te de tudo sem meteres os pés pelas mãos?
— Marco Túlio, repete tudo, por favor — pediu Sanga. Com um suspiro de impaciência, Cícero acedeu ao pedido. E, no final do dia seguinte, Sanga comunicou a Cícero que
Brogo e os seus homens tinham ficado com três cartas, uma de Lêntulo Sura, outra de Caio Cetego, a terceira de Lúcio Estatílio. Lúcio Cássio recusara-se a escrever a carta, parecendo muito nervoso. Bastariam as três cartas?, perguntava Sanga a Cícero, na sua mensagem.
Sim, sim!, respondeu Cícero numa outra mensagem, logo levada pelo mais rápido dos seus criados.
E foi assim que, já a noite ia bem alta, um pequeno cortejo deixou Roma pela Via Lata, a qual conduzia à grande estrada do Norte, a Via Flaminia, depois de atravessados o Compus Martius e a Ponte Múlvia. Com Brogo e os Alóbroges, viajava o seu guia, Tito Voltúrcio de Crotona, bem como um Lúcio Tarquínio e o cavaleiro Marco Cepário.
Tudo correu bem até chegarem à Ponte Múlvia, faltavam quatro horas para o amanhecer. Quando o último cavalo entrou na ponte, o pretor Flaco, na ponta sul, enviou um sinal de luzes para o pretor Pontino, que estava na ponta norte; os dois pretores, cada um dos quais apoiado por uma centúria de milicianos da cidade, avançaram rapidamente para bloquear a ponte. Marco Cepário empunhou a espada e tentou lutar, Voltúrcio rendeu-se, e Tarquínio, um bom nadador, atirou-se para a escuridão do Tibre. Os Alóbroges, muito obedientes, mantiveram-se bem juntos, segurando as rédeas dos cavalos tão firmemente como Brogo segurava as cartas que levava numa bolsa presa à cintura.
Cícero estava à espera quando Pontino, Valério Flaco, os Alóbroges, Voltúrcio e Cepário chegaram à sua casa, pouco antes do amanhecer. Também Fábio Sanga estava à espera deles — podia não ser muito inteligente, mas tinha plena consciência dos seus deveres de patrono.
— Tens as cartas, Brogo? — perguntou Fábio Sanga.
— Quatro cartas! — retorquiu Brogo, abrindo a bolsa e mostrando três rolos abertos, mais uma folha dobrada e selada.
— Quatro? — perguntou Cícero, impaciente. — Lúcio Cássio mudou de ideias?
— Não, Marco Túlio. A carta que está fechada é uma mensagem privada do pretor Sura para Catilina. Pelo menos foi o que me disseram.
— Pontino — disse Cícero, pondo-se tão direito que, de repente, até parecia mais alto —, vai às casas de Públio Cornélio Lêntulo Sura, de Caio Cornélio Cetego, de Públio Gabínio Capitão e de Lúcio Estatílio. Ordena-lhes que compareçam imediatamente na minha casa, mas não lhes dês qualquer sugestão quanto aos motivos das minhas ordens. Entendido? E leva a tua milícia contigo, é claro.
Pontino anuiu solenemente; os acontecimentos daquela noite pareciam-lhe quase irreais; ainda não se tinha apercebido do que de facto se passara quando detivera os Alóbroges na Ponte Múlvia.
— Flaco, preciso de ti aqui como testemunha — disse Cícero ao seu outro pretor. — Mas manda a tua milícia postar-se em volta do templo de Concórdia. Tenciono realizar uma reunião do Senado nesse templo, logo que acabe de tratar de algumas coisas aqui em casa.
Todos os olhos o seguiam, incluindo — como Cícero reparou, com algum desagrado — os olhos de Terência, que estava escondida num canto da sala onde a luz não chegava. Bom, e porque não? Afinal, ela sempre estivera ao lado dele; merecia inteiramente um papel secundário naquela peça. Depois de uns momentos de reflexão, mandou os Alóbroges (excepto Brogo) para a sala de jantar, a fim de comerem e beberem qualquer coisa. Por fim, sentou-se e convidou Brogo, Sanga e Valerio Flaco a sentarem-se, já que teriam de esperar por Pontino e pelos homens que este deveria convocar. Voltúrcio não era perigoso — estava enfiado a um canto, o canto oposto ao de Terência, e limitava-se a chorar. Mas Cepário parecia estar ainda com intenções belicosas. Cícero acabou por fechá-lo num armário, embora tivesse preferido encerrá-lo numa cela vigiada por guardas — se ao menos Roma possuísse um sítio seguro para prender tal criatura...!
— A verdade — disse Lúcio Valerio Flaco, fechando o armário — é que a tua prisão provisória é indubitavelmente mais segura do que as Lautumiae.
Caio Cetego foi o primeiro a chegar, com um ar desconfiado e provocante; instantes depois, chegavam Estatílio e Gabínio Capitão, logo seguidos por Pontino. A espera por Lêntulo Sura foi muito mais longa. Mas também ele acabou por aparecer. Na sua expressão, só o aborrecimento causado pelo incómodo era visível.
— Francamente, Cícero, isto já é de mais! — exclamou ele, antes de dar pelos outros. O sobressalto que sentiu nesse instante passaria despercebido a muita gente, mas não a Cícero.
— Junta-te aos teus amigos, Lêntulo — disse Cícero. Alguém começou então a bater na porta da rua. Envergando armaduras por causa da sua missão nocturna, Valerio Flaco e Pontino brandiram logo as espadas.
— Abre a porta, Tiro! — pediu Cícero.
Mas da rua não vinham assassinos, nem qualquer outro perigo; eram Catulo, Crasso, Mamerco e Servílio Vátia quem batia à porta.
— Quando fomos convocados para o templo de Concórdia por ordem expressa do cônsul sénior — disse Catulo —, decidimos que seria melhor procurar primeiro o cônsul sénior.
— E são muito bem-vindos — disse Cícero, extremamente grato.
— Que se passa? — perguntou Crasso, olhando para os conspiradores.
Cícero começou a explicar, mas alguém batia novamente à porta; mais senadores entraram, ardendo de curiosidade.
— Como é que isto se soube tão rapidamente? — perguntou Cícero, incapaz de esconder o seu júbilo.
Só quando a sala ficou a abarrotar de gente é que o cônsul sénior pôde contar a história dos Alóbroges e a captura na Pons Mulvius e mostrar as cartas apreendidas.
— Sendo assim — disse Cícero, muito formalmente —, Públio Cornélio Lêntulo Sura, Caio Cornélio Cetego, Públio Gabínio Capitão e Lúcio Estatílio, ordeno a vossa prisão para que se proceda a uma profunda investigação sobre o papel que desempenharam na conspiração de Lúcio Sérgio Catilina. — Virou-se para Mamerco, e disse-lhe: — Princeps Senatus, deixo estes três rolos de pergaminho nas tuas mãos e peço-te que apenas destruas os selos quando o Senado estiver reunido no templo de Concórdia. Como Princeps Senatus, é teu dever lê-las. — Depois, ergueu a folha dobrada e selada para que todos vissem. — Quanto a esta carta, vou abri-la aqui e agora, perante todos vós. Se ela comprometer o seu autor, o pretor Lêntulo Sura, então não há nada que nos impeça de avançar com a nossa investigação. Se Sura estiver inocente, então teremos de decidir o que fazer com os três rolos antes de o Senado reunir.
— Abre a carta, Marco Túlio Cícero — disse Mamerco, que se sentia como se estivesse a viver um pesadelo, incapaz de acreditar que Lêntulo Sura, uma vez cônsul, duas vezes pretor, pudesse realmente estar envolvido na conspiração.
Ah, que bom que era ser o centro de todas as atenções, num drama tão extraordinário e portentoso como aquele!, pensou Cícero, enquanto, como um actor consumado que de facto era, quebrou o selo de lacre que toda a gente identificara como sendo de Lêntulo Sura. Pareceu demorar uma eternidade a desdobrar a folha, a mirá-la, a assimilar o seu conteúdo antes de começar a lê-lo.
Lúcio Sérgio, peço-te que mudes de ideias. Sei que não desejas manchar a nossa empresa com um exército de escravos, mas acredita no que te digo: se admitires escravos nas nossas hostes, terás uma vitória esmagadora ao fim de poucos dias. As tuas forças, Roma só poderá opor quatro legiões: uma de Márcio Rei, outra de Metelo Crético, e duas chefiadas por Híbrida, um cônsul famoso pela sua preguiça.
Foi profetizado que três membros da gens Cornélia governarão Roma, e eu sei que sou o terceiro desses três Cornélios. Compreendo que o teu nome, Sérgio, é muito mais antigo do que o meu, mas já indicaste que preferias governar a Etrúria a mandar em Roma.
Nesse caso, reconsidera a tua posição relativamente aos escravos. Por favor, adopta as minhas ideias a este respeito.
Quando Cícero terminou a leitura, o silêncio era total; dir-se-ia que os muitos homens presentes tinham todos sustido a respiração.
Até que Catulo falou, com raiva e violência. — Lêntulo Sura, estás liquidado! — atirou-lhe. — Não passas de um miserável dejecto!
— Marco Túlio — disse Mamerco, com um ar soturno —, creio que devias abrir imediatamente os rolos.
— O quê? Para depois Catão me acusar de falsificação de provas do Estado? — perguntou Cícero, abrindo muito os olhos e entortando-os de seguida. — Não, Mamerco, vou deixá-los selados. Não quero aborrecer o nosso querido Catão, por muitas justificações que haja para abri-los!
O pretor Caio Sulpício estava presente, reparou Cícero. Óptimo! O melhor era dar-lhe também um trabalho qualquer... sim, para depois não dizerem que ele tinha favoritos...! Tudo tinha de ser feito com a máxima correcção. Era essencial que Catão não encontrasse um único defeito, uma única falha, nos procedimentos.
— Caio Sulpício, gostaria que fosses às casas de Lêntulo Sura, Cetego, Gabínio e Estatílio, e verificasses se há lá armas guardadas. Leva a milícia de Pontino e estende a busca à residência de Pórcio Leca — e também às casas de Cepário, de Lúcio Cássio, deste Voltúrcio que aqui está, e do Lúcio Tarquínio que também é suspeito de envolvimento. Deixa que os teus homens prossigam as buscas depois de teres inspeccionado pessoalmente as casas dos conspiradores senatoriais, já que preciso de ti no Senado tão depressa quanto possível. Podes comunicar-me as tuas descobertas durante a reunião do Senado.
Ninguém estava interessado em comer ou beber; Cícero mandou que tirassem Cepário do armário e chamou os Alóbroges que se encontravam na sala de jantar. Cepário já não exibia o mínimo sintoma de agressividade; o armário de Cícero quase o sufocara, de tal forma que Cepário saiu da sua prisão aflito, ansiando por ar e pronunciando sons incoerentes.
Um pretor em funções e, no entanto, um traidor...! E que, além disso, fora cônsul! Como lidar com tal situação de uma forma que servisse para promover aquele Homem Novo, aquele arrivista, aquele forasteiro de Arpino? Depois de muito pensar, Cícero atravessou a sala, na direcção de Lêntulo Sura. Agarrou-lhe firmemente na mão lassa e disse-lhe:
— Vem, Públio Cornélio — disse ele com grande cortesia. — É tempo de irmos para o templo de Concórdia.
— Que estranho! — comentou Lúcio Cota, enquanto aquela serpentina de homens avançava pelo baixo Fórum na direcção do templo de Concórdia, separado do cárcere Tuliano, o local onde os traidores eram executados, pelos Degraus Gemonianos.
— Estranho?! O que é que é estranho? — perguntou Cícero, conduzindo ainda pela mão um débil Lêntulo Sura.
— Neste preciso momento, os empreiteiros estão a colocar a nova estátua de Júpiter Optimus Maximus no plinto, dentro do seu templo. Uma coisa que há muito tempo devia estar feita! Há quase três anos que eu e Torquato consagrámos o templo. — Lúcio Cota estremeceu. — Quantos presságios!
— No teu ano, houve centenas deles — disse Cícero. — Fiquei triste quando vi a velha loba etrusca perder a sua cria por causa de um relâmpago. Adorava ver o focinho dela, parecia mesmo um cachorro! Amamentava Rómulo, mas não parecia nada preocupada com ele.
— Nunca percebi porque é que ela não amamentava dois bebés — disse Cota. Encolhendo os ombros, acrescentou: — Bom, se calhar entre os Etruscos a lenda só falava de uma criança...! A estátua é com certeza anterior a Rómulo e Remo. Já não é nada mau termos ainda a loba.
— Tens razão — disse Cícero, enquanto ajudava Lêntulo Sura a subir os três degraus que conduziam ao pórtico do templo. — É um presságio. Espero que o facto de o templo do Grande Deus ter sido orientado para leste seja um bom presságio! — Ao chegar à porta, Cícero parou de repente. — Edepol, quanta gente...!
A notícia espalhara-se depressa. O templo de Concórdia estava a rebentar pelas costuras para conter todos os senadores presentes em Roma, já que os doentes também tinham vindo. A escolha daquele templo não se devia propriamente a um capricho, embora Cícero tivesse a propensão de defender a concórdia entre todas as classes de homens romanos; nenhuma reunião sobre as consequências do crime de traição se realizava na Cúria Hostília, e como esta traição particular envolvia todas as ordens de homens romanos, o templo de Concórdia era o local lógico para um encontro daquela natureza. Infortunadamente, as bancadas de madeira colocadas em templos como o de Júpiter Stator, quando o Senado se reunia neles, pura e simplesmente não cabiam no templo de Concórdia. Toda a gente tinha de ficar de pé e de aguentar a falta de ar.
Por fim, Cícero lá conseguiu instaurar alguma ordem, arranjando bancos para que os consulares e os magistrados se sentassem; os senadores com uma posição inferior ficariam atrás deles e de pé. Quanto aos sentados, Cícero mandou os magistrados curuis para a rectaguarda, ao meio, e, entre as duas filas de bancos, instalou os Alóbroges, Voltúrcio, Cepário, Lêntulo Sura, Cetego, Estatílio, Gabínio Capitão e Fábio Sanga.
— As armas estavam guardadas na casa de Caio Cetego! — disse o pretor Sulpício, entrando no templo ofegante. — Centenas e centenas de espadas e punhais. Uns quantos escudos e nenhuma couraça.
— Eu sou um grande coleccionador de armas — comentou Cetego, com um ar entediado.
Preocupado, Cícero reflectiu por um momento sobre outro problema logístico que aquele espaço confinado levantava. — Caio Coscónio — disse ele para esse pretor —, ouvi dizer que és um estenógrafo brilhante. Sinceramente, não me parece que haja espaço aqui para meia dúzia de escribas e, por isso, vou mandá-los embora. Escolhe três pedarii com provas dadas na difícil arte da estenografia. Vamos ter de nos contentar com quatro. Duvido que seja uma reunião longa e por isso terão tempo suficiente para comparar as vossas notas e fazer depois a acta.
— Olha-me só para ele...! — murmurou Silano para César — uma estranha escolha de confidente, dado o relacionamento entre os dois, mas provavelmente, decidiu César, não havia mais ninguém por perto que Silano considerasse digno de ouvir os seus comentários, incluindo Murena. — Finalmente a glória! — Silano fez um ruído que César interpretou como de repulsa. — Bom, eu pelo menos acho este caso execravelmente sórdido!
— Até mesmo os agricultores de Arpino têm direito a ter o seu dia de glória — disse César. — Caio Mário foi quem deu início à tradição.
Finalmente, e alvoroçadamente, Cícero abriu a sessão com as orações e as oferendas, os auspícios e as saudações. Mas tinha razão quando dizia que a reunião não duraria muito. O guia Tito Voltúrcio ouviu os testemunhos de Fábio Sanga e Borgo, chorou e, por fim, pediu que o deixassem confessar tudo. E Voltúrcio tudo confessou, respondendo a todas as perguntas, incriminando gravemente Lêntulo Sura e os outros quatro. Lúcio Cássio, explicou Voltúrcio, partira inopinadamente para a Gália Narbonense; aparentemente, ia a caminho de Massília e de um exílio voluntário. Outros haviam também fugido, nomeadamente os senadores Quinto Ánio Quilão, os irmãos Sila, e Públio Autrónio. Nomes atrás de nomes foram sendo revelados, cavaleiros e banqueiros, lacaios, sanguessugas. Quando Voltúrcio chegou ao fim da sua litania, verificou-se que havia vinte e sete Romanos envolvidos de uma forma importante na conspiração, desde Catilina ao próprio Voltúrcio (e o sobrinho do ditador, Públio Sila, cujo nome não fora referido, suava em bica).
Depois, Mamerco Princeps Senatus quebrou os selos das cartas e leu-as em voz alta. Quase um anticlímax.
Procurando desempenhar o papel do grande advogado na impiedosa busca da verdade, Cícero interrogou Caio Cetego em primeiro lugar. Infelizmente, porém, Cetego sucumbiu logo e confessou tudo sem mais demoras.
De seguida, interrogou Estatílio, com idêntico resultado.
Depois, era a vez de Lêntulo Sura, que nem esperou pela primeira questão para confessar.
Gabínio Capitão procurou ganhar tempo, mas confessou precisamente quando Cícero se preparava para atacar.
Finalmente, veio Marco Cepário, que desatou numa choradeira frenética e tudo confessou entre soluços.
Quando o interrogatório acabou, e muito contra vontade, Catulo propôs um voto de agradecimento ao brilhante e vigilante cônsul sénior de Roma. As palavras custaram-lhe a sair, é certo, mas toda a gente as entendeu tão bem como entendera a confissão de Cepário.
— Saúdo-te como pater patriae — pai do nosso país! — foi o contributo de Catão.
— Estará a falar a sério ou a troçar? — perguntou Silano a César.
— Bom, com Catão nunca se sabe!
Foi então concedida a Cícero autoridade para passar os mandados de captura dos conspiradores que não estavam presentes, após o que chegou a hora de pôr os cinco conspiradores presentes sob custódia senatorial.
— Eu fico com Lêntulo Sura — disse Lúcio César com uma expressão contristada. — Ele é meu cunhado. Pelos laços familiares, talvez devesse ficar com outro Lêntulo, mas, pela lei, é comigo que deve ficar.
— Eu fico com Gabínio Capitão — disse Crasso.
— E eu com Estatílio — disse César.
— Eu ficarei com o jovem Cetego — disse Quinto Cornifício.
— E eu com Cepário — disse o velho Cneu Terêncio.
— Que fazemos a um pretor em funções culpado de traição? — perguntou Silano, muito pálido naquela atmosfera abafada.
— Ordenamos-lhe que se desfaça das insígnias do cargo e dos seus lictores — retorquiu Cícero.
— Não creio que isso seja legal — disse César, um tanto enfastiado. — Ninguém tem o poder de pôr um termo às funções de um magistrado curul antes do último dia do seu ano. Se formos pelo rigor, não poderás detê-lo.
— Poderei, sim, porque foi aprovado um Senatus Consultum Ultimum! — atirou-lhe Cícero, espicaçado por aquele comentário. Por que raio é que César andava sempre à procura de erros ou falhas? — Se preferes, não direi que ponho um termo
às funções do magistrado! Pensa apenas que esta medida significa que o magistrado é obrigado a desfazer-se das suas insígnias curuis!
Nesse momento, Crasso, farto de estar no meio daquela multidão e desejoso de sair do templo, interrompeu este acerbo diálogo, propondo que fosse celebrada uma acção de graças pela descoberta da conjura, sem derramamento de sangue, dentro das muralhas da cidade. Mas não nomeou Cícero.
— Já agora, Crasso, enquanto tratas disso, porque não votamos uma Coroa Cívica para o nosso querido cônsul Marco Túlio Cícero? — rosnou Poplicola. — Bom — disse Silano para César —, esta é que é mesmo irónica!
— Os deuses sejam louvados, Cícero vai finalmente encerrar a sessão! — foi a resposta de César. — Podia ter encontrado motivos plausíveis para nos reunirmos em Júpiter Stator ou Belona...!
— Aqui, amanhã, à segunda hora do dia! — gritou Cícero para um coro de murmúrios e gemidos, após o que abandonou rapidamente o templo, a fim de subir aos rostra e pronunciar um discurso tranquilizador para a vasta e expectante multidão.
— Não sei por que raio é que ele está tão apressado — disse Crasso a César, enquanto mexiam os músculos emperrados pela imobilidade e aspiravam profundamente o doce ar da rua. — Ele não pode ir para casa esta noite, porque a mulher vai receber a Bona Dea.
— Sim, é verdade — disse César, suspirando. — A minha mulher e a minha mãe já estão em casa de Terência, isto para não falar de todas as minhas vestais. E Júlia também, suponho eu. Está cada vez mais crescida.
— Quem me dera que Cícero crescesse...
— Ora, Crasso, deixa-o lá! Ele está finalmente no seu elemento! Deixa-o ter a sua pequena vitória. Não é uma conspiração muito importante e tinha tantas hipóteses de vencer como Pa se lutasse contra Apolo. Uma tempestade num copo de água. nada mais.
— Pa contra Apolo? Foi Pa que venceu, não foi?
— Unicamente porque Midas era o juiz, Marco. E foi por isso que Midas ficou com um par de orelhas de burro.
— Midas está sempre presente em qualquer julgamento, César.
— O poder do ouro.
— Precisamente.
Seguiram na direcção do Fórum, mas não sentiam a mínima vontade de parar para ouvir o discurso de Cícero ao Povo.
— Tens família envolvida, evidentemente. — disse Crasso quando César ignorou a Via Sacra e seguiu também na direcção do Palatino.
— Claro que tenho. Uma prima idiota e os idiotas dos seus três filhos.
— Achas que ela também vai para casa de Lúcio César?
— De modo nenhum. Lúcio César é demasiado escrupuloso. Tem à sua guarda o marido da sua irmã. Por isso, com a minha mãe na casa de Cícero celebrando a Bona Dea, creio que o melhor é ir ter com Lúcio e dizer-lhe que vou imediatamente fazer uma visita a Júlia Antónia.
— Não te invejo a missão, César — disse Crasso, com um sorriso malicioso.
— Pois olha que eu também não! — retorquiu César.
César ouvia já a voz de Júlia Antónia antes de bater à porta da belíssima residência de Lêntulo Sura. Preparou-se para enfrentar a situação. Era pena que as celebrações da Bona Dea decorressem precisamente naquela noite. Todas as amigas de Júlia Antónia estariam em casa de Cícero e Bona Dea não era propriamente uma deusa que as mulheres ignorassem em favor de uma amiga com sérios problemas.
Os três filhos de António Crético procuravam ajudar a mãe com uma paciência e uma bondade que César achou surpreendentes — o que não a impediu de saltar do seu lugar mal o viu e de correr para os seus braços.
— Oh, primo! — lamentou-se Júlia Antónia. — Que hei-de fazer? Para onde hei-de ir? Vão confiscar todas as propriedades de Sura! Nem um telhado terei para me abrigar!
— Não incomodes o primo, mamã — disse Marco António, o mais velho, convencendo-a a largar César e conduzindo-a de novo à sua cadeira. — Vá lá, senta-te e guarda a tristeza no teu coração, pois exibi-la não nos vai ajudar a vencer esta provação.
Talvez porque já estava exausta, Júlia Antónia obedeceu; o filho mais novo, Lúcio, um rapaz gordo e desajeitado, sentou-se na cadeira ao lado, pegou nas mãos dela, procurou acalmá-la.
— É a vez dele — disse António, após o que conduziu o primo até ao peristilo, onde o filho do meio, Caio, se juntou a eles.
— É pena que os Cornélios Lêntulos constituam a maior parte dos Cornélios actualmente no Senado — comentou César.
— E nenhum deles gostará de ter um traidor na família — disse Marco António com um ar triste. — Mas será que ele é um traidor?
— Sem a mínima dúvida, António.
— Tens a certeza?
— Acabei de dizer que não havia a mínima dúvida, António! Qual é o teu problema? Preocupa-te que venham a concluir que também tu estavas envolvido? — perguntou César, de súbito ansioso.
António ficou todo vermelho, mas nada disse; foi Caio quem respondeu, batendo com o pé.
— Nós não estamos envolvidos! Porque é que toda a gente — incluindo tu! — pensa sempre o pior possível de nós?
— É aquilo a que se chama fama ou reputação — retorquiu pacientemente César. — E a vossa fama é das piores — jogo, vinho, prostitutas — olhou ironicamente para António. — Até um amiguinho...
— Essa história entre mim e Curião não é verdadeira — disse António, muito pouco à vontade. — Nós só fingimos que somos amantes para irritar o pai de Curião.
— Mas tudo isso, António, contribui para se ganhar uma reputação, como tu e os teus irmãos estão prestes a descobrir. Todos os cães do Senado vão começar a farejar à vossa volta. Por isso, sugiro-lhes que, se por acaso estão envolvidos, mesmo que remotamente, mo digam aqui e agora.
Os três filhos de Crétido há muito que tinham concluído que aquele César tinha os olhos mais desconcertantes que alguma vez haviam visto — penetrantes, frios, omniscientes. E não gostavam dele precisamente porque esses olhos os obrigavam a pôr-se à defesa, porque esses olhos os faziam sentir-se inferiores àquilo que, secretamente, julgavam ser. E César nunca se dava ao trabalho de os condenar pelo que eles consideravam falhas menores; César só aparecia quando havia mesmo graves problemas, como agora era o caso. Aos olhos dos três irmãos, César assemelhava-se a um arauto da perdição; quando ele aparecia, ficavam sem energias para lutar e para se defender.
Daí que Marco António tenha respondido de uma forma esquiva. — Não estamos envolvidos, nem sequer remotamente. Clódio disse que Catilina era um perdedor.
— E tudo o que Clódio diz está certo?
— Normalmente está.
— Concordo — disse César, inesperadamente. — Ele é um indivíduo perspicaz.
— Que vai acontecer agora? — perguntou Caio António, inopinadamente.
— O teu padrasto vai ser julgado por traição e condenado — disse César. — Ele confessou, tinha de confessar. Os pretores de Cícero apanharam os Alóbroges com duas cartas dele que, evidentemente, o incriminam. Posso garantir-lhes que as cartas não eram falsas.
— Então a mamã tem razão. Ela vai perder tudo.
— Vou tentar que ela não perca tudo e estou certo de que muitos senadores me apoiarão. É tempo de Roma deixar de punir a família de um homem por causa dos crimes que esse homem cometeu. Quando for cônsul, promulgarei uma lei nesse sentido. — Começou a encaminhar-se na direcção do atrium. — Não posso fazer nada pela tua mãe a um nível mais íntimo, António. Ela precisa da companhia de outras mulheres. Logo que a minha mãe regresse das celebrações da Bona Dea, dir-lhe-ei que venha para aqui. — Chegado ao atrium, olhou à sua volta. — É pena que Sura não coleccionasse arte, pois assim poderiam salvar algumas coisas antes de o Estado começar a confiscar os seus bens. No entanto, como disse, farei o meu melhor para que o pouco que Sura tem não seja confiscado. Suponho que foi precisamente para aumentar a sua fortuna que ele se associou à conspiração.
— Ah, sim, sem dúvida — disse António, acompanhando César à porta. — Sura andava sempre a queixar-se de que a sua expulsão do Senado o tinha arruinado — e que ele não tinha feito nada para merecer tal castigo. Sempre disse que foi vítima das armadilhas do censor Lêntulo Clodiano. É um problema familiar já antigo, pois vem do tempo em que Clodiano foi adoptado pelos Lêntulos.
— Gostas dele? — perguntou César, avançando para a rua.
— Claro que gosto! Sura é um óptimo indivíduo, o melhor dos homens!
Uma resposta interessante, sem dúvida, pensou César, a meio do caminho para o Fórum e a Domus Publica. Nem todos os padrastos teriam conseguido o afecto daquele trio tão especial! Eram Antónios típicos. Imprudentes, apaixonados, impulsivos, facilmente permeáveis a todo o tipo de prazeres. Sobre aqueles ombros largos não havia uma única cabeça política! Dotados de um físico tão imponente como deselegante, eram feios, mas de uma fealdade que parecia agradar imenso às mulheres. Que raio é que eles iriam fazer ao Senado quando tivessem idade para ser pretores? Desde que, obviamente, tivessem dinheiro suficiente para disputar eleições. Crétido suicidara-se depois de ter caído em desgraça, embora ninguém tivesse feito o que quer que fosse para o acusar postumamente de crimes contra o Estado; o que faltara a Crético fora o bom senso e o discernimento, e não a lealdade a Roma. Contudo, a sua fortuna sofreu um rude golpe quando Júlia Antónia se casou com Lêntulo Sura, um homem que não tinha filhos, mas que também não tinha dinheiro, nem bens dignos de nota. Lúcio César tinha um filho e uma filha; os Antónios não poderiam nutrir nem a mais leve esperança relativamente a Lúcio César. O que significava que teria de ser ele, Júlio César, a tentar engordar a fortuna dos Antónios. Não tinha a mínima ideia de como consegui-lo, mas jurou a si mesmo que havia de chegar lá. O dinheiro acabava sempre por aparecer quando se precisava desesperadamente dele.
O fugitivo Lúcio Tarquínio, que saltara da Ponte Múlvia para o Tibre, acabou por ser detido na estrada para Fesulas e conduzido à presença de Cícero, antes de o Senado se reunir no templo de Concórdia, no dia seguinte à festa da Bona Dea. Como não podia entrar em sua casa, Cícero passara a noite com Nigídio Fígulo, o qual tomara a louvável iniciativa de convidar Ático e o cônsul sénior para jantar. Tinham passado uma noite muito agradável, que se tornou ainda mais agradável quando receberam uma mensagem de Terência; dizia Terência que, depois de terem apagado o fogo no altar dedicado a Bona Dea, uma imensa chama erguera-se inopinadamente do meio das cinzas, um sinal que, segundo as vestais, significava que Cícero salvara o seu país.
Ah, que pensamento delicioso...! Pai da pátria! Salvador da pátria! Ele, que não passava de um rústico de Arpino.
No entanto, Cícero não se sentia inteiramente tranquilo. Apesar do discurso apaziguador que fizera nos rostra, os clientes que tinham conseguido localizá-lo na casa de Fígulo mostravam-se nervosos, ansiosos, ou mesmo temerosos. Quantos vulgares cidadãos de Roma seriam favoráveis a uma nova ordem — e a um cancelamento geral das dívidas? Parecia que muitos... Catilina talvez tivesse hipóteses de se apossar da cidade, a partir do seu interior, na noite das Saturnais. Os cidadãos que haviam sofrido rudes golpes financeiros há muito que nutriam esperanças permanentemente esmagadas; e hoje, estavam conscientes de que não havia saída para os seus problemas. Roma parecia em paz; contudo, os clientes de Cícero insistiam que, sob essa aparência de paz, havia uma violência subterrânea. Ático era da mesma opinião. E aqui estou eu, pensou Cícero, ciente de que o pânico ameaça instalar-se e, simultaneamente, responsável pela prisão de cinco homens! Homens com influência e com amigos poderosos, em particular Lêntulo Sura. Mas Estatílio era da Apúlia e Gabínio Capitão do sul do Piceno — duas regiões com um historial de revolta, e de devoção, não à causa romana, mas à causa italiana. Quanto a Caio Cetego — o pai dele fora conhecido como o rei dos Pedarii! E ele, Cícero, o cônsul sénior, era o único responsável pela sua captura e prisão. Pela obtenção das provas decisivas, das provas que os tinham levado a ceder e a confessar. Portanto, seria ele o responsável pela condenação desses homens em tribunal; para mais, o julgamento seria longo, muito longo e arrastado, e, enquanto decorresse, era provável que violentas correntes subterrâneas explodissem e devastassem a superfície. Nenhum dos pretores daquele ano aceitaria o cargo de presidente de um Tribunal de Traição especialmente convocado — os julgamentos por traição tinham-se transformado numa raridade, de tal forma que, nos últimos dois anos, nenhum pretor fora sequer sondado para desempenhar tais funções. Portanto, os seus prisioneiros teriam de continuar a viver sob custódia em Roma, até ao Ano Novo, muito depois do Ano Novo; entretanto, assumiriam funções novos tribunos da plebe: por exemplo, Metelo Nepos, que não deixaria de berrar que Cícero excedera a sua autoridade, e outros tribunos como Catão, sempre à espera da menor falha legal.
Se ao menos, pensou Cícero, enquanto conduzia o seu prisioneiro ao templo de Concórdia, se ao menos estes canalhas não tivessem de ir a tribunal! Eram culpados; toda a gente sabia disso graças às suas próprias confissões. Seriam condenados; não podiam ser absolvidos, nem mesmo pelo mais brando ou corrupto dos júris. E acabariam por ser — executados? Mas os tribunais não podiam condená-los à pena capital! O máximo que os tribunais podiam fazer era condená-los a um exílio permanente e à confiscação de todos os seus bens e propriedades. Um julgamento na Assembleia Popular também não poderia pronunciar uma sentença de morte. Para se chegar a tal sentença, seria preciso que o julgamento decorresse nas Centúrias e que a acusação fosse perduellio — e quem poderia adivinhar que veredicto sairia desse julgamento, enquanto expressões como cancelamento geral das dívidas
continuavam a passar de boca em boca? Por vezes, concluiu o campeão dos tribunais, enquanto avançava para o templo de Concórdia, os julgamentos eram um empecilho particularmente irritante.
Lúcio Tarquínio poucas novidades tinha a oferecer quando o interrogatório começou. De início, Cícero manteve o privilégio de conduzir o inquérito e levou Tarquínio a confessar tudo o que se passara até aos acontecimentos da Ponte Múlvia. Após o que o cônsul sénior permitiu ao Senado que prosseguisse com o interrogatório, sentindo que talvez fosse prudente distribuir alguma glória pelos outros.
Do que não estava à espera era da resposta que Tarquínio deu à primeira das perguntas dos senadores, que lhe foi posta por Marco Pórcio Catão.
— Porque é que estavas com os Alóbroges? — perguntou Catão no seu tom de voz habitual: agreste e sonoro.
— Ha? — disse Tarquínio, um indivíduo insolente e com muito pouco respeito pelos seus superiores.
— Os Alóbroges tinham um guia: Tito Voltúrcio. Marco Cepário justificou a sua presença: comunicaria aos conspiradores em Roma o resultado da reunião entre os Alóbroges e Lúcio Sérgio Catilina. E tu, Tarquínio, o que é que estavas lá a fazer?
— Para dizer a verdade, Catão, eu pouco tinha a ver com o caso dos Alóbroges! — retorquiu Tarquínio, muito animado. — Não, eu fui com os outros porque era mais seguro e mais divertido do que viajar sozinho. Eu ia tratar de outros assuntos com Catilina.
— E que assuntos eram esses? — perguntou Catão.
— Eu ia levar uma mensagem de Marco Crasso para Catilina. A multidão que enchia o pequeno templo fez um silêncio sepulcral.
— Repete o que disseste, Tarquínio.
— Eu ia levar uma mensagem de Marco Crasso para Catilina.
Um zumbido de vozes inundou nesse momento o templo, crescendo em volume até que Cícero mandou o chefe dos seus lictores bater com os fasces no chão.
— Silêncio! — berrou Cícero.
— Levavas uma mensagem de Marco Crasso para Catilina — repetiu Catão. — E onde está essa mensagem, Tarquínio?
— Ah, não era uma mensagem escrita! — retorquiu Tarquínio, com um ar bem-disposto. — Eu decorei-a.
— E ainda te lembras dela? — perguntou Catão, fitando agora Crasso, que continuava sentado no seu banco, com um ar rigorosamente pasmado.
— Sim. Queres ouvi-la?
— Agradecia.
Tarquínio pôs-se nas pontas dos pés e entoou:
- “Marco Crasso pede-te que não percas a coragem, Lúcio Catilina. Roma não está toda contra ti, há cada vez mais gente importante decidida a apoiar-te”.
— É esperto que nem uma ratazana dos esgotos! — rosnou Crasso. — Ele acusa-me para que eu, a fim de limpar o meu nome, tenha de gastar muita da minha fortuna para obter a absolvição de canalhas como ele!
— Muito bem! Apoiado! — exclamou César.
— Pois bem, Tarquínio, não contes comigo! — prosseguiu Crasso. — Escolhe alguém mais vulnerável. Marco Cícero sabe perfeitamente que eu fui o primeiro, entre todos os senadores, a fornecer-lhe provas concretas. E acompanhado por duas testemunhas acima de qualquer suspeita: Marco Marcelo e Quinto Metelo Cipião.
— Foi exactamente isso que aconteceu — disse Cícero.
— E eu confirmo — disse Marcelo.
— Tal como eu — disse Metelo Cipião.
— Perante isto, Catão, pretendes levar mais longe este assunto? — perguntou Crasso, que detestava Catão.
— Não, Marco Crasso, não pretendo. Não há dúvida que são declarações falsas.
— O Senado está de acordo? — perguntou Crasso.
Uma multidão de mãos ergueu-se, manifestando o acordo do Senado.
— O que significa — disse Catulo — que o nosso querido Marco Crasso é um peixe tão grande que até cospe o anzol sem se magoar na boca. Mas eu tenho a mesma acusação a fazer a um peixe muito mais pequeno! Acuso Caio Júlio César de participação na conspiração de Catilina!
— E eu secundo Quinto Lutácio Catulo na mesma acusação! — berrou Caio Calpúrnio Pisão.
— Provas? — perguntou César, não se dando sequer ao trabalho de se levantar.
— As provas hão-de vir — disse Catulo, com um ar presumido.
— E que provas são essas? Cartas? Mensagens verbais? Pura imaginação?
— Cartas! — disse Caio Pisão.
— E onde estão essas cartas? — perguntou César, imperturbável. — A quem foram dirigidas, se por acaso as escrevi? Ou tens tido dificuldades para imitar a minha letra, Catulo?
— É a correspondência que trocaste com Catilina! — exclamou Catulo.
— Sim, creio que lhe escrevi uma vez — disse César, com um ar pensativo. — Deve ter sido quando ele era propretor na província de África. Mas de uma coisa estou certo: desde então nunca mais lhe escrevi.
— Escreveste, sim! — disse Pisão, com um sorriso triunfante.
— Apanhámos-te, César, por muito que te debatas, apanhámos-te!
— Na realidade, Pisão, não apanhaste nada — disse César.
— Pergunta a Marco Cícero que ajuda eu lhe dei na sua luta para incriminar Catilina.
— Não te maces, Pisão — disse Quinto Árrio. — Eu próprio direi aquilo que Marco Cícero pode confirmar. César pediu-me que fosse à Etrúria e falasse com os veteranos de Sila nos arredores de Fesulas. Ele sabia que, entre os membros da classe política romana, só eu gozava da confiança desses veteranos. Foi por isso que César me pediu que avançasse. Fi-lo com todo o gosto, mas fiquei furioso por não ter sido eu a ter tal ideia. Nunca me ocorreu. É preciso um homem como César para ver os acontecimentos claramente. Se César fosse um conspirador, nunca teria agido como agiu.
— Quinto Amo diz a verdade — disse Cícero.
— Nesse caso, sentem-se e calem-se! — atirou César aos caluniadores. — Se um homem com mais qualidades do que tu te derrotou na eleição para Pontifex Maximus, tens de aceitar esse facto, Catulo! E quanto a ti, Pisão, deves ter gasto uma fortuna para subornar o júri e escapar à condenação do meu tribunal! Por que razão se deixam levar pelo rancor e praticam actos indignos desta casa? Esta casa conhece-os bem, esta casa sabe muito bem do que vocês são capazes!
Seria de crer que esta discussão prosseguisse; só que, nesse preciso momento, chegou um mensageiro a correr, com a informação de que um grupo de libertos pertencentes a Cetego e Lêntulo Sura andava a recrutar homens na cidade com algum êxito, e que, quando tivesse homens suficientes, tencionava atacar as casas de Lúcio César e Cornifício, libertar Sura e Cetego, impô-los como cônsules e, por fim, libertar os outros prisioneiros e apossar-se da cidade.
— Este género de coisas — disse Cícero — vai continuar até terminarem os julgamentos! Vão ser meses e meses, Paires Conscripti, vão ser meses e meses de espera e de motins! Por favor, comecem a pensar na melhor maneira de reduzir esse longo tempo de espera!
Cícero dissolveu a reunião e ordenou aos seus pretores que convocassem as milícias da cidade; foram enviados destacamentos para todas as casas onde os conspiradores estavam detidos; foram colocados soldados em todos os locais públicos importantes; e um grupo de cavaleiros das Dezoito, incluindo Ático, foi para o Capitólio a fim de defender Júpiter Optimus Maximus.
— Ah, Terência, eu não quero acabar o meu ano como cônsul no meio de tantas incertezas, ou mesmo, quem sabe, com o maior dos fracassos! Nunca, depois de um tal triunfo! — exclamou Cícero, já em casa.
— Enquanto esses homens estiverem em Roma e Catilina na Etrúria com um exército, o equilíbrio será muito precário — disse ela.
— Precisamente, minha querida.
— E tu acabarás como Lúculo — fazes todo o trabalho duro e Silano e Murena é que ficam com os louros, pois serão eles os cônsules quando tudo tiver terminado.
Na realidade, nunca tal lhe passara pela cabeça; porém, ao ouvi-lo da boca da mulher, tão sucintamente exposto, Cícero estremeceu. Sim, era assim mesmo que tudo ia acabar! Seria vencido, injustamente vencido, pelo tempo e pela tradição.
— Bom — disse ele, pondo-se muito direito —, se desculpas a minha ausência ao jantar, creio que será melhor retirar-me para o meu gabinete e fechar-me bem fechado até encontrar uma solução.
— Tu já sabes qual é a solução, marido. Mas eu compreendo. Do que precisas é de arranjar coragem. Enquanto não a tens, não te esqueças de que a Bona Dea está do teu lado.
— Miseráveis, todos uns miseráveis! — disse Crasso a César, num tom demasiado violento para um homem tão plácido. — Pelo menos metade daqueles fellatores estavam desejosos de que as acusações de Tarquínio se confirmassem! Felizmente que foi à minha porta que Quinto Curió deixou aquelas cartas! Caso contrário, via-me metido em grandes sarilhos!
— A minha defesa foi mais ténue — disse César. — Mas, felizmente, também as acusações foram mais ténues. Que estupidez! Catulo e Pisão só tiveram a ideia de me acusar depois de Tarquínio te ter acusado. Se tivessem pensado nisso na noite passada, podiam ter forjado algumas cartas. Ou então só falavam quando tivessem essas cartas falsas. Uma das poucas coisas que sempre me animou e animará é a estupidez dos meus inimigos! Acho que é uma grande consolação, a certeza de que nunca encontrarei um adversário tão inteligente como eu.
Embora estivesse habituado a ouvir declarações destas da boca de César, Crasso deu consigo a fitar aquele homem mais novo com olhos fascinados. Seria possível que César nunca duvidasse das suas capacidades? Se duvidava, Crasso nunca vira um sinal que fosse dessas dúvidas. Ainda bem que César era um homem recto. Caso contrário, Roma ainda acabaria por desejar mil Catilinas.
— Amanhã não vou ao Senado — disse Crasso.
— Não faças isso, Marco! A reunião promete.
— Nem que fosse melhor do que um combate entre os melhores gladiadores! Cícero que goze à vontade os seus momentos de glória...! P ater patriae! Francamente!
— Ora, Marco, Catão estava a ser sarcástico quando lhe atribuiu esse título...!
— Eu sei, César, eu sei! O que me incomoda é que Cícero não entendeu o sarcasmo.
— Pobre Cícero... Deve ser horrível para ele sentir-se excluído...
— Sentes-te bem, César? Compaixão? Tu?
— Sim, de vez em quando tenho um ataque de compaixão. O facto de Cícero despertar a minha compaixão não tem nada de misterioso. Porque repara, Marco: haverá alvo mais vulnerável do que Cícero?
Embora tivesse de organizar as milícias e de pensar na melhor maneira de vencer o inimigo que se chamava tempo, Cícero ainda teve tempo para transformar o templo de Concórdia num local mais apropriado para reuniões do Senado. Assim, quando os senadores apareceram no dia seguinte, o quinto dia de Dezembro, logo concluíram que os carpinteiros haviam feito um bom trabalho. Havia três bancadas de cada lado, mais altas mas mais estreitas, e um estrado ao fundo para os magistrados curuis, com um banco à frente para os tribunos da plebe.
— Não conseguirão sentar-se nos vossos bancos, as bancadas são demasiado estreitas, mas podem usar as bancadas como assentos — disse o cônsul sénior. Apontou para o topo das paredes laterais e da parede do fundo. — Além disso, instalei uma série de ventiladores.
Teriam comparecido trezentos homens, um pouco menos do que nos dias anteriores; depois dos primeiros instantes de habituação às novas instalações, em que mais pareciam galinhas acomodando-se aos poleiros, os senadores indicaram que estavam prontos para mais um dia de trabalhos.
— Paires Conscripti — começou Cícero, solenemente —, convoquei esta reunião para discutirmos um caso que não queremos protelar nem evitar. Mais precisamente: o que havemos de fazer com os nossos cinco prisioneiros.
Em muitos aspectos, a situação actual assemelha-se a uma outra que ocorreu há trinta e sete anos, depois de Saturnino e os seus aliados rebeldes se terem rendido e abandonado o Capitólio. Ninguém sabia o que havia de fazer com esses homens! Ninguém queria deter nas suas residências esses insensatos, pois sabia-se que a cidade de Roma albergava muitos simpatizantes seus — a casa de um homem que aceitasse detê-los podia ser incendiada e esse homem podia ser morto e o seu prisioneiro liberto. Por isso, o traidor Saturnino e os seus catorze adeptos mais importantes foram presos na nossa amada Cúria Hostília, a sede do Senado. Sem janelas e com portas de bronze extremamente resistentes. Inexpugnável. Então, um grupo de escravos conduzido por um tal Ceva subiu ao telhado, arrancou as telhas e usou-as para matar os homens que estavam lá dentro. Uma acção deplorável — mas, ao mesmo tempo, um grande alívio para Roma! Após a morte de Saturnino, Roma acalmou e os problemas desvaneceram-se. Admito que a presença de Catilina na Etrúria constitui uma complicação adicional, mas, primeiro que tudo, precisamos de acalmar a cidade de Roma!
Cícero fez uma pausa, sabendo perfeitamente que alguns dos homens que o escutavam tinham feito parte do grupo que Sila incitara a subir ao telhado da Cúria Hostília e que, nesse grupo, não havia um único escravo. O amo do tal Ceva integrava esse grupo, como é que ele se chamava? Ah, sim, Quinto, Quinto Crotão; depois do tumulto ter passado e de a calma ter voltado a Roma, Crotão libertara Ceva com um generoso elogio público pela acção que afinal não cometera — e, dessa forma, lançara as culpas para o antigo escravo. Uma história que Sila nunca negara, em particular depois de se ter tornado ditador. Sim, de facto os escravos davam muito jeito...!
— Paires Conscripti — disse Cícero num tom muito grave —, estamos sentados em cima de um vulcão! Cinco homens estão detidos em diversas residências, cinco homens que, perante todos nós e neste mesmo local, sucumbiram ao interrogatório e confessaram livremente todos os seus crimes. Confessaram alta traição! Sim, eles condenaram-se a si mesmos com as suas próprias confissões, depois de terem visto provas que, de tão concretas e tão evidentes, bastavam para arruinar qualquer um! E, ao confessarem, condenaram também outros homens, homens contra os quais foram passados mandados de captura e que poderão ser detidos por quem os encontre, onde quer que os encontre. Pensem um pouco no que acontecerá quando esses homens forem encontrados. Teremos cerca de vinte homens detidos em vulgares residências romanas, até que seja conhecido o veredicto, no final de um julgamento extremamente lento.
Ontem, fomos confrontados com um dos problemas decorrentes desta horrível situação. Um grupo de homens propunha-se libertar os traidores confessos, assassinar os cônsules e entregar o consulado aos traidores! Por outras palavras: a revolução prosseguirá enquanto os traidores confessos permanecerem em Roma e o exército de Catilina permanecer em Itália. Agindo rapidamente, consegui evitar a tentativa de ontem. Mas o meu consulado terminará dentro de menos de um mês. Sim, Patres Conscripti, a passagem de testemunho está prestes a ocorrer e a situação actual não é nada propícia para uma mudança de magistrados.
A minha maior ambição é deixar o consulado com os problemas de Roma resolvidos e sem qualquer ameaça de catástrofe pairando sobre as nossas cabeças; dessa forma, estarei a enviar a Catilina uma mensagem muito clara: tu não tens em Roma aliados com poder suficiente para te ajudarem. E há uma maneira...
O cônsul sénior fez uma pausa para que esta última sugestão penetrasse nas mentes dos senadores. Daria tudo para que o seu velho inimigo e amigo Hortênsio estivesse presente. Hortênsio entenderia a beleza, a harmonia, da sua argumentação, ao passo que a maior parte dos outros apenas veria oportunismo nas suas palavras. Quanto a César, bom... Cícero nem sequer estava certo de atribuir alguma importância à aprovação de César, fosse como advogado ou como homem. Crasso nem se dera ao trabalho de aparecer, mas Crasso era o último dos homens que Cícero queria impressionar com a sua argumentação legal.
— Enquanto Catilina e Mânlio não forem derrotados ou obrigados à rendição, Roma continuará a viver sob a lei marcial ou, se quiserem, sob o Senatus Consultam Ultimum. Roma vivia também sob um Senatus Consultum Ultimum quando Saturnino e os seus sequazes pereceram na Cúria Hostília. Ninguém podia ser responsabilizado por precipitar um desfecho inevitável, ou seja, por executar esses rebeldes. O Senatus Consultum Ultimum implicava a impunidade para todos os que subiram ao telhado e lançaram as telhas sobre os traidores, ainda que eles fossem escravos, já que o amo de um escravo é responsável perante a lei pelas acções do seu escravo e, portanto, todos os homens que possuíam esses escravos poderiam ter sido processados por homicídio. Não o foram, porque Roma vivia sob a lei marcial, ou seja, sob o Senatus Consultum Ultimum. O decreto que, num estado de emergência, o Senado de Roma pôde promulgar, a fim de que o bem-estar do Estado, custe o que custar, seja preservado.
Considerem agora os traidores confessos que se encontram em Roma, e os outros traidores de que andamos à procura porque fugiram antes que pudessem ser detidos. Todos eles são culpados, todos eles foram incriminados pelos cinco homens que estão detidos. Isto para não falar dos testemunhos de Quinto Curião, Tito Voltúrcio, Lúcio Tarquínio e Brogo, chefe dos Alóbroges. De acordo com o Senatus Consultum Ultimum, esses traidores confessos não têm necessariamente de ser julgados. Porque enfrentamos uma terrível situação de emergência, esta augusta instituição, o Senado de Roma, foi autorizado a fazer tudo o que seja necessário para preservar o bem-estar de Roma. Manter esses homens detidos em residências durante o processo e ter de os mostrar em público durante o julgamento equivale a estimular uma nova rebelião! Tanto mais que Catilina e Mânlio, formalmente declarados inimigos públicos, continuam em liberdade, permanecem em Itália e têm um exército. Esse exército poderá mesmo atacar a nossa cidade, numa tentativa para libertar os traidores durante o julgamento!
Tê-los-ia nas suas mãos? Sim, decidiu Cícero. Até que olhou para César, que estava sentado, muito direito, na bancada da frente, os lábios cerrados, duas manchas escarlates nas faces brancas. Sim, teria de enfrentar a oposição de César, um grande orador. Pretor urbano eleito, o que significava que seria um dos primeiros a falar, a menos que a ordem de intervenção fosse alterada.
Tinha de fazer prevalecer a sua opinião antes que César falasse! Mas como? O olhar de Cícero passeou pela bancada do fundo até encontrar o velho Caio Rabírio, no Senado há quarenta anos sem nunca ter disputado uma magistratura, o que implicava que era ainda um pedarius. Um pedarius dos pés à cabeça. Não que Rabírio fosse a soma de todas as virtudes viris, nem pensar! Graças a muitos negócios duvidosos e muita imoralidade, Rabírio era pouco amado pela maior parte dos cidadãos de Roma. Também ele pertencera àquele grupo de nobres que subira ao telhado da Cúria Hostília e que arrancara as telhas e as lançara sobre Saturnino...
— Se esta casa vier a decidir o destino dos cinco homens que se encontram detidos em Roma e dos homens que fugiram, os seus membros ficarão inteiramente isentos de culpas. Acusá-los seria o mesmo que... por exemplo, seria o mesmo que tentar acusar o nosso querido Caio Rabírio do assassínio de Saturnino! Manifestamente ridículo, Paires Conscripti...! O Senatus Consultum Ultimum cobre todas as nossas acções e autoriza-nos todas as acções, desde que tenham em vista o bem-estar de Roma. Vou por isso defender que, depois de um debate exaustivo, este Senado tome hoje uma decisão quanto ao destino dos nossos cinco prisioneiros, que confessaram a sua culpa. Levá-los a julgamento equivaleria, na minha opinião, a pôr em perigo Roma. Discutamos pois este caso e decidamos o que havemos de fazer com os prisioneiros, de acordo com a protecção global que nos é conferida pelo Senatus Consultam Ultimum! Sob a lei marcial, poderemos ordenar a execução dos traidores confessos. Ou poderemos condená-los ao exílio permanente, confiscar as suas propriedades, proibi-los de viverem em Itália pelo resto das suas vidas.
Respirou fundo, pensando um pouco na eventual reacção de Catão — tinha a certeza de que Catão se oporia. Sim, Catão estava com um ar muito rígido, com um olhar feroz. Porém, como tribuno da plebe eleito, teria de aguardar muito tempo até poder falar.
— Patres Conscripti, não me cabe a mim tomar uma decisão nesta matéria. Cumpri o meu dever, explicando os contornos legais desta situação e informando-vos do que podem fazer de acordo com um Senatus Consultam Ultimum. Pessoalmente, defendo que tomemos uma decisão aqui e agora. Sou contra um julgamento. Mas recuso-me a indicar exactamente o que esta casa deve fazer com os culpados. Outros farão isso melhor do que eu.
Uma pausa, um olhar de desafio para César, e também para Catão. — A ordem de intervenções deverá depender da idade, da experiência e da sabedoria dos oradores, e, portanto, não começaremos pelos magistrados eleitos. Pedirei, pois, ao cônsul sénior eleito que fale em primeiro lugar, logo seguido pelo cônsul júnior eleito. Depois, pedirei a opinião de todos os consulares aqui presentes. Pelas minhas contas, são catorze. Seguidamente, falarão os pretores eleitos, começando pelo pretor urbano eleito, Caio Júlio César. Falarão depois os pretores actuais, os edis eleitos e os edis actuais, os plebeus primeiro do que os curuis. Por fim, pronunciar-se-ão os tribunos da plebe eleitos e os tribunos da plebe actuais. Decidirei mais tarde se os ex-pretores deverão intervir, pois já enumerei sessenta oradores, embora três dos pretores actuais se encontrem em campanha contra Catilina e Mânlio. Portanto, teremos cinquenta e sete oradores se os ex-pretores não intervierem.
— Cinquenta e oito, Marco Túlio.
Como era possível que não tivesse reparado em Metelo Célere, pretor urbano?
— Não devias estar em Piceno com o teu exército?
— Não sei se te lembras, Marco Túlio, mas tu mesmo me mandaste para Piceno, na condição de que regressasse a Roma de dez em dez dias, e desde que ficasse em Roma durante doze dias, durante a passagem de testemunho dos tribunos.
— Tens razão. Bom, nesse caso teremos cinquenta e oito oradores. O que significa que ninguém terá tempo para grandes exercícios de oratória... Entendido? Este debate tem de terminar hoje! Quero proceder a uma divisão antes do pôr do Sol. Portanto, desde já vos aviso, Patres Conscripti, de que interromperei todos os discursos que primarem pelos floreados oratórios. — Cícero olhou para Silano, cônsul sénior eleito.
— Décimo Júnio, principia o debate.
— Tendo em conta o teu aviso, Marco Túlio, serei breve — disse Silano, parecendo algo desamparado; o homem que falava em primeiro lugar tendia a definir a posição predominante e a levar os outros oradores atrás de si. Cícero era capaz de fazê-lo, não lhe custava nada fazê-lo. Mas Silano não tinha a certeza se seria capaz, tanto mais que não fazia a mínima ideia da orientação que o Senado tomaria.
Cícero indicara muito claramente que defendia a pena de morte — mas... e os outros? que defendiam os outros? Por isso, Silano acabou por optar por um compromisso, defendendo a pena máxima o que toda a gente traduzia por “morte”. Conseguiu não mencionar a eventualidade de um julgamento, pelo que toda a gente concluiu que Silano se opunha à realização do julgamento.
Depois, foi a vez de Murena; também ele apoiou a “pena máxima”.
Cícero, evidentemente, não falou, e Caio António Híbrida estava em campanha. Por isso, o orador seguinte era o chefe do Senado, Mamerco Princeps Senatus, o mais sénior dos consulares. Constrangido, optou pela “pena máxima”. Depois, vieram os consulares que tinham sido censores — Gélio Poplicola, Catulo, Vátia Isáurico, um preocupado Lúcio Cota, todos eles apoiaram a “pena máxima”. Falaram seguidamente os consulares que não tinham sido censores — Curió, os dois Lúculos, Pisão, Glabrião, Volcácio Tulo, Torquato, Márcio Fígulo.
A pena máxima.
Muito correctamente, Lúcio César absteve-se.
Até aí tudo bem. Agora era a vez de César; e como poucos conheciam os seus pontos de vista tão bem como Cícero, as suas palavras foram uma supresa para muitos. Incluindo Catão, que não procurara um aliado tão desconcertante e tão indesejado.
— O Senado e o Povo de Roma, que constituem a República de Roma, não sancionam a punição de cidadãos no pleno gozo dos seus direitos sem um julgamento prévio — disse César, com a sua voz sonora, clara e fascinante. — Quinze pessoas acabam de defender a pena de morte, mas nenhuma delas mencionou o julgamento. É claro que os membros desta casa decidiram ab-rogar a República e recuar muito tempo na história de Roma, para pronunciarem um veredicto sobre a sorte de vinte e um cidadãos da República, incluindo um homem que foi cônsul uma vez e pretor duas vezes, e que, inclusivamente, ainda é um pretor legalmente eleito. Portanto, não desperdiçarei o tempo de que dispomos louvando a República ou o julgamento e os recursos de sentença a que qualquer cidadão da República tem direito antes de os seus pares poderem pronunciar uma sentença, seja ela qual for. Em vez disso, e como os meus antepassados, os Júlios, eram já Patres durante o reinado do rei Tulo Hostílio, limitarei os meus comentários à situação que se verificava no tempo dos reis.
O Senado ouvia-o agora com mais atenção. César prosseguiu. — Com confissão ou sem ela, a sentença de morte é um desfecho que não se adequa à mentalidade romana. Já não se adequava no tempo dos reis, embora os reis matassem muitos homens da mesma forma que nós fazemos hoje — em situações de violência pública. O rei Tulo Hostílio, por muito belicista que fosse, hesitava em aprovar uma sentença de morte formal. A sentença de morte ficava mal a Roma — Tulo Hostílio entendia-o tão claramente que foi ele quem aconselhou Horácio a recorrer, quando os duumviri o condenaram pelo assassínio da sua irmã, Horácia. Os cem Patres — antepassados do nosso Senado Republicano — não se sentiam inclinados a transigir, mas perceberam a sugestão real e estabeleceram um precedente, concluindo que o Senado de Roma não devia condenar cidadãos romanos à morte. Quando cidadãos romanos são mortos por ordem de homens no governo — e quem não se lembra de Mário e Sila? —, isso significa que o bom governo acabou, e que o Estado degenerou.
Patres Conscripti, disponho de pouco tempo e, por isso, direi apenas o seguinte: não recuemos aos tempos dos reis, se isso significa execução! A execução não é um castigo adequado. A execução é a morte, e a morte não passa de um sono eterno. Um homem, qualquer homem, sofrerá mais se for condenado ao exílio! Todos os dias se lembrará de que já não é um cidadão, de que foi condenado, para toda a vida, à pobreza, ao desprezo, à obscuridade.
As suas estátuas públicas são derrubadas; a sua imago não pode ser usada nos cortejos fúnebres da família, nem exibida em sítio nenhum. Esse homem é um proscrito, um fora-da-lei, um desgraçado, uma criatura ignóbil. Os seus filhos e netos baixarão a cabeça de vergonha, a mulher e as filhas chorarão. E tudo isto chega ao seu conhecimento, porque ele está vivo, porque ele é ainda um homem, com todos os sentidos e fraquezas dos homens. E com toda a força de um homem, uma força que, agora, só serve para o atormentar ainda mais. A morte em vida é infinitamente pior do que a verdadeira morte. Eu não temo a morte, desde que seja súbita. O que temo é uma situação política que me obrigue a um exílio permanente, à perda da minha dignitas. Posso não ser mais nada, mas uma coisa sou: sou um Romano dos quatro costados, um Romano de corpo e alma. Vénus criou-me e Vénus criou Roma.
Silano estava com um ar confuso, Cícero com um ar furioso. Todos os outros pareciam pensativos. Incluindo Catão.
— Não posso deixar de encarecer aquilo que o douto cônsul sénior disse sobre o que insiste em chamar Senatus Consultum Ultimam — que, sob a capa deste decreto, todos os procedimentos e leis normais são suspensos. Compreendo que a grande preocupação do douto cônsul sénior seja o bem-estar de Roma e que ele considere que a presença prolongada dos traidores confessos dentro das muralhas da nossa cidade possa transformar-se num perigo sério. Ele quer que este caso tenha um desfecho tão rápido quanto possível. Também eu! Mas não com uma sentença de morte, se tivermos de recuar ao tempo dos reis. Não estou preocupado com o nosso douto cônsul sénior, nem com os catorze brilhantes senadores que já foram cônsules. Não estou preocupado com os cônsules do próximo ano, nem com os pretores deste ano, nem com os pretores do próximo, nem com os homens que aqui estão e que já foram pretores e que ainda podem vir a ser cônsules.
César fez uma pausa; a sua expressão não podia ser mais grave. — Mas estou preocupado com um qualquer cônsul do futuro, com um cônsul que assuma funções dentro de dez ou vinte anos, por exemplo. Que precedente vamos oferecer-lhe? Que precedente segue o nosso douto cônsul sénior quando cita o caso de Saturnino? No dia em que cidadãos romanos foram ilegalmente executados sem julgamento — e todos sabemos quem os executou —, um templo consagrado foi profanado. A Cúria Hostília foi profanada! Ou seja:
Roma foi profanada! Vejam só que exemplo, vejam só que precedente! Mas não é o nosso douto cônsul sénior que me preocupa! Quem me preocupa é um possível cônsul do futuro, menos escrupuloso e menos douto que o nosso cônsul actual.
Mantenhamos a cabeça fria e encaremos este caso com os olhos bem abertos e o pensamento livre de preconceitos. Há outras punições para além da morte. Para além do exílio num local luxuoso como Atenas ou Massília. Porque não Corfínio ou Sulmona ou qualquer outra cidade das montanhas, de preferência dotada de inexpugnáveis muralhas? Foi para locais desses que, durante séculos, mandámos os reis e os príncipes que capturámos. Porque não fazer o mesmo aos inimigos romanos de Roma? A confiscação dos seus bens e propriedades dar-nos-ia o dinheiro suficiente para compensar tais cidades pelo incómodo e para assegurar que eles não fugiriam. Fazê-los sofrer, sim! Mas matá-los, nunca!
Quando César se sentou, ninguém falou. Nem mesmo Cícero. Ao fim de um bocado, o cônsul sénior eleito, Silano, levantou-se para falar, com uma expressão algo envergonhada.
— Caio Júlio, creio que interpretaste mal a expressão que usei, pena máxima
e julgo que toda a gente cometeu o mesmo erro. Eu não estava a pensar na sentença de morte! Tal sentença é contrária aos usos romanos. De facto, estava a pensar numa pena idêntica à que propuseste. A prisão perpétua numa cidade inexpugnável da Itália, que seria suportada pelo dinheiro obtido com a confiscação dos bens e propriedades dos culpados.
E os oradores seguintes defenderam o mesmo: um confinamento rigoroso, pago pela confiscação dos bens dos traidores.
Quando os pretores terminaram, Cícero ergueu a mão. — Há demasiados ex-pretores presentes nesta reunião e não poderei deixar que todos falem. Além disso, não incluí os ex-pretores no total dos cinquenta e oito homens. Aqueles que não vão contribuir com nada de novo para o debate, ergam por favor as vossas mãos em resposta às duas questões que lhes vou pôr agora: quais de vós são favoráveis a uma sentença de morte?
Nenhum. Cícero estava vermelho de raiva.
— Quais de vós são favoráveis a uma detenção rigorosa numa cidade italiana e à confiscação total dos bens e propriedades?
Todos, menos um.
— Tibério Cláudio Nero, que tens a dizer?
— Apenas que a ausência da palavra julgamento
em todos os discursos me perturba muito. Qualquer homem romano, traidor confesso ou não, tem direito a um julgamento, e estes homens devem ser julgados. Mas não creio que devam ser julgados antes de Catilina se render ou ser derrotado. Penso que o primeiro a ser julgado deveria ser o chefe da conspiração.
— Catilina — disse Cícero, com um ar afável — já não é um cidadão romano! Catilina não tem direito a um julgamento, pois não há nenhuma lei que preveja isso.
— Catilina também devia ser julgado — teimou Cláudio Nero, e sentou-se.
Metelo Nepos, presidente do novo Colégio dos Tribunos da Plebe que tomaria posse dentro de cinco dias, foi o primeiro a falar. Estava cansado e esfomeado; tinham-se passado já oito horas, o que até nem era mau de todo, dada a importância do assunto e o número de homens que haviam já falado. Mas quem Metelo temia era Catão, que falaria depois dele — porque Catão, quando discursava, era sempre prolixo, inconveniente e enfadonho. Daí que Metelo Nepos se tenha despachado num instante, manifestando o seu apoio a César, após o que, lançando um olhar feroz a Catão, se sentou no seu banco.
Nunca ocorrera a Metelo Nepos que fora por sua causa que Catão disputara as eleições e era agora tribuno da plebe eleito. No seu regresso do Oriente, depois de uma deliciosa campanha como legado sénior de Pompeu, o Grande, Nepos decidiu que merecia viajar no maior dos luxos. O que não admira. Ele era um dos mais importantes membros do clã dos Cecílios Metelos, era extremamente rico e conseguira tornar-se ainda mais rico com a campanha do Oriente; para cúmulo, era cunhado de Pompeu. Daí que a sua viagem pela Via Ápia tenha decorrido com a maior das calmas, muito antes das eleições e também do calor do Verão. Quem tinha pressa usava o cavalo ou os veículos, mas Nepos estava farto de pressas; escolhera um meio de transporte muito especial, uma liteira enorme carregada por nada mais nada menos do que doze homens. No interior da luxuosa liteira, Nepos refastelava-se sobre um felpudo colchão com uma coberta de púrpura de Tiro, e tinha um criado agachado a um canto que lhe fornecia comida e bebidas, o penico quando era preciso, leituras quando o senhor estava com disposição para ler.
Como nunca espreitava pelas cortinas da liteira, Nepos nunca reparou nos humildes pedestres com que o seu cortejo frequentemente se cruzava; daí que não tenha visto um grupo de seis pedestres extremamente humildes que seguia na direcção oposta. Três deles eram escravos. Os outros três eram Munácio Rufo, Atenodoro Cordilião e Marco Pórcio Catão, que se dirigiam para a propriedade de Catão na Lucânia, a fim de passarem o Verão a estudar sem serem inquietados pelas crianças.
Durante longos momentos, Catão ficou a ver o cortejo passar, contando as pessoas e os veículos. Escravos, bailarinas, concubinas, guardas, despojos, carros-cozinhas, bibliotecas sobre rodas, adegas sobre rodas.
— Soldado — perguntou Catão a um guarda que vinha na cauda do cortejo —, quem é este homem que viaja como Sampsicéramo, o potentado oriental?
— Quinto Cecílio Metelo Nepos, cunhado de Magno! — retorquiu o soldado.
— Pelo que vejo, está com muita pressa... — comentou Catão, sarcasticamente.
Mas o soldado não entendeu o sarcasmo. — Está, sim, peregrino! Vai disputar as eleições para tribuno da plebe, em Roma!
Catão prosseguiu o seu caminho, mas, ainda o dia ia a meio, decidiu voltar para trás.
— Que se passa? — perguntou Munácio Rufo.
— Tenho de voltar para Roma imediatamente, pois quero disputar o cargo de tribuno da plebe — respondeu Catão, com os dentes cerrados de raiva. — Tem de haver alguém naquele colégio de bufões que dificulte a vida àquele Metelo Nepos — e também ao seu amo e senhor, o todo-poderoso Pompeu Magnus!
Catão não se saíra mal nas eleições; ficara em segundo lugar, depois de Nepos. O que significava que, depois de Metelo Nepos se ter sentado, seria a sua vez de falar.
— A morte é a única pena possível! — gritou. Subitamente, o templo pareceu gelar. Todos os olhos se viraram para Catão, pasmados, incrédulos. Catão era um defensor tão acérrimo da mós maiorum que nunca ocorrera a ninguém que o seu discurso se pudesse desviar da linha traçada por César, ou então das posições defendidas por Tibério Cláudio Nero.
— A morte é a única pena possível! Mas que disparates são esses acerca da lei e da República? Quando é que a República abrigou traidores confessos sob as suas saias? Para traidores confessos, não há leis! As leis são feitas para criaturas menos importantes, menos perigosas. As leis são feitas para aqueles que as transgridem, mas que, ao fazê-lo, não causam danos ao seu país, à terra que os viu crescer e que fez deles o que eles são.
Reparem-me só em Décimo Júnio Silano, um imbecil fraco e vacilante! Pensava que Marco Túlio queria uma sentença de morte e logo sugeriu “a pena máxima”! Depois, quando César falou, mudou de ideias — pena máxima
afinal, era a pena defendida por César! Sim, porque ele seria incapaz de ofender o seu amado César...! E que me dizem deste César, deste requintado e efeminado janota que se vangloria de descender dos deuses e que defeca para cima de todos nós, os comuns mortais! César, Patres Conscripti, é o verdadeiro impulsionador desta conspiração! Catilina? Lêntulo Sura? Marco Crasso? Não, não e não! César! A conspiração é de César! Não foi César que conspirou para que o seu tio Lúcio Cota e o seu colega Lúcio Torquato fossem assassinados, no primeiro dia do seu consulado, há três anos? Sim, César preferia Públio Sila e Autrónio ao seu próprio tio, ao seu próprio sangue! César, César, sempre César! Olhem para ele, senadores! Melhor do que todos nós juntos...! Descendente dos deuses, nascido para mandar, sempre desejoso de manipular os acontecimentos, de empurrar os outros para a fornalha, enquanto ele se esconde na sombra! César! De mim, só mereces um escarro! Um escarro!
E tentou mesmo escarrar para cima de César. Muitos dos senadores olhavam para Catão boquiabertos, pasmados com aquela diatribe que o ódio alimentava. Toda a gente sabia que Catão e César se detestavam; a maior parte sabia que César ornara de chifres a fronte de Catão. Mas aquela torrrente de ofensas forçadas...? Aquela acusação de traição...? Que raio se passava na cabeça de Catão?
— Temos cinco homens culpados de traição detidos em residências de Roma, depois de terem confessado os seus crimes e os crimes de mais dezasseis homens que fugiram de Roma. Para quê um julgamento? Um julgamento é um desperdício de tempo e do dinheiro do Estado! E, Patres Conscripti, sempre que há um julgamento, há a possibilidade de um suborno. Outros júris, noutros casos tão sérios como este, absolveram os culpados, embora a culpa fosse manifesta! Outros júris estenderam mãos gananciosas para receberem vastas fortunas de gente como Marco Crasso, amigo de César e seu financiador! Catilina a governar Roma? Nunca! César é que quer governar, com Catilina como seu mestre do cavalo e Crasso livre para fazer o que muito bem lhe apetecer no Tesouro!
— Espero que tenhas provas de tudo o que acabaste de dizer — disse César, no tom mais sereno possível, pois sabia que a sua calma perturbava fortemente Catão.
— Não te preocupes que eu arranjo as provas! — berrou Catão. — Quando há crimes, é sempre possível encontrar as provas! Pensa nas provas que incriminaram de traição estes cinco homens! Quando viram as provas, quando as ouviram, todos confessaram. E podem estar certos de que eu encontrarei provas do envolvimento de César nesta conspiração e na conspiração que ocorreu há três anos! Não haverá julgamento para os culpados, repito! Para nenhum deles! A morte deve ser o seu castigo! César defende a clemência a partir de fundamentos filosóficos. A morte, diz ele, não passa de um sono eterno. Mas haverá certezas quanto a isso? Não há, não há! Nunca ninguém regressou à terra depois de morto, para nos dizer o que acontece depois da morte! A morte sai mais barata. E é o fim de tudo. Que morram os cinco traidores e que morram hoje!
César voltou a falar, no mesmo tom sereno. — A menos que a traição seja perduellio, Catão, a morte não constitui uma pena legal. E se és contra o julgamento desses homens, como podes decidir se cometeram perduellio ou maiestas? Pareces defender que se trata de perduellio, mas... será que defendes mesmo?
— Não é este o momento, nem o local, para nos deleitarmos com sofismas legais, já que não tens outras razões para fundamentar a clemência! — vociferou Catão. — Eles devem morrer, e devem morrer hoje!
E Catão continuou a falar, sem se dar conta da passagem do tempo. A arenga prosseguiria até que a persistente e absoluta monotonia vencesse toda a gente. O Senado vacilava; Cícero quase chorava. Catão iria falar até ao pôr do Sol e a votação não decorreria naquele dia.
Faltava uma hora para o Sol se pôr quando um criado entrou discretamente no templo e, ainda mais discretamente, entregou a César uma folha dobrada.
Catão atacou logo. — Ah! O traidor denunciou-se a si mesmo! — bramiu ele. — Ele recebe mensagens criminosas mesmo nas nossas barbas! Vejam até que ponto vai a sua arrogância, o seu desprezo por esta casa! És um traidor, César! E essa mensagem é uma prova!
Enquanto Catão berrava, César lia. Quando ergueu os olhos, exibiu uma expressão extremamente peculiar — um nada de aflição? Ou divertimento?
— Lê-a em voz alta, César, lê-a em voz alta! — gritou Catão. Mas César abanou a cabeça. Dobrou a nota, levantou-se,
encaminhou-se na direcção de Catão e, com um sorriso, entregou-lhe a mensagem. — Julgo que não estás interessado em revelar o conteúdo desta nota — disse ele apenas.
Catão não era um leitor rápido. Daí que demorasse imenso tempo a ler os infindáveis rabiscos, separados unicamente em colunas (e, por vezes, uma palavra continuava na linha inferior, o que o deixava ainda mais confuso). E enquanto decifrava o texto, lendo-o num murmúrio, os senadores mostravam-se gratos por aquele relativo silêncio, temendo que Catão reatasse o seu discurso (e temendo também que a nota constituísse um indício de traição).
Bruscamente, um guincho irrompeu da garganta de Catão; e um sobressalto atravessou o Senado. Depois, o meio-irmão de Servília amarfanhou a folha e atirou-a a César.
— Fica com isso, miserável mulherengo!
Mas César não apanhou a mensagem. Embora esta tivesse caído perto dele, César deixou que Filipe a apanhasse — e a abrisse imediatamente. Melhor leitor do que Catão, Filipe desatou a gargalhar ao fim de alguns instantes. Mal terminou, passou a mensagem aos pretores-eleitores, a fim de que a entregassem a Silano.
Catão apercebeu-se então de que perdera a sua audiência; toda a gente se ria, ou lia, ou morria de curiosidade. — É típico desta casa que essa coisa desprezível e miserável seja mais importante para vocês do que o destino a dar aos traidores! — gritou ele. — Cônsul sénior, exijo que o Senado te ordene, segundo os termos do Senatus Consultum Ultimum, a execução imediata dos cinco traidores detidos e que aprove a sentença de morte para outros quatro homens — Lúcio Cássio Longino, Quinto Ânio Quilão, Públio Umbreno e Públio Fúrio. Esta última sentença de morte será aplicada logo que um deles ou todos eles sejam capturados.
Claro que Cícero estava tão desejoso de ler a nota de César como qualquer outro homem presente. Contudo, não podia perder aquela oportunidade.
— Obrigado, Marco Pórcio Catão. Vou propor uma divisão do Senado. Eis a moção a ser votada: que os cinco homens detidos sejam executados imediatamente e que os outros quatro homens que referiste sejam executados logo após a sua captura. Aqueles que defendem a sentença de morte, devem passar para a minha direita. Aqueles que são contra essa sentença, devem passar para a minha esquerda.
O cônsul sénior eleito, Décimo Júnio Silano, marido de Servília, recebera a nota pouco antes de Cícero ter apresentado a moção. Eis o que a nota dizia:
Bruto acaba de me contar que o meu meio-irmão, esse miserável Catão, te acusou de traição no Senado, embora admita que não dispõe de qualquer prova! Peço-te, meu querido, que não faças caso. O que o move é, muito simplesmente, o rancor, porque tu lhe roubaste Atílio e lhe enfeitaste a testa com cornos — isto para não falar do facto de Atílio lhe ter dito que ele tinha um pipinna, quando comparado contigo. Um facto que, aliás, eu própria posso confirmar. Todos os homens de Roma têm pipinnae, se comparados contigo.
Lembra-te de que Catão não passa de lixo sob os pés de um patrício, de que ele é afinal o descendente de uma escrava e de um camponês impertinente que sugou os patrícios para chegar a censor — e que assim arruinou tantos patrícios quantos pôde. Este Catão adoraria fazer o mesmo. Ele odeia todos os patrícios, mas odeia-te a ti em particular. E se soubesse o que existe entre nós, César, ainda te odiaria mais.
Não percas a coragem, ignora essa erva daninha e todos os seus sequazes. Roma será melhor servida por um César do que por cinquenta Catãos e Bíbulos. Como as esposas deles poderão confirmar!
Silano fitou César com uma dignidade sombria, sem deixar transparecer qualquer outra emoção. César tinha uma expressão triste, mas não havia nela sinal de arrependimento. Então, Silano levantou-se e passou para a direita de Cícero; não votaria a favor da posição de César.
Não foram muitos os que secundaram César, embora nem toda a gente tivesse passado para a direita. Metelo Célere, Metelo Nepos, Lúcio César, vários tribunos da plebe, incluindo Labieno, Filipe, Caio Octávio, os dois Lúculos, Tibério Cláudio Nero, Lúcio Cota e Torquato colocaram-se à esquerda de Cícero, tal como cerca de trinta dos senadores pedarii. E também Mamerco Princeps Senatus.
— Não posso deixar de assinalar que Públio Cetego foi um dos que votou a favor da execução do seu irmão — disse Cícero.
— E que Caio Cássio votou a favor da execução do primo. O resultado da votação é quase unânime.
— O sacana! Exagera sempre! — resmungou Labieno.
— E porque não? — perguntou César, encolhendo os ombros.
— A memória é curta e as actas tendem a reflectir declarações daquelas, já que Caio Coscónio e os seus escribas não costumam registar nomes.
— Onde é que está a nota? — perguntou Labieno, desejoso de a ler.
— É Cícero que a tem.
— Não será por muito tempo! — retorquiu Labieno, que se dirigiu imediatamente ao cônsul sénior e lhe arrancou das mãos a mensagem. — Toma, César, isto pertence-te — disse ele, entregando a nota a César.
— Lê-a, Labieno! — disse César, rindo-se. — Se toda a gente já sabe, incluindo o marido da senhora em causa, porque é que tu não hás-de ler?
Os senadores regressavam já aos seus lugares, mas César permaneceu de pé o tempo necessário para que Cícero reparasse nele.
— Paires Conscripti, de acordo com a votação a que procedemos, os nove homens referidos terão de morrer — disse César sem qualquer emoção. — Segundo a argumentação exposta por Marco Pórcio Catão, a morte é a pior das punições que o Estado pode decretar. E se é o pior dos castigos, então deve bastar. Gostaria de propor que nada mais seja feito. Que nenhuma propriedade seja confiscada. As mulheres e os filhos dos condenados nunca mais verão os seus rostos: é castigo suficiente por terem acolhido um traidor no seu seio. As mulheres e os filhos deverão, pelo menos, continuar a dispor dos recursos necessários para viverem.
— Pois é, agora já percebemos por que razão defendeste a clemência! — berrou Catão. — Não queres ter de suportar os miseráveis Antónios e a rameira da mãe deles!
Lúcio César, irmão da rameira e tio dos miseráveis, atirou-se imediatamente a Catão, apoiado por Mamerco Princeps Senatus. O que fez com que Bíbulo, Catulo, Caio Pisão e Aenobarbo corressem a defender Catão. Metelo Célere e Metelo Nepos juntaram-se à batalha, ao passo que César se limitava a apreciar a cena com um sorriso.
— Creio — disse ele a Labieno — que devia pedir protecção tribunícia!
— Como patrício, não podes pedir protecção tribunícia — retorquiu solenemente Labieno.
Considerando que era impossível acabar com a rixa, Cícero decidiu acabar com a reunião; agarrou em César pelo braço e conduziu-o para fora do templo de Concórdia.
— Por amor de Júpiter, César, vai para casa! — suplicou. — As confusões que tu és capaz de causar...!
— Isso não é solução — retorquiu César, olhando-o com desprezo, e avançando para regressar ao templo.
— Por favor, César, vai para casa!
— Só se me deres a tua palavra de honra de que não haverá confiscação de propriedades.
—- Dou-te de bom grado a minha palavra de honra, César! Mas vai-te embora!
— Eu vou. Mas lembra-te de que te obrigarei a cumprir a tua palavra.
Cícero vencera, mas aquele discurso de César girava impiedosamente na sua cabeça, enquanto avançava, com os seus lictores e um bom número de milicianos, na direcção da residência onde Lêntulo Sura se encontrava alojado. Mandara quatro dos seus pretores buscar Caio Cetego, Estatílio, Gabínio Capitão e Cepário, mas achava que devia ser ele a ir buscar Lêntulo Sura; Sura fora cônsul.
Seria um preço demasiado alto? Não! Logo que os traidores fossem executados, Roma acalmaria como que por artes mágicas; todas as ideias de insurreição desapareceriam da imaginação dos homens. Não havia nada mais aterrador do que a execução. Se Roma aprovasse tal pena mais frequentemente, haveria por certo menos crimes. Quanto ao julgamento, Catão tinha razão. Eles tinham-se confessado culpados; por isso, o julgamento era um desperdício de dinheiro. Além disso, um julgamento podia ser desvirtuado: bastava que houvesse dinheiro suficiente para comprar o júri. Tarquínio acusara Crasso e, embora, pela lógica, Crasso não devesse estar envolvido na conspiração — fora ele, afinal, quem fornecera a Cícero a primeira prova concreta —, a verdade é que a semente ganhara raízes na mente de Cícero. E se Crasso estivesse realmente envolvido, e depois tivesse arrepiado caminho e engendrasse aquelas cartas?
Catulo e Caio Pisão tinham acusado César. Tal como Catão. Nenhum deles apresentou provas e todos eles eram inimigos implacáveis de César. Mas a semente estava lançada e ganhava raízes. E quando Catão acusara César de conspirar para assassinar Lúcio Cota e Torquato, três anos antes? Na altura, correra o boato de que havia uma conspiração para matar os dois cônsules; mas o acusado era Catilina. Depois, Lúcio Cota e Torquato, defendendo Catilina no tribunal de extorsão, tinham demonstrado que não acreditavam em tal boato. Ninguém sugerira o nome de César. E Lúcio Cota era tio de César. No entanto... Outros patrícios romanos tinham conspirado para matar parentes próximos, incluindo Catilina, que matara o seu próprio filho. Sim, os patrícios eram diferentes. Os patrícios só obedeciam às leis que respeitavam. Bastava pensar em Sila, realmente o primeiro ditador de Roma — e um patrício. Melhor do que os outros. Certamente melhor do que um Cícero, um rústico de Arpino, um mero forasteiro, um desprezível Homem Novo.
Cícero decidiu que teria de vigiar Crasso. Mas teria de vigiar César ainda com mais rigor. As dívidas de César... sim, era isso... entre todos os cidadãos romanos, quem é que mais ganharia com um cancelamento geral das dívidas? César, precisamente...! Não seria isso uma razão suficiente para apoiar Catilina? Não havendo esse cancelamento, como poderia César escapar a uma ruína inevitável? Precisaria de conquistar vastas regiões onde Roma não chegara ainda, e Cícero considerava isso impossível. E que César não era um Pompeu; nunca comandara exércitos. Por outro lado, Roma nunca se sentiria tentada a dar-lhe comissões especiais! De facto, quanto mais Cícero pensava no caso de César, mais convencido ficava de que o filho de Aurélia participara na conspiração de Catilina, nem que fosse porque uma vitória de Catilina significava que se livraria do pesado fardo das dívidas.
Depois, ao regressar ao Fórum com Lêntulo Sura (que conduzia de novo pela mão, como se ele fosse uma criança), um outro César interrompeu aqueles pensamentos. Não tão dotado nem tão perigoso como Caio, Lúcio César era ainda um indivíduo com muito peso em Roma: fora cônsul no ano anterior, era um dos augures, e tinha muitas possibilidades de vir a ser eleito censor. Lúcio e Caio eram primos e gostavam um do outro.
Mas Lúcio César parara, com a incredulidade escrita no rosto, ao ver Cícero conduzindo Lêntulo Sura pela mão.
— Agora? — perguntou ele a Cícero.
— Agora — retorquiu firmemente Cícero.
— Sem preparação? Sem mercê? Sem um banho, sem roupas limpas, sem o estado de espírito correcto? Seremos bárbaros, porventura?
— Tem de ser agora, Lúcio César — retorquiu Cícero, angustiado. — Antes que o Sol se ponha. Por favor, não levantes obstáculos.
Lúcio César afastou-se ostensivamente. — Oh, que os deuses me defendam de levantar obstáculos à justiça romana! — disse ele, escarnecendo de Cícero. — Já disseste à minha irmã que o marido vai morrer sem um banho e sem roupas limpas?
— Não tenho tempo para isso! — exclamou Cícero. Ah, que situação horrível! Ele estava apenas a cumprir o seu dever! Mas não podia dizer isso a Lúcio César, pois não? Que podia ele dizer?
— Nesse caso, será melhor eu ir a casa dela enquanto a casa está em nome de Sura! — atirou-lhe Lúcio César. — Sem dúvida que convocarás para amanhã uma reunião do Senado, a fim de confiscar todas as propriedades de Sura.
— Não, não! — retorquiu Cícero, à beira das lágrimas. — Dei ao teu primo Caio a minha solene palavra de honra de que não haverá confiscação de propriedades.
— Um grande gesto, Cícero — disse Lúcio César. Olhou então para o seu cunhado; parecia ir dizer qualquer coisa, mas logo desistiu, abanou a cabeça e afastou-se. Nada do que dissesse poderia ajudar Sura. Aliás, nem acreditava que Sura ouvisse as suas palavras. O choque abalara-lhe definitivamente a razão.
Tremendo por causa deste encontro, Cícero desceu os Degraus Vestais na direcção do baixo Fórum, que estava a abarrotar de gente — e nem todos eram frequentadores habituais do Fórum. Enquanto os seus lictores abriam caminho entre a multidão, Cícero imaginou ver de relance certos rostos conhecidos. Aquele não era o jovem Décimo Bruto Albino? E aquele ali? Não era Públio Clódio? O filho proscrito de Gélio Poplicola? Por que raio se misturavam eles com o povo miúdo?
Havia qualquer coisa no ar, algo que assustava o já abalado Cícero. As pessoas protestavam em voz baixa, os seus olhares eram sombrios, as expressões soturnas, e pareciam não se querer desviar para deixar passar o cônsul sénior de Roma e a vítima que levava pela mão. Um arrepio de terror percorreu a espinha de Cícero. Quase teve vontade de dar meia-volta e fugir. Mas não podia. Era ele quem tinha de fazer aquilo. Era ele quem tinha de impor o desfecho. Ele era o pai do seu país; ele, sozinho, salvara Roma de um bando de patrícios.
Do outro lado dos Degraus Gemonianos, que conduziam à Arx do Capitólio, ficava o único estabelecimento prisional de Roma, as Lautumiae, um conjunto de edifícios em adiantado estado de degradação. O edifício mais importante e mais antigo era o Tuliano, uma minúscula relíquia triangular do tempo dos reis. Na parede que dava para a Clivus Argentarius e a Basilica Porcia, encontrava-se a única porta, uma porta de madeira tão forte quanto feia, sempre fechada e trancada.
Naquele dia, porém, a porta do Tuliano estava escancarada; e, no vão, viam-se seis homens seminus. Os carrascos públicos de Roma. Eram escravos, evidentemente, e viviam em casernas, na Via Recta, fora do pomerium, juntamente com os outros escravos públicos de Roma. Entre estes seis homens e os outros escravos públicos, havia uma diferença fundamental: os carrascos só atravessavam o pomerium quando eram chamados a cumprir o seu dever. Normalmente, as suas mãos enormes e vigorosas só apertavam os pescoços de estrangeiros (até os quebrarem). E só havia execuções uma ou duas vezes por ano, durante um cortejo triunfal. Há muito tempo que os pescoços não eram romanos. Sila matara muitos Romanos, mas nunca o fizera oficialmente dentro do Tuliano. Mário matara muitos Romanos, mas nunca o fizera oficialmente no interior desse cárcere.
Felizmente, a localização da câmara de execuções não permitia à multidão ver o que quer que fosse; e depois de Cícero ter reunido os seus cinco condenados e colocado uma sólida parede de lictores e milicianos entre eles e as massas, ainda menos havia para ver.
Quando Cícero subiu os poucos degraus para se abeirar da porta, o fedor que emanava do Tuliano quase o fez ceder. Um fedor horrendo a decomposição, já que a câmara de execuções nunca era limpa. Um homem entrou; aproximou-se de um buraco no meio do chão e desceu ao subterrâneo. Aí, os carrascos aguardavam-no para lhe quebrarem o pescoço. Depois, o cadáver ficava lá, a apodrecer. Da próxima vez que fosse preciso usar a câmara de execuções, os carrascos varreriam o que restava dos cadáveres para uma conduta aberta que estava ligada aos esgotos.
Ansioso e pálido, Cícero viu passar os cinco homens, Lêntulo Sura em primeiro lugar, Cepário em último. Nenhum deles olhou para ele, nem sequer de relance. O choque deixara-os sem reacção. Ainda bem, pensou Cícero.
Tudo foi muito rápido. Ao fim de breves momentos, um dos carrascos apareceu à porta e acenou para o cônsul sénior. Já me posso ir embora, pensou Cícero, e encaminhou-se para os rostra, atrás dos seus lictores e milicianos.
Do alto dos rostra, olhou para aquela multidão imensa e molhou os lábios. Estava dentro do pomerium, dentro dos limites sagrados de Roma, e isso significava que não podia usar a palavra “morto” no seu discurso.
Que diria então, em vez de “morto”? Após uma pausa, abriu os braços e gritou, “Viverei”.
Eles “viveram!”: pretérito perfeito, ou seja, tudo terminara para “eles” tudo estava acabado para “eles”.
Ninguém deu vivas. Ninguém apupou. Cícero desceu e começou a andar na direcção do Palatino, enquanto a multidão dispersava na direcção do Esquilino, de Subura, do Viminal. Ao passar pela pequena Casa de Vesta, apareceu-lhe um vasto grupo de cavaleiros das Dezoito, chefiado por Ático, com archotes acesos, pois já estava a ficar escuro. E saudaram-no como salvador da pátria, como pater patriae, como um herói mítico. Ah, que bálsamo para o seu animus! A conspiração Lúcio Sérgio Catilina fora aniquilada e fora ele, Cícero, quem a descobrira e quem a destruíra. Sozinho. Sem a ajuda de ninguém.
César desandou furibundo na direcção da Domus Publica; tão rápido era o seu passo que Tito Labieno quase tinha de correr para o acompanhar. Com um gesto peremptório, César ordenara ao tribuno da plebe, e homem de mão de Pompeu, que o acompanhasse. Por que razão? Labieno não fazia a mínima ideia. Acompanhou-o porque, na ausência de Pompeu, César era o seu chefe.
Foi também com um gesto que César o convidou a servir-se do vinho; Labieno encheu uma taça, sentou-se e observou aquele homem que não parava de andar de um lado para o outro, dentro dos limites não muito vastos do seu gabinete.
Por fim, César falou. — Farei com que Cícero se arrependa de ter nascido! Como pôde ele ter a ousadia de pretender interpretar a lei romana?! E como foi possível que tivéssemos eleito para o cargo de cônsul sénior um presunçoso, um vaidoso, um fanfarrão deste calibre?
— O quê? Não votaste nele?
— Nem nele, nem em Híbrida.
— Votaste em Catilina? — perguntou Labieno, surpreendido.
— E em Silano. Para dizer a verdade, não me apetecia votar em ninguém, mas como todos temos de votar, escolhi esses dois na esperança de evitar o desfecho que se veio a verificar. — Nas faces de César viam-se ainda duas manchas vermelhas; e os olhos, pensou Labieno com invulgar imaginação, pareciam arder, apesar de gelados.
— Senta-te, por favor, César! Eu sei que não tocas em vinho, mas esta noite é excepcional. Um pouco de vinho vai fazer-te bem!
— O vinho nunca faz bem a ninguém — retorquiu César, enfaticamente; contudo, sentou-se. — Se não estou enganado, Tito, o teu tio Quinto Labieno foi um dos homens que morreram na Cúria Hostília, há trinta e sete anos, sob aquela avalancha de telhas.
— Sim, é verdade. Juntamente com Saturnino, Lúcio Equício e os outros.
— E que sentes tu a respeito disso?
— Que posso sentir, César, a não ser que foi uma acção tão imperdoável como inconstitucional? Eles eram cidadãos romanos e não foram julgados!
— É verdade. Contudo, não foram executados oficialmente. Foram assassinados, a fim de que não houvesse julgamento. Mário e Escauro não estavam em condições de garantir que o julgamento não provocasse ainda mais violência. Claro que acabou por ser Sila a resolver o dilema, recorrendo ao assassínio. Sila era o braço direito de Mário nesses tempos — muito rápido, perspicaz e cruel. Quinze homens morreram, não houve julgamentos incendiários, a frota cerealífera chegou nos prazos previstos, Mário distribuiu os cereais a preços muito baixos, Roma ficou de barriga cheia e, mais tarde, Ceva, o escravo, ficou com os louros do assassínio daqueles quinze homens.
Labieno franziu muito o sobrolho, juntou mais água ao vinho. — Daria tudo para saber qual é a tua ideia, César...
— Eu sei qual é a minha ideia, Labieno, e isso é que importa — retorquiu César, sorrindo e revelando os dentes cerrados. — Pensa um pouco nesse exemplo dúbio de oportunismo, relativamente recente, a que chamamos senatus consultum de ré publica defendendo — ou, para usar a engenhosa terminologia de Cícero, Senatus Consultum Ultimum. Inventado pelo Senado quando ninguém queria que fosse nomeado um ditador para tomar as decisões. E, de facto, serviu os objectivos do Senado face a Caio Graco, por exemplo. Isto para não falar de Saturnino, Lépido e outros.
— Continuo sem entender qual é a tua ideia — disse Labieno. César respirou fundo. — E agora, Labieno, eis-nos de novo
confrontados com o Senatus Consultum Ultimum. Mas repara bem no que lhe aconteceu! Na mente de Cícero, esse decreto tornou-se respeitável, inevitável e extremamente conveniente. Cícero conseguiu levar o Senado a aprová-lo e usou-o depois para escarnecer da constituição e da mós maiorum! Sem proceder a nenhuma alteração legal, Cícero usou o seu Senatus Consultum Ultimum para esmagar traqueias romanas e partir pescoços romanos sem qualquer julgamento...! Sem qualquer cerimónia! Sem respeitar sequer as mais básicas normas da decência! Aqueles homens morreram mais depressa do que soldados derrotados numa batalha! E não morreram esmagados sob uma chuva de telhas, como os outros, que foram executados por processos não oficiais... Eles morreram com o total assentimento do Senado de Roma’ O Senado, a instâncias de Cícero, assumiu as funções de juiz e de júri! Que achas que pensou aquela multidão que assistiu a tudo do Fórum? Vou dizer-te o que pensaram aqueles homens. Pensaram que, a partir de hoje, nenhum cidadão romano poderá ter a certeza de que lhe será concedido o direito, absolutamente inalienável, de ser julgado antes de ser condenado. E aquele homem pretensamente brilhante, aquele imbecil presunçoso e irresponsável que dá pelo nome de Cícero pensa —pensa mesmo! — que salvou o Senado de uma situação muito difícil, seguindo o melhor caminho, o caminho mais adequado! Concedo a Cícero que, para o Senado, foi o caminho mais fácil. Mas, para a vasta maioria dos cidadãos romanos, desde a Primeira Classe aos proletarii, aquilo que Cícero engendrou hoje significa a morte de um direito inalienável, já que, a qualquer momento, o Senado poderá decidir, graças a um novo Senatus Consultum Ultimam, que os homens romanos devem morrer sem julgamento, isto é, sem que a lei seja efectivamente aplicada! E teremos nós alguma garantia de que isto não voltará a acontecer? Que garantias temos nós agora, Labieno?
De súbito ofegante, Labieno conseguiu arrumar a taça sobre a mesa sem derramar o seu conteúdo; depois, olhou para César como se nunca o tivesse visto antes. Porque via César tantas ramificações que ninguém detectara? Porque é que ele, Tito Labieno, não entendera melhor aquilo que Cícero de facto fizera? Por todos os deuses, nem Cícero tinha entendido! Apenas César. Aqueles que tinham votado contra a execução, tinham-no feito unicamente porque os seus corações não aprovavam, ou porque haviam buscado a verdade como cegos debatendo a natureza de um elefante.
— Esta manhã, quando falei, cometi um erro terrível — prosseguiu César, com a raiva estampada no rosto. — Decidi mostrar-me irónico, achei que não seria correcto da minha parte inflamar os sentimentos dos presentes. Decidi seguir uma linha inteligente e acentuar a insanidade da proposta de Cícero, falando do tempo dos reis e salientando que Cícero estava a ab-rogar a República, fazendo-nos regressar ao tempo dos reis. Mas a minha argumentação devia ter sido mais simples. Eu devia ter falado como se estivesse a explicar as coisas às crianças, devia ter enunciado, tão lentamente quanto possível, verdades que são evidentes. Mas considerei que os meus ouvintes eram homens crescidos, instruídos, com alguma inteligência, e por isso escolhi a ironia. Nunca me apercebi de que eles não entenderiam verdadeiramente o rumo dos meus argumentos, de que eles não perceberiam por que razão eu seguia esse rumo. Devia ter sido ainda mais directo do que estou a ser agora, mas não quis enervá-los porque pensei que a raiva os cegaria! Afinal, eles já estavam cegos e eu não tinha nada a perder! Não cometo erros frequentemente, mas cometi um esta manhã, Labieno. Repara só no caso de Catão! Ele era o único homem que eu sabia que me ia apoiar, ainda que me deteste. Estava praticamente seguro do seu apoio. E afinal que disse ele? Um monte de disparates. Mas o Senado decidiu segui-lo como se fosse um grupo de eunucos atrás de Magna Mater.
— Catão não é mais do que um rafeiro, daqueles que muito ladram mas nunca mordem.
— Não, Labieno, Catão é o pior tipo de imbecil que existe. Porque pensa que não é um imbecil.
-— Isso aplica-se a quase todos nós.
César ergueu as sobrancelhas. — Eu não sou um imbecil, Tito.
O Tito era para amaciar a dureza da resposta, obviamente. — Não tenho a menor dúvida, César — retorquiu Labieno. Por que raio é que ficava sem vontade de beber vinho, quando estava na companhia de um homem que não bebia? Labieno encheu a taça de água. — De nada vale chorar sobre leite derramado, César. Acredito em ti quando dizes que farás com que Cícero se arrependa de ter nascido. Mas como?
— É simples. Enfiar-lhe-ei o seu Senatus Consultum Ultimum por aquelas goelas douradas abaixo — retorquiu César, com um sorriso que não lhe chegava aos olhos.
— Mas como, César? Como?
— Restam-te quatro dias para concluíres o teu ano como tribuno da plebe, e esses quatro dias chegam, se actuarmos rapidamente. Amanhã, organizar-nos-emos e estudaremos cuidadosamente os nossos papéis. Depois de amanhã, será a primeira fase. Os dois dias seguintes serão reservados para a segunda e última fase. O caso não terá acabado então, mas já estará bastante adiantado. E tu, meu caro Tito Labieno, despedir-te-ás do teu tribunato na mais absoluta glória! Se não há mais nada que recomende o teu nome à posteridade, prometo-te que os acontecimentos dos próximos quatro dias chegarão para te assegurar um lugar na História de Roma!
— Que tenho de fazer?
— Esta noite, nada. Excepto, talvez... tens acesso a... não, é melhor não. Vou pôr a questão de uma forma diferente. Achas que consegues obter um busto ou uma estátua de Saturnino? Ou do teu tio Quinto Labieno?
— Consigo até melhor do que isso... — retorquiu prontamente Labieno. — Sei onde está uma imago de Saturnino.
— Uma imago? Mas ele nunca foi pretor!
— É verdade — disse Labieno, sorrindo satisfeito. — O problema dos grandes nobres, César, é que não fazem ideia de como é que os nossos cérebros funcionam, e quando digo nossos estou a referir-me a homens como eu, Picentinos, Samnitas, Homens Novos de Arpino e outros que tais, gente ambiciosa e empreendedora. Nós desesperamos de ver os nossos traços requintadamente retratados, o nosso rosto recriado em cera, com cabelo verdadeiro ainda por cima, da mesma cor que o nosso, e com o penteado que costumamos usar! Por isso, logo que temos o dinheiro suficiente, corremos furtivamente a um dos artífices do Velabro e encomendamos-lhe uma imago. Conheço homens que nunca estarão no Senado e que já têm imagines. Como é que achas que Mágio, o artífice do Velabro, enriqueceu?
— Bom, neste caso particular, estou muito contente pelo facto de vocês, os homens empreendedores de Piceno, encomendarem imagines — replicou César, muito animado. — Arranja então a máscara de Saturnino e um actor que seja capaz de a usar eficazmente.
— O tio Quinto também tinha uma imago, de modo que também posso contratar um actor para a usar. E também posso arranjar bustos dos dois.
— Nesse caso, não faças mais nada até amanhã de manhã, Labieno. Prometo-te que te darei muito trabalho até deixares o tribunato.
— E somos só nós dois?
— Não, seremos quatro — disse César, levantando-se para acompanhar Labieno à porta. — O meu plano precisa também de Metelo Célere e do meu primo Lúcio César.
O que não chegou para elucidar Tito Labieno, que deixou a Domus Publica intrigado, desconcertado, e sem saber se a curiosidade e a excitação o deixariam dormir naquela noite.
César não pensara sequer em dormir. Regressara ao seu gabinete, tão concentrado nos seus pensamentos que Eutico, o chefe dos criados, teve de tossicar várias vezes antes que ele desse pela sua presença.
— Ah, excelente! — disse o Pontifex Maximus. — Não estou para ninguém, Eutico! Nem mesmo para a minha mãe. Entendido?
— Edepol! — exclamou Eutico, as mãos gordinhas cobrindo as faces ainda mais gordas. — Domine, Júlia está ansiosa por falar contigo...!
— Dize-lhe que eu sei o que ela me quer dizer, e que falarei com ela o tempo que for preciso, mas só no primeiro dia do novo tribunato da plebe. Antes, não.
— César, a pobrezinha terá de esperar cinco dias...! Não creio que possa esperar tanto tempo...!
— Se eu dissesse que teria de esperar vinte anos, Júlia esperaria vinte anos — foi a fria resposta de César. — Cinco dias não são vinte anos. Todos os assuntos domésticos e familiares terão de esperar cinco dias. Júlia tem uma avó. Eu não sou a única pessoa a quem ela pode recorrer. Entendido?
— Sim, domine — murmurou o criado, fechando cuidadosamente a porta e encaminhando-se na ponta dos pés na direcção de Júlia. A jovem estava muito pálida e apertava as mãos nervosamente. — Sinto muito, Júlia, mas ele diz que não está para ninguém antes do dia em que os novos tribunos da plebe tomam posse.
— Não é possível...!
— É verdade, Júlia. Nem a mãe quer ver.
Nesse preciso instante, apareceu Aurélia, vinda do Atrium Vestae. Havia nos seus olhos uma dureza evidente e os lábios franziam-se de crispação. — Vem — disse ela a Júlia, conduzindo-a aos aposentos pertencentes à mãe do Pontifex Maximus.
— Ouviste o que Eutico disse, não ouviste? — disse Aurélia, obrigando-a a sentar-se.
— Eu nem acredito no que ouvi, avó...! — retorquiu Júlia, consternada. — Pedi para falar com o tatá, e ele respondeu que não!
Aurélia estava intrigada. — Disse que não? Que estranho...! Não é costume de César recusar-se a enfrentar factos ou pessoas...
— Eutico diz que ele não quer ver ninguém, avia. Nem mesmo contigo quer falar! Temos de esperar até ao dia da tomada de posse dos novos tribunos da plebe.
Com o cenho carregado, Aurélia nada respondeu. Por um momento, passeou pela sala. Com os olhos molhados, mas combatendo resolutamente as lágrimas, Júlia observava a avó. O problema, pensou Júlia, é que nós três somos completamente diferentes uns dos outros!
A mãe de Júlia morrera tinha ela sete anos. No fundo, Aurélia fora sua mãe e avó durante a maior parte da sua infância. Não muito acessível, perpetuamente ocupada, rigorosa e pouco dada a sentimentalismos, Aurélia dera-lhe, apesar disso, aquilo de que as crianças mais precisam: um sentimento inabalável de segurança e pertença. Embora não fosse muito de rir, Aurélia tinha um humor muito particular, capaz de se manifestar nos momentos mais inesperados; e não admirava menos a neta por esta adorar divertir-se. Nada faltara na educação daquela menina, desde os conselhos certos relativamente ao vestuário até um treino impiedoso em tudo o que se relacionasse com boas maneiras. Isto para não falar da forma fria, serena, e sem adornos de espécie nenhuma, como Aurélia ensinara Júlia a aceitar a sua sorte — e a aceitá-la airosamente, com orgulho, sem sentimentos de revolta, sem sombra de ressentimento.
Não vale a pena ansiar por um mundo diferente ou melhor tal era a moral de Aurélia.
Este mundo em que vivemos é o único que temos. Haverá razões para isso, mas as razões pouco interessam. E se este mundo é o único que temos, então devemos viver nele o mais agradavelmente e afortunadamente que pudermos. Não podemos lutar contra a Fortuna ou contra o “Destino.”
César não era nada parecido com a mãe, excepto na dureza; Júlia estava ciente de que, entre os dois, a fricção era uma ameaça constante; bastava um esboço de provocação para que o relacionamento entre mãe e filho se incendiasse. Mas, para a filha, César era o princípio e o fim desse mundo que Aurélia, por via de uma implacável disciplina, a levara a aceitar. Para Júlia, César não era um deus, mas era, sem dúvida, um herói. Para Júlia, ninguém era tão perfeito como o pai, nem tão brilhante, nem tão educado, espirituoso, belo, ideal, enfim, romano. Claro que ela conhecia bem as imperfeições dele (embora nunca fosse vítima delas), desde aquele génio terrível até àquilo que Júlia considerava o maior pecado do pai — a forma como brincava com as pessoas, tal e qual um gato brincando com um rato —, impiedoso e frio, e, ainda por cima, com um sorriso de intenso prazer no seu belo rosto.
— Há por certo um motivo muito importante para César não nos querer ver — disse Aurélia de súbito, parando de deambular pela sala. — Estou certa de que não é por receio de nos enfrentar. Só posso concluir que as razões dele não têm nada a ver connosco.
— E provavelmente não têm nada a ver com aquilo que, neste momento, ocupa as nossas mentes — disse Júlia, segura do que dizia.
O belo sorriso de Aurélia iluminou-lhe o rosto. — Estás cada vez mais perspicaz, Júlia. Tens toda a razão.
— Nesse caso, avó, e como ele não tem tempo para falar connosco, terei de falar contigo. É verdade o que eu ouvi no Porticus Margaritaria?
— Acerca do teu pai e Servília?
— É isso? Oh!
— Que pensavas que era, Júlia?
— Eu não consegui apanhar tudo, porque as pessoas se calaram mal me viram. Mas apercebi-me de que o tatá estava envolvido num grande escândalo com uma mulher e que foi tudo descoberto hoje no Senado.
— E foi mesmo... — disse Aurélia, irritada. E, sem rodeios, contou a Júlia todos os acontecimentos ocorridos no templo de Concórdia.
— O meu pai e a mãe de Bruto... — disse Júlia, lentamente. — Mas que trapalhada...! — e riu-se. — Que fechado que ele é, avó! Há tanto tempo que andava com ela e nem eu, nem Bruto, suspeitámos do que quer que fosse. Mas que raio é que o tatá vê naquela mulher?
— Nunca gostaste dela.
— Nunca!
— É compreensível. Estando, como estás, do lado de Bruto, nunca poderias gostar dela.
— E tu?
— Tendo em conta o que ela é, sim, até posso dizer que gosto dela.
— Mas o tatá disse-me que não gostava dela, e ele não mente.
— Sim, não há dúvida que o teu pai não gosta dela. Não entendo — nem quero entender! — o que o prende a ela. Mas estou certa de que é algo de muito forte.
— Imagino que ela deve ser óptima na cama.
— Júlia!
— Eu já não sou uma criança, avó! — disse Júlia com um risinho. — E além disso tenho ouvidos.
— Para aquilo que se diz nas lojas do Porticus Margaritaria?
— Não, para aquilo que se diz nos aposentos da minha madrasta. Aurélia pôs-se muito direita. — Da tua madrasta?! Garanto-te que vou pôr um ponto final nisso. E rapidamente.
— Não faças isso, avó! — exclamou Júlia, pondo a mão no braço da avó. — Não acuses a pobre Pompeia, porque a culpa não é dela, mas das amigas. Eu sei que ainda nem sou uma mulher, mas sempre me achei mais velha e mais inteligente que Pompeia. Ela faz lembrar um bonito cachorrinho de estimação. Fica para ali sentada a dar à cauda toda contente, ansiosa por agradar, por se integrar. E elas pagam-lhe com tormentos horríveis, as Clódias e Fúlvia, e Pompeia nem sequer se apercebe da crueldade delas. — Júlia fez uma pausa, ponderou no que ia dizer. — Eu adoro o tatá mais do que tudo neste mundo e não suporto que digam mal dele, mas uma coisa é certa — ele também é muito cruel com ela. Sim, eu sei porquê, sei muito bem porquê! Ela é demasiado estúpida para ele. Nunca se deviam ter casado.
— Eu fui a única responsável por esse casamento.
— E pelas melhores razões, avó, quanto a isso estou certa — disse Júlia, afectuosamente. Depois, suspirou. — Ah, mas preferia que tivesses escolhido uma mulher muito mais inteligente do que Pompeia Sila!
— Escolhi-a — disse Aurélia, com uma expressão triste — porque ela foi oferecida a César, e porque pensei que era essa a única maneira de impedir que o teu pai casasse com Servília.
Depois de terem coligido informações nos dias subsequentes, muitos foram os senadores que descobriram que tinham preferido não se demorar no baixo Fórum para assistirem à execução de Lêntulo Sura e dos outros conspiradores.
Um desses senadores foi o cônsul sénior eleito, Décimo Júnio Silano; outro foi o tribuno da plebe eleito, Marco Pórcio Catão.
Silano chegou a casa mais rapidamente do que Catão, cujo avanço foi retardado por gente que desejava congratulá-lo pelo seu discurso e pela sua oposição à brandura de César.
O facto de ter sido obrigado a abrir a porta da frente preparou Silano para o que encontrou lá dentro: um atrium deserto e nem sinal de criados. O que significava que todos os criados sabiam já do que acontecera durante os debates. E Servília, saberia? E Bruto? Com o rosto contraído, porque as dores nas entranhas continuavam a atormentá-lo, Silano obrigou as pernas a aguentá-lo e dirigiu-se imediatamente à sala de estar da mulher.
Servília estava lá, examinando algumas contas de Bruto. Olhou para ele com uma expressão de mera irritação
— Sim, o que é? — resmungou.
— Então não sabes — disse ele.
— Não sei o quê?
— Que a tua mensagem para César foi ter às mãos erradas. Os olhos dela abriram-se muito. — Que queres dizer?
— O criado que costumas escolher para levar as tuas mensagens, porque é o mais inteligente dos bajuladores, revelou afinal que não tinha muita massa cinzenta naquela cabeça — disse Silano, num tom brutal, que Servília nunca lhe ouvira. — Entrou no templo de Concórdia todo importante e nem sequer teve o bom senso de esperar. Entregou a tua nota a César no pior momento possível. Precisamente quando o teu estimado meio-irmão acusava César de ser o cérebro da conspiração de Catilina. Ao ver que César estava ansioso por ler a mensagem, Catão exigiu que César a lesse em voz alta, perante todo o Senado. Catão pensava que a tua mensagem continha provas da traição de César.
— E César leu-a em voz alta — disse Servília, num tom inexpressivo.
— Ora, minha querida, não me digas que conheces tão mal César, depois de tanta intimidade com ele...! — disse Silano, com um ar de troça. — César será tudo menos grosseiro e inseguro. Não, se alguém saiu vitorioso da contenda, esse alguém foi César. Tinha de ser César! Limitou-se a sorrir para Catão e comentou que ele talvez preferisse que o conteúdo da mensagem não se tornasse público. Levantou-se e entregou a nota a Catão, com um ar tão cortês, tão afável... sim, não há dúvida que César se saiu muito bem...!
— Nesse caso, de que modo é que a minha privacidade foi exposta? — murmurou Servília.
— Catão nem acreditava no que os seus olhos viam. Demorou um tempo infindo a ler aquelas poucas palavras, enquanto todos esperávamos com a respiração suspensa. Por fim, fez da folha uma bola e atirou-a a César como se fosse um projéctil. Só que a distância era demasiado grande. Filipe apanhou a bola do chão e leu. Depois, passou-a pelos pretores eleitos, até que a mensagem chegou ao estrado curul.
— E riram-se a bom rir, não foi? — disse Servília, entre dentes. — Ah, claro que se riram!
— Pippina — troçou ele.
Outra mulher ter-se-ia retraído. Mas não Servília. — Imbecis! — rosnou.
— Era tal a hilaridade, que Cícero teve a maior dificuldade em fazer-se ouvir quando propôs uma divisão.
Apesar da aflição que sentia, Servília não resistiu à sua avidez por política. — Uma divisão? Para quê?
— Para decidir da sorte dos conspiradores que foram presos. Coitados... Execução ou exílio. Votei a favor da execução, foi isso que a tua nota me obrigou a fazer. César defendeu o exílio e o Senado esteve do seu lado até que Catão se levantou e defendeu a execução. E Catão levou toda a gente atrás dele. O resultado da votação foi favorável à execução. Graças a ti, Servília. Se a tua mensagem não tivesse silenciado Catão, ele teria arengado até ao pôr do Sol e a votação só teria decorrido amanhã. E julgo que amanhã o Senado já teria entendido que a razão estava do lado de César. Se eu fosse César, minha querida, cortar-te-ia aos bocadinhos e atirar-te-ia aos lobos.
Este comentário desconcertou-a, mas o seu desprezo por Silano levou-a a ignorá-lo. — Quando são as execuções?
— Estão a decorrer neste preciso momento. Achei melhor vir para casa e avisar-te de que Catão pode aparecer a qualquer momento.
Servília ergueu-se num repente. — Bruto!
Mas Silano, não sem satisfação, apercebera-se dos ruídos que vinham do atrium; com um sorriso corrosivo, disse-lhe: — Demasiado tarde, minha querida, demasiado tarde. Catão já chegou.
Servília ainda avançou na direcção da porta, mas teve de parar, pois Catão irrompeu nesse instante pela sala, com o indicador e o polegar da mão direita furiosamente fincados na orelha de Bruto.
— Anda, anda vê-la, anda ver a rameira da tua mãe! — berrou Catão, largando-lhe a orelha e empurrando-o com tanta força que o pobre rapaz tropeçou e teria caído se Silano não o tivesse agarrado. O rapaz parecia tão estarrecido e espantado que, provavelmente, não fazia ainda a mínima ideia do que acontecera, pensou Silano enquanto se afastava.
Que estranho sentimento é este?, perguntou depois Silano para si mesmo. Porque vim eu para este canto da sala, tão deliciado com isto, tão desejoso de vingança? Hoje, o meu mundo ficou a saber que não passo de um cornudo; e, no entanto, acho isso muito menos importante do que este castigo delicioso, do que esta punição tão merecida que se abate sobre a minha mulher. Não encontro razões para censurar César. Foi ela, eu sei que foi ela. Ele não liga às esposas dos homens que não o irritam politicamente, e, até agora, eu nunca o irritei politicamente. Foi ela, eu sei que foi ela. Ela queria-o, ela perseguia-o. Foi por isso que ofereceu Bruto à filha dele! Para manter César na família. César nunca se casaria com ela e Servília esqueceu o seu orgulho — um verdadeiro feito, para ela...! E agora, Catão, o homem que ela mais odeia em todo o mundo, conhece as suas duas paixões — Bruto e César. Os dias de paz e de prazer acabaram para Servília. A partir de agora, será uma guerra terrível, tal e qual como na sua infância. Ah, ela acabará por vencer! Mas quantos viverão para assistir ao seu triunfo? Eu não viverei, o que me deixa profundamente contente. Peço a todos os deuses que me levem primeiro.
— Olha, olha para ela, a rameira da tua mãe! — berrou de novo Catão, batendo violentamente na cabeça de Bruto.
— Que se passa, mamã? — choramingou Bruto, com um zumbido nos ouvidos e os olhos molhados.
— Mamã...! Mamã...! — imitou Catão, escarnecendo do sobrinho. — Que parvalhão que tu és, Bruto...! Tal e qual um cãozinho de colo...! Um arremedo de homem...! Bruto, o bebé, Bruto, o pateta! Mamã...! Mamã...! — e, enquanto falava, continuava a bater violentamente na cabeça de Bruto.
Servília moveu-se com a velocidade e o jeito de uma cobra no momento do ataque, resolutamente na direcção de Catão, e tão subitamente que já o tinha atingido antes que ele pudesse desviar a sua atenção de Bruto. Meteu-se entre os dois com as mãos erguidas, transformadas em garras, e cravou as suas unhas na carne dele como se fossem anzóis na boca de um peixe. Se ele não tivesse fechado instintivamente os olhos, Servília tê-lo-ia cegado; mas as suas garras desceram como um ancinho desde a testa até à boca e prosseguiram como uma goiva até ao pescoço e aos ombros.
Embora fosse um grande guerreiro, Catão recuou, sufocando os gemidos de dor, enquanto os seus olhos se abriam para ver a criatura mais aterradora que alguma vez haviam visto, uma criatura cujos lábios pareciam ter-se despegado dos dentes e cujos olhos faiscavam de ânsias assassinas. Depois, perante os olhos esbugalhados do filho, do marido e do meio-irmão, Servília ergueu os dedos ensaguentados e, voluptuosamente, comeu a carne que vinha agarrada. Silano, nauseado, fugiu. Bruto desmaiou. E Catão ficou a olhar para ela entre rios de sangue.
— Desaparece e nunca mais voltes — disse ela, num tom absolutamente calmo.
— O teu filho acabará por ser meu! Não duvides!
— Experimenta, Catão, e aquilo que te fiz hoje parecer-te-á o beijo de uma borboleta.
— És um monstro!
— Está bem, sou um monstro. Mas agora desaparece, Catão. Catão desapareceu, protegendo o rosto e o pescoço com as dobras da toga.
Mas porque é que eu não lhe disse que fui eu que mandei matar Cepião?
perguntou-se Servília enquanto se agachava junto do filho inanimado.
Não faz mal
disse para si mesma, enquanto limpava os dedos, antes de tentar acordar Bruto.
Fica para uma próxima ocasião.
Bruto recuperou os sentidos lentamente, talvez porque, na sua mente, predominava o mais absoluto terror em relação à sua mãe, aquela mulher que era capaz de comer, com prazer, a carne de Catão. Mas não teve outra hipótese senão abrir os olhos e fitar aquela criatura que era sua mãe.
— Levanta-te e senta-te no divã. Bruto levantou-se e sentou-se no divã.
— Sabes por que razão houve este barulho todo?
— Não, mamã — murmurou ele.
— Não pensaste nada quando Catão me chamou rameira?
— Não, mamã — murmurou ele.
— Eu não sou uma rameira, Bruto.
— Não, mamã.
— No entanto — disse Servília, sentando-se numa cadeira que não estava muito longe de Bruto; se precisasse, poderia ir rapidamente para junto dele —, tu já tens idade suficiente para entender as coisas da vida. Por isso, creio que é tempo de te elucidar acerca de certos assuntos. A razão de todo este alvoroço — prosseguiu ela, como se estivesse a ter a mais normal das conversas — é que, há já alguns anos, o pai de Júlia é meu amante.
Bruto inclinou-se para a frente e mergulhou a cabeça nas mãos, absolutamente incapaz de raciocinar, uma desamparada massa de aflição, dor e perplexidade. Primeiro, tudo o que se passara em Concórdia, enquanto ele tentava escutar, junto às portas do templo — depois, uma breve conversa com a mãe, contando-lhe o que sabia — depois, um intervalo abençoado, dedicado à leitura de Fábio Pictor — depois, a súbita aparição do tio Catão, que o levou pela orelha à presença da mãe — depois, o tio Catão aos gritos com a mãe — depois, a mamã atacando o tio Catão, e — e — Aquela cena horrenda de novo o afligia; e Bruto tremia, tiritava, e chorava desoladamente, as lágrimas ocultas pelas mãos.
E agora isto. A mamã e César eram amantes. Há anos que eram amantes. Que sentia ele? Que deveria sentir? Bruto gostava que o guiassem, que o orientassem; odiava aquela sensação de desorientação, aquela sensação de que tinha de tomar uma decisão — em particular uma decisão envolvendo emoções — sem saber de que modo homens como Platão e Aristóteles teriam reagido perante aquelas entidades ingovernáveis, ilógicas, enganadoras. De algum modo, parecia não ser capaz de sentir o que quer que fosse. Tudo o que se passara entre a mamã e o tio Catão fora por causa daquilo? Mas porquê? A mamã guiava-se pelos seus próprios princípios; com certeza que o tio Catão sabia disso. Se a mamã resolvera ter um amante, por certo teria boas razões para o ter feito. E se César era o amante da mamã, com certeza haveria boas razões para que assim fosse. A mamã nada fazia sem que houvesse uma boa razão para o fazer. Nada!
Bruto não conseguira ir mais longe do que isso quando Servília, cansada daquele choro silencioso, decidiu falar. — Catão — disse ela — não é bom da cabeça, Bruto. Nunca foi, nem mesmo em bebé. Mormolice atacou-o em criança. E não melhorou nada com a passagem do tempo. É obtuso, tacanho, fanático e incrivelmente complacente. O que eu faço ou deixo de fazer com a minha vida não lhe diz respeito. Tal como a tua vida não lhe diz respeito.
— Nunca me apercebi de que o odiavas tanto! — disse Bruto, erguendo o rosto. — Mamã, deixaste-o marcado para toda a vida! Para toda a vida!
— Óptimo! — disse ela, sinceramente satisfeita. Depois, os seus olhos aperceberam-se da desoladora imagem que tinha à sua frente; estremeceu. Por causa das borbulhas, Bruto não podia barbear-se. Tinha de contentar-se com um desbaste da densa barba escura; com aquelas borbulhas enormes e o ranho espalhado por toda a cara, não era só feio. Era aterrador. Servília pegou num pequeno pano macio que estava junto às garrafas de vinho e água; atirou-lho. — Limpa a cara e assoa-te, Bruto! Não concordo com as críticas que Catão te faz, mas há momentos em que me decepcionas profundamente!
— Eu sei — murmurou ele. — Eu sei.
— Ah, deixa lá! — disse ela, com um ar animado. Levantou-se, abeirou-se dele, pôs-lhe o braço sobre os ombros. — Tens a melhor linhagem, és rico, és instruído, tens influência. E ainda não fizeste vinte e um anos. Com o tempo melhorarás, meu filho. Ao contrário de Catão. Nada poderá melhorá-lo.
O braço dela, sentia-o Bruto como um cilindro de chumbo quente; contudo, não se atreveu a libertar-se do abraço. Endireitou-se um pouco. — Posso ir, mamã?
— Podes, desde que me digas que compreendeste a minha posição.
— Eu compreendo, mamã.
— O que eu faço ou deixo de fazer, é comigo, Bruto. Não me passa sequer pela cabeça oferecer-te uma desculpa que seja para justificar o meu relacionamento com César. Silano sabe. Sabe há muito tempo. E é lógico que César, Silano e eu tenhamos preferido guardar segredo.
Uma luzinha brilhou na mente de Bruto. — Tércia! — disse ele, espantado. — Tércia é filha de César! Parece-se tanto com Júlia...!
Servília olhou para o filho com alguma admiração. — Que perspicaz, Bruto! Sim, Tércia é filha de César.
— E Silano sabe.
— Desde o princípio.
— Pobre Silano!
— Não desperdices a tua compaixão com pessoas que não a merecem.
Uma frágil centelha de coragem acendeu-se no peito de Bruto. — E César? — perguntou. — Ama-lo?
— Mais do que tudo neste mundo, tirando o meu filho, é claro.
— Oh, pobre César! — disse Bruto, e fugiu antes que ela pudesse reagir, o coração batendo mais depressa por ter ousado dizer aquilo.
Silano havia tomado todas as providências para que o único filho varão de Servília tivesse vastos e confortáveis aposentos, com uma agradável vista para o peristilo. Foi para aí que Bruto fugiu, mas não esteve lá muito tempo. Depois de ter lavado a cara, de ter reduzido a barba a um restolho mínimo, de se ter penteado e chamado o criado para o ajudar a vestir a toga, deixou a casa de Silano. Mas não se aventurou sozinho pelas ruas de Roma. Como a noite já tinha caído, ordenou a dois escravos que o escoltassem com archotes.
— Posso ver Júlia, Eutico? — perguntou ele, quando lhe abriram a porta da casa de César.
— Já é muito tarde, domine, mas vou ver se ela ainda está acordada — respondeu respeitosamente o criado, deixando-o entrar.
Claro que Júlia o veria; Bruto subiu a correr as escadas e bateu à porta dos aposentos dela.
Júlia abriu a porta e puxou-o para ela e abraçou-o, o rosto colado ao cabelo dele. A mais intensa paz e uma infinita calidez penetraram no corpo de Bruto, desde a pele até aos ossos; Bruto compreendia finalmente o que algumas pessoas queriam dizer quando afirmavam que não havia nada de tão delicioso como o regresso a casa. E a casa era Júlia. O seu amor por ela era uma fonte violenta, uma nascente imparável; as lágrimas deslizavam sob as suas pálpebras fechadas, movidas por uma alegria purificadora; estreitou-a nos seus braços, sentiu o cheiro dela, tão delicado como tudo nela. Júlia, Júlia, Júlia...
Sem premeditação, as mãos dele deslizaram pelas costas de Júlia; depois ergueu a cabeça e procurou a boca dela com a sua boca, tão atrapalhada e desajeitadamente que, quando ela percebeu a sua intenção, já era demasiado tarde para se afastar dele; e Júlia não queria ferir os sentimentos de Bruto. Foi com compaixão que acolheu o primeiro beijo dele; e, afinal, não era tão desagradável como chegara a temer, bem pelo contrário. Era agradável sentir os lábios dele, macios e secos; além disso, como tinha os olhos fechados, não podia ver a cara dele. E Bruto não procurou outras intimidades. Mais dois beijos, iguais ao primeiro, e depois libertou-a.
— Amo-te tanto, Júlia!
Que podia ela dizer, senão Eu também te amo, Bruto.
Depois, Júlia fê-lo entrar e sentar-se num divã, embora, obedecendo às regras do decoro, se fosse sentar numa cadeira a alguma distância dele e tivesse deixado a porta ligeiramente aberta.
A sala de estar de Júlia era bastante grande e, pelo menos aos olhos de Bruto, muito bela. A mão dela era visível em toda a decoração, e não era uma mão vulgar. Nos frescos, viam-se etéreas aves e delicadas flores, em cores pálidas, o mobiliário era gracioso e elegante, e não havia sinal de púrpura de Tiro, nem de douraduras.
— A tua mãe e o meu pai — disse ela.
— Que significado tem?
— Para eles, ou para nós?
— Para nós. Como podemos saber o que significa para eles?
— Suponho — disse ela, vagarosamente — que não nos afectará. Não há leis que os proíbam de se amar por nossa causa, embora creia que as pessoas os critiquem.
— A virtude da minha mãe está acima de qualquer censura e este caso não altera isso! — atirou-lhe Bruto, agressivamente defensivo.
— Claro que não altera. O meu pai representa uma circunstância única na vida da tua mãe. Servília não é nenhuma Pala ou Semprónia.
— Oh, Júlia, és maravilhosa... Compreendes sempre tudo!
— Compreender o meu pai e a tua mãe é fácil, Bruto. O meu pai não tem comparação entre os homens, tal como a tua mãe é um caso singular entre as mulheres. — Júlia encolheu os ombros. — Quem sabe? Talvez a ligação entre os dois fosse inevitável, tendo em conta o tipo de pessoas que eles são.
— Temos uma meia-irmã em comum — disse Bruto inopinadamente. — Tércia é filha do teu pai, e não de Silano.
Júlia ficou muito quieta, embasbacada, mas logo desatou a rir, deliciada. — Ah, com que então tenho uma irmã...! Que bom...!
— Não, Júlia, não digas isso! Nenhum de nós pode admitir que ela é tua irmã! Nem mesmo no seio das nossas famílias!
O sorriso dela esbateu-se. — Ah, pois... Sim, claro que tens razão, Bruto. — Os seus olhos molharam-se, mas as lágrimas foram contidas. — Não posso dar-lhe a entender que ela é minha irmã. Nunca. Mesmo assim — acrescentou, já mais animada —, uma coisa é certa: eu sei que ela é minha irmã.
— Embora seja parecida contigo fisicamente, tem um temperamento completamente diferente do teu. A esse nível, é tal e qual a minha mãe.
— Que disparate, Bruto! Como podes dizer isso se a menina só tem quatro anos...?
— É fácil — disse Bruto, com um ar sombrio. — Ela casará com Caio Cássio, porque a mãe dele e a minha mãe compararam os nossos horóscopos. As nossas vidas estão intimamente ligadas através de Tércia.
— E Cássio não poderá saber. Nunca.
Bruto sorriu, um sorriso escarninho. — Não sejas tão inocente, Júlia! Achas que não lho vão dizer? Mas não creio que isso o afecte, pois o sangue de César é melhor do que o de Silano.
Esta última observação era típica de Servília!, pensou Júlia. Desviou o rumo da conversa, regressando ao tema inicial. — Falemos dos nossos pais — disse ela.
— Achas que a ligação entre eles não nos afectará?
— Afectar, é natural que afecte. Mas acho que devemos ignorá-la.
— Pois é isso que faremos — disse ele, levantando-se. — Tenho de ir, já é muito tarde. — Ao chegar à porta, pegou na mão dela, ergueu-a, beijou-a. — Dentro de quatro anos, estaremos casados. É difícil esperar, mas Platão diz que a espera enobrecerá a nossa união.
— Dize mesmo? — perguntou Júlia, surpresa. — Não devo ter lido essa parte.
— Quer dizer, é uma interpretação minha do texto de Platão.
— Eu sei que é. Já me apercebi de que os homens têm uma grande capacidade interpretativa.
Estava a noite prestes a despedir-se quando Tito Labieno, Quinto Cecílio Metelo Célere e Lúcio Júlio César chegaram à Domus Publica. César estava bem acordado e, pelos vistos, o facto de não ter dormido não o afectara. Ao fundo da sala, numa mesinha, havia água, vinho doce, pão acabado de cozer, azeite virgem e um mel excelente do Himeto; César esperou pacientemente que os convidados se servissem, após o que bebeu qualquer coisa de quente, mas nada comeu.
— Que estás a beber? — perguntou Metelo Célere, curioso.
— Água muito quente com um pouco de vinagre.
— Por todos os deuses...! Que coisa horrenda!
— É uma questão de hábito — retorquiu tranquilamente César.
— E porque há-de uma pessoa habituar-se a isso?
— Por duas razões. Em primeiro lugar, porque creio que é bom para a minha saúde, que tenciono manter a um nível excelente até à velhice. Em segundo lugar, porque prepara o meu paladar para todo o tipo de ofensas, desde o azeite rançoso ao pão bolorento.
— Percebo a primeira razão, César. Mas só vejo vantagens na segunda para quem siga a filosofia estóica. Ou seja, para quem tenha de se submeter toda a vida a uma dieta miserável...
— Bom, isso acontece frequentemente em campanha... Pelo menos, acontece-me a mim, quando estou em campanha. Pompeu Magno tratou-te melhor, Célere?
— Também era o que mais faltava...! Aliás, todos os generais sob cujas ordens servi me trataram melhor do que isso...! Espero não fazer nenhuma campanha contigo...!
— Bom, no Inverno e na Primavera a bebida não é tão má. Substituo o vinagre por sumo de limão.
Célere fez um trejeito nauseado. Labieno e Lúcio César riram-se.
— Bom, é tempo de tratarmos do que interessa — disse César, sentando-se atrás da secretária. — Desculpem a minha pose de patrono, mas parece-me mais lógico sentar-me num local de onde vos possa ver a todos e onde todos possam ver-me.
— Estás desculpado — disse Lúcio César, gravemente.
— Tito Labieno esteve aqui a noite passada e por isso conheço já os motivos que o levaram a votar comigo ontem — disse César. — E compreendo perfeitamente porque votaste comigo, Lúcio. Contudo, não conheço inteiramente os teus motivos, Célere. Explica-nos agora.
Marido resignado da sua prima direita, Clódias, Metelo Célere era também cunhado de Pompeu, o Grande, já que a mãe de Célere e do seu irmão mais novo, Metelo Nepos, era também a mãe de Múcia Tércia. Irmãos dedicados, Célere e Nepos eram amados e estimados, pois eram homens encantadores e muito dados ao convívio.
Aos olhos de César, Célere nunca parecera particularmente radical nas suas inclinações políticas; até agora, fora respeitavelmente conservador. A resposta dele seria essencial para o êxito do seu plano; só com o apoio firme de Célere, conseguiria levá-lo a bom termo.
Com uma expressão sombria no seu belo rosto, Célere inclinou-se um pouco para a frente, os punhos cerrados. — Para começar, César, desaprovo que arrivistas como Cícero ditem o rumo político a Romanos genuínos. Nunca concordarei com a execução de cidadãos romanos sem julgamento! Não deixei de reparar que o grande aliado de Cícero acabou por ser Catão, dos Salonianos, que também não é propriamente um Romano. Que vai ser de nós quando aqueles que se arrogam o direito de interpretar as nossas leis são descendentes de escravos ou labregos sem antepassados valorosos?
Uma resposta que — e Célere dar-se-ia conta disso? —, que também englobava Pompeu, o Grande, seu parente por casamento.
Contudo, nenhum dos presentes cometeria o erro de mencionar tal facto; todos fizeram o que era conveniente — ignoraram-no.
— Que podes tu fazer, Caio? — perguntou Lúcio César.
— Muitas coisas. Labieno, desculpar-me-ás se eu recapitular o que te disse a noite passada. Nomeadamente, aquilo que Cícero realmente fez. A execução de cidadãos sem julgamento não é o ponto crucial da questão, mas antes uma consequência. O verdadeiro crime reside na interpretação que Cícero faz do senatus consultum de ré publica defendendo. Não acredito que este decreto extremo alguma vez fosse entendido como uma capa protectora, susceptível de permitir ao Senado — ou a qualquer outra instituição romana — que fizesse o que muito bem lhe apetecesse. Mas essa é precisamente a interpretação de Cícero.
O senatus consultum de ré publica defendendo foi criado para lidar com uma perturbação civil de curta duração: os conflitos provocados por Caio Graco. O mesmo pode ser dito da sua utilização durante a revolução de Saturnino, embora as suas imperfeições se tenham tornado mais óbvias nessa altura do que quando foi criado. Este decreto foi invocado por Carbão contra Sila quando este desembarcou na Itália, e também contra Lépido. No caso de Lépido, foi reforçado pela constituição de Sila, que deu ao Senado todos os poderes em todos os assuntos relacionados com a guerra, o que englobaria as perturbações civis. O Senado preferiu usar o termo guerra no caso de Lépido.
Hoje, porém, a situação é diferente. O Senado encontra-se de novo limitado pelos três Comitia. Por outro lado, nenhum dos cinco homens que foram executados a noite passada comandou tropas armadas contra Roma. Na realidade, nenhum deles empunhou sequer uma espada contra cidadãos romanos, excepto quando Cepário resistiu, a meio da noite, na Ponte Múlvia. Contudo, Cepário pode muito bem ter pensado que estava a ser alvo de um ataque de bandidos ou assaltantes. Nenhum deles foi declarado inimigo público. E, sejam quais forem os argumentos avançados para provar as suas intenções traiçoeiras, mesmo agora, depois da sua morte, as suas intenções continuam a ser apenas isso — intenções. Intenções e não actos concretos! As cartas eram cartas de intenção, escritas antes dos eventuais factos.
Quem poderá dizer como teriam reagido quando vissem Catilina às portas de Roma? E com Catilina longe de Roma, que aconteceu à intenção desses homens de matarem os cônsules e pretores? Dois homens — e nenhum deles foi executado! — terão tentado entrar em casa de Cícero para o assassinar. Contudo, os nossos cônsules e pretores continuam vivos e sãos! Não têm nem um arranhão...! Será que um cidadão romano pode ser executado sem julgamento e unicamente por causa das suas intenções?
— Ah, quem me dera que tivesses dito isso ontem...! — exclamou Célere.
— Era o que eu devia ter dito, de facto. Contudo, duvido que houvesse argumentos capazes de demover a maioria dos senadores, depois de Catão se ter lançado na sua longa arenga. Apesar de todos os seus apelos para que os discursos fossem breves, Cícero nem sequer tentou deter Catão. Teria sido bom que Catão continuasse até ao pôr do Sol.
— A culpa foi de Servília — disse Lúcio César, mencionando o que não se devia mencionar.
— Eu sei — disse César, de lábios cerrados.
— Bom, se planeias matá-la, não lho digas numa carta — disse Célere, com um sorriso malicioso. — Actualmente, para uma pessoa ser condenada, bastam as intenções.
— É precisamente nesse ponto que eu quero insistir. Cícero converteu o Senatus Consultum Ultimum num monstro que se pode virar contra qualquer um de nós.
— Não estou a ver o que podemos fazer, agora que o mal está feito — disse Labieno.
— Podemos virar o monstro contra Cícero, o qual — quanto a isso não tenho dúvidas — está neste momento a pensar na melhor maneira de levar o Senado a ratificar as suas pretensões ao título de pater patriae — disse César. — Ele diz que salvou o país, ao passo que eu defendo que o país não se encontra realmente em perigo, apesar de Catilina e do seu exército. Se há revolução condenada, esta é uma delas. Lépido, pelo contrário, era uma ameaça sinistra. A insurreição de Catilina não passa de uma brincadeira: o problema é que alguns bons soldados romanos vão ter de morrer para abafar essa insurreição.
— Que tencionas fazer? — perguntou Labieno. — Que podes fazer?
— Tenciono desacreditar todo o conceito que enforma o Senatus Consultum Ultimum. Tenciono processar por alta traição uma pessoa que agiu sob a protecção dessa lei — retorquiu César.
— Cícero? — perguntou Lúcio César, estupefacto.
— Todos menos Cícero — ou Catão, já agora. Ainda é demasiado cedo para tentar qualquer retaliação contra os homens envolvidos nesta última versão do Senatus Consultum Ultimum. Acabaríamos de pescoço partido, como os outros. Não. Acusaremos alguém bem conhecido por ter agido criminosamente sob um Senatus Consultum Ultimum anterior. Cícero fez-nos o favor de nomear a nossa presa no Senado. Caio Rabírio.
Os outros abriram muito os olhos ao ouvir aquilo, mas, durante um bocado, nenhum deles falou.
— Com certeza que estás a pensar em homicídio — disse Célere por fim. — Caio Rabírio foi, sem a mínima dúvida, um dos que subiram ao telhado da Cúria Hostília, mas isso não foi traição. Foi homicídio.
— Não é isso o que a lei diz, Célere. Pensa um pouco. O assassínio torna-se traição quando é cometido para usurpar as prerrogativas legais do Estado. Portanto, o assassínio de um cidadão romano à espera de julgamento por alta traição é, também ele, um acto de traição.
— Começo a entender o rumo que pretendes seguir — disse Labieno, com um brilho nos olhos. — Mas não vais conseguir levar o caso a tribunal.
— Perduellio não é crime para os tribunais, Labieno. É a Assembleia das Centúrias que o julga — disse César.
— Também não conseguirás levar o caso à Assembleia das Centúrias. Nem mesmo com Célere como pretor urbano.
— Discordo. Há uma forma de levar o caso às Centúrias. Começamos com um processo muito mais velho do que a República, embora previsto por uma lei tão romana como qualquer lei da República. Está tudo nos documentos antigos, meu amigo. Nem mesmo Cícero conseguirá contestar a legalidade do que fizermos. Só poderá contestá-la enviando-a para as Centúrias.
— Esclarece-me, César, pois sou um ignorante no que toca às leis antigas — disse Célere, começando a sorrir.
— Tu tornaste-te famoso por seres um pretor urbano que cumpre escrupulosamente os seus éditos — disse César, decidindo manter a sua audiência em suspenso por mais algum tempo. — Um dos teus éditos diz que concordarás em julgar qualquer cidadão, se o seu accusator agir dentro da lei. Amanhã, ao nascer do dia, Tito Labieno comparecerá no teu tribunal e pedirá que Caio Rabírio seja julgado perduellionis pelo assassínio de Saturnino e Quinto Labieno, segundo a forma definida durante o reinado de Tulo Hostílio. Examinarás a proposta dele e, como és um indivíduo avisado, terás na tua secretária uma cópia da minha dissertação sobre os julgamentos por alta traição no tempo dos reis... Esse documento confirmará que a diligência de Labieno, tendo em vista a acusação de Rabírio por perduellio, é integralmente apoiada pela lei.
A audiência estava fascinada; César bebeu o que restava da sua água com vinagre, agora já tépida, e prosseguiu.
— Os procedimentos do único julgamento do reinado de Tulo Hostílio que chegou até nós — o julgamento de Horácio pelo assassínio da irmã —, incluem uma audiência perante dois juizes. Apenas dois juizes. Actualmente, há em Roma apenas quatro homens que podem ocupar esses dois lugares, porque descendem de famílias representadas entre os Patres na época em que esse julgamento decorreu. Eu e tu, Lúcio. O terceiro é Catilina, oficialmente um inimigo público. E o quarto é Fábio Sanga, que vai a caminho das terras dos Alóbroges, na companhia dos seus clientes. Portanto, tu, Célere, nomear-nos-ás, a mim e a Lúcio, juizes, e ordenarás que o julgamento se realize imediatamente no Campo de Marte.
— Estás completamente certo, quanto às famílias representadas entre os Patres nessa época? — perguntou Célere, franzindo muito o sobrolho. — Há documentos que referem que os Valérios já existiam nessa época. E os Servílios e os Quintílios vieram de Alba Longa depois da sua destruição, tal como os Júlios.
Lúcio César respondeu-lhe. — O julgamento de Horácio deu-se muito antes do saque de Alba Longa, o que desde logo exclui os Servílios e os Quintílios. Os Júlios emigraram para Roma quando Numa Pompílio ainda estava no trono. Foram banidos de Alba por Cluílio, que lhes usurpou o trono de Alba. Quanto aos Valérios — acrescentou Lúcio César, encolhendo os ombros —, eram sacerdotes militares, o que também os exclui.
— Estou esclarecido — disse Célere, rindo-se. — Pelos vistos, não passo de um vulgar Cecílio!
— Por vezes — disse César, entendendo a ironia — compensa ter antepassados, Quinto. Os Césares são os únicos que podem ser nomeados juizes. E ninguém — nem mesmo Cícero ou Catão — poderá contestar a tua escolha.
— Uma coisa é certa: isto vai causar sensação...! — disse Labieno, visivelmente satisfeito.
— Lá isso vai, Tito, lá isso vai.
— E Rabírio imitará Horácio, ou seja, recorrerá.
— Claro. Mas, primeiro, montaremos um belo espectáculo, usando para isso todos os elementos e adornos que os antigos usavam: a cruz, feita com a madeira de uma árvore aziaga, o poste bifurcado, a que eram presos os condenados a fim de serem açoitados, três lictores com as varas e as machadinhas, representando as três tribos romanas originais, o véu para a cabeça de Rabírio e as faixas rituais para lhe prender os pulsos — um teatro magnífico! Espínter morrerá de inveja.
— O problema — disse Labieno, de novo com um ar sombrio — é que eles recorrerão a todas as desculpas para atrasar o recurso de Rabírio às Centúrias... até que a indignação pública se esbata...! O caso Rabírio não será julgado enquanto Roma tiver bem viva na memória a sorte de Lêntulo Sura e dos outros quatro.
— Não podem fazer isso — disse César. — A lei antiga prevalece sobre tudo o mais e, por isso, o recurso tem de ser imediatamente julgado. Foi isso o que aconteceu ao recurso de Horácio.
— Entendo que condenemos Rabírio — disse Lúcio César. — Mas, quanto ao resto, primo, já perdi o norte. Qual é o teu objectivo?
-— Bom, em primeiro lugar, o nosso julgamento será muito diferente dos julgamentos modernos, como foram definidos por Gláucia. Aos olhos modernos, parecerá uma farsa. Os juizes decidem que provas querem ouvir. E, quando acham que já ouviram o suficiente, não admitem mais provas. Nós faremos isso depois de Labieno nos ter apresentado o seu caso. Recusaremos ao réu a possibilidade de apresentar provas em sua defesa. É vital que se veja que não foi feita justiça! Porque, afinal, que justiça foi feita no caso dos homens que ontem foram executados?
— E em segundo lugar? — perguntou Lúcio César.
— Em segundo lugar, o recurso transita imediatamente para as Centúrias. Quando o tiverem de julgar, as Centúrias estarão ainda em plena efervescência. E Cícero entrará em pânico. Se as Centúrias condenarem Rabírio, o pescoço de Cícero correrá sérios riscos. Cícero não é estúpido, apenas um pouco obtuso quando a sua presunção e a certeza de que tem razão levam a melhor sobre o seu discernimento. Quando souber o que estamos a fazer, compreenderá claramente por que razão o fazemos.
— Nesse caso — disse Célere —, se ainda lhe restar uma pinga de bom senso, correrá à Assembleia Popular e tentará fazer aprovar uma lei que invalide os procedimentos antigos.
— Sim, creio que será isso que ele tentará fazer. — César olhou para Labieno. — Reparei que Âmpio e Rulo votaram connosco, ontem, no templo de Concórdia. Achas que cooperarão connosco? Preciso de um veto na Assembleia Popular, mas tu estarás no Campus Martius, ocupado com o caso Rabírio. Achas que Âmpio ou Rulo estão dispostos a apoiar-nos e a exercer o seu direito de veto?
— Âmpio está, com toda a certeza, pois está comprometido comigo e ambos estamos comprometidos com Pompeu Magno. Mas creio que Rulo também cooperará. Rulo fará tudo o que for preciso para que Cícero e Catão sofram, pois acusa-os de terem destruído a sua lei fundiária.
— Será então Rulo a vetar, com o apoio de Âmpio. Cícero pedirá à Assembleia Popular que aprove uma lex rogata plus quam perfecta, a fim de que possa punir-nos legalmente por termos instituído os procedimentos antigos. Acrescento que ele terá de invocar o seu precioso Senatus Consultum Ultimum se quiser apressar a aprovação dessa lei — e, dessa forma, estará a chamar a atenção para esse decreto extremo, num momento em que não desejará outra coisa senão que esse Consultum seja queimado e esquecido. Mas Rulo e Âmpio interporão os seus vetos. Depois disso, quero que Rulo charuCícero à parte e lhe proponha um compromisso. O nosso cônsul sénior é uma alma tão temerosa que aceitará qualquer proposta susceptível de evitar a violência no Fórum — desde que lhe permita obter metade do que pretende.
— Devias ouvir o que Magno conta a respeito do comportamento de Cícero durante a Guerra Italiana — disse Labieno, com o maior desprezo. — O nosso heróico cônsul sénior desmaiou só de ver uma espada.
— Mas dize-me, César, que acordo é que Rulo procurará fazer? — perguntou Lúcio César, algo incomodado com Labieno, que considerava um mal necessário.
— Em primeiro lugar, terá de assegurar que a lei pretendida por Cícero não preveja qualquer acção legal contra nós. Em segundo lugar, será preciso que o recurso de Rabírio junto das Centúrias decorra no dia seguinte, a fim de que Labieno possa ser advogado de acusação ao mesmo tempo que é tribuno da plebe. Em terceiro lugar, que o recurso seja conduzido segundo as normas definidas por Gláucia. Em quarto lugar, que a sentença de morte seja substituída pelo exílio e por uma multa. — César suspirou profundamente. — E, em quinto lugar, que eu seja nomeado juiz nas Centúrias, sendo Célere o meu custos pessoal.
Célere desatou a rir. — Por Júpiter, César, que esquema inteligente!
— Porque havemos de alterar a sentença? — perguntou Labieno, ainda um tanto carrancudo. — As Centúrias não condenam um homem por perduellio desde a juventude de Rómulo.
— És excessivamente pessimista, Tito. — César entrelaçou as mãos sobre o tampo da secretária. — O que nós temos de fazer é inflamar os sentimentos que começam já a dominar a maior parte daqueles que viram o Senado negar a cidadãos romanos o inalienável direito a um julgamento. Esta é uma questão em que a Primeira e a Segunda Classes não se permitirão seguir o exemplo do Senado; nem mesmo nas Dezoito isso acontecerá. O Senatus Consultum Ultimum dá demasiado poder ao Senado e não há um único cavaleiro ou um homem moderadamente influente que não compreenda isso. Desde os Irmãos Gracos que há uma guerra entre as Ordens. De Rabírio ninguém gosta, pois ele não passa de um velho vilão. Portanto, o destino de Rabírio, do ponto de vista dos votantes das Centúrias, é muito menos importante do que o seu próprio direito a julgamento, que se encontra ameaçado. Creio que, de facto, são muitas as hipóteses de Caio Rabírio ser condenado pelas Centúrias.
— O que significa que o mandarão para o exílio — disse Célere, com um ar um tanto triste. — Eu sei muito bem que ele é um vilão, César. Mas também é um velho... O exílio, para ele, será a morte.
— A menos que o veredicto nunca seja pronunciado — observou César.
— E como é que isso pode acontecer?
— Isso fica inteiramente nas tuas mãos, Célere — disse César, com um sorriso malicioso. — Na tua qualidade de pretor urbano, és tu quem rege o protocolo das assembleias no Campus Martius. Entre outras coisas, tens de te manter atento à bandeira vermelha que tens de hastear no alto do Janículo sempre que as Centúrias se encontram fora das muralhas. Quem nos garante que não vão aparecer invasores?
Célere desatou a rir uma vez mais. — Não posso crer, César...!
— Meu caro amigo, estamos a viver sob um Senatus Consultum Ultimum, precisamente porque Catilina está na Etrúria com um exército! Esse maldito decreto nunca teria sido aprovado se Catilina não tivesse um exército. E os cinco condenados continuariam vivos. Em circunstâncias mais normais, ninguém se dá ao trabalho de olhar para o Janículo, e muito menos o pretor urbano, que já tem muito que fazer. Mas como se teme que Catilina e o seu exército apareçam em Roma de um momento para o outro, quando as pessoas virem a bandeira vermelha baixar, seguir-se-á uma onda de pânico indescritível. As Centúrias abandonarão o voto e correrão para casa, a fim de se armarem contra os invasores, tal e qual como nos tempos dos Etruscos e dos Volscos. Sugiro — prosseguiu César, num tom grave — que ponhas alguém no Janículo, preparado para baixar a bandeira vermelha, e que arranjes um sistema de sinais qualquer — talvez um fogo, se o Sol não estiver demasiado para oeste, ou, se estiver, um espelho brilhante.
— Tudo isso está muito bem — disse Lúcio César. — Mas qual será o resultado de uma tão tortuosa sequência de eventos se Rabírio não for condenado e se o Senatus Consultum Ultimum continuar em vigor enquanto Catilina e o seu exército não forem derrotados? Que lição pensas realmente dar a Cícero? Catão é uma causa perdida, é demasiado obtuso para aprender seja o que for.
— Quanto a Catão, Lúcio, tens toda a razão. Mas Cícero é diferente. Como já disse, Cícero é uma alma temerária. Actualmente, sente-se empolgado pelo êxito. Ele queria uma crise enquanto fosse cônsul e conseguiu tê-la. Ainda não lhe passou pela cabeça que essa crise e esse êxito também podem comportar um desastre pessoal. Mas se lhe mostrarmos claramente que as Centúrias poderiam ter condenado Rabírio, Cícero entenderá a mensagem.
— Mas qual é exactamente essa mensagem, Caio?
— Que nenhum homem agindo sob a capa de um Senatus Consultum Ultimum está a salvo de vir a ser, no futuro, uma vítima dessa lei. Que nenhum cônsul sénior pode ludibriar uma instituição tão importante como o Senado e levá-la a aprovar a execução de cidadãos romanos sem julgamento e, portanto, sem qualquer possibilidade de recurso. Cícero entenderá a mensagem, Lúcio. Todos os homens das Centúrias que votarem a favor da condenação de Rabírio estarão a dizer a Cícero que ele e o Senado não são os árbitros do destino de um cidadão romano. Estarão também a dizer-lhe que, ao mandar executar Lêntulo Sura e os outros sem julgamento, perdeu a confiança e a admiração deles. E esta perda, para Cícero, será muito pior do que tudo o mais que possa acontecer — disse César.
— Ele vai odiar-te por isto! — exclamou Célere.
César ergueu as sobrancelhas louras. Com um ar altivo, perguntou: — E que importância tem isso para mim?
O pretor Lúcio Róscio Otão fora tribuno da plebe ao serviço de Catulo e dos boni e suscitara a antipatia de quase todos os Romanos ao devolver aos cavaleiros das Dezoito as catorze filas de assentos dos teatros situadas atrás dos assentos senatoriais. Cícero ganhara o afecto de Otão, no dia em que um teatro a abarrotar de gente o apupara furiosamente por ter promulgado uma lei que reservava esses magníficos lugares; de facto, Cícero retorquira à multidão contestaria que as pessoas que assim apupavam não passavam de seres inferiores.
Pretor responsável pelos litígios externos, Otão estava no baixo Fórum quando viu Tito Labieno seguir a toda a pressa para o tribunal de Metelo Célere; depois, já dentro do tribunal, viu-o falar com toda a veemência com Célere. Espicaçada a curiosidade, Otão aproximou-se deles a tempo de ouvir a última parte da solicitação de Labieno: que Caio Rabírio fosse julgado por alta traição, de acordo com as leis existentes no reinado de Tulo Hostílio. Quando Célere pegou na longa dissertação de César sobre leis antigas e procurou estabelecer a validade das pretensões de Labieno, Otão decidiu que era altura de pagar uma parte da sua dívida para com Cícero, informando-o do que se estava a passar.
Cícero dormira até tarde, já que, na noite posterior à execução dos conspiradores, não conseguira pregar olho; depois, passara um dia inteiro a receber cumprimentos de toda a gente, o que provocara nele uma excitação muito mais indutora do sono do que o nervosismo da noite das execuções.
Daí que não tivesse ainda emergido do cubículo onde dormia quando Otão desatou a bater à sua porta da rua; mas o barulho era tanto, e a casa tão pequena, que Cícero depressa acordou e correu para o atrium.
— Otão, meu caro amigo, desculpa a demora! — exclamou Cícero, sorrindo para o pretor, enquanto passava com a mão pelo cabelo desgrenhado, na esperança de ficar com melhor aspecto. — Mas a culpa é dos acontecimentos dos últimos dias — só esta noite é que consegui realmente descansar. — Essa sensação de bem-estar começou a esbater-se quando se apercebeu da expressão perturbada de Otão. — Que se passa? Catilina vem a caminho? Houve alguma batalha? Os nossos exércitos foram derrotados?
— Não, não, Cícero, não é nada com Catilina — retorquiu Otão, abanando a cabeça. — O problema é Tito Labieno.
— Que se passa com Tito Labieno?
— Tito Labieno está no Fórum, no tribunal de Metelo Célere, solicitando autorização para processar o velho Caio Rabírio por perduellio, em consequência do assassínio de Saturnino e de Quinto Labieno.
— O quê?
Otão repetiu a sua informação.
Cícero ficou de repente com a boca seca; sentia o sangue ausentar-se do seu rosto, o coração batendo irregularmente, o peito esvaziando-se de ar. Agarrou-se ao braço de Otão. — Não acredito...!
— Será melhor que acredites, porque está mesmo a acontecer e Metelo Célere estava com cara de quem ia aceitar o caso. Gostaria de ter entendido tudo o que se estava a passar, mas infelizmente não entendi. Labieno não fazia outra coisa senão citar o rei Tulo Hostílio, qualquer coisa sobre os antigos julgamentos, e Metelo Célere desatou a ler um enorme pergaminho que, segundo ele, era um estudo sobre as leis antigas. Não sei porque é que de repente comecei a sentir uma comichão esquisita no polegar esquerdo, mas a verdade é que senti. O que quer dizer que vêm aí grandes problemas! Por isso, achei melhor vir contar-te tudo.
Mas já não estava ninguém no atrium para o ouvir; Cícero desaparecera, aos gritos, chamando pelo criado. Passado um instante, estava de volta, envergando a majestosa toga debruada a púrpura.
— Viste os meus lictores lá fora?
— Sim, eles estavam lá fora, a jogar aos dados.
— Então vamos andando.
Habitualmente, Cícero gostava de caminhar vagarosamente atrás dos seus lictores: toda a gente o via e podia admirá-lo. Porém, naquela manhã, exortou por várias vezes a sua escolta a andar mais depressa; Cícero não permitia que os lictores abrandassem o passo. O baixo Fórum ficava relativamente perto, mas, para Cícero, parecia-lhe tão longe como Cápua. Apetecia-lhe mandar às urtigas o ar majestoso a que se obrigava e desatar a correr pelas ruas de Roma, mas o seu bom senso prevaleceu. Lembrava-se perfeitamente de que fora ele quem referira o nome de Caio Rabírio ao abrir os debates no templo de Concórdia; também se lembrava bem de que o fizera para ilustrar a impunidade individual face às consequências de quaisquer acções praticadas sob a capa de um Senatus Consultam Ultimam. E agora... e agora Tito Labieno — tribuno da plebe de César, e não de Pompeu! — queria processar Caio Rabírio pelos julgamentos de Quinto Labieno e Saturnino! Mas não o acusava de homicídio... Sim, de facto a acusação era de traição, a antiga acusação de perduellio, aquela mesma que César descrevera no seu discurso no templo de Concórdia!
Quando Cícero e a sua escolta começaram a atravessar o espaço entre o templo de Castor e o tribunal do pretor urbano, já uma pequena multidão se reunira no tribunal, desejosa de escutar todo o diálogo entre Labieno e Célere. Contudo, quando Cícero chegou, os dois homens não estavam a discutir nada de importante — falavam muito simplesmente de uma mulher qualquer.
— Que se passa? Que se passa aqui? — perguntou Cícero, arquejante.
Célere ergueu as sobrancelhas, surpreendido. — Passa-se o que é costume passar-se neste tribunal, cônsul sénior. A rotina...
— Que rotina?
— Julgar disputas civis e decidir que acusações de crime merecem julgamento — disse Célere, acentuando a palavra “julgamento”.
Cícero corou. — Não brinques comigo! — replicou ele, com cara de poucos amigos. — Quero saber o que se passa aqui!
— Meu caro Cícero — disse calmamente Célere —, posso garantir-te que és a última pessoa no mundo com quem eu gostaria de brincar...
— O QUE É QUE SE PASSA AQUI?
— O tribuno da plebe Tito Labieno acusa de perduellio Caio Rabírio pelo assassínio do seu tio Quinto Labieno e de Lúcio Apuleio Saturnino, ocorrido há trinta e sete anos. Tito Labieno pretende que Rabírio seja julgado segundo os procedimentos em vigor durante o reinado de Tulo Hostílio. Depois de ter examinado os documentos que interessam para o caso, decidi, de acordo com os meus próprios éditos, publicados no início do meu mandato como pretor urbano, que Caio Rabírio deve ser julgado segundo tais procedimentos — disse Célere, sem parar para respirar. — Neste momento, estamos à espera de que Caio Rabírio compareça neste tribunal. Logo que aqui chegue, acusá-lo-ei e nomearei os juizes para este julgamento, que terá início imediatamente.
— Isto é ridículo! Não podes fazer uma coisa dessas!
— Não há nada, nos documentos relevantes ou nos meus próprios éditos, que diga que não posso, Marco Cícero.
— Isto é uma manobra contra mim!
Célere pôs uma expressão de absoluta, e muito teatral, estupefacção. — O quê? Também tu, Cícero? Também tu subiste ao telhado da Cúria Hostília, há trinta e sete anos?
— Não te armes em parvo, Célere! Estás a cumprir ordens de César...! Nunca pensei que pudesses ser comprado por indivíduos como César...!
— Cônsul sénior, se nós tivéssemos uma lei que proibisse as acusações sem fundamento e previsse uma avultada multa para os infractores, podes crer que ma pagarias imediatamente! — replicou Célere. — Eu sou pretor urbano do Senado e do Povo de Roma e farei o meu trabalho! E era isso precisamente o que eu estava a tentar fazer, quando tu irrompeste por este tribunal para me dizer como é que eu devia fazer o meu trabalho! — e, dito isto, virou-se para um dos quatro lictores presentes no tribunal, os quais assistiam à discussão com um sorriso radiante pois estimavam Célere e gostavam de trabalhar com ele.
— Lictor, dirige-te às residências de Lúcio Júlio César e Caio Júlio César e ordena-lhes que compareçam neste tribunal.
Nesse instante, surgiram os dois lictores que se tinham ausentado. No meio deles, vinha um homem pequenino que parecia dez anos mais velho do que os setenta que dizia ter; arrastava-se, mais do que andava, e, se o rosto era feio, o corpo era esquelético e a pele não podia ser mais encarquilhada. Normalmente, tinha uma expressão de azeda e furtiva satisfação; contudo, ao aproximar-se do tribunal de Célere, sob escolta oficial, o seu rosto traía apenas uma imensa perplexidade. Caio Rabírio podia não ser boa pessoa, mas, mesmo assim, era uma espécie de instituição.
Pouco depois, surgiram os dois César com uma prontidão suspeita; formavam um par tão magnífico que a multidão, cada vez mais vasta, não conseguiu conter sonoras exclamações de admiração. Eram ambos altos, belos, louros; ambos vestiam a toga com faixas púrpura e escarlate dos principais colégios religiosos; porém, enquanto Caio envergava a túnica com faixas púrpura e escarlate do Pontifex Maximus, Lúcio trazia o lituus de um augure — um bastão encurvado coroado por um arabesco. Tinham um ar verdadeiramente sumptuoso. E enquanto Metelo Célere acusava formalmente o estupefacto Rabírio do assassínio de Quinto Labieno e Saturnino, conforme a lei sobre perduellio do rei Tulo Hostílio, os dois Césares postaram-se numa das alas do tribunal, observando impassivelmente a cena.
— Há apenas quatro homens que podem ser juizes neste julgamento — disse Célere, bem alto. — Vou por isso chamá-los! Lúcio Sérgio Catilina, podes avançar!
— Lúcio Sérgio Catilina está interdito — respondeu o chefe dos lictores do pretor urbano.
— Quinto Fábio Máximo Sanga, podes avançar!
— Quinto Fábio Máximo Sanga está fora do país.
— Lúcio Júlio César, podes avançar! Lúcio César avançou.
— Caio Júlio César, podes avançar! César avançou.
— Patres — disse Célere, solenemente —, confio-vos o julgamento de Caio Rabírio pelo assassínio de Lúcio Apuleio Saturnino e Quinto Labieno, de acordo com a lex regia de perduellonis do rei Tulo Hostílio. Ordeno também que o julgamento se inicie daqui a duas horas no Campus Martius, nos terrenos adjacentes às saepta.
Lictor, ordeno-te que convoques três dos teus colegas para agirem como representantes das três tribos originais dos Romanos, um pelos Titienses, outro pelos Ramnenses e outro pelos Lúceres. Ordeno-lhes ainda que assistam o tribunal como seus servos.
Cícero fez uma nova tentativa, mais suave do que a primeira. — Quinto Cecílio — disse ele, muito formalmente, para Célere —, não podes fazer isto! Um julgamento perduellonis hoje mesmo? Daqui a duas horas? O réu deve ter tempo para constituir a sua defesa! Deve escolher os seus advogados e encontrar as testemunhas que deporão a favor dele.
— A lex regia de perduellionis do rei Tulo Hostílio não prevê tais procedimentos — disse Célere. — Eu sou apenas o instrumento da lei, Marco Túlio, não o seu criador. Tudo o que posso e devo fazer é seguir os procedimentos previstos na lei, e os procedimentos relativos a este caso encontram-se claramente definidos nos documentos da época.
Sem uma palavra, Cícero virou costas e deixou o tribunal do pretor urbano, embora não soubesse para onde havia de ir. Eles não estavam a brincar...! Eles tencionavam julgar aquele velho patético, de acordo com uma lei arcaica que Roma, e isso era mesmo típico de Roma, nunca expurgara das tábuas! Ah, mas porque é que Roma reverenciava tudo o que era arcaico? Desde cabanas de colmo a leis que datavam dos primeiros reis, passando por colunas que perturbavam os movimentos na Basílica Pórcia, era sempre o mesmo: o que sempre lá estivera tinha de permanecer lá para sempre.
César estava por detrás daquilo tudo, isso era evidente. Fora ele quem descobrira os elementos que faltavam e que esclareciam não só o julgamento de Hortênsio — o mais antigo julgamento conhecido na história de Roma — mas também o seu recurso. E citara-os no Senado, dois dias antes. Mas que pretendia ele exactamente? E porque é que um homem dos boni como Célere o apoiava? Quanto a Tito Labieno e Lúcio César, compreendia-se. Metelo Célere era inexplicável.
Os seus passos tinham-no levado na direcção do templo de Castor, e por isso decidiu que era melhor ir para casa, fechar-se bem fechado e pensar, pensar, pensar. Normalmente, o órgão que produzia os pensamentos de Cícero não tinha qualquer dificuldade em produzi-los, mas, naquele momento, Cícero daria tudo para saber onde ficava exactamente esse órgão: na cabeça, no peito, na barriga? Se soubesse, talvez pudesse pô-lo a funcionar, batendo-lhe, ou encorajando-o, ou purgando-o...
Nesse preciso momento, quase colidiu com Catulo, Bíbulo, Caio Pisão e Metelo Cipião, que vinham, a toda a pressa, do Palatino. Nem sequer dera por eles! Mas o que é que se passava com ele...?
Enquanto subiam os infindáveis degraus que conduziam à casa de Catulo, a mais próxima, Cícero contou toda a história aos outros quatro; e quando já estavam instalados no espaçoso gabinete de Catulo, Cícero fez algo que raramente fazia — bebeu uma taça cheia de vinho. Vinho puro, sem uma pinga de água! Só então se apercebeu de que faltava uma pessoa.
— Onde está Catão?
Os outros quatro puseram uma expressão constrangida, após o que trocaram olhares resignados; Cícero percebeu que iam informá-lo de algo que prefeririam manter em segredo.
— Bom, creio que temos uma baixa — disse Bíbulo. — Catão tem a cara desfeita. Arranharam-no com excessiva violência. — Catão?
— Não é o que estás a pensar, Cícero.
— Então?
— Teve uma discussão com Servília por causa de César e ela atirou-se a ele como uma leoa.
— Por todos os deuses!
— Não fales do caso, Cícero — pediu Bíbulo, com a maior gravidade. — Já vai ser difícil para o pobre Catão quando aparecer em público, agora imagina se toda a gente sabe quem é que lhe fez aquilo e por que razão o fez.
— Mas ele ficou assim tão mal?
— Pior do que possas pensar.
Catulo deu um tal murro na secretária que toda a gente se assustou. — Não estamos aqui para falar de Catão! — gritou. — Estamos aqui para deter César!
— Isso transformou-se num refrão — disse Metelo Cipião.
— Deter César, deter César, deter César... mas nunca o detemos!
— Que pretende César? — perguntou Caio Pisão. — Quer dizer, porquê julgar um velho, invocando uma lei arcaica, e baseando-se numa acusação fabricada que Rabírio refutará facilmente?
— César pretende levar Rabírio às Centúrias — disse Cícero.
— César e o primo condenarão Rabírio e este apelará para as Centúrias.
— Não vejo que interesse é que isso pode ter para César — disse Metelo Cipião.
— Eles acusam Rabírio de alta traição porque ele foi um dos homens que matou Saturnino e os seus apoiantes, e nada sofreu graças ao Senatus Consultum Ultimum aprovado nessa altura — explicou Cícero, pacientemente. — Por outras palavras, César está a tentar mostrar ao Povo que um homem não pode ser considerado impune por qualquer acção que tenha cometido sob um Senatus Consultum Ultimum, mesmo que já tenham passado trinta e sete anos. Dessa forma, está a dizer-me que, um destes dias, irá processar-me pelo assassínio de Lêntulo Sura e dos outros.
Este comentário produziu um silêncio tão pesado que Catulo, não aguentando mais, levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro.
— Ele nunca conseguirá.
— Nas Centúrias, concordo. Mas não deixará de causar sensação em toda a Roma. Quando for julgado o recurso de Rabírio, haverá multidões a assistir — disse Cícero, com um ar descoroçoado.
— Ah, quem me dera que Hortênsio estivesse em Roma!
— Por acaso, Hortênsio já vem a caminho — disse Catulo.
— Como havia boatos de uma insurreição de escravos na Campânia, Hortênsio fez as malas há dois dias. Vou mandar um mensageiro para lhe dizer que se apresse.
— Nesse caso, estará a meu lado para defender Rabírio no recurso.
— Teremos apenas de adiar o recurso — disse Pisão.
Os vastos conhecimentos que possuía sobre os documentos antigos levaram Cícero a lançar um olhar de desprezo a Pisão. — Não podemos adiar nada! — protestou. — O recurso tem de ser apreciado imediatamente após o julgamento conduzido pelos dois Césares.
— Bom, a mim parece-me uma tempestade num copo de água — disse Metelo Cipião, cuja linhagem era muito mais notável do que o seu intelecto.
— De modo nenhum — disse Bíbulo, com gravidade. — Cipião, eu sei que, de um modo geral, tens um entendimento muito curto. Mas com certeza que reparaste na reacção do Povo desde que ordenámos a execução dos conspiradores, ou não? Eles não gostaram do que nós fizemos! Nós somos senadores, nós estamos por dentro de tudo, nós compreendemos todas as nuances de situações como a suscitada por Catilina. Mas até mesmo nas Dezoito há cavaleiros que dizem que o Senado usurpou poderes aos tribunais e às assembleias. Este julgamento fabricado de César dá ao Povo a oportunidade de se congregar num local público e de exprimir claramente o seu desagrado.
— Condenando Rabírio no recurso? — perguntou Lutácio Catulo, algo atordoado. — Bíbulo, eles nunca farão isso! Os dois Césares podem fazê-lo — e sem dúvida que o farão... Podem condenar Rabírio à morte, mas as Centúrias recusar-se-ão a condená-lo, sempre o fizeram. Sim, talvez protestem, mas a coisa acabará por morrer de morte natural. César não terá êxito nas Centúrias.
— Concordo que não deveria ter êxito — disse Cícero, com um ar infeliz. — No entanto, por que raio é que estou com o pressentimento de que César terá êxito? Com certeza que ele tem mais algum truque nalguma dobra da sua toga... só que não consigo descobrir que truque é esse.
— Disseste, Quinto Catulo, que a coisa acabará por morrer de morte natural — interveio Metelo Cipião. — Queres dizer com isso que devemos afastar-nos do campo de batalha e, assistir a tudo como alunos bem comportados, enquanto César semeia a tempestade?
Cícero respondeu. — Claro que não! — exclamou; era mesmo estúpido, aquele Metelo Cipião! — Concordo com Bíbulo quando ele diz que o Povo não está contente. Portanto, não podemos permitir que o recurso de Rabírio seja apreciado imediatamente. E só há uma maneira de o conseguir: anular a lex regia de perduellionis do rei Tulo Hostílio. Por isso, esta manhã, reunirei o Senado e proporei um decreto solicitando à Assembleia Popular a anulação da lei. Farei com que a aprovação do decreto não demore muito. Depois, convocarei imediatamente a Assembleia Popular. — Fechou os olhos, estremeceu. — Receio, contudo, que tenha de usar o Senatus Consultum Ultimum, a fim de evitar a Lei Didiana. Não podemos esperar dezassete dias pela ratificação. Nem podemos permitir contiones.
Bíbulo franziu muito o sobrolho. — Não pretendo competir contigo no que toca ao conhecimento das leis, mas creio que o Senatus Consultum Ultimum não se aplica à Assembleia Popular, a menos que a Assembleia Popular se reúna para decidir qualquer coisa acerca de Catilina. Quer dizer, nós sabemos que o julgamento de Rabírio tem tudo a ver com Catilina, mas os únicos votantes da Assembleia Popular que sabem o mesmo que nós são senadores. E esses senadores não são a maioria nos Comitia.
— O Senatus Consultum Ultimum funciona da mesma forma que um ditador — disse Cícero, com a maior firmeza. — Substitui todas as actividades públicas normais, incluindo as actividades das assembleias.
— Os tribunos da plebe vão vetar — disse Bíbulo. Cícero pôs um ar altivo. — Sob um Senatus Consultum Ultimum,
não poderão vetar!
— Que queres dizer com isso, Marco Túlio? Queres convencer-me de que eu não posso vetar? — perguntou-lhe Públio Servílio Rulo, três horas mais tarde, na Assembleia Popular.
— Meu caro Públio Servílio, Roma encontra-se sob um Senatus Consultum Ultimum, o que significa que o veto tribunício está suspenso — retorquiu Cícero.
A participação na reunião era medíocre, já que muitos dos frequentadores do Fórum tinham preferido deslocar-se ao Campus Martius, a fim de presenciarem o que os Césares estavam a fazer com Caio Rabírio. Mas aqueles que permaneceram dentro dos limites do pomerium para verem como iria Cícero lidar com o ataque de César, não eram apenas senadores e clientes da facção de Catulo. Talvez mais de metade dos participantes — num total de setecentos — pertenciam ao partido oposto. E, entre eles, como Cícero não deixou de reparar, via-se gente como Marco António e os seus corpulentos irmãos, o jovem Poplicola, Décimo Bruto, e nem mais nem menos do que Públio Clódio. Muito atarefados a falar para quem os quisesse ouvir. À volta deles, eram visíveis os gestos inquietos, os olhares sombrios, as expressões de ressentimento.
— Alto aí, Cícero! — exclamou Rulo, desistindo de toda a cerimónia. — Mas que história é essa sobre o Senatus Consultum Ultimam? De facto, esse Consultum foi aprovado, mas diz apenas respeito à revolta da Etrúria e às actividades de Catilina. Não é seu objectivo obstruir o normal funcionamento da Assembleia Popular! Nós estamos aqui para examinar a aprovação de uma lei que anularia a lex regia de perduellionis do rei Tulo Hostílio — um assunto que não tem nada a ver com a revolta da Etrúria ou com Catilina! Primeiro, informas-nos de que tencionas invocar o teu Senatus Consultum Ultimum para subverter os normais procedimentos comiciais! Queres prescindir das contiones, queres evitar a Lei Didiana. E agora informas-nos de que os tribunos da plebe legalmente eleitos não podem exercer o seu poder de veto!
— Precisamente — retorquiu Cícero, com um ar importante. No poço dos comitia os rostra eram um imponente edifício,
erguendo-se cerca de dez pés acima do nível do Fórum. O seu topo era suficientemente grande para acomodar quarenta homens em pé, e, naquela manhã, tal espaço era ocupado por Cícero e os seus doze lictores, pelo pretor urbano Metelo Célere e os seus seis lictores, pelos pretores Otão e Coscónio e os seus doze lictores, e por três tribunos da plebe — Rulo, Âmpio e um homem da facção de Catulo, Lúcio Cecílio Rufo.
Soprava um daqueles ventos frios característicos do Fórum, razão suficiente para que Cícero estivesse todo encolhido sob as maciças dobras da sua toga debruada a púrpura; embora fosse considerado o maior orador romano de todos os tempos, os rostra não se adequavam ao seu estilo, ao contrário do que sucedia com os palcos mais íntimos do Senado e dos tribunais. E Cícero tinha consciência disso. O estilo arrebicado e exibicionista de Hortênsio adequava-se muito mais aos rostra, mas Cícero nunca se sentiria bem imitando Hortênsio. Além do mais, nem sequer tinha tempo para um discurso em condições. Teria, pura e simplesmente, de combater; de facto, era de um combate que se tratava.
— Pretor urbano — gritou Rulo para Metelo Célere —, concordas com a interpretação que o cônsul sénior tem do Senatus Consultum Ultimum actualmente em vigor para enfrentar a revolta na Etrúria e a conspiração em Roma?
— Não, tribuno, não concordo — retorquiu Célere, com grave convicção.
— Porquê?
— Não posso concordar com nada que impeça um tribuno da plebe de exercer os direitos que a plebe romana lhe conferiu!
Quando Célere disse isto, os adeptos de César desataram aos vivas.
— Nesse caso, praetor urbanus — prosseguiu Rulo —, pensas que o Senatus Consultum Ultimum actualmente em vigor não pode impedir um veto tribunício nesta assembleia, esta manhã?
— Sim, essa é a minha opinião! — gritou Célere.
Vendo que a agitação da multidão não parava de crescer, Otão aproximou-se de Rulo e Metelo Célere. — É Marco Cícero quem tem razão! — gritou. — Marco Cícero é o maior especialista em leis do nosso tempo!
— Marco Cícero é um monte de merda! — gritou alguém.
— Ditador Monte de Merda! — gritou outra voz. — Ditador Monte de Merda!
— Cícero é um monte de merda! Cícero é um monte de merda! Cícero é um monte de merda!
— Ordem! Imporei ordem nesta assembleia! — berrou Cícero, começando a sentir medo da multidão.
— Cícero é um monte de merda, Cícero é um monte de merda, Ditador Monte de Merda!
— Ordem! Ordem!
— A ordem — gritou Rulo — será restaurada quando os tribunos da plebe puderem exercer os seus direitos sem interferências do cônsul sénior! — Encaminhou-se para a beira dos rostra e olhou para o poço. — Quirites, proponho que aprovemos uma lei tendo em vista a investigação da natureza do Senatus Consultum Ultimum que o nosso cônsul sénior utilizou, e de que maneira, nos últimos dias! Homens morreram por causa desse Consultum! E agora vêm-nos dizer que os tribunos da plebe não podem exercer o seu direito de veto por causa desse Consultum! E agora vêm dizer-nos que os tribunos da plebe são uma nulidade, que era o que dizia a constituição de Sila! Será que os excessos de hoje são o prelúdio para outro Sila, na pessoa do criador e defensor deste Senatus Consultum Ultimum? Ele utiliza o Consultum como se este fosse uma varinha mágica! Um toque de varinha e... zás! Desaparecem todos os obstáculos! Um toque de varinha e... zás! Prendes e amordaças os homens que não condenaste à morte! E acabas com o direito que os Romanos têm de se reunir nas suas tribos para promulgarem leis ou para as vetarem! E proíbes todos os julgamentos! Cinco homens morreram sem julgamento, um outro homem está a ser julgado no Compus Martius neste preciso momento, e o nosso Ditador Monte de Merda, o cônsul sénior, pretende utilizar o seu putrefacto Senatus Consultum Ultimum para subverter a justiça e transformar-nos a todos em escravos! Nós governamos o mundo, mas o Ditador Monte de Merda pretende governar-nos! Eu posso exercer o direito de veto, um direito que me foi dado por um verdadeiro congresso de homens romanos, mas o Ditador Monte de Merda diz que não posso! — e virou-se para Cícero, com uma expressão feroz. — Qual é o teu próximo passo, Ditador Monte de Merda? Vais mandar-me para o Tuliano para que me esmaguem o pescoço sem ter sido julgado? Sem julgamento, sem julgamento, sem julgamento, SEM JULGAMENTO!
No poço dos Comitia, alguém pegou nesta expressão e, perante os olhos arregalados de Cícero, até mesmo a facção de Catulo se juntou aos cânticos: — Sem julgamento! Sem julgamento! Sem julgamento!
No entanto, não houve qualquer manifestação de violência. Caio Pisão e Aenobarbo, que costumavam ferver em pouca água, pareciam paralisados. Quinto Lutácio Catulo olhou para eles e para Bíbulo horrorizado, entendendo finalmente toda a extensão da oposição à execução dos conspiradores. Quase sem se aperceber do que fazia, acenou para Cícero com o braço direito, pedindo-lhe que parasse, que recuasse imediatamente.
Cícero avançou tão rapidamente que quase tropeçava; ergueu as mãos para implorar calma e serenidade. Quando os cânticos se esbateram o suficiente para que o ouvissem, molhou os lábios, engoliu em seco e, finalmente, falou. — Praetor urbanus — gritou —, respeito a tua superior posição como intérprete da lei! Que a tua opinião seja adoptada! O Senatus Consultum Ultimum não se estende ao direito tribunício de veto num assunto que não tem nada a ver com a revolta na Etrúria ou com a conspiração em Roma!
Embora estivesse decidido a combater enquanto fosse vivo, nesse momento Cícero percebeu que tinha perdido.
Destroçado, aceitou a proposta que Rulo, seguindo as instruções de César, lhe apresentou, sem perceber muito bem por que motivo o tratavam agora com tanta clemência. Rulo concordou mesmo em prescindir das discussões preliminares e do período de espera de dezassete dias estipulado pela lex Caecilia Didia! Não entenderia aquela multidão de idiotas que se o Senatus Consultum Ultimum não podia proibir o veto tribunício, também não podia dispensar as contiones, nem o período de espera da Lei Didiana? Ah, sim, claro que a mão de César estava por detrás daquilo tudo — por alguma razão ele ia ser juiz no recurso de Rabírio...! Mas que pretendia exactamente César?
— Nem toda a gente está contra ti, Marco — disse-lhe Ático, enquanto subiam a Alta Semita, na direcção da magnífica casa de Ático, que ficava no alto do Quirinal.
— Mas há demasiada gente contra mim — retorquiu Cícero, com um ar muito abatido. — Oh, Tito, nós tínhamos de nos livrar daqueles malditos conspiradores!
— Eu sei. — Ático parou num vasto terreno vazio, de onde se tinha uma maravilhosa vista do Campo de Marte, da sinuosa curva do Tibre, da planície do Vaticano e da colina para lá do Vaticano. — Se o julgamento de Rabírio ainda prossegue, poderemos vê-lo daqui.
Mas o espaço relvado adjacente aos saepta estava totalmente deserto; fosse qual fosse a sorte do velho Rabírio, tudo estava já decidido.
— Quem mandaste para ouvir os dois Césares? — perguntou Ático.
— Mandei Tiro, vestido com uma toga.
— Uma missão perigosa para Tiro.
— Sim, mas eu sei que ele me fará um relatório preciso do que aconteceu, e não posso dizer isso de mais ninguém, a não ser de ti. De ti é que eu precisava na Assembleia Popular. — Cícero fez um ruído que tanto podia ser de hilaridade como de dor. — A Assembleia Popular...! Que fantochada...!
— Tens de admitir que César é inteligente.
— Admito, admito! Mas que te leva a dizer-me isso agora, Tito?
— César impôs uma condição: que a condenação das Centúrias se limite ao exílio e a uma multa. Como Rabírio não será nem açoitado, nem decapitado, creio que as Centúrias votaram a favor da sua condenação.
Agora, era Cícero que parava. — Não se atrevem!
— Atrevem-se, sim, Cícero. O julgamento, Marco, o julgamento! Os homens que estão fora do Senado desconhecem a reflexão política. A política interessa-lhes unicamente na medida em que pode afectá-los. Por isso, não estão conscientes do perigo que representaria para Roma um julgamento dos conspiradores no Fórum. Eles só entendem uma coisa: é a sua própria pele que corre riscos quando há cidadãos que são executados — mesmo sendo traidores confessos! — sem o benefício de um julgamento ou de um recurso.
— As minhas acções salvaram Roma! Eu salvei o meu país!
— E há muita gente que concorda contigo, Marco. Acredita que há. Espera que toda esta agitação esmoreça e logo verás. Neste momento, os sentimentos das multidões estão a ser manipulados por verdadeiros peritos nessa arte, desde César a Públio Clódio.
— Públio Clódio?
— Sim, Públio Clódio! Desconheces que ele já tem muitos adeptos? Claro que se especializou em seduzir os membros das classes baixas, mas também tem bastante influência entre os pequenos comerciantes. Entretem-nos generosamente, apoia-os comprando-lhes muitas coisas — presentes para o povo miúdo, por exemplo — disse Ático.
— Mas ainda nem sequer é senador!
— Será, dentro de doze meses.
— O dinheiro de Fúlvia deve ser uma boa ajuda.
— Sem dúvida.
— Como é que sabes tanta coisa acerca de Públio Clódio? Através da tua amizade com Clódia? E porque é que és amigo de Clódia?
— Clódia — disse Ático, pensando bem as palavras — é uma daquelas mulheres a que gosto de chamar virgens profissionais. Ficam todas ofegantes e cheias de palpitações quando se encontram com um homem, mas se algum homem tenta abusar da sua virtude, fogem aos gritos, normalmente para os braços de um marido pateta.
Por isso preferem dar-se com homens que não constituem um perigo para a sua virtude — com homossexuais, como eu.
Cícero engoliu em seco, tentou, em vão, enrubescer, ficou sem saber para onde olhar. Era a primeira vez que ouvia Ático dizer aquela palavra — e, ainda por cima, aplicava-a a si mesmo!
— Não fiques embaraçado, Marco — disse Ático, rindo-se.
— Hoje não é um dia vulgar, é tudo. Esquece o que eu disse.
Terência falou sem rodeios, mas nem por isso recorreu a um léxico que não ficava bem a uma mulher com o seu estatuto social.
— Salvaste o teu país — disse ela, com um ar severo, já para o fim da conversa.
— Só terei salvo o meu país quando Catilina for derrotado no campo de batalha.
— É claro que será derrotado!
— Bom, a verdade é que os meus exércitos parecem não estar a fazer grande coisa! Híbrida só pensa na gota. Rei encontrou magníficos alojamentos na Úmbria. Quanto a Metelo Crético, só os deuses sabem o que ele está a fazer na Apúlia. E Metelo Célere não faz outra coisa senão alimentar a fogueira de César aqui em Roma.
— No Ano Novo, tudo estará acabado. Vais ver.
O que Cícero mais queria nesse momento era deitar a cabeça no seio opulento da mulher e chorar até lhe doerem os olhos; mas isso, como compreendia, não lhe seria permitido. Conteve por isso a tremideira que tinha nos lábios e respirou fundo, incapaz de olhar na cara de Terência, pois temia que ela o criticasse por ter os olhos molhados.
— Que informações trouxe Tiro?
— Os dois Césares pronunciaram uma sentença de morte em relação a Rabírio, depois da mais lamentável exibição de intolerância em toda a história de Roma. Labieno foi autorizado a dar espectáculo — contratou até actores para usarem as máscaras de Saturnino e do tio Quinto, que mais pareciam vestais do que os traidores que realmente foram. E até os dois filhos de Quinto — ambos com mais de quarenta anos! — apareceram a chorar como criancinhas, porque Caio Rabírio lhes tinha tirado o tatá! O público, solidário com os pobres coitados, chorava também e atirava flores. Um espectáculo brilhante, como seria de esperar...! Os dois Césares tinham as suas falas bem decoradas:
Vai, lictor, ata-lhe as mãos! Vai, lictor, prende-o ao poste e açoita-o! Vai, lictor, prende-o a uma árvore “estéril”! Francamente...!
— Mas Rabírio recorreu.
— Claro.
— E o recurso é julgado amanhã nas Centúrias. Ouvi dizer que tudo decorrerá segundo as normas de Gláucia, mas só haverá uma audiência por causa da falta de testemunhas e de provas. — Terência riu-se, com evidente desdém. — Se isso não chegar para o júri concluir que a acusação é um disparate, então nunca mais confio no intelecto romano!
— Há já algum tempo que deixei de confiar — disse Cícero, com uma expressão de profundo desagrado. Levantou-se, sentindo-se velho, muito velho. — Desculpa, minha querida, mas não vou comer. Não tenho fome. O dia está prestes a findar e é melhor que vá ter com Caio Rabírio. Vou defendê-lo.
— Com Hortênsio?
— E Lúcio Cota, espero. Como assistente, é sempre muito útil, e trabalha muito bem com Hortênsio.
— Serás o último a falar, naturalmente.
— Naturalmente. Hora e meia deve chegar, se Lúcio Cota e Hortênsio estiverem de acordo em falar menos de uma hora cada um.
Mas quando foi ver o homem condenado na sua residência, uma casa luxuosa que mais parecia uma fortaleza, situada nas Carinas, Cícero descobriu que Caio Rabírio tinha outras ideias para a sua defesa.
O dia deixara o velho exausto; tremia e piscava os olhos remelosos, enquanto convidava Cícero a sentar-se numa confortável cadeira do seu imenso e deslumbrante atrium. O cônsul sénior olhou à sua volta como um camponês na sua primeira visita a Roma, perguntando-se se teria dinheiro que chegasse para adoptar aquele tipo de decoração na sua nova casa, depois de arranjar dinheiro para comprar uma casa nova, evidentemente; aquela sala ficaria bem numa residência de um consular, embora fosse preferível uma decoração menos ostensiva. O tecto estava decorado com cintilantes estrelas douradas, salpicadas de pedras preciosas; as paredes haviam sido forradas com ouro verdadeiro; os pilares também haviam sido forrados a ouro e até mesmo o enorme e profundo impluvium tinha ladrilhos de ouro.
— Estou a ver que gostas do meu atrium... — comentou Caio Rabírio, com um ar de lagarto.
— Muito — disse Cícero.
— É pena eu não dar festas, não é?
— Sim, é pena. Mas, pelo que vejo, vives numa verdadeira fortaleza.
— Dar festas é um desperdício de dinheiro. Eu pus a minha fortuna nas paredes. É mais seguro do que um banco, desde que se viva numa fortaleza.
— E os escravos nunca tentaram pelá-las?
— Não! Só se quisessem ser crucificados...
— Sim, isso chega para eles terem medo...
O velho acariciou as cabeças de leão com que terminavam os braços dourados da sua cadeira dourada. — Eu adoro o ouro — disse ele. — É uma cor tão bonita!
— Sim, lá isso é.
— Portanto, queres conduzir a minha defesa, não é?
— Precisamente.
— E quanto vais custar-me?
Cícero tinha vontade de lhe responder que uma folha de ouro, com dez pés por dez, chegaria perfeitamente; contudo, não foi isso que respondeu. Com um sorriso, disse: — Considero o teu caso tão importante para o futuro da República que te defenderei por nada.
— Acho muito bem.
O quê? Era assim que ele agradecia aquela oferta? Os serviços do maior advogado de Roma, totalmente gratuitos? Cícero engoliu em seco. — Tal como todos os meus colegas senadores, conheço-te há anos, mas não sei muita coisa sobre ti, a não ser — pigarreou, e logo prosseguiu: — a não ser aquilo que se conta. Preciso de te fazer algumas perguntas a fim de preparar o meu discurso.
— Não te canses, porque não te darei resposta nenhuma. Inventa.
— Baseando-me no que se diz de ti?
— Como o facto de eu ter estado ligado às actividades de Opiânico, em Larino, por exemplo? Não te esqueças de que defendeste Cluêncio.
— Mas nunca te mencionei, Caio Rabírio.
— Ainda bem. Opiânico morreu muito antes de Cluêncio ter sido julgado. Como é que alguém poderá conhecer a verdadeira história? Fizeste um belo bordado de mentiras, Cícero, e por isso não me importo que conduzas a minha defesa. Não me importo mesmo nada! Conseguiste deixar no ar que Opiânico assassinara mais parentes do que o próprio Catilina. Quer dizer, não sei se Catilina matou ou não matou parentes: é o que dizem os boatos. E tudo por causa do dinheiro! Mas a verdade é que Opiânico não tinha paredes de ouro na sua casa. Interessante, não é?
— Não sei — disse Cícero, algo atrapalhado. — Nunca vi a casa dele.
— Eu conheço meia Apúlia e sou um homem saudável e resistente, mas não mereço ir para o exílio por uma coisa que Sila me mandou fazer. A mim e a mais cinquenta. No telhado da Cúria Hostília, esteve gente muito mais importante do que eu. Servílios Cepiões e Cecílios Metelos, por exemplo. A maior parte deles eram senadores da bancada da frente. Ou se não eram, viriam a ser.
— Sim, eu sei.
— Queres ser o último a falar antes da votação do júri, não é?
— Sou sempre o último. Creio que Lúcio Cota será o primeiro, logo seguido por Hortênsio. Depois, falarei eu.
Mas o asqueroso velho pôs um carão de espanto, ofendido.
— Só três? Nem pensar! Querem ficar com toda a glória, não é? Eu quero sete! Sete advogados! Sete é o meu número da sorte.
— O juiz — disse Cícero, lenta e claramente — será Caio César e só haverá uma actio, apesar de serem respeitadas as normas de Gláucio. Só haverá uma actio porque não há testemunhas, e, portanto, não faz sentido que haja duas actiones, como diz Caio César. Este dará duas horas à acusação e três horas à defesa. Havendo sete advogados de defesa, cada um de nós quase não terá tempo para falar!
— Se têm menos tempo para falar, então os vossos discursos serão melhores, mais incisivos, mais fortes...! — retorquiu o obstinado Caio Rabírio. — Esse é que é o vosso problema: falam de mais! Eu adoro ouvi-los falar, mas dois terços das palavras que dizem deviam ser eliminadas. E isto aplica-se também a ti, Marco Cícero. Conversa, só conversa...!
Quero sair já daqui!, pensou Cícero, furioso. Quero cuspir no olho deste velho e dizer-lhe que contrate Apolo! Mas porque é que eu dei aquela ideia a César, usando este horrendo mentula como exemplo?
— Caio Rabírio, reconsidera, por favor!
- Nem pensar! Quero Lúcio Luceio e o jovem Curião, Emílio Paulo, Públio Clódio, Lúcio Cota, Quinto Hortênsio e Quinto Cícero! É pegar ou largar, Marco Cícero, ou será assim ou não será de maneira nenhuma. Sete é o meu número da sorte. Toda a gente diz que eu vou perder, mas eu sei que não perco se tiver sete advogados. — E desatou a rir. — Será ainda melhor se cada um de vocês falar apenas um sétimo de uma hora! Ha, ha, ha, hi, hi, hi!
Cícero levantou-se e retirou-se sem mais uma palavra.
Mas o sete era, de facto, o seu número de sorte. Convinha a César mostrar-se um iudex perfeito, escrupuloso no cumprimento das normas de Gláucio relativamente à defesa. Esta, como estava regulamentado, dispôs de três horas para falar. Luceio e o jovem Curião, numa nobre atitude, sacrificaram muito do seu tempo a fim de que Hortênsio e Cícero pudessem ter meia hora cada um. Porém, no primeiro dia, o julgamento começou tarde e terminou cedo, o que obrigou Hortênsio e Cícero a concluírem a defesa de Caio Rabírio no nono dia daquele horrível mês de Dezembro, o último dia do tribunato da plebe de Tito Labieno.
As Assembleias das Centúrias estavam à mercê do tempo, já que não havia nenhum telhado ou uma estrutura semelhante para proteger os Quirites do sol, da chuva ou do vento. O sol era, de longe, o elemento menos tolerável, mas, em Dezembro, ainda que a estação fosse ainda o Estio, um dia de sol podia ser suportável. Um possível adiamento dependia unicamente do magistrado que presidia às Centúrias; havia quem defendesse a realização de eleições (os julgamentos nas Centúrias eram extremamente raros) mesmo que caísse uma chuva diluviana, e terá sido por isso que Sila transferiu o mês das eleições de Novembro, normalmente mais chuvoso, para Julho, habitualmente muito quente e seco.
Os dois dias do julgamento de Caio Rabírio revelaram-se perfeitos: um céu muito claro, uma brisa ligeiramente fria. O que deveria ter predisposto o júri (constituído por quatro mil pessoas) a uma atitude caritativa. Tanto mais que a personagem do recorrente era realmente digna de dó — todo encolhido na sua toga, tremendo da cabeça aos pés, numa maravilhosa imitação de uma paralisia agitante, as mãos presas como garras a um suporte que um dos lictores lhe arranjara à última hora. Mas desde o princípio que o júri revelou um estado de espírito sinistro; por outro lado, Tito Labieno mostrou-se brilhante, conduzindo sozinho a acusação durante as duas horas previstas; não faltaram sequer os actores com as máscaras de Saturnino e Quinto Labieno, nem os dois primos do tribuno da plebe, bem à vista de todos, chorando desalmadamente todo o tempo. No meio da multidão, muitos eram também os murmúrios que lembravam constantemente à Primeira e à Segunda Classes que o seu direito a julgamento estava em perigo, que a condenação de Rabírio ensinaria homens como Cícero e Catão a comportarem-se cautelosamente no futuro e ensinaria instituições como o Senado a limitarem-se às finanças, aos debates políticos e aos negócios estrangeiros.
A defesa lutou duramente, mas depressa se apercebeu de que o júri não estava interessado em ouvi-la, quanto mais em mostrar compaixão pelo velho Caio Rabírio. Quando começou a sessão do segundo dia, Hortênsio e Cícero sabiam que teriam de estar no auge da sua forma se quisessem que Rabírio fosse absolvido. Infelizmente, nenhum deles estava na sua melhor forma. A gota, que afectava muitos dos que se viciavam nos prazeres da comida e do vinho, recusava-se a deixar Hortênsio em paz; além disso, fora obrigado a completar a sua viagem a um ritmo que não era nada benéfico para o bem-estar de um dedo grande do pé que lhe causava dores muito intensas. Durante a meia hora em que discursou, manteve-se quieto e parado, e sempre apoiado num bastão, o que não facilitava nada o seu desempenho oratório. Depois, Cícero pronunciou um dos mais fracos discursos da sua carreira, constrangido pelas limitações de tempo e pela consciência de que uma parte da sua intervenção teria de ser dedicada à defesa da sua própria reputação — de uma forma muito engenhosa, evidentemente.
Assim, faltava ainda muito para o fim do dia quando César procedeu ao sorteio para saber que Centúria de Juniores da Primeira Classe votaria em primeiro lugar (era a chamada praerogativa, só as trinta e uma tribos rurais podiam participar neste sorteio, e a tribo que fosse sorteada teria de votar antes que começasse a rotina normal. Todas as actividades foram suspensas até que os votos desta Centúria fossem contados e o resultado anunciado à expectante assembleia. De acordo com a tradição, o resultado dessa primeira votação reflectiria o desfecho da eleição. Ou do julgamento. Portanto, muita coisa dependia da tribo que era sorteada. Se fosse a tribo de Cícero, a tribo Cornélia, ou a de Catão, a tribo Papíria, era de esperar que houvesse problemas.
— Clustumina iuniorum! — Os Juniores da tribus Clustumina. A tribo de Pompeu, o Grande — um bom prenúncio, pensou César, ao deixar o seu tribunal para avançar para as saepta e tomar o seu lugar no final da ponte da direita, por onde os votantes seguiam na direcção dos cestos onde as suas tabuinhas de madeira, revestidas de cera, eram depositadas.
Também chamadas o redil das ovelhas porque tinham muitas semelhanças com a estrutura que os criadores de gado usavam para encaminhar e distribuir os seus rebanhos, as saepta eram um labirinto de paliçadas e corredores de madeira portáteis, adaptável às funções desta ou daquela assembleia. As Centúrias sempre tinham votado nas saepta e, por vezes, as tribos também realizavam as suas eleições nesse espaço, desde que o magistrado presidente achasse que o Poço dos Comitia era demasiado pequeno para o número de votantes e fosse contrário à utilização do templo de Castor.
O meu destino está em jogo aqui e agora, pensou César, com um ar grave, ao aproximar-se da entrada daquela estranha estrutura; o veredicto dependerá da forma como os Juniores da tribo Clustumina votarem, quanto a isso não tenho qualquer dúvida. Se votarem LIBERO, o resultado final será a absolvição; se votarem DAMNO, o resultado final será a condenação. DAMNO, Tem de ser DAMNO!
Nesse momento cheio de significado para ele, deparou-se-lhe Crasso, o qual, estranhamente, se demorava junto à entrada, com um ar menos impassível do que o usual. Óptimo! Se este caso não perturbasse o imperturbável Crasso, então o objectivo não seria alcançado. Mas Crasso estava agitado, claramente agitado.
— Espero que um dia — disse Crasso quando César se abeirou dele — haja aqui um pastor com um ferro em brasa para me fazer uma mancha vermelha na toga e para me dizer que não posso entrar para votar uma segunda vez. Isto para o caso de eu tentar, é claro. Se ferram as ovelhas, porque não hão-de ferrar os Romanos?
— Era isso em que estavas a pensar?
Um breve espasmo perturbou a expressão de Crasso, uma indicação de surpresa. — Sim. Mas depois decidi que tal prática não era própria de Romanos.
— Tens toda a razão — disse César, fazendo um grande esforço para não se rir. — Mas essa prática impediria certas tribos de entrarem várias vezes. Em particular, aqueles malandros das tribos urbanas de Esquilina e Suburana...!
— Que diferença é que ia fazer? — perguntou Crasso, enfastiado. — Ovelhas, César, ovelhas...! Os votantes não passam de ovelhas...! Me! Me! Me!
César entrou a toda a pressa nos saepta, controlando o riso que ameaçava explodir; aquela conversa com Crasso (e a sua presença vigilante) tirara-lhe todas as dúvidas quanto ao facto de os cidadãos romanos — até mesmo um amigo íntimo como Crasso — apreciarem a solenidade daquela ocasião!
O veredicto dos Juniores da Clustumina foi DAMNO e a tradição ia cumprir-se uma vez mais. Duas a duas, as Centúrias foram entrando para os corredores paliçados e subindo as duas pontes, a fim de depositarem as tabuinhas com a letra D. O ajudante de César no escrutínio era o seu custos, Metelo Célere; quando os dois homens tiveram a certeza de que o veredicto final só poderia ser DAMNO, Célere deixou a sua ponte a Coscónio e retirou-se.
Depois, seguiu-se uma espera perigosamente longa — ter-se-ia Célere esquecido do seu espelho, ter-se-ia o Sol escondido atrás de uma nuvem, teria o seu cúmplice no Monte Janiculano adormecido? Depressa, Célere, despacha-te!
— Às ARMAS! Às ARMAS! INVASORES! Às ARMAS! Às ARMAS! INVASORES! Às ARMAS! Às ARMAS!
Mesmo na hora H.
E foi assim que terminou o julgamento do recurso do velho Caio Rabírio: com uma louca correria dos votantes para lá das Muralhas Servias, onde, depois de se terem armado, dispersaram, agrupados em Centúrias militares, para os locais onde o dever os chamava.
Mas Catilina e o seu exército nunca apareceram.
Se Cícero se arrastava em vez de correr, na direcção do Palatino, isso era perfeitamente desculpável. Hortênsio partira mal terminara o seu discurso, gemendo dentro da sua liteira, mas o orgulho impedira Cícero, mais inseguro e com um nascimento muito menos nobre, de imitar o exemplo do colega. Com uma expressão teatralmente grave, esperou para votar com a sua Centúria, a tabuinha firmemente marcada com ode LIBERO — não, de facto não havia muitos entre os votantes, naquele dia terrível! Cícero não conseguira sequer convencer os membros da sua Centúria a votarem na absolvição. E foi obrigado, com uma expressão teatralmente grave, a conhecer a opinião dos homens da Primeira Classe: trinta e sete anos não chegavam para impedir a condenação.
A estridente chamada às armas fora para Cícero como que um milagre, embora, como quase toda a gente, também ele estivesse convencido de que Catilina evitaria os exércitos que saíssem ao seu encontro e cairia sobre Roma. Apesar disso, arrastava-se. De repente, a morte parecia-lhe preferível ao destino que — só agora o compreendia — César lhe reservava. Um dia, quando César ou um dos seus tribunos da plebe achassem que chegara a hora certa, Marco Túlio Cícero estaria ali mesmo onde estivera Caio Rabírio, a responder pela acusação de traição; o máximo que podia esperar era que fosse maiestas e não perduellio. O exílio e a confiscação de todos os seus bens, a retirada do seu nome da lista oficial dos cidadãos romanos, os seus dois filhos apontados a dedo por pertencerem a uma família manchada pela desonra. Perdera mais do que uma batalha; perdera a guerra. Ele era Carbão, não Cipião.
Mas não devo nunca admiti-lo — disse ele para si mesmo, já no alto dos infindáveis degraus que conduziam ao Palatino. Nunca devo permitir que César ou outro qualquer acreditem que sou um homem destroçado. Salvei o meu país e manterei isso até morrer! A vida continua. Comportar-me-ei como se não houvesse nenhuma ameaça a pairar sobre a minha cabeça.
Não admira que, no dia seguinte, no Fórum, tivesse saudado jovialmente Catulo; encontravam-se no Fórum para assistir à estreia dos novos tribunos da plebe. — Agradeço a todos os deuses por terem posto Célere no local certo! — disse ele, com o maior dos sorrisos.
— Gostava de saber — disse Catulo — se Célere baixou a bandeira vermelha por sua própria iniciativa ou se foi César que lho ordenou.
— César? Como é possível que César tenha ordenado a Célere uma coisa dessas?!
— Cresce e aparece, Cícero...! César nunca teve a intenção de condenar Rabírio. Isso teria estragado uma doce vitória. — Com uma expressão muito carregada, Catulo parecia muito doente e muito velho. — Estou com muito, muito medo! Ele é como Ulisses, a corda da sua vida é tão forte que rasga tudo por onde roça. Estou a perder a minha auctoritas e quando a tiver perdido por completo não tenho outra saída senão a morte.
— Que disparate, Catulo! — exclamou Cícero, muito afectuoso.
— Não é disparate nenhum, Cícero. É apenas um facto muito, muito desagradável. Sabes, creio que seria capaz de perdoar a César se ele não fosse tão arrogante, tão seguro de si mesmo, tão cheio de confiança na sua pessoa! O meu pai era um César e há ecos do meu pai neste Caio César. Mas ecos apenas. — Um pensamento fê-lo sentir um arrepio. — Este tem uma cabeça muito melhor do que a do meu pai. E, ainda por cima, não há freio que o domine. Freio nenhum. Tenho medo.
— É pena que Catão não venha hoje — disse Cícero, desejoso de mudar de assunto. — Metelo Nepos não terá competidor à altura nos rostra. Que coisa estranha... Por que raio é que os dois irmãos adoptaram de repente ideias populistas?
— A culpa é de Pompeu Magno — retorquiu Catulo com uma expressão de desprezo.
Porque tinha um fraquinho por Pompeu desde que haviam sido colegas, sob o comando de Pompeu Estrabão, durante a Guerra Italiana, Cícero poderia muito bem ter defendido o conquistador ausente; mas, em vez disso, com um ar de absoluto espanto, exclamou: — Olha!
Catulo virou-se e deu com Marco Pórcio Catão atravessando o espaço entre o lago de Cúrcio e o Poço dos Comitia, usando uma túnica sob a toga. Todos olhavam para ele boquiabertos e não era por causa da túnica. Desde a testa até à raiz do pescoço, tanto do lado direito como do esquerdo, o seu rosto exibia uma série de veios vermelhos, profundos e infectados.
— Por Júpiter! — exclamou Cícero.
— Ah, o que eu adoro este homem! — exclamou Catulo, correndo ao encontro de Catão e pegando-lhe na mão direita mal se abeirou dele. — Catão, Catão, porque vieste?
— Porque sou um tribuno da plebe e hoje é o primeiro dia do meu mandato — retorquiu Catão no único tom de voz que conhecia: o tom gritado.
— Mas... e a tua cara? — protestou Cícero.
— As caras consertam-se, mas os actos errados não. Se eu não estivesse nos rostra para enfrentar Nepos, podem ter a certeza de que ele faria o que lhe desse na gana. — E, muito aplaudido, subiu aos rostra, a fim de tomar o seu lugar junto dos outros nove homens prestes a tomar posse. Nem se deu conta dos aplausos, já que só tinha olhos para Metelo Nepos. Um homem de Pompeu. Escumalha!
Porque o Povo (patrícios e plebeus) não elegia os tribunos da plebe e porque estes serviam apenas os interesses da parte plebeia, as reuniões da Assembleia Plebeia não eram oficiais
no sentido em que o eram as reuniões da Assembleia Popular ou da Assembleia das Centúrias. Portanto, começavam e terminavam com escassas cerimónias; não havia consulta de auspícios, nem eram ditas as orações rituais. Estas omissões contribuíam consideravelmente para a popularidade da Assembleia Plebeia. Não havia perdas de tempo, não havia litanias fastidiosas, não havia augures.
A reunião daquele dia tinha uma audiência magnífica, o que não admirava, pois realizava-se entre as chagas abertas das execções sem julgamento e o bálsamo de se saber que as faíscas iam voar e provocar incêndios. Os anteriores tribunos da plebe abandonaram a cena airosamente, mas os aplausos e vivas foram todos para Labieno e Rulo. Após o que começou a reunião propriamente dita.
Metelo Nepos foi o primeiro a falar, o que não surpreendeu ninguém; Catão era melhor a retaliar do que a começar. O assunto abordado por Nepos era bem controverso — a execução de cidadãos sem julgamento — e o seu discurso foi esplêndido; não faltaram as metáforas e hipérboles e muito menos a ironia.
— Proporei um plebiscito tão suave, tão misericordioso, tão moderado, que nenhum dos presentes poderá deixar de concordar em transformá-lo em lei! — disse Nepos, no final de um longo discurso que reduzira a sua audiência ora às lágrimas, ora ao riso, ora à reflexão. — Nada de setenças de morte, nada de exílios, nada de multas. Membros da Plebe, tudo o que proponho é que qualquer homem que tenha executado cidadãos romanos sem julgamento seja proibido de voltar a falar em público! Não é branda a minha justiça? Uma voz para sempre calada, um poder manipulador tornado impotente! Concordam comigo? Vamos amordaçar os megalómanos e os monstros?
Foi Marco António quem espevitou os vivas e aplausos, os quais caíram sobre Cícero e Catulo como se fossem uma avalancha. Só a voz de Catão seria capaz de soar mais alto do que tamanha barulheira; e foi isso mesmo que aconteceu.
— Interponho o meu veto! — bradou ele.
— Para protegeres o teu próprio pescoço! — exclamou Nepos, com um ar de desdém, logo que o barulho amansou. Olhou para Catão de alto a baixo, com ostensiva surpresa. — Embora já não tenhas muito pescoço, Catão...! Que te aconteceu? Esqueceste-te de pagar à puta ou precisaste que ela te fizesse isso para que o teu entrepernas desse sinal de vida?
— Como é possível que te intitules um nobre, um Cecílio Metelo? — perguntou Catão. — Vai para casa, Nepos, vai para casa lavar os excrementos que tens na boca! Porque havemos de ser obrigados a ouvir insinuações pútridas numa sagrada assembleia de homens romanos?
— Porque havemos de ser obrigados a submeter-nos a um inconsistente decreto senatorial, que dá aos homens que estão no poder o direito de executar outros homens muito mais romanos do que aqueles que os condenaram? Nunca ouvi dizer que Lêntulo Sura descendia de uma escrava ou que o pai de Caio Cetego tinha merda de porco pegada às orelhas!
— Recuso-me a travar combates verbais em que o calão é rei e senhor! Podes arengar e três variar à vontade até ao próximo Dezembro que, para mim, não fará diferença nenhuma! — berrou Catão, as feridas do rosto ressaltando como cordas vermelho-escuras. — Interponho o meu veto e nada do que possas dizer me fará mudar de ideias!
— Claro que interpões o teu veto! Se não o fizesses, Catão, nunca mais poderias voltar a falar em público! Foste tu, e mais ninguém, quem convenceu o Senado de Roma a passar da clemência à selvajaria! O que, de facto, não surpreende ninguém...! A tua bisavó, pelo que dizem, era uma selvagem bem apetitosa, o que vinha mesmo a calhar para um velho tonto de Túsculo que devia ter ficado em Túsculo a fazer cócegas aos porcos, em vez de vir para Roma fazer cócegas na porcella de uma bárbara!
E se aquilo não chegava para um duelo, pensou Nepos, então nada chegaria! Se eu estivesse no lugar dele, já teria exigido um duelo, e com punhais! A Plebe absorve tão sofregamente os meus insultos como os cães quando vêem vomitado... o que significa que estou a vencer! Bate-me, Catão, dá-me um murro!
Catão não foi por essa via. Fazendo um esforço heroicamente estóico (só ele sabia quanto isso lhe custava), virou costas e foi para o fundo dos rostra. Por um momento, a multidão sentiu-se tentada a vaiar esse acto cobarde, mas Aenobarbo foi mais rápido que Marco António e desatou a louvar tresloucadamente aquela magnífica exibição de autocontrole e desdém.
Lúcio Calpúrnio Béstia salvou o dia e a vitória para Nepos, começando a atacar Cícero e o seu Senatus Consultum Ultimum de uma forma particularmente espirituosa — e, por isso mesmo, demolidora. A Plebe suspirava em êxtase e a reunião pôde prosseguir com a mesma energia.
Quando achou que a audiência já estava farta do tema das execuções sem julgamento, Nepos mudou de rumo.
— A propósito de um tal Lúcio Sérgio Catilina — disse ele, num tom descontraído — não deixei de reparar que, na frente de guerra, não está a acontecer rigorosamente nada. Catilina e os seus pretensos adversários estão espalhados pela Etrúria, Apúlia e Piceno, separados por muitas, muitas milhas, todos eles em segurança, todos eles à boa vida. Quem é que lá está? — perguntou ele, erguendo a mão direita, com os dedos bem separados. — Bom, primeiro temos Híbrida e o seu dedo do pé gotoso — e baixou um dedo. — Depois, temos o segundo Homem de Barro, Metelo do ramo dos cabritos
— outro dedo baixado. — E temos também um rei, sim, um Rei, o audaz inimigo de... de quem? De quem? Não me lembro...! — já só lhe restavam o polegar e o mindinho. Nesse instante, porém, abandonou a contagem e bateu com a mão na testa. — Oh! Oh! Como podia eu esquecer-me do meu próprio irmão? Sim, o meu irmão devia lá estar, mas teve de vir a Roma participar naquilo em que devia participar! Sim, creio que vou perdoar ao malandro do meu irmão...!
Este gracejo provocou a intervenção de Quinto Minúcio Termo.
— Que ideia é a tua, Nepos? — perguntou. — Qual é a tramóia desta vez?
— Tramóia? Eu? — retorquiu Nepos, teatralmente. — Termo, Termo, não deixes que o fogo que te aquece esse teu grande rabo te faça ferver em pouca água! Meu querido, com um nome como o teu, não deves ferver nunca: deves estar sempre tépido! Tépido, meu querido! — disse ele com uma voz aflautada, dando muito às pestanas, numa pose de pura provocação, enquanto a audiência se rebolava a rir. — Não, meu querido, eu só estava a tentar lembrar que, de facto, temos alguns exércitos reservados para a guerra contra Catilina — quando o encontrarem, é claro... O norte da nossa península é muito, muito vasto — é fácil perdermo-nos lá... Tanto mais que, de manhã, é costume haver nevoeiro no rio Tibre... Como é que eles vão encontrar um sítio para despejar os seus penicos de pórfiro?
— Tens alguma sugestão? — perguntou Termo, agressivo. Termo lutava valentemente para seguir o exemplo de Catão, mas Nepos estava agora a atirar-lhe beijos e a multidão estava já positivamente histérica.
— Pois bem, porcella, por acaso até tenho...! — retorquiu Nepos, cada vez mais brilhante. — Estava a reparar nos belos veios que Catão tem na cara — pipinna, pipinna...! — quando dei com outra cara... não, meu querido, não foi a tua! Estás a ver ali? Aquele militar que está no quarto plinto a contar do fim, entre os bustos dos cônsules? Um belo rosto, não há dúvida! Tão branquinho, uns olhos azuis tão belos! Não tão magníficos como os teus, é claro, mas nada maus, nada maus... — Nepos juntou as mãos em torno da boca e gritou. — Eh lá, Quiris — sim, tu, aí ao fundo, ao pé dos bustos dos cônsules! És capaz de ler o nome que está inscrito nesse plinto? Sim, esse mesmo, esse com o cabelo louro e os olhos azuis! Qual é o nome? Pompeu? Que Pompeu? Mago? Disseste Mago? Ah, Magno! Obrigado, Quiris, obrigado! O nome é Pompeu Magno!
Termo cerrou os punhos. — Não te atrevas! — rosnou.
— Não me atrevo a quê? — perguntou Nepos com um ar inocente. — Embora admita que Pompeu Magno se atreve a tudo... Terá ele rival no campo de batalha? Não me parece. E ele está prestes a regressar da Síria, sem mais batalhas para travar. O Oriente está conquistado, e Cneu Pompeu Magno foi o conquistador. Coisa que não podes dizer do caprino Metelo, nem do régio Rei! Adorava ter ido para a guerra com eles, em vez de ter ido com Pompeu Magno! Para exigirem triunfos, devem ter combatido inimigos mais do que insignificantes...! Podia ter sido um verdadeiro herói se tivesse combatido ao lado deles, podia ter sido outro Caio César e ocultar agora a calvície com uma coroa de folhas de carvalho!
Nepos fez uma pausa para saudar César, que estava nos degraus da Cúria Hostília, naturalmente com a coroa de folhas de carvalho na cabeça.
— Sugiro, Quirites, que procedamos a um pequeno plebiscito para trazermos Pompeu Magno de volta a Roma e para lhe darmos um comando especial para esmagar a razão por que estamos ainda à mercê de um Senatus Consultum Ultimum! Vamos chamar Pompeu Magno para acabar aquilo que o homem da gota ainda nem sequer conseguiu começar — ou seja, para acabar com Catilina!
E as ovações voltaram a ouvir-se até que Catão, Termo, Fabrício e Lúcio Mário interpuseram os seus vetos.
Presidente do Colégio, era Metelo Nepos quem convocava a reunião e a dava por terminada. Decidiu que já fizera tudo o que tinha a fazer e foi com extrema satisfação que encerrou a assembleia. Retirou-se de braço dado com o irmão, Célere, agradecendo jovialmente os aplausos dos divertidíssimos plebeus.
— Achas que é agradável ficar careca — disse César, juntando-se a eles — quando o nosso cognome significa precisamente “espessa cabeleira”?
— O teu tatá nunca devia ter casado com uma Aurélia Cota — disse Nepos, nada arrependido por lhe ter atirado a piada. — Nunca conheci um Aurélio Cota que chegasse aos quarenta anos sem a cabeça tão careca como um ovo.
— Sabes, Nepos, até hoje nunca me tinha apercebido de que possuías um talento tão grande para a demagogia. Revelaste que tinhas estilo. Eles bebiam as tuas palavras! Gostei tanto da tua actuação que até te perdoei a piada...
— Devo confessar que me diverti imenso. Mas a verdade é que nunca conseguirei fazer nada, pois terei sempre Catão à perna, a gritar-me que veta tudo o que eu propuser...!
— Sem dúvida. Vais ter um ano absolutamente frustrante. Mas quando disputares cargos mais altos, os eleitores lembrar-se-ão de ti com grande afeição. É até muito provável que te dê o meu voto.
Os irmãos Metelos iam para o Palatino, mas percorreram a pequena distância que os separava da Domus Publica, para fazerem companhia a César.
— Ouvi dizer que vais voltar para a campanha da Etrúria — disse César para Célere.
— Amanhã, ao romper da aurora. Gostava de pensar que vou ter uma oportunidade de combater contra Catilina, mas o nosso comandante-chefe Híbrida pretende que eu me limite a ocupar as fronteiras do Piceno. Estou demasiado longe de Catilina. Antes de me enfrentar, Catilina tropeçaria por certo noutro exército qualquer. — Célere apertou afectuosamente o punho do irmão. — Aquele aparte sobre o nevoeiro no Tibre foi magnífico, Nepos.
— Estavas a falar a sério quando propuseste o regresso de Pompeu? — perguntou César.
— Em termos práticos, não faz muito sentido — retorquiu Nepos, seriamente. — E até sou capaz de admitir que, em parte, disse aquilo para ver qual seria a reacção. Contudo, se ele deixasse o seu exército no Oriente e viesse sozinho, talvez pudesse estar de volta dentro de um mês ou dois. Tudo dependeria da rapidez com que recebesse as ordens para voltar.
— Dentro de dois meses, até mesmo Híbrida terá já travado alguma batalha contra Catilina — disse César.
— Tens razão, como é evidente. Mas, depois de ter ouvido Catão, não estou assim tão certo de querer passar um ano inteiro em Roma a aguentar os vetos dele. Tu resumiste bem a questão quando disseste que vou ter um ano absolutamente frustrante. — Nepos suspirou. — Não se pode discutir a sério com Catão! Ele nunca adoptará as propostas alheias, ainda que estas façam todo o sentido! Além disso, é impossível intimidá-lo.
— Diz-se até — interveio Célere — que Catão já está preparado para o dia em que os outros tribunos da plebe não puderem mais com ele e ameaçarem atirá-lo para a Rocha Tarpeia. Quando Catão tinha dois anos, Silão, o chefe dos Marsos, costumava suspendê-lo sobre umas rochas afiadas e ameaçá-lo de que o atirava, mas o pequeno monstro, em vez de ficar cheio de medo, virava-se para Silão e olhava para ele com um ar de desafio.
— Sim, isso é mesmo típico de Catão — comentou César com um sorriso. — A história é verdadeira, pelo menos é o que Servília diz. Mas voltemos ao teu tribunato, Nepos. Terei entendido bem? Estás a pensar resignar?
— Sinto-me mais inclinado a provocar um grande espalhafato... A forçar o Senado a invocar o Senatus Consultum Ultimum contra mim...
— Insistindo no regresso de Pompeu?
— Ah, não creio que isso, por si só, bastasse para importunar a gente de Catulo...
— Precisamente.
— Contudo — disse Nepos —, se propusesse ao Povo que afastasse Híbrida por incompetência e fizesse regressar Magno com o mesmo imperium e condições que teve no Oriente, creio que Catulo e a sua gente desatariam aos berros. E se acrescentasse mais qualquer coisa — por exemplo, que Magno fosse autorizado a manter o seu imperium e os seus exércitos na Etrúria e a disputar o consulado no próximo ano, in absentia — não crês que isso já chegaria para provocar uma verdadeira erupção?
César desatou a rir. — Creio que os céus de Itália se encheriam de nuvens de fogo!
— Tu és um legislador famoso, Pontifex Maximus. Estarias disposto a ajudar-me na elaboração das propostas?
— Sim, podia ajudar-te.
— Esperemos então pelo fim de Janeiro. É natural que, nessa altura, Híbrida ainda não tenha travado nenhuma batalha contra Catilina. Ah, adoraria que me proibissem o exercício do cargo de tribuno!
— Vais cheirar pior do que um capacete de legionário, Nepos, mas apenas para os narizes de indivíduos como Catulo e Metelo Cipião.
— Não te esqueças também, César, de que terá de ser uma reunião de todo o Povo, o que significa que não posso convocá-la. Para isso, vou precisar pelo menos de um pretor.
— Será que o teu irmão já pensou nalgum pretor...? — perguntou César.
— Não faço a mínima ideia, César — retorquiu Célere, solenemente.
— E depois da interdição, vais para o Oriente juntar-te a Pompeu Magno.
— Exactamente — disse Nepos. — Dessa forma, não terão coragem para me impor a interdição quando eu regressar com Pompeu Magno.
Os irmãos Metelos despediram-se afectuosamente de César e seguiram o seu caminho, deixando César a olhar para eles. Excelentes aliados! O problema, pensou César, ao entrar em casa, era que nunca se sabia quando as coisas podiam mudar. Os aliados deste mês podiam ser os inimigos do próximo mês. Impossível saber.
Júlia não podia ter ficado mais contente. Quando César a mandou chamar, deu uma corrida, abriu a porta do gabinete do pai, atirou-se a ele e abraçou-o com toda a força.
— Tatá, eu compreendo tudo, até compreendo porque é que não me pudeste ver nos últimos cinco dias! Mas que pai mais brilhante! Puseste Cícero no seu lugar para todo o sempre.
— Crês que sim? Julgo que a maior parte das pessoas não sabe verdadeiramente qual é o seu lugar... Daí que tenham grandes dificuldades em encontrá-lo quando alguém como eu as põe no seu lugar...
— Oh... — disse Júlia, não muito convencida.
— E quanto a Servília?
Júlia sentou-se no colo dele e começou a beijar-lhe os leques brancos que lhe ornavam os cantos dos olhos. — Que queres que te diga, tatá? Não me compete a mim julgar-te. Eu, pelo menos, sei qual é o meu lugar. Bruto acha o mesmo que eu. Tencionamos continuar como se nada tivesse mudado. — Encolheu os ombros e acrescentou: — E de facto nada mudou.
— Mas que passarinho mais esperto que eu tenho no meu ninho! — Os braços de César estreitaram-na ainda mais; apertou-a com tanta força que ela quase sufocava. — Júlia, nenhum pai poderia ter uma filha melhor do que tu! És uma bênção! Não aceitaria Minerva e Vénus, as duas juntas numa só, em troca de ti...!
Em toda a sua vida, Júlia nunca se sentira tão feliz como naquele momento, mas era um passarinho suficientemente esperto para não ceder às lágrimas. Os homens não gostavam de mulheres que choravam; os homens gostavam de mulheres que se riam e que os faziam rir-se. Ser homem era tão, tão difícil — todas aquelas lutas públicas, sempre obrigados a lutar com unhas e dentes pela mais pequena coisa, inimigos por todo o lado a espreitarem os mais pequenos deslizes. Uma mulher capaz de lhes dar alegria em vez de angústias nunca poderia queixar-se de falta de amor, e Júlia sabia agora que o amor nunca lhe faltaria. Por alguma razão era filha de César; havia coisas que Aurélia não podia ensinar-lhe, mas ela aprendia-as sozinha.
— Devo então concluir — disse César, o rosto encostado ao cabelo dela — que o nosso Bruto não me dará um murro no olho da próxima vez que me vir...
— Claro que não! Se Bruto pensasse mal de ti, teria de pensar muito pior da mãe.
— Sem dúvida.
— Viste Servília nestes últimos cinco dias, tatá?
— Não.
Fez-se um breve silêncio; Júlia arranjou coragem para falar.
— Júnia Tércia é tua filha.
— Creio bem que sim.
— Quem me dera conhecê-la!
— Não é possível, Júlia. Eu próprio não a conheço.
— Bruto diz que, no temperamento, é igualzinha à mãe.
— Se assim é — disse César, retirando Júlia do colo e levantando-se —, talvez seja melhor não a conheceres.
— Como podes ter uma ligação íntima com alguém de quem não gostas?
— Servília?
— Sim.
O maravilhoso sorriso de César floresceu para a filha, e os cantos dos seus olhos preguearam-se todos, apagando os leques brancos de que Júlia tanto gostava. — Se eu soubesse responder-te a isso, meu passarinho, seria tão bom pai como tu és uma boa filha. Quem sabe? Eu não sei. Por vezes, chego a pensar que nem os deuses sabem. É possível que todos nós procuremos uma espécie de plenitude emocional quando nos ligamos a alguém. Mas não acredito que consigamos encontrá-la. E os nossos corpos fazem exigências que contrariam as nossas mentes — o que ainda complica mais as coisas. Servília... — encolheu os ombros, com um trejeito de desagrado —.. bom, Servília é a minha doença.
E foi-se embora. Júlia ficou muito quieta por um momento, o coração alegre. Naquele dia, atravessara uma ponte, a ponte que separava a rapariga da mulher adulta. César oferecera-lhe a mão e ajudara-a a atravessar. Revelara-lhe o seu eu mais íntimo e, de algum modo, ela sabia que o pai nunca fizera isso com mais ninguém, nem mesmo com a mãe dela. Quando finalmente se moveu, foi para dançar. Dançava ainda quando chegou aos aposentos de Aurélia.
— Júlia! Dançar não fica bem a uma rapariga da tua condição! Uma observação mesmo típica da avó, pensou Júlia. De súbito, sentiu tanta pena da avó que se abraçou a ela e a beijou ruidosamente em ambas as faces. Pobre avó, pobre avó! Devia ter perdido tanta coisa na vida! Não admirava que ela e o tatá andassem sempre a discutir!
— Seria mais conveniente para mim se, de futuro, fosses à minha casa — disse Servília a César, mal entrou nos aposentos dele, na Vicus Patricii.
— A casa não é tua, Servília. É de Silano, e o pobre coitado já tem problemas mais do que suficientes para ter de tolerar um invasor que, ainda por cima, vai para a cama com a mulher! — atirou-lhe César. — Gostei muito de fazer isso a Catão, mas não o farei a Silano. Para uma grande senhora patrícia, não há dúvida que, por vezes, a tua moral deixa muito a desejar! Assemelha-se mais à moral de um qualquer fedelho das sarjetas de Subura...
— Faze como entenderes — disse Servília, sentando-se. Aquela reacção, aos olhos de César, era significativa; podia detestar Servília, mas já a conhecia muito bem, e o facto de ela ter resolvido sentar-se vestida, em vez de começar a despir-se imediatamente, significava que ela não estava tão segura da sua posição como a sua atitude sugeria. Por isso, César sentou-se também, numa cadeira de onde podia observá-la e onde ela poderia observá-lo da cabeça aos pés. A pose dele era graciosa e digna, o pé esquerdo para trás, o direito estendido, o braço esquerdo caído sobre as costas da cadeira, a mão direita sobre o colo, a cabeça direita, mas o queixo erguido.
— Devia estrangular-te — disse ele, após uma pausa.
— Silano acha que devias cortar-me aos bocadinhos e atirar-me aos lobos.
— Ah sim? Que interessante!
— Ah, claro, claro que ele está do teu lado! Inteiramente do teu lado! Vocês, os homens, fazem sempre uma bela equipa...! Silano teve até a ousadia de ficar irritado comigo porque — não entendo porquê! — a minha carta o obrigou a votar a favor da execução dos conspiradores. Nunca ouvi maior disparate em toda a minha vida!
— Julgas-te uma especialista em política, minha cara, mas, na verdade, és uma ignorante. Nunca podes ver a política senatorial em acção e há uma enorme diferença entre a política senatorial e a política comicial. Suponho que, quando entra na vida pública, um homem já sabe que, mais tarde ou mais cedo, terá um par de cornos. Mas nenhum homem gosta de exibir os seus cornos no Senado, durante um debate de extrema importância — disse César, asperamente. — Claro que o obrigaste a votar a favor da execução! Se ele tivesse votado comigo, todo o Senado teria pensado que ele era uma espécie de proxeneta... Silano pode ser um homem doente, mas isso não lhe mata o orgulho. Por que achas que ele manteve o silêncio depois de ter sido informado do que se passava entre nós? Uma mensagem lida por meio Senado, pela metade importante do Senado? Foi como se lhe tivesses atirado à cara a verdade à frente de toda a gente.
— Pelos vistos, apoia-lo tanto como ele te apoia a ti. César deu um suspiro explosivo e virou os olhos para o tecto.
— Eu não apoio ninguém, Servília. Ou melhor, só me apoio a mim.
— Pois ainda bem!
Fez-se silêncio. César não demorou a quebrá-lo.
— Os nossos filhos vencem-nos em maturidade. Reagiram muito bem, com toda a sensatez.
— Ah sim? — disse ela, indiferente.
— Não falaste com Bruto?
— Só lhe falei, depois de Catão ter aparecido em minha casa para informar Bruto de que a mãe era uma mulher dissoluta. Ou melhor, que era uma rameira — foi esse o termo que ele usou. — Servília sorriu, recordando a cena. — Deixei-lhe a cara num estado miserável.
— Ora aí está uma bela resposta, sim senhor! Da próxima vez que vir Catão, tenho de lhe exprimir a minha solidariedade. Também eu já fui vítima das tuas garras.
— Só que as tuas marcas não estavam à vista de toda a gente.
— Pelos vistos, tenho de te agradecer tanta misericórdia.
— Que tal estava ele? Horrendo? Deixei-lhe marcas profundas? — perguntou ela, ansiosa por saber.
— Pobre Catão, está um horror. Dir-se-ia que foi atacado por uma harpia. — César sorriu. — Pensando bem, creio que o termo harpia
te assenta muito melhor do que “rameira”. Mas não te alegres demasiado. Catão tem uma pele resistente. Por isso, com o tempo, as marcas acabarão por desaparecer.
— Tu também não ficas com marcas.
— Catão e eu temos o mesmo tipo de pele. A experiência da guerra ensina a um homem o que é passageiro e o que permanece para sempre. — Outro suspiro explosivo. — Que vou fazer contigo, Servília?
— Talvez não devas ser tu a pôr essa questão, César. A iniciativa talvez me pertença a mim, e não a ti.
O que provocou um risinho. — Que disparate... — disse ele, afavelmente.
Servília empalideceu. — Queres dizer que te amo mais do que tu a mim...
— Eu não te amo rigorosamente nada, Servília.
— Nesse caso, por que razão estamos juntos?
— Porque me agradas na cama, o que é raro em mulheres da tua classe. Gosto da combinação. E tens mais coisas entre as tuas duas orelhas do que a maior parte das mulheres, apesar de seres uma harpia.
— Achas que é esse o sítio? — perguntou ela, desesperada por afastá-lo das suas imperfeições.
— O sítio de quê?
— Do nosso aparelho intelectual.
— Pergunta a qualquer médico militar ou a qualquer soldado, que eles to dirão. São os golpes na cabeça que afectam o nosso aparelho intelectual. Cerebrum. Aquilo que os filósofos discutem não é o cerebrum, é o animus. O espírito que nos anima, a alma. A parte que pode conceber ideias que não têm qualquer relação com os nossos sentidos, desde a música à geometria. Essa parte, não sei onde fica. Na cabeça, no peito, na barriga... — sorriu. — Até pode ser que fique nos dedos grandes dos pés. Basta ver o que a gota fez a Hortênsio...
— Creio que respondeste à minha pergunta. Agora sei por que razão estamos juntos.
— Porquê?
— Por causa disso. Eu sou a tua pedra de amolar. Tu afias o teu engenho em mim, César.
Servília levantou-se e começou a despir-se. De repente, César desejou-a loucamente. Mas não, não queria levá-la para a cama, não queria abraçá-la, não queria tratá-la com ternura. Não se domava uma harpia com ternura. Uma harpia tinha de se tornar grotesca, tinha de ser possuída no chão, com os dentes do macho fincados no pescoço dela, com as garras presas atrás das costas, tinha de ser possuída assim, várias vezes, submetida, miserável, grotesca.
A brutalidade acabava sempre por amansá-la; Servília mostrava-se mais branda, mesmo um pouco coquette, quando ele a levou do chão para a cama.
— Já alguma vez amaste uma mulher? — perguntou-lhe ela então.
— Cinila — disse ele abruptamente, e logo cerrou os olhos para esconder as lágrimas.
— Porquê? — perguntou a harpia. — Ela não tinha nada de especial, não era espirituosa, nem inteligente. Embora fosse patrícia, é certo.
Em resposta, César virou-lhe as costas e afastou-se dela, fingindo querer dormir. Falar de Cinila com Servília? Não, isso nunca!
Porque é que a amei tanto, se era realmente amor o que eu sentia por ela? Cinila foi minha desde o momento em que lhe peguei na mão e a levei de casa de Caio Mário, quando este se transformara numa sobra demente de si mesmo. Que idade tinha eu então? Treze anos? E ela não tinha mais do que sete, aquela menina adorável... Tão morena, roliça, doce... O modo como encolhia o lábio superior quando sorria, e tanto que ela sorria... Ela era a gentileza personificada. E não havia na sua vida motivos para isso, bem pelo contrário. A menos que fosse eu o motivo. Porque é que gostei tanto dela? Por termos vivido juntos desde meninos? Ou terá sido porque, acorrentando-me a um cargo sacerdotal e casando-me com uma criança que ele não conhecia, o velho Caio Mário me ofereceu algo que, de tão precioso, nunca encontrará rival no meu coração?
Sentou-se bruscamente na cama, o corpo convulsionado pela comoção, e deu uma tal palmada no rabo de Servília que esta ficaria com a marca o resto do dia.
— São horas de partires — disse ele. — Vai-te embora, Servília! Vai, vai!
Servília retirou-se sem uma palavra. Retirou-se apressadamente, pois havia algo na expressão dele que lhe inspirava precisamente o mesmo tipo de terror que ela suscitava em Bruto. Mal fechou a porta, César enterrou a cabeça na almofada e chorou, chorou, chorou. Como nunca chorara desde a morte de Cinila.
O Senado não voltou a reunir-se nesse ano. Não era um caso invulgar, já que não existia nenhum programa formal de reuniões; estas eram convocadas por um magistrado — normalmente, o cônsul que, pelo prazo de um mês, tinha osfasces. Sendo Dezembro o mês, era António Híbrida quem deveria sentar-se na cadeira de cônsul; contudo, dada a ausência de Híbrida, Cícero teve de substituí-lo. E a verdade é que Cícero já tinha tido a sua conta. Por outro lado, da Etrúria não viera ainda nenhuma notícia capaz de fazer sair os senadores das suas tocas. Cobardes, todos uns cobardes, repetia Cícero para si mesmo. Além do mais, o cônsul sénior receava o que César pudesse fazer, se lhe fosse dada alguma oportunidade. Em todas as assembleias, Metelo Nepos defendia o afastamento de Híbrida. Catão, por seu turno vetava. Ático e outros cavaleiros das Dezoito que apoiavam Cícero esforçavam-se por convencer as pessoas das razões do Senado; contudo, em todos os níveis da sociedade romana, deparavam-se-lhes expressões muito, muito sombrias.
O único factor com que Cícero não tinha contado eram os jovens; privados do seu amado padrasto, os Antónios tinham-se tornado membros do Clube de Clódio. Em circunstâncias normais, uma pessoa com a idade e a posição de Cícero nunca teria reparado neles; contudo, a conspiração de Catilina e as suas consequências tinham-nos arrancado à obscuridade natural da juventude. E a influência de que eles já dispunham! Ah, não, claro que não tinham qualquer peso na Primeira Classe; mas tinham-no em todos os níveis da sociedade romana inferiores a esse.
O jovem Curião constituía um bom exemplo. Selvagem e violento, havia sido preso no seu quarto pelo velho Curião, já sem paciência para enfrentar as consequências dos vícios do rapaz: o jogo, a bebida, a dissolução sexual. Mas tal medida não dera resultado. Marco António libertara-o da prisão e os dois haviam sido vistos numa taberna mal frequentada, jogando aos dados, bebendo, e beijando-se voluptuosamente. Agora, o jovem Curião tinha uma causa e, de súbito, exibia uma parte de si mesmo que nada tinha a ver com o vício ou com a ociosidade. Era muito mais inteligente do que o pai e, além disso, revelava-se um brilhante orador. Todos os dias fazia das suas no Fórum.
Depois, havia Décimo Júnio Bruto Albino, filho e herdeiro de uma família que, por tradição, se opunha a todas as causas populistas; Décimo Bruto Calaico fora um dos mais inexoráveis inimigos dos irmãos Gracos, aliado ao ramo do clã Semprónio que não tinha qualquer parentesco com os Gracos e que possuía o cognome de Tuditanos. Essa amicitia mantivera-se na geração seguinte, o que significava que o jovem Décimo Bruto deveria ter apoiado homens como Catulo, e não agitadores como Caio César. Contudo, Décimo Bruto aparecia no Fórum para incitar Metelo Nepos, para aplaudir César sempre que este aparecia, e para seduzir todo o tipo de gente, desde libertos até à Quarta Classe. Um outro jovem extremamente inteligente e capaz que, pelos vistos, recusava os princípios defendidos pelos boni — e que gostava de más companhias!
Quanto a Públio Clódio — bom... Desde o julgamento das vestais, ocorrido dez anos antes, que toda a gente sabia que Clódio era o mais acirrado inimigo de Catilina. E no entanto, ali estava ele, rodeado por uma multidão impressionante de clientes (como era possível que tivesse mais clientes do que o irmão mais velho, Ápio Cláudio?), sempre pronto a levantar problemas aos inimigos de Catilina! E normalmente aparecia de braço dado com a mulher, o que, por si só, constituía uma afronta colossal! Uma mulher não devia frequentar o Fórum; uma mulher não devia assistir às assembleias num local proeminente; uma mulher não devia erguer a voz para encorajar um orador ou, pior ainda, para berrar obscenidades. E Fúlvia fazia tudo isso — e a multidão, pelos vistos, gostava, nem que fosse pelo facto de ela ser bisneta de Caio Graco, que não deixara filhos varões.
Até à execução do padrasto, nunca ninguém levara a sério os Antónios, talvez porque os homens só se interessavam pelos escândalos a que estavam associados. Nenhum dos três Antónios tinha a habilidade ou o brilhantismo do jovem Curião, de Décimo Bruto ou de Clódio; no entanto, possuíam algo que talvez seduzisse mais as multidões, o mesmo fascínio exercido pelos grandes gladiadores ou condutores de carros: um poder físico impressionante, um poder que derivava da força bruta. Marco António tinha o hábito de aparecer vestido unicamente com uma túnica, um traje que lhe permitia exibir os notáveis bícepes e os maciços músculos das pernas, a largueza dos ombros, a lisura da barriga, o peito saliente, os antebraços fortes como madeira de carvalho; por outro lado, usava a túnica muito justa, de tal modo que a forma do seu sexo se tornava claramente visível, não sendo difícil concluir que se tratava de um apêndice avantajado. As mulheres suspiravam e ficavam afogueadas; os homens engoliam em seco e morriam de inveja. O rosto era muito feio, com um grande nariz adunco, separado de um queixo enorme e agressivo por uma boca pequena, mas com lábios grossos; os olhos estavam demasiado próximos e as faces eram carnudas. Mas o cabelo castanho era espesso e encaracolado, e as mulheres diziam, em jeito de piada, que beijar Marco António devia ser um exercício divertido, já que, para lhe chegarem à boca, teriam de fazer uma grande ginástica para evitar aqueles dois portentos, o nariz e o queixo. Em suma, Marco António (e também os seus irmãos, embora não tanto) não precisava de ser um grande orador ou um advogado brilhante; bastava-lhe continuar a ser o que era, um monstro que infundia respeito.
Uma série de boas razões para Cícero não reunir o Senado naquele período final do seu consulado — se por acaso César não fosse um motivo mais do que suficiente para ficar sossegado.
Contudo, no último dia de Dezembro, já com o Sol perto do ocaso, o cônsul sénior reuniu o Povo na Assembleia Popular e devolveu as insígnias consulares. Preparara laboriosamente a sua despedida, pois queria abandonar o palco consular com um discurso melhor do que tudo o que Roma até então ouvira. A sua honra exigia-o, tal como a sua auto-estima. Mesmo que António Híbrida estivesse em Roma, Cícero não teria rival à altura no seu colega. Mas Híbrida não estava presente e Cícero tinha o palco todo para si. Que maravilha!, pensou.
— Quirites — começou ele, no seu mais doce tom de voz —, este foi um ano extremamente importante para Roma.
— Veto, veto! — gritou Metelo Nepos do poço dos Comitia. — Eu veto todos os discursos, Cícero! Um homem que executou cidadãos romanos sem julgamento não pode ter a oportunidade de justificar o que fez! Cala a boca, Cícero! Presta o juramento e retira-te dos rostra!
Por um longo momento, fez-se um silêncio absoluto. É claro que o cônsul sénior nutrira a esperança de que a afluência de público fosse suficientemente grande para justificar a transferência da reunião do poço dos Comitia para os rostra do templo de Castor; mas tal não acontecera. Contudo, Ático fizera um bom trabalho; todos os cavaleiros que apoiavam Cícero estavam presentes, e pareciam ser em maior número do que a oposição. Mas nunca ocorrera a Cícero que Metelo Nepos pudesse vetar algo de tão tradicional como o direito do cônsul cessante a falar. E não havia maneira de tornear essa questão, com mais apoiantes ou menos apoiantes. Pela segunda vez num curto período, Cícero desejava de todo o coração que a lei de Sila proibindo o veto tribunício estivesse ainda em vigor. Mas não estava. Sendo assim, que poderia ele dizer? Nada, rigorosamente nada!
E foi assim que acabou por prestar juramento segundo a antiquíssima fórmula usada para esse efeito, aproveitando esse breve momento para introduzir a seguinte conclusão: — Juro também que, graças aos meus esforços e sem a ajuda de ninguém, salvei o meu país, e que eu, Marco Túlio Cícero, cônsul do Senado e do Povo de Roma, garanti a manutenção do governo legal e defendi Roma dos seus inimigos!
Ao ouvir isto, Ático começou a aplaudir, no que foi seguido pelos seus apoiantes de forma entusiástica. Os jovens contestatários não estavam presentes e, por isso, não foram muitas as vaias; era véspera de Ano Novo e, pelos vistos, esses jovens tinham coisas mais interessantes para fazer do que assistir à despedida de Cícero. Apesar de tudo, foi uma vitória, pensou Marco Túlio Cícero, descendo os degraus dos rostra e estendendo os braços para abraçar Ático. Num instante, pegaram nele em ombros e ornaram-lhe a cabeça com uma coroa de louros; e foi assim que a multidão o levou até aos Degraus dos Ourives. Pena que César não estivesse presente para ver aquela cena. Porém, como todos os magistrados prestes a assumir funções, César não podia assistir àquelas cerimónias. O dia seguinte seria o seu dia; seria então que ele e todos os novos magistrados prestariam o seu juramento no templo de Júpiter Optimus Maximus e dariam início a um ano que Cícero temia que fosse calamitoso para os boni. Pelo menos em relação à atitude de César, Cícero não tinha dúvidas: César tudo faria para que aquele ano fosse desastroso para os boni.
E a manhã do dia seguinte confirmou esse pressentimento. Logo que a cerimónia de juramento terminou e o calendário foi ajustado, o novo preator urbanas, Caio Júlio César, deixou à pressa essa primeira reunião do Senado e deslocou-se ao poço dos Comitia a fim de reunir a Assembleia Popular. Era óbvio que tudo fora previamente preparado; à espera dele só se encontravam os defensores das teses populistas, desde os jovens contestatários aos apoiantes de César no Senado, passando pela inevitável multidão constituída por proletarii, relíquias dos anos que passara em Subura — Judeus com o tradicional solidéu, que se tinham tornado cidadãos e que, com a conivência de César, haviam sido inscritos numa tribo rural, libertos, uma série de pequenos comerciantes também inscritos em tribos rurais, e, nas franjas do poço dos Comitia, também as mulheres, as irmãs, as filhas, as tias, desses homens.
A sua voz naturalmente profunda desapareceu como por encanto nesse momento; César adoptou o tom sonoro e claro de tenor que era o que melhor se adaptava àquele recinto e àquela multidão. — Povo de Roma, convoquei esta reunião para apresentar o meu protesto contra um insulto a Roma, um insulto que, por ser tão terrível, muitas lágrimas faz correr aos deuses! Há mais de vinte anos, o templo de Júpiter Optimus Maximus foi consumido por um incêndio. Na minha juventude, fui flamen Dialis, o sacerdote especial de Júpiter Optimus Maximus, e agora, que sou adulto, sou o Pontifex Maximus, uma vez mais consagrado ao serviço do Grande Deus. Hoje, tive de prestar juramento no novo edifício que Lúcio Cornélio Sila Félix encarregou Quinto Lutácio Catulo de construir já lá vão dezoito anos. E, Povo de Roma, senti-me envergonhado! Envergonhado! Senti-me profundamente envergonhado na presença do Grande Deus, e chorei, ainda que ocultasse as lágrimas com a minha toga praetexta. Não conseguia olhar para o rosto da nova estátua do Grande Deus — encomendada e paga pelo meu tio Lúcio Aurélio Cota e pelo seu colega no consulado, Lúcio Mânlio Torquato! Sim, há poucos dias o templo de Júpiter Optimus Maximus nem sequer possuía a sua efígie do Grande Deus!
Embora a sua presença nunca passasse despercebida, nem mesmo no meio de uma multidão, César, agora que era pretor urbano, parecia ter crescido tanto em estatura como em magnificência; toda a força que vivia dentro dele saía cá para fora e dominava e arrebatava todos os seus ouvintes.
— Como é possível que uma coisa destas aconteça? — perguntou ele à multidão. — Por que razão o espírito que guia Roma é tão negligenciado, tão insultado, tão denegrido? Por que razão se encontram as paredes do templo privadas dos melhores objectos de arte que a nossa época pode oferecer? Por que razão não se vêem ofertas magníficas de reis e príncipes estrangeiros? Por que razão Minerva e Juno não passam de ar, de numina, de ausências? Não vi nenhuma estátua dessas deusas, nem mesmo uma estátua de barro! Onde está o ouro? Onde estão os carros de ouro? Onde estão os frisos gloriosos, os soalhos fabulosos?
Fez uma pausa, respirou fundo, e a sua expressão tornou-se ameaçadora. — Eis a resposta, Quirites! O dinheiro para essas maravilhas está na bolsa de Catulo! Todos os milhões de sestércios que o Tesouro de Roma entregou a Quinto Lutácio Catulo nunca deixaram a sua conta bancária! Desloquei-me ao Tesouro e pedi que me mostrassem os registos, e não há registo nenhum! Ou melhor: não há nenhum registo que nos esclareça sobre o destino de muitas, muitas somas que, ao longo de muitos anos, foram pagas a Catulo! Sacrilégio! Tudo se resume a esta palavra: sacrilégio! O homem a quem foi confiada a reconstrução da casa de Júpiter Optimus Maximus, e que deveria tê-la tornado mais bela e gloriosa do que nunca, apropriou-se indevidamente dos fundos!
A diatribe prosseguiu, alimentando a indignação sempre crescente da multidão; o que César estava a dizer era verdade: toda a gente podia ver com os seus próprios olhos!
Nesse momento, apareceu Quinto Lutácio Catulo, vindo apressadamente do Capitólio, quase correndo, seguido por Catão, Bíbulo e o resto dos boni.
— Lá está ele! — gritou César, apontando para Catulo. — Olhem para ele! Ah, o descaramento...! A ousadia...! Contudo, Quirites, temos de conceder que o homem tem coragem, não acham? Vejam só como corre o vigarista...! Como pode ele correr? Não lhe pesará todo o dinheiro do Estado que embolsou? Quinto Lutácio Peculato! Sim, Peculato é o cognome que lhe convém!
— Qual é o significado disto, praetor urbanus? — perguntou Catulo, ofegante. — Hoje é feriae, não podes convocar uma assembleia!
— Como Pontifex Maximus, tenho toda a liberdade para convocar o Povo para discutir uma questão religiosa, em qualquer dia e a qualquer hora! E esta é, sem sombra de dúvida, uma questão religiosa. Estou a explicar ao Povo por que razão Júpiter Optimus Maximus não tem uma casa em condições!
Catulo ouvira aquele sarcástico Peculato! e não precisava de mais informações para tirar a devida conclusão. — Hás-de pagar por isto, César! — exclamou ele, brandindo um punho ameaçador.
— Oh! — disse César, recuando com medo fingido. — Ouviram o que ele disse, Quirites? Eu digo que Catulo cometeu o sacrilégio de devorar os dinheiros públicos de Roma e que faz Catulo? Ameaça-me...! Ora, Catulo, por que não admites aquilo que toda a Roma sabe ser verdade? As provas estão à vista de toda a gente — muito mais provas do que aquelas que tinhas, quando me acusaste de traição no Senado! Basta olhar para as paredes, para o chão, para os plintos vazios, para a ausência de ofertas, para ver a humilhação que infligiste a Júpiter Optimus Maximus!
Catulo ficou sem palavras, já que não sabia como explicar a sua posição perante uma multidão furiosa — ah, a posição em que Sila o tinha deixado! As pessoas não faziam a mínima ideia de quanto era preciso gastar para construir um edifício tão imponente e eterno como o templo de Júpiter Optimus Maximus. Tudo o que tentasse dizer em sua defesa soaria a mentira — frágeis mentiras que provocariam ruidosas gargalhadas.
— Povo de Roma — disse César para a irada multidão —, proponho que discutamos duas leis: a primeira, tendo em vista levar a juízo Quinto Lutácio Catulo por malversação de fundos públicos; e a segunda, visando o seu julgamento por sacrilégio!
— Veto toda e qualquer discussão sobre esses dois temas! — atroou Catão.
Ao ouvir isto, César encolheu os ombros, estendeu as mãos num gesto que perguntava claramente o que poderia um homem fazer quando Catão começava a vetar, e gritou bem alto: — Dou por encerrada esta reunião! Vão para casa, Quirites, e ofereçam sacrifícios ao Grande Deus — rezem para que ele permita que Roma continue de pé, quando há homens que roubam os seus fundos e desrespeitam os contratos sagrados!
Desceu com um passo ligeiro os degraus dos rostra, brindou os boni com um sorriso de satisfação, e subiu a Sacra Via rodeado por centenas de pessoas indignadas, todas elas pedindo que não desse o caso por encerrado, que seguisse em frente e processasse Catulo.
Bíbulo deu-se conta de que Catulo respirava com extrema dificuldade e abeirou-se dele para o apoiar. — Depressa! — gritou ele para Catão e Aenobarbo, enquanto despia a sua toga. Os três homens fizeram então uma padiola com a toga, obrigaram Catulo a deitar-se nela, apesar dos seus muitos protestos, e, com Metelo Cipião segurando a quarta ponta, levaram Catulo para casa. A sua cara estava mais cinzenta do que azul, talvez um bom sinal, mas foi com alívio que entraram em casa do chefe dos boni e o deitaram na cama, perante o alarme da mulher, Hortênsia. Catulo ficaria bem — por ora.
— Mas quanto mais é que o pobre Quinto Catulo aguentará? — perguntou Bíbulo, ao saírem para a Clivus Victoriae.
— Temos de calar aquele irrumator para sempre! — disse Aenobarbo, furibundo, referindo-se evidentemente a César. — Se não há outra maneira, matemo-lo!
— Não querias dizer fellator? — perguntou Caio Pisão, tão atemorizado com a expressão de Aenobarbo que não conseguiu resistir àquela oportunidade para desanuviar a atmosfera. Não sendo normalmente um homem prudente, apercebia-se agora de que havia sérias ameaças no ar e não deixava de pensar no seu próprio destino.
— César, fellator? — perguntou Bíbulo com o maior desdém. — Nem pensar! Os reis sem coroa não chupam! Põem os escravos a chupá-los...!
— Voltamos ao mesmo — suspirou Metelo Cipião. — Temos de calar César, temos de impedir César de fazer isto e aquilo, mas nunca conseguimos impedi-lo de fazer seja o que for.
— Podemos impedi-lo e impedi-lo-emos — disse o pequeno Bíbulo. — Um passarinho disse-me que, muito em breve, Metelo Nepos proporá o regresso de Pompeu do Oriente, a fim de assumir a chefia dos exércitos contra Catilina — e proporá também que lhe seja concedido imperium maius. Imaginem só...! Um general em Itália, possuindo um imperium que nunca foi concedido a ninguém, excepção feita aos ditadores!
— De que modo é que isso pode ajudar-nos em relação a César? — perguntou Metelo Cipião.
— Nepos não pode apresentar uma lei dessas à Plebe. Terá de ir ao Povo. Acham que Silano ou Murena estariam de acordo em convocar uma reunião para conceder um imperium maius a Pompeu? Não, claro que não! É César quem vai convocar essa reunião.
— E depois?
— Depois, faremos com que a reunião descambe em violência. Ora, sendo César o responsável, perante a lei, por qualquer acção violenta, poderemos acusá-lo de infracção à lex Plautia de vi. Não sei se te esqueceste, Cipião, mas eu sou o pretor que preside ao tribunal que julga as acções violentas! Para apanhar César, sou capaz de tudo, incluindo perverter a justiça. Sou até capaz de ir ter com Cérbero e de lhe fazer uma festinha em cada uma das suas três cabeças!
— Mas isso é brilhante, Bíbulo! — exclamou Caio Pisão.
— E por uma vez — disse Catão — eu não protestarei contra a ausência de justiça. Se César for condenado, será feita justiça!
— Catulo está a um passo da morte — disse Cícero inopinadamente. Mantivera-se afastado do grupo, dolorosamente consciente de que nenhum daqueles homens o considerava suficientemente importante para o integrar na conspiração. Ele, o campónio de Arpino. Salvador do país, mas esquecido por todos logo que deixou o seu cargo.
Os outros viraram-se para ele, estupefactos.
— Que disparate! — berrou Catão. — Ele vai ficar bom.
— Sim, desta vez é possível que fique. Mas já não lhe falta muito — manteve Cícero, obstinadamente. — Há pouco tempo, disse-me que César estava a rasgar o fio da sua vida, como se César fosse uma corda resistente e ele um frágil fio de uma teia de aranha.
— Então temos de acabar com César! — exclamou Aenobarbo. — Quanto mais alto ele subir, mais intolerável se tornará!
— Quanto mais alto ele subir, mais certa será a sua queda — disse Catão. — Porque, enquanto eu for vivo e ele for vivo, usarei de todos os meios para que ele caia. Solenemente o juro, perante todos os nossos deuses!
César, ignorando os malévolos planos dos boni, foi para casa, pois esperava-o um jantar festivo. Licínia renunciara aos seus votos e Fábia era agora a chefe das vestais. A passagem de testemunho fora marcada por cerimónias várias e por um banquete oficial oferecido a todos os colégios sacerdotais, mas, no dia de Ano Novo, o Pontifex Maximus oferecia um jantar muito mais restrito; os convidados, ou melhor, as convidadas, eram apenas as cinco vestais, Aurélia, Júlia, e Terência, meia-irmã de Fábia e esposa de Cícero. O ex-cônsul sénior fora convidado, mas declinara. Tal como Pompeia Sila. Ambos haviam invocado compromissos anteriores. O Clube de Clódio estava em festa nesse dia. Contudo, César tinha motivos de sobra para pensar que Pompeia não poria em perigo o seu bom nome. Polixena e Cardixa não a largavam: elas eram, sem sombra de dúvida, as lapas de uma rocha chamada Pompeia.
O meu pequeno harém, pensou César, divertido, ainda que se sentisse algo descoroçoado quando os seus olhos se detiveram na amarga e agreste Terência. Impossível imaginar Terência naquele contexto, naquele espaço, com aquelas pessoas! Nem mesmo a imaginação mais fantasiosa conseguiria uma tal proeza...
Passara já tempo bastante para que as vestais tivessem perdido a timidez. Isso era especialmente verdade no caso das duas crianças, Quintília e Júnia, as quais, como seria de esperar, o adoravam. Ele metia-se com elas, ria-se e brincava com elas, nunca assumia com elas um ar distante, e parecia compreender muito do que se passava nas suas mentes infantis. Mesmo as duas vestais mais austeras, Popília e Arúncia, tinham agora razões de sobra para crer que, com Caio César a viver a seu lado, nunca mais haveria acusações de quebra do voto de castidade.
É espantoso!, pensou Terência a meio da alegre refeição, é espantoso como um homem com tão grande fama de mulherengo consegue lidar tão habilmente com este grupo de mulheres tão vulneráveis. Por um lado, mostrava-se acessível, ou mesmo afectuoso; por outro lado, não lhes dava a mínima esperança. Todas elas passariam o resto das suas vidas apaixonadas por ele, mas não de uma forma torturada. Porque César não lhes dava rigorosamente esperança nenhuma. De tal forma que nem mesmo Bíbulo conseguira produzir e espalhar um único boato sobre César e o seu grupo de vestais. Há mais de um século que não havia um Pontifex Maximus tão meticuloso, tão escrupuloso, tão devotado ao seu trabalho; há menos de um ano que desempenhava o cargo, mas gozava já de uma reputação indestrutível. Nomeadamente no que tocava ao seu relacionamento com o bem mais precioso de Roma, as suas virgens consagradas.
Terência, muito naturalmente, permanecia leal a Cícero; durante o caso Catilina, fora ela quem mais sofrera por causa dele. Desde a noite do quinto dia de Dezembro que acordava a meio da noite para o ajudar a suportar os pesadelos, para o ouvir repetir o nome de César, vezes sem conta e nunca sem raiva ou dor. Fora César, e mais ninguém, quem arruinara o triunfo de Cícero; fora César quem atiçara os ressentimentos do Povo. Metelo Nepos era um indivíduo insignificante; e se agora podia mostrar os seus dentes afiados, podia agradecer a César. E, no entanto, Fábia dava-lhe uma visão diferente de César; e Terência era uma mulher demasiado fria para contestar a justeza e a autenticidade dessa visão. Cícero era, em sua opinião, um homem muito mais bondoso e valoroso. Ardente e sincero, punha um entusiasmo e uma energia sem limites em tudo o que fazia, e ninguém podia duvidar da sua honestidade. Contudo, decidiu Terência com um suspiro, nem mesmo um intelecto tão notável como o de Cícero poderia superar a riqueza intelectual de César. Por que raio é que aquelas famílias antiquíssimas continuavam a produzir homens como Sila ou César? Há séculos que deviam estar esgotadas...!
Terência acordou dos seus devaneios quando César ordenou às duas meninas que fossem para a cama.
— Acabaram-se as festas e, amanhã, os pardalitos têm de levantar-se muito cedo — acenou para Eutico. — Leva as damas para casa, Eutico. E certifica-te de que os criados estão à espera delas à porta do Atrium Vestae.
E as duas meninas lá foram, a ágil Júnia muito à frente da gorda Quintília. Aurélia observou-as, comentando para si mesma: Quintília tem de fazer dieta! Porém, alguns meses antes, quando dera instruções para que a menina seguisse um regime, César ficara furioso e proibira terminantemente toda e qualquer dieta.
— Deixa-a em paz, mater. Tu não és Quintília e Quintília não se chama Aurélia. Se a bonequita gosta de comer, deixa-a comer!
Ela é feliz assim...! A pobrezinha não tem nenhum marido à sua espera e eu quero que ela continue a gostar de ser vestal.
— Mas ela vai morrer de tanto que come...!
— Então que morra. Só estarei de acordo com dietas quando Quintília me disser que quer passar fome.
Que podia ela fazer com um homem assim? Calar-se muito calada e desistir. Foi o que Aurélia fez.
— Imagino — disse ela, com um toque ácido na voz, depois de as meninas se terem retirado — que vais escolher Minúcia, entre as várias candidatas, para preencher o lugar de Licínia. Ou não?
As sobrancelhas louras de César ergueram-se. — O que é que te leva a tirar essa conclusão?
— Pareces ter um fraquinho por crianças gordas.
Mas este comentário não teve o efeito desejado; César riu-se. — Eu tenho um fraquinho por crianças, mater! Altas, baixas, magras, gordas, pouca diferença faz. Contudo, e visto que referiste esse assunto, tenho o prazer de vos anunciar que a penúria de vestais acabou. Até agora, já tive cinco ofertas muito boas: cinco crianças com as melhores linhagens e todas elas com dotes excelentes.
— Cinco? — perguntou Aurélia, surpreendida. — Pensava que eram só três.
— Podemos conhecer os nomes delas? — perguntou Fábia.
— Não vejo por que não. A escolha é minha, mas eu não me movo num mundo feminino e não tenho a pretensão de conhecer tudo sobre as situações domésticas dentro das várias famílias. Duas delas, contudo, não terão grandes hipóteses. E uma delas, por acaso, é Minúcia — disse César, fazendo o possível e o impossível por deixar a mãe desconcertada.
— Nesse caso... quem são as tuas preferidas?
— Uma Octávia do ramo que usa o praenomen de Cneu.
— Deve ser a neta do cônsul que morreu na fortela do Janículo quando Mário e Cina cercaram Roma.
— Precisamente. Alguma de vós tem informações concretas acerca dela?
Ninguém tinha informações acerca de Octávia. César revelou então mais um nome: Postúmia.
Aurélia franziu o sobrolho, tal como Fábia e Terência.
— Mas que caras...! Qual é o problema de Postúmia?
— É uma família patrícia — disse Terência. — Mas creio que a menina é do ramo dos Albinos, que teve o seu último cônsul há mais de quarenta anos. É isso, não é?
— É.
— E tem oito anos?
— Precisamente.
— Então não a escolhas, César. É uma família com muitos problemas alcoólicos e tem uma legião de filhos...! Francamente, não percebo o que deu àquela mãe, para ter tantos filhos! Ainda por cima, as crianças bebem vinho com água desde que são desmamadas. Para dizer a verdada, essa Postúmia, apesar de ter só oito anos, já se embebedou várias vezes. Já chegou a ficar inconsciente, de tanto vinho que bebeu...!
— Por todos os deuses!
— E a terceira, tatá, quem é? — perguntou Júlia, com um sorriso.
— Cornélia Merula, a bisneta do flamen Dialis Lúcio Cornélio Merula — disse César, solenemente.
Todos os olhos se viraram para ele com um ar acusador, mas foi Júlia quem lhe respondeu.
— Tens estado a brincar connosco...! — disse ela, com um risinho. — Eu bem me parecia...
— Tenho? — disse César, sufocando o riso.
— Pois tens... Sabes perfeitamente que essa é a melhor de todas...
— É uma excelente escolha! — disse Aurélia, radiante. — A bisavó ainda dirige essa família e todas as gerações têm sido criadas segundo as mais estritas normas da religião. Cornélia Merula virá de bom grado e será uma belíssima aquisição para este Colégio.
— Também acho, mater — disse César.
Nesse instante, Júlia levantou-se. — Agradeço a tua hospitalidade, Pontifex Maximus — disse ela, gravemente. — Mas peço autorização para me retirar.
— Estás à espera de Bruto?
Júlia corou. — A esta hora, tatá?!
— Júlia — disse Aurélia, mal a jovem saiu — fará catorze anos daqui a cinco dias.
— Pérolas — disse César imediatamente. — Com catorze anos já poderá usar pérolas, não é isso, mater?
— Desde que sejam pequenas...
— Só podem ser pequenas... — com um suspiro, César levantou-se. — Minhas senhoras, obrigado pela vossa companhia. Tenho de ir. O trabalho chama-me.
— Sim senhor! — comentou Terência no momento em que César fechava a porta. — Uma Cornélia Merula para o Colégio!
Lá fora, no corredor, César encostou-se à parede e, por um bocado, riu-se silenciosamente. Viviam num mundo tão pequeno! Seria isso bom, ou mau? Pelo menos, eram um grupo agradável, apesar de Aurélia estar a ficar algo rabugenta e de Terência sempre ter sido rabugenta. Mas graças aos deuses que não tinha de participar muitas vezes em reuniões daquelas! Era muito mais divertido planear os próximos movimentos de Metelo Nepos para que o afastassem do seu cargo, do que passar a noite a mexericar com mulheres.
Contudo, quando convocou a Assembleia Popular para as primeiras horas da manhã do quarto dia de Janeiro, César não fazia ideia de que Bíbulo e Catão tencionavam aproveitar a reunião para provocar, não a queda de Metelo Nepos, mas a sua própria queda.
Quando ele e os seus lictores chegaram ao baixo Fórum, pouco depois do romper do dia, era já evidente que o Poço dos Comitia não chegaria para tanta gente; César dirigiu-se imediatamente para o templo de Castor e Pólux e deu instruções nesse sentido ao pequeno grupo de escravos públicos que sempre o acompanhava em tais ocasiões.
Muitos eram os que achavam o templo de Castor o mais imponente templo do Fórum, pois fora reconstruído em grande estilo por Metelo Dalmático Pontifex Maximus, menos de sessenta anos antes. O seu interior era suficientemente vasto para albergar uma reunião do Senado (em condições extremamente confortáveis), o soalho do seu único salão ficava vinte e cinco pés acima do chão, e, no interior do seu pódio, havia uma série de salas. Um tribunal de pedra existira outrora, diante do templo original; quando se lançou na reconstrução do templo, Metelo Dalmático decidiu incorporar esta estrutura na estrutura global do templo, criando assim uma plataforma quase tão grande como os rostra e situada cerca de dez pés acima do chão. Por outro lado, a bela escadaria de mármore não ia desde a entrada do templo até ao Fórum, mas detinha-se na plataforma. O acesso do Fórum à plataforma era feito através de duas escadarias mais estreitas, uma de cada lado. Isto permitia que a plataforma servisse como um rostrum, e que o templo de Castor fosse usado em votações; o Povo ou a Plebe ficavam em baixo, no Fórum, e daí assistiam ao que se passava na plataforma.
O templo propriamente dito encontrava-se rodeado por colunas de pedra acaneladas, pintadas de vermelho e coroadas por capitéis jónicos pintados em tons de um azul muito vivo e com dourados nas volutas. Metelo Dalmático não fechara o interior com paredes entre as colunas; o interior do templo estava à vista de todos, o templo erguia-se arejado e livre como os dois jovens deuses a quem era consagrado.
Estava César a observar os escravos públicos, que nesse momento depositavam o pesado banco tribunício sobre a plataforma, quando alguém lhe tocou no braço.
— A bom entendedor... — disse Públio Clódio, os olhos negros muito brilhantes. — Vai haver sarilhos...
César já se apercebera de que, entre a multidão, havia muitos rostos que não eram propriamente familiares: eram homens que pertenciam à turba de rufiões de Roma, ex-gladiadores que, depois de terem sido libertados, haviam migrado para Roma à procura de empregos que punham à prova a sua força física, designadamente como guarda-costas.
— Aqueles homens não são meus — disse Clódio.
— Então são de quem?
— Não sei ao certo, porque eles são demasiado astutos para dizerem a quem pertencem. Mas têm umas protuberâncias esquisitas debaixo das togas — ou me engano muito, ou são mesmo mocas...! Se fosse a ti, César, chamava já a milícia. Não dês início à reunião enquanto não vier a guarda.
— Muito obrigado, Públio Clódio — disse César, afastando-se para falar com o chefe dos seus lictores.
Pouco depois, apareceram os novos cônsules. Os lictores de Silano empunhavam os fasces, ao contrário dos de Murena. Nem Silano, nem Murena, tinham um ar feliz, pois aquela reunião, a segunda do ano, era também a segunda convocada por um mero pretor; César antecipara-se aos cônsules, o que constituía um grande insulto, e Silano nem sequer tivera a oportunidade de se dirigir ao Povo na sua contio laudatória. Até Cícero se saíra melhor! Daí que aguardassem os dois, com uma expressão pétrea, tão longe de César quanto possível, enquanto os seus criados colocavam as suas leves cadeiras de marfim num dos lados do centro da plataforma, ocupado pela cadeira curul pertencente a César e — aziaga presença! — pelo banco tribunício.
Um a um, os outros magistrados foram entrando e procurando um lugar para se sentarem. Metelo Nepos empoleirou-se na ponta do banco tribunício que ficava mais perto da cadeira de César, piscando o olho ao pretor urbano e exibindo o pergaminho onde estava escrita a lei que previa o regresso de Pompeu. Atento a tudo e a todos, o pretor urbano contou os grupos que nitidamente se haviam formado entre a multidão, constituída agora por três ou quatro mil homens. Embora a área da frente fosse reservada aos senadores, os homens que estavam imediatamente atrás e de cada lado dessa área eram ex-gladiadores. Noutros locais, viam-se grupos que, julgava César, deviam pertencer a Clódio, incluindo os três Antónios e o resto dos jovens contestatários que pertenciam ao Clube de Clódio. E também lá estava Fúlvia.
O chefe dos lictores aproximou-se e inclinou-se um pouco para falar com César. — A milícia já chegou, César. Fiz como ordenaste: coloquei-os atrás do templo, de maneira a que ninguém os veja.
— Óptimo. Não esperes pelas minhas ordens, procede como achares melhor.
— Está tudo bem, César! — disse Metelo Nepos, todo animado. — Ouvi dizer que havia muitas caras ameaçadoras entre a multidão, de maneira que resolvi trazer também umas caras capazes de meter respeito a qualquer um!
— Não creio que seja uma ideia muito inteligente, Nepos — disse César, com um suspiro. — A última coisa que desejo é outra guerra no Fórum.
— Mas não é a altura certa? — perguntou Nepos, impassível. — Desde a minha meninice que não há uma boa rixa no Fórum.
— Estás resolvido a deixar o teu cargo com o maior espalhafato possível.
— E estou mesmo! Mas adorava dar uma surra em Catão antes de me ir embora!
Catão e Termo, os últimos a chegar, subiram os degraus do lado onde Pólux montava o seu cavalo de mármore pintado, abriram caminho por entre os pretores, sorrindo muito para Bíbulo, e chegaram ao banco. Antes que Metelo Nepos percebesse o que estava a acontecer, os dois recém-chegados ergueram-no e mudaram-no para o meio do banco. Depois, sentaram-se entre ele e César, com Catão junto a César e Termo junto a Nepos. Quando Béstia tentou sentar-se ao lado de Nepos, Lúcio Mário meteu-se entre os dois. Assim, Metelo Nepos ficou sozinho entre os seus inimigos; e o mesmo sucedeu a César, pois Bíbulo adiantou-se a Filipe e colocou o seu assento de marfim ao lado do de César.
O alarme começava a espalhar-se; os dois cônsules tinham um ar constrangido e os pretores que não estavam ligados a nenhuma das partes em conflito dariam tudo para que a plataforma fosse três vezes mais alta.
Contudo, a reunião teve mesmo início, com as orações e os augúrios. Tudo estava em ordem. César falou brevemente, indicando que o tribuno da plebe Quinto Cecílio Metelo Nepos pretendia apresentar uma lei e pô-la à discussão do Povo.
Metelo Nepos levantou-se, esticando o seu pergaminho. — Quirites, hoje é o quarto dia de Janeiro do ano do consulado de Décimo Júnio Silano e Lúcio Licínio Murena! A norte de Roma, fica a vasta região da Etrúria, onde o fora-da-lei Catilina se pavoneia na companhia de um exército de rebeldes! A campanha contra Catilina é conduzida por Caio António Híbrida, comandante-chefe de uma força que tem pelo menos o dobro dos homens dos exércitos de Catilina! Mas a verdade é que não acontece nada! Passaram já quase dois meses desde que Híbrida deixou Roma para enfrentar esta patética colecção de veteranos, tão velhos que os seus joelhos rangem, mas, até agora, não aconteceu rigorosamente nada! Roma continua a viver sob um Senatus Consultam Ultimum, enquanto o ex-cônsul encarregado das legiões romanas passa o tempo a tratar do dedo grande do pé!
Nepos começou então a ler o pergaminho, mas com a maior seriedade; não era idiota ao ponto de achar que aquela assembleia apreciaria as suas palhaçadas. Aclarou a voz e atacou imediatamente os pontos importantes. — Proponho por este meio que o Povo de Roma liberte Caio António Híbrida do seu imperium e do seu comando! Proponho por este meio que o Povo de Roma conceda a Cneu Pompeu Magno um imperium maius efectivo em toda a Itália, excepto na cidade de Roma! Proponho ainda que sejam concedidos a Cneu Pompeu os fundos, as tropas, o equipamento e os legados que ele achar necessários, e que o seu comando especial, tal como o seu imperium maius, só expirem quando ele achar que chegou a hora de expirarem!
Catão e Termo levantaram-se imediatamente. — Veto! Veto! Interponho o meu veto! — gritaram os dois em uníssono.
Uma chuva de pedras começou então a cair sobre a plataforma, sem que se pudesse saber de onde vinha, e os desordeiros avançaram por entre as hostes dos senadores na direcção das duas escadarias. As cadeiras curuis ficaram de pernas para o ar, enquanto cônsules, pretores e edis subiam a toda a pressa a escadaria de mármore, na direcção do templo, com todos os tribunos da plebe, excepto Catão e Metelo Nepos, atrás deles. Mocas e bastões surgiram nesse preciso instante; César enrolou a toga no braço direito e retirou-se entre os seus lictores, arrastando Nepos consigo.
Mas Catão demorou-se mais tempo na plataforma (aparentemente, só por milagre não era atingido), continuando a gritar que vetava enquanto subia os degraus, até que Murena irrompeu por entre as colunas e o puxou à força para dentro. A milícia fez-se então à batalha, protegida por escudos e empunhando bastões, e, a pouco e pouco, os desordeiros que tinham atingido a plataforma foram obrigados a descer. Os senadores começaram então a subir apressadamente as duas escadarias, na direcção do abrigo do templo. E, lá em baixo, no Fórum, a batalha generalizava-se. Marco António e o seu amigo Curião lançavam-se sobre cerca de vinte adversários, logo ajudados pelos seus companheiros.
— Ora aqui está um belo início para este ano! — disse César, encaminhando-se para o centro do templo, compondo cuidadosamente a toga.
— Um início infame! — disparou Silano, o sangue correndo-lhe nas veias com rapidez suficiente para acabar com todas as dores que costumava sentir. — Lictor, ordeno-te que ponhas termo ao motim!
— Ora, Silano, que disparate! — disse César, com um ar enfastiado. — Eu mandei chamar a milícia e dei ordens precisas aos guardas quando vi alguns dos rostos que havia entre a multidão. Agora que deixámos os rostra, a batalha não passará de uma vulgar rixa.
— Isto é obra tua, César! — rosnou Bíbulo.
— Quem te ouvir falar, Pulga, pensará que tudo é obra minha.
— Ordem, ordem! — gritou Silano. — Convoquei uma reunião imediata do Senado e quero ordem!
— Não seria melhor invocares o Senatus Consultum Ultimum? — perguntou Nepos, olhando para dentro da toga e verificando que ainda tinha o pergaminho. — Mas seria muito melhor se me deixasses concluir o meu discurso perante o Povo, logo que acabe a confusão.
— Silêncio! — exclamou Silano, procurando que a sua voz retumbasse, mas com resultados decepcionantes, pois o som assemelhava-se mais a um balido. — O Senatus Consultum Ultimum autoriza-me, na minha qualidade de cônsul com os fasces, a tomar todas as medidas que considere necessárias para proteger a Rés Publica de Roma! — e, de súbito, sentiu faltar-lhe o ar; precisava de se sentar, mas a cadeira ficara na plataforma; tinha de mandar um criado buscá-la. Logo que lha trouxeram, Silano afundou-se nela, cinzento, coberto de suor.
— Patres Conscripti, quero pôr termo a este horrendo caso imediatamente! — disse ele, então. — Marco Calpúrnio Bíbulo, tens a palavra. Agradecia que explicasses o comentário que fizeste a respeito de Caio Júlio César.
— Eu não preciso de explicar, Décimo Silano, porque é por demais evidente! — disse Bíbulo, apontando para um inchaço negro na sua face esquerda. — Acuso Caio César e Quinto Metelo Nepos de violência pública! Quem, senão eles, ganha em promover motins no Fórum? Quem, senão eles, pretende ver o caos instalado? E que objectivos é que isso serve, a não ser os deles?
— Bíbulo tem razão! — berrou Catão, tão empolgado com aquela breve crise que, por uma vez, se esqueceu do protocolo dos nomes. — Quem é que ganha com isto, senão eles? Quem é que precisa de um Fórum manchado de sangue, senão eles? Voltámos aos bons velhos tempos de Caio Graco, Lívio Druso e desse miserável demagogo chamado Saturnino! Eles não passam de fantoches de Pompeu!
Por todo o lado se ouviram raivosos rugidos contra César, já que, entre os cem senadores que estavam dentro do templo, nenhum tinha votado com César na fatídica divisão do quinto dia de Dezembro, que condenara à morte cinco homens sem julgamento.
— Nem o tribuno da plebe Nepos, nem eu, enquanto pretor urbano, temos a ganhar seja o que for com a violência — disse César. — Aqueles que atiraram as pedras não são nossos conhecidos. — Olhou com desdém para Marco Bíbulo, e prosseguiu: — Se a reunião que eu convoquei tivesse avançado pacificamente, o resultado final teria sido uma vitória esmagadora para Nepos. Dize-me, Pulga, achas sinceramente que os votantes sérios que hoje aqui compareceram desejariam manter um idiota como Híbrida à frente das suas legiões, se lhes oferecessem uma alternativa chamada Pompeu Magno? A violência começou quando Catão e Termo vetaram, e não antes. Usar o poder do veto tribunício para impedir o Povo de discutir leis in contio ou para o impedir de votar, constitui uma violação absoluta de tudo o que Roma representa! Não censuro o Povo por desatar a apedrejar-nos! Há meses que o Povo sabe que não tem direito nenhum!
— A propósito de direitos, qualquer tribuno da plebe tem direito a exercer o seu veto como muito bem entender! — berrou Catão.
— Que idiota que tu és, Catão! — exclamou César. — Por que achas que Sila retirou o direito de veto aos tribunos da plebe? Porque o veto sempre serviu os interesses de uns quantos homens que controlam o Senado! Sempre que te pões a ladrar Veto! Veto!
estás a insultar a inteligência daqueles milhares de homens que se encontram no Fórum e a quem tu roubas o direito de ouvir — calmamente! — as leis que lhes são apresentadas — calmamente! — e o direito de votar — calmamente! — a favor ou contra!
— Calma? Calma! Não foi o meu veto que perturbou a calma, César, foram os desordeiros que tu contrataste!
— Não, Catão, eu nunca sujaria as minhas mãos com essa escumalha!
— Não precisas! Tudo o que tens a fazer é dar ordens!
— Catão, o Povo é que é soberano — disse César, fazendo um esforço hercúleo para não perder a paciência — e não uns quantos senadores, mais os seus porta-vozes tribunícios. Tu não serves os interesses do Povo, tu serves os interesses de uma mão-cheia de senadores que pensam que possuem e dirigem um império de milhões! Tu roubas os direitos ao Povo e a digmtas a esta cidade! Envergonhas-me, Catão! Tu envergonhas Roma! Tu envergonhas o Povo! Até envergonhas os teus senhores boni, que se aproveitam da tua ingenuidade e que, mal tu viras costas, troçam dos teus antepassados! Chamaste-me fantoche de Pompeu Magno? Não, Catão, eu não sou isso que me chamaste! Mas tu, Catão, tu és um fantoche dos boni!
— César — disse Catão, procurando ficar com a cara o mais perto possível da de César —, tu és um cancro no corpo dos homens romanos! Tu és tudo o que eu abomino! — virou-se para o estupefacto grupo de senadores e estendeu as mãos para eles, e as feridas do seu rosto, prestes a sarar, davam à sua expressão, àquela luz filtrada, a ferocidade de um gato selvagem. — Paires Conscripti, este César arruinar-nos-á a todos! Ele destruirá a República, disso estou eu certo! Não lhe dêem ouvidos quando ele desata a dizer disparates sobre o Povo e os direitos do Povo! Dêem-me ouvidos a mim! Expulsem-nos de Roma, a ele e a Nepos, que é o seu catamito! Proíbam-lhes a residência dentro dos limites de Itália! Quero que César e Nepos sejam acusados do crime de violência, quero que eles sejam proscritos!
— Quem te ouvir, Catão — disse Metelo Nepos —, pensará por certo que qualquer acção violenta no Fórum é melhor do que permitir que vetes todas as reuniões, todas as propostas, todas as palavras!
E, pela segunda vez num mês, alguém apanhou Catão desprevenido para lhe dar cabo da cara. Metelo Nepos limitou-se a aproximar-se dele e, com toda a sua força, deu-lhe tal bofetão que as feridas causadas por Servília rebentaram e voltaram de novo a sangrar.
— Não me importo com o que me possas fazer com o teu precioso e insignificante Senatus Consultum Ultimum! — gritou Nepos para Silano. — Vale a pena morrer no Tuliano, agora que já bati em Catão!
— Sai de Roma, volta para o teu senhor, volta para Pompeu! — exclamou Silano, ofegante, incapaz de controlar a reunião, os seus próprios sentimentos, ou a dor.
— Ah, mas é isso mesmo o que eu tenciono fazer! — retorquiu Nepos, com uma expressão escarninha; e logo deu meia-volta e foi-se embora. — Mas vocês vão voltar a ver-me! — gritou ele, a meio dos degraus. — Eu voltarei com o meu cunhado Pompeu a meu lado! Quem sabe? Pode ser que, nessa altura, Catilina governe em Roma e que vocês todos estejam mortos! E bem merecem morrer, súcia de carneiros medrosos!
Mesmo Catão ficou em silêncio; a sua toga já estava cheia de sangue — mais uma toga perdida, e ele tinha tão poucas.
— Precisas mais de mim, cônsul sénior? — perguntou César a Silano, num tom descontraído. — A rixa parece ter acalmado e não há mais nada para falar, pois não? — sorriu friamente. — Já se falou demasiado.
— És suspeito de incitar à violência pública, César — disse Silano, com um fio de voz. — Enquanto o Senatus Consultum Ultimum estiver em vigor, serás excluído de todas as reuniões e de todos os assuntos magisteriais. — Olhou para Bíbulo. — Sugiro-te, Marco Bíbulo, que comeces a preparar a tua acusação, a fim de que este homem seja julgado hoje.
César desatou a rir. — Silano, Silano, deixa-me corrigir-te! Como pode esta pulga acusar-me no seu próprio tribunal? Terá de pedir a Catão que faça o trabalho sujo em vez dele. E sabes que mais, Catão? — perguntou César para aqueles olhos que o fitavam furiosos por entre as dobras da toga. — Não tens a mínima hipótese. Eu tenho mais inteligência no meu aríete do que tu na tua cidadela! — afastou a túnica do peito e baixou a cabeça, falando para o espaço assim criado. — Não é verdade, aríete? — um sorriso terno para aquela reunião de refugiados, e acrescentou: — Ele diz que sim! Bom dia, Paires Conscripti!
— Estiveste incrivelmente bem, César! — disse Públio Clódio, que escutara tudo à saída do templo. — Não fazia ideia que eras capaz de te enfurecer tanto!
— Espera até ires para o Senado no próximo ano, Clódio, e logo verás. Com Catão e Bíbulo, é natural que nunca mais tenha paciência. — Parou por um momento na plataforma, no meio de uma quantidade de cadeiras de marfim partidas, e olhou para o Fórum, praticamente deserto. — Pelos vistos, os vilãos desapareceram todos.
— Perderam o entusiasmo mal a milícia apareceu. — Clódio descia já, à frente de César, os degraus laterais sob a estátua equestre de Castor. — Descobri uma coisa. Eles foram contratados por Bíbulo. Até nisso ele é um amador.
— Aí está uma notícia que não me surpreende nada.
— Bíbulo pretendia comprometer-te, bem como a Nepos. O mais certo é teres de comparecer no tribunal de Bíbulo, por incitamento à violência pública — disse Clódio, acenando para Marco António e Fúlvia, que estavam sentados no último degrau do plinto de Caio Mário. Fúlvia afagava com o seu lenço a mão direita de António.
— Não foi magnífico? — perguntou António, com um olho tão inchado que quase não enxergava nada.
— Não, António, foi tudo menos magnífico! — retorquiu César, acerbamente.
— Bíbulo tenciona processar César por infracção à lex Plautia de vi — e no seu tribunal, ainda por cima — disse Clódio. — César e Nepos foram acusados. — Pôs um sorriso de troça, e acrescentou, para César: — O que não admira, pois é Silano quem detém os fasces e, tendo em conta tudo o que se tem passado, não me parece que Silano goste muito de ti — e começou a trautear uma cantiga que falava de um marido enganado e destroçado.
— Venham comigo! — disse César, rindo da canção, e dando uma palmada leve nas mãos de António e Fúlvia, que continuavam unidas. — Não podem ficar aqui sentados como se fossem ladrões de encruzilhadas...! Além disso, aqueles heróis que estão lá em cima no templo não tardam aí. Já sou acusado de me dar com rufiões, mas, se me vêem convosco, mandam-me fazer as malas imediatamente. Como não sou cunhado de Pompeu, terei de me juntar a Catilina.
E, durante a breve caminhada até à residência do Pontifex Maximus — uma questão de poucos minutos —, César recuperou o seu equilíbrio. Na altura em que conduzia os seus convidados (tão mal vistos por certos sectores da sociedade) para uma parte da Domus Publica que Fúlvia conhecia muito mal (ao contrário do que sucedia com os aposentos de Pompeia), César estava já pronto para lidar com todos os problemas e para subverter todos os planos de Bíbulo.
Na manhã seguinte, ao alvorecer, o novo praetor urbanus ocupou o lugar que lhe competia no seu tribunal, com os seis lictores (que já o consideravam o melhor e o mais generoso dos magistrados) postados num dos lados da sala, com os fasces assentes no chão como se fossem lanças, a mesa e a cadeira curul dispostas ao gosto dele, e uma pequena equipa de escribas e mensageiros à espera de ordens. Como o pretor urbano tratava dos preliminares de todos os litígios civis e ouvia os pedidos de processos por razões criminais, havia já no tribunal uma quantidade de potenciais litigantes e advogados; quando César indicou que ia dar início aos seus trabalhos, uma dúzia de pessoas avançaram na sua direcção lutando por serem atendidas em primeiro lugar, pois em Roma as pessoas não tinham o hábito de formar bicha e esperar pela sua vez. César nem sequer tentou abafar aquele insistente clamor. Escolheu a voz mais sonora, fez um sinal e preparou-se para escutar o homem em causa, um advogado.
Poucas palavras tinham sido trocadas quando os lictores consulares apareceram com os fasces mas sem o cônsul.
— Caio Júlio César — disse o chefe dos lictores de Silano, enquanto os seus onze companheiros procuravam afastar a pequena multidão das proximidades do tribunal —, em consequência do Senatus Consultum Ultimum ainda em vigor, encontras-te impedido de exercer o teu cargo. Por favor, abandona imediatamente todas as tuas funções pretoriais.
— Que queres dizer com isso? — perguntou o advogado que pretendia apresentar o seu caso a César — não um advogado proeminente, apenas mais um entre as muitas centenas que frequentavam o baixo Fórum na esperança de que contratassem os seus serviços.
— O cônsul sénior encarregou Quinto Túlio Cícero de assumir os deveres do pretor urbano — disse o lictor, nada contente com aquela interrupção.
— Mas eu não quero Quinto Cícero, eu quero Caio César! Ele é que é o pretor urbano e, além disso, ao contrário da maior parte dos pretores de Roma, ele não perde tempo com ninharias! E eu quero que o meu caso fique tratado esta manhã, e não no próximo mês ou no próximo ano!
A multidão à volta do tribunal começava a crescer, alimentada pelos frequentadores do Fórum, atraídos pela súbita presença de tantos lictores e pelos ruidosos protestos do advogado.
Sem uma palavra, César levantou-se, acenou para o seu criado pessoal para que dobrasse e pegasse na cadeira, e virou-se para os seus seis lictores. Sorridente, abeirou-se deles e deu a cada um uma mão-cheia de denarii.
— Peguem nos vossos fasces, meus amigos, e levem-nos para o templo de Vénus Libitina. Guardem-nos nesse templo, porque é lá que os fasces devem estar quando o homem que devia ser precedido por eles se vê privado do seu cargo, seja por morte, seja por qualquer ordem oficial. Lamento que tenhamos trabalhado tão pouco tempo juntos e agradeço-lhes muito sinceramente toda a colaboração que me prestaram.
Dos lictores, passou aos escribas e aos mensageiros, oferecendo a cada homem uma soma em dinheiro e uma palavra de agradecimento.
Depois, fez subir as dobras da sua toga praetexta pelo braço e ombro esquerdos, enrolando o traje numa bola, enquanto o despia; e despiu a toga com tal perícia que nem uma ponta de tecido tocou no chão. O criado que trazia a cadeira, pegou também na bola de tecido em que a toga se transformara. César fez-lhe um sinal para que se fosse embora.
— Perdoem-me — disse ele para a multidão que não parava de crescer —, mas parece que não me autorizam a cumprir os deveres para que vocês me elegeram — e enterrou ainda mais a farpa: — Agora, terão de contentar-se com meio-pretor, ou seja, com Quinto Cícero.
Cícero, que assistia à cena a alguma distância, acompanhado pelos seus lictores, ficou furioso com tamanha ofensa.
— Que significa isto? — gritou Públio Clódio, da rectaguarda da multidão, abrindo caminho até à frente, enquanto César se preparava para abandonar o seu tribunal.
— Não estou autorizado a exercer o meu cargo, Públio Clódio.
— Porquê?
— Porque sou suspeito de incitamento à violência durante uma Assembleia do Povo que eu próprio convoquei.
— Mas não podem fazer isso...! — exclamou Clódio, teatralmente. — Primeiro tens de ser julgado e depois tens de ser condenado!
— Está em vigor um Senatus Consultum Ultimum.
— Mas que tem isso a ver com a assembleia de ontem?
— Tem a ver que... veio mesmo a calhar! — retorquiu César, deixando o tribunal.
E, enquanto se encaminhava, vestido apenas com a túnica, na direcção da Domus Publica, a multidão deixou também o tribunal e decidiu escoltá-lo. Quinto Cícero ocupou o seu lugar no tribunal do pretor urbano e descobriu que não tinha clientes; aliás, não teve um único cliente durante todo o dia.
Porém, ao longo de todo o dia, a multidão foi crescendo no Fórum, e, enquanto crescia, tornava-se cada vez mais ameaçadora. Desta feita, não havia entre ela ex-gladiadores, mas apenas muitos habitantes respeitáveis da cidade; esses homens eram a grande massa, mas também lá estavam outros mais conhecidos, como Clódio, os Antónios, Curião, Décimo Bruto — e Lúcio Decúmio e a sua Confraria das Encruzilhadas, que englobava gente desde a Segunda Classe aos proletarii. Dois pretores ainda tentaram proceder ao julgamento de casos de crime, mas, ao verem um tal mar de rostos mal-dispostos, decidiram que os augúrios não eram favoráveis; Quinto Cícero, por seu turno, pegou nas suas coisas e foi para casa mais cedo.
Mas o facto mais perturbador foi que ninguém deixou o Fórum durante a noite, afastando o frio com um sem número de pequenas fogueiras; visto das casas do Germalo do Palatino, aquele cenário fazia lembrar um exército em campanha e, pela primeira vez desde que as massas, por terem a barriga vazia, haviam enchido o Fórum durante dias, antes da rebelião de Saturnino, aqueles que detinham o poder compreenderam que eram muitos, que eram uma imensidão, os cidadãos que formavam aquilo a que se costumava chamar o povo miúdo — e que eram poucos os homens que estavam no topo da hierarquia.
Ao alvorecer, Silano, Murena, Cícero, Bíbulo e Lúcio Aenobarbo juntaram-se no alto dos Degraus Vestais e ficaram espantados com o que viram, com aquela inesperada assembleia de quinze mil pessoas. Então, um dos membros daquela assustadora multidão viu-os, gritou, apontou; todo aquele oceano de gente se virou na direcção dos poderosos, como que ameaçando transformar-se num fatal redemoinho; e o pequeno grupo de poderosos recuou instintivamente, percebendo que aquilo que estavam a ver era uma dança de morte potencial. Depois, com trinta mil olhos fixados neles, todos os braços direitos se ergueram, de punho bem cerrado, como se fossem algas oscilando à superfície da enorme vaga.
— Tudo isto por causa de César? — murmurou Silano, estremecendo.
— Não — disse o pretor Filipe, juntando-se a eles. — Tudo isto por causa do Senatus Consultum Ultimum e da execução de cidadãos sem julgamento. César é apenas o último de uma série de rudes golpes. — Lançou um olhar faiscante a Bíbulo, e acrescentou: — Que idiotas que vocês são! Não sabem quem é César? Eu sou amigo dele, eu sei quem ele é! César é a única pessoa em Roma que ninguém se pode atrever a destruir publicamente! Vocês têm passado as vossas vidas aqui, nas alturas, olhando para Roma como se fossem deuses fitando algo de pestilento. Mas ele, ele tem passado toda a sua vida no meio daquela gente! Estas pessoas acham que ele é um deles! São poucos os habitantes desta cidade que César não conhece — ou talvez seja melhor dizer que todos os habitantes desta cidade pensam que César os conhece. Para onde quer que ele vá, trata toda a gente com um sorriso, com um aceno, com uma saudação calorosa — e trata assim toda a gente, e não apenas os eleitores importantes. Eles adoram-no! César não é um demagogo — não precisa de ser um demagogo! Na Líbia, quando um homem é condenado, prendem-no bem preso e deixam que as formigas o matem. Pois a vossa estupidez é tanta que acabaram por acicatar as formigas de Roma! Mas de uma coisa podem estar certos: não é César que as formigas de Roma querem matar!
— Vou mandar chamar a milícia — disse Silano.
— Não podes fazer maior disparate, Silano. Os milicianos estão lá em baixo, com os carpinteiros e os pedreiros!
— Nesse caso, que havemos de fazer? Chamar o exército que está na Etrúria?
— Faze isso, faze, e vais ver como Catilina persegue os nossos homens...!
— Que podemos fazer?
— Vão para casa e tranquem as vossas portas, Patres Conscripti — disse Filipe, virando-lhes as costas. — É o que eu tenciono fazer.
Mas antes que alguém conseguisse encontrar forças para seguir este conselho, ouviu-se uma barulheira tremenda, assustadora; os rostos que estavam virados para o alto dos Degraus Vestais mudaram subitamente de direcção; e os punhos, como que por encanto, baixaram todos.
— Olhem! — disse Murena, com uma vozinha abafada. — É César!
A multidão tentava comprimir-se para criar um corredor que começava na Domus Publica e que se abria perante César enquanto este avançava, vestido com uma simples toga branca, na direcção dos rostra. Não agradeceu a ensurdecedora ovação, nem olhou para nenhum dos lados, e, quando chegou ao alto da plataforma, não fez qualquer movimento ou gesto susceptível de ser interpretado como um encorajamento às massas.
Quando começou a falar, fez-se um silêncio absoluto, embora Silano e os outros (agora, um total de vinte magistrados e pelo menos cem senadores) não conseguissem ouvir o que ele dizia. Falou durante cerca de uma hora e, enquanto falava, a multidão parecia ir ficando cada vez mais calma. Depois, mandou-os embora com um simples aceno e um sorriso tão largo que os seus dentes brilhavam. Trémula de alívio e estupefacção, a audiência que estava no alto dos Degraus Vestais viu a portentosa multidão começar a dispersar, como um rio com muitos braços, deslizando na direcção do Argileto e da área à volta dos Mercados, ou subindo a Via Sacra na direcção da Vélia e das zonas de Roma para lá da Vélia. Como seria de esperar, todos discutiam o discurso de César; mas já não havia um único rosto irado.
— Na minha qualidade de Princeps Senatus — disse Mamerco, com um ar extremamente formal —, convoco uma sessão do Senado do templo de Júpiter Stator. Um local apropriado, pois aquilo que César fez foi aplacar uma revolta manifesta. Imediatamente! — gritou, virando-se para um trémulo Silano. — Cônsul sénior, manda os teus lictores buscar Caio César, pois foste tu quem o afastou do exercício do cargo.
Quando César entrou no templo de Júpiter Stator, Caio Octávio e Lúcio César começaram a aplaudir; um a um, todos os outros senadores seguiram o seu exemplo; até Bíbulo e Aenobarbo fingiram que aplaudiam. De Catão, nem sinal.
Silano levantou-se. — Caio Júlio César, em nome do Senado, desejo agradecer-te por teres posto termo a uma situação extremamente perigosa. Agiste com toda a correcção e por isso deves ser louvado.
— Mas que chato que tu és, Silano! — exclamou Caio Octávio. — Pergunta ao homem como é que fez aquilo, ou ainda morremos todos de curiosidade!
— O Senado pretende saber o que disseste, Caio César. Envergando ainda a toga branca, César encolheu os ombros.
— Só lhes disse que fossem para casa e que voltassem ao trabalho. Queriam que os considerassem desleais? Incontroláveis? Quem pensavam eles que eram para se reunirem em tão grande número, só porque um mero pretor fora alvo de uma medida disciplinar? Disse-lhes que Roma é bem governada e que tudo voltaria ao normal. Bastava que tivessem um pouco mais de paciência.
— Lá estão as ameaças, por detrás das bonitas palavras! — murmurou Bíbulo para Aenobarbo.
— Caio Júlio César — disse Silano, muito formalmente —, veste a tua toga praetexta e regressa ao teu tribunal como praetor urbanas. É evidente, para este Senado, que agiste como devias, em todas as situações, e que te comportaste correctamente na reunião do Povo, realizada anteontem, assinalando os desordeiros e ordenando à milícia que actuasse. Não haverá julgamento sob a lex Plautia de vi por causa dos acontecimentos desse dia.
E nenhuma voz se elevou para protestar contra esta decisão.
— Eu não te tinha dito? — disse Metelo Cipião a Bíbulo, ao abandonarem a reunião. — Derrotou-nos uma vez mais! E o dinheiro que nós gastámos para contratar os ex-gladiadores...!
Catão apareceu nesse momento, a correr, ofegante e com um aspecto francamente deplorável. — Que se passa? Que aconteceu? — perguntou.
— E a ti, que te aconteceu? — perguntou Metelo Cipião.
— Estive doente — disse apenas Catão, mas Bíbulo e Metelo Cipião perceberam que ele tinha passado uma longa noite com Atenodoro Cordilião e o garrafão do vinho.
— César derrotou-nos, como de costume — disse Metelo Cipião. — Mandou a turba para casa e Silano devolveu-lhe o cargo. Não haverá julgamento nenhum no tribunal de Bíbulo.
Catão deu um berro, um berro tão furioso que o último dos senadores a sair do templo recuou sobressaltado. Depois, incapaz de suster a raiva, virou-se para um dos pilares de Júpiter Stator e desatou aos murros nele. E teria continuado aos murros se os seus amigos não o tivessem arrancado dali para fora.
— Não descansarei, não descansarei, não descansarei — não se cansava ele de repetir, enquanto Bíbulo, Cipião e Aenobarbo o conduziam pela Clivus Palatinus e pela Porta Mugonia, sempre coberta de musgo. — Acabarei por arruiná-lo...! Nem que tenha de morrer por isso!
— Ele é como a fénix — disse Aenobarbo, com um ar soturno. — Renasce das cinzas de todas as piras fúnebres para onde nós o atiramos.
— Um dia não renascerá mais. Eu estou com Catão, não descansarei enquanto não o vir arruinado — jurou Bíbulo.
— Sabes, Catão — disse Metelo Cipião, com um ar pensativo, atentando na mão inchada de Catão e no rosto novamente em ferida —, creio que neste momento tens mais feridas provocadas por César do que aquelas que sofreste na guerra contra Espártaco.
— E tu, Cipião — disse Caio Pisão, furibundo —, estás mesmo a pedir uma boa sova!
Janeiro estava quase no fim quando chegaram finalmente notícias do Norte. Desde o princípio de Dezembro que Catilina se deslocava na direcção dos Apeninos; contudo, como veio a descobrir, Metelo Célere e Márcio Rei encontravam-se já na região, entre ele e a costa do Adriático. Não tinha qualquer possibilidade de fugir de Itália, teria de permanecer e lutar — ou então rendia-se. A rendição era uma hipótese inconcebível — e por isso Catilina jogou tudo numa única batalha, travada num vale estreito, perto da cidade de Pistoria. Mas Caio António Híbrida não participou na batalha; essa honra foi reservada ao vir militaris, Marco Petreio. Ah, as dores horrendas que tinha no pé! Híbrida nunca abandonou a segurança da sua agradável tenda de comando. Os soldados de Catilina combateram desesperadamente; mais de três mil homens preferiram morrer a debandar. Tal e qual como Catilina, que foi morto empunhando a águia de prata que, em tempos, pertencera a Caio Mário. Dizia-se que, quando foi encontrado no meio dos cadáveres, tinha o mesmo sorriso cintilante com que, ao deixar o Senado e Roma, brindara todos os senadores, desde Catulo a Cícero.
Já não havia mais desculpas: o Senatus Consultum Ultimum foi finalmente anulado. Nem mesmo Cícero conseguiu reunir a coragem suficiente para advogar que o Consultum continuasse em vigor até que os outros conspiradores fossem capturados e mortos. Alguns dos pretores foram enviados para acabar com algumas bolsas de resistência; entre eles, encontravam-se Bíbulo, que foi mandado para as terras dos Pelignos, nas montanhas do Sâmnio, e Quinto Cícero, a quem mandaram para as zonas igualmente montanhosas do Brútio.
Depois, em Fevereiro, os julgamentos começaram. Desta feita, não haveria execuções, tão-pouco haveria cidadãos condenados ao exílio sem mais nem menos; o Senado decidiu criar um tribunal especial.
Um ex-edil, Lúcio Nóvio Nigro, foi nomeado presidente deste tribunal, depois de várias personalidades terem recusado o cargo; os pretores que permaneciam em Roma, desde César a Filipe, afirmavam que já tinham trabalho de sobra. O facto de Nóvio Nigro ter aceite era uma consequência previsível da sua natureza e das suas circunstâncias, pois ele era uma daquelas irritantes criaturas que possuía muito mais ambição do que talento; encarava aquele cargo como um passo mais para chegar ao consulado. Os seus éditos eram particularmente imponentes: todos seriam averiguados, não haveria meias medidas para ninguém, ninguém recorreria ao suborno, o júri cheiraria melhor do que um campo de violetas na Campânia. O seu último édito, porém, já não suscitou tanto apoio. Com efeito, Nigro anunciou que pagaria um prémio de dois talentos por informações que conduzissem a uma condenação — e o prémio seria pago com o dinheiro da multa e da confiscação de bens, evidentemente. Não custaria nada ao Tesouro! Mas esta medida, como pensava a maior parte das pessoas, era demasiado parecida com as técnicas de proscrição de Sila. Assim, quando o presidente abriu o seu tribunal especial, os frequentadores profissionais do Fórum já o tinham em muito má conta.
Cinco homens foram julgados primeiro e qualquer deles sabia que ia ser condenado: os irmãos Sila, Marco Pórcio Leca, e os dois que tinham tentado assassinar Cícero, Caio Cornélio e Lúcio Vargunteio. Para assistir o tribunal, o Senado reuniu em sessão com Quinto Curió, o agente secreto de Cícero, fazendo com que o interrogatório de Curió coincidisse com o início das audiências chefiadas por Nigro. Como seria de esperar, Nigro atraiu muito mais gente, tanto mais que se instalou na área mais vasta do espaço vazio do Fórum.
Um tal Lúcio Vétio foi a primeira — e a última testemunha. Cavaleiro menor, com o medíocre estatuto de tribunus aerarius, Vétio anunciou a Nigro que tinha informações mais do que suficientes para ganhar os cinquenta mil sestércios do prémio. Testemunhando perante o tribunal, confessou que, nas primeiras fases da conspiração, chegara a acalentar a ideia de participar no movimento, mas, como acentuou,
sabia a quem devia “lealdade”. — Eu sou um Romano, logo não podia prejudicar Roma. Roma significa demasiado para mim.
Depois de muito repisar este tema, Vétio debitou uma lista de nomes de homens que jurava terem estado envolvidos na conspiração.
Nóvio Nigro suspirou. — Francamente, Lúcio Vétio, nenhum desses nomes é propriamente inspirador...! Parece-me que este tribunal, com os dados que nos forneceste, não tem grandes possibilidades de obter as provas necessárias para desencadear um processo. Não há ninguém contra quem possas apresentar provas efectivamente concretas? Uma carta, por exemplo, ou testemunhas dignas de crédito, para além de ti?
— Bom... — disse Vétio, vagarosamente; depois, bruscamente, pareceu tremer e abanou a cabeça enfaticamente. — Não, não há ninguém! — disse ele bem alto.
— Então, Lúcio Vétio, que se passa? Não te esqueças de que te encontras sob a protecção do meu tribunal — disse Nóvio Nigro, apercebendo-se de que ali havia caça grossa. — Nada te acontecerá, dou-te a minha palavra de honra! Se tens conhecimento de alguma prova concreta, deves revelar-me essa prova!
— É... é um grande senhor... — sussurrou Lúcio Vétio, visivelmente constrangido.
— Para mim, e para este tribunal, não há grandes senhores.
— Bom...
— Vamos, Lúcio Vétio, deita tudo cá para fora!
— Bom... de facto... eu tenho uma carta.
— De quem?
— De Caio César.
Os membros do júri endireitaram-se nos seus assentos, o público rompeu num murmúrio.
— De Caio César, mas para quem?
— Para Catilina. A caligrafia é de César.
Um pequeno grupo de clientes de Catulo que se encontrava entre a multidão rompeu em vivas, mas logo os vivas foram abafados pelas vaias, pela troça, pelas invectivas. Só ao fim de algum tempo os lictores do tribunal conseguiram impor a ordem e permitir a Nóvio Nigro que reatasse o interrogatório.
— Por que razão só agora me dizes isto, Lúcio Vétio?
— Porque tinha medo, a razão é só essa! — atirou-lhe o informador. — Não me agrada nada ser responsável pela incriminação de um grande senhor como Caio César.
— Neste tribunal, Lúcio Vétio, só há um grande senhor: eu próprio — disse Nóvio Nigro. — E, de facto, tu incriminaste Caio César. Não corres perigo nenhum por isso. Continua, por favor.
— Continuo como? — perguntou Vétio. — Eu disse que tinha uma carta.
— Nesse caso, tens de mostrá-la a este tribunal.
— Ele vai dizer que é falsa.
— Só o tribunal pode dizer isso. Mostra a carta.
— Bom...
Nesse momento, já quase toda a gente que estava no baixo Fórum assistia ao julgamento presidido por Nigro ou encaminhava-se a toda a pressa para lá; correra célere a notícia de que César, como já vinha sendo costume, estava em maus lençóis.
— Lúcio Vétio, ordeno-te que apresentes essa carta! — gritou Nóvio Nigro, visivelmente irritado. Mas o que disse a seguir foi particularmente infeliz: — Achas que homens como Caio César estão acima do poder deste tribunal, só porque têm uma linhagem milenar e uma multidão de clientes? Pois não estão! Se Caio César escreveu uma carta a Catilina, julgá-lo-ei neste tribunal e condená-lo-ei!
— Bom... nesse caso... vou a casa buscar a carta — retorquiu Lúcio Vétio, convencido.
Enquanto Vétio se deslocava a casa, Nóvio Nigro declarou uma breve suspensão dos trabalhos. Aqueles que não estavam a discutir acaloradamente o caso (acompanhar as histórias em que o nome de César se via envolvido transformara-se na diversão mais excitante dos últimos anos) correram a comprar comes e bebes; quanto aos membros do júri, descontraíram-se e aguardaram que os criados do tribunal os servissem; Nóvio Nigro, extremamente satisfeito com a sua ideia de pagar um prémio por qualquer informação decisiva, foi ter com o presidente do júri, com o qual manteve uma longa conversa privada.
Públio Clódio revelou-se mais eficaz do que toda aquela gente junta. Correu à Cúria Hostília, onde o Senado estava reunido, e conseguiu convencer os guardas a deixarem-no entrar; não era uma tarefa difícil para um homem que, no ano seguinte, passaria a entrar, por direito próprio, naquele recinto.
Mal se viu lá dentro, parou — apercebera-se de súbito que a voz de tenorino do informador Vétio, no tribunal, e a voz de barítono de Curió, no Senado, mantinham uma estranha, mas perfeita, harmonia.
— Eu estou a dizer-te aquilo que ouvi da boca de Catilina! — dizia Curió para Catão. — Caio César foi uma figura central em toda a conspiração, do princípio ao fim!
Sentado no estrado curul, ligeiramente atrás e para o lado do cônsul presidente, Silano, César levantou-se para responder a Curió.
— Estás a mentir, Curió — disse ele, com a maior serenidade. — Todos sabemos quais são os membros desta venerável instituição que são capazes de fazer tudo e mais alguma coisa para me expulsarem para sempre do Senado. Mas, Paires Conscripti, permitam-me que lhes diga que nunca participei, nem participaria, em projectos conspirativos e, ainda por cima, tão mal organizados...! Quem der crédito à história deste patético imbecil é ainda mais imbecil do que ele! Crêem que eu, Caio Júlio César, seria capaz de me associar ao rebotalho, a gente cujas únicas actividades na vida consistem em beber e falar da vida alheia? Crêem que eu, tão escrupuloso no cumprimento do dever e na defesa da minha dignitas, desceria tão baixo, ao ponto de conspirar com espécimes como este Curió? Crêem que eu, o Pontifex Maximus, seria capaz de conivência com miseráveis conspiradores, para que Catilina conquistasse Roma? Crêem que eu, um Júlio descendente dos fundadores de Roma, seria capaz de consentir que Roma fosse governada por vermes como Curió e rameiras como Fúlvia Nobilioris?
As palavras soavam como o estalido de um chicote e ninguém ousava interrompê-lo.
— Sim, eu estou habituado às acusações injuriosas, às ofensas pessoais, que são frequentes em política — prosseguiu César, mantendo a mesma voz calma mas incisiva e penetrante. — Contudo, não vou ficar quieto enquanto certas criaturas pagam a gente como Curió para relacionar o meu nome com um projecto em que eu não participaria nem morto! Porque de uma coisa estou certo: alguém pagou a este indivíduo! E quando descobrir quem foi, senadores, podem crer que quem lhe pagou, voltará a pagar, mas de uma outra forma, pois serei eu quem o fará pagar! Eis-vos aqui reunidos, tão brilhantes e magníficos como uma colecção de galinhas no poleiro, escutando os sórdidos pormenores de uma pretensa conspiração, enquanto certas galinhas, que me ouvem neste preciso instante, conspiram de forma muito mais viciosa para me destruir a mim e ao meu bom nome! Para destruir a minha dignitas! — César respirou fundo e prosseguiu. — Sem a minha dignitas, eu não sou nada. E a todos aviso, solenemente — não brinquem com a minha dignitas! Para a defender, seria capaz de arrasar esta venerável instituição diante de todos vós! Seria capaz de pegar na montanha de Pélio e pô-la em cima da montanha de Ossa, seria capaz de roubar o raio de Zeus para vos reduzir a cinzas a todos! Não abusem da minha paciência, Paires Conscripti, porque eu não sou nenhum Catilina! Se eu tivesse conspirado para vos derrubar, ter-vos-ia derrubado!
Virou-se para Cícero. — Marco Túlio Cícero, é a última vez que te faço esta pergunta: ajudei-te ou não na descoberta desta conspiração?
Cícero engoliu em seco; o silêncio era absoluto. Os senadores nunca tinham ouvido um discurso assim e nenhum deles queria atrair as atenções dos outros. Nem mesmo Catão.
— Sim, Caio Júlio, é verdade que me ajudaste — retorquiu Cícero.
— Nesse caso — disse César, numa voz mais branda —, exijo que esta casa se recuse a pagar a Quinto Curió um único sestércio que seja do prémio que lhe foi prometido. Quinto Curió mentiu. Não merece o mínimo respeito.
Tal era o medo que penetrara em cada senador que o resultado foi unânime: todo o Senado concordou em não pagar rigorosamente nada a Quinto Curió.
Clódio avançou então. — Paires Conscripti — disse ele, numa voz sonora —, peço desculpa por esta intromissão, mas devo pedir ao nobre Caio Júlio que me acompanhe ao tribunal de Lúcio Nóvio Nigro o mais depressa possível.
César, que se preparava para se sentar, olhou para o aturdido Silano. — Cônsul sénior, parece que a minha presença é exigida noutro local, embora suspeite que o motivo é o mesmo. Sendo assim, lembra-te do que eu disse. Lembra-te de cada palavra que pronunciei! As minhas desculpas por ter de abandonar a reunião.
— Estás desculpado — murmurou Silano. — A sessão chegou ao fim.
Mal César deixou a Cúria Hostília, acompanhado por Clódio, todos os senadores foram no seu encalço.
— Nunca, em toda a minha vida, ouvi um ataque tão certeiro e tão mortífero! — disse Clódio, algo ofegante, pois era difícil acompanhar um homem tão veloz como César. — Aposto que ficaram todos cagados...!
— Não digas disparates, Clódio, dize-me apenas o que se passa no tribunal de Nigro — disse César.
Clódio assim fez. E César parou de repente.
— Lictor Fábio! — disse ele, chamando o chefe dos seus lictores; Fábio parou nesse mesmo instante, tal como os seus cinco colegas. César, muito rapidamente, comunicou-lhes as suas ordens.
Depois, César desceu até ao tribunal de Nóvio Nigro, fazendo dispersar a audiência em todos os sentidos, passando pelo meio do júri e só parando diante de Lúcio Vétio, que se preparava para apresentar a carta ao tribunal.
— Lictores, prendam este homem!
Com a carta na mão, Lúcio Vétio foi imediatamente levado pelos lictores para o tribunal do pretor urbano.
Nóvio Nigro levantou-se tão bruscamente que a sua adorada cadeira de marfim ficou de pernas para o ar. — Mas que significa isto? — perguntou ele, com uma voz esganiçada.
— QUEM PENSAS TU QUE És? — atirou-lhe César, com um vozeirão.
Toda a gente se afastou, como que por encanto; o júri mexia-se nervosamente e alguns dos seus membros pareciam mesmo tremer de medo.
— Quem pensas tu que és? — repetiu César, desta feita num tom mais suave, mas com uma voz que podia ser ouvida em meio Fórum. — Como te atreves tu, um magistrado edil, a aceitar no teu tribunal provas incriminando um homem que está acima de ti na hierarquia? E, para cúmulo, provas fornecidas por um informador pago? Quem pensas tu que és? Se não sabes, Nóvio, então eu vou dizer-te. Tu és uma nulidade em leis, tu és alguém que tem tanto direito a presidir a um tribunal romano como a mais imunda das prostitutas que andam a engatar clientes nas redondezas de Vénus Erucina! Não compreendes que um magistrado júnior nunca poderia levar um seu sénior a tribunal? Nunca tal coisa se viu ou ouviu...! Pelas imbecilidades que disseste àquele esterco chamado Vétio, mereces, sem sombra de dúvida, ser afastado do teu cargo! Tu, um mero magistrado edil, disseste que farias tudo para me condenar, a mim, que sou pretor urbano, no teu tribunal...! Belas palavras, Nóvio, belas e corajosas! Mas não poderás pô-las em prática...! Se tens motivos para acreditar que um magistrado sénior está criminalmente implicado em casos julgados no teu tribunal, deves suspender imediatamente o julgamento e levar o assunto aos pares desse magistrado sénior. E como eu sou o praetor urbanus, tens de ir falar com o cônsul que tem os fasces. Este mês, é Lúcio Licínio Murena, mas hoje, excepcionalmente, é Décimo Júnio Silano.
A multidão devorava todas as palavras de César, enquanto Nóvio Nigro se limitava a olhar para César, espantado e pálido; as suas esperanças num futuro consulado tinham ido por água abaixo num abrir e fechar de olhos.
— Tens de levar o assunto aos pares do teu sénior, Nóvio. Não ouses prosseguir o julgamento no teu tribunal! Não ouses continuar a admitir provas acerca do teu sénior, com um sorriso radiante nessa tua cara! Expuseste-me perante este tribunal, Nóvio! Como se tivesses o direito de o fazer...! Mas não tens. Ouviste bem? Não tens! Que magnífico precedente te preparavas para abrir, Nóvio...! É isso o que os magistrados séniores têm a esperar, no futuro, dos seus juniores?
Nóvio Nigro ergueu timidamente uma mão, como que a defender-se, e molhou os lábios, preparando-se para falar.
— Tace, inepte! — exclamou César. — Lúcio Nóvio Nigro, para que nunca mais te esqueças de qual é a tua verdadeira posição, e para que sirva de exemplo a todos os magistrados juniores que cumprem deveres públicos em Roma, eu, Caio Júlio César, praetor urbanas, condeno-te aqui e agora a um intervalo entre mercados nas celas das Lautumias. Oito dias devem chegar para perceberes qual é o teu verdadeiro lugar e para pensares na melhor maneira de convencer o Senado de Roma a aceitar a tua permanência como iudex deste tribunal especial. Não deixarás a tua cela nem por um momento. Não te será permitido levar comida, nem receber visitas de familiares. Não te será permitido ler ou escrever. E embora eu sabia que as celas das Lautumias não têm portas de espécie nenhuma, e ainda menos portas que um guarda possa trancar, farás exactamente aquilo que te disse — acenou bruscamente para os lictores do tribunal. — Levem o vosso amo para as Lautumias e ponham-no na cela mais desconfortável de toda a prisão. Ficarão de guarda enquanto eu não mandar outros lictores para vos substituírem. Pão e água apenas, nada mais, e nada de velas ou lamparinas à noite.
Depois, sem mais demoras, César seguiu para o tribunal presidido pelo pretor urbano, onde Lúcio Vétio esperava na sua plataforma, com um lictor de cada lado. César e os quatro lictores que o acompanhavam subiram as escadas, agora seguidos também por todos os membros do tribunal de Nóvio Nigro, desde o júri aos escribas, visivelmente excitados. Mas que podia César fazer a Lúcio Vétio, senão pô-lo na cela ao lado da de Nóvio Nigro?
— Lictor — disse César a Fábio —, desaperta as tuas varas. E, para Vétio, ainda agarrado à carta: — Lúcio Vétio, conspiraste contra mim. És cliente de quem?
A multidão agitava-se, alvoroçava-se, espantada, aterrorizada, sem saber se havia de olhar para César e Vétio, se havia de observar Fábio, o lictor, desmembrando o feixe de varas de bétula, atadas, segundo um padrão entrecruzado, com tiras de couro vermelhas. Eram varas muito finas, muito delgadas e elásticas, em número de trinta, porque eram trinta as Curiae; o feixe era perfeitamente circular, pois as varas haviam sido desbastadas e tratadas até ficarem tão redondas como o cilindro que formavam e a que chamavam fasces.
Vétio tinha os olhos esbugalhados; parecia que não conseguia arrancá-los de Fábio e das varas.
— És cliente de quem, Vétio? — repetiu César, acerbamente. A resposta surgiu numa agonia de medo. — De Caio Calpúrnio
Pisão.
— Obrigado, não preciso de saber mais nada. — César virou-se para os homens que se tinham reunido um pouco mais abaixo, as filas da frente cheias de senadores e cavaleiros. — Concidadãos romanos — disse ele, elevando ao máximo a sua voz —, este homem levantou falsos testemunhos contra mim no tribunal de um juiz que não tinha o direito de admitir as provas que ele apresentou. Vétio é um tribunas aerarius, ele conhece a lei. Ele sabe que não devia ter feito o que fez, mas estava louco por pôr os dois talentos na sua conta bancária — mais o que o seu patrono, Caio Pisão, lhe prometera, é claro. Caio Pisão não está aqui para responder, o que, no seu caso, não constitui nenhuma surpresa. Se ele estivesse aqui, juntar-se-ia a Lúcio Nóvio nas Lautumias. Na minha qualidade de praetor urbanas, tenho o direito de exercer o poder de coercitio em relação a este cidadão romano, Lúcio Vétio. E aqui e agora o farei. Ele não pode ser açoitado com um chicote, mas pode ser açoitado com uma vara. Lictor, estás pronto?
— Sim, praetor urbanus — disse Fábio, o qual, apesar de uma longa carreira como um dos dez prefeitos do Colégio dos Lictores, nunca fora chamado a desapertar os fasces.
— Escolhe a tua vara.
Por muito cuidadoso que fosse o tratamento dispensado às varas (que eram um dos objectos mais venerados em Roma), havia sempre bichinhos esfomeados dispostos a roê-las. Daí que os fasces fossem regularmente retirados e queimados, no meio de grandes cerimónias, e substituídos por feixes novos. Aqueles eram novos e Fábio não precisou de escolher para encontrar uma vara mais dura que as outras. Limitou-se a pegar na que estava mais próxima da sua trémula mão, após o que se levantou vagarosamente.
— Agarrem-no e dispam-lhe a toga — disse César para outros dois lictores.
— Onde? Quantas? — murmurou Fábio, ansioso.
César ignorou a pergunta do lictor. — Como este homem é um cidadão romano, penso que não é correcto apoucá-lo, despindo-lhe a túnica ou desnudando-lhe o rabo. Lictor, seis açoites na barriga da perna esquerda, mais seis na barriga da perna direita. — A voz de César baixou de súbito, numa imitação sarcástica do murmúrio de Fábio. — E dá-lhe com força, senão levas tu, Fábio! — Arrancou a carta das mãos lassas de Vétio, deu uma olhadela rápida para o seu conteúdo e encaminhou-se para a ponta da plataforma, onde a entregou a Silano, que, naquele dia, estava a substituir Murena (lamentando não ter tido o bom senso de invocar uma horrenda enxaqueca, como Murena fizera). — Cônsul sénior, entrego-te esta prova para que a examines. A caligrafia não é minha — disse César, com um ar de desdém. — Nem sequer está escrita no meu estilo. Bem pelo contrário, o estilo deste autor é muito inferior ao meu! Ou muito me engano, ou o autor da carta é mesmo Caio Pisão, que nunca conseguiu escrevinhar coisa que se visse!
O castigo foi administrado. Vétio pulava e uivava de cada vez que levava com a vara; o chefe dos lictores adorava César desde o primeiro dia em que o servira (César era então edil curul). Fábio pensava que conhecia César. Mas aquele César era, para Fábio, uma verdadeira revelação. Não admira que tenha cumprido na perfeição as ordens do amo: quem sofreu com isso foi Vétio.
Enquanto o castigo prosseguia, César desceu do tribunal e encaminhou-se para a rectaguarda da multidão, onde se encontravam os espectadores mais humildes. Deu uma palmadinha no ombro direito de cerca de vinte desses homens — homens envergando togas andrajosas ou feitas com os mais grosseiros tecidos — e conduziu-os até à primeira fila, mesmo junto à plataforma.
O castigo terminou. Vétia dançava e fungava devido a dois tipos de dores: as físicas e as da auto-estima. Muitos dos que tinham testemunhado a sua humilhação conheciam-no bem e haviam aclamado em delírio cada açoite de Fábio.
— Segundo me disseram, Lúcio Vétio adora o mobiliário requintado! — disse então César. — O castigo que lhe foi infligido não deixará grandes marcas na sua memória e Lúcio Vétio terá de se lembrar durante toda a vida do mal que hoje fez! Ordeno, por isso, que uma parte dos seus bens sejam confiscados. Estes vinte Quirites a quem toquei no ombro estão autorizados a acompanhar Lúcio Vétio a sua casa e a seleccionar um móvel — atenção, um único móvel para cada um! — da requintada colecção de Vétio. Não tocarão em mais nada — nem nos escravos, nem nas pratas, nem no ouro, nem nas estátuas! Lictores, escoltem este homem a sua casa e velem pelo cumprimento das minhas ordens.
Coxeando e gemendo, Vétio abandonou o tribunal, acompanhado pelos guardas e por vinte beneficiários deliciados, trocando risinhos de satisfação e dividindo já os despojos — quem é que precisava de uma cama, quem precisava de um divã, ou de uma mesa, ou de uma cadeira, quem é que tinha espaço para uma boa secretária?
Um dos vinte beneficiários virou-se para César quando este descia do estrado. — Se trouxermos uma cama, podemos trazer também o colchão? — gritou o homem.
— Uma cama sem colchão não é uma cama, ninguém sabe isso melhor do que eu, Quiris! — retorquiu César, com um riso malicioso. — Quem trouxer a cama, traz também o colchão, e quem trouxer o divã, traz também as almofadas! Mas as cobertas, não! Entendido, Quiris?
César foi para casa, mas só lá esteve o tempo suficiente para cuidar da sua aparência; aquele fora um dia muito preenchido, o tempo passara veloz, e ele tinha ainda um encontro com Servília.
E uma Servília em transe era uma experiência verdadeiramente esgotante. Lambeu-o, beijou-o, chupou-o, frenética e desvairada, entregou-se inteiramente e procurou que também ele todo se entregasse, e secou-o e esgotou-o e pediu mais e mais e mais.
Era a melhor maneira de eliminar a tensão que dias como aquele provocavam, pensou César, já deitado de costas, a mente esfriando e acalmando, cedendo ao sono.
Embora temporariamente saciada, Servília não tinha a mínima intenção de permitir que ele dormisse. Aborrecida com o facto de ele não ter pêlos púbicos para puxar, beliscou-lhe a pele lassa do escroto.
— Muito bem! Acordaste!
— És uma criatura bárbara, Servília.
— Quero conversar.
— E eu quero dormir.
— Dormes depois!
Suspirando, César virou-se para o lado e pôs a sua perna em cima dela a fim de manter a espinha direita. — Vá lá, fala. fala.
— Acho que os derrotaste — disse ela; fez uma pausa, e acrescentou: — Pelo menos por ora.
— Sim, por ora. Eles não vão desistir.
— Desistiriam, se lhes deixasses espaço suficiente para a sua dignitas.
— Porque havia de deixar? Eles nem conhecem o significado da palavra...! Se querem preservar a sua dignitas, têm de deixar a minha dignitas em paz. — Fez um ruído simultaneamente desdenhoso e exasperado. — As coisas sucedem-se vertiginosamente, e, quanto mais velho fico, mais depressa tenho de correr. A minha raiva explode à mínima provocação.
— Sim, isso é evidente. Não consegues controlá-la?
— Não sei se quero controlá-la. A minha mãe costumava dizer que os meus piores defeitos eram a falta de paciência e os acessos de ira. Ela sempre foi uma crítica impiedosa e uma disciplinadora rigorosa. Quando fui para o Oriente, pensava que já tinha vencido esses dois defeitos. Mas nessa altura ainda não conhecia Bíbulo, nem Catão, embora tivesse conhecido Bíbulo pouco tempo depois. E era fácil enfrentá-lo, sozinho. Aliado a Catão, porém, Bíbulo é mil vezes mais intolerável.
— Do que Catão precisa é de ser liquidado.
— Para eu ficar sem inimigos importantes? Minha cara Servília, eu não quero ver Bíbulo e Catão mortos! Quanto mais oposição um homem tem, melhor trabalha a sua mente. Eu gosto da oposição. Não, aquilo que me preocupa está dentro de mim. É a minha raiva, os acessos de raiva.
— Creio — disse Servília, afagando a perna dele — que a tua ira é de uma espécie muito peculiar, César. A maior parte dos homens cega de raiva... Ao passo que tu, quando te encolerizas, pareces pensar mais lucidamente. Esse é um dos motivos por que te amo. Eu sou igual a ti.
— Que disparate, Servília...! — disse ele, rindo-se. — Tu és uma mulher fria, mas as tuas emoções são fortes. Pensas que raciocinas lucidamente quando te provocam, mas a verdade é que essas emoções nunca te largam. Um dia, conspirarás e planearás e tramarás para alcançar este ou aquele objectivo, mas, ao atingi-lo, descobrirás que as consequências são desastrosas. O truque consiste em ir exactamente tão longe quanto o necessário. Apenas isso: tão longe quanto o necessário. Nem mais um milímetro. É preciso que o mundo trema de medo de nós, mas, depois, devemos mostrar compaixão e praticar a justiça. Não é fácil. Mas os nossos inimigos dificilmente conseguirão imitar-nos.
— Quem dera que fosses pai de Bruto...
— Se eu fosse seu pai, ele não seria Bruto...
— Era nisso que eu estava a pensar.
— Deixa-o em paz, Servília. Dá-lhe rédea solta. Quando tu apareces, o pobre rapaz desata a palpitar como um passarinho. E, no entanto, ele não é um passarinho...! Claro que também não é um leão, mas creio que há qualquer coisa de lobo ou de raposa no teu filho. Porque havemos de vê-lo como um passarinho, só porque, na tua presença, é isso que ele é?
— Júlia já fez catorze anos — disse ela, desejosa de mudar de assunto.
— Tenho de mandar uma nota a Bruto, a agradecer-lhe o presente que ele deu a Júlia. Ela adorou!
Servília sentou-se na cama, espantada. — O quê? Um manuscrito de Platão?
— Porquê? Achas que não foi um bom presente? — César sorriu e beliscou-a com tanta força como ela, momentos antes, o beliscara. — Eu dei-lhe pérolas e ela gostou muito. Mas não tanto como do Platão de Bruto.
— Ciumento?
Tal pergunta provocou um acesso de riso. — O ciúme — disse ele — é uma maldição. O ciúme corrói, destrói. Não, Servília, eu posso ser muitas, muitas coisas, mas não sou ciumento. Fiquei contentíssimo por ela e muito grato ao teu filho. No próximo ano, dou-lhe um filósofo. — Os olhos dele examinaram-na com um ar malicioso. — Além do mais, um filósofo sai muito mais barato do que as pérolas.
— Bruto sabe proteger e promover a sua fortuna.
— O que é excelente, tendo em conta que Bruto é o jovem mais rico de Roma — concordou César, com uma expressão grave.
Após uma longa ausência, consagrada inteiramente a negócios, Marco Crasso regressou a Roma logo a seguir àquele memorável dia no Fórum. Sentia por César um respeito novo, diferente.
— Embora não possa dizer que lamente a minha ausência, o facto de Tarquínio me ter acusado no Senado constituiu um bom pretexto para sair de Roma — disse Crasso. — Concordo que o que se passou foi muito interessante, mas a minha táctica é completamente diferente da tua, César. Tu atacas de frente, sem rodeios, a matar. Eu prefiro avançar calmamente, enquanto aro a terra e cavo os meus sulcos, tal e qual como faz o boi, com quem dizem que me pareço.
— Com toda a segurança.
— Naturalmente.
— Bom, é uma técnica que resulta, quanto a isso não há dúvida. Só um louco tentaria derrubar-te, Marco.
— O mesmo se pode dizer de ti, Caio. — Crasso pigarreou. — A que nível chegou já a tua dívida?
César franziu o sobrolho. — Se há pessoas que sabem, és tu e a minha mãe. Mas se insistem em ouvir o número, bom, então lá vai: são cerca de dois mil talentos. Ou seja, cinquenta milhões de sestércios.
— Eu sei que tu sabes que eu sei quantos sestércios há em dois mil talentos — disse Crasso, com um sorriso de todo o tamanho.
— Onde queres chegar, Marco?
— Vais precisar de uma província verdadeiramente lucrativa no próximo ano. É aí que eu quero chegar, Caio. Eles não te vão deixar tratar do sorteio, pois és uma personalidade demasiado controversa. Bom, além disso, Catão estará sempre à espreita de qualquer deslize, tal e qual um abutre à procura de uma carcaça, a tua carcaça, mais precisamente. — A testa de Crasso enrugou-se toda. — Muito sinceramente, Caio, não estou a ver como é que poderás enfrentar os teus problemas financeiros, mesmo que o sorteio te seja favorável. Todas as nossas regiões estão em paz! Magno impôs respeito no Oriente, a África deixou de ser um perigo desde... bom, desde Jugurta! As duas Hispânias ainda sofrem as consequências da aventura de Sertório. E as Gálias também não têm grande coisa para oferecer.
— E a Sicília, a Sardenha e a Córsega, nem vale a pena mencioná-las — disse César, os olhos dançando.
— Claro.
— Por acaso ouviste dizer que me vão processar pelo não pagamento das dívidas?
— Não. Mas ouvi dizer que Catulo — ao que parece, está muito melhor de saúde e, em breve, voltará a dar que falar no Senado e nos Comina — está a organizar uma campanha para manter os actuais governadores no próximo ano. Se tiver êxito, os pretores deste ano não terão província nenhuma.
— Ah, então é isso! — disse César, com um ar pensativo. — Sim, eu devia ter levado em conta essa campanha.
— É muito capaz de ter êxito.
— Sim, é capaz. Mas duvido. Alguns dos meus colegas pretores não vão gostar nada. Em particular Filipe, que pode ser um epicurista indolente, mas conhece o seu valor. Para além de mim, é claro.
— Só queria avisar-te.
— E eu agradeço-te.
— Mas, com ou sem província, não vejo como conseguirás vencer os teus problemas financeiros, César. Mesmo que fiques com uma província, não creio que consigas pagar as dívidas.
— Vais ver que as pago, Marco. A sorte não me abandonará — disse César, tranquilamente. — Eu quero a Hispânia Ulterior, porque fui questor nessa província e conheço-a bem. Os Lusitanos e os Calaicos são tudo o que eu preciso! Décimo Bruto Calaico — com que facilidade eles ganham títulos sem qualquer significado! — quase nem tocou no noroeste da Ibéria. E é do noroeste da Ibéria — deves sabê-lo, pois estiveste na Hispânia — que vem todo o ouro. O de Salamântica já se esgotou, mas há regiões, como a de Brigando, que nunca viram um Romano...! Mas hão-de ver este Romano!
— Ou seja: deixas tudo nas mãos da sorte...! — comentou Crasso, abanando a cabeça. — Não há dúvida, César, és um homem bem estranho...! Eu não acredito na sorte. Em toda a minha vida, nunca ofertei nada à deusa Fortuna. Somos nós quem faz a nossa própria sorte, César.
— Concordo incondicionalmente. Mas também acredito que a deusa Fortuna tem os seus favoritos. Ela amava Sila. E ama-me a mim. Alguns homens, Marco, têm a sorte que a deusa lhes dá, para além da sorte que eles próprios fazem. Mas nenhum tem a sorte de César.
— A tua sorte inclui Servília?
— Ficaste surpreendido, ha?
— Tu sugeriste que havia qualquer coisa, em tempos... Andas a brincar com o fogo, César!
— Ah, Crasso, ela é espantosa na cama!
— Huh! — resmungou Crasso, erguendo os pés e colocando-os sobre uma cadeira que estava perto. — Suponho que outra coisa não seria de esperar de um homem que, em público, fala com o seu aríete. De qualquer forma, creio que terás mais tempo para exercitar o teu aríete nos próximos meses. Prevejo que homens como Bíbulo, Catão, Caio Pisão e Catulo, andarão a lamber as suas feridas por um longo período.
— Servília — disse César, com os olhos brilhantes — também acha.
Públio Vatínio era um Marso de Alba Fucência. O seu avô fora um homem humilde que tomara a inteligente decisão de emigrar das terras dos Marsos, muito antes da eclosão da Guerra Italiana. O que explicava o facto de o seu filho, então um jovem, não ter sido integrado nos exércitos que combateram Roma. Por isso, depois das hostilidades, pôde reivindicar a cidadania romana junto do praetor peregrinas. O avô morreu e o pai de Públio Vatínio regressou a Alba Fucência com um miserável estatuto de cidadão: de facto, pouco mais possuía do que o documento que confirmava a sua cidadania. Mais tarde, na época da Ditadura, Sila distribuiu todos os novos cidadãos pelas trinta e cinco tribos, e Vatínio Sénior foi integrado na tribo Sérgia, uma das mais velhas. A fortuna da família prosperou a olhos vistos. O que fora um pequeno comércio transformou-se num vasto negócio agrícola, pois a região marsa em volta do lago Fúcino era muito rica e produtiva, e Roma, que não ficava longe, constituía um óptimo mercado para a fruta, os legumes e os gordos cordeiros das propriedades de Vatínio. Posteriormente, Vatínio Sénior dedicou-se também ao cultivo da vinha; pagou avultadas somas pelas melhores vinhas, mas isso permitiu-lhe produzir um magnífico vinho branco. Quando Públio Vatínio chegou aos vinte anos, as terras do pai valiam já muitos milhões de sestércios e produziam apenas o famoso néctar de Fucência.
Públio Vatínio era filho único e a deusa Fortuna não parecia favorecê-lo. Em rapaz, contraíra a doença conhecida como o mal do Verão, do que resultara um atrofiamento dos músculos abaixo dos joelhos, de tal forma que, para andar, tinha de juntar muito as coxas e forçar a parte inferior das pernas a avançar; o seu jeito de caminhar fazia lembrar o de um pato. Posteriormente, desenvolveu caroços no pescoço, os quais, por vezes, se transformavam em abcessos, rebentavam e deixavam horrendas cicatrizes. Obviamente, o jovem Vatínio nunca poderia ser uma visão agradável. Contudo, aquilo que lhe faltava no aspecto físico, sobrava-lhe na natureza e na mente. De facto, Vatínio possuía uma natureza verdadeiramente deliciosa, já que era espirituoso e alegre, e não havia nada neste mundo capaz de o irritar. Por outro lado, era tão profunda a sua inteligência que compreendeu, desde muito cedo, que a sua melhor defesa consistia precisamente em não ocultar as suas desagradáveis doenças; daí que brincasse com elas e consigo mesmo e incitasse os outros a fazer o mesmo.
Como Vatínio Sénior era relativamente novo para ter um filho crescido, Públio Vatínio não era, na verdade, preciso em casa, nem alguma vez seria capaz de vigiar as suas propriedades como o pai fazia; Vatínio Sénior tratou por isso de preparar outros parentes para tomarem conta do negócio e mandou o filho para Roma, onde, assim esperava, Vatínio Júnior deixaria de ser um rústico para passar a ser um cavalheiro.
As vastas convulsões e transformações que se seguiram à Guerra Italiana haviam alterado por completo a paisagem social, de tal forma que estas famílias com uma prosperidade recente — e não eram poucas, bem pelo contrário — não tiveram, durante muito tempo, um patrono. Os senadores mais empreendedores, bem como os cavaleiros das Dezoito, andavam à procura de clientes, mas, muitas vezes, nem sequer davam pelos mais interessantes. Na família Vatínio ninguém parecia reparar. Só começaram a interessar-se por ela quando Públio Vatínio, então com vinte e cinco anos, chegou finalmente a Roma. Depois de se ter instalado no bairro do Palatino, Públio Vatínio tratou de procurar um patrono. O facto de ter escolhido César dizia muito acerca das suas inclinações e inteligência. Lúcio César era o sénior do ramo, mas Públio Vatínio preferiu Caio porque o seu faro não o enganava nunca: estava certo e seguro de que, num futuro mais ou menos próximo, Caio seria muito mais importante do que Lúcio no sistema da sociedade romana.
Claro que César gostara dele imediatamente, admitindo-o como um cliente de grande valor, o que significava que a carreira de Vatínio no Fórum começaria da melhor maneira possível. O passo seguinte consistiria em procurar uma noiva para Vatínio, tanto mais que, como Vatínio assegurava,
as pernas não funcionavam lá muito bem, mas o que havia entre as pernas não podia funcionar “melhor”.
A escolha de César recaiu na única filha (mais velha do que os irmãos) da sua prima Júlia Antónia, Antónia Crética. Dote, não havia, mas o seu nascimento garantia ao marido a proeminência pública e a integração nas Famílias Famosas. Infortunadamente, Antónia Crética não era uma criatura atraente, nem intelectualmente brilhante; a mãe quase se esquecia de que ela existia, pois só tinha olhos para os três rapazes; por outro lado, o físico da filha era de molde a embaraçar qualquer mãe. Com mais de um metro e oitenta de altura, tinha uns ombros quase tão largos como os dos irmãos; a Natureza dera-lhe um barril por peito, mas esquecera-se de pôr lá os seios. O nariz e o queixo eram espetos, a boca encolhida entre os dois, e o pescoço era tão grosso como o de um gladiador.
Nada disto preocupava o inválido pretendente. Nem pensar! Desposou Antónia Crética no ano em que César foi edil curul e não descurou os deveres conjugais, pois, poucos anos transcorridos, já tinham um casal de filhos. Além disso, gostava dela, daquela mulher enorme e feia, e encarava com um humor indestrutível todos os comentários que aquela bizarra aliança suscitava entre os frequentadores do Fórum mais dados ao chiste.
— O que vocês têm é inveja — respondia ele, rindo-se. — Quantos de vocês é que vão para a cama sabendo que vão conquistar a maior montanha de Itália? Podem crer no que vos digo: quando chego ao cume, enche-me tanto o orgulho como eu a encho a ela!
No ano em que Cícero foi cônsul, Vatínio foi eleito questor e, por isso, entrou para o Senado. Dos vinte candidatos eleitos, ficara em último lugar, o que não surpreendeu ninguém, já que a sua linhagem era risível; o sorteio atribuiu-lhe a supervisão de todos os portos de Itália, exceptuando Óstia e Brundísio, que tinham os seus próprios questores. Fora enviado para Putéolos, a fim de impedir a exportação ilegal de ouro e prata, e saíra-se muito bem dessa missão. Daí que o ex-pretor Caio Coscónio, quando lhe foi atribuído o governo da Hispânia Ulterior, tenha escolhido pessoalmente Públio Vatínio como seu legado.
Vatínio estava ainda em Roma, à espera que Coscónio partisse para a sua província, quando Antónia Crética morreu num estúpido acidente ocorrido na Via Valéria. Antónia levara os filhos a casa dos avós paternos, em Alba Fucência, e regressava a Roma quando a sua carruagem se despistou. Mulas e veículo despenharam-se numa íngreme ribanceira. A carruagem ficou completamente destruída e nem a ocupante, nem o condutor, nem os animais, sobreviveram.
— Vatínio, tenta ver a questão pelo lado bom — disse-lhe César, sentindo-se impotente perante o sofrimento do viúvo. — As crianças vinham noutra carruagem, ainda tens os teus filhos.
— Mas não a tenho a ela! — retorquiu Vatínio, chorando desoladamente. — Oh, César, como é que eu vou viver agora?
— Indo para a Hispânia e mantendo-te ocupado — retorquiu o patrono. — É o Destino, Vatínio. Eu também fui para a Hispânia depois de ter perdido a minha adorada esposa e posso dizer que a Hispânia me salvou. — Levantou-se para servir mais vinho a Vatínio. — Que pensas fazer com os meninos? Queres que eles vão viver com os avós em Alba Fucência, ou preferes que fiquem em Roma?
— Prefiro que fiquem em Roma — disse Vatínio, secando as lágrimas. — Mas eles precisam de um parente que cuide deles, e eu não tenho ninguém em Roma.
— Tens Júlia Antónia, que também é avó deles. Talvez não seja uma mãe muito sensata, mas é capaz de cumprir bem a sua missão de avó. Além disso, ficaria ocupada.
— Achas que é o melhor para eles?
— Acho que sim — pelo menos enquanto tu estiveres na Hispânia Ulterior. Quando voltares, acho que deves casar de novo. Não, Vatínio, não me interpretes mal, eu tenho o maior respeito pela tua dor. Eu sei que nunca conseguirás substituir Antónia. Mas os teus filhos precisam de uma mãe. Seria bom que a tivessem e que a tua segunda mulher te desse mais filhos. Felizmente, tens dinheiro suficiente para ter uma grande família.
— Tu não fizeste mais filhos à tua segunda mulher.
— É verdade. Mas, nesse aspecto, somos muito diferentes. Tu eras muito dedicado a Antónia, e eu não o sou em relação a Pompeia. Tu gostas de uma vida caseira. Além disso, possuis a feliz habilidade de te dares bem com uma mulher que, do ponto de vista intelectual, te é muito inferior. — César afagou o ombro de Vatínio. — Vai para a Hispânia e fica lá pelo menos até ao próximo Inverno. Conduz uma pequena guerra, se puderes — Coscónio não está à altura disso, e é por isso que leva um legado. E informa-me de tudo o que descobrires quanto à situação no noroeste da Ibéria.
— Tu mandas — disse Vatínio, erguendo-se. — E tens razão, evidentemente. Tenho de voltar a casar. Procuras-me uma esposa, César? Confio em ti...
— Claro que procuro, Vatínio, está descansado.
César recebeu entretanto uma carta de Pompeu, escrita já depois de Metelo Nepos ter chegado à corte do cunhado.
Continuo a ter problemas com os Judeus, César! Da última vez que te escrevi, tencionava encontrar-me em Damasco com os dois filhos da velha rainha da Judeia. Isso aconteceu, de facto, na Primavera passada. Hircano pareceu-me mais adequado para o cargo do que Aristóbulo, mas não queria que eles soubessem quem era o escolhido, pelo menos enquanto eu não tivesse posto na ordem aquele velho vilão, o rei Areias de Nabateia. Por isso, ordenei aos irmãos que regressassem à Judeia e que não combatessem mais enquanto não lhes fosse comunicada a minha decisão — eu não queria que o irmão preterido andasse a intrigar nas minhas costas, enquanto eu marchava sobre Petra.
Mas Aristóbulo descobriu as minhas intenções, ou seja, que eu ia dar o reino a Hircano, e, por isso, preparou-se para a guerra. Não foi uma decisão muito inteligente, mas suponho que, por essa altura, Hircano ainda não sabia muito bem quem eu era. Desisti da expedição contra Petra e marchei na direcção de Jerusalém. Acampámos à volta da cidade, uma cidade extremamente bem fortificada e que, ainda por cima, tem óptimas condições naturais para a defesa — nos arredores, abundam os vales rochosos e outros elementos físicos do género.
Logo que viu este assustador exército romano acampado nos montes próximos, Aristóbulo correu ao meu encontro, disposto a render-se, acompanhado por uma série de mulas carregadas de sacas de moedas de ouro. É uma oferta muito simpática, disse-lhe eu, mas o problema é que ele tinha arruinado os meus planos de campanha e obrigado Roma a gastar uma soma muito maior do que a que vinha nas sacas! Bom, de qualquer modo eu estava disposto a perdoar-lhe... Desde que, evidentemente, ele concordasse em pagar integralmente as despesas que aquela inesperada marcha sobre Jerusalém tinha provocado. Se não pagasse, eu seria obrigado a saquear a cidade. Aristóbulo nem hesitou: pagaria imediatamente essas despesas.
Mandei Aulo Gabínio buscar o dinheiro e impor a abertura das portas da cidade, mas os adeptos de Aristóbulo decidiram resistir. Recusaram-se a abrir as portas a Gabínio, respondendo-lhe do alto das muralhas com os gestos mais grosseiros que se possa imaginar, como que a dizer-me que eu podia vir à vontade que eles logo me tratariam da saúde. Resultado: prendi Aristóbulo e mandei avançar o exército. A cidade rendeu-se. No entanto, há uma parte da cidade, aquela zona onde há um templo impressionante, não sei como lhe hei-de chamar, talvez uma cidadela. Uns quantos milhares de adeptos mais intransigentes de Aristóbulo barricaram-se na cidadela e recusavam-se a sair. Não seria fácil tomar a cidadela e, francamente, eu nunca gostei muito de cercos. Contudo, eles tinham de aprender bem a lição. E acho que fui um bom professor. Aguentaram-se durante três meses. Ao fim de três meses, chateei-me e tomei a cidadela. Fausto Sila foi o primeiro a subir as muralhas — para um filho de Sila, não está nada mal, pois não? Um bom rapaz, César. Quero ver se o caso com a minha filha. Quando regressarmos a Roma, ela já deve ter idade para casar. Imagina só: o filho de Sila, meu genro...! Vê lá tu o que eu tenho subido neste mundo!
O templo era um edifício interessante, mas sem qualquer semelhança com os nossos templos. Não havia uma única estátua, nem nada que se parecesse com estátuas, e dá a impressão que o raio do edifício resmunga furiosamente connosco quando estamos lá dentro. Uma coisa é certa: fiquei com os pêlos todos eriçados! Leneu e Teófanes (ah, a falta que me faz Varrão!) queriam ir ver o que havia para lá de uma cortina — aquilo a que os Judeus chamam o santuário. Gabínio e mais alguns também queriam. Diziam que devia estar a abarrotar de ouro. Bom, eu pensei no caso, mas, no fim, disse-lhes que não. Se eu não punha lá o pé, então mais ninguém punha. É que, por essa altura, eu já conhecia bem os Judeus. É um povo muito estranho. Tal como sucede connosco, aqui a religião também está integrada no Estado. Mas essa deve ser a única semelhança. A mim, parecem-me fanáticos religiosos. De maneira que dei ordens para que ninguém — desde os soldados rasos aos meus legados séniores — os ofendesse religiosamente. Para quê provocar um ninho de vespões, se o que eu quero, de uma ponta à outra da Síria, é paz, ordem, e reis clientes obedientes a Roma, sem mexer nos costumes locais e nas tradições? Porque a questão é esta: cada sítio, cada povo, tem a sua mós maiorum, diferente de todas as outras, única.
Decidi nomear rapidamente Hircano rei e sumo sacerdote e, quanto ao irmão, fi-lo meu prisioneiro. E tomei estas decisões porque, entretanto, me encontrei com o príncipe dos Idumeus, Antipater, em Damasco. Um indivíduo muito interessante. Hircano é um tanto fraco, mas creio que Antipater saberá manipulá-lo — no sentido de Roma, obviamente. Ah sim, não me esqueci de informar Hircano de que não está no trono por obra e graça do seu deus, mas porque Roma assim o quis; e mais lhe disse que ele não passa de um fantoche de Roma e que tem de obedecer cegamente ao governador da Síria. Antipater sugeriu-me que adoçasse esta taça de vinagre, dizendo a Hircano que ele podia canalizar a maior parte das suas energias para o cargo de sumo sacerdote — um conselho muito inteligente! Saberá Antipater que eu sei que é possível usurpar muito do poder civil, sem levantar um único dedo guerreiro? Deixei a Judeia mais pequena do que era antes de os dois idiotas dos irmãos me terem chamado a atenção para o seu insignificante país. Todos os locais onde os Judeus estavam em minoria, integrei-os na Síria, como uma parte oficial da província romana
— a Samaria, por exemplo, ou as cidades costeiras desde Jopa a Gaza; por outro lado, concedi a autonomia às cidades gregas da Decápole que, dessa forma, se tornaram sírias.
Ainda estou a arrumar as coisas, mas, e já não era sem tempo, parece que o fim está próximo. Estarei de volta no final deste ano. O que me leva a abordar os deploráveis acontecimentos do ano passado e do início deste ano. Em Roma, obviamente. César, não sei como te agradecer pela ajuda que deste a Nepos. Tu bem te esforçaste. Mas por que raio é que Catão, esse aborto que tem a mania — mas é só mania... — de que é o mais puro de todos, tinha de ser tribuno da plebe precisamente agora? Deu cabo de tudo. E, como sabes, não tenho, este ano, um único tribuno da plebe em condições! Nem sequer consigo encontrar um para o próximo ano!
Vou levar para Roma montanhas de despojos de guerra. O Tesouro vai ver-se aflito para arrecadar tanta riqueza. Pelos meus homens, distribuí dezasseis mil talentos. Portanto, recuso-me absolutamente a fazer o que sempre fiz no passado, ou seja, recuso-me a dar terras minhas aos meus soldados. Desta feita, Roma pode perfeitamente dar-lhes terras. Eles merecem-nas e Roma tem o dever de lhas dar. Lutarei para que seja o Estado a dar-lhes terras. E confio em ti para que faças o que te for possível. Se tiveres um tribuno da plebe inclinado a apoiar os teus pontos de vista, podes contar comigo: partilharei os custos desse apoio. Nepos diz que vai haver grandes conflitos por causa das terras. Claro que eu já estava à espera disso. São muitos os homens poderosos que arrendam terras públicas para as integrarem nos seus latifundia. E o Senado faz vistas curtas.
A propósito... Ouvi uns rumores e gostava de saber se não os terás ouvido também... Ouvi dizer que Múcia se anda a portar muito mal. Perguntei a Nepos, mas ele ficou tão furioso comigo que tenho a impressão de que nunca mais me perdoará. Bom, é verdade que os irmãos tendem a defender-se uns aos outros, por isso acho natural que ele não tivesse gostado das minhas perguntas. Seja como for, continuo a fazer o meu inquérito. Se é verdade, então adeus, Múcia. Ela foi uma boa esposa e mãe, mas não posso dizer que tenha tido muitas saudades dela desde que vim para estas bandas.
— Ah, Pompeu — disse César, arrumando a carta —, se tu não tiveste saudades, muito menos teve ela...!
Franziu o sobrolho, pensando na última parte da missiva de Pompeu. Tito Labieno deixara Roma, de regresso a Piceno, logo que o seu mandato chegara ao fim. Muito provavelmente, reatara a sua ligação com Múcia Tércia. Era pena. Deveria escrever a Labieno, avisando-o do que o esperava? Não. Uma carta podia sempre ir parar às mãos erradas, e havia mãos especialistas na arte de abri-las e selá--las de novo. Se Múcia Tércia e Tito Labieno corriam perigo, teriam de enfrentá-lo sozinhos. Pompeu, o Grande, era mais importante; César começava a enxergar uma série imensa de atraentes possibilidades, a partir do momento em que o Grande Homem regressasse a Roma, com as suas montanhas de despojos de guerra. Quanto às terras, por ora, não havia nada a fazer; os soldados de Pompeu tão cedo não receberiam esse prémio. Contudo, dentro de menos de três anos, Caio Júlio César seria cônsul sênior, e Públio Vatínio seria o seu tribuno da plebe. Uma maneira excelente de deixar o Grande Homem em dívida para com um homem incomparavelmente maior!
Servília e Marco Crasso tinham tido razão; depois daquele dia extraordinário no Fórum, o ano de César como pretor urbano tornou--se particularmente pacífico. Um a um, os outros adeptos de Catilina foram julgados e condenados, embora Lúcio Nóvio Nigro já não fosse juiz do tribunal especial. Após algumas discussões, o Senado decidiu transferir os julgamentos para o tribunal de Bíbulo, depois de os cinco primeiros terem sido condenados ao exílio e à confiscação dos bens.
E, como César soube através de Crasso, Cícero arranjou uma casa nova. O maior dos apoiantes de Catilina nunca fora nomeado por nenhum dos informadores — Públio Sila. Contudo, a maior parte das pessoas sabia que, se Autrónio estivera envolvido, Públio Sila também não pudera deixar de estar. Sobrinho do ditador e marido da irmã de Pompeu, Públio Sila herdara uma riqueza impressionante, mas não a capacidade política do tio e ainda menos o seu instinto de autoconservação. Ao contrário dos outros, não participara na conspiração para aumentar a sua fortuna; fizera-o para aceder aos pedidos dos amigos e para aliviar um tédio que ameaçava ser perpétuo.
— Ele pediu a Cícero para o defender — disse Crasso, com um risinho satisfeito —, e isso deixa Cícero numa situação muito desagradável.
— Desde que esteja de acordo em defendê-lo, é claro — disse César. — Já deu o seu acordo, Caio.
— Como é que sabes?
— Porque o nosso ex-cônsul acaba de falar comigo. De repente, ficou com dinheiro bastante para comprar a minha casa. Ou melhor, espera ter ficado...
— Ah! Quanto é que pedes pela casa?
— Cinco milhões.
César recostou-se na cadeira, abanando a cabeça com um ar triste. — Sabes, Marco, tenho a sensação de que tu só constróis para especular. Sempre que constróis uma casa para a tua mulher e os teus filhos, juras, por todos os deuses, que a casa será sempre deles. Até que aparece alguém com mais dinheiro do que juízo, propõe-te um lucro avultado... e pronto, lá se vai a casa! E a tua mulher e os teus filhos ficam sem casa até à construção da próxima.
— Paguei muito dinheiro por esta casa — disse Crasso, defendendo-se.
— Mas nada que se pareça com cinco milhões...!
— Bom, sim, tens razão... — retorquiu Crasso. De súbito, os seus olhos ganharam um novo brilho. — Mas é que Tertula começou a embirrar com a casa e não se importa nada de mudar. Desta vez, vou fazer uma casa no Gérmalo, no lado do Circo Máximo — mesmo ao lado daquele palácio que Hortênsio mantém para albergar os seus lagos de peixes.
— Porque é que Tertula começou a embirrar com a casa, ao fim de tantos anos? — perguntou César, algo céptico.
— Bom, é que a casa pertenceu a Marco Lívio Druso.
— Eu sei. E também sei que Druso foi assassinado no atrium.
— Há algo de estranho, de muito estranho, naquela casa! — segredou-lhe Crasso.
— Ou seja, serve perfeitamente para Cícero e Terência! Essa coisa estranha de que falas não os vai deixar em paz! — disse César, rindo a bom rir. — Eu disse-te, na altura em que a compraste, que era um erro usar mármore preto no interior — há demasiados recantos escuros. E, sabendo como pagas mal aos teus criados, quase que aposto que alguns deles se devem ter divertido imenso, escondendo-se nas sombras e produzindo os mais horrendos gemidos e suspiros. Também estou capaz de apostar que, quando te mudares, os tais espíritos malignos irão contigo — a menos que te disponhas a aceitar uns bons aumentos salariais.
Crasso retomou o assunto CíceroPúblio Sila. — Parece — disse ele — que Públio Sila está disposto a Emprestar os cinco milhões, se Cícero aceitar defendê-lo.
— E se conseguir a sua absolvição — disse César.
— Ah, ele vai conseguir, ele vai conseguir...! — e Crasso riu-se, o que era um acontecimento verdadeiramente raro. — Havias de ouvi-lo! Anda todo atarefado a reescrever a história do seu consulado. Lembras-te das assembleias de Setembro, Outubro e Novembro? Quando Públio Sila deu a Catilina todo o seu apoio? Pois bem, segundo Cícero, não era Públio Sila quem lá estava, mas sim Espínter usando a sua imago!
— Estás a brincar com certeza, Marco...!
— Sim e não. Cícero insiste que Públio Sila passou a maior parte desses nundinae a tratar dos seus negócios em Pompeios! Praticamente não esteve em Roma... não sabias?
— Tens razão. Deve ter sido Espínter com a imago de Públio Sila.
— Bom, de qualquer modo acho que ele vai conseguir convencer o júri.
Nesse instante, Aurélia espreitou pela porta. — César, gostaria de falar contigo. Logo que tenhas tempo, claro — disse ela.
Crasso levantou-se. — Vou andando, César, preciso de falar com algumas pessoas. A propósito de casas — disse ele, encaminhando-se para a porta —, devo dizer-te que a Domus Publica é a melhor residência de Roma. E a mais central. É muito agradável passar por cá, sabendo que encontramos um rosto amigo e o melhor dos vinhos.
— Podias ser tu a oferecer o vinho, meu grande unhas-de-fome...!
— Sabes, estou a ficar velho — disse Crasso, ignorando o apodo. — Que idade tens tu? Trinta e sete?
— Faço trinta e oito este ano.
— Brrr! Eu faço cinquenta e quatro — e suspirou, pesaroso. — Sabes, eu queria uma grande campanha antes de me retirar! Algo que rivalizasse com as campanhas de Pompeu Magno.
— Segundo Pompeu, já não há mundos para conquistar.
— E os Partos?
— E a Dácia, e a Boémia, todas as terras do Danúbio?
— É para aí que vais, César?
— Sim, de facto tenho pensado nessa hipótese.
— Aconselho-te os Partos — disse Crasso, já de saída. — Há mais dinheiro aí do que no norte.
— Todos os homens adoram o ouro — disse César. — Ouro é coisa que nunca falta.
— Vais ter de pagar as tuas dívidas.
— Pois vou. Mas o ouro não é o meu principal objectivo. Quanto a isso, Pompeu Magno tem uma perspectiva correcta. O ouro acaba sempre por aparecer. O mais importante é a extensão das conquistas de Roma.
A resposta de Crasso foi um adeus; virou-se na direcção do Palatino e desapareceu.
Não valia a pena tentar evitar Aurélia quando esta queria falar; por isso, César foi imediatamente para os aposentos da mãe, decorados já ao gosto dela: da antiga e bonita decoração, nem sinal. Só se viam papéis, rolos, compartimentos para livros. A um canto, havia um tear. As contas de Subura já não lhe interessavam; agora, ajudava as vestais nos arquivos.
— Que se passa, mater? — perguntou ele, parando à entrada.
— É a nossa nova virgem — disse ela, indicando uma cadeira. César sentou-se, disposto a escutá-la. — Cornélia Merula?
— Essa mesma.
— Ela só tem sete anos, mater. Que problemas pode ela provocar com essa idade? A menos que seja uma peste, e, francamente, não me pareceu que fosse.
— É pior do que uma peste, César, é um Catão! — retorquiu a mãe.
— Oh!
— Fábia não consegue lidar com ela e as outras também não. Júnia e Quintília detestam-na e já houve arranhões e beliscões.
— Dize a Fábia e a Cornélia Merula que venham ao meu gabinete imediatamente.
Momentos depois, Aurélia conduziu a chefe das vestais e a nova vestal ao gabinete de César, uma divisão imaculada e imponente, decorada em tons de carmesim e púrpura.
Cornélia Merula, pensou César, tinha de facto um aspecto semelhante ao de Catão, um aspecto que o fez lembrar-se da primeira vez que viu Catão; este era ainda uma criança e César vira-o à janela da casa de Marco Lívio Druso, espreitando para a varanda da casa de Aenobarbo, onde Sila estava instalado. Um rapazito muito magro, solitário, a quem dissera adeus, como que movido pela compaixão. Também ela era alta e magra; tinha o mesmo tom de pele que Catão, e o mesmo cabelo castanho, os mesmos olhos cinza. E o seu corpo assumia os mesmos tiques de Catão: as pernas afastadas, o queixo espetado, os punhos cerrados.
— Mater, Fábia, podem sentar-se — disse o Pontifex Maximus. — Tu podes vir para aqui — disse ele para a criança, indicando um local diante da sua secretária. — Qual é o problema, Fábia? — perguntou.
— Ao que parece, não é só um, mas muitos! — retorquiu Fábia. — Vivemos luxuosamente. Temos demasiado tempo livre. Estamos mais interessadas em testamentos do que na deusa Vesta. Não podemos beber água que não tenha vindo do Poço de Juturna. Não preparamos a mola salsa da mesma forma que era preparada no tempo dos reis. Não cortamos as partes do Cavalo de Outubro devidamente. E muitos mais problemas!
— E como é que tu sabes o que acontece às partes do Cavalo de Outubro, meu pequeno melro? — perguntou César à menina, num tom afável, preferindo chamar-lhe
Melro (Merula significava precisamente “melro”). — Estás há tão pouco tempo no Atrium Vestae que ainda não tiveste oportunidade de ver as partes do Cavalo de Outubro...! — ah, quão difícil era conter o riso! As partes do Cavalo de Outubro, que eram levadas primeiro para a Régia, a fim de que algum do sangue caísse no altar, e depois para o santuário de Vesta a fim de que sucedesse o mesmo, eram os órgãos genitais, mais a cauda e o esfíncter anal do dito cavalo. Depois das cerimónias, estas partes eram cortadas em bocadinhos muito finos, misturadas com o que restava do sangue, e finalmente queimadas; as cinzas eram usadas durante as Palílias, festividades das vestais que decorriam em Abril.
— Foi a minha bisavó que me disse — disse Cornélia Merula, numa voz que prometia vir a ser tão sonora como a de Catão.
— E como é que ela sabe, se nunca foi vestal?
— Tu vieste para esta casa por meios ilícitos — replicou o pequeno melro. — Portanto, nada me obriga a responder-te.
— Queres que te mande de volta para a tua bisavó?
— Não podes fazer isso, porque eu já sou uma vestal.
— Posso fazê-lo, sim, e fá-lo-ei se não responderes às minhas perguntas.
A criança não mostrava medo, bem pelo contrário; pesava com todo o cuidado as suas respostas. — Só posso ser expulsa da Ordem se for julgada num tribunal e condenada.
— Mas que advogada que o melro me saiu...! Mas estás enganada, Cornélia. A lei é sensata e, por isso, providencia sempre as medidas adequadas aos pequenos melros que, de quando em quando, aparecem na gaiola das imaculadas pavoas. De facto, eu posso mandar-te para casa. — César inclinou-se para a frente; os seus olhos cortavam como gelo. — Por favor, Cornélia, não abuses da minha paciência! Limita-te a acreditar no que te digo. A tua bisavó não ficará nada contente, se tu fores considerada inadequada para o cargo de vestal e enviada para casa em desgraça.
— Não acredito em ti — replicou a teimosa Cornélia. César levantou-se num ápice. — Passarás a acreditar, pois vou levar-te para casa neste preciso instante! — Virou-se para Fábia, que escutava aquele diálogo fascinada. — Fábia, faze as malas dela imediatamente e manda-as para casa da bisavó de Cornélia Merula.
A criança cedeu imediatamente. — Eu respondo às tuas perguntas, Pontifex Maximus — disse ela, heroicamente, os olhos brilhando de lágrimas, ainda que nem uma gota transbordasse.
César queria abafá-la com abraços e beijos, mas não podia fazer isso. Era preciso que aquela menina deixasse de ser uma criatura intratável. Pelo menos isso, já que domá-la não seria fácil. Fosse como fosse, Cornélia era uma virgem vestal e não podia ser abafada com beijos e abraços.
— Disseste que eu entrei nesta casa por meios ilícitos. Que querias dizer com isso?
— É o que diz a minha bisavó.
— E tudo o que a tua bisavó diz é verdade?
Os olhos cinza esbugalharam-se de horror. — Claro que é verdade!
— A tua bisavó disse-te porque é que eu entrei nesta casa por meios ilícitos, ou foi simplesmente uma afirmação não fundamentada em factos? — perguntou ele, com uma expressão grave.
— Ela disse apenas isso.
— Eu não entrei na Domus Publica por meios ilícitos, pois fui legalmente eleito para o cargo de Pontifex Maximus.
— Tu és o flamen Dialis — murmurou Cornélia.
— Eu fui o flamen Dialis, mas isso já se passou há muito tempo. Fui nomeado para assumir o lugar do teu bisavô. Mas, mais tarde, foram descobertas algumas irregularidades nas cerimónias de tomada de posse, e todos os sacerdotes e augures decidiram que eu não podia continuar a servir como flamen Dialis.
— Continuas a ser o flamen Dialis!
— Domine — disse ele, afavelmente. — Eu sou o teu amo, meu pequeno melro, o que significa que tens de te comportar educadamente e tratar-me por Domine.
— Domine.
— Eu já não sou o flamen Dialis.
— És sim! Domine.
— Porquê?
— Porque — disse Cornélia Merula, triunfantemente — não há nenhum flamen Dialis!
— Essa decisão também foi tomada pelos colégios de sacerdotes e augures, meu pequeno melro. Que também decidiram só nomear outro flamen Dialis depois da minha morte. A fim de que o nosso contrato com o Grande Deus seja escrupulosamente cumprido. A fim de que tudo decorra na mais total legalidade.
— Oh.
— Vem cá, Cornélia.
Ela avançou relutantemente e parou no local para onde ele apontou, a alguma distância da sua cadeira.
— Estende as tuas mãos.
Ela estremeceu, ficou de súbito pálida. César compreendeu muito bem que bisavó era aquela quando Cornélia Merula lhe estendeu as mãos como se se preparasse para receber um castigo.
César agarrou firmemente nas mãos dela. — Ouve-me com atenção, meu pequeno melro. A tua bisavó deixou de ser a autoridade que comanda e disciplina a tua vida. Tu entraste para a Ordem das Virgens Vestais de Roma. Passaste das mãos da tua bisavó para as minhas mãos. Sente-as, Cornélia. Sente as minhas mãos.
A menina assim fez, esquiva, tímida. Que triste!, pensou César; até aos oito anos, a pobrezita nunca teve um abraço ou um beijo do paterfamilias e, agora, o seu novo paterfamilias é obrigado por solenes e sagradas leis a nunca a beijar ou abraçar, ainda que ela não passe de uma criança. Por vezes, Roma é uma ama bem cruel...
— São fortes, não são?
— São — murmurou ela.
— E muito maiores do que as tuas.
— Sim.
— Sente-las tremer? Sente-las suadas?
— Não, domine.
— Nesse caso, não há mais nada a dizer. Tu e o teu destino estão nas minhas mãos. Agora, sou eu o teu pai. Cuidarei de ti como um pai, é isso que mandam o Grande Pai e Vesta. Mas cuidarei de ti como um pai, basicamente porque tu és o que és: uma criança. Não te darei nenhuma bofetada, não te darei nenhuma tareia, não te fecharei num armário escuro, não te mandarei para a cama sem comer. Não quero dizer com isto que o Atrium Vestae seja um local de onde os castigos foram banidos, mas sim que os castigos devem ser cuidadosamente pensados, pois devem ser adequados ao crime cometido. Se partires algum objecto, terás de consertá-lo. Se sujares alguma coisa, terás de limpar. O único crime que te valerá o castigo de regressar a casa é o crime de julgares os teus séniores. Não te cabe a ti dizer o que deve a Ordem beber, nem como é que essa água deve ser obtida, nem por que lado da taça se deve beber. Não te cabe a ti definir as tradições ou os usos das vestais. A mós maiorum não é algo de estático, a mós maiorum dos nossos dias não é a mesma do tempo dos reis. Como tudo no mundo, também a mós maiorum muda com o tempo. Por isso, nunca mais farás críticas aos teus superiores, nem emitirás juízos de valor acerca deles. Entendido?
— Sim, domine.
César libertou-lhe as mãos. Naqueles breves momentos, apesar de lhe ter agarrado nas mãos, manteve sempre uma distância apreciável em relação à criança. — Agora podes ir, Cornélia, mas espera lá fora. Eu quero falar com Fábia.
— Obrigada, Pontifex Maximus — suspirou Fábia, com um sorriso de alívio.
— Não me agradeças, chefe das vestais — disse César. — O que tu tens de fazer é lidar de uma forma sensata com estas situações. Creio que talvez seja boa ideia que, de futuro, eu participe mais activamente na educação das três meninas. Aulas todos os oito dias, desde uma hora após o alvorecer até ao meio-dia. Por exemplo, no terceiro dia após o nundinus.
A entrevista chegara ao fim; Fábia levantou-se, fez uma vénia e retirou-se.
— Trataste muito bem do caso, César — comentou Aurélia.
— Pobrezita!
— Levou muita tareia...
— A bisavó dela deve ser horrenda!
— Há pessoas que vivem demasiado tempo, César. Espero que isso não me aconteça a mim.
— O que é importante neste caso é saber se consegui banir Catão.
— Creio que sim. Especialmente se te encarregares pessoalmente da sua educação. Acho que é uma ideia excelente. Fábia, Arúncia e Popília não têm nem um grão de senso comum, e eu não posso interferir demasiado. Sou uma mulher, não sou o paterfamilias.
— Que estranho, mater...! Em toda a minha vida, nunca fui paterfamilias de um rapaz!
Aurélia levantou-se, sorrindo. — O que me deixa muito contente, meu filho. Pensa no caso do jovem Mário, por exemplo. Pobre Mário... As mulheres que tu governas sentem-se gratas pela tua força e autoridade. Se tivesses um filho rapaz, ele teria de viver sob a tua sombra. É que os grandes homens não surgem em todas as gerações de uma família, bem pelo contrário; é preciso esperar uma, duas, várias gerações, para que eles apareçam. Se tivesses um filho rapaz, vê-lo-ias como um prolongamento de ti mesmo e o pobre coitado viveria toda a vida desesperado.
O Clube de Clódio estava reunido na magnífica casa que o dinheiro de Fúlvia comprara para Clódio, mesmo ao lado da ínsula de luxuosos apartamentos que representava o seu mais lucrativo investimento. Estavam lá vários nomes sonantes da sociedade romana: as duas Clódias, Fúlvia, Pompeia Sila, Semprónia Tuditanos, Pala, Décimo Bruto (filho de Semprónia Tuditanos), Curião, o jovem Poplicola (filho de Pala), Clódio e Marco António, este último muito descoroçoado.
— Quem me dera ser Cícero...! — comentou ele, com um ar melancólico. — Se fosse Cícero, não precisaria de me casar!
— Parece-me uma falsa ilação, António — disse Curião, sorrindo. — Cícero casou-se e por acaso até se casou com uma verdadeira megera.
— Sim, mas Cícero tornou-se tão famoso graças às absolvições que conseguiu, que até há quem esteja disposto a emprestar-lhe cinco milhões — persistiu António. — Se, como ele, eu conseguisse livrar muitas pessoas da condenação dos tribunais, teria os meus cinco milhões sem precisar de me casar.
— Oh! — disse Clódio, sentando-se mais direito. — Quem é a feliz noiva, António?
— O tio Lúcio — que é agora o meu paterfamilias, pois o tio Híbrida não quer nada connosco — recusa-se a pagar as minhas dívidas. O meu padrasto deixou-me problemas financeiros e, do que o meu pai tinha, nada resta. Por isso, vou ter de me casar com uma criatura horrenda mas que tem muito dinheiro.
— Quem? — perguntou Clódio.
— Chama-se Fádia.
— Fádia? Nunca tal nome ouvi! — comentou Clodila, uma divorciada particularmente feliz com a sua situação. — Conta mais, António, conta!
António encolheu os maciços ombros. — É isso mesmo. Ninguém sabe quem ela é.
— Arrancar-te informações, António, é como espremer sangue de uma pedra — disse a mulher de Célere, Clódia. — Quem é essa Fádia?
— O pai dela é um mercador de Placência, um homem riquíssimo.
— Um Gaulês? — disse Clódio, estupefacto.
Um outro homem, naquela situação, talvez se tivesse empertigado todo para se defender de tal insinuação; Marco António, porém, limitou-se a sorrir. — O tio Lúcio jura que não. Diz que ela é impecavelmente romana. E deve ter razão, porque os Césares são especialistas em linhagens.
— Continua! — pediu Curião.
— Não há muito mais... O velho Tito Fádio tem um filho e uma filha. Quer o filho no Senado e decidiu que a melhor maneira de lá chegar é casar a filha com um nobre. Parece que o filho é um horror e que ninguém o quer. Por isso, tenho de ser eu a sujeitar-me. — António sorriu para Curião, exibindo uns dentes surpreendentemente pequenos, mas regulares. — Por acaso, tu estiveste quase a ser o escolhido, mas o teu pai respondeu que preferia prostituir a filha a consentir que casasses com Fádia...!
Curião quase guinchava de riso. — Coitado do meu pai, nunca arranjaria clientes para a minha irmã...! Escribónia é tão feia que só Ápio Cláudio, o Cego, estaria interessado nela...
— Cala-te, Curião! — disse Pompeia. — Escribónia, já nós conhecemos bem, mas de Fádia não sabemos nada. Que tal é ela, Marco? Bonita?
— O dote é muito bonito.
— Quanto? — perguntou Décimo Bruto.
— Trezentos talentos! É esse o preço pelo neto de António Orador!
Curião assobiou. — Se Fádio voltar a pedir o consentimento do meu tatá, vou dizer-lhe que aceite! No leito conjugal, dormirei com uma venda...! Vais pagar as tuas dívidas todas e ainda ficas com um bom bocado!
— A minha situação não é idêntica à do primo Caio, Curião! — disse António, com um risinho. — Eu não devo mais de meio milhão, longe disso. Bom, de qualquer modo há um problema: não me vão deixar mexer à vontade no dinheiro. O tio Lúcio e Tito Fádio estão a elaborar um contrato de casamento que prevê que Fádia mantenha o controlo da sua fortuna.
— Mas isso é horrível, Marco! — exclamou Clódia.
— Foi isso que eu disse, depois de ter recusado o casamento nesses termos — disse António, com um ar complacente.
— Recusaste? — perguntou Pala, as faces muito pintadas, mexendo-se como o focinho de um esquilo mordiscando nozes.
— Recusei.
— E que aconteceu depois?
— Eles recuaram.
— Completamente?
— Não, não completamente. Mas recuaram bastante. Tito Fádio concordou em pagar as minhas dívidas e em dar-me um milhão em dinheiro. Por isso, vou casar-me dentro de dez dias, embora nenhum de vocês tenha sido convidado. O tio Lúcio quer que eu pareça o mais puro dos homens. Daí que vocês não possam assistir...
— Caso contrário, lá se ia o Gaulês...! — disse Curião. Toda a gente desatou a rir.
A reunião continuou muito divertida por mais algum tempo, embora nada de importante fosse dito. As únicas criadas presentes encontravam-se atrás do divã ocupado por Pompeia e Pala, e pertenciam ambas a Pompeia. A mais jovem era a sua própria criada, Dóris, e a mais velha era o cão de guarda de Aurélia, Polixena. Todos os membros do Clube de Clódio sabiam que Polixena contaria a Aurélia tudo o que ouvisse naquela reunião. A criada era para eles um verdadeiro empecilho. Muitas eram as reuniões sem Pompeia, ou porque os membros do clube preparavam alguma que não queriam que a mãe do Pontifex Maximus soubesse, ou então porque alguém propusera, uma vez mais, a expulsão da própria Pompeia. Contudo, havia uma boa razão para ainda não a terem expulso: em certas ocasiões, era útil que certas informações chegassem aos ouvidos de um velho e rígido pilar da sociedade que dispunha de muita influência nessa mesma sociedade.
Naquele dia, porém, Públio Clódio não aguentou mais. — Pompeia — disse ele, num tom agressivo —, essa velha espia que está atrás de ti é uma verdadeira abominação! Não há nada do que aqui se passa que Roma não possa saber, mas, francamente, se há coisa que eu não suporto é que me espiem...! E também não suporto pessoas que trazem espias para as nossas reuniões! Olha, Pompeia, vai para casa e leva essa maldita espia contigo!
Os olhos luminosos e incrivelmente verdes de Pompeia encheram-se de lágrimas; os seus lábios tremeram. — Oh, Clódio, por favor! Deixa-me ficar!
Clódio virou-lhe as costas. — Vai-te embora — disse.
Fez-se um silêncio muito constrangedor enquanto Pompeia se levantava do divã, se calçava e preparava para sair. Polixena mantinha a sua habitual expressão impenetrável, Dóris fungava. Finalmente, retiraram-se.
— Foste muito grosseiro, Públio! — disse-lhe Clódia, depois de elas terem saído.
— A simpatia não é virtude que eu estime! — atirou-lhe Clódio.
— Ela é neta de Sila!
— Nem que fosse neta de Júpiter...! Estou farto, farto de ter de suportar Polixena!
— O primo Caio — disse António — não é parvo. Para te dares com a mulher dele, terás de suportar a presença de Polixena.
— Eu sei, António, eu sei!
— Não te esqueças de que ele é um homem com muita experiência no que toca a camas — explicou António, com um sorriso malicioso. — Aposto que conhece todos os truques da arte de pôr os cornos aos outros — suspirou com um ar feliz. — Ele é como o vento norte, mas não há dúvida que tem feito entrar um ar novo na nossa sufocada família! Já tem mais conquistas do que Apolo...!
— Eu não quero enganar César, só quero ver-me livre de Polixena! — rosnou Clódio.
De súbito, Clódia desatou a rir. — Pois bem, agora que os Olhos e Ouvidos de Roma já se foram embora, posso dizer-lhes o que aconteceu na festa de Ático uma noite destas.
— Deve ter sido muito excitante para ti, minha querida — disse o jovem Poplicola. — Tudo cheio de cerimónias, de formalidades!
— Ah, sim, claro, tanto mais que Terência estava lá.
— Então qual é o motivo de interesse? — perguntou Clódio, mal-humorado ainda por causa de Polixena.
Clódia baixou a voz. Aquele tom conspirativo dava um novo significado ao seu relato. — Fiquei sentada em frente de Cícero! — anunciou.
— Sucumbiste a tanto prazer... — troçou Semprónia Tuditanos.
— Não, ele é que sucumbiu...! Todas as cabeças se viraram para ela.
— Não me digas.! — exclamou Fúlvia.
— Digo, digo — retorquiu Clódia. — Sucumbiu de tal maneira que mais parecia uma ínsula a desfazer-se sob o efeito de um terramoto...
— Diante de Terência?
— Bom, ela estava defronte do lectus imus e por isso estava de costas para nós. Sim, graças ao meu amigo Ático, Cícero deixou-se ir na corrente...
— Que aconteceu? — perguntou Curião, morto de riso.
— Passei o jantar todo no maior namoro... Descaradamente! E ele adorou! Bom, e eu também... Disse-me que não sabia que havia em Roma uma mulher tão culta. Isso foi depois de eu ter citado o novo poeta, Catulo. — Virou-se para Curião: — Já leste Catulo? É um espanto!
Curião secou as lágrimas que o riso provocara. — Nunca ouvi falar.
— Só agora foi publicado. Por Ático, evidentemente. É da Gália Italiana, do outro lado do Pó. Ático diz que em breve virá a Roma — estou ansiosa por conhecê-lo!
— Mas voltando a Cícero — disse Clódio, vendo que poderia tirar proveito daquele episódio. — Que tal é ele quando o amor o ataca? Francamente, nunca pensei que Cícero tivesse ataques desses...
— Oh, é um tonto, coitado, parece um gatinho — disse Clódia, enfastiada. — Tudo nele muda. O pater patriae transforma-se de repente num daqueles personagens babosos de Flauto. Foi por isso que me diverti tanto. Fiz os possíveis para que a tontice dele se manifestasse cada vez mais.
— És mesmo mazinha! — disse Décimo Bruto.
— Foi o que Terência achou.
— Ah! Afinal ela sempre deu por isso?
— Só depois de toda a gente ter dado. — Clódia franziu o nariz, o que lhe dava um ar adorável. — Quanto mais o pobre sucumbia, mais tonto ficava e mais alto falava. Ático estava quase paralisado de riso. — Todo o seu corpo estremeceu, muito teatralmente. — E Terência estava quase paralisada de raiva. Coitado do velho! Já agora... porque é que toda a gente acha que ele é velho? Tenho a certeza de que, mal chegaram à rua, aquela megera se atirou logo a ele!
— Coitada, também não se pode atirar a mais nada...! — troçou Semprónia Tuditanos.
As bem-dispostas gargalhadas que se seguiram ouviram-se até na cozinha, que ficava do outro lado do jardim. Os criados que lá se encontravam não puderam deixar de sorrir e pensar, “Que casa tão feliz!”
De súbito, a boa-disposição de Clódia mudou de teor; sentou-se muito direita e olhou toda feliz para o irmão. — Públio Clódio, por acaso andas a preparar alguma das tuas deliciosas maldades?
— Até que ponto César é Romano?
Na manhã seguinte, Clódia apresentou-se à porta do Pontifex Maximus, acompanhada por outras mulheres do Clube de Clódio.
— Pompeia está? — perguntou ela a Eutico.
— Está, sim, domina — disse o chefe dos criados, recebendo-as com uma vénia.
O grupo subiu as escadas e Eutico afastou-se rapidamente, pois tinha muito que fazer. Não era preciso chamar Polixena. O jovem Quinto Pompeu Rufo não estava em Roma e, por isso, não haveria nenhum homem presente.
Era evidente que Pompeia passara a noite a chorar; tinha os olhos inchados e vermelhos, uma expressão acabrunhada. Quando Clódia e as outras entraram, ergueu-se num salto.
— Oh, Clódia, eu já pensava que nunca mais te voltava a ver! — exclamou.
— Eu não te fazia uma coisa dessas, minha querida! Mas não podes censurar o meu irmão, pois não? Polixena conta tudo a Aurélia...!
— Eu sei, eu sei! Lamento imenso, mas que posso eu fazer...?
— Nada, minha querida, nada. — Clódia instalou-se numa cadeira como se fosse um pássaro magnífico; depois, sorriu para o grupo que trouxera: Fúlvia, Clodila, Semprónia Tuditanos, Pala, e alguém que Pompeia não reconhecia.
— Deixa-me apresentar-te a minha prima Cláudia — disse Clódia, com um ar muito sério. — Ela vive no campo, está de férias em Roma.
— Ave, Cláudia — disse Pompeia Sila, sorrindo com o seu habitual ar idiota, e pensando que, apesar de ser uma mulher do campo, Cláudia fazia lembrar mulheres como Pala e Semprónia Tuditanos — maquilhada como estava, e ainda por cima com o cabelo pintado, devia dar muito nas vistas na cidade provinciana de onde vinha...! Pompeia procurou ser o mais cortês possível. — Vê-se logo que é da família...! — disse ela.
— Espero bem que sim — retorquiu a prima Cláudia, retirando aquela fantástica cabeleira, em que avultavam umas tranças tão brilhantes como ouro.
Por um momento, Pompeia ficou com tal aspecto que parecia estar prestes a desmaiar; a boca muito aberta, os olhos arregalados, sentia-se sufocar.
Aquilo já era de mais para Clódia e as outras. Desataram a rir que nem loucas.
— Xiu! — assobiou Públio Clódio, encaminhando-se num jeito muito pouco feminino na direcção da porta e trancando-a bem trancada. Voltou depois para a sua cadeira, fez uma boquinha, deu muito às pestanas. — Minha querida, mas que apartamento divino! — exclamou, com uma vozinha aflautada.
— Oh, oh, oh! — gemeu Pompeia. — Tu não podes estar aqui!
— A prova de que posso é que estou — retorquiu Clódio, com a sua voz normal. — E tens razão, Clódia. Assim, não temos de suportar a presença de Polixena.
— Por favor, vai-te embora! — disse Pompeia, num murmúrio, muito pálida, contorcendo as mãos. — A minha sogra!
— O quê? Ela também te espia aqui?
— Não é seu costume, mas vai haver a festa de Bona Dea e vai ser aqui...! E eu é que vou organizá-la!
— Quer dizer, Aurélia é que vai organizá-la... — retorquiu Clódio, com um ar trocista.
— Bom, sim, claro que vai ser ela! Mas ela não vai deixar de me consultar, porque eu sou a anfitriã oficial, a mulher do pretor cuja casa vai acolher Bona Dea. Oh, Clódio, vai-te embora por favor! Ela pode aparecer a qualquer momento e se vê a minha porta trancada, vai queixar-se a César.
— Minha pobre queridinha! — cantarolou Clódio, abraçando Pompeia. — Eu vou, prometo que vou. — Encaminhou-se na direcção de um espelho de prata, magnificamente polido, e, com a ajuda de Fúlvia, voltou a pôr a cabeleira.
— Não posso dizer que fiques bonito, Públio — disse a mulher dele, dando os últimos retoques na cabeleira. — Mas olha que não vais nada mal! — e deu um risinho. — Fazes lembrar certas mulheres que têm uma dúbia profissão...
— Vá, vamos embora — disse Clódio para as outras visitas. — Eu só queria mostrar a Clódia que era possível fazer uma coisa destas. E já mostrei!
Destrancaram a porta e saíram, todas muito juntas, com Clódio no meio.
Mesmo a tempo. Aurélia apareceu momentos depois, com ar de poucos amigos. — Quem eram aquelas? Estavam cheias de pressa...
— Clódia, Clodila e outras mais... — disse Pompeia, com um ar vago.
— Seria melhor que tratasses do leite que vamos servir na festa.
— Leite? — perguntou Pompeia, estupefacta.
— Oh, Pompeia, francamente...! — Aurélia ficou parada a olhar para a nora. — Não há mais nada nessa tua cabeça para além de vestidos e bugigangas?
Ao ouvir isto, Pompeia desatou numa choradeira incontrolável. Aurélia não se conteve e berrou uma imprecação não muito forte (o que nela era muito raro), desaparecendo antes que perdesse a paciência e lhe apetecesse dar uma bofetada na nora.
Lá fora, as cinco mulheres genuínas, acompanhadas pelo travesti, evitaram descer a Via Sacra na direcção do baixo Fórum; seria mais seguro subi-la, pois, no baixo Fórum, era natural que encontrassem vários homens que as conheciam bem. Clódio estava deliciado com o seu espectáculo, de tal forma que fez tudo para atrair as atenções das damas que frequentavam as lojas chiques do Pórtico Margaritária e do alto Fórum. Foi com considerável alívio que as cinco mulheres conseguiram levá-lo para casa sem que ninguém tivesse descoberto a identidade daquela espaventosa companheira.
— Durante dias e dias não me vão largar com perguntas sobre a estranha mulher que vinha connosco! — disse Clódia, furiosa, depois de Públio Clódio ter despido as roupas femininas, retirado a maquilhagem e lavado a cara, recuperando um ar respeitável.
— A ideia foi tua! — protestou ele.
— Sim, mas escusavas de dar espectáculo! Combinámos que te portavas bem e não que te punhas com sorrisos tontos para toda a gente e a dar às ancas como uma vulgar rameira... Ficou tudo de boca aberta a olhar para ti!
— Cala-te, Clódia, estou a pensar!
— Em quê?
— Numa vingançazinha.
Fúlvia enroscou-se nele, apercebendo-se da mudança. Ninguém melhor do que ela sabia que Clódio tinha uma lista de vítimas na sua cabeça; e ninguém mais do que ela desejava ajudá-lo. Ultimamente, a lista havia encolhido; Catilina morrera e, quanto aos Árabes, era muito provável que tivessem desaparecido dela para sempre. Sendo assim... quem poderia ser?
— Quem? — perguntou ela, beijando-lhe o lóbulo.
— Aurélia — disse ele, de dentes cerrados. — É tempo de alguém a pôr na ordem.
— Que pensas fazer? — perguntou Pala.
— O que vou fazer também não vai ser bom para Fábia — disse ele, com um ar pensativo. — Mas a verdade é que Fábia também está a precisar de uma boa lição.
— Que vais tu fazer, Clódio? — perguntou Clodila, desconfiada.
— Uma maldadezinha...! — cantarolou ele, desatando a fazer cócegas em Fúlvia.
Bona Dea era a Boa Deusa, tão velha como Roma e não possuindo, portanto, nem rosto, nem forma; Bona Dea era um numen. Tinha um nome, mas esse nome era tão sagrado que ninguém se atrevia a pronunciá-lo. Nenhum homem poderia compreender o que ela significava para as mulheres romanas, nem por que razão lhe chamavam Boa. O seu culto era marginal à religião oficial do Estado, e, embora o Tesouro lhe desse algum dinheiro, Bona Dea nunca atendia as preces dos homens. As virgens vestais cuidavam dela, já que a Boa Deusa não dispunha de sacerdotisas especiais; as vestais contratavam as mulheres que tratavam do sagrado jardim medicinal da deusa e eram elas que guardavam os remédios de Bona Dea, remédios que eram apenas usados pelas mulheres.
Como Bona Dea não fazia parte do mundo dos homens, o seu enorme templo ficava fora do pomerium, na encosta do Aventino, sob um afloramento rochoso, o Saxum Sacrum, ou rocha sagrada, e perto do reservatório de água do Aventino. Nenhum homem se atrevia a aproximar-se do templo. Dentro do santuário havia uma estátua, mas não era a estátua de Bona Dea, apenas algo que fora lá posto para enganar as forças negativas geradas pelos homens e levá-las a pensar que se tratava da estátua de Bona Dea. Nada era o que parecia à primeira vista no mundo de Bona Dea, a deusa que adorava mulheres e cobras. As cobras abundavam no seu recinto e arredores. Os homens, segundo se dizia, eram cobras. E se possuía tantas cobras, para que havia a deusa de precisar de homens?
Os remédios da Boa Deusa vinham de um jardim que circundava o templo e que era constituído por canteiros de diversas ervas e por um mar de centeio doente, plantado no primeiro dia de Maio e colhido sob a direcção das virgens vestais, que, com aquelas espigas afectadas pela ferrugem, produziam o elixir de Bona Dea — enquanto milhares de cobras dormitavam ou coleavam sussurrantes no meio do cereal, ignoradas pelos humanos e ignorantes dos humanos. No primeiro dia de Maio, as mulheres de Roma acordavam a Boa Deusa do seu sono de seis meses de Inverno com flores e festividades realizadas no templo e à volta dele. As cidadãs romanas de todas as classes sociais concentravam-se no local a fim de assistirem aos ritos, que começavam ao alvorecer e se prolongavam até ao crepúsculo. A dualidade delicadamente equilibrada da Boa Deusa tornava-se evidente no nascimento da Primavera, que o primeiro dia de Maio significava, e na morte do centeio, no vinho e no leite. É que o vinho era tabu, mas tinha de ser consumido em vastas quantidades. As mulheres chamavam-lhe leite e guardavam-no em preciosos recipientes de prata a que chamavam potes de mel: mais um estratagema para confundir os homens e o mundo dos homens. Ao fim do dia, depois de terem bebido muito leite dos seus potes de mel, as mulheres regressavam cambaleantes a casa, ainda cheias de formigueiros por causa do voluptuoso coleio das cobras, e recordando o poderoso engrossamento dos músculos da cobra, o beijo de uma língua bifurcada, a terra escavada para receber a semente, uma coroa de folhas de vinha, o eterno ciclo feminino do nascimento e da morte. Mas nenhum homem sabia ou queria saber o que acontecia em Bona Dea no primeiro de Maio.
Depois, no início de Dezembro, Bona Dea regressava ao seu sono, mas não publicamente, não enquanto houvesse sol no céu ou...
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