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AS POSSUÍDAS / Ira Levin
Ela continuava deitada, olhando o teto. Pensou em Charmaine, que não deixava que Ed a tocasse (ou ela mudara nisso também?), e lembrou-se dos comentários de Bobbie a respeito das estranhas ideias de Dave.
— Boa noite — disse W alter.
— Há alguma coisa — perguntou ela — que eu não faça e que você gostaria que eu fizesse? Ou que eu faça e que você gostaria que eu não fizesse?
Ele a princípio não disse nada. Depois falou:
— Gosto de tudo o que você costuma fazer, mais nada. — Virou-se e olhou para ela, apoiando-se no cotovelo. — Realmente — disse ele, e sorriu. — Está tudo ótimo. Talvez eu ande meio cansado ultimamente, por causa das viagens para o trabalho. — Beijou-lhe o rosto. — Procure dormir.
— Você está tendo um caso com Esther?
— Ah, pelo amor de Deus! Ela está andando com um pantera-negra. Não estou tendo casos com ninguém,
— Um pantera-negra?
— Foi isso o que a secretária de Don contou para ele. Nós nem mesmo conversamos sobre sexo; tudo o que faço é corrigir sua ortografia. Agora, vamos dormir. — Beijou-lhe novamente o rosto e virou-se para o outro lado.
Ela se deitou de bruços e fechou os olhos. Trocou de posição e mexeu-se, tentando achar uma posição confortável.
Foram a um cinema em Norwood, com Bobbie e Dave, e passaram a noite com eles, jogando monopólio sem muita seriedade, diante da lareira.
Uma pesada nevasca caiu no sábado à noite. Walter desistiu de assistir ao seu futebol de domingo à tarde e, não muito satisfeito, levou Pete e Kim para andar de trenó na colina Winter, enquanto Joanna foi de carro até New Sharon, onde usou um rolo e meio de filme colorido, numa reserva de pássaros.
Pete ganhou o papel principal na peça de Natal de sua classe; e Walter, voltando para casa uma noite, ou foi roubado ou perdeu a carteira.
Joanna levou dezesseis fotos para a agência. Bob Silverberg, o homem com quem ela tratava lá, admirou-as muito, mas disse-lhe que a agência não estava assinando contratos com ninguém ultimamente. Guardou as fotos, dizendo-lhe que a avisaria em um dia ou dois, se sentisse que algumas delas eram negociáveis. Desapontada, Joanna almoçou com uma velha amiga, Doris Lombardo, e fez algumas compras de Natal para Walter e seus pais.
Dez das fotografias foram devolvidas, inclusive a "Fora de serviço", que ela decidiu inscrever prontamente no próximo concurso da Saturday Review. Entre as seis que a agência conservou e que iria usar, estava a "Estudante", na qual aparecia Jonny Markowe com seu microscópio. Telefonou para Bobbie e disse-lhe:
— Darei a ele dez por cento do que quer que venha a receber.
— Isso quer dizer que podemos parar de lhe dar mesadas?
— É melhor não. Minhas melhores fotografias renderam pouco mais de mil dólares, até agora, mas as outras duas, só duzentos cada.
— Bem, não está nada mal para uma criança que se parece com Peter Lorre — disse Bobbie. — Quero dizer ele, e não você. Escute, eu ia telefonar para você. Será que podemos deixar Adam com vocês no fim de semana? Vocês o receberiam?
— Claro. Pete e Kim adorariam. Por quê?
— Dave teve uma ideia genial; vamos ter um fim de semana sozinhos, sem mais ninguém. Uma segunda lua-de-mel.
Uma sensação familiar cruzou-lhe a mente; déjà vu. Ela a ignorou.
— Ótimo — disse.
— Já reservamos lugar na vizinhança para Jonny e Kenny. Mas achei que Adam iria divertir-se mais em sua casa.
— Claro — concordou Joanna. — Vai ser mais fácil impedir que Pete e Kim puxem os cabelos um do outro. O que é que vocês vão fazer? Vão até a cidade?
— Não, vamos simplesmente ficar aqui. E esperamos ficar isolados pela neve. Vou levá-lo amanhã, depois das aulas, OK? Posso apanhá-lo no domingo à noite?
— Está bem. Como vai a procura de casas?
— Não muito bem. Vi uma que é uma beleza em Norwood, esta manhã, mas ela só vai ser desocupada no dia primeiro de abril.
Fique esperando, então.
— Não, obrigada. Vamos sair para conversar?
— Não posso, tenho de fazer uma limpeza de verdade.
— Está vendo só? Você está mudando. A magia de Stepford já começou a agir.
Uma mulher negra, com um cachecol laranja e um casaco listrado imitando pele, esperava no balcão da biblioteca, com as pontas dos dedos descansando sobre uma pilha de livros. Deu uma olhada em Joanna e balançou a cabeça com um meio sorriso;
Joanna sacudiu a cabeça e sorriu em resposta; a mulher desviou o olhar para a cadeira vazia atrás do balcão e para as estantes de livros, atrás da cadeira.
Era alta, tinha a pele acobreada, o cabelo cortado rente e grandes olhos escuros — exóticos e atraentes. Cerca de trinta anos.
Joanna dirigiu-se para o balcão, tirou as luvas e apanhou um cartão no bolso. Olhou para o letreiro com o nome de srta. Austrian no balcão e para os livros sob os dedos finos e longos da mulher negra, a alguns metros de distância. Uma cabeça cortada, de Iris Mudoch, em cima de Eu sei por que canta o pássaro engaiolado e O mago. Joanna olhou para o cartão; o livro Além da liberdade e da dignidade, de Skinner, estaria reservado para ela até o dia 12 de novembro. Teve vontade de dizer algo amigável e acolhedor — certamente ela era a esposa ou a filha da família negra mencionada pela mulher do Comitê de Boas-Vindas —, mas não queria parecer uma branca paternalista e liberal. Será que ela diria alguma coisa se a mulher não fosse negra? Sim, numa situação como aquela.
— Nós poderíamos levar tudo, se quiséssemos — disse a mulher.
Joanna sorriu para ela e respondeu:
— E deveríamos fazê-lo; isso ensinaria a pessoa encarregada a permanecer no local de trabalho.
— Fez um sinal em direção ao balcão.
A mulher sorriu.
— Está sempre vazia assim? — perguntou.
— Nunca tinha visto assim antes — disse Joanna. — Mas só tenho vindo às tardes e aos sábados.
— Você é nova em Stepford?
— Estou aqui há três meses.
— E eu há três dias — disse a mulher.
— Espero que goste daqui.
— Acho que vou gostar.
Joanna estendeu a mão.
— Sou Joanna Eberhart — disse, sorrindo.
— Ruthanne Hendry — disse a mulher, sorrindo também e apertando a mão de Joanna.
Joanna virou a cabeça e semicerrou os olhos.
— Conheço esse nome. Já o vi em algum lugar.
A mulher sorriu.
— Você tem crianças pequenas? — perguntou ela.
Joanna anuiu, intrigada.
— Escrevi um livro para crianças, Penny tem um plano — disse a mulher. — Eles têm o livro aqui; a primeira coisa que fiz foi olhar no catálogo.
— Mas é claro! — disse Joanna. — Kim estava com ele há cerca de duas semanas! E adorou! Eu também; é tão bom encontrar um livro onde uma menina faz algo mais além de chá para suas bonecas!
— Propaganda sutil — disse Ruthanrie Hendry, sorrindo.
— Você fez as ilustrações também? — perguntou Joanna. — São espetaculares.
— Obrigada.
— Está escrevendo outro?
Ruthanne Hendry assentiu.
— Já tenho um esboçado. Começarei a trabalhar nele para valer tão logo nos instalemos.
— Sinto muito — disse a srta. Austrian, que vinha mancando do fundo da sala. — De manhã, fica tudo tão calmo por aqui que eu — parou, piscou e continuou mancando — fico trabalhando no escritório. Tenho de arranjar uma dessas campainhas em que as pessoas dão umas batidas. Alô, sra. Eberhart. — Sorriu para Joanna e para Ruthanne Hendry.
— Alô — respondeu Joanna. — Esta é uma de suas autoras. Penny tem um plano. Ruthanne Hendry.
— Ah, é? — A srta. Austrian sentou-se pesadamente na cadeira e apoiou nela os braços, de mãos gorduchas e róseas. — É um livro muito popular. Temos dois exemplares circulando, e ambas as retiradas foram renovadas.
— Gosto desta biblioteca — disse Ruthanne Hendry. — Posso me inscrever?
— A senhora mora em Stepford?
— Sim, acabo de me mudar.
— Então, seja bem-vinda — disse a srta. Austrian. Abriu uma gaveta, tirou um cartão branco e colocou-o ao lado da pilha de livros.
No balcão da lanchonete do centro, que estava vazia, com exceção de dois homens da Companhia Telefônica, Ruthanne mexia seu café e, olhando para Joanna, perguntou:
— Diga-me uma coisa com sinceridade: houve muita reação pelo fato de termos comprado uma casa aqui?
— Nada que eu tivesse ouvido — disse Joanna.
— Nesta cidade nada provoca grandes reações. Não há ponto algum onde as pessoas realmente se encontrem, exceto a Associação Masculina.
— Eles não são maus — disse Ruthanne. — Royal vai juntar-se a eles amanhã à noite. Mas as mulheres da vizinhança...
— Ah, escute — disse Joanna. — Isso não tem nada a ver com cor, acredite-me. Elas são assim com todo mundo. Não têm tempo para tomar um café, certo? São fixadas em seu trabalho doméstico.
Ruthanne anuiu:
— Não me importo. Sou muito auto-suficiente, pois de outro jeito não teria nem feito a mudança. Mas...
Joanna contou-lhe a respeito das mulheres de Stepford e disse-lhe que Bobbie estava até planejando mudar-se para não ficar como elas.
Ruthanne sorriu.
— Não existe nada que possa fazer com que eu me transforme numa hausfrau — disse. — Se elas são assim, muito bem. Eu tinha medo pelas meninas, que fosse por causa da cor. — Ela tinha duas filhas, de quatro e seis anos; e seu marido, Royal, era diretor do Departamento de Sociologia de uma das universidades da cidade.
Joanna falou-lhe de Walter, Pete e Kim e de suas fotografias.
Trocaram números de telefone.
— Eu me transformei numa eremita enquanto escrevia Penny — disse Ruthanne —, mas telefonarei qualquer dia.
— Eu lhe telefonarei — disse Joanna. — Se estiver ocupada, é só dizer. Queria que você conhecesse Bobbie; estou certa de que vão gostar uma da outra.
Enquanto se dirigiam para seus carros — que haviam deixado em frente à biblioteca —, Joanna viu Dale Coba, que a olhava de longe. Ele estava em pé, com um carneiro nos braços, junto a um grupo de homens que armavam um presépio perto do prédio da Sociedade Histórica. Ela o cumprimentou com um sinal e ele, segurando o carneiro, que parecia vivo, acenou com a cabeça e sorriu.
Joanna disse a Ruthanne quem era ele e perguntou-lhe se sabia que Ike Mazzard vivia em Stepford.
— Quem?
— Ike Mazzard, o desenhista.
Ruthanne jamais ouvira falar dele, o que fez com que Joanna se sentisse muito velha. Ou muito branca.
Ficar com Adam no fim de semana foi bom até certo ponto. No sábado, ele, Pete e Kim brincaram juntos sem problemas, dentro e fora da casa; mas, no domingo, um dia enregelado e encoberto, em que Walter requisitou a sala de visitas para ver seu futebol (muito justo, após a corrida de trenó do domingo anterior), Adam e Pete se transformaram, nessa ordem, em soldados num forte, que era um cobertor em cima da mesa de jantar, exploradores no porão ("Não entrem naquele quarto escuro!") e personagens de Jornada nas estrelas, no quarto de Pete — todos eles compartilhando estranhamente de um único inimigo comum, chamado Kim-She'sDim (Tradução literal: “Kim é burra”. (N. do T.)). Estavam sempre alerta, preparando defesas ruidosas e destruidoras, e a pobre Kim era mesmo uma burra, por desejar somente estar com eles, não querendo desenhar ou ajudar a arquivar os negativos, e nem mesmo — Joanna se desesperava — fazer biscoitos. Adam e Pete ignoravam ameaças, Kim ignorava ofertas tentadoras e Walter ignorava tudo.
Joanna ficou satisfeita quando Bobbie e Dave vieram apanhar Adam.
Mas também ficou contente por ter cuidado dele, quando viu como eles estavam bem. Bobbie estava com um belo penteado e absolutamente linda — devido à maquilagem ou ao amor, provavelmente a ambos. E Dave parecia satisfeito, agitado e alegre. Trouxeram uma onda de frio para dentro do hall.
— Ei, Joanna, como é que foi tudo? — perguntou Dave, esfregando as mãos cobertas por luvas de couro.
Bobbie, envolta em seu casaco de pele de raccoon (Animal norte-americano, do mesmo gênero do guaxinim. (N. do E.)), disse:
— Espero que Adam não tenha dado muito trabalho.
— Nem um pouquinho — disse Joanna. — Vocês estão com um aspecto maravilhoso!
— Estamos nos sentindo maravilhosamente bem — disse Dave.
Bobbie acrescentou, sorrindo:
— Foi um fim de semana adorável. Obrigada por nos terem permitido desfrutá-lo.
— Esqueça — disse Joanna. — Vou deixar Pete com vocês num desses fins de semana.
— Ficaremos contentes em recebê-lo — disse Bobbie.
Sempre que quiserem, é só avisar. Adam? Hora de ir embora. — disse Dave.
— Ele está lá em cima, no quarto de Pete.
Dave juntou as mãos enluvadas em concha e gritou:
— A-dam! Estamos aqui! Apanhe suas coisas!
— Tirem o casaco — disse Joanna.
— Temos de apanhar Jon e Kenny — desculpou-se Dave.
— Estou certa de que vocês querem um pouco de paz e silêncio. Deve ter sido um inferno — acrescentou Bobbie.
— Bem, não foi o mais repousante dos domingos — disse Joanna. — Entretanto, ontem estava perfeito.
— Oba! — disse Walter, voltando da cozinha, com um copo na mão.
— Alô, Walter! Ei, companheiro! — disseram Bobbie e Dave.
— Como é que foi a segunda lua-de-mel? — perguntou Walter.
— Melhor que a primeira. Só que mais curta. — Dave sorriu para Walter.
Joanna olhou para Bobbie, esperando que ela dissesse algo engraçado. Bobbie sorriu para ela e olhou em direção à escada.
— Olá, docinho! — disse ela. —. Teve um bom fim de semana?
— Não quero ir embora — disse Adam, em pé, inclinando-se para manter sua sacola fora da escada. Pete e Kim estavam atrás dele.
Kim perguntou:
— Ele pode ficar mais uma noite?
— Não, querida, amanhã ele tem escola — disse Bobbie.
— Vamos embora, camarada, temos de recolher o resto da máfia — ordenou Dave.
Adam desceu as escadas com um ar infeliz, e Joanna foi até o armário pegar seu casaco e suas botas.
— Ei! — disse Dave. — Tenho alguns informes acerca daquelas ações sobre as quais você me perguntou.
— Ah, ótimo — disse Walter, indo com Dave para a sala de visitas.
Joanna deu o casaco de Adam para Bobbie e esta agradeceu, segurando-o para Adam vesti-lo. Ele largou a sacola e abriu os braços, enfiando-os nas mangas do casaco.
Joanna, segurando as botas de Adam, perguntou:
— Quer uma sacola para as botas?
— Não, não se incomode — disse Bobbie.
Virou Adam de frente e ajudou-o com os botões.
— Você está cheirando bem — disse ele.
— Obrigada, docinho,
Ele olhou para o teto e para ela.
— Não gosto que você me chame assim disse ele. — Eu gostava, mas agora não gosto mais.
— Sinto muito. Não o farei novamente. — Sorriu para ele e beijou-o na testa.
Walter e Dave saíram da sala de visitas, e Adam apanhou a sacola, dizendo adeus a Pete e a Kim. Joanna deu as botas de Adam para Bobbie e encostou seu rosto no dela. Bobbie ainda estava fria e, de fato, cheirava bem.
— Falo com você amanhã — disse Joanna.
— Claro — disse Bobbie, sorrindo. Em seguida, dirigiu-se para onde Walter estava, na porta, e ofereceu-lhe a face. Ele hesitou, Joanna não sabia por quê, e deu-lhe um beijo rápido.
Dave beijou Joanna e deu um tapinha no braço de Walter.
— Até logo, companheiro — e foi levando Adam para fora, atrás de Bobbie.
— Podemos ir para a sala de visitas, agora? — perguntou Pete.
— É toda sua — disse Walter.
— Eles não são maravilhosos? — comentou Joanna, — Bobbie não estava tão bem assim nem mesmo na festa. Por que você não a quis beijar?
— Ah, eu não sei, beijinhos. É tudo tão teatral!
— Nunca percebi essas objeções antes.
— Então, acho que mudei — disse ele.
Joanna ficou olhando as portas do carro serem fechadas e os faróis se acenderem.
— Que tal nós passarmos um fim de semana sozinhos? — disse ela. — Eles ficam com Pete, disseram que sim, e estou certa de que os Van Sants ficariam com Kim.
— Seria ótimo — disse ele. — Logo depois dos feriados.
— Ou talvez os Hendrys — continuou ela. — Eles têm uma menina de seis anos, e eu gostaria que Kim conhecesse uma família de negros.
O carro arrancou, com as luzes traseiras acesas, vermelhas e brilhantes. Walter fechou a porta, trancou-a e, com o polegar, apagou as luzes de fora.
— Quer um drinque? — perguntou ele.
— Se quero! — disse Joanna.
Puxa, que segunda-feira: ter de remontar o quarto de Pete e arrumar os outros, trocar a roupa das camas, lavar a roupa (evidentemente ela deixou que acumulasse), fazer a lista de compras para o dia seguinte e ter de encompridar três calças de Pete! Era isso o que estava fazendo; deixara o resto para lá: as compras de Natal, endereçar os cartões de Natal e preparar a fantasia de Pete para a peça de teatro ("Obrigada por isso, srta. Turner"). Bobbie não telefonou, graças a Deus; não era um dia para conversa fiada. "Será que ela estava certa?", cismou Joanna. "Será que estou mudando?" Não, diabos; o trabalho doméstico tinha de ser feito de vez em quando, porque senão a casa se transformaria em... bem, na casa de Bobbie. Além do mais, uma autêntica esposa de Stepford se desincumbiria de tudo com muita calma e eficiência, tomando cuidado para não passar o aspirador de pó por cima do fio e esmagar os dedos ao tentar desembaraçá-lo.
Ela infernizou a vida de Pete por ele não ter guardado os brinquedos quando terminou de usá-los, e ele passou uma hora emburrado, sem falar com ela. E Kim estava tossindo.
Walter implorou para escapar de sua vez de trabalhar na cozinha e saiu correndo para dentro do carro lotado de Herb Sundersen. A Associação Masculina estava movimentada devido ao projeto de brinquedos de Natal. (Para quem? Onde estavam as crianças necessitadas de Stepford? Ela nunca tinha visto sinal algum delas.)
Cortou um pedaço de lençol para a fantasia de Pete, um boneco de neve, e tomou parte, com Pete e Kim, em um jogo de concentração (Kim só tossiu uma vez, mas vamos isolar). Em seguida, endereçou os cartões de Natal até a letra L e foi para a cama às dez horas. Dormiu lendo o livro de Skinner.
Na terça-feira, estava melhor. Depois de ter limpado a mesa do café e feito as camas, telefonou para Bobbie — ninguém atendeu; ela devia estar procurando casa —, foi de carro até o centro, tirou fotografias do presépio e chegou um pouco antes do ônibus escolar.
Walter lavou os pratos e depois foi para a Associação Masculina. Os brinquedos eram para as crianças da cidade, crianças de bairros pobres e crianças de hospitais. Reclame disto, sra. Eberhart. Ou seria ela ainda sra. Ingalls? Sra. Ingalls-Eberhart.
Depois de ter obrigado Pete e Kim a tomar banho e ir para a cama, telefonou para Bobbie. Era estranho que Bobbie não tivesse telefonado durante dois dias inteiros.
— Alô? — disse Bobbie.
— Quanto tempo sem notícias!
— Quem fala?
— Joanna.
— Ah, alô — disse Bobbie. — Como vai?
— Bem. E você? Está me parecendo um tanto na fossa.
— Não, estou bem — disse Bobbie.
— Achou alguma coisa hoje de manhã?
— O que é que você quer dizer?
— Sobre casas.
— Fui fazer compras de manhã — disse Bobbie.
— Por que não me telefonou?
— Fui muito cedo.
— Eu — fui por volta das dez; por pouco não nos encontramos.
Bobbie não disse nada.
— Bobbie?
— Sim?
— Tem certeza de que está bem?
— Claro. Estou passando roupa.
— A esta hora?
— Dave está precisando de uma camisa para amanhã.
— Ah, então telefone para mim de manhã; talvez possamos almoçar juntas. A menos que você vá procurar casa.
— Não vou, não — disse Bobbie.
— Então, telefone-me, OK?
— OK — disse Bobbie. — Até logo, Joanna.
— Até logo.
Desligou e ficou sentada, olhando para o telefone, com a mão pousada nele. Um pensamento cruzou-lhe a mente — era ridículo —, de que Bobbie havia mudado, da mesma forma que Charmaine. Não, Bobbie, não; era impossível. Devia ter tido uma briga com Dave, uma briga para valer, sobre a qual não estava com vontade de falar. Ou será que ela própria teria ofendido Bobbie de alguma forma, inconscientemente? Será que no domingo dissera alguma coisa sobre a estada de Adam que Bobbie tivesse interpretado mal? Mas, não, elas tinham se despedido tão fraternalmente como sempre, beijando-se e combinando telefonar uma para a outra! (Mesmo assim, agora que ela estava pensando nisso, Bobbie parecera diferente; não tinha dito o tipo de coisas que dizia normalmente, e andava mais devagar também.) Provavelmente, ela e Dave haviam fumado maconha no fim de semana. Eles já o haviam tentado algumas vezes, sem sentir muito o efeito; Bobbie havia contado. Talvez agora...
Endereçou mais uns poucos cartões de Natal.
Telefonou para Ruthanne Hendry, que se mostrou simpática e satisfeita por falar com ela. Conversaram sobre O mago, do qual Ruthanne estava gostando tanto quanto Joanna. Ruthanne falou-lhe de seu novo livro, uma nova aventura de Penny. Concordaram em almoçar juntas na semana seguinte. Joanna falaria com Bobbie, e as três iriam para o restaurante francês de Eastbridge. Ruthanne lhe telefonaria na segunda-feira de manhã.
Endereçou mais cartões de Natal e leu o livro de Skinner na cama, até que Walter chegou.
— Falei com Bobbie hoje à noite — disse ela. — Ela parecia diferente, vazia.
— Provavelmente, está cansada de todas essas correrias — disse Walter, esvaziando os bolsos de seu casaco sobre a cômoda.
— Parecia diferente no domingo, também — continuou Joanna. — Ela não falou...
— Só estava com um pouco mais de maquilagem, mais nada — disse Walter. — Você não vai começar de novo com essa história de reagentes químicos, vai?
Ela franziu o cenho, pressionando o livro fechado contra os joelhos sob o cobertor.
— Dave disse alguma coisa sobre eles terem experimentado maconha novamente? — perguntou ela.
— Não — respondeu Walter. — Mas talvez seja essa a resposta.
Fizeram amor, mas ela estava muito tensa e não conseguiu entregar-se realmente, e não foi muito bom.
Bobbie não telefonou. Por volta da uma hora, Joanna foi de carro até lá. Os cachorros latiram para ela, quando saiu da camioneta. Estavam acorrentados a uma corda presa atrás da casa. O corgi gania em pé, sobre as patas traseiras, tateando o ar, com as patas da frente, e o pastor peludo latia, parado. O Chevrolet azul de Bobbie estava na entrada ao lado da casa.
Bobbie, em sua sala de estar imaculada — as almofadas todas ajeitadas, as madeiras brilhando, as revistas arrumadas na mesa polida atrás do sofá —, sorriu para Joanna e disse:
— Sinto muito, estava tão ocupada que me esqueci. Você já almoçou? Venha até a cozinha. Eu lhe preparo um sanduíche. O que vai querer?
Ela estava como no domingo — bonita, de cabelo penteado e rosto maquilado. E estava usando uma espécie de sutiã de espuma que lhe erguia os seios sob o suéter verde, e uma cinta que lhe espremia a cintura sob uma saia marrom, pregueada.
Em sua cozinha imaculada, ela disse:
— Sim, eu mudei. Compreendi que estava sendo tremendamente relaxada e egoísta. Não é nenhuma desgraça ser uma boa dona-de-casa. Decidi fazer meu dever conscientemente, da mesma forma que Dave faz o seu, e tomar mais cuidado com minha aparência pessoal. Tem certeza de que não quer um sanduíche?
Joanna sacudiu a cabeça.
— Bobbie! — exclamou ela. — Eu... você não está vendo o que aconteceu? O que quer que haja por aqui pegou em você, da mesma forma que em Charmaine!
Bobbie sorriu para ela.
— Não peguei nada. Não há nada por aqui. Aquilo tudo foi uma bobagem. Stepford é um lugar bom e saudável para se viver.
— Não quer mais se mudar?
— Ah, não — disse Bobbie. — Aquilo era bobagem também. Estou perfeitamente feliz aqui. Não posso nem ao menos lhe preparar uma xícara de café?
Ela telefonou para Walter em seu escritório: — Ah, boa tarde! — respondeu Esther. — É um prazer falar com a senhora! Deve estar fazendo um dia lindo aí, ou a senhora está aqui na cidade?
— Não, estou em casa. Posso falar com Walter, por favor?
— Receio que no momento ele esteja numa reunião.
— É importante. Por favor, diga a ele.
— Espere um segundo, então.
Ela esperou, sentada na escrivaninha da saleta, olhando para os papéis e envelopes que tirara da gaveta do meio, e para o calendário — Terça-feira, 14 de dezembro, ontem — e para o desenho de Ike Mazzard.
— Ele vai atender agora mesmo, sra. Eberhart — disse Esther. — Nada de mau com Pete ou Kim, espero.
— Não, eles estão bem.
— Ótimo, devem estar tendo um...
— Alô — disse Walter.
— Walter?
— Alô. O que é que há?
— Walter, quero que você me ouça e não discuta — disse ela. — Bobbie se transformou. Estive na casa dela. A casa parece... está irrepreensível, Walter; está imaculada! E ela está toda... escute, você está com os talões de cheque? Estive procurando por eles e não os encontrei. Walter...
— Sim, estou com eles — disse ele. — Estive comprando algumas ações, de acordo com a recomendação de Dave. Para que você os quer?
— Para ver quanto temos — disse ela. — Havia uma casa em Eastbridge que...
— Joanna!
— Custa um pouco mais do que esta, mas...
— Joanna, ouça-me.
Não vou ficar aqui nem mais um...
— Ouça-me, que diabo!
Ela agarrou o fone.
— Continue — disse ela.
— Vou tentar chegar cedo em casa — disse ele. — Não faça coisa alguma até que eu chegue aí. Você está me ouvindo? Não se comprometa com nada. Acho que posso escapar daqui a meia hora.
— Não vou ficar aqui nem mais um dia — completou ela.
— Só quero que você espere até eu chegar aí, está bem? Não podemos falar sobre isso por telefone.
— Traga os talões de cheque — disse ela.
— Não faça nada até eu chegar aí. — O telefone deu um estalido e emudeceu.
Ela desligou.
Colocou os papéis e os envelopes de volta na gaveta do meio e fechou-a. Pegou então a lista telefônica e procurou o número da srta. Kirgassa, em Eastbridge.
A casa em que estava pensando, em St. Martin, ainda estava disponível.
— Na verdade, acho que o preço baixou desde que a senhora a viu.
— Quer me fazer um favor? — disse ela. — É possível que fiquemos com ela; saberei com certeza amanhã. Poderia descobrir qual o mínimo que eles aceitariam para uma venda imediata, e me avisar tão logo seja possível?
— Ligarei em seguida — disse Kirgassa. — A senhora sabe se a sra. Markowe achou alguma coisa?
Tínhamos combinado de nos encontrar esta manhã, mas ela não apareceu.
— Ela mudou de ideia, não vai mais sair daqui — disse. — Mas eu vou.
Telefonou para Buck Raymond, o corretor que haviam contratado em Stepford.
— Só por hipótese — disse ela —, se resolvêssemos vender nossa casa amanhã, o senhor acha que poderíamos fazê-lo imediatamente?
— Sem dúvida — respondeu Buck. — Há uma procura constante por aqui. Tenho certeza de que vocês poderiam reaver seu dinheiro e talvez até um pouco mais. A senhora não está contente com ela?
— Não.
— Sinto saber disso. Devo começar a mostra-la? Há um casal aqui agora mesmo que está...
— Não, não, ainda não — disse ela. — Amanhã eu o avisarei.
— Agora, espere um minuto — disse Walter, fazendo gestos apaziguadores com as mãos.
— Não — disse ela, sacudindo a cabeça. — Não, o que quer que exista por aqui leva quatro meses para agir, o que significa que tenho só um mês de sobra. Talvez menos; precisamos nos mudar no dia 4 de setembro.
— Pelo. amor de Deus, Joanna!
— Charmaine mudou-se em junho. E se transformou em novembro. Bobbie mudou-se em agosto, e estamos em dezembro. — Virou-se, afastando-se dele. A torneira da pia estava pingando; apertou-a com força, e ela parou de pingar.
— Mas vocês receberam a carta do Departamento de Saúde — disse Walter.
— Besteira, para citar Bobbie. — Virou-se e o encarou. — Existe alguma coisa, tem de haver. Vá dar uma olhada. Você faria isso? Ela está com o busto levantado até aqui, e o traseiro comprimido por uma cinta, reduzido a praticamente nada! A casa está parecendo a de um comercial. Como as de Carol e de Donna, e de Kit Sundersen.
— Ela ia ter de limpá-la mais cedo ou mais tarde; estava um chiqueiro.
— Ela se transformou, Walter! Ela não fala da mesma maneira, não pensa como antes, e eu não vou ficar esperando que isso aconteça comigo!
— Nós não vamos nos...
Kim veio do pátio, com o rosto corado envolto pelo capuz forrado de pele.
— Fique lá fora, Kim — ordenou Walter.
— Queremos alguns mantimentos — disse Kim. — Vamos sair para uma excursão.
Joanna apanhou a lata de biscoitos, abriu-a e tirou alguns. — Tome — disse, colocando-os na mão enluvada de Kim. — Fiquem perto de casa, está escurecendo.
— Podemos comer biscoitos de chocolate?
— Nós não temos biscoitos de chocolate. Agora vá.
Kim saiu. Walter fechou a porta.
Joanna sacudiu as migalhas de sua mão.
— A casa é melhor que esta — disse ela —, e podemos comprá-la pelo preço desta; Buck Raymond disse que sim.
— Nós não vamos nos mudar — disse Walter.
— Você disse que nos mudaríamos!
— No próximo verão; não...
— Não vou ser mais eu mesma no próximo verão!
— Joanna...
— Você não compreende? Isso vai acontecer comigo em janeiro.
— Não vai acontecer nada a você!
— Foi isso o que eu disse a Bobbie! E ainda brinquei com ela a respeito da água mineral.
Ele se aproximou dela.
— Não há nada na água, não há nada no ar — disse ele. — Elas se transformaram exatamente pelas razões que lhe deram: porque compreenderam que eram preguiçosas e negligentes. Se Bobbie resolveu preocupar-se com sua aparência, já era tempo. Não lhe faria mal algum, também, olhar-se num espelho de vez em quando.
Ela olhou para ele e ele desviou o olhar, corando e voltando a olhá-la.
— É verdade — continuou. — Você é uma mulher muito bonita, e nunca faz droga nenhuma consigo mesma, a menos que haja uma festa ou algo que o valha.
Ele se virou e foi até o fogão. Ficou torcendo o acendedor de um lado para o outro.
Ela o fitou.
— Eu sei o que vamos fazer...
— Você quer que eu me transforme?
— Claro que não, não seja boba. — Ele se voltou.
— É isso o que você quer? — perguntou ela. — Uma hausfrau engraçadinha e toda embonecada?
— Tudo o que eu disse foi...
— Foi por isso que você escolheu Stepford para morar? Alguém lhe deu a dica? "Leve-a para Stepford, Waly, meu velho; há alguma coisa no ar por lá; ela vai se transformar em quatro meses."
— Não há nada no ar — repetiu Walter. — A dica que recebi foi a respeito de boas escolas e impostos baixos. Agora, olhe, estou tentando encarar tudo isso sob o seu ponto de vista e fazer um julgamento justo. Você quer se mudar porque está com medo de se transformar; e acho que você está sendo irracional e um pouco histérica, e que, se nos mudarmos agora, isso implicaria uma carga pesada e desnecessária a todos nós, especialmente a Pete e Kim. — Parou e tomou fôlego: — Está bem, façamos o seguinte, você vai ter uma conversa com Alan Hollingsworth e, se ele disser que você está ...
— Com quem?
— Alan Hollingsworth — disse ele. Seus olhos se desviaram dos dela. — O psiquiatra, você sabe. — Seus olhos se voltaram. — Se ele disser que você não está sofrendo de nenhuma...
— Não estou precisando de nenhum psiquiatra — disse ela. — E, se precisasse, não procuraria Alan Hollingsworth. Vi sua mulher na reunião de Pais e Mestres; ela é uma delas; posso apostar que ele pensaria que estou agindo irracionalmente.
— Então, escolha outro — disse ele. — O que quiser. Se você não estiver sofrendo de nenhuma espécie de delírio ou qualquer outra coisa, então nos mudamos, tão logo seja possível. Vou dar uma olhada naquela casa amanhã de manhã, e até deixar um depósito.
— Não estou precisando de psiquiatra — repetiu ela. — Estou precisando é de sair de Stepford.
— Agora vamos, Joanna —. disse ele. — Acho que estou sendo bem razoável. Você está exigindo de nós um grande esforço, e acho que você nos deve, a todos, inclusive a você, especialmente a você, a certeza de que está vendo as coisas tão claramente quanto julga.
Ela olhou para ele.
— Concorda? — perguntou ele.
Ela não disse nada. Olhou para ele.
— Concorda? — repetiu ele. — Não lhe parece razoável?
— Bobbie transformou-se enquanto estava sozinha com Dave, e Charmaine quando estava sozinha com Ed — disse, finalmente.
Ele desviou o olhar, sacudindo a cabeça.
— Será que vai acontecer isso comigo? — perguntou ela. — No nosso fim de semana a sós?
— Foi ideia sua — disse ele.
— Você a teria sugerido, se eu não o tivesse feito?
— Está vendo só? — disse ele. — Viu como está falando? Eu queria que você pensasse no que lhe propus. Não pode mudar toda a nossa vida assim no calor de um momento. Seria insensato. — Saiu da cozinha.
Ela ficou parada lá, e colocou a mão na testa, fechando os olhos. Ficou assim, e depois abaixou a mão, abriu os olhos e sacudiu a cabeça. Foi até a geladeira, abriu-a e retirou uma tigela coberta e um pacote de carne.
Ele estava sentado à escrivaninha, escrevendo num bloco amarelo. Um cigarro, no cinzeiro, soltava espirais de fumaça para cima, na direção do abajur. Ele olhou para ela e tirou os óculos.
— Está bem — disse ela. — Falarei com alguém. Mas uma mulher.
— Ótimo. É uma boa ideia.
— Você deixa um depósito para a casa amanhã?
— Sim — disse ele. — A não ser que haja algo de muito errado com ela.
— Não há. É uma casa boa e tem somente seis anos. Com uma boa hipoteca.
— Ótimo — disse ele.
Ela ficou olhando para ele.
— Quer que eu me transforme? — perguntou.
— Não. Só queria que você pusesse um batom de vez em quando. Não seria nenhuma mudança radical. Eu também queria me transformar, como, por exemplo, perder alguns quilos.
Ela puxou os cabelos para trás.
— Vou trabalhar um pouco no quarto escuro. Pete ainda está acordado. Você pode dar uma olhada nele?
— Claro — disse ele, e sorriu para ela.
Ela o olhou, virou-se e foi embora.
Joanna telefonou para o já famoso Departamento de Saúde, e eles a puseram em contato com a sociedade médica regional, que, por sua vez, forneceu os nomes e os números de telefone de cinco psiquiatras mulheres. As duas mais próximas, em Eastbridge, já estavam com os horários totalmente reservados até o meio de janeiro; mas a terceira em Sheffield, ao norte de Norwood, poderia atendê-la no sábado à tarde, às duas horas. Dra. Margaret Fancher; ela pareceu simpática pelo telefone.
Terminou os cartões de Natal e a fantasia de Pete; comprou brinquedos e livros para Pete e Kim, e uma garrafa de champanha para Bobbie e Dave. Comprou na cidade uma fivela de ouro para o cinto de Walter e planejou vasculhar as lojas de antiguidades da Rodovia 9, para ver se achava documentos antigos; ao invés disso, comprou um casaco bege.
Chegaram os primeiros cartões de Natal — de seus pais e dos sócios mais novos de Walter, dos McCormick, dos Chamalian, e dos Van Sants. Ela os enfileirou numa prateleira da estante de livros da sala de estar.
Chegou um cheque da agência: cento e vinte e cinco dólares.
Na sexta-feira à tarde, a despeito da espessa camada de neve, e de continuar a nevar, ela pôs Pete e Kim na camioneta e foi até a casa de Bobbie.
Bobbie os recebeu afetuosamente; Adam, Kenny e os cachorros acolheram-nos ruidosamente. Bobbie preparou um chocolate quente, e Joanna carregou a bandeja até a sala de visitas.
— Cuidado — disse Bobbie —, pois encerei o chão esta manhã.
— Eu notei — disse Joanna.
Sentou-se na cozinha, olhando para Bobbie — a bela e elegante Bobbie —, que limpava o fogão, com toalhas de papel, e o vaporizava com um detergente.
— O que é que você fez a si mesma, pelo amor de Deus? — perguntou ela.
— Não estou comendo como antes — disse Bobbie. — Estou fazendo mais exercício.
— Você deve ter perdido uns cinco quilos!
— Não, só uns dois ou três. Estou usando uma cinta.
— Bobbie, por favor, conte-me o que aconteceu no fim de semana passado.
— Nada. Ficamos em casa.
— Você fumou alguma coisa, ou tomou algo? Drogas, quero dizer.
— Não, não seja tola.
— Bobbie, você não é mais a mesma! Será que não consegue ver isso? Ficou igual às outras!
— Francamente, Joanna, isso é bobagem disse Bobbie. — Claro que não mudei. Simplesmente compreendi que estava sendo terrivelmente relaxada e egoísta, e agora estou cumprindo o meu dever conscientemente, da mesma forma que Dave cumpre o dele.
— Eu sei, eu sei — disse ela. — O que é que ele acha disso?
— Ele está muito feliz.
— Aposto que sim.
— Este detergente funciona de fato. Você o usa?
"Eu não estou louca", pensou. "Não estou louca."
Jonny e os outros dois meninos estavam fazendo um boneco de neve em frente à casa do vizinho. Ela deixou Pete e Kim dentro da camioneta e foi dizer alô para ele.
— Alô — disse ele. — Trouxe algum dinheiro para mim?
— Ainda não — disse ela, protegendo o rosto dos grandes flocos de neve que caíam. — Jonny, eu... não me sai da cabeça a maneira como sua mãe mudou.
Não é? — disse ele, concordando, ofegante.
— Não consigo entender — disse ela.
— Nem eu. Ela não grita mais, prepara cafés da manhã quentes... — Olhou para a casa, franzindo o cenho. Flocos de neve prendiam-se ao seu rosto. — Espero que dure, mas aposto que não.
A dra. Fancher era uma mulher pequena, com cara de duende, cerca de cinquenta anos, cabelo ondulado, já meio grisalho, um nariz pontudo de marionete e sorridentes olhos azul-acinzentados. Usava um vestido azul-escuro, um broche dourado, gravado com os símbolos chineses de yin e yang, e uma aliança de casada. Seu consultório era alegre, com móveis Chippendale e gravuras de Paul Klee, e cortinas listradas que deixavam entrever o brilho do sol e da neve lá fora. Havia um divã de couro marrom, com um encosto para a cabeça coberto de papel, porém Joanna sentou-se na cadeira em frente à escrivaninha e mogno, na qual dúzias de pequenas aparas de papel embandeiravam os lados de um mata-borrão verde.
— Estou aqui por sugestão de meu marido. Nós nos mudamos para Stepford no princípio de setembro, e quero me mudar de lá o mais breve possível. Fizemos um depósito de reserva de uma casa em Eastbridge, mas somente porque insisti nisso. Ele acha que estou me comportando irracionalmente.
Contou à dra. Fancher por que queria mudar-se; falou das mulheres de Stepford e disse que Charmaine e depois Bobbie haviam se transformado. — A senhora já esteve em Stepford? — perguntou.
— Só uma vez — disse a dra. Fancher. — Eu tinha ouvido falar que valia a pena ser vista, o que é verdade. Também ouvi falar que é uma comunidade insular e não sociável.
— O que é verdade, creia-me.
A dra. Fancher conhecia aquela cidade do Texas que tinha baixo índice de criminalidade.
— Aparentemente, o lítio é o responsável — disse ela. — Publicaram um artigo sobre isso em uma revista.
— Bobbie e eu escrevemos para o Departamento de Saúde — disse Joanna. — Eles disseram que nada havia em Stepford que pudesse afetar alguém. Acho que eles pensaram que estávamos malucas. Naquela época, por acaso, eu é que pensei que Bobbie estivesse excessivamente angustiada. Ajudei-a a escrever a carta apenas porque ela me pediu... — Olhou para suas mãos crispadas e juntou-as.
A dra. Fancher permaneceu em silêncio.
— Comecei a suspeitar — disse Joanna. — Ah, meu Deus, suspeitar; isso soa tão... — Juntou as mãos, olhando para elas.
A dra. Fancher disse:
— Começou a suspeitar de quê?
Separou as mãos e enxugou-as na saia.
— Comecei a suspeitar de que os homens estão por trás disso. — Olhou para a dra. Fancher.
A dra. Fancher não sorriu, nem pareceu surpresa.
— Que homens? — perguntou.
Joanna olhou para suas mãos.
— Meu marido, o marido de Bobbie, o de Charmaine. — Olhou para a dra. Fancher. — Todos eles.
E falou da Associação Masculina.
— Uma noite, há alguns meses, eu estava no centro, tirando umas fotografias. Lá onde ficam aquelas lojas comerciais; o prédio dá para as lojas. As janelas estavam abertas, e havia um cheiro no ar. De remédio ou de drogas. E então as persianas foram abaixadas, talvez porque eles tenham percebido que eu estava lá fora; um policial que tinha me visto parou e conversou comigo. — Inclinou-se para a frente. — Existem várias fábricas sofisticadas na Rodovia 9 — disse ela —, e muitos dos homens que moram em Stepford têm empregos de alto nível ali; e pertencem à Associação Masculina. Alguma coisa acontece lá todas as noites, e não acho que sejam somente reparos em brinquedos para crianças necessitadas, bilhar e pôquer. Existe a AmeriChem-Willis e a Produtos Bioquímicos Stevenson. Eles poderiam estar produzindo qualquer coisa que não fosse percebida pelo Departamento de Saúde, lá em cima, na Associação Masculina... — Recostou-se na cadeira, enxugando as mãos nas coxas, sem olhar para a dra. Fancher.
A dra. Fancher fez-lhe perguntas sobre seu ambiente familiar e sobre seu interesse por fotografia; sobre os empregos que tivera, sobre Walter, Pete e Kim.
— Qualquer mudança é traumática, até certo ponto — disse a dra. Fancher —, e particularmente mudanças da cidade para o subúrbio, quando uma mulher acha que seu papel de dona-de-casa não preenche totalmente sua vida. Pode ser algo muito semelhante a ser mandada para a Sibéria. — Sorriu para Joanna. — E a temporada de feriados em nada ajuda. Ela tende a ampliar as angústias de todo mundo. Sempre achei que deveríamos ter um feriado real num ano desses, e deixar de lado todas essas histórias.
Joanna sorriu.
A dra. Fancher inclinou-se para a frente e, juntando as mãos, apoiou os cotovelos na escrivaninha.
— Posso entender que você não se sinta feliz numa cidade de mulheres altamente orientadas para o lar. Eu também não me sentiria; mulher alguma com outros interesses se sentiria. Mas eu gostaria de saber, e imagino que seu marido também, se você seria mais feliz em Eastbridge, ou em qualquer outro lugar, especialmente nesta época.
— Acho que sim — disse Joanna.
A dra. Fancher olhou para suas mãos, comprimindo e flexionando a mão da aliança com a outra.
Olhou para Joanna.
— As cidades desenvolvem suas características gradativamente, à medida que as pessoas as escolhem e vão morar nelas. Uns poucos artistas e escritores vieram aqui para Sheffield há muito tempo; outros os seguiram, e as pessoas que os achavam muito boêmios se mudaram. Agora somos uma cidade de artistas e escritores; claro que não exclusivamente, mas o suficiente para nos destacarmos de Norwood e Kimball. Estou certa de que Stepford desenvolveu uma característica própria, da mesma forma. Isso me parece muito mais provável do que a ideia de que os homens se juntaram para fazer uma lavagem cerebral química nas mulheres. E será que eles poderiam fazê-lo, realmente? Eles poderiam tranquilizá-las, isso sim; mas essas mulheres não me parecem tranquilizadas; elas trabalham duramente e são diligentes, dentro de seu pequeno campo de interesses. Isso seria um trabalho e tanto, mesmo para o mais avançado dos químicos.
— Sei que isso parece... — Joanna esfregou a têmpora.
— Parece — cortou a dra. Fancher — a ideia de uma mulher que, como muitas outras hoje em dia, com bons motivos, suspeita dos homens e tem um ressentimento profundo por eles. Uma mulher que é impelida em duas direções por exigências conflitantes, talvez muito mais fortemente do que ela possa perceber; de um lado, as velhas convenções, e, de outro, as novas convenções da mulher liberada.
Joanna, sacudindo a cabeça, disse:
— Se a senhora pudesse ver como são as mulheres de Stepford! São atrizes de comerciais de televisão, todas elas. Não, nem mesmo isso. Elas... elas são como ... — Sentou-se mais à frente. — Há umas quatro ou cinco semanas, passou um programa e meus filhos assistiram. Esses bonecos de todos os presidentes, movendo-se e mostrando várias expressões faciais diferentes. Abraham Lincoln levantou-se e proferiu o discurso de Gettysburg; parecia tão real que a gente poderia... — Ficou sentada, imóvel.
A dra. Fancher esperou e anuiu.
— Ao invés de forçar uma mudança imediata para sua família — disse ela —, acho que você deveria con...
— Disneylândia... — disse Joanna. — O programa era Disneylândia...
A dra. Fancher sorriu.
— Eu sei. Meus netos estiveram lá no verão passado. Eles me contaram que "conheceram" Lincoln.
Joanna olhava através dela.
— Acho que você devia pensar em tentar fazer uma terapia — disse a dra. Fancher. — Para identificar e esclarecer seus sentimentos. Aí, então, poderia dar o passo certo, talvez para Eastbridge, talvez de volta para a cidade; talvez até você venha a achar Stepford menos opressiva.
Joanna voltou-se para ela.
— Você poderia pensar nisso um dia ou dois e me telefonar? — perguntou a dra. Fancher. — Tenho certeza de que posso ajudá-la. Certamente, vale a pena gastar algumas horas investigando, não?
Joanna anuiu, sentada e imóvel.
A dra. Fancher tirou a caneta do suporte e escreveu no bloco de receitas.
Joanna olhou para ela. Levantou-se e pegou a bolsa em cima da escrivaninha.
— Isto vai ajudá-la, por enquanto — disse a dra. Fancher, escrevendo. — É um tranquilizante suave. Pode tomar três por dia. — Arrancou a folha e entregou-a a Joanna, sorrindo. — Não vão fazê-la ficar fascinada por trabalho doméstico — disse ela.
Joanna pegou a folha.
A dra. Fancher levantou-se.
— Não estarei aqui durante a semana do Natal, mas poderíamos começar a partir do dia 3.
Poderia me telefonar na segunda ou terça-feira e dizer-me o que decidiu?
Joanna anuiu.
A dra. Fancher sorriu.
— Não é nada catastrófico — disse ela. — Sinceramente, tenho certeza de que posso ajudá-la. — Estendeu a mão.
Joanna apertou-a e saiu.