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Apesar de sua beleza e de seus modos encantadores, Annabelle Peyton nunca foi tirada para dançar nos eventos da sociedade londrina. Como qualquer moça de sua idade, ela mantém as esperanças de encontrar alguém, mas, sem um dote para oferecer e vendo a família em situação difícil, amor é um luxo ao qual não pode se dar.
Certa noite, em um dos bailes da temporada, conhece outras três moças também cansadas de ver o tempo passar sem ninguém para dividir sua vida. Juntas, as quatro dão início a um plano: usar todo o seu charme e sua astúcia feminina para encontrar um marido para cada, começando por Annabelle.
No entanto, o admirador mais intrigante e persistente de Annabelle, o rico e poderoso Simon Hunt, não parece ter interesse em levá-la ao altar – apenas a prazeres irresistíveis em seu quarto. A jovem está decidida a rejeitar essa proposta, só que é cada vez mais difícil resistir à sedução do rapaz.
As amigas se esforçam para encontrar um pretendente mais apropriado para ela. Mas a tarefa se complica depois que, numa noite de verão, Annabelle se entrega aos beijos tentadores de Simon... e descobre que o amor é um jogo perigoso.
PRÓLOGO
Londres, 1841
Embora Annabelle Peyton tivesse sido avisada a vida inteira de que nunca recebesse dinheiro de estranhos, um dia ela abriu uma exceção... E logo descobriu por que deveria ter ouvido o conselho da mãe.
Era um dos raros feriados da escola de seu irmão, Jeremy, e, como de costume, ele e Annabelle saíram para assistir ao mais recente espetáculo de panoramas em Leicester Square.
Foram duas semanas fazendo economia a fim de juntar o dinheiro necessário para a compra dos ingressos. Sendo os únicos filhos da família Peyton que vingaram, Annabelle e o irmão mais novo sempre haviam sido próximos, apesar dos dez anos de diferença entre eles. Doenças infantis tinham levado as duas crianças nascidas depois de Annabelle, e nenhuma delas vivera o bastante para ver o primeiro aniversário.
– Annabelle – disse Jeremy, enquanto voltava do guichê da casa de espetáculos –, você tem mais algum dinheiro?
Ela balançou a cabeça e o olhou intrigada.
– Receio que não. Por quê?
Com um leve suspiro, Jeremy ajeitou os cabelos cor de mel que lhe caíam sobre a testa.
– Eles dobraram o preço para esse show... Aparentemente é muito mais caro que os outros.
– O anúncio no jornal não dizia nada sobre um aumento nos preços – observou Annabelle, indignada. – Que inferno! – murmurou a moça, baixando o tom de voz enquanto abria a bolsa na esperança de encontrar uma moeda perdida.
Jeremy, do alto dos seus 12 anos, lançou um olhar desconfiado para o enorme cartaz pendurado sobre as colunas na entrada do teatro de panoramas – A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO: UM SHOW DE ILUSÃO MÁXIMA COM EFEITOS DIORÂMICOS. Desde a abertura, quinze dias antes, o show vinha ficando abarrotado de visitantes impacientes para vivenciar as maravilhas do Império Romano e de sua queda trágica. “É como voltar no tempo”, comentavam eles depois. O tipo comum de panorama consistia em uma lona pendurada numa sala circular, envolvendo os espectadores em um cenário pintado de forma elaborada. Às vezes, música e iluminação especial eram usadas para que a exibição ficasse ainda mais divertida, enquanto um narrador se movia em torno do círculo para descrever lugares distantes ou batalhas famosas.
Entretanto, de acordo com o The Times, esta nova produção era um espetáculo “diorâmico”, o que significava que as telas dos quadros eram feitas de um tecido transparente e oleoso, iluminadas pela frente e, às vezes, por trás com filtros de luzes especiais. Trezentos e cinquenta espectadores ficavam no centro de um carrossel, operado por dois homens, de modo que o público todo girava lentamente durante o show. A interação da luz com o vidro prateado, em conjunto com os filtros e atores contratados para desempenhar o papel de romanos sitiados, criava um efeito que havia sido rotulado como uma “animada exibição”. Pelo que Annabelle lera, os momentos finais mais marcantes, simulando vulcões em erupção, eram tão realistas que algumas mulheres na plateia tinham gritado e desmaiado.
Tomando a bolsa das mãos agitadas da irmã, Jeremy puxou o fecho e a entregou de volta para ela.
– Temos dinheiro suficiente para um ingresso – avisou ele, calmamente. – Vá você assistir.
Eu não queria mesmo ver esse show.
Sabendo que ele mentia para agradá-la, Annabelle fez que não com a cabeça.
– De jeito nenhum. Vá você. Eu posso ver o show a qualquer hora: você é que está sempre na escola. E só dura quinze minutos. Vou a uma das lojas aqui por perto enquanto estiver lá dentro.
– Vai às compras sem dinheiro? – perguntou Jeremy, exibindo uma expressão sinceramente cética nos olhos azuis. – Ah, como isso parece divertido...
– Meu objetivo é olhar, não comprar.
Jeremy bufou.
– É o que os pobres dizem para se consolar quando estão andando pela Bond Street. Além disso, não vou deixar você ir sozinha a lugar nenhum, porque todos os homens das redondezas vão ficar de olho em você.
– Não seja bobo – murmurou Annabelle.
O menino sorriu de repente. Seu olhar examinou o rosto fino da irmã, os olhos azuis e os cabelos presos em cachos de um castanho dourado que reluzia sob a aba do chapéu.
– Não me venha com falsa modéstia. Você tem plena consciência do efeito que causa nos homens e, que eu saiba, não hesita em fazer uso disso.
Annabelle reagiu à provocação com uma careta.
– Que você saiba? Rá! Como sabe das minhas interações com os homens se está na escola a maior parte do tempo?
Jeremy ficou sério.
– Isso vai mudar – assegurou ele. – Não vou voltar para a escola desta vez. Posso ajudar você e mamãe muito mais se eu conseguir um emprego.
Annabelle arregalou os olhos.
– Jeremy, não faça isso! Partiria o coração da mamãe, e se papai estivesse vivo...
– Annabelle – interrompeu ele, em voz baixa –, não temos dinheiro. Não conseguimos sequer arranjar cinco xelins a mais para um ingresso do show de panoramas.
– E imagino o bom emprego que você arrumaria – comentou Annabelle com sarcasmo – sem estudos e nenhuma indicação. A não ser que esteja querendo varrer rua ou trabalhar entregando recados, é melhor ficar na escola até que esteja apto para um trabalho decente. Enquanto isso, vou encontrar um cavalheiro rico com quem possa me casar e então tudo ficará bem.
– Posso imaginar o bom marido que você vai encontrar sem um dote – retrucou Jeremy.
Os irmãos se encararam franzindo a testa por um tempinho, então as portas se abriram e a multidão passou por eles a caminho do espetáculo. Abraçando Annabelle, Jeremy a afastou da confusão.
– Esqueça o panorama – disse ele, sem rodeios. – Vamos fazer outra coisa... Algo divertido que não custe nada.
– Como o quê?
Um momento de reflexão se passou. Quando se tornou evidente que nenhum dos dois conseguiria dar uma sugestão sequer, ambos caíram na gargalhada.
– Sr. Jeremy – chamou uma voz grave atrás deles.
Ainda sorrindo, Jeremy virou-se para o estranho.
– Sr. Hunt! – exclamou ele cordialmente, estendendo a mão. – Estou surpreso que ainda se lembre de mim.
– Eu também... Você cresceu e está muito mais alto desde a última vez que o vi. – O homem apertou a mão dele. – Está de férias da escola, não?
– Sim, senhor.
Vendo a expressão confusa de Annabelle, Jeremy murmurou em seu ouvido, enquanto o estranho alto gesticulava para os amigos entrarem sem ele.
– Sr. Hunt... O filho do açougueiro – sussurrou Jeremy. – Eu o encontrei uma ou duas vezes na loja, quando mamãe mandou que eu buscasse uma encomenda. Seja gentil... Ele é uma boa pessoa.
Estupefata, Annabelle não pôde deixar de pensar que o Sr. Hunt estava inesperadamente bem-vestido para um filho de açougueiro. Usava um paletó preto elegante e um novo estilo de calças mais soltas que, de alguma forma, não disfarçavam as linhas esbeltas e musculosas do corpo dele. Como quase todos os homens que entravam no teatro, ele já havia tirado o chapéu, revelando os cabelos escuros, ligeiramente ondulados. Era alto, de ossatura larga, e parecia ter cerca de trinta anos; possuía características fortes: nariz comprido e afilado, boca grande e olhos tão escuros que não se podia distinguir a íris da pupila. Tinha um rosto másculo, com uma expressão sarcástica nos olhos e um ar de petulância. Estava claro, até mesmo para uma pessoa sem discernimento, que este homem raramente ficava desocupado; seu corpo e sua essência haviam sido definidos pelo trabalho árduo e pela ambição aguçada.
– Esta é minha irmã, a Srta. Annabelle Peyton – apresentou Jeremy. – Este é o Sr. Simon Hunt.
– É um prazer conhecê-la – murmurou Hunt, curvando-se.
Embora os modos dele fossem um tanto refinados, o brilho do seu olhar causou uma vibração estranha logo abaixo das costelas de Annabelle. Sem saber por que, ela se encolheu embaixo do braço do irmão, enquanto o saudava com a cabeça. Para desconforto de Annabelle, ela não conseguia desviar o seu olhar do dele. Parecia que uma sensação sutil de reconhecimento ocorrera entre os dois – não como se tivessem se encontrado antes, mas como se tivessem chegado perto um do outro várias vezes até que por fim um destino impaciente forçara seus caminhos a se cruzarem. Uma fantasia estranha, que ela no entanto não conseguia tirar da cabeça. Incomodada, permaneceu uma impotente prisioneira do olhar decidido dele, até que suas bochechas ganharam uma coloração intensa e indesejada.
Hunt dirigiu-se a Jeremy, embora continuasse olhando para ela.
– Posso acompanhá-los à rotunda?
Um momento de silêncio constrangedor se seguiu antes de Jeremy responder com uma indiferença estudada:
– Obrigado, mas decidimos que não vamos mais assistir.
Hunt arqueou uma das sobrancelhas escuras.
– Tem certeza? Parece ser muito bom. – Seus olhos deixaram de fitar o rosto de Annabelle e se voltaram para Jeremy, captando o desconforto do garoto. A voz de Hunt se abrandou quando voltou a falar com o menino. – Sem dúvida, há uma regra de que nunca se deve discutir esses assuntos na frente de uma dama. No entanto, não posso deixar de pensar... É possível, jovem Jeremy, que tenham sido surpreendidos com o aumento nos preços? Se assim for, ficaria feliz em ajudá-los com as moedas que faltam.
– Não, obrigada – respondeu Annabelle depressa, dando uma leve cotovelada em Jeremy.
Estremecendo, o irmão olhou para o rosto impenetrável do sujeito.
– Agradeço a oferta, Sr. Hunt, mas minha irmã não está disposta...
– Não quero ver o show – interrompeu ela, com frieza. – Ouvi dizer que alguns dos efeitos são bastante violentos e angustiantes para as mulheres. Prefiro um passeio tranquilo no parque.
Hunt a fitou, os olhos profundos contendo um brilho de zombaria.
– É mesmo tão tímida assim, Srta. Peyton?
Irritada com a provocação sutil, Annabelle pegou o irmão pelo braço e o puxou insistentemente.
– É hora de irmos, Jeremy. Não atrasemos o Sr. Hunt por mais tempo, tenho certeza de que ele quer assistir ao show...
– Receio que já esteja arruinado para mim – garantiu-lhes Hunt gravemente – se não assistirem também. – E deu a Jeremy um olhar encorajador. – Não me perdoaria se, por uns meros trocados, privasse você e sua irmã de um entretenimento vespertino.
Sentindo que o irmão cedia, Annabelle sussurrou de modo brusco no ouvido dele:
– Não se atreva a deixá-lo pagar pelos nossos ingressos, Jeremy!
Ignorando-a, Jeremy respondeu com calma para Hunt:
– Senhor, se eu aceitasse a sua oferta de empréstimo, não estou certo de quando poderia reembolsá-lo.
Annabelle fechou os olhos e soltou um leve gemido de orgulho ferido. Ela se esforçava ao máximo para evitar que alguém soubesse das dificuldades deles... E o fato de este homem saber que cada moeda lhes fazia falta era mais do que ela podia suportar.
– Não há pressa. – Ela o ouviu dizer com tranquilidade. – Vá à loja do meu pai no próximo recesso da escola e deixe o dinheiro com ele.
– Tudo bem, então – respondeu Jeremy com uma satisfação evidente e eles apertaram as mãos para selar o negócio. – Obrigado, Sr. Hunt.
– Jeremy... – principiou Annabelle, em tom suave mas enfurecido.
– Esperem aqui – orientou Hunt olhando para trás, já se encaminhando para a bilheteria.
– Jeremy, você sabe que não se deve pegar dinheiro emprestado com ele? – indagou Annabelle fitando o rosto satisfeito do irmão. – Ah, como você pôde? Não é apropriado... E a ideia de ter uma dívida com esse tipo de homem é intolerável!
– Que tipo de homem? – quis saber o irmão, inocente. – Eu já disse que ele é boa... Ah, suponho que queira dizer que ele é de uma classe mais baixa. – Um sorriso triste tomou os lábios de Jeremy. – Mas acho que isso não se aplica ao Sr. Hunt, porque ele é podre de rico. E a verdade é que nós dois não somos exatamente parte da nobreza. Estamos apenas nos galhos mais baixos da árvore, o que significa que...
– Como pode o filho de um açougueiro ser podre de rico? – perguntou Annabelle. – A menos que a população de Londres esteja consumindo muito mais carne e bacon do que estou ciente, não consigo encontrar outro meio para um açougueiro acumular tanta renda.
– Eu não disse que ele trabalhava na loja do pai – retrucou Jeremy com um tom superior. –
Só disse que o conheci lá. Ele é empresário.
– Quer dizer um especulador financeiro? – Annabelle franziu a testa. Em uma sociedade que considerava vulgar falar ou pensar sobre as preocupações financeiras, não havia nada mais rude do que um homem que fizera carreira com investimentos.
– Um pouco mais do que isso – prosseguiu o irmão. – Mas acho que não importa o que ele faz, ou quanto ele tem, já que é de origem humilde.
Ao ouvir a crítica na voz do irmão mais novo, Annabelle olhou para ele semicerrando os olhos.
– Você está sendo muito democrático, Jeremy – rebateu ela secamente. – E não precisa continuar como se eu estivesse sendo esnobe... Eu me oporia da mesma maneira se um duque tentasse nos emprestar o dinheiro do ingresso, assim como faria com um homem de negócios.
– Mas não tanto assim – disse ele, e riu da expressão dela.
O retorno de Simon Hunt interrompeu qualquer discussão. Examinando-os com os atentos olhos cor de café, ele deu um breve sorriso.
– Está tudo certo. Vamos entrar agora?
Annabelle avançou bruscamente em resposta ao estímulo discreto do irmão.
– Por favor, não se sinta obrigado a nos fazer companhia, Sr. Hunt – comentou ela, sabendo que estava sendo indelicada. Porém havia algo nele que mexia com os seus nervos. Ele não a conquistara por ser um homem de confiança; na verdade, apesar de toda aquela roupa elegante e a aparência polida, não parecia muito civilizado. Era o tipo de homem com quem uma mulher bem-educada nunca iria querer ficar sozinha. E a percepção dela sobre ele nada tinha a ver com posição social: era uma sensação inata relativa a um físico robusto e temperamento masculino que eram completamente estranhos para ela. – Tenho certeza que vai querer se juntar aos seus companheiros.
A esse comentário, Hunt deu de ombros preguiçosamente.
– Nesta multidão, nunca os encontraria.
Annabelle poderia ter argumentado observando que, sendo um dos homens mais altos da plateia, era muito provável que pudesse localizar os amigos sem dificuldade. No entanto, era óbvio que esse embate seria inútil. Ela teria que assistir ao show com Simon Hunt ao seu lado –
não havia escolha. Mas ao ver a empolgação de Jeremy, alguns de seus ressentimentos e desconfianças desapareceram, e a voz adquiriu um tom mais suave quando voltou a falar com Hunt.
– Perdoe-me. Não quis parecer indelicada. É que não gosto de ter dívidas com estranhos.
Hunt lançou-lhe um breve olhar perspicaz e desconcertante.
– Um sentimento que posso compreender com facilidade – assentiu ele, guiando-a em meio à multidão. – No entanto, não existe dívida neste caso. E não somos estranhos de fato... Sua família tem frequentado os negócios da minha há anos.
Eles entraram no grande teatro circular e subiram em um enorme carrossel cercado por uma grade e portões de ferro fundido. A imagem meticulosamente trabalhada de uma paisagem romana antiga os rodeava, com um vão de quase onze metros separando a borda do carrossel da pintura. O vão foi preenchido com um maquinário complexo que atraía comentários animados da multidão. Depois que todos os espectadores haviam subido no carrossel, a sala escureceu de repente, provocando suspiros de animação e expectativa. Com um suave zumbido das máquinas e um brilho azul vindo da parte de trás da tela, a paisagem adquiriu uma dimensão e um realismo que assustou Annabelle. Ela quase podia jurar que estavam de pé em Roma ao meio-dia. Alguns atores vestidos com toga e sandálias apareceram, enquanto um narrador começou a relatar a história da Roma antiga.
O espetáculo diorâmico foi ainda mais apaixonante do que Annabelle esperava. No entanto, ela não se permitiu envolver-se por completo pelo show, pois estava muito ciente da presença do homem em pé ao seu lado. Não ajudou muito o fato de ele, vez ou outra, se inclinar para murmurar em seu ouvido algum comentário inapropriado, reprovando-a com deboche por mostrar tão pouco interesse nos cavalheiros vestidos com aquelas roupas que mais pareciam fronhas. Por mais que Annabelle tentasse conter o entusiasmo, algumas risadinhas relutantes escaparam, recebendo olhares de desaprovação das pessoas ao redor deles. E então, naturalmente, ele a repreendeu por rir durante uma peça tão importante, o que a fez querer rir ainda mais. Jeremy parecia concentrado demais no espetáculo para notar as tolices de Hunt, esticando o pescoço o máximo que podia para divisar as máquinas que produziam aqueles efeitos maravilhosos.
Hunt se acalmou, no entanto, quando um puxão inesperado na rotação do carrossel fez com que a plataforma sacudisse um pouco. Alguns espectadores se desequilibraram, mas foram acudidos de imediato pelas pessoas em volta. Surpreendida pela pausa abrupta da rotação, Annabelle se desequilibrou e, quando deu por si, encontrava-se com o corpo apoiado no peito de Hunt, que logo a segurou. Ele a soltou no instante em que ela recuperou o equilíbrio, baixando a cabeça para perguntar em um sussurro se ela estava bem.
– Ah, sim – respondeu Annabelle sem fôlego. – Perdão. Sim, estou perfeitamente...
Ela parecia não conseguir terminar a frase; a voz diminuiu até Annabelle ser inundada por esta estranha sensação. Nunca na vida tivera uma reação como aquela ao ficar na presença de um homem. O que essa sensação instantânea de urgência lhe causava, ou a forma de satisfazê-la, estava muito além do alcance de seu conhecimento limitado. Tudo o que ela sabia era que, por um momento, havia desejado desesperadamente continuar inclinando-se de encontro a ele, a um corpo tão firme e definido quanto totalmente invulnerável, que fornecia um porto seguro enquanto o chão se movia sob seus pés. O cheiro dele; a pele limpa, máscula, o couro polido e o linho engomado despertaram todos os sentidos de Annabelle. Ele era o oposto dos aristocratas besuntados, recendendo a água-de-colônia, que ela havia tentado seduzir durante as duas últimas temporadas.
Profundamente abalada, ela olhava para a tela em frente, mas não se interessava pelas luzes projetadas que imitavam o anoitecer... O crepúsculo do Império Romano. Hunt também mostrava certo desinteresse pelo espetáculo, com a cabeça inclinada para ela, o olhar fixo em seu rosto.
Embora a respiração dele permanecesse suave e disciplinada, pareceu a ela que o ritmo estava um pouco mais acelerado.
Annabelle umedeceu os lábios.
– Você... Você não deveria me olhar desse jeito.
Cortesmente, ele sussurrou em resposta:
– Com você aqui, não consigo olhar para mais nada.
Ela não se moveu nem disse palavra alguma, fingindo não ter ouvido aquele suave sussurro diabólico enquanto o coração batia descompassado e os dedos dos pés se contraíam dentro dos sapatos. Como isso podia estar acontecendo em um teatro cheio de gente, com o irmão logo ali ao lado dela? Annabelle fechou os olhos por um instante, tomada por uma sensação de rodopio que nada tinha a ver com o movimento do carrossel.
– Veja! – exclamou Jeremy, empurrando-a com entusiasmo. – Estão prestes a mostrar os vulcões.
De repente, o teatro foi tomado por uma escuridão ofuscante e um estrondo sinistro rugiu por baixo da plataforma. Houve vários gritos, uma dispersão de risos e também suspiros cheios de expectativa. O corpo de Annabelle se enrijeceu quando ela sentiu uma mão tocando suas costas.
A mão dele, deslizando lenta e propositalmente por sua coluna – o cheiro de Hunt, doce e sedutor em suas narinas –, e antes que ela pudesse emitir qualquer som, os lábios dele, possuindo os de Annabelle em um beijo suave, quente e arrebatador. Estava atordoada demais para se mexer, as mãos no ar como borboletas suspensas em pleno voo, o corpo cambaleante mantendo-se de pé graças à firmeza delicada de uma das mãos dele em sua cintura, enquanto a outra a segurava pela nuca.
Annabelle tinha sido beijada antes apenas por jovens impetuosos que haviam roubado um abraço rápido durante uma caminhada no jardim ou em um canto da sala, quando não estavam sendo observados. Mas nenhum desses breves encontros fora assim. Aquele era um beijo tão lento e vertiginoso que a levava ao delírio. Rapidamente, várias sensações tomaram seu corpo, fortes demais para que pudesse controlar, e ela tremeu impotente nos braços de Hunt. Guiada pelo instinto, entregou-se cegamente à carícia gentil e inquietante dos lábios dele. A pressão daquela boca aumentava à medida que ele desejava mais, satisfazendo a reação incontrolável de Annabelle com um explorar voluptuoso que a deixou em chamas.
Assim que ela começou a perder toda a moderação, a boca de Hunt se desprendeu com uma rapidez surpreendente, deixando-a atordoada. Mantendo a mão na nuca macia de Annabelle, ele baixou a cabeça até que um murmurar de arrependimento fez cócegas no ouvido dela.
– Desculpe. Não pude resistir. – O toque de sua mão desapareceu, e quando a luz vermelha finalmente invadiu o teatro, ele tinha ido embora.
– Veja isso! – disse Jeremy, empolgado, apontando com alegria para um vulcão de mentira diante deles, do qual parecia brotar lava fundida que escorria pelas bordas. – Incrível! –
Percebendo que Hunt já não estava mais lá, o menino franziu a testa, intrigado. – Aonde o Sr.
Hunt foi? Acho que ele deve ter encontrado os amigos. – Dando de ombros, Jeremy voltou a observar animadamente os vulcões, juntando-se às exclamações do público boquiaberto.
De olhos arregalados e completamente sem fala, Annabelle se perguntava se o que acabara de acontecer havia de fato ocorrido. Com certeza não tinha sido beijada no meio de um teatro por um estranho. E beijada daquela forma...
Bem, era nisso que dava permitir que cavalheiros desconhecidos pagassem pelas coisas: dava-lhes a oportunidade de tirar algum proveito da situação. Mas sobre o próprio comportamento... Envergonhada e confusa, Annabelle se esforçou para entender por que permitira que o Sr. Hunt a beijasse. Deveria ter protestado e o impedido, empurrando-o. Em vez disso, ficara lá em transe enquanto ele... Ah, o pensamento a fez estremecer. Não importava como ou por que Simon Hunt havia conseguido quebrar todas as defesas bem-construídas de Annabelle. O fato era, ele conseguira fazê-lo... E, portanto, era um homem a ser evitado a qualquer custo.
CAPÍTULO 1
Londres, 1843
O fim da temporada
Uma menina que sempre sonhou em se casar poderia superar praticamente qualquer obstáculo, exceto a falta de dote.
Annabelle balançou o pé com impaciência debaixo do volume branco de suas saias, ao mesmo tempo que mantinha uma expressão elegante. O fracasso nas três temporadas anteriores a tinha deixado acostumada a tomar chá de cadeira. Acostumada, porém não conformada. Mais de uma vez lhe ocorrera que merecia algo muito melhor do que ficar sentada no canto do salão em uma cadeira desconfortável. Esperando, esperando, esperando por um convite que nunca viria. E
tentando fingir que não se importava – que ficava extremamente feliz em ver as outras meninas dançando e sendo cortejadas.
Deixando escapar um longo suspiro, Annabelle brincou com o pequeno cartão de dança prateado que pendia de um cordão em seu pulso. A capa se abriu e revelou um livreto de folhas marfim quase translúcidas que se espalharam, formando um leque. As meninas deveriam escrever os nomes dos parceiros de dança nessas folhas delicadas. Para Annabelle, o leque de tiras não preenchidas se assemelhava a uma fileira de dentes, sorrindo para ela de forma zombeteira. Fechando a capa prateada, ela olhou para as três jovens que se encontravam sentadas ao lado dela, todas se esforçando para parecerem tranquilas e despreocupadas em relação ao próprio destino.
Ela sabia exatamente por que estavam ali. A considerável fortuna da família da Srta.
Evangeline Jenner tinha sido feita a partir de jogos de azar, e as suas origens eram humildes.
Além disso, a Srta. Jenner era demasiado tímida e, ainda por cima, gaga, o que fazia a ideia de uma conversa parecer uma sessão de tortura para ambos os participantes.
As outras duas garotas, a Srta. Lillian Bowman e a irmã mais nova, Daisy, ainda não tinham se adaptado à Inglaterra e, pelo visto, a adaptação levaria um bom tempo. O que se dizia era que a mãe delas as trouxera de Nova York porque não tinham sido capazes de obter nenhuma oferta adequada por lá. Eram debochadamente chamadas de herdeiras bolhas de sabão ou, de vez em quando, de princesinhas do dólar. Apesar das maçãs do rosto elegantes e angulosas e dos olhos escuros que acompanhavam um eventual inclinar de cabeça leve e charmoso, elas não encontrariam melhor sorte ali, a não ser que pudessem contar com uma madrinha aristocrata para apresentá-las e ensiná-las a se adaptarem à sociedade britânica.
Ocorreu à Annabelle que nos últimos meses desta miserável temporada, as quatro – ela mesma, a Srta. Jenner e as irmãs Bowmans – muitas vezes haviam se sentado juntas em bailes ou saraus, sempre no canto ou contra a parede. E ainda assim raramente tinham falado uma com a outra, imersas no tédio silencioso da espera. O olhar dela encontrou o de Lillian Bowman, cujos olhos escuros aveludados continham um brilho inesperado de humor.
– Eles poderiam ter feito as cadeiras mais confortáveis, pelo menos – murmurou Lillian –, afinal, é óbvio que vamos ocupá-las a noite inteira.
– Devia ter nossos nomes gravados nelas – respondeu Annabelle, irônica. – Depois de todo o tempo que passei aqui, esta cadeira pertence a mim.
Um riso abafado veio de Evangeline Jenner, que levantou um dedo enluvado para empurrar para trás um cacho ruivo vermelho-fogo que lhe caíra sobre a testa. O sorriso fez com que seus olhos azuis bem redondos reluzissem e o rosto, cheio de sardas douradas, ficasse corado. Parecia que uma súbita sensação de familiaridade havia temporariamente feito com que ela se esquecesse da própria timidez.
– Não faz se-sentido você levar chá de cadeira – comentou, dirigindo-se a Annabelle. – É a garota mais bonita daqui, os homens tinham que estar di-disputando para tirá-la para dançar.
Annabelle encolheu os ombros graciosamente.
– Ninguém quer se casar com uma garota sem dote. Só no reino da fantasia dos romances os duques se casam com meninas pobres. Na realidade, duques, viscondes e similares são encarregados da enorme responsabilidade financeira de manter suas grandes propriedades e suas famílias, além de ajudarem os arrendatários. Um nobre rico precisa se casar com alguém endinheirado da mesma forma que o pobre.
– Ninguém quer se casar com uma americana de família rica, mas sem tradição também –
confidenciou Lillian Bowman. – Nossa única esperança de encontrar espaço na sociedade é conseguindo nos casar com um nobre que possua um título inglês importante.
– Mas não temos madrinha – acrescentou a irmã mais nova de Lilian, Daisy. Ela era uma versão em miniatura da primeira, com a mesma pele clara, o cabelo escuro e pesado e os olhos castanhos. Um sorriso travesso se insinuou nos lábios dela. – Se você por acaso souber de alguma duquesa gentil que estaria disposta a nos abrigar sob sua asa, ficaríamos muito gratas.
– Eu nem quero encontrar um marido – confidenciou Evangeline Jenner. – Estou aqui só por o-o-obrigação, porque não há mais nada para fazer. Estou velha demais para ficar na escola por mais tempo e meu pai... – Ela parou de repente e suspirou. – Bem, eu só tenho mais uma te-temporada, daí então vou estar com vinte e três e serei declaradamente uma so-solteirona. Como eu quero que isso aconteça logo!
– Vinte e três anos é a idade-limite para solteironas nos dias de hoje? – perguntou Annabelle com uma ligeira preocupação. E revirou os olhos para o céu. – Meu Deus, não fazia ideia de que estava tão fora da média.
– Quantos anos você tem? – perguntou Lillian Bowman, curiosa.
Annabelle deu uma olhada para os dois lados, para ter certeza de que não estavam sendo ouvidas.
– Vinte e cinco no mês que vem.
A revelação ganhou três olhares de piedade, e como consolo, Lillian lhe disse:
– Você não parece mesmo ter mais de vinte e um.
Annabelle apertou os dedos em torno do cartão de dança até que ele ficasse escondido na mão enluvada. O tempo estava passando depressa, pensou. Esta era a sua quarta temporada e chegava rapidamente ao fim. E embarcar em uma quinta seria ridículo. Precisava arranjar um marido, e logo. Caso contrário, não poderiam mais pagar para manter Jeremy na escola. E seriam forçados a se mudar da modesta casa avarandada e encontrar uma pensão para morar. E, uma vez começada a decadência, não havia como se reerguer.
Nos seis anos desde que o pai de Annabelle morrera de doença cardíaca, os recursos financeiros da família haviam se reduzido a nada. Eles tentaram camuflar cada vez mais a escassez, fingindo que tinham uma meia dúzia de funcionários em vez de uma cozinheira estressada e um lacaio idoso, usando pelo avesso os vestidos desbotados de modo a aproveitar o viço da parte interna do tecido, vendendo as pedras das joias e substituindo-as por falsas.
Annabelle estava cansada dos constantes esforços para enganar a todos, quando parecia que era de conhecimento público que viviam à beira de um desastre. Ultimamente, começara a receber ofertas discretas de homens casados, os quais lhe diziam que ela só precisava pedir ajuda que de imediato a teria. Não era preciso descrever as compensações necessárias para essa “ajuda”.
Annabelle tinha plena consciência de que possuía as características oportunas para ser uma excelente amante.
– Srta. Peyton, que tipo de homem seria o marido ideal para você? – indagou Lillian Bowman.
– Ah – disse Annabelle com uma leveza irreverente –, qualquer nobre serviria.
– Qualquer nobre? – repetiu Lillian, cética. – E quanto à boa aparência?
Annabelle deu de ombros.
– É bem-vinda, mas não essencial.
– E quanto à paixão? – questionou Daisy.
– Muito bem-vinda.
– Inteligência? – sugeriu Evangeline.
Annabelle deu de ombros.
– Negociável.
– Charme? – prosseguiu Lillian.
– Também negociável.
– Você não pede muito no quesito marido – comentou Lillian secamente. – Quanto a mim, eu adicionaria algumas condições. Meu nobre teria que ser um dançarino maravilhoso de cabelos escuros e bonito... E nunca deveria pedir permissão antes de me beijar.
– Quero me casar com um homem que tenha lido todas as obras de Shakespeare – disse Daisy. – Alguém calmo e romântico, melhor ainda se usar óculos; precisa apreciar poesia e a natureza, e eu não gostaria que ele fosse muito experiente com mulheres.
Sua irmã mais velha revirou os olhos.
– Não vamos competir pelos mesmos homens, aparentemente.
Annabelle olhou para Evangeline Jenner.
– Que tipo de marido combina com você, Srta. Jenner?
– Evie – murmurou a menina, cujas bochechas coraram tanto que ficaram tais quais os cabelos cor de fogo. Ela teve dificuldade para responder, a extrema timidez batendo de frente com um forte instinto de privacidade. – Eu acho que... eu gostaria de a-a-alguém que fosse gentil e... – Interrompendo-se, ela balançou a cabeça com um sorriso autodepreciativo. – Não sei.
Apenas alguém que pudesse me amar. Realmente me amar.
As palavras comoveram Annabelle, que se viu tomada por uma súbita melancolia. O amor era um luxo que nunca havia se permitido sentir esperanças de ter, algo claramente supérfluo uma vez que a sua sobrevivência estava sempre em pauta. No entanto, a moça estendeu a mão e tocou as mãos enluvadas da menina.
– Espero que você o encontre – disse com sinceridade. – Talvez não precise esperar muito.
– Eu quero que você encontre o seu primeiro – rebateu Evie, com um sorriso tímido. –
Gostaria de poder ajudá-la de alguma maneira.
– Parece que todas nós precisamos de ajuda, de uma forma ou de outra – comentou Lillian.
Seu olhar dirigiu-se para Annabelle amigavelmente. – Humm... Eu não me importaria de fazer um plano que incluísse você.
– O quê? – Annabelle arqueou as sobrancelhas, imaginando se deveria ficar alegre ou ofendida.
Lillian começou a explicar.
– Restam apenas algumas semanas para o fim da temporada, e esta é a sua última, presumo.
Em termos práticos, suas aspirações de se casar com um homem da sua classe social desaparecerão no final de junho.
Annabelle assentiu com cautela.
– Então proponho... – De repente, Lillian ficou em silêncio no meio da frase.
Seguindo a direção do olhar dela, Annabelle viu uma figura escura se aproximando e gemeu por dentro.
O intruso era o Sr. Simon Hunt, um homem com quem nenhuma delas queria ter qualquer envolvimento, e por uma boa razão.
– A propósito – comentou Annabelle em voz baixa –, meu marido ideal seria exatamente o oposto do Sr. Hunt.
– Nossa, que surpresa – murmurou Lillian com sarcasmo, já que todas compartilhavam esse mesmo sentimento.
Um homem podia ser perdoado por ser um emergente, desde que possuísse uma boa dose de cavalheirismo. No entanto, Simon Hunt não tinha. Não era possível travar conversas educadas com um homem que sempre dizia exatamente o que pensava, não importava quão pouco lisonjeiras ou censuráveis fossem as suas opiniões.
Talvez alguém pudesse considerar o Sr. Hunt bonito. Annabelle supôs que algumas mulheres poderiam achar sua robusta masculinidade atraente; ela mesma precisava admitir que havia algo irresistível na visão de toda aquela energia mantida sob controle, contida em um traje de festa preto e branco que combinava de modo formal e elegante. No entanto, as qualidades do rapaz eram ofuscadas por sua personalidade rude. Não havia nenhum aspecto sensível em sua natureza, nem idealismo ou apreciação de elegância – era calculista, ganancioso e egoísta. Qualquer outro homem em sua situação teria tido a decência de ficar constrangido pela própria falta de refinamento, mas Hunt aparentemente decidira fazer disso uma virtude. Gostava de zombar das cerimônias aristocráticas, os olhos pretos e frios brilhavam de regozijo, como se ele estivesse rindo de todos.
Para alívio de Annabelle, Hunt nunca demonstrara se lembrar daquele dia no teatro panorâmico, quando lhe roubara um beijo na escuridão. Como já se passara muito tempo, ela tentara se convencer de que tinha imaginado a coisa toda. Em retrospectiva, aquilo tudo não parecia real, principalmente sua resposta fervorosa em relação a um estranho audacioso.
Sem dúvida, muitas pessoas compartilhavam da antipatia de Annabelle por Simon Hunt, porém, para o desagrado de todos, ele estava lá para ficar. Nos últimos anos, havia se tornado extremamente rico, tendo adquirido títulos majoritários em empresas que fabricavam equipamentos agrícolas, navios e locomotivas. Apesar do seu modo nada polido, Hunt era convidado para festas da alta sociedade, porque era demasiado rico para ser ignorado. Ele personificava a ameaça que as indústrias representavam para a centenária aristocracia britânica presa à propriedade agrícola. Portanto, a nobreza o olhava com uma hostilidade discreta, mas mesmo assim, a contragosto, permitia-lhe o acesso a seus consagrados círculos sociais. Pior ainda, Hunt não era submisso; em vez disso parecia forçar entrada em lugares onde não era benquisto.
Nas poucas ocasiões em que se encontraram desde aquele dia no teatro, ela havia tratado Hunt com frieza, rejeitando qualquer tentativa de conversa e recusando cada convite para uma dança. Ele sempre parecia se divertir com o desdém da moça e olhava para ela com uma ousada apreciação, que fazia os pelos da nuca de Annabelle se arrepiarem. Ela esperava que um dia Hunt perdesse o interesse por ela, mas por enquanto ele se mantinha irritantemente persistente.
Annabelle sentiu o alívio das companheiras de chá de cadeira quando Hunt as ignorou e voltou toda a sua atenção para ela.
– Srta. Peyton – cumprimentou.
O olhar profundo dele parecia não deixar escapar nada: as mangas cuidadosamente remendadas do vestido de Annabelle, o enfeite de botões de rosa posicionando de forma a esconder a ponta desfiada do corpete, e as pérolas falsas que pendiam das orelhas. Annabelle olhou para ele com uma expressão desafiadora. O ar entre os dois parecia carregado de uma sensação de repulsa e atração, de dificuldade em relação aos próprios sentimentos, e Annabelle sentiu um desagradável frio na barriga com a proximidade dele.
– Boa noite, Sr. Hunt.
– A senhorita me concederia uma dança? – perguntou ele, sem cerimônia.
– Não, obrigada.
– Por que não?
– Meus pés estão cansados.
Uma das sobrancelhas escuras dele arqueou.
– De fazer o quê? Você ficou sentada aqui a noite toda.
Annabelle sustentou o olhar sem piscar.
– Não tenho obrigação de me explicar, Sr. Hunt.
– Uma valsa não seria tão difícil de suportar.
Apesar dos esforços para manter a calma, ela sentiu os músculos do rosto se retesarem.
– Sr. Hunt – respondeu ela com tensão –, ninguém nunca lhe disse que não é educado insistir com uma senhorita para que faça algo que ela claramente não tem vontade de fazer?
Ele deu um breve sorriso.
– Srta. Peyton, se eu me preocupasse em ser educado nunca obteria aquilo que quero. Apenas imaginei que quisesse por um momento abrir mão de estar sempre tomando um chá de cadeira e decidisse desfrutar uma dança. E se esse baile seguir o padrão habitual, a minha oferta para dançar será provavelmente a única que vai conseguir.
– Quanto charme – comentou Annabelle, irônica. – Isso foi muito lisonjeiro. Como eu poderia recusar?
Um novo alerta surgiu nos olhos de Hunt.
– Então vai dançar comigo?
– Não – sussurrou ela bruscamente. – Agora vá embora. Por favor.
Em vez de fugir da vergonha da rejeição, Hunt abriu um sorriso, os dentes brancos reluzindo no rosto bronzeado. Foi um sorriso que o fez parecer maléfico.
– Que mal pode haver numa dança? Sou um bom parceiro, você pode até gostar.
– Sr. Hunt – murmurou ela, em crescente exasperação –, a ideia de formar uma parceria com você de alguma maneira, para qualquer finalidade, me dá calafrios.
Inclinando-se mais para perto, Hunt baixou o tom, para que ninguém mais pudesse ouvir.
– Muito bem. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa, Srta. Peyton. Pode chegar o dia em que não terá o luxo de recusar uma oferta digna feita por alguém como eu... ou até mesmo uma desonrosa.
Os olhos de Annabelle se arregalaram, e ela sentiu uma onda de indignação invadindo o peito. Realmente era demais ter que se sentar contra a parede durante a noite toda e, em seguida, ser submetida a insultos de um homem que desprezava.
– Sr. Hunt, o senhor parece o vilão de uma peça de segunda categoria.
Isso provocou outro sorriso, e ele se inclinou com uma polidez sarcástica antes de sair dali.
Aturdida pelo encontro, Annabelle observou Hunt se distanciar.
As outras meninas deram um suspiro coletivo de alívio com a partida dele.
Lillian Bowman foi a primeira a falar.
– A palavra “não” parece não ter muito efeito sobre ele, não é?
– Qual foi a última coisa que ele disse, Annabelle? – perguntou Daisy, curiosa. – A que fez seu rosto corar.
Annabelle olhou para a capa prateada do cartão de dança, esfregando o polegar sobre uma mancha minúscula no canto.
– O Sr. Hunt insinuou que um dia a minha situação pode se tornar tão desesperadora que eu consideraria a hipótese de me tornar amante dele.
Se não estivesse tão preocupada, Annabelle teria dado risada dos olhares arregalados no rosto das moças. Mas, em vez de expressar quanto aquilo a ofendera, ou esquecer o assunto, Lillian fez uma pergunta pela qual Annabelle não esperava.
– Ele tinha razão em dizer isso?
– Tinha em dizer sobre a minha situação desesperadora – admitiu Annabelle. – Mas não se trata de me tornar amante dele ou de ninguém. Eu me casaria com um produtor de beterrabas antes de me submeter a isso.
Lillian sorriu, parecendo se identificar com a firmeza e a determinação presentes na voz de Annabelle.
– Eu gosto de você – anunciou ela e encostou-se na cadeira, cruzando as pernas com uma negligência que foi bastante inapropriada para uma menina em sua primeira temporada.
– Também gosto de você – respondeu Annabelle automaticamente, movida pelas boas maneiras. Mas, assim que as palavras saíram de sua boca, ficou surpresa ao descobrir que eram verdadeiras.
O olhar de avaliação de Lillian se fixou na moça enquanto ela prosseguia.
– Eu odiaria vê-la andando atrás de uma mula e arando um campo de beterrabas. Você pode almejar coisa melhor do que isso.
– Concordo – disse Annabelle secamente. – O que devemos fazer sobre isso?
Embora a pergunta fosse para ser engraçada, Lillian parecia levá-la a sério.
– Eu estava chegando a esse ponto. Antes de sermos interrompidas, estava prestes a propor o seguinte: precisamos fazer um pacto para ajudar umas às outras a encontrar um marido. Se os homens não vierem atrás de nós, iremos atrás deles. O processo se mostrará muito mais eficaz se juntarmos forças, em vez de avançar individualmente. Vamos começar com a mais velha, que parece ser você, Annabelle, e depois continuamos em ordem decrescente.
– É muito difícil que isso funcione a meu favor – protestou Daisy.
– É justo – informou Lillian. – Você tem mais tempo do que nós.
– A que tipo de “ajuda” você se refere? – perguntou Annabelle.
– A todo tipo que for necessário. – Lillian começou a rabiscar concentradamente no cartão de dança. – Vamos apontar as fraquezas de cada uma e as outras darão conselhos e assistência, quando preciso. – Ela olhou para cima com um sorriso alegre. – Nós vamos ser como uma equipe de rounders.
Annabelle a fitou com ceticismo.
– Você está se referindo ao jogo em que os cavalheiros se revezam para bater em uma bola de couro com um taco?
– Não somente os cavalheiros – respondeu Lillian. – Em Nova York, as damas também podem jogar, contanto que não se deixem envolver muito.
Daisy sorriu maliciosamente.
– Como na vez em que Lillian ficou tão indignada por causa de um apito errado que arrancou uma estaca da terra.
– Ela já estava solta – protestou Lillian. – Uma estaca solta poderia ter sido um perigo para um dos corredores.
– Ainda mais quando você a arremessasse neles – disse Daisy, enfrentando a carranca da irmã mais velha com um sorriso doce.
Sufocando uma risada, Annabelle olhou para as duas irmãs e para a expressão um tanto perplexa de Evie. Podia facilmente ler os pensamentos dela, de que as irmãs americanas exigiriam muito treinamento antes que pudessem chamar a atenção de nobres em potencial.
Voltando-se para as irmãs Bowmans, não podia deixar de sorrir com seus rostos impacientes.
Não foi nada difícil imaginar as duas batendo em bolas com tacos de madeira e correndo ao redor do campo de jogo, com as saias levantadas até os joelhos. Ela se perguntou se todas as moças americanas possuíam tal plenitude de espírito. Sem dúvida as Bowmans aterrorizariam qualquer cavalheiro britânico adequado que se atrevesse a se aproximar delas.
– Eu nunca pensei em uma caça a marido como um esporte de equipe – disse ela.
– Bem, agora vai ser – retrucou Lillian enfaticamente. – Pense em como vamos ser mais eficazes assim. A única potencial dificuldade é se duas de nós tiverem interesse no mesmo homem... Mas isso não parece provável, dado os nossos respectivos gostos.
– Então vamos concordar em nunca competir pelo mesmo cavalheiro – observou Annabelle.
– A-além disso – interrompeu Evie inesperadamente –, não magoaremos ninguém.
– Muito hipocrático – disse Lillian em tom de aprovação.
– Acho que ela está certa, Lillian – protestou Daisy, entendendo mal o comentário. – Não intimide a pobre menina, pelo amor de Deus.
Lillian fez uma careta de aborrecimento.
– Eu disse hipocrático, não hipócrita, sua burra.
Annabelle intercedeu no mesmo instante, antes que elas começassem a brigar.
– Então devemos todas concordar com o plano de ação, porque ele não funcionará se estivermos em desacordo.
– E vamos contar tudo uma à outra – emendou Daisy, satisfeita.
– Até mesmo os detalhes i-íntimos? – perguntou Evie com timidez.
– Ah, principalmente os detalhes íntimos!
Lillian sorriu ironicamente e lançou um olhar de avaliação sobre o vestido de Annabelle.
– Suas roupas são horríveis – disse ela sem rodeios. – Eu darei a você alguns dos meus vestidos. Tenho um longo que nunca usei e do qual nunca vou sentir falta. Minha mãe não vai perceber.
Annabelle balançou a cabeça de imediato, embora estivesse grata pela oferta; sentia-se um pouco humilhada pelas dificuldades financeiras da família.
– Não, não, eu não poderia aceitar tal presente, apesar de você ser muito generosa...
– O azul-claro, com rolotê cor de lavanda – murmurou Lillian para Daisy –, você se lembra dele?
– Ah, cairia muito bem nela – disse Daisy, animada. – E vai ficar bem melhor nela do que em você.
– Obrigada – retrucou Lillian, piscando e fazendo um olhar cômico.
– Não, falo sério – protestou Annabelle.
– E aquele verde de algodão com o laço branco na frente – prosseguiu Lillian.
– Não posso aceitar os seus vestidos, Lillian – insistiu Annabelle em voz baixa.
A menina olhou para as anotações que tinha feito.
– Por que não?
– Primeiro, porque não vou poder lhe pagar. E não adiantaria de nada. Um belo conjunto de plumas não vai fazer a minha falta de dote ficar mais atraente.
– Ah, dinheiro – disse Lillian, de uma maneira desinteressada que só poderia vir de alguém que tinha bastante. – Você vai me pagar me dando algo infinitamente mais valioso do que dinheiro. Vai ensinar a mim e a Daisy como ser... Bem, mais como você. Vai nos ensinar as coisas certas a se dizer e fazer, todas as regras que parecemos quebrar a cada minuto do dia. Se possível, pode até mesmo nos ajudar a encontrar uma madrinha. Então vamos ser capazes de entrar por todas as portas que estão fechadas para nós. Quanto à sua falta de dote... Você só tem que jogar a isca e esperar que ele morda. Nós vamos ajudá-la a fisgar o pretendente.
Annabelle olhou para ela com espanto.
– Vocês estão mesmo levando isso a sério.
– É claro que estamos – respondeu Daisy. – Será um alívio para nós ter algo para fazer, em vez de ficarmos sentadas perto da parede como idiotas! A temporada está tão tediosa que Lillian e eu estamos à beira da loucura.
– E-eu também estou – acrescentou Evie.
– Bem... – Annabelle olhou de um rosto ansioso para outro, incapaz de conter o riso. – Se vocês três estão dispostas, então eu também estou. Mas se vamos fazer um pacto, não devíamos selá-lo com sangue ou algo assim?
– Céus, não – respondeu Lillian. – Acho que podemos concordar sem que precisemos abrir uma veia. – Ela fez um gesto com o cartão de dança. – Agora, acho que devemos listar os candidatos solteiros mais promissores da temporada passada. E fazer uma triste atualização de como estão agora. Devemos listá-los por ordem alfabética ou por títulos? Começamos pelos duques?
Annabelle balançou a cabeça.
– Nós também não deveríamos considerar os duques, não conheço nenhum com menos de setenta anos e que possua pelo menos um dente sequer na boca.
– Então, inteligência e charme são negociáveis, mas não os dentes? – indagou Lillian com malícia, fazendo Annabelle rir.
– Os dentes são negociáveis – respondeu Annabelle –, no entanto, de extrema preferência.
– Tudo bem então – disse Lillian. – Passando pela categoria dos duques pegajosos e idosos, avancemos para os condes. Eu sei de lorde Westcliff, para uma...
– Não, Westcliff não. – Annabelle estremeceu quando acrescentou. – Ele é fechado e distante e não tem qualquer interesse por mim. Praticamente me joguei em cima dele quando vim a primeira vez quatro anos atrás e ele me olhou como se eu fosse algo preso em seu sapato.
– Esqueça Westcliff então. – Lillian ergueu as sobrancelhas interrogativamente. – E lorde St.
Vincent? Novo, solteiro e tão bonito que até parece pecado...
– Não iria funcionar – comentou Annabelle. – Não importa quão comprometedora seja a situação, St. Vincent nunca proporia casamento. Ele tem comprometido, seduzido e arruinado pelo menos uma dúzia de mulheres... A honra não significa nada para ele.
– Tem o conde de Eglinton – sugeriu Evie, hesitante. – Mas ele é bastante co-co-corpulento, e tem pelo menos cinquenta anos.
– Coloque-o na lista – insistiu Annabelle. – Não posso me dar ao luxo de ser tão criteriosa.
– Tem o visconde Rosebury – comentou Lillian com um pouco de tristeza. – Embora seja um tipo estranho e... bem, acabado.
– Enquanto estiver firme no bolso, pode estar acabado de qualquer outra forma – observou Annabelle, provocando risadas nas outras meninas. – Inclua-o também.
Ignorando a música e os casais que rodopiavam à frente delas, as quatro trabalhavam cuidadosamente na lista de maridos potenciais. Uma vez ou outra, riam tanto que atraíam olhares curiosos de quem passava por perto.
– Sosseguem – disse Annabelle, fazendo um esforço para soar rígida. – Não queremos que ninguém suspeite do que estamos planejando... E quem toma chá de cadeira não deveria estar rindo.
Todas tentaram assumir expressões sérias, o que causou espasmos de risos.
– Ah, veja – disse Lillian com um suspiro, observando as listas de perspectivas matrimoniais.
– Pela primeira vez os nossos cartões de dança estão preenchidos. – Considerando o rol dos solteiros, ela contraiu os lábios, pensativa. – E me parece que alguns destes cavalheiros provavelmente estarão na festa do final da temporada de Westcliff em Hampshire. Daisy e eu já fomos convidadas. E você, Annabelle?
– Tenho intimidade com uma das irmãs dele – comentou Annabelle. – Acho que posso fazer com que ela me convide. Implorarei se for necessário.
– E eu vou comentar sobre você – acrescentou Lillian, confiante, depois sorriu para Evie. – E
também vou pedir que a convide.
– Como isso vai ser divertido! – exclamou Daisy. – O plano está definido então. Daqui a duas semanas invadiremos Hampshire e encontraremos um marido para Annabelle.
Todas estenderam as mãos e as uniram, sentindo-se ao mesmo tempo tolas, eufóricas e mais do que encorajadas. Talvez minha sorte esteja prestes a mudar, pensou Annabelle, e fechou os olhos numa breve oração de esperança.
CAPÍTULO 2
Simon Hunt aprendeu desde cedo que o destino não o tinha abençoado com sangue nobre, riqueza ou presentes raros, e que precisaria arrancar a sua fortuna de um mundo muitas vezes injusto. Era dez vezes mais agressivo e ambicioso do que um homem comum. As pessoas costumavam achar muito mais fácil deixá-lo seguir seu caminho a ter que enfrentá-lo. Apesar de dominador, talvez até mesmo cruel, Simon nunca perdia o sono por causa de consciência pesada.
Era uma lei da natureza, só os mais fortes sobrevivem, e os mais fracos deveriam ficar fora do seu caminho.
O pai foi açougueiro e proporcionou conforto para uma família de seis, transformando Simon em seu assistente quando completou idade suficiente para empunhar a pesada lâmina de corte.
Anos de trabalho naquele estabelecimento tinham dado a Simon braços enormes e ombros musculosos de açougueiro. Sempre imaginaram que ele acabaria por gerir os negócios da família, mas, aos 21 anos, o garoto decepcionou o pai, deixando a loja e partindo em busca de uma vida diferente. Ao investir em uma pequena poupança, havia logo descoberto seu verdadeiro talento: fazer dinheiro.
Simon amou a dinâmica da economia, os elementos do risco, a interação entre comércio, indústria e política – e percebeu de imediato que, em pouco tempo, o crescimento da rede ferroviária britânica seria o principal meio para os bancos conduzirem seus negócios de forma eficiente. A remessa de dinheiro e títulos, a criação de rápidas oportunidades de investimento, dependeria diretamente do serviço ferroviário. Seguindo seus instintos, investiu cada centavo que tinha em especulação ferroviária e foi recompensado com uma explosão de lucros que ele logo apostou em variados interesses. Agora, aos 33 anos, controlava três empresas de manufatura, uma fundição de nove hectares e um estaleiro. Era um convidado – embora indesejado – nos salões aristocráticos e se sentava lado a lado com nobres nos conselhos de seis empresas.
Após anos de trabalho incansável, tinha conseguido obter quase tudo o que sempre quis. No entanto, se alguém perguntasse se era um homem feliz, Simon teria bufado com a pergunta.
Felicidade, o resultado indescritível do sucesso, era um claro sinal de complacência. Devido à própria natureza, Simon nunca iria ser complacente ou ficar satisfeito; nem queria.
No entanto... No canto mais profundo, mais privado de seu coração abandonado, havia um desejo que Simon não conseguia extinguir.
Ele lançou um olhar por todo o salão e sentiu como sempre a peculiar pontada aguda que a visão de Annabelle Peyton produzia. Com todas as mulheres que estavam disponíveis para ele, e não eram poucas, ninguém nunca havia lhe chamado tanto a atenção. O encanto de Annabelle ia além de mera beleza física, embora Deus soubesse que ela havia sido abençoada com algo além disso. Se houvesse um pingo de poesia na alma de Simon, ele poderia ter pensado em dezenas de versos arrebatadores para descrever os encantos dela. Mas ele era plebeu até os ossos e não conseguia encontrar palavras que descrevessem com precisão a atração que sentia. Tudo o que sabia era que a visão de Annabelle à luz brilhante dos candelabros quase enfraquecia seus joelhos.
Simon nunca havia esquecido a primeira vez que a vira do lado de fora do teatro panorâmico, remexendo na bolsa com a testa franzida. O sol brilhava nas mechas douradas e champanhe de seu cabelo castanho-claro e fazia sua pele brilhar. Havia uma coisa deliciosa, tão palpável, nela, a pele aveludada, os olhos azuis brilhantes, e a ligeira careta que ele desejara suavizar.
Tinha quase certeza de que Annabelle já estaria casada agora. A evidência de que os Peytons estavam passando por dificuldades financeiras não significou nada para Simon, que achava que qualquer nobre com seu cérebro no lugar veria o valor de Annabelle e a pediria em casamento.
Mas como dois anos tinham se passado, e ela permanecia solteira, uma centelha de esperança despertou dentro dele. Achou heroica a determinação de Annabelle em encontrar um marido, a coragem com a qual usava todas as vezes os vestidos surrados – o valor que conferia a si mesma, apesar da falta de dote. A maneira sagaz como se colocava no processo de caça a um marido, jogando suas últimas cartadas em uma partida praticamente perdida. Annabelle era inteligente, cuidadosa, intransigente, e ainda bonita, embora nos últimos tempos a ameaça da pobreza houvesse imprimido certa dureza a seus olhos e sua boca. Egoísta, Simon não ficava triste por vê-la em dificuldades financeiras: isso proporcionou a oportunidade que ele nunca teria de outra forma.
O problema era que Simon ainda não havia descoberto como fazer com que Annabelle gostasse dele, já que ela sentia repulsa a tudo o que ele era. Simon estava ciente de que poucas coisas nele eram atraentes. Além disso, não tinha ambição de se tornar um cavalheiro assim como um tigre não aspirava se tornar um gato. Era apenas um homem com dinheiro de sobra, acompanhado da frustração de perceber que não poderia comprar aquilo que mais queria.
Até agora, sua estratégia tinha sido esperar pacientemente, sabendo que o desespero acabaria por conduzir Annabelle a fazer coisas que nunca havia pensado antes. A miséria colocava tudo sob uma nova perspectiva. Logo o jogo de Annabelle iria acabar. Ela seria confrontada com a escolha de se casar com um homem pobre, ou tornar-se amante de um rico. E, neste caso, ela acabaria na cama dele.
– Um piteuzinho, não acha? – Foi o comentário que ouviu e o fez se virar para Henry Burdick, cujo pai, um visconde, supostamente estava em seu leito de morte. Preso na espera interminável pelo falecimento do pai para finalmente ganhar o título e a fortuna da família, Burdick passava a maior parte do tempo nas mesas de jogo e atrás de rabos de saia. Ele seguiu o olhar de Simon até Annabelle, que estava entretida numa conversa animada com as solteironas ao seu redor.
– Eu não saberia dizer – respondeu Simon, sentindo uma onda de antipatia por Burdick e toda a sua turma, a quem tinha sido dado todo o tipo de privilégio em uma bandeja de prata desde o dia em que nasceram. E, geralmente, não faziam nada para justificar a generosidade imprudente do destino.
Burdick sorriu, com o rosto corado de muita bebida e boa comida.
– Pretendo descobrir em breve – comentou.
Burdick não era a minoria. Um grupo considerável de homens tinha suas atenções direcionadas para Annabelle, como uma matilha de lobos apreciando a presa ferida. No momento em que ela estivesse mais fraca, e não oferecesse a menor resistência, um deles se moveria para a caça. No entanto, tal como na natureza, o macho dominante é o que sempre vence.
O esboço de um sorriso apareceu na boca contraída de Simon.
– Você me surpreende – murmurou ele. – Achava que a situação financeira da senhorita fosse inspirar galanteios de cavalheiros de sua espécie, em vez disso, vejo que se entretém com ideias mal-intencionadas que se poderiam esperar de gente do meu tipo.
Burdick emitiu uma risada baixa e não viu o brilho feroz nos olhos negros de Simon.
– Senhorita ou não, ela vai ter que escolher um de nós quando seus recursos finalmente acabarem.
– Será que nenhum de vocês a pedirá em casamento? – perguntou Simon como quem não quer nada.
– Meu Deus, mas por quê? – Burdick lambeu os lábios enquanto pensamentos cruzavam sua mente. – Não há necessidade de se casar com a moça quando em breve vai estar disponível pelo preço certo.
– Talvez ela tenha muita honra para isso.
– Duvido muito – respondeu alegremente o jovem aristocrata. – Mulheres bonitas assim, e pobres, não podem ser honradas. Além disso, há um boato de que ela já passou pela cama do lorde Hodgeham.
– Hodgeham? – Muito surpreso, Simon manteve o rosto inexpressivo. – O que iniciou esse boato?
– Ah, a carruagem de Hodgeham foi vista nas cavalariças dos Peytons altas horas da noite...
E, de acordo com alguns dos seus credores, ele cuida de suas contas de vez em quando. –
Burdick fez uma pausa e gargalhou. – Uma noite entre aquelas coxas deve valer muito a pena para pagar a conta da mercearia, não acha?
A resposta instantânea de Simon foi um impulso assassino de separar a cabeça de Burdick do resto do corpo. Não sabia ao certo quanto de sua raiva tinha sido alimentado pela imagem de Annabelle Peyton na cama com o porco do lorde Hodgeham, e quanto tinha sido provocado pelo gozo sarcástico de Burdick e pelas fofocas que provavelmente eram falsas.
– Acho que, se você for manchar a reputação de uma senhorita – ameaçou Simon em um tom perigosamente agradável –, é melhor ter alguma prova convincente do que diz.
– Ora, faça-me o favor, fofocas não exigem prova – respondeu o jovem com uma piscadela.
– E o tempo em breve revelará o verdadeiro caráter da moça. Hodgeham não tem os meios para manter uma beleza nobre como essa, ela vai querer mais do que ele pode oferecer. Prevejo que no final da temporada ela vai migrar para o companheiro com os bolsos mais cheios.
– O que significa: para os meus – disse Simon suavemente.
Burdick piscou surpreso. O sorriso desapareceu enquanto se perguntava se tinha escutado bem.
– O quê...
– Eu vi como você e o par de idiotas com quem anda vêm colando nos calcanhares dela durante estes últimos dois anos – disse Simon, estreitando os olhos. – Agora você perdeu sua chance com ela.
– Perdi minha... O que quer dizer com isso? – perguntou Burdick, indignado.
– Quero dizer que vou infligir o tipo mais agudo de dor, mental, física e financeira no primeiro homem que ousar invadir meu território. E a próxima pessoa que repetir qualquer boato infundado sobre a Srta. Peyton na minha frente vai engoli-lo junto com o meu punho. – O sorriso de Simon era feroz quando voltou-se para o rosto chocado de Burdick. – Diga isso a qualquer um que possa estar interessado – aconselhou, afastando-se do nanico tagarela.
CAPÍTULO 3
Retornando à sua casa na cidade com o primo mais velho que por vezes agia como se fosse seu acompanhante, Annabelle caminhou pelo corredor vazio da entrada lajeada. Ela parou diante da imagem do chapéu que havia sido deixado na mesa em meia-lua encostada contra a parede. Era um modelo masculino de copa alta, cinza, com fitas de cetim cor de vinho. Um chapéu diferente, em comparação com o preto simples que a maioria dos senhores usava. Annabelle já o tinha visto em várias ocasiões, colocado em cima do mesmo móvel como uma serpente enrolada.
Uma elegante bengala, com o punho em forma de diamante estava apoiada na mesa.
Annabelle animou-se com um intenso desejo de usar a bengala para bater na coroa do chapéu, de preferência enquanto o proprietário o estivesse usando. Em vez disso, subiu as escadas com o coração pesado e o cenho franzido.
À medida que se aproximava do segundo andar, onde ficavam as salas de estar, um homem corpulento apareceu no patamar superior. Ele a observou com um sorriso ameaçador, a pele do rosto rosada e suada pelo esforço recente, e uma mecha de cabelo, que ele penteava para trás, solta, formando uma espécie de crista de galo.
– Lorde Hodgeham – cumprimentou Annabelle bem formal, engolindo a vergonha e a fúria que tinham ficado entaladas na garganta. Hodgeham era uma das poucas pessoas no mundo a quem ela realmente odiava. Um suposto amigo de seu falecido pai, Hodgeham visitava esporadicamente a família, mas nunca no horário normal de visitas. Chegava tarde da noite, e contra todas as normas de etiqueta, passava um tempo sozinho em uma sala privativa com a mãe de Annabelle, Philippa. E nos dias que se seguiam às suas visitas, Annabelle não podia deixar de notar que algumas das contas mais urgentes haviam sido misteriosamente pagas, e alguns credores enfurecidos devidamente apaziguados. E a mãe ficava um tanto fragilizada e irritadiça, sem vontade de conversar.
Era quase impossível para Annabelle acreditar que Philippa, que sempre fora contra a desonestidade, permitia que alguém usasse seu corpo em troca de dinheiro. No entanto, foi a única e razoável conclusão a que conseguiu chegar, o que a encheu de vergonha e de uma raiva impotente. Sua raiva não era dirigida unicamente à mãe: ela também estava furiosa com as dificuldades financeiras, e com ela mesma por ainda não ter sido capaz de arranjar um marido.
Levou um bom tempo para Annabelle perceber que por mais bonita e charmosa que fosse, por mais interessado que um cavalheiro pudesse estar, ela não receberia nenhuma proposta. Pelo menos, nenhuma que fosse respeitável.
Desde o dia em que fora apresentada à sociedade, Annabelle vinha sendo gradualmente forçada a aceitar que seus sonhos de ter um belo pretendente que iria se apaixonar por ela e fazer todos os seus problemas desaparecerem era uma fantasia ingênua. Aquela desilusão tinha atingido o ponto mais profundo durante a decepção que foi a sua terceira temporada. E agora, na quarta, a imagem desagradável de Annabelle-a-esposa-do-fazendeiro estava alarmantemente próxima da realidade.
De cara fechada, Annabelle tentou passar por Hodgeham em silêncio. Ele a deteve com uma mão carnuda em seu braço. Annabelle a empurrou com tanta antipatia que a força do movimento quase fez com que ela perdesse o equilíbrio.
– Não encoste em mim – avisou ela, olhando para o rosto corado.
Os olhos azuis de Hodgeham contrastavam com o rubor de sua pele. Sorrindo, ele apoiou a mão na parte superior do corrimão, evitando que Annabelle alcançasse o patamar superior.
– Que rude – murmurou ele, com uma voz grave que parecia amedrontar até os homens mais altos. – Depois dos favores que tenho feito para a sua família...
– Não nos fez favor algum – respondeu Annabelle laconicamente.
– Vocês estariam na rua há muito tempo se não fosse pela minha generosidade.
– Está sugerindo que eu deveria estar grata? – perguntou Annabelle, com um tom de voz saturado de ódio. – Você é um oportunista imundo.
– Eu só tenho recebido aquilo que me é oferecido voluntariamente. – Hodgeham estendeu a mão e tocou-lhe o queixo, o toque úmido dos dedos dele a fez recuar de desgosto. – Na verdade, tem sido um esporte muito monótono. Sua mãe é muito dócil para o meu gosto. – Ele se inclinou, chegando mais perto, até que o odor de suor do corpo velho caprichosamente emplastrado com colônia atingiu as narinas de Annabelle, um cheiro insuportável. – Talvez da próxima vez eu experimente você – murmurou ele.
Sem dúvida ele esperava que Annabelle fosse chorar, ficar envergonhada ou implorar por algo. Em vez disso, ela lhe dirigiu um olhar frio.
– Seu velho convencido e tolo – disse ela calmamente –, se eu fosse me tornar amante de alguém, não acha que eu poderia arranjar alguém melhor do que você?
Hodgeham remexeu os lábios até que por fim deu um sorriso. Porém, Annabelle ficou satisfeita por ver que ele precisou se esforçar para isso.
– Não é muito inteligente fazer de mim um inimigo. Algumas palavrinhas minhas por aí poderiam arruinar sua família e qualquer esperança de redenção. – Ele olhou para o tecido desgastado do corpete dela e sorriu arrogante. – Se eu fosse você não seria tão desdenhosa, de pé aí usando trapos e joias coladas.
Ela corou e bateu com raiva na mão de Hodgeham quando ele a estendeu em uma tentativa de apalpar seu corpete. Rindo de si mesmo, o homem desceu as escadas, enquanto Annabelle esperava em silêncio. Depois que ouviu o som da porta da frente abrir e fechar, ela desceu e virou a chave na fechadura. Respirando com dificuldade devido à ansiedade e persistente indignação, apoiou as palmas das mãos contra a pesada porta de carvalho e encostou a testa em um dos painéis de madeira.
– É nisso que dá – murmurou em voz alta, tremendo de fúria. Sem mais Hodgeham, sem mais dívidas... Já tinham sofrido o suficiente. Teria que encontrar alguém para se casar imediatamente, encontraria o melhor partido na festa da caçada em Hampshire, e finalmente acabaria com essa história. E se isso falhasse...
Ela deslizou as mãos bem devagar ao longo do painel da porta, as palmas deixando ligeiras impressões sobre a madeira granulada. Se não pudesse arranjar alguém para se casar, poderia tornar-se amante de alguém. Embora ninguém a quisesse como esposa, parecia haver um número infinito de cavalheiros dispostos a mantê-la em pecado. Se fosse inteligente, poderia fazer fortuna. Mas estremeceu com a ideia de nunca mais poder frequentar os círculos sociais – de ser desprezada e condenada ao ostracismo, sendo valorizada apenas por suas habilidades na cama. A outra possibilidade seria viver em situação de pobreza virtuosa como costureira, lavadeira, ou tornar-se governanta, o que era infinitamente mais perigoso para uma jovem nessa situação, a de estar sempre à mercê de todos. E o salário não seria suficiente para sustentar a mãe, ou Jeremy, que também precisaria arranjar um serviço. Não parecia que os três pudessem pagar a moralidade de Annabelle. Eles viviam em um castelo de cartas. E uma simples ventania o derrubaria.
Na manhã seguinte, Annabelle se sentou à mesa com uma xícara de porcelana apertada entre os dedos gelados. Embora tivesse acabado de tomar o chá, a cerâmica ainda estava quente. Havia uma minúscula lasca no esmalte, e ela esfregou a ponta do polegar sobre ela várias vezes, não virando para olhar quando ouviu a mãe, Philippa, entrar na sala.
– Chá? – perguntou Annabelle em um tom monótono e cuidadoso, e ouviu a resposta afirmativa murmurada por Philippa. Servindo outra xícara do bule à sua frente, a filha o adoçou com um pequeno torrão de açúcar e adicionou um pingo de leite.
– Não tomo mais com açúcar – disse Philippa. – Tenho preferido sem.
O dia em que a mãe parasse de gostar de doces seria o dia em que começariam a servir água gelada no inferno.
– Ainda podemos pagar pelo açúcar para o seu chá – respondeu Annabelle, mexendo com a colher e fazendo alguns redemoinhos na xícara. Olhando para cima, deslizou a xícara e o pires para o lugar de Philippa à mesa. Como esperava, a mãe parecia triste e abatida, com um semblante envergonhado. Ela achava inconcebível que a mãe, que sempre tivera um astral arrojado e superior ao das outras mães, pudesse estar assim tão deprimida. E quando olhou para o rosto tenso de Philippa, Annabelle percebeu que o próprio semblante estava quase tão cansado quanto o dela, a boca contraída com o mesmo desencanto.
– Como foi o baile? – perguntou Philippa, deixando o rosto perto da xícara de chá para que o vapor o alcançasse.
– O desastre de sempre – respondeu Annabelle, suavizando a honestidade de sua resposta com uma risada. – O único homem que me convidou para dançar foi o Sr. Hunt.
– Deus do céu – murmurou Philippa, e bebeu um gole de chá escaldante. – Você aceitou?
– Claro que não. Não havia propósito para isso. Quando ele olha para mim, fica claro que tem alguma coisa em mente, mas não é casamento.
– Mesmo homens como o Sr. Hunt eventualmente se casam – rebateu Philippa, olhando para cima com o rosto sobre a xícara de porcelana. – E você seria uma esposa ideal para ele... Poderia, talvez, ter uma influência suavizadora, que facilitaria o caminho dele para a sociedade decente.
– Meu Deus, mãe, sinto como se você estivesse me encorajando a aceitar a atenção dele.
– Não... – Philippa pegou a colher e mexeu desnecessariamente o chá. – Se você acha mesmo o Sr. Hunt censurável, então não. No entanto, se conseguisse conquistá-lo, nós todos, por certo, seríamos beneficiados...
– Ele não é do tipo que se casa, mamãe. Todo mundo sabe disso. Não importa o que eu faça, eu nunca teria uma oferta respeitável dele. – Annabelle vasculhou o açucareiro com um pequeno par de pinças de prata manchada, procurando o menor pedaço que pudesse encontrar. Depois de retirar a porção desejada de açúcar mascavo, ela a deixou cair em sua xícara e a mergulhou no chá fresco.
Philippa bebeu o dela, desviando cuidadosamente o olhar enquanto pulava para um novo tópico de conversa que Annabelle percebeu ter uma desagradável ligação com o último.
– Não temos recursos para manter Jeremy na escola no próximo período. Não pago os funcionários há dois meses. Existem contas...
– Sim, eu sei de tudo isso – disse Annabelle, corando levemente de raiva pelo aborrecimento.
– Vou encontrar um marido, mamãe. Muito em breve. – E se esforçou para estampar um sorriso superficial no rosto. – O que acha de uma excursão para Hampshire? Agora que a temporada está chegando ao fim, muitas pessoas deixarão Londres em busca de novas diversões, em particular, uma caçada organizada pelo Sr. Westcliff em sua propriedade rural.
Philippa olhou para ela com um novo interesse.
– Não estava ciente de que havia recebido um convite do conde.
– Não recebemos – respondeu Annabelle. – Ainda não. Mas vamos... E tenho a sensação de que coisas boas nos esperam em Hampshire, mamãe.
CAPÍTULO 4
Dois dias antes de Annabelle e a mãe partirem para Hampshire, uma enorme quantidade de caixas e encomendas chegou. O lacaio teve que fazer três viagens para transportá-las do hall de entrada até o quarto de Annabelle no andar de cima, onde as empilhou em uma montanha ao lado da cama. Ela desembrulhou tudo com cuidado e encontrou pelo menos uma meia dúzia de vestidos que nunca haviam sido usados – saias de seda e musselina em cores vivas, casaquinhos que combinavam com as saias forrados em camurça macia e um vestido de baile feito de pesada seda marfim, com acabamentos delicados em renda belga no corpete e nas mangas. Havia também luvas, xales, echarpes e chapéus, de tal qualidade e beleza que quase fizeram Annabelle chorar. Os vestidos e os acessórios deviam ter custado uma fortuna; sem dúvida, uma ninharia para as meninas Bowmans, mas, para Annabelle, o presente era inestimável.
Pegando o bilhete que tinha sido entregue com as encomendas, ela rompeu o selo de cera e leu as linhas rabiscadas:
De suas fadas madrinhas, também conhecidas como Lillian e Daisy. Isso é para uma caçada bem-sucedida em Hampshire.
Obs.: Você não vai perder a coragem, não é?
Ela escreveu de volta:
Queridas fadas madrinhas,
Coragem é a única coisa que me resta. Obrigada infinitamente pelos vestidos. Estou em êxtase por enfim poder usar roupas bonitas outra vez. É um dos meus muitos defeitos, amar tanto as coisas belas.
Sua leal Annabelle
Obs.: Estou devolvendo os sapatos, no entanto, pois são muito pequenos. E sempre ouvi dizer que as meninas americanas têm pés grandes!
Querida Annabelle,
É um defeito amar as coisas bonitas? Isso deve ser um conceito inglês, porque com certeza essa ideia nunca ocorreu a ninguém em Manhattanville. Só porque fez a observação sobre os pés, vamos fazê-la jogar rounders conosco em Hampshire. Você vai adorar rebater as bolas com tacos. Não há nada mais satisfatório.
Queridas Lillian e Daisy,
Somente aceitarei jogar rounders se puderem convencer Evie a participar, o que duvido muito. Embora não saiba por que ainda não joguei, posso pensar em muitas coisas mais satisfatórias do que rebater bolas com tacos. Encontrar um marido me vem à cabeça...
A propósito, o que se veste para jogar rounders ? Um traje de caminhada?
Querida Annabelle,
Nós jogamos de calças curtas, é claro. Não se consegue correr livremente de saias.
Queridas Lillian e Daisy,
Não sei o que são “calças curtas”. Vocês por acaso estão se referindo a roupas íntimas?
Certamente não estão sugerindo que brinquemos ao ar livre de ceroulas, como crianças selvagens...
Querida Annabelle,
As “calças curtas” surgiram de um estrato da sociedade nova-iorquina do qual somos totalmente excluídas. Nos Estados Unidos, ceroulas são usadas apenas pelos homens. E Evie disse que sim.
Querida Evie,
Não pude acreditar no que os meus olhos estavam lendo quando as irmãs Bowmans escreveram me informando que você concordou em jogar rounders de calças curtas. Você realmente disse isso? Estou esperando que negue, porque condicionei minha participação à sua.
Querida Annabelle,
Acredito que esta associação com as Bowmans vai ajudar a curar a minha timidez.
Rounders de calças curtas parece apenas uma maneira de começar. Choquei você? Nunca choquei ninguém antes, nem a mim mesma! Espero que esteja impressionada com a minha vontade de me libertar.
Querida Evie,
Impressionada, animada e um pouco apreensiva com as situações em que as Bowmans nos colocarão. Onde vamos encontrar um lugar onde podemos jogar rounders de calças curtas sem sermos observadas? Sim, estou completamente chocada, sua safada sem-vergonha.
Querida Annabelle,
Estou começando a acreditar que existem dois tipos de pessoas: as que escolhem ser donas do próprio destino e aquelas que tomam chá de cadeira enquanto outras dançam. Eu preferiria ser do primeiro tipo a ser deste último. Quanto ao como e quando o jogo de rounders irá acontecer, estou satisfeita em deixar esses detalhes aos cuidados das Bowmans.
Com todo o carinho,
Evie, a safada.
Durante a onda destes e outros bilhetes engraçados que foram trocados entre elas, Annabelle começou a experimentar algo do qual se esquecera havia muito tempo: o prazer de ter amigas.
Enquanto as do passado tinham se mudado para a existência sagrada da vida de casal, ela fora deixada para trás. Seu status de solteirona, para não mencionar a falta de dinheiro, criara um abismo que a amizade não conseguia preencher. Nos últimos anos ela se tornara cada vez mais independente e até fizera esforços para evitar a companhia das garotas com quem conversara algumas vezes, dera risadinhas ou até compartilhara segredos.
No entanto, tinha ganhado, de uma única vez, três amigas com quem possuía algo em comum, apesar de suas origens serem radicalmente diferentes. Eram todas jovens, com sonhos, esperanças e medos – cada uma delas totalmente familiarizada com a imagem de um cavalheiro de sapatos negros e polidos andando em sua fileira de cadeiras em busca de algo mais promissor.
As solteironas não tinham nada a perder ajudando umas às outras, e sim tudo a ganhar.
– Annabelle. – Veio a voz de sua mãe, da porta, enquanto ela embalava com cuidado as caixas de luvas novas em uma valise. – Tenho uma pergunta a fazer, e você deve responder honestamente.
– Sou sempre honesta com você, mamãe – respondeu Annabelle, olhando para cima em meio ao que arrumava. A culpa tomou conta dela quando viu o semblante amável porém preocupado de Philippa. Santo Deus, ela estava cansada da culpa que a mãe sentia, e também da própria culpa. Sentiu pena e desespero pelo sacrifício que a mãe fizera em dormir com lorde Hodgeham.
E ainda, na mente de Annabelle, ocorreu o pensamento indecoroso de que, se Philippa tinha escolhido agir de tal modo, por que não podia pelo menos ter se preparado adequadamente como uma amante real, em vez de se contentar com os pequenos maços de dinheiro que lorde Hodgeham lhe dava?
– De onde vieram essas roupas? – perguntou, pálida, mas séria, enquanto olhava diretamente para os olhos da filha.
Annabelle franziu a testa.
– Já lhe disse, mamãe, vieram de Lillian Bowman. Por que está me olhando desse jeito?
– Essas roupas não vieram de um homem? Talvez do Sr. Hunt?
O queixo de Annabelle caiu.
– Está realmente me perguntando se eu... com ele? Santo Deus, mamãe! Mesmo que eu estivesse inclinada a fazer isso, não tive a menor oportunidade. Como, em nome de Deus, surgiu uma ideia dessas?
Sem piscar, a mãe encontrou o olhar de Annabelle.
– Você mencionou o Sr. Hunt muitas vezes nesta temporada. Mais do que qualquer outro. E
estes vestidos são, obviamente, bem caros...
– Eles não vieram dele – disse Annabelle com firmeza.
Philippa pareceu relaxar, mas uma questão permaneceu em seus olhos. Acostumada a ter pessoas olhando-a com desconfiança, Annabelle pegou um chapéu e colocou em um ângulo esperto sobre a testa.
– Não vieram dele – repetiu.
Amante de Simon Hunt... Voltando-se para o espelho, Annabelle viu uma expressão estranha em seu rosto. Supôs que a mãe estava certa, mencionara Hunt muitas vezes. Havia algo nele que Annabelle não conseguisse tirá-lo da cabeça mesmo muito tempo depois de terem se visto.
Nenhum outro homem que ela conhecesse possuía o carisma perverso de Hunt e nenhum jamais esteve tão abertamente interessado nela. E agora, nas últimas semanas de uma temporada fracassada, ela se viu considerando coisas que nenhuma jovem decente deveria sequer pensar.
Ela sabia que sem muito esforço poderia tornar-se amante de Hunt e todos os seus problemas chegariam ao fim. Ele era um homem rico, daria a ela o que quisesse, pagaria as dívidas de sua família e a presentearia com belas roupas, joias, carruagem e casa própria – tudo isso em troca de dormir com ele.
Essa ideia causou-lhe um tremor acentuado no abdômen. Tentou se imaginar na cama com Simon Hunt, as coisas que ele poderia exigir dela, com as mãos em seu corpo, sua boca...
Ganhando um rubor intenso no rosto, esforçou-se para esquecer a imagem e brincou com a seda rosa e os adornos no lado de seu chapéu. Se ela se tornasse amante de Simon Hunt, ele seria seu dono por completo, na cama e fora dela, e a ideia de estar tão completamente à mercê dele era terrível. Uma voz zombeteira em sua mente perguntou: “A sua honra é tão importante para você? Mais importante do que o bem-estar da sua família? Ou até mesmo do que a própria sobrevivência?”
– Sim – disse Annabelle baixinho, olhando para o seu reflexo pálido. – Nesse momento ela é.
– Mas futuramente já não sabia. Enquanto houvesse esperança, no entanto, ela teria respeito próprio – e lutaria para mantê-lo.
CAPÍTULO 5
Era fácil perceber por que o nome Hampshire derivava da palavra “hamm” do inglês arcaico, que fazia referência a um pasto com água. O condado possuía vários desses pastos, além de uma extensa mata e uma floresta exuberante que no passado tinham sido reservadas como áreas de caça da realeza. Somadas às chamativas escarpas, aos profundos vales verdes e aos rios cheios de trutas, Hampshire oferecia atividades para todo o tipo de esportista. A propriedade do conde Westcliff, Stony Cross Park, era como uma joia em um vale fértil do rio, cercada por hectares de floresta. Parecia que sempre havia convidados em Stony Cross Park, visto que Westcliff era um ótimo anfitrião, bem como um ávido caçador.
Visto com bons olhos, lorde Westcliff merecia sua reputação de honra imaculada e elevados princípios.
Não era do tipo que se envolvia em escândalos, mas parecia pouco tolerante em relação às intrigas e à falsa moral da sociedade londrina. Ao contrário, passava a maior parte do tempo no condado assumindo suas responsabilidades e cuidando dos seus inquilinos. De vez em quando viajava para Londres a fim de promover seus interesses comerciais ou se envolver em algum assunto político que exigisse sua atenção.
Foi numa dessas viagens que Annabelle conheceu o conde; foram apresentados em um sarau.
Embora não fosse de uma beleza clássica, Westcliff possuía seus atrativos. Era de altura mediana, mas tinha a força de um esportista experiente e um ar óbvio de virilidade. Tudo isso, combinado com uma imensa fortuna pessoal e um dos condados mais antigos da nobreza, fazia dele o homem mais cobiçado da Inglaterra quando o assunto era casamento. Annabelle não perdeu tempo e começou a flertar com ele quando se encontraram pela primeira vez. No entanto, Westcliff estava acostumado a tais atenções de mulheres jovens e ansiosas, e imediatamente a rotulou de caçadora de marido, o que foi doloroso, embora verdadeiro.
Desde que Annabelle fora rejeitada por Westcliff, ela se esforçara para evitá-lo. Acabara gostando da irmã mais nova dele, Lady Olivia, uma menina de bom coração, que tinha a mesma idade de Annabelle e havia sido maculada por escândalos no passado. E fora graças à bondade de Lady Olivia que Annabelle e Evie haviam sido convidadas para essa festa. Nas três semanas seguintes, tanto as presas de quatro patas como as de duas pernas seriam caçadas em Stony Cross Park.
– Lady Olivia! – exclamou Annabelle, assim que a jovem foi recebê-las. – Que gentileza sua nos convidar! Londres estava sufocante, o clima refrescante de Hampshire é justamente do que precisávamos.
Lady Olivia sorriu. Embora fosse uma moça franzina, bastante modesta e com feições comuns, estava extraordinariamente bonita nesta ocasião, com o rosto brilhando de felicidade.
De acordo com Lillian e Daisy, Lady Olivia estava prometida a um milionário americano. “É por amor?”, perguntara Annabelle em sua última carta para elas, e Lillian tinha respondido que supostamente sim. “No entanto” , acrescentara Lilian ironicamente, “meu pai diz que a aliança entre as duas famílias certamente trará uma vantagem financeira para lorde Westcliff, e que é por isso que ele deu a sua aprovação” . Para o conde, romance não era tão importante quanto as considerações práticas.
Voltando a mente ao presente, Annabelle sorriu quando Lady Olivia pegou suas mãos e a cumprimentou com um gesto de boas-vindas.
– E você é exatamente do que nós precisávamos! – exclamou Lady Olivia com uma risada. –
O lugar foi invadido por homens em busca de esporte... Eu disse ao conde que precisaríamos convidar algumas mulheres para manter a atmosfera razoavelmente civilizada. Venham, deixem-me acompanhá-las até os seus quartos.
Suspendendo as saias novas de musselina rosa-salmão de Lillian, Annabelle seguiu Lady Olivia pelos degraus em direção ao hall de entrada.
– Como vai lorde Westcliff? – perguntou Annabelle enquanto subiam por um dos lados da grande escadaria dupla. – Em boa saúde, espero?
– Meu irmão está muito bem, obrigada. Embora eu tema que ele esteja se deixando distrair com relação aos planos para o meu casamento. Ele insiste em supervisionar todos os detalhes.
– É sinal de que gosta muito de você, tenho certeza – disse Philippa.
Lady Olivia riu ironicamente.
– É mais um sinal da grande necessidade que tem de controlar tudo que estiver ao alcance dele. Temo que não será fácil encontrar uma noiva que tenha força de vontade suficiente para lidar com ele.
Captando o olhar acusador de sua mãe, Annabelle balançou a cabeça ligeiramente. Não seria bom incentivar as esperanças de Philippa nesse sentido. No entanto...
– Eu conheço uma jovem com uma boa força de vontade, charmosa e que ainda está solteira
– comentou ela. – Uma americana, para falar a verdade.
– Está se referindo a uma das irmãs Bowmans? – perguntou Lady Olivia. – Ainda não tive o prazer de conhecê-las, embora o pai delas já tenha ficado em Stony Cross antes.
– Ambas são maravilhosas em todos os aspectos – disse Annabelle.
– Excelente! – exclamou Lady Olivia. – Ainda podemos encontrar um par para o meu irmão.
Chegando ao segundo andar, fizeram uma pausa para olhar para as pessoas passando pelo hall de entrada no andar de baixo.
– Temo que não haja tantos homens solteiros aqui como se poderia desejar – comentou Lady Olivia. – Mas há alguns... Lorde Kendall me vem à mente. Se quiser, posso apresentá-la assim que surgir uma oportunidade.
– Obrigada, eu gostaria muito.
– Receio que ele seja um pouco reservado, portanto – acrescentou Lady Olivia –, pode não ser tão atraente para alguém com um ânimo tão elevado quanto o seu, Annabelle.
– Pelo contrário – disse Annabelle rapidamente. – Acho que reserva é a qualidade mais atraente em um homem. Cavalheiros reservados são muito mais agradáveis do que aqueles que são arrogantes e estão sempre se gabando. – Como Simon Hunt, cuja elevada autoestima não poderia ser mais óbvia, pensou ela severamente.
Antes que Lady Olivia pudesse responder, seu olhar foi atraído para longe, ao encontro de um cavalheiro alto e de cabelos dourados que acabara de chegar ao hall de entrada lá embaixo.
Estava em pé de forma desleixada, apoiando o ombro em uma coluna, e com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Annabelle soube imediatamente que era americano. O sorriso irreverente, os olhos azuis, e a forma descontraída de usar suas roupas elegantes o diferenciavam. Além disso, Lady Olivia ficou ruborizada e sua respiração pareceu se alterar com o jeito que ele olhou para ela.
– Perdoem-me – disse a moça distraidamente. – Eu... Meu noivo... Parece que ele necessita de mim para alguma coisa... – Ela se afastou e fez um comentário rápido sobre o quarto delas ser o quinto à direita. De imediato, uma criada apareceu para mostrar-lhes o resto do caminho, e Annabelle soltou um suspiro.
– Haverá uma competição feroz por lorde Kendall – comentou em voz alta. – Espero que ele ainda não tenha sido arrebatado.
– Ele não pode ser o único cavalheiro solteiro aqui – rebateu Philippa, esperançosa. – Não se esqueça do lorde Westcliff.
– Não alimente nenhuma esperança quanto a isso – disse Annabelle ironicamente. – O conde ficou o total oposto de impressionado comigo quando nos conhecemos.
– O que mostra um grande lapso de julgamento da parte dele – respondeu a mãe indignada.
Sorrindo, Annabelle estendeu o braço e apertou a mão enluvada de Philippa.
– Obrigada, mamãe. Mas acho melhor apontar minha mira para um alvo bem mais acessível.
Os convidados continuavam chegando. Alguns foram imediatamente para seus quartos a fim de se revigorarem com um cochilo do meio-dia, antes da ceia e do baile de boas-vindas que seria realizado mais tarde. Senhoras fofoqueiras se reuniam no salão e na sala de jogos, enquanto os cavalheiros jogavam bilhar ou fumavam na biblioteca. Depois que a criada terminou de desfazer suas malas, Philippa decidiu cochilar no seu quarto. Era um dormitório pequeno, mas encantador, com papel de parede florido francês e janelas envoltas com seda azul pálida.
Muito impaciente e empolgada demais para dormir, Annabelle deduziu que Evie e as irmãs Bowmans provavelmente já tinham chegado. Mesmo assim, elas gostariam de algum tempo para se revigorarem depois da viagem. Em vez de suportar horas de inatividade forçada, Annabelle decidiu explorar a área fora da mansão. O dia estava quente e iluminado, e ela ansiava por algum exercício após a longa viagem de carruagem. Colocou um vestido azul-claro de musselina moldado com minúsculas fileiras de pregas e deixou o quarto.
Saiu por uma entrada lateral, passando por alguns funcionários, e caminhou ao encontro de uma gentil luz solar. Havia algo maravilhoso na atmosfera de Stony Cross Park. Podia-se facilmente imaginá-lo como um lugar mágico situado em alguma terra distante. A floresta circundante era tão profunda e densa, parecia primitiva, ao passo que o jardim de doze hectares por trás da mansão parecia perfeito demais para ser real. Havia bosques, clareiras, lagos e fontes.
Era um jardim de vários estilos, alternando tranquilidade com um tumulto colorido. Um jardim bem-cuidado, cada folha de grama cortada com precisão, os cantos das cercas aparados com lâmina.
Sem chapéu, sem luvas, e tomada por uma súbita sensação de otimismo, Annabelle respirou fundo o ar do campo. Contornou as extremidades dos jardins na parte de trás da mansão e seguiu por uma trilha de cascalho situada entre canteiros de papoulas e gerânios. A atmosfera logo ficou densa com o perfume de flores, quando o caminho encontrou uma parede de pedra coberta com rosas brancas e cor-de-rosa.
Andando mais lentamente, Annabelle atravessou um pomar de pereiras antigas, esculpido por décadas em formas fantásticas. Mais longe, um dossel de bétulas dava em um bosque, que parecia derreter pela floresta. O caminho de cascalho terminava em um pequeno círculo, onde uma mesa de pedra fora disposta. Aproximando-se, Annabelle viu os topos de duas velas derretidas que haviam sido queimadas diretamente sobre a superfície da pedra. Sorriu um pouco melancólica, percebendo que a privacidade da clareira devia ter sido o cenário perfeito para alguns interlúdios românticos.
Acostumados com o ambiente de sonho a seu redor, cinco patos brancos gordos andavam em fila por todo o círculo de cascalho, seguindo em direção a uma lagoa do outro lado do jardim.
Parecia que tinham se acostumado havia muito tempo com a multidão de visitantes em Stony Cross Park, pois ignoraram Annabelle completamente quando passaram. Grasnavam alto na expectativa de atingir a lagoa artificial, e sua caminhada era tão cômica e animada que Annabelle não pôde deixar de rir.
Antes da sua diversão desaparecer, ela ouviu o ruído de passos pesados sobre o cascalho. Era um homem, que evidentemente voltava de um passeio na floresta. Ele ergueu a cabeça para olhá-la com uma expressão detida, o olhar sombrio encontrando o dela.
Annabelle congelou.
Simon Hunt, pensou a moça, chocada e sem palavras por vê-lo ali em Stony Cross. Ela sempre o associara à vida da cidade, geralmente o via em lugares fechados, à noite, confinado por paredes, janelas e gravatas engomadas. No entanto, nestes ambientes naturais à luz do dia, ele aparentava ser uma pessoa completamente diferente. Os ombros largos, incompatíveis com o corte estreito das roupas noturnas, pareciam bem apropriados para o tecido áspero de um casaco de caça e para a camisa que tinha sido deixada aberta no pescoço, sem gravata em qualquer lugar à vista. Ele estava mais bronzeado do que o normal, a pele reluzindo uma cor de âmbar devido ao tempo que passara ao ar livre. O sol resvalou em seu cabelo cortado, fazendo brilhar os grossos cachos que não eram tão pretos, mas de um tom castanho intenso. Seus traços, finamente delineados pela luz solar, eram firmes, proeminentes e marcantes. Os poucos toques de suavidade em seu rosto – os grossos cílios escuros, a curva exuberante do lábio inferior – eram as características mais intrigantes do seu aspecto intransigente.
Hunt e Annabelle se encararam em silêncio, como se alguém tivesse colocado uma questão que nenhum deles sabia como responder.
O momento prolongou-se desconfortavelmente, até que Simon Hunt enfim rompeu o silêncio.
– Um som bonito aquele – disse suavemente.
Annabelle se esforçou para encontrar a própria voz.
– Qual? – perguntou ela.
– O da sua risada.
Annabelle sentiu uma leve pontada na barriga, mas não era nem de dor nem de prazer. Era uma sensação diferente de qualquer coisa que tinha experimentado antes. Inconscientemente, ela pôs a mão sobre o ponto logo abaixo das costelas. O olhar de Hunt se dirigiu no mesmo instante para a mão dela antes de se voltar aos poucos para o seu rosto. Ela se moveu para mais perto da mesa de pedra, encurtando um pouco a distância entre eles.
– Não esperava vê-la aqui. – O olhar dele a percorreu de um modo minuciosamente desconcertante. – Mas é claro, é o lugar ideal para uma mulher na sua situação.
Annabelle apertou os olhos.
– Na minha situação?
– Tentando fisgar um marido – esclareceu ele.
Ela respondeu com um olhar arrogante.
– Não estou tentando “fisgar” ninguém, Sr. Hunt.
– Jogando a isca – continuou ele –, ajustando o gancho e apanhando sua presa até que ela se encontre ofegante no convés.
A boca de Annabelle se fechou abruptamente.
– Você pode divagar à vontade, Sr. Hunt, eu não tenho nenhuma intenção de separá-lo de sua preciosa liberdade. Você é o último da lista.
– Que lista? – Hunt contemplou-a no silêncio tenso que se seguiu, trabalhando a seu favor. –
Ah! Você de fato fez uma lista de potenciais maridos? – Ele parecia estar se divertindo. – É um alívio saber que não estou na corrida, posto que já resolvi evitar a qualquer custo ficar preso em um casamento. Mas não consigo deixar de me perguntar... Quem está no topo da lista?
Annabelle se recusou a responder. Mesmo estando muito incomodada com a própria tendência de se agitar, não conseguiu se segurar, tocando os tocos de velas e raspando suas unhas neles.
– Westcliff, provavelmente – supôs Hunt.
Annabelle fez um som de desdém, meio sentada na mesa. A superfície de pedra envelhecida estava aquecida pelo sol e brilhava suavemente.
– Claro que não. Não me casaria com o conde nem se ele caísse de joelhos e me implorasse.
Hunt deu uma gargalhada diante da mentira descarada.
– Um lorde com a ascendência e a fortuna que ele tem? Nada iria parar você. – Ele se sentou de modo casual no lado oposto da mesa, e Annabelle se preparou para não se intimidar perante a sua aproximação. Normalmente, numa conversa entre um cavalheiro e uma senhorita ficava subentendido que havia certas coisas que o cavalheiro nunca faria... Ele não podia constrangê-la nem insultá-la, tampouco tirar proveito de alguma forma. No entanto, com Simon Hunt não havia tais garantias.
– Por que está aqui? – perguntou ela.
– Sou amigo de Westcliff – disse ele abertamente.
Annabelle era incapaz de imaginar o conde chamando alguém como Hunt de amigo.
– Por que ele se aproximaria de você? E não tente alegar que têm algo em comum com ele, pois são tão diferentes como a água e o vinho.
– Acontece que o conde e eu temos alguns interesses em comum. Nós dois gostamos de caçar e compartilhamos um número notável de crenças políticas. Diferentemente da maioria dos colegas, Westcliff não se permite estar acorrentado pelas restrições da vida aristocrática.
– Santo Deus – ironizou Annabelle –, você parece ver a nobreza como uma prisão.
– Para falar a verdade, eu vejo.
– Então, mal posso esperar para me encarcerar e jogar as chaves fora.
Isso fez com que Hunt desse uma risada.
– Você provavelmente faria muito bem o papel de esposa de um nobre.
Reconhecendo que o tom de voz dele estava longe da cortesia, Annabelle franziu a testa para Hunt.
– Se você não é assim tão chegado à nobreza, gostaria de saber por que passa tanto tempo entre eles.
Os olhos dele brilharam maliciosamente.
– Eles têm suas utilidades. E não é que eu não goste deles, eu só não tenho nenhum desejo de ser um deles. Caso você não tenha notado, a nobreza, ou pelo menos a forma de vida que eles conhecem até agora, está morrendo.
Annabelle reagiu com os olhos arregalados, verdadeiramente chocada com a declaração.
– O que você quer dizer?
– A maioria dos nobres está perdendo suas fortunas, vejo-os dividindo e perdendo toda vez que o crescente número de parentes necessita de apoio... E há também a transformação da economia com a qual eles têm que lidar. O governo do grande proprietário de terras está rapidamente chegando ao fim. Apenas homens como Westcliff que estão abertos a novas formas de fazer as coisas vão resistir à mudança.
– Com a sua ajuda inestimável, é claro – disse Annabelle.
– Decerto que sim – respondeu Hunt com uma satisfação que fez com que ela não pudesse deixar de rir.
– Alguma vez já pensou em fazer algo de modo humilde, Sr. Hunt? Apenas por uma questão de educação?
– Eu não acredito em falsa modéstia.
– As pessoas iriam gostar mais de você se fizesse.
– Você gostaria?
Annabelle cravou as unhas na cera de cor pastel e lançou um rápido olhar para Hunt a fim de avaliar o grau de ironia em seus olhos. Para espanto dela, não havia nem sinal. Ele parecia seriamente interessado na resposta. Enquanto ele a observava com atenção, ela sentiu o desconfortável rubor tomar conta do seu rosto. Ela não estava nem um pouco à vontade nesta situação, conversando a sós com Simon Hunt, enquanto ele descansava a seu lado como um pirata bisbilhoteiro e preguiçoso. O olhar de Annabelle se dirigiu para a grande mão que ele tinha apoiado na mesa, os dedos longos e limpos bronzeados pelo sol, com unhas cortadas tão curtas que mal se viam as partes brancas.
– “Gostar”, diria que é um pouco demais – disse Annabelle, afrouxando a pressão mordaz com que apertava a vela. Quanto mais tentava controlar o rubor, pior ficava, até que todo o seu rosto estava vermelho. – Acho que eu poderia tolerar a sua companhia mais facilmente se você tentasse se comportar como um cavalheiro.
– Por exemplo?
– Para começar... O jeito com que você gosta de corrigir as pessoas...
– A honestidade não é uma virtude?
– Sim... Mas não contribui para ser a melhor das conversas! – Ignorando sua risada baixa, ela continuou: – E a maneira com que você fala tão abertamente sobre dinheiro é vulgar, sobretudo para indivíduos dos círculos mais elevados. As pessoas educadas fingem que não se preocupam com dinheiro, ou a forma de ganhá-lo ou investi-lo, ou qualquer uma das outras coisas sobre as quais você gosta de discutir.
– Eu nunca entendi por que a busca por riqueza deve ser vista com tamanho desdém.
– Talvez porque essa busca seja acompanhada de tantos vícios... A ganância, o egoísmo, a falsidade...
– Esses não são os meus defeitos.
Annabelle levantou as sobrancelhas.
– O quê?
Sorrindo, Hunt balançou a cabeça devagar, a luz do sol brilhando nos cabelos negros.
– Se eu fosse ganancioso e egoísta, manteria a maior parte dos lucros dos meus negócios. No entanto, meus parceiros vão lhe dizer que eles foram muito bem recompensados por seus investimentos. E meus funcionários são bem pagos, acima dos padrões. Quanto a ser falso, acho que é bastante óbvio que sofro exatamente do oposto. Eu sou sincero, o que é quase imperdoável na sociedade civilizada.
Por alguma razão, Annabelle não podia deixar de sorrir também para o canalha mal-educado.
Afastou-se da mesa e espanou sua saia.
– Não vou mais perder o meu tempo dizendo a você como ser educado, quando é perfeitamente óbvio que não deseja ser.
– Seu tempo não foi desperdiçado – disse ele, indo até ela. – Eu vou levar em consideração a ideia de mudar minhas abordagens.
– Não se preocupe – comentou ela, com um sorriso persistente nos lábios. – Você é uma causa perdida, receio. Agora, se me der licença, vou continuar minha caminhada pelo jardim.
Tenha uma boa tarde, Sr. Hunt.
– Deixe-me acompanhá-la – disse ele suavemente. – Você pode me ensinar um pouco mais.
Vou até escutar o que tem a dizer.
Ela torceu o nariz para ele descaradamente.
– Não, você não vai. – Ela começou a andar no caminho de cascalho, ciente do olhar de Hunt sobre ela, até que desapareceu no pomar de peras.
CAPÍTULO 6
Pouco antes do jantar na primeira noite da festa, Annabelle, Lillian e Daisy se encontraram no andar de baixo na sala de recepção, uma área espaçosa com conjuntos de mesas e cadeiras, onde muitos convidados tinham escolhido se reunir.
– Eu deveria saber que o vestido ficaria mil vezes melhor em você do que em mim –
comentou Lillian Bowman alegremente, abraçando Annabelle e segurando-a nos braços enquanto olhava para ela. – Ah, que tortura ser amiga de alguém tão encantadora.
Annabelle usava outro de seus vestidos novos, um de seda amarela com saia esvoaçante de tule com babados rentes uns aos outros nos quais se encontravam apanhados bem miudinhos de violetas de seda. O cabelo estava preso para trás em uma trança complexa.
– Eu tenho muitos defeitos – disse Annabelle a Lillian com um sorriso.
– Sério? Quais?
Annabelle sorriu.
– Dificilmente admitirei quais são se ainda não os percebeu.
– Lillian conta para quem quiser ouvir os defeitos dela – gracejou Daisy, com os olhos castanhos brilhando. – Ela se orgulha deles.
– Eu tenho mesmo um temperamento terrível – reconheceu Lillian presunçosamente. – E posso xingar como um marinheiro.
– Quem ensinou você a fazer isso? – perguntou Annabelle.
– A minha avó. Ela era lavadeira. E meu avô era o fabricante de sabão de quem ela comprava os suprimentos de que precisava. Como ela trabalhava perto das docas, a maioria dos clientes dela eram marinheiros e estivadores, que a ensinaram palavras tão vulgares que deixariam você de cabelo em pé se as ouvisse.
Annabelle soltou uma gargalhada. Estava encantada com o espírito travesso das duas meninas, diferentes de qualquer pessoa que ela tivesse conhecido antes. Infelizmente, era difícil imaginar Lillian ou Daisy sendo felizes como esposas de um nobre. A maioria dos cavalheiros da aristocracia queria se casar com uma menina que fosse delicada, modesta e possuísse características dignas da realeza. O tipo de mulher cujo único objetivo era fazer do marido o centro da sua atenção e admiração. No entanto, desfrutando da companhia das Bowmans como vinha fazendo, Annabelle pensou que seria uma pena para qualquer uma delas ter que reprimir a irreverência que fazia com que fossem assim tão divertidas.
De repente, ela avistou Evie entrando na sala com a relutância de um rato que fora jogado dentro de um saco de gatos. O rosto de Evie relaxou quando viu Annabelle e as Bowmans.
Murmurando algo para a tia de aparência austera, dirigiu-se até elas com um sorriso.
– Evie – gritou Daisy alegremente, começando a correr em direção à garota. Annabelle pegou o braço enluvado dela e sussurrou:
– Espere! Se você chamar a atenção para Evie, ela provavelmente vai desmaiar de vergonha.
Obediente, Daisy parou e deu um sorriso envergonhado.
– Você está certa. Sou uma verdadeira selvagem.
– Não acho não, querida – confortou-a Lillian.
– Obrigada – respondeu Daisy agradavelmente surpreendida.
– Você é só um pouco selvagem – acrescentou a irmã mais velha.
Contendo uma gargalhada, Annabelle passou o braço pela cintura fina de Evie.
– Você está um encanto esta noite – elogiou.
Evie tinha o cabelo preso no alto da cabeça formando uma cascata de cachos ruivos reluzentes circundados por presilhas de pérolas. As muitas sardas douradas ao redor do nariz só faziam aumentar seu charme, era como se a natureza tivesse sucumbido a um impulso de borrifar umas gotas de luz do sol sobre ela.
A moça se protegeu no abraço de Annabelle como se precisasse de conforto.
– Tia Flo-Florence disse que estou parecendo uma tocha fla-fla-mejante com o cabelo desse jeito – disse ela.
Daisy franziu a testa ao ouvir aquilo.
– Sua tia não devia dizer uma coisa dessas. Afinal, ela parece um duende.
– Daisy, shhh – censurou Lillian.
Annabelle manteve o braço em volta da cintura de Evie, enquanto pensava que, segundo o que a amiga tinha contado, era evidente que a tia Florence se esforçava para destruir qualquer resquício de confiança que a moça pudesse ter em si mesma. Depois da morte prematura da mãe de Evie, a família acolheu a pobre menina, mas todos esses anos de críticas que ela precisou aguentar até então destruíram por completo sua autoestima.
Evie fitou as irmãs Bowmans com um sorriso um tanto divertido.
– Ela não é um du-duende. Sempre achei que ela pa-parecia mais um troll.
Annabelle riu deliciada desse comentário jocoso.
– Digam-me uma coisa – pediu –, alguma de vocês por acaso viu o lorde Kendall? Soube que ele é um dos poucos solteiros presentes. E, afora Westcliff, o único a possuir um título.
– A competição pelo Kendall vai ser pesada – observou Lillian. – Felizmente, Daisy e eu bolamos um plano para conseguir levar um cavalheiro inocente até o altar – concluiu, fazendo um gesto para que as outras se aproximassem.
– Tenho até medo de perguntar – disse Annabelle –, mas como planejam fazer isso?
– Você vai aliciá-lo para que fique em uma situação comprometedora. Nesse momento nós três passamos propositalmente por perto e “pegaremos” vocês juntos. Então, o cavalheiro será obrigado a pedir sua mão em casamento para manter sua honra.
– É genial, não acha? – perguntou Daisy.
Evie lançou um olhar de incerteza para Annabelle.
– É um pouco di-dissimulado, não?
– Um pouco?! – exclamou Annabelle. – Mas temo não conseguir pensar em nada melhor. E você?
Evie fez que não com a cabeça.
– Não – admitiu. – A pergunta que faço é se estamos tão de-desesperadas para encontrar um marido a ponto de empregar qualquer método, seja ele justo ou não.
– Eu estou – retrucou Annabelle sem hesitar.
– Nós também – acrescentou Daisy alegremente.
Evie olhava para as três ainda com ar de incerteza.
– Não posso deixar todos os meus escrúpulos de lado. Quer dizer, não sei se co-conseguiria suportar enganar um homem para que fizesse uma coisa que ele...
– Evie – interrompeu-a Lillian de modo impaciente –, os homens esperam ser enganados nessas questões. São mais felizes dessa forma. Se nos comportarmos de maneira honesta, toda essa história de casamento seria demasiadamente inquietante e nenhum deles iria querer se casar.
Annabelle ficou olhando para a moça americana fingindo estar chocada.
– Você é cruel – disse por fim.
Lillian deu um sorriso terno.
– Herdei isso da minha família. Os Bowmans são cruéis por natureza. Embora também possamos ser diabólicos quando a ocasião assim nos exige.
Rindo, Annabelle se voltou para Evie, que as fitava com uma expressão desconcertada.
– Evie – principiou com doçura –, até hoje sempre tentei fazer as coisas da forma correta.
Mas não surtiu grandes resultados. Portanto, de agora em diante estou disposta a experimentar um método diferente... Você não?
Apesar de não parecer muito convencida, Evie se rendeu assentindo resignada.
– É isso aí – disse Annabelle encorajando-a.
Enquanto conversavam, pôde-se perceber uma pequena agitação dos convidados quando lorde Westcliff surgiu. Parecendo inteiramente confortável em sua posição de organizador, começou a reunir cavalheiros e damas em pares para que seguissem até a sala de jantar. Apesar de não ser o homem mais alto no ambiente, Westcliff emanava um magnetismo impossível de ser ignorado. Annabelle se perguntou por que algumas pessoas possuíam essa qualidade, algo que não dava para definir mas que conferia a cada gesto e a cada palavra dita um sentido a mais. Ao olhar para Lillian, ela percebeu que a americana também tinha notado esse detalhe.
– Eis um homem seguro de si – comentou Lillian secamente. – Gostaria de saber o que, se possível for, o faria voltar atrás de uma decisão.
– Não consigo imaginar – disse Annabelle. – Mas gostaria de estar presente se um dia acontecesse.
Evie se aproximou um pouco mais e lhe deu um tapinha no braço.
– Ali está o lorde Ke-Kendall, lá no canto.
– Como sabe que é ele?
– Basta ver que está cercado por uma dezena de mulheres solteiras que mais parecem uns tu-tubarões em volta da presa.
– Bem observado – disse Annabelle, fitando o rapaz e seu sufocante séquito.
William, lorde Kendall, parecia atordoado pela quantidade de atenção que estava recebendo das mulheres. Tinha o cabelo louro, compleição delgada e o rosto fino adornado por um par de óculos polidos. Os reflexos das lentes podiam ser vistos à medida que seu olhar perplexo se movia de um rosto a outro. O interesse impetuoso demonstrado por aquelas meninas por um sujeito tímido como Kendall era prova cabal de que não havia melhor afrodisíaco no final da temporada do que ser solteiro. Embora não houvesse despertado o menor interesse por parte dessas mesmas jovens em janeiro, em junho Kendall alcançara um encanto irresistível.
– Parece um homem gentil – comentou Annabelle.
– Pois eu acho que ele parece ser assustadiço – replicou Lillian. – Se eu estivesse em seu lugar, me mostraria como a mais tímida e indefesa donzela quando o encontrasse.
Annabelle lançou-lhe um olhar cheio de ironia.
– Parecer indefesa nunca foi o meu forte. Posso tentar essa história de timidez, mas não garanto nada.
– Não acredito que tenha algum problema em desviar a atenção de Kendall dessas mocinhas e atraí-la para si – prosseguiu Lillian, confiante. – Depois do jantar, quando as damas e os cavalheiros voltarem para a sala para tomar chá e conversar, acharemos uma maneira de apresentar vocês dois.
– Como eu deveria... – principiou Annabelle, mas se deteve quando sentiu uma cosquinha na nuca, como se alguém tivesse roçado uma pena em sua pele. Querendo saber o que teria causado tal sensação, ergueu a mão para levá-la ao pescoço e, de repente, percebeu o olhar fixo que Simon Hunt lhe dirigia.
Hunt estava do outro lado do cômodo, com um ombro apoiado displicentemente em uma pilastra, acompanhado por três cavalheiros que pareciam entretidos numa conversa animada.
Esse ar relaxado era nitidamente falso, já que o olhar dele exibia uma concentração felina, como um gato pronto para atacar. Era evidente que tinha notado o interesse dela por Kendall.
Que inferno, pensou envergonhada e deliberadamente virou-se de costas para ele. Não queria deixar que Hunt lhe causasse problemas.
– Vocês perceberam que o Sr. Hunt está aqui? – perguntou baixinho às amigas e viu que elas ficaram de olhos arregalados.
– O seu Sr. Hunt? – Lillian soltou enquanto Daisy perscrutava a sala tentando encontrá-lo.
– Ele não é meu senhor! – reclamou Annabelle, fazendo uma cara engraçada. – Mas sim, ele está aqui, de pé do outro lado da sala. Na verdade, eu o vi mais cedo hoje. Ele garantiu que era amigo do conde. – A moça franziu a testa e prosseguiu, com uma previsão de desagrado. – O Sr.
Hunt fará de tudo para arruinar nossos planos.
– Ele seria tão e-e-egoísta a ponto de impedir que você se case? – indagou Evie, perplexa. –
Com a intenção de fazer de você a sua... sua...
– Amante – disse Annabelle, completando a frase pela amiga. – É difícil descartar essa possibilidade. O Sr. Hunt tem a reputação de não se deixar deter por nada que o impeça de conseguir o que deseja.
– Pode ser verdade – comentou Lillian, com a boca contraída pela determinação. – Mas ele não vai conseguir fazer isso com você. Prometo.
A ceia teve uma magnífica apresentação, com gigantescas sopeiras de prata e bandejas circulando em uma interminável procissão ao redor das três grandes mesas dispostas na sala de jantar. Annabelle custava a acreditar que os convidados ceassem toda noite daquele jeito, no entanto o cavalheiro à sua esquerda – o pároco – lhe assegurou que aquilo era comum na mesa de Westcliff.
– O conde e a família primam pelos bailes e jantares que oferecem – observou. – Lorde Westcliff é o anfitrião mais diligente da nobreza.
Annabelle não estava inclinada a discutir. Há muito tempo não lhe serviam uma comida tão requintada. Impossível comparar esse banquete com os pratos mornos servidos nos saraus e festas de Londres. Nos últimos meses, os Peytons não puderam se permitir muito mais do que pão, bacon e sopa, acompanhados esporadicamente de um linguado frito ou um carneiro cozido.
Pela primeira vez estava feliz por não ter se sentado ao lado de um orador entusiasmado, o que lhe permitiu ficar longos períodos em silêncio durante os quais podia comer quanto quisesse. E
como os criados não paravam de servir pratos novos e apetitosos aos convidados, ninguém parecia notar seu apetite excessivo, tão pouco apropriado para uma dama.
Ela consumiu com avidez uma tigela de sopa feita com champanhe e Camembert, prato que foi seguido por tiras de vitela cobertas com molho de ervas finas, guarnecidas com um suave purê de legumes. Um peixe assado envolto em papel exalava um vapor aromático quando aberto.
Batatas coradas cortadas em pedaços bem pequenos foram servidas sobre um leito de agrião. E, o mais delicioso de tudo, creme de frutas servido na casca de laranja oca.
Annabelle estava tão absorta com a comida que alguns minutos se passaram até que percebesse Simon Hunt sentado perto da cabeceira da mesa, onde ficava lorde Westcliff.
Levando a taça de vinho diluído aos lábios, ela olhou discretamente naquela direção. Como de costume, Hunt estava muito bem-vestido, com paletó preto e um colete de riscas de giz, cujo tecido de seda reluzia discretamente. A pele bronzeada contrastava acentuadamente com o linho branco da camisa que se via na altura do pescoço, e o nó da gravata era tão preciso quanto a lâmina de uma espada. O cabelo farto e escuro talvez precisasse de um pouco de brilhantina –
uma mecha comprida já lhe caía sobre a testa. Esse traço rebelde incomodava Annabelle por algum motivo. Sentiu vontade de ir lá para afastar o cabelo do rosto dele.
Não lhe passou despercebido que as moças sentadas ao lado de Hunt competiam para atrair a atenção dele. Annabelle já havia notado em outras ocasiões que as mulheres pareciam considerá-lo bastante atraente. E sabia exatamente o motivo disso. Era a combinação do charme pervertido, da fria inteligência e de uma notória licenciosidade. Hunt parecia ser um homem que havia visitado a cama de muitas mulheres e sabia bem o que fazer nela. Semelhante virtude deveria torná-lo menos atraente, mas não. Annabelle no entanto começava a descobrir que havia uma grande diferença entre o que era bom para alguém e o que se desejava de verdade. E embora preferisse negá-lo, Hunt foi o único homem por quem se sentiu bastante atraída fisicamente.
Embora, de certo modo, sempre tivesse sido protegida, Annabelle sabia de alguns fatos básicos da vida. O conhecimento escasso adquirido vinha de menções veladas que escutara e que fora somando até formar um quadro completo. Já tinha sido beijada por alguns homens diferentes que haviam demonstrado um interesse fugaz por ela nos últimos quatro anos. Mas nenhum desses beijos, não importando quão romântico fosse o cenário ou quão bonito fosse o cavalheiro em questão, provocara nela o que Simon Hunt tinha provocado.
Por mais que tentasse, Annabelle nunca conseguiu esquecer aquele momento já tão distante no teatro panorâmico: a suave e erótica pressão dos lábios dele em sua boca, o prazer irresistível de seu beijo. Gostaria de saber por que havia sido tão diferente com Hunt, mas não tinha para quem perguntar. Falar com Philippa sobre esse assunto estava fora de cogitação, já que não queria confessar que aceitou dinheiro de um estranho para comprar os ingressos. E também não poderia comentar o incidente com as três amigas, que obviamente sabiam tão pouco sobre beijos e homens quanto ela própria.
Quando o olhar de Hunt de repente encontrou o dela, Annabelle ficou perturbada ao se dar conta de que tinha ficado olhando fixo para ele. Olhando fixo e fantasiando. Embora estivessem sentados bem distantes um do outro, pôde perceber a imediata e eletrizante conexão estabelecida entre eles. Hunt ostentava uma expressão extasiada, fazendo com que ela se perguntasse o que ele teria visto que tanto o fascinara. Com intenso rubor, desviou o olhar e espetou o garfo em uma caçarola de alho-poró e cogumelos coberta com lascas de trufas brancas.
Depois do jantar, as damas se retiraram para o salão a fim de tomar chá ou café, ao passo que os cavalheiros permaneceram sentados à mesa para degustar um vinho do porto. Segundo a tradição, os dois grupos depois voltariam a se reunir na sala de estar. Vários grupos de mulheres riam e conversavam animadamente no salão, e ela foi se sentar perto de Evie, Lillian e Daisy.
– Conseguiram sondar algo a respeito do Sr. Kendall? – perguntou Annabelle na esperança de que uma delas tivesse ouvido alguma fofoca na mesa do jantar. – Há alguém em particular por quem ele sinta algum interesse?
– Até agora parece que o terreno está livre – respondeu Lillian.
– Perguntei à minha mãe o que ela sabia sobre Kendall – falou Daisy –, e ela disse que ele dispõe de uma considerável fortuna e não tem dívidas.
– Como ela sabe disso? – indagou Annabelle.
– A pedido dela – explicou Daisy –, nosso pai fez um relatório detalhado de cada nobre apropriado disponível na Inglaterra. E o memorizou. Disse que o pretendente ideal para qualquer uma de nós seria um duque arruinado cujo título garantiria o prestígio social dos Bowmans, enquanto nosso dinheiro asseguraria sua cooperação para a celebração do matrimônio. – Daisy deu um sorriso sarcástico e estendeu a mão para acariciar a irmã mais velha antes de acrescentar:
– Compuseram até uns versinhos para Lillian em Nova York. “Quem com Lillian se casar, um milhão vai herdar.” Esse dito ficou tão popular que foi uma das razões de nossa vinda para Londres. A família ficou parecendo um bando de idiotas ambiciosos.
– E não é o que somos? – retrucou Lillian com ironia.
Daisy revirou os olhos.
– Eu me considero afortunada por termos vindo para cá antes que tivessem tempo de criar uma rima para mim também.
– Pois eu tenho uma: “Se com Daisy se casar, preguiçoso há de ficar.”
Daisy lançou um olhar eloquente para a irmã, que sorriu.
– Não tenha medo – prosseguiu Lillian –, vamos acabar conseguindo nos infiltrar na sociedade londrina e nos casaremos com o Sr. Grandevedor e o Sr. Bolsorroto para enfim assumir nosso posto de direito como senhoras do casarão.
Annabelle balançou a cabeça e esboçou um sorriso compreensivo, enquanto Evie se afastou com um murmúrio, provavelmente para atender suas necessidades particulares. Annabelle quase sentiu pena das Bowmans, pois começava a se tornar evidente que as chances de se casarem por amor não eram muito maiores do que as suas.
– É o desejo de seus pais que vocês se casem com alguém que lhes dê um título? –
perguntou. – Qual a opinião do seu pai a respeito disso?
Lillian deu de ombros mostrando indiferença.
– Desde que me entendo por gente, nosso pai nunca teve uma opinião sobre qualquer coisa em relação a nós. Tudo o que quer é que o deixemos em paz para que possa ganhar mais dinheiro. Sempre que lhe escrevemos, ele ignora o conteúdo da carta, a não ser que estejamos pedindo para sacar mais fundos do banco. Nesse caso, responde com uma única linha:
“Permissão concedida.”
Daisy parecia compartilhar do cinismo da irmã.
– Acho que nosso pai fica satisfeito com as intenções casadoiras de nossa mãe, pois isso a mantém ocupada o bastante para não incomodá-lo.
– Meu Deus – murmurou Annabelle. – E ele nunca reclama quando pedem mais dinheiro?
– Ah, nunca – respondeu Lillian, rindo da evidente inveja da amiga. – Somos terrivelmente ricas, Annabelle, e tenho três irmãos mais velhos, todos solteiros. Não quer considerar a possibilidade de se casar com um deles? Se quiser, posso fazer com que um dos nossos irmãos cruze o Atlântico para que você dê uma examinada nele.
– Tentador, mas não, obrigada – respondeu Annabelle. – Não quero morar em Nova York.
Prefiro ser esposa de um nobre.
– Acha mesmo tão maravilhoso ser esposa de um nobre? – indagou Daisy sem rodeios. –
Morar em um desses casarões cheios de correntes de ar e com encanamento ruim, ter que aprender essa lista interminável de regras sobre a maneira certa de se fazer tudo...
– Você não é ninguém se não for casada com um nobre – assegurou Annabelle. – Na Inglaterra, a nobreza é tudo. Ela determina como os outros vão tratá-la, as escolas que seus filhos irão frequentar, os lugares a que será convidada... Determina todos os aspectos da sua vida.
– Não sei... – principiou Daisy sendo interrompida pelo retorno precipitado de Evie.
Embora Evie não demonstrasse sinais aparentes de que estivesse com pressa, os olhos azuis apresentavam um brilho de urgência, e o entusiasmo havia corado suas bochechas. Sentando-se na cadeira que ocupara antes, inclinou-se para Annabelle e sussurrou gaguejando:
– Ti-tive que voltar para lhe co-contar uma coisa... Ele está sozinho!
– Quem? – perguntou baixinho. – Quem está sozinho?
– O Sr. Kendal! Eu o vi no te-te-terraço dos fundos. Estava sentado sozinho diante de uma das mesas.
Lillian franziu o cenho.
– Talvez esteja esperando alguém. E se estiver, não vai ser muito favorável para Annabelle que se aproxime dele como um rinoceronte no cio.
– Será que você poderia usar uma metáfora mais lisonjeira, querida? – perguntou Annabelle com suavidade, fazendo com que Lillian lhe desse um sorriso.
– Desculpe-me. Só tente agir com cautela.
– Anotado – disse Annabelle também com um sorriso, levantando-se e arrumando a saia com destreza. – Vou investigar a situação. Bom trabalho, Evie.
– Boa sorte – respondeu Evie, e todas cruzaram os dedos enquanto a observavam sair do salão.
O coração de Annabelle disparou à medida que caminhava em direção à casa. Ela sabia perfeitamente que estava passando por cima de um intricado labirinto de regras sociais. Uma dama nunca devia procurar deliberadamente a companhia de um cavalheiro. Mas, se por acaso se cruzassem ou acontecesse de estarem dividindo um mesmo sofá ou mesa, poderiam trocar alguns galanteios. Não deviam ficar sozinhos, a menos que fosse em um passeio a cavalo ou em carruagem aberta. Se acontecesse de uma dama encontrar um cavalheiro nos jardins, ela devia se assegurar de que a situação não parecesse comprometedora de modo algum.
A menos, claro, que ela queira se comprometer.
Assim que se aproximou da longa fila de portas francesas que se abriam para o amplo terraço, Annabelle avistou sua presa. Como Evie tinha descrito, lorde Kendall estava sentado diante de uma mesa redonda, recostado na cadeira com uma perna esticada. Parecia estar aproveitando uma trégua momentânea da atmosfera opressiva da casa.
Em silêncio, Annabelle caminhou até a porta mais próxima e passou por ela. O ar tinha um leve aroma de urzes e murtas, e se ouvia o ruído relaxante do rio que corria além dos jardins.
Mantendo a cabeça baixa, Annabelle esfregou as têmporas com os dedos, como se estivesse como uma dor de cabeça lancinante. Quando estava a três metros de distância da mesa de Kendall, olhou para cima e obrigou-se a dar um pulinho como se tivesse surpresa de vê-lo ali.
– Ah! – exclamou. Não era difícil aparentar estar sem fôlego. Estava nervosa por saber quão importante seria causar a impressão certa. – Não sabia que havia alguém aqui...
Kendall se levantou, com os óculos brilhando à luz da luminária do terraço. Sua silhueta era tão delgada, quase insubstancial. O paletó ficava com os ombros caídos. Apesar de ser três centímetros mais alto do que Annabelle, ela não se surpreenderia se descobrissem que tinham o mesmo peso. O rapaz tinha uma postura a um só tempo tímida e estranhamente inquieta, como a de um cervo prestes a dar um salto e bater em retirada. Olhando para ele, Annabelle tinha que admitir para si mesma que Kendall não era o tipo de homem por quem se sentiria atraída. Mas também não gostava de conservas de arenque. No entanto, se estivesse faminta e alguém lhe oferecesse um pote cheio de conserva de arenque, dificilmente torceria o nariz para ele.
– Olá – disse Kendall, em tom educado e suave, embora um pouco estridente. – Não há por que se assustar. Sou inofensivo, posso lhe assegurar.
– Isso é o que vamos ver – respondeu Annabelle, sorrindo, mas logo contraindo o rosto de novo, como se o esforço tivesse sido doloroso. – Perdoe-me por ter perturbado sua privacidade, Sir. Só vim em busca de um pouco de ar fresco. – E inspirou fundo até seus seios pressionarem levemente o corpete. – A atmosfera lá dentro estava um pouco opressiva, não acha?
Kendall se aproximou com as mãos erguidas como se temesse que ela desmaiasse ali no terraço.
– Posso lhe trazer algo? Um copo d’água?
– Não, obrigada. Uns minutinhos aqui fora e eu me recomponho. – Annabelle se deixou cair graciosamente na cadeira mais próxima. – Se bem que... – Deteve-se tentando parecer sem jeito.
– Não seria bom sermos vistos aqui fora sem outras companhias. Sobretudo porque não fomos apresentados.
O rapaz fez uma pequena reverência.
– Lorde Kendall, a seu dispor.
– Srta. Annabelle Peyton. – Ela olhou para uma cadeira vazia a seu lado. – Sente-se, por favor. Prometo que vou embora assim que estiver com a cabeça mais leve.
Kendall obedeceu cauteloso.
– Não é necessário – disse ele. – Fique o tempo que desejar.
Essa fala foi encorajadora. Pensando nos conselhos de Lillian, Annabelle tomou muito cuidado para fazer seu comentário seguinte. Como Kendall vinha sendo assediado exaustivamente por um bando de mulheres, tinha que achar um jeito de se diferenciar delas.
Fingiu então que era a única que não estava interessada nele.
– Posso imaginar o motivo de ter vindo ficar aqui sozinho – disse ela com um sorriso. – Deve estar desesperado para escapar do assédio de tantas mulheres ansiosas.
Kendall lhe dirigiu um olhar surpreso.
– Para falar a verdade, sim. Devo confessar que nunca estive em uma festa com convidadas assim tão amistosas.
– Espere até o fim do mês – aconselhou ela. – Até lá vão estar tão amistosas que vai precisar de um chicote e uma cadeira para mantê-las afastadas.
– Pelo que percebo, está sugerindo que sou uma espécie de alvo matrimonial – comentou ele secamente, expressando algo que era evidente.
– A única forma de se tornar um alvo ainda mais óbvio seria pintar uns círculos na parte de trás do seu paletó – disse Annabelle fazendo-o rir. – Posso lhe perguntar que outros motivos teria para fugir para o terraço, senhor?
Kendall manteve o sorriso e parecia bem mais relaxado do que no início.
– Temo não conseguir encher mais o meu copo. Há apenas certa quantidade de vinho do porto que estou disposto a beber a fim de socializar.
Annabelle não conhecia nenhum homem que admitisse uma coisa dessas. A maioria dos cavalheiros afirmava sua virilidade mostrando ser capaz de beber uma quantidade de álcool que poderia embriagar um elefante.
– Está passando mal? – perguntou ela, compreensiva.
– Bem enjoado. Sempre me disseram que a tolerância melhora com a prática, mas me parece um objetivo sem muito sentido. E tenho formas melhores de passar o tempo.
– Tais como...
Kendall considerou a questão com muito cuidado.
– Um passeio no campo. Um livro que estimule a mente. – Os olhos dele continham um brilho subitamente cordial. – Uma conversa com uma nova amiga.
– Também gosto dessas atividades.
– Verdade? – Kendall hesitou. Os ruídos do rio e da copa das árvores pareciam sussurrar em meio ao ar. – Talvez queira se juntar a mim em uma caminhada amanhã de manhã. Conheço umas trilhas excelentes nos arredores de Stony Cross.
Annabelle teve dificuldade de reprimir o entusiasmo que sentiu.
– Adoraria – respondeu. – No entanto, preciso perguntar... o que fará com seu séquito?
Kendall sorriu, revelando uma fileira de dentes pequenos e certinhos.
– Não acredito que alguém nos incomode se sairmos bem cedo.
– Normalmente acordo bem cedo mesmo – mentiu ela. – E adoro caminhar.
– Às seis horas então?
– Às seis – repetiu ela, levantando-se. – Tenho que voltar lá para dentro. Em breve minha ausência será notada. Ademais, estou me sentindo muito melhor. Obrigada pelo convite, senhor.
– Permitiu-se lançar um sorriso sedutor. – E por compartilhar o terraço.
Quando voltou para a casa, fechou os olhos por um instante e deixou escapar um sorriso de alívio. Tinha sido uma boa apresentação e fora muito mais fácil atrair o interesse de Kendall do que esperava. Com um pouco de sorte e alguma ajuda das amigas conseguiria fisgar um nobre. E então tudo daria certo.
CAPÍTULO 7
Terminadas as conversações de depois do jantar, a maioria dos convidados começou a se retirar para os seus aposentos. Ao atravessar um dos arcos que davam para o salão, Annabelle viu que as amigas esperavam por ela. Sorriu para aqueles rostos cheios de expectativa e foi com elas para um canto onde poderiam conversar com mais privacidade.
– E aí? – perguntou Lillian.
– Mamãe e eu vamos fazer uma caminhada com lorde Kendall amanhã de manhã – contou Annabelle.
– Sozinhas?
– É, sozinhas – confirmou a moça. – Na verdade, vamos nos encontrar bem cedinho para evitar a companhia da horda de caçadoras de marido.
Se estivessem em um ambiente mais privativo, poderiam ter gritado de alegria. Contentaram-se no entanto em trocar sorrisos triunfantes, enquanto Daisy mexia os pés fazendo uma dancinha da vitória.
– Co-co-como ele é? – indagou Evie.
– Tímido, mas agradável – respondeu Annabelle. – E parece ter senso de humor, algo pelo qual não ousei esperar.
– Isso tudo sem contar os dentes! – exclamou Lillian.
– Você tinha razão em dizer que ele se assustaria fácil – prosseguiu Annabelle. – Estou certa de que Kendall não se sentiria atraído por uma mulher de temperamento forte. Ele é cauteloso, tem voz suave. Estou tentando parecer recatada, embora sinta que muito provavelmente acabarei me sentindo culpada por enganá-lo.
– Todas as mulheres fazem isso nessa fase de cortejo... e os homens também, se querem saber – disse Lillian de um jeito prosaico. – Tentamos ocultar nossos defeitos e dizer coisas que achamos que o outro queira ouvir. Fingimos ser encantadores e bem-humorados e fazemos de conta que os hábitos desagradáveis do outro não nos incomodam. Depois do casamento, a coisa muda de figura.
– Não acho que os homens tenham que fingir como as mulheres – retrucou Annabelle. – Se um homem é corpulento ou tem dentes manchados, ou ainda se é meio estúpido, continua sendo um bom partido, bastando para isso que seja um cavalheiro e tenha algum dinheiro. Das mulheres, no entanto, exige-se que atendam a padrões mais elevados.
– E é por isso que todas nós estamos so-solteironas – sentenciou Evie.
– Não por muito tempo – prometeu Annabelle com um sorriso.
Florence, a tia de Evie, vinha chegando do salão de baile trajando um vestido preto que não combinava com sua tez pálida e a fazia parecer uma bruxa. Havia pouca semelhança entre Evie, com seu rosto redondo, o cabelo ruivo e as sardas, e a tia, uma mulher muito mal-humorada.
– Evangeline – disse bruscamente, dirigindo às meninas um olhar de desaprovação e fazendo um gesto para a sobrinha. – Eu avisei para não desaparecer dessa maneira. Estive procurando você por toda parte durante uns dez minutos pelo menos e não me lembro de tê-la ouvido pedir permissão para encontrar suas amigas. E de todas as moças com quem você poderia se relacionar... – Falando sem parar e irritada, tia Florence foi se encaminhando para a grande escadaria, enquanto Evie, com um suspiro, a seguiu.
Como sabia que as outras a observavam, Evie pôs uma das mãos para trás e acenou com os dedos para se despedir.
– Evie disse que sua família é muito rica – observou Daisy. – Mas também que são todos infelizes, sem tirar nem pôr. Fico me perguntando por quê.
– Dinheiro velho – disse Lillian. – Nosso pai diz que não há nada como uma vida inteira de opulência para deixar alguém consciente do que não possui. – E deu o braço à irmã. – Venha, querida, antes que nossa mãe se dê conta de que desaparecemos. – Voltou-se para Annabelle e, com um sorriso, perguntou: – Quer caminhar conosco, Annabelle?
– Não, obrigada. Minha mãe virá me encontrar aos pés da escadaria daqui a pouco.
– Boa noite, então. – Os olhos escuros de Lillian reluziam quando ela acrescentou: – Quando acordarmos amanhã, já terá saído para passear com Kendall. Aguardo um relatório completo no café da manhã.
Annabelle se despediu delas com um sorriso e ficou vendo as duas se afastarem. Depois, foi bem devagar até a escadaria e se deteve em uma sombra projetada pela base da estrutura curva.
Parecia que Philippa, como de costume, se demorava demasiadamente a encerrar uma conversa na sala de estar. Annabelle, porém, não se importou de esperar. A cabeça estava cheia de ideias que iam dos assuntos que poderiam despertar o interesse de Kendall na caminhada do dia seguinte até a forma de assegurar sua atenção apesar das muitas moças que o perseguiriam pelas próximas semanas.
Se fosse inteligente o bastante para fazer com que lorde Kendall gostasse dela, e se suas amigas tivessem êxito armando o plano para fisgá-lo, como seria a sensação de ser esposa de um homem assim? Estava certa de que instintivamente jamais poderia se apaixonar por alguém como Kendall, mas jurou a si mesma que faria de tudo para ser uma boa esposa para ele. O mais provável é que com o tempo se afeiçoasse a ele. O casamento com Kendall era capaz de se tornar muito agradável. A vida seria confortável e segura e nunca mais haveria necessidade de se preocupar com o fato de ter ou não comida suficiente na mesa. E o mais importante: Jeremy desfrutaria de um bom futuro, e sua mãe não precisaria voltar a suportar as repugnantes atenções de lorde Hodgeham.
Passos pesados de alguém descendo a escada pareciam cada vez mais próximos. Em pé no corrimão, Annabelle olhou para cima, com um ligeiro sorriso no rosto, e então paralisou ao se ver cara a cara com um rosto bolachudo encimado por uma mecha revolta de cabelo grisalho.
Hodgeham? Não podia ser!
Ele chegou ao pé da escada e se postou diante dela fazendo-lhe uma reverência, encarando-a com um olhar insuportavelmente presunçoso. Quando Annabelle fixou o olhar nos olhos azuis e frios de Hodgeham, sentiu a comida revirar no estômago como uma bola cheia de espinhos.
Como ele poderia estar ali? Por que não o vira antes? Pensando na mãe, prestes a se encontrar com ela naquele mesmo local, um ódio ferveu dentro da moça. Aquele homem grosseiro e insolente, que se autoproclamou benfeitor da família e que submetia a mãe dela às suas repugnantes atenções em troca de umas míseras moedas as perseguira no pior momento possível. Não poderia haver tormento pior para Philippa nessa festa do que a presença de Hodgeham. A qualquer instante ele poderia revelar a relação que havia entre eles, arruinando-as facilmente. E elas não tinham nenhum meio de obrigá-lo a manter o segredo.
– Ora, ora, Srta. Peyton – murmurou Hodgeham, exibindo um sorriso de malévola satisfação no rosto rechonchudo. – Que grata coincidência você ser a primeira convidada que eu encontro em Stony Cross Park.
Annabelle sentiu calafrios nauseantes. Ainda assim, obrigou-se a sustentar o olhar. Tratou de abandonar toda e qualquer expressão de emoção, mas Hodgeham deu um sorriso perverso, como se tivesse consciência do pânico hostil que ela experimentava.
– Depois dos incômodos da viagem de Londres até aqui – prosseguiu ele –, decidi jantar em meus aposentos. Sinto muito não termos nos encontrado antes. Seja como for, haverá muitas oportunidades para isso nas próximas semanas. Suponho que sua encantadora mãe esteja aqui para acompanhá-la, não é?
Annabelle teria dado qualquer coisa para poder dizer “não”. Seu coração batia tão forte que parecia sugar o ar dos pulmões. Lutou para pensar em algo a dizer apesar do incessante martelar no peito.
– Não se aproxime dela – rebateu, assustada com a firmeza da própria voz. – Nem se atreva a dirigir-lhe a palavra.
– Ora, Srta. Peyton, não vê que assim está me ferindo? Logo eu, que tenho sido o único amigo com quem sua família está podendo contar nesses tempos difíceis, quando todos os outros abandonaram vocês...
Ela o encarou fixamente, sem pestanejar, sem se mover, como se estivesse diante de uma cobra venenosa prestes a atacar.
– É uma feliz coincidência estarmos participando de uma mesma festa, não é verdade? –
indagou Hodgeham, dando um risinho. Com o movimento da cabeça seu penteado se desfez em parte, e uma mecha emplastrada lhe caiu sobre a testa. Ele a ajeitou com uma das mãos roliças e prosseguiu: – É, a sorte realmente sorriu para mim com essa possibilidade de estar próximo de uma mulher que tenho em tão alta conta.
– Não haverá qualquer proximidade entre o senhor e a minha mãe – afirmou Annabelle, cerrando o punho com força para evitar a vontade de socar aquela cara oleosa. – Ouça o que digo, senhor, se incomodá-la de alguma forma...
– Querida mocinha, pensou que eu me referia à Philippa? Você é demasiado modesta. Estou me referindo a você, é claro. Há muito tempo que a admiro. Na verdade, estava ansioso por demonstrar a natureza de meus sentimentos por você, Annabelle. Agora pelo visto o destino nos proporcionou a ocasião perfeita de nos conhecermos melhor.
– Prefiro dormir em um antro de cobras – replicou Annabelle com frieza. Mas havia medo em sua voz, e ele sorriu ao percebê-lo.
– No começo você pode protestar, é claro. Moças como você sempre fazem isso. Mas logo vai se decidir pelo mais sensato... o mais sábio... e vai descobrir as vantagens de se tornar minha amiga. Posso ser um aliado valioso, minha querida. E se me agradar, eu a recompensarei com generosidade.
Annabelle tentou desesperadamente pensar em um modo de destruir qualquer esperança que ele pudesse ter de torná-la sua amante. O medo de invadir o território de outro homem provavelmente era a única coisa que manteria Hodgeham longe dela. Annabelle se esforçou para esboçar um sorriso de escárnio.
– Por acaso parece que estou precisando de sua suposta amizade? – perguntou ela, brincando com as pregas do elegante vestido novo. – O senhor está equivocado. Já tenho um protetor e ele é muito mais generoso. De modo que é melhor que nos deixe em paz, a minha mãe e eu, ou terá que se ver com ele.
Annabelle viu as mudanças de expressão no rosto de Hodgeham. Da descrença inicial, passando pela fúria e depois por suspeita.
– E quem é ele?
– Por que eu deveria lhe dizer? – perguntou a moça com um sorriso frio. – Prefiro deixá-lo com essa dúvida.
– Está mentindo, sua vadia diabólica!
– Acredite no que quiser – murmurou ela.
As mãos gordas de Hodgeham se fecharam como se ele quisesse segurá-la e sacudi-la até conseguir arrancar uma confissão. Em vez disso, conteve-se e a fitou com o rosto rubro de fúria.
– Isso não vai ficar assim – murmurou ele, a saliva escapando dos lábios carnudos. – De jeito nenhum!
Ele se afastou de modo brusco, muito indignado para se incomodar em mostrar-se minimamente cortês.
Annabelle estava imóvel. Sua fúria tinha dado lugar a uma ansiedade tão grande que chegava até os ossos. O que disse a Hodgeham teria sido o suficiente para mantê-lo a distância? Não, era apenas uma solução temporária. Nos próximos dias ele estaria ali, observando-a de perto, examinando cada palavra ou ato seu para saber se a história de protetor era verdadeira ou falsa. Ehaveria ameaças e ditos mordazes destinados a tirá-la do sério. No entanto, não interessava o que podia acontecer; não poderia deixar que esse homem revelasse o arranjo que tinha com sua mãe.
Isso mataria Philippa, assim como certamente arruinaria as chances de Annabelle conseguir se casar.
Sua mente continuou a repassar esses pensamentos de modo febril, e ela permaneceu imóvel e tensa até que ouviu uma voz suave e quase morreu de susto.
– Interessante. Sobre o que estavam discutindo, você e o Sr. Hodgeham?
Pálida, Annabelle se virou e deu de cara com Simon Hunt, que se aproximara sem fazer barulho, como um felino. Seus ombros bloqueavam a profusão de luzes que vinham do salão.
Com aquele seu incrível autocontrole, Hunt parecia infinitamente mais ameaçador do que Hodgeham.
– O que ouviu? – Annabelle deixou escapar, amaldiçoando-se internamente ao notar o tom defensivo na própria voz.
– Nada – respondeu ele. – Só vi o rosto de vocês dois enquanto falavam. Obviamente estava chateada por algum motivo.
– Não estava chateada. Foi uma má interpretação sua, Sr. Hunt.
Ele balançou a cabeça e a surpreendeu aproximando um dedo para tocar a parte superior de seu braço que não estava coberta pela luva.
– Você fica com algumas manchas quando está com raiva.
Olhando para baixo, Annabelle viu uma mancha rosada, um sinal de que sua pele, como sempre, assumia uma tonalidade desigual quando se alterava.
Um calafrio a percorreu ao sentir o dedo dele deslizando por sua pele e se afastou.
– Está em apuros, Annabelle? – perguntou Hunt em voz baixa.
Ele não tinha o direito de perguntar algo assim com tanta amabilidade, quase como se estivesse preocupado, como se fosse alguém a quem ela pudesse recorrer ou pedir ajuda, como se ela pudesse se permitir algum dia fazer isso.
– Gostaria que eu estivesse, não é? – replicou ela. – Qualquer dificuldade que eu enfrentasse o deixaria em deleite, pois assim poderia me oferecer sua ajuda e tirar proveito da situação.
– De que tipo de ajuda você precisa?
– Do senhor, nenhuma – assegurou ela secamente. – E não use o meu primeiro nome.
Agradeço se me dirigir a palavra a partir de agora de forma apropriada. Ou melhor ainda, não precisa se dirigir a mim de modo algum. – Incapaz de suportar aquele olhar especulativo por nem mais um segundo, afastou-se dele. – Agora, se me dá licença, preciso ir ao encontro de minha mãe.
Abaixando-se para se sentar à cadeira diante do toucador, Philippa contemplou o rosto pálido da filha. Annabelle esperou até que estivessem a salvo na privacidade do quarto para contar à mãe a notícia desastrosa. Ela pareceu levar um minuto inteiro para assimilar a informação de que o homem que mais detestava e temia era um dos convidados em Stony Cross Park. Uma parte de Annabelle esperava ver a mãe cair aos prantos, mas Philippa a surpreendeu ao inclinar a cabeça e olhar para o canto escuro do quarto com um sorriso cansado e resignado. Era um sorriso que Annabelle nunca vira em seu rosto, uma amargura estranha que indicava que não adiantava tentar melhorar a situação, pois o destino tinha invariavelmente o seu caminho traçado.
– Quer ir embora de Stony Cross Park? – perguntou a moça com um sussurro. – Podemos voltar a Londres agora mesmo.
A pergunta pareceu flutuar durante uns minutos. Quando respondeu, Philippa parecia confusa e contemplativa.
– Se fizermos isso, você não terá mais qualquer esperança de se casar. Não, nossa única escolha é ver no que vai dar. Vamos caminhar com lorde Kendall amanhã de manhã. Não permitirei que Hodgeham arruíne essa oportunidade.
– Ele será uma constante fonte de problemas – observou Annabelle calmamente. – Se não voltarmos para a cidade, ele transformará nossa estadia aqui em um pesadelo.
Naquele instante, Philippa se voltou para ela ainda com aquele sorriso inquietante no rosto.
– Minha querida, se não encontrar alguém com quem possa se casar, então é quando voltarmos a Londres que o verdadeiro pesadelo vai começar.
CAPÍTULO 8
Atormentada pela preocupação, Annabelle dormiu no máximo duas ou três horas. Quando acordou aquela manhã, tinha olheiras e o rosto pálido e cansado.
– Que inferno – murmurou enquanto molhava um pano com água fria para pressioná-lo contra o rosto. – Isso não vai funcionar. Parece que tenho uns cem anos.
– O que disse, querida? – perguntou Philippa ainda meio sonada.
Ela estava atrás da filha, vestida com um robe e umas sandálias surradas.
– Nada, mamãe. Estava falando com meus botões. – Annabelle esfregou o rosto com força para dar um pouco de cor às bochechas. – Não dormi bem a noite passada.
Aproximando-se dela, Philippa a observou com atenção.
– Você está mesmo parecendo um pouco cansada. Vou pedir um chá.
– Peça uma chaleira bem grande – disse Annabelle e, contemplando os próprios olhos avermelhados no espelho, acrescentou: – Melhor duas.
Philippa sorriu com simpatia.
– O que devemos vestir para a caminhada com lorde Kendall?
A moça torceu o pano antes de deixá-lo sobre a bacia.
– Os vestidos mais velhos que tivermos, creio eu, já que alguns caminhos do bosque podem estar bem enlameados. Mas podemos cobri-los com os xales de seda novos que Lillian e Daisy nos deram.
Depois de beber uma xícara fumegante de chá e dando umas poucas mordiscadas na torrada fria que uma criada trouxera do andar de baixo, Annabelle terminou de se vestir. Observou-se no espelho com olhos clínicos. O xale de seda azul amarrado em volta do corpete escondeu perfeitamente o tecido gasto do vestido creme que escolhera. Além disso, seu novo chapéu, presente também das irmãs Bowmans, lhe favoreceu bastante, pois o forro azul combinava com o tom de seus olhos e os ressaltava.
Sem parar de bocejar, desceu com a mãe, e foram para o terraço de trás da mansão. Era tão cedo que quase todos os convidados de Stony Cross ainda estavam na cama. Apenas alguns cavalheiros decididos a pescar deram-se ao trabalho de levantar a essa hora. Um pequeno grupo de homens tomava o café da manhã nas mesas externas enquanto os criados aguardavam por perto, carregando as varas e cestas de pesca. Essa cena tranquila foi perturbada por um clamor dos mais incômodos e nada comum para uma hora daquelas.
– Por Deus! – Annabelle ouviu a mãe exclamar. Seguindo o olhar estupefato de Philippa, ela viu que a outra extremidade do terraço fora invadida por uma cacofonia de conversas frenéticas, gritinhos, risos e a postura agressiva de um grupo de moças. Estavam em torno de algo que permaneceu oculto ali no meio. – O que estão fazendo aqui? – indagou a mãe, admirada.
Annabelle suspirou e respondeu resignada:
– Suspeito que tenham vindo para a caça matutina.
Olhando para aquele grupo ruidoso, Philippa ficou boquiaberta.
– Quer dizer que... você acha que o pobre Sr. Kendall está preso no meio disso?
Annabelle assentiu.
– E, a julgar pelas aparências, não acredito que deixem sobrar algum pedacinho dele quando terminarem.
– Mas... ele combinou de ir caminhar com você – protestou Philippa. – Só com você, tendo a mim como acompanhante.
Quando algumas das mocinhas perceberam Annabelle parada do outro lado do terraço, fecharam ainda mais o círculo em volta da presa, como se quisessem evitar que ela o visse.
Annabelle balançou a cabeça ligeiramente. Ou Kendall havia contado sem querer seus planos a alguém, ou a loucura para arranjar um marido tinha chegado a tal ponto que ele não podia pôr os pés fora do quarto a hora que fosse sem atrair uma multidão de mulheres.
– Bem, não fique aí parada – insistiu Philippa. – Vá se juntar ao grupo e tente atrair a atenção dele.
Annabelle lhe dirigiu um olhar indeciso.
– Algumas dessas garotas parecem ferozes. Eu odiaria levar uma mordida.
Ela ouviu um riso abafado vindo de algum lugar nas proximidades. Virou-se na direção do som e, como já deveria ter imaginado, viu Simon Hunt apoiado na balaustrada do terraço, com uma xícara de porcelana quase totalmente oculta naquela mão enorme, tomando seu café distraído. Trajava uma roupa rústica como a dos pescadores, feita de tweed e sarja, uma camisa de linho gasta com o colarinho aberto. O brilho zombeteiro em seus olhos não deixava dúvidas sobre o interesse dele por aquela situação.
Sem tomar uma decisão consciente, Annabelle se viu se aproximando dele. Ela ficou a apenas alguns metros de distância de Hunt, pôs os cotovelos na balaustrada e ficou observando o amanhecer cheio de névoa. Ele, por sua vez, estava com as costas apoiadas, de frente portanto para os muros da mansão.
Sentindo necessidade de alfinetar aquela irritante autoconfiança, Annabelle murmurou:
– O Sr. Kendall e o Sr. Westcliff não são os únicos solteiros em Stony Cross, Sr. Hunt. Por que será que você não está sendo perseguido como eles dois?
– Por uma razão óbvia – retrucou ele com tranquilidade, levando a xícara aos lábios para sorver o conteúdo. – Não tenho título; além do mais, seria um péssimo marido. – Ele lhe dirigiu um perspicaz olhar de soslaio. – Quanto a você... apesar da simpatia que me desperta sua causa, não aconselharia que entrasse em uma disputa por Kendall.
– Minha causa? – repetiu Annabelle, sentindo-se ofendida com os termos usados por Hunt. –
Como definiria o que está chamando de minha causa, Sr. Hunt?
– Bom, você é sua própria causa, é claro – disse ele em voz baixa. – Você quer o que é melhor para Annabelle Peyton, mas Kendall não se enquadra nessa categoria. A união de vocês seria um desastre.
Ela virou a cabeça para encará-lo com os olhos semicerrados.
– Por quê?
– Porque ele é muito bonzinho para você. – Hunt sorriu ao ver a expressão da moça. – Não pretendia que isso fosse tomado como um insulto. Eu não gostaria nem metade do que gosto de você se fosse uma mulher boazinha. No entanto, você não seria boa para Kendall... E por fim, ele também não lhe seria de muita utilidade. Você pisaria na alma cavalheiresca de Kendall transformando-a em uma pilha destroçada a seus pés.
Annabelle teve ganas de arrancar à força o sorriso superior que ele exibia. E nunca antes havia cogitado a hipótese de agredir alguém fisicamente. Sua raiva só se abrandava um pouco pelo fato de ele em parte ter razão. Annabelle sabia muito bem que era espirituosa demais para um homem tão dócil e civilizado quanto Kendall. Mas isso não era da conta de Simon Hunt.
Além do mais, nem Hunt nem qualquer outro homem tinha a intenção de lhe oferecer uma alternativa melhor.
– Sr. Hunt – disse ela em tom doce e com um olhar venenoso –, por que não vai...
– Srta. Peyton! – A exclamação baixa chegou até ela vinda de vários metros ao longe e foi seguida pela delgada silhueta de lorde Kendall, que emergia nesse instante em meio ao bando de mulheres. Estava um pouco desalinhado e parecia um tanto aborrecido ao abrir caminho até ela.
– Bom dia, Srta. Peyton. – Ele fez uma pausa para apertar o nó da gravata e ajeitar os óculos retorcidos. – Parece que não fomos os únicos que tivemos a ideia de caminhar esta manhã. –
Então dirigiu a Annabelle um olhar tímido e perguntou: – Acha que devemos tentar assim mesmo?
Annabelle hesitou, gemendo internamente. Não conseguiria muita coisa em uma caminhada com Kendall já que iam acompanhados por pelo menos duas dezenas de mulheres. Seria o mesmo que tentar estabelecer uma conversa tranquila em meio a um bando de gralhas grasnindo.
Por outro lado, não poderia simplesmente declinar um convite feito por ele. Mesmo uma pequena rejeição como essa poderia desencorajá-lo e fazer com que nunca mais a convidasse para algo.
Ela deu um sorriso reluzente.
– Seria um prazer, senhor.
– Excelente. Há por aqui umas espécies fascinantes da flora e da fauna que eu gostaria de lhe mostrar. Como sou um horticultor amador, fiz um cuidadoso estudo da vegetação nativa de Hampshire...
As palavras seguintes foram abafadas pelo entusiasmo de umas mocinhas que o rodeavam.
– Como eu amo plantas – gorgolejou uma delas. – Não há uma única planta que eu não ache absolutamente encantadora.
– E o campo seria tão desinteressante sem elas – acrescentou outra empolgada.
– Ah, lorde Kendall – interveio uma terceira –, só terá que nos explicar a diferença entre uma flora e uma fauna...
O bando de jovens afastou Kendall como se fosse uma corrente marinha impossível de deter.
Philippa as seguiu corajosamente, determinada a cuidar dos interesses de Annabelle.
– Minha filha é sem dúvida muito modesta para falar de sua afinidade com a natureza – começou a dizer a Kendall.
Ele lhe dirigiu um olhar impotente enquanto era arrastado em direção aos degraus do terraço.
– Srta. Peyton?
– Estou indo – gritou Annabelle, pondo as mãos em concha em torno da boca para se fazer ouvir melhor.
Se houve alguma resposta, foi impossível ouvi-la.
Preguiçosamente, Simon Hunt deixou a xícara vazia na mesa mais próxima e murmurou algo para o criado que segurava seu material de pesca. O rapaz assentiu e se retirou enquanto Hunt ia atrás de Annabelle. Ela se retesou quando se deu conta de que ele estava ao seu lado.
– O que está fazendo?
Hunt pôs as mãos nos bolsos do casaco de pesca e respondeu:
– Eu vou com você. Aconteça o que acontecer na pesca de trutas, não será nem metade tão interessante quanto vê-la competir pela atenção de Kendall. Ademais, meus conhecimentos de horticultura são bem parcos, infelizmente. Posso portanto aprender alguma coisa.
Engolindo uma resposta mal-humorada, Annabelle seguia Kendall e sua comitiva com determinação. Eles todos desceram os degraus do terraço e pegaram um caminho que levava ao bosque, onde faias e carvalhos enormes presidiam acima de grossos tapetes de musgos, samambaias e liquens. A princípio Annabelle ignorou a presença de Hunt a seu lado, andando com frieza atrás das admiradoras de Kendall. Este se via obrigado a realizar um grande esforço físico, já que precisava ajudar todas as jovens a passarem pelos mínimos obstáculos. O tronco caído de uma árvore, com a espessura do braço de Annabelle, se tornou um obstáculo tão intransponível que todas exigiam a ajuda de Kendall para passar por ele. Cada moça que atravessava o tronco parecia mais desamparada do que a anterior, a ponto de o pobre sujeito se ver praticamente obrigado a carregar a última delas depois de fingir um grito e um desmaio, momento no qual a moça logo passou os braços ao redor do pescoço dele.
Bastante afastados do grupo, Annabelle recusou o apoio do braço de Simon Hunt quando ele o ofereceu a ela e passou por cima do tronco sem ajuda. Ele esboçou um meio sorriso, encantado pelo modo de ser da moça.
– Eu esperava que você fosse se adiantar e ir lá para a frente agora – comentou ele.
Annabelle fez um som de desprezo.
– Não vou desperdiçar meus esforços lutando contra esse bando de codorninhas. Vou esperar um momento mais oportuno para que Kendall possa me notar.
– Ele já notou. Precisaria ser cego para não notar. A questão é: por que você acha que terá qualquer chance de receber uma proposta de casamento de Kendall quando ninguém mais fez isso nesses dois anos que a conheço?
– Porque tenho um plano – disse ela secamente.
– E qual é?
Ela dirigiu-lhe um olhar desdenhoso.
– Até parece que eu lhe contaria.
– Espero que seja algo convincente e ardiloso – retrucou Hunt, mordaz.
– Só porque não tenho dote – redarguiu Annabelle. – Se tivesse dinheiro, já teria me casado há muitos anos.
– Eu tenho dinheiro – disse ele amavelmente. – Quanto você quer?
Annabelle assumiu um ar irônico.
– Sei muito bem o que iria querer em troca, Sr. Hunt, portanto, posso dizer com segurança que não aceitaria nem um único centavo seu.
– É bom saber que é tão seletiva com relação às amizades que mantém. – Hunt estendeu a mão a fim de afastar um galho para que ela pudesse passar. – Como tenho ouvido um rumor que diz o contrário, fico feliz em saber que não é verdade.
– Rumor? – Annabelle se deteve no meio do caminho e virou-se para encará-lo. – Sobre mim? O que poderiam estar dizendo a meu respeito?
Hunt permaneceu em silêncio contemplando o rosto preocupado de Annabelle enquanto ela tentava chegar à conclusão sobre o que poderia ser o tal rumor.
– Seletiva... – murmurou ela. – Com relação às pessoas com quem convivo? Por acaso isso significa que tenho um comportamento inadequado... – Interrompeu-se bruscamente quando a imagem repugnante e avermelhada de Hodgeham surgiu em sua mente.
A súbita palidez e as pequenas rugas que se formaram entre as sobrancelhas da moça não passaram despercebidas por Hunt. Annabelle lançou-lhe um olhar frio e se virou, voltando a andar com passos calculados e seguros pelo tapete de folhas caídas.
Hunt acompanhou o ritmo dela, ouvindo a voz distante de Kendall, que continuava a falar para as atentas ouvintes sobre as plantas que viam no caminho. Orquídeas raras, celidônias, algumas variedades de fungos. O discurso dele era acompanhado por exclamações de admiração daquele público extasiado.
– ... estas plantas rasteiras – dizia Kendall, que fizera uma pausa para mostrar os musgos e liquens que cobriam um desafortunado carvalho – são classificadas como briófitas e precisam de umidade para crescer. Se privadas da proteção que lhe confere o dossel das copas das árvores, perecem a céu aberto.
– Não fiz nada de errado – afirmou Annabelle de repente, perguntando-se por que a opinião de Hunt importava para ela. Mesmo assim, estava incomodada o bastante para querer saber quem havia espalhado esse boato e, mais precisamente, no que ele consistia. Alguém teria percebido as visitas noturnas de Hodgeham à sua casa? Não era um bom sinal. Não havia defesa possível contra esse tipo de rumor, e isso poderia destruir sua reputação. – E também não me arrependo de nada.
– É uma pena – rebateu Hunt tranquilamente. – Arrepender-se é o único sinal de que se está fazendo algo de interessante na vida.
– E do que você se arrepende, então?
– Ah, eu também não tenho arrependimentos. – Um brilho perverso surgiu em seus olhos escuros. – Não por falta de tentativas, claro. Continuo empenhado em fazer coisas indizíveis na esperança de me arrepender mais tarde. Mas até agora... nada.
Apesar da agitação interna, Annabelle não conseguiu reprimir um riso nervoso. Um galho grande bloqueava o caminho, de modo que ela estendeu o braço para afastá-lo.
– Permita-me – disse Hunt adiantando-se para fazê-lo em seu lugar.
– Obrigada. – Então passou ao lado dele, olhando para Kendall e as outras a distância e de repente sentiu algo espetar seu pé. – Ai! – Deteve-se, puxando a barra da saia para examinar o motivo do desconforto.
– O que foi? – Hunt se aproximou imediatamente e a segurou com uma de suas enormes mãos para que ela não perdesse o equilíbrio.
– Tem algo me arranhando dentro do sapato.
– Deixe-me ajudá-la – disse ele e se agachou, pegando o tornozelo dela.
Era a primeira vez que um homem tocava em uma parte de sua perna, o que a deixou com o rosto escarlate.
– Não toque aí – protestou ela em um sussurro e quase perdendo o equilíbrio ao empurrá-lo.
Como Hunt não a soltou para não deixá-la cair, Annabelle se viu obrigada a se segurar no ombro dele. – Sr. Hunt...
– Estou vendo qual é o problema – murmurou ele. Annabelle sentiu que Hunt puxava o fino tecido da meia que cobria sua perna. – Você deve ter pisado em uma samambaia espinhosa. – Ele ergueu algo e o inspecionou. Era um raminho claro, parecido com palha, que havia se enfiado no algodão da meia na altura do peito do pé.
Com o rosto ruborizado, Annabelle continuou agarrada a Hunt para manter o equilíbrio.
Aqueles ombros eram surpreendentemente firmes; a ossatura e os músculos fortes não se suavizavam pela camada de estofamento do casaco. Atordoada, Annabelle custava a acreditar que estava de pé no meio do mato com a mão de Simon Hunt segurando seu tornozelo.
Percebendo o ruborizar de Annabelle, ele abriu um largo sorriso de repente.
– Há mais uns pedaços de palha em outras partes da meia. Quer que eu os retire?
– Seja rápido – respondeu ela, com um tom ofendido –, antes que Kendall dê meia-volta e o veja com a mão sob a minha saia.
Com um riso abafado, Hunt dedicou-se àquela tarefa e tirou habilmente todos os carrapichos presos na meia. Enquanto fazia isso, Annabelle fitava a nuca de Hunt, ali onde as mechas pretas de seu cabelo roçavam a pele rija e bronzeada.
Hunt pegou o sapato que havia tirado e voltou a calçar no pé de Annabelle, fazendo uma mesura:
– Minha Cinderela campestre – disse, levantando-se. Ao ver as bochechas coradas da moça, os olhos dele assumiram a um só tempo um brilho zombeteiro e amistoso. – Por que usa sapatos tão ridículos para passear no bosque? Imaginei que teria o bom senso de calçar botinas.
– Não tenho botinas – disse Annabelle, irritada com a insinuação de que era uma avoada incapaz de escolher o calçado adequado para uma simples caminhada. – As que já tive se desgastaram com o tempo e não pude comprar novas.
Para surpresa de Annabelle, Hunt não aproveitou a oportunidade para zombar ainda mais dela. Seu rosto adquiriu uma expressão impassível e ele a observou por um momento.
– Vamos nos juntar aos demais – propôs ele por fim. – Eles já devem ter descoberto outra variedade de musgo que ainda não vimos. Ou, se Deus quiser, um cogumelo.
O aperto que ela sentia no peito diminuiu.
– E eu... espero que vejamos algum líquen.
Esse comentário provocou um ligeiro sorriso, e Hunt estendeu a mão para afastar outro galho que obstruía a passagem deles. Corajosamente, Annabelle ergueu a saia e tentou não pensar em como seria bom estar sentada no terraço da mansão com uma bandeja de chá e biscoitos à sua frente. Alcançaram uma planície e deram de cara com uma vista surpreendente de um campo coberto de jacintos. Era como entrar de repente em um sonho, com aquela névoa azulada se espalhando entre os troncos dos carvalhos, das bétulas e dos freixos. O cheiro dos jacintos vinha de todos os lados, e seus pulmões se encheram com aquele aroma.
Ao cruzar uma árvore delgada, Annabelle passou um braço pelo tronco e ficou parada admirando os raminhos de jacinto com deliciado prazer.
– Encantador – murmurou ela, o rosto brilhando sob as sombras projetadas pelas copas daqueles antigos ramos entrelaçados.
– É, sim – respondeu Hunt que, no entanto, olhava para ela, e não para as flores azuis.
Ao encontrar de repente os olhos dele, aquela expressão fez com que o sangue de Annabelle fervesse nas veias. Ela já tinha visto a admiração no rosto de outros homens, até chegou a perceber desejo, mas nenhum olhar tinha sido tão íntimo e perturbador quanto esse... Como se ele quisesse algo muito mais complicado que simplesmente usar seu corpo.
Desconcertada, afastou-se do tronco e foi em direção a Kendall, que conversava com a mãe de Annabelle enquanto o grupo de moças se dispersara para colher buquês de jacintos. Os caules das flores acabaram pisoteados e quebrados pelas saqueadoras que recolhiam seu tesouro.
Kendall parecia aliviado ao ver Annabelle se aproximar, o que se intensificou depois que viu o sorriso amistoso no rosto dela. Pelo que parecia, ele esperava que ela fosse petulante, como a maioria das mulheres convidadas para um passeio e depois ignoradas por causa de uma companhia mais exigente. Seu olhar se desviou para a figura obscura de Simon Hunt e sua expressão se modificou, assumindo um tom de incerteza. Os dois homens trocaram cumprimentos, acenando com a cabeça. Hunt parecia bastante autoconfiante, ao passo que Kendall se mostrou cauteloso.
– Vejo que atraímos mais companhia – murmurou Kendall.
Annabelle deu a ele seu melhor sorriso.
– Claro que sim – disse. – O senhor é como o flautista de Hamelin. As pessoas o seguem aonde quer que vá.
Ele enrubesceu com o comentário e, satisfeito, murmurou:
– Espero que tenha gostado do passeio, Srta. Peyton.
– Gostei, sim – assegurou ela. – Embora tenha que admitir que tropecei em uma samambaia espinhosa.
Preocupada, Philippa soltou uma pequena exclamação:
– Meu Deus... você se machucou, querida?
– Não, não, não foi nada – respondeu Annabelle prontamente. – Apenas um ou dois arranhões. A culpa foi toda minha. Temo não ter escolhido o sapato adequado para o passeio –
disse, estendendo o pé para mostrar a Kendall seu sapato, certificando-se de exibir uns poucos centímetros de tornozelo também.
Kendall estalou a língua, mostrando preocupação.
– Srta. Peyton, precisa de algo muito mais resistente que esses sapatos para um passeio pelo bosque.
– Tem razão. – Ela deu de ombros e continuou sorrindo. – Foi bobagem minha não prever que o terreno fosse tão acidentado. Vou tomar mais cuidado no caminho de volta. Mas esse campo de jacintos é tão maravilhoso que não me importaria em atravessar um bom trecho com samambaias espinhosas para chegar até aqui.
Depois de se agachar para pegar um raminho de jacinto, Kendall cortou um pedaço do caule e prendeu a flor no laço do chapéu dela.
– Não chegam nem aos pés do azul dos seus olhos – disse ele. Seu olhar se voltou para o tornozelo de Annabelle, que já estava coberto de novo pela barra da saia. – No caminho de volta, tome meu braço para evitar mais acidentes.
– Muito obrigada, senhor. – Ela o fitou com admiração. – Temo ter perdido alguns de seus comentários acerca de samambaias. O senhor mencionou algo sobre...os brotos, não foi? Fiquei totalmente fascinada.
Kendall começou a explicar gentilmente tudo que se poderia querer saber sobre essas plantas... Depois, quando Annabelle olhou para trás, na direção de Simon Hunt, ele havia desaparecido.
CAPÍTULO 9
– Vamos realmente fazer isso? – perguntou Annabelle com um tom compungido, enquanto as amigas solteironas caminhavam pelo bosque com cestas e maletinhas nas mãos. – Achei que essa história de jogar rounders de calças curtas fosse apenas uma brincadeira para darmos risada.
– As Bowmans jamais brincam a respeito de rounders – observou Daisy. – Isso seria um sacrilégio.
– Você gosta de jogos, Annabelle – disse Lillian, divertida. – E o rounders é o melhor jogo de todos.
– Gosto dos que são jogados à mesa – retrucou ela. – Vestida com roupas apropriadas.
– Roupas são superestimadas – retorquiu Daisy em tom frívolo.
Annabelle estava aprendendo que o preço de ter amigas era, de vez em quando, precisar ceder aos desejos do grupo, mesmo quando fossem contrários aos seus. Mesmo assim, de manhã havia tentado trazer Evie para o seu lado, pois não acreditava que ela realmente pretendesse ficar só de calças curtas para quem quisesse ver. Mas Evie estava decidida a seguir os planos das Bowmans, considerando-os, ao que parece, parte de um programa que se impôs para encorajar-se.
– Que-quero me parecer mais com elas – confidenciou a Annabelle. – São tão livres e ousadas. Não têm medo de nada.
Olhando para o rosto ansioso da moça, Annabelle se rendeu com um grande suspiro.
– Ah, está bem. Se ninguém nos vir, acredito que não tenha nada de mais. Embora eu não consiga pensar em como isso poderá ajudar.
– Quem sabe não vai ser di-divertido? – sugeriu Evie, ao que Annabelle respondeu com um olhar eloquente que fez a amiga cair na risada.
O tempo, é claro, resolveu cooperar com os planos das irmãs. O céu estava azul, sem uma nuvem, e soprava uma brisa leve no ar. Carregando cestas, as quatro caminharam por uma estradinha, deixando para trás prados úmidos salpicados de flores vermelhas e violetas de um roxo vivo.
– Fiquem atentas para um poço dos desejos – disse Lillian, entusiasmada. – Nesse ponto temos que cruzar o prado e atravessar o bosque. Há um prado seco no topo da colina. Um dos criados me disse que ninguém vai até lá.
– E é claro que tinha que ser em uma subida – observou Annabelle. – Lillian, como é esse tal poço? É uma daquelas estruturas pequenas caiadas de branco, com um balde e uma roldana?
– Não. É um buraco grande e lamacento no chão.
– Está ali! – exclamou Daisy, correndo até o buraco com água pardacenta, reabastecido por um riachinho próximo. – Venham aqui, precisamos fazer um pedido. Trouxe uns alfinetes para jogarmos lá dentro.
– Como sabia que devia trazer alfinetes? – perguntou Lillian.
Daisy sorriu com uma expressão travessa.
– Bem, ontem de tarde, fui costurar com mamãe e as viúvas e fiz a nossa bola de rounders. –
Ela tirou a bola de couro de dentro da cesta e a mostrou com orgulho. – Tive que sacrificar um par de luvas de pelica novas para fazê-la, e não foi uma tarefa nada fácil, posso garantir. Seja como for, as senhoras me viram enchê-la com lã e, quando não conseguiu mais se conter, uma delas se aproximou e me perguntou o que eu estava fazendo. É claro que eu não podia dizer que era uma bola de rounders. Tenho certeza de que mamãe imaginou, mas estava envergonhada o bastante para dizer qualquer coisa. Então eu disse à viúva que eu estava fazendo uma almofada para alfinetes.
Todas as meninas riram.
– Ela deve ter pensado que aquela era a almofada para alfinetes mais feia do mundo – comentou Lillian.
– Sem dúvida alguma – rebateu Daisy. – Acho que ela ficou morrendo de pena de mim.
Tanto que me deu uns alfinetes e disse em voz baixa algo sobre as pobrezinhas das meninas americanas arrogantes que não têm praticamente habilidade alguma. – Com a ponta da unha, ela foi arrancando os alfinetes da bola de couro e distribuindo entre elas.
Annabelle deixou a cesta que levava com ela no chão, pegou um alfinete e fechou os olhos.
Sempre que tinha oportunidade ela fazia o mesmo pedido: casar-se com um nobre. Mas curiosamente outra ideia lhe passou pela cabeça bem na hora em que lançou o alfinete no poço.
Desejo poder me apaixonar.
Surpresa com essa ideia ingênua e caprichosa, Annabelle se perguntou como podia ter desperdiçado um desejo com algo tão estúpido.
Ao abrir os olhos, percebeu que as amigas olhavam para o poço com grande solenidade.
– Fiz o pedido errado – comentou ela, impaciente. – Posso fazer outro?
– Não – respondeu Lillian, séria. – Uma vez que você jogou o alfinete, o pedido está feito.
– Mas eu não tinha a intenção de fazer esse pedido em particular – protestou Annabelle. – Ele simplesmente passou pela minha cabeça e não era o que eu tinha planejado.
– Não se queixe, Annabelle – aconselhou Evie. – Você não vai que-querer irritar o espírito do poço.
– Como é?
Evie sorriu ao ver a perplexidade da amiga.
– O espírito que vive no poço. É ele quem se encarrega de cu-cumprir as petições. Mas se o irritar, ele pode querer cobrar um preço terrível para a co-concessão do desejo. Ou pode querer arrastá-la para dentro do poço para que você viva lá para sempre como sua co-consorte.
Annabelle olhou para a água amarronzada. Então, pôs as mãos ao lado da boca para que sua voz saísse mais alta.
– Não precisa conceder o meu desejo repugnante – gritou ao espírito invisível. – Retiro o que disse!
– Não brinque com isso, Annabelle! – exclamou Daisy. – E pelo amor de Deus, afaste-se da borda.
– Você é supersticiosa? – indagou Annabelle com um sorriso.
Daisy a fitou zangada.
– Há uma razão para as superstições existirem, se é que não sabe. Em algum momento, algo ruim aconteceu a alguém que estava de pé bem perto da borda de um poço, exatamente como você agora. – Então ela fechou os olhos e se concentrou antes de lançar seu alfinete na água. – Pronto. Fiz um pedido para você, assim não precisa protestar por ter desperdiçado o seu.
– Mas como sabe o que eu queria?
– O pedido que fiz é para o seu próprio bem – disse Daisy.
Annabelle soltou um grunhido teatral.
– Odeio coisas que são para o meu próprio bem.
Depois disso, começaram uma discussão amigável em que cada uma fez sugestões a respeito do que seria melhor para as outras, até que em determinado momento Lillian mandou que parassem com aquilo, pois precisava de silêncio para se concentrar. Elas se calaram tempo suficiente apenas para Lillian e Evie fazerem seus pedidos e então voltaram a caminhar em direção ao bosque. Não demoraram a chegar em um adorável prado gramado e banhado pelo sol, exceto por um dos lados, onde havia uma sombra produzida por um bosque de carvalhos. O ar ameno e puro estava tão fresco que fez Annabelle suspirar de alegria.
– O ar não tem uma sujeirinha – gracejou como se estivesse reclamando. – Nem fumaça de carvão ou poeira das ruas. É tão leve para um londrino... Nem consigo senti-lo nos pulmões.
– Não é tão leve assim – contestou Lillian. – De vez em quando a brisa traz um cheiro bem perceptível de eau de ovelha.
– Sério? – Annabelle farejou o ar para ver se a amiga tinha razão. – Não senti nada.
– Isso porque você não tem nariz – observou Lillian.
– Como é que é? – perguntou Annabelle com um ar divertido.
– Bom, seu nariz é normal, como o de todo mundo – explicou Lillian. – Já eu tenho o nariz.
Um olfato apuradíssimo. Pode me dar qualquer perfume que eu direi quais são seus componentes. É como ouvir um acorde musical e adivinhar todas as notas. Antes de sairmos de Nova York até ajudei a desenvolver uma fórmula para um sabonete perfumado da fábrica do meu pai.
– Acha que poderia criar um perfume? – perguntou Annabelle, fascinada.
– Ouso dizer que poderia criar um excelente perfume – respondeu Lillian, confiante. – No entanto, as pessoas que trabalham nessa indústria o depreciariam, pois considera-se que o termo
“perfume americano” seja um paradoxo... E ainda por cima sou mulher, o que desqualifica a habilidade do meu nariz.
– Quer dizer que os homens têm olfato melhor do que as mulheres?
– Eles com certeza acham que sim – observou Lillian tirando da cesta uma toalha de piquenique estampada. – Chega de falar de homens e suas protuberâncias. Vamos sentar um pouco ao sol?
– Vamos ficar bronzeadas – previu Daisy, deixando-se cair em uma das pontas da toalha com um suspiro de prazer. – O que vai fazer mamãe ter um faniquito.
– O que é um faniquito? – indagou Annabelle, divertida com o vocábulo incomum. Sentou-se ao lado de Daisy. – Podem me chamar se ela tiver um? Tenho curiosidade de saber como é.
– Mamãe os tem o tempo todo – assegurou-lhe Daisy. – Não se preocupe, você vai se familiarizar totalmente com faniquitos antes de irmos embora de Hampshire.
– Não deveríamos comer antes de jogar – censurou Lillian ao ver Annabelle levantar a tampa da cesta de piquenique.
– Estou com fome – disse Annabelle, olhando tristonha para a cesta cheia de frutas, queijos, patês, fatias grossas de pão e vários tipos de salada.
– Você está sempre com fome – observou Daisy dando uma risada. – Para uma pessoa tão baixinha, seu apetite é considerável.
– Baixinha? Eu? – contestou Annabelle. – Se você tiver uma fração de centímetro acima de um metro e cinquenta e três, vou comer essa cesta de piquenique.
– Então, é melhor começar a mastigar – rebateu Daisy. – Fique sabendo que tenho um metro e cinquenta e cinco.
– Annabelle, se eu fosse você não começaria abocanhando a alça ainda – intrometeu-se Lillian com um ligeiro sorriso. – Daisy sempre fica na pontinha dos pés quando é medida. A pobre costureira teve que refazer as bainhas de quase uma dúzia de vestidos graças à negação da minha irmã em admitir que é baixa.
– Não sou baixa – murmurou Daisy. – As mulheres baixas nunca são misteriosas nem elegantes, nem são cortejadas por homens bonitos. São sempre tratadas como crianças. Eu me recuso a ser baixa.
– Talvez você não seja misteriosa ou elegante – observou Evie –, mas é muito bo-bonita.
– E você é muito querida – respondeu Daisy, inclinando-se para a frente a fim de alcançar a cesta. – Pronto, vamos alimentar a pobre Annabelle... Estou ouvindo o estômago dela roncar.
Passaram ao lanche com entusiasmo. Depois, deitaram-se prazerosamente na toalha e ficaram observando as nuvens, conversando sobre tudo e sobre nada. Quando o assunto morreu e houve um momento de silêncio satisfatório, um pequeno esquilo-vermelho se aventurou para fora do bosque de carvalhos, parou de lado e ficou observando as meninas com um dos brilhantes olhinhos pretos.
– Um intruso! – exclamou Annabelle, dando um bocejo delicado.
Evie ficou de bruços e lançou um pedacinho de pão na direção do esquilo. Imóvel, ele contemplava a oferta tentadora, mas era tímido demais para se aproximar. Evie inclinou a cabeça e seu cabelo reluziu ao sol como se estivesse coberto por rubis.
– Pobrezinho – disse ela bem baixinho, lançando outro pedaço para o esquilo desconfiado. O
pão parou poucos centímetros mais perto, ao que o bichinho contraiu o rabo de jeito ansioso. –
Seja corajoso – incentivou Evie. – Vá pegar. – Com um sorriso tolerante, lançou mais um pedaço, que caiu bem mais perto do alvo. – Ora vamos, Sr. Esquilo – repreendeu a moça. – Que covarde. Não está vendo que ninguém vai machucá-lo?
Em uma súbita explosão de iniciativa, o bichinho pegou o petisco e saiu correndo e agitando o rabo. Evie ergueu a cabeça com um sorriso triunfante estampado no rosto e percebeu que as amigas a observavam em silêncio e de queixo caído.
– O-o-o que foi? – perguntou, intrigada.
Annabelle foi a primeira a falar.
– Ainda agora, quando estava falando com aquele esquilo, você não gaguejou.
– Ah. – Subitamente envergonhada, Evie baixou os olhos e fez uma careta. – Nunca gaguejo quando estou falando com crianças e animais. Não sei por quê.
As outras ponderaram sobre essa informação surpreendente por um momento.
– Notei também que você gagueja muito pouco quando fala comigo – observou Daisy.
Lillian, é claro, foi incapaz de segurar um comentário.
– Em que categoria você se encaixa, querida? Na das crianças ou na dos animais?
Daisy respondeu com um gesto de mão completamente desconhecido para Annabelle. Esta, aliás, estava prestes a perguntar a Evie se ela já consultara um médico a respeito da gagueira, mas a amiga rapidamente mudou de assunto.
– Onde está a bo-bola de rounders, Daisy? Se não começarmos a jogar logo, vou acabar dormindo.
Ao perceber que Evie não queria falar de sua gagueira, Annabelle reforçou o pedido.
– Acho que, se realmente vamos jogar, agora é um momento tão bom quanto qualquer outro.
Enquanto Daisy revirava a cesta em busca da bola, Lillian tirou um objeto de sua própria maleta.
– Vejam o que eu trouxe – disse toda satisfeita.
Daisy ergueu a cabeça e soltou uma sonora gargalhada.
– Um taco de verdade! – exclamou ela, olhando admirada para o objeto com um lado plano.
– Estava achando que precisaríamos usar um pedaço de pau velho. De onde tirou isso, Lillian?
– Peguei emprestado de um dos cavalariços. Parece que sempre que podem eles dão uma fugida para jogar rounders. São bem apaixonados pelo jogo.
– Quem não seria? – perguntou retoricamente Daisy, começando a desabotoar o corpete. –
Por Deus, com o calor que está fazendo vai ser um prazer tirar todas essas camadas de roupa.
Enquanto as irmãs Bowmans tiravam o vestido de forma casual, como se estivessem acostumadas a se despir em público, Annabelle e Evie ficaram olhando uma para a outra hesitantes.
– Desafio você – murmurou Evie.
– Ai, meu Deus – respondeu Annabelle em tom aflito e começou a desabotoar o próprio vestido.
Tinha descoberto um traço inesperado de vergonha que fez o rosto dela corar. No entanto, não ia se acovardar quando até Evie Janner estava disposta a participar daquela rebelião contra o decoro. Puxando as mangas do vestido, levantou-se e deixou que o pesado tecido caísse formando um amontoado de pano amassado a seus pés. Só de anágua, calçolas e corpete, com os pés cobertos apenas por meias e sapatos finos, ela sentiu uma brisa soprar nas axilas umedecidas de suor e arrepiou-se com satisfação.
As outras moças se levantaram e tiraram os vestidos, formando no chão o que pareciam ser gigantescas flores exóticas.
– Pegue! – exclamou Daisy jogando a bola para Annabelle, que a agarrou com um reflexo.
Caminharam para o centro do prado, jogando a bola umas para as outras. Evie era a que tinha mais dificuldade para jogar e pegar a bola, embora estivesse claro que sua falta de jeito tinha a ver com inexperiência e não com habilidade. Annabelle, por sua vez, tinha um irmão mais novo e frequentemente jogava com ele, por isso se mostrou mais familiarizada com o jogo.
A sensação de caminhar ali sem sentir o peso das saias nas pernas era estranha e libertadora.
– Acredito que seja isso que os homens sentem – comentou Annabelle, pensando em voz alta
– quando caminham para lá e para cá de calças compridas. Eu quase poderia invejar essa liberdade.
– Quase? – indagou Lillian com um sorriso. – Eu sem dúvida alguma os invejo. Não seria maravilhoso se as mulheres pudessem usar calças?
– Eu nã-não apreciaria nada disso – disse Evie. – Morreria de vergonha se um homem visse as formas das minhas pernas e o meu... – hesitou, buscando nitidamente um termo com o qual pudesse nomear partes inconfessáveis – ... e outras coisas – finalizou, com um fiozinho de voz.
– Sua chemise está em um estado lastimável, Annabelle – observou Lillian com súbita franqueza. – Não pensei em lhe dar roupas de baixo, embora devesse ter me dado conta...
Annabelle deu de ombros, mostrando-se pouco preocupada com aquilo.
– Não importa. Esta vai ser a única ocasião em que alguém vai vê-las.
Daisy olhou para a irmã mais velha.
– Lillian, somos abominavelmente míopes. Acho que Annabelle teve azar no quesito fadas madrinhas.
– Não reclamei – disse Annabelle, rindo. – E, até onde sei, nós quatro estamos andando na mesma abóbora.
Depois de mais alguns minutos praticando e de uma breve discussão sobre as regras do rounders, elas tiraram as cestas vazias do meio do caminho e começaram o jogo. Annabelle ficou parada exatamente no ponto chamado de “Castle Rock”.
– Vou mandar a bola para ela – avisou Daisy para a irmã – e você pega.
– Mas eu tenho um arremesso melhor do que o seu – resmungou Lillian, postando-se atrás de Annabelle.
Com o taco sobre o ombro, Annabelle fez o movimento para bater na bola arremessada por Daisy. Ela não conseguiu acertá-la e o taco saiu voando, formando um arco perfeito no ar. Atrás dela, Lillian pegou a bola com a maior habilidade.
– Foi uma bela tentativa – encorajou Daisy. – Não deixe de olhar para a bola quando ela vier na sua direção.
– Não estou acostumada a ficar parada com objetos sendo arremessados em mim – disse Annabelle, brandindo o taco de novo. – Quantas vezes eu posso tentar?
– No rounders, o batedor tem um número infinito de jogadas – respondeu Lillian atrás dela. –
Tente outra vez, Annabelle... Mas agora, imagine a bola indo direto no nariz do Sr. Hunt.
Annabelle aceitou a sugestão com prazer.
– Prefiro apontar para uma protuberância que fica mais abaixo dessa – observou e balançou o corpo esperando um novo lançamento de Daisy.
Dessa vez, a parte plana do taco golpeou a bola em cheio. Deixando escapar um grito de alegria, Daisy foi correndo atrás da bola, enquanto Lillian, que gargalhava, gritou:
– Corra, Annabelle!
Ela correu, soltando também uma gargalhada triunfante, contornando as cestas que delimitavam o campo e voltando para o Castle Rock.
Daisy pegou a bola e lançou para Lillian, que a pegou no ar.
– Fique na terceira base, Annabelle – orientou Lillian. – Vamos ver se Evie consegue levar você de volta ao Castle Rock.
Aparentando nervosismo, mas determinada, Evie pegou o taco e se posicionou no lugar do batedor.
– Finja que a bola é sua tia Florence – aconselhou Annabelle, fazendo surgir um sorriso no rosto da amiga.
Daisy lançou uma bola lenta e fácil enquanto Evie balançava o taco. Ela errou e a bola acabou chegando às mãos de Lillian, que a lançou de volta para a irmã e depois reposicionou Evie.
– Separe mais os pés e flexione um pouco os joelhos – murmurou. – Isso, muito bem. Agora não deixe de olhar para a bola enquanto ela se aproxima e vai ver que não erra.
Infelizmente Evie falhou de novo, e de novo, e mais uma vez, até seu rosto ficar rosa de frustração.
– É mu-muito difícil – reclamou, com a testa franzida de preocupação. – Talvez fosse melhor eu parar agora e dar a vez para outra pessoa.
– Tente só mais algumas vezes – pediu Annabelle, inquieta, mas decidida a fazer com que Evie acertasse a bola pelo menos uma vez. – Não estamos com pressa.
– Não desista! – exclamou Daisy, se metendo na conversa. – É que você está se esforçando demais, Evie. Relaxe... E não feche mais os olhos quando for bater.
– Você consegue – disse Lillian, afastando uma mecha de cabelo escuro e sedoso da testa e flexionando os braços magros e tonificados. – Quase conseguiu da última vez. A única coisa que tem que fazer é não... tirar... os olhos da bola.
Com um suspiro resignado, Evie arrastou o taco de volta para o Castle Rock e o ergueu mais uma vez. Estreitou os olhos azuis ao fitar Daisy e se preparou para receber o arremesso seguinte.
– Estou pronta.
Daisy jogou a bola com força e Evie balançou o taco com firme determinação. Annabelle sentiu um estremecimento de satisfação ao ver o taco golpear com força a bola, que disparou no ar, indo cair bem longe, no bosque de carvalhos. Todas gritaram de alegria com aquela esplêndida tacada. Atônita com seu feito, Evie começou a dar pulos de alegria e a gritar:
– Consegui! Eu consegui!
– Corra em volta das maletas! – gritou Annabelle, que voltou depressa para o Castle Rock.
Toda contente, Evie deu a volta no campo improvisado tão depressa que suas roupas mais pareciam um borrão branco. Quando chegou ao Castle Rock, suas amigas continuaram a pular e gritar de alegria, já sem muito motivo a não ser pelo fato de serem jovens e saudáveis e de estarem satisfeitas consigo mesmas.
De repente, Annabelle percebeu um vulto escuro subindo depressa a colina. Ficou em silêncio no mesmo instante ao descobrir que havia um – um não, dois cavaleiros se aproximando do prado.
– Está vindo alguém! – avisou. – Dois cavaleiros. Depressa, vamos pegar nossas roupas.
Seu sussurro alarmado interrompeu a alegria das outras meninas. Elas se entreolharam de imediato, atônitas, e ficaram em pânico. Gritando, Daisy e Evie correram até os restos do piquenique, onde tinham deixado seus vestidos.
Annabelle já ia segui-las, mas parou e se virou abruptamente quando os cavaleiros ribombaram atrás dela. Fitou-os com cautela, tratando de avaliar o perigo que podiam apresentar.
Fixando o olhar no rosto deles, sentiu um estremecimento quando os reconheceu.
Lorde Westcliff... e o que era ainda pior... Simon Hunt.
CAPÍTULO 10
Ao deparar com o espanto de Hunt, Annabelle não conseguiu desviar os olhos dos dele. Era como um desses pesadelos dos quais nos livramos com uma sensação de alívio ao acordar por saber que algo tão terrível nunca poderia ter acontecido. Se não estivesse em uma situação tão comprometedora, poderia ter se divertido por ver Simon Hunt absolutamente sem palavras. A princípio, o rosto dele estava inexpressivo, como se estivesse com uma enorme dificuldade de assimilar o fato de que ela se encontrava parada ali na sua frente vestida apenas com chemise, espartilho e calças curtas. O olhar de Hunt percorreu o corpo dela lentamente até chegar ao rosto ruborizado de Annabelle.
Depois de uns instantes de silêncio sufocante, Hunt engoliu em seco e perguntou em tom grave:
– Eu provavelmente não deveria perguntar, mas que diabos estão fazendo?
Essas palavras tiraram Annabelle de sua paralisia. Ela não podia simplesmente ficar ali conversando com ele vestida apenas com as roupas de baixo. Mas sua dignidade, ou o fiozinho que restava dela, exigiu que não soltasse um gritinho estúpido antes de correr para vestir suas roupas como faziam Evie e Daisy. Contentando-se com essa ideia, foi depressa até seu vestido e o pôs diante de si, virando-se de frente de novo para Simon Hunt.
– Estávamos jogando rounders – explicou, percebendo que sua voz estava muito mais aguda do que de costume.
Hunt olhou ao redor antes de voltar a encará-la.
– E por que vocês...?
– Não se pode correr direito de saias – interrompeu Annabelle. – Imaginei que fosse óbvio.
Ao ouvir isso, Hunt desviou os olhos depressa, mas não antes de Annabelle notar no rosto dele o brilho de um sorriso.
– Como nunca tentei, vou ter que confiar na sua palavra a respeito disso.
Atrás dela, pôde-se ouvir Daisy recriminar a irmã.
– Achei que você tivesse dito que ninguém jamais vinha a esse prado!
– Foi o que me disseram – retrucou Lillian com uma voz abafada entrando no vestido e o puxando para cima.
O conde, que permanecera mudo até então, manteve deliberadamente os olhos fixos em um ponto distante quando disse de um jeito controlado:
– Sua informação estava correta, Srta. Bowman. Este prado geralmente não é frequentado.
– Bem, então, por que estão aqui? – perguntou Lillian em tom de acusação, como se fosse ela, e não Westcliff, a dona da propriedade.
A pergunta conseguiu fazer a cabeça do conde se voltar para ela com espantosa velocidade.
Ele lançou um olhar incrédulo à moça americana antes de virar o rosto novamente.
– Nossa presença aqui é uma mera coincidência – disse com frieza. – Quis dar uma olhada na parte noroeste da minha propriedade – acrescentou, dando ênfase sutil, mas inconfundível, à palavra minha. – Quando o Sr. Hunt e eu estávamos percorrendo o caminho, ouvimos seus gritos. Achamos então melhor investigar e nos aproximamos com a intenção de oferecer ajuda, se fosse necessário. Mal sabia eu que as senhoritas estariam usando esse prado para... para...
– Jogar rounders de calças curtas – concluiu Lillian toda solícita, passando os braços pelas mangas do vestido.
O conde parecia incapaz de repetir aquela frase ridícula. Virou o cavalo e falou secamente:
– Planejo sofrer de amnésia nos próximos cinco minutos. Antes disso, gostaria de sugerir que se abstenham de quaisquer atividades futuras que envolvam nudez ao ar livre, pois os próximos transeuntes que as encontrem desse jeito podem não ser tão indiferentes quanto o Sr. Hunt e eu.
Apesar do constrangimento, Annabelle teve que se segurar para não rir ceticamente ao ouvir o comentário do conde a respeito da suposta indiferença de Hunt e até mesmo da própria. Hunt sem dúvida tinha conseguido dar uma bela espiada nela. E embora o escrutínio de Westcliff tenha sido mais sutil, não lhe passou despercebido o olhar minucioso que ele dirigiu a Lillian antes de virar o cavalo. No entanto, à luz de seu estado atual de nudez, aquele não era o momento adequado para expor o comportamento hipócrita de Westcliff.
– Obrigada, senhor – disse ela com uma calma que lhe agradou bastante. – E agora, depois desse excelente conselho, gostaria de lhes pedir um pouco de privacidade para que possamos nos recompor.
– Com prazer – grunhiu Westcliff.
Antes de partir, Simon Hunt não conseguiu deixar de olhar para trás e ver Annabelle segurando o vestido na frente do corpo. Apesar da aparente serenidade, a impressão que dava é que o vermelho no rosto dele havia se intensificado – e o olhar abrasador vindo de seus olhos negros não deixava qualquer dúvida. Annabelle desejava ter presença de espírito suficiente para devolver o olhar com uma fria indiferença, mas em vez disso se sentia ruborizada, desgrenhada e completamente desequilibrada. Ele parecia prestes a lhe dizer algo, mas se conteve e murmurou baixinho, com um sorriso de desprezo por si mesmo. Seu cavalo bateu as patas no chão e bufou impaciente, quando Hunt o virou e o fez galopar atrás de Westcliff, que já estava do outro lado do prado.
Envergonhada, Annabelle se voltou para Lillian, que estava vermelha, mas aparentava grande autodomínio.
– De todos os homens que poderiam ter nos encontrado aqui – comentou Annabelle com desagrado –, precisava ser logo esses dois?
– É de admirar tamanha arrogância – comentou Lillian secamente. – Deve ter levado anos para cultivá-la.
– A quem você está se referindo? Ao Sr. Hunt ou a lorde Westcliff?
– Aos dois. Embora a arrogância do conde ultrapasse em muito a do Sr. Hunt. O que, a meu ver, é uma façanha e tanto.
Elas se entreolharam compartilhando uma cara de desdém pelos visitantes e, de repente, Annabelle caiu na gargalhada.
– Eles ficaram surpresos, não foi?
– Não tanto quanto nós – respondeu Lillian. – O que importa agora é saber se seremos capazes de encará-los de novo.
– Como eles voltarão a nos encarar? – rebateu Annabelle. – Nós estávamos cuidando das nossas próprias vidas. Eles é que vieram se intrometer!
– Você tem razão... – começou Lillian, mas parou quando ouviu um som de asfixia vindo do local onde tinham comido. Evie se retorcia sobre a toalha, enquanto Daisy a observava com as mãos na cintura.
Annabelle correu até elas e, consternada, perguntou a Daisy:
– O que está acontecendo?
– O constrangimento foi muito para ela – disse Daisy. – A ponto de ter um ataque.
Evie rolava sobre a toalha, com um guardanapo escondendo o rosto, e suas orelhas tinham adquirido um tom de beterraba em conserva. Quanto mais ela tentara conter as gargalhadas, pior tinham ficado, até que ela começou a engasgar em meio aos risos. De algum modo, conseguiu pronunciar umas palavras.
– Que introdução aca-ca-chapante aos esportes campestres!
Depois voltou a dar gargalhadas entre espasmos enquanto as outras três a fitavam.
Daisy lançou um olhar significativo a Annabelle.
– Isso – informou – é um faniquito.
Simon e Westcliff cavalgaram a toda pelo prado e reduziram o passo quando entraram no bosque e seguiram pela trilha que serpenteava em meio às árvores. Já tinham se passado uns dois minutos e nenhum deles parecia inclinado a falar ou mesmo capaz de fazê-lo. A mente de Simon estava repleta de imagens de Annabelle Peyton, de suas curvas notáveis cobertas por uma roupa de baixo desgastada, que encolhera depois de sucessivas lavagens. Ainda bem que não haviam se encontrado sozinhos nessas circunstâncias, pois estava certo de que não teria sido capaz de afastar-se dela sem cometer alguma barbaridade.
Em toda a sua vida, Simon jamais experimentara um desejo tão forte como o que sentiu ao ver Annabelle semidespida no prado. Seu corpo inteiro foi inundado pelo impulso de desmontar do cavalo, tomá-la nos braços e levá-la ao lugar mais próximo em que a relva fosse suave. Não podia imaginar uma tentação maior do que a visão do corpo voluptuoso de Annabelle, de sua pele sedosa em que se mesclavam tons de creme e rosa, o cabelo castanho com brilhos dourados do sol. Ela estava encantadoramente envergonhada, ruborizada por inteiro. Ele queria arrancar toda aquela roupa com os dentes e os dedos e depois beijá-la da cabeça aos pés, saboreando aqueles lugares doces e macios que...
– Não – murmurou ao sentir o sangue ferver em suas veias.
Não poderia se permitir continuar com essa linha de pensamento, ou o túmido desejo que pulsava entre as pernas faria com que o resto do percurso a cavalo fosse bem desconfortável.
Quando conseguiu controlá-lo, Simon olhou para Westcliff, que estava com ar ensimesmado.
Aquilo era bem incomum para o conde, que não era do tipo que ficava pensativo daquele modo.
Os dois eram amigos havia pelo menos cinco anos, dado que tinham sido apresentados em um jantar oferecido por um prestigioso político conhecido de ambos. O pai autocrático de Westcliff acabara de morrer, deixando Marcus, o novo conde, encarregado de cuidar dos negócios da família. O rapaz descobriu que as finanças familiares estavam superficialmente sanadas, entretanto com problemas graves quando analisadas em profundidade, quase como um paciente com uma doença terminal, mas que ainda aparentasse saúde. Alarmado com as perdas constantes refletidas nos livros de contabilidade, o novo conde de Westcliff havia chegado à conclusão de que precisaria empreender mudanças drásticas. Estava decidido a evitar o destino de outros nobres que passavam a vida administrando uma herança de família cada vez menor. À
diferença dos romances vitorianos que descreviam inúmeros nobres que perdiam sua riqueza nas mesas de jogos, a realidade era que a moderna aristocracia, em geral, não podia ser considerada tão imprudente ao administrar suas finanças, era mais uma questão de inépcia. Investimentos conservadores, pontos de vista antiquados e arranjos fiscais desastrosos foram erodindo aos poucos a riqueza da aristocracia e permitindo que uma nova e próspera classe social de homens dedicados ao comércio alçasse voo aos mais altos níveis da sociedade. Quem quer que escolhesse não considerar as influências da ciência e os avanços industriais na economia podia ter certeza de que seria deixado para trás nesse despertar turbulento – e Westcliff não tinha o menor interesse em ser incluído nessa categoria.
Quando Simon e Westcliff ficaram amigos, não havia qualquer dúvida de que usavam um ao outro para obter algo que queriam. Westcliff queria contar com o tino para finanças de Simon, e este desejava ter seu acesso franqueado ao mundo da classe privilegiada. Mas, à medida que foram se conhecendo melhor, tornou-se evidente a afinidade dos dois em diversos aspectos.
Ambos eram cavaleiros e caçadores agressivos e necessitavam de frequente e intensa atividade física para descarregar o excesso de energia. Eram também intransigentemente honestos, embora Westcliff possuísse meios apropriados de conseguir que sua sinceridade fosse mais palatável.
Nenhum dos dois era o tipo de homem que se sentava por horas para falar sobre poesia e questões sentimentais. Preferiam lidar com fatos concretos e, portanto, discutiam sobre negócios atuais e futuros com o maior prazer.
Como Simon era convidado regularmente para ir a Stony Cross e um visitante assíduo da Marsden Terrace, a casa de Westcliff em Londres, os amigos do conde pouco a pouco o admitiram no círculo de amizade deles. Foi uma agradável surpresa para Simon descobrir que não era o único plebeu entre os mais chegados de Westcliff. O conde parecia preferir a companhia de homens cuja visão de mundo havia sido moldada fora dos muros das propriedades senhoriais. Na verdade, Westcliff chegara até a afirmar, em algumas ocasiões, que renunciaria a seu título, se fosse possível, já que não aprovava a ideia de uma aristocracia hereditária. Simon não tinha dúvidas de que a declaração de Westcliff era sincera, mas, ao que parecia, jamais havia ocorrido ao conde que os privilégios da aristocracia, com todo o poder e as responsabilidades que deles resultavam, eram uma parte inata sua. Como herdeiro do mais antigo e respeitado condado da Inglaterra, Marcus, o lorde Westcliff, nascera para cumprir as exigências do dever e da tradição. Levava uma vida bem-organizada e estritamente programada, e era um dos homens mais autocontrolados que Simon já tinha conhecido.
Naquele instante, o conde e sua habitual cabeça fria pareciam bastante perturbados, mais do que a situação exigia.
– Droga! – exclamou ele afinal. – Faço negócios ocasionais com o pai dela. Como vou encarar Thomas Bowmans sem me lembrar que já vi sua filha em trajes íntimos?
– Filhas – corrigiu Simon. – As duas estavam lá.
– Só reparei na mais alta.
– Lillian?
– Isso, ela mesma. – Westcliff franziu o cenho. – Por Deus, não é de admirar que continuem solteiras. São umas pervertidas, mesmo para os padrões americanos. E o modo como ela se dirigiu a mim, como se fosse eu que devesse me envergonhar por interromper sua diversão depravada...
– Westcliff, está soando um tanto moralista – interrompeu-o Simon, divertindo-se com a veemência do conde. – Umas poucas meninas inocentes em um prado não é algo que possa ser considerado o fim da civilização tal como a conhecemos. Se fossem moças da plebe, você não estaria pensando desse jeito. Que conversa fiada, você provavelmente teria é se juntado a elas. Já o vi fazer coisas com suas amantes em festas e bailes que...
– Bem, elas não são plebeias, não é verdade? São jovens damas, ou pelo menos deveriam ser.
Por que, em nome de Deus, um grupo de damas não casadas estaria se comportando dessa forma?
Simon sorriu ao ouvir o tom ofendido do amigo.
– Minha impressão é a de que se uniram justamente por causa do estado civil que compartilham. Durante a maior parte da temporada passada elas ficaram lá sentadas sem falar uma com a outra, mas parece que recentemente resolveram se tornar amigas.
– Para quê? – perguntou o conde com profunda suspeita.
– Talvez só estejam tentando se divertir? – sugeriu Simon, interessado no nível de objeção que Westcliff apresentava com relação ao comportamento das meninas.
Lillian Bowman, em particular, parecia tê-lo incomodado bastante. E isso era algo incomum para o conde, que sempre tratou as mulheres de modo apático e com tranquilidade. Até onde Simon sabia, apesar da quantidade de mulheres que o perseguiam dentro e fora da cama, Westcliff nunca deixara de lado sua indiferença. Até agora.
– Se é assim, deveriam estar bordando, ou fazendo o que quer que damas fazem para se divertir – grunhiu o conde. – Ao menos deveriam encontrar um hobby em que não houvesse a necessidade de correrem nuas pelo campo.
– Elas não estavam nuas – observou Simon. – Para minha extrema tristeza.
– Esse comentário me impele a dizer uma coisa – comentou Westcliff. – Como sabe, não sou muito chegado a dar conselhos quando não me pedem...
Simon o interrompeu com uma gargalhada.
– Westcliff, duvido que tenha passado um só dia da sua vida sem dar conselhos a alguém sobre alguma coisa.
– Só dou um conselho quando se faz obviamente necessário – retrucou o conde de cara amarrada.
Simon lançou-lhe um olhar irônico.
– Despeje em mim, então, sua sabedoria, pois parece que precisarei ouvi-lo, querendo ou não.
– Trata-se da Srta. Peyton. Se for inteligente, dissipe todas as suas intenções em relação a ela.
É uma mulher superficial, além de ser a criatura mais egoísta que já conheci. A fachada é bonita, admito... Mas, na minha opinião, não há nada por baixo que seja recomendável. Não tenho dúvidas de que está pensando em fazer dela sua amante, caso a tentativa com Kendall não resulte em êxito. Eu o aconselho a não fazer isso. Há mulheres que têm muitíssimo mais a oferecer a você.
Simon deixou passar um instante antes de responder. Seus sentimentos por Annabelle Peyton eram desconfortavelmente complexos. Ele a admirava, gostava dela e não tinha o direito de julgá-la com dureza por ter se tornado amante de outro homem. No entanto, e apesar de tudo, a possibilidade concreta de ela ter se deitado com Hodgeham lhe provocava um misto de inveja e raiva que o deixava atônito.
Depois de ouvir o que lorde Burdick andava espalhando, um boato de que Annabelle tinha se tornado amante de lorde Hodgeham, Simon não conseguiu deixar de investigar tal afirmação.
Pediu a seu pai, que mantinha os livros de contabilidade escrupulosamente organizados, para ver se alguém tinha lhe dado dinheiro a fim de pagar as dívidas dos Peytons no açougue. Seu pai confirmou, sem deixar margens para qualquer dúvida, que lorde Hodgeham acertara de vez em quando as contas da família. Apesar de não provar nada conclusivamente, isso aumentava ainda mais a possibilidade de Annabelle ter mesmo se tornado amante de Hodgeham. As evasivas da moça durante a conversa que tiveram na manhã anterior não ajudaram muito a desmentir tal boato.
Evidentemente a situação da família Peyton era desesperadora. Porém, o motivo de Annabelle ter recorrido a um sujeito velho e gordo como Hodgeham para ajudá-los era um mistério. Por outro lado, muitas escolhas que fazemos na vida, sejam boas ou más, são resultado de uma decisão de momento. Talvez Hodgeham tenha aparecido numa hora em que as defesas de Annabelle estivessem mais fracas e ela se deixou convencer a se entregar ao velho asqueroso em troca do dinheiro que ela tanto precisava.
Ela não tinha nem botinas para caminhar. Santo Deus. A generosidade de Hodgeham devia ser insignificante, pois, apesar dos poucos vestidos novos, Annabelle não tinha condições de comprar sapatos decentes ou roupas íntimas que substituíssem as suas já esfarrapadas. Se ela precisava ser amante de alguém, podia muito bem ser sua; pelo menos receberia uma recompensa adequada pelos favores prestados. Obviamente era muito cedo para abordar uma questão como essa. Teria que esperar com paciência ela tentar arrancar uma proposta de casamento de lorde Kendall. E ele não pretendia fazer nada que prejudicasse suas possibilidades de conseguir isso.
Mas, se ela falhasse com Kendall, queria se aproximar dela fazendo uma oferta muito melhor do que a que tinha atualmente com Hodgeham.
Quando imaginou Annabelle deitada nua em sua cama, Simon sentiu o túmido desejo se reacender e lutou para retomar o fio da conversa.
– Por que lhe parece que tenho algum interesse pela Srta. Peyton? – perguntou em tom evasivo.
– Pelo fato de quase ter caído do cavalo quando a viu de roupas íntimas.
O comentário fez Simon dar um sorriso relutante.
– Tendo uma fachada como aquela, não dou a mínima para o que está por baixo.
– Pois deveria – retrucou o conde, enfático. – A Srta. Peyton é uma rapariga que só pensa em si mesma como se é que um dia vi igual.
– Westcliff – disse Simon de forma amistosa. – Já lhe ocorreu alguma vez que possa ocasionalmente estar errado? Sobre algo sequer?
O conde pareceu perplexo com a pergunta.
– Na verdade, não.
Simon balançou a cabeça com um sorriso pesaroso e esporeou o cavalo para acelerar o passo.
CAPÍTULO 11
No caminho de volta para a mansão de Stony Cross, Annabelle começou a sentir uma dor bem desconfortável no tornozelo. Devia tê-lo torcido durante o jogo, embora não se lembrasse do momento exato em que teria acontecido. Suspirou fundo, ergueu a cesta que carregava e apressou o passo para ficar perto de Lillian, que tinha um ar pensativo. Daisy e Evie estavam alguns metros atrás delas, envolvidas em uma conversa séria.
– Com o que está preocupada? – perguntou a Lillian em voz baixa.
– Com o conde e o Sr. Hunt... Você acha que eles vão contar a alguém que nos viram esta tarde? Seria péssimo para a nossa reputação.
– Não acho que Westcliff faria isso – respondeu Annabelle depois de refletir por um instante.
– Estou inclinada a acreditar naquela observação que fez sobre a amnésia. Ele não me parece um homem dado a fofocas.
– E o Sr. Hunt?
Annabelle franziu o cenho.
– Não sei. Não pude deixar de notar que ele não fez qualquer promessa sobre manter silêncio.
Suponho que ficará de boca fechada se achar que pode ganhar algo com isso.
– Nesse caso, é você quem vai ter que pedir isso a ele. Assim que o vir esta noite no baile, você deve fazê-lo prometer que não vai contar a ninguém a respeito do nosso jogo de rounders.
Ao lembrar-se do baile que aconteceria na mansão naquela noite, Annabelle gemeu. Era quase certo, quer dizer, era certo que não seria capaz de enfrentar Hunt depois do que acontecera.
No entanto, Lillian tinha razão. Não podia simplesmente achar que Hunt ficaria em silêncio.
Precisaria falar com ele, embora essa perspectiva não lhe agradasse em nada.
– E por que eu? – perguntou, já sabendo a resposta.
– Porque Hunt gosta de você. Todo mundo sabe disso. Ele se mostrará muito mais inclinado a fazer algo se for você quem lhe pedir.
– Ele não vai fazer nada sem algo em troca – murmurou Annabelle, sentindo o tornozelo latejar ainda mais. – E se me propuser algo inapropriado?
Sua pergunta foi seguida por uma longa pausa.
– Vai ter que lhe dar algum prêmio de consolação – emendou Lillian.
– Que tipo de prêmio? – indagou Annabelle, desconfiada.
– Bom, que tal permitir que ele lhe dê um beijo se isso for mantê-lo calado?
Atônita por perceber que Lillian podia dizer uma coisa daquela de forma tão indiferente, Annabelle respirou fundo e exclamou:
– Meu Deus, Lillian! Não posso fazer isso!
– Por que não? Já beijou outros homens antes, não?
– Já, mas...
– Todos os lábios são iguais. Só trate de se assegurar que ninguém veja e que seja rápido.
Assim o Sr. Hunt ficará satisfeito e nosso segredo estará a salvo.
Annabelle balançou a cabeça dando uma risada nervosa, enquanto seu coração acelerava só de pensar na ideia. Não podia deixar de se lembrar do beijo secreto de tanto tempo atrás no teatro panorâmico, dos segundos de devastadora comoção sensual que a deixaram abalada e sem palavras.
– Você só precisará deixar bem claro que tudo o que ele vai ter de você é um beijo –
prosseguiu Lillian –, e que só acontecerá uma vez.
– Perdoe-me se estou jogando areia no seu plano... Mas ele fede como peixe podre. Nem todos os lábios são iguais. Não se forem os do rosto de Simon Hunt! Ele nunca ficaria satisfeito com algo tão trivial quanto um beijo, e eu não poderia oferecer nada além disso.
– Você realmente acha o Sr. Hunt tão repulsivo? – indagou Lillian como quem não quer nada. – Na verdade, ele não é tão ruim assim. Eu até diria que o acho bonito.
– Eu o acho tão insuportável que jamais reparei em sua aparência. Mas devo admitir que ele é... – Confusa, ficou em silêncio pensando naquela pergunta com um novo e inquietante rigor.
Objetivamente falando, se é que era possível ser objetiva a respeito de Simon Hunt, devia admitir que ele era um homem bem-apessoado. A palavra “bonito” era usada em geral para pessoas com traços proporcionais e constituição elegante. Mas ele redefinia o termo com seu semblante anguloso, olhos audaciosos, um nariz de características marcantes, sem dúvida bem masculino, e lábios carnudos, que sempre ostentavam um sorriso irreverente. Mesmo sua estatura e força muscular pouco comum pareciam lhe cair muito bem, como se a natureza tivesse reconhecido que ele não era uma criatura que se conformaria com meias medidas.
Simon Hunt tinha feito com que ela se sentisse desconfortável desde que se conheceram.
Apesar de nunca tê-lo visto de outra forma que não impecavelmente vestido e cheio de autocontrole, sempre teve a sensação de que Hunt era, na melhor das hipóteses, domesticado.
Seus instintos mais profundos lhe diziam que sob a fachada de zombaria havia um homem capaz de sentir uma paixão tão profundamente alarmante que podia beirar a brutalidade. Ele não era um homem que pudesse ser dominado.
Tentou imaginar o rosto moreno de Simon Hunt acima do dela, a sensação quente da sua boca, seus braços a envolvendo, assim como antes, só que desta vez ela participaria voluntariamente. Ele era apenas um homem, relembrou a si mesma, nervosa. E um beijo era algo efêmero. Mas enquanto durasse estaria unida a ele. E, a partir de então, cada vez que se encontrassem ele iria se vangloriar internamente.
Ela esfregou a testa que de repente estava dolorida como se tivesse sido golpeada por um taco de rounders.
– Não podemos apenas ignorar essa história toda e esperar que ele tenha o bom senso de ficar de boca fechada?
– Ah, claro – respondeu Lillian, sarcástica –, o Sr. Hunt é frequentemente associado à expressão “bom senso”. De toda forma, podemos cruzar os dedos e esperar... se seus nervos puderem suportar o suspense.
Enquanto massageava as têmporas, Annabelle suspirou angustiada.
– Está certo. Vou abordá-lo esta noite. Vou... – Hesitou por um longo momento e depois prosseguiu: – E até o beijarei se for necessário. Mas vou considerar que isso é mais do que suficiente para pagar todos os vestidos que vocês deram.
Um sorriso satisfeito se formou no rosto de Lillian.
– Estou certa de que poderá chegar a um acordo com o Sr. Hunt.
Depois que se separaram na mansão, Annabelle foi para o quarto descansar pelo resto da tarde. Esperava com isso estar recuperada para a ceia e o baile. Não viu a mãe em lugar nenhum; ela provavelmente tinha ido tomar chá com algumas damas no salão do andar de baixo. Grata por sua ausência, Annabelle foi se trocar e se banhar sem precisar enfrentar perguntas indesejadas.
Embora Philippa fosse uma mãe carinhosa e, em geral, permissiva, não teria reagido bem à notícia de que a filha se envolvera em um escândalo com as irmãs Bowmans.
Depois de vestir roupas íntimas limpas, deslizou para baixo dos lençóis passados e macios.
Para sua frustração, a dor lancinante no tornozelo não a deixou dormir. Cansada e irritada, chamou uma criada para que lhe preparasse uma tina com água fria para o pé machucado. Ficou sentada com o pé imerso por uma boa meia hora. Era evidente que o tornozelo estava inchado, o que a fez concluir de mau humor que aquele tinha sido, em especial, um dia bem azarado.
Praguejou quando o tecido da meia limpa que calçava bem devagar tocou a pele pálida e edemaciada de seu tornozelo. Voltou a chamar a criada, pois precisava de ajuda para fechar o espartilho e prender a parte de trás do vestido amarelo de seda.
– Senhorita? – murmurou a criada, preocupada, olhando de esguelha para o rosto tenso de Annabelle. – Está parecendo um pouco sufocada. Quer que lhe traga algo? A governanta guarda um tônico no armário para doenças femininas...
– Não, não se trata disso – assegurou Annabelle com um débil sorriso. – Estou com umas pontadas no tornozelo.
– Que tal então um pouco de chá de casca de salgueiro? – sugeriu a moça abotoando o vestido de festa de Annabelle. – Vou correndo lá embaixo e preparo em um segundo, assim a senhorita poderá tomar enquanto faço seu penteado.
– Ah, sim, obrigada. – Ficou parada esperando os ágeis dedos da criada acabarem de fechar o vestido e depois se sentou agradecida diante da penteadeira. Contemplou o próprio reflexo tenso no espelho de estilo Rainha Anne. – Não consigo lembrar como me machuquei. Em geral não sou tão desajeitada.
A criada afofou o tule dourado que adornava as mangas do vestido de Annabelle.
– Volto em um instante com o chá, senhorita. Depois que o tomar vai se sentir melhor.
Philippa entrou no quarto assim que a criada saiu. Sorriu ao ver Annabelle com o vestido amarelo de baile, foi até ela e postou-se às suas costas, fitando os olhos da filha pelo espelho.
– Você está linda, querida.
– Pois estou me sentindo péssima – disse Annabelle em tom cáustico. – Torci o tornozelo na caminhada com as outras meninas solteironas esta tarde.
– Vocês precisam se referir a si mesmas dessa forma? – perguntou Philippa, visivelmente incomodada. – Com certeza não seria tão difícil encontrar um nome mais lisonjeiro para o seu grupo de amigas...
– Mas esse é bem apropriado – rebateu Annabelle com um sorriso. – Posso usar um toque de ironia quando falar essa palavra, se fizer você se sentir melhor.
Philippa deu um suspiro.
– Por ora temo ter esgotado toda a minha capacidade de lidar com ironias. Não é fácil para mim ver você lutar e conspirar enquanto as outras meninas conseguem tudo de mão beijada. Vê-la usar vestidos emprestados e pensar no peso que carrega nas costas... Pensei mil vezes que, se seu pai não tivesse morrido e se tivéssemos um pouco mais de dinheiro...
Annabelle deu de ombros.
– Como diz o ditado, mamãe, “águas passadas não movem moinhos”.
Philippa fez um carinho suave no cabelo da filha.
– Por que não fica no quarto descansando hoje à noite? Posso ler para você enquanto repousa com os pés para cima...
– Não me tente – disse Annabelle, emocionada. – Não consigo pensar em nada melhor, mas não posso me dar ao luxo de ficar aqui hoje à noite. Não posso perder uma única oportunidade de impressionar lorde Kendall. – E de negociar com Simon Hunt, pensou, sentindo uma pontada de apreensão.
Depois de beber uma grande xícara de chá de casca de salgueiro, Annabelle foi capaz de descer a escada sem estremecer de dor, embora o inchaço do tornozelo se recusasse a diminuir. Teve tempo de conversar um pouco com Lillian antes que os convidados fossem levados para a sala de jantar. O pouco de sol que havia tomado deixara as bochechas da amiga rosadas e brilhantes, e seus olhos castanhos assumiram um tom aveludado à luz das velas.
– Até agora lorde Westcliff fez um esforço óbvio para evitar as solteironas – disse Lillian com um sorriso. – Você tinha razão. Não precisamos nos preocupar com ele. Nosso único possível problema é com o Sr. Hunt.
– Também não vai nos causar dor de cabeça – observou Annabelle com seriedade. – Como prometi, vou falar com ele.
Lillian respondeu com um sorriso aliviado.
– Você é um doce, Annabelle.
Ao se sentarem à mesa, Annabelle ficou desconcertada ao descobrir que a anfitriã reservara a lorde Kendall um lugar muito próximo ao dela. Em qualquer outra ocasião teria achado isso um presente divino, mas nesta noite em especial não estava no melhor dos humores. Não se sentia capaz de estabelecer uma conversa inteligente com o tornozelo latejando e a cabeça doendo. Para deixá-la ainda mais desconfortável, Simon Hunt estava sentado à sua frente, e ostentava um ar autocomplacente. Como se isso não bastasse, um mal-estar a impedia de fazer justiça ao magnífico jantar. Sem o apetite saudável de costume, alimentava-se com indiferença às delícias do seu prato. Toda vez que erguia a cabeça, encontrava os olhos de Simon Hunt voltados em sua direção, o que a fez se preparar para alguma provocação sutil. Felizmente, porém, os poucos comentários que ele lhe dirigiu foram sem graça e triviais, permitindo que o jantar terminasse sem qualquer incidente.
Quando a música flutuou no ar, vinda do salão, encerrando o jantar, Annabelle ficou feliz em pensar que o baile começaria em breve. Pela primeira vez a ideia de se sentar ao lado das solteironas para descansar os pés enquanto as outras moças dançavam a fazia feliz. Achava que tinha tomado sol demais durante o dia e que esse era o motivo pelo qual estava se sentindo mal e dolorida. Lillian e Daisy, ao contrário dela, pareciam mais saudáveis e vibrantes do que nunca.
Infelizmente, Evie levou uma reprimenda da tia, que a deixou de castigo.
– O sol faz com que fique cheia de sardas – contou Daisy a Annabelle com tristeza. – Depois do nosso passeio, tia Florence disse a Evie que ela ficaria manchada feito um leopardo e a proibiu de vir se juntar a nós até sua pele voltar ao normal.
Annabelle franziu a testa, sentindo-se invadida por uma onda de compaixão pela amiga.
– Essa tia Florence é uma megera – murmurou. – É óbvio que seu único objetivo na vida é fazer Evie se sentir terrivelmente mal.
– E faz isso como ninguém – concordou Daisy. De repente, viu algo por cima do ombro de Annabelle que a fez arregalar os olhos. – Meu Deus! O Sr. Hunt está se aproximando. Estou morta de sede, por isso vou até a mesa dos refrescos e deixarei vocês dois para, é...
– Lillian falou com você? – indagou Annabelle, zangada.
– Falou, sim. Ela, Evie e eu estaremos para sempre muito gratas pelo sacrifício que vai fazer por todas nós.
– Sacrifício – repetiu Annabelle, que não gostava nada de como aquela palavra soava. – Isso é um pouco de exagero, não? Como disse Lillian: “Todos os lábios são iguais.”
– Isso foi o que ela disse a você – retrucou Daisy com ar travesso. – Para mim e Evie ela disse que preferia morrer a ter que beijar um homem como o Sr. Hunt.
– O quê...? – principiou Annabelle, mas Daisy já tinha se afastado, rindo.
Começava a se sentir como uma virgem atirada ao inferno em sacrifício quando ouviu a voz profunda de Simon Hunt ao pé do ouvido. O sarcasmo dito de modo calmo e em tom grave pareceu reverberar pela espinha de Annabelle.
– Boa noite, Srta. Peyton. Vejo que está inteiramente vestida... para variar.
Annabelle rangeu os dentes e se virou para fitá-lo.
– Devo confessar, Sr. Hunt, que fiquei espantada com sua discrição durante o jantar.
Esperava uma chuva de comentários vexatórios, mas o senhor conseguiu se comportar como um perfeito cavalheiro durante uma hora inteira.
– Foi um grande esforço – reconheceu ele gravemente. – Mas achei que era melhor deixar os comportamentos indecorosos por sua conta – e fez uma pausa circunspecta antes de acrescentar
–, já que ultimamente eles parecem estar lhe caindo como uma luva.
– Minhas amigas e eu não fizemos nada de errado!
– Eu por acaso disse que reprovava o fato de vocês jogarem rounders nuas em pelo? –
perguntou ele simulando inocência. – Pelo contrário, na verdade acho que deveriam fazer isso todos os dias.
– Eu não estava jogando “nua em pelo” – rebateu Annabelle com um sussurro cortante. –
Estava usando roupas de baixo.
– Ah, aquilo eram roupas de baixo? – perguntou ele com indolência.
Annabelle ficou vermelha, arrasada ao entender que ele tinha notado o estado lastimável de suas roupas íntimas.
– Já contou a alguém que nos viu no prado? – indagou, tensa.
Obviamente, essa era a deixa que ele estava esperando. Um sorriso apareceu em seus lábios.
– Ainda não.
– Está planejando fazê-lo?
Hunt recebeu a pergunta com um ar meditativo, sem esconder que começava a se divertir com a situação.
– Não planejo, não... – disse, dando de ombros. – Mas sabe como são as coisas. Às vezes, por um descuido, esse tipo de assunto é mencionado durante uma conversa...
Annabelle estreitou os olhos.
– O que será preciso fazer para que mantenha silêncio?
Hunt fingiu estar chocado com aquela franqueza.
– Srta. Peyton, deveria aprender a lidar com essas questões com um pouco mais de diplomacia, não acha? Pensei que uma dama com seu refinamento usaria de tato e delicadeza...
– Não tenho tempo para diplomacia – interrompeu-o Annabelle, com o cenho franzido. – E é óbvio que não podemos assegurar o seu silêncio sem lhe oferecermos algum tipo de suborno.
– A palavra “suborno” tem conotações tão negativas – observou Hunt. – Prefiro chamar de incentivo.
– Chame do que quiser – disse ela, impaciente. – Passemos às negociações, então.
– Tudo bem. – Hunt estava sério, mas no fundo de seus olhos cor de café era possível ver o brilho do riso contido. – Suponho que eu poderia ser persuadido a manter silêncio sobre suas escandalosas peripécias, Srta. Peyton, com o incentivo necessário.
Annabelle ficou em silêncio, os olhos voltados para baixo enquanto pensava no que estava prestes a dizer. Uma vez que as palavras tivessem sido ditas, não poderia voltar atrás. Meu Deus, por que ficara logo a cargo dela a tarefa de comprar o silêncio de Hunt a respeito da partida de rounders se nem ao menos queria ter jogado?
– Se o senhor fosse um cavalheiro isso não seria necessário.
O esforço para reprimir o riso fez com que a voz de Hunt soasse ainda mais grave.
– Não, não sou um cavalheiro. Mas sou obrigado a recordar a você que não era eu quem estava correndo praticamente despido no prado esta tarde.
– Será que pode se calar? – sussurrou ela, brusca. – Alguém pode ouvi-lo.
Hunt a observava fascinado, com olhos escuros e eloquentes.
– Faça sua melhor oferta, Srta. Peyton.
Olhando fixo para a parede, em um ponto acima do ombro de Hunt, Annabelle começou a falar com a voz sufocada, sentindo as orelhas tão quentes a ponto de quase chamuscar seu cabelo.
– Se prometer guardar segredo sobre a partida de rounders... deixarei que me beije.
O silêncio que se seguiu à proposta foi insuportável. Annabelle se forçou a olhar para cima e viu que Hunt estava verdadeiramente surpreso. Olhava para ela como se tivesse acabado de ouvi-la falar uma língua estrangeira e não soubesse ao certo o significado daquelas palavras.
– Um beijo – repetiu Annabelle, nervosíssima pela tensão que havia se instaurado entre eles.
– E não pense que por deixar que o faça uma vez eu concordaria que se repetisse no futuro.
Hunt respondeu com cautela, o que não era nada comum, parecendo escolher as palavras com o maior cuidado.
– Achei que fosse me oferecer uma dança. Uma valsa ou quadrilha.
– Cheguei a pensar nisso – confessou ela. – Mas um beijo me parece mais oportuno, sem falar que é muito mais rápido que uma valsa.
– Não os meus beijos.
Essa declaração fez os joelhos de Annabelle começarem a tremer.
– Não seja ridículo – replicou ela de imediato. – Uma valsa comum dura pelo menos três minutos. Não se poderia beijar alguém por tanto tempo.
A voz de Hunt estava imperceptivelmente mais grave quando ele respondeu:
– Deve saber melhor do que ninguém, é claro. Muito bem, aceito sua oferta. Um beijo em troca do meu silêncio. Vou decidir quando e onde isso vai acontecer.
– O “quando” e o “onde” serão determinados em comum acordo – rebateu Annabelle. – O
motivo de tudo isso é não comprometer a minha reputação, então, não estou disposta a me arriscar deixando-o escolher um momento ou um lugar inapropriado.
Hunt sorriu com ironia.
– Que boa negociadora, Srta. Peyton. Que Deus nos acuda se no futuro resolver ingressar no mundo dos negócios.
– Não, minha única ambição é me tornar Lady Kendall – retrucou Annabelle com uma doçura venenosa, e ficou satisfeita ao ver o sorriso de Hunt desvanecer.
– Seria uma lástima – afirmou ele. – Para você e para ele.
– Vá para o raio que o parta, Sr. Hunt – disse Annabelle com um fio de voz, e se afastou, ignorando a dor intensa do tornozelo torcido.
A caminho do terraço dos fundos, ela percebeu que a lesão havia piorado e as dores chegavam até o joelho.
– Que inferno! – murmurou.
Nessas condições, dificilmente conseguiria obter qualquer avanço na relação com lorde Kendall. Não era fácil assumir uma atitude sedutora estando a ponto de gritar de dor. Sentindo-se de repente exausta e derrotada, decidiu que voltaria para o seu quarto. Agora que o acordo com Hunt havia sido selado, a melhor coisa a fazer era descansar o tornozelo e esperar que estivesse melhor pela manhã.
A cada passo que dava, porém, a dor se intensificava, até que ela começou a sentir gotas de suor frio escorrerem sob as grossas camadas do espartilho. Nunca tinha se machucado dessa forma. E não era só a perna que doía, mas a cabeça girava e o corpo todo latejava. De súbito, o conteúdo de seu estômago começou a se revolver de um jeito alarmante. Precisava de ar... Tinha que se refugiar na fresca escuridão da noite, sentando-se em algum lugar até que as náuseas diminuíssem. A porta do terraço parecia a quilômetros de distância, e ela se perguntou, meio entorpecida, como conseguiria alcançá-la.
Felizmente, as irmãs Bowmans se aproximaram quando se deram conta de que a conversa com Simon Hunt tinha terminado. O sorriso de expectativa no rosto de Lillian desapareceu quando viu a expressão sofrida de Annabelle.
– Você está com uma aparência horrível! – exclamou Lillian. – Meu Deus, o que o Sr. Hunt lhe disse?
– Ele concordou com o beijo – respondeu ela prontamente, ainda se dirigindo ao terraço dos fundos mancando. Mal podia ouvir a música da orquestra com aquele zumbido no ouvido.
– Se a perspectiva é tão apavorante assim... – principiou Lillian.
– Não é isso – disse Annabelle exasperada de dor. – É o meu tornozelo. Eu o torci no início do dia e agora mal posso andar.
– Por que não disse antes? – quis saber Lillian, preocupada. Seu braço fino mostrou-se inesperadamente forte quando ela o passou pela cintura de Annabelle. – Daisy, vá até a porta e a mantenha aberta enquanto saímos daqui.
As irmãs a ajudaram a chegar ao terraço. Lá, Annabelle enxugou o suor da testa com a mão enluvada.
– Acho que vou passar mal – disse gemendo e com uma sensação desagradável da boca se enchendo de saliva e da bílis irritando a garganta. Sua perna doía como se tivesse sido esmagada por uma carruagem. – Ai, Deus, não posso. Não posso passar mal agora.
– Está tudo bem – consolou Lillian, guiando-a para um canteiro de flores disposto nas bordas do terraço. – Ninguém está vendo você, querida. Vomite à vontade. Daisy e eu cuidaremos de você.
– Isso mesmo – concordou Daisy atrás delas. – Amigas de verdade não se importam em segurar sua cabeça enquanto você põe os bofes para fora.
Annabelle teria rido se não estivesse tão abatida pelos espasmos provocados pelo enjoo. Por sorte não tinha comido muito no jantar, de modo que tudo aconteceu bem rápido. Seu estômago entrou em erupção, e ela não teve escolha a não ser se render. Ofegante, vomitou no canteiro de flores, gemendo.
– Sinto muito. Sinto muito mesmo, Lillian...
– Não seja ridícula – respondeu calmamente a americana. – Você faria o mesmo por mim, não é?
– Claro que sim... Mas você não seria tão tola quanto...
– Não está sendo tola – replicou Lillian com suavidade. – Está doente. Venha, pegue o meu lenço.
Ainda debruçada, Annabelle agradeceu e pegou com gratidão o lenço de linho bordado, mas o afastou quando sentiu o cheiro de perfume.
– Argh, não posso... – sussurrou. – O cheiro. Não tem nenhum sem perfume?
– Ai, porcaria! – exclamou Lillian em tom de desculpa. – Daisy, onde está o seu lenço?
– Esqueci de trazê-lo – respondeu a menina.
– Terá que usar este mesmo – disse Lillian a Annabelle. – É o único que temos.
Então, uma voz masculina se intrometeu na conversa.
– Pegue este.
CAPÍTULO 12
Enjoada demais para perceber o que acontecia à sua volta, Annabelle pegou o lenço limpo que lhe puseram na mão. Por sorte não tinha cheiro, exceto por uma suave nota de goma de passar.
Depois de secar o suor do rosto e limpar a boca, ela conseguiu se aprumar e encarar o recém-chegado. Seu estômago dolorido se contorceu de forma lenta e agonizante ao ver Simon Hunt.
Pelo visto ele a seguira até ali, aproximando-se a tempo de testemunhar suas humilhantes náuseas. Ela queria morrer. Se tivesse pelo menos conseguido expirar no ritmo certo momentos antes, apagando para toda a eternidade o fato de que Simon Hunt a vira pôr os bofes para fora no canteiro de flores.
O rosto de Hunt estava impassível, a não ser pelo cenho franzido. Mais que depressa, ele estendeu o braço para segurá-la quando a viu cambalear na sua frente.
– Pensando em nosso recente acordo – murmurou ele –, isso não é muito animador, Srta.
Peyton.
– Ora, vá embora daqui – pediu Annabelle com um gemido. No entanto, uma nova onda de náusea fez com que se apoiasse no forte suporte oferecido pelo corpo de Hunt.
Ela apertou o lenço na boca e respirou pelo nariz até que a ânsia de vômito passou. Sentia uma fraqueza tão debilitante, a pior que já sentira em toda a vida, que, se ele não estivesse ali, Annabelle provavelmente teria despencado no chão. Meu Deus, o que havia de errado com ela?
Hunt se ajeitou de imediato, segurando-a com facilidade.
– Achei que estava um pouco pálida – observou ele com gentiliza, afastando uma mecha de cabelo que havia grudado na testa úmida dela. – Qual é o problema, doçura? É só o estômago ou tem algo mais doendo?
Em algum ponto sob as camadas de sofrimento, Annabelle se surpreendeu ao ouvir Hunt lhe chamar de doçura, sem mencionar o fato de que um cavalheiro jamais deve mencionar partes internas de uma dama. No entanto, ela estava passando muito mal para fazer qualquer coisa a não ser se segurar ao paletó dele. Concentrando-se na pergunta, avaliou o caos que havia na parte interna de seu inóspito corpo.
– Meu corpo todo dói – sussurrou. – A cabeça, o estômago, as costas... mas, sobretudo, o tornozelo.
Ao falar, Annabelle notou que os lábios estavam dormentes. Umedeceu-os, alarmada com a falta de sensibilidade. Se estivesse menos desorientada, teria percebido que Hunt a fitava como nunca havia feito antes. Mais tarde, Daisy descreveria em detalhes o modo protetor com que Simon Hunt a segurara nos braços. Por ora, no entanto, Annabelle se sentia combalida o bastante para perceber qualquer coisa que não fosse o próprio mal-estar.
Lillian falou com rudeza e se aproximou para tirar Annabelle dos braços de Hunt.
– Obrigada por emprestar seu lenço, senhor. Agora pode ir, minha irmã e eu somos totalmente capazes de cuidar da Srta. Peyton.
Ignorando a americana, Hunt manteve o braço em torno de Annabelle enquanto fitava seu rosto pálido.
– Como machucou o tornozelo? – perguntou.
– Na partida de rounders, eu acho...
– Não a vi beber nada durante o jantar. – Hunt pôs a mão na testa dela para checar se havia algum sinal de febre. O gesto foi surpreendentemente íntimo e familiar para ele. – Tomou algo antes?
– Está se referindo a licores ou vinho? Não. – O corpo de Annabelle parecia desmoronar aos poucos, como se a mente tivesse renunciado ao controle de qualquer movimento. – Tomei um pouco de chá de casca de salgueiro ainda no quarto.
A mão quente de Hunt deslizou pelo rosto dela, moldando-se suavemente à curva da bochecha. Annabelle estava com muito frio, tremendo sob aquele vestido empapado de suor e com a pele toda arrepiada. Ao sentir o calor acolhedor que emanava do corpo de Hunt, quase cedeu ao impulso de se aninhar sob seu paletó como um bichinho que se enfia em uma toca.
– Estou congelando – sussurrou ela, e então sentiu o braço de Hunt se apertar ao seu redor.
– Segure-se em mim – murmurou ele, cobrindo-a habilmente com o paletó sem deixar de apoiar o corpo trêmulo da moça.
A peça de roupa com que ele a envolveu ainda conservava o calor de seu corpo, o que fez Annabelle grunhir algo incompreensível em sinal de gratidão.
Irritada ao ver aquele adversário detestável segurar a amiga, Lillian disse impaciente:
– Veja, Sr. Hunt, minha irmã e eu...
– Vá procurar a Sra. Peyton – interrompeu-a Hunt, com um tom não menos autoritário, embora suave. – E diga a lorde Westcliff que a Srta. Peyton precisa de um médico. Ele saberá quem chamar.
– E o que o senhor vai fazer? – perguntou Lillian, que claramente não estava acostumada a receber ordens dessa forma.
Hunt semicerrou os olhos quando respondeu.
– Vou levar a Srta. Peyton para dentro pela entrada de serviço, que fica em uma das laterais da mansão. Sua irmã virá conosco para evitar eventuais boatos sobre falta de decoro.
– Isso demonstra bem como o senhor conhece pouco a respeito de decoro – alfinetou Lillian.
– Não penso em discutir esse assunto no momento. Tente ser útil de alguma forma, está bem?
Vá.
Depois de uma pausa carregada de tensão, Lillian se virou furiosa e caminhou em direção às portas do salão de baile.
Daisy estava visivelmente boquiaberta.
– Acho que ninguém nunca se atreveu a falar com minha irmã desta forma. O senhor é o homem mais corajoso que já conheci, Sr. Hunt.
Hunt se inclinou com cuidado para passar o braço por baixo dos joelhos de Annabelle. E
ergueu com facilidade aquele monte que era o seu corpo trêmulo com as saias de seda farfalhantes. Annabelle nunca tinha sido carregada no colo por um homem. Não podia acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo.
– Acho que... eu poderia andar uma parte do caminho – conseguiu dizer.
– Você não conseguiria nem descer a escada do terraço – afirmou Hunt, categórico. – Então me dê o prazer de demonstrar o lado cavalheiresco da minha natureza. Pode passar os braços em volta do meu pescoço?
Ela obedeceu, grata por não ter que apoiar o peso do corpo no tornozelo machucado.
Rendendo-se à tentação de encostar a cabeça no ombro dele, ela passou o braço esquerdo em volta do pescoço de Hunt. Enquanto ele a carregava pela escada do terraço dos fundos, Annabelle sentia o movimento dos músculos sob o tecido da camisa dele.
– Não achei que você tivesse um lado cavalheiresco – observou ela, batendo os dentes quando outro calafrio a fez estremecer. – Achava que fo-fosse um completo mau-caráter.
– Não entendo de onde tiram essas ideias a meu respeito – respondeu ele olhando para ela com um brilho divertido nos olhos. – É trágico, mas sempre fui muito mal interpretado.
– Eu continuo achando que você é um mau-caráter.
Hunt sorriu e a acomodou de forma mais confortável em seus braços.
– Obviamente a doença não afetou seu julgamento.
– Por que está me ajudando depois de eu tê-lo mandado para o raio que o parta? – sussurrou ela.
– Tenho um grande interesse em preservar sua saúde. Quero que você esteja ótima quando for pagar sua dívida.
Ele desceu a escada com facilidade e rapidez, e ela notou a graça e elegância com que se movia. Não como um bailarino, porém mais como um felino à espreita. Com o rosto dele assim tão perto do seu, Annabelle viu que o uso da lâmina passada bem rente não havia conseguido disfarçar os pontinhos escuros da barba na pele. Segurando-se com mais força, ajeitou os braços em volta do pescoço dele, então a ponta de seus dedos roçaram parte do cabelo que se ondulava na nuca de Hunt.
Que pena eu estar passando tão mal, pensou. Se não estivesse com tanto frio nem tão enjoada, podia aproveitar de verdade estar sendo carregada dessa forma.
Quando chegaram ao caminho que circundava a mansão, Hunt parou para deixar que Daisy se adiantasse e fosse na frente deles.
– Pela entrada de serviço – lembrou Hunt. Daisy assentiu.
– Sim, eu sei onde é. – A moça olhou para trás enquanto os guiava. – Nunca tinha ouvido falar que uma torção no tornozelo pudesse provocar náuseas – comentou.
– Suspeito que seja algo mais do que uma simples torção no tornozelo – disse Hunt.
– Acha que foi o chá de casca de salgueiro? – perguntou Daisy.
– Não, casca de salgueiro não causaria uma reação como essa. Tenho uma suspeita sobre qual poderia ser o problema, mas não posso confirmá-la até chegarmos ao quarto da Srta. Peyton.
– Como pretende “confirmar” sua suspeita? – perguntou Annabelle, cautelosa.
– Tudo o que quero fazer é olhar o seu tornozelo. – Hunt sorriu para ela. – Certamente mereço isso depois de carregá-la nos braços por três lances de escada.
Como se pôde constatar, subir a escada com Annabelle nos braços não foi esforço nenhum para ele. Ao chegarem ao terceiro andar, a respiração dele nem sequer havia se alterado. Ela suspeitava que Hunt aguentaria levá-la para um local dez vezes mais longe sem chegar a suar a camisa. Quando lhe disse isso, a resposta veio em tom indiferente:
– Passei a maior parte da juventude carregando peças de carne para a loja do meu pai.
Carregar você é muito mais agradável.
– Encantador – murmurou Annabelle prostrada e de olhos fechados. – O sonho de toda mulher é ouvir que ela é melhor do que uma vaca morta.
Risos retumbaram no peito de Hunt enquanto ele se virava para evitar que os pés dela batessem na moldura da porta. Daisy abriu caminho para eles e ficou ali de pé, observando Hunt levar Annabelle até a cama com dossel de brocado.
– Chegamos – disse ele, começando a acomodá-la. Ele esticou o braço para ajeitar um travesseiro às costas de Annabelle, deixando-a recostada, com o tronco mais inclinado.
– Obrigada – sussurrou ela, fitando aqueles olhos escuros com cílios volumosos que a encaravam do alto.
– Quero ver sua perna.
O coração de Annabelle pareceu parar de bater com aquela declaração ultrajante. Quando o pulso voltou, as batidas eram baixas, mas aceleradas.
– Prefiro esperar a chegada do médico.
– Não estou pedindo permissão. – Ignorando aqueles protestos, Hunt esticou a mão até a barra da saia dela.
– Sr. Hunt! – exclamou Daisy, indignada, correndo na direção dele. – Não se atreva! A Srta.
Peyton está doente. Se não afastar as mãos dela agora mesmo...
– Pode ficar tranquila – replicou Hunt com ironia. – Não vou abusar da virtude da Srta.
Peyton. Não por ora. – Seu olhar se voltou para o rosto pálido de Annabelle. – Não se mova. Por mais encantadoras que sejam suas pernas, não vão me deixar excitado... – Deteve-se inalando subitamente o ar ao afastar a saia e ver o inchaço do tornozelo da moça. – Santo Deus. Até agora achei que estava lidando com uma mulher razoavelmente inteligente. Por que diabos resolveu descer nessas condições?
– Ah, Annabelle – murmurou Daisy. – Seu tornozelo está com um aspecto horrível!
– Não estava tão mal antes – disse ela, tentando se defender. – Piorou muito na última meia hora e... – Deu um grito que era um misto de susto e dor quando sentiu Hunt subir um pouco mais sua saia. – O que está fazendo? Daisy, não deixe que ele...
– Vou tirar sua meia – informou Hunt. – E, se estivesse em seu lugar, aconselharia a Srta.
Bowman a não interferir no que estou fazendo.
Daisy olhou para ele com o cenho franzido e se aproximou de Annabelle.
– E eu o aconselharia a proceder com cautela – rebateu a moça de um jeito sagaz. – Não vou ficar de braços cruzados vendo-o molestar minha amiga.
Hunt lhe dirigiu um olhar de deboche ardente. Encontrou a cinta-liga e a soltou com destreza.
– Srta. Bowman, em poucos minutos esse aposento estará repleto de visitantes, incluindo a Sra. Peyton, o lorde Westcliff e a cabeça-dura da sua irmã, seguidos dentro em breve do médico.
Até eu, experiente violador como sou, precisaria de mais tempo para molestar alguém. – A expressão dele mudou quando Annabelle arquejou de dor com seu toque suave. Hábil, ele baixou a meia com extrema leveza, mas a pele dela estava tão sensível que até a mais delicada das carícias lhe causava uma dor insuportável. – Não se mexa, doçura – murmurou ele, ainda puxando a meia da perna dolorida.
Mordendo o lábio, Annabelle observou enquanto aquela massa de cabelos escuros se inclinava em direção ao seu tornozelo. Ele o virou com todo o cuidado, tendo a preocupação de não encostar nela mais do que o necessário. Então, ficou imóvel, com a cabeça inclinada sobre a perna.
– É exatamente o que imaginei que fosse.
Daisy se aproximou e observou a região que Hunt indicava.
– O que são aquelas marcas?
– A picada de uma víbora – respondeu ele sem se virar. Arregaçou as mangas da camisa, expondo os antebraços musculosos cobertos por pelos escuros.
As duas moças olharam para ele, chocadas.
– Uma cobra me picou? – indagou Annabelle, atordoada. – Mas como? Quando? Não pode ser verdade. Eu teria sentido alguma coisa na hora... não teria?
Hunt enfiou a mão no bolso do paletó, que ainda a cobria, em busca de algo.
– Às vezes as pessoas não sentem quando são picadas. Os bosques de Hampshire são cheios de cobras nessa época do ano. É provável que tenha acontecido durante seu passeio.
Ele encontrou o que procurava, um pequeno canivete, que logo tratou de abrir. Os olhos de Annabelle se arregalaram de medo.
– O que está fazendo?
Hunt pegou a meia e a cortou em duas.
– Um torniquete.
– Se-sempre tem um desses no bolso? – Pensava nele às vezes como um pirata e, naquele instante, vendo-o de mangas arregaçadas e com um canivete na mão, tal imagem foi fortemente reforçada.
Sentado ao lado da perna esticada de Annabelle, Hunt levantou a saia dela até o joelho e prendeu uma faixa de meia em volta do seu tornozelo.
– Quase sempre – disse com sarcasmo, concentrado no que estava fazendo. – Ser filho de açougueiro me condenou a ser fascinado por facas.
– Nunca pensei... – Annabelle se deteve, arquejando de dor ao sentir a suave pressão da seda.
Hunt olhou para ela com o rosto tenso.
– Sinto muito – afirmou, enrolando cuidadosamente a meia abaixo da ferida. Para distraí-la enquanto apertava o outro torniquete, prosseguiu: – Isso é o que dá usar aqueles sapatos de dar dó para andar no mato. Você deve ter pisado em uma cobra que estava tomando sol... e quando ela viu esse belo e delicado tornozelo, decidiu dar uma mordidinha. – Ele fez uma pausa e acrescentou algo em voz baixa que soou como “não posso culpá-la”.
Com a perna pulsando e queimando, os olhos de Annabelle se encheram de lágrimas. Lutava contra a ameaça de deixar o choro vir, apertando com força a colcha de brocado sob ela.
– Por que meu tornozelo começou a doer tanto assim só agora se fui picada no início do dia?
– Pode levar várias horas até que os sintomas apareçam. – Hunt olhou para Daisy. – Srta.
Bowman, toque o sino para chamar um criado e lhe diga que precisamos de pega-pega em água fervida, imediatamente.
– O que é pega-pega? – indagou a moça, desconfiada.
– Uma planta. A governanta tem dela desidratada na despensa desde que o jardineiro foi picado ano passado.
Daisy correu para fazer o que lhe havia sido ordenado, deixando os dois temporariamente sozinhos.
– O que aconteceu com o jardineiro? – perguntou Annabelle, sem conseguir parar de bater os dentes. Sentia arrepios constantes, como se a tivessem jogado na água gelada. – Morreu?
A expressão de Hunt não se alterou, no entanto ela percebeu que a pergunta o surpreendera.
– Não – respondeu ele gentilmente, e se aproximou um pouco mais. – Não, doçura... – Ele pegou na mão trêmula dela e aqueceu os dedos de Annabelle com um aperto delicado. – As cobras de Hampshire não têm veneno suficiente para matar nada que seja maior do que um gato ou um cachorro de pequeno porte. – Tinha um olhar carinhoso quando prosseguiu. – Você vai ficar bem. Nos próximos dias sentirá um desconforto infernal, mas depois tudo voltará a ser como antes.
– Não está sendo apenas gentil, não é? – perguntou, inquieta.
Inclinando-se sobre ela, Hunt ajeitou umas mechas do cabelo de Annabelle que tinham grudado na testa molhada de suor. Apesar do tamanho de sua mão, seu toque era leve e terno.
– Nunca minto para ser gentil – murmurou ele, com um sorriso. – É um dos meus muitos defeitos.
Depois de dar instruções a um dos criados, Daisy se apressou em voltar para perto da cama.
Ergueu as sobrancelhas escuras e delgadas quando viu Hunt inclinado sobre Annabelle, mas se absteve de fazer qualquer comentário. Em vez disso, perguntou:
– Não devíamos fazer um corte no local da picada para deixar o veneno sair?
Annabelle lançou-lhe um olhar de advertência e resmungou:
– Não lhe dê ideias, Daisy!
Hunt olhou para o teto um instante antes de rebater.
– Não se faz isso para picada de cobra. – Quando voltou a atenção para Annabelle, estreitou os olhos ao perceber que ela estava com a respiração rápida e superficial. – Está com dificuldade para respirar?
Ela assentiu, lutando para inflar os pulmões, que pareciam ter encolhido a um terço do tamanho habitual. Cada vez que inspirava tinha a sensação de que alguém comprimia seu peito tão fortemente que as costelas ameaçavam quebrar com a pressão.
Hunt tocou o rosto dela com suavidade, passando o polegar sobre a superfície ressecada de seus lábios.
– Abra a boca. – Ao examinar o interior, observou: – Sua língua não está inchada, você vai ficar bem. De todo modo, vai precisar tirar o espartilho. Vire-se.
Antes que Annabelle pudesse esboçar uma resposta, Daisy protestou, indignada.
– Eu me encarregarei de ajudá-la com isso. Saia do quarto, por favor.
– Já vi outras mulheres de espartilho antes – disse ele com sarcasmo.
Daisy revirou os olhos.
– Não se faça de besta, Sr. Hunt. É óbvio que não é com o senhor que estou preocupada. Os homens não tiram o espartilho de uma jovem dama, exceto quando sua vida está correndo perigo.
E o senhor nos garantiu que não era esse o caso.
Hunt olhou para ela com uma expressão de sofrimento.
– Maldição, mulher...
– Pode maldizer à vontade – prosseguiu Daisy, implacável. – Minha irmã mais velha pragueja dez vezes melhor do que você. – Empertigou-se toda como se do alto de seu discutível um metro e cinquenta e cinco centímetros pudesse impressionar alguém. – O espartilho da Srta.
Peyton permanece até que o senhor saia do quarto.
Hunt olhou para Annabelle, que precisava tanto de ar que pouco se importava em saber quem tiraria seu espartilho, contanto que alguém o fizesse.
– Pelo amor de Deus – disse ele, impaciente, e caminhou até a janela, virando-se de costas para elas. – Não vou olhar. Vá. Faça.
Daisy obedeceu depressa ao perceber que aquela seria a única concessão que Hunt faria.
Retirou o paletó do corpo rígido de Annabelle.
– Vou desamarrar os laços nas costas e tirarei o espartilho por baixo do vestido – murmurou para a amiga. – Assim você vai permanecer decentemente coberta.
Annabelle não tinha fôlego suficiente para lhe dizer que quaisquer preocupações que pudesse ter com relação à decência não eram nada se comparadas ao problema bem mais imediato de não ser capaz de respirar. Chiando com força, virou-se de lado e sentiu Daisy pôr as mãos na parte de trás do vestido de baile ensopado de suor. Seus pulmões se contraíam em espasmos nas frustradas tentativas de puxar o precioso ar. Deixando escapar um gemido ansioso, começou a ofegar desesperada.
Daisy soltou algumas imprecações.
– Sr. Hunt, temo que precisarei de seu canivete emprestado... Os cordões do espartilho estão muito atados e não consigo... ai!
A última exclamação foi emitida quando Hunt se aproximou da cama e a empurrou para o lado, sem a menor cerimônia, e se encarregou ele mesmo de soltar o espartilho. Depois de uns talhos cuidadosos feitos com o canivete, a obstinada peça de vestuário libertou o torso de Annabelle de sua constrição.
Ela sentiu a peça ser tirada de seu corpo, que agora estava resguardado dos olhos de Hunt apenas pela fina camada do tecido de sua roupa de baixo. No estado em que se encontrava, a exposição era o de menos. No entanto, no fundo sabia que mais tarde morreria de vergonha.
Virando Annabelle de costas com a maior facilidade, como se ela fosse uma boneca de pano, Hunt se inclinou sobre ela.
– Não inspire com tanta força, doçura. – E pôs a mão espalmada na parte superior do peito dela. Mantendo propositalmente o contato entre os seus e os olhos assustados de Annabelle, ele friccionou aquela região fazendo um suave movimento circular. – Devagar. Tente relaxar um pouco.
Sem desviar o olhar do brilho escuro dos olhos dele, Annabelle tentou obedecer, mas sua garganta se apertava mais a cada respiração. Ia morrer asfixiada, naquela hora, ali mesmo.
Ele não permitia que os olhos dela se desviassem dos dele.
– Você vai ficar bem. Deixe que o ar entre e saia com suavidade. Lentamente. Isso mesmo.
Assim. – De alguma forma, o peso suave e quente daquela mão em seu peito parecia ajudar, como se ele tivesse o poder de fazer seus pulmões voltarem ao ritmo normal. – A pior parte pela qual vai passar é esta aqui – disse ele.
– Ah, ótimo. – Ela tentou responder de forma sarcástica, mas o esforço fez com que engasgasse e soluçasse.
– Não tente falar, apenas respire. Mais uma vez, devagar... e mais uma. Muito bem.
À medida que recuperava o fôlego, o pânico de Annabelle começava a desaparecer. Ele tinha razão. Era mais fácil se não lutasse para respirar. O som de sua respiração ofegante era amortizado pela hipnotizante suavidade da voz dele.
– Isso mesmo – murmurou ele. – É assim que tem que fazer.
A mão de Hunt continuava a se mover, fazendo uma rotação lenta no peito dela. Não havia nada de sexual em seu toque. Na verdade, mais parecia que ela era uma criança a que ele tentava acalmar. Annabelle estava perplexa. Quem jamais sonharia que Simon Hunt pudesse ser tão gentil?
Movida tanto por confusão quanto por gratidão, segurou aquela mão grande que se movia gentilmente em seu peito. Estava tão fraca que esse gesto consumiu todas as suas forças. Hunt já ia tirar a mão achando que ela tentava afastá-la, mas, quando sentiu que os dedos da moça se fechavam ao redor de dois dos seus, parou totalmente.
– Obrigada – murmurou ela.
O toque de Annabelle fez Hunt ficar visivelmente tenso, como se o contato tivesse provocando uma descarga elétrica em seu corpo. Não a encarou, mas ficou olhando para aqueles delicados dedos entrelaçados nos seus como um homem tentando resolver um complicado quebra-cabeça. Permanecendo imóvel, prolongou o momento, baixando a cabeça para esconder a expressão de seus olhos.
Annabelle umedeceu os lábios ressecados e descobriu que ainda não conseguia senti-los.
– Meu rosto está dormente – disse com um fio de voz, soltando a mão dele.
Hunt a fitou com um sorriso irônico de quem tinha acabado de descobrir algo inesperado sobre si mesmo.
– O pega-pega vai ajudar. – E tocou um dos lados da garganta dela, deslizando o polegar ao longo da mandíbula com um gesto que só podia ser descrito como uma carícia. – Isso me faz lembrar... – Deu uma olhada para trás como se acabasse de perceber que Daisy estava no quarto.
– Srta. Bowman, aquele maldito criado trouxe o que pedi?
– Está aqui – respondeu a moça de cabelo escuro vindo da porta com uma bandeja que acabara de chegar. Aparentemente, ambos estavam muito absortos para ouvir o criado bater à porta. – A governanta mandou o chá de pega-pega, que tem um cheiro pavoroso, e também uma pequena garrafa que o criado informou ser “tintura de urtiga”. E parece que o médico acaba de chegar e está subindo daqui a pouco... o que significa que o senhor deve sair.
Ele cerrou os dentes.
– Acho que não.
– Agora. – disse Daisy com um tom de urgência. – Pelo menos espere do lado de fora. Pelo bem de Annabelle. Sua reputação estará arruinada se o senhor for visto aqui dentro.
De cenho franzido, Hunt olhou para Annabelle.
– Quer que eu saia?
Na verdade ela não queria. Sentia um desejo irracional de lhe pedir que ficasse. As coisas deviam estar muito ruins mesmo para que desejasse a companhia de um homem que ela detestava! Mas nos últimos minutos uma frágil ligação se estabeleceu entre eles, e Annabelle se viu em uma delicada situação em que foi incapaz de dizer “sim” ou “não”.
– Vou continuar respirando – sussurrou por fim. – Seria melhor que se retirasse.
Hunt assentiu.
– Vou esperar no corredor – informou com a voz rouca, levantando-se da cama. Apontou para Daisy se aproximar com a bandeja e voltou a olhar para Annabelle. – Beba o chá de pega-pega, não importa quão ruim lhe pareça. Se não o fizer, voltarei para despejá-lo em sua garganta.
– Depois pegou o paletó e saiu do quarto.
Com um suspiro de alívio, Daisy depositou a bandeja na mesinha de cabeceira.
– Graças a Deus – comentou. – Não sabia como faria para tirá-lo daqui se ele se recusasse a sair. Espere... Deixe-me ajudá-la a se levantar um pouco mais. Vou pôr outro travesseiro nas suas costas. – A moça a ergueu com destreza, demonstrando uma surpreendente competência. Então pegou uma caneca de barro contendo uma tisana fumegante e encostou-a nos lábios da amiga. –
Tome um pouco disso, querida.
Annabelle tomou um gole do amargo líquido marrom e recuou.
– Argh...
– Mais – insistiu Daisy de forma implacável, levando a caneca até a boca da enferma.
Annabelle bebeu mais um pouco. Seu rosto estava tão entorpecido que só percebeu que parte do remédio havia escorrido dos lábios quando Daisy pegou um guardanapo e enxugou o queixo dela. Com todo o cuidado, Annabelle levantou a mão e, com a ponta dos dedos, explorou a superfície dormente de seu rosto.
– É uma sensação tão estranha – disse, com voz meio arrastada. – Não consigo sentir minha boca. Daisy... não me diga que eu babava enquanto o Sr. Hunt estava aqui?
– Claro que não – respondeu a moça imediatamente. – Se estivesse, eu teria feito alguma coisa. Uma amiga de verdade não permite que a outra babe na presença de um homem. Mesmo sendo um homem pelo qual ela não tem interesse em atrair para si.
Aliviada, Annabelle se esforçou para tomar mais um pouco do chá de pega-pega, que tinha um sabor meio parecido com o de café queimado. Talvez fosse ilusão, mas começava a se sentir um pouco melhor.
– Lillian deve ter se esfalfado para encontrar sua mãe – comentou Daisy. – Não posso imaginar por que estão demorando tanto. – Ela se afastou um pouco para observar Annabelle e seus olhos castanhos brilharam intensamente. – Apesar de tudo, estou bem feliz com isso. Se tivessem chegado depressa eu não poderia ter visto a transformação do Sr. Hunt de um grande lobo mau em... bem... em um lobo quase bom.
Um riso relutante borbulhou na garganta de Annabelle.
– Ele foi algo e tanto, não foi?
– É, foi sim. Arrogante e ah, magistral! Como um personagem desses romances tórridos que mamãe sempre arranca das minhas mãos. Ainda bem que eu estava aqui, ou, se não estivesse, ele provavelmente teria deixado todas as suas partes inomináveis expostas. – Ela continuou a tagarelar enquanto ajudava a amiga a beber mais daquele chá, limpando de novo o queixo de Annabelle. – Sabe, eu nunca pensei que diria isso, mas o Sr. Hunt não é tão terrível quanto eu pensava.
Annabelle experimentou mexer os lábios ao perceber que tinha recuperado parte da sensibilidade, o que os fez formigar.
– Pelo visto, ele tem seus méritos. Mas... não espere que essa transformação venha para ficar.
CAPÍTULO 13
Pouco mais de dois minutos haviam se passado quando Simon viu o grupo que previra: o médico, lorde Westcliff, a Sra. Peyton e Lillian Bowman. Encostando os ombros na parede, Simon olhava para eles com ar especulativo. Achava particularmente divertida a antipatia evidente entre Westcliff e a Srta. Bowman. Aquela animosidade mútua deixava claro que haviam trocado algumas palavras.
O médico era um senhor respeitável, que atendia Westcliff e seus parentes, os Marsdens, havia quase três décadas. Fitando Simon com olhos penetrantes engastados em um rosto enrugado pela idade, perguntou com imperturbável tranquilidade:
– Sr. Hunt, disseram-me que a moça contou com sua ajuda para chegar ao aposento, é verdade?
Simon relatou rapidamente ao médico a condição e os sintomas de Annabelle, preferindo omitir que tinha sido ele, e não Daisy, a descobrir as marcas da picada no tornozelo dela. A Sra.
Peyton ouvia tudo pálida de angústia. Lorde Westcliff franziu o cenho e se inclinou para murmurar-lhe algo ao ouvido, ao que ela assentiu e agradeceu de um jeito distraído. Simon supôs que Westcliff tivesse prometido a ela que a filha desfrutaria dos melhores cuidados até estar plenamente recuperada.
– É claro que não poderei confirmar a opinião do Sr. Hunt até que tenha examinado a jovem – disse o médico. – No entanto, seria aconselhável mandar buscar um pouco de chá de pega-pega o quanto antes para o caso de a doença estar sendo causada pela picada de uma víbora...
– Ela já tomou um pouco – interrompeu Simon. – Mandei que trouxessem uns 15 minutos atrás.
O médico lançou a Hunt um olhar recriminador pelo fato de ele haver se aventurado a dar um diagnóstico sem ser formado em medicina.
– O pega-pega é uma droga potente, Sr. Hunt, e pode ser prejudicial caso o paciente não tenha sido picado por uma cobra. Devia ter esperado para ouvir a opinião de um médico antes de administrá-lo.
– Os sintomas de picada de cobra são inconfundíveis – retrucou Simon, impaciente, desejando que o sujeito não se demorasse mais ali no corredor e fosse fazer seu trabalho. – Além do mais, queria aliviar o desconforto da Srta. Peyton o quanto antes.
As bastas sobrancelhas grisalhas do velho se franziram quase escondendo seus olhos.
– Está tão seguro assim de sua opinião? – observou ele, agastado.
– Estou – respondeu Simon sem pestanejar.
De repente, o conde soltou uma gargalhada que tentara abafar e pôs a mão no ombro do médico.
– Receio que ficaremos aqui fora por tempo indeterminado se o senhor quiser tentar convencer o meu amigo de que está errado a respeito do que quer que seja. “Intransigente” é o adjetivo mais suave que poderia ser aplicado ao Sr. Hunt. Posso lhe assegurar que seria muito melhor se direcionasse seus esforços aos cuidados com a Srta. Peyton.
– Talvez – concordou o médico, aborrecido. – Embora suspeite que minha presença seja dispensável diante do diagnóstico especializado do Sr. Hunt. – Com esse comentário sarcástico, o velho entrou no quarto seguido pela Sra. Peyton e por Lillian Bowman.
Uma vez que se viu sozinho com o amigo no corredor, Simon demonstrou seu desagrado.
– Que amargo esse velho idiota – murmurou. – Não podia ter chamado alguém um pouco mais decrépito, Westcliff? Duvido que o miserável esteja vendo e ouvindo bem o bastante para ser capaz de fazer o próprio diagnóstico.
O conde ergueu uma sobrancelha preta enquanto observava Simon com um risonho ar de condescendência.
– É o melhor médico de toda Hampshire. Vamos lá para baixo, Hunt. Vamos tomar um conhaque.
Simon olhou para a porta do quarto fechada.
– Mais tarde.
Westcliff respondeu em um tom descontraído e exageradamente agradável.
– Ah, perdoe-me. É claro que vai querer aguardar aqui diante da porta como um cachorro vira-lata que espera as sobras de comida. Estarei no meu escritório... Seja um bom menino e corra para me dar notícias assim que souber de algo.
Irritado, Simon olhou para ele com frieza e desencostou da parede.
– Está bem – grunhiu. – Vou com você.
O conde assentiu com um gesto satisfeito.
– O médico me fará um relatório assim que acabar de examinar a Srta. Peyton.
Enquanto acompanhava Westcliff dirigindo-se à grande escadaria, Simon se via imerso em sombrias reflexões a respeito do modo como havia se comportado nos últimos momentos. Foi uma experiência nova deixar-se levar pelas emoções, em vez de seguir a razão, uma experiência da qual não gostou. Mas isso não tinha importância agora. Assim que percebeu que Annabelle estava doente, sentiu um vazio no peito, como se tivessem arrancado seu coração. Não teve a menor dúvida de que faria o que fosse preciso para mantê-la sã e salva. E nos momentos em que a moça lutou para conseguir respirar, com aqueles olhos que refletiam medo e dor, teve certeza de que faria qualquer coisa por ela. Qualquer coisa.
Que Deus o ajudasse se Annabelle viesse a descobrir o poder que tinha sobre ele. Um poder que representava uma ameaça perigosa tanto para o seu orgulho quanto para seu autocontrole.
Ele queria possuir cada parte do corpo e da alma dela, de todas as formas íntimas concebíveis. A profundidade da paixão que ela vinha despertando nele o surpreendeu. E nenhum de seus conhecidos, muito menos Westcliff, entenderia isso. Ele costumava manter os próprios desejos e emoções firmemente controlados, mostrando desprezo por aqueles que faziam papel de tonto em questões amorosas.
Não que isso fosse amor – Simon não iria tão longe assim. No entanto, era muito mais do que o simples desejo físico. E exigia, no mínimo, a posse definitiva.
Obrigando-se a esconder suas emoções sob um semblante inexpressivo, Simon entrou com Westcliff no escritório.
Era um aposento pequeno e austero, com as paredes cobertas por painéis de carvalho reluzentes, cuja única decoração era um grande vitral em um dos lados. Com seus ângulos retos e mobiliário sóbrio, o lugar não era exatamente acolhedor. No entanto, era um ambiente bem masculino, onde se podia fumar, beber e conversar abertamente. Simon aceitou o conhaque que Westclif lhe oferecia, sentou-se em uma das desconfortáveis cadeiras ao lado da escrivaninha e tomou a dose de um gole só. Deixou o copo de lado e, quando o amigo voltou a abastecê-lo, fez um gesto com a cabeça agradecendo silenciosamente.
Antes que Westcliff pudesse começar uma invectiva desnecessária acerca de Annabelle, Simon procurou distraí-lo com outro assunto:
– Você não parece se dar muito bem com a Srta. Bowman – observou.
Como tática de distração, a menção a Lillian Bowman não podia ser mais eficaz. Westcliff respondeu com um grunhido grosseiro.
– Essa sujeitinha mal-educada se atreveu a sugerir que eu fosse o culpado pelo acidente da Srta. Peyton – disse, servindo-se de outra dose de conhaque.
Simon ergueu as sobrancelhas.
– Como poderia ser culpa sua?
– A Srta. Bowman parece pensar que, como anfitrião, era minha responsabilidade garantir que minha propriedade não fosse “invadida por uma praga de víboras venenosas”, segundo as próprias palavras.
– E como respondeu a ela?
– Limitei-me a dizer à Srta. Bowman que os hóspedes que decidem permanecer vestidos enquanto se aventuram nas áreas externas da propriedade não me parecem ser picados por víboras.
Simon não pôde conter o riso ao ouvir esse comentário.
– Ela só está preocupada com a amiga.
Westcliff assentiu com semblante fechado.
– Não pode se dar ao luxo de perder uma delas, já que, sem dúvida, o número de amigas que tem é bastante limitado.
Simon olhou para o fundo de seu copo sem deixar de sorrir.
– E você teve uma noite bem difícil. – Foi a observação carregada de ironia que ouvia de Westcliff. – Primeiro foi obrigado a carregar a casadoira Srta. Peyton no colo até os aposentos dela. Depois precisou examinar a perna ferida. Uma experiência terrivelmente inconveniente, sem dúvida.
O sorriso de Simon se apagou.
– Não disse que examinei a perna dela.
O conde o fitou com um olhar astuto.
– Não precisou. Eu o conheço suficientemente bem para saber que não deixaria passar uma oportunidade como essa.
– Admito que examinei o tornozelo dela. E também que cortei os laços de seu espartilho quando ficou evidente que ela não conseguia respirar.
– Que rapaz prestativo – murmurou Westcliff.
Simon fez uma careta.
– Por mais que julgue difícil de acreditar, o sofrimento de uma dama não me causa qualquer tipo de prazer.
Reclinando-se na cadeira, Westcliff lançou-lhe um olhar frio e inquisidor.
– Espero que não seja tolo o bastante para se apaixonar por essa criatura. Você sabe a minha opinião a respeito da Srta. Peyton...
– Sei, já o ouvi se manifestar sobre a questão mais de uma vez.
– Além disso – prosseguiu o conde –, odiaria ver um dos poucos homens de bom senso que conheço se transformar em um desses tolos que saem por aí apregoando seus sentimentalismos piegas.
– Não estou apaixonado.
– Mas está... sentindo alguma coisa por ela – insistiu Westcliff. – Nesses anos todos que nos conhecemos, nunca o vi ter uma reação tão sentimental quanto a que teve diante da porta do quarto dela.
– Só estava demonstrando compaixão por outro ser humano.
O conde bufou.
– Por um ser humano com quem está louco para se deitar.
Essa observação precisa e direta provocou em Simon um sorriso relutante.
– Estava louco há uns dois anos – admitiu. – Agora esse desejo se acirrou consideravelmente.
Deixando escapar um suspiro, Westcliff esfregou a ponte do nariz com o polegar e o indicador.
– Não há nada que eu mais odeie do que ver um amigo se encaminhar cegamente para o desastre. A sua fraqueza, Hunt, é a incapacidade que tem de resistir a um desafio. Mesmo quando o desafio não está à sua altura.
– Gosto de desafios. – Simon fez o conhaque circular no copo. – Mas isso nada tem a ver com meu interesse por ela.
– Por Deus – murmurou o conde. – Ou você bebe logo esse conhaque ou pare de brincar com ele. Vai estragar a bebida girando-a desta forma.
Simon lançou-lhe um olhar divertido e ao mesmo tempo inquisitório.
– E como exatamente se “estraga” um copo de conhaque? Não, não me diga. Meu cérebro provinciano não seria capaz de alcançar o conceito. – Obediente, tomou a bebida de um gole só e deixou o copo de lado. – Do que estávamos falando mesmo...? Ah, sim, da minha fraqueza.
Antes de prosseguirmos nessa discussão, quero que admita que, em algum momento da sua vida, já privilegiou o desejo em detrimento do senso comum. Porque se isso não tiver acontecido, não há o menor sentido em continuarmos tratando desse assunto.
– É claro que já fiz isso. Qualquer homem que tenha mais de 12 anos já fez. Mas a razão de termos um maior entendimento é que podemos nos prevenir para não repetirmos os mesmos erros.
– Bem, logo isso não me diz respeito – observou Simon razoavelmente. – Não me preocupo com essa história de maior entendimento. Até agora me virei muito bem com meu parco entendimento.
A mandíbula do conde endureceu.
– Existe uma razão para a Srta. Peyton e suas amigas devoradoras estarem solteiras, Hunt.
Elas são problemáticas. Se os eventos de hoje não deixaram isso muito claro, então não há esperança para você.
Como Simon Hunt previra, Annabelle experimentou um considerável desconforto nos dias que se seguiram. Desgraçadamente, tinha se habituado ao gosto do chá de pega-pega, o qual o médico receitou que fosse tomado de quatro em quatro horas no primeiro dia e de seis em seis depois disso. Embora se pudesse dizer que o remédio ajudava a diminuir os sintomas do veneno de cobra, ele a deixava com um enjoo constante. Estava exausta e ainda assim não conseguia dormir bem. Ansiava por algo que aliviasse seu tédio, mas não conseguia se concentrar em nada por mais de alguns minutos.
As amigas fizeram o melhor que puderam para animá-la e distraí-la, o que a fez se sentir muito agradecida. Evie se sentava perto dela na cama e lia em voz alta um romance escabroso que pegara escondido na biblioteca. Daisy e Lillian levavam as últimas fofocas e a faziam rir com suas imitações maldosas de vários convidados. A seu pedido, elas contaram quem parecia estar vencendo na corrida pelas atenções de Kendall. Havia uma em particular, Lady Constance Darrowby, uma moça alta, magra e de cabelo louro, que tinha cativado o interesse do conde.
– Ela me parece bem fria, se quer saber – disse Daisy com franqueza. – Tem um jeito de franzir a boca que me faz lembrar daquelas bolsas que se fecham com um cordão, sem falar de seu terrível hábito de rir tapando a boca com a mão, como se fosse impróprio para uma dama ser pega rindo em público.
– Deve ter dentes tortos – comentou Lillian, esperançosa.
– Acho que ela é bem sem graça – prosseguiu Daisy. – Não consigo imaginar o que teria dito a Kendall para despertar seu interesse.
– Daisy – interrompeu Lillian –, estamos falando de um homem que acha divertidíssimo observar plantas. Sua resistência a sem gracices não conhece limites.
– Depois da festa de hoje no lago, houve um piquenique campestre – contou Daisy. – Por um instante extremamente satisfatório pensei ter surpreendido Lady Contance encontrando-a em uma posição comprometedora com um dos convidados. Ela desapareceu por um tempo com um cavalheiro que não era lorde Kendall.
– E quem era? – indagou Annabelle.
– O Sr. Benjamin Muxlow, um vizinho fazendeiro. O tipo de homem que é o sal da terra e possui muitos hectares cultivados, uns muitos criados e está à procura de uma esposa que lhe dê uns oito ou nove filhos, remende os punhos de suas camisas e faça chouriço na época da matança de porcos...
– Daisy – interrompeu Lillian ao ver Annabelle ficar com o rosto meio esverdeado –, tente falar de coisas um pouco menos repugnantes, está bem? – E sorriu para Annabelle se desculpando. – Sinto muito, querida. Mas você precisa admitir que os ingleses comem certas coisas que fariam um americano sair correndo aos berros da mesa.
– De qualquer forma – continuou Daisy com exagerada paciência –, Lady Constance desapareceu depois de ter sido vista em companhia do Sr. Muxlow e, naturalmente, fui procurá-la na esperança de ver algo que a desqualificasse, fazendo com que lorde Kendall perdesse o interesse por ela. Você não pode imaginar o meu prazer ao descobrir os dois atrás de uma árvore com a cabeça quase colada.
– Estavam se beijando? – quis saber Annabelle.
– Não. Maldita seja. Muxlow estava ajudando Lady Constance a pôr no ninho um filhote de passarinho que havia caído.
– Hum. – Annabelle deixou os ombros penderem antes de acrescentar, mal-humorada: – Que doçura da parte dela.
Ela sabia que seu desânimo se devia aos efeitos do veneno da cobra, sem mencionar o intragável antídoto. No entanto, o fato de conhecer a causa da falta de ânimo não a melhorava em nada.
Ao ver a amiga tão abatida, Lillian pegou uma escova de cabelo cujo cabo de prata precisava ser lustrado.
– Esqueça Lady Constance e lorde Kendall por ora – ordenou a moça. – Deixe-me trançar seu cabelo. Vai se sentir muito melhor quando ele não estiver mais caindo no rosto.
– Onde está meu espelho de mão? – perguntou Annabelle, inclinando-se para a frente a fim de permitir que Lillian se sentasse atrás dela.
– Não consegui encontrá-lo – respondeu Lillian com toda a calma.
Não passou despercebido a Annabelle que o espelho havia sumido convenientemente. Sabia que sua doença tinha feito um estrago em sua aparência, deixando seu cabelo sem viço e a pele sem a cor saudável que costumava ter. Ademais, as constantes náuseas impediam que comesse e com isso seus braços, prostrados sobre a colcha, estavam muito mais finos.
À noite, deitada em seu leito de convalescente, ouviu os sons da música e da dança que entravam pela janela vindos do salão de baile no andar de baixo. Imaginou Lady Constance dançando com lorde Kendall e se remexeu nos lençóis, chegando à triste conclusão de que suas chances de conseguir se casar tinham se esvaído por completo.
– Odeio víboras – resmungou, observando a mãe organizar os objetos da mesinha de cabeceira. Colheres para o remédio pegajoso, frascos, lenços, uma escova de cabelo e grampos. –
Odeio estar doente e odeio passear pelo bosque. Odeio acima de tudo jogar rounders de calças curtas!
– O que disse, querida? – perguntou Philippa, parando de pôr uns copos vazios na bandeja.
Annabelle balançou a cabeça, subitamente melancólica.
– Eu... ah, nada, mamãe. Estava pensando... Quero voltar para Londres daqui a um ou dois dias, quando estiver em condições de viajar. Não há motivo para ficarmos aqui. Lady Constance já praticamente se tornou Lady Kendall, e não tenho ânimo nem boa aparência para atrair a atenção de qualquer outra pessoa. Além disso...
– Eu não perderia as esperanças ainda – disse Philippa, deixando a bandeja de lado. Inclinou-se sobre a filha e acariciou a testa dela com um gesto terno e maternal. – Não foi anunciado noivado algum, e lorde Kendall tem me perguntado por você com muita frequência. Não se esqueça do enorme buquê de jacintos que ele lhe trouxe. Segundo me disse, ele próprio colheu as flores.
Cansada, Annabelle olhou para o canto onde estava o enorme arranjo, que ainda perfumava o ar.
– Mamãe, já pensei em lhe pedir várias vezes... poderia levá-lo daqui? É lindo e o gesto foi encantador... Mas o cheiro...
– É claro, não havia pensado nisso – disse Philippa imediatamente. Sem perder tempo, foi até o vaso com as flores azuis de talos recurvados e se encaminhou para a porta. – Vou deixá-las na entrada e pedirei a uma criada que as leve... – A voz de Philippa foi se apagando à medida que ela se afastava, dedicada à tarefa.
Annabelle pegou um grampo de cabelo aleatório, começou a brincar com o metal dentado e de repente franziu a testa.. O buquê de Kendall era um de muitos outros, na verdade. A notícia de sua doença tinha garantido uma boa mostra de simpatia por parte dos convidados da mansão de Stony Cross. Até mesmo lorde Westcliff havia lhe enviado um arranjo de rosas da estufa em seu nome e em nome dos Marsdens. A proliferação de jarros de flores dera um aspecto fúnebre ao quarto. Estranhamente, não havia ali nenhum buquê de Simon Hunt. Não havia um bilhete sequer ou uma única flor. Depois de ter sido tão solícito duas noites antes, ela esperava que ele se manifestasse com alguma coisa. Uma pequena mostra de preocupação que fosse... Mas achou que Hunt devia ter chegado à conclusão de que ela era uma criatura absurdamente problemática, que, portanto, não merecia sua atenção. Se estivesse certa, podia se alegrar porque não voltaria a ser atormentada por ele.
No entanto, sentiu uma estranha pressão na garganta e umas lágrimas indesejadas se formaram em seus olhos. Não conseguia entender a própria reação. Ou aquela emoção subjacente à enorme desesperança. Mas parecia estar possuída por um desejo indescritível... se ao menos conseguisse nomeá-lo. Se ao menos...
– Bem, isso é no mínimo estranho – disse Philippa, perplexa, ao entrar novamente no quarto.
– Acabo de encontrar isto atrás da porta. Alguém deixou ali, sem bilhete, sem nada. E parecem novas. Acha que isso é coisa de uma das suas amigas? Um presente tão excêntrico só pode ter vindo das moças americanas.
Erguendo o corpo contra o travesseiro, Annabelle viu um par de objetos postos no seu colo e ficou bem surpresa. Era um par de botinas, amarradas com um belo laço vermelho. O couro era extremamente macio, tingido no tom de bronze da moda. As botinas tinham sido lustradas e reluziam como vidro. Os saltos eram baixos e as solas tinham uma costura firme. Eram botinas práticas, mas bem elegantes, enfeitadas com um delicado bordado de folhas que cobriam toda a parte da frente. Olhando para elas, Annabelle sentiu o riso começando a se formar em sua garganta.
– Devem ser um presente das Bowmans – disse, mas sabia que não era verdade.
As botinas eram um presente de Simon Hunt, que tinha plena consciência de que um cavalheiro nunca devia dar uma peça de vestuário a uma dama. Tinha que devolvê-las logo, pensou, embora estivesse agarrada a elas. Só Simon Hunt podia lhe dar algo tão pragmático e ao mesmo tempo tão inaceitavelmente pessoal.
Sorrindo, ela desatou o laço vermelho e segurou uma das botinas. Era surpreendentemente leve, e ela sabia só de olhar que caberia direitinho em seus pés. Mas como ele saberia por que número pedir e onde teria conseguido comprá-las? Annabelle passou um dedo ao longo dos pespontos que uniam a sola ao couro cor de bronze que reluzia na parte superior.
– Como são bonitas – comentou Philippa. – Bonitas demais para serem usadas em uma caminhada por uma trilha lamacenta.
Annabelle levou a botina ao nariz e inspirou o cheiro limpo de couro polido. Passou a ponta do dedo ao redor da borda superior arredondada e, em seguida, a afastou para observá-la como se fosse uma escultura de valor inestimável.
– Já andei o bastante pelo campo – disse, com um sorriso. – Estas botinas vão passar apenas pelos belos caminhos de cascalho em meio ao jardim.
Philippa a fitava com ternura e estendeu a mão para fazer um carinho no cabelo da filha.
– Nunca pensei que um novo par de botinas a deixariam tão animada... No entanto estou muito feliz com isso. Posso pedir que tragam a bandeja de sopa e torradas, querida? Você precisa tentar comer alguma coisa antes de tomar a próxima dose do chá de pega-pega.
Annabelle fez uma careta de nojo.
– Sim, pode pedir a sopa.
Philippa assentiu satisfeita e alcançou as botinas.
– Só vou tirá-las do seu colo e guardá-las no armário...
– Ainda não – murmurou Annabelle apertando-as com um gesto possessivo.
Philippa sorriu ao ir tocar o sino para chamar os criados.
Recostando-se, Annabelle passou de novo a ponta dos dedos no couro macio e sentiu a pressão em seu peito diminuir. Sem dúvida era um sinal de que o efeito do veneno ia desaparecendo. Mas não explicava por que se sentiu tão aliviada e tranquila de repente.
Teria que agradecer a Simon Hunt, é claro, e dizer que seu presente era indecoroso. E se ele reconhecesse que havia de fato dado as botinas a ela, não teria outra coisa a fazer senão devolvê-las. Algo como um livro de poesia, uma lata de caramelos ou um buquê de flores teria sido bem mais apropriado. Mas nenhum outro presente havia lhe tocado tanto quanto esse.
Annabelle não se separou das botinas a noite toda, apesar de a mãe adverti-la de que deixar sapatos em cima da cama trazia má sorte. Quando ela finalmente caiu no sono, com a música da orquestra ainda entrando pela janela, consentiu em deixar o presente na mesinha de cabeceira. De manhã, ao acordar, vê-las ali a fez sorrir.
CAPÍTULO 14
Na terceira manhã depois da picada de víbora, Annabelle finalmente sentiu-se bem o suficiente para sair da cama. Para seu imenso alívio, a maioria dos convidados tinha ido a uma festa na propriedade vizinha, o que deixou Stony Cross tranquila e praticamente vazia. Depois de consultar a governanta, Philippa levou Annabelle para um salão privativo no andar de cima, com vista para os jardins. Era um cômodo adorável, com as paredes cobertas por um papel azul florido e cheio de retratos de crianças e animais. Segundo a governanta, esse era um cômodo usado apenas pelos Marsdens, mas o próprio lorde Westcliff sugerira que o usassem com o intuito de oferecer conforto a Annabelle.
Philippa pôs uma manta sobre os joelhos da filha e deixou o chá de pega-pega na mesinha a seu lado.
– Você precisa tomar o chá – disse com firmeza em resposta à careta de Annabelle. – É para o seu próprio bem.
– Você não precisa ficar no quarto cuidando de mim, mamãe – confessou a moça. – Ficarei muito feliz se puder relaxar um pouco aqui enquanto você vai dar um passeio ou conversar com suas amigas.
– Tem certeza? – perguntou Philippa.
– Absoluta. – Annabelle pegou o chá e tomou um gole. – Estou tomando o meu remédio, viu só? Pode ir, mamãe, e não se preocupe comigo.
– Está bem – concordou Philippa meio relutante. – Mas só por um tempinho. A governanta me disse que você pode usar esse sino da mesinha se precisar de algum criado. E não esqueça de tomar toda e qualquer gota do chá.
– Farei isso – prometeu ela, esforçando-se para abrir um largo sorriso e mantê-lo até a mãe sair do cômodo. Assim que ela sumiu do campo de visão, Annabelle se inclinou por cima do sofá e derramou com cuidado o conteúdo da caneca pela janela.
Com um suspiro de satisfação, ela se aconchegou enrodilhando-se em um dos cantos do sofá.
De vez em quando os criados faziam algum barulho rompendo o plácido silêncio: um prato batendo, o murmúrio da voz da governanta, uma vassoura varrendo o tapete do corredor. Apoiou o braço no parapeito da janela e se inclinou na direção de um raio de sol, deixando o brilho banhar-lhe o rosto. Fechou os olhos e ouviu o zumbido de abelhas se deslocando preguiçosamente das flores de hortênsia de um cor-de-rosa escuro para os delicados ramalhetes de ervilha-doce plantados nas jardineiras. Apesar de ainda estar muito fraca, era agradável ficar sentada ali desfrutando dessa cálida letargia, sonolenta como um gato.
Demorou a responder quando ouviu um som vindo da porta – uma única batidinha, como se o visitante relutasse em interromper o devaneio de Annabelle com um barulho mais forte.
Ofuscada pela luz do sol, Annabelle permaneceu sentada com as pernas dobradas até que os borrões de luz foram pouco a pouco desaparecendo e ela viu, à sua frente, a forma escura e delgada de Simon Hunt. Encontrava-se com um ombro no batente, apoiando o peso do corpo em uma pose despreocupadamente natural. Com a cabeça um pouco inclinada, ele a observava com uma expressão insondável no rosto.
A pulsação de Annabelle acelerou. Como de hábito, Hunt estava impecavelmente vestido, mas os trajes formais não disfarçavam a energia viril que parecia emanar dele. Ela se lembrou dos braços e peito firmes de Hunt, do contato das mãos dele em seu corpo quando ele a carregou... Ah, nunca mais conseguiria olhar para ele sem se recordar disso tudo!
– Você está parecendo uma borboleta que saiu voando do jardim – disse Hunt com suavidade.
Devia estar zombando dela, pensou Annabelle, perfeitamente consciente da moribunda palidez. Levou a mão ao cabelo para ajeitar as mechas em desalinho.
– O que está fazendo aqui? Não devia estar na festa do vizinho?
Ela não teve a intenção de ser brusca ou desagradável, mas sua habitual facilidade com as palavras parecia ter lhe abandonado. Quando olhava para Hunt, não conseguia parar de pensar no alívio que sentira quando ele friccionara o seu peito. A lembrança provocou um calor por causa da vergonha, sua pele enrubesceu.
Hunt respondeu com um tom levemente cáustico.
– Tenho negócios a tratar com um de meus gerentes, que chega de Londres esta manhã. Ao contrário dos cavalheiros de meias de seda, cujas linhagens você tanto admira, eu tenho que decidir coisas mais importantes do que o local onde vou estender minha toalha para o piquenique. – Ele afastou-se do batente da porta e entrou no quarto, sem deixar de observá-la. –
Ainda se sente fraca? Logo estará melhor. Como está o seu tornozelo? Levante a saia... acho que eu deveria dar mais uma olhada.
Annabelle o fitou alarmada por uma fração de segundo, então começou a rir quando percebeu o brilho em seus olhos. A audácia daquela fala de alguma forma diminuiu sua vergonha e ela relaxou.
– É muito gentil da sua parte – disse ela em tom cortante. – Mas não há necessidade. Meu tornozelo está muito melhor, obrigada.
Hunt sorriu enquanto se aproximava dela.
– Quero que saiba que minha oferta foi motivada pelo mais puro altruísmo. Não houve qualquer prazer ilícito na visão de uma perna exposta. Bem, talvez um pequeno estremecimento, mas nada que eu não tenha podido ocultar com facilidade.
Com uma das mãos, pegou o espaldar de uma cadeira e a levou para perto dela, onde se sentou. Annabelle ficou impressionada com a facilidade com que ele ergueu o móvel pesado de madeira maciça como se fosse uma pluma. Deu uma olhada para o vão da porta. Contanto que não fosse fechada, podia perfeitamente estar sentada ao lado de Hunt. Além do mais, logo sua mãe voltaria para ver como ela estava. Antes disso, porém, decidiu comentar sobre as botinas.
– Sr. Hunt – principiou com cautela –, há algo sobre o qual preciso lhe perguntar...
– Pois não.
Os olhos dele eram definitivamente bem atraentes, pensou Annabelle, distraída. Vibrantes e cheios de vida, faziam com que ela se perguntasse por que as pessoas normalmente preferiam olhos azuis aos escuros. Nenhum tom de azul poderia transmitir a ebulição inteligente que brilhava nos profundos olhos negros de Simon Hunt.
Por mais que tentasse, não lhe ocorria uma forma sutil de abordar o assunto. Depois de uma luta silenciosa com várias frases, Annabelle decidiu perguntar diretamente.
– Você é o responsável pelas botas?
A expressão dele não revelou coisa alguma.
– Botas? Temo não ter entendido, Srta. Peyton. É alguma metáfora ou está se referindo a um calçado mesmo?
– Botinas – afirmou ela, olhando para Hunt com manifesta desconfiança. – Um par novo que foi deixado diante da porta do meu quarto ontem.
– Por mais que me encante discutir qualquer parte do seu guarda-roupa, Srta. Peyton, temo não saber nada a respeito desse par de botinas. No entanto, sinto alívio em saber que tenha conseguido adquiri-las. A menos, é claro, que desejasse continuar agindo como bufê para a fauna selvagem de Hampshire.
Annabelle o fitou por um longo tempo. Apesar de ter negado, havia algo escondido por trás de sua fachada neutra – umas faíscas zombeteiras em seus olhos.
– Então está negando que tenha me presenteado com as botinas?
– Nego enfaticamente.
– Mas eu me pergunto... se alguém desejasse presentear uma dama com um par de botinas sem o conhecimento dela, como seria capaz de saber o tamanho exato de seus pés?
– Seria uma tarefa razoavelmente simples – disse ele. – Imagino que tal pessoa pudesse pedir a uma criada que copiasse a sola do sapato descartado da dama em questão. Em seguida, poderia levar o desenho para o sapateiro local, a quem pediria que atrasasse o trabalho que estivesse fazendo e passasse na frente a confecção dos sapatos novos.
– Seriam muitos problemas com os quais a pessoa teria que lidar – murmurou Annabelle.
O olhar de Hunt se iluminou de repente.
– Seria bem menos problemático do que ter que carregar uma mulher ferida por três lances de escada toda vez que ela resolver sair para caminhar com sapatos inapropriados.
Annabelle percebeu que ele nunca admitiria ter dado as botinas a ela, o que permitiria que ela as mantivesse, mas também assegurava que jamais poderia agradecer a ele. E ela sabia que tinha sido Hunt. Estava escrito na testa dele.
– Sr. Hunt – disse ela, com ar solene. – Eu... eu gostaria... – Fez uma pausa, incapaz de encontrar as palavras, e o fitou, impotente.
Apiedando-se dela, Hunt se levantou, foi até o outro lado do cômodo e pegou uma mesinha redonda de jogos. Tinha pouco mais de meio metro de diâmetro e fora construída com um mecanismo engenhoso na tampa de modo a permitir que se jogasse tanto damas quanto xadrez ao girá-la.
– Você joga? – perguntou ele casualmente, pondo a mesa diante dela.
– Dama? Sim, jogo de vez em quando...
– Não, não me referia à dama, mas ao xadrez.
Annabelle negou com a cabeça e retornou à posição encolhida no sofá.
– Não, nunca joguei xadrez. E não quero parecer pouco interessada, mas... no momento não tenho vontade de tentar algo tão difícil quanto...
– É hora de aprender, então – disse Hunt, aproximando-se de umas prateleiras onde havia uma caixa de madeira entalhada. – Dizem por aí que não se pode conhecer de verdade uma pessoa até que se tenha jogado xadrez com ela.
Annabelle o observava com cautela, nervosa com a perspectiva de estar sozinha com ele – e, ainda assim, completamente seduzida pela deliberada gentileza de Hunt. A impressão que dava era que ele tentava persuadi-la a confiar nele. Havia uma suavidade nos modos dele que parecia se contrapor à imagem de farrista cínico que ela sempre fizera dele.
– E você acredita nisso? – perguntou Annabelle.
– Claro que não – respondeu Hunt ao mesmo tempo que levava a caixa até a mesa, onde a abriu, revelando um conjunto de peças de ônix e marfim, esculpidas com riquezas de detalhes.
Ele lançou um olhar provocante a ela. – A verdade é que não se pode conhecer de verdade um homem até que se tenha emprestado dinheiro a ele. E não se pode conhecer de verdade uma mulher até ter dormido na cama dela.
Hunt disse isso, é claro, com o propósito de chocá-la. E conseguira, apesar de Annabelle ter feito de tudo para esconder.
– Sr. Hunt – principiou ela, de cenho franzido para os olhos risonhos dele –, se continuar a fazer observações vulgares, vou ser forçada a lhe pedir que vá embora.
– Perdoe-me. – O ar de arrependimento do rapaz não a enganou nem por um minuto sequer.
– É que não consigo resistir a uma oportunidade de fazê-la corar. Nunca conheci uma mulher que ficasse assim com tanta frequência.
O tom vermelho que havia começado na garganta dela se espalhara, chegando à raiz do cabelo.
– Eu nunca fico corada. Só quando você está por perto que... – Deteve-se de súbito e o fitou com uma expressão tão indignada que o fez rir.
– Vou me comportar agora – afirmou ele. – Não me peça para ir embora.
Ela o olhou indecisa, passando a mão trêmula pela testa, o que demonstrava sua fragilidade física. Isso o fez falar de um jeito mais suave.
– Não se preocupe – murmurou. – Deixe-me ficar, Annabelle.
Ela respondeu com um aceno de cabeça vacilante e voltou a se apoiar nas almofadas do sofá enquanto ele arrumava as peças metodicamente. O toque de Hunt nelas era leve e suave, o que chegava a surpreender, sobretudo ao se considerar o tamanho de suas mãos. Podiam ser rudes, pensou ela, bronzeadas e másculas, com um pouquinho de pelos pretos no dorso.
Como estava meio inclinado sobre ela, Annabelle sentiu o cheiro intrigante de seus perfumes, um toque de algodão e sabão de barbear se sobrepunham à fragrância da pele masculina limpa. E
havia ainda algo mais indescritível, um cheiro doce em seu hálito, como se tivesse acabado de comer peras ou talvez uma fatia de abacaxi. Ao erguer os olhos para fitá-lo, percebeu que com muito pouco esforço ele poderia ter se inclinado mais e a beijado. Esse pensamento a fez estremecer. Na verdade, ela queria sentir seus lábios nos dele, inalar esse efêmero toque de doçura no hálito de Hunt. Queria que ele voltasse a abraçá-la.
Ao se dar conta disso, abriu bem os olhos. A súbita ausência de movimento de Annabelle ficou evidente para Hunt. Ele, por sua vez, desviou a atenção do tabuleiro e voltou-a para o rosto da moça, e o que quer que tenha visto na expressão dela o fez perder o ar. Nenhum dos dois se moveu. A única coisa que ela podia fazer era esperar em silêncio, enrolando o dedo nas franjas do sofá e se perguntando o que ele faria agora.
Hunt rompeu a tensão com um longo suspiro e falou com uma voz ligeiramente rouca:
– Não, você ainda não está recuperada o suficiente.
Era difícil ouvir as palavras dele porque o coração de Annabelle batia mais alto.
– O qu-que disse? – perguntou ela baixinho.
Parecendo incapaz de se controlar, Hunt afastou uma mecha do cabelo ondulado do rosto de Annabelle. A carícia feita com a ponta dos dedos foi como uma centelha na pele sedosa dela, deixando um relance de sensação em seu rastro.
– Sei o que está pensando. E, acredite, estou tentado. Mas você ainda está muito fraca... e meu autocontrole hoje está bastante escasso.
– Se está insinuando que eu...
– Nunca perco tempo com insinuações – murmurou ele, voltando a se concentrar na metódica arrumação das peças de xadrez. – É óbvio que deseja que eu a beije. E quando chegar a hora certa, ficarei feliz em fazê-lo. Mas ainda não.
– Sr. Hunt, você é o homem mais...
– Sim, eu sei – disse ele com um sorriso. – Pode poupar o esforço de me atirar adjetivos na cara. Já ouvi todos os possíveis.
Ele se sentou e pôs uma peça de xadrez na mão dela. O ônix esculpido era pesado e frio, mas a superfície lisa foi esquentando aos poucos na palma de Annabelle.
– Não quero atirar adjetivos na sua cara – retrucou ela. – Um ou dois objetos afiados já bastariam.
Hunt deu uma risada profunda e acariciou o dorso dos dedos dela com o polegar antes de afastar a mão. Ela sentiu a aspereza de um calo naquele polegar, uma sensação não muito diferente da lambida de um gato. Perturbada com a própria resposta, Annabelle olhou para a peça de xadrez que tinha na mão.
– Essa é a rainha, a peça mais poderosa do tabuleiro. Pode se movimentar em qualquer direção e quantas casas quiser.
Não havia nada de sugestivo em suas palavras – mas quando ele falava em um tom leve, como naquele instante, a tonalidade rouca da voz dele fazia com que ela sentisse um formigamento.
– Mais poderosa do que o rei? – indagou ela.
– Sim. O rei só pode se mover uma casa por vez. No entanto é a peça mais importante.
– Por que é mais importante do que a rainha se não é o mais poderoso?
– Porque, uma vez que é capturado, o jogo acaba. – Ele trocou a peça que dera a ela por um peão. Os dedos de Hunt roçaram os dela, demorando-se em uma breve, mas inconfundível, carícia. Apesar de saber que devia refrear essas familiaridades escandalosas, Annabelle se viu rendida por uma espécie de torpor que a impeliu a apertar a peça de marfim com tanta força que os nós de seus dedos chegaram a ficar brancos. Quando continuou com a explicação, o tom de Hunt era grave e aveludado. – Este é o peão, que se move uma casa por vez. Não pode andar nem para trás nem para os lados, a menos que se coma outra peça na diagonal. A maioria dos principiantes tem a tendência de mexer muito os peões no começo do jogo, pois assim controlam uma área maior do tabuleiro. Mas a estratégia que dá melhores resultados é fazer bom uso das outras peças...
À medida que ia explicando a utilidade de cada peça, Hunt as punha na palma da mão dela.
Annabelle encontrava-se hipnotizada com o roçar das mãos dele, e seus sentidos estavam afloradíssimos. Suas defesas habituais pareciam ter virado pó. Alguma coisa devia ter acontecido com ela, ou com ele, ou talvez com ambos, algo que lhes permitia interagir um com o outro com uma desenvoltura que não existia antes. Não queria convidá-lo a se aproximar mais... Nada de bom poderia resultar daquilo... Mas ainda assim não podia deixar de desfrutar da proximidade dele.
Hunt a persuadiu a jogar e esperava pacientemente ela pensar em cada movimento possível, dando conselhos quando lhe pedia. Seu jeito era tão encantador e a distraía com tanta eficiência que Annabelle quase não se importava com quem ganharia. Quase. Quando moveu uma peça para uma posição que ameaçava não só uma, mas duas peças dele, Hunt lhe dirigiu um sorriso de aprovação.
– Isso se chama uma estratégia de garfo e espeto. Como eu suspeitava, você tem uma habilidade natural para o xadrez.
– Agora você não tem escolha, a não ser recuar – disse Annabelle triunfante.
– Ainda não. – Ele moveu uma de suas peças em uma área diferente do tabuleiro e ameaçou diretamente a rainha dela.
Intrigada com a estratégia, ela percebeu que Hunt acabara de obrigá-la a recuar.
– Não é justo – protestou, fazendo-o rir.
Annabelle entrelaçou os dedos e apoiou o queixo nas mãos para contemplar o tabuleiro.
Passou um minuto inteiro pensando em várias estratégias, mas nenhuma lhe parecia acertada.
– Não sei o que fazer – admitiu afinal. Ergueu os olhos e percebeu que ele a fitava de uma forma estranha. Seu olhar era a um só tempo terno e preocupado. Isso a desconcertou e ela teve que engolir em seco para fazer desaparecer de sua garganta a sensação de doçura espessa, como mel.
– Deixei você cansada – murmurou Hunt.
– Não, estou bem...
– Vamos continuar o jogo mais tarde. Você vai ver seu próximo movimento com mais clareza quando estiver descansada.
– Não quero parar – insistiu ela, irritada com a recusa. – Além disso, não vamos nos lembrar de como as peças estão dispostas.
– Eu vou – retrucou Hunt, ignorando os protestos dela. Ele se levantou e afastou a mesa até deixá-la fora de alcance. – Você precisa dormir um pouco. Precisa de ajuda para voltar ao quarto ou...?
– Sr. Hunt, não penso em voltar para o meu quarto – declarou com teimosia. – Estou cansada de ficar lá. Na verdade, preferia dormir no corredor a ter que...
– Tudo bem – murmurou ele com outro sorriso e voltando a se sentar. – Acalme-se. Longe de mim obrigá-la a fazer algo que não deseja. – Ele entrelaçou os dedos e se recostou, assumindo uma postura enganosamente casual e estreitando os olhos para observá-la. – Amanhã os convidados voltam à mansão com força total – comentou. – Suponho que você vai retomar a aproximação de Kendall em breve, não?
– Provavelmente – admitiu ela, tapando a boca quando um bocejo teimou em abrir seus lábios.
– Você não o quer – disse Hunt em voz baixa.
– Ah, quero sim. – Annabelle se deteve, sonolenta, meio que apoiando a cabeça no braço dobrado. – E... embora tenha se mostrado muito gentil comigo, Sr. Hunt... temo que isso não mude em nada os meus planos.
Ele a fitou do mesmo jeito descontraído e concentrado que olhara para o tabuleiro de xadrez.
– Eu também não pretendo mudar meus planos, doçura.
Se Annabelle não estivesse tão cansada, teria feito objeções a esse tratamento. Mas, em vez disso, limitou-se a ponderar as palavras dele em meio ao sono. Os planos dele...
– Que são evitar que eu consiga capturar lorde Kendall – concluiu ela.
– Vão um pouco além disso – replicou ele, com um traço de diversão nos cantos da boca.
– O que quer dizer?
– Não vou revelar minha estratégia. É evidente que preciso de qualquer vantagem que puder conseguir. O próximo movimento é seu, Srta. Peyton. Mas não se esqueça de que a estarei observando.
Annabelle sabia que devia se assustar com tal advertência. Mas sentia um cansaço esmagador e fechou os olhos por uns segundos. A umidade por trás das pálpebras aliviou a ardência que anunciava uma incontrolável necessidade de dormir. Abriu os olhos com grande relutância e viu a imagem desfocada de Hunt à sua frente. Era uma pena que precisassem ser adversários, pensou ela, exausta. Não sabia que tinha dito isso em voz alta até ouvir a réplica dele em tom amável.
– Nunca fui seu adversário.
– Então é meu amigo? – murmurou ela, cética, rendendo-se à tentação de fechar os olhos outra vez. Mas agora o sono a acolheu com um abraço de boas-vindas e tão depressa que mal teve tempo de registrar que Hunt a cobriu até os ombros com a manta que havia em seu colo.
– Não, doçura – sussurrou ele. – Não sou seu amigo...
Foi um sono brando. Ao despertar, constatou que estava sozinha no salão privativo, então, cochilou outra vez banhada pela luz do sol. Quando seu corpo entrou em estado de sono profundo, teve um sonho de cores vívidas, no qual todos os seus sentidos estavam aguçados e seu corpo estava tão leve que parecia flutuar em um oceano de água tépida. Aos poucos as formas se materializaram ao redor dela...
Ela vagava por uma casa desconhecida, uma mansão brilhante onde a luz do sol entrava por janelas altas. Os cômodos estavam vazios, sem convidados ou criados à vista. A música chegava pelo ar, vinda de algum lugar indefinido. Era uma melodia triste e etérea que despertava nela um desejo. Andando sozinha, encontrou uma espaçosa sala com colunas de mármore e sem teto... A céu aberto, ligeiramente sombreada por uma nuvem que passava sobre a propriedade.
O chão sob seus pés era formado por uns quadrados brancos e pretos, que pareciam um tabuleiro de xadrez, com estátuas de tamanho natural dispostas em algumas dessas casas.
Movendo-se entre elas com curiosidade, Annabelle circulava lentamente para contemplar os brilhantes rostos esculpidos. Desejou ter alguém com quem falar, o calor de alguma mão humana que pudesse segurar. Atravessou o gigantesco tabuleiro de xadrez, procurando às cegas entre a multidão de figuras imóveis – até que viu uma silhueta escura apoiada indolente em uma coluna branca de mármore. Seu coração acelerou e seus passos foram diminuindo à medida que uma onda de excitação se apoderava dela, aquecendo sua pele e alterando sua pulsação para um ritmo frenético.
Era Simon Hunt, que caminhava em sua direção com um leve sorriso no rosto. Ele a segurou antes que ela pudesse escapar e se inclinou para sussurrar em seu ouvido:
– Dança comigo agora?
– Não posso – disse ela, sem fôlego, lutando para se livrar de seu abraço apertado.
– Sim, você pode – insistiu com suavidade, a boca quente e macia deixando um rastro de beijos em seu rosto. – Ponha os braços ao redor do meu pescoço...
Como ela se contorcia em seus braços, Hunt riu baixinho e a beijou até que ela ficasse inerte e indefesa.
– A rainha está a ponto de ser capturada – murmurou ele, recuando para fitá-la com uma expressão perversa no olhar. – Está correndo perigo, Annabelle...
Subitamente ela se libertou e se virou para fugir dele. No caminho, tropeçou nas estátuas por causa da pressa. Hunt a seguiu de perto. Seu riso grave ecoava nos ouvidos de Annabelle.
Estava logo atrás dela, prolongando deliberadamente a perseguição, até que ela ficou exausta, com calor e sem fôlego. Quando enfim a capturou, ele a virou de costas antes de deitá-la no chão. O cabelo escuro dele ocultava o céu quando ele cobriu o corpo dela com o seu, e a música foi abafada pelo estrépito das batidas do coração dela.
– Annabelle – sussurrou ele. – Annabelle...
Ela acordou, arregalando os olhos, com o rosto corado por causa do sonho, e descobriu que não estava mais sozinha.
– Annabelle. – Ouviu de novo. Mas não era a voz rouca de barítono que ouvira em seu sonho.
CAPÍTULO 15
Quando olhou para cima, Annabelle viu lorde Hodgeham inclinado sobre ela. Tratou logo de se sentar, chegando para trás ao se dar conta de que o que via não era fruto de sua imaginação, mas uma figura das mais reais. Incapaz de falar por estar surpresa, encolheu-se ao ver aquela mão pesada dele se estender para mexer na rendinha que havia na frente do vestido dela.
– Ouvi dizer que você estava doente – disse Hodgeham, que fitava Annabelle naquela posição meio reclinada com olhos lânguidos. – Fiquei muito compungido por seu sofrimento.
Mas parece que os danos não foram permanentes. Você está... – deteve-se e umedeceu os lábios grossos – elegante como sempre, talvez apenas um pouco mais pálida.
– Como... como soube que eu estava aqui? – perguntou Annabelle. – Este é o salão privativo dos Marsdens. Não acredito que nenhum deles tenha lhe dado permissão para...
– Fiz um criado me contar. – Foi a resposta petulante de Hodgeham.
– Vá embora – ordenou Annabelle. – Ou vou gritar que está me molestando.
Hodgeham soltou uma gargalhada.
– Você não pode se permitir um escândalo desses, minha querida. Todo mundo percebe que você tem um óbvio interesse pelo Sr. Kendall. E nós dois sabemos que qualquer coisa desabonadora associada ao seu nome arruinaria completamente as suas chances com ele. – Sorriu ao perceber o silêncio que havia provocado, revelando dentes tortos e amarelados. – Assim está melhor. Minha pobre e bela Annabelle... Sei que vai recuperar as cores nessas agora pálidas bochechas. – E enfiou a mão no bolso, de onde tirou uma grande moeda de ouro que mexeu na frente dela de um jeito tentador. – Um presente como mostra de minha solidariedade pelo seu sofrimento.
A respiração de Annabelle se transformou em um silvo indignado quando Hodgeham se inclinou ainda mais, aproximando-se com a moeda entre os dedos roliços e tentando enfiá-la no espartilho dela. Ela bateu na mão de Hodgeham, empurrando-a com um movimento rápido e brusco. Embora ainda estivesse fraca, o gesto foi suficiente para fazer a moeda voar e cair em um tapete, no chão, com um baque surdo.
– Deixe-me em paz! – ordenou ela, ferozmente.
– Sua vadia de nariz empinado. Não precisa tentar fingir que é melhor do que sua mãe.
– Seu porco... – Maldizendo sua falta de força, Annabelle o empurrou quando ele se inclinou novamente na direção dela. – Não! – exclamou, cerrando os dentes e tapando o rosto com os braços. Resistiu como pôde quando ele agarrou seus pulsos. – Não...
O barulho da porta fez Hodgeham se aprumar, surpreso. Tremendo da cabeça aos pés, Annabelle olhou na direção do som e viu a mãe do outro lado com a bandeja do almoço. Quando percebeu o que estava acontecendo, Philippa deixou os talheres caírem no chão.
Ela balançou a cabeça em negação como se fosse impossível acreditar que Hodgeham estivesse ali.
– Você se atreveu a se aproximar da minha filha... – principiou ela com dureza na voz.
Vermelha de raiva, deixou a bandeja em uma mesa ali perto e se aproximou de Hodgeham, falando com uma fúria contida. – Minha filha está doente, senhor. Não permitirei que sua saúde seja comprometida... Acompanhe-me agora e discutiremos esse assunto em outro lugar.
– Discutir não é o que desejo – retrucou Hodgeham.
Annabelle viu uma rápida sucessão de emoções cruzar o rosto da mãe: nojo, ressentimento, ódio, medo. E, finalmente, resignação.
– Afaste-se da minha filha então – disse ela com frieza.
– Não – protestou Annabelle, percebendo que Philippa tinha a intenção de ficar a sós com ele. – Fique comigo, mamãe.
– Vai ficar tudo bem. – Philippa não olhou para a filha, tinha os olhos fixos e inexpressivos em Hodgeham e naquele semblante avermelhado dele. – Seu almoço está na bandeja que eu lhe trouxe, querida. Tente comer alguma coisa...
– Não. – Incapaz de acreditar naquilo e desesperada, Annabelle viu a mãe sair calmamente do cômodo indo atrás de Hodgeham. – Mamãe, não vá com ele! – Mas Philippa saiu como se não tivesse ouvido.
Annabelle não sabia ao certo quanto tempo ficou olhando para a porta. Não tinha a menor intenção de pegar a bandeja para almoçar. O cheiro da sopa de legumes inundava o ambiente e provocava-lhe náuseas. Perguntava-se como essa história infernal teria começado. Ele teria imposto isso à sua mãe ou teria sido algo consensual no início? Não importava como começara, agora aquilo virara uma farsa. Hodgeham era um monstro, e Philippa ficava tentando acalmá-lo para que não as arruinasse.
Exausta e abatida, tentando não pensar no que poderia estar ocorrendo entre sua mãe e Hodgeham naquele instante, Annabelle se levantou do sofá. Fez uma careta de dor quando sentiu os músculos protestarem. Estava com dor de cabeça e tonta e só pensava em ir para o quarto.
Caminhando como uma anciã, percorreu o caminho até a sineta e puxou a cordinha. Depois do que pareceu ser uma eternidade, ninguém apareceu. Como os convidados tinham saído, a maior parte dos empregados estava de folga, e não havia muitas criadas à disposição.
Passando a mão distraidamente nas mechas de cabelo sem brilho, ela avaliou a situação.
Embora as pernas estivessem fracas, podia caminhar. Naquela manhã mesmo a mãe ajudara Annabelle a atravessar os corredores, saindo do quarto e indo até ali, no andar de cima, onde ficava o salão dos Marsdens. Agora, porém, não tinha certeza se conseguiria fazer o mesmo percurso sem ajuda.
Ignorando as faíscas reluzentes que dançavam diante de seus olhos como vaga-lumes, saiu do cômodo com passos curtos e cautelosos. Permaneceu próxima à parede para o caso de precisar se apoiar. Era tão estranho, pensou com tristeza, que um esforço mínimo como esse a fizesse ficar ofegante tal qual tivesse acabado de correr uma maratona. Furiosa com a própria fraqueza, perguntou-se com pesar se não deveria ter tomado aquela caneca de pega-pega afinal de contas.
Concentrando-se em pôr um pé diante do outro, foi avançando bem devagar pelo primeiro corredor até que chegou a um ponto em que dobrou para a ala leste da propriedade, onde ficava seu quarto. Parou quando ouviu vozes vindas de outra direção.
Que inferno. Seria humilhante ser vista naquelas condições.
Rezando para que as vozes pertencessem a dois criados, apoiou-se na parede e ficou parada.
Tinha alguns fios de cabelo colados na testa e nas bochechas suadas com o esforço.
Dois homens cruzaram o corredor à sua frente. Conversavam tão absortos no assunto que nem deram por sua presença. Aliviada, Annabelle pensou que conseguiria passar despercebida.
No entanto, não teve tanta sorte. Um dos homens acabou olhando em sua direção e imediatamente a viu. Ele se aproximou, e Annabelle reconheceu a elegância masculina daqueles passos largos antes mesmo de ver o rosto com clareza.
Parecia que estava destinada a sempre se expor na frente de Simon Hunt. Com um suspiro, afastou-se da parede tentando se recompor, mesmo com as pernas trêmulas.
– Boa tarde, Sr. Hunt...
– O que está fazendo? – perguntou Hunt apressando-se para alcançá-la. Parecia irritado, mas, quando olhou para o rosto dele, Annabelle viu a preocupação de Hunt. – Por que está sozinha no corredor?
– Estou indo para o meu quarto – respondeu, e ficou surpresa ao vê-lo passar os braços por seu ombro e sua cintura. – Sr. Hunt, não há necessidade alguma de...
– Você está fraca como um gatinho – disse ele, sem meias palavras. – Sabe muito bem que não deveria ir a lugar nenhum sozinha nessas condições.
– Não havia ninguém para me ajudar – replicou Annabelle, irritada. Sua cabeça girava e ela percebeu que tinha encostado nele, soltando o peso do corpo. O peitoral dele era maravilhosamente firme e forte, e podia sentir a seda do paletó encostada na sua bochecha.
– Onde está sua mãe? – insistiu Hunt, desembaraçando uma mecha do cabelo emaranhado dela. – Diga-me e eu vou...
– Não! – Annabelle ergueu os olhos para ele subitamente apavorada, com os dedos finos segurando as mangas do paletó de Hunt. Santo Deus, a última coisa de que precisava agora era que Hunt fosse procurar Philippa, que devia estar nesse momento em alguma situação terrivelmente comprometedora com Hodgeham. – Não precisa ir procurá-la – disse bruscamente.
– Eu... eu posso muito bem ir sozinha para o meu quarto se me soltar. Eu não quero...
– Tudo bem – murmurou Hunt, mantendo o braço em torno dela. – Fique tranquila, não vou procurá-la. Acalme-se. – Continuou tocando e desembaraçando o cabelo dela com movimentos ternos e cadenciados.
Annabelle se deixou cair sobre ele enquanto tentava recuperar o fôlego.
– Simon – sussurrou ela, meio surpresa por ter acabado de usar seu primeiro nome, coisa que nunca tinha feito antes, mesmo em pensamento. Umedecendo os lábios ressecados, ela tentou recomeçar a fala e, para sua surpresa, fez a mesma coisa: – Simon...
– Sim?
Enquanto uma nova tensão percorria o corpo forte de Hunt, ele acariciou com mais ternura ainda a cabeça de Annabelle.
– Por favor.. Leve-me até o meu quarto.
Hunt inclinou a cabeça dela delicadamente para trás e a fitou com um sorriso nos lábios.
– Doçura, eu a levaria até Tombuctu se você me pedisse.
Nesse meio-tempo, o homem que o acompanhava foi até eles e Annabelle ficou intimidada, embora não tenha se surpreendido, ao descobrir que se tratava de lorde Westcliff.
Ele a fitou com fria desaprovação, como se suspeitasse de que ela de alguma forma tivesse planejado aquele encontro.
– Srta. Peyton – disse secamente. – Eu lhe asseguro de que não havia necessidade alguma de ter atravessado o corredor sem estar acompanhada. Se não havia alguém disponível, poderia ter chamado os criados.
– Fiz isso, senhor – observou ela na defensiva e tentando afastar Hunt, que não estava disposto a deixá-la. – Toquei a sineta e esperei cerca de quinze minutos, mas ninguém apareceu.
Westcliff olhava para ela com evidente ceticismo.
– Impossível. Meus criados sempre se apresentam quando são chamados.
– Bem, hoje parece que foi uma exceção – alfinetou ela. – Talvez a corda da sineta esteja quebrada. Ou talvez seus criados...
– Fique tranquila – murmurou Hunt, obrigando Annabelle a recostar novamente a cabeça em seu peito. Embora não pudesse ver o rosto dele, ela notou o tom de advertência em sua voz quando se dirigiu a Westcliff. – Continuamos nossa discussão mais tarde. Agora pretendo acompanhar a Srta. Peyton até o aposento dela.
– Não é uma boa ideia, na minha opinião – disse o conde.
– Nesse caso, fico feliz de não a ter pedido – rebateu Hunt, demonstrando afabilidade.
Ouviu-se um suspiro tenso do anfitrião seguido de passos abafados pelo tapete à medida que iam se afastando deles.
Hunt inclinou a cabeça.
– Agora... você poderia me explicar o que está acontecendo? – perguntou ele tão próximo do ouvido dela que seu hálito chegou a esquentá-la.
Todas as veias de Annabelle pareciam se dilatar, levando uma onda de prazer à sua pele fria.
O modo como ele a segurava fazia com que inevitavelmente se lembrasse do sonho que teve, da erótica ilusão de sentir o peso do corpo dele sobre o dela. Aquilo era inadmissível. Ela se deleitava secretamente com a sensação de estar nos braços de Hunt, mesmo sabendo que não receberia nada dele, a não ser um prazer passageiro seguido por uma desonra eterna. Conseguiu balançar a cabeça em negativa respondendo à pergunta dele, e tal movimento fez seu rosto roçar o tecido do paletó.
– Achei mesmo que não – disse Hunt ironicamente.
Experimentou soltá-la e, semicerrando os olhos, avaliou se estaria em condições de se equilibrar sozinha. Constatando que não, ele a pegou no colo. Annabelle se rendeu com um murmúrio inarticulado antes de passar os braços em volta do pescoço dele. No corredor, a caminho do quarto, ele lhe disse em voz baixa:
– De repente eu seria capaz de ajudá-la se me dissesse qual é o problema.
Ela considerou a proposta por um instante. A única coisa que conseguiria confidenciando seus problemas a Hunt seria uma provável oferta de mantê-la como amante. E ela odiava a parte de si mesma que se sentia atraída por essa ideia.
– Por que iria querer se envolver com os meus problemas? – indagou ela.
– Preciso de um motivo para querer ajudá-la?
– Precisa – respondeu ela amargamente, arrancando-lhe uma gargalhada.
Ao chegar diante do quarto, ele a pôs com cuidado no chão.
– Consegue ir até a cama sozinha ou quer que eu a coloque sob as colchas?
Embora a voz dele tivesse um leve tom de provocação, Annabelle suspeitava que bastaria um pequeno incentivo para que ele fizesse exatamente aquilo. Portanto, mais que depressa, negou.
– Não. Eu estou bem, por favor não entre. – Pôs a mão em seu peito impedindo a entrada dele. Embora frágil, o gesto foi suficiente para detê-lo.
– Tudo bem. – Hunt a fitou, tentando achar algo em seu olhar. – Mandarei uma criada vir atendê-la. Embora suspeite que Westcliff já esteja fazendo suas inquisições.
– Eu de fato puxei a corda da sineta – insistiu Annabelle, envergonhada com o tom impertinente da própria voz. – É óbvio que o conde não acredita em mim, mas...
– Eu acredito em você. – Com o maior cuidado, Hunt afastou a mão dela de seu peito, segurando um instante os dedos finos de Annabelle antes de deixá-la ir. – Westcliff não é exatamente o ogro que aparenta ser. É preciso se familiarizar com ele por um tempo antes de poder apreciar as melhores qualidades que possui.
– Se você diz... – replicou Annabelle, demonstrando dúvida e soltou um suspiro quando voltou para o velho e enfermiço cômodo. – Obrigada, Sr. Hunt.
Perguntando-se com ansiedade quando Philippa voltaria, deu uma olhada geral no quarto antes de se voltar de novo para Hunt.
Ele a observava com olhos penetrantes que pareciam aflorar todas as emoções escondidas sob a fachada tensa da moça, que percebeu a infinidade de perguntas que o assaltavam. No entanto, a única coisa que ele disse foi:
– Você precisa descansar.
– É só o que tenho feito até agora. Estou enlouquecendo de tédio... Mas a simples ideia de não fazer nada já me deixa exausta. – Baixou a cabeça e mediu mentalmente os poucos passos que os afastavam antes de perguntar com cautela: – Suponho que não teria interesse em terminar a partida de xadrez mais tarde, não é?
Fez-se um breve silêncio e, em seguida, Hunt respondeu de um jeito lento e zombeteiro:
– Por que, Srta. Peyton? Fico aflito ao pensar que pode estar desejando a minha companhia.
Annabelle não foi capaz de olhar para ele e, de tanta vergonha que sentia, estava com o rosto todo vermelho.
– Eu desejaria a companhia do próprio diabo, mesmo que fosse apenas para ter algo a fazer que não seja ficar deitada na cama.
Rindo baixinho, ele estendeu a mão para colocar uma mecha de cabelo dela atrás da orelha.
– Veremos – murmurou ele. – Talvez eu passe aqui mais tarde.
Depois disso, fez uma pequena reverência e saiu pelo corredor com aquele seu passo autoconfiante de sempre.
Annabelle se lembrou, tarde demais talvez, de algo que dizia respeito a uma noite musical que fora planejada para os convidados enquanto eles desfrutavam o jantar. Simon Hunt sem dúvida iria preferir ficar com eles no andar de baixo a jogar xadrez com uma enferma descabelada e muito mal-humorada. Fez uma careta desejando poder retirar aquele convite espontâneo – ah, quão lamentavelmente desesperada devia ter soado! Bateu com uma das mãos na testa e se arrastou para dentro do quarto, deixando-se cair pesadamente na cama desfeita como uma árvore que acabava de ser cortada.
Cerca de cinco minutos depois, ouviu alguém bater à porta. Eram duas criadas, que entraram ali com ar de quem havia sido repreendido.
– Viemos fazer uma arrumação, senhorita – atreveu-se a dizer uma delas. – O patrão mandou... disse para ajudar a senhorita no que precisar.
– Obrigada – respondeu Annabelle, esperando que lorde Westcliff não tivesse sido muito severo com as moças.
Foi se sentar em uma cadeira, de onde assistiu ao turbilhão de atividade que se seguiu. Com uma velocidade quase mágica, as jovens criadas mudaram a roupa de cama, abriram a janela para entrar ar fresco, limparam o pó dos móveis e trouxeram uma banheira portátil para preparar-lhe um banho. Uma delas ajudou Annabelle a se despir, enquanto a outra trazia várias toalhas dobradas e um balde de água morna que serviria para enxaguar seu cabelo. Com um estremecimento de prazer, Annabelle entrou na banheira portátil com bordas de mogno.
– Por favor, segura em mim, senhorita – disse a mais nova das duas, estendendo o braço para que Annabelle se sustentasse. – Não tá conseguindo ficar de pé tão bem, parece.
Annabelle obedeceu e se sentou na banheira antes de soltar o braço musculoso da mocinha.
– Qual o seu nome? – perguntou antes de recostar na banheira até os ombros ficarem imersos na água, de onde subia uma nuvem de vapor.
– Meggie, senhorita.
– Meggie, creio que deixei uma moeda de ouro caída no chão do salão privativo da família.
Poderia fazer a gentileza de tentar encontrá-la para mim?
A moça lançou um olhar perplexo para Annabelle, perguntando-se claramente por que ela deixara algo tão valioso no chão e o que aconteceria se não conseguisse achá-lo.
– Sim, senhorita.
Fez uma reverência inquieta e foi correndo para o salão. Annabelle mergulhou a cabeça na água e em seguida voltou a se sentar com o rosto e o cabelo pingando. Enxugou os olhos enquanto a outra criada se inclinava para esfregar o sabão em seu cabelo.
– É uma sensação muito agradável estar sendo limpa – murmurou ela, ainda sob os cuidados da moça.
– M’nha mãe sempre diz que num é bom tomar banho quando se tá doente – disse a criada com insegurança.
– Vou correr o risco – respondeu Annabelle, inclinando agradecida a cabeça para trás enquanto a moça enxaguava seu cabelo ensaboado. Secando os olhos mais uma vez, Annabelle viu que Meggie tinha voltado.
– Eu achei, senhorita! – exclamou a criada sem fôlego, mostrando a moeda de um soberano em sua mão. Essa era possivelmente a primeira vez que a menina via uma moeda tão alta, já que uma criada ganhava aproximadamente oito xelins por mês. – Onde eu coloco?
– Pode dividir entre vocês duas – disse Annabelle.
As duas se entreolharam, pasmas.
– Ah, muito obrigada, senhorita! – exclamaram ambas, com os olhos arregalados e a boca aberta de espanto.
Infelizmente consciente da hipocrisia que era doar o dinheiro do Sr. Hodgeham quando a família Peyton havia se beneficiado de sua ajuda questionável por mais de um ano, ela baixou a cabeça, envergonhada pela gratidão das moças. Vendo o desconforto dela, as duas se apressaram em ajudá-la a sair da banheira, secaram seu cabelo e o corpo trêmulo e auxiliaram Annabelle a pôr um vestido limpo.
Revigorada e cansada depois do banho, Annabelle foi para a cama e se deitou em meio aos lençóis suaves e macios. Cochilou enquanto as criadas removiam a banheira. Estava vagamente consciente quando elas partiram na ponta dos pés para não incomodá-la. Quando acordou, tinha acabado de anoitecer e sua mãe acendia o abajur da mesinha de cabeceira, o que a ofuscou um pouco.
– Mamãe – chamou, atordoada com o sono. Estremeceu ao se lembrar do encontro que tivera com Hodgeham. – Você está bem? Ele...?
– Não quero falar sobre isso – disse Philippa em voz baixa, com o perfil delicado suavemente delineado pela luz. Os olhos estavam entorpecidos, inexpressivos, e a testa mostrava rugas de tensão. – Sim, estou bem, sim, querida.
Annabelle assentiu de um jeito quase imperceptível, enrubescida e desanimada, consciente de um profundo sentimento de vergonha. Sentou-se e sentiu as costas tão rígidas que mais parecia ter sido substituída por um atiçador de ferro. Mas, apesar da rigidez dos músculos não utilizados, sentia-se muito mais forte e, pela primeira vez em dois dias, seu estômago roncava de fome. Saiu da cama e se aproximou do toucador para pegar a escova com o intuito de deixar o cabelo um pouco mais apresentável.
– Mamãe – principiou hesitante –, preciso mudar de ares. Talvez eu volte ao salão dos Marsdens e peça que me levem uma bandeja com o jantar e coma por lá.
Philippa parecia ter ouvido apenas metade do que a filha dissera.
– Sim – respondeu com ar ausente. – Parece uma boa ideia. Quer que eu a acompanhe?
– Não, obrigada... Estou me sentindo muito bem e o salão não é longe. Posso ir sozinha.
Você provavelmente vai querer um pouco de privacidade depois de... – Annabelle fez uma pausa incômoda antes de soltar a escova de cabelo. – Estarei de volta em breve.
Com um murmúrio quase inaudível, Philippa se sentou junto à lareira, e Annabelle percebeu que a aliviava a perspectiva de ficar um pouco sozinha. Depois de prender o cabelo em uma longa trança que lhe caía sobre o ombro, saiu do quarto em silêncio e fechou a porta.
Quando chegou ao corredor, ouviu um barulho sutil dos convidados que jantavam no salão do andar de baixo. A música se sobrepunha às conversas e aos risos; era um quarteto de cordas acompanhado de um piano. Deteve-se para escutar e ficou surpresa ao perceber que aquela era a mesma melodia triste, mas muito bonita, que tinha ouvido no sonho. Fechou os olhos e ouviu com mais atenção, sentindo uma dor melancólica formar um nó na garganta. A melodia a enchia de um tipo de desejo que não deveria se permitir sentir.
Meu Deus, pensou, a doença está me transformando em uma completa sentimental. Tenho que recuperar a compostura. Abrindo os olhos, começou a andar de novo e esteve a ponto de se chocar com alguém que vinha da direção oposta.
Seu coração pareceu se expandir dolorosamente quando viu Simon Hunt, vestido com uma elegante combinação de preto e branco e o esboço de um sorriso nos lábios. A voz profunda do rapaz fez com que um calafrio percorresse toda a coluna de Annabelle.
– Aonde pensa que vai?
Então ele tinha ido encontrá-la, apesar da elegante multidão com quem deveria estar no andar de baixo. Consciente de que a súbita fraqueza em seus joelhos não tinha nada a ver com a doença, Annabelle mexeu de forma nervosa na pontinha da trança.
– Vou pedir uma bandeja com comida e jantar no salão da família.
Hunt deu meia-volta e pegou no cotovelo dela para guiá-la ao longo do corredor. Diminuiu o ritmo para manter-se ao lado de Annabelle.
– Você não quer uma bandeja para jantar no salão privativo – observou ele.
– Não quero?
Ele assentiu, corroborando o que acabara de afirmar.
– Tenho uma surpresa para você. Venha, não está longe. – Como ela o seguiu por conta própria, Hunt a fitou de um jeito perscrutador. – Seu equilíbrio melhorou de algumas horas para cá. Como está se sentindo?
– Muito melhor – respondeu Annabelle. E corou quando seu estômago roncou de forma audível. – E um pouco faminta, para falar a verdade.
Hunt sorriu e a conduziu até uma porta parcialmente aberta. Entrou com ela no aposento, e Annabelle descobriu que estavam em um pequeno e adorável cômodo com paredes de painéis de jacarandá cobertas por tapeçarias e móveis estofados com um veludo cor de âmbar. No entanto, a característica mais marcante do local era uma janela na parede interna, que se abria para a sala de estar, situada dois andares abaixo. Esse aposento era completamente escondido dos olhos dos convidados lá embaixo, mas a música chegava ali claramente pela janela escancarada. O olhar atônito de Annabelle se voltou para uma mesinha na qual o jantar estava servido, com os pratos cobertos por uma cúpula de prata.
– Cheguei a ficar com dor de cabeça tentando descobrir o que despertaria seu apetite – disse Hunt. – Então pedi aos criados da cozinha que pusessem um pouco de tudo.
Impressionada e incapaz de se lembrar de outra ocasião em que um homem tivesse chegado a tais extremos para satisfazê-la, Annabelle de repente se viu com dificuldades para dizer algo.
Engoliu em seco e passou os olhos por todo os cantos do aposento, exceto pelo ponto em que encontraria o olhar de Hunt.
– É tudo encantador. Eu... não sabia que esse cômodo existia aqui.
– Poucas pessoas sabem. A condessa, algumas vezes, vem para cá quando está muito fraca para descer. – Hunt se aproximou dela e deslizou os dedos pelo queixo de Annabelle, meio que obrigando-a a olhar em seus olhos. – Quer jantar comigo?
Ela sentiu sua pulsação se acelerar de tal forma que sem dúvida ele conseguiria senti-la sob os dedos.
– Não tenho uma acompanhante comigo – sussurrou ela com um fio de voz.
Hunt sorriu com aquela resposta e afastou a mão do queixo de Annabelle.
– Você não poderia estar mais segura. Não tenho a menor intenção de seduzi-la quando você está obviamente fraca demais para se defender.
– É muito respeitoso da sua parte.
– Vou seduzi-la quando estiver se sentindo melhor.
Reprimindo um sorriso, Annabelle ergueu a sobrancelha fina e disse:
– Você é muito convencido. Não deveria ter dito que vai tentar me seduzir?
– “Nunca antecipe o fracasso”, é o que meu pai sempre me diz. – Então ele passou um dos braços em torno dela e conduziu-a até uma das cadeiras. – Gostaria de um pouco de vinho?
– Não deveria – disse Annabelle melancólica, sentando-se em uma das cadeiras estofadas.
Provavelmente a bebida me pegaria em cheio.
Hunt serviu uma taça e a ofereceu a ela, sorrindo com um charme perverso que o próprio Lúcifer se esforçaria para tentar copiar.
– Ora – murmurou ele. – Eu cuido de você, caso fique um pouco alterada.
Tomando um gole do excelente e suave vintage, Annabelle lhe lançou um olhar irônico.
– Fico me perguntando com que frequência a perdição de uma dama começa com uma promessa como essa...
– Ainda não causei a perdição de nenhuma dama – disse Hunt, erguendo as cúpulas dos pratos e pondo-as de lado. – Em geral eu as persigo depois de já estarem perdidas.
– Há muitas damas perdidas em seu passado? – perguntou ela, incapaz de se conter.
– Tive o meu quinhão – respondeu Hunt, olhando nos olhos dela com uma expressão que não era nem apologética nem arrogante. – Ultimamente, porém, todas as minhas energias foram direcionadas para um passatempo diferente.
– Que é...?
– Estou supervisionando o desenvolvimento de uma fabricante de locomotivas na qual tanto Westcliff quanto eu investimos.
– Sério? – perguntou ela com o maior interesse. – Nunca entrei em um trem. Como é estar em um?
Hunt sorriu e seu rosto assumiu uma expressão de menino entusiasmado.
– É rápido. Emocionante. A velocidade de um trem de passageiros é em média de oitenta quilômetros por hora, mas a Consolidated está esboçando um modelo de seis cilindros combinados, que deve chegar a pouco mais de cento e dez.
– Cento e dez quilômetros por hora? – repetiu Annabelle, incapaz de imaginar-se sendo impelida para a frente em tal velocidade. – E não é incômodo para os passageiros?
A pergunta fez Hunt sorrir.
– Uma vez que o trem atinge a velocidade de viagem, você não nota o impulso.
– Como é a parte interna de um vagão de passageiros?
– Não é especialmente luxuosa – admitiu Hunt, servindo-se de mais vinho. – Eu não recomendaria viajar em nenhum outro local a não ser no vagão privativo... Especialmente para alguém como você.
– Alguém como eu? – disse ela com um sorriso de repreensão. – Se está insinuando que sou mimada, posso assegurar que está muito equivocado.
– Pois deveria ser. – Seu olhar convidativo perpassou pelo rosto rosado e pelo torso esbelto de Annabelle, voltando a fixar-se nos olhos dela. Quando falou, seu tom de voz conseguiu deixá-la sem fôlego. – Não lhe faria mal ser um pouco mimada.
Annabelle inspirou fundo tentando restaurar o ritmo normal de sua respiração. Desejou desesperadamente que ele não a tocasse, que cumprisse a promessa de não seduzi-la. Porque, se o fizesse – que Deus a ajudasse –, ela não tinha certeza se seria capaz de resistir.
– Consolidated é o nome da sua empresa? – indagou ela com a voz trêmula, tentando recuperar o fio da conversa.
Ele assentiu.
– É o parceiro britânico da Shaw Foundries.
– A empresa que pertence ao noivo de Lady Olivia, o Sr. Shaw?
– Exatamente. Shaw está nos ajudando a nos adaptar ao sistema americano de produção, que é muito mais eficiente e produtivo do que o britânico.
– Sempre ouvi dizer que as máquinas fabricadas na Inglaterra eram as melhores do mundo –
comentou Annabelle.
– Isso é bem questionável. E, mesmo assim, são raramente padronizadas. Não existem sequer duas locomotivas produzidas na Inglaterra que sejam iguais, o que reduz bastante a produção e faz com que os consertos sejam complicados. No entanto, se pudéssemos seguir o modelo americano e produzíssemos peças iguais, usando calibres e modelos com o mesmo padrão, poderíamos construir um motor em questão de semanas em vez de meses, e os reparos seriam feitos num piscar de olhos.
Enquanto conversavam, Annabelle contemplava Hunt com fascínio, pois nunca tinha ouvido um homem falar de sua profissão daquele jeito. Pela sua experiência, o trabalho não era um assunto sobre o qual os homens gostavam de discutir, até porque o mero conceito de trabalhar para ganhar a vida era uma característica distintiva das classes mais baixas. Se um cavalheiro da classe alta se visse obrigado a trabalhar, tentaria ser muito discreto a respeito disso e fingiria que a maior parte do seu tempo era gasta em atividades de lazer. Simon Hunt, no entanto, não fazia qualquer esforço para ocultar a satisfação que o seu trabalho lhe proporcionava e, por algum motivo, Annabelle achou isso estranhamente atraente.
A pedido dela, Hunt deu ainda mais detalhes sobre o negócio, contando tudo a respeito das negociações para a compra de uma fundição ferroviária que estava sendo convertida para o novo sistema de inspiração americana. Dois dos nove edifícios que ficavam em um local de mais de cinco hectares já tinham se transformado em uma fundição onde eram produzidos parafusos, pistões, hastes e válvulas padronizados. Tudo isso, junto com algumas partes importadas da Shaw Foundries em Nova York, estava sendo usado na fabricação de motores de quatro e seis cilindros que seriam vendidos por toda a Europa.
– Com que frequência você vai à fundição? – perguntou Annabelle, antes de pôr na boca o faisão coberto com molho cremoso de agrião.
– Diariamente, quando estou na cidade. – Hunt contemplou o conteúdo de sua taça de vinho e franziu o cenho ligeiramente. – E já estou muito tempo fora, na verdade... Terei que voltar a Londres em breve para verificar os progressos.
Annabelle devia ter se alegrado com a ideia de que ele deixaria Hampshire logo. Simon Hunt era uma distração a que não podia se permitir e seria mais fácil concentrar suas atenções no Sr.
Kendall quando Hunt tivesse ido embora. No entanto, a notícia a fez experimentar um estranho vazio. Ela se deu conta de que apreciava bastante a companhia de Hunt e de que a vida em Stony Cross perderia a graça quando ele fosse embora.
– Vai voltar antes de a festa acabar? – perguntou ela, aparentemente concentrada em destrinchar o faisão com a faca.
– Depende.
– De quê?
A voz dele adquiriu um tom bem suave.
– De eu ter motivos suficientes para voltar.
Annabelle não o fitou. Mergulhou em um silêncio inquietante e, sem fixar o olhar em algo específico, voltou-se para o vão da janela, de onde vinha a exuberante melodia Rosamunda, de Schubert.
Quando já tinham acabado de jantar, ouviu-se uma batida discreta à porta seguida da entrada de um criado que vinha retirar os pratos. Ainda evitando olhar para Hunt, Annabelle se perguntou se a notícia de que tinha jantado a sós com Simon Hunt já teria se espalhado pelas dependências dos criados. No entanto, assim que o rapaz saiu, ele a tranquilizou, como se tivesse lido seus pensamentos.
– Ele não vai dizer nada a ninguém. Westcliff o recomendou por sua capacidade de manter a boca fechada no que se refere a assuntos confidenciais.
Annabelle lhe lançou um olhar angustiado.
– Então... o conde sabe que você e eu... Estou certa de que ele não deve aprovar!
– Tenho feito muitas coisas que ele não aprova – replicou Simon, com voz cadenciada. – E
nem sempre aprovo as decisões dele. No entanto, a fim de manter nossa amizade proveitosa, normalmente não batemos de frente. – Ele se levantou, apoiou as mãos na mesa e se inclinou para a frente, de modo que sua sombra se projetou sobre Annabelle. – Que tal uma partida de xadrez? Pedi que trouxessem o tabuleiro... só para o caso de querer jogar.
Annabelle assentiu. Olhando fixamente em seus cálidos olhos pretos, ela pensou que esta era talvez a primeira noite de sua vida adulta em que se sentia totalmente feliz por estar onde estava.
Com este homem. Sentia uma curiosidade enorme sobre ele, uma necessidade real de descobrir os pensamentos e sentimentos ocultos sob sua fachada.
– Onde aprendeu a jogar xadrez? – perguntou ela, observando os movimentos de suas mãos enquanto ele ia colocando as peças no local em que haviam parado na partida anterior.
– Meu pai me ensinou.
– Seu pai? – indagou, perplexa.
Um sorriso zombeteiro se formou no rosto dele.
– Um açougueiro não pode jogar xadrez?
– Claro que sim. Eu... – Annabelle sentiu-se enrubescer por completo. Envergonhou-se com sua falta de tato.
– Eu sinto muito.
O sorriso permaneceu no rosto de Hunt enquanto ela a observava.
– Você parece ter uma impressão equivocada sobre a minha família. Os Hunts pertencem à classe média. Meus irmãos e irmãs frequentaram a escola, assim como eu. Agora meu pai emprega meus irmãos, que também moram em cima da loja. E de noite, eles jogam xadrez com frequência.
Mais relaxada ao notar que não havia censura por parte dele, Annabelle pegou um peão e o girou nos dedos.
– Por que não quis trabalhar para o seu pai como fizeram seus irmãos?
– Quando garoto fui um capetinha teimoso – admitiu com um sorriso. – Cada vez que meu pai me mandava fazer alguma coisa, eu sempre me esforçava para provar que ele estava errado.
– E o que ele fazia? – indagou Annabelle, com os olhos brilhando.
– No começo, tentou ser paciente. Quando viu que não estava funcionando, tomou o caminho oposto. – Hunt fez uma careta para aquela recordação e seu sorriso agora demonstrava tristeza. –
Acredite, você não gostaria de apanhar de um açougueiro... Os braços deles são tão grossos quanto o tronco de uma árvore.
– Posso imaginar – murmurou ela, dando uma espiadinha de canto de olho no tamanho de seus ombros e lembrando da musculatura definida de seus braços. – Sua família deve ter muito orgulho do seu sucesso.
– É possível – concordou, dando de ombros. – Infelizmente, parece que a minha ambição tem servido para nos distanciar. Meus pais não me permitem comprar uma casa em West End.
Também não entendem que eu queira morar ali. Não acham que o mundo dos investimentos seja um trabalho adequado. Seriam mais felizes se eu me dedicasse a algo mais... tangível.
Annabelle o observou atentamente, compreendendo o que não fora dito durante a breve explicação. Sempre soube que Simon Hunt não pertencia às altas esferas pelas quais ele circulava. No entanto, até aquele momento não havia ocorrido a ela que ele também pudesse se sentir fora de lugar no mundo que tinha deixado para trás. Ela se perguntou se ele de vez em quando não se sentia solitário ou se era ocupado demais para reconhecê-lo.
– Não consigo pensar em algo mais tangível do que uma locomotiva de cinco toneladas –
comentou ela, em resposta à última afirmação dele.
Ele riu e estendeu-lhe a mão para pegar o peão que ela segurava. Mas de alguma forma Annabelle não conseguia soltar a peça de marfim e seus dedos se entrelaçaram por um instante enquanto seus olhares se encontravam. Annabelle ficou atônita com o calor que se acendeu nela, da mão até o ombro, depois se espalhando para o corpo todo. Era como ter se embriagado sob a luz do sol, o calor suscitando uma corrente contínua de sensações e, com o prazer, surgiu a repentina e alarmante pressão atrás dos olhos que anunciava a chegada de lágrimas.
Atordoada, Annabelle afastou a própria mão bruscamente, fazendo o peão cair no chão.
– Sinto muito – desculpou-se com uma risada trêmula, com medo do que poderia acontecer se ficasse mais tempo sozinha com ele. Sem jeito, afastou-se da mesa. – E-eu acabo de me dar conta de que estou muito cansada... O vinho parece ter me afetado afinal de contas. Eu deveria voltar para o meu quarto. Creio que ainda tenha bastante tempo para interagir com os convidados, de modo que sua noite não será um completo desastre. Obrigada pelo jantar, pela música e...
– Annabelle. – Hunt se moveu com elegância e rapidez até chegar ao lado dela e passar os braços em sua cintura. Baixou os olhos e a estudou com o cenho franzido pela curiosidade. – Não está com medo de mim, não é? – murmurou.
Ela balançou a cabeça desajeitadamente.
– Então por que a pressa repentina para ir embora?
Havia infinitas maneiras de ter respondido, mas, naquele momento, foi incapaz de mostrar sutileza, sagacidade ou qualquer tipo de agilidade verbal. Só conseguiu responder com a franqueza aterradora.
– Eu... não quero isso.
– Isso?
– Não vou me tornar sua amante. – Hesitou por um instante e depois concluiu: – Posso aspirar ser mais do que isso.
Hunt pensou sobre aquilo com cuidado, sem tirar as mãos da cintura dela.
– Está dizendo que pode encontrar alguém com quem se casar – perguntou ele enfim – ou que tem a intenção de se tornar amante de um aristocrata?
– Dá no mesmo, não dá? – murmurou Annabelle, afastando-se do apoio dos braços dele. –
Nenhum dos dois cenários incluem você.
Embora se recusasse a olhar para ele, Annabelle sentiu os olhos de Hunt a fitando, e estremeceu ao perceber que o calor resplandecente que a invadira havia pouco tinha desvanecido.
– Vou levá-la de volta ao seu quarto – disse Hunt, sem demonstrar qualquer emoção, e a acompanhou até a porta.
CAPÍTULO 16
Quando Annabelle voltou a se reunir com os convidados na manhã seguinte, ficou animada ao descobrir que aquele seu encontro com a víbora fizera com que angariasse a simpatia de todos, até mesmo de lorde Kendall. Exibindo grande sensibilidade e preocupação, ele se sentou com Annabelle para tomarem um café da manhã tardio ao ar livre, no terraço dos fundos da mansão.
Fez questão de segurar o prato enquanto ela escolhia várias delícias no bufê e se assegurou de que um criado enchesse o copo de água dela assim que estivesse vazio. Também insistiu em fazer o mesmo com Lady Constance Darrowby, que havia sentado com eles à mesa.
Lembrando-se dos comentários das amigas sobre Lady Constance, Annabelle avaliou a adversária. Kendall parecia mais do que interessado na moça, que lhe pareceu tranquila e de uma serenidade distante. Tinha o porte delgado muito elegante, bem no estilo que estava em alta. E
Daisy tinha razão: sua boca parecia uma bolsa fechada com um cordão, formando um bico cada vez mais franzido quando Kendall lhe contava algum detalhe relativo à horticultura.
– Deve ter sido terrível – comentou Lady Constance, dirigindo-se a Annabelle depois de ouvir a história da picada de cobra. – É um milagre que não tenha morrido. – Apesar da expressão angelical, o brilho gelado nos olhos azul-claros da moça mostrou a ela que Lady Constance não teria lamentado se aquilo tivesse acontecido.
– Pois estou muito bem agora – disse Annabelle, voltando-se para Kendall e sorrindo. – E
mais do que pronta para outro passeio pelo bosque.
– Em seu lugar, eu não faria tanto esforço, Srta. Peyton – sugeriu Lady Constance com tamanha preocupação. – Ainda não parece estar de todo recuperada. Mas estou certa de que a palidez em seu rosto desaparecerá em poucos dias.
Annabelle manteve o ar sorridente, recusando-se a demonstrar que o comentário a irritara, embora se sentisse fortemente tentada a fazer uma observação sobre a mancha que Lady Constance carregava na testa.
– Com licença – murmurou a moça, levantando-se. – Vi uns morangos recém-colhidos no bufê. Volto em um instante.
– Não tenha pressa – aconselhou Annabelle com doçura. – Mal notaremos a sua ausência.
Juntos, Annabelle e Kendall observaram-na se dirigir ao bufê, onde fortuitamente encontrou o Sr. Benjamin Muxlow reabastecendo o prato. Com modos cavalheirescos, Muxlow se afastou da grande taça que continha os morangos e segurou o prato de Lady Constance enquanto ela se servia. Entre eles só parecia haver uma amizade cordial, mas Annabelle se lembrava da história que Daisy lhe contara na véspera.
Pensando nisso, teve uma ideia, a maneira perfeita para eliminar a adversária da competição.
Antes que pudesse considerar as possíveis consequências e implicações morais, ou quaisquer outros inconvenientes, inclinou-se para lorde Kendall e murmurou:
– Os dois conseguem esconder muito bem a verdadeira natureza da relação deles, não lhe parece? – E lançou um olhar malicioso para Lady Constance e Maxlow. – Mas é claro que não lhes conviria que isso fosse de conhecimento geral... – Fez uma pausa e se voltou para um perplexo lorde Kendall fingindo desconforto com a situação. – Ah, sinto muito. Presumi que já tivesse ouvido por aí...
Kendall franziu o cenho de repente.
– Que eu tivesse ouvido o que exatamente? – perguntou ele, lançando para o casal um olhar cauteloso.
– Bom, não que eu seja de espalhar boatos... mas soube por uma fonte confiável que no dia do piquenique, enquanto todos comiam, Lady Constance e o Sr. Muxlow foram pegos em uma situação terrivelmente comprometedora. Estavam atrás de uma árvore e... – Annabelle se deteve e estampou no rosto uma estudada expressão consternada. – Eu não deveria ter dito nada. É possível que tenha sido apenas um mal-entendido. Nunca se sabe, não é mesmo?
Pôs-se a sorver delicadamente seu chá, observando lorde Kendall por cima da borda da xícara. Era fácil ler as emoções dele. O rapaz não queria acreditar que Lady Constance pudesse ter sido apanhada em uma situação como aquela. A mera ideia já era suficiente para deixá-lo assustado. No entanto, como o verdadeiro cavalheiro que era, relutaria em fazer investigações.
Nunca se atreveria a perguntar a Lady Constance se ela de fato se viu comprometida por Muxlow. Em vez disso, guardaria silêncio sobre o assunto, tentando ignorar as próprias suspeitas – até que um belo dia as perguntas não feitas acabariam por apodrecer.
– Annabelle, você na-não deveria ter feito isso – murmurou Evie no fim da tarde, quando a amiga confessou a elas sobre a conversa com lorde Kendall.
As quatro estavam sentadas no quarto de Evie, que tinha o rosto coberto por uma espessa camada de um creme branco que supostamente servia para eliminar as sardas. Olhando fixo para Annabelle por baixo daquela máscara clareadora, Evie tentou prosseguir, mas logo tornou-se evidente que sua capacidade discursiva, que nem era tão vasta assim, fora obliterada pela desaprovação.
– Foi uma estratégia brilhante – declarou Lillian, pegando uma lixa de unha na penteadeira diante da qual estava sentada. Não era possível dar por certo se havia ou não aprovado a atitude da amiga, mas era óbvio que a apoiaria até o fim. – Annabelle não chegou a mentir, entende? Ela simplesmente repetiu um boato que ouvira por aí e deixou bem claro que era justamente isto: um boato. O que Kendall vai fazer com essa informação cabe a ele.
– Mas ela não disse saber que isso é um boato in-infundado – argumentou Evie.
Lillian se concentrou em lixar as unhas até que ficassem perfeitamente ovaladas.
– Mesmo assim, ela não mentiu.
Na defensiva e se sentindo culpada, Annabelle se dirigiu a Daisy.
– O que você acha?
A mais nova das irmãs Bowmans, que se entretinha jogando a bola de rounders de um lado para outro, lançou um olhar astuto para a amiga e respondeu:
– Acho que ocultar parte da informação é o mesmo que mentir. Você escolheu um caminho escorregadio, querida. Tome cuidado com o que decidir a partir de agora.
Lillian franziu a testa, aborrecida.
– Ah, pare de falar como se estivesse no teatro representando uma cartomante, Daisy. Se Annabelle conseguir o que quer, o que importam os meios? O que interessa é o resultado. E você, Evie, não venha agora com questões éticas. Você concordou em nos ajudar a manipular o Sr. Kendall a fim de que fosse apanhado em uma situação comprometedora. Acha que isso é melhor do que repetir um boato infundado?
– Nós nos comprometemos a não fazer mal a ninguém – retrucou Evie com grande dignidade, pegando uma toalhinha para tirar a grossa camada de creme do rosto.
– Lady Constance não foi afetada – insistiu Lillian. – Não está apaixonada por ele. É óbvio que quer ficar com Kendall só por ele ser o único nobre solteiro no fim da temporada. Céus, Evie, você precisa ser mais dura. Lady Constante está em uma situação pior do que a nossa?
Olhe para nós. Somos quatro solteironas que até agora não conseguiram nada em troca dos nossos esforços, a não ser sardas, uma picada de cobra e a humilhação de termos aparecido de calçolas na frente de lorde Westcliff.
Annabelle, que estava sentada na beiradinha do colchão, deixou-se cair para trás, esparramando-se no meio da cama. Ficou olhando para o tecido listrado do dossel, sentindo-se culpada. Ah, como queria ser mais parecida com Lillian, que acreditava na ideia de que o fim justificava os meios! Prometeu a si mesma que no futuro se comportaria de forma estritamente correta.
Mas, como Lillian observara, lorde Kendall podia acreditar ou não no boato se quisesse. Era um homem adulto, capaz de decidir por conta própria. Tudo o que ela tinha feito era jogar umas sementinhas de dúvida, agora cabia a Kendall regá-las ou deixá-las perecer.
À noite, Annabelle pôs um vestido cor-de-rosa, composto por numerosas e flutuantes camadas translúcidas de escumilha. A cintura era envolta por um laço de seda adornado com uma enorme rosa branca. Ao caminhar, ouvia a saia fazer um suave som sibilante. Ela ajeitou as camadas de cima do vestido, sentindo-se uma princesa. Impaciente demais para esperar por Philippa, que demorava uma eternidade para se vestir, Annabelle saiu do quarto mais cedo, na esperança de encontrar as amigas. Com um pouco de sorte, poderia até encontrar lorde Kendall e arranjar uma desculpa qualquer para dar uma escapadela com ele por alguns minutos.
Sem forçar o tornozelo, ela caminhou pelo corredor que levava à grande escadaria. Seguindo um impulso, deteve-se diante do salão privativo dos Marsdens, cuja porta encontrava-se entreaberta, e entrou com cautela. O cômodo estava às escuras, mas a luz do corredor era suficiente para iluminar os contornos do tabuleiro de xadrez deixado em um dos cantos. Atraída até ali, viu com um lampejo de prazer que as peças da partida com Simon Hunt haviam sido repostas no lugar. Por que ele teria se dado ao trabalho de arrumar tudo como se ainda estivessem jogando? Estaria esperando que ela fizesse outra jogada?
Não toque em nada, disse a si mesma – mas a tentação era grande demais. Semicerrou os olhos na maior concentração e avaliou a situação por um novo ângulo. O cavalo de Hunt estava em uma posição perfeita para capturar sua rainha, o que significava que precisaria mover a peça ou defendê-la. E logo descobriu um jeito perfeito de protegê-la: moveu a torre para a frente, comendo o cavalo de Hunt, eliminando-o de vez da partida. Com um sorriso de satisfação, deixou a peça ao lado do tabuleiro e saiu do cômodo.
Desceu a majestosa escada, atravessou o hall de entrada e caminhou ao longo de um corredor que dava para uma série de aposentos públicos. O tapete sob seus pés abafava qualquer ruído, mas de repente sentiu que havia alguém atrás dela. Um calafrio nos ombros expostos serviu de alerta. Virou o rosto e viu lorde Hodgeham em seu encalço, movendo-se com uma rapidez surpreendente para um homem tão corpulento. Ele enganchou os dedos rechonchudos na parte de trás da fita de seda amarrada na cintura de Annabelle, forçando a moça a parar para que o delicado tecido não rasgasse.
O fato de Hodgeham abordá-la em um local onde podiam facilmente ser vistos era um sinal de arrogância. Ofegando indignada, Annabelle virou-se para encará-lo. Confrontou-se então com a visão do torso corpulento enfiado em um traje elegante e sentiu o cheiro do cabelo oleoso impregnado de perfume.
– Criatura encantadora – murmurou Hodgeham, com o hálito recendendo a conhaque. – Vejo que se recuperou bem. Talvez agora devêssemos retomar nossa conversa de ontem do ponto em que fui tão prazerosamente interrompido por sua mãe.
– Seu asqueroso... – principiou Annabelle, enfurecida, mas foi interrompida pela mão de Hodgeham segurando com força a mandíbula dela.
– Vou contar tudo a Kendall – ameaçou ele, aproximando os grossos lábios da boca da moça.
– Certificando-me de enfeitar bem a história para garantir que ele olhe para você e sua família com o mais puro desgosto. – Seu corpanzil a pressionou contra a parede até deixá-la quase sem conseguir respirar. – A menos que... – prosseguiu, projetando aquele bafo azedo no rosto de Annabelle – decida me acomodar do mesmo modo como sua mãe o faz.
– Então vá e conte a Kendall – retrucou Annabelle, com os olhos brilhando de ódio. – Diga-lhe tudo e acabemos de vez com isso. Prefiro morrer de fome e na sarjeta a ter que “acomodar”
um porco repugnante como você.
Hodgeham a fitou enfurecido e incrédulo.
– Vai se arrepender – disse ele com a saliva brilhando nos lábios.
Ela lhe lançou um sorriso frio de total desprezo.
– Creio que não.
Antes que ele a soltasse, Annabelle percebeu, olhando de esguelha, um movimento. Virando a cabeça de lado, viu alguém seguir na direção deles. Era um homem que se movia com passos leves de pantera. Devia estar pensando que havia surpreendido os dois em um enlace amoroso.
– Solte-me – sussurrou ela para Hodgeham e empurrou sua barriga proeminente com toda a força.
Ele deu um passo para trás, enfim permitindo que ela respirasse, e lhe lançou um olhar de promessa malévolo antes de caminhar na direção oposta à do homem que se aproximava.
Aturdida, Annabelle divisou o rosto de Simon Hunt quando este segurou seus ombros. Simon ficou observando Hodgeham se afastar, com um olhar quase assassino, o que a fez sentir o sangue gelar nas veias. Em seguida, olhou para ela com uma intensidade que a fez perder o fôlego outra vez. Até aquele momento, nunca o vira sem aquela costumeira indiferença. Ela podia insultá-lo, tratá-lo com grosseria ou rejeitá-lo que ele sempre reagia com uma autoconfiança irônica e previsível. Mas agora parecia que enfim tinha feito algo que despertara uma fúria genuína nele. Simon Hunt parecia prestes a esganá-la.
– Estava me seguindo? – perguntou Annabelle com uma fingida tranquilidade, perguntando-se como ele teria aparecido justo naquele instante.
– Eu a vi atravessar o hall de entrada com Hodgeham logo atrás. Eu a segui porque queria saber o que se passa entre vocês dois.
Annabelle olhou para ele de forma desafiadora.
– E o que descobriu?
– Não sei. – Foi a resposta suavemente perigosa dele. – Diga-me, Annabelle, quando me falou que podia ter coisa melhor, referia-se a isso? A servir a esse idiota adiposo às escondidas em troca da lamentável recompensa que ele lhe oferece? Eu não acreditaria que você fosse tão tola.
– Seu hipócrita maldito! – sussurrou ela, furiosa. – Está com raiva de mim por eu ser amante dele e não sua? Pois então diga você uma coisa: por que dá tanta importância a quem vendo meu corpo?
– Porque você não o quer – respondeu Hunt entre dentes. – Nem a Kendall. É a mim que você quer.
Annabelle não conseguiu entender aquela ebulição de sentimentos dentro dela, nem o motivo de estar sentindo uma estranha e terrível euforia com tal confronto. Queria bater nele, pular em cima de Hunt, provocá-lo até que os últimos fragmentos do autocontrole dele se reduzissem a pó.
– Deixe-me adivinhar. Está disposto a me oferecer um acordo bem mais rentável do que o que supostamente tenho com Hodgeham, não é? – disse isso deixando escapar uma gargalhada ao ver a resposta estampada no rosto de Hunt. – A resposta é não. Não. Portanto, de uma vez por todas, deixe-me em paz...
Ela se deteve quando ouviu vozes de pessoas que se aproximavam pelo corredor. Furiosa e desesperada, virou-se e achou uma porta para escapar e evitar que a vissem sozinha com Hunt.
Agarrando-a pelo braço, ele a puxou para o cômodo mais próximo e fechou a porta com a maior presteza.
Annabelle se afastou de Hunt e deu uma olhadela no local. Percebeu os contornos de um piano e alguns suportes contendo partituras abertas. Ele estendeu o braço para evitar que um dos suportes caísse no chão, depois de ser empurrado pela saia armada da moça.
– Se pode ser amante de Hodgeham – murmurou Hunt, retomando o assunto enquanto ela se deslocava pela sala de música –, sabe Deus que não teria problemas em ser minha. Você poderia dizer que não se sente atraída por mim, mas nós dois saberíamos que é mentira. Diga o seu preço, Annabelle. O valor que quiser. Quer uma casa no seu nome? Um barco? Feito. Vamos acabar logo com isso, já estou cansado de esperar por você.
– Que romântico! – exclamou Annabelle com uma risada trêmula. – Meu Deus! Como sua proposta pode ser tão pouco sutil, Sr. Hunt? E está muito equivocado em supor que minha única opção é ser amante de alguém. Posso conseguir um casamento com lorde Kendall.
Os olhos de Hunt adquiriram um tom tão escuro quanto o de uma pedra vulcânica.
– O casamento com ele se tornaria um inferno para você. Ele nunca chegará a amá-la. Jamais vai conhecê-la.
– Não estou interessada em amor – retrucou ela, angustiada por aquelas palavras. – A única coisa que quero... – Fez uma pausa ao sentir uma dor repentina no peito, acompanhada de um frio insuportável. Olhando fixamente para o rosto impassível de Hunt, tentou outra vez. – A única coisa que quero...
Ouviu-se um ruído na porta. Alguém girava a maçaneta. Assustada, Annabelle percebeu que estavam prestes a entrar ali, o que faria com que toda a sua esperança de se casar com Kendall se esvaísse como poeira atirada ao vento. Reagindo por instinto, agarrou o braço de Hunt e o arrastou para um canto na parede próximo à janela, protegido por cortinas penduradas por uma barra de bronze. A única peça que havia ali, sob a janela, era uma namoradeira estofada com tecido de veludo e uns livros empilhados de forma desordenada. Annabelle mais que depressa fechou a cortina e se atirou nos braços de Hunt para tapar-lhe a boca com a mão justo no instante em que uma pessoa, ou mais de uma, entrou no cômodo. Conseguiu ouvir uns sons abafados de vozes masculinas acompanhadas de sons metálicos e de uns ruídos que a deixaram confusa, até que pôde distinguir uns dedilhados nas cordas de um violino desafinado. Ai, meu Deus! Os músicos se reuniram ali para afinar os instrumentos antes do início do baile. Era bem provável que estivesse a instantes de ver sua reputação comprometida diante de uma orquestra inteira.
Uma réstia de luz penetrava pela parte superior da cortina e iluminava o rosto dos dois apenas o suficiente para que Annabelle percebesse o sorriso diabólico estampado nos olhos de Simon Hunt. Uma única palavra que ele dissesse ou ruído que fizesse nessas circunstâncias incriminadoras e ela estaria arruinada. Pressionou com mais força a mão na boca de Hunt, os olhos de ambos separados apenas por uns poucos centímetros enquanto ela o encarava com um olhar intenso e uma ameaça de homicídio.
As vozes dos músicos se misturavam ao som dos instrumentos sendo afinados. As notas eram mantidas até que todas se juntaram harmonicamente e as dissonâncias foram disciplinadas.
Preocupada com a possibilidade de serem pegos, Annabelle não tirava os olhos da cortina, desejando com todas as forças que permanecesse fechada. Sentiu a respiração de Hunt na palma da mão e se deu conta de que a mandíbula dele tinha se retesado. Fitando-o, notou que aquele brilho malicioso desaparecera dos olhos do rapaz, dando lugar a um ar que era muito mais alarmante. Paralisada, sentiu o coração bater tão forte que chegava a doer e, com os olhos arregalados, o viu tomar sua mão livre lentamente. Ainda tapava a boca de Hunt. Ele começou a afastar os dedos dela com toda a delicadeza, um a um, começando pelo menor, deixando a respiração, que se acelerava, acariciar a palma da mão de Annabelle. Ela balançou a cabeça, em uma negativa tensa, e se afastou assim que os braços dele envolveram sua cintura. Estava completamente presa, incapaz de impedir que Simon Hunt fizesse com ela tudo que queria.
Quando afastou o último dedo dos seus lábios, Hunt a fez baixar o braço e a segurou pela nuca. Annabelle segurou as mangas do paletó dele e arqueou um pouco o corpo para trás quando ele aumentou a pressão em sua nuca. Não a machucava, porém fizera com que ela não pudesse se mexer ou lutar. À medida que ele aproximava a boca da sua, Annabelle entreabriu os lábios, dando um suspiro silencioso, e sua mente se turvou.
Os lábios de Hunt tomaram os dela com suavidade, mas tratando de conseguir que ela correspondesse. Na mesma hora, ela se viu consumida por um fogo que ardia no corpo todo e a deixava impotente diante de um desejo que era diferente de tudo o que já sentira antes. A lembrança do único beijo que tinham dado não era nada se comparado ao que experimentava agora – talvez porque ele não fosse mais um estranho. Ela o desejava com tanto desespero que chegou a se assustar. Ele se afastou daqueles lábios suavemente e encostou a boca no queixo dela. Então foi deslizando até a bochecha, deixando um rastro de fogo por onde se aventurava, até voltar à boca e tomá-la de forma mais explícita. Ela sentiu a ponta da língua de Hunt tocar a sua, um toque de seda tão inesperado que teria recuado se ele não tivesse feito aquilo com tanta intensidade.
A elegante cacofonia dos músicos ressoava em seus ouvidos, fazendo com que se lembrasse da possibilidade iminente de ser descoberta. Tremendo, obrigou-se a relaxar nos braços de Hunt.
Pelos próximos minutos, permitiria que ele fizesse o que quisesse com ela, qualquer coisa, contanto que não acusasse a presença deles ali atrás das cortinas. Ele saboreou novamente aquela boca, acariciando-a com a língua de modo delicado. Aquela exploração tão íntima a deixou chocada, especialmente por levar em conta as sensações indescritíveis que percorriam as partes mais vulneráveis de seu corpo. Sentiu-se invadida por uma fraqueza deliciosa, fazendo com que precisasse se apoiar em Hunt, passando os braços pelo pescoço dele e enfiando os dedos em seu cabelo espesso e sedoso. O investigar tímido das mãos de Annabelle foi o bastante para acelerar a respiração de Hunt, como se o toque dela o houvesse afetado intensamente. Ele deslizou uma das mãos pelo rosto dela e a acariciou com as pontas dos dedos. Depois a afastou um pouco, o suficiente para que conseguisse mordiscar seus lábios, com a maior suavidade, primeiro o superior, depois o inferior, provocando-a com o hálito quente. Incapaz de se conter, Annabelle pressionou a mão que estava em sua nuca, instando-o a tomar novamente seus lábios, e, quando a boca de Hunt tocou a dela com um beijo penetrante, a moça quase deixou escapar um gemido.
Antes que o som pudesse sair de sua garganta, afastou-se da boca dele e enterrou o rosto em seu ombro.
Sentiu o peito dele subir e descer depressa sob sua bochecha e aquela ardente carícia da respiração roçando seu cabelo. Hunt segurou os fartos cachos de Annabelle, prendendo-os na parte de trás da cabeça a fim de deixar o pescoço exposto. O ardente caminho percorrido pelos lábios dele se iniciou na pequena depressão logo abaixo da orelha direita, despertando uma boa quantidade de terminações nervosas quando sua língua acompanhou o traçado de uma veia delicada. Os dedos deslizaram no topo dos ombros, ao passo que o polegar percorria a linha da clavícula. A mão aberta explorava a frágil arquitetura do corpo dela. Acariciou com o nariz a lateral da garganta de Annabelle e descobriu um ponto que a fez estremecer. Permaneceu ali até que ela sentisse que um novo gemido lutava para abandonar os lábios úmidos pelos beijos.
Com um empurrão frenético, ela conseguiu afastá-lo por três segundos inteiros, depois dos quais ele voltou a lhe dar mais um beijo sedento. A palma da mão dele tocou de leve a seda do vestido que cobria os seios dela, uma vez, e outra, e mais outra. A cada carícia, o calor de sua mão penetrava mais o tecido do vestido. Annabelle sentiu o mamilo latejar e seu contorno surgiu sob a seda. Hunt o acariciou suavemente com o dorso dos dedos, deixando-o ainda mais intumescido. A crescente pressão dos lábios dele fez com que ela inclinasse a cabeça para trás, em uma posição de rendição, que a deixava exposta aos lânguidos afagos daquela língua e à hábil exploração de suas mãos. Nada disso devia estar acontecendo, seu corpo se deliciando de prazer, consumido por um calor sensual.
Ele a fez se esquecer de tudo nesses instantes silenciosos e febris. Perdeu a noção de tempo, de espaço e até de quem era. Tudo o que sabia era que precisava dele mais perto, mais fundo, mais forte... A pele dele, firme, a boca traçando caminhos ardentes em seu corpo. Agarrou a camisa de Hunt e puxou com desespero o tecido de linho branco engomado, tirando-o de dentro da calça, a fim de deixar a pele cálida exposta. Ele pareceu compreender que a moça não tinha nenhuma experiência em controlar seus atos, tomada como estava por esse nível de desejo, por isso passou a beijá-la com mais suavidade, passando as mãos pelas costas dela para diminuir aquele ímpeto. No entanto, quanto mais tentava acalmá-la, mais ela acelerava o passo, acentuando o beijo e começando a se mover freneticamente contra o corpo dele, deixando-se levar em um ritmo ansioso.
Ele então afastou os lábios e a imobilizou com um abraço bem apertado, colando o rosto na curva enrubescida de seu ombro. Annabelle sentiu-se absurdamente aliviada por estar recebendo aquele abraço impetuoso, já que os fortes músculos dos braços de Hunt ajudaram-na a conter os violentos tremores que percorriam seu corpo. Permaneceram assim por um tempo que pareceu uma eternidade, até que Annabelle, recuperando vagamente a consciência, se deu conta de que o cômodo estava em silêncio. Os músicos haviam terminado os preparativos e tinham ido embora pouco antes. Erguendo a cabeça, Hunt afastou um pouco as cortinas e deu uma espiada. Vendo que a sala encontrava-se vazia, voltou a atenção para Annabelle e, com a ponta do polegar, afastou uma mecha reluzente de seu cabelo que lhe havia caído sobre a orelha.
– Eles se foram – afirmou em um sussurro rouco.
Atordoada demais para pensar de forma coerente, olhou para ele sem dizer uma palavra. Os dedos de Hunt percorreram os corados contornos de seu rosto e deslizaram por seus lábios inchados. Tomada por algo que se assemelhava ao desespero, ela sentiu a vertiginosa resposta do próprio corpo insatisfeito, e sua pulsação voltou a se acelerar enquanto uma nova onda de prazer percorria sua pele. Era o momento de se afastar dele, ou o seu desaparecimento logo seria notado. Para sua vergonha, permaneceu onde estava, deixando o corpo absorver as sensações que as carícias de Hunt provocavam. Sentiu a mão dele na parte de trás de seu vestido e percebeu a agilidade dos dedos em operação quando ele a inclinou para beijá-la mais uma vez. Agora, ela não conseguia mais conter os gemidos, nem os pequenos soluços que escaparam de sua garganta ou o suspiro de alívio quando o corpete apertado do vestido se afrouxou. O modelo do decote a impediu de usar um espartilho meia-taça. Por isso estava com um que lhe deixava os seios soltos sob a camisa de baixo.
Sem deixar de beijá-la, Hunt a puxou até a namoradeira sob a janela. Ele a pôs em seu colo, acabou de baixar o corpete já solto e emitiu um gemido de prazer contra a boca de Annabelle ao descobrir a plenitude de seus seios. Subitamente assustada com a intimidade a que se permitia, ela empurrou sem muito ímpeto o pulso de Hunt. Em resposta, ele a ergueu um pouco e pressionou os lábios bem acima dos seios, onde o coração da moça batia em um ritmo forte e regular. Seus braços apoiavam as costas de Annabelle, mantendo-a arqueada, enquanto os lábios desciam para alcançar a curva de um dos seios que tratara de examinar. Sentindo aquele hálito febril em seu mamilo, Annabelle parou de se debater e permaneceu imóvel, com os punhos cerrados nos ombros de Hunt. Ele o recebeu em sua boca e o acariciou suavemente com a língua, deixando-o úmido e rijo e fazendo com que ela sentisse o sangue ferver nas veias. Hunt sussurrava algo sem deixar de acariciar seu seio, esfregando o polegar no ponto em que a língua deixara úmido e a pele brilhava sob a luz. Ela murmurou algo ininteligível e passou os braços pelo pescoço forte de Hunt. Não conteve um gemido quando sentiu aqueles lábios fecharem-se no outro mamilo e puxarem com delicadeza.
Então, uma nova urgência se apoderou dela, uma sensação que arrancou gemidos trêmulos do peito e fez seu corpo se mover ritmicamente no colo de Hunt. Ele parecia ter sido tomado pela mesma necessidade. Annabelle sentia as batidas violentas do coração dele e a dificuldade em respirar. Mas ele parecia capaz de controlar sua paixão muito melhor do que ela, já que os movimentos de suas mãos e seus lábios se mantiveram cuidadosos e suaves. Ela se agitava sob as inúmeras camadas de seda do vestido e seus dedos arranhavam as mangas do paletó e do colete de Hunt. Havia muita roupa ali e estava louca para sentir a pele dele roçar a dela.
– Calma, doçura – sussurrou ele com a boca colada no rosto dela. – Relaxe. Não... deixe-me abraçá-la.
Annabelle, no entanto, não conseguia de jeito nenhum fazer o corpo obedecer, não conseguia parar de mexer os quadris, não conseguia conter as trêmulas súplicas que escapavam de seus lábios, machucados por aqueles beijos intensos.
Hunt continuou murmurando baixinho enquanto a abraçava, beijando seu rosto, deixando os dedos massagearem as delicadas depressões do colo dela, sentindo sua pulsação frenética. Ela percebeu que ele começou a pôr de volta suas roupas, erguendo-a cuidadosamente, como se ela fosse uma boneca, fechando a parte de trás de seu vestido. Em determinado momento, até deu uma risada leve, como se estivesse surpreso com as próprias ações. Mais tarde, ela chegaria à conclusão de que ele parecia tão aturdido quanto ela; mas, naquele momento, sentindo um desconforto pelo desejo frustrado, não conseguia desatar os nós de seu pensamento emaranhado.
À medida que o desejo a abandonava, ia deixando para trás um resíduo nauseante de vergonha.
Depois de lutar para sair do colo de Hunt, Annabelle se ergueu, com as pernas trêmulas. Foi capaz apenas de invocar duas palavras para romper com aquele pesado silêncio. Sem olhar para ele, disse com voz rouca:
– Nunca mais.
Afastou as cortinas e saiu da sala o mais depressa que pôde, partindo apressada pelo corredor.
CAPÍTULO 17
Depois que Annabelle fugiu da sala de música, Simon permaneceu por lá pelo menos mais meia hora, lutando para refrear sua paixão avassaladora e deixar o sangue esfriar. Ajeitou a roupa e passou a mão no cabelo, pensando de modo temperamental em qual deveria ser seu próximo movimento.
– Annabelle – murmurou ele, mais perturbado e confuso do que jamais se sentira em toda a sua vida.
O fato de uma mulher tê-lo deixado nesse estado era extremamente irritante. Ele, que era conhecido por ser um negociador astuto e disciplinado, tinha feito a oferta mais desastrada possível que fora categoricamente rejeitada. Merecidamente rejeitada. Nunca deveria ter tentado forçá-la a dar um preço antes que ela dissesse que o queria. Mas a suspeita de que podia estar se deitando com Hodgeham... Hodgeham, entre tantos outros homens... essa suspeita o deixara louco de ciúmes, e com isso todas as suas habilidades costumeiras o abandonaram.
Lembrando-se do que tinha sentido ao beijá-la, ao finalmente acariciar a pele macia e quente dela, Simon se deu conta de que seu sangue estava prestes a ferver mais uma vez. Com toda a experiência que tinha, pensou conhecer todas as sensações físicas que se pudesse imaginar. No entanto, havia acabado de ficar forçosamente ciente de que dormir com Annabelle seria bem diferente. A experiência envolveria o corpo dele, e também suas emoções – emoções tão alarmantes que não se sentia preparado para entendê-las.
A atração entre eles tinha se tornado perigosa, tanto para ele quanto para ela. E era claro que precisava analisar a situação com certa distância. No momento, porém, não conseguia pensar com clareza.
Saiu da sala de música murmurando uma maldição e ajeitando o nó da gravata preta de seda.
Seus músculos estavam tensos, fazendo com que caminhasse de modo diferente do que de costume, a passos curtos, e se sentisse voraz e explosivo ao se dirigir para o salão de baile. A ideia de comparecer a outro evento social quase o enlouquecia. Sua tolerância para esse tipo de ocasião nunca tinha sido alta; não era um homem que gostava de passar horas envolvido em conversas vazias ou diversões ociosas. Não fosse pela presença de Annabelle, já teria ido embora de Stony Cross havia muito tempo.
Taciturno, entrou no salão e deu uma olhada geral na multidão. De imediato localizou Annabelle sentada em um canto, ao lado de lorde Kendall. Este encontrava-se visivelmente apaixonado por ela; o olhar extasiado com que a contemplava revelava o que já não era nenhum segredo. Annabelle parecia subjugada e inquieta, e com uma aparente dificuldade de encontrar o olhar de admiração de Kendall. Falava bem pouco e permanecia sentada com as mãos firmemente apertadas no colo. Simon semicerrou os olhos quando a viu. Por mais irônico que fosse, agora que ela se sentia diminuída e insegura, a atração de Kendall por ela parecia enfim ter criado raízes. Se Annabelle conseguisse mesmo laçá-lo, mais tarde ele teria uma desagradável surpresa ao descobrir que sua esposa não era a mocinha tímida e ingênua que aparentava. Era uma mulher espirituosa e apaixonada, uma criatura decididamente ambiciosa, que precisava de um parceiro à sua altura. Kendall jamais seria capaz de lidar com ela. Era muito cavalheiro para Annabelle. – muito agradável e moderado, muito inteligente de um jeito não muito adequado.
Ela jamais o respeitaria e também não encontraria satisfação alguma em suas virtudes. Acabaria desprezando-o pelas mesmas razões que deveriam tê-la feito admirá-lo. E Kendall se retrairia diante das qualidades de Annabelle que Simon teria valorizado.
Desviando o olhar para os dois, Simon se dirigiu para o outro lado do salão, onde Westcliff e outros amigos conversavam. O conde virou-se para ele e, sussurrando, perguntou:
– Está se divertindo?
– Não muito. – Simon pôs as mãos nos bolsos do paletó e voltou a olhar à volta com clara impaciência. – Estou há tempo demais em Hampshire. Preciso voltar a Londres para ver como vão as coisas na fundição.
– E a Srta. Peyton? – perguntou o conde em voz baixa.
Simon pensou um pouco antes de responder lentamente:
– Acho que vou esperar para ver no que vai dar essa investida em Kendall. – Então olhou para o amigo e ergueu a sobrancelha em um gesto inquisitivo.
Westcliff respondeu com um breve aceno.
– Quando partirá?
– Amanhã bem cedo. – Simon não conseguiu reprimir um suspiro profundo e tenso.
O conde deu um sorriso irônico.
– A situação vai se resolver sozinha – disse de um jeito trivial. – Vá a Londres e volte quando tiver mais clareza.
Annabelle não conseguia livrar-se da melancolia que a cobriu como um manto de gelo. Não tinha pregado o olho e não conseguiu comer quase nada do suntuoso café da manhã servido no andar de baixo. O Sr. Kendall acreditou que seu semblante abatido e seu silêncio eram efeitos ainda de sua doença recente, por isso a tratou com simpatia e compreensão, exasperando-a a tal ponto que ela desejou se livrar dele com um empurrão. Suas amigas também estavam sendo irritantemente amáveis e, pela primeira vez, suas brincadeiras divertidas não lhe pareceram ter graça alguma.
Tentou se lembrar do exato momento em que havia ficado tão amarga e percebeu que a mudança de humor ocorreu quando soube por Lady Olivia que Simon Hunt tinha ido embora de Stony Cross.
– O Sr. Hunt foi a Londres a trabalho – dissera Lady Olivia em tom alegre. – Ele nunca fica muito tempo nesse tipo de festa. Estranho é não ter partido antes. Para ser mais exata, ele não é do tipo de esquentar cadeira...
Quando alguém perguntou o motivo da partida precipitada do Sr. Hunt, Lady Olivia respondeu apenas com um sorriso e balançou a cabeça.
– Ah, Hunt vai e vem a seu bel-prazer, como um gato vira-lata. Sempre vai embora de repente, pois pelo visto não gosta de qualquer tipo de despedida.
Hunt tinha partido sem dizer uma palavra a Annabelle, e, por isso, ela se sentia abandonada e ansiosa. As lembranças da noite anterior – Ah, noite hedionda! – surgiam incessantes na mente dela. Depois do que havia acontecido na sala de música, ficara desconcertada e só pensava em Hunt, sem conseguir se concentrar no momento presente. Ela não erguera os olhos para evitar dar de cara com Hunt inesperadamente e tinha rezado em silêncio para que ele não se aproximasse dela. Por sorte, ele mantivera distância, ao passo que lorde Kendall não havia se afastado da moça um segundo. Kendall passara a noite toda falando sobre coisas que ela não entendia e não lhe despertavam o menor interesse. Mesmo assim, o havia encorajado com murmúrios insípidos e sorrisos discretos, pensando que devia estar encantada com a atenção dispensada a ela. Em vez de se sentir feliz, o tempo todo só desejou que ele a deixasse em paz.
A atitude reservada dela no café da manhã pareceu acentuar ainda mais o interesse de lorde Kendall. Achando que essa fachada de docilidade não passara de atuação da amiga, Lillian Bowman se aproximou e sussurrou ao seu ouvido:
– Bom trabalho, Annabelle. Ele está comendo na sua mão.
Com o pretexto de que precisava descansar, Annabelle se levantou da mesa do café e pôs-se a vagar pela mansão até chegar ao salão azul. A mesa com o tabuleiro de xadrez a atraiu, e ela se aproximou dali devagar, perguntando-se se alguma criada teria finalmente guardado as peças na caixa, ou se alguém teria interferido na partida. Mas não. Estava tudo tal como havia deixado – a não ser por uma pequena mudança. Simon Hunt tinha movido um peão para uma posição defensiva, o que lhe deu a oportunidade de melhorar a própria defesa ou de fazer um movimento agressivo contra a rainha dele. Não era o tipo de jogada que esperaria dele. Pelo contrário, Hunt tentaria algo mais ambicioso. Mais belicoso. Avaliou o tabuleiro para tentar entender sua estratégia. Teria feito aquela jogada motivado por indecisão ou descuido? Ou havia algum propósito oculto que ela não era capaz de desvendar?
Estendeu o braço para pegar uma das peças, mas hesitou e recuou a mão. Era só um jogo, disse a si mesma. Estava dando demasiada importância a cada movimento, como se estivesse concorrendo a um prêmio importante. No entanto, reconsiderou a decisão com cuidado antes de voltar a pôr a mão no tabuleiro. Adiantou a rainha, comendo o peão de Hunt, experimentando uma sensação de prazer ao ouvir o ruído das peças se chocando, o marfim sobre o ônix.
Apertando o peão na palma da mão, tentou avaliar o peso da peça antes de depositá-la cuidadosamente ao lado do tabuleiro.
À medida que a semana passava, ela descobriu que o único momento prazeroso que teve, embora fugaz e solitário, havia sido aquele com o tabuleiro de xadrez. Nunca se sentira assim antes. Não estava feliz, nem triste, também não ligava nem um pouquinho para o futuro. Estava como que entorpecida, e seus sentidos e emoções pareciam ter sucumbido a tamanha letargia que achou que nunca mais voltaria a se interessar outra vez por coisa alguma. A sensação de distanciamento era tão profunda que às vezes parecia fora de si, como se estivesse assistindo a uma boneca se movimentar com rigidez dia após dia.
O Sr. Kendall a acompanhava com uma frequência cada vez maior. Dançaram juntos uma vez no baile, sentaram-se lado a lado num evento musical noturno e passearam pelo jardim, seguidos a uma distância discreta por Philippa. Kendall era um homem agradável, respeitoso e de um encanto sereno. De fato, era tão tolerante que Annabelle começou a achar que, quando ela e as amigas lançassem a armadilha final para capturá-lo, ele talvez não achasse tão terrível ser obrigado a se casar com uma moça cuja honra teria comprometido sem querer. Ele eventualmente acabaria se acostumando a isso e, sendo um homem dado à filosofia, encontraria uma maneira de aceitar a situação.
Quanto a Hodgeham, ficou claro que Philippa estava conseguindo mantê-lo longe da filha.
Além disso, ela deu algum jeito de convencê-lo a não cumprir sua ameaça de expor o segredo delas ao Sr. Kendall, embora não quisesse dar detalhes do acordo. Preocupada com o efeito que a angústia constante teria em sua mãe, Annabelle sugeriu, ainda que timidamente, que deixassem Stony Cross. Philippa, porém, não quis ouvir uma palavra a respeito disso.
– Vou me encarregar de Hodgeham – dissera com firmeza. – Trate de prosseguir com lorde Kendall. Todo mundo já percebeu que ele está encantado por você.
Se Annabelle pudesse apagar da memória o que havia acontecido atrás das cortinas da sala de música... Os sonhos que surgiam em sua mente, relacionados àquele momento, eram tão reais que acabava acordando atormentada, com os lençóis emaranhados nas pernas e a pele queimando. As lembranças que tinha de Simon Hunt a atormentavam. O cheiro dele, o calor do corpo e aqueles beijos provocantes – a firmeza do corpo de Hunt sob o elegante traje preto.
Apesar da promessa feita pelas solteironas de contar tudo o que se referisse a aventuras românticas, Annabelle não podia se abrir com nenhuma delas. O que tinha acontecido com Hunt era muito íntimo e pessoal. Não era algo a ser analisado por amigas ansiosas que não tinham nenhuma experiência com os homens assim como ela própria. E sabia que, mesmo se tentasse explicar o que tinha acontecido, elas não entenderiam. Não havia palavras para descrever uma intimidade que assalta a alma e é seguida por uma confusão devastadora.
Como, em nome de Deus, era capaz de sentir algo assim por um homem pelo qual sempre nutriu o mais puro desprezo? Por dois anos havia temido encontrá-lo em eventos sociais –
considerava-o a companhia mais desagradável possível. E agora... agora...
Um belo dia, deixando de lado esses pensamentos indesejados, Annabelle se dirigiu ao salão dos Marsdens na esperança de distrair a mente agitada com alguma leitura. Levava debaixo do braço um grosso volume com a inscrição na capa, em letras douradas: Sociedade Real de Horticultura – resultados e conclusões de relatórios enviados por nossos membros ilustres no ano de 1843. O livro era tão pesado quanto uma bigorna, e ela se perguntava, mal-humorada, como alguém podia ter tanto a dizer sobre plantas. Tinha deixado o livro em uma mesinha e estava a ponto de se sentar no sofá perto da janela quando viu de rabo de olho algo no tabuleiro de xadrez que chamou-lhe a atenção. Era sua imaginação ou...
Semicerrando os olhos de curiosidade, aproximou-se até lá e estudou atentamente a configuração das peças, que se mantivera inalterada durante toda a semana. É... algo estava diferente. Ela usara a rainha para comer o peão de Simon. Agora, sua rainha tinha sido retirada do tabuleiro e deixada ao lado do peão.
Ele voltou, pensou ela, com uma repentina sensação de abrasamento que lhe percorreu o corpo todo. Tinha certeza de que Simon Hunt era o único que tocaria naquele tabuleiro. Ele estava lá, em Stony Cross. Seu rosto ficou branco como papel, exceto nas bochechas, coloridas por um rubor intenso. Percebendo que sua reação era totalmente desproporcional, esforçou-se para recuperar a calma. O retorno dele não significava nada. Não queria nada com ele, não poderia ter nada com ele e deveria evitá-lo a todo custo. Fechou os olhos e respirou fundo, tentando controlar a pulsação, embora seu coração estivesse obstinado em manter aquele ritmo.
Quando enfim se recuperou, olhou para o tabuleiro de xadrez tentando entender o último movimento. Como ele havia abatido a sua rainha? Lembrou-se depressa da disposição anterior das peças. E então percebeu... Hunt tinha feito o movimento defensivo com o peão para que ela adiantasse a rainha, deixando-a no lugar exato para ser capturada por sua torre. Como a dama tinha sido eliminada, o rei de Annabelle estava ameaçado e...
Ele a pusera em xeque.
Conseguira enganá-la com aquele humilde peão e agora ela corria perigo. Deixando escapar uma gargalhada incrédula, Annabelle se virou de costas para o tabuleiro e caminhou pelo cômodo. Estava com a cabeça cheia de estratégias de defesa, até que se decidiu por uma pela qual ele não estaria esperando. Obedecendo a seu instinto, deu meia-volta e seguiu para o tabuleiro, sorrindo e se perguntando qual seria a reação de Hunt quando ele visse o contra-ataque dela. No entanto, quando sua mão pairou acima do tabuleiro, a onda de cálida excitação se esvaiu de repente e seu rosto ficou em estado de paralisia. O que estava fazendo? Continuar esse jogo, mantendo essa frágil comunicação com ele, era algo inútil. Não... era perigoso. Não havia outra escolha possível a ser feita ao se colocar a segurança e o desastre lado a lado.
A mão de Annabelle tremeu um pouco quando ela começou a recolher as peças, uma a uma, pondo-as de forma ordenada na caixa, e com isso abandonando o jogo.
– Eu desisto – disse em voz alta, sentindo um doloroso nó na garganta. – Eu desisto.
Engoliu em seco para desfazer o nó que essa declaração parecia ter provocado. Não podia se permitir desejar algo – alguém – que era obviamente inadequado para ela. Quando a caixa foi fechada, Annabelle se afastou da mesa e ficou olhando para ela por um bom tempo. Então se sentiu desanimada e com um súbito cansaço, mas decidida.
Esta noite. A ambígua situação que tinha com lorde Kendall precisaria ser resolvida esta noite. Os festejos estavam quase no fim e, agora que Simon Hunt tinha voltado, não podia correr o risco de ver tudo arruinado por uma nova complicação com ele. Aprumou os ombros e foi falar com Lillian. Juntas bolariam um plano. A noite terminaria com o anúncio de seu noivado com lorde Kendall.
CAPÍTULO 18
– O truque é saber o momento certo – disse Lillian, com os olhos castanhos reluzindo de prazer.
Sem dúvida, oficial algum já conduzira uma campanha militar com mais determinação do que a de Lillian Bowman no momento. As quatro solteironas sentaram-se juntas no terraço com copos de limonada, aparentando a mais pura indolência, quando, na verdade, tramavam minuciosamente os acontecimentos da noite.
– Vou sugerir um agradável passeio pelo jardim antes do jantar para abrir nosso apetite –
disse Lillian a Annabelle –, e tanto Daisy quanto Evie vão concordar. Também levaremos nossa mãe e tia Florence, além de qualquer outra pessoa com quem estivermos conversando no momento. E espero que, no instante em que chegarmos ao outro lado do pomar de peras, apanhemos você em flagrante delito com lorde Kendall.
– O que é flagrante delito? – perguntou Daisy. – Soa como algo ilegal.
– Não sei exatamente – admitiu Lillian. – Li num romance... mas tenho certeza de que é algo que comprometeria uma moça.
Annabelle deu um riso apático, desejando poder sentir um milésimo do entusiasmo que sentiam as Bowmans. Havia apenas quinze dias, não teria cabido em si de alegria, mas naquele instante tudo parecia ruim. A ideia de enfim ouvir a proposta de casamento tão desejada não lhe causava mais qualquer emoção. Não havia nenhuma sensação de excitação ou alívio, nem de qualquer coisa que fosse remotamente positiva. Mais parecia um dever desagradável que precisava cumprir. Ocultou, porém, sua apreensão, enquanto as irmãs Bowmans faziam planos e cálculos com a experiência de um conspirador profissional.
No entanto, Evie, que era mais observadora do que as outras duas juntas, parecia perceber as verdadeiras emoções que havia por trás do rosto inexpressivo da amiga.
– É isso me-mesmo que você que-quer, Annabelle? – perguntou em voz baixa, revelando a maior preocupação nos olhos azuis. – Não tem que fazer isso, você sabe, não é? Nós podemos encontrar outro pretendente para você se não quiser lorde Kendall.
– Não há tempo para encontrarmos outro pretendente – sussurrou Annabelle. – Não... Tem que ser Kendall, e precisa ser esta noite, antes que...
– Antes? – repetiu Evie, inclinando a cabeça ao fitar Annabelle com uma ligeira perplexidade. O sol iluminava as sardas salpicadas no rosto da menina, fazendo-as brilhar como ouro em pó sobre a pele aveludada. – Antes do quê?
Como Annabelle permaneceu calada, Evie baixou a cabeça e passou a ponta do dedo pela borda do copo, coletando gominhos de polpa açucarada que haviam aderido ali. As irmãs Bowmans continuavam conversando animadamente. Avaliavam se o pomar de peras era o melhor lugar para armar a emboscada a Kendall. Annabelle já estava em paz, achando que Evie deixaria de lado aquele assunto, mas a amiga murmurou bem baixinho:
– Você sabe que o Sr. Hunt voltou a Stony Cross na noite passada, Annabelle?
– Como sabe disso?
– Alguém contou à minha tia.
Ao encarar o olhar perspicaz de Evie, Annabelle não pôde deixar de pensar que aquele que cometesse o erro de subestimar Evangeline Jenner era digno de pena.
– Não, eu não sabia – murmurou.
Inclinando um pouco o copo de limonada, Evie ficou olhando para o fundo do líquido açucarado.
– Eu me pergunto por que ele nunca aproveitou para lhe dar um beijo quando você mesma fez tal oferta – disse lentamente. – Depois de todo o interesse que ele de-demonstrou por você no passado...
Seus olhos se encontraram, e Annabelle sentiu o rosto corar. Implorou com o olhar para que Evie não dissesse mais nada, e ela assentiu. Evie tinha entendido tudo, seu rosto refletia isso.
– Annabelle – disse devagar –, você se importaria se eu não fosse esta noite com as meninas ajudá-la no plano com lorde Kendall? Haverá gente de sobra para servir de testemunha. Lillian sem dúvida vai levar uma multidão de desavisados. Minha presença se-seria supérflua.
– Claro que não me importo – afirmou Annabelle, e perguntou, com um sorriso tímido: – Por uma questão de ética, Evie?
– Ah, não, não sou hipócrita. Estou mais do que disposta a assumir a culpa por ser cúmplice... e indo ou na-não ao jardim hoje à noite, faço parte do grupo. É só que... – Deteve-se e, ao prosseguir, falou em um tom mais baixo. – Eu não a-acredito que você goste de lorde Kendall. Não como homem... nem por aquilo que ele realmente é. E agora, depois de conhecê-la um pouco melhor, eu... eu não acredito que o casamento com ele vá fazê-la feliz.
– Vai sim – replicou Annabelle, aumentando o tom de voz o bastante para chamar a atenção das Bowmans, que pararam de falar e olharam para ela curiosas. – Ninguém poderia estar mais próximo do meu ideal de homem do que o Sr. Kendall.
– Ele é perfeito para você – concordou Lillian com firmeza. – Espero que não esteja tentando semear dúvidas, Evie, é tarde demais para isso. E não vamos abandonar um plano traçado à perfeição agora, quando já estamos quase alcançando a vitória.
Evie balançou imediatamente a cabeça em negação e se encolheu na cadeira.
– Não, não... eu não estava te-tentando... – A fala de Evie se reduziu a um fiozinho de voz e ela lançou um olhar de desculpas para Annabelle.
– É claro que ela não estava tentando fazer isso – comentou Annabelle em defesa da amiga, abrindo um sorriso temerário. – Vamos repassar o plano mais uma vez, Lillian.
O Sr. Kendall reagiu com divertida complacência quando Annabelle Peyton o instou a que escapassem para dar um passeio vespertino pelo jardim. O ar aprazível desse horário estendia um manto de umidade sobre a propriedade e não soprava uma brisa para amainar a opressiva atmosfera. Com a maioria dos convidados se arrumando para o jantar, ou em marcha lenta, abanando-se no salão de jogos ou na sala de estar, a área externa estava praticamente vazia.
Nenhum homem poderia ignorar o que queria uma moça ao sugerir um passeio desacompanhada em tais circunstâncias. Aparentemente não incomodado com a perspectiva de dar um ou dois beijos roubados, Kendall deixou que Annabelle o persuadisse a caminhar ao longo do jardim do terraço indo até depois do muro de pedras coberto por trepadeiras de rosas.
– Acho que seria melhor se chamássemos uma acompanhante – disse ele com um leve sorriso. – Isso é decididamente inapropriado, Srta. Peyton.
Annabelle lançou-lhe um sorriso.
– Só nos afastaremos por uns instantes – insistiu. – Ninguém vai notar.
Como ele decidiu segui-la de boa vontade, Annabelle se deu conta do crescente peso da culpa que parecia pressioná-la por todos os lados. Era como se estivesse levando um cordeiro para o matadouro. Kendall era um bom homem... não merecia um casamento forçado. Se ao menos ela tivesse mais tempo, poderia deixar as coisas seguirem o curso natural até receber uma proposta genuína dele. Mas este era o último fim de semana do festejo e era imperativo que alcançasse um resultado positivo agora. Se conseguisse ir adiante com aquela parte do plano, as coisas seriam mais fáceis depois. Annabelle, quer dizer, Lady Kendall, corrigiu-se severamente. Annabelle, Lady Kendall... Não tinha dificuldade em se imaginar como uma respeitável e jovem esposa vivendo no mundo da alta sociedade de Hampshire, fazendo viagens ocasionais a Londres, recebendo o irmão nos feriados. Annabelle, Lady Kendall, teria meia dúzia de filhos louros e alguns deles usariam óculos como o pai. Annabelle, Lady Kendall, seria uma esposa devotada que passaria o resto de seus dias tentando expiar o pecado de ter enganado o marido para que se casasse com ela.
Chegaram à clareira que havia depois do pomar de peras, no local onde ficava a mesa de pedra dentro do círculo de cascalho. Parando, Kendall olhou para Annabelle, que se recostou na mesa colocando-se em uma pose estudada. Ele se atreveu a tocar uma mecha de cabelo que havia caído no ombro da moça e ficou admirando os reflexos dourados nos fios castanhos.
– Srta. Peyton – murmurou ele –, a essa altura já deve estar ciente de que desenvolvi uma decidida preferência por sua companhia.
O coração de Annabelle palpitava em sua garganta a ponto de ela achar que chegaria a sufocar.
– Eu... eu desfrutei imensamente de nossas conversas e de nossos passeios juntos. – Ela conseguiu dizer.
– A senhorita é encantadora – sussurrou Kendall, aproximando-se dela. – Eu nunca tinha visto olhos tão azuis.
Um mês antes, Annabelle teria pulado de felicidade por isso estar acontecendo. Kendall era um homem bom, sem contar que era atraente, jovem, rico e possuía um título... Ah, que raios havia de errado com ela? Ela se viu inteiramente relutante e tensa quando Kendall se inclinou sobre seu rosto ruborizado. Agitada e confusa, tentou não fugir dele. No entanto, antes que seus lábios pudessem se encostar, ela se afastou com um arquejo abafado.
O silêncio se abateu sobre a clareira.
– Assustei você? – perguntou Kendall. Seus modos eram amáveis e tranquilos... Bem diferentes da arrogância de Simon Hunt.
– Não... Não é isso. É só que... Não posso fazer isso. – Annabelle esfregou a testa, que de repente começou a doer. Sentia os ombros rígidos sob as mangas bufantes do vestido florido de seda cor de pêssego. Quando voltou a falar, sua voz pesava com a derrota e o desgosto por si mesma. – Perdoe-me, lorde Kendall. O senhor é um dos cavalheiros mais agradáveis que já tive o privilégio de conhecer. E é por isso mesmo que preciso deixá-lo agora. Não é certo que eu encoraje seu interesse por mim quando nada pode resultar daí.
– O que a faz pensar assim? – perguntou ele, claramente confuso.
– O senhor não me conhece de verdade – disse Annabelle com um sorriso amargo. – Acredite em mim, não combinamos como casal. Não importa quanto eu tenha tentado, em algum momento eu acabaria tratando-o muito mal... E o senhor, como um perfeito cavalheiro, não faria qualquer objeção, e nós dois seríamos terrivelmente infelizes.
– Srta. Peyton – murmurou ele, tentando atribuir sentido àquela descarga emocional. – Não entendo aonde quer chegar...
– Também não tenho certeza se entendo. Mas sinto muito. Eu lhe desejo o melhor, senhor. E desejo... – A respiração dela se tornou irregular e, de repente, Annabelle começou a rir. – Desejos são coisas perigosas, não são? – murmurou, e saiu depressa da clareira.
CAPÍTULO 19
Maldizendo-se, Annabelle percorreu o caminho de volta até a mansão. Não podia acreditar.
Justo quando teve ao seu alcance aquilo que desejava, jogara tudo para o alto.
– Estúpida – murmurou entre dentes. – Estúpida, estúpida...
Não conseguia sequer imaginar o que diriam suas amigas quando chegassem à clareira e a encontrassem vazia. Talvez o Sr. Kendall tivesse ficado onde ela o deixara, com aquela cara de cavalo cujo pacote de ração lhe fora arrancado antes que houvesse a oportunidade de comer.
Annabelle jurou que não pediria às amigas que a ajudassem a encontrar outro marido em potencial, já que acabara de jogar para os ares a oportunidade que tinham dado a ela. Merecia o quer que acontecesse a partir de agora. Apressou o passo para chegar logo ao seu quarto. Estava tão concentrada na fuga frenética que quase se chocou com um homem que vinha tranquilamente pelo caminho do outro lado do muro de pedras. Estancou de repente e murmurou uma desculpa:
– Perdoe-me, senhor.
E teria dado a volta apressada se a estatura e as mãos grandes e bronzeadas que o sujeito tirara do bolso não tivessem traído a identidade dele. Aturdida, deu um passo para trás enquanto Simon Hunt a fitava.
Ambos se olharam sem revelar qualquer emoção.
Como tinha acabado de fugir de lorde Kendall, Annabelle não pôde deixar de notar as diferenças entre eles. Hunt era decididamente moreno à luz do crepúsculo, tinha um corpo avantajado e másculo, olhos de pirata e o ar de crueldade casual de um rei pagão. Não se mostrava menos arrogante do que antes, tampouco mais dócil nem refinado. No entanto se tornara um objeto de desejo tão avassalador que Annabelle ficou convencida de que perdera a razão. O ar em torno deles ficou carregado, crepitando com a paixão e o conflito.
– O que foi? – perguntou Hunt sem preâmbulos, semicerrando os olhos ao perceber o evidente nervosismo de Annabelle.
Impossível expressar as emoções que ela sentia em poucas frases coerentes. No entanto, fez uma tentativa.
– Você foi embora de Stony Cross sem me avisar.
O olhar dele era duro e frio como o ébano.
– Você guardou o jogo de xadrez.
– Eu... – Desviou os olhos, mordendo o lábio. – Não podia me permitir ter distrações.
– Ninguém a está distraindo agora. Deseja ter Kendall? Pois faça isso.
– Ah, muito obrigada – retrucou ela, com sarcasmo. – É muito gentil de sua parte deixar o caminho livre agora que já arruinou tudo.
Ele a fitou com uma expressão cautelosa.
– Por que diz que arruinei tudo?
Annabelle sentiu um frio absurdo apesar de estar envolvida pelo ar quente do verão. Um ligeiro estremecimento partiu de seus ossos chegando à pele.
– As botinas que ganhei quando eu estava doente – disse precipitadamente –, as mesmas que estou usando agora, foram enviadas por você, não foram?
– Isso tem alguma importância?
– Admita – insistiu ela.
– Sim, foram – respondeu ele, secamente. – E qual o problema?
– Eu estava com lorde Kendall há apenas uns dois minutos, e tudo corria como planejado. Ele estava prestes a... mas não consegui. Não pude deixar que me beijasse estando eu com essas malditas botinas. Agora, depois de ter deixado lorde Kendall como fiz, ele deve estar certo de que sou louca. Mas você tinha razão... Ele é muito bonzinho para mim. E formaríamos um péssimo casal, bem destoante.
Então ela fez uma pausa para retomar o ar e se deu conta do súbito brilho nos olhos de Hunt.
Seu corpo parecia o de um predador à espera de uma chance para atacar.
– Portanto – principiou ele com brandura –, agora que descartou Kendall, quais são os seus planos? Voltar para Hodgeham?
Ofendida com aquela pergunta sarcástica, Annabelle franziu o cenho em uma careta.
– Se for, não é da sua conta. – Annabelle deu as costas para ele e se pôs a caminhar para longe dali.
Hunt a alcançou com duas passadas largas e a virou, obrigando-a a encará-lo. Então, ele a sacudiu de leve antes de sussurrar em seu ouvido:
– Chega de jogos. Diga-me o que quer. Agora, antes que eu perca completamente a paciência.
O cheiro dele, uma mistura de sabonete e notas frescas, tão maravilhosamente masculino, deixou-a tonta. Desejava abrir caminho em meio às roupas dele – desejava que ele a beijasse até fazê-la perder os sentidos. Desejava o desprezível, arrogante, sedutor e diabolicamente belo Simon Hunt. Ah, mas ele seria impiedoso com ela. O orgulho ameaçado de Annabelle se impôs e travou sua garganta, mal deixando-a falar.
– Não posso – disse com voz rouca.
Inclinando a cabeça dela para trás, Hunt a fitou com um brilho divertido e perverso nos olhos.
– Pode ter tudo o que desejar, Annabelle... Mas só se for capaz de pedir.
– Está decidido a me humilhar totalmente, não é? Não vai me permitir conservar um mínimo de dignidade.
– Eu? Humilhar você? – Ele ergueu uma sobrancelha assumindo um ar sardônico. – Depois de passar dois anos sendo alvo do seu desdém e menosprezo cada vez que eu lhe pedia que dançasse comigo?
– Ah, tudo bem – concordou ela, começando a tremer da cabeça aos pés. – Eu vou admitir... Eu quero você. Pronto, satisfeito? O que eu quero é você.
– De que forma? Como amante ou marido?
Annabelle o encarou perplexa.
– O que você disse?
Ele a envolveu em seus braços e apertou aquele corpo trêmulo contra o seu. Não disse nada, limitou-se a fitá-la com atenção enquanto ela tentava entender as implicações daquela pergunta.
– Mas você não é desses homens que se casam – ela conseguiu dizer brandamente.
Ele acariciou a orelha dela, traçando a delicada curva exterior com a ponta do dedo.
– Descobri que sou se for com você.
A carícia sutil ateou fogo no sangue dela, fazendo com que fosse difícil pensar.
– Provavelmente iríamos nos matar no primeiro mês.
– Provavelmente – concordou Hunt, com um sorriso nos lábios que roçavam a têmpora de Annabelle. O calor dos lábios dele enviou uma onda de prazer vertiginosa ao corpo inteiro dela.
– Mas case-se comigo assim mesmo, Annabelle. Pelo que sei, isso resolveria a maior parte dos seus problemas... e também mais do que alguns dos meus. – A mão enorme de Hunt deslizou pelas costas dela, apaziguando os tremores na pele de Annabelle. – Deixe-me mimá-la –
sussurrou. – Deixe-me cuidar de você. Nunca teve alguém que lhe desse suporte, não é? Tenho ombros fortes, Annabelle. – Uma risada ribombou em seu peito. – E possivelmente sou o único homem entre os seus conhecidos capaz de sustentá-la.
Ela estava atônita demais para responder àquela zombaria.
– Mas por quê? – perguntou, sentindo a mão dele subir para sua nuca desprotegida.
Ela se encolheu quando a ponta do dedo de Hunt entrou suavemente na depressão rasa da base de sua cabeça.
– Por que está me pedindo em casamento quando poderia considerar ter-me como amante?
Ele encostou o nariz com delicadeza no pescoço de Annabelle.
– Porque percebi, durante os últimos dias, que não quero deixar que ninguém tenha dúvidas sobre a quem você pertence. Inclusive você mesma.
Annabelle fechou os olhos, com os sentidos inundados de euforia, e sentiu-o se aproximar de seus lábios ressecados, que o aguardavam entreabertos. As mãos e os braços de Hunt comprimiam o corpo desejoso de Annabelle contra si, em resposta à demanda que ele sentia do próprio corpo rijo. Se havia traços de dominação no modo como a abraçou, havia também de reverência, com as pontas dos dedos dele descobrindo as partes mais sensíveis da pele exposta dela, acariciando-as com a suavidade de uma pluma. Ela permitiu que Simon abrisse sua boca e gemeu ao sentir o toque de sua língua. Ele a violou com beijos ternos que aplacaram sua ânsia e ao mesmo tempo provocaram uma consciência de todos os vazios que ela desejava desesperadamente preencher. Quando Hunt sentiu o tremor urgente percorrer o corpo de Annabelle, tratou de acalmá-la com um longo carinho de seus lábios, enquanto seus braços apoiavam o corpo dela. Pôs a mão naquele rosto enrubescido e, com a ponta do polegar, roçou os lábios de um rosa acetinado de Annabelle.
– Eu quero que me dê a sua resposta – sussurrou ele.
O calor da mão de Hunt causava calafrios na pele dela, que aninhou ainda mais o rosto naquela mão enorme.
– Sim – disse, sem fôlego.
Os olhos de Hunt reluziam em triunfo. Ele inclinou a cabeça de Annabelle para trás e a beijou novamente, com mais ímpeto do que da primeira vez. As palmas de suas mãos apertavam de leve o rosto dela, procurando uma posição em que uma boca se encaixasse na outra com perfeição. O ritmo da respiração dela se tornou inconstante, e logo se viu tonta por ter inalado tanto oxigênio. Ergueu os braços para se segurar ao corpo musculoso de Hunt, afundando os dedos no tecido elegante do paletó dele. Sem deixar de beijá-la, ele a ajudou a se apoiar em seu corpo, fazendo-a abraçar seu pescoço com uma das mãos. Quando garantiu o equilíbrio de Annabelle, moveu a mão até sua cintura envolta no espartilho e a puxou para mais perto de seu corpo. Beijava-a com uma urgência crescente, até que o potente influxo de sua boca a levou a um estado de delírio sensual.
Ele enfim afastou os lábios, silenciando seus gemidos de protesto ao dizer em um murmúrio que não estavam sozinhos. Com os olhos semicerrados e desconcertada, Annabelle olhou para um ponto além do círculo dos braços de Simon. Estavam diante de um grupo de testemunhas que dificilmente deixariam de ver um casal se abraçando no meio do caminho, junto ao muro de pedras. Lillian... Daisy... A mãe das duas... Lady Olivia e seu quase noivo americano, o Sr.
Shaw... E, por fim, ninguém menos do que lorde Westcliff.
– Ah, meu Deus... – disse Annabelle, escondendo o rosto no ombro de Hunt, como se, ao fechar os olhos, pudesse fazer com que todos desaparecessem.
Sentiu um calafrio quando Hunt se inclinou e, com uma voz divertida, murmurou:
– Xeque-mate.
Lillian foi a primeira a falar.
– O que, pela santa paz do Senhor, está acontecendo, Annabelle?
Encolhendo-se, a moça se obrigou a enfrentar o olhar da amiga.
– Não pude prosseguir – disse ela, timidamente. – Sinto muito... Era um ótimo plano, e vocês cumpriram sua parte direitinho...
– E teria sido muito bem-sucedido se você não estivesse beijando o homem errado! –
exclamou Lillian. – Em nome de Deus, o que aconteceu? – Por que não está no pomar de peras com lorde Kendall?
Aquele não era o tipo de discussão que ela gostaria de ter na frente de tanta gente. Annabelle hesitou e olhou para Hunt, que a fitava com um sorriso irônico, parecendo fascinado com a ideia de ouvir qual era a explicação que ela daria a eles.
Durante um longo silêncio, lorde Westcliff somou dois mais dois e olhou de Annabelle para Lillian com evidente ar de desaprovação.
– Então foi por isso que insistiram tanto para que déssemos um passeio? Estavam de comum acordo planejando uma emboscada para lorde Kendall!
– Eu também participei – afirmou Daisy, determinada a levar sua parcela de culpa.
Westcliff não pareceu ouvir o comentário dela e continuou olhando fixamente para Lillian, que não parecia nem um pouco arrependida.
– Meu bom Deus, senhoritas, não se respeita mais absolutamente nada?
– Se algo merece meu respeito – retrucou Lillian de forma astuta –, ainda não descobri o que é.
Se não estivesse em uma circunstância tão embaraçosa, Annabelle teria caído na gargalhada diante da expressão do conde.
Franzindo a testa, Lillian voltou sua atenção para Annabelle.
– Talvez não seja tarde demais para salvar a situação – disse. – Faremos com que todos aqui se comprometam a não comentar que viram você e o Sr. Hunt juntos. Sem testemunhas, é como se não tivesse acontecido.
Lorde Westcliff respondeu àquilo com a expressão mais zangada do mundo.
– Por mais que deteste a ideia de concordar com a Srta. Bowman – afirmou, contrariado –, tenho que admitir que é o melhor a ser feito. A melhor coisa para todos os interessados seria esquecermos este incidente. A Srta. Peyton e o Sr. Hunt não foram vistos e, portanto, ninguém foi comprometido, o que significa que não haverá qualquer consequência para essa situação lamentável.
– Ah, mas ela se comprometeu sim – disse Hunt, com uma firme determinação repentina. –
Por causa de mim. E não quero evitar as consequências, Westcliff, eu...
– Ora, é claro que quer – assegurou o conde de um jeito autoritário. – Não vou permitir que arruíne a sua vida por causa dessa criatura, Hunt.
– Arruinar a vida dele? – exclamou Lillian, indignada. – O Sr. Hunt não poderia ter opção melhor do que se casar com uma moça como Annabelle! Como se atreve a insinuar que ela não é boa o bastante para ele, quando é óbvio que é ele quem...
– Não – interrompeu Annabelle, muito ansiosa. – Por favor, Lillian...
– Peço que nos deem licença – murmurou o Sr. Shaw com uma polidez impecável, tentando sem sucesso reprimir um sorriso. Deu o braço a Lady Olivia e fez uma graciosa reverência, sem se dirigir a ninguém em particular. – Creio que tanto minha noiva quanto eu podemos ser dispensados desses acertos, já que estamos... como posso dizer... apenas de coadjuvantes. Posso falar com segurança por nós dois quando lhes asseguro que seremos tão surdos, mudos e cegos como o trio de estátuas dos macacos sábios. – Seus olhos azuis refletiam bom humor. – Vamos deixar que decidam o que foi visto e ouvido esta noite... ou o que não foi. Venha, querida. – E se afastou com Lady Olivia, acompanhando-a de volta à mansão.
O conde se virou para a mãe das irmãs Bowmans, uma mulher alta, com rosto comprido como de uma raposa. O semblante dela expressava uma justa indignação, mas tinha segurado a língua para não perder qualquer detalhe que fosse. Como Daisy explicara mais tarde com tristeza, a Sra. Bowman nunca tinha seus faniquitos no meio de uma cena. Preferia reservá-los para os intervalos.
– Sra. Bowman, posso contar com seu silêncio a respeito deste assunto? – perguntou Westcliff.
Se o conde ou qualquer outro homem detentor de um título pedisse por pura diversão à Sra.
Bowman que pulasse de cabeça no canteiro de flores, ela o faria sem pestanejar.
– Ah, mas é claro, senhor. Eu jamais espalharia um boato como esse. Minhas filhas sempre foram tão inocentes... Fico muito triste em ver como a proximidade com essa... essa moça inescrupulosa as tenha feito chegar a esse ponto. Tenho certeza de que um cavalheiro com o seu discernimento saberá que meus dois anjos são completamente inocentes nisso tudo e que se deixaram levar por essa jovem maquiavélica a quem consideram uma amiga.
Depois de lançar um olhar cético para os dois “anjos”, Westcliff respondeu friamente:
– Claro.
Hunt, que tinha mantido possessivamente o braço em volta da cintura de Annabelle, observou um a um com frieza.
– Façam o que lhes parecer melhor. A Srta. Peyton vai estar comprometida esta noite de uma forma ou de outra. – E começou a puxá-la para saírem dali. – Venha.
– Para onde vamos? – perguntou Annabelle, resistindo àquela mão em seu pulso.
– Para a casa. Se não estão dispostos a servir de testemunhas, então parece que precisarei comprometê-la na frente de outra pessoa.
– Espere – reclamou Annabelle. – Já concordei em me casar com você. Por que tem que me comprometer de novo?
Hunt ignorou os protestos de Westcliff e das Bowmans quando respondeu de forma sucinta:
– Por precaução.
Annabelle fincou pé e se negou a seguir em frente quando ele a puxou pelo braço.
– Você não precisa de segurança! Está achando que quebrarei a promessa que fiz?
– Acho, sim. – Calmamente, Hunt começou a puxá-la pelo caminho. – Bom, agora aonde vamos? Acho que para o hall de entrada da mansão. Há bastante gente por lá para ver que está sendo comprometida. Ou quem sabe o salão de jogos?
– Simon – protestou Annabelle enquanto se via sendo levada sem qualquer cerimônia. –
Simon...
Ouvir seu nome proferido por Annabelle fez Hunt parar e olhar para ela com um meio sorriso.
– O que foi, doçura?
– Pelo amor de Deus – murmurou Westcliff –, que tal deixar essa cena para a noite do teatro amador? Se está tão louco para tê-la, podia ao menos nos poupar de mais exibições. Posso testemunhar com prazer, daqui até Londres, que a honra de sua noiva está comprometida se assim eu tiver um pouco de paz. Só não me peça para ficar ao seu lado no altar, porque não tenho o menor interesse em ser hipócrita.
– Não, só em ser um babaca. – Foi o murmúrio que se ouviu vindo de Lillian.
Mesmo proferindo-o em voz baixa, Westcliff pareceu ter ouvido. Tanto que se virou carrancudo na direção da moça que ostentava uma expressão deliberadamente inocente.
– E quanto a você... – principiou ele, em tom de ameaça.
– Então, estamos todos de acordo – interrompeu Simon, evitando o que, sem dúvida, se tornaria uma discussão interminável. Depois olhou para Annabelle com a mais pura satisfação masculina. – Você foi comprometida. Agora temos que encontrar sua mãe.
O conde balançou a cabeça em negação, manifestando uma fria ofensa própria de um aristocrata cujos desejos haviam sido contrariados.
– Nunca conheci um homem tão ansioso para confessar aos pais de uma moça que a arruinou – disse com amargura.
CAPÍTULO 20
Philippa reagiu àquela notícia com uma calma surpreendente. Enquanto os três permaneciam sentados no salão privativo dos Marsdens e Simon anunciava o noivado a ela, contando o que o motivara, o rosto dela empalideceu, embora não tenha dito uma palavra sequer. Durante o breve silêncio que se seguiu à fala de Simon, a mãe de Annabelle manteve os olhos fixou nele e enfim disse:
– Como Annabelle não tem pai para defendê-la, Sr. Hunt, cabe a mim pedir ao senhor certas garantias. Toda mãe quer que a filha seja tratada com respeito e amabilidade... e o senhor há de concordar comigo que as circunstâncias...
– Compreendo – afirmou Simon. Impactada com toda aquela sobriedade, Annabelle o observava atentamente, ao passo que ele voltava toda a atenção para Philippa. – A senhora tem a minha palavra de honra: sua filha nunca terá do que reclamar.
Um lampejo de receio nublou o rosto de Philippa. Sabendo o que viria em seguida, Annabelle mordeu o lábio.
– Suspeito que esteja ciente, Sr. Hunt – murmurou a mãe –, que Annabelle não possui dote.
– Estou, sim – respondeu ele com naturalidade.
– E isso não faz diferença para o senhor? – prosseguiu ela, com um tom interrogativo.
– Diferença alguma. Tenho a sorte de poder deixar de lado questões financeiras na escolha de minha esposa. Não me importo nem um pouco se Annabelle vai se casar comigo sem um xelim.
Além do mais, tenho a intenção de facilitar as coisas para a sua família, assumindo as dívidas, cuidando das contas e dos credores, pagando mensalidades de escola e tudo o mais que for necessário para que vivam com inteira comodidade.
Annabelle viu a mãe apertar as mãos no colo até os dedos ficarem brancos e notou um insondável tremor na voz dela que tanto podia ser de emoção, alívio, constrangimento ou a combinação das três coisas.
– Obrigada, Sr. Hunt. Espero que compreenda que se o Sr. Peyton estivesse vivo as coisas seriam muito diferentes...
– Sim, é claro.
Philippa refletiu por um momento e acrescentou:
– É claro que, sem dote, Annabelle não terá dinheiro para pequenos gastos...
– Vou abrir uma conta para ela no Barings – disse Hunt com a mesma neutralidade. – Farei um depósito inicial de digamos... umas cinco mil libras. Depois, de tempos em tempos, vou equilibrando o saldo sempre que necessário. É claro que eu ficarei encarregado dos gastos para a manutenção de carruagem e cavalos, para a compra de roupas... joias... e Annabelle pode ter crédito em todas as lojas de Londres.
A reação de Philippa a tudo isso passou despercebida por Annabelle, cuja mente girava como um pião. A ideia de ter cinco mil libras à sua disposição – uma fortuna – não parecia real. O espanto da moça se misturava a um arrepio de expectativa. Depois de anos de privação, poderia ir aos melhores estilistas, comprar um cavalo para Jeremy e redecorar a casa da família com mobiliário e acessórios de luxo. No entanto, essa discussão interminável sobre questões financeiras logo depois de receber um pedido de casamento deu a Annabelle a inquietante sensação de estar se vendendo em troca de dinheiro. Dirigiu a Simon um olhar cauteloso e viu que havia em seus olhos aquele brilho zombeteiro tão familiar. Ele a entendia tão bem, pensou, sentindo um rubor indesejado colorir-lhe as bochechas.
Annabelle permaneceu em silêncio enquanto a conversa girava em torno de advogados, contratos e cláusulas, o que a fez descobrir que a mãe era tão persistente quanto um bull terrier no que se referia a negociações matrimoniais. Aquela discussão detalhada não era nem um pouco romântica. Além disso, ela notou que a mãe não perguntou a Hunt se ele a amava, e ele também não disse espontaneamente.
Depois que Simon Hunt foi embora, Annabelle seguiu com a mãe para o quarto, onde, sem dúvida alguma, conversariam mais um pouco. Preocupada com o tom quieto pouco natural de Philippa, Annabelle fechou a porta pensando no que dizer a ela, se perguntando se ela teria alguma reserva em ter Simon Hunt como genro.
Assim que se viram sozinhas, a mãe foi até a janela, olhou para o céu noturno e, em seguida, tapou os olhos com uma das mãos. Assustada, Annabelle ouviu o som abafado de um soluço.
– Mamãe... – sussurrou ela, hesitante, fitando as costas rígidas de Philippa. – Eu sinto muito, eu...
– Graças a Deus – murmurou a mãe com voz embargada, parecendo não ouvi-la. – Graças a Deus.
Apesar de ter jurado que não compareceria ao casamento de Simon, o Sr. Westcliff chegou a Londres quinze dias antes da cerimônia. Com uma expressão taciturna, mas de modo cortês, ofereceu-se, inclusive, para acompanhar a noiva, assumindo o lugar do pai falecido da moça.
Annabelle ficou muito tentada a recusar, mas a oferta fizera sua mãe ficar tão feliz que ela não teve alternativa senão aceitar. Acabou sentindo até um prazer rancoroso ao obrigar o conde a tomar parte em uma cerimônia à qual ele era tão contrário. O único motivo de Westcliff ir a Londres era a lealdade que tinha em relação a Hunt, o que revelava que o laço de amizade entre os dois era muito mais forte do que Annabelle teria suposto.
Lillian, Daisy e sua mãe também compareceram à cerimônia religiosa, embora a presença das duas só havia sido possível graças à do Sr. Westcliff. A Sra. Bowman nunca teria permitido que as filhas fossem ao casamento de uma moça que não se unia a um membro da nobreza e que, além de tudo, era uma influência tão negativa para elas. No entanto, qualquer oportunidade de estarem próximas do solteiro mais cobiçado de toda a Inglaterra havia de ser aproveitada. O fato de Westcliff ser completamente indiferente à sua filha mais nova e abertamente desdenhoso no que se referia à mais velha era um obstáculo sem importância, que a Sra. Bowman tinha certeza de que poderiam superar.
Evie, infelizmente, fora proibida de comparecer ao casamento pela tia Florence e pelos outros membros da família materna. Então, enviou uma longa e afetuosa carta a Annabelle e lhe deu de presente um aparelho de chá de porcelana de Sèvres, decorado com flores rosas e douradas. O resto da pequena congregação que assistiu à união consistia nos pais e irmãos de Hunt, que eram mais ou menos como Annabelle esperava. A mãe possuía feições grosseiras e constituição robusta, mas era uma mulher genial, propensa a gostar de Annabelle a menos que algo a convencesse a mudar de opinião. O pai era um homem grandalhão e anguloso, que não esboçara um sorriso durante toda a cerimônia, embora as rugas profundas em volta dos olhos indicassem sua disposição para o bom humor. Nenhum dos dois era particularmente bonito, mas tinham cinco filhos notáveis, todos altos e de cabelos pretos.
Se pelo menos Jeremy pudesse ter comparecido ao casamento... mas as aulas dele ainda não haviam terminado, e Philippa e ela decidiram que seria melhor que ele concluísse o semestre e só então voltasse a Londres, coincidindo com a volta de Hunt e Annabelle da lua de mel. Annabelle não tinha certeza de qual seria a reação do irmão ao saber que Hunt era seu cunhado. Embora parecesse gostar dele, Jeremy tinha se acostumado a ser, por muito tempo, o único homem da família. Portanto, sempre havia a possibilidade de que se irritasse com alguma restrição que Hunt quisesse impor a ele. Nesse sentido, Annabelle também não se via propensa a acatar os desejos de um homem a quem, na verdade, mal conhecia.
Essa ideia ficou martelando em sua mente na noite de núpcias, enquanto ela esperava o marido em um quarto do hotel Rutledge. Tendo assumido que Hunt tinha uma dessas casas com terraço como muitos solteiros, Annabelle se surpreendeu imensamente ao descobrir que ele morava em uma suíte de hotel.
– Por que não? – perguntara-lhe alguns dias antes, divertido com o evidente espanto da moça.
– Bom... Porque morar em um hotel não proporciona muita privacidade...
– Sinto não concordar. Posso ir e vir quando quero, sem uma horda de criados fofocando a respeito de todos os meus hábitos e gestos. Pelo que pude comprovar, a vida em um hotel bem-administrado é muito melhor do que em uma mansão cheia de correntes de ar.
– Sim, mas um homem com a sua posição deve ter um bom número de criados a seu serviço para demonstrar seu sucesso aos demais...
– Perdoe-me – dissera Hunt –, mas sempre pensei que devia contratar criados apenas quando o trabalho deles fosse necessário. O benefício de exibi-los como adornos havia me escapado até então.
– Não se pode considerar que seja trabalho escravo, Simon!
– Pelo salário que a maioria dos criados recebe, isso é um ponto de vista bem discutível.
– Vamos precisar contratar um bom quadro de ajudantes se formos viver em uma casa adequada – disse Annabelle com atrevimento. – A menos que você pretenda me pôr de joelhos para esfregar o chão e limpar grades.
Essa sugestão fez os olhos pretos como café de Hunt se iluminarem com um brilho perverso que ela não conseguiu entender.
– Pretendo pô-la de joelhos, querida, mas posso garantir que não vai ser para esfregar o chão.
– Ele riu com brandura ao ver a perplexidade dela. Aproximando-a de si, deu um beijo breve nos lábios de Annabelle.
Ela tentou escapar de seu abraço.
– Simon... Solte-me... Minha mãe não vai aprovar se nos vir assim...
– Na verdade, eu poderia fazer o que quisesse com você agora sem ter que me preocupar com qualquer objeção da parte dela.
Franzindo a testa, Annabelle conseguiu pôr os braços à força entre eles.
– Ah, seu arrogante... Não, eu não quis dizer isso, Simon! Queria resolver esse assunto.
Vamos morar para sempre em um hotel ou você vai comprar uma casa?
Ele roubou mais um beijo e riu ao constatar a expressão dela.
– Comprarei a casa que você quiser, doçura. Melhor ainda, construirei uma nova, já que me acostumei ao conforto da boa iluminação e do encanamento moderno.
Annabelle parou de se contorcer.
– Sério? Onde?
– Acredito que poderia adquirir um terreno de tamanho considerável em Bloomsbury ou Knightsbridge...
– E em Mayfair?
Simon sorriu como se esperasse por essa sugestão.
– Não me diga que quer morar num local tão cheio de construções como Grosvenor ou St.
James, para ficar na janela contemplando os aristocratas pomposos circulando em seus pequenos quintais gradeados...
– Ah, sim, isso seria perfeito – respondeu ela, entusiasmada, fazendo-o rir.
– Tudo bem, então vamos comprar algo em Mayfair, e que Deus me ajude. Você pode contratar os criados que quiser. Repare que eu não disse “que necessitar”, já que isso parece ser completamente irrelevante. Enquanto isso, acha que conseguiria tolerar uns meses no Rutledge?
Lembrando-se dessa conversa, Annabelle investigava os imensos cômodos da suíte, todos suntuosamente decorados em veludo, couro e mogno reluzente. Precisava admitir: o Rutledge sem dúvida havia mudado sua concepção de como um hotel deveria ser. Dizia-se que o misterioso proprietário, o Sr. Harry Rutledge, tinha a intenção de criar o estabelecimento hoteleiro mais elegante e moderno da Europa, combinando o estilo continental com inovações trazidas das Américas. O Rutledge era um edifício enorme, que ocupava cinco quarteirões inteiros no bairro dos teatros. Peculiaridades como ser à prova de fogo, dispor de serviço de quarto e banho para cada suíte, sem mencionar o famoso restaurante, tinham feito do Rutledge o hotel favorito dos norte-americanos e europeus ricos. Para alegria de Annabelle, as Bowmans ocupavam cinco das cem suítes de luxo do hotel, o que significava que ela, Lillian e Daisy teriam muitas oportunidades de se encontrarem depois que ela voltasse da lua de mel.
Como nunca saíra da Inglaterra na vida, Annabelle ficou animada quando descobriu que Simon tinha a intenção de levá-la a Paris e passar cerca de quinze dias lá. Contando com uma lista de costureiras, estilistas e perfumistas criada pelas Bowmans, que haviam visitado Paris com a mãe, Annabelle aguardava ansiosa seu primeiro vislumbre da Cidade Luz. No entanto, antes da partida, no dia seguinte, ainda teria que passar pela noite de núpcias.
Vestida com uma camisola abundantemente adornada por rendas brancas no corpete e nas mangas, ela caminhava inquieta pela suíte. Sentou-se ao lado da cama e pegou a escova de cabelo na mesinha de cabeceira. Metodicamente, começou a se pentear enquanto se perguntava se todas as noivas sentiam essa apreensão por não saber o que lhes reservariam as próximas horas: medo ou prazer. Nesse instante, a chave girou na fechadura e a figura escura e esbelta de Simon entrou na suíte privativa.
Um calafrio percorreu a espinha de Annabelle, mas ela se obrigou a continuar escovando o cabelo com movimentos serenos, apesar da força excessiva com que apertava o cabo da escova e do tremor dos dedos. Os olhos de Simon vagaram pelas rendas e a musselina que cobriam o corpo da noiva. Ainda com o traje preto e formal do casamento, aproximou-se devagar e parou diante de Annabelle, que permanecia sentada. Para surpresa dela, ele se ajoelhou até que ficaram com o rosto na mesma altura, as coxas dele dando apoio às pernas delgadas da moça. Ergueu a mão avantajada para tocar o cabelo dela, entremeando os dedos fascinado pelos fios castanho-dourados que lhe escorriam pela palma.
Embora estivesse impecavelmente vestido, Simon trazia alguns sinais evidentes de desalinho que chamaram a atenção de Annabelle: as mechas curtas do cabelo lhe caíam na testa e o nó da gravata de seda cinza-gelo estava frouxo. Ela deixou a escova cair no chão e usou os dedos para ajeitar o cabelo dele, com um traçado indeciso. Os fios escuros do cabelo do noivo eram grossos e brilhantes e pareciam ter vontade própria, encaracolando-se nos dedos dela. Ele permaneceu imóvel enquanto ela desatava o nó da gravata, cuja seda ainda retinha o calor da pele dele. Os olhos de Simon continham uma expressão que lhe provocou cócegas no estômago.
– Toda vez que a vejo – murmurou Hunt –, acredito que seja impossível que esteja ainda mais bonita... mas você sempre me prova o contrário.
Annabelle deixou a gravata pendurada no pescoço dele e sorriu ao ouvir aquele elogio.
Quando sentiu as mãos dele sobre as suas, estremeceu na cadeira. Ele esboçou um sorriso, observando-a com ar interrogativo.
– Está nervosa?
Annabelle assentiu, enquanto ele segurava as mãos dela e acariciava seus dedos. Simon falou em voz baixa, parecendo escolher as palavras com muito mais cuidado que o normal.
– Doçura... Suponho que suas experiências com lorde Hodgeham não tenham sido das mais agradáveis. Mas espero que acredite em mim quando digo que não precisa ser assim. Sejam quais forem os seus medos...
– Simon – interrompeu ela com a voz apreensiva, limpando a garganta. – É muito gentil da sua parte... E-e o fato de ser tão compreensivo sobre isso... bem... fico extremamente grata por isso. No entanto... temo não ter sido tão clara sobre a minha relação com Hodgeham. –
Percebendo a súbita e curiosa quietude dele, que não demonstrava qualquer tipo de emoção, Annabelle inspirou fundo para se acalmar e então prosseguiu: – A verdade é que Hodgeham realmente frequentava nossa casa à noite de vez em quando, e ele pagou sim algumas de nossas dívidas em troca de... de... – Deteve-se ao perceber o nó que se formara na garganta, que dificultava a pronúncia das palavras. – Mas... não era a mim que ele vinha visitar.
Os olhos escuros de Simon se arregalaram quase que imperceptivelmente.
– O que está dizendo?
– Nunca dormi com ele – admitiu ela. – O acordo dele era com a minha mãe.
Ele a fitou, pasmo.
– Santo Deus! – exclamou com um suspiro.
– Tudo começou há cerca de um ano – prosseguiu ela, um pouco na defensiva. – Estávamos numa situação desesperadora. Nossa lista de contas pendentes era interminável e não tínhamos a menor condição de pagá-las. A renda da herança de minha mãe se reduziu porque o dinheiro foi mal aplicado. Lorde Hodgeham já vinha perseguindo a minha mãe havia algum tempo... Não sei ao certo quando começaram as visitas noturnas, mas passei a ver o chapéu e a bengala dele no hall de entrada em horários estranhos justo quando nossas dívidas começaram a diminuir um pouco. Entendi o que estava acontecendo, mas nunca disse nada a respeito. E deveria ter dito. –
Ela suspirou e esfregou as têmporas. – Na festa oferecida por lorde Westcliff, Hodgeham deixou claro que tinha se cansado da minha mãe e queria que eu ocupasse o lugar dela. Ameaçou expor o segredo “com requintes minuciosos”, disse ele, o que causaria nossa ruína. Eu o rechacei, porém, de alguma forma, minha mãe conseguiu mantê-lo quieto.
– Por que me deixou acreditar que era você quem se deitava com ele?
Annabelle deu de ombros, um pouco incomodada.
– Foi você quem supôs que fosse eu... e não parecia haver razão alguma para corrigi-lo, já que nunca me passou pela cabeça que o que tínhamos daria no que deu. E você me pediu em casamento mesmo assim, o que me fez chegar à conclusão de que o fato de eu ser ou não virgem não tinha tanta importância.
– Não tinha mesmo – murmurou Simon, com a voz um pouco estranha. – Desejava você independentemente do que quer que fosse. Mas agora que eu... – Deteve-se e balançou a cabeça, surpreso. – Annabelle, só para que fique claro, está me dizendo que nunca foi para a cama com homem algum?
Ela puxou as mãos, pois Hunt as apertava com tanta força que chegava a doer.
– Bem... sim.
– Sim, você já foi? Ou não, não foi?
– Nunca me deitei com ninguém – respondeu Annabelle sendo bem precisa e lançando um olhar interrogativo a ele. – Está zangado por eu não ter dito isso antes? Sinto muito. Mas não é o tipo de coisa que se possa comentar por alto enquanto se toma um chá no hall de entrada: “Eis aqui o seu chapéu e, a propósito, sou virgem.”
– Não estou zangado. – O olhar de Simon a percorreu com um ar pensativo. – Só estou me perguntando o que, meu Deus, farei com você agora.
– A mesma coisa que faria antes de eu ter contado a você? – perguntou ela, esperançosa.
Simon se levantou e a ergueu também antes de abraçá-la com todo o cuidado, como se temesse que ela pudesse quebrar com a pressão. Ele afundou o rosto nos cabelos brilhantes dela e respirou fundo.
– Acredite, eu farei acontecer – disse ele, soando confuso. – Mas antes acho que preciso perguntar umas coisas a você.
Annabelle passou os braços por dentro do paletó dele e fez um carinho naquele torso musculoso. O calor do corpo dele tinha atravessado o tecido fino da camisa e ela estremeceu de prazer quando mergulhou na calidez máscula de seu abraço.
– Sim? – perguntou ela.
Até esse momento, nunca tinha visto Simon perder a fluidez da fala durante uma conversa, mas, quando ele falou, mostrou uma hesitação excepcional, como se esta fosse uma discussão a que nunca precisou se submeter antes.
– Você tem alguma ideia do que vai acontecer? Tem todas as... digo... as informações necessárias?
– Acho que sim – respondeu Annabelle, sorrindo ao perceber, surpresa, que o coração de Simon batia acelerado contra o seu rosto. – Minha mãe e eu tivemos uma conversa há pouco tempo, depois da qual fiquei fortemente tentada a pedir a anulação do casamento.
De repente, ele deixou escapar uma risada abafada.
– Então é melhor eu reivindicar meus direitos de marido sem mais demoras. – Ele ergueu a mão dela, segurando os dedos de Annabelle com leveza e os levou até a boca. A respiração dele na pele dela era como vapor. – O que ela contou a você? – murmurou contra os dedos dela.
– Depois de me informar sobre detalhes básicos, ela disse que eu deveria deixá-lo fazer o que quisesse e que não deveria me queixar se não gostasse de algo. Também sugeriu que, se fosse muito desagradável, eu direcionasse o pensamento para a enorme conta bancária que você abriu para mim.
Annabelle se arrependeu dessas palavras no instante em que saíram de sua boca, temendo que Simon ficasse ofendido com tamanha franqueza. Mas ele começou a rir com a voz roufenha.
– É uma mudança considerável na mentalidade inglesa. – E inclinou a cabeça para trás a fim de olhá-la. – Quer dizer que eu devo fazê-la dar uns gemidos sussurrando números de transferências bancárias e taxas de juros?
Annabelle soltou as mãos das dele e traçou com um dedo o desenho dos lábios de Simon, acariciando as bordas aveludadas e descendo para o queixo que já mostrava sinais de barba aparente.
– Não será preciso. Pode dizer as palavras habituais.
– Não... As palavras habituais não lhe fazem justiça.
Simon ajeitou uma mecha do cabelo dela, prendendo-a atrás da orelha, segurou seu rosto entre as mãos e se inclinou na direção de Annabelle. Com a boca, persuadiu-a a separar os lábios, enquanto as mãos passeavam pelos contornos daquele corpo oculto por várias camadas de renda.
Sem o espartilho apertando as costelas, ela podia sentir o toque através do tecido fino da camisola. Aquele contato suave nas laterais do corpo livre a fez tremer, e os bicos dos seios se tornaram extremamente sensíveis. Os dedos dele subiam devagar, até que encontraram a curva flexível de um dos seios. Com a mão em concha, ergueu aquela área vulnerável do corpo dela.
Annabelle ficou sem ar por um instante quando o polegar dele tocou seu mamilo causando uma delicada dor com a dilatação da pele.
– Geralmente a primeira vez é dolorosa para a mulher – murmurou ele.
– É, eu sei.
– Não quero machucar você.
Essa afirmação a comoveu, deixando-a surpresa.
– Minha mãe disse que não demora muito tempo – comentou.
– A dor?
– Não, o que vem em seguida. – Essa resposta, por algum motivo, o fez rir outra vez.
– Annabelle... – principiou Simon, movendo os lábios pelo pescoço dela. – Eu a desejo desde o primeiro segundo em que a vi, do lado de fora do teatro panorâmico, procurando moedas na bolsa. Não conseguia tirar os olhos de você. Mal podia acreditar que você era de verdade.
– E não parou de me olhar durante todo o espetáculo – disse ela, ofegando quando ele mordiscou o lóbulo sedoso de sua orelha. – Duvido que tenha aprendido alguma coisa sobre a queda do Império Romano.
– Aprendi que os seus lábios são os mais macios que já beijei.
– Você tem uma maneira bem original de se apresentar.
– Não pude evitar. – A mão dele se movia para cima e para baixo pela lateral do corpo de Annabelle. – Estar ao seu lado no escuro era a tentação mais profana que eu já tivera. Eu só conseguia pensar em como você era adorável e no quanto eu a desejava. Quando as luzes se apagaram por completo, não aguentei mais. – Um toque de presunção masculina pôde ser notado quando ele acrescentou: – E você não me empurrou.
– Fiquei muito surpresa!
– Essa foi a única razão por não ter se oposto?
– Não – admitiu ela, inclinando a cabeça para que seu rosto roçasse no dele. – Gostei do seu beijo. E você sabe disso.
Ele sorriu ao ouvir sua confissão.
– Eu tinha esperança de que não fosse tudo só da minha parte. – Ele olhou nos olhos dela.
Estavam tão próximos que seu nariz quase tocava o dela. – Vamos para a cama comigo –
sussurrou ele, em tom quase interrogativo.
Ela assentiu com um suspiro trêmulo e se deixou levar para a grande cama de dossel, coberta com uma colcha de seda grossa da Borgonha. Depois de afastar as cobertas, ele a acomodou nos imaculados lençóis, e Annabelle chegou para o lado para lhe dar espaço. Ele se manteve de pé ao lado da cama, sem tirar os olhos do rosto dela enquanto despia o que restava do traje formal. O
contraste entre as peças de roupa de corte tão bem-feito, tão eminentemente civilizado, e o vigor masculino puro que emanava do corpo por baixo delas era desconcertante. Como Annabelle previra, ele tinha um torso extraordinariamente musculoso, com as costas e os ombros desenvolvidos, uma barriga que formava uns sulcos bem marcados. À luz da lamparina, a pele morena assumia um matiz âmbar, e a superfície dos ombros reluzia tanto quanto um busto de bronze. Mesmo o veludo escuro que cobria seu peito não era capaz de suavizar a poderosa estrutura formada por músculo e osso. Annabelle duvidava que existisse um homem de aspecto mais saudável e vigoroso. Talvez ele não se encaixasse no padrão de beleza dos aristocratas, que consistia em ter a pele pálida e um corpo delgado... Mas Annabelle o achava esplêndido.
Hunt sentiu umas pontadas de apreensão e nervosismo quando se juntou a ela na cama.
– Simon – disse ela com a respiração descompassada quando ele a tomou nos braços –, minha mãe não me disse se... se esta noite eu teria que fazer algo para você...
Ele começou a brincar com o cabelo dela e a acariciar sua cabeça, o que a fez sentir um arrepio na espinha.
– Não precisa fazer nada esta noite. Só me deixe abraçá-la... tocá-la... descobrir o que lhe dá prazer.
A mão de Hunt encontrou os botões de madrepérola que fechavam a camisola nas costas dela. Annabelle cerrou os olhos quando sentiu a volumosa porção de renda franzida deslizar de seus ombros.
– Você se lembra daquela noite no salão de música? – sussurrou ela, ofegante, sentindo-o baixar a camisola até seus seios. – Quando me beijou naquele recanto?
– Lembro-me de cada segundo abrasador – respondeu ele, também sussurrando e a ajudando a puxar as mangas de seus braços. – Por que está perguntando isso?
– Não consegui parar de pensar naquilo tudo – confessou ela, contorcendo-se para se desvencilhar da camisola, apesar da vergonha que lhe tingia de rosa cada centímetro da pele exposta.
– Nem eu – admitiu Hunt. A mão dele deslizou pelo seio de Annabelle, cobrindo a fresca superfície arredondada até que o mamilo se tingiu de um rosa mais forte e intumesceu contra sua palma. – Parece que a química que temos é poderosa... Mais até do que eu esperava.
– Então nem sempre é assim? – indagou Annabelle, que havia deixado seus dedos percorrerem o sulco central da coluna dele e os músculos rijos à sua volta.
O toque dela, inocente como era, alterou o ritmo da respiração de Hunt enquanto ele se inclinou sobre ela.
– Não – murmurou em resposta, pondo uma das pernas sobre as coxas que ela mantinha firmemente unidas. – Quase nunca.
– Por quê...? – Ela começou a fazer outra pergunta, mas se deteve soltando um leve gemido quando Hunt contornou a auréola acetinada de seu seio com a ponta do polegar.
Em seguida, ele apertou a cintura estreita dela entre as mãos e se inclinou sobre ela. Os lábios quentes e leves dele se abriram com delicadeza para acolher o mamilo enrijecido. Annabelle soltou outro gemido ofegante ao sentir a suave sucção produzida pela boca de Simon naquela região tão sensível, que ele acariciava com movimentos da língua até chegar a um ponto em que ela não conseguiu mais permanecer imóvel debaixo dele. Abriu involuntariamente as pernas e ele não tardou em preencher aquele espaço com sua coxa de pelos ásperos. Enquanto aquelas mãos e aquela boca passeavam pelo seu corpo, Annabelle ergueu os braços, pondo as mãos na cabeça dele, deixando que as mechas fartas deslizassem entre os dedos como tantas vezes desejou fazer.
Ele beijou a pele delicada de seus pulsos, a parte interna dos cotovelos, as rasas depressões entre suas costelas, não deixando de explorar nenhuma parte do corpo de sua mulher. Ela permitiu cada uma dessas carícias, tremendo a cada vez que sentia a barba incipiente do marido roçar na própria pele e contrastar com o calor úmido e sedoso da boca dele. Mas, quando ele chegou ao umbigo, e ela sentiu a ponta de sua língua tocar aquela pequena cavidade, afastou-se dele com um arquejo horrorizado.
– Não... Simon, eu... por favor...
Ele imediatamente voltou a se deitar ao lado dela, acomodando-a nos braços e fitou, com um sorriso, o rosto escarlate de Annabelle.
– Exagerei? – perguntou ele, com voz rouca. – Sinto muito, por um momento esqueci que isso era novo para você. Deixe-me abraçá-la. Não está com medo, está?
Antes que ela pudesse responder, a boca de Hunt já comprimia a dela, a língua movimentando-se compassadamente. Os pelos de seu peito friccionavam os seios dela como um veludo grosso, os mamilos de Annabelle roçavam contra a pele dele a cada respiração. A garganta dela vibrava com sons tímidos, evidenciando o prazer a que se permitia à medida que seu recato caía por terra. Arquejou mais alto ao sentir os dedos de Hunt vagarem por seu ventre e o joelho dele se intrometer entre suas coxas. Afastando um pouco mais as coxas dela, Hunt deslizou os dedos por seus suaves e femininos pelos, explorando a pele dilatada escondidas por eles. Separou-as, encontrando o botão de seda que pulsava ao mais leve toque e começou a acariciar logo acima dele com um ritmo suave e amoroso.
Annabelle voltou a gemer contra a boca dele, sentindo o corpo derreter. A paixão tingiu sua pele, salpicando sua palidez com manchas rosadas. Hunt procurou a fenda em seu corpo e introduziu apenas a ponta do dedo na úmida e complacente abertura. Ela sentia o coração disparado, e o corpo todo se retesou com o crescente prazer. Então, afastou-se dele com uma exclamação abafada e o fitou com os olhos arregalados.
Ele estava deitado de lado, apoiado no cotovelo, o cabelo escuro despenteado e os olhos brilhando de paixão, embora também ostentassem uma sutil satisfação. Era como se ele entendesse o que tinha começado a acontecer dentro dela e estivesse fascinado pela constatação de seu inocente desconcerto.
– Não se afaste – murmurou ele, sorrindo. – Você não vai querer perder a melhor parte. –
Com brandura, ele a puxou de volta para baixo do seu corpo, fazendo carinho ao posicioná-la melhor. – Doçura, não vou machucá-la – sussurrou bem perto do rosto dela. – Deixe-me lhe dar prazer... Deixe-me entrar em você...
Ele continuou murmurando, enquanto a beijava e acariciava, traçando caminhos que o levavam de volta para a parte de baixo do corpo dela. Quando a cabeça morena chegou à entrada escura entre as pernas de Annabelle, ela gemia incessantemente. Ele a explorou com a boca, indo além dos delicados pelos e das sedosas pregas de pele rosada, a língua deslizando com movimentos circulares. Envergonhada, Annabelle tentou se afastar de novo, mas ele a segurou pelos quadris e continuou sua obstinada exploração, passando a ponta da língua por cada dobra, cada fenda. A visão daquela cabeça morena entre suas pernas foi um choque visceral a seus sentidos. O quarto à sua volta parecia ter se turvado, e Annabelle tinha a sensação de estar flutuando em meio às camadas de luz e sombras das velas, sem se dar conta de coisa alguma que não fosse aquele prazer arrebatador. Não podia lhe esconder nada, não podia fazer nada além de se entregar àquela boca que exigia um deleite pecaminoso de sua pele desperta. Ele se concentrou na área mais sensível do sexo de Annabelle, lambendo de forma suave e constante até que ela não conseguiu mais aguentar e seus quadris se ergueram por conta própria, tremendo de encontro à boca de Simon, enquanto um calor jorrava de suas partes em êxtase.
Depois de dar uma última e saborosa lambida, Hunt percorreu o caminho de volta pelo corpo dela. Suas coxas não ofereceram resistência quando ele as afastou um pouco mais, e a cabeça de seu membro a penetrou com suavidade. Baixando o rosto para olhar o semblante aturdido de Annabelle, Hunt afastou uma mecha de cabelo que havia caído sobre a testa dela.
Ao olhar para ele, seus lábios exibiam um sorriso vacilante.
– Acho que esqueci tudo a respeito da conta bancária – disse, fazendo-o rir baixinho.
Ele passou o polegar na testa dela, onde a pele encontra o cabelo.
– Pobre Annabelle... – A pressão entre as pernas dela aumentou, causando a primeira pontada de dor. – Temo que esta parte não seja tão prazerosa. Para você, pelo menos.
– Não me importo... Eu... fico feliz que seja você.
Sem dúvida aquela era uma coisa estranha para uma noiva dizer na noite de núpcias, mas o fez sorrir. Hunt abaixou a cabeça e começou a sussurrar coisas em seu ouvido, enquanto mexia os quadris para penetrar em sua pele inexplorada. Ela se forçou a ficar parada, apesar do instinto que a impelia a se afastar da invasão.
– Doçura... – Com a respiração descompassada, ele fez uma pausa dentro dela e pareceu lutar para conseguir manter o controle. – Isso, assim... Só mais um pouco... – Moveu-se um pouco mais, com todo o cuidado, e deteve-se outra vez. – Um pouco mais... – E foi penetrando-a em diferentes estágios, seduzindo o corpo dela a aceitá-lo. – Mais...
– Quanto mais? – perguntou ela arquejando.
O corpo dele estava muito rijo, a pressão que exercia sobre ela era muito intensa, e Annabelle se questionou com certa ansiedade como aquilo poderia algum dia ser prazeroso.
Hunt rangeu os dentes com o esforço para se manter imóvel.
– Estou na metade – conseguiu dizer enfim, com um tom de desculpa na voz.
– Na metade... – Annabelle começou a protestar com um riso trêmulo e se contraiu de dor quando ele voltou a se mexer. – Ai, é impossível, não dá, não dá...
Ele, no entanto, continuou penetrando-a, tentando amenizar a dor de Annabelle com a boca e as mãos. Aos poucos foi se tornando mais fácil, a sensação dolorida deu lugar a uma vaga e contínua ardência. Um longo suspiro escapou dos lábios dela quando sentiu que seu corpo se rendera, que sua pele virginal se deixou permitir a realidade inevitável da posse de Hunt. As costas dele eram uma massa de músculos contraídos e seu abdômen estava tão duro quanto um jacarandá entalhado. Mantendo-se bem fundo dentro dela, gemeu e sentiu um arrepio percorrer os ombros.
– Você é tão apertada – disse ele com voz embargada.
– Eu... sinto muito...
– Não, não – conseguiu dizer. – Não se desculpe. Meu Deus – Tinha a voz arrastada, como se estivesse bêbado de prazer.
Ficaram se olhando, ela com ar de saciedade, ele com olhos brilhando de desejo. Um sentimento de admiração se apoderou de Annabelle quando ela percebeu o jeito como ele havia conseguido contradizer todas as suas expectativas. Estava certa de que ele usaria essa oportunidade para lhe mostrar quem mandava ali... Em vez disso, aproximara-se dela com toda a paciência. Cheia de gratidão, Annabelle passou os braços em torno do pescoço dele. E o beijou, deixando que sua língua entrasse na boca dele, enquanto movia as mãos pelas costas de Hunt até encontrar o contorno de suas nádegas. Acariciou-as timidamente, instando-o a penetrar mais profundamente nela. Aquela carícia pareceu acabar com o último resquício de autocontrole dele.
Com um gemido faminto, ele se moveu de forma ritmada dentro dela, tremendo com o esforço que fazia para ser gentil. A força de seu gozo o fez estremecer fortemente, trincando os dentes quando o prazer se transformou em um êxtase ofuscante. Enterrando o rosto no cabelo de Annabelle, deixou-se encharcar em meio à umidade quente do corpo dela. Muito tempo se passou antes que a tensão abandonasse seus músculos, o que foi acompanhado de um grande suspiro. Quando se afastou cuidadosamente do corpo da esposa, ela estremeceu de dor.
Percebendo o desconforto que lhe causara, fez um carinho em seus quadris para confortá-la.
– Acho que não vou sair dessa cama nunca mais – murmurou, abraçando-a.
– Ah, vai sim – retrucou ela, meio sonolenta. – Vai me levar a Paris amanhã. Não vou ser privada da lua de mel que você me prometeu.
Ele se aninhou nos pelos emaranhados dela e respondeu, com um sorriso:
– Não, minha doce esposa, você não será privada de absolutamente nada.
CAPÍTULO 21
Durante as duas semanas da lua de mel, Annabelle descobriu que não era tão esclarecida e culta quanto ela própria se considerava. Com uma mistura de ingenuidade e arrogância britânicas, sempre pensou em Londres como o centro da cultura e do conhecimento, mas Paris fora uma revelação. A cidade era surpreendentemente moderna em comparação a Londres, que mais parecia uma espécie de prima deselegante. E ainda assim, com todos os avanços intelectuais e sociais, as ruas de Paris possuíam um aspecto quase medieval: eram escuras, estreitas e sinuosas, entrelaçando os distritos constituídos por construções artisticamente projetadas. Era um delicioso e desordenado ataque aos sentidos, com uma mistura arquitetônica que ia das torres góticas das igrejas antigas à sólida grandiosidade do Arco do Triunfo.
O hotel deles, o Coeur de Paris, ficava na margem esquerda do Sena, em meio a uma deslumbrante variedade de lojas da rue de Montparnasse e os mercados cobertos de Saint-Germain-des-Prés, onde era possível encontrar uma variedade desconcertante de tecidos, rendas, perfumes e quadros. O Coeur de Paris era um palácio no qual as suítes haviam sido desenhadas para o desfrute de prazeres sensuais. A sala de banho – ou salle de bain –, por exemplo, dispunha de piso de mármore rosado e azulejos italianos nas paredes, um sofá em estilo rococó dourado, onde o cliente podia descansar depois do enorme esforço de se lavar. Não havia apenas uma, mas duas banheiras de porcelana, cada uma delas com a própria caldeira e o próprio tanque de água fria. Acima delas, havia uma paisagem ovalada no teto, planejada para entreter quem estivesse relaxando no banho. Tendo sido criada segundo a noção britânica de que o ato de tomar banho servia para higiene pessoal e devia ser realizado de forma prática, Annabelle se divertiu com a ideia de que ele pudesse ser encarado como um entretenimento decadente.
Para sua alegria, também descobriu que um homem e uma mulher podiam compartilhar uma mesa em um restaurante público, sem a necessidade de ter que se pedir uma salinha privativa.
Nunca havia provado uma comida tão deliciosa: um galeto com pequenas cebolas ao molho de vinho tinto; confit de pato habilmente assado até a carne desmanchar sob a pele crocante e untada no óleo; peixe cantarilho servido com um espesso molho trufado; além, é claro, das sobremesas: grossas fatias de bolo embebidas em licor e cobertas com merengue e pudins cobertos por nozes e frutas glaceadas. Simon testemunhava toda noite Annabelle escolher angustiada uma sobremesa e precisou assegurar-lhe, com a maior gravidade, que generais iam à guerra sem deliberações tão grandes quanto as dela na hora de se decidir por uma tortinha de pera ou um suflê de baunilha.
Em uma das noites, ele a levou para assistir a um balé, com dançarinas escandalosamente pouco compostas e, na seguinte, a uma comédia cujas piadas indecentes não precisavam de tradução. Também participaram de bailes e saraus organizados por conhecidos de Simon. Alguns deles eram cidadãos franceses, ao passo que outros eram turistas e imigrantes da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da Itália. Alguns eram acionistas ou membros do conselho de determinadas empresas das quais Simon participava, enquanto outros faziam negócios com as empresas marítimas e ferroviárias que ele possuía.
– Como você conhece tanta gente? – perguntara-lhe Annabelle, espantada ao notar que diversos desconhecidos haviam ido cumprimentá-los na primeira festa a que foram.
Simon riu e brincou ao dizer que assim pensariam que ela nunca percebera que havia todo um mundo fora da aristocracia britânica. E era verdade. Até então, nunca lhe ocorrera pensar em olhar para além dos estreitos limites daquela sociedade rarefeita. Aqueles homens, assim como acontecia com Simon, formavam uma elite econômica, bem engajada em acumular fortunas.
Muitos chegavam a possuir, literalmente, cidades inteiras, construídas em torno de indústrias em rápida expansão. Eram donos de minas, plantações, moinhos, armazéns, lojas e fábricas, e parecia que seus interesses nunca se concentravam apenas em um único país. Enquanto as esposas se dedicavam à compra de roupas de grandes costureiros parisienses, os maridos sentavam-se nos cafés ou salões privativos e enveredavam por discussões intermináveis sobre negócios ou política. Muitos fumavam tabaco enrolado em pequenos cilindros de papel, chamados de cigarro, uma moda que havia começado em meio aos soldados egípcios e que não tardou a se espalhar por todo o continente. No jantar, conversavam sobre coisas que Annabelle nem suspeitava existir, eventos dos quais jamais ouvira falar e que sem dúvida não haviam sido noticiados nos periódicos.
Notou que quando o marido falava, os outros homens o ouviam com muita atenção e pediam seus conselhos para uma grande variedade de assuntos. Talvez Hunt fosse pouco importante aos olhos da aristocracia britânica, mas era evidente que possuía uma considerável influência fora dela. Foi então que ela entendeu por que lorde Westcliff o tinha em tão alta estima. Ele sabia que Simon era um homem poderoso por conta própria. Vendo o respeito com que o tratavam e percebendo a atitude coquete que provocava em outras mulheres, Annabelle começou a ver o marido sob uma nova perspectiva. Até se viu um pouco possessiva em relação a ele – a Hunt! – e descobriu também que sentia um ciúme ardoroso toda vez que uma mulher se sentava ao lado dele durante o jantar tentando monopolizar sua atenção, ou quando uma dama declarava em flerte que Simon era obrigado a lhe tirar para uma valsa.
No primeiro baile a que foram, Annabelle ficou conversando com um grupo de jovens sofisticadas e casadas. Uma delas era esposa de um fabricante de munições norte-americano, as outras duas eram francesas, cujos maridos trabalhavam como marchand. Annabelle se viu embaraçosamente obrigada a responder à curiosidade delas a respeito de Simon e precisou se virar para esconder quão pouco ainda sabia sobre o marido. Mas logo se viu aliviada quando o assunto da conversa fora chamá-la para dançar. Impecavelmente vestido com um traje de noite preto, Simon saudou de maneira formal as sorridentes e ruborizadas mulheres antes de se dirigir à esposa. Seus olhos se cruzaram bem na hora em que uma linda melodia começou a tocar no salão de baile. Annabelle reconheceu a música: era uma valsa muito popular em Londres, tão assombrosamente doce que suas amigas solteironas haviam chegado a dizer que era uma tortura ter que permanecer sentadas sem dançar enquanto a orquestra a tocava.
Hunt estendeu o braço e ela o tomou, lembrando-se das inúmeras vezes que havia rejeitado seus convites para uma dança. Percebendo que ele enfim tinha conseguido o que queria, ela sorriu.
– Você sempre consegue o que quer? – perguntou.
– Algumas vezes demoro um pouco, mais do que gostaria – respondeu ele.
Quando entraram no salão de baile, ele pôs a mão na cintura dela e a guiou até o grupo de casais que dançavam ali.
Ela sentiu uma pontada súbita de nervosismo, como se estivessem prestes a compartilhar algo muito mais importante do que uma simples dança.
– Esta é a minha valsa favorita – disse a ele, acomodando-se em seus braços.
– Eu sei. Por isso pedi que a orquestra a tocasse.
– Como sabia? – perguntou ela com um sorriso incrédulo. – Foi uma das irmãs Bowmans que contou a você?
Hunt meneou a cabeça, enquanto seus dedos enluvados se curvavam em torno dos dela.
– Observei, em mais de uma ocasião, a expressão no seu rosto quando ela tocava. Sempre parecia prestes a sair voando da cadeira.
Os lábios de Annabelle se abriram em surpresa, e ela o fitou com um olhar perscrutador.
Como ele era capaz de perceber algo tão sutil? Ela sempre se mostrara desdenhosa com relação a ele e, mesmo assim, Hunt conseguiu notar uma reação sua a uma determinada peça musical e se lembrava disso. Aquilo fez com que os olhos dela se enchessem de lágrimas e se viu impelida a desviar o olhar imediatamente, lutando para controlar a desconcertante e repentina onda de emoção.
Hunt a levou até a pista de dança, com os braços posicionados, conduzindo-a com uma pressão firme da mão na cintura dela. Era tão fácil segui-lo, deixando o corpo fluir ao ritmo estabelecido por ele, enquanto o vestido varria o chão reluzente e roçava em suas pernas. A encantadora melodia parecia penetrar cada um dos seus poros, dissolvendo o nó da garganta e provocando um irrefreável prazer.
Hunt, por sua vez, deleitava-se com uma sensação de triunfo ao guiar Annabelle naquela dança. Finalmente, depois de dois anos, podia tê-la nos braços para dançar uma tão esperada valsa com ela. E o melhor de tudo, Annabelle ainda seria dele depois do baile... Ele a levaria de volta ao hotel, tiraria a roupa dela e faria amor até o amanhecer.
O corpo dela era maleável em seus braços, e a mão enluvada de Annabelle se apoiava em seu ombro. Poucas mulheres se deixaram guiar com tanta facilidade, como se soubessem de antemão para que direção ele a conduziria, antes mesmo que ele próprio tivesse decidido. O resultado era harmonia física que lhes permitiu se mover pelo salão com a rapidez de pássaros em pleno voo.
Hunt não se surpreendeu com as reações de seus pares ao conhecerem sua esposa. As felicitações, os olhares dissimulados de desejo e os murmúrios maliciosos de alguns que diziam não ter inveja do fardo que era ter uma mulher tão bonita. Nos últimos dias, Annabelle se tornara ainda mais encantadora, se é que era possível. A tensão a abandonara, depois de várias noites de sono tranquilo. Na cama, ela era carinhosa e até brincalhona: na noite anterior, tinha montado nele com a graça de uma amazona, enchendo-o de beijos no peito e nos ombros. Ele nunca esperaria algo assim de uma moça tão bonita como ela. Todas as outras que ele conhecera no passado ficavam, invariavelmente, esperando passivamente serem adoradas. Annabelle, pelo contrário, o provocara e acariciara até dizer chega. Ele rolara na cama e ficara por cima dela enquanto ela ria e protestava, dizendo que ainda não havia terminado a brincadeira.
– Eu vou terminar essa brincadeira para você – grunhiu ele, em tom jocoso, antes de penetrá-la e fazê-la gemer de prazer.
Hunt não alimentava ilusões de que o relacionamento que compartilhavam seria harmonioso para sempre: ambos eram muito independentes e possuíam um gênio forte por natureza, portanto, não teriam como evitar ocasionais confrontos. Depois de haver renunciado à chance de se casar com um nobre, Annabelle fechara as portas para o tipo de vida com que sempre sonhara e, em vez disso, precisaria se acostumar a uma existência bem diferente. Com a exceção de Westcliff e de um ou outro amigo de alta cepa, Simon tinha relativamente pouca interação com a aristocracia. Seu mundo girava em torno de empresários como ele, pouco refinados e concentrados na tarefa de fazer dinheiro. Essa multidão de industriais não poderia ser mais distinta da classe refinada a que Annabelle estava familiarizada. Eles falavam alto, se reuniam com muita frequência e por muito tempo e não demonstravam respeito pelas tradições e boas maneiras. Simon não estava muita certo se Annabelle seria capaz de se adaptar a essas pessoas, mas ela parecia disposta a tentar. Ele entendia e apreciava seus esforços mais do que ela poderia imaginar.
Tinha consciência de que situações como as que ela suportara duas noites antes fariam qualquer jovem que levara uma vida protegida se debulhar em lágrimas de vergonha, mas Annabelle soubera lidar com aquilo de forma relativamente equilibrada. Haviam comparecido a um sarau organizado por um arquiteto francês rico e sua esposa, um evento bem caótico, com muitos convidados e vinho circulando à vontade. O resultado disso era um ambiente de descomedimento ruidoso. Hunt a deixou por uns poucos minutos sentada a uma mesa com conhecidos. Quando voltou de uma conversa privativa com o anfitrião, ele descobriu que a esposa tinha sido perturbada por dois homens que disputavam o privilégio de beber champanhe nos sapatos dela.
Embora aquilo estivesse sendo proposto em clima de brincadeira, era mais do que óbvio que grande parte da diversão dos rivais vinha do aborrecimento de Annabelle. Não havia nada mais prazeroso para sujeitos de caráter cínico do que um ataque ao pudor de outra pessoa, especialmente quando a vítima era uma jovem inocente. Ainda que tentasse lidar com aquilo da melhor forma possível, Annabelle ficou muito incomodada com a aposta insolente, e o sorriso que ostentava no rosto era evidentemente falso. Por isso ela se levantou da cadeira e deu uma olhada rápida ao redor tentando encontrar um refúgio.
Obrigado a manter um verniz social, Hunt chegou à mesa e passou a mão pelas costas retesadas de Annabelle, deixando o polegar tocar de leve a pele exposta no topo da coluna. No mesmo instante, sentiu ela relaxar um pouco e o rubor que havia tingido seu rosto começava a se dissipar quando ela o fitou.
– Estão apostando para ver quem vai tomar champanhe em meu sapato – disse ela, sem fôlego. – Não insinuei nada e eu nem sei...
– Bem, isso é um problema fácil de se resolver – interrompeu-a, mostrando naturalidade.
Tinha consciência de que uma multidão se aglomerara ao redor, todos ansiosos para ver se ele perderia a calma diante da proposta audaciosa dos dois homens à sua esposa. Delicadamente, mas com firmeza, conduziu Annabelle de volta para a cadeira. – Sente-se, doçura.
– Mas eu não quero... – principiou ela, inquieta, antes de soltar uma exclamação de surpresa ao ver Simon ficar de cócoras diante dela. Pôs as mãos sob a barra da saia dela e tirou os sapatos de cetim frisado dos pés dela. – Simon!
Os olhos de Annabelle se arregalaram de espanto.
Já de pé, ele entregou um pé de sapato a cada rival fazendo uma mesura.
– Podem ficar com os sapatos, cavalheiros, contanto que tenham plena consciência de que a dona deles me pertence. – Então pegou a esposa descalça no colo e a levou dali em meio a gargalhadas e aplausos da multidão. No caminho, passaram pelo garçom que havia sido encarregado de levar a garrafa de champanhe. – Nós ficaremos com ela – disse Simon ao garçom estupefato, que entregou a garrafa gelada e pesada às mãos de Annabelle.
Ele a levou até a carruagem enquanto ela segurava o champanhe com uma das mãos e se segurava ao pescoço dele com a outra.
– Você vai me custar uma fortuna com sapatos – brincou ele.
Os olhos dela brilhavam de contentamento.
– Tenho outros no hotel – comentou com alegria. – Está planejando tomar champanhe em algum deles?
– Não, meu amor. Planejo beber diretamente do seu corpo.
Ela lançou-lhe um olhar perplexo e quando enfim compreendeu o que ele dissera, encostou o rosto no ombro dele, sentindo a orelha em chamas, envergonhada.
Ao lembrar desse episódio e das horas de prazer que se seguiram, Simon fitou a mulher em seus braços. A forte luz dos oito candelabros refletiu nos olhos dela, que mirava o teto, enchendo as íris azuis de pequenas fagulhas, que mais pareciam estrelas em um céu de verão. Annabelle olhava para ele com uma intensidade nunca vista antes, como se ansiasse por algo que jamais poderia ter. Um olhar inquietante como aquele despertava em Hunt uma forte necessidade de satisfazê-la de qualquer maneira. Naquele momento, teria dado a ela tudo o que desejasse, sem pestanejar.
Não havia dúvida de que o casal se tornara um perigo para todos os outros, posto que o ambiente ao redor deles se diluiu em uma espécie de bruma imaginária, e Hunt não dava a mínima para a direção que tomavam. Dançaram e dançaram, a ponto de as pessoas começarem a tecer comentários amargos acerca da impropriedade de marido e mulher exibirem tanta exclusividade em um baile e a dizer que logo depois da lua de mel se cansariam um do outro.
Simon apenas sorria ao escutar tais rumores e se inclinou para sussurrar ao ouvido de Annabelle:
– Está arrependida agora de nunca ter dançado comigo antes?
– Não – murmurou ela por sua vez. – Se eu não tivesse sido um desafio, você teria perdido o interesse.
Deixando escapar uma gargalhada baixa, Hunt enganchou o braço em volta da cintura dela e a conduziu para um canto do salão.
– Isso nunca teria acontecido. Tudo o que você faz ou fala desperta o meu interesse.
– De verdade? – indagou ela, cética. – E quanto à afirmação de lorde Westcliff, que me chamou de superficial e egoísta?
Quando ela o encarou, Hunt apoiou uma mão na parede, perto de sua cabeça e se inclinou sobre ela, com um gesto protetor. O tom de voz dele era bem terno.
– Ele não a conhece.
– E você conhece?
– Sim, eu conheço você. – Ele passou um dedo por uma mecha de cabelo úmida que havia se aderido ao pescoço dela. – Você se protege com muito cuidado. Não gosta de depender de ninguém. Tem temperamento forte e é determinada e decidida quando quer defender suas opiniões. Sem falar na sua teimosia. Mas egoísta nunca. E nenhuma pessoa com a sua inteligência poderia ser chamada de superficial. – Deixou o dedo vagar pelas mechas sedosas do cabelo dela. Os olhos dele se iluminaram quando acrescentou com malícia: – Você também é deliciosamente fácil de seduzir.
Rindo, mas com alguma indignação, Annabelle ergueu o punho como se fosse golpeá-lo.
– Só por você.
Rindo, ele agarrou o punho dela e beijou os nós de seus dedos.
– Agora que é minha esposa, Westcliff sabe muito bem que não deve proferir qualquer outra objeção a você ou ao nosso casamento. Se o fizer, eu encerraria nossa amizade sem pensar duas vezes.
– Ah, mas eu nunca iria querer algo assim, eu... – Ela olhou para ele, subitamente confusa. –
Você faria isso por mim?
Simon passou o dedo por uma mecha dourada do cabelo castanho-claro de Annabelle.
– Não há nada que eu não faça por você.
Ele estava sendo sincero. Não era um homem de meias medidas. Em troca da entrega dela, ele lhe dava sua lealdade e seu apoio incondicionais.
Annabelle guardou um silêncio inexplicável por um longo tempo, o que o fez pensar que ela talvez estivesse cansada. No entanto, quando voltaram ao quarto do Coeur de Paris naquela noite, ela se entregou com renovado fervor, tentando expressar com o corpo o que não era capaz de dizer com palavras.
CAPÍTULO 22
Como havia prometido, Hunt foi um marido generoso, pagando por uma enorme quantidade de vestidos e acessórios de origem francesa que seriam enviados para Londres assim que estivessem prontos. Quando levou Annabelle à tarde a uma joalheria e lhe disse para escolher qualquer coisa de que gostasse, ela só conseguiu fazer que não com a cabeça, atordoada com a variedade de diamantes, safiras e esmeraldas espalhadas pelo veludo preto. Depois de anos usando colares com pedras coladas e vestidos surrados, era difícil perder o hábito de economizar.
– Não há nada de que goste? – instou Simon, levantando um colar feito de diamantes brancos e amarelos dispostos como caules de pequenas flores. Ele o segurou diante do pescoço nu dela, admirando o brilho dos diamantes contra a pele encantadora de Annabelle. – E este aqui?
– Há brincos para combinar, senhora – disse o joalheiro, ansioso –, et aussi a pulseira acompanharia a peça muito bem.
– É lindo – respondeu Annabelle. – É só que... Bem, é tão estranho entrar em uma loja e comprar um colar como se fosse uma lata de doces, de maneira tão casual...
Um pouco perplexo com a modéstia dela, Simon olhou-a com atenção, enquanto o joalheiro retirava-se para a parte de trás da loja. Delicadamente, ele colocou o colar de volta no mostruário de veludo e pegou a mão de Annabelle. Seu polegar acariciou o dorso dos dedos dela.
– O que foi, doçura? Há outros joalheiros se não gostar das joias daqui...
– Ah, não é isso! Acho que estou tão acostumada a não comprar coisas que é muito difícil internalizar o fato de que agora posso.
– Tenho certeza de que você vai ser capaz de superar esse problema – disse Simon. – Afinal, estou cansado de vê-la com joias remendadas. Se não consegue escolher algo, então permita que eu o faça.
Ele selecionou dois pares de brincos de diamante, o colar de flores, uma pulseira, dois longos colares de pérolas, e um anel com um diamante de cinco quilates e lapidação em forma de pera.
Incomodada por tal extravagância, Annabelle verbalizou alguns protestos, até que Simon riu e lhe disse que, quanto mais ela se opusesse, mais ele iria comprar. Ela prontamente se calou e ficou observando atenta enquanto as joias eram adquiridas e postas em uma caixa de mogno forrada de veludo com uma pequena alça na parte superior. Tudo, exceto o anel, que, depois de colocá-lo no dedo dela, Simon verificou que estava muito frouxo, e devolveu ao joalheiro.
– E o meu anel? – perguntou Annabelle, segurando a caixa de mogno com ambas as mãos enquanto deixavam a loja. – Nós vamos simplesmente deixá-lo lá?
Animado, Simon arqueou as sobrancelhas quando olhou para ela.
– Ele irá ajustá-lo e o enviará para o hotel mais tarde.
– Mas e se o anel se perder?
– O que aconteceu com suas objeções? Na loja, você se comportou como se nem o quisesse.
– Sim, mas agora ele é meu – disse ela, preocupada, fazendo-o gargalhar.
Para seu alívio, o anel foi entregue em segurança no hotel na mesma noite, em uma pequena caixa também forrada de veludo. Enquanto Simon dava uma moeda para o homem que o trouxera, Annabelle saiu do banho às pressas, enxugou-se, e vestiu uma camisola branca fresca.
Fechando a porta, Hunt se virou para descobrir que a esposa estava bem atrás dele, com o rosto iluminado de ansiedade como o de uma criança na manhã de Natal. Não pôde deixar de sorrir ao ver a expressão no rosto dela, posto que seus esforços para parecer refinada foram logo destruídos por uma onda de excitação. O anel reluziu assim que ele o retirou da caixa e o aproximou da mão de Annabelle. Deslizou o solitário pelo dedo anular, encaixando-o firmemente contra a aliança simples de ouro que ele dera à noiva no dia do casamento.
Juntos ficaram admirando o diamante na mão dela, até que Annabelle passou os braços ao redor dele com uma exclamação de alegria. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela se afastou e fez uma dancinha com os pés descalços.
– É tão adorável, veja como ele brilha! Hunt, saia mesmo, estou ciente de quão mercenária devo parecer. Esqueça. Não importa, sou mercenária, e você deve ficar sabendo disso. Ah, amo este anel de verdade!
Desfrutando daquela excitação, Simon encostou-se no corpo esguio dela.
– Não vou sair agora – informou ele. – Esta é a minha oportunidade de colher os benefícios da sua gratidão.
Com entusiasmo, Annabelle puxou a cabeça dele para baixo e encostou os lábios nos dele.
– E deve mesmo. – Ela lhe deu outro beijo ardente. – Neste exato momento.
Ele riu da animação dela.
– Devo dizer que sua animação já é a retribuição suficiente. Por outro lado, se você insiste...
– Insisto! Eu insisto mesmo. – Afastando-se dele, Annabelle foi para a cama, subiu no colchão e dramaticamente se jogou para trás, espalhando-se como uma águia de asas abertas sobre a colcha. Simon a seguiu até o quarto, fascinado com as palhaçadas dela. Esta era uma Annabelle que ele não tinha visto antes, divertida e encantadoramente diferente. Quando ele se aproximou da cama, ela ergueu a cabeça e declarou: – Sou toda sua. Comece a receber sua recompensa...
Ele habilmente tirou o paletó e a gravata, mais do que pronto para satisfazê-la. Ela se levantou e ficou sentada em uma posição em que pudesse vê-lo. Suas pernas permaneceram abertas sob o véu da camisola, os cabelos sedosos caindo-lhe sobre os ombros.
– Simon... Quero que saiba que eu iria para a cama com você de qualquer forma, mesmo sem este anel.
– Você é muito gentil – respondeu ele secamente, tirando as calças. – Um marido sempre gosta de ouvir que ele é valorizado por mais do que seu mérito financeiro.
Ela percorreu o corpo definido dele com os olhos.
– De todos os seus méritos, Hunt, o financeiro é provavelmente o menor.
– Provavelmente? – Caminhando para a beirada da cama, Simon pegou um dos pés descalços dela e o levou à boca. – Não seria melhor dizer definitivamente?
Ela caiu para trás, ofegante com o toque quente da língua dele, enquanto a barra da camisola subia para o topo das coxas.
– Ah... Sim, definitivamente. Definitivamente mesmo...
O corpo dela estava úmido e cheiroso devido ao banho recente, mantendo o aroma fresco de sabão e a essência inebriante de óleo de rosas. Despertado pela visão da pele alva e perfumada, Simon beijou e mordiscou o seu tornozelo e em seguida o joelho. A princípio Annabelle riu e se contorceu com os carinhos da boca de Simon, mas, quando ele acariciou a outra perna, ela se acalmou, e sua respiração passou a ocorrer em ondas intervaladas e ofegantes. Ele se ajoelhou entre as coxas dela e as separou, avançando a camisola para cima e beijando cada centímetro da pele recém-exposta até atingir o veludo de cachos cintilantes. Depois de deixar o queixo encostar suavemente, ele continuou sua viagem para cima, enquanto ela fazia uns parcos protestos.
Intoxicado pela textura aveludada da pele dela, beijou-a na cintura e em cada uma de suas costelas, percorrendo um caminho que culminava no seio onde o coração dela batia sob os lábios de Simon.
Annabelle fez um som suplicante e pegou a mão dele, tentando levá-la para o meio de suas coxas. Resistindo com uma risada tranquila, Simon pegou os pulsos dela, levou-os acima da cabeça da esposa e permaneceu com os lábios nos dela. Sentiu-a surpresa por ter sido contida e acompanhou a reação dela depois disso: os olhos se fechando e a respiração adquirindo um ritmo mais acelerado. Mantendo os pulsos dela presos com uma das mãos, ele deslizou a que estava livre pelo corpo dela e, com as pontas dos dedos, circulou os mamilos. O próprio corpo estava duro e quente com a excitação, os músculos tensos, pedindo mais. Em toda a sua experiência sexual, nunca conhecera esse êxtase febril, que o deixava alheio a qualquer conexão com o mundo exterior, concentrado apenas em Annabelle... O prazer dela preenchendo o dele... A expressão trêmula dela intensificando o próprio desejo. A boca de Annabelle se abriu sob a sua, gemidos ecoavam de sua garganta enquanto os beijos penetrantes que ele oferecia tornavam-se mais ousados e lascivos. Ele tocou a abertura no meio das pernas dela, amando a umidade viscosa de sua pele. O corpo dela ondulava para cima, os quadris remexendo em direção à mão dele, enquanto os pulsos presos o apertavam. Cada contorção exprimia sua necessidade de ser tomada e preenchida, e o corpo dele endurecia como se uma fome primitiva o atravessasse.
Lentamente, ele a penetrou com um dedo, e ela gemeu de encontro à boca dele. Percebendo o aumento da flexibilidade da pele, acrescentou outro dedo, acariciando-a delicadamente até ela intumescer de excitação. Assim que ele libertou aos lábios dela, ela implorou incoerentemente:
– Simon, por favor... Por favor, preciso de você... – Ela tremeu quando ele retirou os dedos. –
Não, Simon...
– Shhh... – Ele agarrou os joelhos dela e a puxou cuidadosamente sobre a cama. – Está tudo bem – sussurrou. – Vou cuidar de você... Deixe-me amá-la desta forma... – Levando os quadris dela para a beira do colchão, ele a virou até que suas pálidas nádegas ficaram voltadas para cima.
Ele ficou em pé, posicionando-se entre suas coxas, a cabeça rígida de seu membro deslizando facilmente pela entrada macia do corpo dela. Apertando com firmeza os quadris de Annabelle, ele entrou deslizando profundamente, sem parar, até que estivesse todo dentro dela. Um surto de calor tomou o corpo todo de Simon como se houvesse parado em frente a um forno, e sua virilha estivesse contraída por uma dor libidinosa, quase insuportável de tão intensa. Ele ofegava, lutando para controlar a intensidade de seu desejo antes que se satisfizesse totalmente. Annabelle estava passiva sobre o colchão, exceto pelos dedos que apertavam com força a colcha. Com medo de estar lhe causando dor, Simon de alguma forma conseguiu conter o desejo selvagem tempo o bastante para se inclinar e murmurar com a voz rouca: – Doçura... Estou machucando você? – O movimento o fez penetrá-la ainda mais fundo, e ela gemeu. – Diga-me e eu paro.
Ela demorou a responder, como se precisasse de alguns segundos para compreender a questão, e quando respondeu, sua voz estava repleta de prazer.
– Não, não pare.
Simon permaneceu debruçado sobre ela, e seus movimentos profundos faziam os músculos internos dela se contraírem avidamente em volta de sua ereção. Suas mãos cobriram as dela, os dedos em torno de seus punhos... Uma posição que a dominava completamente, e ainda assim ele não impunha o próprio ritmo a ela. Ao contrário, movia-se em resposta às demandas do corpo dela, impulsionando-se de acordo com as pulsações da pele de Annabelle... Cada vez que ela contraía os músculos de modo impotente, ele penetrava mais, aproveitando para acariciar as profundezas dela. Ela beirava o clímax em uma excitação intensa, mas não conseguia alcançá-lo, sua respiração ficando ainda mais ofegante, suas nádegas batendo com força contra os quadris dele.
– Simon...
Ele se ajeitou embaixo dela e facilmente encontrou a dilatação para acomodar seu membro e a macia protuberância logo acima. Usando a ponta do dedo, espalhou a umidade quente do corpo dela sobre a saliência inchada e a manipulou com delicadeza, fazendo círculos e acariciando, variando o ritmo até encontrar um que a fez gritar enquanto se contraía em torno dele. Quanto mais gemia, mais ele apertava e acariciava, com as costas arqueadas em êxtase. O corpo exuberante e emocionante de Annabelle se contorcendo foi a gota d’água para os sentidos extremamente estimulados de Simon... Ele ofegava com o próprio clímax, penetrando a doçura do órgão dela e sentindo o alívio jorrar em explosões incontroláveis.
O pior momento da lua de mel aconteceu na manhã em que Annabelle, alegre, disse a Simon que achava que um velho ditado era verdade: o casamento era o estado mais elevado da amizade. Sua intenção era agradá-lo, mas ele reagiu com uma desconcertante hostilidade. Reconhecendo a citação famosa de Samuel Richardson, Simon comentou sucintamente que esperava que o gosto literário dela melhorasse, de modo a poupá-lo de ter que ouvir filosofia barata obtida a partir de romances. Aborrecida, Annabelle reagiu com um silêncio frio, incapaz de entender por que o que dissera o incomodara tanto.
Simon ficou fora a manhã toda e parte da tarde, voltando a encontrar a esposa jogando cartas com outras esposas em um dos salões do hotel. Aproximando-se do espaldar da cadeira, ele encostou as pontas dos dedos na curva do ombro dela. Annabelle sentiu o toque através da seda do vestido, a sensação delicadamente tomando conta dos seus nervos. Muito tentada a prolongar o orgulho ferido, pensou por um instante em afastar a mão dele. Em vez disso, disse a si mesma que não custaria nada mostrar a ele um pouco de tolerância. Virou a cabeça para olhar Simon e lhe deu um sorriso.
– Boa tarde, Sr. Hunt – murmurou ela, referindo-se a ele da maneira formal que a maioria dos casais adotava em público. – Espero que tenha gostado da sua saída. – Premeditadamente ela lhe mostrou suas cartas. – Olhe para a mão que tenho. Algum bom conselho?
Deslizando as mãos ao longo dos lados da cadeira dela, Simon inclinou a cabeça para murmurar em seu ouvido.
– Sim, termine o jogo depressa.
Consciente dos olhares curiosos das outras mulheres, Annabelle manteve o rosto inexpressivo, mesmo sentindo um calor subindo pelo decote.
– Por quê? – perguntou ela, enquanto a boca dele permanecia perto de sua orelha.
– Porque vou fazer amor com você, daqui a precisamente cinco minutos – sussurrou mais uma vez. – Onde quer que estejamos... Aqui... Em nossa suíte... Ou nas escadas. Se preferir um pouco de privacidade, sugiro que perca convenientemente o jogo.
Ele não seria capaz, pensou ela, os batimentos cardíacos acelerando com preocupação. Por outro lado, conhecendo Hunt, havia a possibilidade...
Com essa ideia em mente, ela baixou uma carta com os dedos trêmulos. A jogadora após Annabelle levou angustiantemente muito tempo para jogar uma de suas cartas, e a mulher seguinte fez uma pausa para um diálogo bem-humorado com o marido, que acabara de se aproximar da mesa. Ciente do suor que se acumulava no peito e na testa, pensou em maneiras de se retirar do jogo. A voz da razão a acalmou e ponderou que não importava quão ousado Simon fosse, ele não iria de fato violentar a esposa na escadaria do hotel. No entanto, a voz da razão foi abruptamente estrangulada quando Simon, com toda a calma, consultou o relógio.
– Você tem três minutos – murmurou em tom suave no ouvido dela.
No meio de sua agitação, Annabelle sentiu um pulsar vergonhoso de excitação entre as coxas, o corpo profundamente harmonizado com a promessa indecente da voz dele. Apertando as pernas, ela se forçou a manter a compostura, apesar do coração bater em ritmo frenético. As jogadoras conversavam preguiçosamente, abanavam-se e pediam a um garçom que trouxesse outra jarra de limonada gelada. Enfim, era a vez de Annabelle, e ela jogou fora sua carta mais alta e pegou outra. Ficou aliviada quando viu que a nova carta não valia nada, e baixou a mão.
– Acho que estou fora – disse ela, fazendo um esforço para não parecer ofegante. – Foi um jogo encantador, obrigada, preciso ir...
– Fique para a próxima rodada – pediu uma das senhoras, e as outras reforçaram o pedido.
– Sim, fique!
– Pelo menos tome uma taça de vinho enquanto terminamos esta mão...
– Obrigada, mas... – Annabelle se levantou e ficou um pouco ofegante quando sentiu a pressão suave da mão de Hunt nas costas. E os mamilos enrijeceram dentro do vestido. – Estou exausta de tanto dançar na noite passada – improvisou ela. – Preciso descansar antes de ir ao teatro esta noite.
Seguida por um coro de despedidas e de alguns meneios, tentou sair com dignidade do salão.
Assim que chegaram à escada em caracol que levava aos andares superiores, ela soltou um suspiro de alívio e lançou ao marido um olhar de reprovação.
– Se estava tentando me envergonhar, você realmente conseguiu... o que está fazendo?
O vestido estava meio solto na altura dos ombros, e ela percebeu, um pouco chocada, que ele tinha soltado alguns de seus botões.
– Simon – sussurrou ela –, não se atreva! Não, pare com isso!
Ela correu para longe dele, mas ele a alcançou com facilidade.
– Você tem só mais um minuto.
– Não seja bobo – disse ela brevemente. – Não chegaremos à suíte em menos de um minuto, e você não seria capaz...
Ela se interrompeu com um grito quando sentiu ele arrancar outro botão e virou-se para golpear as mãos saqueadoras. O olhar dela encontrou o dele, e ela percebeu incrédula que ele tinha toda a intenção de levar a cabo sua ameaça.
– Simon, não.
– Sim. – Os olhos dele estavam cheios de um desejo selvagem, e aquela expressão em seu rosto já lhe era completamente familiar.
Segurando as saias, Annabelle se virou para correr escada acima, a respiração surgindo ofegante entre risadas em desespero.
– Você é impossível! Deixe-me em paz. Você... Ah, e se alguém nos vir assim, eu nunca vou perdoá-lo!
Hunt a seguiu sem pressa aparente, afinal, não tinha conjuntos de saias e roupas íntimas para atrapalhá-lo. Ela chegou ao topo da escada e seguiu a curva do prédio. Os joelhos doíam e as pernas latejavam por causa da subida desesperada, degrau após degrau. As saias estavam pesadas, e seus pulmões, perto de explodir. Ah, maldito seja ele por estar fazendo isso, e maldita seja ela mesma pelas risadinhas abafadas que ecoavam da garganta.
– Trinta segundos. – Ela ouviu atrás de si e bufou quando chegou ao topo do segundo andar.
Três longos corredores a afastavam da suíte e não havia tempo suficiente. Agarrando a frente solta do vestido, ela olhou para cima e para baixo nos corredores que se estendiam a partir da entrada. Correu para a primeira porta que encontrou, a de um pequeno armário escuro. O cheiro de linho engomado exalava lá de dentro, e prateleiras de roupas de cama e toalhas bem empilhadas eram apenas visíveis à luz do corredor.
– Continue – murmurou Hunt, encurralando-a para dentro do espaço e fechando a porta.
Annabelle foi imediatamente tomada pela escuridão. Risos ecoaram de seu peito, e ela empurrou sem sucesso as mãos que se aproximavam de si. Parecia que o marido tinha de repente desenvolvido mais braços do que um polvo, desabotoando a roupa dela e a atirando para longe muito mais depressa do que podia se defender.
– E se você nos trancou aqui? – perguntou, enquanto o vestido caía no chão.
– Arrombarei a porta – respondeu ele, puxando as fitas da calcinha dela. – Depois.
– Se uma das criadas nos encontrar, vamos ser postos para fora do hotel.
– Acredite em mim, as criadas têm visto coisas muito piores do que isso. – O vestido era pisoteado por Hunt enquanto baixava a calcinha de Annabelle até os tornozelos.
Ela fez mais alguns protestos discretos, até que Hunt a tocou entre as coxas e descobriu quão lubrificada estava, o que fez com que suas objeções fossem inúteis. Sua boca se abriu ao beijo dele, retribuindo com ansiedade a pressão sequiosa e cadenciada dos lábios dele. A entrada macia de seu corpo dilatara-se com facilidade para recebê-lo, e um gemido escapou da garganta dela quando sentiu os dedos dele lá, acariciando-a de forma que a cada movimento do quadril dele excitava gentilmente a parte mais sensível entre suas pernas.
Eles pressionavam o corpo um no outro, flexionando, fundindo, e cada beijo que a invadia a excitava ainda mais. Seu espartilho estava muito apertado, mas havia um inesperado prazer nesta compressão, como se as sensações tivessem sido desviadas para abaixo da cintura e se somassem aos órgãos inchados de prazer. Os dedos dela agarravam inutilmente as roupas dele enquanto o desejo de Annabelle beirava a loucura. Simon invadiu-a em estocadas profundas, com um ritmo insistente, até que o gozo arrebatador ecoou através deles, e seus pulmões se encheram com o cheiro de linho limpo e engomado, e braços, pernas e torso se entrelaçaram na tentativa de prender aquela sensação entre eles.
– Droga – murmurou Hunt alguns minutos mais tarde, quando foi capaz de recuperar o fôlego.
– O quê? – sussurrou Annabelle, a cabeça apoiada na lapela do paletó dele.
– Para o resto da vida, o cheiro de goma de passar vai me deixar excitado.
– Isso é problema seu – respondeu ela com um sorriso sensual, e inspirou fundo ao sentir que o corpo dele, ainda dentro dela, a empurrava para cima.
– Seu também – afirmou, pouco antes de sua boca encontrar a dela na escuridão.
CAPÍTULO 23
Logo depois que Simon e Annabelle voltaram à Inglaterra, foram obrigados a se confrontar com a inevitável interação de duas famílias que não podiam ser mais diferentes. A mãe de Simon, Bertha, exigiu que eles fossem jantar juntos para que pudessem se conhecer melhor, pois não tiveram a oportunidade de fazer isso antes do casamento. Embora Simon tivesse avisado Annabelle sobre o que esperar, ela, que se esforçou para preparar a mãe e o irmão, suspeitava que aquele encontro produziria, na melhor das hipóteses, resultados um tanto diversos.
Felizmente, Jeremy habituara-se ao fato de que Simon Hunt era agora seu cunhado. Tornara-se nos últimos meses um rapazinho alto e magro, ultrapassando a irmã em vários centímetros, como se pôde perceber quando a abraçou na sala de casa. Seu cabelo, de um castanho-dourado, tinha clareado consideravelmente graças a todo o tempo que passara ao ar livre, e os olhos azuis, brilhantes e sorridentes, destacavam-se no rosto bronzeado de sol.
– Não pude acreditar no que os meus olhos viam quando li a carta de mamãe contando que você ia se casar com Simon Hunt – disse o garoto. – Depois de todas as coisas que disse sobre ele nesses dois últimos anos...
– Jeremy – repreendeu-o Annabelle. – Não se atreva a repetir nada disso!
Rindo, o garoto seguia com o braço passado na cintura da irmã e estendeu uma da mãos para Simon.
– Parabéns, senhor. – Enquanto se cumprimentavam, ele prosseguiu com malícia: – Na verdade, não me surpreendi nem um pouco. Minha irmã reclamou de você tantas vezes e por tanto tempo que eu sabia que ela devia sentir algo forte.
O olhar cálido de Simon se voltou para a esposa, de cenho franzido.
– Não posso imaginar do que ela se queixava... – falou com a maior tranquilidade.
– Creio que ela tenha dito... – principiou Jeremy, fazendo uma careta exagerada quando Annabelle lhe deu uma cotovelada nas costelas. – Tudo bem, vou ficar quieto – disse ele, erguendo as mãos na defensiva e rindo ao se afastar dela. – Só estava travando uma conversa educada com o meu novo cunhado.
– Em conversas educadas falamos sobre o tempo ou perguntamos sobre a saúde de alguém – informou Annabelle. – E não sobre revelações potencialmente embaraçosas a respeito de uma confidência feita por uma irmã.
Passando o braço pela cintura da moça, Simon encostou as costas dela contra o peito e baixou a cabeça para sussurrar em seu ouvido:
– Dá para imaginar o que você possa ter dito. Afinal de contas, você tinha disposição suficiente para me dizer cara a cara.
Percebendo um tom divertido na voz do marido, Annabelle relaxou em seus braços.
Como nunca tinha visto a irmã interagir de um jeito tão à vontade com um homem e percebendo as mudanças nela, Jeremy sorriu.
– Eu diria que o casamento lhe caiu como uma luva, Annabelle.
Nesse instante, Philippa entrou na sala e correu na direção da filha com um grito de alegria.
– Querida, senti tanta saudade de você! – Abraçou a filha com força e em seguida virou-se para Simon com um sorriso radiante. – Caro senhor Hunt, bem-vindo. Aproveitou Paris?
– Muito mais do que poderia expressar – respondeu Simon, inclinando-se para beijar a bochecha que ela lhe oferecia. Não olhou para Annabelle quando acrescentou: – Gostei especialmente do champanhe.
– Ah, mas é claro – retrucou Philippa. – Estou certa de que qualquer um que... Annabelle, querida, o que está fazendo?
– Só quero abrir um pouco a janela – disse a moça com uma voz estrangulada, o rosto arroxeado como beterraba em conserva depois de ouvir o comentário de Simon e se lembrar da noite em que ele tinha bebido champanhe de um jeito bem criativo. – Está muito quente aqui. Por que esse raio de janela está fechada nessa época do ano? – Sem encarar ninguém, ela lutava com a trava até Jeremy ir em seu socorro.
Enquanto Simon e Philippa conversavam, Jeremy abriu a janela e esboçou um sorriso ao ver Annabelle pôr para fora o rosto enrubescido a fim de refrescá-lo.
– Deve ter sido uma boa lua de mel – murmurou ele com um risinho.
– Você não deveria saber nada a respeito dessas coisas – sussurrou Annabelle.
Jeremy bufou achando graça.
– Tenho catorze anos, Annabelle, não quatro. – E inclinou a cabeça mais para perto dela. – Então... por que se casou com o Sr. Hunt? Mamãe me disse que ele comprometeu sua reputação, mas, conhecendo você como conheço, sei que essa história está mal contada. Uma coisa é certa: você não deixaria que ninguém comprometesse sua reputação se não quisesse. – O brilho divertido se dissipou de seus olhos e ele indagou com mais seriedade: – Foi por causa do dinheiro? Eu vi as contas dos nossos gastos da casa. É óbvio que não tínhamos nem dois xelins para contar história.
– Não foi só pelo dinheiro. – Annabelle sempre fora absolutamente franca com o irmão, mas era difícil admitir a verdade até para si mesma. – Fiquei doente em Stony Cross e o Sr. Hunt foi gentil comigo de um modo inesperado. Então, quando comecei a baixar a guarda com ele, descobri que temos uma espécie de... bem, afinidade...
– Intelectual ou física? – O sorriso de Jeremy voltou a aparecer quando percebeu a resposta nos olhos da irmã. – Ambas? Que bom. Diga-me, você está apaixo...
– Sobre o que vocês dois estão cochichando? – indagou Philippa com uma gargalhada, fazendo um gesto para que se afastassem da janela.
– Eu estava implorando para que minha irmã não intimidasse o marido com o olhar –
respondeu Jeremy, fazendo Annabelle revirar os olhos.
– Obrigado – disse Simon em tom grave. – Como pode imaginar, é preciso uma grande dose de coragem para lidar com minha esposa, mas até agora tenho conseguido... – Ele se deteve com um sorriso quando viu Annabelle piscar de um jeito ameaçador. – Acabo de me dar conta de que seu irmão e eu devíamos compartilhar nossas confidências masculinas lá fora para que você possa contar à sua mãe tudo sobre Paris. Jeremy, você gostaria de dar uma volta na minha carruagem?
O irmão de Annabelle não precisava que lhe perguntassem duas vezes.
– Deixe-me pegar meu chapéu e um casaco...
– Não se incomode em pôr chapéu – advertiu Simon de um jeito lacônico. – Você não seria capaz de mantê-lo na cabeça por mais do que um minuto.
– Sr. Hunt – chamou Annabelle atrás deles –, se ferir ou matar meu irmão, saiba que ficará sem jantar.
Simon gritou algo incompreensível na direção dela e ambos desapareceram depois de passar pelo hall de entrada.
– Carruagens são muito rápidas e capotam com muita facilidade – comentou Philippa com o cenho franzido de preocupação. – Espero que o Sr. Hunt seja um condutor experiente.
– Excepcional – observou Annabelle dando-lhe um sorriso tranquilizador. – Ele veio do hotel até aqui em um ritmo tão calmo que parecia até que estávamos andando em uma carroça.
Garanto que Jeremy não poderia estar em melhores mãos.
Durante a hora seguinte, as duas permaneceram sentadas na sala, tomando chá e conversando a respeito de tudo o que havia acontecido naqueles quinze dias. Como esperava, Philippa não fez qualquer pergunta sobre os aspectos íntimos da lua de mel, abstendo-se de interferir na intimidade do casal. No entanto, pareceu bastante interessada nos relatos da filha sobre os estrangeiros que tinham conhecido e as festas a que haviam comparecido. A mãe não fazia ideia de como viviam os ricos industriais e ouviu atentamente Annabelle se esforçar para descrevê-los.
– A cada dia é possível ver mais e mais deles na Inglaterra – comentou Philippa –, para aliar sua riqueza aos títulos.
– Como as Bowmans – observou a moça.
– É. Parece que a cada temporada estamos sendo invadidos por um número crescente de americanos e... Deus sabe como é difícil fisgar um nobre. Certamente não precisamos dessa concorrência toda. Ficarei muito feliz quando esse furor industrial se assentar enfim, e as coisas voltarem a ser como eram antes.
Annabelle sorriu com tristeza perguntando-se como explicar à mãe que, por tudo que havia visto e ouvido, o processo de expansão industrial estava apenas no estágio inicial – e as coisas nunca mais voltariam a ser como antes. Ela própria mal começara a entender a transformação que as estradas de ferro, os navios movidos a hélice e as fábricas mecanizadas imporiam à Inglaterra e ao resto do mundo. Esses haviam sido os assuntos discutidos por Simon e os conhecidos durante os jantares, em lugar das atividades da classe alta, como a caça e os festejos campestres.
– Diga-me, está se dando bem com o Sr. Hunt? Parece que sim.
– Ah, estou. Embora o Sr. Hunt não seja como os outros homens que você ou eu já tenhamos conhecido. Os cavalheiros a que estávamos acostumadas... Bom, sua mente não funciona como a deles. Ele... ele é um progressista...
– Ah, santo Deus! – exclamou Philippa com certo desgosto. – Está se referindo à posição política?
– Não... – Annabelle parou e fez uma expressão engraçada que mostrava que nem ao menos sabia a que partido o marido era afiliado. – Na verdade, depois de ouvir algumas das opiniões que defende, não duvido que seja um Whig, ou mesmo um liberal...
– Minha nossa, querida. Talvez com o tempo você consiga convencê-lo a tomar a outra direção.
Ao ouvir aquilo, Annabelle deu uma gargalhada.
– Duvido muito. Mas isso não importa, porque... Mamãe, na verdade estou começando a acreditar que um dia as opiniões desses empresários e mercantilistas vão adquirir mais peso do que as da nobreza. Só a influência financeira que possuem...
– Annabelle – interrompeu Philippa com suavidade –, acho maravilhoso você querer apoiar seu marido. No entanto, um homem que se dedica ao comércio nunca será tão influente como um aristocrata. Com certeza, não na Inglaterra.
De repente a conversa foi interrompida pela entrada precipitada de Jeremy na sala. Estava descabelado e com os olhos arregalados.
– Jeremy? – exclamou Annabelle preocupada, erguendo-se de um salto. – O que aconteceu?
Onde está o Sr. Hunt?
– Passeando com os cavalos ao redor da praça para acalmá-los. – Balançou a cabeça e prosseguiu, sem fôlego. – Esse homem é um lunático. Por pouco não capotamos umas três vezes; quase matamos meia dúzia de pessoas; e fui tão sacudido que a parte inferior do meu corpo ficou cheia de hematomas. Se tivesse me sobrado algum fôlego, teria começado a rezar, pois era evidente que morreríamos. Hunt tem os cavalos mais bravos que já vi em toda a minha vida. E ele soltou uns palavrões tão cabeludos que bastaria proferir um deles para eu ser expulso da escola.
– Jeremy. – Annabelle começou a dizer pedindo desculpa, horrorizada por Simon ter tratado o irmão de forma tão terrível. – Sinto muito...
– Foi sem dúvida a melhor tarde da minha vida! – prosseguiu Jeremy, exultante. – Implorei a Hunt que me levasse para dar outra volta amanhã, e ele me disse que faria isso se tivesse tempo.
Ah, ele é incrível, Annabelle! Vou pegar um pouco de água. Tenho pelo menos um centímetro de pó grudado na garganta. – Ele saiu correndo dando uma gargalhada adolescente, enquanto a mãe e a irmã o fitavam boquiabertas.
Mais tarde, naquela mesma noite, Simon levou Annabelle, Jeremy e a mãe deles à casa de seus pais, que ficava em cima do açougue. A casa era composta por três ambientes principais e uma escada estreita que conduzia a um sótão no terceiro andar. O espaço era pequeno, mas bem-equipado. Mesmo assim, Annabelle notou a perplexa desaprovação no rosto da mãe. Philippa não conseguia entender por que os Hunts não preferiam morar em uma bela casa na cidade.
Quanto mais a filha tentara explicar que os Hunts não sentiam vergonha da profissão que tinham e não possuíam desejo algum de escapar ao estigma de pertencer à classe operária, mais ela achava confuso. Aborrecida por sua mãe estar se mostrando deliberadamente ignorante,
Annabelle abandonou todas as tentativas de conversar sobre a família de Simon e fez um acordo com Jeremy de não deixar que Philippa dissesse coisas desdenhosas na frente deles.
– Vou tentar – afirmara Jeremy sem muita convicção. – Mas você sabe que mamãe nunca se entendeu bem com pessoas diferentes de nós.
Exasperada, Annabelle suspirou.
– Deus me livre de passar uma noite com pessoas que não sejam exatamente como nós.
Poderíamos aprender algo errado. Ou pior, poderíamos quem sabe nos divertir... Ah, que vergonha!
Um sorriso curioso surgiu no rosto do irmão.
– Não seja tão dura com ela, Annabelle. Não faz tanto tempo assim que você também tinha o mesmo desdém pelas pessoas de classes inferiores.
– Eu não tinha, não! Eu... – Annabelle fez uma pausa com uma cara irritada e então suspirou.
– Você tem razão, eu também era assim, embora não saiba bem o motivo agora. Não há desonra nenhuma em trabalhar, não acha? Com certeza é mais admirável do que o ócio.
Jeremy não conseguiu conter um sorriso.
– Você mudou. – Foi o único comentário que fez.
Ao que Annabelle respondeu com tristeza:
– Talvez não seja algo ruim.
Ao subirem os estreitos degraus da escada que levava do açougue aos cômodos privativos dos Hunts, Annabelle teve consciência do sutil comedimento de Simon, seu único sinal de insegurança. Sem dúvida, estava preocupado, achando que ela e sua família poderiam “não se entender bem”, como dissera Jeremy. Determinada a fazer com que a noite fosse um sucesso, Annabelle estampou um sorriso confiante no rosto e parecia decidida, mesmo quando ouviu o barulho que vinha da residência dos Hunts – uma cacofonia de vozes de adultos, gritinhos de crianças e umas batidas que faziam supor que estavam trocando os móveis de lugar.
– Meu Deus! – exclamou Philippa. – Isso parece...
– Uma briga? – completou Simon tentando ser solícito. – Pode ser. Na minha família nem sempre é fácil distinguir uma conversa sociável de uma luta livre.
Quando entraram na sala principal, Annabelle tentou identificar aquela multidão de rostos.
Encontravam-se ali a irmã mais velha de Simon, Sally, mãe de meia dúzia de crianças que se deslocavam pelas salas como os Touros de Pamplona; o marido de Sally e os pais de Simon; três irmãos mais novos e uma irmã, também mais nova, chamada Meredith, cuja serenidade obscura era estranhamente dissonante em meio àquela balbúrdia toda. Pelo que Simon lhe contara, ele sentia um carinho especial por Meredith, que era bastante diferente daquela trupe alvoroçada, uma moça tímida e leitora voraz.
As crianças se aglomeraram em volta de Simon, que exibiu uma surpreendente facilidade em lidar com elas, lançando-as no ar com destreza, ao mesmo tempo que dava atenção ao relato de um dente que havia caído ou passava um lenço em um nariz que escorria. Os primeiros minutos de boas-vindas foram confusos, com apresentações aos gritos, crianças correndo de um lado para outro, e os miados indignados de um gato que se postara junto à lareira e acabara de receber uma mordiscada de um filhote de cachorrinho curioso. Annabelle tinha esperança de que as coisas se acalmassem depois, mas, a bem da verdade, a agitação geral prosseguiu a noite toda. De vez em quando vislumbrava o sorriso falso armado no rosto da mãe, a descontração divertida de Jeremy e o cômico desespero de Simon ao perceber que todos os seus esforços para aplacar aquela confusão toda haviam fracassado.
O pai de Simon, Thomas, era um homem enorme e imponente, características que poderiam facilmente intimidar a austeridade em pessoa. Algumas vezes seu rosto e seus olhos se suavizavam com um sorriso que não era tão carismático quanto o de Simon, mas que possuía um encanto próprio. Annabelle se empenhou em manter uma conversa amistosa com ele, já que estava sentada ao seu lado durante o jantar. Infelizmente, parecia que as duas mães não estavam se dando bem. O motivo não parecia ser um desagrado mútuo, mas uma completa incapacidade de se relacionar uma com a outra. A vida que levaram, as experiências que acumularam e que ajudaram a formar seus pontos de vista não podiam ser mais distintos.
O jantar consistiu em bifes grossos de vitela bem-passados, acompanhados por um empadão e uns poucos legumes. Annabelle reprimiu um melancólico suspiro quando lembrou dos pratos que haviam experimentado na França e começou a cortar o enorme pedaço de carne que tinha à frente.
Pouco depois, Meredith se dirigiu a ela, fazendo um comentário amistoso.
– Annabelle, você precisa nos falar mais sobre Paris. Minha mãe e eu em breve faremos nossa primeira viagem pelo continente.
– Ah, que ótimo! – exclamou Annabelle. – Quando partirão?
– Daqui a uma semana, na verdade. Vamos ficar fora por pelo menos um mês e meio, começando por Calais e terminando em Roma...
A conversa sobre viagens prosseguiu até o fim do jantar, quando uma criada foi retirar os pratos e a família se dirigiu à sala, onde tomariam um chá e comeriam doces. Para alegria das crianças, Jeremy sentou com elas no chão, perto da lareira, para jogar pega-palito e ajudar a conter o cachorrinho. Annabelle se acomodou ali por perto para observar as palhaçadas deles, enquanto conversava com a irmã mais velha de Simon. Não deixou de notar que o marido havia desaparecido com a mãe e podia apostar que a mulher tinha muitas perguntas a fazer para o filho mais velho acerca de seu casamento precipitado e de como estavam as coisas entre eles.
– Ah, não! – exclamou Jeremy. – O filhote fez um laguinho na lareira.
– Por favor, alguém pode chamar a criada e dizer a ela o que aconteceu? – pediu Sally, enquanto as crianças riam ruidosamente do cachorrinho mal-educado.
Como Annabelle estava sentada perto da porta, levantou-se no mesmo instante. Ao entrar no aposento ao lado, descobriu que a criada ainda estava retirando os restos do jantar. Depois que Annabelle lhe informou sobre o pequeno incidente, a moça mais que depressa se dirigiu à sala levando consigo uns trapos. Annabelle teria ido atrás dela, mas ouviu uma conversa murmurada vindo da direção da cozinha e se deteve um momento quando a voz baixa de Bertha pronunciou, em tom de desaprovação:
– ... e ela o ama, Simon?
Annabelle congelou ali mesmo e ficou atenta à resposta do marido.
– As pessoas se casam por outros motivos além desse.
– Então ela não o ama – retrucou Bertha. – Não posso dizer que estou surpresa. Mulheres como ela jamais...
– Cuidado com o que diz – murmurou Simon. – Está falando da minha esposa.
– Ela servirá como um belo adorno para o seu braço – insistiu Bertha – quando estiver circulando em meio aos membros da aristocracia. Mas será que ela teria se casado com você se não tivesse dinheiro? Será que ficará ao seu lado em momentos de dificuldade? Adoraria que você tivesse dado mais chance às moças que lhe apresentei. A tal Molly Havelock, ou Peg Larcher... são meninas boas e fortes, que seriam verdadeiras parceiras...
Annabelle não conseguiu suportar mais ouvir aquilo. Controlando a expressão no rosto, saiu de fininho e retornou ao barulho e à luz da sala.
– Bem, isso é o que dá ficar ouvindo a conversa dos outros escondida – desabafou em voz alta com tristeza, perguntando a si mesma se a opinião de Bertha sobre ela podia piorar ainda mais. As críticas eram dolorosas, mas ela precisava reconhecer que não havia nenhuma boa razão para a família ou a mãe de Simon gostarem dela. Na verdade, ao pensar em todos os benefícios que o casamento com ele lhe traria, Annabelle se deu conta de que nunca cogitou se poderia oferecer-lhe algo em troca.
Perturbada, ponderou se deveria contar a Simon o que tinha ouvido e de imediato decidiu que não o faria. Trazer à tona esse assunto só o forçaria a dizer coisas que a tranquilizassem ou, talvez, a se desculpar pela mãe, e nada disso era necessário. Sabia que levaria um bom tempo para provar seu valor para Simon e sua família – e talvez até para si mesma.
Bem mais tarde, à noite, quando Annabelle e Simon voltaram para o Rutledge, ele passou o braço pelos ombros dela e a fitou com um ligeiro sorriso.
– Obrigado – comentou ele.
– Pelo quê?
– Por ser tão agradável com a minha família. – Puxou-a para que ficassem de frente um para o outro e lhe deu um beijo no topo da cabeça. – E por ter decidido ignorar o fato de eles serem tão diferentes de você.
Annabelle ficou ruborizada de prazer com aqueles elogios, sentindo-se de repente muito melhor.
– Eu gostei da nossa noite – mentiu, e Simon lhe deu um sorriso.
– Não precisa exagerar.
– Bem, lembro-me de uma ou duas situações complicadas: quando seu pai começou a falar das vísceras dos animais e quando sua irmã comentou o que o bebê havia feito na hora do banho... Mas, em geral, eles foram muito... muito...
– Barulhentos? – sugeriu Simon, com um brilho divertido nos olhos.
– Eu ia dizer “gentis”.
Simon deslizou a mão pelas costas dela, massageando os pontos de tensão sob seus ombros.
– Está se saindo consideravelmente bem nesse papel de esposa-de-plebeu, se levarmos em conta as circunstâncias.
– Na verdade, não é tão ruim assim – murmurou Annabelle. E passou a mão com suavidade no peito do marido, lançando-lhe um olhar provocante. – Posso relevar tudo isso com bastante facilidade graças a este... impressionante... e bem-dotado...
– Montante disponível na conta bancária?
Annabelle sorriu e enfiou os dedos no cós da calça de Hunt.
– Não me referia à conta bancária – sussurrou um pouco antes de Simon encostar a boca na dela.
No dia seguinte, Annabelle estava louca para se reencontrar com Lillian e Daisy, cuja suíte ficava na mesma ala do Rutledge que a sua. Gritando e rindo quando se abraçaram, as três fizeram a maior algazarra até a Sra. Bowman enviar uma criada para lhes pedir que se calassem.
– Quero ver Evie – queixou-se Annabelle de braço dado com Daisy e se dirigindo para a saleta da suíte. – Como ela está?
– Meteu-se em sérios apuros há duas semanas para tentar ver o pai – respondeu Daisy com um suspiro. – A situação dele piorou e agora está de cama. Mas Evie foi pega tentando sair de casa escondida e agora está sendo mantida reclusa por tia Florence e pelo resto da família.
– Por quanto tempo?
– Por tempo indefinido. – Foi a resposta desanimadora que recebeu.
– Ah, que gente repugnante! – murmurou Annabelle. – Adoraria arranjar um jeito de resgatarmos Evie.
– Não é que isso seria bem divertido? – sussurrou Daisy, instantaneamente fascinada pela ideia. – Deveríamos raptá-la. Levamos uma escada para pôr diante da janela dela e...
– ... a tia Florence soltaria os cachorros em cima de nós – disse Lillian em tom carregado. –
Eles têm dois mastins enormes que circulam pela propriedade à noite.
– Podemos jogar uma carne com sonífero para eles – retrucou Daisy. – E aí, enquanto estiverem dormindo...
– Ora, pare de bolar esses planos absurdos! – exclamou Lillian. – Quero ouvir Annabelle contar sobre a lua de mel.
Dois pares de olhos castanhos fitavam Annabelle com um interesse bem pouco adequado para donzelas.
– E então? – perguntou Lillian. – Como foi? É tão doloroso quanto dizem?
– Conte logo, Annabelle – insistiu Daisy. – Lembre-se que prometemos contar tudo umas às outras!
Annabelle sorriu. Gostava de estar na posição de alguém que tinha mais conhecimentos a respeito de algo ainda tão misterioso para elas.
– Bem, em certos momentos foi bastante incômodo – admitiu. – Mas Simon foi muito gentil e atencioso... e embora eu não tenha nenhuma experiência anterior para servir de comparação, não consigo imaginar que qualquer outro homem possa ser um amante tão maravilhoso.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Lillian.
As bochechas de Annabelle se tingiram de um rosa suave. Hesitante, procurou as palavras para explicar algo que de repente parecia impossível de ser descrito. Era capaz de falar dos detalhes mais técnicos, por assim dizer, mas isso dificilmente transmitiria a ternura de uma experiência tão íntima.
– A intimidade é algo que vai muito além do que vocês jamais poderiam imaginar... No início, a gente morre de vergonha, mas depois há uns momentos em que a sensação é tão maravilhosa que a gente esquece tudo e a única coisa que importa é estar perto dele.
Fez-se um breve silêncio enquanto as irmãs absorviam aquelas palavras.
– Quanto tempo dura? – quis saber Daisy.
O rubor no rosto de Annabelle se acentuou.
– Às vezes apenas alguns minutos... às vezes algumas horas.
– Algumas horas? – repetiram em uníssono, fazendo cara de espanto.
Lillian franziu o nariz com visível desagrado.
– Meu Deus, isso me parece horrível!
Annabelle riu ao ver a expressão dela.
– Não é horrível de jeito nenhum. Na verdade, é maravilhoso.
Lillian negou com a cabeça.
– Vou pensar em um jeito de fazer com que meu marido termine depressa. Há coisas muito melhores para se passar o tempo do que ficar horas na cama fazendo aquilo.
Annabelle voltou a sorrir.
– Já que estamos falando do misterioso cavalheiro que um dia será o seu marido... devíamos começar a planejar a estratégia para a nossa próxima campanha. O início da temporada é só em janeiro, o que nos dá vários meses para a preparação.
– Daisy e eu precisamos de um patrocinador aristocrata – disse Lillian com um suspiro. –
Sem mencionar as aulas de etiqueta. E infelizmente, Annabelle, como você se casou com um plebeu, não tem nenhuma influência social, e voltamos à estaca zero. – Mais que depressa, ela acrescentou: – Não quis ofendê-la, querida.
– Não fiquei ofendida – replicou Annabelle com brandura. – Seja como for, Simon tem alguns amigos em meio aos nobres... Lorde Westcliff em particular.
– Ah, não – disse Lillian com firmeza. – Não quero nada com ele.
– Por que não?
Lillian ergueu as sobrancelhas surpresa com a necessidade de explicar aquilo.
– Por que ele é o homem mais insuportável que já conheci.
– Mas Westcliff é muito bem posicionado – rebateu Annabelle. – E é o melhor amigo de Simon. Eu mesma não tenho muita simpatia por ele, mas sei que poderia ser um aliado bem útil.
Dizem por aí que o título de Westcliff é o mais antigo de toda a Inglaterra. Nenhum sangue é mais azul que o dele.
– E ele sabe disso muito bem – comentou Lillian em tom mordaz. – Apesar de todo aquele discurso populista, dá para ver que, no fundo, ele adora estar cercado de asseclas em quem pode mandar e desmandar.
– Eu me pergunto por que Westcliff não se casou ainda – ponderou Daisy. – Apesar dos defeitos que tem, é preciso admitir que ele é um partidão de proporções homéricas, uma conquista gigantesca se fisgada.
– Ficarei felicíssima quando alguém lançar o arpão nele – murmurou Lillian, arrancando gargalhadas das outras duas.
Embora Londres estivesse quase sem ninguém da “boa sociedade” durante o mês mais quente do verão, a vida na cidade não estava de modo algum estagnada. Até o Parlamento suspender suas atividades no décimo segundo dia de agosto, dia também da abertura da temporada de caça de perdizes, a presença ocasional de cavalheiros ainda era requisitada em algumas sessões vespertinas. Enquanto os homens se reuniam no Parlamento ou nos clubes, as esposas iam às compras, visitavam amigas e escreviam cartas. À noite, compareciam a jantares, saraus e bailes que costumavam se estender até duas ou três horas da manhã. Essa era a agenda de um aristocrata ou mesmo daqueles com profissões supostamente aristocráticas, como os clérigos, oficiais da marinha ou médicos.
Para desgosto de Annabelle, logo ficou claro que o marido, apesar da riqueza e do inegável sucesso, não tinha uma profissão aristocrática. Por isso, às vezes se viam excluídos dos elegantes eventos da classe alta dos quais ela gostaria de participar. Eram convidados apenas quando um desses nobres possuía algum tipo de obrigação financeira com Simon ou se era um bom amigo de lorde Westcliff. Annabelle recebeu poucas visitas das jovens damas casadas que em outros tempos eram suas amigas e, embora nunca lhe dessem as costas quando era ela que fazia a visita, também mal a encorajavam a voltar. As fronteiras de classe e posição social eram intransponíveis. Mesmo uma viscondessa que havia empobrecido em função dos hábitos perdulários e o gosto para jogos do marido e vivia então em uma casa humilde, com apenas dois criados para atendê-la, parecia determinada a manter sua superioridade com relação a Annabelle.
Afinal de contas, seu marido, apesar dos defeitos que carregava, era um nobre; ao passo que Simon Hunt era um desprezível mercantilista.
Irritada com a recepção fria que lhe dispensara a mulher do visconde, Annabelle foi ver Lillian e Daisy a fim de reclamar acerca dos foras que recebera. Ambas se mostraram simpáticas e riram ao ouvir as queixas apaixonadas da moça recém-casada.
– Vocês precisavam ver a sala dela! – comentou Annabelle, caminhando de um lado para outro diante das irmãs, sentadas em um canapé da salinha de visitas. – Estava tudo empoeirado e esfarrapado, havia manchas de vinho pelo tapete, e a única coisa que a mulher fazia era torcer o nariz, lançando-me um olhar de pena por eu ter me casado com um homem aquém das minhas possibilidades. “Aquém das minhas possibilidades”, foi exatamente o que disse, quando todos sabem que o marido dela é um bêbado insano, que aposta cada xelim que tem. Ele pode ser um visconde, mas não é digno sequer de lamber as botas de Simon, e eu tive a maior dificuldade em me segurar para não dizer isso a ela.
– Por que se segurou? – perguntou Lillian com indiferença. – Eu teria dito exatamente o que pensava sobre o estúpido esnobismo dela.
– Porque não se ganha nada discutindo – disse Annabelle, franzindo o cenho. – Mesmo que Simon salvasse uma porção de pessoas de um afogamento, nunca seria encarado com a mesma admiração voltada para qualquer nobre gordo e velho que estivesse ali sentado e não levantasse um dedo sequer para ajudar.
Daisy ergueu de leve as sobrancelhas.
– Você se arrepende de não ter se casado com um aristocrata?
– Não – respondeu Annabelle de pronto e baixou a cabeça, subitamente envergonhada. – Mas acho que... acho que há momentos em que não consigo evitar o desejo de que Simon fosse um nobre.
Lillian olhou para a amiga com um pouco de preocupação.
– Se você pudesse voltar atrás e mudar as coisas, escolheria lorde Kendall em vez do Sr.
Hunt?
– Meu Deus, não! – Suspirando, Annabelle se sentou jogando o corpo sobre um banquinho de costura e as saias do vestido de seda verde estampado com flores miudinhas ondularam ao seu redor. – Não me arrependo da minha escolha, mas me incomoda não poder ir ao baile dos Wymark. Ou ao sarau em Gilbreath House. Ou a qualquer um desses eventos a que as pessoas da alta sociedade vão. Em vez disso, o Sr. Hunt e eu vamos a festas de pessoas muito diferentes.
– Que tipo de pessoas? – indagou Daisy.
Como Annabelle hesitava, Lillian respondeu com uma voz carregada de ironia.
– Acho que Annabelle está se referindo aos emergentes. Pessoas com novas fortunas, valores da classe baixa e modos vulgares. Em outras palavras, gente como nós.
– Não – disse Annabelle imediatamente, e as irmãs riram.
– Sim – retrucou Lillian com suavidade. – Você se casou com o nosso mundo, querida, e não pertence mais àquele outro habitado pela nobreza, assim como nós se não conseguirmos fisgar um marido com título. Para falar a verdade, eu não me incomodo nem um pouco de não me misturar com os Wymarks ou os Gilbreaths, que são todos enfadonhos até não poder mais e insuportavelmente cheios de si.
Annabelle a fitou com um ar pensativo, entendendo de repente a própria situação sob um novo e vantajoso ponto de vista.
– Nunca questionei o fato de eles serem enfadonhos – murmurou. – Acho que sempre quis chegar ao topo da hierarquia social e nem sequer parei para pensar se gostaria da vista lá de cima.
Mas agora essa questão parece não ter mais importância. E preciso encontrar um jeito de me adaptar a uma vida diferente da que pensei que gostaria de levar.
Apoiando os cotovelos nos joelhos, Annabelle descansou o queixo nas mãos e acrescentou com tristeza:
– Vou saber que terei conseguido quando não me incomodar por ser desprezada por uma viscondessa de cara branquela como soro de leite.
Ironicamente, os Hunts foram convidados naquela mesma semana para um baile oferecido por lorde Hardcastle, que possuía uma dívida secreta com Simon pelo aconselhamento sobre a forma de reestruturar o equilíbrio cada vez mais instável dos investimentos e espólios familiares. Foi um evento grande a que muita gente compareceu, e Annabelle não conseguiu evitar aquela animação que sentia, apesar de sua resolução. Com um vestido de cetim verde-limão, os cachos do cabelo presos por cordões de seda amarelos, Annabelle entrou no salão de baile de braço dado com Simon. O cômodo, que apresentava algumas colunas de mármore branco, era iluminado por oito fulgurantes lustres e havia no ar um perfume, que vinha dos enormes arranjos de rosas e peônias. Depois de aceitar uma taça de champanhe gelado, ela se misturou com prazer a amigos e conhecidos, deleitando-se com a serena elegância da festa. Essas eram as pessoas que ela sempre compreendeu e tratou de imitar: civilizadas, educadas, versadas sobre música, arte e literatura. Os cavalheiros jamais sonhariam em discutir política ou negócios diante de uma dama, e todos preferiam morrer fulminados a mencionar o custo das coisas.
Ela dançou muitas vezes, com Simon e outros homens, rindo, conversando de um jeito descontraído e descartando com habilidade os elogios que lhe faziam. No meio da noite, observou o marido do outro lado da sala conversando com uns amigos e sentiu uma vontade súbita de ir até ele. Depois de se livrar de dois rapazes insistentes, contornou o salão de baile, passando pelo corredor escuro por trás das colunas. Entre elas, havia sofás e poltronas dispostos de modo a proporcionar aos hóspedes um lugar para relaxar e conversar. Passou por um grupo de viúvas, depois por uma meia dúzia de moças solteironas e desconsoladas, o que a fez soltar um risinho de empatia. Quando passava por trás de duas mulheres, no entanto, ouviu umas palavras que a fizeram se deter e ficar escondida atrás de umas plantas exuberantes.
– ... não sei por que eles foram convidados esta noite – dizia uma delas enfurecida. Annabelle reconheceu a voz: era de uma velha amiga sua, agora Lady Wells-Troughton, que falara com ela apenas poucos minutos antes, com uma simpatia vacilante. – Como é presunçosa de ostentar aquele diamante vulgar no dedo e o marido mal-educado, sem um pingo de vergonha!
– Essa presunção não vai durar para sempre – retrucou a amiga. – Ela ainda não parece ter percebido que apenas são convidados para a casa das pessoas que têm alguma dívida com ele.
Ou daqueles que são amigos de Westcliff, é claro.
– Westcliff é um aliado importante – admitiu Lady Wells-Troughton. – No entanto, a influência dele pode ajudá-los somente até certo ponto. A verdade é que deveriam ter a decência de não comparecer aos locais a que não pertencem. Ela se casou com um plebeu e, portanto, devia andar com plebeus. Embora ela se ache, suponho eu, boa demais para eles...
Sentindo-se enojada e vazia, Annabelle se afastou sem ser vista pelas mulheres que fofocavam sobre ela e se dirigiu a um dos cantos do salão de baile.
Eu realmente devia abandonar esse costume de ouvir às escondidas, pensou com ironia ao se lembrar da noite em que escutara os comentários de Bertha Hunt a seu respeito. Pelo visto, só ouço as pessoas falarem coisas nada lisonjeiras sobre mim.
Não se surpreendeu que houvesse boatos sobre Simon e ela, porém o que a deixara perplexa havia sido a crueldade no tom das mulheres. Era difícil imaginar o que podia causar tanta antipatia – a não ser, talvez, pura inveja. Annabelle tinha conseguido um marido bonito, viril e rico, ao passo que Lady Wells-Troughton se casara com um nobre pelo menos trinta anos mais velho do que ela, cujo carisma era igual ao de um vaso de planta. Não era de estranhar que Lady Wells-Troughton e as contemporâneas estivessem decididas a proteger a única superioridade que possuíam: o fato de serem da aristocracia.
Annabelle se lembrou do comentário de Philippa: “Um homem que se dedica ao comércio nunca será tão influente como um aristocrata...” No entanto, parecia que a aristocracia sentia medo do crescente poder dos empresários industriais como Simon. Poucos eram tão inteligentes quanto lorde Westcliff para perceber que precisavam fazer mais do que se aferrar a antigos privilégios de proprietários de terras para manter seu poder. De pé em meio a duas colunas, Annabelle deu uma olhada à sua volta para a multidão aristocrática que ocupava o aposento – tão arrogante, tão convicta de sua forma tradicional de pensar e agir, tão determinada a ignorar que o mundo ao seu redor começava a mudar. Ainda assim, achava a companhia deles infinitamente mais reconfortante do que o tosco e despreparado comportamento dos profissionais amigos de Simon. No entanto, já não os via com receio ou temor. Na verdade...
Os pensamentos de Annabelle foram interrompidos por um cavalheiro que se aproximara, levando duas taças de champanhe gelado. Era careca e corpulento, e as dobras de seu pescoço eram visíveis acima da gravata. Ela gemeu consigo mesma ao reconhecê-lo. Era lorde Wells-Troughton, o marido da dama que a criticara com tanto ressentimento. A avidez com que dirigiu o olhar aos seus seios cobertos pelo pálido cetim a fez perceber que ele não devia compartilhar da opinião da esposa de que era melhor se Annabelle tivesse escolhido não comparecer ao baile.
Lorde Wells-Troughton, conhecido pela propensão que tinha em manter casos extraconjugais, havia se aproximado no ano anterior sugerindo, com ênfase, que estava disposto a ajudá-la com suas dificuldades financeiras em troca da companhia dela. O fato de ela ter lhe virado as costas não parecia tê-lo desencorajado. Assim como a notícia de seu casamento. Para aristocratas como ele, o casamento não significava um impedimento para uma aventura – por vezes, servia até de incentivo. De fato, os nobres até preferiam não se envolver com alguém solteiro. E aventuras amorosas eram um privilégio muito apreciado por cavalheiros e damas casados. Nada era tão atraente para um nobre quanto a jovem esposa de outro homem.
– Sra. Hunt – cumprimentou Wells-Troughton em tom jovial, estendendo-lhe uma das taças de champanhe, que ela aceitou com um sorriso frio de agradecimento. – Está tão bela esta noite quanto uma rosa de verão.
– Obrigada, senhor – disse Annabelle, recatada.
– A que devemos atribuir esse seu evidente resplendor de felicidade, minha querida?
– Ao meu recente casamento, senhor.
O lorde sorriu.
–Ah, eu me lembro bem dos meus primeiros dias de casado. Desfrute do prazer enquanto durar, afinal, é muito fugaz.
– Talvez para alguns. Para outros, pode durar uma vida inteira.
– Minha querida, que deliciosa ingenuidade a sua. – Ele lhe deu um sorriso e voltou o olhar para os seios dela. – Mas não pretendo contrariar suas ideias românticas, visto que desaparecerão no seu devido tempo.
– Duvido muito – retrucou Annabelle, fazendo-o soltar uma gargalhada.
– Hunt tem se mostrado um marido satisfatório então?
– Em todos os aspectos – assegurou-lhe ela.
– Venha, deixe-me ser seu confidente. Vamos encontrar um canto mais apropriado para a nossa conversa. Conheço vários.
– Não tenho dúvidas de que conhece, senhor – replicou Annabelle mais que depressa –, mas não sinto necessidade de fazer confidências.
– Pois eu insisto em roubar um pouco do seu tempo. – Wells-Troughton pôs uma de suas mãos gordas na parte baixa da coluna de Annabelle. – Não será tão tola de fazer um escândalo, não é?
Sabendo que a única defesa que tinha seria deixar às claras sua persistência, ela sorriu e começou a se afastar, tomando um gole de champanhe com uma estudada despreocupação.
– Não me atreveria a ir a lugar algum com o senhor. Receio que meu marido seja um tanto ciumento.
E deu um pulo quando ouviu a voz de Simon atrás dela.
– Com bons motivos para isso, ao que me parece.
Embora tenha falado em voz baixa, havia um quê de mordacidade em seu tom, o que alarmou Annabelle. Ela o fitou em silêncio, suplicando-lhe para que não fizesse uma cena. Lorde Wells-Troughton era irritante, mas inofensivo, e Simon os faria passar vergonha se exagerasse em sua reação.
– Hunt – murmurou o corpulento aristocrata com um sorriso e sem um pingo de vergonha. –
Você é um homem afortunado por possuir um prêmio tão delicioso.
– É, sou sim. – O olhar de Simon era abertamente ameaçador. – E se voltar a se aproximar dela...
– Querido – interrompeu-o Annabelle com um sorriso afetado. – Adoro esse seu jeito brusco, mas vamos deixar isso para depois do baile.
Simon não respondeu. Continuou olhando para o corpulento lorde até sua postura ameaçadora atrair a atenção das pessoas que estavam nas proximidades.
– Acho bom que fique longe da minha esposa – disse em voz baixa, deixando o outro pálido.
– Boa noite, senhor – acrescentou Annabelle, que tomou o resto da taça e lançou ao sujeito um radiante sorriso artificial. – Obrigada pelo champanhe.
– É um prazer, Sra. Hunt. – Foi a resposta de Wells-Troughton, batendo em retirada.
Rubra de constrangimento, Annabelle evitou os olhares curiosos dos outros convidados e abandonou o salão de baile seguida de Simon. Foi até uma varanda, onde largou a taça e permitiu que a suave brisa esfriasse as bochechas abrasadas.
– O que ele disse a você? – perguntou Simon bruscamente, parado diante dela.
– Nada de importante.
– Ele estava se insinuando. Qualquer um podia ver isso.
– Mas ele não significa nada, assim como qualquer pessoa que estivesse aqui. Eles são todos assim, você sabe muito bem que essas coisas não devem ser levadas a sério. Para eles, a fidelidade é apenas um... um preconceito da classe média. E se um homem se aproxima da mulher de outro, como o Sr. Wells-Troughton fez, ninguém dá a menor importância a isso...
– Eu dou a maior importância quando estão abordando a minha esposa.
– Mas se reagir de forma tão beligerante vai nos fazer ser motivo de chacota e, além disso, mostrará que não tem qualquer confiança na minha fidelidade.
– Mas não foi você mesma quem acabou de dizer que as pessoas da sua classe não acreditam em fidelidade?
– Eles não são da minha classe! – exclamou Annabelle, perdendo a paciência. – Pelo menos desde que me casei com você, de modo algum! Nem sei mais a que classe pertenço agora.... Não me sinto parte dessa gente, assim como não me sinto parte do seu grupo também.
A expressão dele não se alterou, mas ela pôde perceber que o ferira. Instantaneamente arrependida, ela suspirou e esfregou a testa.
– Simon, não tive a intenção de...
– Tudo bem – disse ele asperamente. – Vamos voltar lá para dentro.
– Mas quero explicar...
– Não tem que me explicar nada.
– Simon... – Ela estremeceu e se calou quando ele a levou de volta para o salão. Desejava de todo o coração poder apagar aquelas palavras impulsivas.
CAPÍTULO 24
Como Annabelle temia, a acusação impetuosa que fizera no baile em Hardcastle havia criado uma pequena, mas inegável distância, entre ela e o marido. Desejava pedir desculpas e explicar que não o culpava por nada. No entanto, seus esforços para lhe dizer que não se arrependia de ter se casado com ele foram discreta e firmemente rejeitados. Simon, que estava sempre disposto a discutir qualquer coisa, pusera um ponto final ao assunto. Sem querer, ela o atingira com a precisão delicada de um estilete, e a reação dele revelava certa culpa por tê-la afastado do mundo da alta sociedade ao qual ela um dia sonhara pertencer.
Para alívio de Annabelle, a relação entre eles não demorou a voltar a ser como antes; divertida, provocante e até mesmo carinhosa. Ainda assim, sentia-se incomodada com a sensação de que as coisas não se encontravam completamente iguais. Houve momentos em que Simon foi mais cauteloso, pois agora ambos sabiam que ela possuía o poder de machucá-lo. Parecia que só lhe permitiria se aproximar até certo ponto, mantendo certa distância para se proteger. No entanto, ele a ajudaria e apoiaria sempre que precisasse dele. E provou isso na noite em que um problema surgiu de uma forma inesperada.
Simon voltara para casa excepcionalmente tarde, depois de ter passado o dia todo na Consolidated Locomotive. Com o cheiro forte de fumaça de carvão, petróleo e metais, voltou para o Rutledge com as roupas no pior estado possível.
– O que estava fazendo? – perguntou Annabelle, surpresa e alarmada com a aparência dele.
– Andando pela fundição – respondeu Simon, tirando o colete e a camisa assim que cruzou a porta do quarto deles.
Annabelle lhe lançou um olhar cético.
– Você fez mais do que simplesmente “andar”. O que são essas manchas nas suas roupas?
Parece que estava tentando construir a locomotiva sozinho.
– Houve um momento em que alguma ajuda extra foi necessária. – Seus músculos bem trabalhados se revelaram quando Simon deixou a camisa cair no chão. Ele parecia estar com um bom humor fora do comum. Sendo um homem forte, adorava se exercitar, especialmente quando tinha algum risco envolvido.
Franzindo a testa, Annabelle foi preparar um banho para ele e, quando voltou, encontrou o marido enrolado nos lençóis. Havia uma contusão do tamanho de um punho na perna dele, e uma marca vermelha de queimadura no pulso, o que a fez exclamar ansiosa.
– Você se machucou! O que houve?
Simon pareceu momentaneamente intrigado com a preocupação dela e com a forma como ela se aproximou.
– Não é nada – disse ele, estendendo as mãos para pegar na cintura dela.
Empurrando as mãos dele, Annabelle se ajoelhou para inspecionar a contusão na perna.
– Como isso aconteceu? – perguntou, tocando a borda da lesão com a ponta do dedo. – Foi na fundição, não foi? Simon Hunt, quero que você fique longe desse lugar! Todos aqueles guindastes, tonéis e caldeiras... Da próxima vez, provavelmente vai ser esmagado, fervido ou perfurado e ficará cheio de buracos...
– Annabelle... – A voz de Simon aparentava bom humor. Inclinando-se para agarrar os cotovelos da mulher, ele a puxou para cima. – Não posso falar com você quando está ajoelhada na minha frente assim. Não de forma coerente. Posso explicar exatamente o que... – Ele parou, com os olhos escuros cintilando estranhamente quando viu a expressão no rosto dela. – Você está chateada, não está?
– Qualquer esposa estaria se o marido chegasse em casa nessas condições!
Simon deslizou a mão por trás do pescoço dela e apertou levemente.
– Não acha que está exagerando um pouco? É só uma contusão e uma queimadura leve.
Annabelle fez uma careta.
– Primeiro me diga o que aconteceu, depois decido como irei reagir.
– Quatro homens tentavam puxar uma placa de metal para fora de um forno com pinças de cabo longo. Eles precisavam levá-la para uma armação onde poderia ser enrolada e prensada. A placa de metal acabou sendo um pouco mais pesada que o esperado, e, quando ficou claro que estavam prestes a deixar a maldita placa cair, peguei outro par de pinças e fui ajudar.
– E por que um dos outros fundidores não ajudou?
– Eu me encontrava de pé ali e mais próximo do forno. – Simon deu de ombros, fazendo um esforço para tornar o episódio mais leve. – Eu me contundi quando dei com o joelho na armação antes que conseguíssemos baixar a placa, e a queimadura aconteceu quando a pinça de algum deles roçou no meu braço. Mas não faz mal. Logo estarei curado.
– Ah, foi só isso? – perguntou ela. – Você só estava levantando centenas de quilos de ferro em brasa sem nenhuma proteção? Que bobagem a minha ficar preocupada.
Simon pegou o rosto dela e se aproximou até seus lábios roçarem a bochecha de Annabelle.
– Você não tem que se preocupar comigo.
– Alguém precisa fazê-lo. – Annabelle estava bem ciente da força e da solidez do corpo dele, assim tão perto do dela. Aqueles ossos grandes, másculos e fortes. Mas Simon não era invulnerável ou indestrutível. Era apenas um ser humano, e a constatação de como a segurança dele se tornara tão importante para ela a surpreendia. Afastando-se do marido, Annabelle foi verificar a água do banho e virou-se para trás dizendo: – Você está cheirando a trem.
– Com uma chaminé enorme – respondeu ele, indo atrás dela.
Annabelle bufou debochadamente.
– Se está tentando ser engraçado, pode parar. Estou furiosa com você.
– Por quê? – murmurou Simon, pegando-a por trás. – Porque eu me machuquei? Confie em mim, todas as suas partes favoritas ainda estão funcionando. – Ele beijou a lateral do pescoço dela.
Annabelle enrijeceu o corpo, resistindo ao abraço.
– Não poderia me importar menos se você pulasse de cabeça em um tonel de ferro fundido, se é assim tão bobo para ir a uma fundição sem roupas de proteção e...
– Elixir do demo. – Simon encostou o nariz nos cachos delicados do cabelo dela, enquanto uma mão deslizava para encontrar seu seio.
– O quê? – perguntou Annabelle, querendo saber se ele acabara de proferir um novo comentário pecaminoso.
– Elixir do capeta... É assim que eles chamam o ferro fundido. – Os dedos dele circularam o formato dos seios dela, reforçados por um molde artificial que os deixava em pé e firmes dentro do espartilho. – Meu Deus, o que você tem debaixo deste vestido?
– Meu novo corpete estruturado. – A peça de vestuário da moda, importada de Nova York, fora fortemente engomada e prensada por um molde de metal, dando-lhe mais rigidez e estrutura do que o espartilho convencional.
– Não gosto disso. Não posso sentir os seus seios.
– Não é para sentir mesmo – disse Annabelle com uma paciência exagerada, revirando os olhos enquanto ele percorria os seios dela com as mãos, apertando para experimentar. – Simon...
O seu banho...
– Quem foi o idiota que inventou o espartilho? – perguntou irritado, soltando-a.
– Um inglês, é claro.
– Só podia ser. – Ele a seguiu quando ela foi fechar as torneiras no banheiro.
– Minha costureira me contou que os espartilhos eram usados como uma marca de servidão.
– Por que está tão disposta a usar uma marca de servidão?
– Porque todo mundo usa e, se eu não usasse, minha cintura pareceria tão grande quanto a de uma vaca.
– “Vaidade, teu nome é mulher” – citou ele, deixando os lençóis caírem no piso.
– E suponho que os homens usem gravatas porque são excessivamente confortáveis, não é? –
perguntou Annabelle docemente, observando o marido entrar na banheira.
– Eu uso gravata porque, se não o fizer, as pessoas vão pensar que eu sou ainda menos civilizado do que elas supõem. – Abaixando-se com cuidado na banheira que não fora projetada para um homem das proporções de Simon, ele soltou um assobio de deleite quando a água quente envolveu seu corpo.
Chegando mais perto dele, Annabelle passou os dedos no cabelo espesso e murmurou:
– Elas não sabem da missa a metade. Aqui... Não ponha o braço na água. Vou ajudá-lo a se lavar.
Enquanto o ensaboava, Annabelle avaliou prazerosamente o longo e bem-trabalhado corpo do marido.
Lentamente as mãos dela deslizaram pelos músculos definidos, alguns lugares com veias saltadas e delineados, outros suaves e contínuos. Sendo a criatura sensual que era, Simon não fez qualquer esforço para esconder seu prazer, observando-a preguiçosamente com os olhos semicerrados. A respiração dele estava acelerada, embora controlada, e seus músculos se enrijeceram feito metal com o toque dos dedos dela.
O silêncio naquele cômodo de azulejos era quebrado apenas pelo murmúrio da água e o som da respiração dos dois. Em devaneio, Annabelle entremeou os dedos no emaranhado de pelos ensaboados no peito do marido, lembrando-se da sensação deles nos seios enquanto o corpo dele se movia sobre o dela.
– Simon... – sussurrou ela.
Com os cílios erguidos, os olhos escuros do marido a fitaram. Uma grande mão deslizou sobre a dela, pressionando-a para o firme contorno do seu peito.
– Sim?
– Se alguma coisa acontecesse a você, eu... – Ela parou quando ouviu o som de batidas na porta da suíte. A fantasia fora quebrada pelo som intrusivo. – Humm... Quem pode ser?
A interrupção causou aborrecimento em Simon.
– Você pediu alguma coisa?
Fazendo que não com a cabeça, Annabelle se levantou e pegou uma toalha para secar as mãos.
– Ignore.
Ela sorriu ironicamente quando a batida tornou-se mais insistente.
– Não acho que o nosso visitante vá desistir com tanta facilidade. Preciso ir ver quem é. – Ela saiu do banheiro e fechou a porta devagar, permitindo que Simon terminasse o banho com privacidade.
Caminhando para a entrada da suíte, Annabelle abriu a porta.
– Jeremy! – O prazer que sentia com a visita inesperada do irmão desapareceu de imediato quando viu a expressão dele. O rosto jovem encontrava-se pálido e sério, e a boca desenhava uma linha sinistra. Ele estava sem chapéu e sem casaco, e o cabelo era uma desordem selvagem.
– Jeremy, tem alguma coisa errada? – perguntou ela, convidando-o a entrar na suíte.
– Pode-se dizer que sim.
Vendo o pânico contido no olhar dele, ela o fitou com crescente preocupação.
– Diga-me o que aconteceu.
Jeremy passou a mão pelo cabelo, fazendo com que os fios castanho-claros grossos ficassem de pé.
– O fato é... – Ele fez uma pausa com uma expressão de espanto, como se não pudesse acreditar no que diria a seguir.
– O fato é o quê? – indagou Annabelle.
– O fato é que... a nossa mãe acabou de esfaquear uma pessoa.
Annabelle olhou para o irmão com uma expressão confusa. Aos poucos, uma carranca apoderou-se das feições dela.
– Jeremy – disse ela com firmeza –, esta é a brincadeira mais desagradável que você já pregou em...
– Não é uma brincadeira! Queria muito que fosse.
Annabelle não fez qualquer esforço para esconder seu ceticismo.
– Quem ela supostamente esfaqueou?
– O Sr. Hodgeham. Um dos velhos amigos de papai, lembra-se dele?
De repente, a cor sumiu do rosto de Annabelle e um arrepio de horror percorreu seu corpo.
– Sim. – Ela se ouviu sussurrar. – Eu me lembro dele.
– Aparentemente, ele foi lá em casa esta noite enquanto eu estava fora com meus amigos.
Voltei mais cedo e, assim que cruzei o portão, vi sangue no chão de entrada.
Annabelle balançou de leve a cabeça, tentando encontrar as palavras.
– Segui a trilha em direção à sala – continuou Jeremy –, onde encontrei a cozinheira histérica e o criado tentando limpar uma poça de sangue do tapete, enquanto mamãe permanecia ali parada como uma estátua, sem dizer uma palavra. Havia uma tesoura ensanguentada em cima da mesa, a que ela usa para bordar. De acordo com o que consegui arrancar dos criados, Hodgeham entrou na sala com mamãe, houve barulho de discussão, em seguida, ele saiu cambaleando com as mãos apertando o peito.
A mente de Annabelle começou a trabalhar no dobro da velocidade habitual, os pensamentos passando pela sua cabeça loucamente. Ela e Philippa sempre esconderam a verdade de Jeremy, que em geral encontrava-se na escola quando Hodgeham aparecia. Até onde Annabelle sabia, o irmão nunca suspeitara que o homem visitava a casa. Ele ficaria arrasado se soubesse que uma parte do dinheiro que pagara suas mensalidades na escola fora dada em troca de... Não, ele não deveria saber. Ela teria que arranjar outra explicação. Mais tarde. A coisa mais importante no momento era proteger Philippa.
– Onde está Hodgeham agora? – perguntou Annabelle. – E quão grave foi o ferimento?
– Não faço ideia. Parece que ele foi para a entrada dos fundos, onde a carruagem o esperava, e o criado e o motorista dele o levaram embora. – Jeremy balançou a cabeça freneticamente. –
Não sei onde mamãe o esfaqueou, ou quantas vezes, ou mesmo o motivo. Ela não vai dizer...
Apenas olha para mim como se não conseguisse se lembrar do próprio nome.
– Onde ela está agora? Não me diga que a deixou em casa sozinha?
– Recomendei ao criado que não tirasse os olhos dela e não deixar que ela... – Jeremy parou e dirigiu um olhar cauteloso para um ponto além do ombro de Annabelle. – Olá, Sr. Hunt. Sinto muito por interromper a noite de vocês, mas eu vim porque...
– Sim, eu ouvi. Pude escutar sua voz do outro lado do quarto. – Simon ficou parado ali calmamente enquanto enfiava uma camisa limpa para dentro das calças e, com o olhar atento, observava Jeremy.
Virando-se, Annabelle congelou ao ver o marido. Havia momentos em que se esquecia de como ele podia ser intimidador, mas, naquele instante, com os olhos impiedosos e a completa falta de expressão, ele parecia tão perverso quanto um assassino de aluguel.
– Por que Hodgeham foi à nossa casa a essa hora? – perguntou Jeremy em voz alta, seu rosto jovem repleto de preocupação. – E por que diabos ela o recebeu? E o que a teria provocado a este ponto? Ele deve ter enganado mamãe de alguma forma. Deve ter dito algo sobre papai... Ou talvez até tentado algo com ela, aquele porco imundo.
No silêncio tenso que se seguiu às inocentes especulações de Jeremy, Annabelle abriu a boca para dizer alguma coisa, e Simon balançou de leve a cabeça, como sinal para que permanecesse calada. Ele voltou a atenção para Jeremy, com a voz calma e tranquila.
– Jeremy, corra para os estábulos na parte de trás do hotel e peça para prepararem a minha carruagem. Peça também para selarem o meu cavalo. Depois disso, vá para casa, recolha o tapete e as roupas manchadas de sangue e leve-os para as obras da locomotiva, o primeiro edifício no lote. Mencione o meu nome, e o gerente não vai lhe fazer perguntas. Há uma fornalha...
– Sim – disse Jeremy, entendendo no mesmo instante. – Vou queimar tudo.
Simon lhe deu um aceno breve, e o rapaz caminhou em direção à porta sem dizer outra palavra sequer.
Assim que Jeremy deixou a suíte do hotel, Annabelle virou-se para o marido.
– Simon, eu... eu quero encontrar minha mãe.
– Você pode ir com Jeremy.
– Não sei onde o Sr. Hodgeham pode estar...
– Vou encontrá-lo – disse Simon, severo. – Só reze para que o ferimento seja superficial. Se ele morrer, vai ser muito mais difícil encobrir essa confusão.
Annabelle assentiu, mordendo o lábio antes de dizer:
– Pensei que estivéssemos finalmente livres do Hodgeham. Nunca imaginei que ele se atreveria a incomodar minha mãe de novo, depois que me casei com você. Parece que nada o deterá.
Ele colocou as mãos nos ombros dela e disse com uma suavidade quase assustadora:
– Eu vou detê-lo. Pode ter certeza disso.
Ela o olhou com uma expressão preocupada.
– O que você está planejando fa...?
– Conversaremos mais tarde. Agora, vá buscar o seu manto.
– Sim, Simon – sussurrou ela, e correu para o armário.
Quando Annabelle e Jeremy chegaram à casa de sua mãe, encontraram Philippa sentada na escada, segurando um copo de licor nas mãos. Ela parecia encolhida e quase infantil, e o coração de Annabelle se contorceu no peito ao ver a mãe de cabeça baixa.
– Mamãe – murmurou, sentando-se no degrau ao lado dela. Abraçou-a. Jeremy, por outro lado, assumiu um tom sério enquanto ordenava ao criado que o ajudasse a enrolar o tapete da sala de visitas e o levasse para a carruagem do lado de fora. Em meio à preocupação que sentia, Annabelle não podia deixar de pensar que ele estava lidando com a situação extraordinariamente bem para um menino de 14 anos.
Philippa levantou a cabeça e olhou para Annabelle, desolada.
– Sinto muito.
– Não, não sinta...
– Justo quando pensei que tudo finalmente caminhava bem, Hodgeham veio me ver... Ele disse que queria continuar a me visitar, e que se eu não concordasse, ele contaria sobre nosso acordo para todo mundo. Disse que arruinaria todos nós e me transformaria em uma figura de escárnio público. Chorei e implorei, e ele riu... Então, quando pôs as mãos em mim, senti algo crescendo aqui dentro. Vi a tesoura por perto e não pude deixar de pegá-la... Tentei matá-lo.
Espero que tenha conseguido. Não me importo com o que vai acontecer comigo agora.
– Acalme-se, mamãe – murmurou Annabelle, passando um braço em torno dos ombros dela.
– Ninguém pode culpá-la pelo que fez. Lorde Hodgeham era um monstro e...
– Era? – perguntou Philippa, entorpecida. – Isso significa que ele está morto?
– Não sei. Mas tudo vai ficar bem independentemente de... Jeremy e eu estamos aqui, e o Sr.
Hunt não vai deixar nada acontecer a você.
– Mamãe – chamou Jeremy, levantando uma ponta do tapete enrolado, enquanto ele e o criado o levavam para a porta na parte de trás da casa –, você sabe onde a tesoura está? – A pergunta foi feita de forma tão casual se podia pensar que ele precisava dela para cortar a fita de algum pacote.
– A cozinheira está com ela, acho – respondeu Philippa. – Ela está tentando limpá-la.
– Tudo bem, vou pegar a tesoura com ela. – À medida que avançava pelo corredor, Jeremy acrescentou: – Dê uma olhada nas suas roupas, pode ser? É preciso dar um fim a qualquer coisa com manchas de sangue.
– Sim, querido.
Ouvindo-os, Annabelle não pôde deixar de se perguntar como é que ela e a família estavam tendo uma conversa tão fortuita em uma noite de quinta-feira sobre os elementos da prova de um crime. E pensar que um dia sentira um pouco de superioridade em relação à família de Simon...
Encolheu-se com esse pensamento.
Duas horas depois, Philippa terminara sua bebida e foi em segurança para a cama. Simon e Jeremy haviam chegado com poucos minutos de diferença um do outro. Conversaram brevemente no hall de entrada. Assim que Annabelle desceu as escadas, parou quando viu Simon abraçar o irmão e bagunçar o cabelo dele já despenteado. O gesto paternal pareceu tranquilizar Jeremy imensamente, e um sorriso cansado surgiu em seu rosto. Annabelle congelou observando os dois.
Era surpreendente a facilidade com que Jeremy aceitara Simon, visto que Annabelle esperava que ele se rebelasse contra a autoridade do marido. Dava-lhe uma sensação estranha testemunhar o vínculo que havia se estabelecido de imediato entre eles, especialmente sabendo, como ela sabia, que a confiança de Jeremy não era conquistada com facilidade. Até o momento, não tinha pensado no alívio que devia ter sido para o irmão ter alguém forte em quem se apoiar, alguém que poderia fornecer soluções para os problemas com os quais não saberia como lidar sozinho por ser tão jovem. A luz amarela da lâmpada do hall de entrada se refletiu nas camadas do cabelo escuro de Simon e fez brilhar suas maçãs do rosto quando ele a fitou.
Sentindo uma desconcertante onda de emoções perpassar seu corpo, Annabelle desceu os últimos degraus e perguntou:
– Você encontrou Hodgeham? E se o encontrou...
– Sim, eu o encontrei. – Pegando o manto que fora posto sobre o corrimão, Simon o colocou sobre os ombros dela. – Venha, vou lhe contar tudo a caminho de casa.
Annabelle virou-se para o irmão.
– Jeremy, você vai ficar bem se formos embora?
– Tenho tudo sob controle – respondeu o menino com uma confiança viril.
Os olhos de Simon brilharam divertidos enquanto ele passava a mão pela cintura de Annabelle.
– Vamos – murmurou.
Assim que entraram na carruagem, Annabelle começou a fazer um milhão de perguntas, até que Simon tapou-lhe a boca com uma das mãos.
– Vou contar tudo assim que se acalmar – disse ele. Ela assentiu, movendo a cabeça por trás da mão que cobria os lábios, e ele sorriu, inclinando-se para substituir os dedos pela boca.
Depois de roubar um beijo rápido, ele se acomodou na cadeira e assumiu um ar sério. –
Encontrei Hodgeham em casa, com a presença do médico de família. E foi bom eu ter aparecido, já que eles haviam convocado um policial e estavam à espera da chegada dele.
– Como você convenceu os criados a deixá-lo passar da porta de entrada?
– Atravessei rápido e pedi que me levassem a Hodgeham imediatamente. A confusão era tamanha que ninguém ousou recusar. Um criado me mostrou o quarto no andar de cima, onde o médico costurava a ferida de Hodgeham. – O humor negro tomou conta da expressão de Simon.
– Claro que eu poderia ter encontrado o local apenas seguindo os gritos e uivos do bastardo.
– Bom – disse Annabelle com veemente satisfação. – Seja qual for a dor que lorde Hodgeham esteja sofrendo, ela não é o bastante, na minha opinião. Como ele estava, e o que disse quando você apareceu no quarto?
Simon curvou um dos cantos da boca com evidente desgosto.
– Foi apenas uma ferida no ombro, e pequena. E a maior parte do que ele disse é melhor não repetir. Depois de deixar que ele discursasse por alguns minutos, eu disse ao médico que esperasse na sala ao lado, para que eu pudesse ter uma conversa particular com Hodgeham. Eu lhe disse que me sentia muito triste pela sua terrível indigestão... O comentário o confundiu, até que expliquei que seria melhor para os interesses dele se descrevesse o estado de saúde para os amigos e familiares como uma enfermidade do estômago em vez de uma punhalada.
– E se ele não fizesse como pediu? – perguntou Annabelle com um leve sorriso.
– Se ele não fizesse, deixei claro que eu é que iria fatiá-lo como uma peça de presunto Yorkshire. E se escutasse o menor rumor maculando a reputação da sua mãe, ou a da família, disse que ninguém encontraria restos mortais suficientes para um enterro decente, e a culpa seria toda dele. Quando terminei, Hodgeham estava apavorado demais até para respirar. Acredite em mim, ele nunca mais vai se aproximar da sua mãe. Quanto ao médico, compensei-o pela visita e o convenci a banir o episódio de sua mente. Eu teria saído depois disso, mas tive que esperar pelo policial.
– E o que você disse a ele?
– Falei que fora um equívoco e que na verdade não precisavam dele. E para compensar o fato de ele ter se deslocado até lá, disse que fosse à taberna Brown Bear quando o turno acabasse e pedisse quantas rodadas de cerveja quisesse por minha conta.
– Graças a Deus. – Extremamente aliviada, Annabelle se aconchegou ao lado dele e suspirou no ombro de Simon.
– E quanto a Jeremy? O que vamos dizer a ele?
– Não é necessário que ele saiba a verdade, só iria prejudicá-lo e confundi-lo. Pelo que sei, Philippa exagerou perante os avanços de Hodgeham e teve aquela reação no momento. – Simon acariciou o queixo dela com a ponta do polegar. – Tenho uma sugestão e gostaria que você pensasse a respeito.
Suspeitando que essa “sugestão” fosse um comando, Annabelle olhou para ele com desconfiança.
– O quê?
– Acho que seria melhor se Philippa ficasse distante de Londres, e de Hodgeham, por tempo suficiente para a poeira baixar.
– Quão distante? E para onde ela iria?
– Ela pode acompanhar minha mãe e minha irmã na viagem pelo continente. Elas partirão em apenas alguns dias...
– Essa é a pior ideia que já ouvi! – exclamou Annabelle. – Quero que ela fique aqui mesmo, onde Jeremy e eu possamos cuidar dela. E em segundo lugar, posso lhe garantir que a sua mãe e a sua irmã não ficariam nem um pouco contentes...
– Vamos incluir Jeremy na viagem. Ele tem tempo suficiente antes do próximo período escolar e vai ser um excelente acompanhante para as três.
– Coitado de Jeremy... – Annabelle tentou imaginar o irmão escoltando o trio de mulheres por toda a Europa. – Eu não desejaria tal destino ao meu pior inimigo.
Simon sorriu.
– Ele provavelmente vai aprender muito sobre as mulheres.
– Mas nada do que vai aprender será agradável – respondeu ela. – Por que acha que é necessário levar minha mãe para longe de Londres? Será que lorde Hodgeham ainda representa algum tipo de perigo?
– Não – murmurou ele, inclinando levemente o rosto para cima. – Já lhe disse, ele nunca mais vai se atrever a se aproximar de Philippa. No entanto, se surgir qualquer problema com Hodgeham, prefiro lidar com isso enquanto ela estiver longe. Além disso, Jeremy disse que ela não tem sido ela mesma. Compreensível, dadas as circunstâncias. Algumas semanas passeando devem fazer com que ela se sinta melhor.
Assim que Annabelle considerou a ideia, precisou admitir que havia algum sentido naquilo.
Passara-se um longo tempo desde que Philippa tivera qualquer tipo de férias. E, se Jeremy fosse com ela, talvez até a companhia das Hunts pudesse ser tolerada. Quanto ao que Philippa desejaria... Ela parecia muito abalada para tomar qualquer decisão. Era provável que concordasse com quaisquer planos que Annabelle e Jeremy fizessem.
– Simon... – principiou ela lentamente – você está pedindo a minha opinião, ou está me dizendo o que decidiu de antemão?
O olhar de Simon percorreu o rosto dela avaliando a expressão da esposa.
– O que seria melhor para fazer com que você concordasse? – Ele riu suavemente, enquanto lia a resposta no rosto dela. – Tudo bem... Estou pedindo a sua opinião.
Annabelle sorriu ironicamente e se aconchegou na curva do ombro dele.
– Então, se Jeremy concordar... eu também concordo.
CAPÍTULO 25
Annabelle ainda não havia perguntado a Simon como Bertha e Meredith Hunt tinham recebido a notícia sobre os novos companheiros de viagem, e ela certamente não estava ansiosa para ouvir a resposta. Tudo o que importava era que Philippa estaria bem longe de Londres e do que a fizesse se lembrar de lorde Hodgeham. Annabelle esperava que quando a mãe regressasse, estivesse revigorada e pronta para um novo começo. A viagem poderia até proporcionar algum prazer a Jeremy, que se encontrava ansioso para ver alguns dos lugares sobre os quais aprendera na escola.
Menos de uma semana antes da partida, Annabelle se dedicou a arrumar as malas para a mãe e o irmão, tentando antecipar o que precisariam em uma viagem de seis semanas. Achando engraçadíssima a quantidade de suprimentos que Annabelle havia comprado para eles, Simon observou que as pessoas pensariam que a família dela viajaria para regiões de mata virgem em vez de ficar hospedada em hotéis e pensões.
– Viagens para fora do país podem ser desconfortáveis às vezes – respondeu Annabelle, ocupada, colocando latas de chá e biscoitos em uma maleta de couro. Uma pilha de caixas e encomendas erguia-se ao lado da sua cama, onde ela organizava vários objetos por categoria.
Entre outras coisas, havia separado artigos de farmácia, um par de travesseiros e roupa de cama extra, uma caixa com material de leitura, e uma seleção de comida embalada. Segurando um frasco de vidro de conserva, examinou-o criticamente. – A comida é diferente no continente...
– Sim – disse Simon com gravidade. – Ao contrário da nossa, ela é conhecida por ser mais saborosa.
– E o clima pode ser imprevisível.
– Céu azul e ensolarado? Ah, eles vão querer evitar a todo o custo.
Ela respondeu ao escárnio de Simon com um olhar ríspido.
– Sem dúvida você deve ter coisas melhores para fazer em vez de me observar abrindo caixas.
– Não quando você está fazendo isso no quarto.
Empertigando-se, Annabelle cruzou os braços sobre o peito e lançou um olhar desafiador para ele.
– Acho que vai ter que controlar seus instintos, Sr. Hunt. Talvez não tenha notado, mas a lua de mel acabou.
– A lua de mel não termina até que eu diga – informou Simon, estendendo a mão para agarrá-la antes que ela pudesse evitá-lo. Ele tomou seus lábios com um beijo dominador e jogou-a na cama. – O que significa que não há escapatória para você.
Dando risadinhas, Annabelle se debateu no emaranhado de saias e logo se encontrou presa ao colchão com o corpo de Simon deitado sobre o dela.
– Tenho que preparar mais coisas para pôr nas malas – protestou ela, enquanto ele se posicionava entre suas coxas. – Simon...
– Por acaso já mencionei que consigo abrir botões com os dentes?
Uma risada abafada escapou-lhe, e ela se contorceu baixando a cabeça na direção do corpete.
– Não é uma habilidade das mais práticas, não acha?
– É útil em determinadas situações. Deixe que eu mostre para você...
Pouquíssimas coisas foram postas nas malas durante o resto do dia.
Entretanto, logo, logo Annabelle estava de pé diante da porta da casa de sua família na cidade, vendo a mãe e o irmão partirem em uma carruagem com destino a Dover, onde se encontrariam com as Hunts e seguiriam para Calais.
Simon ficou ao seu lado, com uma das mãos descansando confortavelmente nas costas dela enquanto viam a carruagem virar na esquina e se dirigir à rua principal. Ela acenou para os dois, perguntando-se como iriam se virar sem ela.
Puxando-a para dentro da casa, Simon fechou a porta.
– É melhor assim – garantiu ele.
– Para eles ou para nós?
– Para todas as partes envolvidas. – Sorrindo um pouco, ele se virou para encará-la. – Eu prevejo que as próximas semanas passarão rapidamente. E nesse meio-tempo você vai estar muito ocupada, Sra. Hunt. Para começar, esta manhã vamos nos encontrar com um arquiteto para falar sobre os planos da casa, e você vai ter que decidir entre dois lotes que o nosso corretor encontrou em Mayfair.
Annabelle encostou a cabeça no peito dele.
– Graças a Deus. Eu estava começando a me desesperar por nunca sair do Rutledge. Não que eu não tenha gostado, entenda, mas toda mulher quer uma casa própria, e... – Ela fez uma pausa enquanto sentia que ele brincava com o cabelo dela, que estava preso. – Simon – alertou ela –, não puxe os grampos. Dá muito trabalho arrumar tudo de novo quando... – Ela suspirou e franziu a testa quando sentiu o afrouxamento na cabeça e ouviu o plinc dos grampos batendo no chão.
– Não consigo me conter. – Os dedos dele trabalharam avidamente desenrolando a trança. –
Você tem um cabelo tão lindo... – Ele pegou um punhado de cabelo e esfregou o rosto nele. – É
tão macio. E cheira a flores. Como faz para ele ficar tão cheiroso?
– Sabonete – respondeu Annabelle secamente, escondendo um sorriso. – Sabonete das Bowmans, na verdade. Daisy me deu um pouco, o pai delas envia caixas de Nova York.
– Humm... Não é à toa que é milionário. Toda mulher deveria cheirar assim. – Ele puxou o cabelo dela com os dedos e se inclinou para acariciar seu pescoço. – Onde mais você o usa? –
sussurrou ele.
– Eu o convidaria a descobrir – disse ela –, mas vamos nos encontrar com o arquiteto, lembra?
– Ele pode esperar.
– E você também – retrucou severamente, embora uma risada teimasse em escapar de sua garganta. – Meu Deus, Simon, até parece que você foi privado de algo. Eu me esforcei bastante para satisfazê-lo...
Ele tomou a boca da esposa com um beijo tão quente e persuasivo que todo o racionalismo desapareceu da mente dela. Pondo as grandes mãos no cabelo cheiroso, ele a encostou na parede do hall de entrada e a penetrou com a língua, beijando-a devagar a ponto de Annabelle ficar com a cabeça leve e tonta, seus dedos segurando o tecido das mangas do casaco. Aos poucos, a boca de Simon se afastou da dela, e ele mordeu suavemente a pele sedosa e delicada de seu pescoço.
Murmurou coisas que a chocaram, expressando-se não em frases poéticas, mas com a simplicidade crua de um homem cujo desejo por ela não conhecia limites.
– Não tenho autocontrole quando se trata de nós dois. A cada minuto que não estou com você, tudo o que consigo pensar é em estar dentro de você. E odeio tudo o que a mantém afastada de mim.
Ele chegou por trás dela e puxou com força a parte de trás do vestido. Ela quase engasgou quando sentiu a fila de botões voarem, espalhando pedaços de marfim esculpido por todo lado.
Sufocando o som com a boca, Simon puxou o vestido dos braços dela e deliberadamente pisou na barra da saia. A peça se rasgou e caiu no chão. Ele a puxou de encontro ao próprio corpo, agarrando-lhe o pulso e levando sua mão para os quadris dela. Annabelle respirou fundo e manteve os olhos semicerrados enquanto seus dedos moldavam a dura ereção de Simon.
– Quero fazer você gritar, arranhar e desmaiar nos meus braços – sussurrou ele, e a incipiente barba roçou a pele dela. – Preciso tocá-la em todos os lugares, dentro e fora, em tudo que eu puder... – Deteve-se e tomou seus lábios com firme pressão, cedendo a um desejo selvagem, como se o gosto dela fosse um estimulante exótico que o levasse ao delírio. Annabelle teve a vaga sensação de que ele mexia no bolso do paletó, e então algo encostou nos nós de seu espartilho; ele os cortara com uma faca, e ela sentiu o aperto e a compressão em torno das costelas e da cintura diminuírem.
Percebendo que estava prestes a ser violada na entrada da casa de sua família, Annabelle cambaleou para trás, sorrindo e tremendo. Mesmo em seus momentos de maior excitação, Simon sempre parecia estar se controlando, impondo restrições cuidadosas sobre a própria paixão. Ela nunca tivera medo de que ele não fosse gentil com ela... Até agora. Ele parecia quase selvagem, com o rosto tingido por um rubor diferente. O coração dela começou a bater em pancadas dolorosas, e ela umedeceu os lábios. O nervoso movimento de sua língua chamou de imediato a atenção de Simon, que olhou para a boca de Annabelle com uma intensidade surpreendente.
– Meu quarto... – ela conseguiu dizer, voltando-se para as escadas. Ela começou a subir a escada com as pernas bambas. Depois dos primeiros passos, sentiu Simon indo atrás dela depressa, alcançando-a e pegando-a com os braços musculosos. Antes que ela pudesse fazer qualquer som, ele a carregou nos braços e subiu o resto da escada com uma facilidade quase assustadora.
No quarto, ela notou que a figura escura do marido contrastava com os babados, as rendas pálidas e esfarrapadas, os moldes de bordados emoldurados que haviam sido costurados por suas mãos infantis. Despindo-a de modo veloz, Simon colocou-a entre os lençóis da cama, que eram suaves e tinham um cheiro de guardado devido à falta de uso. As roupas dele logo se juntaram às dela no chão e, em seguida, seu corpo cobriu o dela. Ela respondeu à sua urgência com uma vontade inequívoca, os braços estendidos para segurá-lo, as pernas se rendendo facilmente ao seu primeiro toque. Ele a penetrou com suavidade, preenchendo-a com sua farta espessura.
Annabelle perdeu o fôlego e moveu o corpo, no esforço de acomodá-lo. Assim que se viu dentro dela, Simon tornou-se mais gentil, sua urgência transformando-se em uma intensidade devastadora. Parecia que cada parte dele fora projetada para lhe dar prazer, desde seus músculos rijos e os pelos grossos que esfregava suavemente em seus mamilos ao aroma e sabor que embriagavam seus sentidos.
Dominada pela intimidade avassaladora, Annabelle sentiu os olhos se encherem de lágrimas, e Simon a confortou com murmúrios suaves, sem parar os movimentos cada vez mais profundos e demorados, recebendo mais do que ela achava que era possível dar. Sua boca roçou a dela, absorvendo sua respiração irregular, enquanto se movia excessivamente, em impulsos que faziam todos os seus músculos se contraírem de tensão. Ela gemia em seus lábios, implorando sem palavras que ele a satisfizesse. Cedendo finalmente, ele acelerou o ritmo e a levou a um clímax tão intenso, fazendo-os alcançar natural e maravilhosamente toda a potência do momento.
Minutos mais tarde, Annabelle estava entorpecida sobre o corpo dele e, com o rosto aninhado em seu ombro, tentou perceber a perplexidade dos próprios sentidos. Ela nunca se sentira tão satisfeita, completamente tomada de prazer. E, no entanto, percebeu algo novo no quesito fazer amor... Havia algo quase inatingível, para além do que eles tinham acabado de experimentar...
Alguma possibilidade latente que se encontrava um pouco fora do alcance. Um sentimento... Um desejo... Uma coisa tentadora que não tinha nome. Fechando os olhos, Annabelle se deleitou com a proximidade do corpo dele, enquanto essa promessa indescritível assombrava o ar como algum espírito benevolente.
Cada vez mais curiosa com o projeto que exigia tanta atenção do marido, Annabelle perguntou a Simon se poderia visitar a empresa fabricante de locomotivas e apenas obteve recusas, desvios e táticas variadas para impedi-la de ir ao local. Percebendo que por algum motivo Simon não queria levá-la até lá, ela se tornou cada vez mais determinada.
– Apenas uma visita rápida – insistiu ela certa noite. – Só quero dar uma olhada no local. Não vou tocar em nada. Pelo amor de Deus, depois de ouvir você falar tanto sobre essa fabricante de locomotivas, não tenho o direito de ver como é?
– É muito perigoso – respondeu Simon sem rodeios. – Uma mulher não tem o que fazer em um lugar cheio de máquinas pesadas e milhares de tonéis de elixir do capeta em ebulição...
– Você vem me dizendo há semanas como é seguro e como não existe absolutamente razão alguma para me preocupar quando você vai lá... E agora está me dizendo que é perigoso?
Percebendo o erro tático, Simon fez uma careta.
– O fato de ser seguro para mim não significa que é seguro para você.
– Por que não?
– Porque você é mulher.
Fervendo como um dos tonéis de elixir do capeta que ele havia mencionado, Annabelle o encarou com os olhos semicerrados.
– Vou responder a isso daqui a pouco – murmurou ela –, se eu conseguir controlar o desejo de atingi-lo com o objeto pesado que estiver mais próximo.
Simon andava de lá para cá pela sala, evidentemente frustrado e tenso. Então parou diante do sofá em que ela repousava e olhou para a esposa.
– Annabelle – disse ele com a voz rouca –, visitar uma fundição é como olhar através das portas do inferno. O lugar é tão seguro quanto conseguimos deixar, mas, mesmo assim, é barulhento, áspero e sujo. E sim, há sempre a chance de ser perigoso, e você... – Ele parou e passou os dedos pelos cabelos, olhando em volta, impaciente, como se de repente fosse difícil encará-la. Relutante, ele se forçou a prosseguir: – Você é muito importante para mim, não posso arriscar a sua segurança de forma alguma. É minha responsabilidade protegê-la.
Os olhos de Annabelle se arregalaram. Ela ficou tocada e, mais ainda, surpresa com a revelação de que era importante para ele. Quando olharam um para o outro, ela sentiu uma tensão peculiar... Não desagradável, mas inquietante. Apoiando a cabeça na própria mão, ela o observou atentamente.
– A sua vontade de querer me proteger é mais do que bem-vinda – murmurou ela. – No entanto, não quero ficar trancada em uma torre de marfim. – Sentindo o conflito interior dele, Annabelle continuou racionalmente. – Quero saber mais sobre o que você faz durante as horas em que está longe de mim. Quero conhecer o lugar que é tão importante para você. Por favor.
Simon meditou em silêncio por um momento. Quando respondeu, havia um inconfundível mau humor em seu tom.
– Tudo bem. Já que é evidente que não terei paz se não concordar, eu a levarei lá amanhã.
Mas não me culpe se ficar decepcionada. Eu avisei quanto ao que deve esperar.
– Obrigada – afirmou Annabelle com satisfação, dando-lhe um sorriso radiante que abafou um pouco as palavras ditas por Simon em seguida.
– Felizmente, Westcliff estará visitando a fundição amanhã também. Será uma boa oportunidade para vocês dois se conhecerem melhor.
– Que bom – disse Annabelle em uma tentativa frágil de agradar, lutando contra a tentação de se demonstrar furiosa com a notícia.
Ainda não havia perdoado o conde pelas observações a seu respeito e pela previsão de que o casamento iria arruinar a vida de Simon. No entanto, se Simon achava que a perspectiva de estar na companhia de um idiota pomposo como Westcliff iria dissuadi-la, estava redondamente enganado. Com um sorriso amarelo no rosto, ela passou o resto da noite pensando que era uma pena a mulher não poder escolher os amigos do marido por ele.
Mais tarde na manhã seguinte, Simon levou Annabelle ao lote de nove hectares da fabricante Consolidated Locomotive. As fileiras de prédios cavernosos haviam sido equipadas com uma grande quantidade de chaminés, expelindo fumaça sobre pátios e passarelas que se cruzavam. A empresa era ainda maior do que Annabelle esperava; os equipamentos de construção eram tão gigantescos que a deixaram sem fala. O primeiro lugar que visitaram foi a oficina de montagem, onde nove motores de locomotivas encontravam-se em várias fases de produção. A meta da empresa era produzir quinze motores no primeiro ano e o dobro no seguinte. Ao saber que os custos operacionais da empresa eram, em média, de um milhão de libras por semana, com uma capitalização de duas vezes essa quantidade, Annabelle olhou para o marido com espanto e queixo caído:
– Meu Deus – disse ela baixinho. – Quão rico você é?
Os olhos escuros de Simon pareciam contentes com aquela pergunta indiscreta, e ele se inclinou para murmurar em seu ouvido:
– Rico o suficiente para mantê-la bem alimentada e bem-vestida, minha senhora.
Em seguida, foram para a oficina de protótipos, onde os desenhos das peças eram cuidadosamente examinados e modelos em madeira eram construídos de acordo com as especificações. Mais tarde, como Simon explicara a ela, esses modelos de madeira seriam usados para fazer moldes, nos quais o ferro fundido seria derramado e resfriado. Fascinada, Annabelle fez uma série de perguntas sobre o processo de fundição e o funcionamento das rebitadoras hidrostáticas e prensas, e por que o ferro resfriado bem rápido era mais forte do que o resfriado lentamente.
Apesar do receio inicial, Simon parecia estar gostando de passear com ela pelos edifícios, sorrindo de vez em quando para a expressão superinteressada da esposa. Ele a guiou com cuidado para a fundição, onde ela descobriu que a descrição de Simon sobre o mesmo que olhar para o inferno não era o exagero que achou que fosse. Não tinha nada a ver com a condição dos trabalhadores, que pareciam bem-tratados, nem com os edifícios, relativamente organizados. Era a natureza do trabalho em si, uma espécie de tumulto coordenado em que a fumaça, o ruído trovejante e o brilho vermelho de fornos rugindo criavam um cenário efervescente para os funcionários pesadamente vestidos e carregando marretas. Com certeza, operários do diabo não eram tão bem-orquestrados como estes no desempenho do seu trabalho. Movendo-se através do labirinto de fogo e aço, os fundidores abaixavam os guindastes com tonéis de elixir do capeta e faziam uma pausa proposital, para permitir que enormes placas de metal balançassem pelos seus designados caminhos. Annabelle estava ciente de alguns olhares curiosos lançados em sua direção, mas a maioria dos fundidores encontrava-se demasiadamente atenta à sua tarefa para se permitir distrações.
Guindastes foram colocados ao longo do centro da fundição, içando vagões cheios de lascas de ferro, sucata e carvão de coque em direção aos fornos cilíndricos a mais de vinte metros de altura. A mistura de ferro era colocada no topo dos fornos, onde era fundida e passada para conchas gigantes que em seguida vertiam aquele líquido em moldes com o auxílio de guindastes adicionais. Os odores de combustível, metal e suor humano deixavam o ar pesado. Assim que Annabelle observou o ferro derretido ser transferido de cubas para moldes, ela instintivamente se aproximou de Simon.
Angustiada pelos sons e gemidos incessantes do metal derretendo, o apito surpreendente das máquinas a vapor e o reverberar do impacto de um grande martelo operado por seis homens, Annabelle se viu hesitando a cada novo estrondo. Instantaneamente, sentiu Simon passar os braços em torno dela, enquanto se envolvia em uma conversa amigável, meio gritada, com o gerente da oficina de fundição, o Sr. Mawer.
– Você ainda não viu lorde Westcliff? – perguntou Simon. – Ele havia planejado chegar à fundição ao meio-dia e nunca o vi se atrasar.
O fundidor de meia-idade limpou o rosto suado com um lenço quando respondeu:
– Acredito que o conde esteja no edifício de montagem, Sr. Hunt. Ele tinha certa preocupação sobre as dimensões dos novos cilindros de moldagem e queria inspecioná-los antes que fossem aparafusados no devido lugar.
Simon olhou para Annabelle.
– Vamos sair – disse a ela. – Está muito quente e barulhento para esperar Westcliff aqui.
Aliviada com a ideia de escapar do calor incessante da fundição, Annabelle concordou de imediato. Agora que havia conhecido o lugar por completo, sua curiosidade fora satisfeita, e estava pronta para sair, mesmo que significasse ter que passar o tempo na companhia de lorde Westcliff. Enquanto Simon fez uma pausa para trocar algumas últimas palavras com Mawer, ela observou enquanto um fole a vapor era utilizado para soprar o ar para o grande forno central. A rajada de ar fazia com que o metal quente corresse em conchas cuidadosamente posicionadas, cada uma contendo mil quilos de líquido instável.
Uma grande quantidade amontoada de sucata de ferro foi despejada na parte superior do forno – uma quantidade excessiva, aparentemente, o que fez um capataz gritar com raiva para o fundidor que carregara o vagão. Estreitando os olhos, Annabelle os observou com atenção.
Algumas mensagens ásperas de advertência dos homens no topo da galeria anunciando outro jato de ar do fole a vapor – então aconteceu um desastre. O ferro fervendo rapidamente transbordou das conchas e caiu borbulhando do forno, com algumas porções invadindo os guindastes. Simon parou no meio da conversa com o gerente da oficina e ambos olharam para cima ao mesmo tempo.
– Jesus. – Ela ouviu Simon dizer e teve um vislumbre do rosto do marido antes que ele a empurrasse para o chão e a cobrisse com o próprio corpo.
Ao mesmo tempo, dois coágulos do elixir do capeta, cada um do tamanho de uma abóbora, caíram nas calhas de resfriamento logo abaixo, desencadeando uma série de explosões instantâneas.
O impacto dos estouros foi como uma sucessão de detonações em força total. Annabelle não possuía qualquer fôlego para gritar enquanto Simon se debruçava sobre ela, com os ombros curvados como um escudo sobre a cabeça da esposa. E, em seguida...
Silêncio.
No início, parecia que o movimento de rotação da Terra sofrera uma parada brusca.
Desorientada, Annabelle piscou para clarear a visão e foi agredida pelo brilho intenso do fogo; as formas das máquinas pareciam silhuetas de monstros das ilustrações da época medieval.
Explosões intermitentes de calor atingiram-na com tanta força que ameaçaram deixá-la em osso puro. Rajadas de lascas e limalhas de ferro voaram pelo ar como se tivessem sido disparadas de uma arma. Ela encontrava-se cercada por um turbilhão de movimento e caos, tudo isso coberto por um silêncio impressionante. De repente, sentiu um estalo em seus ouvidos, que foram preenchidos com um tom metálico, de alta-frequência.
Estava sendo arrastada pelo chão. Simon deu um puxão forte nos seus braços, trazendo-a para cima com um poderoso movimento. Sem reação contra a força do momento, ela se aconchegou no peito dele. Ele lhe dizia algo – ela quase conseguia decifrar o som da voz dele, mas começou a ouvir o barulho de pequenos estouros e da corrente de fogo que consumia avidamente o edifício. Olhando fixo para o rosto impassível de Simon, tentou compreender suas palavras, mas distraíra-se com a chuva de lascas de metal quente que salpicavam seu rosto e pescoço como um enxame de insetos que picam desagradavelmente. Impulsionada mais pelo instinto do que pela razão, ela golpeava inutilmente o ar com a mão.
Simon a empurrou e a arrastou por meio do pandemônio enquanto tentava protegê-la com o corpo. Uma caldeira rolou devagar à frente deles, placidamente esmagando tudo em seu caminho. Xingando, Simon empurrou Annabelle para trás enquanto o objeto se deslocava. Havia homens em todos os lugares, empurrando, pulando e gritando, desesperados para sobreviver enquanto se dirigiam às saídas em ambas as extremidades do edifício. Um novo conjunto de erupções balançou a fundição, acompanhado por gritos ríspidos. O ar estava quente demais para respirar, e Annabelle se perguntou meio tonta se eles seriam assados vivos antes de chegarem à porta de saída.
– Simon! – gritou ela, agarrando-se à sua cintura definida – Pensando bem... Acho que você estava certo.
– Sobre o quê? – perguntou ele, com o olhar fixo na entrada da fundição.
– Este lugar é muito perigoso para mim!
Simon se abaixou e a colocou em cima do ombro, levando-a por meio dos guindastes derrubados e equipamentos desabados, com o braço segurando firme ao redor dos joelhos dela.
Balançando, impotente, Annabelle viu buracos sangrentos no paletó, e se deu conta de que a explosão fizera estilhaços de metal voar nas costas do marido no momento em que ele a cobriu com o corpo. Cruzando obstáculo após obstáculo, Simon enfim chegou à porta e pôs Annabelle de pé. Ele a assustou ao empurrá-la decididamente para alguém, gritando para que a levasse dali.
Virando-se, Annabelle descobriu que Simon a entregara ao Sr. Mawer.
– Leve-a para fora – ordenou Simon com a voz rouca. – Não pare até que ela esteja completamente fora do edifício.
– Sim, senhor! – O gerente da oficina agarrou Annabelle com firmeza.
Enquanto era obrigada a seguir à força para a entrada, olhava para trás na direção de Simon.
– O que vai fazer?
– Tenho que me assegurar de que todos saiam.
Ela estremeceu de terror.
– Não! Simon, venha comigo...
– Vou sair em cinco minutos – disse ele bruscamente.
O rosto de Annabelle se contorceu, e ela sentiu lágrimas de fúria nos olhos.
– Em cinco minutos, o edifício vai estar totalmente queimado.
– Continue – disse ele a Mawer, e se afastou.
– Simon! – gritou ela, tentando se libertar quando ele desapareceu na fundição.
No teto havia uma onda de chama azul, e as máquinas no prédio estalavam enquanto eram destruídas pelo calor intenso. Fumaça negra saía das portas, contrastando estranhamente com as nuvens brancas no ar. Annabelle logo descobriu que se debater contra o abraço de Mawer era inútil. Inspirou profundamente o ar exterior, tossindo com os pulmões irritados para tentar expulsar a fumaça. O gerente não parou até colocá-la em uma trilha de cascalho, ordenando com ênfase para que permanecesse naquele local.
– Ele vai sair – afirmou. – Você vai ficar aqui e aguardar por ele. Prometa que não vai se mover, Sra. Hunt... Preciso tomar conta de todos os meus homens e não quero ter um problema extra com você.
– Não vou me mover – disse Annabelle automaticamente, com o olhar fixo na entrada da fundição. – Vá.
– Sim, senhora.
Ela estava parada sobre o cascalho, olhando atordoada para a porta da fundição e percebeu um furor de atividade ao seu redor. Homens passaram por ela correndo, enquanto outros rastejavam feridos. Alguns, como ela, ficaram imóveis como estátuas, encarando as chamas com olhares vazios. O fogo rugia com uma força que fazia o chão vibrar, ganhando vida nova e raivosa ao consumir a fundição. Uma bomba de mão puxada por duas dezenas de homens rolou para perto do edifício – deve ter sido mantida no local para emergências, porque não houve tempo suficiente para que enviassem ajuda externa. Freneticamente, os homens procuraram conectar uma mangueira de sucção de couro a uma cisterna subterrânea. Pegando as alças laterais, começaram a bombear com um esforço concentrado, produzindo bastante pressão na câmara de ar do motor para enviar uma corrente de água a uma centena de metros no ar. O
esforço foi lamentavelmente inútil contra a magnitude daquele inferno.
Cada minuto que Annabelle esperava parecia um ano. Sentiu os lábios se movendo, sussurrando palavras silenciosas... Simon, saia... Simon, venha...
Uma meia dúzia de silhuetas cambalearam na entrada, com rostos e roupas enegrecidos pela fumaça. O olhar de Annabelle passou em revista os homens que emergiam dali. Percebendo que o marido não estava entre eles, mudou sua atenção para a bomba de mão. Os homens haviam dirigido a mangueira para o edifício adjacente, encharcando-o em um esforço de conter a propagação do fogo. Annabelle balançou a cabeça sem querer acreditar quando se deu conta de que tinham dado a fundição por perdida. Estavam desistindo de todo o seu conteúdo – incluindo qualquer um que pudesse estar preso lá dentro. Chocada com a constatação, ela correu para o outro lado da fundição, examinando desesperadamente a multidão para encontrar qualquer sinal do marido.
Avistando um dos gerentes da oficina que fazia um inventário dos fundidores evacuados, Annabelle correu na direção dele.
– Onde está o Sr. Hunt? – perguntou ela abruptamente, precisando repetir a pergunta antes que ele prestasse atenção.
Ele quase não olhou para ela e respondeu com uma impaciência distraída.
– Teve outro colapso lá dentro. O Sr. Hunt foi ajudar a libertar um fundidor, que estava preso por detritos. Não foi visto desde então.
Apesar do calor escaldante que irradiava da fundição, ela sentiu um frio perpassar a pele e chegar aos ossos. Sua boca tremia.
– Se ele fosse capaz de sair – disse ela –, já estaria aqui agora. Ele precisa de ajuda. Alguém pode ir lá procurá-lo?
O gerente da oficina olhou para Annabelle como se ela fosse louca.
– Lá dentro? Seria suicídio.
Afastando-se dela, ele se dirigiu a um homem que se encontrava caído no chão, e se inclinou para colocar um casaco embolado embaixo de sua cabeça. Quando pensou em olhar novamente para onde ela se achava por último, o lugar estava vazio.
CAPÍTULO 26
Mesmo que alguém tivesse notado que uma mulher se esgueirava para dentro do prédio, não tentaram impedi-la. Cobrindo a boca e o nariz com um lenço, Annabelle atravessou a fumaça ácida que fez os olhos semicerrados lacrimejarem. O fogo, que começara do outro lado da fundição, vinha pelas vigas, em ondulações voluptuosas de azul, branco e amarelo, consumindo tudo pelo caminho. Mais assustador do que o calor escaldante eram os ruídos das chamas aumentando, o som do metal se torcendo e o estalar das máquinas pesadas se partindo como brinquedos quando esmagados com os pés. Por vezes, rajadas de metal líquido eram expelidas.
Segurando as saias desajeitadamente, Annabelle tropeçou sobre os escombros fumegantes e caiu de joelhos, chamando por Simon, mas sua voz falhou. Quando começou a se desesperar para encontrá-lo, viu um movimento nos escombros.
Falando aos berros, correu em direção ao corpo caído. Era Simon, vivo e consciente, com a perna presa sob o eixo de aço de um guindaste. Quando ele a viu, com o rosto sujo de fuligem e contorcido de horror, esforçou-se para se sentar.
– Annabelle – disse ele com a voz rouca, fazendo uma pausa quando foi atacado por uma crise de tosse. – Maldita seja, não... dê o fora daqui! O que diabos está fazendo?
Ela fez que não com a cabeça, não querendo perder fôlego na argumentação. O guindaste era pesado demais para qualquer um deles moverem; ela precisava encontrar alguma coisa, alguma alavanca que pudesse desalojá-lo. Enxugando os olhos ardentes, procurou em uma pilha de pedaços de pedras britadas e em um monte de cargas de contrapeso. Tudo estava coberto com camadas de óleo e fuligem, o que fazia com que escorregasse enquanto se movia em meio aos destroços. Havia uma fileira de rodas encostadas na parede estremecida, algumas mais altas do que ela mesma. Annabelle caminhou naquela direção e encontrou uma pilha de eixos e bastões grossos como o seu punho. Segurando uma dessas pesadas varas revestidas de graxa, ela a puxou da pilha e a arrastou em direção ao marido.
Era só fitar Simon para perceber que ele a fuzilava com os olhos.
– Annabelle – esbravejou ele, entre espasmos de tosse –, saia deste prédio agora!
– Não sem você. – Ela tateou desajeitadamente um bloco de madeira colocado na saída de um bate-estacas hidrostático.
Torcendo e puxando a perna imobilizada, Simon a cobriu de ameaças e palavrões enquanto ela arrastava o bloco de madeira para onde ele se encontrava e o empurrava contra o guindaste.
– É muito pesado! – exclamou ele, enquanto ela lutava com a vara. – Você não pode movê-lo! Saia daqui! Maldita seja, Annabelle...
Grunhindo com o esforço, ela colocou a vara sobre o bloco de madeira e posicionou-a embaixo do guindaste. Empurrou para baixo, usando todo o peso do corpo. O guindaste permaneceu solidamente no lugar, indiferente aos esforços dela. Com um suspiro de frustração, ela lutou com a alavanca e finalmente a haste rangeu. Não adiantou nada, o guindaste não se moveria.
Um alto estalo disparou, e cacos de ferro voaram pelo ar, fazendo com que ela se abaixasse e cobrisse a cabeça. Então sentiu uma pancada tão forte no braço a ponto de jogá-la no chão. Uma dolorosa queimadura surgiu na região e, ao olhar para baixo, viu que uma lasca de metal penetrara sua pele, provocando um esguicho de sangue vermelho brilhante. Rastejando para Simon, ela foi aconchegada no peito do marido, e ele a protegeu até que a chuva de ferro diminuísse.
– Simon – disse ela, ofegante, virando-se para olhar nos olhos avermelhados dele. – Você sempre carrega uma faca. Onde ela está?
Ele ficou perplexo com a pergunta. Por uma fração de segundo, ela viu que ele pesava a possibilidade, então balançou a cabeça.
– Não – murmurou ele –, mesmo que conseguisse cortar a minha perna, não conseguiria me arrastar daqui. – Ele a empurrou para longe. – Não há tempo... você tem que sair desta maldita fundição! – Quando viu a recusa no rosto dela, suas feições se contorceram de medo, não por si, mas por ela. – Meu Deus, Annabelle – falou raivoso, e então finalmente passou a implorar –, não faça isso. Por favor. Se você se importa mesmo comigo... – Uma crise repentina de tosse tomou conta do corpo dele. – Vá. Vá.
Por um instante, Annabelle quis obedecer, o desejo de escapar daquele pesadelo infernal quase a dominou. Mas ao se levantar cambaleando e olhar para ele no chão, tão grande e ainda assim tão indefeso, não conseguia ir embora. Em vez disso, pegou a vara mais uma vez e a colocou de volta sobre o bloco de madeira, enquanto a dor atravessava o ombro lesionado.
Sangue retumbava em seus ouvidos, tornando-se impossível distinguir a fúria de Simon do barulho do edifício estremecendo em torno deles. E isso provavelmente era bom, já que ele parecia louco de tanta raiva. Ela puxou e se pendurou na alavanca, enquanto seus pulmões torturados e asfixiados inspiravam e sofriam espasmos em resposta. Ela enxergava embaçado, mas continuou a exercer toda a força restante na barra de ferro, o ligeiro peso se esforçando para movê-la.
De repente, ela sentiu algo agarrar a parte de trás do seu vestido. Se tivesse qualquer fôlego para gritar, era o que teria feito. Assustada e fora do juízo normal, Annabelle manteve-se obstinada enquanto era arrastada para trás e as mãos eram erguidas da barra. Asfixiada, soluçando e cega pela fumaça, conseguiu distinguir uma forma esguia e escura que se formava atrás dela. A voz fria reverberou em seu ouvido.
– Vou levantar o guindaste. Puxe a perna dele quando eu mandar.
Reconheceu o tom autoritário antes mesmo de ver o rosto. Westcliff, pensou com espanto.
Era realmente o conde, com a camisa branca rasgada e suja, as feições manchadas pela fuligem.
No entanto, apesar de tudo, parecia calmo e capaz quando fez sinal para ela se aproximar de Simon. Levantando a barra de ferro com facilidade, posicionou habilmente a alavanca sob o eixo do guindaste. Embora fosse apenas de estatura média, o corpo magro era sólido e incrivelmente em forma, condicionado por anos de esforço físico. Enquanto Westcliff empurrava a vara para baixo com uma poderosa investida, Annabelle ouviu os estalos do metal se torcendo, e o enorme guindaste se moveu para cima uns poucos centímetros cruciais. O conde gritou para Annabelle, que puxou a perna de Simon freneticamente, ignorando o gemido de agonia dele enquanto era arrastado por debaixo do objeto que o esmagara.
Abaixando o guindaste com um estrondo, Westcliff foi ajudar Simon a ficar de pé, passando o ombro por baixo do braço de Simon a fim de levantá-lo e apoiar o lado ferido. Annabelle sustentou o outro lado e encolheu-se quando ele a agarrou em um aperto de punição. A fumaça e o calor a dominaram, tornando impossível enxergar, respirar ou pensar. Uma crise repentina de tosse chacoalhou seu corpo esguio. Se tivesse sido deixada à própria sorte, nunca teria sido capaz de encontrar o caminho para fora da fundição. Foi arrastada e empurrada para a frente pelo aperto brutal de Simon e ocasionalmente levantada enquanto cruzavam os destroços no chão, com canelas, tornozelos e joelhos sendo dolorosamente agredidos. A jornada tortuosa parecia durar uma eternidade e, acompanhando o progresso deles, a fundição balançava e rugia como uma besta que paira sobre a presa ferida. A mente de Annabelle divagava. Ela lutou para permanecer consciente, apesar da visão estar cheia de faíscas cintilantes e de uma escuridão convidativa atrás delas.
Jamais conseguiu se lembrar do momento em que saíram da fundição com as roupas enfumaçadas, o cabelo chamuscado e os rostos enrugados de calor. Tudo o que ela pôde se lembrar mais tarde era de que haviam inúmeros pares de mãos tocando-a, e de que as pernas doloridas tinham sido subitamente aliviadas do fardo do próprio peso. Desmoronando devagar nos braços de alguém, sentiu que era erguida enquanto seus pulmões trabalhavam com avidez para obter ar limpo. Um pano molhado e salgado foi passado em seu rosto, e mãos desconhecidas adentraram o seu vestido para desatar o espartilho. Não tinha forças nem para se importar.
Tomada por uma grande exaustão, entregou-se aos brutos cuidados e engoliu o conteúdo de uma concha de metal pressionada em sua boca.
Quando finalmente voltou a si, Annabelle piscou várias vezes para deixar o colírio se espalhar pela superfície dos globos oculares ardentes.
– Simon...? – murmurou ela, lutando. Foi suavemente contida.
– Descanse por um minuto. – Veio uma voz grave. – Seu marido está bem. Um pouco maltratado e queimado, mas fora de perigo. Eu nem acho que a perna machucada esteja quebrada.
À medida que recobrava a consciência, percebeu com espanto que estava meio sentada no colo de Westcliff, no chão, com o vestido parcialmente desfeito. Olhando para cima, para o rosto austero e afilado do conde, viu que a pele bronzeada apresentava manchas pretas dispersas e que o cabelo encontrava-se desgrenhado e sujo. O normalmente impecável conde parecia tão simpático, despenteado e quase humano que ela mal o reconheceu.
– Simon... – sussurrou ela.
– Ele está sendo carregado para a minha carruagem agora mesmo. Não preciso nem dizer que está impaciente para que você esteja ao lado dele. Estou levando ambos para Marsden Terrace...
Já mandei chamar um médico para nos encontrar lá. – Westcliff posicionou-a um pouco mais acima em seus braços. – Por que foi atrás dele? Você poderia ter se tornado uma viúva muito rica. – A pergunta não foi feita em tom de zombaria, mas com um interesse amável que a confundiu.
Em vez de responder, Annabelle voltou a atenção para uma mancha sangrenta no ombro dele.
– Fique quieto – murmurou ela, usando as unhas quebradas para agarrar a ponta de um fragmento metálico fino que saía de sua camisa. Ela o puxou rapidamente, e o rosto de Westcliff se contorceu de dor.
Olhando para o pedaço de metal enquanto ela segurava para que ele o visse, o conde balançou a cabeça tristemente.
– Meu Deus. Não havia notado isso.
Escondendo o objeto nos dedos, Annabelle perguntou com cautela:
– Por que o senhor entrou lá?
– Fui informado de que você tinha corrido para um prédio em chamas para procurar seu marido e pensei em oferecer os meus serviços... Talvez abrir uma porta, afastar um objeto do caminho... Esse tipo de coisa.
– Você foi bastante útil – disse ela propositadamente imitando seu tom suave, e ele sorriu, mostrando os dentes brancos no rosto enegrecido pela fumaça.
Com todo o cuidado, Westcliff a ajudou a se sentar. Mantendo o braço atrás das costas dela, ele prendeu os fechos de seu vestido com um toque hábil enquanto contemplava a devastação completa da fundição.
– Apenas dois homens morreram, e outro está desaparecido – murmurou ele. – É um milagre, considerando a dimensão do desastre.
– Isso significa o fim da fabricante?
– Não, espero que consigamos reconstruir o mais rápido possível. – O conde olhou gentilmente para o rosto exausto de Annabelle. – Mais tarde você pode me descrever o que aconteceu. Por ora, permita que eu a leve até a carruagem.
Ela engasgou um pouco quando ele se levantou e a pegou em seus braços.
– Ah... Não é preciso...
– É o mínimo que posso fazer. – Westcliff deu outro raro sorriso radiante enquanto a levava com facilidade. – Tenho algumas reparações a fazer, no que concerne a sua pessoa.
– Quer dizer que agora acredita que eu realmente me preocupo com Simon em vez de ter me casado com ele apenas por dinheiro?
– Algo assim. Parece que eu estava enganado a seu respeito, Sra. Hunt. Por favor, aceite meu humilde pedido de desculpas.
Suspeitando que o conde raramente fosse dado a pedir desculpas de qualquer tipo, muito menos as humildes, Annabelle passou os braços em volta do pescoço dele.
– Suponho que eu tenha que aceitar – disse ela a contragosto –, já que salvou a nossa vida.
Ele a deixou mais confortável em seus braços.
– A um novo começo, então?
– A um novo começo – concordou ela e tossiu no ombro de Westcliff.
Enquanto o médico visitava Simon no quarto principal da Marsden Terrace, Westcliff encaminhou Annabelle para outro local e pessoalmente cuidou da ferida no braço dela. Após retirar a lasca de metal que se enterrara na pele, ele untou a área com álcool, fazendo-a gritar de dor. Ele besuntou o corte com pomada, enfaixou-o habilmente e deu-lhe um copo de conhaque para aliviar o desconforto. Se tinha acrescentado algo ao conhaque, ou se foi a pura exaustão que amplificara seus efeitos, Annabelle nunca saberia. Depois de beber dois dedos do líquido âmbar-escuro, ela se sentiu tonta e com a cabeça leve. Sua voz estava nitidamente embargada quando disse para Westcliff que o mundo teve sorte por ele não ser médico, e ele reconheceu com sensatez que era verdade. Ela cambaleou embriagada para encontrar Simon, e foi dissuadida com ênfase pela governanta e um par de criadas, que pareciam ter a intenção de lhe dar um banho.
Antes que ela pudesse ter ideia do que acontecia, já havia tomado banho, vestido uma camisola roubada do armário da mãe idosa de Westcliff e se encontrava deitada em uma cama macia e limpa. Assim que fechou os olhos, caiu em sono profundo.
Para desgosto de Annabelle, acordou muito tarde na manhã seguinte, lutando para se lembrar de onde estava e o que ocorrera. No momento em que seus pensamentos encontraram Simon, ela pulou da cama, sem ligar se estava em condições apropriadas enquanto caminhava descalça pelo corredor. Ela cruzou com uma criada no caminho, que pareceu um pouco assustada com a aparência daquela mulher com cabelo desgrenhado, um rosto arranhado e avermelhado e uma camisola mal-ajustada... Uma moça, que apesar de ter tomado banho na noite anterior, ainda exalava o cheiro da fumaça da fundição.
– Onde ele está? – perguntou ela sem cerimônia.
A criada compreendeu a pergunta abrupta e conduziu Annabelle para a suíte no fim do corredor.
Chegando à porta aberta, Annabelle viu o conde Westcliff em pé ao lado da enorme cama, onde Simon jazia sentado contra uma pilha de travesseiros. Simon estava com o peito nu, os ombros e o tronco morenos contrastando nos lençóis brancos que haviam sido puxados até a altura do umbigo. Annabelle estremeceu quando viu a quantidade de emplastros fixados nos braços e no peito do marido, imaginando quão desconfortável ele devia ter ficado por precisar suportar a remoção de tantos fragmentos metálicos. Os dois homens pararam de falar assim que notaram a presença dela.
O olhar de Simon se fixou em seu rosto com uma enervante intensidade. Uma invisível onda de emoção inundou o quarto, afogando-os em uma tensão aguda. Assim que Annabelle olhou para aquele rosto duro como granito do marido, nenhuma palavra pareceu apropriada. Se ela falasse com ele naquele momento, seria com uma hipérbole ou com um eufemismo.
Absurdamente grata pela presença de Westcliff como um amortecedor temporário, Annabelle dirigiu o primeiro comentário a ele.
– Senhor – disse ela, inspecionando os cortes e queimaduras no rosto dele –, está parecendo alguém que perdeu uma briga de taverna.
Aproximando-se, Westcliff pegou a mão dela e fez uma reverência impecável. Ele a surpreendeu dando um beijo cavalheiresco no dorso de sua mão.
– Se eu tivesse entrado em uma briga de taverna, minha senhora, eu lhe garanto que não teria perdido.
Ao ouvir isso, ela deu um sorriso e não pôde deixar de refletir que, vinte e quatro horas antes, desprezava a autoestima arrogante do conde, ao passo que agora ele lhe parecia quase cativante.
Westcliff soltou a mão de Annabelle depois de lhe dar um aperto tranquilizador.
– Com a sua permissão, Sra. Hunt, vou me retirar. Não tenho dúvida de que tem algumas coisas para discutir com seu marido.
– Obrigada, senhor.
Assim que o conde saiu e fechou a porta, ela se aproximou da cabeceira. Preferindo não encará-la, Simon desviou o olhar, com a testa franzida. Assim, de perfil, a estrutura angulosa de seu rosto resplandeceu com a luz do sol.
– A sua perna está quebrada? – perguntou Annabelle com a voz rouca.
Simon balançou a cabeça, concentrando-se no papel florido que cobria a parede do quarto.
Ele falou com uma voz devastada pela fumaça:
– Ela vai ficar boa.
O olhar de Annabelle percorreu o corpo dele, demorando-se na musculatura marcada de seus braços e seu peito, passando aos dedos da mão, à forma como uma mecha de cabelo escuro lhe caía sobre a testa.
– Simon, por que não olha para mim? – perguntou ela em voz baixa.
Os olhos dele se semicerraram quando ele se virou para imobilizá-la encarando-a hostilmente.
– Gostaria de fazer mais do que olhar para você. Gostaria de esganá-la.
Seria ingênuo se Annabelle perguntasse por que, já que sabia a resposta. Em vez disso, esperou com a devida paciência, enquanto a garganta de Simon trabalhava violentamente.
– O que você fez ontem foi imperdoável – murmurou ele por fim.
Ela o fitou assustada.
– O quê?
– Deitado lá naquele inferno, fiz o que pensei que seria o último pedido da minha vida. E
você recusou.
– Como tudo acabou bem, não foi o seu último pedido – respondeu Annabelle cautelosamente. – Você sobreviveu, e eu também, e agora está tudo bem...
– Não está bem – retrucou Simon, com o rosto fechado devido à fúria crescente. – Para o resto da minha vida vou me lembrar do que senti ao saber que você ia morrer junto comigo, sem que eu conseguisse fazer nada para impedir. – Ele desviou o rosto assim que a respiração se entrecortou com a emoção indesejada.
Annabelle estendeu a mão para ele, mas se conteve e a deixou suspensa no ar entre os dois.
– Como pôde me pedir para deixá-lo lá, ferido e sozinho? Eu não conseguiria.
– Você deveria ter feito o que eu disse!
Annabelle não vacilou, entendendo o temor que fazia Simon ferver de raiva.
– Você também não me abandonaria se tivesse sido eu naquele chão...
– Eu sabia que você ia dizer isso – observou ele com um aborrecimento selvagem. – É claro que eu não teria deixado você. Eu sou o homem. É de esperar que o homem proteja a esposa.
– E é de esperar que a mulher o ajude – rebateu Annabelle.
– Você não estava me ajudando – retrucou Simon. – Estava me causando agonia. Maldição, Annabelle, por que não me obedeceu?
Ela respirou fundo antes de responder:
– Porque amo você.
Simon continuou a olhar para longe, enquanto as palavras suaves o tocaram com um visível choque. Sua mão grande cerrou-se sobre a colcha e suas defesas começaram visivelmente a se afrouxar.
– Eu morreria mil vezes – disse ele, com um tremor na voz – para poupá-la do menor dano. E o fato de que se dispusera a jogar a sua vida fora em um sacrifício completamente inútil é mais do que posso suportar.
Os olhos de Annabelle ardiam quando olhou para ele, sentindo a necessidade e a ternura inesgotáveis se reunirem no seu corpo como uma dor.
– Eu percebi uma coisa – comentou ela com voz embargada – quando estava do lado de fora da fundição, vendo-a queimar e sabendo que você se encontrava lá dentro. – Ela engoliu em seco, sentindo a garganta espessa. – Preferia morrer nos seus braços, Simon, a enfrentar uma vida inteira sem você. Todos aqueles intermináveis anos... Todos aqueles invernos, verões...
Uma centena de estações querendo e nunca tendo você. Envelhecer, enquanto você teria ficado eternamente jovem nas minhas memórias. – Ela mordeu o lábio e balançou a cabeça, enquanto os olhos se inundavam de lágrimas. – Eu estava errada quando lhe disse que não sabia o lugar a que pertencia. Eu sei. Meu lugar é ao seu lado, Simon. Nada mais importa, exceto estar com você.
Você está preso comigo para sempre, e nunca vou escutar quando me pedir para ir embora. – Ela deu um sorriso trêmulo. – Então, pode parar de reclamar e se conforme.
Com uma rapidez surpreendente, Simon se virou para agarrá-la em seus braços. Ele enterrou o rosto no cabelo emaranhado dela. Sua voz soou como um rosnado angustiado.
– Meu Deus, não posso suportar isso! Não posso deixar você sair todos os dias, temendo a cada minuto que algo possa acontecer, sabendo que cada grama de sanidade que me resta depende do seu bem-estar. Não posso me sentir assim... É muito forte... Ah, inferno! Vou ficar louco, lunático! Nunca mais vou servir para nada. Se eu pudesse diminuir isso de alguma forma... Amar você pelo menos a metade do que amo... Eu poderia ser capaz de conviver com isso.
Annabelle riu trêmula com a confissão áspera dele e uma onda quente de alegria fluiu em seu corpo.
– Mas eu quero todo o seu amor – disse ela. Assim que Simon inclinou a cabeça para trás a fim de fitá-la, ela ficou ofegante. Levou alguns segundos para se recuperar. – Todo o seu coração e a sua mente – prosseguiu ela com um sorriso torto, e baixou a voz, em tom provocativo. – Todo o seu corpo também.
Simon tremeu e olhou para aquele rosto radiante, como se fosse impossível parar de encará-la.
– Isso é reconfortante. Já que você parecia mais do que ansiosa para serrar minha perna com um canivete ontem.
A boca de Annabelle se abriu em um sorriso, e ela acariciou com as pontas dos dedos o peito peludo de Simon, brincando com as mechas escuras.
– Minha intenção era preservar a maior parte possível de você e tirá-lo daquele lugar.
– Àquele ponto eu poderia ter deixado você fazer isso se eu achasse que funcionaria. – Simon pegou a mão dela e apertou a bochecha contra a palma da mão esfolada da amada. – Você é uma mulher forte, Annabelle. Mais forte do que jamais imaginei.
– Não, é o meu amor por você que é forte. – Com um olhar de malícia espumante por baixo dos cílios, Annabelle murmurou: – Não seria capaz de serrar a perna de qualquer um, sabe?
– Se alguma vez você arriscar a sua vida novamente, por qualquer razão, prometo esganá-la.
Venha aqui. – Pondo a mão atrás da cabeça dela, Simon puxou-a para a frente. Quando o nariz de um quase tocou no do outro, ele respirou profundamente e disse: – Maldição, eu amo você!
Ela roçou os lábios provocativamente contra os dele.
– Quanto?
Ele fez um som leve, como se o beijo suave o tivesse afetado intensamente.
– Sem limite. Infinitamente.
– Eu o amo mais – disse Annabelle, e encostou a boca na dele. Sentiu uma estranha onda de prazer, acompanhada pela sensação indescritível de plenitude, de realização perfeita, que eles nunca tinham alcançado antes. Ela flutuava no calor, como se sua alma estivesse banhada em luz.
Indo para trás, viu pelo brilho atordoado no olhar de Simon que ele também sentira aquilo.
Havia um tom novo e suplicante na voz dele quando disse:
– Beije-me outra vez.
– Não, vou machucá-lo. Estou em cima da sua perna.
– Isso não é a minha perna – respondeu em tom zombeteiro, fazendo-a rir.
– Seu pervertido!
– Você é tão linda... – sussurrou Simon. – Por dentro e por fora. Annabelle, minha esposa, meu doce amor... Beije-me novamente. E não pare até que eu peça.
– Claro, Simon – murmurou ela, e obedeceu feliz da vida.
EPÍLOGO
–... Não, essa não é a melhor parte – disse Annabelle, animada, acenando com um punhado de páginas em um gesto para que as Bowmans ficassem quietas. As três mulheres descansavam na suíte de Annabelle no Rutledge, balançando as pernas enquanto bebiam um vinho suave. –
Deixe-me ler... “Assim que paramos no Vale Loire para ver um castelo do século XVI que está em fase de restauração, a Srta. Hunt ficou sabendo que havia um cavalheiro inglês solteiro, o Sr.
David Keir, que está acompanhando os dois primos mais jovens em seu Grand Tour.
Aparentemente, ele é um historiador de arte, empenhado em escrever um trabalho acadêmico sobre isso ou aquilo, e ele e a Srta. Hunt encontraram muito sobre o que discutir. De acordo com as suas mães... a partir de agora esta é a forma como vou me referir à mamãe e a Sra. Hunt, pois estão sempre na companhia uma da outra e parecem estar dividido o mesmo cérebro...”.
– Meu Deus! – exclamou Lillian com uma risada. – Por que seu irmão tem que escrever em frases tão longas?
– Silêncio! – advertiu Daisy. – Jeremy estava prestes a dizer o que as mães pensam do Sr.
Keir! Continue, Annabelle.
– “... Elas são da opinião que o Sr. Keir é um cavalheiro impressionante e bem-afortunado” – leu Annabelle.
– Isso significa que é bonito? – perguntou Daisy.
Annabelle sorriu.
– Decididamente. E Jeremy continua a dizer que o Sr. Keir pediu permissão para escrever para Meredith e tem a intenção de visitá-la quando ela retornar a Londres!
– Que lindo! – exclamou Daisy, estendendo a taça para Lillian. – Ponha outra, querida, quero beber à futura felicidade de Meredith.
Todas beberam encantadas, e Annabelle deixou a carta de lado, com um suspiro satisfeito.
– Gostaria de poder contar a Evie.
– Sinto falta dela – disse Lillian com uma melancolia surpreendente. – Talvez em breve seus carcereiros... perdão, sua família... permita que ela venha nos visitar.
– Eu tenho uma ideia – comentou Daisy. – Quando nosso pai voltar de Nova York no próximo mês, vamos ter que ir com ele para outra visita a Stony Cross. Naturalmente, Annabelle e o Sr. Hunt serão convidados, por causa da amizade de vocês com lorde Westcliff. Talvez possamos pedir que Evie e a tia sejam incluídas também. Em seguida podemos ter uma reunião oficial das solteironas, sem falar, é claro, de outra partida de rounders.
Annabelle gemeu teatralmente, bebendo seu vinho em um grande gole.
– Deus me ajude. – Colocando a taça em uma mesa próxima, ela procurou no bolso um pequeno pacote de papel com um objeto dobrado dentro. – Isso me faz lembrar... Daisy, você me faria um favor?
– Claro – respondeu a moça, que prontamente abriu o pacote. Franziu o rosto de curiosidade quando viu um pedaço fino de metal. – O que em nome do senhor é isso?
– Eu tirei do ombro de lorde Westcliff no dia do incêndio na fundição. – Ela sorriu perante as expressões de choque das meninas quando viram o tamanho do pedaço de ferro. – Se não se importar, leve-o com você para Stony Cross e atire-o no poço dos desejos.
– O que devo desejar?
Annabelle riu suavemente.
– Faça o mesmo desejo que fez por mim para o coitado do Westcliff.
– O coitado do Westcliff? – Lilian bufou e olhou com desconfiança para as duas. – Qual foi o desejo que você fez para Annabelle? – perguntou ela para a irmã mais nova. – Você nunca me disse.
– Também nunca disse a Annabelle – murmurou Daisy, olhando para a amiga com um sorriso curioso. – Como sabe o que era?
Annabelle devolveu-lhe o sorriso.
– Eu descobri. – Cruzando as pernas sob o corpo, inclinou-se para a frente e murmurou: – Agora, sobre encontrar um marido para Lillian... Tenho uma ideia bastante interessante...
A jovem e obstinada Lillian Bowman sai dos Estados Unidos em busca de um marido da aristocracia londrina. Contudo nenhum homem parece capaz de fazê-la perder a cabeça. Exceto, talvez, Marcus Marsden, o arrogante lorde Westcliff, que ela despreza mais do que a qualquer outra pessoa.
Marcus é o típico britânico reservado e controlado. Mas algo na audaciosa Lillian faz com que ele saia de si. Os dois simplesmente não conseguem parar de brigar.
Então, numa tarde de outono, um encontro inesperado faz Lillian perceber que, sob a fachada de austeridade, há o homem apaixonado com que sempre sonhou. Mas será que um conde vai desafiar as convenções sociais a ponto de propor casamento a uma moça tão inapropriada?
Nesse segundo livro da série As Quatro Estações do Amor, Lisa Kleypas nos apresenta um homem de hábitos rigorosos, uma mulher disposta a quebrar tabus e uma deliciosa batalha entre razão e sentimentos na busca do amor verdadeiro.
PRÓLOGO
Londres, 1843
Duas jovens estavam à porta da perfumaria, uma puxando impacientemente o braço da outra.
– Nós temos que entrar aí? – disse a mais baixa com um sotaque americano monótono, resistindo enquanto a outra a puxava com força para dentro da loja mal iluminada. – Eu sempre morro de tédio nesses lugares, Lillian. Você passa horas experimentando fragrâncias...
– Então espere na carruagem com a criada.
– O que seria ainda mais entediante! Além disso, não devo deixá-la ir a lugar nenhum sozinha. Você sempre se mete em encrencas sem mim.
Enquanto elas entravam na loja, a garota mais alta riu com vontade, de um modo que não condizia a uma dama.
– Você não quer impedir que eu me meta em encrencas, Daisy. Só não quer ser deixada de fora.
– Infelizmente, não há nenhuma aventura em uma perfumaria – respondeu a outra, mal-humorada.
Uma risadinha amável se seguiu a essa afirmação e as duas garotas se viraram e viram o velho de óculos atrás do balcão de carvalho bastante arranhado que se estendia por todo um lado da loja.
– Tem certeza disso, senhorita? – perguntou ele enquanto as duas se aproximavam. –
Algumas pessoas acreditam que os perfumes são mágicos. O cheiro de qualquer coisa é sua essência mais pura. E certas fragrâncias podem despertar fantasmas de amores passados, as mais doces lembranças.
– Fantasmas? – repetiu Daisy, intrigada.
– Ele não quer dizer literalmente, querida – interpôs a outra garota com impaciência. –
Perfumes não podem evocar fantasmas. E não são mágicos de verdade. São apenas uma mistura de partículas de fragrâncias que viajam para os receptores olfativos em seu nariz.
O velho, Sr. Phineas Nettle, olhou para as garotas com mais interesse. Nenhuma das duas tinha uma beleza convencional, embora ambas fossem surpreendentes, com pele clara, cabelos muito escuros e um encanto natural que parecia inerente às garotas americanas.
– Por favor – convidou ele, apontando para uma parede com prateleiras –, fiquem à vontade para ver meus produtos, senhoritas...
– Bowman – disse a mais velha em tom amigável. – Lillian e Daisy Bowman. – Ela olhou de relance para a loura com roupas caras que Nettle estava atendendo e compreendeu que ele ainda não estava livre para ajudá-las.
Enquanto a indecisa cliente examinava os perfumes que Nettle lhe trouxera, as garotas americanas olharam sem compromisso as prateleiras de perfumes, colônias, pomadas, ceras, cremes, sabonetes e outros produtos de beleza. Havia óleos de banho em frascos de cristal com tampa, latas de unguentos de ervas e pequenas caixas de pastilhas violeta para refrescar o hálito.
As prateleiras mais baixas continham um tesouro de velas perfumadas, tinturas e sachês de sais com aroma de cravo-da-índia, tigelas de pout-pourri e potes de pomadas e bálsamos. Contudo, Nettle notou que enquanto a mais nova, Daisy, olhava para a coleção com apenas um leve interesse, a mais velha, Lillian, parara diante de uma fileira de óleos e extratos que continham essências puras: rosa, frangipana, jasmim, bergamota e algumas outras. Erguendo os frascos de vidro âmbar, ela os abria cuidadosamente e cheirava com visível prazer.
A loura enfim fez sua escolha, comprou um pequeno frasco de perfume e saiu da loja; uma sineta tocou alegremente quando a porta se fechou.
Lillian, que tinha se virado para a mulher que saía, murmurou, pensativa:
– Eu gostaria de saber por que tantas louras cheiram a âmbar.
– Você quer dizer perfume de âmbar? – perguntou Daisy.
– Não. A pele mesmo. Âmbar e, às vezes, mel...
– O que diabos você quer dizer? – perguntou a mais nova rindo, confusa. – As pessoas não cheiram a nada, exceto quando precisam tomar banho.
Elas se olharam com o que pareceu surpresa mútua.
– Cheiram, sim – disse Lillian. – Todos têm um cheiro... Não diga que nunca notou. Como a pele de algumas pessoas cheira a amêndoa ou violeta, enquanto a de outras...
– A de outras cheira a ameixa, seiva de palmeira ou feno fresco – comentou Nettle.
Lillian olhou para ele com um sorriso de satisfação.
– Isso! Exatamente!
Nettle tirou os óculos e os poliu com cuidado enquanto sua mente se enchia de perguntas.
Seria possível? Aquela garota podia mesmo detectar o cheiro intrínseco a uma pessoa? Ele próprio podia, mas esse era um dom raro e jamais ouvira falar de uma mulher que o tivesse.
Tirando um pedaço de papel dobrado de uma bolsa de contas que pendia de seu pulso, Lillian Bowman se aproximou dele.
– Tenho uma fórmula para um perfume – disse ela, entregando-lhe o papel –, embora não esteja certa das proporções adequadas dos ingredientes. Poderia prepará-la para mim?
Nettle abriu o papel e leu a lista, erguendo levemente as sobrancelhas grisalhas.
– Uma combinação não convencional. Mas muito interessante. Acho que pode funcionar. –
Ele a olhou com bastante interesse. – Posso lhe perguntar como conseguiu esta fórmula, Srta.
Bowman?
– Eu a criei. – Um sorriso inocente suavizou as feições dela. – Tentei pensar nos aromas que poderiam combinar mais com meu cheiro natural. Mas, como eu disse, é difícil para mim calcular as proporções.
Abaixando os olhos para esconder seu ceticismo, Nettle leu a fórmula mais uma vez. Era frequente que clientes o procurassem e pedissem que lhes preparasse um perfume com cheiro de rosas ou lavanda, mas ninguém jamais lhe dera uma lista como aquela. Mais interessante ainda era o fato de que a seleção de aromas, embora incomum, fosse harmoniosa. Talvez ela tivesse escolhido aquela combinação por acaso.
– Srta. Bowman – disse ele, curioso por descobrir até onde iam as habilidades dela –, permitiria que eu lhe mostrasse alguns dos meus perfumes?
– É claro – respondeu Lillian, alegre.
Ela se aproximou do balcão quando Nettle trouxe um pequeno frasco de cristal cheio de um líquido claro e brilhante.
– O que o senhor está fazendo? – perguntou enquanto ele pingava algumas gotas do perfume em um lenço de linho branco.
– Nunca se deve inalar perfume diretamente do frasco – explicou Nettle, entregando-lhe o lenço. – Antes, deve-se expô-lo ao ar para que o álcool evapore... e reste a verdadeira fragrância.
Srta. Bowman, que aromas consegue detectar neste perfume?
Mesmo os perfumistas mais experientes faziam um grande esforço para separar os componentes de um perfume... precisavam de minutos ou até mesmo horas de inalações repetidas para distinguir um ingrediente de cada vez.
Lillian abaixou a cabeça para sentir o perfume do lenço. Sem hesitar, surpreendeu Nettle ao identificar a composição com a agilidade e a competência de um pianista dedilhando escalas ao piano.
– Flor de laranjeira... neroli... âmbar-gris e... musgo? – Ela fez uma pausa, erguendo os cílios para revelar olhos castanhos aveludados que continham um brilho de espanto. – Musgo em perfume?
Nettle a olhou claramente surpreso. As pessoas comuns eram muito limitadas em sua capacidade de reconhecer os componentes de um perfume complexo. Talvez pudessem identificar o ingrediente principal, um aroma óbvio como o de rosas, limão ou hortelã, mas detectar as camadas e as filigranas de um perfume em particular estava muito além da capacidade da maioria dos humanos.
Recuperando o raciocínio, Nettle sorriu de leve à pergunta de Lillian. Frequentemente abrilhantava seus perfumes com notas peculiares que lhes davam profundidade e textura, mas ninguém jamais identificara uma delas.
– Os sentidos se deliciam com a complexidade, surpresas ocultas... aqui, experimente outro. –
Ele pegou um lenço limpo e o umedeceu com outro perfume.
Lillian cumpriu a tarefa com a mesma facilidade milagrosa.
– Bergamota... tuberosa... olíbano... – Ela hesitou, inalando de novo, deixando o delicioso aroma encher seus pulmões. Um sorriso de assombro surgiu em seus lábios. – E um toque de café.
– Café? – exclamou Daisy, inclinando a cabeça para o frasco. – Não há nenhum cheiro de café aí.
Lillian lançou um olhar questionador para Nettle e ele sorriu, confirmando o palpite dela.
– Sim, é café. – Ele balançou a cabeça com surpresa e admiração. – A senhorita tem um dom, Srta. Bowman.
Lillian deu de ombros e respondeu com ironia:
– Um dom pouco útil na procura de um marido. Que sorte ter um talento tão inútil! Eu me sairia melhor com uma bela voz ou grande beleza. Como minha mãe diz, é pouco educado uma dama gostar de cheirar coisas.
– Não em minha loja – respondeu Nettle.
Eles continuaram a discutir aromas do mesmo modo que outras pessoas podiam falar sobre arte em um museu: os cheiros doces, úmidos e ativos de uma floresta após alguns dias de chuva; o de malte adocicado da brisa do mar; o intenso do bolor das trufas; o toque fresco e ácido de um céu cheio de neve. Perdendo rapidamente o interesse, Daisy foi até as prateleiras de cosméticos, abriu um pote de pó que a fez espirrar e escolheu uma lata de pastilhas que começou a mastigar ruidosamente.
No decorrer da conversa, Nettle ficou sabendo que o pai das garotas era dono de uma empresa em Nova York que produzia fragrâncias e sabonetes. Com visitas ocasionais ao laboratório e às fábricas da empresa, Lillian adquirira um conhecimento rudimentar de fragrâncias e misturas. Até mesmo ajudara a criar uma fragrância para um dos sabonetes de Bowman. Embora ela não tivesse recebido nenhum treinamento, era óbvio para Nettle que se tratava de um prodígio. Contudo, esse talento nunca seria desenvolvido, em razão de ela ser mulher.
– Srta. Bowman – disse ele –, tenho uma essência que gostaria de lhe mostrar. Pode fazer a gentileza de esperar aqui enquanto eu a busco nos fundos da loja?
Com sua curiosidade aguçada, Lillian assentiu e apoiou os cotovelos no balcão enquanto Nettle desaparecia atrás de um vão de porta coberto com uma cortina que levava ao depósito nos fundos. A sala era cheia de arquivos de fórmulas, armários com produtos de destilação, extratos, tinturas e prateleiras com utensílios, funis, recipientes para misturas e copos medidores – tudo o que era necessário para seu ofício. Na prateleira mais alta havia alguns volumes, envoltos em linho, de textos em grego e gaélico antigo sobre a arte da perfumaria. Um bom perfumista era um pouco alquimista, artista e mago.
Nettle subiu em uma escada de madeira, pegou uma pequena caixa de pinho na prateleira de cima e a trouxe para baixo. Voltou para a frente da loja e pôs a caixa sobre o balcão. As irmãs Bowmans observaram atentamente enquanto ele levantava a dobradiça de metal para revelar um pequeno frasco selado com linha e cera. Aqueles poucos mililitros de líquido quase incolor era a essência mais cara que Nettle já comprara.
Ele abriu o frasco, pingou uma gota preciosa em um lenço e o entregou a Lillian. A primeira inalação foi leve e suave, quase inócua. Mas, ao subir pelo nariz, a fragrância se tornou surpreendentemente voluptuosa e, muito depois de o efeito inicial desaparecer, uma certa nuance adocicada permaneceu.
Lillian o olhou por cima da ponta do lenço com claro assombro.
– O que é?
– Uma orquídea rara que só exala seu perfume à noite – respondeu Nettle. – As pétalas são de um branco puro e mais delicadas até que as do jasmim. Não se pode obter a essência aquecendo as flores. Elas são muito frágeis.
– Enfloragem a frio? – murmurou Lillian, referindo-se ao processo de embeber as pétalas preciosas em camadas de gordura até que esta se sature da fragrância e depois, com um solvente à base de álcool, extrair a essência pura.
– Sim.
Ela cheirou novamente a refinada essência.
– Qual é o nome da orquídea?
– Dama-da-noite.
Aquilo fez Daisy dar uma risadinha de satisfação.
– Parece o título de um dos romances que minha mãe me proibiu de ler.
– Eu sugeriria usar em sua fórmula o aroma da orquídea em vez da lavanda – disse Nettle. –
Talvez seja mais caro, mas na minha opinião é a nota de base perfeita, especialmente se desejar âmbar como fixador.
– Quanto custa? – perguntou Lillian, e quando Nettle disse o preço ela arregalou os olhos. –
Meu Deus, isso é mais do que o peso do frasco em ouro.
Nettle ergueu ostensivamente o pequeno frasco para a luz, onde o líquido cintilou como um diamante.
– Infelizmente, a magia não é barata.
Lillian riu enquanto seu olhar seguia o frasco com um fascínio hipnótico.
– Magia – zombou.
– Esse perfume fará a magia acontecer – insistiu ele, sorrindo. – Vou acrescentar um ingrediente secreto para aumentar seus efeitos.
Encantada, mas claramente descrente, Lillian combinou com Nettle que voltaria mais tarde naquele dia para buscar o perfume. Pagou pela lata de pastilhas de Daisy assim como pelo perfume prometido e saiu com a irmã mais nova. Um olhar para o rosto de Daisy revelou que a imaginação da irmã, sempre facilmente despertada, corria solta com pensamentos sobre fórmulas mágicas e ingredientes secretos.
– Lillian... você vai me deixar experimentar um pouco daquele perfume mágico, não vai?
– Eu não divido tudo com você sempre?
– Não.
Lillian sorriu. Apesar da pretensa rivalidade e das ocasionais disputas entre as irmãs, elas eram as melhores e mais leais amigas. Poucas pessoas haviam amado Lillian além de Daisy, que adorava os cães vira-latas mais feios, as crianças mais irritantes e coisas que precisavam ser reparadas ou descartadas.
E ainda assim, apesar de toda a sua intimidade, eram muito diferentes. Daisy era idealista, sonhadora, uma criatura inconstante que alternava teimosia infantil e grande inteligência. Lillian sabia que era uma garota de língua afiada, com uma fortaleza erguida entre ela e o resto do mundo – uma garota com um ceticismo persistente e um senso de humor mordaz. Era extremamente leal ao seu pequeno círculo de amizades, sobretudo às autodenominadas Flores Secas, as garotas que tomaram chá de cadeira em todos os bailes e soirées da última temporada.
Lillian, Daisy e suas amigas Annabelle Peyton e Evangeline Jenner tinham jurado ajudar umas as outras a encontrar maridos. Seus esforços resultaram no bem-sucedido encontro de Annabelle com o Sr. Simon Hunt fazia apenas dois meses. Lillian era a próxima da fila. Elas ainda não tinham uma ideia clara sobre quem iriam agarrar nem um plano sólido para consegui-lo.
– É claro que a deixarei experimentar o perfume – disse Lillian. – Embora só Deus saiba o que você espera disso.
– Fará um belo duque se apaixonar loucamente por mim, claro – respondeu Daisy.
– Você já notou como há poucos aristocratas jovens e bonitos? – perguntou Lillian, zombeteira. – Na maioria são enfadonhos, velhos ou têm o tipo de rosto que deveria trazer um anzol na boca.
Daisy abafou o riso e passou o braço pela cintura da irmã.
– Os cavalheiros certos estão por aí – disse ela. – E nós vamos encontrá-los.
– Por que tem tanta certeza disso? – perguntou Lillian, sarcástica.
Daisy deu um sorriso travesso.
– Porque a magia está do nosso lado.
CAPÍTULO 1
Stony Cross Park, Hampshire
– Os Bowmans chegaram – anunciou Lady Olivia Shaw da porta do escritório, onde seu irmão mais velho estava sentado à escrivaninha entre pilhas de livros de contabilidade.
O sol do entardecer entrava pelas longas janelas retangulares de vitral.
Marcus, lorde Westcliff, ergueu os olhos de seu trabalho com uma carranca que fez as sobrancelhas escuras se juntarem sobre seus olhos pretos como café.
– Que comece o caos – murmurou ele.
Livia riu.
– Imagino que esteja se referindo às filhas. Elas não são tão ruins assim, são?
– Piores – disse Marcus sucintamente, a careta se intensificando ao ver que a caneta temporariamente esquecida sobre o papel deixara uma grande mancha de tinta na antes imaculada fileira de números. – As duas jovens mais mal-educadas que já conheci.
Principalmente a mais velha.
– Bem, elas são americanas – salientou Livia. – É justo sermos um pouco tolerantes com elas, não é? Não podemos esperar que conheçam cada complexo detalhe de nossa interminável lista de regras sociais...
– Eu posso ser tolerante em relação aos detalhes – interrompeu-a Marcus, em tom seco. –
Como sabe, não sou do tipo que criticaria o ângulo do dedo mindinho da Srta. Bowman quando ela segura sua xícara de chá. O que não admito são certos comportamentos que seriam censuráveis em qualquer canto do mundo civilizado.
Comportamentos?, pensou Livia. Isso era interessante. Livia avançou um pouco mais para dentro do escritório, um cômodo do qual não gostava, porque a lembrava muito de seu falecido pai.
Nenhuma lembrança do oitavo Conde de Westcliff era boa. O pai fora um homem frio e cruel que parecia sugar todo o oxigênio do ambiente quando chegava. Tudo e todos em sua vida haviam desapontado o conde. De seus três filhos, apenas Marcus chegara perto de cumprir seus altos padrões, porque, independentemente das punições, das exigências impossíveis ou dos julgamentos injustos do conde, Marcus nunca se queixara.
Livia e a irmã dela, Aline, admiravam o irmão mais velho, cuja busca constante pela excelência o levara a obter as notas mais altas na escola, quebrar todos os recordes nos esportes escolhidos e ser muito mais crítico consigo mesmo do que qualquer outra pessoa poderia ter sido.
Marcus era um homem que sabia montar a cavalo, dançar uma contradança de salão, dar uma palestra sobre teoria matemática, enfaixar um ferimento e consertar uma roda de carruagem.
Contudo, nenhuma de suas muitas habilidades jamais merecera um elogio sequer do pai.
Olhando para trás, Livia percebia que provavelmente a intenção do velho conde era arrancar do filho qualquer vestígio de brandura ou compaixão. E, durante algum tempo, pareceu que tinha conseguido. Contudo, após a morte do pai, cinco anos antes, Marcus se revelara um homem muito diferente do que fora criado para ser. Livia e Aline tinham descoberto que o irmão mais velho nunca estava ocupado demais para ouvi-las e, por mais insignificantes que parecessem os problemas delas, ele estava sempre pronto a ajudar. Marcus era solidário, afetuoso e compreensivo – o que era um verdadeiro milagre, considerando-se que durante a maior parte de sua vida nenhuma dessas qualidades lhe fora mostrada.
Contudo, Marcus também era um pouco dominador. Bem... muito dominador. Em se tratando daqueles que amava, não hesitava em manipulá-los para fazerem o que ele considerava ser o melhor. Essa não era uma das qualidades mais agradáveis do irmão. E, se fosse se aprofundar nos defeitos dele, Livia também teria de admitir que Marcus tinha uma crença irritante na própria infalibilidade.
Sorrindo afetuosamente para seu carismático irmão, Livia se perguntou como podia adorá-lo tanto, já que ele se parecia muito com o pai. Marcus tinha as mesmas feições severas, testa larga e lábios longos e finos. O mesmo cabelo grosso e preto como um corvo; o mesmo nariz largo e pronunciado; e o mesmo queixo proeminente. A combinação era surpreendente, em vez de bonita, mas aquele era um rosto que atraía olhares femininos com facilidade. Ao contrário dos do pai, os olhos escuros e atentos de Marcus estavam sempre brilhando de alegria e ele tinha um sorriso raro, que fazia surgir um branco surpreendente no rosto moreno.
Reclinando-se em sua cadeira ao ver Livia se aproximar, Marcus cruzou as mãos sobre a barriga rígida. Em virtude do calor fora de época no início da tarde de setembro, Marcus havia tirado o casaco e enrolado as mangas da camisa, deixando à mostra antebraços morenos levemente cobertos de pelos pretos. Ele era de altura mediana e estava em excelente forma física, com o corpo de um ávido esportista.
Ansiosa por ouvir mais sobre os citados comportamentos da mal-educada Srta. Bowman, Livia se apoiou na beira da escrivaninha, de frente para o irmão.
– Gostaria de saber o que a Srta. Bowman fez para ofendê-lo tanto – refletiu ela em voz alta. –
Diga-me, Marcus. Ou então minha imaginação, sem dúvida, me fará pensar em algo muito mais escandaloso do que a pobre Srta. Bowman é capaz de fazer.
– Pobre Srta. Bowman? – bufou Marcus. – Não me pergunte, Livia. Não me sinto à vontade para discutir isso.
Como a maioria dos homens, Marcus não parecia entender que nada atiçava mais as chamas da curiosidade feminina do que um assunto que alguém não se sentia à vontade para discutir.
– Desembuche, Marcus – ordenou ela. – Ou o farei sofrer de modos inenarráveis.
Ele ergueu uma das sobrancelhas, zombeteiro.
– Como os Bowmans já chegaram, essa ameaça é redundante.
– Então vou tentar adivinhar. Você pegou a Srta. Bowman com alguém? Ela estava deixando um cavalheiro beijá-la... ou pior?
Marcus respondeu com um meio sorriso sarcástico.
– Dificilmente. Só de olhar para ela, qualquer homem em seu juízo perfeito gritaria e sairia correndo na direção oposta.
Começando a achar que seu irmão estava sendo duro demais com Lillian Bowman, Livia franziu a testa.
– Ela é uma garota muito bonita, Marcus.
– Uma fachada bonita não é o suficiente para compensar as falhas de caráter dela.
– Que são...?
Marcus emitiu um leve som de mofa, como se os defeitos da Srta. Bowman fossem óbvios demais para requerer enumeração.
– Ela é manipuladora.
– Você também é, querido.
Ele ignorou o comentário.
– Ela é dominadora.
– Como você.
– Ela é arrogante.
– Você também – disse Livia, alegre.
Marcus a olhou de cara feia.
– Achei que estivéssemos discutindo os defeitos da Srta. Bowman, não os meus.
– Vocês parecem ter muito em comum – declarou Livia com uma inocência um tanto exagerada. Ela o observou pousar a caneta, alinhando-a com os outros itens na escrivaninha. –
Em relação ao comportamento inadequado dela, está dizendo que não a pegou em uma situação comprometedora?
– Não, eu não disse isso. Só disse que ela não estava com um cavalheiro.
– Marcus, não tenho tempo para isso – disse Livia, impaciente. – Preciso dar as boas-vindas aos Bowmans, e você também. Mas, antes de sairmos deste escritório, exijo que me diga o que ela fez de tão escandaloso!
– É ridículo demais para dizer.
– Ela estava cavalgando com uma perna de cada lado? Fumando um cigarro? Nadando nua em um lago?
– Não.
De mau humor, Marcus pegou um estereoscópio em um canto da escrivaninha, um presente de aniversário enviado por sua irmã, Aline, que agora morava com o marido em Nova York. O
estereoscópio era uma invenção recente, feito com madeira de bordo e vidro. Quando um cartão estereoscópico – um par de fotografias – era preso atrás das lentes, as fotografias apareciam como uma imagem tridimensional. A profundidade e os detalhes eram surpreendentes... os galhos de uma árvore pareciam que iam arranhar o nariz do observador e uma fenda de montanha se abria com tal realismo que você tinha a impressão de que poderia cair para a morte a qualquer momento. Levando o estereoscópio aos olhos, Marcus examinou a imagem do Coliseu de Roma com exagerada concentração.
No momento em que Livia estava prestes a explodir de impaciência, ele murmurou:
– Eu vi a Srta. Bowman jogando rounders em roupas de baixo.
Livia o olhou sem entender.
– Rounders? Está se referindo ao jogo com bola de couro e taco achatado?
Marcus franziu os lábios, impaciente.
– Foi na última vez que ela veio nos visitar. A Srta. Bowman e a irmã estavam se divertindo com as amigas em um prado no quadrante noroeste da propriedade quando Simont Hunt e eu passamos a cavalo por acaso. As quatro garotas usavam apenas roupas de baixo. Alegaram que era difícil jogar com as saias pesadas. Acredito que teriam arranjado qualquer desculpa para correr por aí seminuas. As irmãs Bowmans colocam a diversão acima do decoro.
Livia tinha posto a mão na boca em uma tentativa não muito bem-sucedida de conter um ataque de riso.
– Não acredito que você não mencionou isso antes!
– Eu gostaria de poder esquecer – respondeu Marcus, carrancudo, abaixando o estereoscópio.
– Só Deus sabe como vou encarar Thomas Bowman com a lembrança da filha dele despida ainda fresca em minha mente.
O divertimento de Livia se prolongou enquanto ela contemplava as linhas bem definidas do perfil do irmão. Não pôde deixar de notar que Marcus dissera “filha”, não “filhas” – o que deixava claro que ele mal tinha notado a mais nova. Fora em Lillian que prestara atenção.
Conhecendo bem o irmão, Livia teria esperado que ele achasse graça do incidente. Embora Marcus tivesse um forte senso moral, estava longe de ser um puritano e tinha um senso de humor apurado. Apesar de ele nunca ter tido uma amante, Livia ouvira boatos sobre alguns casos amorosos discretos – e até mesmo um ou dois sobre o conde moralista ser bem ousado no quarto. Mas, por algum motivo, seu irmão estava perturbado com essa garota americana audaz, de modos não refinados e família pouco tradicional. Livia se perguntou se a atração dos Marsdens por americanos – afinal, Aline se casara com um e ela mesma acabara de se casar com Giedon Shaw, dos Shaws de Nova York – também era compartilhada por Marcus.
– Ela estava terrivelmente encantadora em roupas de baixo?
– Sim – disse Marcus sem pensar, e depois fechou a cara. – Quero dizer, não. Isto é, não a olhei por tempo suficiente para avaliar seus encantos. Se é que ela tem algum.
Livia mordeu o lábio inferior para conter o riso.
– Ora, vamos, Marcus... você é um homem saudável de 35 anos, e não deu nenhuma espiada na Srta. Bowman em pé lá de calçolas?
– Eu não espio, Livia. Ou dou uma boa olhada em algo ou não olho. Espiar é coisa de crianças ou depravados.
Ela lhe lançou um olhar lastimoso.
– Bem, sinto muito por você ter tido de passar por uma experiência tão difícil. Só podemos esperar que a Srta. Bowman permaneça vestida em sua presença durante esta visita, para evitar chocar novamente sua sensibilidade refinada.
Marcus franziu as sobrancelhas em resposta à ironia.
– Duvido que o faça.
– Que ela fique vestida ou que o choque?
– Já chega, Livia – resmungou Marcus, e ela deu uma risadinha.
– Venha, vamos dar as boas-vindas aos Bowmans.
– Não tenho tempo para isso – disse ele bruscamente. – Vá você e invente uma desculpa para mim.
Livia o olhou, atônita.
– Você não vai... Ah, mas Marcus, você deve! Nunca o vi ser grosseiro.
– Vou corrigir isso mais tarde. Pelo amor de Deus, eles vão ficar aqui por quase um mês.
Terei muitas oportunidades de me retratar. Mas falar sobre aquela garota Bowman me deixou de péssimo humor, e neste momento a ideia de estar na mesma sala que ela me irrita.
Balançando de leve a cabeça, Livia o olhou de um modo especulativo de que o irmão não gostou nem um pouco.
– Hum. Eu o tenho visto interagir com pessoas de quem não gosta e você sempre consegue ser gentil, sobretudo quando quer algo delas. Mas, por algum motivo, a Srta. Bowman o provoca excessivamente. Eu tenho uma teoria sobre o porquê.
– Qual é? – Um desafio sutil iluminou os olhos dele.
– Ainda a estou desenvolvendo. Eu lhe direi quando chegar a uma conclusão definitiva.
– Deus me ajude. Apenas vá, Livia, e dê as boas-vindas aos hóspedes.
– Enquanto você se entoca neste escritório como uma raposa corre para um buraco no chão?
Marcus se levantou e fez um gesto para que ela passasse pela porta antes dele.
– Vou sair pelos fundos da casa e depois dar uma longa cavalgada.
– Por quanto tempo ficará ausente?
– Voltarei a tempo de me trocar para o jantar.
Livia deu um suspiro exasperado. O jantar daquela noite seria muito concorrido. Era o prelúdio do primeiro dia oficial da festa que começaria a pleno vapor no dia seguinte. A maioria dos convidados já estava lá e alguns retardatários chegariam em breve.
– É melhor não se atrasar – preveniu-o. – Quando concordei em agir como sua anfitriã, não foi prometendo que cuidaria de tudo sozinha.
– Eu nunca me atraso – respondeu Marcus com calma, e saiu a passos largos com a ansiedade de um homem subitamente salvo da forca.
CAPÍTULO 2
Marcus se afastou da mansão conduzindo seu cavalo pelo caminho muito percorrido na floresta depois dos jardins. Assim que atravessou uma área baixa e subiu para o outro lado, deixou-se levar pelo animal em um ruidoso galope pelos campos de ulmária e sobre a relva ressecada pelo sol. Stony Cross Park tinha os melhores acres de Hampshire, com densas florestas, prados floridos, brejos e vastos campos dourados. Antiga área de caça reservada à realeza, a propriedade era agora um dos lugares mais visitados da Inglaterra.
O fluxo relativamente constante de convidados na propriedade era conveniente aos objetivos de Marcus, pois lhe oferecia companhia para as caçadas e os esportes que adorava e lhe permitia fazer algumas manobras políticas e financeiras. Todos os tipos de negócios eram feitos nas festas, quando Marcus costumava persuadir políticos ou homens de negócios a apoiá-lo em questões importantes.
Essa festa não seria diferente de nenhuma outra, mas nos últimos dias Marcus vinha sendo atormentado por um crescente desconforto. Sendo um homem extremamente racional, não acreditava em premonições ou em nenhuma das bobagens espiritualistas da moda... mas parecia que algo na atmosfera de Stony Cross Park mudara. O ar estava carregado de tensão e expectativa, como a calma vibrante que antecede uma tempestade. Marcus estava inquieto e impaciente, e nenhum esforço físico, por maior que fosse, diminuía sua inquietação.
Contemplando a noite que se aproximava e o fato de que teria de ser amigável com os Bowmans, Marcus sentiu seu desconforto aumentar e chegar perto da ansiedade. Lamentava tê-los convidado. Na verdade, renunciaria de bom grado a qualquer possível negócio com Thomas Bowman se isso lhe permitisse se livrar deles. Mas, já que estavam ali e ficariam por quase um mês, tiraria o máximo proveito disso.
Marcus pretendia se lançar efetivamente em uma negociação com Thomas Bowman para a expansão de sua saboaria e o estabelecimento de um centro de produção em Liverpool ou em Bristol. A isenção de impostos sobre o sabão na Inglaterra nos próximos anos era quase certa, se é que Marcus podia confiar em seus aliados liberais no Parlamento. Quando isso acontecesse, o sabão se tornaria muito mais acessível às pessoas comuns, o que seria bom para a saúde pública e também para a conta bancária de Marcus, se Bowman estivesse disposto a aceitá-lo como sócio.
Contudo, não havia como negar que uma visita de Thomas Bowman significava aturar a presença das filhas dele. Lillian e Daisy eram a personificação da condenável tendência das herdeiras americanas a ir para a Inglaterra a fim de caçar maridos. A aristocracia estava sendo assediada por senhoritas ambiciosas que falavam sem parar sobre si mesmas com seus sotaques horríveis e buscavam publicidade constante nos jornais. Mulheres sem graça, espalhafatosas e arrogantes que tentavam comprar um aristocrata com o dinheiro dos pais... e frequentemente conseguiam.
Marcus havia conhecido as irmãs Bowmans em sua última visita a Stony Cross Park, e não encontrara muitos motivos para elogiá-las. A mais velha, Lillian, tornara-se um alvo particular de sua aversão quando ela e as amigas – as autodenominadas Flores Secas (como se isso fosse motivo de orgulho!) – traçaram um plano para fazer um aristocrata se casar. Marcus nunca havia se esquecido do momento em que o plano fora revelado.
– Meu Deus, não há nada que a senhorita não se preste a fazer? – perguntara a Lillian.
E ela respondera audaciosamente:
– Se há, ainda não descobri.
A extraordinária insolência de Lillian a tornava diferente de todas as mulheres que Marcus já conhecera. Isso e o rounders que elas tinham jogado em roupas íntimas o convenceram de que Lillian Bowman era um demônio. E quando ele fazia um julgamento sobre alguém, raramente mudava de opinião.
Marcus franziu as sobrancelhas, pensando na melhor maneira de lidar com Lillian. Ele agiria de modo frio e distante independentemente de qual fosse a provocação dela. Sem dúvida, a enfureceria ver quão pouco o afetava. Imaginando a irritação de Lillian ao ser ignorada, sentiu o aperto em seu peito diminuir. Sim... faria o possível para evitá-la e, quando as circunstâncias o forçassem a estar no mesmo ambiente que ela, a trataria com polida frieza. Com suas feições se desanuviando, conduziu o cavalo em uma série de saltos fáceis: uma sebe, uma cerca e um estreito muro de pedra – cavaleiro e animal trabalhando juntos em perfeita sintonia.
– Agora, meninas – disse a Sra. Mercedes Bowman olhando severamente para as filhas à porta do quarto delas –, insisto em que durmam por pelo menos duas horas, para que estejam bem-dispostas à noite. Os jantares de lorde Westcliff costumam começar tarde e se estender até a meia-noite, e não quero nenhuma de vocês bocejando à mesa.
– Sim, mãe – disseram ambas obedientemente, com expressões inocentes que não enganavam a mãe nem um pouco.
A Sra. Bowman era uma mulher muito ambiciosa, com energia em excesso. Seu corpo magro como um fuso teria feito um lebréu parecer gorducho. Seu tagarelar ansioso e estridente em geral visava atingir seu principal objetivo na vida: ver suas duas filhas muito bem casadas.
– Em nenhuma circunstância vocês devem sair deste quarto – prosseguiu ela, severa. – Nada de escapadas para passear pela propriedade de lorde Westcliff, nada de aventuras, complicações ou qualquer tipo de incidente. Na verdade, pretendo trancar a porta para garantir que ficarão seguras aqui e descansarão.
– Mãe – protestou Lillian –, se houver um lugar mais enfadonho no mundo civilizado do que Stony Cross, comerei meus sapatos. Em que tipo de encrenca poderíamos nos meter?
– Vocês arranjam problemas do nada – disse Mercedes com os olhos semicerrados. – É por isso que vou supervisioná-las de perto. Depois do modo que se comportaram na última vez que estivemos aqui, estou surpresa por termos sido convidados outra vez.
– Eu não – rebateu Lillian em tom seco. – Todos sabem que estamos aqui porque Westcliff está de olho na empresa do papai.
– Lorde Westcliff – corrigiu-a Mercedes. – Lillian, você deve se referir a ele com respeito! É o aristocrata mais rico da Inglaterra, com uma linhagem...
– Mais antiga que a da rainha – interrompeu-a Daisy em tom monótono, tendo ouvido essa conversa em muitas ocasiões. – E tem o título mais antigo da Grã-Bretanha, o que o torna...
– O solteiro mais cobiçado da Europa – completou Lillian, seca, erguendo as sobrancelhas em sinal de zombaria. – Talvez de todo o mundo. Mãe, se acha mesmo que Westcliff pode se casar com uma de nós, você é lunática.
– Ela não é lunática – disse Daisy para a irmã. – É nova-iorquina.
Havia cada vez mais pessoas como os Bowmans em Nova York – novos-ricos que não conseguiam se misturar com os nova-iorquinos conservadores ou a nata da sociedade. Essas famílias tinham feito fortuna em indústrias como a manufatureira ou a mineradora, e ainda assim não conseguiam ser aceitas nos círculos a que tanto aspiravam. A solidão e o constrangimento de serem rejeitados pela sociedade nova-iorquina aumentaram as ambições de Mercedes como nada mais teria feito.
– Faremos lorde Westcliff se esquecer do péssimo comportamento de vocês em nossa última visita – disse-lhes Mercedes, de cara feia. – Vocês se comportarão com modéstia, serenidade e decoro o tempo todo. E chega dessa história de Flores Secas. Quero que fiquem longe daquela escandalosa Annabelle Peyton e daquela outra...
– Evie Jenner – disse Daisy. – E agora ela é Annabelle Hunt, mãe.
– Annabelle se casou com o melhor amigo de Westcliff – ressaltou Lillian. – Acho que esse é um ótimo motivo para continuarmos a vê-la, mãe.
– Vou pensar a respeito. – Mercedes as olhou com desconfiança. – Por enquanto, quero que tirem um longo e tranquilo cochilo. Não quero ouvir nenhum som de vocês, estão entendendo?
– Sim, mãe – responderam as duas em coro.
A porta se fechou e, do lado de fora, a chave girou firmemente na fechadura.
As irmãs se entreolharam, sorrindo.
– Ainda bem que ela nunca descobriu sobre nosso jogo de rounders – disse Lillian.
– Se tivesse descoberto, estaríamos mortas – concordou Daisy, séria.
Lillian tirou um grampo de uma pequena caixa esmaltada sobre a penteadeira e se dirigiu à porta.
– É uma pena que ela fique tão aborrecida com coisas bobas, não é?
– Como naquela vez que pusemos o leitão sujo de graxa no salão da Sra. Astor.
Sorrindo diante da lembrança, Lillian se ajoelhou na frente da porta e enfiou o grampo na fechadura.
– Sabe, sempre me perguntei por que nossa mãe não gostou de termos feito isso em defesa dela. Alguma coisa tinha de ser feita depois que a Sra. Astor não convidou nossa mãe para sua festa.
– Acho que, na opinião de mamãe, pôr animais na casa de alguém não nos faria merecer convites para futuras festas.
– Bem, acho que isso não foi tão ruim quanto naquela vez que soltamos fogos de artifício naquela loja na Quinta Avenida.
– Mas fomos obrigadas, depois de aquele vendedor ter sido tão grosseiro.
Lillian retirou o grampo, entortou-o habilmente e o reintroduziu na fechadura. Apertando os olhos com o esforço, moveu-o até ouvir um clique e depois olhou para Daisy com um sorriso de triunfo.
– Acho que foi a vez que fiz isso mais rápido.
Mas a irmã caçula não retribuiu o sorriso.
– Lillian... se você encontrar um marido este ano... tudo vai mudar. Você vai mudar. Não haverá mais aventuras ou diversão, e ficarei sozinha.
– Não seja boba – disse Lillian franzindo a testa. – Não vou mudar e você não ficará sozinha.
– Você terá um marido a quem dar satisfações – ressaltou Daisy. – E ele não vai deixá-la se envolver em nenhuma travessura comigo.
– Não, não, não... – Lillian se aprumou e rejeitou aquela ideia com um gesto. – Não vou ter esse tipo de marido. Vou me casar com um homem que não notará ou não se importará com o que faço quando estou longe dele. Um homem como o papai.
– Um homem como o papai não parece ter feito nossa mãe muito feliz – disse Daisy. – Eu me pergunto se um dia eles já estiveram apaixonados.
Lillian encostou na porta e franziu a testa enquanto pensava no assunto. Nunca lhe ocorrera se perguntar se os pais tinham se casado por amor. Por algum motivo achava que não. Ambos pareciam muito contidos. O relacionamento deles era, na melhor das hipóteses, um laço insignificante. Pelo que Lillian sabia, eles quase nunca brigavam, nunca se abraçavam e raramente se falavam. E ainda assim parecia não haver amargura entre eles. Em vez disso, eram indiferentes um ao outro, sem demonstrar desejo ou mesmo a capacidade de ser felizes.
– O amor é para os romances, querida – disse Lillian, fazendo o possível para parecer cética.
Abrindo a porta, olhou para os dois lados do corredor e depois de volta para Daisy. – Vazio.
Devemos sair pela porta de serviço?
– Sim, e depois ir para a ala oeste da mansão e a floresta.
– Por que a floresta?
– Você se lembra do favor que Annabelle me pediu?
Lillian a olhou sem compreender por um momento, mas depois revirou os olhos.
– Meu Deus, Daisy, você não consegue pensar em nada melhor do que cumprir uma missão ridícula como essa?
A irmã mais nova lhe lançou um olhar astuto.
– Você só não quer fazer isso porque é para o bem de lorde Westcliff.
– Isso não vai beneficiar ninguém – respondeu Lillian, exasperada. – É uma missão boba.
Com o olhar decidido, Daisy respondeu:
– Vou encontrar o poço dos desejos de Stony Cross e fazer o que Annabelle me pediu. Você pode me acompanhar, se quiser, ou fazer outra coisa sozinha. Mas – seus olhos amendoados se estreitaram ameaçadoramente –, depois de todo o tempo que me fez esperar enquanto entrava em perfumarias e farmácias antigas e empoeiradas, acho que me deve apenas um pouco de paciência...
– Está bem – resmungou Lillian. – Vou com você. Se eu não for, você nunca encontrará o poço e acabará perdida no meio da floresta.
Olhando outra vez para o corredor e se certificando de que continuava vazio, Lillian tomou a dianteira na direção da porta de serviço no final dele. As irmãs andaram nas pontas dos pés com treinado cuidado, seus passos silenciosos no grosso tapete.
Por mais que Lillian detestasse o dono de Stony Cross Park, tinha que admitir que a propriedade era esplêndida. A casa era de estilo europeu, uma elegante fortaleza construída com pedra cor de mel e em cujas extremidades havia quatro torres pitorescas que se projetavam para o céu. Situada em uma colina com vista para o rio Itchen, a mansão era cercada de jardins em terraços e pomares que desembocavam em duzentos hectares de parque e floresta. Quinze gerações da família de Westcliff, os Marsdens, tinham vivido ali, conforme qualquer dos criados se apressava em falar. E isso estava longe de representar toda a fortuna de lorde Westcliff. Dizia-se que quase 200 mil acres da Inglaterra e da Escócia estavam sob seu controle direto, e entre suas propriedades havia dois castelos, três mansões, uma série de casas no mesmo estilo denominada Mardens Terrace, mais cinco casas e uma vila à beira do Tâmisa. Mas Stony Cross Park era, sem dúvida, a joia da coroa da família Marsden.
Contornando a lateral da mansão, as irmãs tiveram o cuidado de se manter junto a uma sebe de teixos que as ocultava da vista daqueles que estavam na casa principal. Quando entraram na floresta de cedros e carvalhos antigos, a luz brilhante do sol se infiltrava por entre o dossel de galhos entrelaçados.
Animada, Daisy ergueu os braços e exclamou:
– Ah, eu adoro este lugar!
– É passável – disse Lillian de má vontade, embora no fundo tivesse de admitir que naquele início de outono em plena floração era difícil haver lugar mais bonito na Inglaterra.
Daisy subiu em um tronco que alguém tirara do caminho e andou cuidadosamente sobre ele.
– Para ser dona de Stony Cross Park quase valeria a pena se casar com lorde Westcliff, não acha?
Lillian arqueou as sobrancelhas.
– E ter de suportar todos os seus discursos pomposos e obedecer às suas ordens? – Ela fez uma careta, franzindo o nariz em desagrado.
– Annabelle disse que lorde Westcliff é muito mais agradável do que ela pensava.
– Annabelle tinha de dizer isso depois do que aconteceu algumas semanas atrás.
As irmãs ficaram em silêncio, ambas refletindo sobre os acontecimentos dramáticos recentes.
Quando Annabelle e o marido, Simon Hunt, estavam visitando a fábrica de locomotivas que possuíam em sociedade com lorde Westcliff, uma explosão horrível quase pusera fim a suas vidas. Lorde Westcliff se precipitou para o prédio em uma missão quase suicida para salvá-los e os tirou de lá vivos. Era compreensível que Annabelle agora visse Westcliff como um herói e que tivesse dito que considerava a arrogância dele, de certa forma, encantadora. Lillian respondera em tom azedo que Annabelle ainda devia estar sofrendo os efeitos colaterais da inalação de fumaça.
– Acho que devemos ser gratas a lorde Westcliff – observou Daisy, saltando do tronco. –
Afinal de contas, ele salvou a vida de Annabelle e não temos um grupo muito grande de amigas.
– Salvar Annabelle foi uma circunstância – disse Lillian, irritada. – O único motivo de Westcliff ter arriscado a vida foi por não querer perder um sócio lucrativo.
– Lillian! – Daisy, que estava alguns passos à frente, se virou, surpresa, para a irmã. – Não é típico de você ser tão pouco caridosa. Pelo amor de Deus, o conde entrou em um prédio em chamas para salvar nossa amiga e o marido dela... o que mais um homem tem de fazer para impressioná-la?
– Estou certa de que Westcliff não está nem um pouco interessado em me impressionar – disse Lillian. Ouvindo o tom zangado na própria voz, ela estremeceu, mas mesmo assim continuou: – O motivo de eu detestá-lo tanto, Daisy, é que ele obviamente me detesta. Considera-se superior a mim de todos os modos possíveis: moral, social e intelectualmente... Ah, como eu queria encontrar um meio de deixá-lo chocado!
Elas caminharam em silêncio por um minuto e depois Daisy parou para colher algumas violetas que cresciam em densos tufos à beira do caminho.
– Você já pensou em tentar ser gentil com lorde Westcliff? – murmurou ela. Estendendo o braço para prender as violetas na guirlanda em seus cabelos, acrescentou: – Ele poderia surpreendê-la sendo gentil também.
Lillian balançou a cabeça, de mau humor.
– Não, provavelmente ele diria algo sarcástico e depois pareceria muito presunçoso e satisfeito consigo mesmo.
– Acho que você está sendo muito... – começou Daisy, e depois parou com uma expressão absorta. – Ouvi um som de água jorrando. O poço dos desejos deve estar perto!
– Ah, graças a Deus – disse Lillian com um sorriso relutante enquanto seguia a irmã mais nova que estava correndo por uma área baixa ao lado de um prado encharcado.
O prado lamacento estava repleto de ásteres azuis e roxos, ciperáceas com suas flores eriçadas e varas-de-ouro farfalhantes. Perto da estrada havia uma densa moita de erva-de-são-joão com flores amarelas que pareciam gotas de luz solar. Deleitando-se com o aprazível ambiente, Lillian diminuiu o ritmo e respirou fundo. Ao se aproximar do agitado poço dos desejos, que era um buraco no chão alimentado por uma fonte, o ar se tornou mais suave e úmido.
No início do verão, quando as Flores Secas tinham ido ao poço dos desejos, cada uma atirara um alfinete em suas profundezas borbulhantes, seguindo a tradição local. E Daisy fizera um pedido misterioso para Annabelle, que mais tarde fora atendido.
– Aqui está – disse Daisy tirando do bolso um pedaço de metal fino como uma agulha. Era a lasca de metal que Annabelle havia tirado do ombro de Westcliff quando a explosão lançara pedaços de metal como uma arma. Mesmo Lillian, que não tendia a sentir nenhuma compaixão por Westcliff, estremeceu à visão da horrível lasca. – Annabelle me disse para atirar isto no poço e fazer para lorde Westcliff o mesmo pedido que fiz para ela.
– Qual foi o pedido? – perguntou Lillian. – Você nunca me contou.
Daisy a olhou com um sorriso zombeteiro.
– Não é óbvio, querida? Pedi que Annabelle se casasse com alguém que a amasse de verdade.
– Ah.
Pensando no que sabia sobre o casamento de Annabelle e na óbvia devoção entre o casal, Lillian supôs que o pedido tivesse sido atendido. Ela olhou para Daisy com carinho e exasperação e recuou para observar os procedimentos.
– Lillian – protestou a irmã –, você deve ficar aqui comigo. É mais provável que o espírito do poço atenda ao pedido se nós duas nos concentrarmos nele.
Um riso baixo escapou da garganta de Lillian.
– Você não acredita mesmo que exista um espírito do poço, não é? Meu Deus, como se tornou tão supersticiosa?
– Vindo de alguém que acabou de comprar um frasco de perfume mágico...
– Nunca achei que fosse mágico. Só gostei do cheiro!
– Lillian – repreendeu-a Daisy de brincadeira –, que mal há em admitir essa possibilidade? Eu me recuso a acreditar que passaremos a vida sem que algo mágico aconteça. Agora, faça um pedido para lorde Westcliff. É o mínimo que podemos fazer depois de ele ter salvado nossa querida Annabelle do incêndio.
– Ah, está bem. Vou ficar perto de você, mas só para impedi-la de cair no poço. –
Aproximando-se da irmã, passou um braço ao redor dos ombros estreitos dela e olhou para a água lamacenta e murmurante.
Daisy fechou os olhos com força e apertou com os dedos a lasca de metal.
– Estou pedindo de todo o coração – sussurrou ela. – Você está, Lillian?
– Sim – murmurou Lillian, embora não estivesse exatamente pedindo que lorde Westcliff encontrasse o amor verdadeiro.
Seu pedido seguia mais a linha que lorde Westcliff encontre uma mulher que o faça cair de joelhos. O pensamento fez um sorriso satisfeito curvar seus lábios e ela continuou a sorrir enquanto Daisy atirava no poço a lasca de metal, que desceu às suas infinitas profundezas.
Limpando as mãos uma na outra, Daisy deu as costas para o poço, satisfeita.
– Está feito – disse, radiante. – Mal posso esperar para ver com quem Westcliff vai ficar.
– Sinto pena da pobre moça – respondeu Lillian. – Seja ela quem for.
Daisy apontou com a cabeça na direção da mansão.
– Vamos voltar para casa?
A conversa logo se transformou em uma sessão de planejamento estratégico em que discutiram uma ideia que Annabelle havia mencionado na última vez que haviam conversado. As irmãs Bowmans precisavam desesperadamente de um padrinho para apresentá-las às altas camadas da sociedade inglesa... e não só um padrinho. Tinha de ser alguém poderoso, influente e famoso. Alguém cujo endosso seria aceito pelo restante da aristocracia. Segundo Annabelle, não havia ninguém melhor para isso do que a condessa de Westcliff, a mãe do conde.
A condessa, que parecia gostar de viajar pelo continente, quase nunca era vista. Mesmo quando estava em Stony Cross, preferia não se misturar com os convidados, desprezando o hábito de seu filho de fazer amizade com homens de negócios e outros plebeus. Nenhuma das irmãs Bowmans a conhecia, mas tinham ouvido falar muito dela. Segundo os boatos, a condessa era um dragão velho que desprezava estrangeiros. Sobretudo americanos.
– Só não entendo por que Annabelle acha que há alguma chance de a condessa nos amadrinhar – disse Daisy, chutando repetidas vezes uma pequena pedra enquanto andavam. –
Com certeza, ela nunca fará isso de vontade própria.
– Fará se Westcliff lhe disser para fazer – respondeu Lillian. Ela pegou um galho comprido e o balançou distraidamente. – Ao que parece, a condessa pode ser convencida a fazer o que Westcliff pedir. Annabelle me disse que a condessa não aprovava o casamento de Lady Olivia com o Sr. Shaw e não tinha nenhuma intenção de comparecer à cerimônia. Mas Westcliff sabia que isso feriria os sentimentos da irmã e então obrigou a mãe a ir e a agir de modo civilizado.
– Sério? – Daisy olhou de relance para a irmã com um meio sorriso de curiosidade. – Como ele conseguiu?
– Sendo o chefe da casa. Nos Estados Unidos, a mulher é quem governa o lar, mas na Inglaterra tudo gira em torno do homem.
– Hum. Não gosto muito disso.
– Sim, eu sei. – Lillian fez uma pausa antes de acrescentar sombriamente: – Segundo Annabelle, o marido inglês tem de aprovar os cardápios, a disposição dos móveis, a cor das cortinas... tudo.
Daisy pareceu surpresa e horrorizada.
– O Sr. Hunt se importa com essas coisas?
– Bem, não. Ele não é um aristocrata. É um homem de negócios. E homens de negócios não costumam ter tempo para essas trivialidades. Mas em geral os aristocratas têm muito tempo para examinar todas as pequenas coisas que acontecem na casa.
Parando de chutar a pedra, Daisy franziu a testa e olhou para Lillian.
– Eu tenho me perguntado... Por que estamos tão decididas a nos casar com um aristocrata, morar em uma casa antiga e enorme, caindo aos pedaços, comer comida inglesa nojenta e tentar dar instruções para criados que não têm absolutamente nenhum respeito por nós?
– Porque é o que nossa mãe deseja – respondeu Lillian, seca. – E porque ninguém em Nova York se casaria conosco.
Era uma pena que, na altamente distintiva sociedade nova-iorquina, fosse bastante simples para homens com fortunas recém-adquiridas arranjar bons casamentos. Mas herdeiras com linhagens plebeias não eram desejadas nem pelos homens de sangue azul nem pelos novos-ricos em busca de ascensão social. Por isso a única solução era caçar maridos na Europa, onde homens da classe alta precisavam de esposas ricas.
As sobrancelhas franzidas de Daisy deram lugar a um sorriso irônico.
– E se ninguém nos quiser aqui também?
– Então nos tornaremos duas velhas solteironas terríveis e nos divertiremos em viagens pela Europa.
Daisy riu diante dessa ideia e atirou sua longa trança para trás. Era impróprio duas jovens da idade delas passearem sem chapéu, ainda mais com os cabelos soltos. Contudo, as irmãs Bowmans tinham cachos escuros tão pesados que era difícil prendê-los nos elaborados penteados da moda. Era preciso pelo menos três conjuntos de grampos para cada uma, e o couro cabeludo sensível de Lillian doía após todo o puxar e torcer exigido para tornar seus cabelos apresentáveis para um evento formal. Mais de uma vez ela havia invejado Annabelle Hunt, cujos cachos leves e sedosos sempre pareciam se comportar exatamente como ela desejava. Naquele momento, Lillian estava com os cabelos amarrados na nuca e caindo soltos nas costas em um estilo que nunca seria permitido em público.
– Como vamos convencer Westcliff a fazer a mãe agir como nossa madrinha? – perguntou Daisy. – Parece muito improvável que ele concorde com uma coisa dessas.
Lillian esticou o braço para trás, atirou o galho para longe na floresta e esfregou as palmas das mãos para retirar as partículas de casca.
– Não tenho a menor ideia – admitiu. – Annabelle tentou fazer o Sr. Hunt interceder a nosso favor junto a Westcliff, mas ele se recusou, dizendo que isso seria abusar de sua amizade.
– Se ao menos pudéssemos obrigar Westcliff a fazer isso... – refletiu Daisy. – Enganá-lo ou chantageá-lo de alguma maneira...
– Só se pode chantagear um homem se ele fez algo vergonhoso que quer esconder. E duvido que aquele indigesto, enfadonho e velho Westcliff tenha feito algo pelo qual possa ser chantageado.
Daisy riu com essa descrição.
– Ele não é indigesto, enfadonho, nem tão velho assim!
– Mamãe disse que ele tem no mínimo 35 anos. Eu diria que isso é bastante velho, não acha?
– Aposto que a maioria dos homens na casa dos 20 não está nem de longe em tão boa forma física quanto Westcliff.
Sempre que Westcliff se tornava o tema da conversa, Lillian ficava de mau humor, não muito diferente de como ficava na infância, quando seus irmãos atiravam sua boneca favorita de um lado para outro por cima de sua cabeça e ela chorava para que a devolvessem. Por que qualquer menção ao conde a afetava dessa maneira era uma pergunta para a qual não havia resposta. Ela rejeitou o comentário de Daisy com um dar de ombros irritado.
Quando elas se aproximaram da casa, ouviram gritos distantes seguidos de sons alegres como os de garotos brincando.
– O que é isso? – perguntou Lillian, olhando na direção dos estábulos.
– Não sei, mas parece que alguém está se divertindo muito. Vamos ver.
– Não temos muito tempo. Se mamãe descobrir que nós saímos...
– Vamos ser rápidas. Ah, por favor, Lillian.
Enquanto elas hesitavam, mais alguns gritos e risadas vieram da direção do pátio dos estábulos, contrastando tanto com o cenário tranquilo ao seu redor que a curiosidade venceu Lillian. Ela sorriu impulsivamente para Daisy.
– Vamos dar uma corrida até lá – disse ela e disparou.
Daisy ergueu as saias e correu atrás da irmã. Embora as pernas de Daisy fossem muito mais curtas que as de Lillian, ela era leve e ágil como um elfo e tinha quase alcançado a irmã quando chegaram ao pátio dos estábulos. Ofegando um pouco pelo esforço de correr em uma longa subida, Lillian contornou a bonita cerca de um padoque e viu um grupo de quatro garotos entre 12 e 16 anos jogando no pequeno campo logo à frente. Suas roupas os identificavam como cavalariços. Eles tinham deixado as botas ao lado do padoque e corriam descalços.
– Você está vendo? – perguntou Daisy, ansiosa.
Olhando para o grupo, Lillian viu um deles brandindo no ar um longo taco de madeira de salgueiro e riu, encantada.
– Eles estão jogando rounders!
Embora o jogo – que exigia um taco, uma bola e quatro bases dispostas como um diamante –
fosse popular tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, tinha despertado um interesse obsessivo em Nova York. Garotos e garotas de todas as classes sociais o jogavam, e Lillian se lembrou com saudade de muitos piqueniques seguidos de uma tarde de partidas de rounders. Ela sentiu uma cálida nostalgia ao observar um cavalariço rodear as bases. Estava claro que aquele campo costumava ser usado para esse fim, porque os postes tinham sido fincados profundamente no chão, e nas áreas pisadas entre eles a grama dera lugar à terra. Lillian reconheceu um dos jogadores como o rapaz que lhe emprestara o taco para a malfadada partida de rounders com as Flores Secas dois meses antes.
– Você acha que eles nos deixariam jogar? – perguntou Daisy, esperançosa. – Só uns minutinhos?
– Não vejo por que não. Aquele garoto ruivo foi quem nos emprestou o taco. Acho que se chama Arthur...
Naquele momento foi lançada uma bola baixa e rápida para o rebatedor, que fez um ágil movimento de balanço em um curto arco. O lado achatado do taco bateu com força na bola de couro, que quicou e veio na direção delas em uma jogada que em Nova York chamavam de “gafanhoto”. Correndo para a frente, Lillian pegou a bola com as mãos nuas e a lançou habilmente para o garoto na primeira base. Ele a pegou por instinto, olhando, surpreso, para Lillian. Quando os outros garotos notaram as duas jovens ao lado do padoque, pararam sem saber como agir.
Lillian avançou, olhando para o garoto ruivo.
– Arthur? Você se lembra de mim? Estive aqui em junho. Você nos emprestou o taco.
A expressão de surpresa do garoto se desfez.
– Ah, sim, Srta.... Srta....
– Bowman. – Lillian apontou casualmente para Daisy. – E esta é minha irmã. Ainda agora estávamos nos perguntando... Vocês nos deixariam jogar? Só um pouco?
Um silêncio de assombro se seguiu. Lillian deduziu que, embora fosse aceitável lhe emprestar o taco, deixá-la jogar com os outros cavalariços era bem diferente.
– Na verdade, nós não jogamos muito mal – disse ela. – Jogávamos muito em Nova York. Se está preocupado com a possibilidade de diminuirmos o ritmo do jogo...
– Ah, não é isso, Srta. Bowman – retrucou Arthur, com o rosto vermelho como seus cabelos.
Ele lançou um olhar hesitante para seus companheiros antes de voltar a atenção para ela. – É só que... senhoritas da sua classe... não podem... nós somos criados, senhorita.
– Estão em seu tempo livre, não é? – contrapôs Lillian.
O garoto assentiu, cauteloso.
– Nós também – disse Lillian. – E é só uma partidinha. Ah, deixe-nos jogar. Nunca contaremos para ninguém.
– Ofereça mostrar a ele seus arremessos – sugeriu Daisy pelo canto da boca.
Olhando para os rostos impassíveis dos garotos, Lillian concordou.
– Eu sei arremessar – falou, erguendo as sobrancelhas significativamente. – Bolas rápidas, bolas umedecidas com saliva, bolas de efeito... não quer ver como os americanos jogam?
Deu para notar que aquilo os intrigou. Contudo, Arthur disse, tímido:
– Srta. Bowman, se alguém as vir jogando rounders no pátio dos estábulos, provavelmente levaremos a culpa e então...
– Não, não levarão – disse Lillian. – Eu prometo que, se alguém nos pegar, assumiremos toda a responsabilidade. Direi que não lhes deixamos outra escolha.
Embora o grupo parecesse descrente, Lillian e Daisy insistiram e imploraram até eles enfim as deixarem jogar. Tomando posse de uma bola de couro gasta, Lillian flexionou os braços, estalou os nós dos dedos e assumiu uma posição de arremesso encarando o rebatedor, que estava na base designada Castle Rock. Apoiando-se no pé esquerdo, fez um lançamento rápido e preciso. A bola caiu em cheio na mão do recebedor, enquanto o rebatedor fazia um movimento de balanço e a perdia totalmente. Alguns assovios de admiração saudaram o esforço de Lillian.
– Nada mau para o braço de uma garota! – comentou Arthur, fazendo-a sorrir. – Agora, senhorita, se não se importa, quais são a bola e o efeito de que estava falando?
Lillian pegou a bola que lhe foi lançada de volta e encarou de novo o rebatedor, dessa vez agarrando a bola apenas com o polegar e os dois primeiros dedos. Recuou, ergueu o braço e depois a arremessou girando o pulso em um efeito que fez a bola se desviar para dentro justamente ao chegar a Castle Rock. O rebatedor a perdeu de novo, mas até mesmo ele reconheceu o bom arremesso. Na próxima vez, ele enfim acertou a bola, mandando-a para o lado oeste do campo, onde Daisy correu alegremente atrás dela. Daisy a lançou para o jogador na terceira base, que pulou para agarrá-la.
Em poucos minutos, o ritmo acelerado e o prazer do jogo fizeram todos perderem a timidez, e os impulsos, os arremessos e as corridas se tornaram desinibidos. Rindo e falando tão alto quanto os cavalariços, Lillian se lembrou da liberdade e da despreocupação da infância. Era um alívio indescritível esquecer, ainda que apenas por um momento, as inúmeras regras e o opressivo decoro que as sufocavam desde que tinham posto os pés na Inglaterra. E o dia estava glorioso, com o sol brilhando, mas muito mais ameno do que em Nova York, e o ar suave e fresco enchia seus pulmões.
– É sua vez de rebater, senhorita – disse Arthur erguendo a mão para Lillian e lhe atirando a bola. – Vamos ver se é tão boa nisso quanto no arremesso!
– Ela não é – informou Daisy de pronto, e Lillian fez um gesto com a mão que arrancou gargalhadas escandalizadas dos garotos.
Infelizmente, era verdade. Apesar de toda a sua precisão nos arremessos, Lillian nunca dominara a arte de rebater – um fato que Daisy, que era melhor nisso que a irmã, tinha grande prazer em salientar. Lillian segurou o taco com a mão esquerda como se fosse um martelo e deixou o dedo indicador da mão direita ligeiramente aberto. Erguendo o taco sobre o ombro, esperou o arremesso, calculou o tempo com os olhos apertados e tentou bater na bola com toda a força. Para a sua frustração, a bola passou por cima do taco e da cabeça do recebedor.
Antes de o garoto poder correr atrás dela, a bola foi atirada de volta para o arremessador por alguém fora de vista. Lillian ficou perplexa ao ver o rosto de Arthur subitamente assumir uma palidez que contrastava com seus cabelos ruivos. Perguntando-se o que poderia tê-lo deixado assim, Lillian se virou e olhou para trás. O recebedor parecia ter parado de respirar enquanto também olhava para o visitante.
Ali, apoiado despreocupadamente na cerca do padoque, estava ninguém menos que Marcus, lorde Westcliff.
CAPÍTULO 3
Praguejando em silêncio, Lillian olhou para Westcliff com irritação.
Ele respondeu erguendo uma das sobrancelhas de modo zombeteiro. Embora usasse um casaco de montar de tweed, o colarinho da camisa estava aberto, deixando à mostra o pescoço forte e bronzeado. Em seus encontros anteriores, Westcliff sempre estivera impecavelmente vestido e penteado. Mas naquele momento tinha os fartos cabelos pretos revoltos pelo vento e a barba por fazer. Vê-lo assim causou uma estranha e agradável contração na barriga de Lillian, e uma fraqueza desconhecida nos joelhos.
Apesar de sua aversão a Westcliff, ela devia reconhecer que ele era um homem bastante atraente. Suas feições eram muito largas em alguns pontos e muito severas em outros, mas havia um encanto rústico em seu rosto que fazia a beleza clássica parecer irrelevante. Poucos homens tinham uma virilidade tão arraigada, uma força de caráter poderosa demais para ser ignorada. Ele não só estava confortável em sua posição de autoridade como era obviamente incapaz de agir de outra forma senão como líder. Sendo uma garota que sempre fora propensa a atirar ovos na cara de figuras de autoridade, Lillian achava Westcliff uma tentação terrível. Poucos momentos tinham sido melhores do que aqueles em que conseguira irritá-lo além do que ele podia suportar.
O olhar avaliador de Westcliff desceu dos cabelos desgrenhados de Lillian para o corpo sem espartilho, sem deixar de notar os seios soltos. Ela se perguntou se ele a repreenderia em público por ousar jogar rounders com um grupo de cavalariços e lhe devolveu o olhar avaliador. Tentou parecer desdenhosa, mas isso não era fácil quando a visão do corpo magro e atlético de Westcliff lhe causava outro embrulho no estômago. Daisy tinha razão – seria difícil, se não impossível, encontrar um homem mais novo com a virilidade de Westcliff.
Ainda sustentando o olhar de Lillian, Westcliff se afastou lentamente da cerca do padoque e se aproximou.
Embora tensa, Lillian se manteve firme. Era alta para uma mulher, mas Westcliff tinha uns dez centímetros mais que ela e era no mínimo trinta quilos mais pesado. Os nervos de Lillian vibraram a essa constatação enquanto ela olhava nos olhos dele, que eram de um tom de castanho tão intenso que pareciam pretos.
A voz de Westcliff soou profunda:
– Você deveria fechar um pouco os cotovelos.
Tendo esperado uma crítica, Lillian foi pega desprevenida.
– O quê?
Os cílios espessos do conde se abaixaram de leve quando ele olhou para o taco na mão direita dela.
– Vire os cotovelos um pouco para dentro. Você terá mais controle sobre o taco se diminuir o arco do movimento.
Lillian o olhou de cara feia.
– Há alguma coisa em que você não seja especialista?
Um brilho de divertimento surgiu nos olhos escuros do conde. Ele pareceu refletir.
– Eu não sei assoviar – disse por fim. – E tenho má pontaria com um trabuco. Além disso... –
O conde ergueu as mãos em um gesto de impotência, como se não conseguisse se lembrar de outra atividade em que fosse menos do que proficiente.
– O que é um trabuco? – perguntou Lillian. – E o quer dizer com não sabe assoviar? Todos sabem assoviar.
Westcliff formou um círculo perfeito com os lábios e soprou o ar para fora sem produzir nenhum som. Eles estavam tão próximos que Lillian sentiu o sopro suave em sua testa agitando alguns fios sedosos de cabelo que tinham se colado em sua pele suada. Pestanejou, surpresa, olhando para a boca de Westcliff e depois para o colarinho aberto da camisa dele, onde a pele bronzeada parecia macia e muito quente.
– Está vendo? Nada. Eu tento há anos.
Perplexa, Lillian pensou em aconselhá-lo a soprar com mais força e pressionar a ponta da língua contra os dentes inferiores... mas por alguma razão a ideia de pronunciar uma frase com a palavra “língua” para Westcliff pareceu impossível. Em vez disso, ela o olhou, confusa, e se sobressaltou um pouco quando ele estendeu a mão para seus ombros e a virou de modo gentil para Arthur. O garoto estava a vários metros de distância com a bola esquecida em sua mão observando o conde com uma expressão que era um misto de respeito e medo.
Sem saber se Westcliff repreenderia os garotos por deixá-las jogar, Lillian disse, preocupada:
– Arthur e os outros... não foi culpa deles. Eu os obriguei a nos deixar jogar...
– Não duvido – respondeu o conde por cima do ombro de Lillian. – Provavelmente não lhes deu nenhuma chance de negar.
– Não vai puni-los?
– Por jogar rounders em seu tempo livre? Não. – Westcliff tirou o casaco e o jogou no chão.
Virou-se para o recebedor, que estava perto, e disse: – Jim, seja um bom rapaz e me ajude lançando algumas bolas.
– Sim, milorde! – O garoto disparou para o espaço vazio no lado oeste do campo entre os postes das bases.
– O que está fazendo? – perguntou Lillian quando Westcliff se posicionou atrás dela.
– Estou corrigindo seu balanço – rebateu ele, tranquilo. – Erga o taco, Srta. Bowman.
Ela se virou para olhá-lo, incrédula, e ele sorriu, os olhos brilhando com o desafio.
– Isso deve ser interessante – murmurou Lillian.
Assumindo uma posição de rebatida, ela olhou através do campo para Daisy, que estava com o rosto corado e os olhos muito brilhantes do esforço para conter um ataque de riso.
– Meu balanço é perfeito – resmungou Lillian, desconfortavelmente consciente do corpo do conde atrás do seu.
Ela arregalou os olhos ao sentir as mãos de Westcliff deslizarem para seus cotovelos e os empurrarem mais para dentro. Quando ele sussurrou em seu ouvido com a voz rouca, os nervos excitados de Lillian pareceram se incendiar e ela sentiu um calor se espalhando pelo rosto e pelo pescoço, bem como por outras partes do corpo que, até onde sabia, não tinham nome.
– Afaste mais os pés – disse Westcliff –, e distribua o peso igualmente. Bom. Agora traga suas mãos mais para perto do corpo. Como o taco é um pouco longo para você, terá de segurá-lo mais em cima...
– Eu gosto de segurá-lo na ponta.
– É muito longo para você – insistiu ele –, e é por isso que você interrompe o balanço pouco antes de bater na bola...
– Eu gosto de um taco longo – contrapôs Lillian enquanto ele posicionava as mãos dela no punho de madeira de salgueiro. – Na verdade, quanto mais longo, melhor.
Um riso distante de um dos cavalariços chamou a atenção de Lillian e ela o olhou com desconfiança antes de se virar para Westcliff. O rosto dele estava inexpressivo, mas com um brilho de riso nos olhos.
– Qual é a graça? – perguntou ela.
– Não faço ideia – disse Westcliff e a virou de novo para o arremessador. – Lembre-se dos cotovelos. Sim. Não deixe os pulsos virarem, mantenha-os retos e balance em um movimento equilibrado... não, assim não.
Estendendo os braços em volta de Lillian, ele a surpreendeu pondo as mãos sobre as dela e a guiando no lento arco. A boca de Westcliff estava no ouvido de Lillian.
– Sente a diferença? Tente de novo... está mais natural?
O coração de Lillian tinha começado a bater em um ritmo rápido que fez o sangue correr vertiginosamente em suas veias. Ela nunca tinha se sentido tão estranha, com o sólido calor de um homem em suas costas, as coxas fortes dele se introduzindo nas dobras suaves de seu vestido de passeio. As mãos largas de Westcliff cobriram as dela quase por completo e Lillian se surpreendeu ao sentir que ele tinha calos nos dedos.
– De novo – disse Westcliff.
As mãos dele apertaram as de Lillian. Quando os braços de ambos se alinharam, ela notou os bíceps duros como aço. De repente se sentiu subjugada por Westcliff, ameaçada de um modo que ia muito além da influência física. O ar em seus pulmões pareceu se espalhar de forma dolorosa.
Ela o exalou repetidamente e ficou aliviada com desconcertante rapidez.
Westcliff deu um passo para trás e a olhou fixamente, franzindo a testa. Não era fácil distinguir as íris negras das pupilas. Contudo, Lillian teve a impressão de que ele estava com os olhos dilatados como se sob o efeito de uma droga poderosa. Parecia querer lhe perguntar alguma coisa, mas em vez disso lhe fez um breve cumprimento com a cabeça e um gesto para em seguida voltar à posição de rebatida. Ocupando o lugar do recebedor, agachou-se e apontou para Arthur.
– Lance algumas bolas fáceis para começar – gritou.
Arthur assentiu, parecendo perder o medo.
– Sim, milorde!
Arthur girou o braço e lançou uma bola fácil e direta. Estreitando os olhos com determinação, Lillian agarrou o taco com força, fez o balanço e girou os quadris para dar mais impulso ao movimento. Para sua tristeza, errou feio a bola. Virando-se, lançou um olhar penetrante para Westcliff.
– Bem, seu conselho ajudou muito – murmurou em tom sarcástico.
– Cotovelos – foi o lembrete sucinto dele antes de atirar a bola para Arthur. – Tente de novo.
Com um suspiro, Lillian ergueu o taco e encarou mais uma vez o arremessador.
Arthur esticou o braço para trás e se inclinou para a frente, lançando outra bola rápida.
Lillian grunhiu com o esforço de girar o taco. Achando inesperadamente fácil fazer o balanço no ângulo certo, sentiu um prazer visceral com a sólida conexão entre o taco e a bola de couro.
Com uma ruidosa tacada, a bola foi lançada no ar, por cima da cabeça de Arthur e para além do alcance daqueles no fundo do campo. Com um grito de triunfo, Lillian largou o taco e correu para a primeira base, rodeando-a e se dirigindo à segunda. Pelo canto do olho, viu Daisy correndo pelo campo para pegar a bola e quase no mesmo instante atirá-la para o garoto mais próximo. Intensificando seu ritmo, os pés voando sob as saias, Lillian rodeou a terceira base enquanto a bola era atirada para Arthur. Diante de seus olhos incrédulos, viu Westcliff na última base, Castle Rock, com as mãos erguidas e pronto para pegar a bola. Como ele podia? Depois de lhe ensinar a rebater, iria eliminá-la?
– Saia do meu caminho! – gritou Lillian, correndo como louca para a base, determinada a alcançá-la antes que ele pegasse a bola. – Não vou parar!
– Ah, eu a farei parar – garantiu-lhe Westcliff com um sorriso, bem na frente da base. Ele gritou para o arremessador: – Lance-me a bola, Arthur!
Ela passaria através dele, se necessário. Dando um grito de guerra, precipitou-se para Westcliff, fazendo-o cambalear para trás justamente quando ele fechou os dedos sobre a bola.
Embora o conde pudesse ter tentado recuperar o equilíbrio, preferiu não fazer isso, caindo de costas na terra macia com Lillian sobre ele, enterrado em uma profusão de saias e membros desordenados. Uma fina nuvem de poeira os envolveu em sua queda. Lillian se ergueu sobre o peito de Westcliff e o olhou. No início achou que ele estivesse sufocando, mas logo ficou claro que estava rindo.
– Trapaceiro! – acusou-o, o que só o fez rir ainda mais. Ela tentou tomar fôlego com algumas inalações profundas. – Não pode... ficar na frente... da base... seu trapaceiro!
Rindo e ofegando, Westcliff lhe entregou a bola com a reverência de quem entrega uma obra de arte de valor inestimável para um curador de museu. Lillian pegou a bola e a atirou para o lado.
– Eu não fui eliminada – disse-lhe, enfiando o dedo no peito dele para dar ênfase às suas palavras. Pareceu que estava cutucando uma rocha. – Eu completei a volta, está me entendendo?
Ela ouviu a voz risonha de Arthur, que se aproximava.
– Na verdade, senhorita...
– Nunca discuta com uma dama, Arthur – interrompeu-o o conde, tendo conseguido recuperar sua capacidade de falar.
O garoto sorriu.
– Sim, milorde.
– Há alguma dama aqui? – perguntou Daisy, alegre, vindo do campo. – Não vejo nenhuma.
Ainda sorrindo, o conde ergueu os olhos para Lillian. Ele estava com os cabelos desalinhados, os dentes muito brancos contrastando com o rosto moreno empoeirado. Sem sua fachada despótica e com os olhos brilhando de satisfação, o sorriso de Westcliff foi tão inesperadamente envolvente que Lillian experimentou uma curiosa sensação de estar derretendo por dentro. Sobre ele, sentiu os próprios lábios se curvarem em um sorriso relutante. Um cacho de cabelo se soltou e deslizou, macio, sobre o maxilar de Westcliff.
– O que é um trabuco? – perguntou Lillian.
– Uma catapulta. Tenho um amigo muito interessado em armas medievais. Ele... – Westcliff hesitou, uma nova tensão parecendo se espalhar por seu corpo firme sob o dela. – Ele recentemente construiu um trabuco usando um desenho antigo... e me pediu que o ajudasse a acioná-lo...
Lillian gostou da ideia de o reservado Westcliff ser capaz de ter um comportamento tão infantil. Percebendo que estava montada nele, corou e começou a se mexer para afastar-se.
– Errou a pontaria? – perguntou, tentando parecer casual.
– O dono do muro de pedra que demolimos pareceu achar que sim.
O conde prendeu a respiração quando o corpo de Lillian deslizou para longe do dele, e continuou sentado no chão mesmo depois de ela se levantar.
Perguntando-se por que Westcliff a olhava de modo tão estranho, Lillian começou a bater o pó de suas saias, mas essa era uma tarefa impossível. Suas roupas estavam imundas.
– Ah, meu Deus – murmurou para Daisy, também suja e desgrenhada, mas não tanto quanto ela. – Como vamos explicar o estado de nossos vestidos de passeio?
– Vou pedir a uma das criadas que os leve para a lavanderia antes que mamãe perceba. O que me faz lembrar que está quase na hora de acordarmos de nosso cochilo!
– Temos que nos apressar – disse Lillian, olhando para lorde Westcliff, que pusera novamente seu casaco e agora estava de pé ao lado dela. – Milorde, se alguém lhe perguntar se nos viu...
poderia dizer que não?
– Eu nunca minto – disse ele, e Lillian suspirou, exasperada.
– Poderia ao menos não dar nenhuma informação espontaneamente?
– Creio que sim.
– Como é prestimoso – disse Lillian em um tom que sugeria o oposto. – Obrigada, milorde. E
agora, se nos dá licença, precisamos correr. Literalmente.
– Sigam-me e lhes mostrarei um atalho – propôs Westcliff. – Conheço um caminho através do jardim que leva à porta da cozinha.
As duas irmãs se entreolharam, assentiram ao mesmo tempo e se apressaram em segui-lo, acenando distraidamente para Arthur e seus amigos.
Ao conduzir as irmãs Bowmans pelo jardim de fim de verão, Marcus se sentiu incomodado com o fato de Lillian ficar se adiantando a ele. Ela parecia incapaz de seguir sua liderança. Olhou-a disfarçadamente, notando como as pernas dela se moviam sob o leve vestido de musselina. Os passos de Lillian eram longos e naturais, diferentes dos cadenciados que a maioria das mulheres treinava.
Em silêncio, Marcus refletiu sobre sua inexplicável reação a ela durante o jogo de rounders.
Ao observá-la, a clara alegria no rosto de Lillian fora totalmente irresistível. Ela tinha uma energia jovial e um entusiasmo por atividades físicas que parecia rivalizar com o dele. Não era de bom-tom mulheres jovens na posição de Lillian exibirem tanta saúde e vivacidade. Esperava-se que fossem tímidas, modestas e contidas. Mas Lillian era irresistível demais para ser ignorada e, antes que ele se desse conta do que estava acontecendo, entrara no jogo.
A visão de Lillian, tão corada e animada, provocara sensações que ele preferiria não ter tido.
Ela era mais bonita do que ele lembrava e tão divertida em sua teimosia e sua irritabilidade que o conde fora incapaz de resistir ao desafio. E no momento em que ficara atrás de Lillian, corrigindo o balanço e sentido o corpo dela contra o seu, tornara-se muito consciente de uma necessidade primitiva de arrastá-la para um lugar reservado, erguer suas saias e...
Forçando-se a afastar aqueles pensamentos com um gemido de desconforto, observou-a andar à frente mais uma vez. Ela estava suja, com os cabelos desgrenhados... e por algum motivo não conseguia parar de pensar no que sentira deitado no chão com Lillian montada nele. Ela era muito leve. Apesar de sua altura, era uma garota esguia, sem muitas curvas femininas. Não era o seu tipo favorito. Mas ele desejara muito segurar a cintura de Lillian, puxar os quadris dela para junto dos seus e...
– Por aqui – disse ele com uma voz rouca, passando por Lillian Bowman e se mantendo junto às sebes e aos muros que os escondiam da casa.
Conduziu as irmãs por caminhos margeados de espigas azuis de sálvia, muros antigos cobertos de rosas vermelhas, tufos brilhantes de hortênsia e grandes vasos de pedra repletos de violetas brancas.
– Tem certeza de que isto é um atalho? – perguntou Lillian. – Acho que o outro caminho teria sido muito mais rápido.
Desacostumado a ver suas decisões questionadas, Marcus a olhou com frieza quando ela foi para o lado dele.
– Conheço os caminhos dos jardins da minha propriedade, Srta. Bowman.
– Não ligue para minha irmã, lorde Westcliff – disse Daisy atrás dele. – Ela só está preocupada com o que acontecerá se formos pegas. Deveríamos estar cochilando, entende? Nossa mãe nos trancou em nosso quarto, e então...
– Daisy – interrompeu-a Lillian. – O conde não está interessado nisso.
– Pelo contrário – disse Marcus. – Estou bastante interessado em saber como conseguiram escapar. Pela janela?
– Não, eu abri a fechadura – respondeu Lillian.
Guardando a informação no fundo de sua mente, Marcus perguntou em um tom de brincadeira:
– Ensinam isso na escola de aperfeiçoamento?
– Nós não frequentamos a escola de aperfeiçoamento – disse Lillian. – Eu aprendi sozinha.
Estive do lado errado de muitas portas trancadas desde a primeira infância.
– Surpreendente.
– Suponho que nunca fez nada que merecesse punição – disse Lillian.
– Na verdade, fui disciplinado muitas vezes. Mas raramente era trancado. Meu pai achava muito mais conveniente, e satisfatório, me surrar por meus crimes.
– Ele devia ser um bruto – comentou Lillian, e Daisy suspirou atrás deles.
– Lillian, não se deve falar mal dos mortos. E duvido que o conde goste de ouvi-la insultar o pai dele.
– Não, ele era um bruto mesmo – disse Marcus com uma franqueza que se igualava à de Lillian.
Eles chegaram a uma abertura na sebe, onde um caminho de pedra acompanhava a lateral da mansão. Fazendo um sinal para as garotas se calarem, Marcus olhou para o caminho vazio, escondeu-as parcialmente atrás de um alto e estreito zimbro e apontou para o lado esquerdo.
– A entrada da cozinha é ali – murmurou. – Passaremos por ela, subiremos a escada à direita para o segundo andar e eu lhes mostrarei o corredor que leva a seu quarto.
As garotas o olharam com sorrisos brilhantes, os rostos muito parecidos e, ainda assim, diferentes. Daisy tinha bochechas mais redondas e uma beleza antiga de boneca de porcelana que de algum modo fornecia um fundo incongruente para seus exóticos olhos castanhos. O rosto de Lillian era mais alongado e vagamente felino, com os olhos puxados para cima e uma boca carnuda que fazia o coração de Marcus bater em um ritmo desconfortável.
Ele ainda estava olhando para a boca de Lillian quando ela falou:
– Obrigada, milorde. Podemos contar com seu silêncio sobre nosso jogo?
Se Marcus fosse outro tipo de homem, ou tivesse o mínimo interesse romântico em qualquer uma delas, poderia ter usado a situação para flertar um pouco ou fazer chantagem. Em vez disso, assentiu e respondeu:
– Sim.
Outro olhar cauteloso verificou que o caminho ainda estava livre, e os três saíram de trás do zimbro. Infelizmente, quando chegaram no meio do percurso entre a abertura na sebe e a porta da cozinha, um súbito som de vozes ecoou no caminho de pedra e na parede da mansão. Alguém estava vindo.
Daisy correu como uma corça assustada e chegou à porta da cozinha em uma fração de segundo. Contudo, Lillian tomou a direção oposta, escondendo-se outra vez atrás do zimbro.
Sem tempo para pensar nos seus atos, Marcus a seguiu justamente quando um grupo de três ou quatro pessoas surgiu no início do caminho. Espremendo-se com Lillian na estreita cavidade entre o zimbro e a sebe, Marcus se sentiu ridículo ao esconder dos próprios convidados.
Contudo, também não queria ser visto nas condições em que estava, sujo e empoeirado... e de repente seus pensamentos foram interrompidos quando sentiu os braços de Lillian nos ombros de seu casaco, puxando-o mais para dentro das sombras. Puxando-o para ela. Lillian estava tremendo... de medo, pensou ele de início. Chocado com a própria reação protetora, pôs o braço ao redor dela. Mas logo descobriu que Lillian estava rindo baixinho, achando uma graça tão inexplicável na situação que teve de sufocar uma série de risadas em seu ombro.
Sorrindo para ela, Marcus afastou uma mecha de cabelos cor de chocolate que caíra sobre o olho direito de Lillian. Ele espiou por uma pequena abertura entre os galhos grossos, pontudos e perfumados do zimbro. Reconhecendo os homens que andavam devagar enquanto discutiam negócios, Marcus abaixou a cabeça e sussurrou no ouvido dela:
– Quieta. É o seu pai.
Lillian arregalou os olhos e o riso desapareceu enquanto ela enterrava os dedos instintivamente no casaco de Marcus.
– Ah, não. Não o deixe me encontrar! Ele vai contar para minha mãe.
Abaixando o queixo em um gesto tranquilizador, Marcus manteve o braço ao redor de Lillian, a boca e o nariz encostados na testa dela.
– Eles não nos verão. Assim que passarem, eu a guiarei pelo corredor.
Lillian continuou muito quieta, espiando pelos pequenos espaços entre as folhas, parecendo não perceber que estava com seu corpo colado ao do conde de Westcliff no que a maioria das pessoas teria descrito como um abraço. Segurando-a e respirando na testa dela, Marcus se tornou consciente de um aroma indefinível com uma leve abertura floral que percebera vagamente no campo de rounders. Procurando de onde vinha, encontrou uma concentração mais forte no pescoço de Lillian, onde o sangue o aquecera e o tornara inebriante. A boca de Marcus se encheu de água. De súbito desejou tocar com a língua a pele branca e macia de Lillian, rasgar-lhe a frente do vestido e roçar a boca do pescoço aos dedos dos pés dela.
Seu braço se apertou ao redor do corpo de Lillian e sua mão livre procurou compulsivamente os quadris dela, exercendo uma pressão suave mas constante para trazê-la mais para perto. Ah, sim. Ela era da altura perfeita, seria preciso apenas um mínimo ajuste para deixar seus corpos na posição certa. Marcus se encheu de uma excitação que acendeu um fogo sensual em suas veias.
Teria sido muito fácil possuí-la assim, apenas erguer seu vestido e afastar as pernas. Marcus a desejava de mil maneiras, sobre ele, sob ele, qualquer parte dele dentro de qualquer parte dela.
Podia sentir a forma natural do corpo de Lillian sob o fino vestido, sem nenhum corpete para marcar a pele lisa das costas. Ela se contraiu um pouco ao sentir a boca de Marcus lhe tocar seu pescoço e prendeu a respiração, atônita.
– O que... o que está fazendo? – sussurrou.
Do outro lado da sebe os quatro homens pararam, animados com o tema da manipulação de ações, enquanto a mente de Marcus fervilhava com pensamentos sobre um tipo diferente de manipulação. Umedecendo os lábios secos com a língua, ele afastou a cabeça e viu a expressão confusa no rosto de Lillian.
– Desculpe-me – sussurrou, tentando recuperar o juízo. – É esse cheiro... o que é?
– Cheiro? – Ela o olhou confusa. – Está se referindo ao meu perfume?
Marcus estava distraído pela boca de Lillian... dos lábios macios, sedosos e rosados que prometiam uma doçura indescritível. O cheiro dela invadiu seu nariz, produzindo uma nova onda de desejos extremamente urgentes em seu corpo. Marcus se enrijeceu, sua virilha esquentando depressa enquanto seu coração batia com uma força insuperável. Ele não conseguia pensar com clareza. O esforço para não apalpá-la fez suas mãos tremerem. Fechando os olhos, afastou o rosto do de Lillian só para se ver esfregando o nariz no pescoço dela com avidez. Lillian o empurrou um pouco, sussurrando asperamente em seu ouvido:
– Qual é o seu problema?
Marcus balançou a cabeça, impotente.
– Desculpe-me – disse ele com voz rouca, mesmo sabendo o que estava prestes a fazer. – Meu Deus. Desculpe-me...
Então sua boca se apoderou da de Lillian e ele começou a beijá-la como se sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO 4
Era a primeira vez que um homem beijava Lillian sem pedir permissão. Ela se contorceu e tentou se libertar até Westcliff abraçá-la com mais força. Ele cheirava a terra, cavalos e luz solar...
e havia algo mais... um cheiro seco e doce que lembrava feno recém-moído. A pressão da boca do conde aumentou, procurando ardentemente os lábios de Lillian até abri-los. Ela nunca tinha imaginado beijos como aqueles, profundos, carícias ternas e impacientes que pareceram lhe tirar as forças, fazendo com que fechasse os olhos e se apoiasse no peito duro de Westcliff. Ele tirou vantagem desse momento de fraqueza, apertando-a até não haver nenhum milímetro entre eles e as pernas dela serem afastadas pela coxa forte de Westcliff.
A ponta da língua do conde brincou dentro da boca de Lillian, explorando com ardor as bordas dos dentes dela e a umidade sedosa por trás deles. Chocada com a intimidade, Lillian chegou para trás, mas ele a seguiu, deslizando as duas mãos para cima e segurando sua cabeça.
Lillian não sabia o que fazer com sua língua; puxou-a para trás desajeitadamente, enquanto Westcliff brincava com ela, a perseguia, estimulava e agradava, até Lillian soltar um gemido trêmulo e empurrá-lo.
A boca de Westcliff se afastou da sua. Consciente de seu pai e dos companheiros dele do outro lado do zimbro, Lillian tentou controlar a respiração e observou as sombras escuras do grupo através da pesada cortina verde. Os homens continuaram a andar, sem perceber a presença do casal abraçado escondido na entrada do jardim. Aliviada por eles estarem indo embora, Lillian deu outro suspiro trêmulo. Seu coração martelou no peito ao sentir a boca de Westcliff deslizar pela curva de seu pescoço, traçando um caminho nervoso e ardente. Ela se contorceu, ainda tentando em vão afastar a coxa de Westcliff, e começou a sentir um calor intenso.
– Milorde – sussurrou. – Ficou louco?
– Sim. Sim.
Os lábios aveludados estavam outra vez em sua boca... outro beijo roubado.
– Dê-me sua boca... sua língua... sim. Sim. Tão doce... doce.
Os lábios de Westcliff eram quentes e impacientes, movendo-se sobre os de Lillian em sensual coerção enquanto ele respirava contra seu rosto. A barba por fazer lhe causava cócegas nos lábios e no queixo.
– Milorde – sussurrou ela de novo, afastando a boca da dele. – Pelo amor de Deus! Solte-me!
– Sim... Desculpe-me... só mais uma vez.
Ele procurou de novo os lábios de Lillian e ela o empurrou com toda a força. O peito dele era duro como granito.
– Solte-me, seu estúpido!
Contorcendo-se como uma selvagem, Lillian conseguiu se livrar de Marcus. Todo o seu corpo formigava da deliciosa fricção com o dele, mesmo depois de se separarem.
Ao olharem um para o outro, ela viu a luxúria começar a desaparecer da expressão de Marcus, e ele arregalou os olhos ao se dar conta do que acabara de acontecer.
– Caramba! – sussurrou.
Lillian não gostou do modo que ele a fitou, como um homem contemplando a cabeça letal da Medusa, e fechou a cara.
– Posso encontrar o caminho para meu quarto sozinha – disse, áspera. – E não tente me seguir. Já recebi ajuda suficiente hoje da sua parte.
Virando-se, correu pelo caminho enquanto ele a olhava, boquiaberto.
Por algum milagre de Deus, Lillian conseguiu chegar ao quarto antes que a mãe aparecesse para acordar as filhas. Esgueirou-se pela porta entreaberta, fechou-a e se apressou em abrir os botões da frente do vestido. Daisy, que já estava em roupas de baixo, foi até a porta e inseriu um grampo torto por baixo da maçaneta para trancá-la de novo.
– Por que você demorou tanto? – perguntou, concentrada em sua tarefa. – Espero que não esteja zangada por eu não ter esperado. Achei que eu deveria voltar para cá e me lavar o mais rápido possível.
– Não – disse Lillian, distraída, tirando seu vestido sujo.
Ela o pôs no fundo de um armário e fechou a porta para escondê-lo. Um clique indicou que Daisy conseguira trancar a porta. Lillian andou a passos largos até o lavatório, despejou a água suja no balde para esse fim e pôs água limpa na bacia. Lavou depressa o rosto e as mãos e enxugou a pele com uma toalha limpa.
Subitamente uma chave girou na fechadura e as duas garotas se entreolharam, alarmadas.
Elas correram e pularam em suas camas, caindo nos colchões no momento exato em que a mãe entrava no quarto. Por sorte as cortinas estavam fechadas, tornando a luz fraca demais para Mercedes detectar qualquer evidência das atividades delas.
– Meninas? – perguntou a mãe, desconfiada. – Está na hora de acordarem.
Daisy se espreguiçou e deu um bocejo exagerado.
– Hum... tiramos um ótimo cochilo. Estou me sentindo muito revigorada.
– Eu também – disse Lillian com uma voz abafada, com a cabeça enterrada no travesseiro e o coração batendo forte contra o colchão.
– Agora vocês vão tomar banho e pôr seus vestidos de noite. Tocarei o sino para chamar as criadas e pedir que tragam uma banheira. Daisy, use o vestido de seda amarelo. Lillian, use o verde com broches de ouro nos ombros.
– Sim, mãe – disseram ambas.
Quando Mercedes voltou para o quarto ao lado, Daisy se sentou e olhou com curiosidade para a irmã.
– Por que você demorou tanto para voltar?
Lillian rolou na cama e olhou o teto, pensando no que acontecera no jardim. Não podia acreditar que Westcliff, que sempre deixara claro que a desaprovava, tinha se comportado daquela maneira. Isso não fazia sentido. O conde nunca demonstrara nenhum interesse por ela.
Na verdade, aquela tarde tinha sido a primeira vez que tinham conseguido ser civilizados um com o outro.
– Westcliff e eu fomos obrigados a nos esconder por alguns minutos – Lillian se ouviu dizer, enquanto pensamentos continuavam a passar por sua mente. – Papai estava no grupo que veio pelo caminho.
– Ah, meu Deus! – Daisy balançou as pernas para fora da cama e olhou para Lillian, horrorizada. – Ele viu você?
– Não.
– Bem, isso é um alívio. – Daisy franziu um pouco a testa, parecendo sentir que havia muito mais que não fora dito. – Foi muita gentileza de lorde Westcliff não nos entregar, não é?
– Sim.
Um súbito sorriso curvou os lábios de Daisy.
– Acho que a coisa mais engraçada que já vi foi ele lhe ensinando a balançar o taco. Tive certeza de que você ia usá-lo para bater nele!
– Fiquei tentada a fazer isso – respondeu Lillian, sombria, levantando-se e indo abrir as cortinas.
Quando afastou as pesadas dobras de linho adamascado, a luz do sol da tarde invadiu o quarto, fazendo minúsculas partículas de pó cintilarem no ar.
– Westcliff está sempre procurando uma desculpa para demonstrar sua superioridade, não é?
– Era isso que ele estava fazendo? A mim pareceu que estava tentando arranjar uma desculpa para abraçá-la.
Perplexa com o comentário, Lillian estreitou os olhos para ela.
– Por que está dizendo uma coisa dessas?
Daisy deu de ombros.
– Havia algo no modo que a ele olhava...
– Que modo? – perguntou Lillian, o pânico começando a bater em seu corpo como mil asas minúsculas.
– Um modo, bem... interessado.
Lillian escondeu seu embaraço com uma expressão carrancuda.
– O conde e eu nos desprezamos – disse, lacônica. – A única coisa que pode interessá-lo é um possível acordo comercial com nosso pai.
Ela fez uma pausa e se aproximou da penteadeira, onde seu frasco de perfume brilhava à luz do sol. Fechando os dedos ao redor do frasco de cristal em forma de pera, ela o pegou e passou o polegar sobre a tampa.
– Mas – disse, hesitante – há algo que preciso lhe contar, Daisy. Algo que aconteceu enquanto Westcliff e eu esperávamos atrás do zimbro...
– O quê? – a expressão de Daisy revelava muita curiosidade.
Infelizmente, naquele momento a mãe delas voltou para o quarto seguida de duas criadas que arrastavam com dificuldade uma banheira para hóspedes a fim de prepararem o banho. Com a mãe por perto, Lillian não teve nenhuma oportunidade de falar com Daisy a sós. E isso foi bom, porque lhe deu mais tempo para pensar na situação. Pondo o frasco na bolsa reticulada que pretendia usar naquela noite, perguntou-se se Westcliff fora mesmo afetado por seu perfume.
Alguma coisa acontecera para fazê-lo se comportar de modo tão estranho. E a julgar pela expressão no rosto de Westcliff ao perceber o que tinha feito, ele ficara chocado com o próprio comportamento.
A coisa lógica a fazer era testar esse perfume. Pô-lo para funcionar, por assim dizer. Um sorriso irônico surgiu em seus lábios ao pensar em suas amigas, que estariam bastante dispostas a ajudá-la a fazer um ou dois experimentos.
As Flores Secas tinham se conhecido havia cerca de um ano, quando sempre tomavam chá de cadeira nas festas. Olhando para trás, não conseguia entender por que demoraram tanto para ficarem amigas. Talvez um dos motivos fosse Anabelle ser tão bonita, com cabelos cor de mel escuro, olhos azuis brilhantes e um corpo curvilíneo e voluptuoso. Não dava para imaginar que uma deusa daquelas algum dia aceitaria ser amiga de meras mortais. Por outro lado, Evangeline Jenner era extremamente tímida e tinha uma gagueira que tornava a conversa bastante difícil.
Contudo, quando se tornara óbvio que nenhuma delas jamais perderia seu status de Flores Secas sem ajuda, se uniram para encontrar maridos umas para as outras, começando com Annabelle. Seus esforços conjuntos tinham sido bem-sucedidos, embora Simon Hunt não fosse o aristocrata que Annabelle procurara de início. Lillian tinha de admitir que, apesar de suas dúvidas iniciais, a amiga fizera a escolha certa se casando com Hunt. Agora, sendo a Flor Seca solteira mais velha, era a vez de Lillian.
As irmãs tomaram banho e lavaram os cabelos, e depois ocuparam cantos separados do quarto enquanto as duas criadas as ajudavam a se vestir. Seguindo as instruções da mãe, Lillian pôs um vestido de seda verde-água com mangas curtas e bufantes e um corpete que se prendia aos ombros com broches de ouro. Um odioso espartilho reduzia sua cintura em uns cinco centímetros, enquanto um pouco de enchimento na parte superior lhe realçava os seios, formando uma leve linha no meio. Ela foi levada à penteadeira e se sentou. Gemeu e se contraiu, sentindo o couro cabeludo doer enquanto a criada lhe desembaraçava os cabelos e os prendia em um penteado elaborado. Daisy estava sendo submetida à mesma tortura, amarrada e apertada em um vestido cor de manteiga com franzidos no corpete.
A mãe as rodeava, murmurando ansiosamente uma série de instruções sobre comportamento adequado:
– ... Lembrem-se de que os homens ingleses não gostam de ouvir uma moça falar demais e não têm nenhum interesse em suas opiniões. Portanto, quero que vocês duas sejam o mais dóceis e silenciosas possível. E não mencionem nenhum tipo de esporte! Um cavalheiro pode demonstrar que acha divertido ouvi-las falar sobre partidas de rounders ou jogos de gramado, mas no fundo desprezam uma moça que discute assuntos masculinos. E se um cavalheiro lhes fizer uma pergunta, encontrem um modo de devolvê-la, para que ele tenha oportunidade de lhes falar sobre as próprias experiências...
– Outra noite emocionante em Stony Cross – murmurou Lillian.
Daisy devia tê-la ouvido, porque abafou o riso do outro lado do quarto.
– Que barulho foi esse? – perguntou Mercedes, seca. – Está prestando atenção nos meus conselhos, Daisy?
– Sim, mãe. Por um momento não consegui respirar direito. Acho que meu espartilho está apertado demais.
– Então não respire tão fundo.
– Não podemos afrouxá-lo um pouco?
– Não. Os cavalheiros ingleses preferem moças de cintura bem fina. Agora, onde eu estava...
Ah, sim, durante o jantar, se houver uma pausa na conversa...
Suportando resignadamente a preleção, que, sem dúvida, seria repetida de várias formas durante sua estada na propriedade de Westcliff, Lillian se olhou no espelho. Sentiu-se agitada à ideia de encarar o conde naquela noite. Uma imagem surgiu em sua mente, o rosto moreno dele se abaixando sobre o seu, e ela fechou os olhos.
– Desculpe-me, senhorita – murmurou a criada, presumindo que puxara uma mecha de cabelos com muita força.
– Tudo bem – respondeu Lillian com um sorriso triste. – Pode puxar. Eu tenho uma cabeça dura.
– Esse é um baita eufemismo – retrucou Daisy do outro lado do quarto.
Enquanto a criada continuava a lhe torcer e prender os cabelos, Lillian voltou a pensar em Westcliff. Ele tentaria fingir que o beijo atrás do zimbro nunca tinha acontecido? Ou decidiria discutir aquilo com ela? Aflita com essa possibilidade, percebeu que precisava falar com Annabelle, que passara a saber muito mais sobre Westcliff desde que se casara com o melhor amigo dele, Simon Hunt.
No momento em que o último grampo foi preso, houve uma batida na porta. Daisy, que estava pondo luvas brancas que iam até os cotovelos, se apressou em atender, ignorando o protesto de Mercedes de que uma das criadas deveria fazer isso. Ela abriu a porta e deixou escapar uma exclamação de alegria ao ver Annabelle Hunt. Lillian se levantou de seu lugar à penteadeira, correu para Annabelle e as três se abraçaram. Haviam se passado alguns dias desde a última vez que se viram no Rutledge, o hotel londrino em que as duas famílias residiam. Logo os Hunts se mudariam para uma casa nova que estava sendo construída em Mayfair, mas por ora as garotas iam à suíte uma da outra sempre que podiam. Às vezes Mercedes se opunha a isso, externando preocupações com a má influência de Annabelle sobre suas filhas, o que era engraçado, pois o que acontecia era exatamente o contrário.
Como sempre, Annabelle estava deslumbrante, com um vestido de cetim azul-claro, fechado na frente com um cordão de seda da mesma cor, que se ajustava perfeitamente ao seu corpo curvilíneo. A cor do vestido realçava o azul profundo de seus olhos e sua pele cor de pêssego.
Annabelle recuou para olhá-las, entusiasmada.
– Como foi a viagem de Londres para cá? Já tiveram alguma aventura? Não, não podem ter tido, estão aqui há menos de um dia...
– Talvez sim – murmurou Lillian com cautela, consciente dos ouvidos atentos da mãe. – Preciso falar com você sobre uma coisa...
– Filhas! – interrompeu-a Mercedes, seu tom estridente revelando desaprovação. – Vocês ainda não terminaram de se preparar para a soirée.
– Eu estou pronta, mãe! – apressou-se em dizer Daisy. – Olhe, nós duas terminamos. Eu até já pus as luvas.
– Eu só preciso da minha bolsa reticulada – acrescentou Lillian, disparando para a penteadeira e pegando a pequena bolsa cor de creme. – Aqui, também já estou pronta.
Consciente da antipatia que Mercedes tinha por ela, Annabelle deu um sorriso simpático.
– Boa noite, Sra. Bowman. Eu esperava que Lillian e Daisy pudessem descer comigo.
– Receio que elas terão de esperar até eu estar pronta – respondeu Mercedes em um tom frio.
– Minhas duas filhas inocentes precisam da supervisão de uma dama de companhia adequada.
– Annabelle será nossa dama de companhia – disse Daisy, alegre. – Agora ela é uma senhora respeitável, lembra-se?
– Eu disse adequada – replicou a mãe, mas seus protestos foram bruscamente interrompidos quando as irmãs saíram do quarto e fecharam a porta.
– Meu Deus! – disse Annabelle sem conseguir conter o riso. – Essa é a primeira vez que sou chamada de senhora respeitável. Isso me faz parecer um pouco insípida, não é?
– Se você fosse insípida, nossa mãe a aprovaria – respondeu Lillian, dando-lhe o braço enquanto elas andavam pelo corredor.
– E nós não íamos querer ter nada a ver com você – acrescentou Daisy.
Anabelle sorriu.
– Ainda assim, se serei a dama de companhia oficial das Flores Secas, devo estabelecer algumas regras básicas de conduta. Primeiro, se um jovem e belo cavalheiro as convidar para irem sozinhas ao jardim com ele...
– Devemos recusar? – perguntou Daisy.
– Não, só me contar para que eu possa lhes dar cobertura. E se por acaso ouvirem uma fofoca escandalosa que não seja apropriada para seus ouvidos inocentes...
– Devemos ignorá-la?
– Não, devem prestar atenção em cada palavra e me contar tudo imediatamente.
Lillian sorriu e parou no cruzamento de dois corredores.
– Devemos tentar encontrar Evie? Não será uma reunião oficial das Flores Secas se ela não estiver conosco.
– Evie já está lá embaixo com sua tia Florence – respondeu Annabelle.
As duas irmãs se entusiasmaram com a notícia.
– Como ela está? Qual a aparência dela?
– Nós não a vemos há uma eternidade!
– Evie parece muito bem, embora esteja um pouco mais magra. E talvez um pouco deprimida
– disse Annabelle em um tom mais sério.
– Quem não estaria, com o modo que ela tem sido tratada? – disse Lillian, sombria.
Nenhuma delas encontrava Evie havia muitas semanas, porque ela fora mantida em reclusão pela família de sua falecida mãe. Era frequente ela ficar trancada de castigo por mínimas transgressões e só poder sair sob a estrita supervisão da tia. Suas amigas tinham especulado que morar com parentes tão frios e severos contribuíra muito para o problema de fala de Evie.
Ironicamente, de todas as Flores Secas, Evie era a que menos merecia ser tratada com tanta rigidez. Ela era tímida por natureza e tinha um respeito inato por figuras de autoridade. Pelo que elas sabiam, a mãe de Evie tinha sido a rebelde da família, casando-se com um homem de uma posição social inferior. Depois que a mãe morreu no parto, a filha teve de pagar por suas transgressões. E o pai de Evie, que ela quase nunca tinha a oportunidade de ver, estava com a saúde abalada e provavelmente não viveria por muito tempo.
– Pobre Evie – continuou Lillian, de cara amarrada. – Estou bastante inclinada a lhe ceder minha vez como a próxima a se casar. Ela precisa escapar muito mais do que eu.
– Evie ainda não está pronta – disse Annabelle com uma certeza que deixava claro que já havia pensado no assunto. – Está tentando superar a timidez, mas até agora não conseguiu nem conversar com um cavalheiro. Além do mais... – Os belos olhos de Annabelle adquiriram um brilho travesso e ela passou o braço em volta da cintura estreita de Lillian. – Você está velha demais para adiar isso, querida.
Lillian fingiu um olhar amargo, fazendo-a rir.
– Era sobre isso que você queria me falar? – perguntou Annabelle.
Lillian balançou a cabeça.
– Vamos esperar até nos juntarmos a Evie, ou terei de repetir tudo.
Elas passaram pelos espaços públicos no andar de baixo, onde convidados formavam grupos elegantes. As cores estavam na moda esse ano, pelo menos nas roupas femininas, e os tons fortes faziam a reunião parecer um bando de borboletas. Os homens usavam ternos pretos tradicionais com camisas brancas, a única variação sendo as sutis diferenças entre os padrões sóbrios de coletes e gravatas.
– Onde está o Sr. Hunt? – perguntou Lillian a Annabelle.
Annabelle sorriu de leve à menção do marido.
– Acho que com o conde e alguns amigos deles. – Seu olhar se tornou mais atento ao avistar Evie. – Lá está Evie, e por sorte a tia Florence aparentemente não está por perto como de costume.
Esperando sozinha e olhando distraidamente para uma pintura de paisagem com moldura dourada, Evie parecia perdida em seus pensamentos. Sua postura encolhida era a de uma pessoa tímida e sem importância. Estava claro que não se sentia parte da reunião, nem queria ser.
Embora ninguém a tivesse olhado por tempo suficiente para notá-la, na verdade ela era muito bonita – talvez até mais que Annabelle –, mas de um modo nada convencional. Era ruiva e sardenta e tinha grandes olhos azuis redondos e lábios cheios totalmente fora de moda. Seu corpo bem-dotado era de tirar o fôlego, embora os vestidos modestos que era forçada a usar não a favorecessem nem um pouco. Além disso, seus ombros caídos não ajudavam a realçar seus encantos.
Lillian se aproximou e surpreendeu Evie agarrando e puxando a mão enluvada dela.
– Venha – sussurrou.
Os olhos de Evie brilharam de alegria ao vê-la. Ela hesitou e, insegura, relanceou os olhos para a tia, que conversava com algumas viúvas ricas em um canto. Certificando-se de que Florence estava absorta demais na conversa para notar, as quatro garotas escapuliram do salão e correram pelo corredor como prisioneiras em fuga.
– Para onde estamos indo? – sussurrou Evie.
– Para o terraço dos fundos – respondeu Annabelle.
Elas foram para os fundos da casa e saíram por portas francesas que se abriam para um grande terraço com piso de pedra. Acompanhando toda a extensão da casa, o terraço dava vista para os amplos jardins inferiores. Parecia uma cena de pintura, com pomares, canteiros de flores raras e caminhos que levavam à floresta, com o rio Itchen correndo ao lado de uma ribanceira próxima delimitada por um muro de pedra-ferro.
Lillian se virou para Evie e a abraçou.
– Evie, senti muito a sua falta! – exclamou. – Se você soubesse de todos os planos malucos que fizemos para livrá-la de sua família! Por que não deixaram nenhuma de nós visitá-la?
– E-eles me desprezam – disse Evie com a voz sufocada. – Nunca tinha percebido q-quanto até pouco tempo. Começou quando tentei ver meu pai. Depois que me pegaram, fui trancada em meu quarto durante dias, q-quase sem nenhuma comida ou água. Disseram que eu era ingrata e desobediente, e que meu sangue ruim finalmente tinha vindo à tona. Para eles eu não sou n-nada além de um terrível erro que minha mãe cometeu. Tia Florence disse que sou culpada pela morte dela.
Chocada, Lillian recuou para olhá-la.
– Ela lhe disse isso? Com essas palavras?
Evie fez que sim com a cabeça.
Sem pensar, Lillian proferiu alguns xingamentos que fizeram Evie empalidecer. Uma das qualidades mais questionáveis de Lillian era sua capacidade de xingar como um marinheiro, adquirida com o longo tempo que passara com a avó, que trabalhara como lavadeira nas docas.
– Eu sei que isso não é v-verdade – murmurou Evie. – Quero dizer, m-minha mãe realmente morreu no parto, mas sei que a culpa não foi minha.
Mantendo um braço ao redor dos ombros de Evie, Lillian foi com ela até uma mesa próxima, enquanto Annabelle e Daisy as seguiam.
– Evie, o que pode ser feito para afastá-la dessas pessoas?
A garota deu de ombros, sem esperança.
– Meu pai está m-muito doente. Perguntei se podia morar com ele, mas ele disse que não. E
está fraco demais para impedir que a família da minha mãe m-me leve de volta.
As quatro garotas ficaram em silêncio por um momento. A triste realidade era que, embora Evie tivesse idade suficiente para sair da tutela de sua família, a situação de uma mulher solteira era precária. Evie só herdaria sua fortuna depois da morte do pai e até lá não tinha meios de se sustentar.
– Você pode ir morar comigo e o Sr. Hunt em Rutledge – disse Annabelle, a voz cheia de calma determinação. – Meu marido não deixará ninguém levá-la se você não quiser. Ele é um homem poderoso e...
– Não. – Evie balançou a cabeça antes mesmo que Annabelle terminasse a frase. – Eu n-nunca faria isso com você... a imposição seria muito... ah, nunca. E você deve saber quanto isso p-pareceria estranho... o que as pessoas diriam... – Ela balançou a cabeça, impotente. – Ando pensando em uma coisa... minha tia Florence teve a ideia de que eu d-deveria me casar com o filho dela. O primo Eustace. Ele não é um mau homem... e isso me permitiria viver longe dos meus outros parentes...
Annabelle franziu o nariz.
– Hum. Sei que hoje em dia ainda há casamentos entre primos de primeiro grau, mas isso parece um pouco incestuoso, não é? Qualquer consanguinidade parece tão... argh.
– Espere um minuto – disse Daisy, desconfiada, indo para o lado de Lillian. – Nós conhecemos o primo de Evie, Eustace. Lillian, você se lembra do baile em Winterbourne House?
– Seus olhos se estreitaram acusadoramente. – Foi ele quem quebrou a cadeira, não foi, Evie?
Evie confirmou a suspeita de Daisy com um murmúrio indistinto.
– Meu Deus! – exclamou Lillian. – Você não pode estar pensando em se casar com ele, Evie!
Annabelle estava com uma expressão intrigada.
– Como ele quebrou a cadeira? Ele tem mau gênio? Ele a atirou?
– Ele a quebrou se sentando nela – disse Lillian.
– O primo Eustace tem ossos um pouco l-largos – admitiu Evie.
– O primo Eustace tem mais dobras no queixo do que eu tenho dedos nas mãos – rebateu Lillian, impaciente. – E durante a festa ele estava ocupado demais enchendo a barriga para se dar ao trabalho de conversar.
– Eu estendi a mão para cumprimentá-lo e quando a puxei de volta havia meia asa de frango assado nela – acrescentou Daisy.
– Ele se esqueceu de que a estava segurando – disse Evie, justificando-o. – Pelo que me lembro, ele disse que sentia muito ter estragado sua luva.
Daisy franziu a testa.
– Isso não me preocupou tanto quanto a questão de onde ele estava escondendo o resto do frango.
Recebendo um olhar desesperado de Evie, Annabelle tentou acalmar os ânimos cada vez mais acirrados das irmãs.
– Não temos muito tempo – observou. – Vamos falar sobre o primo Eustace quando estivermos mais livres para isso. Lillian, querida, você não tinha algo para nos contar?
Essa era uma boa tática para mudar de assunto. Cedendo ao ver a expressão aflita de Evie, Lillian abandonou temporariamente o tema de Eustace e fez um sinal para que todas se sentassem à mesa.
– Tudo começou com uma visita a uma perfumaria em Londres...
Acompanhada por comentários ocasionais de Daisy, Lillian descreveu a ida à perfumaria do Sr. Nettle, o perfume que mandara fazer e suas propriedades mágicas.
– Interessante – comentou Annabelle com um sorriso cético. – Você o está usando agora?
Deixe-me cheirá-lo.
– Daqui a pouco. Ainda não terminei a história. – Lillian tirou o frasco de perfume de sua bolsa reticulada e o pôs no centro da mesa, onde brilhou suavemente à luz difusa de archote no terraço. – Eu tenho de lhes contar o que aconteceu hoje.
Ela contou o episódio do jogo de rounders improvisado atrás do pátio dos estábulos e do inesperado aparecimento de Westcliff. Annabelle e Evie ouviram incrédulas, arregalando os olhos ao saberem que o conde participara do jogo.
– Não admira que lorde Westcliff goste de rounders – comentou Annabelle. – Ele aprecia atividades ao ar livre. Mas o fato de estar disposto a jogar com você...
De repente Lillian sorriu.
– É claro que sua aversão a mim foi superada pela irresistível necessidade de explicar tudo o que eu estava fazendo errado. Ele começou me dizendo como eu deveria corrigir meu balanço e depois... – O sorriso sumiu e ela ficou desconfortavelmente consciente de um rubor que se espalhou rápido por sua pele.
– Então ele pôs os braços em volta dela – Daisy apressou-se em dizer, quebrando o ansioso silêncio que se instalara na mesa.
– Ele o quê? – perguntou Annabelle, boquiaberta.
– Apenas para me mostrar como segurar o taco direito. – As sobrancelhas escuras de Lillian se juntaram. – De qualquer maneira, o que aconteceu durante o jogo não importa. O
surpreendente foi o que houve depois. Westcliff estava nos guiando pelo caminho mais curto para casa, mas nós fomos separadas quando nosso pai e alguns amigos apareceram. Então Daisy correu para a frente, enquanto eu e o conde fomos obrigados a esperar atrás do zimbro. E
enquanto estávamos lá juntos...
As outras três Flores Secas se inclinaram para a frente, olhando-a sem pestanejar.
– O que aconteceu? – perguntou Annabelle.
Lillian sentiu as pontas de suas orelhas ficarem vermelhas e foi preciso um grande esforço para pronunciar as palavras. Ela olhou fixamente para o pequeno frasco de perfume enquanto murmurava:
– Ele me beijou.
– Meu Deus! – exclamou Annabelle, enquanto Evie olhava muda para Lillian.
– Eu sabia! – disse Daisy. – Eu sabia!
– Como você sabia... – começou Lillian, mas Annabelle a interrompeu, ansiosa:
– Uma vez? Mais de uma vez?
Pensando na série erótica de beijos, Lillian ficou ainda mais vermelha.
– Mais de uma vez – admitiu.
– C-como foi? – perguntou Evie.
Por algum motivo não ocorrera a Lillian que as amigas iam querer um relatório sobre a perícia sexual de lorde Westcliff. Perturbada com o insistente calor que agora fazia suas bochechas, seu pescoço e sua testa arderem, tentou pensar em algo para apaziguá-las. Por um momento se lembrou vividamente de Westcliff se aproximando... da rigidez do corpo do conde, de sua boca quente e ávida. Suas entranhas se agitaram como se tivessem se transformado em metal derretido e de repente ela não conseguiu admitir a verdade.
– Horrível – respondeu, mexendo os pés debaixo da mesa, nervosa. – Westcliff tem o pior beijo que já experimentei.
– Ahhh... – Daisy e Evie suspiraram desapontadas.
Contudo, Annabelle deu a Lillian um olhar claramente desconfiado.
– Isso é estranho, porque ouvi alguns boatos de que Westcliff sabe muito bem agradar a uma mulher.
Lillian respondeu com um grunhido evasivo.
– De fato – continuou Annabelle –, participei de um jogo de cartas menos de uma semana atrás e uma das mulheres à mesa disse que Westcliff era tão maravilhoso na cama que nunca encontrará outro amante como ele.
– Quem disse isso? – perguntou Lillian.
– Não posso contar – respondeu Annabelle. – Foi confidencial.
– Não acredito – respondeu Lillian, irritada. – Nem mesmo nos círculos que você frequenta alguém teria o descaramento de falar sobre essas coisas em público.
– Peço licença para discordar. – Annabelle a olhou com um leve ar de superioridade. – As mulheres casadas ficam sabendo de fofocas muito melhores que as solteiras.
– Maldição – disse Daisy, com inveja.
Mais uma vez fez-se silêncio na mesa enquanto o olhar divertido de Annabelle se fixava no carrancudo de Lillian. Para o seu desgosto, Lillian foi a primeira a desviar os olhos.
– Desembuche – ordenou Annabelle, a voz trêmula com uma súbita risada. – Diga a verdade.
Westcliff beija mesmo tão mal assim?
– Ah, acho que ele é passável – admitiu Lillian de má vontade. – Mas essa não é a questão.
Então Evie falou, os olhos arregalados de curiosidade:
– Qual é a q-questão?
– Westcliff foi levado a isso, a beijar uma garota que detesta, no caso, eu, pelo cheiro deste perfume. – Lillian apontou o pequeno frasco brilhante.
As quatro garotas olharam para o vidro, surpresas.
– Não mesmo – disse Annabelle sem acreditar.
– Sim – insistiu Lillian.
Daisy e Evie continuaram em extasiado silêncio, olhando alternadamente para Lillian e Annabelle como se estivessem assistindo a uma partida de tênis.
– Lillian, você, a garota mais prática que já conheci, dizer que tem um perfume que age como afrodisíaco, é a coisa mais surpreendente...
– Afro o quê?
– Uma poção do amor – disse Annabelle. – Se lorde Westcliff demonstrou interesse por você, não foi por causa do seu perfume.
– O que a faz ter tanta certeza disso?
Annabelle ergueu as sobrancelhas.
– O perfume produziu esse efeito em algum outro homem que você conhece?
– Não que eu tenha notado – admitiu Lillian, relutante.
– Há quanto tempo o está usando?
– Há cerca de uma semana, mas eu...
– E o conde é o único homem em que parece ter funcionado?
– Vai funcionar com outros homens – argumentou Lillian. – Só que eles ainda não tiveram a oportunidade de cheirá-lo. – Percebendo a incredulidade da amiga, suspirou. – Sei como isso soa.
Eu não acreditava em nenhuma palavra que o Sr. Nettle disse sobre este perfume até hoje. Mas juro que no momento em que o conde o cheirou...
Annabelle a olhou com uma expressão pensativa, claramente se perguntando se aquilo poderia ser verdade.
Evie quebrou o silêncio:
– Posso v-vê-lo, Lillian?
– Claro.
Estendendo a mão para o frasco como se o perfume fosse altamente inflamável, Evie o destampou, levou-o ao nariz sardento e o cheirou.
– N-não sinto nada.
– Será que só funciona com homens? – sugeriu Daisy.
– O que eu gostaria de saber – disse Lillian devagar – é se, caso alguma de vocês o use, Westcliff se sentirá tão atraído quanto se sentiu por mim. – Ela olhou diretamente para Annabelle enquanto falava.
Percebendo o que ela estava prestes a propor, Annabelle assumiu um ar de cômico espanto.
– Ah, não – disse, balançando a cabeça. – Sou uma mulher casada, Lillian, muito apaixonada por meu marido, e não tenho o menor interesse em seduzir o melhor amigo dele!
– Você não teria de seduzi-lo – disse Lillian. – Só usar o perfume e depois ficar perto dele e ver se ele a nota.
– Vou fazer isso – concordou Daisy, entusiasmada. – De fato, proponho que todas nós usemos o perfume esta noite, para descobrir se nos tornará mais atraentes aos homens.
Evie riu diante da ideia, enquanto Annabelle revirava os olhos.
– Você não pode estar falando sério.
Lillian lhe deu um sorriso desafiador.
– Não há nenhum mal em tentar, não é? Considere isso um experimento científico. Vocês só estão colhendo evidências para provar uma teoria.
Um gemido escapou dos lábios de Annabelle enquanto ela observava as duas garotas mais novas passando algumas gotas de perfume.
– Esta é a coisa mais boba que já fiz – comentou. – Ainda mais absurda do que quando jogamos rounders em roupas de baixo.
– Calçolas – disse Lillian de pronto, continuando o antigo debate delas sobre o nome adequado para roupas de baixo.
– Dê-me isso. – Com uma expressão resignada, Annabelle estendeu a mão para pegar o frasco e depois mergulhou a ponta do dedo no líquido.
– Use um pouco mais – aconselhou Lillian, observando com satisfação Annabelle aplicar o perfume atrás das orelhas. – E ponha um pouco no pescoço também.
– Eu não costumo usar perfume – disse Annabelle. – O Sr. Hunt gosta do cheiro de pele limpa.
– Ele pode preferir o de dama-da-noite.
Annabelle pareceu chocada.
– É assim que se chama?
– É o nome de uma orquídea que floresce à noite – explicou Lillian.
– Ah, bom – disse Annabelle em tom zombeteiro. – Achei que era o nome de uma prostituta.
Ignorando o comentário, Lillian tirou o frasco dela. Depois de aplicar algumas gotas do perfume no próprio pescoço e nos pulsos, colocou-o de volta em sua bolsa reticulada e se levantou da mesa.
– Agora, vamos procurar Westcliff – disse alegremente, olhando para as Flores Secas.
CAPÍTULO 5
Sem saber do ataque que logo seria lançado contra ele, Marcus relaxava no escritório com seu cunhado, Gideon Shaw, e seus amigos Simon Hunt e lorde St. Vincent. Eles tinham se reunido para conversar em particular antes do início do jantar formal. Recostando-se em sua cadeira atrás da grande escrivaninha de mogno, Marcus olhou para o relógio de bolso. Oito horas – tinha de se juntar aos outros, principalmente porque era o anfitrião. Contudo, permaneceu imóvel e franziu a testa para o mostrador implacável do relógio, com a seriedade de um homem que tinha um dever desagradável a cumprir.
Teria de falar com Lillian Bowman, com quem se comportara como um louco naquela tarde.
Agarrando-a, beijando-a em um frenesi de paixão desenfreada... Pensar nisso o fez se mexer desconfortavelmente na cadeira.
A natureza franca de Marcus o impelia a lidar com a situação de modo direto. Só havia uma solução para esse dilema: pedir desculpas pelo seu comportamento e garantir a ela que isso nunca voltaria a acontecer. De modo algum passaria o próximo mês se esgueirando pela própria casa em um esforço para evitá-la. Tentar ignorar o ocorrido era impraticável.
Só queria saber por que aquilo acontecera.
Desde aquele momento atrás do zimbro Marcus não tinha conseguido pensar em mais nada além da própria quebra de decoro e, o que era ainda mais desconcertante, do prazer primitivo de beijar a irritante víbora.
– Inútil – ouviu St. Vincent dizer. Ele estava sentado no canto da escrivaninha olhando pelo estereoscópio. – Quem liga para vistas, paisagens e monumentos? – continuou, indolente. – Você precisa de cartões estereoscópicos com imagens de mulheres, Westcliff. Isso, sim, vale a pena ver nesta coisa.
– Eu achava que você tinha visto o suficiente delas na forma tridimensional – respondeu Marcus, seco. – Não está um pouco concentrado demais no tema da anatomia feminina, St. Vincent?
– Você tem seus hobbies, eu tenho os meus.
Marcus olhou de relance para seu cunhado, que estava educadamente com o rosto inexpressivo, e Simon Hunt, que parecia se divertir com a conversa. Os três homens eram todos muito diferentes em caráter e origem. Seu único denominador comum era a amizade com Marcus. Gideon era um “aristocrata americano” (o mais contraditório dos termos), bisneto de um ambicioso capitão de navio ianque. Simon Hunt era um empresário filho de açougueiro, um homem perspicaz, empreendedor e confiável em todos os aspectos. E St. Vincent era um canalha sem princípios e um prolífico amante de mulheres. Estava sempre presente nas festas e reuniões da moda e só ia embora quando a conversa se tornava “tediosa” – o que significava dizer que algo profundo ou interessante era discutido –, então ele saía em busca de outra diversão.
Marcus nunca tinha visto um cinismo tão arraigado quanto o de St. Vincent. O visconde quase nunca dizia o que pensava e, se já havia tido um momento de compaixão por alguém, o disfarçara muito bem. Às vezes as pessoas se referiam a ele como uma alma perdida, e de fato Vincent parecia irrecuperável. Era provável que Hunt e Shaw não tivessem tolerado a companhia de Vincent se não fosse por sua amizade com Marcus.
O próprio Marcus não tinha muito em comum com St. Vincent, exceto as lembranças dos dias em que frequentaram a mesma escola. St. Vincent várias vezes se mostrara um amigo solidário, fazendo tudo o que fosse preciso para tirar Marcus de encrencas e dividindo com ele com desinteressada benevolência pacotes de doces que trazia de casa. Além disso, sempre fora o primeiro a ficar do lado de Marcus em uma briga.
St. Vincent sabia o que era ser desprezado por um pai, porque o seu não tinha sido melhor que o de Marcus. Os dois garotos se compadeciam um do outro com humor negro e faziam tudo o que podiam para se ajudar. Nos anos após saírem da escola, o caráter de St. Vincent pareceu se corromper consideravelmente, mas Marcus não era do tipo que se esquecia de dívidas passadas.
Tampouco dava as costas a um amigo.
Quando St. Vincent se sentou na cadeira ao lado da de Gideon Shaw, eles formaram um quadro impressionante, os dois louros e favorecidos pela natureza, contudo muito diferentes em aparência. Shaw era urbano e bonito e tinha um sorriso irreverente que encantava todos que o viam. Suas feições eram agradavelmente marcadas por sinais sutis de que, apesar de seus bens materiais, a vida nunca fora fácil para ele. Qualquer que fosse a dificuldade que se apresentasse, ele a enfrentava com graça e sabedoria.
Em contrapartida, St. Vincent possuía uma beleza masculina exótica, os olhos azul-claros lembrando os de um gato e a boca com uma ponta de crueldade mesmo quando sorria. Ele cultivava um estilo de eterna indolência que muitos londrinos modernos tentavam imitar. Se quisesse se vestir com extremo apuro, sem dúvida o faria. Mas ele sabia que qualquer tipo de ornamentação só serviria para desviar a atenção de sua aparência esplendorosa, por isso se vestia com simplicidade, com roupas pretas de corte perfeito.
Com St. Vincent no escritório, a conversa naturalmente passou a girar em torno de mulheres.
Três dias antes uma mulher casada e, pelo que diziam, com uma boa posição na sociedade londrina havia tentado suicídio quando seu caso amoroso com St. Vincent terminara. O visconde achara conveniente escapar para Stony Cross no meio do furor do escândalo.
– Um espetáculo de melodrama ridículo – zombou St. Vincent, passando as pontas de seus longos dedos na borda da taça de conhaque. – Dizem que ela cortou os pulsos, quando na verdade os arranhou com um alfinete de chapéu e depois começou a gritar para uma criada ir ajudá-la. – Ele balançou a cabeça, indignado. – Idiota. Depois de todo o nosso esforço para manter o caso em segredo, ela faz uma coisa dessas. Agora todos em Londres sabem, inclusive o marido. E o que ela esperava ganhar com isso? Se tentou me punir por deixá-la, vai sofrer cem vezes mais. As pessoas sempre culpam mais as mulheres, sobretudo as casadas.
– Qual foi a reação do marido? – perguntou Marcus, concentrando-se imediatamente nas questões práticas. – Pode querer se vingar?
A indignação no olhar de St. Vincent aumentou.
– Duvido muito, porque ele tem o dobro da idade dela e não a toca há anos. É improvável que se arrisque a me desafiar em prol de sua suposta honra. Se ela tivesse mantido o caso em segredo para poupá-lo de ser chamado de corno, ele a teria deixado fazer o que quisesse. Mas em vez disso ela fez tudo o que pôde para mostrar sua indiscrição, aquela tola.
Simon Hunt olhou para o visconde com tranquila curiosidade.
– Acho interessante – disse ele em voz baixa – você se referir ao caso como indiscrição dela e não sua.
– Foi – disse St. Vincent, enfático. A luz do lampião brincou lindamente sobre os ângulos marcados do rosto dele. – Eu fui discreto, ela não. – Ele balançou a cabeça com um suspiro de exaustão. – Nunca deveria tê-la deixado me seduzir.
– Ela o seduziu? – perguntou Marcus, cético.
– Juro por tudo o que é mais sagrado... – St. Vincent se interrompeu. – Espere. Como nada me é sagrado, deixe-me refazer a frase. Você deve acreditar em mim quando eu digo que foi ela quem incentivou o caso. Dava indiretas o tempo todo, começou a aparecer nos lugares onde eu estava e enviou mensagens me implorando para visitá-la quando quisesse, garantindo que vivia separada do marido. Eu nem a queria. Soube antes mesmo de tocá-la que seria muito entediante.
Mas cheguei ao ponto em que não ficava bem continuar a rejeitá-la, então fui à casa dela e ela me recebeu nua no hall de entrada. O que eu devia fazer?
– Ir embora? – sugeriu Gideon Shaw com um leve sorriso e olhando para o visconde como se ele fosse um animal do jardim zoológico real.
– Eu deveria ter ido mesmo – admitiu St. Vincent, taciturno. – Mas nunca consegui rejeitar uma mulher que quer sexo. E já fazia muito tempo que eu não me deitava com ninguém, pelo menos uma semana, e fui...
– Uma semana é muito tempo para não se deitar com ninguém? – interrompeu-o Marcus, arqueando uma sobrancelha.
– Vai me dizer que não é?
– St. Vincent, se um homem tem tempo para ter relações sexuais com uma mulher mais de uma vez por semana, ele claramente não tem muito que fazer. Há inúmeras responsabilidades que deveriam mantê-lo ocupado em vez de um... – Marcus parou, pensando no termo certo a usar. – Encontro sexual.
Um grande silêncio se seguiu às suas palavras. Olhando para Shaw, Marcus notou a súbita preocupação do cunhado com a quantidade certa de cinza a bater de seu cigarro em um cinzeiro de cristal, e franziu a testa.
– Você é um homem ocupado, Shaw, com interesses comerciais em dois continentes. Sem dúvida, concorda comigo.
Shaw esboçou um sorriso.
– Como meus encontros sexuais são exclusivamente com minha esposa, que por acaso é sua irmã, terei o bom senso de manter a boca fechada.
St. Vincent sorriu com indolência.
– É uma pena algo como o bom senso impedir uma conversa interessante. – Seu olhar se desviou para Simon Hunt, que estava de cara amarrada. – Hunt, você pode muito bem dar sua opinião. Com que frequência um homem deveria fazer amor com uma mulher? Mais de uma vez por semana é um caso de apetite sexual imperdoável?
Hunt lançou a Marcus um olhar que transmitia um vago pedido de desculpas.
– Por mais que eu hesite em concordar com St. Vincent...
Marcus franziu a testa ao insistir:
– É um fato bem conhecido que os excessos sexuais fazem mal à saúde, assim como o excesso de comida e bebida...
– Você acabou de descrever minha noite perfeita, Westcliff – murmurou St. Vincent com um sorriso, e voltou sua atenção para Hunt. – Com que frequência você e sua esposa...
– Eu não discuto o que acontece no meu quarto – disse Hunt com firmeza.
– Mas você tem relações sexuais com ela mais de uma vez por semana? – insistiu St. Vincent.
– Diabos, sim – murmurou Hunt.
– E está certo em ter, com uma mulher bonita como a Sra. Hunt – disse Vincent, e riu do olhar ameaçador que Hunt lhe lançou. – Ah, não se zangue. Sua esposa é a última mulher na Terra para quem eu olharia. Não tenho nenhuma vontade de cair morto sob o peso de seus punhos enormes. E as mulheres felizes no casamento nunca me atraíram, não quando as infelizes são muito mais fáceis. – Ele tornou a olhar para Marcus. – Parece que ninguém compartilha sua opinião, Westcliff. Os valores do trabalho duro e da autodisciplina não são páreo para o corpo quente de uma mulher na cama.
Marcus franziu a testa.
– Há coisas mais importantes.
– Como o quê? – perguntou St. Vincent com a paciência de um garoto rebelde tendo de aturar um sermão indesejado de seu avô decrépito. – Suponho que você dirá algo como
“progresso social”. Diga-me, Westcliff... – Seu olhar se tornou travesso. – Se o demônio lhe propusesse um pacto pelo qual todos os órfãos famintos da Inglaterra seriam bem alimentados daqui em diante, mas em troca você nunca mais pudesse ter relações sexuais com uma mulher, o que escolheria? Os órfãos ou sua satisfação?
– Eu nunca respondo a perguntas hipotéticas.
St. Vincent riu.
– Como eu pensei. Azar dos órfãos.
– Eu não disse... – começou Marcus, mas parou, impaciente. – Não importa. Meus convidados estão esperando. Vocês podem continuar essa conversa inútil aqui ou me acompanhar às salas de recepção.
– Eu vou com você – disse Hunt de pronto, erguendo seu corpo comprido da cadeira. –
Minha esposa deve estar me procurando.
– A minha também – disse Shaw solidariamente, levantando-se.
St.Vincent lançou um olhar divertido para Marcus.
– Deus me livre de deixar uma mulher pôr uma argola em meu nariz e, pior ainda, parecer muito feliz com isso.
Esse era um sentimento que, por acaso, Marcus compartilhava.
Contudo, enquanto os quatro homens se afastavam distraidamente do escritório, Marcus não pôde evitar refletir sobre o fato curioso de que Simon Hunt, que, com exceção de St. Vincent, tinha sido o solteiro mais convicto que já conhecera, parecia inesperadamente satisfeito nas amarras do casamento. Sabendo mais do que ninguém como Hunt havia se agarrado à sua liberdade e o número reduzido de relacionamentos positivos que ele já tivera com mulheres, Marcus ficara surpreso com sua disposição de abdicar de sua liberdade. E por uma mulher como Annabelle, que a princípio parecera pouco mais do que uma caçadora de marido frívola e egoísta.
Mas acabara se tornando claro que havia um grau de devoção incomum entre o casal, e Marcus era forçado a admitir que Hunt fizera uma boa escolha.
– Nenhum arrependimento? – murmurou para Hunt enquanto eles andavam a passos largos pelo corredor e Shaw e St. Vincent os seguiam em um ritmo mais lento.
Hunt o olhou com um sorriso indagador. Ele era um homem grande, de cabelos escuros, com os mesmos firme senso de virilidade e ávido interesse por caçadas e esportes que Marcus.
– De quê?
– De ser conduzido pelo nariz por sua esposa.
Isso fez Hunt dar um sorriso divertido e balançar a cabeça.
– Se minha esposa me conduz, Westcliff, é por uma parte totalmente diferente do meu corpo.
E não, não tenho nenhum arrependimento.
– Acho que há algumas conveniências em estar casado – refletiu Marcus em voz alta. – Ter uma mulher à mão para satisfazer suas necessidades, para não mencionar o fato de que sai mais barato ter uma esposa do que uma amante. Além disso, há que se considerar a geração de herdeiros...
Hunt riu do esforço de Marcus para abordar o assunto sob um prisma prático.
– Não me casei com Annabelle por conveniência. E, embora não tenha feito as contas, posso lhe assegurar que ela não sai mais barato que uma amante. Quanto à geração de herdeiros, essa foi a última coisa em que pensei quando a pedi em casamento.
– Então por que se casou?
– Eu lhe diria, mas pouco tempo atrás você disse que esperava que eu não começasse a... quais foram mesmo suas palavras?... “Espalhar sentimentalismo aos quatro ventos”.
– Você acha que está apaixonado por ela.
– Não – retrucou Hunt, em um tom calmo. – Eu estou.
Marcus deu de ombros.
– Se acreditar nisso torna o casamento mais agradável para você, acredite.
– Meu Deus, Westcliff... – murmurou Hunt com um sorriso de curiosidade. – Você nunca se apaixonou?
– É claro que sim. Obviamente encontrei algumas mulheres que eram preferíveis a outras em termos de temperamento e aparência física...
– Não, não, não... Não me refiro a encontrar alguém “preferível”. Refiro-me a ficar totalmente entusiasmado com uma mulher que o enche de desespero, desejo, êxtase...
Marcus lhe lançou um olhar de desprezo.
– Não tenho tempo para essas besteiras.
Hunt o irritou ao rir.
– Então o amor não será um fator decisivo para você se casar?
– Definitivamente, não. Casamento é algo importante demais para ser decidido com base em emoções tão voláteis.
– Talvez você tenha razão – concordou Hunt depressa demais, como se não acreditasse no que dizia. – Um homem como você deveria usar a razão para escolher uma esposa. Estou interessado em ver como fará isso.
Eles chegaram a uma das salas de recepção, onde Livia encorajava discretamente os convidados a se prepararem para a procissão formal até a sala de jantar. Assim que viu Marcus, lançou-lhe um olhar desaprovador por ele tê-la deixado sozinha até então, cuidando dos convidados. Marcus lhe retribuiu o olhar com outro impenitente. Entrando na sala, ele viu que Thomas Bowman e a esposa, Mercedes, estavam logo à sua direita.
Marcus apertou a mão de Bowman, um homem calmo e corpulento com um bigode que lembrava uma vassoura, tão grosso que quase compensava a calvície. Quando estava em sociedade, Bowman exibia a expressão sempre distraída de alguém que preferiria estar fazendo outras coisas. Somente quando a discussão girava em torno de negócios – qualquer tipo de negócio – sua atenção era despertada com a intensidade da de um espadachim.
– Boa noite – murmurou Marcus, e se curvou sobre a mão de Mercedes Bowman.
Ela era tão magra que daria para cortar cenouras na superfície formada pelas saliências e reentrâncias sob sua luva. Era uma mulher áspera, um feixe de nervos, de contida agressividade.
– Por favor, aceitem minhas desculpas por não ter podido vir lhes dar as boas-vindas esta tarde – continuou Marcus. – E me permitam dizer como é bom vê-los de volta a Stony Cross Park.
– Ah, milorde – trinou Mercedes. – Estamos muito felizes em voltar à sua magnífica propriedade! E quanto a esta tarde, entendemos sua ausência, sabendo que um homem importante como o senhor, com tantas preocupações e responsabilidades, deve ter inúmeros compromissos que tomam seu tempo. – Ela moveu um dos braços de um modo que fez Marcus pensar nos movimentos de um louva-a-deus. – Ah... estou vendo minhas duas adoráveis filhas bem ali... – A voz dela se tornou ainda mais alta quando as chamou e lhes fez um gesto insistente para que se aproximassem. – Meninas! Meninas, olhem quem eu encontrei. Venham falar com lorde Westcliff!
Marcus manteve o rosto inexpressivo ao ver as sobrancelhas erguidas de algumas pessoas próximas. Olhando na direção do alvo dos gestos rápidos de Mercedes, viu as irmãs Bowmans, não mais as empoeiradas garotas travessas jogando rounders atrás do pátio dos estábulos. Seu olhar se fixou em Lillian, que estava com um vestido verde-claro cujo corpete parecia ser sustentado apenas por um par de pequenos broches de ouro nos ombros. Antes que ele pudesse controlar o rumo de seus pensamentos rebeldes, imaginou-se soltando aqueles broches e deixando a seda verde deslizar pela pele clara do peito e dos ombros dela...
Marcus ergueu o olhar para o rosto de Lillian. Os cabelos negros estavam impecavelmente presos no alto da cabeça em uma massa intricada que parecia quase pesada demais para ser sustentada pelo pescoço esguio. Com os cabelos afastados da testa, os olhos pareciam mais felinos do que de costume. Quando Lillian lhe devolveu o olhar, um leve rubor coloriu suas bochechas e ela abaixou o queixo em um cauteloso cumprimento. Era óbvio que a última coisa que queria era atravessar a sala até eles – até ele – e Marcus não podia culpá-la por isso.
– Não há necessidade de chamar suas filhas, Sra. Bowman – sussurrou ele. – Estão desfrutando a companhia das amigas.
– Amigas!... – exclamou Mercedes com desdém. – Se está se referindo àquela escandalosa Annabelle Hunt, posso lhe garantir que não aprovo...
– Eu passei a ter a Sra. Hunt na mais alta estima – disse Marcus, olhando diretamente para a mulher.
Surpresa com a afirmação, Mercedes empalideceu um pouco e logo tentou se corrigir:
– Se o senhor, com seu julgamento superior, estima a Sra. Hunt, então certamente devo concordar, milorde. De fato, sempre achei...
– Westcliff – interrompeu Thomas Bowman, tendo pouco interesse no tema das filhas ou das amigas delas –, quando teremos uma oportunidade de discutir os negócios de que tratamos em nossa última carta?
– Amanhã, se quiser – respondeu Marcus. – Nós programamos uma cavalgada bem cedo, antes do café da manhã.
– Vou abdicar da cavalgada, mas o verei no café da manhã.
Eles apertaram as mãos e Marcus os deixou com uma leve mesura, indo conversar com outros convidados que buscavam sua atenção. Logo uma recém-chegada se juntou ao grupo e eles rapidamente abriram espaço para a figura diminuta de Georgiana, Lady Westcliff... a mãe de Marcus. Ela estava muito empoada, os cabelos prateados presos num penteado elaborado e os pulsos, o pescoço e as orelhas ornamentados com muitas joias brilhantes. Até mesmo sua bengala cintilava, o castão dourado cravejado de pequenos diamantes.
Algumas anciãs tinham uma aparência áspera, mas um coração de ouro. A condessa de Westcliff não era uma dessas mulheres. Seu coração – cuja existência era discutível –
definitivamente não era de ouro ou qualquer substância maleável. Do ponto de vista físico, a condessa não era nem nunca fora bonita. Se alguém substituísse suas roupas caras por um vestido simples de caxemira e um avental, seria facilmente confundida com uma vendedora de leite. Ela tinha o rosto redondo, a boca pequena, olhos inexpressivos como os de um pássaro e o nariz sem nenhuma forma ou tamanho notável. Seu aspecto mais distintivo era um ar de rabugento desencanto, como o de uma criança que acaba de abrir um presente de aniversário e descobre que é a mesma coisa que ganhara no ano anterior.
– Boa noite, milady – disse Marcus para a mãe, olhando-a com um sorriso irônico. – Estamos honrados por ter decidido se juntar a nós esta noite.
A condessa frequentemente evitava jantares concorridos como aquele, preferindo fazer suas refeições em um de seus aposentos particulares no andar de cima. Naquela noite parecia ter decidido abrir uma exceção.
– Eu queria ver se havia algum convidado interessante nesta multidão – respondeu ela, mal-humorada, o olhar régio varrendo a sala. – Mas, pelo visto, parece o mesmo bando de tolos.
Houve risos contidos e nervosos no grupo, porque eles preferiram – erroneamente – supor que o comentário fora uma brincadeira.
– Talvez queira esperar para dar sua opinião depois de ser apresentada a mais algumas pessoas – respondeu Marcus, pensando nas irmãs Bowmans. Sua mãe julgadora encontraria infinitos defeitos naquela dupla incorrigível.
Seguindo a ordem de precedência, Marcus conduziu a condessa para a sala de jantar, e ambos foram sendo paulatinamente seguidos pelos de posição hierárquica inferior.
Os jantares em Stony Cross Park eram famosos pela fartura, e este não era uma exceção. Oito pratos de peixe, carne de caça, aves e carne bovina foram servidos, acompanhados por arranjos de flores frescas que eram levados para a mesa a cada troca de prato. Eles começaram com sopa de tartaruga, salmão grelhado com alcaparras, perca e tainha com molho cremoso e um suculento peixe-galo com molho de camarão. Depois vieram carne de cervo, pernil picante com ervas, miúdos de vitela refogados flutuando em molho fumegante e frango assado crocante. E assim continuou até os convidados ficarem empanzinados e letárgicos, seus rostos corados do vinho constantemente reposto em suas taças por criados atentos. O jantar foi concluído com uma sucessão de bandejas repletas de cheesecakes de amêndoa, pudins de limão e arroz-doce.
Abstendo-se da sobremesa, Marcus tomou uma taça de vinho do Porto e se entreteve dando rápidos olhares para Lillian Bowman. Nos raros momentos em que ela estava tranquila e calada, parecia uma recatada princesa. Mas, assim que começava a falar – gesticulando com seu garfo e interrompendo a conversa dos homens –, a aparência régia desaparecia por completo. Lillian era direta demais, certa demais de que aquilo que dizia era interessante e valia a pena ser ouvido. Ela não tentava fingir interesse pelas opiniões dos outros e parecia incapaz de demonstrar deferência por quem quer que fosse.
Depois dos rituais de vinho do Porto para os homens, chá para as mulheres e mais algumas rodadas de conversas fúteis, os convidados se dispersaram. Dirigindo-se devagar para o salão com um grupo de convidados que incluía os Hunts, Marcus percebeu que Annabelle estava se comportando de um modo um pouco estranho. Caminhava tão perto dele que o cotovelo de um batia no do outro e se abanava entusiasticamente, embora o interior da mansão estivesse bastante fresco. Olhando-a de soslaio em meio ao perfume que ela exalava em sua direção, Marcus perguntou:
– Está quente demais aqui para a senhora?
– Ah, sim... também está sentindo calor?
– Não. – Ele sorriu, perguntando-se por que Annabelle havia parado de se abanar de repente e lhe lançara um olhar indagador.
– Está sentindo alguma coisa? – perguntou ela.
Achando graça, Marcus balançou a cabeça.
– Posso lhe perguntar o que a preocupa, Sra. Hunt?
– Ah, não é nada. Eu só estava me perguntando se tinha notado algo diferente em mim.
Marcus a examinou rápida e impessoalmente.
– Seu penteado – tentou adivinhar.
Tendo duas irmãs, aprendera que quase sempre que elas pediam a opinião dele sobre sua aparência e se recusavam a lhe dizer o motivo, tinha algo a ver com o penteado. Embora fosse um pouco inadequado discutir a aparência pessoal da esposa de seu melhor amigo, Annabelle parecia vê-lo como um irmão.
Ela deu um sorriso triste ao ouvir a resposta de Marcus.
– Sim, é isso. Perdoe-me se estou me comportando de um modo um tanto estranho, milorde.
Acho que exagerei um pouco no vinho.
Marcus riu baixinho.
– Talvez o ar da noite clareie sua mente.
Ao lado deles, Simon Hunt ouviu o último comentário e pôs a mão na cintura da esposa.
Sorrindo, beijou a testa de Annabelle.
– Quer que eu a leve para o terraço dos fundos?
– Sim, obrigada.
Hunt se calou, sua cabeça escura inclinada na direção da dela. Embora Annabelle não pudesse ver a expressão de surpresa no rosto do marido, Marcus a notou e se perguntou por que Hunt subitamente parecia tão desconfortável e distraído.
– Dê-nos licença, Westcliff – murmurou Hunt, e arrastou a esposa para longe com uma pressa injustificável, forçando-a a correr para acompanhar seus passos largos.
Balançando a cabeça com certa perplexidade, Marcus observou o casal se precipitar para o hall de entrada.
– Nada. Absolutamente nada – disse Daisy em tom triste, saindo da sala de jantar com Lillian e Evie. – Eu estava sentada entre dois cavalheiros que não demonstraram nenhum interesse em mim. Ou o perfume é uma fraude ou os dois são anósmicos.
Evie a olhou sem entender.
– Eu... acho que não conheço essa palavra...
– Conheceria, se seu pai fosse dono de uma saboaria – disse Lillian, seca. – Significa que perderam o olfato.
– Ah. Então meus c-companheiros de jantar devem ser anósmicos. Porque nenhum deles me notou. E quanto a você, Lillian?
– Idem – respondeu ela, sentindo-se ao mesmo tempo confusa e frustrada. – Acho que, afinal de contas, o perfume não funciona. Mas eu estava tão certa de que surtiu efeito em lorde Westcliff...
– Já esteve tão perto dele antes? – perguntou Daisy.
– É claro que não!
– Então meu palpite é que a simples proximidade de você o fez perder a cabeça.
– Ah, sim, é claro – disse Lillian com um autodepreciativo sarcasmo. – Eu sou uma sedutora mundialmente famosa.
Daisy riu.
– Eu não desacreditaria seus encantos, querida. Em minha opinião, lorde Westcliff sempre...
Mas aquela opinião particular nunca seria ouvida, porque quando elas chegaram ao hall de entrada avistaram lorde Westcliff. Relaxando com um ombro encostado em uma coluna, era uma figura imponente. Tudo nele, da arrogante inclinação de sua cabeça à sua postura confiante, mostrava o resultado de gerações de educação aristocrática. Lillian sentiu uma necessidade imperiosa de se aproximar dele e cutucá-lo em um lugar em que sentisse cócegas. Teria adorado fazê-lo rugir de raiva.
A cabeça de Westcliff se virou e seu olhar varreu as três garotas com polido interesse antes de se fixar em Lillian. Então seu olhar se tornou muito menos polido e o interesse adquiriu uma qualidade vagamente predatória que fez Lillian prender a respiração. Ela não pôde evitar se lembrar da sensação provocada por aquele corpo musculoso escondido sob o traje preto de casimira de corte impecável.
– Ele é ap-pavorante – sussurrou Evie, e Lillian a olhou com súbito divertimento.
– Ele é apenas um homem, querida. Estou certa de que manda seus criados o ajudarem a pôr suas calças, uma perna de cada vez, como qualquer outra pessoa.
Daisy riu da irreverência dela, enquanto Evie pareceu escandalizada.
Para a surpresa de Lillian, Westcliff se afastou da coluna e se aproximou delas.
– Boa noite, senhoritas. Espero que tenham gostado do jantar.
Sem conseguir falar, Evie apenas assentiu, enquanto Daisy respondia, animada:
– Foi esplêndido, milorde.
– Que bom. – Embora ele falasse para Evie e Daisy, seu olhar se fixou no rosto de Lillian. –
Srta. Bowman, Srta. Jennifer... Perdoem-me, mas eu esperava levar sua companheira lá para fora e falar com ela em particular. Com sua permissão...
– Claro – respondeu Daisy, dando um sorriso furtivo para Lillian. – Leve-a, milorde. Não precisamos dela agora.
– Obrigado. – Sério, ele estendeu o braço para Lillian. – Srta. Bowman, pode me fazer a gentileza?
Lillian lhe deu o braço, sentindo-se estranhamente frágil enquanto o conde a conduzia pelo hall de entrada. O silêncio entre eles era embaraçoso e repleto de perguntas. Westcliff sempre a provocara, mas agora parecia ter adquirido o prazer de fazê-la se sentir vulnerável – e ela não gostava nem um pouco disso. Parando diante de uma grande coluna, ele se virou para encará-la, e Lillian soltou seu braço.
A boca e os olhos de Westcliff estavam a apenas uns dez centímetros acima dela, seus corpos perfeitamente nivelados, eles de frente um para o outro. O pulso de Lillian se acelerou e sua pele foi tomada por um calor súbito que pressagiava uma queimadura, como se ela estivesse perto demais do fogo. Os cílios espessos de Westcliff se abaixaram sobre os olhos negros como a meia-noite quando ele lhe notou o rubor.
– Srta. Bowman – murmurou –, eu lhe asseguro que, apesar do que aconteceu esta tarde, não tem nada a temer. Se não fizer nenhuma objeção, gostaria de discutir isso com a senhorita em algum lugar onde não seremos perturbados.
– Claro – disse Lillian em um tom calmo.
Ficar a sós com ele em algum lugar tinha a desconfortável conotação de um encontro amoroso, o que certamente não seria. E ainda assim ela não conseguia controlar os calafrios nervosos em sua espinha.
– Onde devemos nos encontrar?
– Na sala de estar matutina que dá para uma estufa de laranjas.
– Sim, sei onde fica.
– Pode ser daqui a cinco minutos?
– Sim. – Lillian lhe deu um sorriso extremamente despreocupado, como se já estivesse bastante acostumada com esquemas clandestinos. – Eu vou primeiro.
Quando se afastou de Westcliff, sentiu o olhar dele em suas costas e de algum modo soube que ele a observava a cada segundo até ela sair de vista.
CAPÍTULO 6
Quando Lillian entrou na estufa, sentiu-se cercada do cheiro de... laranjas. Mas limões, louro e murta também exalavam um perfume forte no ar levemente aquecido. O chão ladrilhado da construção retangular era pontuado de respiradouros feitos de grades de ferro que deixavam o calor das fornalhas no piso inferior se espalhar pelo ambiente de modo uniforme. A luz das estrelas se infiltrava pelo teto de vidro e pelas janelas brilhantes e iluminava a estrutura interior repleta de fileiras de plantas tropicais.
A estufa estava na penumbra, com apenas a luz trêmula das tochas lá fora para amenizar a escuridão. Ao ouvir um som de passos, Lillian se virou depressa para ver o intruso. O desconforto devia ter se revelado em sua postura, porque Westcliff falou em voz baixa e tranquilizadora:
– Sou só eu. Se preferir se encontrar comigo em outro lugar...
– Não – interrompeu-o Lillian, achando um pouco de graça em ouvir um dos homens mais poderosos da Inglaterra se referir a si mesmo como “só eu”. – Gosto da estufa. Na verdade, é meu lugar preferido na mansão.
– O meu também – disse ele, aproximando-se devagar. – Por muitos motivos, e o principal deles é a privacidade que oferece.
– Não tem muita privacidade, não é? Com tantas pessoas chegando e partindo de Stony Cross Park...
– Consigo arranjar tempo suficiente para ficar sozinho.
– E o que faz quando está sozinho?
Toda a situação estava começando a parecer um tanto irreal: conversar com Westcliff na estufa, ver um feixe de luz de tocha incidindo sobre os contornos do rosto dele, marcados, mas elegantes.
– Eu leio – disse ele em um tom sério. – Caminho. Às vezes nado no rio.
De repente ela ficou grata pela escuridão, porque a ideia do corpo dele nu deslizando na água a fez corar.
Percebendo desconforto no súbito silêncio de Lillian, e interpretando errado a causa, Westcliff disse bruscamente:
– Srta. Bowman, devo lhe pedir desculpas pelo que aconteceu hoje mais cedo. Não sei como explicar meu comportamento, só posso dizer que foi um momento de insanidade que nunca se repetirá.
Lillian se enrijeceu um pouco à palavra “insanidade”.
– Está bem – disse. – Aceito suas desculpas.
– Pode ficar tranquila, porque de modo algum a acho desejável.
– Entendo. Já disse o bastante, milorde.
– Mesmo que nós dois fôssemos deixados sozinhos em uma ilha deserta, eu nunca pensaria em me aproximar da senhorita.
– Compreendo – disse ela, sucinta. – Não precisa se estender nesse assunto.
– Só quero deixar claro que o que fiz foi um total desatino. A senhorita não é o tipo de mulher por quem algum dia eu me sentiria atraído.
– Está certo.
– De fato...
– Já foi bastante claro, milorde – interrompeu-o Lillian, franzindo a testa e pensando que certamente aquele era o pedido de desculpas mais irritante que já ouvira. – Contudo... como meu pai sempre diz, um pedido de desculpas sincero tem um preço.
Westcliff lhe lançou um olhar atento.
– Preço?
O ar entre eles esquentou com o desafio.
– Sim, milorde. Não vê nenhum problema em dizer algumas palavras e acabar com isso, não é? Mas se realmente estivesse arrependido do que fez, eu tentaria compensá-lo.
– Tudo o que fiz foi beijá-la – protestou Westcliff, como se ela estivesse fazendo tempestade em um copo d’água.
– Contra a minha vontade – ressaltou Lillian. Ela assumiu um ar de dignidade ferida. – Talvez haja mulheres que apreciariam suas atenções românticas, mas não sou uma delas. E não estou acostumada a ser agarrada e forçada a receber beijos que não pedi...
– A senhorita retribuiu – retorquiu Westcliff com uma expressão maligna digna de Hades.
– Não retribuí, não!
– A senhorita... – Parecendo perceber que aquele era um argumento inútil, Westcliff parou e praguejou.
– Mas – continuou Lillian docemente –, eu poderia perdoá-lo e esquecer. Se... – Ela fez uma pausa deliberada.
– Se? – perguntou ele.
– Se me fizesse um pequeno favor.
– E qual seria?
– Apenas pedir a sua mãe que amadrinhe a mim e a minha irmã na próxima temporada.
Ele arregalou os olhos de um modo nada lisonjeiro, como se aquilo estivesse além dos limites da razão.
– Não.
– Ela também poderia nos ensinar um pouco da etiqueta inglesa...
– Não.
– Nós precisamos de ajuda – insistiu Lillian. – Minha irmã e eu não progrediremos na sociedade sem isso. A condessa é uma mulher influente, respeitada, e seu endosso garantiria nosso sucesso. Estou certa de que poderia encontrar um modo de convencê-la a me ajudar...
– Srta. Bowman – interrompeu-a Westcliff em um tom frio –, nem a Rainha Vitória conseguiria arrastar duas selvagens como as senhoritas pelo caminho da respeitabilidade. Isso é impossível. E agradar ao seu pai não é um incentivo suficiente para eu fazer minha mãe passar pelo inferno que são capazes de criar.
– Achei que poderia dizer isso. – Lillian se perguntou se ousaria seguir seus instintos e correr um enorme risco.
Apesar do fracasso das Flores Secas no experimento daquela noite, havia alguma chance de o perfume ainda surtir um efeito mágico em Westcliff? Se não houvesse, estava prestes a fazer papel de idiota. Respirando fundo, aproximou-se dele.
– Muito bem, não me deixou outra escolha. Se não concordar em me ajudar, vou contar para todo mundo o que aconteceu esta tarde. Imagino que as pessoas não acharão nenhuma graça no fato de o contido lorde Westcliff não conseguir controlar seu desejo por uma jovem americana de péssimos modos. E o senhor não poderia negar isso, porque nunca mente.
Westcliff arqueou uma sobrancelha, dando-lhe um olhar que deveria tê-la fulminado ali mesmo.
– Está superestimando seus encantos, Srta. Bowman.
– Estou? Então prove.
Os senhores feudais da longa linhagem de Westcliff ao disciplinar camponeses rebeldes deviam ter assumido a mesma expressão que ele tinha agora.
– Como?
Mesmo com sua disposição para deixar a cautela de lado, Lillian teve de engolir em seco antes de responder:
– Eu o desafio a me abraçar como fez hoje mais cedo – disse. – E veremos se consegue se controlar mais desta vez.
O desprezo no olhar de Westcliff revelou exatamente quão patético ele considerava o desafio.
– Srta. Bowman, como acho que já deixei claro... eu não a desejo. Essa tarde foi um erro que não voltarei a cometer. Agora, se me der licença, tenho convidados para...
– Covarde.
Westcliff tinha começado a se afastar, mas a palavra o fez se virar de novo para ela com súbita incredulidade e fúria. Lillian supôs que essa fosse uma acusação que nunca tinha sido feita a ele.
– O que disse?
Lillian precisou de toda a sua determinação para sustentar o olhar gelado do conde.
– Claramente está com medo de me tocar. De não conseguir se controlar.
Desviando os olhos dela, o conde balançou a cabeça, como que achando que pudesse tê-la entendido mal. Quando a olhou de novo, seus olhos estavam cheios de hostilidade.
– É tão difícil para a senhorita compreender que eu não quero abraçá-la?
Lillian percebeu que ele não estaria tão irritado se tivesse total confiança em sua capacidade de resistir a ela. Encorajada por esse pensamento, aproximou-se mais, sem deixar de notar como todo o corpo dele pareceu se retesar.
– A questão não é se quer ou não – respondeu. – É se conseguirá me soltar quando o fizer.
– Incrível – disse ele por entre os dentes, olhando-a, furioso.
Lillian permaneceu quieta, esperando que ele aceitasse o desafio. Assim que o conde eliminou a distância entre eles, seu sorriso desapareceu, a boca ficou estranhamente rígida e seu coração bateu forte. Um olhar para o rosto decidido de Westcliff revelou que ele o aceitara. Não lhe deixara outra escolha senão provar que ela estava errada. E, nesse caso, nunca conseguiria encará-lo de novo. Ah, Sr. Nettle, pensou ela, insegura, é melhor que seu perfume mágico funcione.
Com infinita relutância, Westcliff pôs os braços ao redor dela. A aceleração da frequência cardíaca de Lillian pareceu lhe tirar o ar dos pulmões. Uma das grandes mãos de Westcliff pousou entre suas omoplatas tensas, e a outra, na base de suas costas. Ele a tocou com exagerado cuidado, como se ela fosse feita de uma substância volátil. Ao aproximar seu corpo do dele, o sangue de Lillian pareceu se transformar em fogo líquido. Suas mãos procuraram um apoio até as palmas encontrarem as costas do casaco de Westcliff. Pondo-as nos dois lados da espinha dele, sentiu os músculos firmes através das camadas de casimira e linho.
– Era isso que queria? – murmurou Westcliff em seu ouvido.
Os dedos dos pés de Lillian se contraíram dentro das sapatilhas quando ela sentiu a respiração quente de Westcliff na linha de seus cabelos. Apenas assentiu em resposta, abatida e mortificada ao perceber que perdera o jogo. Westcliff ia lhe mostrar como era fácil soltá-la e zombaria dela para sempre.
– Pode me soltar agora – sussurrou, torcendo a boca em autodesprezo.
Mas Westcliff não se moveu. Abaixou um pouco mais sua cabeça escura e respirou de um modo não muito firme. Lillian percebeu que ele estava cheirando seu pescoço com lenta e crescente ânsia, como um viciado ao inalar fumaça narcótica. O perfume, pensou, em choque.
Então não fora sua imaginação. Estava exercendo sua magia de novo. Mas por que Westcliff parecia ser o único homem a reagir ao cheiro? Por que...
Seus pensamentos se dispersaram quando a pressão das mãos de Westcliff aumentou, fazendo-a estremecer e se arquear.
– Maldição – sussurrou Westcliff em tom selvagem.
Antes que Lillian percebesse o que estava acontecendo, ele a ergueu e empurrou contra uma parede próxima. Seu olhar feroz e acusador se desviou dos olhos estupefatos de Lillian para os lábios entreabertos dela, sua luta silenciosa demorando mais um ardente segundo até ele subitamente ceder com uma imprecação e unir os lábios deles com um impaciente puxão.
As mãos do conde ajustaram o ângulo da cabeça de Lillian e ele a beijou com mordidas e toques gentis, como se a boca da jovem fosse uma iguaria exótica a saborear. Ela sentiu os joelhos enfraquecerem até mal conseguir ficar em pé. Este era Westcliff, tentou se lembrar... Westcliff, o homem que ela odiava... Mas quando ele a beijou com mais força, não conseguiu evitar corresponder. Apertando-se contra Westcliff, pôs-se nas pontas dos pés instintivamente, até os corpos deles ficarem perfeitamente alinhados, a parte ansiosa entre as coxas de Lillian acolhendo a rígida protuberância por trás dos botões das calças do conde. Percebendo de repente o que fizera, ela corou e tentou se afastar, mas ele não a soltou. Agarrou-lhe as nádegas com firmeza, mantendo-a ali enquanto sua boca devorava a dela com ardente sensualidade, lambendo, explorando a parte interna das bochechas, úmida e sedosa. Ela parecia não conseguir respirar... e se sobressaltou ao sentir a mão livre do conde procurar a frente de seu corpete.
– Quero senti-la – murmurou Westcliff contra os lábios trêmulos de Lillian, tentando afastar a firme barreira do espartilho acolchoado. – Quero beijá-la inteira...
Os seios de Lillian doíam dentro do espartilho apertado. Ela sentiu um louco desejo de rasgar o tecido acolchoado e implorar a Westcliff que usasse a boca e as mãos para acalmar sua carne atormentada. Em vez disso, entrelaçou os dedos nos cabelos grossos e ligeiramente encaracolados do conde enquanto ele a beijava de modo febril, com crescente ânsia, até os pensamentos de Lillian se tornarem incoerentes e ela estremecer de desejo.
De súbito, a forte excitação terminou quando Westcliff afastou a boca e a empurrou contra uma meia-coluna estriada. Ofegando, ele se virou de lado e ficou lá com os punhos fechados.
Depois de um longo tempo, Lillian se recompôs o suficiente para falar. O perfume funcionara perfeitamente. Sua voz saiu rouca e grossa, como se ela tivesse acabado de acordar de um longo sono.
– Bem... acho que isso responde à minha pergunta. Agora... quanto ao meu pedido de apoio...
Westcliff não olhou para ela.
– Vou pensar sobre isso – murmurou, e saiu da estufa a passos largos.
CAPÍTULO 7
– Annabelle, o que aconteceu com você? – perguntou Lillian na manhã seguinte ao se juntar às outras Flores Secas na mesa mais afastada no terraço, para o café da manhã. – Está com uma aparência péssima. Por que não está usando seus trajes de montar? Achei que você fosse experimentar a pista de saltos esta manhã. E por que desapareceu do nada na noite passada? Não é típico de você desaparecer assim, sem dizer...
– Não tive escolha – disse Annabelle, irritada, fechando os dedos ao redor da delicada xícara de porcelana. Pálida e aparentemente exausta, seus olhos azuis rodeados de olheiras escuras, ela tomou um grande gole de chá muito adoçado antes de continuar: – Foi aquele seu maldito perfume. Assim que ele sentiu o cheiro, ficou louco.
Chocada, Lillian tentou assimilar a informação, sentindo um frio na barriga.
– Então... teve efeito em Westcliff? – conseguiu dizer.
– Meu Deus, não! Não em lorde Westcliff. – Annabelle esfregou seus olhos cansados. – Ele não podia ter ligado menos para o perfume. Foi meu marido que ficou louco. Depois de sentir o cheiro daquela coisa, me arrastou para nosso quarto e... bem, basta dizer que o Sr. Hunt me manteve acordada a noite toda. A noite toda – enfatizou, e tomou outro longo gole de chá.
– Fazendo o quê? – perguntou Daisy, confusa.
Lillian, subitamente aliviada por lorde Westcliff não ter se sentido atraído por Annabelle, deu um olhar sarcástico para a irmã.
– O que acha que eles estavam fazendo? Jogando cartas?
– Ah – disse Daisy quando enfim entendeu. Ela olhou para Annabelle com uma curiosidade inadequada para uma virgem. – Mas eu tinha a impressão de que você gostava de fazer... aquilo...
com o Sr. Hunt.
– Bem, sim, é claro que gosto, mas... – Annabelle fez uma pausa e ficou vermelha. – Isto é, quando um homem está excitado a esse ponto... – Ela parou ao perceber que até Lillian estava muito atenta a suas palavras. Sendo a única casada do grupo, tinha um conhecimento dos homens e de assuntos íntimos que despertava muita curiosidade nas outras. Em geral Annabelle era bastante extrovertida, mas não quando se tratava dos detalhes privados de seu relacionamento com o Sr. Hunt. Sua voz se tornou sussurrante: – Digamos apenas que meu marido não precisa da influência de uma poção que aumenta ainda mais seu desejo físico.
– Tem certeza de que foi o perfume? – perguntou Lillian. – Talvez algo mais o tenha feito ficar assim...
– Foi o perfume – disse Annabelle, segura.
Evie se manifestou, parecendo intrigada.
– Mas p-por que não funcionou com lorde Westcliff? Por que só afetou seu marido e mais n-ninguém?
– E por que ninguém reparou em Evie ou em mim? – perguntou Daisy, decepcionada.
Annabelle terminou seu chá, se serviu de mais, acrescentou um torrão de açúcar e mexeu lentamente. Seus olhos sonolentos fitaram Lillian por cima da borda da xícara.
– E quanto a você, querida? Alguém a notou?
– Na verdade... – Lillian estudou o conteúdo de sua xícara. – Sim. Westcliff – disse, mal-humorada. – De novo. Sou mesmo muito sortuda. Encontrei um afrodisíaco que só funciona com um homem que desprezo.
Annabelle engasgou com um gole de chá enquanto Daisy punha a mão na boca para conter um ataque de riso. Depois que os espasmos de tosse e riso de Annabelle pararam, ela olhou para Lillian com olhos ligeiramente úmidos.
– Não posso imaginar quão irritado Westcliff deve estar por se sentir tão atraído por você, com quem sempre brigou tanto.
– Eu lhe disse que, se ele quisesse corrigir seu comportamento, podia pedir à condessa que nos amadrinhasse – disse Lillian.
– Brilhante! – exclamou Daisy. – Ele concordou?
– Vai pensar a respeito.
Annabelle se apoiou no braço de sua cadeira e olhou, pensativa, para a névoa distante da manhã que envolvia a floresta.
– Não entendo... Por que o perfume só funcionaria no Sr. Hunt e em lorde Westcliff? E por que não surtiu nenhum efeito no conde quando eu o usei, mas com você...
– Talvez a parte mágica – especulou Evie – seja que o perfume a-juda a encontrar o verdadeiro amor.
– Besteira – observou Lillian, indignada com essa ideia. – Westcliff não é meu verdadeiro amor! É um idiota que se acha superior aos outros e com quem nunca consegui ter uma conversa civilizada. Se alguma mulher tiver o azar de se casar com ele, acabará apodrecendo aqui em Hampshire, tendo de lhe dar satisfações de tudo o que faz. Não, obrigada.
– Lorde Westcliff não é um camponês antiquado – disse Annabelle. – Muitas vezes fica na casa dele em Londres e é convidado para ir a todos os lugares. Quanto a esse ar de superioridade, não dá para negar. Mas quando o conhecemos melhor e ele baixa a guarda, pode ser encantador.
Lillian balançou a cabeça, contraindo teimosamente os lábios.
– Se ele for o único homem que esse perfume atrairá, pararei de usá-lo.
– Ah, não! – O olhar de Annabelle se tornou risonho e travesso. – Achei que você ia querer continuar a torturá-lo.
– Sim, use-o – recomendou Daisy. – Não temos nenhuma prova de que o conde é o único homem que será seduzido por seu perfume.
Lillian olhou para Evie, que esboçava um sorriso.
– Devo usar? – perguntou, e Evie assentiu. – Muito bem – disse Lillian. – Se há alguma chance de eu torturar lorde Westcliff, detestaria perdê-la. – Ela tirou o frasco do bolso de suas saias de montar. – Alguém quer experimentar mais um pouco?
Annabelle pareceu alarmada.
– Não. Mantenha isso longe de mim.
As outras duas já tinham estendido as mãos. Lillian sorriu ao entregar o frasco para Daisy, que aplicou gotas generosas nos pulsos e atrás das orelhas.
– Pronto – disse Daisy, satisfeita. – Isto é o dobro do que usei na noite passada. Se meu verdadeiro amor estiver em um raio de dois quilômetros, virá correndo para mim.
Evie recebeu o frasco e aplicou perfume em seu pescoço.
– Mesmo que não f-funcione – comentou –, o cheiro é muito bom.
Lillian pôs o frasco de volta em seu bolso e se levantou da mesa. Ela alisou as amplas saias cor de chocolate de seu traje de montar, cujo lado mais comprido estava preso por um botão para evitar que a bainha arrastasse no chão. Contudo, quando montasse, a saia seria solta para cair elegantemente sobre o lado do cavalo e cobrir as pernas de modo adequado. Lillian tinha os cabelos presos em tranças bem fixadas em sua nuca e usava um pequeno chapéu enfeitado com uma pena.
– Está na hora de os cavaleiros se reunirem nos estábulos. – Ela ergueu as sobrancelhas ao perguntar: – Nenhuma de vocês vai?
Annabelle lhe lançou um olhar que disse tudo.
– Não depois da noite passada.
– Eu não cavalgo bem – desculpou-se Evie.
– Lillian e eu tampouco – disse Daisy, lançando um olhar de aviso para sua irmã mais velha.
– Sim, eu cavalgo – protestou Lillian. – Você sabe muito bem que cavalgo como qualquer homem!
– Só quando cavalga como um homem – retorquiu. Percebendo a confusão de Annabelle e Evie, explicou: – Em Nova York, Lillian e eu cavalgávamos com uma perna de cada lado durante a maior parte do tempo. Na verdade, é muito mais seguro e confortável. Nossos pais não se importavam, desde que cavalgássemos em nossa propriedade e usássemos calças curtas presas nos tornozelos por baixo de nossas saias. Em algumas ocasiões, quando cavalgávamos na companhia de homens, montávamos de lado, mas nenhuma de nós é muito boa nisso. Lillian salta muito bem quando monta como um homem. Mas, pelo que sei, nunca tentou saltar montada de lado. O equilíbrio é totalmente diferente, os músculos usados não são os mesmos e a pista de saltos em Stony Cross Park...
– Cale a boca, Daisy – murmurou Lillian.
– ... é muito difícil e estou quase certa...
– Cale a boca – repetiu Lillian em tom feroz.
– ... de que minha irmã vai quebrar o pescoço – completou Daisy, olhando para Lillian.
Annabelle pareceu preocupada com a informação.
– Lillian, querida...
– Tenho de ir – disse Lillian. – Não quero me atrasar.
– Sei que a pista de saltos de lorde Westcliff não é apropriada para uma novata.
– Não sou novata – disse Lillian por entre os dentes.
– Há alguns saltos difíceis, com barras rígidas. Simon, isto é, o Sr. Hunt, me conduziu pela pista pouco depois de ser construída e me ensinou como dar os vários saltos, e mesmo assim foi muito difícil. Se sua posição sobre o cavalo não for perfeita, isso poderá interferir na liberdade de movimentos da cabeça e do pescoço do animal e...
– Vou ficar bem – interrompeu-a Lillian, fria.
– Meu Deus, Annabelle, eu não sabia que você podia ser tão medrosa.
Acostumada com a língua afiada de Lillian, Annabelle estudou o rosto desafiador da amiga.
– Por que precisa se arriscar?
– A esta altura, você deveria saber que nunca recuso um desafio.
– E essa é uma qualidade admirável, querida – respondeu calmamente Annabelle. – A menos que a use em uma coisa inútil.
Isso foi o mais perto de uma briga a que elas já tinham chegado.
– Olhe – disse Lillian, impaciente –, se eu cair, você pode me passar um sermão e eu ouvirei cada palavra. Mas ninguém vai me impedir de cavalgar hoje... Portanto, a única coisa inútil é você tentar me dissuadir.
Virando-se, ela se afastou a passos largos, ouvindo a exclamação exasperada de Annabelle às suas costas e o indistinto e resignado murmúrio de Daisy.
– Afinal de contas, o pescoço é dela...
Depois que Lillian foi embora, Daisy deu um sorriso torto para Annabelle e disse:
– Peço desculpas. Ela não quis parecer rude. Você sabe como ela é.
– Não precisa se desculpar – disse Annabelle de cara amarrada. – Lillian é que deveria se desculpar... embora eu ache que vou esperar sentada por isso.
Daisy deu de ombros.
– Há ocasiões em que minha irmã deve sofrer as consequências de seus atos. Mas uma das coisas que adoro nela é que, quando percebe que está errada, admite isso e até mesmo ri de si mesma.
Annabelle não devolveu o sorriso.
– Também a adoro, Daisy, tanto que não consigo deixá-la andar cegamente na direção do perigo, ou, nesse caso, cavalgar direto para ele. É óbvio que ela não sabe quão perigosa é aquela pista. Westcliff é um cavaleiro experiente, e como tal mandou construí-la de acordo com o próprio nível de habilidade. Mesmo meu marido, que é um ótimo cavaleiro, disse que a pista é difícil. E Lillian experimentá-la quando não está acostumada a montar de lado... – Ela franziu a testa. – A ideia de ela se machucar ou morrer em uma queda é insuportável.
Então Evie falou:
– O S-Sr. Hunt está no terraço. Perto das portas francesas.
As três olharam na direção do marido alto e moreno de Annabelle, que usava trajes de montar. Estava com um grupo de três homens que tinham se aproximado dele assim que saiu para o terraço. Eles riam de algum gracejo que Hunt fizera – sem dúvida, um comentário impróprio. Hunt era um homem com H maiúsculo e, portanto, apreciado pelo círculo que costumava se reunir em Stony Cross Park. Um sorriso sarcástico curvou os lábios de Hunt quando ele olhou para os grupos de convidados sentados às mesas ao ar livre, enquanto criados se moviam com bandejas de comida e jarras de suco fresco. Contudo, seu sorriso mudou ao avistar Annabelle, o cinismo se transformando em uma ternura que fez Daisy se sentir um pouco melancólica. Era como se houvesse algo no ar entre o casal, uma conexão impalpável mas intensa, que nada seria capaz de cortar.
– Com licença – murmurou Annabelle, levantando-se e indo ao encontro do marido. Assim que o alcançou, ele segurou sua mão e a ergueu para beijar-lhe a palma. Olhando para a esposa e sem soltar a mão dela, inclinou o rosto na direção do de Annabelle.
– Você acha que ela está lhe contando sobre Lillian? – perguntou Daisy a Evie.
– Espero que sim.
– Ah, ele tem de lidar com isso discretamente – disse Daisy com um gemido. – Qualquer indício de confronto fará Lillian se tornar teimosa como uma mula.
– Acho que o Sr. Hunt será muito cauteloso. Ele é famoso por ser um ótimo negociador, não é?
– Tem razão – respondeu Daisy, sentindo-se um pouco melhor. – E está acostumado a lidar com Annabelle, que também é um pouco temperamental.
Enquanto elas conversavam, Daisy não pôde deixar de notar o estranho fenômeno que ocorria sempre que estava a sós com Evie: a amiga parecia relaxar e sua gagueira quase desaparecia.
Evie se inclinou para a frente, graciosa e espontaneamente, apoiando o cotovelo na mesa e o queixo na palma da mão.
– O que você acha que está acontecendo entre eles? Quero dizer, Lillian e lorde Westcliff?
Daisy deu um sorriso triste, um pouco preocupada com a irmã.
– Acho que minha irmã ficou com medo ontem ao perceber que poderia achar lorde Westcliff atraente. E ela não reage bem ao medo, que costuma levá-la a ser impulsiva e fazer algo imprudente. Daí sua determinação de ir se matar nas costas de um cavalo hoje.
– Mas por que isso lhe daria medo? – A perplexidade se revelou na expressão de Evie. – Achei que Lillian fosse ficar feliz por atrair a atenção de alguém como o conde.
– Não quando sabe que, se algo surgisse disso, eles ficariam sempre em atrito. E Lillian não tem nenhuma vontade de ser dominada por um homem poderoso como Westcliff. – Daisy deu um longo suspiro. – Eu também não ia querer isso para ela.
Evie assentiu, concordando relutantemente.
– Eu... creio que o conde acharia difícil tolerar a natureza exuberante de Lillian.
– Um pouco – disse Daisy com um sorriso estranho. – Evie, querida... acho que é de mau gosto eu chamar sua atenção para isso, mas no último minuto sua gagueira desapareceu.
A garota ruiva tentou esconder um sorriso tímido com a mão e olhou para Daisy por sob seus cílios castanho-avermelhados.
– Sempre fico muito melhor quando estou longe de casa... longe da minha família. E isso ajuda a me lembrar de falar devagar e pensar no que vou dizer. Mas pioro quando estou cansada ou tenho de conversar com e-estranhos. Não há nada mais assustador para mim do que ir a um baile e ficar em uma sala cheia de desconhecidos.
– Querida – disse Daisy em tom suave –, na próxima vez que você estiver em uma sala cheia de desconhecidos... pode dizer a si mesma que alguns são apenas amigos esperando para ser descobertos.
A manhã estava fresca e nevoenta quando os cavaleiros se reuniram na frente dos estábulos.
Havia uns quinze homens e duas mulheres além de Lillian. Os homens usavam casacos pretos, calças de montar em tons que variavam de castanho-amarelado a mostarda e botas de cano alto.
As mulheres usavam trajes mais justos na cintura, enfeitados com fitas e completados com volumosas saias assimétricas presas por um botão em um dos lados. Criados e cavalariços se moviam entre a multidão, trazendo cavalos e ajudando cavaleiros a montar em uma de três pequenas escadas destinadas a esse fim. Alguns convidados preferiram trazer os próprios cavalos, enquanto outros usavam os famosos animais dos estábulos dos Marsdens. Embora Lillian já tivesse estado nos estábulos em uma visita anterior, surpreendeu-se mais uma vez com a beleza dos bem-cuidados puros-sangues trazidos para os convidados.
Ela ficou ao lado de uma das escadas de montar, acompanhada do Sr. Winstanley, um jovem ruivo de feições atraentes e queixo delicado, e dois outros cavalheiros, lorde Hew e lorde Bazeley, que conversavam amigavelmente enquanto esperavam suas montarias. Tendo pouco interesse na conversa, Lillian deixou seu olhar percorrer o lugar até avistar a forma esguia de Westcliff no pátio. Seu casaco, embora de corte impecável, revelava sinais de uso, e o couro de suas botas estava amolecido pelo desgaste.
Lembranças indesejadas fizeram o coração de Lillian disparar. Suas orelhas arderam quando ela subitamente se lembrou do sussurro rouco e suave de Westcliff... Quero beijá-la inteira...
Consciente de sua incômoda agitação, observou o conde se aproximar de um cavalo que já fora trazido... um animal que Lillian se lembrava de já ter visto. O cavalo, chamado Brutus, era mencionado em quase todas as conversas sobre assuntos equinos. Não havia em toda a Inglaterra um cavalo de caça mais admirado do que Brutus, um magnífico baio escuro inteligente e com a disposição de um trabalhador. O animal tinha uma boa profundidade torácica, musculatura forte e boa inclinação de ombros, o que lhe permitia percorrer com facilidade terrenos acidentados e saltar com notável perícia. Em terra, Brutus tinha a disciplina de um soldado, mas no ar ganhava altura como se tivesse asas.
– Dizem que, com Brutus, Westcliff não precisa de um segundo cavalo – comentou um dos convidados.
Lillian, que estava na escada de montar, o olhou com curiosidade.
– O que isso quer dizer?
O ruivo sorriu meio incrédulo, como se achasse que todos deveriam saber.
– Em um dia de caça – explicou –, geralmente um homem monta seu primeiro cavalo de manhã e à tarde monta um segundo, que esteja descansado. Mas parece que Brutus tem a força e a resistência de dois cavalos.
– Como seu dono – observou um dos outros, e todos riram.
Olhando ao redor, Lillian viu que Westcliff conversava com Simon Hunt. Ao ouvir o que o amigo dizia, o conde franziu de leve a testa. Ao lado de seu dono, Brutus mudou de posição e esfregou o focinho nele em uma manifestação rude de afeto, acalmando-se quando Westcliff o acariciou.
Lillian se distraiu quando um cavalariço que participara do jogo de rounders na véspera levou um reluzente tordilho até a escada de montar. O rapaz piscou um olho conspiradoramente para Lillian quando ela subiu no último degrau. Piscando-lhe de volta, Lillian esperou que o cavalariço verificasse o ajuste da cilha e a alça de equilíbrio da detestada sela lateral. Avaliando o cavalo com um olhar aprovador, ela notou que o tordilho era compacto, tinha uma conformação impecável e olhos inteligentes e vivazes. Não tinha mais de 1,30 metro de altura... era um cavalo perfeito para uma dama.
– Qual é o nome dele? – perguntou Lillian.
Ao som de sua voz, o cavalo girou atentamente uma da orelhas na direção dela.
– Estrelado. A senhorita se sairá bem com ele. Depois de Brutus, é o cavalo mais bem treinado dos estábulos.
Lillian acariciou o pescoço sedoso do cavalo.
– Você parece um cavalheiro, Estrelado. Gostaria de poder cavalgá-lo direito em vez de me preocupar com essa estúpida sela lateral.
O tordilho inclinou a cabeça para olhar para ela com uma calma reconfortante.
– Milorde insistiu em me dizer que, se a senhorita fosse montar, deveria ser o Estrelado –
contou o cavalariço, parecendo impressionado com o fato de o próprio Westcliff ter se dignado escolher uma montaria para ela.
– Que gentil – murmurou Lillian, pondo o pé no estribo e se erguendo ligeiramente para a sela de três pomos.
Tentou se sentar reta, com a maior parte de seu peso na coxa e na nádega direita. Enganchou a perna esquerda em um pomo, com o pé apontando para baixo, enquanto a perna esquerda ficava apoiada no estribo. Por enquanto não era desconfortável, embora Lillian soubesse que em pouco tempo suas pernas doeriam por ficar em uma posição à qual não estava acostumada. Ela adorava cavalgar e esse cavalo era superior a qualquer um dos estábulos de sua família.
– Senhorita... – disse o cavalariço em voz baixa, apontando timidamente para as saias ainda abotoadas de Lillian.
Agora que ela estava montada, boa parte de sua perna esquerda ficara à mostra.
– Obrigada – disse ela, soltando o grande botão da casa em seu quadril para deixar as saias caírem sobre sua perna.
Satisfeita por tudo estar certo, incitou o cavalo a se afastar da escada. Estrelado obedeceu na hora, sensível à leve pressão do salto de sua bota.
Juntando-se a um grupo de cavaleiros que se dirigia à floresta, Lillian se sentiu animada ao pensar na pista de saltos. Doze ao todo, soubera, todos cuidadosamente dispostos em um caminho sinuoso por entre a floresta e o campo. Aquele era um desafio que estava certa de poder superar. Mesmo com a sela lateral, estava em uma posição firme, sua coxa contra o pomo que a ajudaria a manter o equilíbrio. E o tordilho bem treinado, vigoroso e obediente passou com facilidade de um trote para um galope suave.
Ao se aproximar do início da pista, Lillian avistou o primeiro obstáculo, uma estrutura triangular com cerca de meio metro de altura e dois metros de comprimento.
– Isso não vai ser problema para nós, não é, Estrelado? – murmurou para o cavalo.
Desacelerando até uma caminhada, foi ao encontro do grupo de cavaleiros que esperava.
Mas, antes de alcançá-los, viu um cavaleiro vindo em sua direção. Era Westcliff, cavalgando o baio escuro com uma facilidade e uma economia de movimentos que fizeram os pelos da nuca e dos braços de Lillian se arrepiarem, como quando ela via uma façanha ser realizada com surpreendente perfeição. Tinha de admitir que o conde ficava elegante sobre o cavalo.
Ao contrário dos outros cavalheiros presentes, Westcliff não usava luvas de montar.
Lembrando-se do arranhar suave dos dedos calosos dele, Lillian engoliu em seco e evitou olhar para as mãos do conde nas rédeas. Um olhar cauteloso para o rosto de Westcliff revelou que ele estava definitivamente aborrecido com alguma coisa... o espaço entre as sobrancelhas escuras diminuíra e os lábios formavam uma linha rija.
Lillian fingiu um sorriso despreocupado.
– Bom dia, milorde.
– Bom dia – foi a resposta tranquila de Westcliff. Ele pareceu pensar cuidadosamente em suas palavras antes de continuar: – Está satisfeita com sua montaria?
– Sim, o cavalo é esplêndido. Parece que tenho de lhe agradecer por escolhê-lo.
Westcliff torceu a boca, como se o assunto não fosse importante.
– Srta. Bowman... soube que não tem experiência em montar de lado.
O sorriso desapareceu dos lábios de Lillian, que ficaram gelados. Lembrando-se de que Simon Hunt falara com Westcliff apenas um minuto antes, percebeu com uma pontada de irritação que Annabelle devia ser a culpada disso. Maldita interferência, pensou, fechando a cara.
– Vou conseguir – disse, lacônica. – Não se preocupe.
– Sinto muito, mas não posso permitir que nenhum dos meus convidados comprometa sua segurança.
Lillian observou os próprios dedos enluvados apertarem as rédeas.
– Sei cavalgar tão bem quanto qualquer um aqui. Não importa o que tenham lhe dito, não estou totalmente desacostumada a montar de lado. Então, se puder apenas me deixar em paz...
– Se eu tivesse sido informado disso antes, podia ter encontrado tempo para conduzi-la pela pista e avaliar seu nível de competência. Mas é tarde demais.
Lillian assimilou as palavras de Westcliff, a firmeza em seu tom, o irritante ar de autoridade.
– Está me dizendo que não posso cavalgar hoje?
Westcliff sustentou o olhar dela.
– Não na pista de saltos. Pode cavalgar em qualquer outro lugar da propriedade. Se quiser, avaliarei mais suas habilidades ainda esta semana, e talvez tenha outra oportunidade. Mas hoje não posso permitir.
Desacostumada a lhe dizerem o que podia ou não podia fazer, Lillian conteve uma torrente de indignadas acusações e conseguiu responder muito calmamente:
– Aprecio sua preocupação com meu bem-estar, milorde. Mas gostaria de sugerir uma concessão. Observe-me nos primeiros dois ou três saltos e, se eu não parecer estar me saindo bem, acatarei sua decisão.
– Não faço concessões em questões de segurança – disse Westcliff. – Acatará minha decisão agora, Srta. Bowman.
Ele estava sendo injusto. Proibindo-a de fazer algo apenas para exibir poder sobre ela.
Tentando controlar a fúria, Lillian sentiu os músculos ao redor de sua boca se contorcerem. Para seu eterno desgosto, perdeu a batalha contra a raiva.
– Consigo executar os saltos – disse, furiosa. – Vou lhe provar isso.
CAPÍTULO 8
Antes que Westcliff pudesse reagir, Lillian fincou o calcanhar na barriga de Estrelado e se inclinou sobre a sela, mudando seu peso de lugar para acompanhar o súbito movimento dele para a frente. O cavalo partiu imediatamente em pleno galope. Apertando as coxas contra os pomos da sela, Lillian sentiu sua posição se tornar menos firme, o corpo girar como resultado do que mais tarde descobriria ser um excessivo “apoio na sela”. Com coragem, ela corrigiu a mudança na direção de seus quadris no momento exato em que Estrelado se aproximou do obstáculo. Sentiu as pernas dianteiras do cavalo se erguerem e a enorme força dos quartos traseiros se afastando do chão e lhe proporcionando a momentânea euforia de voar sobre o obstáculo triangular. Mas, ao aterrissarem, teve de se esforçar para não cair, absorvendo a maior parte do impacto em sua coxa direita, o que lhe causou um doloroso e desagradável estiramento. Ainda assim, tinha conseguido, e de modo bastante convincente.
Com um sorriso triunfante, Lillian fez o cavalo dar a volta e viu os olhares surpresos dos cavaleiros reunidos, que, sem dúvida, se perguntavam o que provocara aquele salto impulsivo. De repente ela se assustou com uma mancha escura ao seu lado e um troar de cascos. Confusa, não teve oportunidade de protestar ou se defender quando foi literalmente arrancada da sela e jogada sobre uma superfície dura. Balançando, impotente, sobre as pernas duras como pedra de Westcliff, foi carregada por vários metros antes de ele parar o cavalo, desmontar e arrastá-la para o chão. O conde agarrou os ombros de Lillian, seu rosto lívido a poucos centímetros do dela.
– Quis me convencer de algo com essa exibição estúpida? – rosnou ele, dando-lhe uma breve sacudidela. – O uso dos meus cavalos é um privilégio que concedo aos meus convidados, e acabou de perdê-lo. De agora em diante nem pense em pôr os pés nos estábulos, ou a chutarei para fora da propriedade.
Pálida e com uma raiva que se igualava à dele, Lillian respondeu com a voz baixa e trêmula:
– Tire suas mãos de mim, seu filho da mãe.
Para sua satisfação, viu Westcliff estreitar os olhos ao xingamento. Mas o aperto doloroso das mãos dele não diminuiu, e a respiração de Westcliff se tornou mais intensa e agressiva, como se ele ansiasse por ser violento com ela. Quando o olhar desafiante de Lillian foi capturado pelo do conde, ela sentiu uma carga de energia abrasadora passar entre eles, um impulso físico desgovernado que a fez querer bater em Westcliff, machucá-lo, rolar pelo chão com ele em uma briga direta. Nenhum homem jamais a enfurecera tanto. Enquanto olhavam um para o outro, cheios de hostilidade, o calor aumentou até ambos ficarem vermelhos e ofegantes. Nenhum dos dois prestou atenção no grupo de observadores atônitos próximo dali – estavam absortos demais em seu antagonismo mútuo.
Uma suave voz masculina interrompeu a comunhão silenciosa e letal deles, cortando habilmente a tensão.
– Westcliff... você não me disse que nos ofereceria um espetáculo, ou eu teria vindo antes.
– Não interfira, St. Vincent – disparou Westcliff.
– Ah, eu nem sonharia em fazer isso. Só queria cumprimentá-lo pelo modo como está lidando com a situação. Muito diplomático. Delicado, até.
O leve sarcasmo fez o conde soltar Lillian de modo rude. Ela deu um passo cambaleante para trás e foi imediatamente segurada pela cintura por um par de mãos hábeis. Confusa, ergueu os olhos para o rosto notável de Sebastian, lorde St. Vincent, o mal-afamado libertino sedutor.
A forte luz solar dissolveu a névoa e fez os cabelos dourado-escuros de St. Vincent adquirirem um tom de âmbar claro e brilhante. Lillian o vira de longe em muitas ocasiões, mas nunca tinham sido apresentados, e St. Vincent sempre evitava a fileira de Flores Secas em todos os bailes a que comparecia. De longe, ele era uma figura impressionante. De perto, a beleza exótica de seus traços era quase paralisante. St. Vincent tinha os olhos mais extraordinários que ela já vira, azul-claros e felinos, sombreados por cílios escuros e encimados por sobrancelhas castanho-amareladas. Seus traços eram fortes, porém refinados, e sua pele, brilhante como bronze polido.
Ao contrário das expectativas de Lillian, St. Vincent parecia travesso, mas de modo algum devasso; seu sorriso a alcançou através da raiva, inspirando nela uma reação hesitante. Tanto charme deveria ser ilegal.
Desviando o olhar para o rosto endurecido de Westcliff, St. Vincent arqueou uma das sobrancelhas e perguntou tranquilamente:
– Devo acompanhar a culpada de volta à mansão, milorde?
O conde assentiu.
– Tire-a da minha frente – murmurou –, antes que eu diga algo de que vá me arrepender.
– Vá em frente e diga – provocou Lillian.
Westcliff deu um passo na direção dela com uma expressão furiosa.
St. Vincent se apressou em ficar na frente de Lillian.
– Westcliff, seus convidados estão esperando. E, embora eu tenha certeza de que estão adorando este drama fascinante, os cavalos estão ficando agitados.
O conde pareceu enfrentar uma breve e feroz batalha com sua autodisciplina antes de conseguir tornar sua expressão impassível. Ele apontou com a cabeça para a mansão em uma ordem silenciosa para que St. Vincent tirasse Lillian dali.
– Posso levá-la em meu cavalo? – perguntou Vincent educadamente.
– Não – foi a resposta seca de Westcliff. – Ela pode muito bem ir a pé.
St. Vincent fez um gesto para um cavalariço cuidar dos dois cavalos abandonados. Dando o braço para a furiosa Lillian, examinou-a de alto a baixo com os olhos claros brilhando.
– Foi condenada às masmorras – informou-lhe. – E pretendo lhe apertar pessoalmente os polegares.
– Prefiro a tortura à companhia diária dele – disse Lillian, erguendo o lado longo de sua saia e o prendendo no botão para poder caminhar.
Enquanto se afastavam, Lillian se enrijeceu ao som da voz de Westcliff:
– Pode parar no depósito de gelo no caminho. Ela precisa esfriar a cabeça.
Tentando dar certa aparência de ordem às suas emoções, Marcus observou Lillian Bowman se afastar com um olhar que deveria ter queimado as costas da jaqueta de montar dela. Em geral ele achava fácil evitar e avaliar com objetividade qualquer situação. Contudo, nos últimos minutos, qualquer vestígio de autocontrole desaparecera.
Quando Lillian cavalgava desafiadoramente na direção do obstáculo, Marcus vira sua momentânea perda de alinhamento, o que poderia ser fatal em uma sela feminina, e a ideia de ela cair o abalara. Naquela velocidade, teria fraturado a espinha ou o pescoço. E ele não pudera fazer nada além de observar. De repente ficara gelado e nauseado de medo, e quando a pequena idiota conseguiu aterrissar em segurança, todo o medo se transformara em fúria abrasadora. Não tomara nenhuma decisão consciente de se aproximar de Lillian, mas de repente ambos estavam no chão, os ombros estreitos dela em suas mãos, e tudo o que ele queria fazer era esmagá-la nos braços em um paroxismo de alívio, beijá-la e depois esquartejá-la.
O fato de a segurança de Lillian significar tanto para ele... não era algo em que queria pensar.
De cara amarrada, Marcus foi até o cavalariço que segurava as rédeas de Brutus e as pegou.
Perdido em pensamentos, teve a vaga impressão de que Simon Hunt aconselhara discretamente os convidados a prosseguirem na pista sem esperar que ele os conduzisse.
Simon Hunt se aproximou montado em seu cavalo, o rosto inexpressivo.
– Não vai montar? – perguntou-lhe em um tom calmo.
Em resposta, Marcus pulou para a sela, estalando de leve a língua quando Brutus mudou de posição sob ele.
– Aquela mulher é insuportável – resmungou, com um olhar que desafiava Hunt a expressar uma opinião contrária.
– Você pretendia estimulá-la a dar o salto? – perguntou Hunt.
– Eu lhe ordenei que fizesse exatamente o oposto. Você deve ter me ouvido.
– Sim, todos o ouviram – disse Hunt, seco. – Minha pergunta se refere à sua tática, Westcliff.
É óbvio que uma mulher como a Srta. Bowman requer uma abordagem mais suave do que uma ordem direta. Além disso, já o vi à mesa de negociação e seus poderes de persuasão não se igualam aos de ninguém, exceto, talvez, aos de Shaw. Se você quisesse, podia tê-la persuadido em menos de um minuto com lisonjas. Em vez disso, foi delicado como um hipopótamo em sua tentativa de provar ser o senhor dela.
– Eu nunca havia notado seu dom para a hipérbole – murmurou Marcus.
– E agora – continuou Hunt – a pôs sob os cuidados do solidário St. Vincent. Deus sabe que ele provavelmente lhe roubará a virtude antes mesmo de chegarem à mansão.
Marcus lhe lançou um olhar penetrante, e sua raiva foi se transformando em preocupação.
– Ele não faria isso.
– Por que não?
– Ela não faz o tipo dele.
Hunt deu uma risada amável.
– St. Vincent tem um tipo? Nunca notei qualquer semelhança entre as presas dele além do fato de todas serem mulheres. Morenas, louras, gordas, magras... ele não tem nenhum preconceito quando se trata de casos amorosos.
– Que vá tudo para o inferno – sussurrou Marcus, experimentando pela primeira vez na vida a dolorosa pontada do ciúme.
Lillian se concentrou em pôr um pé na frente do outro, quando tudo o que queria era voltar para onde Westcliff estava e se lançar sobre ele num ataque impulsivo.
– Aquele idiota arrogante, pomposo...
– Calma – murmurou St. Vincent. – Westcliff está de péssimo humor e eu não gostaria de enfrentá-lo em sua defesa. Posso vencê-lo com uma espada, mas não com os punhos.
– Por que não? Seu braço é mais comprido que o dele.
– Ele tem o gancho de direita mais forte que já vi. E tenho o péssimo hábito de tentar proteger meu rosto, o que frequentemente me deixa sujeito a socos no estômago.
A descarada arrogância por trás daquela afirmação arrancou uma risada de Lillian. Quando o calor da raiva diminuiu, ela refletiu que, com um rosto como aquele, não se poderia culpá-lo por tentar protegê-lo.
– Briga com o conde com frequência? – perguntou ela.
– Não desde que éramos crianças na escola. Westcliff fazia tudo muito perfeitinho. De vez em quando eu tinha de garantir que a vaidade dele não se tornaria exagerada. Aqui... devemos pegar um caminho mais pitoresco pelo jardim?
Lillian hesitou, lembrando-se das muitas histórias que ouvira sobre ele.
– Não estou certa de que isso seria prudente.
St. Vincent sorriu.
– E se eu lhe prometer que não tentarei seduzi-la?
Considerando isso, Lillian assentiu.
– Nesse caso, está bem.
St. Vincent a guiou através de um frondoso bosque por um caminho de cascalho sombreado por uma fileira de velhos teixos.
– Talvez eu deva lhe dizer – comentou ele em tom casual – que, como meu senso de honra está totalmente deteriorado, nenhuma promessa minha tem valor.
– Então eu deveria lhe dizer que meu gancho de direita provavelmente é dez vezes mais forte que o de Westcliff.
St. Vincent sorriu.
– Diga-me, doçura, o que aconteceu para causar tanta animosidade entre vocês dois?
Surpresa com o tratamento carinhoso espontâneo, Lillian pensou em repreendê-lo, mas decidiu deixar aquilo passar. Afinal de contas, tinha sido muito gentil da parte de St. Vincent abrir mão de sua cavalgada matutina para acompanhá-la até a mansão.
– Creio que foi um caso de ódio à primeira vista – respondeu ela. – Acho que Westcliff é um grosseirão intolerante e me considera uma pirralha mal-educada. – Ela deu de ombros. – Talvez nós dois estejamos certos.
– Acho que nenhum dos dois está certo – murmurou St. Vincent.
– Bem, na verdade... de certa forma, sou uma pirralha – admitiu Lillian.
Ele torceu os lábios, mal contendo o riso.
– É?
Lillian assentiu.
– Gosto de fazer o que quero e fico muito irritada quando não consigo. De fato, é comum me dizerem que tenho um temperamento muito parecido com o da minha avó, que era lavadeira nas docas.
St. Vincent pareceu se divertir com a ideia de ela ser parente de uma lavadeira.
– Era muito próxima à sua avó?
– Ah, ela era uma velhinha formidável e muito querida. Alegre e desbocada, e sempre dizia coisas que faziam você rir até a barriga doer. Ah... me desculpe... acho que eu não deveria dizer a palavra “barriga” na frente de um cavalheiro.
– Estou chocado – disse St. Vincent, sério –, mas vou me recuperar. – Olhando ao redor como que para se certificar de que não seria ouvido, sussurrou em tom de conspiração: – Como sabe, na verdade, não sou um cavalheiro.
– É um visconde, não é?
– Isso não significa que sou um cavalheiro. Não sabe muito sobre a aristocracia, não é?
– Acho que já sei mais do que quero saber.
St. Vincent lhe deu um sorriso de curiosidade.
– E eu pensando que pretendia se casar com um de nós. Estou enganado ou a senhorita e sua irmã mais nova não são duas princesas do dólar trazidas das colônias para arranjar maridos aristocratas?
– Das colônias? – repetiu Lillian com um sorriso irônico. – Caso não saiba, milorde, nós vencemos a revolução.
– Ah. Devo ter me esquecido de ler o jornal nesse dia. Mas em resposta à minha pergunta...?
– Sim – disse Lillian, corando um pouco. – Nossos pais nos trouxeram aqui para encontrar maridos. Eles querem injetar sangue azul na linhagem.
– É isso que a senhorita quer?
– Meu único desejo é derramar um pouco de sangue azul – murmurou ela, pensando em Westcliff.
– Que criatura feroz a senhorita é – disse Vincent, rindo. – Sentirei pena de Westcliff se ele atravessar seu caminho de novo. Na verdade, acho que eu deveria preveni-lo... – Ele se calou ao ver a súbita dor no rosto de Lillian e ouvi-la tomar fôlego.
Lillian sentiu uma dor lancinante na coxa direita e teria caído se não fosse o braço de St.
Vincent ao redor de suas costas.
– Ah, maldição – praguejou com a voz trêmula, apertando a coxa. Um espasmo no músculo a fez gemer por entre os dentes cerrados. – Maldição, maldição...
– O que foi? – perguntou St. Vincent, apressando-se em abaixá-la para o chão. – Cãibra na perna?
– Sim... – Pálida e tremendo, Lillian segurou a perna enquanto seu rosto se contorcia de dor.
– Meu Deus, como dói!
St. Vincent se inclinou sobre ela, franzindo as sobrancelhas de preocupação. Sua voz calma transmitia urgência.
– Srta. Bowman... seria possível ignorar temporariamente tudo o que ouviu sobre minha reputação? Só por tempo suficiente para eu ajudá-la?
Olhando de soslaio para ele, Lillian viu apenas um desejo sincero de aliviar sua dor, e assentiu.
– Boa garota – murmurou ele, recostando o corpo contorcido de Lillian. Apressou-se em falar para distraí-la enquanto punha as mãos sob as saias dela com delicadeza e perícia. – Isso só vai levar um segundo. Deus permita que não vejam, porque parece muito comprometedor. E duvido que alguém aceite a velha e muito usada desculpa de cãibra na perna...
– Eu não me importo – disse ela, ofegante. – Só faça isso parar.
Ela sentiu a mão de St. Vincent deslizar para cima e para baixo em sua perna, o calor da pele dele passando pelo fino tecido de suas calçolas à procura do músculo contraído.
– Aqui. Prenda a respiração, doçura.
Obedecendo, Lillian o sentiu rolar a palma da mão fortemente sobre o músculo. Quase gritou à dor lancinante em sua perna, e então, de repente, a dor parou, exausta com o alívio.
Lillian relaxou apoiada no braço dele e deu um grande suspiro.
– Obrigada. Melhorou muito.
St. Vincent esboçou um sorriso enquanto puxava com destreza as saias de Lillian para lhe cobrir as pernas.
– De nada.
– Isso nunca me aconteceu – murmurou ela, flexionando a perna com cautela.
– Sem dúvida, foi consequência de sua façanha na sela lateral. Deve ter estirado um músculo.
– Sim. – Ela ficou com as bochechas vermelhas quando se forçou a admitir: – Não estou acostumada a saltar obstáculos usando esse tipo de sela. Só com selas masculinas.
O sorriso de St. Vincent aos poucos se ampliou.
– Que interessante – murmurou. – Está claro que minha experiência com moças americanas é muito limitada. Eu não tinha percebido que vocês eram tão animadas.
– Eu sou mais animada do que a maioria – disse Lillian, tímida, e ele sorriu.
– Doçura, por mais que eu fosse adorar continuar aqui conversando, é melhor levá-la para casa, se conseguir ficar em pé agora. Não lhe fará nenhum bem ficar muito tempo a sós comigo.
Ele se levantou com um movimento ágil e estendeu a mão para ela.
– Parece que já me fez muito bem – respondeu Lillian, permitindo que ele a erguesse.
St. Vincent lhe ofereceu o braço e a observou testar a perna.
– Tudo bem?
– Sim, obrigada – respondeu Lillian, segurando o braço dele. – Foi muito gentil, milorde.
Ele a olhou com um brilho estranho nos olhos azul-claros.
– Eu não sou gentil, doçura. Só sou amável com as pessoas quando planejo me aproveitar delas.
Lillian respondeu com um sorriso despreocupado.
– Corro risco em sua companhia, milorde?
Embora o bom humor mantivesse a expressão de St. Vincent relaxada, seu olhar foi perturbadoramente penetrante.
– Temo que sim.
– Hum. – Lillian estudou as feições bem delineadas de St. Vincent, pensando que, apesar de toda a pose dele, não se aproveitara de sua impotência apenas alguns minutos atrás. – Está muito disposto a afirmar suas más intenções. Isso me faz pensar se eu devo mesmo me preocupar.
A única resposta dele foi um sorriso enigmático.
Depois de se separar de lorde St. Vincent, Lillian subiu a escada para o espaçoso terraço dos fundos, onde risos e conversas femininas alegres ressoavam no piso de pedra. Dez mulheres jovens estavam ao redor de uma das mesas, envolvidas em uma espécie de jogo ou experiência.
Inclinavam-se sobre uma fileira de copos que tinham sido enchidos com vários líquidos, enquanto uma das mulheres, com os olhos vendados, mergulhava cautelosamente os dedos em um deles. Qualquer que fosse o resultado, todas gritavam e riam. Um grupo de viúvas ricas estava sentado próximo, observando os procedimentos com divertido interesse.
Lillian avistou sua irmã na multidão e foi até ela.
– O que é isso? – perguntou.
Daisy se virou para olhá-la, surpresa.
– Lillian – murmurou passando um dos braços ao redor da cintura dela –, por que voltou cedo, querida? Teve alguma dificuldade na pista de saltos?
Lillian a puxou para o lado enquanto o jogo continuava.
– Pode-se dizer que sim – disse sarcasticamente, e lhe contou os acontecimentos da manhã.
Daisy arregalou os olhos escuros, horrorizada.
– Meu Deus – sussurrou –, não posso imaginar lorde Westcliff perdendo a cabeça dessa maneira... e quanto a você... que estava pensando ao deixar lorde St. Vincent fazer uma coisa dessas?
– Eu estava com dor – sussurrou Lillian, na defensiva. – Não conseguia pensar. Não conseguia nem mesmo me mexer. Se você já tivesse tido cãibra, saberia como dói.
– Eu preferiria perder minha perna a deixar alguém como lorde St. Vincent chegar perto dela
– disse Daisy baixinho. Depois de parar para pensar na situação, não conseguiu evitar perguntar:
– Como foi?
Lillian conteve uma risada.
– Como posso saber? Quando minha perna parou de doer ele já tinha tirado a mão dela.
– Droga. – Daisy franziu levemente as sobrancelhas. – Você acha que ele vai contar a alguém?
– Por algum motivo, acho que não. Ele parece ser um cavalheiro, apesar de afirmar o contrário. – Ela franziu a testa ao acrescentar: – Muito mais cavalheiro do que lorde Westcliff foi hoje.
– Hum. Como ele tomou conhecimento de que você não sabia montar de lado?
Lillian a olhou sem rancor.
– Não banque a idiota, Daisy. É óbvio que Annabelle contou para o marido dela, que contou para Westcliff.
– Espero que você não fique zangada com Annabelle por causa disso. Ela não tinha a intenção de que acontecesse nada disso.
– Ela devia ter mantido a boca fechada – rebateu Lillian, irritada.
– Ela ficou com medo de você cair se saltasse montada de lado. Todas nós ficamos.
– Bem, eu não caí!
– Mas poderia ter caído.
Lillian hesitou, seu mau humor diminuindo quando a honestidade a levou a admitir:
– Sem dúvida, eu acabaria caindo.
– Então não está zangada com Annabelle?
– É claro que não – disse Lillian. – Não seria justo culpá-la pelo comportamento animalesco de Westcliff.
Parecendo aliviada, Daisy a puxou de volta para a mesa lotada.
– Venha, querida, você tem de experimentar esse jogo. É bobo, mas muito divertido.
As garotas, todas solteiras entre o início da adolescência e meados da casa dos vinte, abriram espaço para as duas. Enquanto Daisy explicava as regras, Evie era vendada e as outras garotas mudavam os quatro copos de posição.
– Como pode ver – disse Daisy –, um copo é cheio de água com sabão, um de água limpa e outro de água com anil da lavanderia. O outro, é claro, está vazio. Os copos vão indicar com que tipo de homem você se casará.
Elas observaram Evie tatear cuidadosamente um dos copos. Mergulhando seu dedo na água com sabão, esperou que lhe tirassem a venda e viu o resultado com desapontamento, enquanto as outras garotas irrompiam em risadas.
– Escolher a água com sabão significa que ela se casará com um homem pobre – explicou Daisy.
Limpando os dedos, Evie exclamou, afável:
– S-suponho que o simples fato de me c-casar já seja uma coisa boa.
A garota seguinte aguardou com um sorriso esperançoso enquanto seus olhos eram vendados e os copos eram reposicionados. Tocou-os, quase derrubando um, e mergulhou os dedos no de água com anil. Ao ver sua escolha, pareceu bastante satisfeita.
– Água com anil significa que ela vai se casar com um escritor famoso – disse Daisy para Lillian. – Experimente você agora!
Lillian lhe lançou um olhar expressivo.
– Você não acredita nisso, não é?
– Ah, não seja cética, divirta-se um pouco!
Daisy pegou a venda e ficou nas pontas dos pés para amarrá-la firmemente em volta dos olhos da irmã.
Privada de sua visão, Lillian se permitiu ser guiada para a mesa. Ela sorriu ao ouvir os gritos encorajadores das jovens ao seu redor. Houve o som de copos sendo movidos na sua frente e ela esperou com as mãos um pouco erguidas no ar.
– O que acontecerá se eu escolher o copo vazio? – perguntou.
Ela escutou a voz de Evie perto de seu ouvido.
– Vai morrer s-solteirona! – disse ela, e todas riram.
– Não vale erguer os copos para testar o peso – avisou-a alguém com uma risadinha. – Você não pode evitar o copo vazio, se esse for o seu destino!
– Neste momento eu quero o copo vazio – respondeu Lillian, provocando mais risos.
Encontrando a superfície lisa de um copo, subiu seus dedos pelo lado e os mergulhou no líquido frio. Houve aplausos gerais e vivas, e ela perguntou:
– Também vou me casar com um escritor?
– Não, você escolheu a água pura – disse Daisy. – Um marido bonito e rico está vindo para você, querida!
– Ah, que alívio – disse Lillian de modo irreverente, abaixando a venda para espiar pela borda. – É a sua vez agora?
Sua irmã mais nova balançou a cabeça.
– Fui a primeira. Derrubei um copo duas vezes seguidas e fiz uma bagunça terrível.
– O que isso significa? Que não vai se casar?
– Significa que sou desastrada – respondeu Daisy, alegre. – Fora isso, quem sabe? Talvez meu destino ainda não esteja traçado. A boa notícia é que seu marido parece estar a caminho.
– Nesse caso, o desgraçado está atrasado – retorquiu Lillian, fazendo Daisy e Evie rirem.
CAPÍTULO 9
Infelizmente, a notícia da briga entre Lillian e lorde Westcliff se espalhou depressa por toda a casa. No início da manhã tinha chegado aos ouvidos de Mercedes Bowman, e o resultado não foi bonito de se ver. Com os olhos arregalados e a voz estridente, Mercedes andava de um lado para outro no quarto de Lillian diante da filha.
– Se você tivesse feito apenas um comentário inadequado na presença de lorde Westcliff, talvez isso pudesse ser ignorado – disse Mercedes, furiosa, movendo os braços magros em gestos desordenados. – Mas discutir com o conde e depois desobedecer-lhe na frente de todos... percebe o que isso nos faz parecer? Você está arruinando não só as próprias chances de se casar como também as de sua irmã! Quem vai querer entrar para uma família que tem como membro uma...
filisteia?
Sentindo uma ponta de vergonha, Lillian lançou um olhar de desculpas para a irmã, que estava sentada em um canto. Daisy balançou de leve a cabeça, tranquilizando-a.
– Se você insistir em se comportar como uma selvagem – continuou Mercedes –, serei forçada a tomar medidas drásticas, Lillian Odelle!
Lillian afundou ainda mais no canapé ao ouvir seu odiado nome do meio, cujo uso sempre anunciava um castigo terrível.
– Durante a próxima semana você só sairá deste quarto em minha companhia – disse Mercedes, carrancuda. – Vou supervisionar todas as suas ações, todos os gestos e todas as palavras que saírem de sua boca até estar convencida de que posso confiar em que se comportará como um ser humano razoável. Isso será um castigo para mim também, porque tenho tão pouco prazer na sua companhia quanto você tem na minha. Mas não vejo alternativa. E se você disser uma palavra de protesto, vou dobrar o castigo para duas semanas! Nos momentos em que não estiver sob minha supervisão, ficará neste quarto, lendo ou meditando sobre sua má conduta.
Está me entendendo, Lillian?
– Sim, mãe. – A perspectiva de ser observada tão de perto por uma semana fez Lillian se sentir como um animal enjaulado. Contendo um uivo de protesto, olhou, revoltada, para o tapete com motivo floral.
– A primeira coisa que você fará esta noite – continuou Mercedes, cujos olhos chispavam em seu rosto branco fino – é pedir desculpas a lorde Westcliff pelo problema que lhe causou hoje.
Fará isso na minha presença, para que eu...
– Ah, não. – Lillian se aprumou, encarando a mãe com clara rebeldia. – Não. Não há nada que a senhora nem ninguém possa fazer para que eu peça desculpas a ele. Prefiro morrer.
– Você fará o que eu digo. – A voz de Mercedes diminuiu até se tornar quase um murmúrio.
– Pedirá desculpas ao conde com muita humildade ou não sairá deste quarto durante o resto de sua estada aqui!
Quando Lillian abriu a boca, Daisy se apressou em interrompê-la:
– Mãe, por favor, posso falar com Lillian a sós? Apenas por um instante. Por favor.
Mercedes olhou fixamente uma filha e a outra, balançou a cabeça como que desejando saber por que fora amaldiçoada com filhas tão incontroláveis e saiu a passos largos do quarto.
– Desta vez ela está zangada de verdade – murmurou Daisy no perigoso silêncio que permaneceu depois da saída da mãe. – Nunca a vi nesse estado. Talvez você deva fazer o que ela pediu.
Lillian a olhou com impotente fúria.
– Não vou pedir desculpas àquele idiota arrogante!
– Lillian, isso não lhe custaria nada. Apenas diga as palavras. Você não tem de ser sincera.
Apenas diga: “Lorde Westcliff, eu...”
– Não – repetiu Lillian, decidida. – E isso me custaria algo, sim: meu orgulho.
– Vale a pena ficar trancada neste quarto e perder todas as soirées e todos os jantares enquanto os outros se divertem? Por favor, não seja teimosa! Lillian, eu juro que a ajudarei a encontrar um modo terrível de se vingar de lorde Westcliff... algo realmente diabólico. Por enquanto apenas faça o que nossa mãe quer. Você pode perder a batalha, mas vencerá a guerra.
Além disso... – Daisy procurou desesperadamente outro argumento para convencê-la. – Além disso, nada deixaria lorde Westcliff mais feliz do que você ficar trancada durante todo o tempo em que ficaremos aqui. Você não poderia aborrecê-lo ou atormentá-lo. O que os olhos não veem o coração não sente. Não lhe dê esse prazer, Lillian!
Talvez esse fosse o único argumento com o poder de influenciá-la. Franzindo a testa, Lillian olhou para o rosto pequeno e cor de marfim da irmã, os olhos escuros inteligentes e as sobrancelhas um pouco marcadas demais. Não pela primeira vez, perguntou-se como a pessoa mais disposta a participar de suas aventuras também era a que a chamava à razão com mais facilidade. Muitos se deixavam enganar pelos frequentes momentos de extravagância de Daisy, sem nunca suspeitar do bom senso por trás da fachada travessa.
– Está bem – disse ela, seca. – Embora provavelmente eu vá me engasgar com as palavras.
Daisy deu um grande suspiro de alívio.
– Agirei como sua intermediária. Direi à nossa mãe que você concordou e ela não precisará mais lhe passar sermões, porque isso poderia fazer você mudar de ideia.
Lillian se jogou no canapé, imaginando a satisfação e o convencimento de Westcliff quando ela fosse forçada a lhe pedir desculpas. Droga, isso seria insuportável. Fervendo de raiva, entreteve-se planejando uma série de vinganças complexas contra Westcliff que terminavam com a visão dele lhe pedindo misericórdia.
Uma hora depois, a família Bowman saiu junta de seus aposentos, liderada por Thomas Bowman. O destino final era a sala de jantar, onde seria servida outra refeição bombástica com duração de quatro horas. Tendo sido recentemente informado do comportamento vergonhoso de sua filha mais velha, Thomas estava em um estado de fúria difícil de conter, com o bigode eriçado acima de sua boca rígida.
Usando um vestido de seda lavanda-claro com renda branca no corpete e mangas curtas bufantes, Lillian andou resoluta atrás dos pais lembrando-se das palavras coléricas do pai.
– No momento em que você se tornar um obstáculo para meus negócios, eu a mandarei de volta para Nova York. Até agora essa caça a um marido na Inglaterra está sendo cara e improdutiva. Eu lhe aviso que se seus atos prejudicarem minhas negociações com o conde...
– Estou certa de que não prejudicarão – interrompeu-o Mercedes freneticamente, como se seus sonhos de ter um genro aristocrata estivessem em risco como uma xícara de chá na beira de uma mesa. – Lillian pedirá desculpas a lorde Westcliff, querido, e isso resolverá tudo. Você verá.
– Ficando meio passo atrás do marido, ela lançou um olhar ameaçador por cima do ombro para a filha mais velha.
Parte de Lillian teve vontade de se encolher de remorso, enquanto outra parte quis explodir de ressentimento. Naturalmente o pai se oporia a tudo o que ameaçasse interferir em seus negócios... de resto, não podia ligar menos para os atos dela. Tudo o que ele sempre quis das filhas foi que não o incomodassem. Se não fosse por seus três irmãos, Lillian nunca teria sabido o que era receber a menor migalha de atenção masculina.
– Para garantir que você tenha a oportunidade de se desculpar com o conde de modo adequado – disse Thomas Bowman, parando para encarar Lillian com seus olhos cor de pedra –, eu lhe pedi que se encontrasse conosco na biblioteca antes do jantar. Então você lhe pedirá desculpas, para a satisfação dele e a minha.
Lillian parou e arregalou os olhos para ele. Seu ressentimento se transformou em um nó quente na garganta enquanto ela se perguntava se Westcliff preparara aquele cenário como uma aula de humilhação.
– Ele sabe por que lhe pediu para encontrá-lo lá? – conseguiu perguntar.
– Não. Nem acho que ele esteja esperando um pedido de desculpas de uma de minhas filhas notoriamente malcomportadas. Mas se você não se desculpar de um modo satisfatório, logo dará seu último olhar para a Inglaterra de um navio a vapor partindo para Nova York.
Lillian não era tola a ponto de considerar as palavras do pai uma ameaça vã. O tom imperativo e severo dele foi bastante convincente. E a ideia de ser forçada a deixar a Inglaterra e, pior ainda, ser separada de Daisy...
– Sim, senhor – disse ela por entre os dentes cerrados.
A família seguiu pelo corredor em tenso silêncio.
Fervendo de raiva, Lillian sentiu a mão pequena da irmã deslizar para a sua.
– Isso não significa nada – sussurrou Daisy. – É só falar rápido e acabar logo com...
– Silêncio! – vociferou o pai, e elas soltaram as mãos.
Taciturna e absorta em seus pensamentos, Lillian não prestou muita atenção no ambiente ao seu redor enquanto acompanhava sua família até a biblioteca. A porta fora deixada entreaberta e o pai bateu decididamente uma única vez antes de entrar com a esposa e as filhas. Era uma bela biblioteca, com pé-direito de seis metros, escadas móveis e galerias superiores e inferiores que continham uma enorme quantidade de livros. Os cheiros de couro, pergaminho e madeira recém-encerada tornavam o ar pungente.
Lorde Westcliff, que estava inclinado sobre sua escrivaninha com as mãos cruzadas sobre a superfície desgastada pelo tempo, ergueu os olhos de uma folha de papel e os apertou ao ver Lillian. Moreno, austero e impecavelmente vestido, era a imagem perfeita de um aristocrata inglês, com a gravata ajustada com esmero e os cabelos fartos afastados da testa. Subitamente foi impossível para Lillian conciliar a imagem do homem diante dela com a do bruto brincalhão e com a barba por fazer que a deixara derrubá-lo no campo de rounders atrás do pátio dos estábulos.
Conduzindo a esposa e as filhas para dentro, Thomas Bowman falou depressa:
– Obrigado por concordar em se encontrar comigo aqui, milorde. Prometo que não vamos tomar muito do seu tempo.
– Sr. Bowman – disse Westcliff em voz baixa. – Eu não esperava ter o privilégio de me encontrar com sua família também.
– Temo que neste caso a palavra “privilégio” seja um exagero – disse Thomas. – Parece que uma das minhas filhas se comportou mal na sua presença. Ela deseja expressar seu arrependimento. – Ele cravou os nós dos dedos contra o meio das costas de Lillian, empurrando-a para o conde. – Vá.
Westcliff franziu a testa.
– Sr. Bowman, isso não é necessário.
– Permita que minha filha diga o que tem a dizer – pediu Thomas, cutucando Lillian para que fosse para a frente.
O ambiente na biblioteca estava silencioso mas explosivo quando Lillian ergueu seu olhar para o de Westcliff. A testa dele estava ainda mais franzida e de repente ela percebeu que o conde não queria que se desculpasse. Não dessa maneira, forçada pelo pai de uma forma tão humilhante. De algum modo, isso tornou mais fácil para ela pedir desculpas.
Lillian engoliu em seco e fitou aqueles olhos escuros insondáveis em cujas íris a luz produzia filamentos de um negro intenso.
– Peço desculpas pelo que aconteceu, milorde. O senhor tem sido um anfitrião generoso e merece muito mais respeito do que lhe demonstrei esta manhã. Eu não devia ter contestado sua decisão na pista de saltos, nem falado com o senhor como falei. Espero que aceite minhas desculpas e saiba que são sinceras.
– Não – respondeu ele, em tom suave.
Lillian pestanejou, confusa, no início achando que ele não aceitara seu pedido de desculpas.
– Eu é que devo me desculpar, não a senhorita – continuou Westcliff. – Seus atos impetuosos foram provocados por um gesto de arrogância da minha parte. Não posso culpá-la por ter reagido daquela maneira.
Lillian tentou esconder seu espanto, mas isso não era fácil quando Westcliff tinha feito o oposto do que ela esperara. Ele havia tido a oportunidade perfeita de esmagar seu orgulho, mas não o fizera. Ela não conseguia entender. Que tipo de jogo Westcliff estava jogando?
O olhar dele examinou o rosto perplexo de Lillian.
– Embora eu tivesse me expressado mal esta manhã – murmurou –, minha preocupação com sua segurança foi genuína. Esse foi o motivo da minha raiva.
Olhando para ele, Lillian sentiu o nó de ressentimento que se alojara em seu peito começar a se dissolver. Como ele estava sendo amável! E não parecia fingimento. Parecia verdadeiramente gentil e solidário. Ela ficou aliviada e conseguiu respirar fundo pela primeira vez naquele dia.
– Esse não foi o único motivo da sua raiva – disse. – Não gosta que lhe desobedeçam.
Westcliff deu uma risada rouca.
– Não – admitiu, esboçando um sorriso. – Não gosto.
O sorriso mudou os contornos rígidos de seu rosto, acabando com toda a reserva e revelando uma atratividade mil vezes mais poderosa do que a mera beleza. Lillian sentiu um pequeno e estranho arrepio de prazer em sua pele.
– Agora poderei montar seus cavalos de novo? – ousou perguntar.
– Lillian! – ouviu a mãe repreendendo-a.
Os olhos de Westcliff brilharam de divertimento, como se apreciasse a audácia dela.
– Eu não iria tão longe.
Presa na armadilha aveludada do olhar dele, Lillian percebeu que a eterna discórdia entre ambos se transformara em uma espécie de desafio amistoso... temperado com algo que parecia quase... erótico. Meu Deus! Algumas palavras amáveis de Westcliff e ela estava perto de fazer papel de boba.
Vendo que eles tinham feito as pazes, Mercedes se encheu de entusiasmo.
– Ah, caro lorde Westcliff, que cavalheiro magnânimo o senhor é! E o senhor não foi nem um pouco arrogante. Estava claramente preocupado com meu anjinho voluntarioso, o que é uma prova ainda maior de sua infinita benevolência.
O sorriso do conde se tornou sarcástico ao lançar um olhar especulativo para Lillian, como considerando se a expressão “anjinho voluntarioso” era uma descrição adequada. Oferecendo seu braço a Mercedes, perguntou, afável:
– Permite-me acompanhá-la até o salão, Sra. Bowman?
Eufórica com a ideia de todos a verem na companhia de lorde Westcliff, Mercedes aceitou com um suspiro de prazer. Ao irem da biblioteca para o salão de onde partiria a procissão para o jantar, ela entabulou uma conversa torturantemente longa sobre suas impressões de Hampshire, permeada de várias pequenas críticas que visavam ser inteligentes, mas fizeram Lillian e Daisy se entreolharem em mudo desespero. Lorde Westcliff ouviu as observações toscas de Mercedes com muita cortesia, seus modos refinados fazendo os dela parecerem ainda piores. E pela primeira vez na vida de Lillian ocorreu a ela que talvez seu desprezo pela etiqueta não fosse tão inteligente quanto antes pensara. Certamente não tinha nenhuma vontade de se tornar conservadora e reservada... mas ao mesmo tempo poderia não ser tão ruim se portar com um pouco mais de dignidade.
Sem dúvida, lorde Westcliff ficou infinitamente aliviado ao se separar dos Bowmans quando eles chegaram ao salão, mas não demonstrou isso com palavras ou gestos. Desejando-lhes uma noite agradável, afastou-se com uma leve mesura e foi se juntar a um grupo que incluía sua irmã, Lady Olivia, e o marido dela, o Sr. Shaw.
Daisy se virou para Lillian com os olhos arregalados.
– Por que lorde Westcliff foi tão gentil com você? – sussurrou ela. – E por que ofereceu o braço a nossa mãe, nos acompanhou até aqui e ouviu a conversa interminável dela?
– Não faço ideia – sussurrou Lillian de volta. – Mas ele claramente tem alta tolerância à dor.
Simon Hunt e Annabelle se juntaram ao grupo no outro lado do salão. Alisando distraidamente a cintura de seu vestido azul-prateado, Annabelle examinou a multidão, viu o olhar de Lillian e assumiu uma expressão pesarosa. Sem dúvida, soubera do confronto na pista de saltos. Desculpe-me, disse com os lábios. Ela pareceu aliviada quando Lillian assentiu e lhe enviou uma mensagem silenciosa: Tudo bem.
Enfim, todos foram para a sala de jantar, os Bowmans e os Hunts entre os últimos da fila, porque tinham uma posição hierárquica muito baixa.
– O dinheiro sempre guarnece a retaguarda – Lillian ouviu o pai dizer em tom crítico, e supôs que ele não tinha muita paciência com as regras de precedência sempre tão claramente definidas nessas ocasiões.
Ocorreu-lhe que quando a condessa estava ausente lorde Westcliff e a irmã dele, Lady Olivia, tendiam a organizar as coisas com muito menos formalidade, encorajando os convidados a irem naturalmente para a sala de jantar em vez de em procissão. Contudo, quando a condessa estava presente, a tradição era seguida à risca.
Ao que parecia, havia quase tantos criados quantos eram os convidados, todos em seus uniformes completos de calças pretas aveludadas até a altura dos joelhos, colete mostarda e fraque azul. Eles acomodaram com habilidade os convidados e serviram vinho e água sem derramar uma só gota.
Para a surpresa de Lillian, ela foi posta perto da cabeceira da mesa de lorde Westcliff, a apenas três cadeiras de distância da mão direita dele. Ocupar um lugar tão próximo do anfitrião era uma honra quase nunca concedida a uma mulher solteira sem título de nobreza. Perguntando-se se o criado cometera um erro ao acomodá-la ali, olhou cautelosamente para os rostos dos convidados mais próximos e viu que também estavam intrigados com sua presença. Até mesmo a condessa, sentada à outra extremidade da mesa, a olhava de cara feia.
Quando lorde Westcliff ocupou seu lugar à cabeceira, Lillian lhe lançou um olhar questionador.
Ele arqueou uma das sobrancelhas.
– Há algo errado? Parece um pouco perturbada, Srta. Bowman.
A resposta correta provavelmente teria sido corar e lhe agradecer pela honra inesperada. Mas quando Lillian olhou para o rosto dele, suavizado pela luz de uma vela, viu-se respondendo com absoluta franqueza:
– Eu me pergunto por que estou sentada perto da cabeceira. Depois do que aconteceu esta manhã, achei que me faria sentar no terraço dos fundos.
Houve um momento de total silêncio enquanto os convidados ao redor assimilavam o choque de Lillian ter se referido tão abertamente ao conflito entre eles. Contudo, Westcliff os surpreendeu rindo baixinho e olhando nos olhos dela. Depois de um instante, os outros se juntaram a ele com risos forçados.
– Conhecendo sua tendência a se meter em encrencas, concluí que é mais seguro mantê-la à minha vista e, se possível, ao alcance do meu braço.
A afirmação foi feita de modo leve e casual. Seria preciso procurar muito para encontrar qualquer insinuação no tom dele. E ainda assim Lillian experimentou uma estranha agitação, uma sensação como a de mel morno escorrendo de um nervo para outro.
Lillian levou aos lábios uma taça de champanhe gelado e olhou ao redor da sala de jantar.
Daisy estava sentada perto da outra extremidade da mesa, conversando animadamente e quase derrubando uma taça de vinho ao gesticular para enfatizar suas palavras. Annabelle estava na mesa próxima, parecendo alheia aos olhares masculinos de admiração fixos nela. Os homens dos dois lados de Annabelle estavam radiantes com a sorte de sentarem perto de uma mulher tão encantadora, enquanto Simon Hunt, a apenas algumas cadeiras de distância, lhes lançava o olhar sinistro de um macho muito possessivo.
Evie, tia Florence e os pais de Lillian estavam com outros convidados na mesa mais afastada.
Como sempre, Evie falava muito pouco com os homens ao seu lado, sem saber o que dizer e olhando nervosamente para seu prato. Pobre Evie, pensou Lillian, solidária. Teremos de fazer algo com relação a essa maldita timidez.
Pensando em seus irmãos solteiros, Lillian se perguntou se haveria alguma possibilidade de um deles se casar com Evie. Talvez conseguisse encontrar um modo de convencer um de seus irmãos a visitar a Inglaterra. Deus sabia que qualquer um deles seria um marido melhor para Evie do que o primo Eustace. Havia seu irmão mais velho, Raphael, e os gêmeos, Ranson e Rhys. Era impossível encontrar um grupo mais sólido de homens jovens. Por outro lado, era provável que qualquer um dos irmãos Bowmans fosse assustar Evie. Eles eram homens de bom caráter, mas não o que se poderia chamar de refinados. Ou ao menos civilizados.
Sua atenção foi desviada para a longa fila de criados que traziam o primeiro prato: um desfile de terrinas de sopa de tartaruga e bandejas de prata contendo linguado ao molho de lagosta, pudim de camarão-d’água-doce e truta com ervas e alface guisada. Foi o primeiro de oito pratos seguidos por várias sobremesas. Diante da perspectiva de outro longo jantar, Lillian conteve um suspiro, ergueu os olhos e viu o olhar de Westcliff a examiná-la discretamente. Mas ele não disse nada, e Lillian quebrou o silêncio:
– Seu cavalo de caça Brutus parece ótimo, milorde. Notei que não usou chicote ou esporas nele.
A conversa ao redor parou e Lillian se perguntou se cometera outra gafe. Talvez uma moça solteira não devesse falar até alguém lhe dirigir a palavra. Mas Westcliff respondeu de pronto:
– Eu raramente uso chicote ou esporas em meus cavalos, Srta. Bowman. Quase sempre obtenho os resultados que desejo sem eles.
Lillian pensou que, como todos na propriedade, o baio nem sonharia em desobedecer ao dono.
– Parece que ele tem um temperamento mais calmo do que a maioria dos puros-sangues –
disse ela.
Westcliff se reclinou em sua cadeira enquanto o criado lhe servia uma porção de truta. A luz bruxuleante brincou nos cabelos fartos dele... e Lillian não pôde evitar se lembrar dos grossos cachos sob seus dedos.
– Na verdade, Brutus não é de raça pura, mas uma mistura de puro-sangue com cavalo de tiro irlandês.
– É mesmo? – Lillian não fez nenhum esforço para esconder sua surpresa. – Eu achava que o senhor só cavalgava animais de excelente pedigree.
– Muitos preferem cavalos de raça pura – admitiu o conde. – Mas um caçador precisa de um animal com uma capacidade maior de saltar e força para mudar de direção com facilidade. Um cavalo mestiço como Brutus tem a velocidade e o estilo de um puro-sangue combinados à força atlética de um cavalo de tiro irlandês.
Os outros à mesa ouviam com atenção. Quando Westcliff terminou, um cavalheiro acrescentou de modo jovial:
– Um animal soberbo, o Brutus. Descendente de Eclipse, não é? Dá para ver a influência do Darley árabe...
– É muito liberal de sua parte cavalgar um animal mestiço – murmurou Lillian.
Westcliff esboçou um sorriso.
– Às vezes sou bastante liberal.
– Foi o que ouvi dizer... mas não tinha visto nenhuma evidência disso até agora.
Mais uma vez a conversa parou quando os convidados ouviram os comentários provocadores de Lillian. Em vez de ficar aborrecido, Westcliff a olhou com visível interesse. Se o interesse era o de um homem que a achava atraente ou que apenas a considerava uma aberração, era difícil de determinar. Mas era interesse.
– Sempre tentei ver as coisas de um modo lógico – disse ele. – O que às vezes leva a uma ruptura com a tradição.
Lillian lhe sorriu sarcasticamente.
– Acha que as ideias tradicionais nem sempre são lógicas?
Westcliff balançou de leve a cabeça, e o brilho em seus olhos se intensificou enquanto bebia de uma taça de vinho e a observava por cima da borda de cristal que refletia a luz.
Enquanto o próximo prato era trazido, outro cavalheiro fez um gracejo sobre curar Westcliff de suas visões liberais. A sucessão de bandejas de prata com estranhos itens volumosos foi recebida com grande alegria e prazer. Havia quatro por mesa, doze, no total, dispostas a distâncias regulares sobre pequenas mesas dobráveis, onde criados e seus chefes começaram a trinchá-los. O cheiro de carne condimentada encheu o ar enquanto os convidados olhavam para o conteúdo das bandejas com murmúrios expectantes. Movendo-se um pouco em sua cadeira, Lillian olhou para a bandeja mais próxima. Quase pulou para trás de horror ao ver a cabeça tostada de um animal irreconhecível, com vapor subindo do crânio recém-assado.
Sobressaltada, ouviu o barulho de talheres caindo. Um criado lidou com a falta de jeito dela substituindo imediatamente os garfos e as colheres e se curvando para pegar os que tinham ido ao chão.
– O q-que é isso? – perguntou Lillian para ninguém em particular, sem conseguir evitar a visão repugnante.
– Cabeça de vitela – respondeu uma das mulheres em tom de divertimento e condescendência, como se aquilo fosse mais um exemplo do atraso dos americanos. – Uma iguaria inglesa. Não me diga que nunca experimentou.
Tentando manter o rosto impassível, Lillian balançou a cabeça e não disse nada. Ela se encolheu quando o criado abriu as mandíbulas fumegantes da vitela e lhe cortou a língua.
– Alguns dizem que a língua é a parte mais saborosa – continuou a mulher –, enquanto outros juram que o cérebro é de longe a melhor. Mas eu diria que, sem dúvida, os olhos são as iguarias mais refinadas.
Lillian fechou os próprios olhos, nauseada com essa revelação. Sentiu a bile subindo por sua garganta. Nunca fora uma grande apreciadora da culinária inglesa, mas, por mais que alguns pratos a tivessem desagradado no passado, nada a preparara para a visão repugnante da cabeça de vitela. Abrindo um pouco os olhos, espiou ao redor. Parecia que por toda parte cabeças eram trinchadas, abertas e fatiadas. Cérebros eram servidos com colheres nos pratos, e timos cortados em fatias finas...
Ela estava prestes a vomitar.
Sentindo o sangue se esvair de seu rosto, Lillian olhou para a outra extremidade da mesa, onde Daisy observava com hesitação algumas porções sendo cerimoniosamente depositadas em seu prato. Devagar, Lillian levou um canto de seu guardanapo à boca. Não. Não podia se permitir vomitar. Mas quando o cheiro forte e oleoso da cabeça de vitela flutuou ao seu redor e ela ouviu o barulho de facas e garfos sendo usados com vigor e os murmúrios de apreciação dos comensais, a náusea veio em ondas sufocantes. Um pequeno prato foi posto na sua frente contendo algumas fatias de... alguma coisa... e um globo ocular gelatinoso com base cônica, que rolou lentamente na direção da borda.
– Cristo! – sussurrou Lillian, o suor brotando em sua testa.
Uma voz fria e calma pareceu atravessar a nuvem de náusea.
– Srta. Bowman...
Ela olhou em desespero na direção da voz e viu o rosto impassível de lorde Westcliff.
– Sim, milorde? – perguntou com a voz pastosa.
Ele pareceu escolher suas palavras com um cuidado incomum:
– Perdoe-me pelo que pode parecer um pedido um pouco excêntrico, mas acaba de me ocorrer que este é o momento mais oportuno para ver uma rara espécie de borboleta que há na propriedade. Ela só aparece de madrugada e isso, é claro, foge aos padrões. Talvez se lembre de eu tê-la mencionado em uma conversa anterior.
– Borboleta? – repetiu Lillian, contendo repetidas ondas de náusea.
– Talvez me permita levá-la com sua irmã à estufa, onde borboletas jovens foram recentemente avistadas. É uma pena que para isso precisemos nos abster deste prato em particular, mas voltaremos a tempo de apreciar o restante do jantar.
Vários convidados pararam com seus garfos no ar, perplexos com o pedido peculiar de Westcliff.
Percebendo que ele estava lhe proporcionando uma desculpa para sair da sala acompanhada de sua irmã sem descumprir nenhuma norma do decoro, Lillian assentiu.
– Borboletas – murmurou, ofegante. – Sim, eu adoraria vê-las.
– Eu também – disse Daisy da outra extremidade da mesa. Ela se levantou com entusiasmo, obrigando todos os outros cavalheiros a se levantarem também. – Foi muita consideração da sua parte se lembrar de nosso interesse pelos insetos nativos de Hampshire, milorde.
Westcliff foi ajudar Lillian a se levantar.
– Respire pela boca – sussurrou.
Pálida e suada, ela obedeceu.
Todos os olhares estavam fixos neles.
– Milorde – disse um dos cavalheiros, lorde Wymark –, posso lhe perguntar a qual espécie de borboleta está se referindo?
Após hesitar por um momento, Westcliff respondeu com séria determinação:
– À com manchas púrpura... – Ele fez uma pausa antes de terminar: – Erinnis pages.
Wymark franziu a testa.
– Posso dizer que entendo um pouco de lepidópteros, milorde. E, embora conheça a Erinnis tages, que só é encontrada em Northumberland, nunca ouvi falar na Erinnis pages.
Houve uma pausa estudada.
– É uma espécie híbrida – disse Westcliff. – Morpho purpureus practicus. Ao que eu saiba, só foi vista nos arredores de Stony Cross.
– Eu gostaria de dar uma olhada na colônia com o senhor, se possível – disse Wymark, pondo seu guardanapo sobre a mesa e pronto para se levantar. – A descoberta de uma nova espécie híbrida sempre é uma notável...
– Amanhã à noite – disse Westcliff, em tom autoritário. – Elas são sensíveis à presença humana. Não quero pôr em risco uma espécie tão frágil. Acho melhor vê-las em pequenos grupos de dois ou três.
– Sim, milorde – disse Wymark, obviamente decepcionado ao se sentar em sua cadeira. –
Amanhã à noite, então.
Sentindo-se grata, Lillian deu um braço a Westcliff enquanto Daisy segurava o outro e eles saíram da sala com grande dignidade.
CAPÍTULO 10
Lillian estava quase dominada pela náusea quando Westcliff a levou para a estufa. O céu era cor de ameixa, e a escuridão, reduzida apenas pela luz das estrelas e pelas chamas de tochas recém-acesas. Quando o ar limpo e agradável da noite a envolveu, ela respirou fundo várias vezes.
Westcliff a guiou até uma cadeira com espaldar de vime, demonstrando mais compaixão do que Daisy, que estava encostada em uma coluna e tremia com um ataque de riso.
– Ah... meu Deus... – disse Daisy, ofegante, secando as lágrimas provocadas pelo riso. –
Lillian, a sua cara... você ficou verde como uma ervilha. Achei que fosse vomitar na frente de todos!
– Eu também – disse Lillian, estremecendo.
– Pelo visto, a senhorita não gosta muito de cabeça de vitela – murmurou Westcliff, sentando-se ao lado dela. Ele tirou um lenço branco macio de seu casaco e enxugou a testa úmida de Lillian.
– Eu não gosto de nada que me olhe antes de ser comido – disse ela, nauseada.
Daisy recuperou o fôlego o bastante para dizer:
– Ah, não exagere. Ela só olhou para você por um momento... – Ela fez uma pausa e acrescentou: – Até ter os globos oculares arrancados! – Então teve outro ataque de riso.
Lillian olhou para a irmã e fechou os olhos.
– Pelo amor de Deus, você tem que...
– Respire pela boca – lembrou-lhe Westcliff. O lenço foi movido sobre o rosto de Lillian, absorvendo os últimos vestígios de suor frio. – Tente abaixar a cabeça.
Obedientemente, Lillian abaixou a testa até seus joelhos. Sentiu a mão de Westcliff se fechar sobre sua nuca gelada, massageando com muita delicadeza os tendões rígidos. Os dedos dele eram quentes e um tanto ásperos, e a suave massagem era tão agradável que a náusea logo desapareceu. Westcliff parecia saber exatamente onde tocá-la, as pontas dos dedos descobrindo as áreas mais sensíveis na nuca e nos ombros e pressionando com habilidade os pontos doloridos.
Imóvel sob os cuidados dele, Lillian sentiu todo o seu corpo relaxar e sua respiração se tornar profunda e regular.
Não demorou muito para senti-lo pondo-a novamente ereta e ela teve de conter um gemido de protesto. Para a sua mortificação, queria que continuasse a massageá-la. Queria ficar sentada ali a noite toda com a mão dele em sua nuca. E em suas costas. E... em outros lugares. Seus cílios se ergueram no rosto pálido e ela pestanejou ao ver como os rostos deles estavam próximos. Era estranho como as linhas severas do rosto de Westcliff se tornavam mais bonitas a cada vez que as contemplava. Sentiu vontade de passar os dedos pela borda íngreme do nariz e pelos contornos da boca do conde, tão firme e ainda assim tão macia. E a intrigante marca da barba. Tudo isso combinado com uma atratividade muito masculina. Mas o que mais a atraía eram seus olhos pretos aveludados iluminados pela luz das tochas e emoldurados por cílios retos que projetavam sombras nas linhas marcadas das maçãs do rosto.
Lembrando-se da criativa explicação sobre o tema das borboletas com manchas púrpura, Lillian esboçou um sorriso. Sempre havia considerado Westcliff um homem sem senso de humor... e nisso o julgara mal.
– Achei que nunca mentia – disse ela.
Westcliff franziu os lábios.
– Dadas a opções de vê-la vomitar à mesa de jantar ou mentir para tirá-la o mais rápido possível de lá, escolhi o mal menor. Está se sentindo melhor agora?
– Melhor... sim.
Lillian percebeu que estava apoiada na dobra do braço de Westcliff, e suas saias cobriam parcialmente uma das coxas dele. O corpo do conde era sólido e quente, combinando muito bem com o seu. Olhando para baixo, viu que o tecido das calças dele tinha se moldado ao redor das coxas musculosas. Uma curiosidade nada virginal despertou em seu íntimo e ela fechou a mão para conter o desejo de passar a palma por aquelas coxas.
– A parte sobre a Erinnis pages foi inteligente – disse, erguendo os olhos para o rosto dele. –
Mas inventar um nome latino para ela, sem dúvida, foi uma grande inspiração.
Westcliff sorriu.
– Sempre esperei que meu latim servisse para alguma coisa. – Ele a mudou um pouco de posição, pôs a mão no bolso do colete e olhou para seu relógio. – Voltaremos daqui a uns quinze minutos. A essa altura as cabeças de vitela já deverão ter sido retiradas.
Lillian fez uma careta.
– Detesto comida inglesa – exclamou. – Todas aquelas coisas gelatinosas e borbulhantes e os pudins que balançam. A carne de caça que fica tanto tempo secando que, quando é servida, está mais velha do que eu e... – Ela sentiu no corpo do conde o tremor de um riso contido e se virou no semicírculo do braço dele. – Qual é a graça?
– Está me fazendo ter medo de voltar para minha mesa de jantar.
– Deveria ter mesmo! – respondeu Lillian, enfática, e ele não conseguiu mais conter uma gargalhada.
– Com licença. – A voz de Daisy se fez ouvir, próxima. – Quero aproveitar esta oportunidade para ir ao... ao... ah, não sei qual é a palavra educada para isso. Eu os encontrarei na entrada da sala de jantar.
Westcliff afastou seu braço de Lillian, olhando para Daisy como se, por um momento, tivesse se esquecido da presença dela.
– Daisy – disse Lillian, desconfortável, suspeitando que sua irmã mais nova estivesse arranjando uma desculpa para deixá-los a sós.
Ignorando-a, Daisy se afastou com um sorriso travesso e um aceno, passando pelas portas francesas.
Sentada com Westcliff à luz mutante de uma tocha, Lillian sentiu uma pontada de nervosismo. Embora não houvesse borboletas híbridas lá fora, sentia-se como se houvesse várias delas em sua barriga. Com um braço nas costas do canapé de vime, Westcliff se virou para vê-la melhor.
– Eu falei com a condessa hoje mais cedo – disse, com um sorriso ainda nos cantos dos lábios.
Lillian demorou a responder, tentando desesperadamente afastar a imagem da cabeça de Westcliff se curvando sobre a sua, da língua penetrando em sua boca macia...
– Sobre o quê? – perguntou, confusa.
Westcliff respondeu com um olhar sarcástico que dizia tudo.
– Ah – murmurou ela. – Deve estar se referindo ao meu... pedido para nos amadrinhar...
– Podemos chamar isso de pedido? – Westcliff estendeu a mão para prender uma mecha de cabelos solta atrás da orelha de Lillian. Os dedos dele tocaram na borda externa, seguindo a curva para o lóbulo macio. – Pelo que me lembro, pareceu mais uma chantagem. – Ele tocou no delicado lóbulo, seu polegar acariciando a superfície sensível. – Nunca usa brincos. Por quê?
– Eu... – Subitamente, ela não conseguia mais respirar direito. – Minhas orelhas são muito sensíveis – conseguiu dizer. – Dói prendê-las com brincos de pressão... e a ideia de furá-las com uma agulha...
Ela parou com a respiração entrecortada ao sentir a ponta do dedo médio de Westcliff examinando a concha de seu ouvido e a frágil estrutura interna. Ele acompanhou com o polegar a linha firme de seu maxilar e a área macia e vulnerável sob seu queixo até um rubor se espalhar por suas bochechas. Eles estavam sentados tão próximos... Westcliff devia esta sentindo o seu perfume. Essa era a única explicação para o toque amoroso em seu rosto.
– Sua pele é como seda – murmurou ele. – Do que estávamos falando?... Ah, sim, a condessa.
Consegui convencê-la a amadrinhá-las na próxima temporada.
Lillian arregalou os olhos, perplexa.
– Conseguiu? Como? Teve de intimidá-la?
– Pareço o tipo de homem que intimidaria a própria mãe idosa?
– Sim.
Ele deu uma risada rouca.
– Tenho outros métodos além da intimidação – informou-lhe. – Apenas ainda não os conhece.
Houve uma implicação nas palavras de Westcliff que ela não conseguiu identificar... mas a encheu de expectativa.
– Por que a convenceu a me ajudar? – perguntou.
– Porque achei que eu poderia gostar de infligi-la a ela.
– Bem, se vai me fazer parecer um tipo de peste...
– E – interrompeu-a Westcliff – me senti obrigado a compensá-la pela maneira rude como a tratei esta manhã.
– A culpa não foi só sua – disse Lillian, relutante. – Acho que talvez eu tenha sido um pouco provocadora.
– Um pouco – concordou ele, deslizando as pontas dos dedos por trás da orelha de Lillian até a sedosa linha dos cabelos. – Devo avisá-la de que a concordância da minha mãe com esse arranjo não é incondicional. Se a pressionar muito, ela voltará atrás. Por isso eu a aconselho a tentar se comportar na presença dela.
– Comportar-me como? – perguntou Lillian, aflitivamente consciente da gentil exploração dos dedos de Westcliff.
Se sua irmã não voltasse logo, pensou atordoada, Westcliff a beijaria. E ela queria tanto que ele fizesse isso que seus lábios começaram a tremer.
Ele sorriu à pergunta de Lillian.
– Bem, seja o que for que possa fazer, não faça...
Ele se interrompeu, olhando ao redor como se tivesse sentido a aproximação de alguém.
Lillian não conseguiu ouvir nada além do sussurro da brisa que soprava através das árvores e espalhava folhas caídas nos caminhos de cascalho. Contudo, um instante depois, uma figura magra e ágil surgiu do mosaico de luz e sombra, o brilho dos cabelos cor de ouro envelhecido identificando o visitante como lorde St. Vincent. Westcliff tirou imediatamente sua mão de Lillian. O feitiço sensual foi quebrado e ela sentiu a onda de calor começar a desaparecer.
St. Vincent vinha a passos longos mas relaxados, com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco de modo casual. Ele sorriu à visão do casal no banco, e seu olhar se prolongou no rosto de Lillian. Não havia dúvida de que esse homem extraordinariamente bonito com rosto de anjo e olhos da cor do céu ocupara o sonho de muitas mulheres. E fora amaldiçoado por muitos maridos traídos.
Essa parecia uma amizade improvável, pensou Lillian olhando Westcliff e St. Vincent. O
conde, com sua natureza franca e honrada, decerto desaprovava as tendências à imoralidade do amigo. Mas, como tantas vezes acontecia, essa amizade particular podia ser fortalecida pelas diferenças em vez de minada por elas.
Parando diante deles, St. Vincent confidenciou:
– Eu podia tê-los encontrado antes, mas fui atacado por um bando de Erinnis pages. – Ele baixou a voz a um tom conspirador: – E não quero alarmar nenhum de vocês, mas tinha de preveni-los de que estão planejando servir pudim de rim no quinto prato.
– Posso aguentar isso – disse Lillian com tristeza. – Ao que parece, meu único problema é com animais servidos em seu estado natural.
– É claro que sim, doçura. Somos bárbaros, todos nós, e está certa em ficar horrorizada com as cabeças de vitela. Também não gosto delas. Na verdade, quase nunca consumo carne em qualquer forma.
– Então é vegetariano? – perguntou Lillian, tendo ultimamente ouvido essa palavra com frequência.
Houvera muitas conversas sobre o tema do sistema de alimentação vegetariana que estava sendo promovido por uma sociedade hospitalar em Ramsgate.
St. Vincent respondeu com um sorriso deslumbrante.
– Não, doçura, sou canibal.
– St. Vincent – grunhiu Westcliff em advertência, vendo a confusão de Lillian.
O visconde sorriu impenitentemente.
– Foi bom eu ter aparecido, Srta. Bowman. Sabe, não está segura a sós com Westcliff.
– Não estou? – disse Lillian, se retesando ao refletir que ele nunca teria feito esse comentário indiscreto se soubesse dos encontros particulares dela com o conde.
Não ousou olhar para Westcliff, mas percebeu a imobilidade imediata da forma masculina tão perto dela.
– Não mesmo – garantiu-lhe St. Vincent. – Os homens moralmente retos são os que fazem as piores coisas em particular. Enquanto que com um reconhecidamente depravado como eu não poderia estar em mãos mais seguras. É melhor voltar para a sala de jantar sob minha proteção.
Deus sabe que tipo de plano libidinoso está passando pela cabeça do conde.
Rindo, Lillian se levantou do banco, gostando da visão de Westcliff sendo provocado. Ele olhou para seu amigo com as sobrancelhas levemente franzidas enquanto também se levantava.
Lillian segurou o braço que St. Vincent lhe ofereceu e se perguntou por que ele se dera ao trabalho de ir lá. Era possível que tivesse algum tipo de interesse nela? Claro que não. Todos sabiam que as moças casadouras nunca tinham feito parte da história romântica de St. Vincent, e Lillian obviamente não era do tipo que ele buscaria para uma aventura. Contudo, era divertido estar sozinha com dois homens, um deles o parceiro de cama mais desejado da Inglaterra, e o outro, o solteiro mais cobiçado. Ela não pôde evitar sorrir ao pensar em quantas garotas não dariam tudo para estar em seu lugar naquele momento.
St. Vincent se afastou com ela.
– Pelo que me lembro – observou –, nosso amigo Westcliff a proibiu de montar os cavalos dele, mas não disse nada sobre um passeio de carruagem. Poderia considerar a possibilidade de me acompanhar em um passeio pelo campo amanhã de manhã?
Pensando no convite, Lillian ficou calada por um instante, esperando que Westcliff dissesse algo a respeito. Naturalmente, ele disse.
– A Srta. Bowman estará ocupada amanhã de manhã. – A voz do conde soou brusca atrás deles.
Lillian abriu a boca para dar uma resposta atrevida, mas St. Vincent lhe lançou um olhar travesso que lhe dizia para deixá-lo lidar com aquilo.
– Ocupada com o quê? – perguntou ele.
– Ela e a irmã vão se encontrar com a condessa.
– Ah, o velho e magnífico dragão – murmurou St. Vincent, arrastando Lillian para a porta. –
Eu sempre me dei muito bem com a condessa. Deixe-me lhe dar um pequeno conselho: ela adora ser adulada, embora finja o contrário. Alguns elogios e a fará comer em sua mão.
Lillian olhou por cima do ombro para Westcliff.
– Isso é verdade, milorde?
– Não sei dizer, porque nunca me dei ao trabalho de adulá-la.
– Westcliff considera adulação e charme perda de tempo – disse St. Vincent para Lillian.
– Eu notei.
St. Vincent riu.
– Então posso convidá-la para um passeio de carruagem depois de amanhã. Está bom assim?
– Sim, obrigada.
– Ótimo – disse St. Vincent, acrescentando casualmente: – A não ser que Westcliff tenha programado algo mais para a Srta. Bowman então.
– Não – disse Wescliff, categórico.
É claro que não, pensou Lillian com súbito rancor. Obviamente Westcliff não desejava a companhia dela, a menos que fosse para poupar seus convidados de vê-la vomitar à mesa de jantar.
Eles se reuniram com Daisy, que ergueu as sobrancelhas ao ver St. Vincent e perguntou suavemente:
– De onde o senhor veio?
– Se minha mãe estivesse viva, poderia lhe perguntar – respondeu-lhe ele em tom amigável. –
Mas duvido que ela soubesse.
– St. Vincent – disparou Westcliff pela segunda vez naquela noite. – Essas são moças inocentes.
– São? Que interessante. Muito bem, vou tentar me comportar... De que se pode falar com moças inocentes?
– De quase nada – disse Daisy tristemente, fazendo-o rir.
Antes de eles voltarem para a sala de jantar, Lillian parou para perguntar a Westcliff:
– A que horas devo me encontrar com a condessa amanhã? E onde?
O olhar dele foi frio e opaco. Lillian não pôde evitar notar que ele tinha ficado com o humor azedo desde o momento em que St. Vincent a convidara para um passeio de carruagem. Mas por que isso lhe desagradaria? Seria absurdo achar que estava com ciúme, porque ela era a última mulher no mundo por quem ele se interessaria. A única conclusão lógica era que ele temia que St.
Vincent tentasse seduzi-la e não queria lidar com o problema que se seguiria.
– Às dez horas, na sala Marsden – respondeu Westcliff.
– Acho que não conheço essa sala...
– Poucas pessoas conhecem. Fica no andar de cima e é reservada para o uso privativo da família.
– Ah.
Ela olhou para os olhos escuros de Westcliff, sentindo-se grata e confusa. Ele tinha sido gentil, contudo o relacionamento deles não podia ser considerado uma amizade. Ela desejou conseguir evitar sua crescente curiosidade em relação a Westcliff. Isso era muito mais fácil quando podia desprezá-lo como um homem esnobe e arrogante. No entanto, ele era muito mais complexo do que a princípio pensara, revelando traços de humor, sensualidade e surpreendente compaixão.
– Milorde – disse, capturada pelo olhar dele. – Eu... acho que deveria lhe agradecer por...
– Vamos entrar – disse Westcliff, parecendo ansioso por se livrar da presença dela. – Já demoramos demais.
– Está nervosa? – sussurrou Daisy na manhã seguinte enquanto ela e Lillian seguiam a mãe até a porta da sala Marsden.
Embora Mercedes não tivesse sido especificamente convidada para o encontro com a condessa, estava determinada a ser incluída na visita.
– Não – respondeu Lillian. – Estou certa de que não teremos nada a temer se ficarmos de boca fechada.
– Ouvi dizer que ela odeia americanos.
– É uma pena – disse Lillian, seca –, porque as duas filhas dela se casaram com americanos.
– Quietas, vocês duas – sussurrou Mercedes.
Usando um vestido cinza-prateado com um grande broche de diamantes no pescoço, ela bateu na porta com seus proeminentes nós dos dedos. Não veio nenhum som de dentro. Daisy e Lillian se entreolharam com as sobrancelhas erguidas, se perguntando se a condessa decidira não encontrá-las. Com uma expressão carrancuda, Mercedes bateu na porta com mais força.
Dessa vez uma voz irritada atravessou a porta de mogno almofadada.
– Parem com esse barulho infernal e entrem!
Com expressões submissas, as Bowmans entraram. Era uma sala pequena, mas muito bonita, com paredes revestidas de papel com flores azuis e janelas grandes com vista para o jardim lá embaixo. A condessa de Westcliff estava sentada em um canapé debaixo da janela, usando um colar de várias voltas de raras pérolas negras e joias pesadas nos dedos e pulsos. Suas sobrancelhas baixas, escuras e grossas contrastavam com o prateado brilhante de seus cabelos. Em aspecto e forma, ela era totalmente destituída de ângulos, tendo um rosto redondo e um corpo roliço.
Lillian pensou que lorde Westcliff devia ter herdado a aparência do pai, porque havia pouca semelhança entre ele e a mãe.
– Eu esperava só duas – disse a condessa com um olhar duro para Mercedes. Seu tom foi claro e encrespado, como cobertura de glacê em um bolo de chá. – Por que vieram três?
– Vossa Graça – começou Mercedes com um sorriso adulador, fazendo uma desconfortável mesura. – Primeiro permita-me lhe dizer quanto o Sr. Bowman e eu apreciamos sua condescendência para com nossos dois anjinhos.
– Somente uma duquesa é chamada de “Vossa Graça” – disse a condessa, os cantos da boca puxados para baixo como que por uma excessiva força da gravidade. – Está zombando de mim?
– Ah, não, Vossa... quero dizer, milady – apressou-se em dizer Mercedes, com o rosto ficando branco como o de um cadáver. – Eu não faria isso. Nunca! Só queria...
– Falarei a sós com suas filhas – disse a condessa imperiosamente. – A senhora pode voltar para buscá-las daqui a duas horas.
– Sim, milady! – Mercedes se apressou em sair.
Pigarreando para esconder uma súbita e irreprimível risada, Lillian olhou para Daisy, que também tentava conter o riso ao ver a mãe ser tão prontamente despachada.
– Que barulho desagradável – observou a condessa de cara feia ao ouvir o pigarrear de Lillian.
– Tenha a bondade de não fazê-lo de novo.
– Sim, milady – disse Lillian, tentando ao máximo demonstrar humildade.
– Aproximem-se – ordenou a condessa, olhando uma e a outra enquanto elas obedeciam. – Observei as duas na noite passada e vi um verdadeiro rol de comportamentos inconvenientes. Meu filho me disse que devo amadrinhá-las na temporada, o que confirma minha opinião de que ele está determinado a tornar minha vida o mais difícil possível. Amadrinhar duas garotas americanas estouvadas! Eu as aviso de que se não seguirem cada palavra que eu disser, não descansarei até vê-las casadas com um falso aristocrata do continente e enviá-las para mofar nos cantos mais esquecidos da Europa.
Lillian ficou muito impressionada. No que se referia a ameaças, aquela era uma grande.
Lançando um olhar furtivo para Daisy, viu que a irmã estava bastante séria.
– Sentem-se – disse a condessa, com irritação na voz.
Lillian e Daisy obedeceram o mais rápido que puderam, ocupando as cadeiras que ela lhes indicou com um gesto de sua mão brilhante. A condessa estendeu a mão para a mesinha ao lado do canapé e pegou um pergaminho repleto de anotações feitas com tinta azul-cobalto.
– Fiz uma lista – informou-lhes, usando uma das mãos para pôr um pincenê na ponta curta do seu nariz – de todos os erros que cometeram na noite passada. Nós os examinaremos um a um.
– Como a lista pode ser tão longa? – perguntou Daisy, desanimada. – O jantar só durou quatro horas. Quantos erros podíamos ter cometido durante esse tempo?
Lançando-lhes um olhar duro por cima da borda superior do pergaminho, a condessa deixou que ele se abrisse. Como um acordeão, ele se abriu... e abriu... e abriu... até a borda inferior roçar o chão.
– Maldição – sussurrou Lillian.
Ouvindo a imprecação, a condessa franziu as sobrancelhas até se juntarem em uma linha escura.
– Se tivesse sobrado algum espaço no pergaminho – informou ela a Lillian –, eu acrescentaria essa vulgaridade.
Contendo um longo suspiro, Lillian se recostou em sua cadeira.
– Sente-se reta, por favor – disse a condessa. – Uma dama nunca deixa sua espinha tocar no espaldar da cadeira. Agora começaremos com as introduções. Ambas têm o lamentável hábito de apertar mãos. Isso as faz parecer desagradavelmente ansiosas por cair nas boas graças dos outros.
A regra aceita é não apertar mãos, apenas fazer uma mesura quando são apresentadas, a menos que seja a outra jovem. E, falando em mesuras, nunca devem fazê-las para um cavalheiro ao qual não foram apresentadas, mesmo que o conheçam de vista. Também não podem fazê-las para um cavalheiro que lhes dirigiu algumas palavras na casa de um amigo em comum ou qualquer cavalheiro com quem conversem de vez em quando. Uma breve conversa não equivale a uma amizade, portanto não deve ser reconhecida como tal com uma mesura.
– E se o cavalheiro nos prestou um serviço? – perguntou Daisy. – Pegar uma luva caída ou algo desse tipo.
– Agradeçam-lhe na hora, mas não lhe façam nenhuma mesura no futuro, porque não foi estabelecida uma amizade real.
– Isso parece ingratidão – comentou Daisy.
A condessa a ignorou.
– Agora, vamos ao jantar. Depois de sua primeira taça de vinho, não podem pedir outra. Quando o anfitrião passa a jarra de vinho para seus convidados durante o jantar, é para os cavalheiros, não para as damas. – Ela olhou para Lillian com indignação. – Na noite passada eu a ouvi pedir que sua taça de vinho fosse enchida, Srta. Bowman. Uma grande falta de educação.
– Mas lorde Westcliff a encheu sem dizer uma só palavra – protestou Lillian.
– Apenas para poupá-la de atrair ainda mais atenção indesejável para si própria.
– Mas por que... – A voz de Lillian sumiu ao ver a expressão ameaçadora da condessa.
Percebeu que se fosse pedir explicações sobre cada norma de etiqueta, a tarde seria realmente longa.
A condessa continuou a explicar as normas de etiqueta à mesa, inclusive o modo adequado de cortar aspargos e de comer codorna e pombo.
– ... manjar branco e pudim devem ser comidos com o garfo, não com a colher – disse –, e para meu grande desgosto vi as duas usando facas em seus rissoles. – A condessa lançou um olhar expressivo, como se esperasse que elas se encolhessem de vergonha.
– O que são rissoles? – Lillian ousou perguntar.
Daisy respondeu cautelosamente.
– Acho que são as tortinhas com molho verde em cima.
– Gostei daquilo – ponderou Lillian.
Daisy a olhou com um sorriso travesso.
– Você sabe de que eram feitos?
– Não, nem quero saber!
A condessa ignorou a conversa.
– Rissoles, massas e outros alimentos moldados devem ser comidos apenas com o garfo e nunca com a ajuda de uma faca. – Seus olhos, que se assemelhavam aos de um pássaro, se apertaram até se tornarem apenas fendas enquanto ela lia o item seguinte. – E agora – disse, olhando significativamente para Lillian –, sobre as cabeças de vitela...
Gemendo, Lillian cobriu os olhos com uma das mãos e afundou em sua cadeira.
CAPÍTULO 11
Qualquer um que estivesse acostumado com os passos largos e decididos de lorde Westcliff teria ficado muito surpreso ao vê-lo ir devagar da biblioteca para a sala no andar de cima. Ele segurava a carta que ocupara sua mente nos últimos minutos. No entanto, ainda que as notícias fossem importantes, não eram as únicas responsáveis por deixá-lo pensativo.
Por mais que Marcus quisesse negar, ansiava por rever Lillian Bowman... e estava muito interessado em saber como ela estava se saindo com sua mãe. A condessa faria picadinho de qualquer moça comum, mas Marcus suspeitava que Lillian saberia se defender.
Lillian. Por causa dela tentava recuperar o autocontrole, como um garoto correndo para pegar uma caixa de fósforos depois que os palitos já estivessem espalhados pelo chão. Ele tinha uma desconfiança inata de sentimentos, sobretudo dos seus, e uma aversão profunda a tudo ou todos que ameaçassem sua dignidade. A família Marsden era famosa por sua seriedade – gerações de homens solenes ocupados com assuntos importantes. O pai de Marcus, o velho conde, quase nunca sorria. E quando o fazia, o sorriso em geral era precedido de algo muito desagradável. O
velho conde se dedicara a remover de seu único filho qualquer vestígio de frivolidade ou humor e, embora não tivesse sido cem por cento bem-sucedido nisso, exercera uma forte influência. A vida de Marcus havia sido moldada por rígidas expectativas e obrigações – e a última coisa de que ele precisava era distração. Ainda mais na forma de uma garota rebelde.
Lillian Bowman era uma jovem que ele jamais pensaria em cortejar. Não podia imaginá-la vivendo feliz dentro dos limites da aristocracia inglesa. A irreverência e a individualidade dela nunca lhe permitiriam uma existência tranquila no mundo dele. Além do mais, todos sabiam que, como suas duas irmãs tinham se casado com americanos, era imperativo que ele preservasse a linhagem distinta da família casando-se com uma inglesa.
Marcus sempre soubera que acabaria se casando com uma das inúmeras jovens que surgiam a cada estação, todas tão parecidas que não faria diferença qual escolhesse. Qualquer uma dessas moças tímidas e refinadas serviria aos seus objetivos, e ainda assim ele nunca conseguira se interessar por elas. Ao passo que ficara obcecado por Lillian Bowman desde a primeira vez que a vira. Não havia nenhum motivo lógico para isso. Lillian não era a mulher mais bonita que ele conhecia, nem era particularmente educada. Era teimosa e tinha uma língua afiada, e a natureza obstinada dela era mais adequada a um homem do que a uma mulher.
Marcus sabia que ele e Lillian eram muito decididos e seus temperamentos sempre os poriam em confronto. A briga na pista de saltos era um exemplo perfeito de por que a união deles seria impossível. Mas isso não mudava o fato de que ele desejava Lillian Bowman mais do que desejara qualquer outra mulher. O frescor e a informalidade de Lillian o atraíam mesmo quando ele lutava contra a tentação que ela representava. Tinha começado a sonhar com Lillian à noite, que brincava com ela, a agarrava e entrava em seu corpo quente e ávido até ela gritar de prazer. E em outros sonhos estava deitado com Lillian em sensual quietude, os corpos deles juntos e vibrando... ou nadando no rio com o corpo nu de Lillian deslizando contra o seu, os cachos molhados dela sobre seu peito e seus ombros como se ela fosse uma sereia. Ou a levava para o campo como se ela fosse uma camponesa e eles rolavam na relva aquecida pelo sol.
Marcus nunca sentira a pontada de paixão insatisfeita com tanta intensidade quanto agora.
Havia muitas mulheres dispostas a satisfazer suas necessidades. Apenas alguns murmúrios e uma batida discreta na porta de um quarto e ele se veria em braços femininos acolhedores. Mas parecia errado usar uma mulher para substituir outra que ele não podia ter.
Ao se aproximar da sala da família, Marcus parou à porta entreaberta e ouviu a mãe fazendo preleções para as irmãs Bowmans. Parecia estar se queixando do hábito das garotas de falarem com os criados que as serviam à mesa de jantar.
– Mas por que eu não deveria agradecer a alguém por me prestar um serviço? – indagou Lillian com genuína perplexidade. – É educado dizer obrigada, não é?
– Não se deve agradecer a um criado, como não se agradeceria a um cavalo por lhe permitir cavalgá-lo ou a uma mesa por sustentar os pratos postos sobre ela.
– Bem, não estamos falando de animais ou objetos inanimados. Um criado é uma pessoa.
– Não – disse a condessa friamente. – Um criado é um serviçal.
– E um serviçal é uma pessoa – insistiu Lillian, teimosa.
A anciã respondeu com exasperação:
– Qualquer que seja sua opinião sobre o que um criado é, não deve lhe agradecer no jantar.
Os serviçais não esperam nem desejam essa condescendência, e se insistir em colocá-los na difícil posição de ter de responder aos seus comentários, pensarão mal da senhorita... assim como todos os outros. Não me insulte com esse olhar desenxabido, Srta. Bowman! A senhorita vem de uma família de recursos. Sem dúvida, tem criados em sua residência em Nova York!
– Sim – admitiu Lillian, ousada –, mas falamos com eles.
Marcus teve de conter uma súbita risada. Raramente ou nunca ouvira alguém ousar discutir com a condessa. Ele bateu de leve na porta e entrou na sala, interrompendo a conversa que poderia ser mordaz. Lillian se virou em sua cadeira para olhá-lo. Sua pele, de um marfim perfeito, adquirira um tom rosado nas bochechas. O sofisticado coque trançado no alto da cabeça deveria fazê-la parecer mais velha, mas em vez disso lhe realçava a juventude. Embora Lillian estivesse imóvel na cadeira, um ar carregado de impaciência parecia cercá-la. Ela o fez se lembrar de uma colegial ansiosa por escapar das aulas e correr para fora.
– Boa tarde – disse Marcus, muito educado. – Espero que a conversa esteja correndo bem.
Lillian lhe lançou um olhar que disse tudo.
Com um grande esforço para conter um sorriso, Marcus fez uma mesura formal para a mãe.
– Milady, chegou uma carta dos Estados Unidos.
Sua mãe o olhou cautelosamente e não respondeu, mesmo sabendo que a carta devia ser de Aline.
Megera teimosa, pensou Marcus, com uma irritação que lhe causava um frio no peito. A condessa nunca perdoaria a filha mais nova por ter se casado com um homem de origem humilde. O marido de Aline, McKenna, já havia sido criado da família, trabalhando como cavalariço. Ainda adolescente, McKenna fora para os Estados Unidos em busca de fortuna e voltara para a Inglaterra como um rico dono de indústria. Mas, na opinião da condessa, o sucesso de McKenna nunca compensaria suas origens e por isso ela se opusera radicalmente ao casamento dele com sua filha. A óbvia felicidade de Aline não significava nada para a condessa, que tornara a hipocrisia uma forma de arte. Se Aline apenas tivesse tido um caso amoroso com McKenna, a mãe não teria dado importância. Mas casar-se com ele foi uma ofensa imperdoável!
– Achei que poderia querer lê-la imediatamente – continuou Marcus, aproximando-se para lhe entregar a carta.
Ele observou o rosto da mãe ficar tenso. Ela continuou com as mãos imóveis em seu colo, e seu olhar frio revelava desagrado. Marcus sentiu um prazer perverso em forçá-la a enfrentar um fato que ela, sem dúvida, queria ignorar.
– Por que não me dá as notícias? – sugeriu ela com uma voz irritada. – É óbvio que não irá embora enquanto não o fizer.
– Muito bem. – Marcus voltou a guardar a carta em seu bolso. – Parabéns, milady, agora é avó. Lady Aline deu à luz um menino saudável chamado John McKenna II. – Seu tom foi um pouco sarcástico ao acrescentar: – Estou certo de que ficará aliviada em saber que ela e o bebê estão bem.
Pelo canto do olho, Marcus viu as irmãs Bowmans trocarem um olhar intrigado, claramente se perguntando qual era a causa daquela hostilidade.
– Que bom que o primogênito da minha filha recebeu o nome de nosso antigo cavalariço.
Pena que ainda não há nenhum herdeiro para o título de conde... o que creio ser responsabilidade sua. Traga-me notícias de seu futuro casamento com uma noiva de boa estirpe, Westcliff, e mostrarei alguma satisfação. Por enquanto não vejo por que me parabenizar.
Embora ele não tivesse expressado nenhuma emoção diante da reação dura da mãe à notícia do nascimento do filho de Aline, sem falar na irritante preocupação dela com um herdeiro, Marcus fez um grande esforço para não lhe dar uma resposta rude. Em seu estado de mau humor, deu-se conta do olhar atento de Lillian.
Ela o fitava com astúcia, com um sorriso estranho nos lábios. Marcus arqueou uma das sobrancelhas e perguntou em um tom sarcástico:
– Achou graça em alguma coisa, Srta. Bowman?
– Sim – murmurou Lillian. – Só estava pensando que é surpreendente não ter se apressado em se casar com a primeira camponesa que encontrasse.
– Criatura impertinente!
Marcus sorriu à insolência de Lillian enquanto seu aperto no peito diminuía.
– Acha que eu deveria? – perguntou, sério, como se a pergunta merecesse reflexão.
– Ah, sim – disse-lhe Lillian com um brilho malicioso nos olhos. – Poderia fazer bem para os Marsdens um pouco de sangue novo. Na minha opinião, a família corre um grave risco de consanguinidade.
– Consanguinidade? – repetiu Marcus, sem querer nada além de se lançar sobre ela e carregá-la para outro lugar. – O que a faz ter essa impressão, Srta. Bowman?
– Ah, não sei... – disse ela sem pressa. – Talvez a grande importância que dão à conveniência de usar garfo ou colher para comer pudim.
– Boas maneiras não são uma qualidade exclusiva da aristocracia, Srta. Bowman. – Até para si mesmo Marcus soou um pouco pomposo.
– Na minha opinião, milorde, uma preocupação excessiva com boas maneiras é uma forte indicação de que se tem tempo livre de sobra.
Marcus sorriu à impertinência dela.
– Revolucionário, embora lógico – refletiu ele. – Não estou certo de que discordo.
– Não incentive a insolência dela, Westcliff – advertiu-lhe a condessa.
– Certo... vou deixá-la com seu trabalho de Sísifo.
– O que isso significa? – perguntou Daisy.
Lillian respondeu mantendo seu olhar sorridente em Marcus.
– Parece que você perdeu muitas aulas de mitologia grega, querida. Sísifo era uma alma em Hades condenada a realizar um trabalho eterno... rolar uma enorme pedra montanha acima só para vê-la rolando novamente para baixo antes de ele alcançar o topo.
– Então se a condessa é Sísifo – concluiu Daisy –, suponho que somos...
– A pedra – disse Lady Westcliff, fazendo as duas garotas rirem.
– Continue com nossas aulas, milady – disse Lillian, dando toda a atenção à anciã enquanto Marcus fazia uma mesura e saía da sala. – Tentaremos não esmagá-la ao cair.
Lillian experimentou uma incômoda sensação de melancolia durante o resto da tarde. Como Daisy ressaltara, as instruções da condessa estavam longe de ser um bálsamo para a alma, mas seu estado depressivo parecia provir de uma fonte mais profunda do que apenas tempo de mais passado na companhia da mal-humorada anciã.
Tinha algo a ver com o que fora dito depois que lorde Westcliff entrou na sala Marsden com a notícia do nascimento do sobrinho. Ele parecera feliz com a notícia, embora nem um pouco surpreso com a reação amarga da mãe. A rancorosa conversa que tinha se seguido deixara clara para Lillian a importância – não, a necessidade – de Westcliff se casar com uma “noiva de boa estirpe”, como a condessa dissera.
Uma noiva de boa estirpe... que soubesse comer rissoles e nunca pensasse em agradecer a um criado que a servira. Que nunca cometesse o erro de atravessar a sala para falar com um cavalheiro e, em vez disso, esperasse docilmente que ele se aproximasse. A noiva de Westcliff seria uma delicada flor inglesa, com cabelos louro-acinzentados, boca como um botão de rosa e um temperamento calmo. Consanguinidade, pensou Lillian com certa hostilidade para com a moça desconhecida. Por que deveria se incomodar com o fato de Westcliff estar destinado a se casar com uma moça que se ajustasse com perfeição à alta classe social dele?
Irritada, lembrou-se de como o conde lhe tocara o rosto na noite anterior. Uma carícia sutil, mas bastante inapropriada, tendo vindo de um homem que não tinha nenhum interesse sério nela. E ainda assim ele parecera incapaz de se conter. Era o efeito do perfume, pensou Lillian, sombria. Tinha achado que se divertiria muito torturando Westcliff com a relutante atração dele por ela. Em vez disso, aquilo se voltara contra ela de um modo muito desagradável. Era ela quem estava sendo torturada. Sempre que Westcliff a olhava, a tocava e lhe sorria, isso lhe provocava uma sensação que nunca conhecera. Um doloroso desejo de coisas impossíveis.
Qualquer um diria que eles formavam um casal ridículo... sobretudo por causa da responsabilidade de Westcliff de gerar um herdeiro de sangue azul. Havia outros aristocratas que não podiam se dar ao luxo de ser tão seletivos quanto ele, cujas heranças haviam diminuído e, portanto, precisavam da fortuna dela. Com o apoio da condessa, encontraria um candidato aceitável, se casaria com ele e acabaria com aquele eterno processo de caçar um marido. Mas... – oorreu-lhe outra coisa – ... o mundo da aristocracia inglesa era muito pequeno e era quase certo que veria Westcliff e a noiva com muita frequência... Essa perspectiva era ainda mais desconcertante. Terrível.
O desejo se transformou em ciúme. Lillian sabia que Westcliff nunca seria realmente feliz com a mulher com quem estava destinado a se casar. Ele se cansaria de uma esposa a quem pudesse intimidar. E um regime constante de tranquilidade o deixaria bastante entediado.
Westcliff precisava de alguém que o desafiasse e o interessasse. Alguém que pudesse alcançar o ser humano terno por trás das camadas de autocontrole aristocrático. Alguém que o enfurecesse, o provocasse e o fizesse rir.
– Alguém como eu – sussurrou Lillian, em um tom triste.
CAPÍTULO 12
Estava acontecendo um baile formal. Era uma noite bonita, fresca e sem chuva, e as fileiras de altas janelas estavam abertas para deixar o ar entrar. Os candelabros derramavam luz no elaborado piso de parquê como gotas de chuva brilhantes. Música de orquestra enchia o ar de acordes alegres, fornecendo um ambiente perfeito para as fofocas e risadas dos convidados.
Lillian não ousou aceitar uma taça de ponche, temendo manchar seu vestido de baile de cetim creme. As saias sem enfeites desciam em camadas brilhantes até o chão, enquanto a cintura estreita era cingida por uma engomada faixa de cetim da mesma cor. O único ornamento no vestido era uma aplicação de contas espaçadas no decote arredondado do corpete. Ao acomodar melhor um dedo mindinho em sua luva branca, ela avistou lorde Westcliff do outro lado do salão. Ele estava lindo em seu traje de noite, com uma gravata branca perfeitamente ajustada.
Como sempre, havia um grupo de homens e mulheres reunido ao seu redor. Uma das mulheres, uma loura bonita de corpo voluptuoso, se inclinou para ele murmurando algo que o fez esboçar um sorriso. Westcliff observou com calma o ambiente, examinando a multidão em um lento movimento... até ver Lillian. Seu olhar avaliador logo se fixou nela. Lillian sentiu a presença do conde de um modo tão palpável que era como se os cerca de dez metros que os separavam não existissem. Perturbada com a própria consciência sensual do homem do outro lado do salão, ela o cumprimentou com um breve movimento de cabeça e se virou para o outro lado.
– O que foi? – murmurou Daisy, indo para o lado da irmã. – Você parece um pouco distraída.
Lillian respondeu com um sorriso sarcástico.
– Estou tentando me lembrar de tudo o que a condessa nos disse – mentiu –, e manter isso em minha mente. Em especial as regras sobre mesura. Se alguém me fizer uma, vou gritar e correr na direção oposta.
– Estou morrendo de medo de cometer um erro – confidenciou-lhe Daisy. – Era muito mais fácil antes de eu perceber quantas coisas estava fazendo errado. Ficarei bastante feliz em não dançar e me sentar, segura, em um canto do salão esta noite.
Juntas, elas olharam a fileira de nichos semicirculares ao longo de uma parede, cada qual ladeado por finas pilastras e tendo no centro pequenos bancos revestidos de veludo. Evie estava sentada no nicho mais distante. Seu vestido cor-de-rosa não combinava com seus cabelos ruivos e ela mantinha a cabeça abaixada enquanto bebia furtivamente de uma taça de ponche, toda a sua postura revelando pouca disposição de conversar.
– Ah, isso não pode continuar – disse Daisy. – Venha, vamos tirar a pobre garota daquele nicho e fazê-la circular conosco.
Lillian sorriu concordando e se preparou para seguir a irmã. Contudo, ficou paralisada com uma súbita respiração e uma voz profunda perto de seu ouvido: – Boa noite, Srta. Bowman.
Piscando, perplexa, virou-se e viu lorde Westliff, que tinha atravessado o salão com surpreendente rapidez.
– Milorde.
Westcliff se curvou sobre a mão de Lillian e depois cumprimentou Daisy. Então olhou de novo para a mais velha. Quando falou, a luz dos candelabros brincou nas densas camadas de seus cabelos e nos ângulos marcados de suas feições.
– Vejo que a senhorita sobreviveu ao encontro com minha mãe.
Lillian sorriu.
– Seria mais correto dizer que ela sobreviveu ao encontro conosco, milorde.
– Era óbvio que a condessa estava se divertindo muito. É raro encontrar jovens que não se intimidam com a presença dela.
– Se eu não me intimido com a sua presença, milorde, dificilmente me intimidaria com a dela.
Westcliff sorriu e depois desviou o olhar; duas pequenas rugas surgiram entre suas sobrancelhas como se ele estivesse pensando em algo importante. Depois de uma pausa que pareceu interminável, olhou de volta para Lillian.
– Srta. Bowman...
– Sim?
– Quer me dar a honra de dançar comigo?
Lillian parou de respirar, se mover e pensar. Westcliff nunca a convidara para dançar, apesar das muitas ocasiões em que deveria tê-lo feito por cavalheirismo. Este era um dos motivos pelo qual o odiava: saber que ele se achava superior a ela e considerava seus encantos insignificantes demais para se dar a esse trabalho. E em suas fantasias mais vingativas imaginara um momento como aquele, em que ele a convidaria para dançar e ela responderia com uma humilhante recusa.
Em vez disso, estava atônita e sem saber o que dizer.
– Com licença – ouviu Daisy falar, alegre –, preciso ir ao encontro de Evie... – E se afastou o mais rápido possível.
Lillian respirou, nervosa.
– Isso é um teste planejado por sua mãe? – perguntou ela. – Para ver se eu me lembro das minhas lições?
Westcliff deu uma risada. Recompondo-se, Lillian não pôde evitar notar que havia gente olhando para eles, sem dúvida se perguntando o que ela dissera para diverti-lo.
– Não – murmurou Westcliff. – Acho que é um teste autoimposto para ver se eu... – Olhando nos olhos de Lillian, ele pareceu se esquecer do que ia falar. – Uma valsa – disse com gentileza.
Temendo sua reação a Westcliff, a magnitude de seu desejo de estar nos braços dele, Lillian balançou a cabeça.
– Acho... acho que isso seria um erro. Obrigada, mas...
– Covarde.
Lillian se lembrou do momento em que dissera a mesma coisa para ele... e, como Westcliff, foi incapaz de resistir ao desafio.
– Não entendo por que quer dançar comigo agora, quando nunca quis.
A afirmação foi mais reveladora do que Lillian pretendia. Ela se amaldiçoou por sua língua comprida enquanto Westcliff olhava pensativamente para seu rosto.
– Eu quis – surpreendeu-a ao murmurar. – Mas sempre pareceu haver um bom motivo para não convidá-la.
– Por que...
– Além do mais – interrompeu-a Westcliff, pegando a mão enluvada de Lillian –, não tinha sentido fazer isso quando já sabia que recusaria.
Ele pôs habilmente a mão de Lillian em seu braço e a conduziu na direção dos casais reunidos no centro do salão.
– Não tinha como saber.
Westcliff lançou-lhe um olhar cético.
– Está dizendo que teria aceitado?
– Talvez.
– Duvido muito.
– Aceitei agora, não foi?
– Tinha de aceitar. Era uma dívida de honra.
Ela não pôde evitar rir.
– Por quê, milorde?
– Pela cabeça de vitela – lembrou-lhe ele.
– Bem, se não tivesse mandado servir aquela coisa repugnante, eu não precisaria ter sido salva!
– Não precisaria ter sido salva se não tivesse um estômago tão fraco.
– Não deveria mencionar partes do corpo na frente de uma dama – disse ela virtuosamente. –
Foi o que sua mãe disse.
Westcliff sorriu.
– Tem razão.
Apreciando as alfinetadas, Lillian retribuiu o sorriso. Contudo, seu sorriso morreu quando uma valsa começou e Westcliff a virou de frente para ele. Seu coração bateu com incontida força.
Quando ela olhou para a mão enluvada que Westcliff lhe estendeu, não conseguiu pegá-la. Não podia deixá-lo tomá-la nos braços em público... temia o que seu rosto pudesse revelar.
Depois de um momento, ouviu a voz baixa de Westcliff:
– Pegue minha mão.
Atordoada, ela se viu obedecendo, os dedos trêmulos procurando os dele.
Houve outro silêncio e então ele disse, com voz suave:
– Ponha sua outra mão em meu ombro.
Lillian observou sua luva branca pousar lentamente no ombro de Westcliff, sentindo a superfície dura e sólida sob sua palma.
– Agora olhe para mim – sussurrou ele.
Ela ergueu os cílios. Seu coração deu um pulo ao ver os olhos dele, cor de café, repletos de ternura. Sustentando seu olhar, Westcliff a conduziu na valsa usando o impulso do primeiro giro para trazê-la mais para perto dele. Logo estavam perdidos no meio dos dançarinos, girando com a graça e a suavidade do voo de um cisne. Como Lillian podia esperar, Westcliff a conduziu firmemente, sem lhe dar qualquer chance de errar um passo. Ele tinha uma das mãos na base de suas costas e a outra indicava qual direção seguir.
Tudo era muito fácil. Perfeito como nada em sua vida jamais fora, os corpos deles se movendo em harmonia como se tivessem valsado juntos mil vezes. Westcliff a conduziu em passos que ela nunca havia tentado, cruzados e giros no sentido anti-horário, e tudo foi tão simples e natural que ela deu uma risada no fim de um giro. Sentia-se leve nos braços do conde, deslizando suavemente, seguindo os movimentos firmes e graciosos dele. Suas saias roçavam nas pernas de Westcliff, envolvendo-as e se afastando em uma sequência rítmica.
A multidão no baile pareceu desaparecer e ela teve a sensação de que estavam dançando sozinhos em algum lugar distante. Muito consciente do corpo de Westcliff e do ocasional sopro quente da respiração dele em seu rosto, Lillian se deixou levar por um estranho devaneio... uma fantasia em que Marcus, lorde Westcliff, a levava para o andar de cima depois da valsa, a despia e a deitava gentilmente na cama dele. Beijava-a inteira como certa vez sussurrara... fazia amor com ela e a abraçava enquanto ela dormia. Nunca havia desejado esse tipo de intimidade com um homem.
– Marcus... – disse ela, distraída, apreciando a sensação de pronunciar o nome dele.
Westcliff a olhou com atenção. O uso do primeiro nome de alguém era extremamente pessoal, a menos que fosse seu cônjuge ou um parente próximo. Com um sorriso travesso, Lillian levou a conversa para um rumo mais apropriado: – Gosto desse nome. Não é comum hoje em dia. Foi em homenagem ao seu pai?
– Não, a um tio. O único do lado materno.
– Gostou de receber o nome dele?
– Qualquer nome teria sido aceitável, desde que não fosse o do meu pai.
– Você o odiava?
Westcliff balançou a cabeça.
– Era pior do que isso.
– O que pode ser pior do que o ódio?
– Indiferença.
Ela o olhou com visível curiosidade.
– E a condessa? – ousou perguntar. – Também sente indiferença por ela?
Um dos cantos da boca de Westcliff se ergueu em um meio sorriso.
– Eu vejo minha mãe como uma velha tigresa com presas e garras desgastadas, mas ainda capazes de ferir. Por isso tento interagir com ela a uma distância segura.
Lillian franziu a testa com fingida indignação.
– E ainda assim me atirou dentro da jaula dela esta manhã!
– Eu sabia que contava com suas próprias presas e garras. – Westcliff riu da expressão dela. –
Isso foi um elogio.
– Fico feliz por me dizer – disse Lillian, seca. – Caso contrário eu não teria sabido.
Para o desgosto dela, a valsa terminou com uma última nota doce de um violino. Entre as muitas pessoas saindo da pista de dança e outras vindo substituí-las, Westcliff parou bruscamente. Um pouco confusa, Lillian percebeu que ele ainda a segurava e deu um passo vacilante para trás. A reação de Westcliff foi segurar com mais firmeza a cintura dela e fechar os dedos em uma tentativa instintiva de mantê-la com ele. Surpresa com essa reação e com o que revelava, Lillian se sentiu incapaz de respirar.
Percebendo a própria impulsividade, Westcliff se obrigou a soltá-la. Ainda assim, Lillian sentiu o desejo irradiando dele, tão forte quanto o calor de uma floresta inteira em chamas. E foi mortificante pensar que, embora seus sentimentos por Westcliff fossem autênticos, os dele bem que poderiam ser o efeito fantástico de um perfume. Ela daria tudo para não se sentir tão atraída por ele, pois o resultado disso só poderia ser desapontamento ou até mesmo um coração partido.
– Eu estava certa, não estava? – perguntou ela, rouca, sem conseguir encará-lo. – Foi um erro termos dançado.
Westcliff esperou tanto para responder que ela achou que poderia não fazê-lo.
– Sim – disse por fim, essa única sílaba tornada brusca por uma emoção impossível de identificar.
Porque não podia se dar ao luxo de querê-la. Porque sabia tão bem quanto ela que uma união entre eles seria um desastre.
Subitamente doeu em Lillian ficar perto dele.
– Então acho que essa valsa deveria ser nossa primeira e última – disse ela. – Boa noite, milorde, e obrigada por...
– Lillian – ouviu-o sussurrar.
Ela lhe deu as costas e se afastou com um débil sorriso e a pele exposta de seu pescoço e de suas costas arrepiada.
O resto da noite teria sido um tormento para Lillian se não fosse por uma oportuna salvação na forma de Sebastian, lorde St. Vincent. Ele apareceu ao seu lado antes que ela pudesse se juntar a Evie e Daisy, que estavam sentadas em um banco de veludo.
– Que dançarina graciosa a senhorita é!
Depois de estar com Westcliff, parecia estranho olhar para o rosto de um homem tão mais alto do que ela. St. Vincent a olhou com uma promessa de diversão perversa à qual ela achou difícil resistir. O sorriso enigmático dele poderia ter sido igualmente dado para um amigo ou um inimigo. Lillian baixou seu olhar para o nó um pouco torto da gravata dele. Havia certo desalinho nas roupas de St. Vincent, como se ele tivesse se vestido às pressas depois de sair da cama de uma amante – e pretendesse voltar para lá em breve.
Em resposta ao elogio, Lillian sorriu e deu de ombros um pouco desajeitadamente, lembrando-se tarde demais do aviso da condessa de que as damas nunca faziam isso.
– Se pareci graciosa, milorde, foi em virtude da habilidade do conde, não da minha.
– É muito modesta, doçura. Já vi Westcliff dançar com outras mulheres e o efeito não foi nem de longe o mesmo. Parece que a senhorita resolveu muito bem suas diferenças com ele. Agora são amigos?
Foi uma pergunta inocente, mas Lillian sentiu que havia muito mais por trás. Respondeu com cautela, ao mesmo tempo notando que lorde Westcliff estava acompanhando uma ruiva até a mesa de bebidas. A mulher estava claramente radiante com o interesse do conde e Lillian sentiu uma pontada de ciúme.
– Não sei, milorde – respondeu. – É possível que sua definição de amizade seja diferente da minha.
– Garota esperta. – Os olhos de St. Vincent eram como diamantes azuis, claros e infinitamente facetados. – Venha, permita-me acompanhá-la até a mesa de bebidas e compararemos nossas definições.
– Não, obrigada – disse Lillian, relutante, embora estivesse morrendo de sede.
Para a sua paz de espírito, tinha de evitar ficar perto de Westcliff.
Seguindo o olhar dela, St. Vincent viu o conde em companhia da ruiva.
– Talvez seja melhor não – concordou ele em tom relaxado. – Sem dúvida, Westcliff não gostaria de vê-la em minha companhia. Afinal de contas, ele me avisou para ficar longe da senhorita.
– Avisou? Por quê?
– Não quer que se comprometa ou seja prejudicada por se relacionar comigo. – O visconde lhe lançou um olhar sedutor. – Por causa da minha reputação, sabe?
– Westcliff não tinha nenhum direito de tomar decisões sobre com quem eu me relaciono – murmurou Lillian, ardendo de raiva. – Arrogante, metido a saber de tudo, eu gostaria de... – Ela parou e tentou conter suas emoções. – Estou com sede – disse apenas. – Quero ir à mesa de bebidas. Com o senhor.
– Se insiste – disse St. Vincent suavemente. – O que deseja? Água? Limonada? Ponche ou...
– Champanhe – respondeu ela de cara amarrada.
– Como quiser.
Ele a acompanhou até a longa mesa cercada por uma fileira de convidados. Lillian nunca tinha sentido uma satisfação mais profunda do que a que experimentou no momento em que Westcliff a viu acompanhada de St. Vincent. Os lábios do conde se estreitaram e ele a observou com seus olhos pretos apertados. Sorrindo desafiadoramente, Lillian aceitou uma taça de champanhe gelado de St. Vincent e a bebeu em goles nada femininos.
– Não tão rápido, doçura – ouviu St. Vincent murmurar. – O champanhe lhe subirá à cabeça.
– Quero outro – respondeu Lillian desviando a atenção de Westcliff e a dirigindo para St. Vincent.
– Sim. Daqui a alguns minutos. Está um pouco corada. O efeito é encantador, mas acho que por enquanto já bebeu o bastante. Gostaria de dançar?
– Eu adoraria. – Entregando sua taça vazia para um criado próximo com uma bandeja, Lillian olhou para St. Vincent com um sorriso radiante. – Que interessante! Depois de um ano sendo uma eterna Flor Seca, fui convidada duas vezes para dançar na mesma noite. Fico imaginando por quê.
– Bem... – St. Vincent andou devagar com ela na direção dos muitos dançarinos. – Eu sou um homem perverso que de vez em quando pode ser um pouco gentil. E estava procurando uma garota gentil que de vez em quando pode ser apenas um pouco perversa.
– E encontrou? – perguntou Lillian, rindo.
– Parece que sim.
– O que planejava fazer quando a encontrasse?
Havia uma complexidade interessante nos olhos dele. St. Vincent parecia um homem capaz de qualquer coisa... e em seu atual estado de ânimo desafiador, era exatamente isso que ela queria.
– Eu lhe direi – murmurou ele. – Mais tarde.
Dançar com St. Vincent era uma experiência totalmente diferente de dançar com Westcliff.
Não havia a agradável sensação de harmonia física e ela não se movia sem pensar... mas St.
Vincent valsava de modo suave e hábil e, enquanto circulavam na pista, seus comentários provocadores a faziam rir. E ele a pegava com segurança, com mãos que, apesar de respeitosas, revelavam muita experiência com corpos femininos.
– Quanto de sua reputação é merecida? – ousou perguntar-lhe Lillian.
– Apenas metade... o que me torna cem por cento condenável.
Lillian o olhou com divertida curiosidade.
– Como um homem assim pode ser amigo de lorde Westcliff? São muito diferentes.
– Nós nos conhecemos desde que tínhamos oito anos. E, sendo a alma teimosa que é, Westcliff se recusa a aceitar que sou um caso perdido.
– Por que seria?
– Não vai querer saber a resposta. – Ele interrompeu o início da próxima pergunta murmurando: – A valsa está terminando. E há uma mulher perto do friso dourado olhando atentamente para nós. Sua mãe, não é? Permita-me levá-la até ela.
Lillian balançou a cabeça.
– É melhor nos separarmos agora. Acredite em mim, não vai gostar de conhecê-la.
– É claro que vou. Se ela for parecida com a senhorita, eu a acharei encantadora.
– Se nos achar parecidas em algo, peço-lhe que tenha a decência de guardar sua opinião para si mesmo.
– Não tenha medo – disse ele languidamente, afastando-se com Lillian da pista de dança. –
Nunca conheci uma mulher de quem não gostasse.
– Esta é a última vez que diz isso – predisse ela, sombria.
Enquanto ia com Lillian na direção do grupo de mulheres fofocando que incluía a mãe dela, St. Vincent falou: – Convidarei sua mãe para se juntar a nós no passeio de carruagem amanhã porque a senhorita precisa de uma acompanhante.
– Eu não tenho de ter uma – protestou Lillian. – Homens e mulheres podem passear de carruagem desacompanhados, desde que seja aberta e não demorem mais do que...
– A senhorita precisa de uma acompanhante – repetiu St. Vincent com uma gentil insistência que de repente a deixou corada e tímida.
Pensando que o olhar dele não podia significar o que ela achava que significava, Lillian deu uma trêmula risada.
– Ou então... – Ela tentou pensar em algo provocativo para dizer: – Ou o senhor me comprometeria?
O sorriso de St. Vincent, como tudo o mais nele, foi sutil e relaxado.
– Algo desse tipo.
Lillian sentiu uma estranha e agradável coceira na garganta, como se tivesse engolido uma colher de melado. O comportamento de St. Vincent não era nada parecido como o dos sedutores que povoavam os romances sobre a vida dos aristocratas que Daisy tanto apreciava. Aqueles vilões com grossos bigodes e olhares lascivos tendiam a mentir sobre suas más intenções até o momento revelador em que atacavam a heroína virginal e a forçavam a se submeter a eles. St.
Vincent, por sua vez, parecia determinado a preveni-la contra si próprio e ela não podia imaginá-lo forçando uma mulher a fazer algo contra a vontade dela.
Quando Lillian fez as apresentações entre sua mãe e St. Vincent, viu o imediato interesse nos olhos de Mercedes. A mãe via todos os aristocratas disponíveis, independentemente de idade, aparência ou reputação, como possíveis presas. Nada a faria parar até garantir que as filhas se casariam com um deles, e pouco lhe importava se o detentor do título era jovem e bonito ou velho e senil. Tendo encomendado um relatório particular sobre quase todos os aristocratas importantes da Inglaterra, Mercedes memorizara centenas de páginas de dados financeiros sobre a aristocracia inglesa. Enquanto olhava para o elegante visconde na sua frente, quase dava para vê-la examinando em sua cabeça as muitas informações sobre ele.
Mas, surpreendentemente, no decorrer dos minutos seguintes Mercedes relaxou na presença encantadora de St. Vincent. Ele a convenceu a concordar com o passeio de carruagem, a provocou e a bajulou e ouviu as opiniões dela com tanta atenção que logo Mercedes começou a corar e rir como uma adolescente. Lillian nunca tinha visto a mãe se comportar daquela maneira com nenhum homem. Logo se tornou óbvio que, enquanto Westcliff deixava Mercedes nervosa, St. Vincent tinha o efeito oposto sobre ela. Ele possuía uma capacidade única de fazer uma mulher – ao que parecia, qualquer uma – se sentir atraente. Não era mais cortês do que a maioria dos americanos, mas era mais cordial e acessível do que os ingleses. De fato, tinha um charme tão irresistível que por um tempo Lillian se esqueceu de olhar ao redor do salão à procura de Westcliff.
Segurando a mão de Mercedes na dele, St. Vincent se inclinou sobre o pulso dela e murmurou: – Então até amanhã.
– Até amanhã – repetiu Mercedes, parecendo encantada, e Lillian de repente teve um vislumbre de como a mãe devia ter sido na juventude, antes de os desapontamentos a endurecerem.
Algumas mulheres se aproximaram de Mercedes, que se virou para falar com elas.
St. Vincent inclinou a cabeça dourada e murmurou ao pé do ouvido de Lillian: – Gostaria daquela segunda taça de champanhe agora?
Lillian assentiu, absorvendo a agradável mistura de fragrâncias que ele exalava, a colônia cara, o leve aroma de sabonete de barbear e o cheiro de pele limpa com um toque de cravo-da-índia.
– Aqui? – perguntou ele. – Ou no jardim? Percebendo que St. Vincent queria ficar a sós com ela por alguns minutos, Lillian entrou em estado de alerta. A sós com ele no jardim... sem dúvida, a desgraça de muitas garotas incautas começara assim. Considerando a proposta, deixou seu olhar perambular até ver Westcliff tomando uma mulher nos braços. E valsando, como acabara de fazer com ela. O eternamente inatingível Westcliff, pensou, enchendo-se de raiva. Queria distração. E conforto. E o homem alto e bonito na sua frente parecia disposto a lhe oferecer isso.
– No jardim – respondeu.
– Então me encontre lá em dez minutos. Há uma fonte com uma sereia logo atrás de...
– Eu sei onde é.
– Se não conseguir escapulir...
– Eu conseguirei – garantiu-lhe ela, forçando um sorriso.
St. Vincent parou para examiná-la com um olhar astuto, mas estranhamente compassivo.
– Posso fazê-la se sentir melhor, doçura – sussurrou.
– Pode? – perguntou ela enquanto emoções indesejadas deixavam suas bochechas vermelhas como papoulas.
Uma promessa surgiu nos olhos brilhantes de St. Vincent e ele respondeu assentindo de leve antes de se afastar.
CAPÍTULO 13
Lillian pediu a Daisy e Evie que lhe dessem cobertura e saiu do baile com elas, a pretexto de se empoarem. De acordo com o plano rapidamente traçado, as duas esperariam no terraço dos fundos enquanto Lillian se encontraria com lorde St. Vincent no jardim. Quando todas voltassem para o baile, diriam a Mercedes que tinham ficado juntas o tempo todo.
– Tem c-certeza de que é seguro ficar a sós com lorde St. Vincent? – perguntou Evie enquanto elas iam para o hall de entrada.
– Totalmente – respondeu Lillian, confiante. – Ah, ele pode tentar tomar liberdades, mas essa é a ideia, não é? Além disso, quero ver se meu perfume funciona com ele.
– Não funciona com ninguém – disse Daisy, triste. – Pelo menos não quando eu o uso.
Lillian olhou para Evie.
– E quanto a você, querida? Teve sorte?
Daisy respondeu por ela:
– Evie não deixou ninguém chegar perto o suficiente para descobrir.
– Bem, vou dar a St. Vincent uma boa oportunidade de cheirá-lo. Só Deus sabe se esse perfume surtiria algum efeito em um notório libertino.
– Mas se alguém os vir...
– Ninguém nos verá – interrompeu-a Lillian com um toque de impaciência. – Se há um homem na Inglaterra mais experiente em encontros secretos do que lorde St. Vincent, eu gostaria de saber quem é.
– É melhor ter cuidado – preveniu-a Daisy. – Encontros secretos são perigosos. Li sobre isso e nada de bom parece vir deles.
– Será um encontro muito curto – garantiu-lhe Lillian. – De no máximo quinze minutos. O
que poderia acontecer nesse tempo?
– Pelo que d-diz Annabelle, muito – observou Evie em um tom sombrio.
– Onde está Annabelle? – perguntou Lillian, dando-se conta de que ainda não a vira naquela noite.
– Ela não estava se sentindo bem hoje mais cedo, pobrezinha – disse Daisy. – Parecia um pouco nauseada. Acho que algo no almoço lhe fez mal.
Lillian fez uma careta e estremeceu.
– Sem dúvida, algo como enguias, miúdos de vitela ou pés de galinha...
Daisy lhe sorriu.
– Pare ou você ficará nauseada. Seja como for, o Sr. Hunt está cuidando dela.
Elas passaram pelas portas francesas no fim do hall de entrada e saíram para o terraço de pedra vazio. Daisy se virou e, brincando, apontou um dedo para Lillian.
– Se demorar mais de quinze minutos, Evie e eu iremos atrás de você.
Lillian riu baixinho e respondeu:
– Não vou demorar. – Ela piscou um olho e sorriu ao ver o rosto preocupado de Evie. – Vou ficar bem, querida. E pense em todas as coisas interessantes que poderei lhes contar quando voltar!
– É disso que t-tenho medo – respondeu Evie.
Lillian ergueu suas saias para descer uma escada traseira e se aventurou pelos jardins, passando por sebes antigas que formavam muralhas impenetráveis ao redor dos níveis inferiores.
O jardim iluminado por tochas tinha as cores e os cheiros do outono... folhagem cobre e dourada, uma profusão de rosas e dálias em suas margens, gramíneas floridas e canteiros cobertos com camadas de matéria vegetal que tornavam o ar agradavelmente pungente.
Lillian ouviu o som de água esguichando da fonte da sereia e seguiu por um caminho de pedra até uma pequena clareira pavimentada iluminada por uma única tocha. Havia movimento ao lado da fonte – uma pessoa... não, duas, sentadas abraçadas em um dos bancos de pedra ao redor. Ela sufocou um grito de surpresa e recuou para trás da sebe. Lorde St. Vincent lhe dissera para se encontrar com ele ali... mas o homem no banco não era ele... era? Perplexa, moveu-se alguns centímetros para a frente a fim de espiar pelo canto da sebe.
Logo ficou claro que o casal estava tão envolvido em seu jogo amoroso que não notaria se uma manada de elefantes passasse por eles. Os cabelos castanho-claros da mulher tinham sido soltos, e os cachos cobriam o espaço aberto nas costas de seu vestido parcialmente desabotoado.
Seus braços pálidos e esguios estavam ao redor dos ombros do homem e ela dava trêmulos suspiros enquanto ele afastava a manga do vestido de seus ombros e beijava a curva branca.
Erguendo a cabeça, o homem a fitou com o olhar sonhador e apaixonado antes de se inclinar para a frente e beijá-la. De repente Lillian reconheceu o casal... Lady Olivia e o marido, o Sr. Shaw. Mortificada e curiosa, escondeu-se atrás da sebe bem no momento em que o Sr. Shaw deslizou a mão para dentro da parte de trás do vestido da esposa. Era a cena mais íntima que Lillian já vira.
E os sons mais íntimos que já ouvira... suspiros, palavras amorosas e um inexplicável riso brando do Sr. Shaw que fez Lillian encolher os dedos dos pés. Ela se afastou da clareira devagar e silenciosamente, com o rosto vermelho de vergonha. Não sabia ao certo para onde ir ou o que fazer agora que o lugar de seu encontro já estava ocupado. Produzira-lhe uma sensação estranha ver a profunda ternura e a paixão entre os Shaws. O amor no casamento deles. Lillian nunca ousara esperar algo assim para si mesma.
Um grande vulto surgiu na sua frente. Aproximando-se devagar, ele passou um dos braços ao redor de seus ombros tensos e pôs uma taça gelada de champanhe em sua mão.
– Milorde? – sussurrou Lillian.
O murmúrio de St. Vincent fez cócegas em seu ouvido:
– Venha comigo.
Ela o deixou guiá-la por um caminho mais escuro que levava a outra clareira iluminada, onde havia uma grande mesa redonda de pedra. Um pomar de peras para além da clareira fazia o ar recender a fruta madura. Mantendo o braço ao redor do ombro de Lillian, St. Vincent perguntou:
– Podemos parar aqui?
Ela assentiu e apoiou seu quadril na mesa, sem conseguir encará-lo enquanto bebia o champanhe. Pensou em quanto estivera perto de interromper aquele momento íntimo dos Shaws e corou.
– Não está com vergonha, está? – disse St. Vincent com um tom de divertimento na voz. –
Foi só uma olhada... ora, vamos, não foi nada.
Ele havia tirado as luvas e Lillian sentiu as pontas dos dedos do visconde deslizarem para debaixo de seu queixo, erguendo-lhe ligeiramente o rosto.
– Como está vermelha! – murmurou ele. – Meu Deus, tinha me esquecido de como é ser tão inocente. Duvido que algum dia eu o tenha sido.
Lorde Vincent estava fascinante à luz da tocha. Sombras lhe acariciavam as maçãs do rosto.
As densas camadas de cabelos tinham adquirido o tom de bronze de um ícone bizantino.
– Afinal de contas, eles são casados – continuou ele, pondo as mãos ao redor da cintura de Lillian e a sentando na mesa.
– Ah, eu... eu não os condeno – ela conseguiu dizer, bebendo o resto do champanhe. – Na verdade, estava pensando na sorte que eles têm. Parecem muito felizes juntos. E, diante da aversão da condessa aos americanos, surpreende-me que Lady Olivia tivesse tido permissão para se casar com o Sr. Shaw.
– Isso foi obra de Westcliff. Ele estava determinado a não deixar as visões hipócritas da mãe interferirem na felicidade da irmã. Considerando o passado escandaloso da condessa, ela não tinha nenhum direito de desaprovar o marido escolhido pela filha.
– A condessa tem um passado escandaloso?
– Ah, sim. Sua fachada moralista esconde muita devassidão. É por isso que ela e eu nos damos tão bem. Sou o tipo de homem com quem ela costumava ter aventuras na juventude.
A taça vazia quase caiu da mão de Lillian. Pondo de lado o frágil recipiente, ela olhou para St.
Vincent com visível surpresa.
– Ela não parece o tipo de mulher que teria aventuras.
– Já notou como Westcliff e Lady Olivia são diferentes? Enquanto o conde e Lady Aline são filhos legítimos, é um fato bastante conhecido que Lady Olivia não é.
– Nossa!
– Mas não se pode culpar a condessa por infidelidade – continuou St. Vincent em tom casual –, levando-se em conta o homem com quem se casou.
Lillian estava muito interessada no assunto do velho conde. Ele era uma figura misteriosa sobre a qual ninguém parecia muito interessado em falar.
– Um dia lorde Westcliff me disse que o pai dele era um bruto – observou, esperando que isso induzisse St. Vincent a revelar mais.
– Foi? – Os olhos de St. Vincent brilhavam de interesse. – Isso é incomum. Ele nunca menciona o pai para ninguém.
– Ele era? Quero dizer, um bruto?
– Não – disse St. Vincent. – Bruto seria um eufemismo, porque implica certa falta de consciência da própria crueldade. O velho conde era um demônio. Só sei de uma pequena parte de suas atrocidades e não quero saber mais. – Apoiando-se em suas mãos, St. Vincent prosseguiu, pensativo: – Duvido que muitas pessoas tivessem sobrevivido ao estilo de criação dos Marsdens, que variava de benigna negligência a total desumanidade. – Ele inclinou a cabeça, suas feições encobertas por sombras. – Durante a maior parte da minha vida vi Westcliff tentar não se tornar o que o pai queria que ele fosse. Mas ele carrega um fardo pesado de expectativas... e isso guia suas escolhas pessoais com mais frequência do que ele desejaria.
– Escolhas pessoais como...
Ele a encarou.
– Com quem se casará, por exemplo.
Lillian entendeu imediatamente e pensou em sua resposta com muito cuidado.
– Não é necessário me prevenir sobre isso – disse por fim. – Sei muito bem que lorde Westcliff nunca pensaria em cortejar alguém como eu.
– Ah, ele tem pensado – surpreendeu-a St. Vincent.
O coração de Lillian parou.
– Como sabe disso? Ele lhe falou algo a respeito?
– Não. Mas é óbvio que a deseja. Sempre que está por perto, ele não consegue tirar os olhos da senhorita. E quando nós dançamos esta noite, ele me olhou como se quisesse me furar com o objeto pontiagudo mais próximo. Contudo...
– Contudo... – encorajou-o Lillian.
– Quando Westcliff enfim se casar, fará a escolha convencional... uma noiva inglesa jovem e maleável que não exigirá nada dele.
Claro. Lillian nunca havia pensado que seria de outro modo. Mas às vezes a verdade não era fácil de digerir. E a exasperava saber que não teria nenhum motivo lógico para se entristecer.
Westcliff nunca havia lhe feito nenhuma promessa ou expressado uma só palavra de afeição.
Alguns beijos e uma valsa não poderiam equivaler nem mesmo a um romance fracassado.
Então por que se sentia tão infeliz?
Estudando as minúsculas alterações na expressão de Lillian, St. Vincent deu um sorriso solidário.
– Isso vai passar, doçura – murmurou. – Sempre passa.
Ele se inclinou para baixo e roçou a boca nos cabelos de Lillian até seus lábios alcançarem a pele frágil da testa dela.
Lillian ficou imóvel, sabendo que, se o perfume fosse operar sua magia em St. Vincent, seria agora. Como estavam muito perto um do outro, não havia como ele evitar o efeito. Contudo, quando St. Vincent se afastou, ela viu que ele ainda estava calmo e controlado. Não havia nada na expressão dele que indicasse a paixão quase violenta que Westcliff demonstrara por ela. Inferno, pensou com um pouco de frustração. De que adianta um perfume que só atrai o homem errado?
– Milorde – perguntou ela em um tom suave –, já desejou alguém que não podia ter?
– Ainda não. Mas isso é algo que sempre se pode esperar.
Lillian respondeu com um sorriso intrigado.
– Espera um dia se apaixonar por alguém que não pode ter? Por quê?
– Seria uma experiência interessante.
– Como cair de um penhasco – disse ela, sarcástica. – Mas acho melhor aprender sobre isso por experiência alheia.
Rindo, ele se afastou da mesa e se virou para Lillian.
– Talvez esteja certa. É melhor voltarmos para a mansão, minha amiguinha esperta, antes que sua ausência se torne óbvia demais.
– Mas... – Lillian percebeu que, pelo visto, o interlúdio no jardim não consistiria em nada além de uma caminhada e uma breve conversa. – É só isso? – disse, num impulso. – Não vai... –
Sua voz foi sumindo até se transformar em um decepcionado silêncio.
Em pé na frente de Lillian, St. Vincent pôs as mãos sobre a mesa, ladeando o corpo dela, mas sem tocá-la. Seu sorriso foi cálido e sutil.
– Presumo que se refira ao avanço que eu supostamente faria. – Inclinou a cabeça até sua respiração acariciar a testa de Lillian. – Decidi esperar e deixar nós dois refletirmos um pouco mais sobre isso.
Desanimada, Lillian se perguntou se ele não a achava desejável. Pelo amor de Deus, pela reputação que tinha, ele correria atrás de tudo o que usasse saias. Se realmente queria que ele a beijasse ou não, era irrelevante à luz do problema maior, que era estar sendo rejeitada por outro homem. Duas rejeições em uma noite – isso feria muito a vaidade de qualquer pessoa.
– Mas prometeu que faria com que eu me sentisse melhor – protestou ela, ficando vermelha de vergonha ao ouvir o tom suplicante na própria voz.
St.Vincent riu baixinho.
– Bem, se vai começar a reclamar... Eis algo em que pensar.
Ele abaixou o rosto sobre o de Lillian, pondo as pontas dos dedos sob o queixo da jovem e ajeitando o ângulo de sua cabeça. Ela fechou os olhos e sentiu a pressão sedosa dos lábios de St.
Vincent se movendo sobre os seus com irresistível leveza. Os lábios do visconde prosseguiram em uma lenta e obstinada busca, mais firmes a cada investida, até os de Lillian se abrirem. Ela mal havia começado a se dar conta da promessa exótica do beijo quando ele terminou com um leve roçar de boca. Confusa e ofegante, aceitou o apoio das mãos do visconde em seus ombros até conseguir se sentar sem cair da mesa.
Realmente algo em que pensar.
Depois de ajudá-la a descer para o chão, St. Vincent andou pelo jardim com ela até chegarem a uma sucessão de terraços que levavam à varanda dos fundos. Eles pararam na sebe. O luar tingiu de prata o perfil do visconde enquanto ele olhava para o rosto erguido de Lillian.
– Obrigado – murmurou.
Ele estava lhe agradecendo pelo beijo? Lillian assentiu, insegura, pensando que talvez ela é que devesse lhe agradecer. Embora, infelizmente, a imagem de Westcliff permanecesse nos recônditos de sua mente, não se sentia mais tão triste quanto no salão de baile.
– Não se esquecerá de nosso passeio de carruagem de manhã? – perguntou-lhe St. Vincent enquanto seus dedos subiam pelas luvas de Lillian até encontrarem as partes desnudas dos antebraços.
Ela balançou a cabeça.
St. Vincent franziu a testa com fingida preocupação.
– Eu a deixei sem fala? – perguntou, e riu quando ela assentiu em silêncio. – Então espere que eu a devolverei.
Ele abaixou a cabeça e a beijou, enviando uma onda de calor pelas veias de Lillian. Os dedos longos seguraram o rosto dela enquanto ele lhe lançava um olhar indagador.
– Assim está melhor? Deixe-me ouvi-la dizer alguma coisa.
Ela não pôde evitar rir.
– Boa noite – murmurou.
– Boa noite – disse St. Vincent com um sorriso divertido, e a virou de costas para ele. – Entre primeiro.
Quando lorde St. Vincent decidia ser encantador, como fez na manhã seguinte, Lillian duvidava que existisse no mundo um homem mais atraente. Insistindo em que Daisy os acompanhasse também, ele encontrou as três Bowmans no hall de entrada com um buquê de rosas para Mercedes. Acompanhou-as até uma carruagem fechada laqueada de preto, fez um sinal para o condutor e o confortável veículo rodou suavemente pela estrada de cascalho.
Sentado ao lado de Lillian, St. Vincent manteve as três mulheres entretidas com perguntas sobre a vida delas em Nova York. Lillian se deu conta de que fazia muito tempo que ela e Daisy não falavam sobre sua terra natal com ninguém. A sociedade londrina não dava a mínima importância para Nova York ou o que acontecia lá. Contudo, lorde St. Vincent se revelou tão bom ouvinte que logo uma história começou a se seguir a outra.
Elas lhe falaram sobre a fileira de mansões de pedra na Quinta Avenida e o inverno no Central Park, quando o lago da Rua 59 congelava e havia festividades semanais, e sobre como às vezes demorava meia hora para atravessar a Broadway, em virtude do fluxo constante de veículos de transporte de passageiros e carruagens de aluguel. E sobre a sorveteria no cruzamento da Broadway com a Franklin, que ousava atender jovens desacompanhadas de homens.
St. Vincent pareceu se divertir com as descrições delas dos excessos de Manhattanville; do baile a que foram cujo salão tinha sido enfeitado com três mil orquídeas de estufa; e da mania de diamantes que havia começado com a descoberta de novas minas na África do Sul e resultara em que agora que todos, de anciãos a crianças pequenas, andavam cobertos de pedras brilhantes. E, é claro, da ordem dada a todos os decoradores: “mais”. Mais molduras douradas, mais bricabraques, mais quadros e tecidos decorativos até todo o espaço ficar cheio, do chão ao teto.
No início, Lillian se sentiu um pouco nostálgica ao falar sobre a vida suntuosa que um dia levara. Contudo, enquanto a carruagem passava por acres de campos dourados prontos para a colheita e florestas escuras repletas de vida selvagem, deu-se conta de uma surpreendente ambivalência em relação ao seu antigo lar. Aquela fora uma vida vazia, uma busca incessante por moda e diversão. E a sociedade londrina não parecia muito melhor. Nunca teria pensado que gostaria de um lugar como Hampshire, mas... era possível ter uma vida de verdade ali, pensou, melancólica. Uma vida da qual poderia desfrutar plenamente, em vez de sempre ter de se perguntar sobre seu futuro desconhecido.
Sem perceber que caíra em silêncio, Lillian olhou distraidamente para a paisagem que passava até ouvir a voz suave de St. Vincent.
– Ficou sem fala de novo?
Ela olhou para os olhos claros e sorridentes do visconde enquanto Daisy e Mercedes conversavam no assento oposto.
– Conheço um ótimo remédio para isso – disse-lhe St. Vincent, e ela riu, corando.
Relaxada e bem-humorada depois do passeio de carruagem com lorde St. Vincent, Lillian não estava prestando muita atenção na conversa da mãe sobre o elegível visconde quando elas entraram em seu quarto.
– Teremos de descobrir mais sobre ele, é claro, e consultarei as anotações em nosso relatório sobre os aristocratas para ver se me esqueci de alguma coisa. Mas, se não me falha a memória, ele é dono de uma modesta fortuna e sua criação e sua linhagem são bastante boas...
– Eu não me entusiasmaria com a ideia de ter lorde St. Vincent como genro – disse Lillian a Mercedes. – Ele brinca com as mulheres, mãe. Acho que a ideia de se casar não o atrai.
– Por enquanto – contrapôs Mercedes, fechando sua cara de raposa. – Mas vai acabar tendo de fazer isso.
– Vai? – perguntou Lillian sem se dar por convencida. – Nesse caso, duvido que ele vá seguir as regras convencionais do casamento. A começar pela da fidelidade.
Mercedes andou a passos largos até uma janela próxima e olhou através dos painéis de vidro com uma expressão tensa. Seus dedos delicados e quase esqueléticos se fecharam sobre as pesadas franjas de seda da cortina.
– Todos os maridos são infiéis de um modo ou de outro.
Lillian e Daisy se entreolharam com as sobrancelhas erguidas.
– Nosso pai não é – rebateu Lillian.
Mercedes reagiu com uma risada que soou como folhas sendo esmagadas por pés.
– Não é, querida? Talvez ele tenha permanecido fiel a mim fisicamente. Nunca se pode ter certeza dessas coisas. Mas seu trabalho se revelou uma amante mais ciumenta e exigente do que uma mulher de carne e osso jamais poderia ser. Todos os seus sonhos envolvem aquela coleção de prédios, empregados e assuntos legais que o absorvem e o excluem todo o resto. Se eu tivesse competido com uma mulher de verdade, poderia ter ganhado, sabendo que esse tipo de paixão acaba e a beleza só dura um instante. Mas sua empresa nunca desaparecerá ou adoecerá; sobreviverá a todos nós. Se você conseguir ter o interesse e a afeição de seu marido por um ano, será muito mais do que tive.
Lillian sempre tivera consciência de como as coisas eram entre seus pais. O desinteresse de um pelo outro não poderia ser mais óbvio. Mas essa era a primeira vez que Mercedes falava sobre isso, e a fragilidade na voz da mãe fez Lillian estremecer de pena.
– Não vou me casar com esse tipo de homem – disse ela.
– As ilusões não são condizentes com uma garota da sua idade. Quando eu tinha 24 anos, tive dois filhos. Está na hora de você se casar. E, seja qual for seu marido ou a reputação dele, você não deve lhe pedir que faça promessas que talvez não cumpra.
– Então deduzo que ele poderá se comportar e me tratar como quiser, desde que seja um aristocrata? – retorquiu Lillian.
– Isso mesmo – disse Mercedes. – Depois do investimento que seu pai fez nesta aventura... as roupas, as contas do hotel e todas as outras despesas... você não tem escolha, nenhuma de vocês tem, além de se casar com um aristocrata. Além disso, não voltarei para Nova York derrotada nem serei motivo de chacota porque minhas filhas não conseguiram se casar com membros da aristocracia.
Ela se afastou da janela e saiu do quarto, preocupada demais com seus pensamentos raivosos para se lembrar de trancar a porta, que ficou apenas encostada.
Daisy foi a primeira a falar:
– Isso significa que ela quer que você se case com lorde St. Vincent?
Lillian riu sem achar a mínima graça.
– Ela não se importaria se eu me casasse com um louco homicida babento se ele tivesse sangue azul.
Suspirando, Daisy foi até a irmã e ficou de costas para ela.
– Pode me ajudar com meu vestido e o espartilho?
– O que você vai fazer?
– Vou tirar estas malditas coisas, ler um romance e depois cochilar.
– Você quer cochilar? – perguntou Lillian, sabendo que a irmã nunca cochilava voluntariamente no meio do dia.
– Sim. Sacolejar na carruagem me deu dor de cabeça e agora nossa mãe completou o trabalho com toda aquela conversa de casamento com aristocratas. – Os ombros frágeis de Daisy se retesaram dentro do vestido de passeio. – Você parece um pouco impressionada com lorde St. Vincent. O que realmente acha dele?
Lillian soltou a sucessão de pequenas alças de seus botões de marfim.
– Ele é divertido – disse. – E atraente. Eu ficaria tentada a descartá-lo como um mulherengo... mas de vez em quando vejo sinais de algo abaixo da superfície... – Ela fez uma pausa, achando difícil pôr seus pensamentos em palavras.
– Sim, eu sei. – A voz de Daisy foi abafada quando ela se curvou para abaixar as camadas de delicada musselina estampada dos quadris para o chão. – E não gosto disso, seja o que for.
– Não gosta? – perguntou Lillian, surpresa. – Mas foi amável com ele esta manhã.
– Não se pode evitar ser amável com lorde St. Vincent – admitiu Daisy. – Ele tem o que os hipnotizadores chamam de magnetismo animal. Uma força natural que atrai as pessoas.
Lillian sorriu e balançou a cabeça.
– Você anda lendo romances de mais, querida.
– Bem, independentemente de seu magnetismo, lorde St. Vincent parece ser o tipo de pessoa motivada apenas por interesses pessoais, e por isso não confio nele.
Pondo o vestido sobre uma cadeira, Daisy puxou com determinação o espartilho e suspirou de alívio ao tirá-lo de seu corpo de sílfide. Se havia uma garota que não precisava de espartilho era Daisy. Contudo, não era apropriado para uma dama sair sem um. Ansiosa, ela o atirou no chão, pegou um livro na mesa de cabeceira e subiu para o colchão.
– Tenho um romance, se também quiser ler.
– Não, obrigada. Estou inquieta demais para ler e com certeza não conseguiria dormir. –
Lillian olhou pensativamente para a porta entreaberta. – Duvido que nossa mãe note se eu der uma escapulida para passear no jardim. Ela vai ficar entretida com o relatório sobre os aristocratas durante as próximas duas horas.
Não houve nenhuma resposta de Daisy, já absorta no romance. Sorrindo ao ver o rosto concentrado da irmã, Lillian saiu do quarto sem fazer barulho e foi para a porta de serviço no fim do corredor.
Ao entrar no jardim, seguiu por um caminho que não conhecia, margeado por uma sebe de teixos podada à perfeição e que parecia se estender por quilômetros. Com tamanho zelo em relação a sua estrutura e sua forma, os jardins da mansão devem ser lindos no inverno, pensou.
Depois de uma leve nevada, as sebes, os arbustos modelados e as estátuas pareceriam cobertos de glacê como um bolo, enquanto as faias com folhas marrons teriam gelo e neve nos galhos. Mas o inverno parecia muito distante naquele jardim avermelhado de setembro.
Ela passou por uma grande estufa e viu através do vidro tabuleiros e recipientes com vegetais exóticos. Dois homens conversavam do lado de fora da porta, um deles agachado diante de uma série de tabuleiros de madeira cheios de raízes de tuberosa secas. Lillian reconheceu um dos homens como o velho chefe dos jardineiros. Continuando pelo caminho ao lado da estufa, não pôde evitar notar que o homem agachado, com calças rústicas, camisa branca e sem colete, tinha uma forma física extremamente atlética e a posição em que se encontrava fazia suas roupas se esticarem sobre as nádegas de um modo muito atraente. Ele havia pegado uma das raízes de tuberosa e a examinava com olhar crítico quando percebeu a aproximação de alguém.
O homem se ergueu e se virou para olhar para ela. Seria Westcliff?, pensou Lillian, sentindo um nó nas entranhas de excitação. Ele monitorava tudo na propriedade com o mesmo meticuloso cuidado. Nem uma reles raiz de tuberosa poderia viver em confortável mediocridade.
Essa versão de Westcliff era a sua preferida – a versão que quase nunca era vista, desgrenhado e relaxado, fascinante em sua misteriosa virilidade. O colarinho aberto da camisa revelava as pontas de pelos encaracolados. As calças um pouco folgadas na cintura esguia eram sustentadas por suspensórios que definiam a linha firme dos ombros. Se Lorde St. Vincent possuía um magnetismo animal, Westcliff era nada menos que um ímã, exercendo tanta atração sobre Lillian que ela sentiu o corpo inteiro formigar. Teve vontade de ir até ele naquele segundo e fazê-lo prendê-la no chão com beijos rudes e sensuais e carícias impacientes. Em vez disso, abaixou rapidamente o queixo, respondendo ao cumprimento que ele murmurou e apressou seu passo no caminho.
Para seu alívio, Westcliff não tentou segui-la e seus batimentos cardíacos logo voltaram ao ritmo normal. Explorando os arredores, chegou a um muro de pedra quase escondido por uma sebe alta e hera densa. Parecia que essa parte do jardim tinha sido fechada por muros imponentes. Curiosa, acompanhou a sebe, mas não conseguiu encontrar nenhuma entrada para o pátio privado.
– Tem de haver uma porta – murmurou.
Recuou e olhou para o muro na sua frente, tentando encontrar uma abertura na sebe. Nada.
Em outra tentativa, foi até o muro de pedra e passou as mãos pela parte escondida em busca de uma porta.
Virou-se rapidamente ao ouvir o som de uma risada às suas costas.
Parecia que Westcliff havia decidido segui-la. Em uma negligente concessão ao decoro, vestira um colete escuro, mas o colarinho da camisa continuava aberto e as calças empoeiradas estavam em péssimas condições. Ele se aproximou devagar, esboçando um sorriso.
– Eu deveria saber que tentaria encontrar uma entrada para o jardim secreto.
De um modo quase sobrenatural, Lillian se conscientizou do chilro dos pássaros e do sussurro da brisa através da hera. Olhando-a nos olhos, Westcliff se aproximou mais... mais, mais, até os corpos deles quase se tocarem. O cheiro do conde chegou às narinas de Lillian, uma deliciosa mistura de pele masculina aquecida pelo sol com um toque singular seco e doce que ela apreciava. Lentamente, ele passou um dos braços em volta de sua cintura e ela prendeu a respiração ao ser espremida contra a farfalhante hera. Ouviu o som metálico de um ferrolho.
– Se tivesse procurado um pouco mais à esquerda, teria encontrado – disse ele em voz baixa.
Às cegas, ela se virou no meio círculo dos braços do conde, observando-o afastar a hera e abrir a porta.
– Entre – encorajou-a Wescliff.
Ele apertou de leve a cintura de Lillian e ambos entraram no jardim.
CAPÍTULO 14
Lillian ficou boquiaberta e sem fala ao ver uma área quadrangular gramada cercada por um jardim de borboletas. Cada muro era ladeado por cores vivas, uma profusão de flores do campo cobertas de delicadas asas tremulantes. O único móvel era um banco circular no centro, de onde era possível ver todo o jardim. O aroma sublime das flores aquecidas pelo sol chegou às narinas de Lillian, inebriando-a com sua doçura.
– Este lugar se chama Corte das Borboletas – disse Westcliff, fechando a porta. Sua voz foi como veludo nos ouvidos dela. – Aqui foram plantadas as flores que mais as atraem.
Lillian abriu um sorriso sonhador enquanto observava as pequenas e ocupadas formas que pairavam sobre os heliotrópios e os cravos-de-defunto.
– Qual é o nome daquelas? As cor de laranja e pretas.
Westcliff foi para o lado de Lillian.
– Belas-damas.
– Como as pessoas se referem a um grupo de borboletas? Um bando?
– Sim. Mas prefiro uma variação mais recente. Em alguns círculos isso é chamado de um caleidoscópio de borboletas.
– Um caleidoscópio... É um tipo de instrumento ótico, não é? Ouvi falar a respeito, mas nunca tive a chance de ver um.
– Eu tenho um caleidoscópio na biblioteca. Se quiser, lhe mostrarei mais tarde. – Antes que ela pudesse responder, Westcliff apontou para um enorme canteiro de lavanda. – Ali. A borboleta branca é uma Erinnis.
Lillian deu uma súbita risada.
– Uma Erinnis pages?
Ele respondeu com um brilho de divertimento nos olhos.
– Não. Apenas a variedade comum.
A luz do sol fez brilhar os fartos cabelos pretos de Westcliff e lhe tingiu a pele de bronze.
Lillian olhou para a linha firme do pescoço do conde e de repente se tornou insuportavelmente consciente da força do corpo dele, do poder masculino que a havia fascinado desde a primeira vez que o vira. Qual seria a sensação de ser envolvida por aquela força?
– Que cheiro delicioso o da lavanda! – comentou, tentando desviar os próprios pensamentos de seus rumos perigosos. – Um dia quero viajar para a Provença, andar pelos campos de lavanda no verão. Dizem que as flores são tantas que parecem um oceano azul. Pode imaginar como devem ser lindos?
Westcliff balançou de leve a cabeça, olhando para ela.
Lillian foi até um dos caules de lavanda, tocou nas pequenas flores azul-violeta e levou seus dedos perfumados ao pescoço.
– Eles extraem o óleo essencial aplicando vapor nas plantas e colhendo o líquido. São necessários 225 quilos de plantas para produzir apenas alguns mililitros do precioso óleo.
– Pelo visto, entende bastante do assunto.
Lillian franziu os lábios.
– Tenho um grande interesse por perfumes. Na verdade, poderia ajudar muito meu pai na empresa, se ele deixasse. Mas sou uma mulher e por isso meu único objetivo na vida é ter um bom casamento. – Ela foi até a beira de um magnífico canteiro de flores do campo.
Westcliff a seguiu e se posicionou logo atrás dela.
– Isso me faz lembrar de um assunto que precisa ser discutido.
– Sim?
– Ultimamente, tem andado na companhia de St. Vincent.
– Tenho.
– Ele não é uma companhia adequada para a senhorita.
– Ele é seu amigo, não é?
– Sim. É por isso que sei do que é capaz.
– Está me avisando para ficar longe dele?
– Como obviamente isso a incentivaria a fazer o contrário... não. Só a estou aconselhando a não ser ingênua.
– Posso lidar com St. Vincent.
– Estou certo de que acredita que sim. – Houve uma irritante condescendência no tom dele. –
Porém, está claro que não tem experiência nem maturidade para se defender dos avanços dele.
– Até agora, só precisei me defender dos seus avanços – retorquiu Lillian, virando-se para ele.
Ela observou com satisfação que o atingira em cheio, causando-lhe um leve rubor nas bochechas.
– Se St. Vincent ainda não se aproveitou da senhorita – respondeu ele com perigosa gentileza
–, é só porque está esperando o momento oportuno. E, apesar de sua opinião inflada sobre as próprias capacidades, ou talvez por causa dela, a senhorita é um alvo fácil para a sedução.
– Inflada? – repetiu Lillian, indignada. – Saiba que sou experiente demais para ser pega desprevenida por qualquer homem, inclusive St. Vincent.
Para a sua vergonha, Westcliff pareceu reconhecer o exagero dela, e seus olhos pretos adquiriram um brilho de divertimento.
– Então eu estava enganado. Pelo modo como beija, presumi... – Ele deixou deliberadamente a frase no ar, lançando a isca que ela não resistiria a morder.
– O que quer dizer como “pelo modo como eu beijo”? Está insinuando que há algo de errado nele? Algo de que não gosta? Algo que eu não deveria...
– Não... – Westcliff roçou as pontas dos dedos na boca de Lillian, silenciando-a. – Seus beijos são muito... – Ele hesitou, como se não encontrasse a palavra certa, e depois pareceu se concentrar na superfície aveludada dos lábios dela. – Doces – sussurrou após um longo tempo,
deslizando os dedos sob o queixo de Lillian.
Embora o toque fosse leve, ele sentiu a deliciosa contração dos músculos da garganta dela.
– Mas sua resposta não foi o que eu teria esperado de uma mulher experiente.
Ele passou o polegar pelo lábio inferior de Lillian, afastando-o do superior. Ela se sentiu confusa e combativa, como um gatinho sonolento que acabara de ser despertado por alguém lhe fazendo cócegas com uma pena. Retesou-se ao senti-lo deslizar um braço para suas costas.
– O que... o que mais eu devia fazer? O que esperava que eu não... – Ela parou e tomou fôlego quando os dedos de Westcliff seguiram o ângulo de seu maxilar, segurando-lhe o lado do rosto.
– Devo lhe mostrar?
Por insitinto, ela empurrou o peito do conde em uma tentativa de se soltar. Foi como tentar mover um muro de pedra-ferro.
– Westcliff...
– Obviamente precisa de um professor qualificado. – Lillian sentiu a respiração quente de Westcliff em seus lábios enquanto ele falava. – Fique quieta.
Percebendo que Westcliff estava zombando dela, empurrou-o com mais força e sentiu seus pulsos serem torcidos nas costas com surpreendente facilidade, até seus seios leves serem projetados para a frente contra o peito dele. Esboçando um protesto, sentiu a boca de Westcliff cobrir a sua e ficou paralisada por uma labareda de sensações que atingiu todos os seus músculos até ela ser içada como uma marionete com as cordas emaranhadas.
Nos braços de Westcliff e contra a superfície dura do peito dele, sentiu sua respiração se tornar rápida e irregular. Seus cílios se abaixaram, com a luz quente do sol sobre a frágil proteção das pálpebras. Houve a longa penetração da língua dele, uma enternecedora intimidade que lhe causou um arrepio no corpo. Sentindo o movimento, Westcliff tentou acalmá-la acariciando suas costas com a palma da mão enquanto sua boca brincava com a de Lillian. Ele a explorou mais fundo com a língua e o tímido recuo que se seguiu lhe arrancou um riso abafado de divertimento.
Ofendida, Lillian se afastou, e ele pôs a mão na parte de trás da cabeça da jovem.
– Não – murmurou. – Não se afaste. Abra para mim. Abra...
Ele a estava beijando de novo, instruindo-a. Pouco a pouco entendendo o que Westcliff desejava, Lillian deixou sua língua tocar a dele. Sentiu a força da reação do conde e a urgência que o dominou, mas ele continuou gentil, explorando-a com beijos suaves. Com as mãos livres, Lillian não pôde evitar tocá-lo, pondo uma delas sobre os músculos rijos das costas de Westcliff e subindo a outra para o pescoço. A pele bronzeada era quente e suave, como cetim recém-passado.
Ela investigou a forte pulsação em seu pescoço e depois deixou os dedos perambularem até os pelos escuros expostos pelo colarinho aberto.
As mãos quentes de Westcliff se ergueram e seguraram o rosto de Lillian enquanto ele se concentrava na boca e a possuía com beijos ávidos por roubar a alma, até ela ficar fraca demais para permanecer em pé. Quando os joelhos de Lillian se dobraram, ela sentiu os braços de Westcliff envolvendo-a de novo. Ele amparou seu corpo fraco e a desceu para o denso tapete de grama. Deitou-se ao seu lado com uma das pernas sobre as saias de Lillian e pôs um braço forte sob seu pescoço. Beijou-a e dessa vez ela não evitou a incansável exploração, abrindo totalmente a boca para o conde. O mundo para além do jardim secreto deixou de existir. Só havia aquele lugar, aquele pedaço do Éden, ensolarado, silencioso e repleto de extraordinárias cores brilhantes. A combinação dos cheiros de lavanda com pele masculina quente a envolviam... deliciosos demais... irresistíveis... Languidamente ela pôs os braços ao redor do pescoço de Westcliff, e suas mãos deslizaram para os grossos cachos do cabelo dele.
Lillian sentiu uma série de hábeis puxões na frente de seu vestido e ficou deitada passivamente sob os cuidados das mãos experientes dele, seu corpo ansiando por ser tocado.
Erguendo-se sobre ela, Westcliff abriu o espartilho e a libertou da prisão de seus cordões. Ela não conseguia respirar fundo ou rápido o suficiente; seus pulmões tentavam satisfazer uma necessidade desesperada de mais oxigênio. Presa em um emaranhado de roupas, tentou se livrar delas e ele a manteve deitada com um murmúrio enquanto abria o espartilho e puxava o delicado laço de fita da camisola.
As curvas pálidas dos seios de Lillian ficaram expostas ao sol, ao ar e aos olhos pretos do homem que a segurava. Ele contemplou a curva suave e os mamilos rosados e murmurou seu nome enquanto abaixava a cabeça. Roçou os lábios na pele, subindo-os por um dos seios firmes e os abrindo sobre o delicado mamilo. Deitada sob ele, Lillian deixou escapar um receoso gemido de prazer. A ponta da língua circundou o mamilo, produzindo uma insuportável sensibilidade.
Ela agarrou os antebraços incrivelmente musculosos de Westcliff, enterrando os dedos nos bíceps. A paixão a inflamou cada vez mais, até ela se contorcer para se afastar dele.
A respiração de Lillian se tornou trêmula e ofegante quando ele voltou a beijar sua boca. Seu corpo, pulsando em ritmos desconhecidos, não parecia mais lhe pertencer.
– Westcliff...
Sua boca percorreu inseguramente o peito masculino, o rosto com a barba por fazer e a beira do queixo e voltou para a suavidade dos lábios. Quando o beijo terminou, virou o rosto para o lado e perguntou ofegantemente:
– O que você quer?
– Não pergunte isso. – Ele moveu os lábios para a orelha de Lillian e acariciou com a língua a pequena cavidade atrás do frágil lóbulo. – A resposta... – Ouvindo a respiração de Lillian se acelerar, prolongou-se na orelha, contornando com a língua a fina borda e mordiscando as dobras internas. – A resposta é perigosa – conseguiu dizer por fim.
Ela pôs os braços ao redor do pescoço de Westcliff, trouxe a boca do conde de novo para a sua e lhe deu um beijo ardente que pareceu acabar com o autocontrole dele.
– Lillian – disse ele, fraco –, diga-me para não tocá-la. Diga-me que já chega. Diga-me...
Ela o beijou de novo, absorvendo avidamente o calor e o sabor da boca de Westcliff. Uma nova urgência surgiu entre eles, e os beijos do conde se tornaram mais fortes e mais agressivos até uma torturante necessidade deixar os membros de Lillian fracos e pesados. Ela sentiu suas saias sendo erguidas, o calor da luz solar penetrando através do fino linho das calçolas. A mão pesada de Westcliff desceu para seu joelho, a palma cobrindo a articulação. Um instante depois a mão deslizou para cima. Ele não lhe deu nenhuma oportunidade de se opor, cobrindo a boca de Lillian com beijos impacientes enquanto passava os dedos pela linha esguia de sua perna.
Ela se sobressaltou um pouco quando Westcliff chegou à carne inchada e macia entre suas coxas, traçando-lhe a forma através do linho transparente. Ele a acariciou com suavidade sobre o véu do tecido. A ideia da sensação que aqueles dedos fortes e ligeiramente ásperos poderiam produzir em sua pele a fez gemer de desejo. Depois do que pareceu uma eternidade torturante, os dedos penetraram na fenda debruada de renda da roupa de baixo. Lillian deixou escapar um suspiro nervoso ao sentir aquela carícia que a abria, os dedos longos deslizando entre os pelos escuros encaracolados e sedosos. Westcliff a acariciou lenta e delicadamente, como se estivesse brincando com as pétalas de uma rosa semiaberta. Tocou com a ponta de um dedo a pequena saliência que pulsava de excitação e todo o raciocínio desapareceu. Encontrou o ponto sutil onde todo o prazer de Lillian se concentrava e a acariciou de modo ritmado, circulando-o com delicadeza e fazendo-a se contorcer de desespero.
Ela o desejava, não importava quais fossem as consequências. Queria que a possuísse, mesmo sabendo a dor que isso lhe causaria. Mas com brutal rapidez o corpo pesado do conde saiu de cima do seu e ela foi deixada atordoada sobre a grama aveludada.
– Milorde? – perguntou, ofegante, conseguindo se sentar e com as roupas em total desalinho.
Westcliff estava sentado perto, abraçando os joelhos. Com algo que beirava o desespero, Lillian viu que ele recuperara o autocontrole enquanto ela ainda tremia da cabeça aos pés.
A voz de Westcliff foi fria e firme:
– Você provou que eu tinha razão, Lillian. Se um homem de quem nem mesmo gosta pode deixá-la nesse estado, quão mais fácil isso seria para St. Vincent?
Foi como se ele tivesse lhe dado uma bofetada, e ela arregalou os olhos.
A transição do cálido desejo para a total estupidez não era agradável.
A devastadora intimidade entre eles não fora nada além de uma lição para demonstrar sua inexperiência. Ele a usara como uma oportunidade para colocá-la em seu devido lugar. Ao que parecia, não era boa o suficiente para ser uma esposa ou amante. Ela teve vontade de morrer.
Humilhada, levantou-se com dificuldade, segurando suas roupas abertas, e lhe lançou um olhar de ódio.
– Isso ainda veremos – disse com a voz embargada. – Só terei de comparar ambos. E depois, se me pedir com educação, talvez eu lhe diga se ele...
Westcliff se lançou para ela com surpreendente rapidez, empurrando-a de volta para o gramado e lhe segurando a cabeça agitada com seus antebraços musculosos.
– Fique longe dele – disparou. – Ele não pode tê-la.
– Por que não? – perguntou Lillian, debatendo-se enquanto Westcliff se posicionava com mais firmeza entre suas pernas. – Também não sou boa o suficiente para ele? Sendo de uma classe inferior...
– Você é boa demais para ele. E ele seria o primeiro a admitir isso.
– Eu gosto dele ainda mais por não estar à altura de seus altos padrões!
– Lillian, acalme-se. Maldição. Lillian, olhe para mim! – Westcliff esperou até ela ficar quieta debaixo dele. – Eu não quero que se magoe.
– Já lhe ocorreu, seu idiota arrogante, que a pessoa que mais pode me magoar é você?
Foi a vez de Westcliff recuar, como se tivesse sofrido um golpe. Olhou para ela, confuso, embora ela quase pudesse ouvir o zunido do cérebro ágil dele processando as possíveis implicações daquela impulsiva afirmação.
– Saia de cima de mim – disse Lillian, irritada.
Ele se aprumou, mantendo uma perna em cada lado dos quadris esguios dela e segurando as bordas internas do espartilho.
– Deixe-me prender isso. Você não pode voltar para casa seminua.
– Para todos os efeitos – respondeu ela, sem conseguir disfarçar o desprezo –, vamos manter o decoro.
Fechando os olhos, sentiu-o pôr suas roupas no lugar, amarrando a camisola e prendendo o espartilho.
Quando ele enfim a soltou, Lillian se ergueu de um pulo como uma corça assustada e correu para a entrada do jardim secreto. Para a sua eterna humilhação, não conseguiu encontrar a porta, escondida pela densa hera que cobria o muro. Às cegas, pôs as mãos entre a trepadeira, quebrando duas unhas ao tentar encontrar a ombreira da porta.
Westcliff veio por trás e a segurou pela cintura, frustrando facilmente as suas tentativas de se soltar. Puxou os quadris de Lillian de volta para os dele com firmeza e lhe sussurrou ao ouvido:
– Está zangada porque comecei a fazer amor com você ou porque não terminei?
Lillian lambeu os lábios secos.
– Estou zangada, seu maldito hipócrita, porque você não consegue decidir o que fazer comigo. – Ela pontuou seu comentário lhe dando uma forte cotovelada nas costelas.
O golpe não pareceu ter nenhum efeito sobre Westcliff. Com uma sarcástica manifestação de cortesia, ele a soltou e encontrou o ferrolho da porta escondida, permitindo-lhe escapar do jardim secreto.
CAPÍTULO 15
Depois que Lillian fugiu do jardim de borboletas, Marcus tentou acalmar suas paixões. Quase perdera todo o controle com Lillian, quase a possuíra no chão, como um bruto inconsequente.
Apenas um brilho infinitesimal de consciência, fraco como uma chama de vela em uma tempestade, o impedira de fazer isso. Uma garota inocente, filha de um de seus convidados...
Meu Deus, ele tinha ficado louco.
Caminhou devagar pelo jardim, tentando analisar uma situação em que nunca esperara estar.
E pensar que alguns meses atrás zombara de Simon Hunt por sua excessiva paixão por Annabelle Peyton! Até agora não conhecia o poder da obsessão, nunca a sentira tão ferozmente, e parecia não conseguir evitá-la. Era como se sua vontade tivesse se dissociado de seu intelecto.
Marcus não conseguia se reconhecer em suas reações a Lillian. Ninguém jamais o fizera se sentir tão consciente e vivo, como se a simples presença dela aguçasse todos os seus sentidos.
Lillian o fascinava. Fazia-o rir. Excitava-o além do que era suportável. Se ao menos pudesse se deitar com ela e encontrar alívio para aquele infinito desejo! Contudo, a parte racional de seu cérebro lhe dizia que a avaliação que sua mãe fizera das garotas Bowmans era correta.
– Talvez possamos lhes aplicar uma camada superficial de verniz – dissera a condessa –, mas certamente minha influência nunca será mais profunda. Nenhuma dessas garotas é maleável o bastante para mudar de um modo significativo. Sobretudo a mais velha. Não se pode transformá-la em uma dama mais do que se pode transformar ouro de tolo em ouro de verdade. Ela está determinada a não mudar.
Estranhamente, isso era parte do motivo pelo qual Marcus se sentia tão atraído por Lillian.
Sua vitalidade natural e sua individualidade descompromissada o afetavam como um sopro de vento invernal entrando em uma casa abafada. Contudo, era desonesto da parte dele, para não dizer injusto, continuar a lhe dirigir suas atenções quando era óbvio que nada poderia resultar disso. Não importava quão difícil fosse, teria de deixá-la em paz, como ela acabara de pedir.
Essa decisão deveria ter lhe trazido um pouco de paz, mas não trouxe.
Remoendo seus pensamentos, saiu do jardim e foi para a mansão, notando contra sua vontade que a bela vista ao redor parecia um pouco sem graça, cinzenta, como se observada através de uma vidraça suja. Lá dentro, a atmosfera da mansão parecia triste e antiquada. Ele teve a impressão de que nunca mais sentiria um verdadeiro prazer com nada. Amaldiçoando-se por seus pensamentos sentimentais, dirigiu-se ao seu escritório, embora precisasse urgentemente trocar de roupa. Passou a passos largos pela porta aberta e viu Simon Hunt sentado à escrivaninha, debruçado sobre uma pilha de documentos.
Hunt ergueu os olhos e começou a se levantar da cadeira.
– Não – disse Marcus abruptamente, fazendo-lhe um sinal para permanecer sentado. – Eu só queria dar uma olhada nas entregas da manhã.
– Você parece de mau humor – comentou Hunt. – Se for por causa dos contratos da fundição, acabei de escrever para nosso advogado...
– Não, não tem nada a ver com isso. – Marcus pegou uma carta, quebrou o lacre e fechou a cara, percebendo que era algum tipo de convite.
Hunt o observou, pensativo. Depois de um momento, perguntou:
– Chegou a um impasse em seu diálogo com Thomas Bowman?
Marcus balançou a cabeça.
– Ele parece receptivo à minha proposta sobre a expansão da empresa. Creio que não teremos nenhum problema em fechar um acordo.
– Então tem algo a ver com a Srta. Bowman?
– Por que está perguntando? – contrapôs Marcus com cautela.
Hunt respondeu com um olhar sarcástico, como se a resposta fosse óbvia demais para ser verbalizada.
Marcus se sentou devagar na cadeira do outro lado da escrivaninha. Hunt esperou pacientemente, seu silêncio complacente encorajando Marcus a lhe confidenciar seus pensamentos. Embora Hunt sempre tivesse sido uma pessoa confiável para discutir negócios e assuntos sociais, Marcus nunca discutira questões pessoais com ele. As de outras pessoas, sim. As suas, não.
– Não é lógico eu desejá-la – disse por fim, fixando seu olhar em uma das janelas de vitral próximas. – Isso tem todos os componentes de uma farsa. É difícil imaginar duas pessoas que combinem menos.
– Ah. E como você já disse antes, “casamento é algo importante demais para ser decidido com base em emoções voláteis”.
Marcus relanceou os olhos para ele, franzindo a testa.
– Eu já lhe disse quanto detesto sua tendência a atirar minhas palavras na minha cara?
Hunt riu.
– Por quê? Porque não quer seguir o próprio conselho? Devo ressaltar, Westcliff, que se eu tivesse seguido seu conselho sobre me casar com Annabelle, teria cometido o maior erro da minha vida.
– Na época, ela não era uma escolha sensata – murmurou Marcus. – Só mais tarde provou ser digna de você.
– Mas agora você admite que tomei a decisão certa.
– Sim – respondeu Marcus, impaciente. – Mas não sei como isso se aplica à minha situação.
– Eu queria fazê-lo ver que talvez seus instintos devessem ter um papel na decisão sobre com quem se casar.
Marcus ficou verdadeiramente ofendido com a sugestão e olhou para Simon Hunt como se o amigo tivesse enlouquecido.
– Meu Deus, homem, para que serve o intelecto se não para impedir a estupidez de agir por instinto?
– Você age por instinto o tempo todo – observou Hunt.
– Não quando se trata de decisões com consequências para a vida inteira. E, apesar da minha atração pela Srta. Bowman, as diferenças entre nós acabariam resultando em infelicidade para ambos.
– Eu sei das diferenças entre vocês – disse Hunt em voz baixa. Quando os olhares deles se encontraram, algo nos olhos de Hunt lembrou Marcus de que o amigo era filho de um açougueiro e havia ascendido à classe média e feito fortuna do nada. – Acredite em mim, conheço os desafios que a Srta. Bowman teria de enfrentar nessa posição. E se ela estiver disposta a aceitá-los? E se estiver disposta a mudar o suficiente?
– Ela não conseguirá.
– Está sendo injusto com a Srta. Bowman presumindo que não conseguiria se adaptar. Ela não deveria ter ao menos a chance de tentar?
– Que droga, Hunt, não preciso de um advogado do diabo.
– Espera concordância cega? – perguntou Hunt, zombeteiro. – Talvez devesse ter procurado alguém de sua classe para aconselhamento.
– Isso não tem nada a ver com classe – disparou Westcliff, ressentindo-se da implicação de que suas objeções a Lillian provinham de mero esnobismo.
– Não – concordou Hunt, levantando-se da cadeira. – Esse é um argumento vazio. Acho que há outro motivo para você ter decidido não ir atrás dela. Algo que não admite para mim, ou nem mesmo para si próprio. – Ele se dirigiu à porta e parou para lançar um olhar astuto para Marcus.
– Mas, ao pensar sobre isso, tenha em mente que o interesse de St. Vincent nela é mais do que um capricho passageiro.
Essa afirmação atraiu a atenção de Marcus.
– Besteira. St. Vincent nunca se interessou por nenhuma mulher além dos limites de um quarto.
– Por mais que isso possa ser verdade, recentemente fui informado por uma fonte segura de que o pai dele está vendendo tudo o que não seja vinculado ao título. Anos de gastos indiscriminados e investimentos insensatos esgotaram os cofres da família, e logo St. Vincent será privado de sua verba anual. Ele precisa de dinheiro. E o óbvio desejo dos Bowmans de terem um genro aristocrata dificilmente lhe passaria despercebido. – Hunt fez uma pausa oportuna antes de acrescentar: – Se a Srta. Bowman é adequada para ser esposa de um aristocrata, pode muito bem se casar com St. Vincent. E se isso acontecer, ele acabará herdando seu título e ela se tornará duquesa. Para a sorte da Srta. Bowman, St. Vincent não parece fazer nenhuma restrição à capacidade dela de ocupar essa posição.
Marcus o olhou com perplexidade e fúria.
– Vou falar com Bowman – rosnou. – Quando eu o informar do passado de St. Vincent, ele porá fim a essa corte.
– Sem dúvida... se ele lhe der ouvidos. Meu palpite é que não dará. Ter um duque como genro, mesmo que sem um centavo, não é nada mau para um fabricante de sabões de Nova York.
CAPÍTULO 16
Para qualquer um que tivesse se dado ao trabalho de observar, seria óbvio que durante as duas últimas semanas em Stony Park Cross lorde Westcliff e a Srta. Lillian Bowman fizeram um esforço mútuo para evitar o máximo a companhia um do outro. E igualmente óbvio que lorde St.
Vincent a acompanhava com crescente frequência em danças, piqueniques e festas à beira da água que alegravam os dias agradáveis de outono em Hampshire.
Lillian e Daisy passaram várias manhãs na companhia da condessa de Westcliff, que fazia preleções, as instruía e tentava em vão incutir-lhes uma perspectiva aristocrática. Os aristocratas nunca demonstravam entusiasmo, apenas um interesse imparcial. Transmitiam o que queriam com inflexões sutis de voz. Eles diziam “pessoas da família” ou “congêneres” em vez de “parentes”. E usavam a expressão “se for do seu agrado” em vez de “eu gostaria”. Além disso, uma dama da aristocracia nunca devia se expressar de modo direto, apenas sugerir graciosamente o que queria dizer.
Se a condessa preferia uma irmã à outra, sem dúvida era Daisy, que se revelara mais receptiva ao código arcaico do comportamento aristocrático. Lillian, por sua vez, não se esforçava muito para esconder seu desprezo pelas regras sociais que eram, em sua opinião, totalmente sem sentido. Qual a importância de alguém deslizar a garrafa de vinho do Porto sobre a mesa ou apenas entregá-la, desde que chegasse ao seu destino? Por que havia tantos assuntos proibidos enquanto outros que não a interessavam nem um pouco tinham de ser tediosamente repetidos?
Por que era melhor andar devagar do que rápido e por que uma dama devia tentar ecoar as opiniões de um cavalheiro em vez de expressar as próprias?
Lillian sentia certo alívio na companhia de lorde St. Vincent, que não parecia se importar com seus comportamentos ou as palavras que ela usava. Ele se divertia com sua franqueza e era irreverente. Não poupava de escárnio nem mesmo o pai, o duque de Kingston. Ao que parecia, o duque não tinha a menor noção de como aplicar dentifrício em uma escova de dentes ou segurar as próprias meias com tiras elásticas, porque essas tarefas sempre eram realizadas por um criado pessoal. Lillian não podia evitar rir da ideia de alguém ser tão mimado, levando St. Vincent a especular com fingido horror que tipo de vida primitiva ela levava nos Estados Unidos, tendo de morar em uma mansão identificada por um apavorante número na porta, escovar os próprios cabelos ou amarrar os próprios sapatos.
St. Vincent era o homem mais sedutor que Lillian já conhecera. Contudo, sob as camadas macias de gentileza, havia uma dureza, uma impenetrabilidade que só poderia pertencer a alguém muito frio. Ou talvez extremamente cauteloso. De todo modo, Lillian sabia por intuição que, fosse qual fosse o tipo de alma escondida naquela elegante criatura, nunca a descobriria. Ele tinha a beleza e a inescrutabilidade de uma esfinge.
– St. Vincent precisa se casar com uma mulher de família rica – disse Annabelle em uma tarde em que as Flores Secas estavam sentadas sob uma árvore, desenhando e pintando aquarelas.
– Segundo o Sr. Hunt, o pai de lorde Vincent, o duque, logo cortará sua verba anual porque não sobrou quase nenhum dinheiro. Acho que haverá pouco para St. Vincent herdar.
– O que acontecerá quando o dinheiro acabar? – perguntou Daisy, movendo o lápis sobre o papel enquanto desenhava uma paisagem. – St. Vincent venderá alguns de seus bens e propriedades quando se tornar duque?
– Isso depende – respondeu Annabelle, pegando uma folha cor de âmbar e inspecionado as delicadas nervuras. – Se a maior parte das propriedades que ele herdar estiver vinculada ao título, não. Mas não acredito que ele fique pobre. Há muitas famílias que o recompensarão muito bem se ele concordar em se casar com uma de suas filhas.
– A minha, por exemplo – disse Lillian com sarcasmo.
Annabelle a observou atentamente ao murmurar:
– Querida... Lorde St. Vincent disse algo para você sobre as intenções dele?
– Nem uma palavra.
– Ele já tentou...
– Deus, não.
– Então ele pretende se casar com você – disse Annabelle com irritante certeza. – Se estivesse apenas se divertindo, já teria tentado comprometê-la.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo farfalhar das folhas acima das cabeças delas e pelo arranhar do lápis ocupado de Daisy.
– O-o que você fará se lorde St. Vincent a pedir em casamento? – perguntou Evie, olhando para Lillian por cima da borda de seu estojo de aquarelas de madeira, cuja parte de cima servia como cavalete, equilibrada em seu colo.
Sem pensar, Lillian puxou a grama sob ela, quebrando as frágeis folhas com os dedos.
Percebendo de repente que essa atividade era típica de Mercedes, que tinha um hábito nervoso de puxar e rasgar coisas, parou e atirou os pedaços de grama para o lado.
– Eu aceitarei, é claro – respondeu. As outras três garotas a olharam um pouco surpresas. –
Por que não aceitaria? – continuou ela, na defensiva. – Vocês sabem como é difícil encontrar duques? Segundo o relatório da minha mãe, só há 29 em toda a Grã-Bretanha.
– Mas lorde St. Vincent é um mulherengo desavergonhado – disse Annabelle. – Não posso imaginá-la como esposa dele, tolerando esse comportamento.
– Todos os maridos são infiéis de um modo ou de outro. – Lillian tentou parecer prática, mas de algum modo seu tom foi ríspido e desafiador.
Os olhos azuis de Annabelle se encheram de compaixão.
– Eu não acredito nisso.
– A próxima temporada ainda nem começou – salientou Daisy –, e agora, com a condessa nos amadrinhando, teremos muito mais sorte neste ano do que no último. Não há nenhuma necessidade de você se casar com lorde St. Vincent se não quiser, não importa o que nossa mãe diga.
– Eu quero me casar com ele. – Lillian sentiu seus lábios se esticarem teimosamente. – Na verdade, viverei para o momento em que St. Vincent e eu iremos a um jantar como o duque e a duquesa de Kingston... um jantar ao qual Westcliff também irá, e serei levada para a sala de jantar na frente dele, porque o título do meu marido terá precedência sobre o dele. Vou fazer Westcliff se arrepender. Vou fazê-lo querer... – Ela se interrompeu, percebendo que seu tom estava agudo demais, revelador demais.
Esticando as costas, olhou para um ponto distante na paisagem e se encolheu ao sentir a mão pequena de Daisy sobre seu ombro.
– Talvez a essa altura você não se importe mais com isso – murmurou Daisy.
– Talvez – concordou Lillian, desanimada.
Na tarde seguinte, a propriedade ficou quase vazia, porque a maioria dos cavalheiros tinha ido a uma corrida de cavalos local para apostar, beber e fumar à vontade. As damas foram levadas em uma sucessão de carruagens para a vila, onde uma festa tradicional contaria com a presença de uma companhia londrina de atores itinerantes. Ansiosas pela diversão de algumas comédias leves e música, as mulheres saíram em massa da propriedade. Embora Annabelle, Evie e Daisy tivessem implorado pela companhia de Lillian, ela se recusou. As palhaçadas de atores itinerantes não a atraíam. Ela não queria se forçar a rir. Só queria caminhar ao ar livre sozinha... caminhar por quilômetros até estar cansada demais para pensar em qualquer coisa.
Foi sozinha para o jardim dos fundos, seguindo o caminho que levava à fonte da sereia, que era como uma joia no meio da clareira pavimentada. Havia uma sebe próxima coberta de glicínias, como se alguém tivesse lhe atirado por cima uma cobertura cor-de-rosa. Sentando-se na beira da fonte, olhou para a água espumosa. Não percebeu a aproximação de ninguém até ouvir uma voz baixa no caminho.
– Que sorte encontrá-la no primeiro lugar em que procurei.
Erguendo os olhos e sorrindo, ela contemplou lorde St. Vincent. Seus cabelos cor de âmbar pareciam absorver a luz solar. Sua pele era inquestionavelmente anglo-saxã, mas as linhas pronunciadas de seus malares formavam um ângulo tigrino e sua boca larga e sensual lhe conferia uma atratividade exótica.
– Não vai sair para assistir à corrida? – perguntou Lillian.
– Daqui a pouco. Primeiro queria falar com a senhorita. – St. Vincent olhou para o espaço ao lado dela. – Posso?
– Mas estamos sozinhos – disse ela. – E sempre insiste em uma acompanhante.
– Hoje mudei de ideia.
– Ah. – A curva do sorriso de Lillian ficou ligeiramente trêmula. – Nesse caso, sente-se.
Ela enrubesceu ao se lembrar de que aquele era o local exato em que vira Lady Olivia e o Sr.
Shaw se abraçando tão apaixonadamente. Pelo brilho nos olhos de St. Vincent, era evidente que ele também se lembrava.
– No próximo fim de semana – disse St. Vincent – a festa vai acabar... e será hora de voltar para Londres.
– Deve estar ansioso por voltar para as diversões da vida urbana – observou Lillian. – Para um libertino, seu comportamento foi surpreendentemente comedido.
– Até mesmo nós, os libertinos, precisamos de férias de vez em quando. Um regime de depravação constante se tornaria tedioso.
Lillian sorriu.
– Libertino ou não, apreciei sua amizade nesses últimos dias, milorde. – Quando as palavras saíram de seus lábios, ela ficou surpresa ao perceber que eram verdadeiras.
– Então me considera um amigo? Isso é bom.
– Por quê?
– Porque eu gostaria de continuar a vê-la.
O coração de Lillian bateu mais rápido. Embora o comentário não fosse inesperado, foi pega desprevenida.
– Em Londres? – perguntou.
– Onde estiver. Pode ser?
– Bem, é claro... eu... sim.
Quando ele a olhou com aqueles olhos de anjo caído e sorriu, Lillian foi forçada a concordar com a avaliação de Daisy sobre o magnetismo animal de St. Vincent. Ele parecia um homem nascido para pecar... um homem que podia tornar o pecado tão prazeroso que pouco importaria o preço a pagar depois.
St. Vincent se aproximou devagar, deslizando os dedos dos ombros para o lado do pescoço dela.
– Lillian, meu amor. Pedirei permissão ao seu pai para cortejá-la.
A respiração dela se tornou irregular contra as mãos que a acariciavam.
– Eu não sou a única herdeira disponível.
– Não – respondeu ele francamente. – Mas é de longe a mais interessante. Sabe, a maioria das mulheres não é. Pelo menos fora da cama. – Ele se inclinou mais, até o calor de seu sussurro aquecer os lábios dela. – Ouso dizer que também será interessante na cama.
Bem, lá estava o avanço há muito esperado, pensou Lillian, perplexa, e então seus pensamentos se tornaram confusos quando St. Vincent roçou a boca na sua em uma leve carícia.
Ele a beijou como se fosse o primeiro homem que já a tivesse descoberto, com uma lenta perícia que a seduziu pouco a pouco. Mesmo com sua experiência limitada, Lillian percebeu que o beijo continha mais técnica do que emoção, mas seus sentidos abalados não pareceram se importar e reagiram, indefesos, a cada toque suave. St. Vincent aumentou seu prazer em um ritmo lento até ela suspirar contra os lábios dele e virar fracamente a cabeça.
Os dedos do visconde deslizaram para as bochechas quentes de Lillian e ele apertou com gentileza a cabeça dela contra seu ombro.
– Nunca cortejei ninguém – murmurou enquanto seus lábios brincavam perto da orelha dela.
– Pelo menos não com objetivos honrados.
– Está se saindo bastante bem para um iniciante – disse Lillian contra o casaco dele.
St. Vincent riu e se afastou, o olhar cálido no rosto ruborizado dela.
– Você é adorável – disse. – E fascinante.
E rica, acrescentou Lillian para si mesma. Mas ele estava fazendo um ótimo trabalho de convencê-la de que a desejava por outros motivos além de financeiros. Ela apreciava isso.
Forçando-se a sorrir, olhou para o homem enigmático e encantador que poderia muito bem se tornar seu marido. Vossa Graça, pensou. Era assim que Westcliff teria de chamá-la quando St.
Vincent herdasse o título. Primeiro ela seria Lady St. Vincent e depois a duquesa de Kingston.
Estaria em uma posição social superior à de Westcliff e nunca o deixaria se esquecer disso. Vossa Graça, repetiu confortando-se com as sílabas. Vossa Graça...
Depois que St. Vincent a deixou para ir à corrida de cavalos, Lillian voltou para a mansão. O
fato de que seu futuro enfim estivesse tomando forma deveria tê-la aliviado, mas em vez disso ela estava cheia de uma rígida determinação. Entrou na casa, que estava calma e silenciosa. Depois das últimas semanas vendo o lugar cheio de gente, era estranho andar pelo hall vazio. Nos corredores, a quietude só era interrompida pela ocasional passagem de um criado solitário.
Parando perto da biblioteca, Lillian olhou de relance para a grande sala. Pela primeira vez estava vazia. Ela entrou no ambiente acolhedor com galerias superiores e inferiores e prateleiras que continham mais de 10 mil livros. O ar estava repleto dos cheiros de pergaminho e couro. Os poucos espaços não ocupados por livros continham gravuras e mapas emoldurados. Ela decidiu encontrar um livro para si mesma, um de poesias leves ou um romance frívolo. Mas, diante dos milhares de lombadas de couro, era difícil saber exatamente onde estavam os romances.
Ao passar pelas prateleiras, Lillian descobriu fileiras de livros de história, cada um com peso suficiente para esmagar um elefante. Depois vieram os mapas e então uma grande coleção de textos matemáticos que curaria os casos mais graves de insônia. Perto do fim de uma parede, fora instalado um aparador em um nicho junto às estantes. Em cima havia uma grande bandeja de prata gravada com uma coleção de bonitas garrafas e licoreiras. A garrafa mais bonita, feita de vidro moldado em um padrão de folhas, estava semicheia de um líquido transparente. Dentro dela, uma pera chamou sua atenção.
Erguendo a garrafa, Lillian a examinou de perto e girou suavemente o líquido até a pera subir e girar com o movimento. Uma pera dourada conservada à perfeição. Aquilo devia ser uma espécie de eau-de-vie, como os franceses chamavam... “água da vida”, uma aguardente destilada de uvas, ameixas ou frutos de sabugueiro. Ao que parecia, peras também.
Lillian ficou tentada a experimentar a intrigante bebida, mas as damas nunca tomavam bebidas fortes. Ainda mais sozinhas na biblioteca. Se fossem flagradas, seria muito ruim. Por outro lado... todos os cavalheiros estavam na corrida de cavalos, as damas tinham ido para a vila e a maioria dos criados tirara o dia de folga.
Lillian olhou de relance para o vão da porta vazio e depois para a tentadora garrafa. Um relógio no console da lareira batia urgentemente no silêncio. De repente ela ouviu a voz de lorde St. Vincent em sua cabeça... Pedirei permissão ao seu pai para cortejá-la.
– Ah, droga – murmurou, e se curvou para procurar uma taça no armário sob o aparador.
CAPÍTULO 17
– Milorde.
Ao ouvir a voz de seu mordomo, Marcus, que estava sentado à sua escrivaninha, ergueu os olhos com as sobrancelhas franzidas. Nas duas últimas horas estivera trabalhando no aperfeiçoamento de uma lista de recomendações que seria apresentada ao Parlamento mais tarde naquele ano por um comitê que ele se comprometera a ajudar. Se as recomendações fossem aceitas, isso resultaria em uma grande melhora nas casas, ruas e nos sistemas de drenagem de Londres e seus distritos.
– Sim, Salter – falou, aborrecido com a interrupção.
O velho mordomo da família sabia que não devia incomodá-lo quando estava trabalhando a menos que o assunto fosse muito importante.
– Há... uma situação, milorde, da qual estou certo de que gostaria de ser informado.
– Que tipo de situação?
– Envolve um dos hóspedes, milorde.
– Sim? – perguntou Marcus, irritado com a reserva do mordomo. – Quem é? E o que ele estava fazendo?
– Temo que seja “ela”, milorde. Um dos criados acabou de me informar que viu a Srta.
Bowman na biblioteca e ela... não está bem.
Marcus se levantou tão depressa que quase derrubou a cadeira.
– Qual Srta. Bowman?
– Eu não sei, milorde.
– O que quer dizer com “não está bem”? Há alguém com ela?
– Creio que não, milorde.
– Ela está machucada? Está doente?
Salter lhe lançou um olhar um pouco aflito.
– Não, milorde. Só... não está bem.
Sem querer perder tempo com mais perguntas, Marcus saiu da sala praguejando em voz baixa e se dirigiu à biblioteca com passos largos que por pouco não se transformaram em uma corrida.
O que podia ter acontecido com Lillian ou a irmã dela? Ele logo se viu consumido pela preocupação.
Enquanto percorria rapidamente os corredores, muitos pensamentos irrelevantes lhe passaram pela cabeça. Como a casa parecia cavernosa sem os convidados, com seus quilômetros de assoalhos e infinitos cômodos. Uma casa grande e antiga com a atmosfera impessoal de um hotel. Uma casa como essa precisava de gritos alegres de crianças ecoando nos corredores, brinquedos espalhados pelo piso do salão e sons estridentes de aulas de violino vindos da sala de música. Marcas nas paredes e chás da tarde com tortas de geleia pegajosas e aros de brinquedo sendo rolados no terraço.
Até agora Marcus nunca tinha considerado a ideia de se casar como algo além de um dever necessário para preservar a linhagem Marsden. Mas nos últimos tempos lhe ocorrera que seu futuro poderia ser muito diferente de seu passado. Poderia ser um novo começo – uma chance de criar o tipo de família com a qual nunca ousara sonhar. Surpreendeu-o perceber quanto queria isso – e não com qualquer mulher. Não com qualquer mulher que já havia conhecido ou visto ou da qual ouvira falar... a não ser uma que era o extremo oposto do que ele deveria querer. E estava começando a não se importar mais com isso...
Ele fechou as mãos até os nós dos dedos ficarem brancos e apressou o passo. Pareceu demorar uma eternidade para chegar à biblioteca. Quando passou pela porta, seu coração batia forte... em um ritmo que não tinha nada a ver com o esforço, mas com pânico. O que viu o fez parar no meio da grande sala.
Lillian estava na frente de uma fileira de livros com uma pilha deles ao seu redor no chão.
Tirava raros volumes das prateleiras um a um, os examinava com uma expressão intrigada e depois os jogava para trás. Parecia estranhamente lânguida, como se estivesse se movendo debaixo d’água. E seus cabelos se soltavam dos grampos. Não parecia doente. Na verdade, parecia...
Tornando-se consciente da presença dele, Lillian olhou por cima de seu ombro com um sorriso torto.
– Ah, é você – disse com a voz arrastada. Ela voltou a se concentrar nas prateleiras. – Não consigo encontrar nada. Todos esses livros são tão mortalmente entediantes...
Franzindo a testa de preocupação, ele se aproximou de Lillian, que continuava a tagarelar e procurar livros.
– Este não... nem este... ah não, não, não, este nem mesmo é em inglês.
O pânico de Marcus logo se transformou em indignação, seguida de divertimento. Maldição.
Se precisava de mais provas de que Lillian Bowman não servia para ele, agora as tinha. A esposa de um Marsden nunca entraria escondida na biblioteca e beberia até ficar, como diria a mãe dele, “ligeiramente embriagada”. Olhando para os olhos escuros sonolentos e o rosto corado de Lillian, Marcus corrigiu a frase. Lillian não estava embriagada. Estava totalmente bêbada.
Mais livros voaram pelos ares, um deles quase atingindo a orelha de Marcus.
– Talvez eu possa ajudar – sugeriu Marcus em um tom agradável, parando do lado dela. – Se me disser o que está procurando.
– Algo romântico. Algo com um final feliz. Sempre deveria haver um final feliz, não é?
Marcus estendeu a mão para arrumar um cacho solto dos cabelos de Lillian, deslizando o polegar pelos fios sedosos e brilhantes. Nunca havia se considerado um homem com um sentido de tato particularmente apurado, mas parecia impossível não tocá-la quando ela estava por perto.
O prazer que lhe proporcionava o simples contato com Lillian incendiava seus nervos.
– Nem sempre – respondeu ele.
Lillian deu uma gargalhada.
– Como você é inglês! Como todos vocês gostam de sofrer com sua... sua... – Ela olhou para o livro que segurava, distraída pelo dourado na capa –... arrogância – completou, desatenta.
– Nós não gostamos de sofrer.
– Gostam, sim. No mínimo, fazem o possível para evitar se alegrarem com qualquer coisa.
A essa altura, Marcus estava ficando acostumado com a mistura única de luxúria e divertimento que Lillian sempre conseguia lhe proporcionar.
– Não há nada de errado em manter as próprias alegrias privadas.
Lillian deixou cair o livro que segurava e se virou para ele. A brusquidão do movimento resultou em um desequilíbrio que a fez cambalear para trás e bater contra a estante, mesmo Westcliff pondo as mãos em sua cintura para firmá-la. Seus olhos puxados brilharam como diamantes espalhados sobre veludo marrom.
– Isso não tem nada a ver com privacidade – informou-lhe. – A verdade é que vocês não querem ser felizes, por... – Ela deu um pequeno soluço. – Porque isso abalaria sua dignidade. Pobre Westcliff. – Ela o olhou com compaixão.
Naquele momento, preservar sua dignidade era a última coisa que passava pela cabeça de Marcus. Ele se apoiou na moldura da estante dos dois lados de Lillian, envolvendo-a no semicírculo de seus braços. Ao lhe sentir o hálito, balançou a cabeça e murmurou: – Criança... o que você andou bebendo?
– Ah... – Ela passou por baixo do braço de Westcliff e se virou para o aparador a alguns centímetros de distância. – Vou lhe mostrar... uma coisa maravilhosa, maravilhosa... isto. –
Triunfante, pegou uma garrafa de aguardente quase vazia no aparador, segurando-a pelo gargalo.
– Olhe o que fizeram... puseram uma pera dentro! Não é incrível? – Trazendo a garrafa para perto do rosto, estreitou os olhos para observar a fruta aprisionada. – No início, não foi muito bom. Mas melhorou depois de algum tempo. Acho que é só se acostumar com o g... – outro delicado soluço –... gosto.
– Parece que você conseguiu se acostumar – observou Marcus, seguindo-a.
– Não vai contar para ninguém, vai?
– Não – prometeu ele. – Mas acho que, mesmo assim, ficarão sabendo. A menos que consigamos deixá-la sóbria nas próximas duas ou três horas, antes que voltem. Lillian, meu anjo... quanto havia na garrafa quando você começou?
Ela lhe mostrou a garrafa e pôs o dedo a um terço do fundo.
– Estava aí quando eu comecei, eu acho. Ou talvez aí. – Lillian olhou tristemente para a garrafa. – Agora tudo o que restou foi a pera. – Ela a girou, fazendo a rechonchuda fruta deslizar.
– Quero comê-la – anunciou.
– Não é para ser comida. Só está aí para impregnar... Lillian, dê-me a maldita garrafa.
– Eu vou comê-la. – Lillian se afastou dele, trôpega, enquanto sacudia a garrafa com crescente determinação. – Se ao menos eu conseguir tirá-la...
– Não vai conseguir. É impossível.
– Impossível? – zombou, inclinando-se para encará-lo. – Você tem criados capazes de arrancar o cérebro de uma cabeça de vitela, mas que não conseguem tirar uma pequena pera de uma garrafa? Duvido. Chame um deles. É só assoviar e... ah, esqueci. Você não sabe assoviar. – Ela se concentrou em Westcliff, estreitando os olhos enquanto observava a boca do conde. – Essa é a coisa mais idiota que eu já ouvi. Todo mundo sabe assoviar. Vou lhe ensinar. Agora mesmo. Faça um biquinho com os lábios. Assim. Faça... está vendo?
Marcus a segurou nos braços quando ela cambaleou. Olhando para o adorável biquinho que Lillian estava fazendo, sentiu um calor insistente lhe invadindo o coração, transbordando e ultrapassando todas as suas frágeis defesas. Deus, estava cansado de lutar conta seu desejo por ela.
Era exaustivo lutar contra algo tão incontrolável. Como tentar não respirar.
Lillian o olhou seriamente, parecendo intrigada com a recusa dele.
– Não, assim não. Assim. – A garrafa caiu no tapete. Ela ergueu as mãos para os lábios de Westcliff e tentou moldá-los com os dedos. – Ponha a língua na beira dos dentes e... isso tudo depende da língua. Se for ágil com ela, será um... – Lillian foi temporariamente interrompida quando Westcliff lhe cobriu a boca com um breve e ávido beijo – ... um ótimo assoviador.
Milorde, não consigo falar quando me... – Ele a beijou de novo, saboreando o gosto doce deixado pela aguardente.
Lillian se apoiou em Westcliff, impotente, deslizando os dedos para os cabelos dele, sentindo sua respiração lhe tocar o rosto em ondas rápidas e delicadas. Uma maré de urgência sexual o atingiu enquanto o beijo se aprofundava e se transformava em uma total compulsão. A lembrança do encontro deles no jardim secreto o perseguira durante dias... a delicadeza da pele sob suas mãos, os seios pequenos e bonitos, a força sedutora das pernas de Lillian. Westcliff desejou senti-la enroscada nele, as mãos lhe agarrando as costas, os joelhos ao redor dos quadris... a sedosa e úmida carícia do corpo de Lillian enquanto se movia dentro dela.
Lillian chegou a cabeça para trás e o fitou com olhos indagadores, seus lábios úmidos e vermelhos. Deixou as mãos nos cabelos de Westcliff, as pontas dos dedos chegando aos ângulos marcados das maçãs do rosto em delicadas carícias que causaram arrepios na pele quente dele.
Westcliff inclinou a cabeça, esfregando o queixo na palma da mão pálida e macia de Lillian.
– Lillian – sussurrou –, tentei deixá-la em paz. Mas não posso mais. Nas últimas duas semanas tive de me conter mil vezes para não procurá-la. Não importa quanto eu diga a mim mesmo que você é a mais inadequada... – Ele parou quando ela de repente se esquivou, contorcendo-se e esticando o pescoço para olhar para o chão. – Não importa o que eu... Lillian, você está me ouvindo? O que diabos está procurando?
– Minha pera. Eu a deixei cair e... ah, lá está.
Ela se soltou de Westcliff, ficou de quatro e estendeu o braço para debaixo de uma cadeira.
Pegando a garrafa, sentou-se no chão e a segurou no colo.
– Lillian, esqueça a maldita pera.
– Como você acha que ela entrou aí? – Ela enfiou o dedo no gargalo da garrafa. – Não entendo como algo tão grande pode entrar em um buraco tão pequeno.
Marcus fechou os olhos para conter uma onda de irritação e respondeu com uma voz rouca:
– Eles... eles a puseram diretamente na árvore. A fruta cresce... dentro.
Abriu os olhos e os fechou de novo ao vê-la introduzir o dedo cada vez mais fundo na garrafa.
– Cresce... – forçou-se a continuar –, até ficar madura.
Lillian pareceu muito impressionada com a afirmação.
– Eles fazem isso? Essa é a coisa mais inteligente, inteligente... uma pera em sua própria pequena... ah, não.
– O que foi? – perguntou Marcus por entre os dentes cerrados.
– Meu dedo está preso.
Ele abriu os olhos depressa e, em choque, viu Lillian puxando o dedo preso.
– Não consigo tirá-lo – disse ela.
– É só puxar.
– Dói. Está latejando.
– Puxe com mais força.
– Não consigo. Está preso mesmo. Preciso de algo para fazê-lo escorregar. Você tem algum tipo de lubrificante à mão?
– Não.
– Nenhum?
– Por mais que isso possa surpreendê-la, nunca precisei de um lubrificante na biblioteca.
Lillian o olhou com as sobrancelhas franzidas.
– Antes de começar a me criticar, Westcliff, devo salientar que não sou a primeira pessoa a prender o dedo em uma garrafa. Isso acontece o tempo todo.
– Acontece? Deve estar se referindo aos americanos. Porque nunca vi um inglês prender o dedo em uma garrafa. Nem mesmo um bêbado.
– Eu não estou bêbada, só estou... para onde está indo?
– Fique aqui – murmurou Marcus, saindo a passos largos.
No corredor, avistou uma criada se aproximando com um balde cheio de panos e produtos de limpeza. A moça de cabelos escuros ficou paralisada ao vê-lo, intimidada com a expressão carrancuda do conde. Marcus tentou se lembrar do nome dela.
– Meggie – disse laconicamente. – É esse o seu nome, não é?
– Sim, milorde – respondeu Meggie, abaixando os olhos.
– Tem sabão ou cera nesse balde?
– Sim, milorde – respondeu ela, confusa. – A governanta me disse para encerar as cadeiras da sala de bilhar...
– Do que é feita? – interrompeu ele, desejando saber se continha ingredientes cáusticos. Vendo a crescente perplexidade dela, esclareceu: – A cera, Meggie.
Ela arregalou os olhos diante do estranho interesse do patrão pela substância mundana.
– Cera de abelha – disse, insegura. – E suco de limão e uma ou duas gotas de óleo.
– Só isso?
– Sim, milorde.
– Bom – disse ele, assentindo. – Dê-me isso, se não se importa.
Surpresa, ela procurou dentro do balde, pegou um pequeno pote de cera amarela e o entregou a ele.
– Milorde, se quiser que eu encere alguma coisa...
– Não, isso é tudo, Meggie. Obrigado.
Ela fez uma pequena mesura e o observou se afastando, como se ele tivesse enlouquecido.
Ao voltar para a biblioteca, Marcus viu Lillian deitada de costas no tapete. Seu primeiro pensamento foi que ela devia ter desmaiado, mas ao se aproximar viu que ela estava segurando com sua mão livre um longo cilindro de madeira e espiando por um dos lados.
– Eu o encontrei – exclamou Lillian, triunfante. – O caleidoscópio. É muuuuito interessante.
Mas não é bem o que eu esperava.
Silenciosamente, ele estendeu o braço, tirou o instrumento da mão de Lillian, o virou e o devolveu para que olhasse pelo outro lado.
Ela imediatamente deu um suspiro de assombro.
– Ah, isso é lindo... Como funciona?
– Uma extremidade contém painéis de vidro prateado estrategicamente posicionados e então...
Sua voz sumiu quando Lillian virou a coisa em sua direção.
– Milorde – disse ela com séria preocupação, olhando para ele através do cilindro –, tem três... cem... olhos.
Ela foi sacudida por um ataque de riso até deixar o caleidoscópio cair.
Marcus se ajoelhou ao seu lado e disse laconicamente:
– Dê-me a sua mão. Não, não essa. A que está com a garrafa.
Lillian continuou deitada de costas enquanto Marcus passava cera na parte exposta do dedo.
Ele a esfregou até onde a garrafa se fechava ao redor da pele. Aquecida pelo calor de sua mão, a cera perfumada exalou um forte aroma de limão que Lillian inalou com prazer.
– Ah, eu gosto disso.
– Consegue puxar o dedo agora?
– Ainda não.
Ele untou os próprios dedos e continuou a passar a cera oleosa no dedo de Lillian e na boca da garrafa. Ela relaxou com o suave movimento, parecendo se contentar em ficar deitada, observando-o.
Marcus a olhou, achando difícil resistir ao desejo de subir no corpo inclinado dela e beijá-la loucamente.
– Importa-se de me dizer por que estava bebendo aguardente de pera no meio da tarde?
– Porque não consegui abrir o xerez.
Ele torceu os lábios.
– O que eu quis dizer foi: por que estava bebendo?
– Ah, bem, eu estava me sentindo um pouco... tensa. E achei que isso poderia me ajudar a relaxar.
Marcus esfregou a base do dedo dela com suaves movimentos em círculos.
– Por que estava se sentindo tensa?
Lillian desviou o rosto do dele.
– Não quero falar sobre isso.
– Hum.
Ela se virou novamente para o conde, estreitando os olhos.
– O que quis dizer com isso?
– Não quis dizer nada.
– Quis dizer, sim. Esse não foi um “hum” comum. Foi um “hum” de desaprovação.
– Eu só estava especulando.
– Diga-me qual é o seu palpite – desafiou-o Lillian. – Seu melhor palpite.
– Acho que tem algo a ver com St. Vincent. – Pela sombra que viu passar pelo rosto dela, Westcliff viu que seu palpite estava correto. – Conte-me o que aconteceu – pediu, observando-a com atenção.
– Sabe – disse ela em um tom sonhador, ignorando o pedido dele –, você não é nem de longe tão bonito quanto lorde St. Vincent.
– Não diga! – disse ele secamente.
– Mas por algum motivo – continuou Lillian – eu nunca quis beijá-lo como beijei você. – Foi bom ela ter fechado os olhos, porque, se tivesse visto a expressão de Westcliff, poderia não ter continuado. – Há algo em você que faz com que eu me sinta terrivelmente perversa. Você me faz querer fazer coisas chocantes. Talvez porque seja tão correto. Sua gravata nunca está torta e seus sapatos sempre estão brilhantes. Suas camisas são muito engomadas. Às vezes, quando olho para você, tenho vontade de arrancar todos os seus botões. Ou queimar suas calças. – Ela riu incontrolavelmente. – Muitas vezes me pergunto: por que é tão sensível a cócegas, milorde?
– Não – disse Marcus com uma voz rouca e o coração batendo com força sob a camisa engomada.
Um desejo intenso fez sua carne se intumescer, seu corpo ansiar por mergulhar na forma feminina esguia estendida na sua frente. Seu fragilizado senso de honra lhe disse que ele não era o tipo de homem que se aproveitaria de uma mulher bêbada. Ela estava indefesa. Era virgem.
Nunca se perdoaria caso se aproveitasse dela nessa condição...
– Funcionou! – Lillian estendeu a mão e a acenou vitoriosamente. – Meu dedo se soltou. – Seus lábios se curvaram em um sorriso triste. – Por que está de cara feia? – Apoiando-se nos ombros de Westcliff, ela se sentou. – Essa pequena ruga entre suas sobrancelhas... me faz querer... – Sua voz falhou enquanto olhava para a testa dele.
– O quê? – sussurrou Marcus, seu autocontrole quase aniquilado.
Ainda apoiada nos ombros dele, Lillian se ajoelhou.
– Fazer isto. – Ela o beijou entre as sobrancelhas.
Marcus fechou os olhos e deu um leve e desesperado gemido. Ele a queria. Não só para se deitar com ela, embora agora esse fosse seu principal pensamento, mas também de outros modos.
Não podia mais negar que, pelo resto da vida, compararia todas as outras mulheres a ela e acharia que em todas faltaria alguma coisa. O sorriso, a língua afiada, o gênio, a risada contagiosa, o corpo e o espírito, tudo em Lillian tinha um efeito agradável nele. Ela era independente, voluntariosa, teimosa... qualidades que a maioria dos homens não desejava em uma esposa. O
fato de ele desejar era tão inegável quanto inesperado.
Só havia dois modos de lidar com a situação. Podia continuar tentando evitá-la, no que até agora fracassara espetacularmente, ou ceder. Ceder... sabendo que ela nunca seria a esposa plácida e adequada que sempre se imaginara tendo. Casando-se com ela, desafiaria um destino escrito para ele antes mesmo de ter nascido.
Nunca teria certeza do que esperar de Lillian. Ela se comportaria de modos que ele nem sempre compreenderia, e reagiria como uma criatura não totalmente domada sempre que ele tentasse controlá-la. Suas emoções eram fortes e sua teimosia era mais forte ainda. Eles brigariam. Ela nunca lhe permitiria ficar confortável demais, calmo demais.
Meu Deus, esse era realmente o futuro que queria?
Sim. Sim. Sim.
Ele esfregou o nariz na curva suave do rosto de Lillian, sentindo o hálito quente de aguardente. Iria possuí-la. Segurou com firmeza a cabeça de Lillian e a guiou para os lábios dele.
Ela emitiu um som inarticulado e correspondeu ao beijo com um entusiasmo nada virginal, uma reação tão doce e ardente que Marcus quase sorriu. Mas o sorriso se desvaneceu com a fricção erótica dos lábios dela. Adorava o modo como Lillian reagia a ele, apreciando-lhe a boca com uma paixão que se igualava à dele. Abaixando-a para o chão, apoiou-a na dobra de seu braço e lhe explorou a boca com carícias de língua profundas e carnais. As saias de Lillian se juntavam entre eles, frustrando suas tentativas mútuas de se aproximarem mais. Contorcendo-se como um gato, Lillian tentou enfiar as mãos dentro do casaco de Marcus. Eles rolaram pelo chão, primeiro com ele por cima, depois invertendo as posições, nenhum dos dois se importando com isso desde que seus corpos ficassem entrelaçados.
Lillian era magra porém forte, seus membros o envolviam, suas mãos percorriam impacientemente as costas dele. Marcus nunca havia sentido tanta excitação na vida, cada célula do seu corpo estava impregnada de calor. Ele tinha de penetrá-la. Tinha de sentir, beijar, acariciar e saborear cada centímetro dela.
Eles rolaram de novo e a sensação de uma perna de cadeira batendo em suas costas o fez recuperar a sanidade por um instante. Marcus percebeu que estavam fazendo amor em uma das salas mais frequentadas da casa. Aquilo não daria certo. Praguejando, puxou Lillian para cima com ele, agarrando-a com força quando ficaram em pé. A boca suave de Lillian procurou a dele, e Marcus resistiu com um riso trêmulo.
– Lillian... – disse com uma voz rouca. – Venha comigo.
– Para onde? – perguntou ela debilmente.
– O andar de cima.
Marcus sentiu pela súbita tensão na espinha de Lillian que ela entendera o que ele pretendia.
A aguardente lhe tirara as inibições, mas não o bom senso. Pelo menos não por completo. Ela levou seus dedos quentes e suaves ao rosto de Westcliff e o olhou intensamente.
– Para a sua cama? – sussurrou.
Quando ele assentiu com um pequeno movimento de cabeça, ela se inclinou e lhe falou contra a boca: – Ah, sim...
Os lábios de Marcus procuraram os de Lillian, inchados pelos beijos. Ela era tão deliciosa, os lábios, a língua... Ele ficou ofegante e usou a pressão das mãos para moldar o corpo dela ao seu.
Cambalearam juntos até Marcus pôr uma das mãos em uma estante próxima para equilibrá-los.
Não conseguia lhe dar beijos profundos o suficiente. Precisava de mais dela. Mais da pele, do cheiro, da pulsação frenética sob sua língua, dos cabelos enrolados em seus dedos. Precisava do corpo nu de Lillian se contraindo e se arqueando sob o seu, do arranhar das unhas dela em suas costas, do clímax a fazendo estremecer enquanto os músculos internos se apertavam ao seu redor. Queria possuí-la rápido, devagar, com força e suavidade... de infinitos modos e com imensa paixão.
De algum modo ele conseguiu erguer a cabeça por tempo suficiente para dizer com a voz rouca: – Ponha os braços ao redor do meu pescoço.
E quando ela obedeceu, ergueu-a contra o peito.
CAPÍTULO 18
Se aquilo era um sonho, pensou Lillian alguns minutos depois, era surpreendentemente lúcido.
Sim, um sonho... ela se apegou a essa ideia. Você podia fazer tudo o que quisesse em um sonho.
Não havia regras, obrigações... só prazer. Ah, o prazer... Marcus despindo-a e se despindo até as roupas de ambos se amontoarem no chão e ele a erguer para uma ampla cama com travesseiros fofos como nuvens e lençóis de linho branco. Era definitivamente um sonho, porque as pessoas só faziam amor no escuro, e a luz do sol da tarde invadia o quarto.
Marcus estava ao seu lado, inclinado sobre ela, a boca brincando com a sua em beijos tão lânguidos e prolongados que Lillian não saberia dizer quando terminava um e começava outro.
Toda a extensão do corpo nu dele se apertava contra o seu com um poder impressionante, a carne firme como aço sob suas mãos enquanto o explorava. Duro e ainda assim sedoso, o corpo ardente dele era uma revelação. Os pelos encaracolados do peito faziam cócegas em seus seios nus enquanto ele se movia sobre ela. Marcus reivindicou cada centímetro de seu corpo em uma lenta e erótica peregrinação de beijos e carícias.
Ela teve a impressão de que o cheiro dele – como o seu – mudara no calor do desejo, adquirindo um toque salgado que impregnava cada respiração de um aroma erótico. Enterrou o rosto no pescoço de Marcus, inalando-o avidamente. Marcus... o Marcus do seu sonho não era um cavalheiro inglês contido, mas um estranho terno e ousado que a chocava com as intimidades que exigia. Virando-a de bruços, ele a mordiscou por toda a espinha, a língua encontrou lugares que a fizeram se contorcer de inesperado prazer. A mão quente dele lhe acariciou as nádegas.
Quando ela sentiu as pontas dos dedos de Marcus explorando a cavidade secreta entre suas coxas, deu um gemido desamparado, começando a se erguer do colchão.
Com um murmúrio, ele a abaixou de novo, separou-lhe os pelos encaracolados e a penetrou com um dedo, provocando e circundando a delicada carne. Ela apoiou um dos lados de seu rosto quente no lençol branco como neve, suspirando de prazer. Marcus ronronou contra sua nuca e foi para cima dela. Lillian sentiu o peso do sexo sedoso dele na parte interna de sua perna enquanto a mão de Marcus brincava em suas coxas com um toque diabolicamente leve e gentil.
Gentil demais. Ela queria mais... queria qualquer coisa... tudo. Seu coração acelerou e ela agarrou o lençol, enrolando-o em suas mãos úmidas. Sentiu uma tensão peculiar em seu interior que a fez se contorcer sob o corpo musculoso de Marcus.
Seus gritos e suspiros pareceram agradá-lo. Marcus a rolou para que ficasse deitada de costas; os olhos dele brilhavam como fogo no escuro.
– Lillian – sussurrou contra sua boca trêmula –, meu anjo, meu amor... dói aqui? – O dedo dele a acariciou por dentro. – Neste lugar suave, vazio... quer que eu o preencha?
– Sim – soluçou ela – contorcendo-se para se aproximar mais dele. – Sim, Marcus, sim...
– Daqui a pouco.
Ele passou a língua sobre o mamilo intumescido de Lillian.
Ela gemeu quando o toque provocante cessou. Perplexa e desesperada, sentiu-o deslizar para mais baixo, mais baixo, saboreando e mordiscando-lhe o corpo tenso até... até...
Atônita, ela prendeu a respiração quando as mãos de Marcus afastaram suas coxas e a língua fria e úmida dele invadiu os pelos encaracolados e molhados. Ela arqueou os quadris contra a boca do conde. Ele não pode, não pode, pensou atordoada, mesmo quando Marcus a lambeu mais fundo, girando a ponta da língua em um lento e sensual tormento que a fez gritar. Ele não ia parar. Concentrou-se na pequena saliência do sexo dela, encontrando um ritmo que fez o corpo de Lillian se incendiar. Em seguida explorou as intricadas dobras até ela gemer à sensação da língua penetrando-a.
– Marcus – Lillian repetia em sussurros entrecortados, como se o nome dele fosse um encantamento erótico. – Marcus...
Com as mãos trêmulas, ela segurou a cabeça dele, tentando empurrar a boca dele para onde precisava. Se tivesse conseguido encontrar as palavras, teria implorado. Subitamente a boca de Marcus deslizou para cima, percorrendo aquela distância pequena mas crucial, sugando e lambendo-a sem misericórdia. Ela deixou escapar um gemido rouco enquanto uma grande onda de êxtase a varria, dominando seus sentidos.
Marcus se ergueu e foi para cima dela, a boca quente lhe beijando as bochechas molhadas.
Lillian o segurou com força, ofegando. Ainda não era o suficiente. Queria mais. Queria o corpo e a alma de Marcus dentro dela. Estendeu a mão desajeitadamente e tocou em toda a extensão o membro rígido dele, guiando-o para a cavidade úmida entre suas coxas.
– Lillian... – Os olhos dele eram como lava derretida. – Se fizermos isso, tem de entender que as coisas mudarão. Teremos de...
– Agora – interrompeu-o ela. – Venha para dentro de mim. Agora.
Com os dedos, ela explorou o sexo dele, da base à ponta inchada. Esfregou o nariz no pescoço forte do conde, mordiscando-o. Em um movimento súbito, ele a pôs deitada de costas e abaixou o corpo sobre o dela. Abriu-lhe as pernas e ela sentiu uma vigorosa pressão entre suas coxas, e seus músculos se enrijeceram à invasão.
Marcus procurou entre os corpos deles e encontrou a saliência do sexo de Lillian; os dedos dele proporcionaram mais prazer à carne sensível até ela se arquear, indefesa. Sufocando um grito de dor e surpresa, Lillian ficou imóvel, as mãos agarradas às costas duras e lisas de Marcus.
Sua carne pulsou violentamente ao redor da dele, e a dor e a sensação de estiramento não diminuíram apesar de sua disposição de aceitá-lo. Murmurando-lhe para relaxar, Marcus ficou parado dentro dela com infinita paciência, tentando não machucá-la. Enquanto ele a abraçava e beijava, Lillian olhou para aqueles olhos escuros e ternos. Quando seus olhares se encontraram, ela sentiu todo o seu corpo relaxando, toda a resistência desaparecendo. Marcus lhe segurou as nádegas, a ergueu e começou a penetrá-la em um ritmo cuidadoso.
– Está tudo bem? – sussurrou.
Gemendo, Lillian pôs os braços ao redor do pescoço dele em resposta. Sua cabeça se inclinou para trás e ela o sentiu beijando seu pescoço enquanto seu corpo se abria totalmente para o quente e escorregadio intruso. Começou a se arquear em busca do prazer e da dor e pareceu que seus movimentos aumentaram o prazer de Marcus. As feições dele se contraíram de excitação enquanto a respiração parecia lhe arranhar a garganta.
– Lillian – disse ele com uma voz rouca, agarrando-lhe as nádegas com mais firmeza. – Meu Deus, eu não posso... Lillian...
Ele fechou os olhos e soltou um gemido rouco enquanto atingia o clímax, com o sexo pulsando dentro dela.
Depois ele começou a se afastar, mas Lillian o agarrou, murmurando:
– Não, ainda não, por favor...
Marcus virou ambos de lado, seus corpos ainda juntos. Relutando em soltá-lo, Lillian pôs sua perna esguia sobre o quadril dele enquanto os dedos de Marcus lhe acariciavam as costas.
– Marcus – sussurrou ela. – Isto é um sonho... não é?
Ela o sentiu sorrir sonolentamente contra sua bochecha.
– Durma – disse, e a beijou.
Quando Lillian abriu os olhos de novo, a luz da tarde diminuíra consideravelmente, e o céu visível através da janela estava tingido de um tom de lavanda. Os lábios de Marcus perambulavam de leve da bochecha para o queixo dela. Ele pôs um braço sob os ombros de Lillian e a sentou um pouco. Desorientada, ela sentiu o cheiro familiar de conde. Estava com a boca e a garganta secas e quando tentou falar sua voz soou áspera:
– Sede.
A borda de uma taça de cristal foi pressionada contra seus lábios e ela bebeu. O líquido estava fresco e tinha gosto de frutas cítricas e mel.
– Mais?
Lillian olhou para o homem que a segurava e viu que ele estava totalmente vestido, com os cabelos penteados e a pele recém-lavada e fresca. Ela estava com a língua grossa e seca.
– Eu sonhei... ah, eu sonhei...
Mas logo ficou claro que aquilo não tinha sido um sonho. Embora Westcliff estivesse devidamente vestido, ela estava nua na cama dele, coberta apenas por um lençol.
– Ah, meu Deus – sussurrou, surpresa e assustada ao perceber o que fizera.
Sua cabeça latejava. Ela apertou com os dedos suas têmporas doloridas.
Westcliff girou uma bandeja na mesa de cabeceira e lhe serviu outra taça do refrescante líquido.
– Está com dor de cabeça? – perguntou. – Achei que poderia estar. Aqui.
Ele lhe entregou um fino pacote de papel que ela abriu com dedos trêmulos. Inclinando a cabeça para trás, despejou o conteúdo amargo no fundo de sua garganta e o engoliu com a bebida adocicada. O lençol escorregou até sua cintura. Corando de vergonha, Lillian o agarrou, sobressaltada. Embora Westcliff não tivesse dito nada, ela viu pela expressão dele que era tarde demais para pudores. Então fechou os olhos e gemeu.
Tirando-lhe a taça, Westcliff a abaixou para o travesseiro e esperou até Lillian conseguir encará-lo de novo. Sorrindo, acariciou-lhe o rosto corado com os nós dos dedos. Desejando que ele não parecesse tão satisfeito consigo mesmo, Lillian franziu a testa.
– Milorde...
– Ainda não. Conversaremos depois que eu cuidar de você.
Ela deu um grito de susto quando ele afastou o lençol de seu corpo, expondo cada centímetro de sua pele.
– Não!
Ignorando-a, ele se ocupou de despejar água fumegante de uma pequena jarra na mesa de cabeceira em uma tigela cor de creme. Mergulhou um pano na água, o torceu e se sentou ao lado de Lillian. Percebendo o que ele pretendia fazer, ela instintivamente afastou a mão dele.
Segurando-a com um sorriso irônico, Westcliff disse:
– Se a esta altura sentir vergonha...
– Está bem. – Corando, Lillian se recostou e fechou os olhos. – Apenas... acabe logo com isso.
O pano quente pressionado contra suas coxas a fez dar um pulo.
– Calma – murmurou ele, banhando suave e cuidadosamente a carne dolorida. – Sinto muito.
Sei que isso dói. Fique deitada, quieta.
Lillian cobriu os olhos com a mão, mortificada demais para vê-lo aplicar outra compressa quente em suas partes íntimas.
– Isso ajuda? – perguntou ele.
Ela assentiu, tensa, sem conseguir emitir nenhum som. Westcliff disse, com uma voz risonha:
– Eu não teria esperado tanto recato de uma garota que anda ao ar livre em roupas de baixo.
Por que está cobrindo os olhos?
– Porque não consigo olhá-lo enquanto você olha para mim – disse ela, e Marcus riu.
Ele removeu a compressa e a mergulhou de novo em água quente.
Lillian espiou por baixo de seus dedos e o viu aplicar de novo o reconfortante pano quente entre suas pernas.
– Deve ter chamado um criado – disse ela. – Ele ou ela viu alguma coisa? Alguém sabe que estou aqui?
– Apenas meu criado pessoal. E ele sabe que não deve dizer nenhuma palavra a ninguém sobre minha...
Quando ele hesitou, obviamente procurando a palavra certa, Lillian disse:
– Proeza?
– Isso não foi uma proeza.
– Um erro, então.
– Independentemente de como o defina, o fato é que temos de lidar com a situação do modo correto.
Aquilo soou muito mal. Tirando a mão dos olhos, Lillian viu que o pano que Westcliff removera estava manchado de sangue. Do sangue dela. Sentiu um vazio no estômago e seu coração bateu em um ritmo ansioso. Toda jovem sabia que se dormisse com um homem fora dos laços do matrimônio, estaria arruinada. A palavra “arruinada” soava definitiva... como se ela estivesse corrompida para sempre. Como uma maçã podre que estraga o que toca.
– Tudo o que temos de fazer é não deixar ninguém descobrir – disse ela. – Vamos fingir que isso nunca aconteceu.
Westcliff puxou o lençol para os ombros de Lillian e se inclinou sobre ela, apoiando as mãos em seus ombros.
– Lillian. Nós dormimos juntos. Não podemos fingir que não aconteceu.
Ela sentiu um súbito pânico.
– Eu posso. Se eu posso, você...
– Eu me aproveitei de você – disse ele, fazendo a pior tentativa que ela já vira de tentar parecer arrependido. – Meus atos foram imperdoáveis. Sendo assim...
– Eu o perdoo – apressou-se em dizer Lillian. – Então está resolvido. Onde estão minhas roupas?
– ... a única solução é nos casarmos.
Um pedido de casamento do conde de Westcliff.
Qualquer mulher solteira da Inglaterra teria chorado de gratidão ao ouvir essas palavras. Mas tudo aquilo parecia errado. Westcliff não estava lhe propondo casamento porque realmente queria, ou porque ela era a mulher que desejava mais do que qualquer outra. Estava fazendo isso por dever.
Lillian se sentou.
– Milorde – perguntou, insegura –, há outro motivo além do fato de termos dormido juntos para ter me pedido em casamento?
– Obviamente você é atraente... inteligente... sem dúvida, terá filhos saudáveis... e há benefícios em uma aliança entre nossas famílias...
Olhando para suas roupas cuidadosamente dobradas sobre uma cadeira perto da lareira, Lillian saiu da cama.
– Tenho de me vestir. – Ela fez uma careta de dor quando seus pés tocaram o chão.
– Vou ajudá-la – disse Marcus, indo a passos largos até a cadeira.
Lillian continuou perto da cama, com os cabelos caindo sobre seus seios e suas costas até a cintura. Trazendo-lhe as roupas e as colocando sobre a cama, Westcliff a varreu com um olhar.
– Como você é adorável! – murmurou.
Ele tocou nos ombros nus de Lillian e desceu com os dedos até os cotovelos dela.
– Sinto muito ter lhe causado dor – disse suavemente. – Não será tão difícil para você da próxima vez. Não quero que tenha medo disso... ou tenha medo de mim. Espero que não ache que eu...
– Medo de você? – disse Lillian sem pensar. – Meu Deus, eu nunca teria.
Westcliff inclinou a cabeça dela para trás e a encarou, e um sorriso se espalhou lentamente pelo seu rosto.
– Não, não teria – concordou. – Você seria capaz de cuspir no olho do demônio, se quisesse.
Sem conseguir saber se o comentário era um elogio ou uma crítica, Lillian se afastou dele, sentindo-se desconfortável. Estendeu a mão para suas roupas e tentou se vestir.
– Eu não quero me casar com você – disse.
Claro que aquilo não era verdade. Mas não podia ignorar a sensação de que não deveria ser assim... não deveria aceitar uma proposta tão obviamente motivada por dever.
– Você não tem escolha – disse Westcliff por trás dela.
– É claro que tenho. Ouso dizer que lorde St. Vincent me aceitará mesmo eu tendo perdido a virgindade. E se ele não aceitar, meus pais dificilmente me atirariam na rua. Estou certa de que ficará aliviado em saber que eu o eximo de qualquer responsabilidade.
Ela pegou suas calçolas na cama e se curvou para vesti-las.
– Por que mencionou St. Vincent? – perguntou ele, ríspido. – Ele a pediu em casamento?
– É tão difícil acreditar nisso? – retorquiu Lillian, amarrando as fitas de suas calçolas. Ela pegou a camisola. – Na verdade, ele pediu permissão para falar com meu pai.
– Você não pode se casar com ele. – Marcus observou com a cara fechada a cabeça e os braços dela emergirem da camisola.
– Por que não?
– Porque agora você é minha.
Ela bufou desdenhosamente, embora sentisse seu coração bater mais forte com a possessividade de Marcus.
– O fato de termos dormido juntos não constitui posse.
– Você pode estar grávida – salientou ele com cruel satisfação. – Neste momento, meu filho pode estar crescendo em seu ventre. Eu diria que isso constitui um tipo de posse.
Lillian sentiu seus joelhos tremerem, embora seu tom se igualasse ao dele em frieza.
– Isso ainda vamos descobrir. Por enquanto, recuso sua proposta. Embora não tenha de fato feito uma proposta, não é? – Ela enfiou uma meia em seu pé descalço. – Foi mais como uma ordem.
– É esse o problema? Eu não ter dito as palavras que você gostaria? – Westcliff balançou a cabeça impacientemente. – Muito bem. Aceita se casar comigo?
– Não.
O rosto dele se tornou ameaçador.
– Por que não?
– Porque termos dormido juntos não é motivo para nos acorrentarmos um ao outro pelo resto de nossas vidas.
O conde arqueou uma sobrancelha com impecável arrogância.
– Para mim é. – Ele pegou o espartilho de Lillian e o entregou a ela. – Nada que você diga ou faça mudará a minha decisão. Vamos nos casar, e em breve.
– Pode ser a sua decisão, mas não é a minha – retorquiu Lillian, prendendo a respiração enquanto ele segurava as fitas e as puxava habilmente. – E eu gostaria de saber o que a condessa dirá quando souber que pretende trazer mais um americano para a família!
– Ela terá um ataque de raiva – respondeu Marcus, atando as fitas do espartilho. – Começará a gritar e depois, provavelmente, desmaiará. E então irá para o continente por seis meses e se recusará a escrever para qualquer um de nós. – Ele fez uma pausa e acrescentou, com alívio: – Como estou ansioso por isso!
CAPÍTULO 19
– Lillian, Lillian, querida... você precisa acordar. Olhe, pedi chá.
Daisy estava ao lado da cama sacudindo gentilmente com sua mão pequena o ombro de Lillian.
Ela resmungou, se mexeu e ergueu os olhos apertados para o rosto da irmã.
– Eu não quero acordar.
– Bem, você precisa. Há coisas acontecendo e achei que você deveria estar preparada.
– Coisas? Que coisas? – Lillian ergueu o corpo e pôs a mão em sua testa dolorida.
Um olhar para o rosto pequeno e preocupado de Daisy fez seu coração bater em um ritmo desagradável.
– Encoste-se no travesseiro – respondeu Daisy –, e lhe darei seu chá. Aqui.
Lillian aceitou a xícara fumegante e fez um esforço para ordenar seus pensamentos, que estavam confusos e dispersos como um novelo de lã desfeito.
Tinha uma vaga lembrança de Marcus a levando furtivamente na noite anterior para o quarto dela, onde um banho quente e uma criada a esperavam. Tinha se banhado, posto uma camisola limpa e ido para a cama antes de sua irmã voltar das festividades na vila. Depois de um sono longo e sem sonhos, poderia ter se convencido de que nada acontecera na véspera, se não fosse pela dor persistente entre suas coxas.
E agora?, perguntou-se, ansiosa. Ele dissera que pretendia se casar com ela. Mas à luz do dia bem que poderia ter mudado de ideia. E ela não estava certa de que era isso que queria. Se fosse para passar o resto da vida se sentindo como um indesejável dever imposto a Marcus...
– Que “coisas” estão acontecendo? – perguntou.
Daisy se sentou na beira da cama, de frente para a irmã. Estava usando um vestido matutino azul e tinha os cabelos presos negligentemente na nuca. Seu olhar preocupado se fixou no rosto cansado de Lillian.
– Umas duas horas atrás, ouvi uma agitação no quarto de nossos pais. Parece que lorde Westcliff pediu ao papai que se encontrasse com ele em particular, acho que na sala Marsden.
Mais tarde papai voltou e espiei para dentro para perguntar o que estava acontecendo. Ele não quis explicar, mas parecia muito nervoso, e mamãe estava tendo um ataque histérico por causa de alguma coisa, rindo e chorando, por isso papai mandou buscar um pouco de bebida para acalmá-la. Não sei sobre o que lorde Westcliff e papai conversaram, mas esperava que você soubesse... –
Daisy se interrompeu ao ver que a xícara de Lillian estava tremendo sobre o pires, e se apressou em tirá-la das mãos fracas da irmã. – Querida, o que foi? Você está tão estranha! Aconteceu alguma coisa ontem? Você fez algo de que lorde Westcliff não gostou?
Lillian fechou a boca com força para não dar uma gargalhada. Nunca se sentira assim, no perigoso limite entre a raiva e as lágrimas. E a raiva venceu.
– Sim, aconteceu – disse. – E agora ele está usando isso para me impor sua vontade, sem considerar a minha. Agir pelas minhas costas e resolver tudo com meu pai... Ah, eu não vou aceitar isso! Não vou!
Daisy arregalou os olhos.
– Você montou um dos cavalos de lorde Westcliff sem permissão? Foi isso?
– Se eu... Meu Deus, não. Se fosse só isso! – Lillian enterrou o rosto vermelho nas mãos. – Eu dormi com ele. – Sua voz passou pelo frio filtro de seus dedos. – Ontem, quando todos saíram da propriedade.
Um chocado silêncio se seguiu à pronta confissão.
– Você... mas... mas não vejo como poderia ter...
– Eu estava bebendo aguardente na biblioteca – disse Lillian. – E ele me encontrou. Uma coisa levou a outra e então fui para o quarto dele.
Daisy digeriu a informação com muda perplexidade. Tentou falar, tomou um gole do chá descartado por Lillian e pigarreou:
– Devo supor que quando você diz que dormiu com ele foi mais do que um cochilo?
Lillian lhe lançou um olhar contundente.
– Daisy, não seja boba.
– Você acha que ele terá um comportamento honrado e a pedirá em casamento?
– Ah, sim – disse Lillian, amarga. – Ele transformará o “comportamento honrado” em uma grande e boa clava com que baterá na minha cabeça até eu me render.
– Ele disse que a ama? – ousou perguntar Daisy.
Lillian bufou desdenhosamente.
– Não, ele não disse nenhuma palavra sobre isso.
Daisy franziu a testa, intrigada.
– Lillian... você tem medo de que ele só a queira por causa do perfume?
– Não, eu... ah, meu Deus, eu nem tinha pensado nisso, estou muito confusa... – Gemendo, ela pegou o travesseiro mais próximo e o pôs sobre o rosto como se pudesse se asfixiar. O que, naquele momento, não parecia tão ruim.
Por mais que o travesseiro fosse grosso, não abafou totalmente a voz de Daisy.
– Você quer se casar com ele?
A pergunta causou uma pontada de dor no coração de Lillian. Atirando o travesseiro para o lado, ela murmurou:
– Não dessa maneira! Não com ele tomando a decisão sem considerar meus sentimentos ou dizendo que só vai fazer isso porque fui comprometida.
Daisy refletiu sobre as palavras da irmã.
– Eu não acredito que lorde Westcliff vá dizer isso – disse. – Ele não parece o tipo de homem que levaria uma garota para a cama ou se casaria com ela se não quisesse.
– Se ao menos ele se importasse com o que eu quero! – disse Lillian, de cara feia.
Ela saiu da cama e se dirigiu ao lavatório, onde seu rosto cansado se refletiu no espelho.
Despejou água da jarra na bacia, jogou-a no rosto e esfregou a pele com um pano quadrado macio. Uma fina nuvem de pó de canela se ergueu no ar quando abriu a pequena lata e mergulhou sua escova de dentes dentro. O sabor forte acabou com a sensação pastosa e o gosto amargo em sua boca, e ela a enxaguou vigorosamente até seus dentes ficarem limpos e lisos como vidro.
– Daisy – disse, olhando por cima do seu ombro –, você faria uma coisa para mim?
– Sim, é claro.
– Não quero falar com mamãe ou papai agora. Mas tenho de saber se Westcliff realmente pediu minha mão. Se você conseguisse descobrir...
– Não diga mais nada – respondeu Daisy de pronto, andando a passos largos para a porta.
Quando Lillian terminou suas abluções matinais e vestiu um roupão branco de cambraia sobre a camisola, sua irmã mais nova voltou.
– Não foi preciso perguntar – disse Daisy, pesarosa. – Papai não estava lá, mas mamãe estava olhando para um copo de uísque e cantarolando a marcha nupcial. E ela parecia em êxtase. Eu diria que, sem dúvida, ele pediu.
– O canalha – murmurou Lillian. – Como ousa me deixar de fora de tudo, como se não dissesse respeito a mim? – Ela estreitou os olhos. – Gostaria de saber o que ele está fazendo agora.
Provavelmente garantindo que tudo ficará bem amarrado. O que significa que a próxima pessoa com quem falará é...
Lillian se interrompeu com um som inarticulado, a raiva fervendo dentro dela até parecer fumegar de seus poros. Sendo o desgraçado controlador que era, Westcliff nem mesmo a deixaria pôr fim pessoalmente à amizade com lorde St. Vincent. Não lhe permitiria a dignidade de uma despedida adequada. Não, Westcliff cuidaria de tudo sozinho enquanto ela seria deixada indefesa como uma criança diante das maquinações dele.
– Se Westcliff está fazendo o que acho que está – rosnou –, vou abrir o cérebro dele com um atiçador de lareira!
– O quê? – A perplexidade de Daisy era evidente. – O que você acha que ele... não, Lillian, você não pode sair do quarto em roupas de dormir! – Ela foi até a porta e sussurrou enquanto sua irmã mais velha andava furiosamente pelo corredor. – Lillian! Por favor, volte! Lillian!
As bainhas da camisola e do roupão brancos de Lillian ondulavam às suas costas como a vela de um navio enquanto ela andava altivamente pelo corredor e descia a escada principal. Ainda era cedo o suficiente para a maioria dos hóspedes estar na cama. Mas Lillian estava furiosa demais para se importar se a vissem. Ela passou por alguns criados perplexos. Quando chegou ao escritório de Marcus, ofegava. A porta estava fechada. Sem hesitação, abriu-a com força, fazendo-a bater na parede enquanto atravessava o limiar.
Como suspeitara, Marcus estava lá com lorde St. Vincent. Ao serem interrompidos, os dois homens se viraram na direção dela.
Lillian olhou para o rosto impassível de St. Vincent.
– O que ele lhe contou? – perguntou, sem preâmbulos.
Adotando uma expressão neutra e simpática, St. Vincent respondeu brandamente:
– O suficiente.
Ela desviou seu olhar para o rosto impenitente de Marcus, percebendo que dera a informação para St. Vincent com a eficiência letal de um cirurgião de campo de batalha. Tendo decidido seu rumo, tentava agressivamente garantir a vitória.
– Você não tinha nenhum direito – disse ela, fervendo de raiva. – Não vou ser manipulada, Westcliff!
Tentando parecer relaxado, St. Vincent se afastou da escrivaninha e foi até ela.
– Eu não a aconselharia a andar por aí em roupas de dormir, doçura – murmurou. – Aqui, permita-me lhe oferecer meu...
Mas Marcus já havia se aproximado de Lillian por trás e posto seu casaco ao redor dos ombros dela, escondendo as roupas de dormir do olhar do outro homem. Irritada, ela tentou tirar o casaco. Marcus o fixou nos ombros de Lillian e puxou o corpo rígido dela para o seu.
– Não faça papel de boba – disse-lhe ao ouvido.
Ela se contorceu furiosamente, tentando se libertar.
– Solte-me! Quero falar com lorde St. Vincent. Ele e eu merecemos isso. E se tentar me impedir, farei isso pelas suas costas.
Relutante, Marcus a soltou e se manteve afastado, com os braços cruzados sobre o peito.
Apesar de sua aparente compostura, Lillian sentiu a presença de uma emoção forte dentro dele, algo que ainda não conseguia controlar.
– Então fale – disse o conde.
Pela rigidez de seu maxilar, era óbvio que não tinha nenhuma intenção de lhes dar um momento de privacidade.
Lillian refletiu que poucas mulheres seriam estúpidas o suficiente para achar que conseguiriam lidar com essa criatura arrogante e obstinada, e temeu ser uma delas. Estreitou os olhos e o encarou.
– Por favor, tente não interromper – pediu, e depois lhe deu as costas.
Mantendo sua fachada impassível, St. Vincent se apoiou na escrivaninha. Lillian franziu a testa, pensativa, desejando muito que ele entendesse que não tivera nenhuma intenção de enganá-lo.
– Milorde. Por favor, me perdoe. Eu não pretendia...
– Doçura, não há nenhuma necessidade de se desculpar. – St. Vincent a observou com tamanhas calma e atenção que pareceu ler os pensamentos dela. – Não fez nada de errado. Sei muito bem como é fácil seduzir uma inocente. – Depois de uma pausa deliberada, acrescentou suavemente: – Pelo visto, Westcliff também sabe.
– Olhe aqui... – começou Marcus, irritando-se.
– Isso é o que acontece quando tento ser um cavalheiro – interrompeu-o St. Vincent. Ele estendeu a mão para tocar um longo cacho de cabelo no ombro de Lillian. – Se eu tivesse recorrido às minhas táticas costumeiras, a esta altura já a teria seduzido dez vezes, e você seria minha. Mas parece que confiei demais no aclamado senso de honra de Westcliff.
– Eu tive tanta culpa quanto ele – disse Lillian, determinada a ser honesta. Contudo, viu pela expressão de St. Vincent que ele não acreditava nela.
Em vez de discutir isso, ele soltou o cacho, inclinou sua cabeça para a de Lillian e perguntou:
– Amor, e se eu lhe dissesse que ainda a quero, apesar do que houve entre vocês dois?
Lillian não conseguiu esconder seu espanto com a pergunta.
Atrás dela, Marcus pareceu não conseguir mais manter silêncio, e sua voz rangeu de irritação:
– O que você quer é irrelevante, St. Vincent. O fato é que agora ela é minha.
– Em virtude de um ato sem importância? – contrapôs St. Vincent friamente.
– Milorde – disse Lillian para St. Vincent –, não... não foi sem importância para mim. E é possível que haja consequências. Eu não poderia me casar com um homem carregando o filho de outro.
– Meu amor, isso acontece o tempo todo. Eu aceitaria a criança como minha.
– Não vou mais ouvir isso – grunhiu Westcliff em advertência.
Ignorando-o, Lillian olhou para St. Vincent em um claro pedido de desculpas.
– Eu não poderia. Sinto muito. A sorte foi lançada, milorde, e não posso fazer nada para mudar isso. Mas... – Impulsivamente, ela estendeu o braço e lhe ofereceu sua mão. – Mas, apesar do que aconteceu, espero que continuemos a ser amigos.
Com um sorriso curioso, St. Vincent apertou a mão dela antes de soltá-la.
– Só há uma circunstância em que eu posso me imaginar lhe recusando algo... doçura. E não é essa. É claro que continuarei seu amigo. – Olhando por cima da cabeça dela, retribuiu o olhar de Westcliff com um sorriso sombrio que prometia que o assunto ainda não estava encerrado. – Não acredito que eu vá ficar pelos dias de festa que restam – disse tranquilamente. – Embora eu não queira que minha partida precipitada dê margem a fofocas, não estou certo de que conseguirei esconder meu... desapontamento. Por isso talvez seja melhor eu ir embora. Sem dúvida, teremos muito que conversar na próxima vez que nos encontrarmos.
Marcus observou com os olhos apertados o outro homem sair e fechar a porta atrás dele.
No irritado silêncio que se seguiu, o conde remoeu pensamentos sobre os comentários de St.
Vincent.
– Só há uma circunstância em que eu posso me imaginar lhe recusando algo... o que ele quis dizer?
Lillian se virou para olhá-lo, furiosa.
– Não sei nem quero saber! Você se comportou de um modo abominável e St. Vincent é dez vezes mais cavalheiro do que você!
– Não diria isso se soubesse algo sobre ele.
– Sei que ele me tratou com respeito, enquanto você me olha como um fantoche que pode manipular de um lado para outro...
Quando Marcus a tomou nos braços, ela bateu fortemente com os dois punhos no peito dele.
– Você não seria feliz com ele – disse o conde, ignorando as tentativas de Lillian de se soltar como se ela fosse um gatinho que pudesse ser segurado pelo pescoço.
O casaco que pusera ao redor de seus ombros caiu no chão.
– E por que acha que eu ficaria melhor com você?
Ele segurou os pulsos de Lillian e lhe torceu os braços nas costas, dando um gemido de surpresa quando ela pisou com força em seu dedo do pé.
– Porque você precisa de mim – respondeu, prendendo a respiração quando ela se contorceu contra ele. – Como eu preciso de você. – Ele pressionou sua boca contra a de Lillian. – Eu preciso de você há anos.
Outro beijo, dessa vez profundo e inebriante, a língua a explorando intimamente.
Ela poderia ter continuado a lutar com Marcus se ele não tivesse feito algo que a surpreendeu.
Soltou-lhe os pulsos e a envolveu em um quente e terno abraço. Desprevenida, ela ficou imóvel, com o coração batendo loucamente.
– Também não foi um ato sem importância para mim – disse Marcus num sussurro rouco que fez cócegas na orelha de Lillian. – Ontem enfim percebi que todas as coisas que eu achava erradas em você eram as que mais me atraíam. E não me importa o que você faça, desde que a agrade. Correr descalça no gramado. Comer pudim com os dedos. Mandar-me para o inferno quantas vezes quiser. Eu a quero como você é. Afinal de contas, é a única mulher, fora minhas irmãs, que já ousou dizer na minha cara que sou um idiota arrogante. Como eu poderia resistir a você? – Ele moveu a boca para a bochecha macia de Lillian. – Minha amada Lillian – sussurrou, empurrando a cabeça dela para trás para lhe beijar as pálpebras. – Se eu tivesse o dom da poesia, a cumularia de sonetos. Mas sempre tive dificuldade com as palavras quando meus sentimentos são mais fortes. E há uma palavra em particular que não consigo lhe dizer... “adeus”. Eu não suportaria vê-la se afastando de mim. Se você não se casar comigo pela própria honra, que o faça por todos que teriam de me suportar se me rejeitasse. Case-se comigo porque preciso de alguém que me ajude a rir de mim mesmo. Porque alguém tem de me ensinar a assoviar. Case-se comigo, Lillian... porque sou totalmente fascinado por suas orelhas.
– Minhas orelhas?
Perplexa, Lillian o sentiu abaixar a cabeça para lhe mordiscar o lóbulo rosado.
– Hum. As mais perfeitas que já vi.
Enquanto ele passava a língua dentro da cavidade da orelha, deslizou a mão da cintura para o seio de Lillian, apreciando a forma livre do espartilho. Ela se tornou muito consciente da própria nudez sob a camisola enquanto ele lhe tocava o seio, curvando os dedos sobre o monte macio até o mamilo se intumescer em sua palma.
– Isto também – murmurou Marcus. – Perfeitos... – Concentrado em acariciá-la, ele desabotoou os pequenos botões da camisola.
Lillian sentiu seu pulso acelerar, a respiração se tornar ofegante com a dele. Lembrou-se da rigidez do corpo de Marcus roçando nela quando fizeram amor, do encaixe perfeito entre eles, das contrações dos músculos e tendões sob suas mãos. Sua pele formigou à lembrança das carícias e hábeis explorações da boca e dos dedos dele, que a tinham feito tremer de desejo. Não admirava que ele fosse tão frio e racional durante o dia – guardava toda a sua sensualidade para a hora de ir para a cama.
Perturbada com a proximidade de Marcus, ela lhe segurou os pulsos. Ainda tinham muito a discutir... questões importantes demais para qualquer um deles ignorar.
– Marcus, não – disse, ofegante. – Agora não. Isso só confunde mais as coisas e...
– Para mim torna tudo claro.
Ele deslizou as mãos para os dois lados do rosto de Lillian, segurando-lhe as bochechas com ansiedade e delicadeza. Seus olhos eram muito mais escuros do que os dela, apenas um leve brilho âmbar revelando que não eram pretos, mas castanhos.
– Beije-me – sussurrou Marcus, sua boca encontrando a dela e se apossando do lábio superior e depois do inferior em carícias que a fizeram se arrepiar até os pés.
O chão pareceu se mover sob Lillian e ela agarrou os ombros de Marcus para se equilibrar.
Ele a beijou com mais força, a úmida pressão a desorientando com um novo choque de prazer.
Sem parar de beijá-la, ele a ajudou a pôr os braços ao redor de seu pescoço, acariciou-lhe os ombros e as costas e, quando ficou evidente que as pernas dela estavam tremendo, deitou-a sobre o chão atapetado. Sua boca perambulou para o seio de Lillian, cobrindo o mamilo enquanto o lambia através da fina cambraia branca. Ela viu cores ofuscantes, vermelho, azul e dourado, e percebeu que estavam deitados sob um raio de sol que se infiltrava pela fileira de janelas de vitral retangulares. A luz lhe tingiu a pele de muitos tons, como se ela estivesse debaixo de um arco-íris.
Marcus segurou a frente da camisola dela, puxando-a impacientemente dos dois lados até os botões se soltarem e se espalharem sobre o tapete. Seu rosto parecia diferente: mais suave, mais jovem, a pele corada de desejo. Ninguém jamais a havia olhado daquela maneira, com um enlevo e um ardor que a faziam se esquecer de todo o resto. Inclinando-se sobre o seio exposto, Marcus lambeu a pele branca até encontrar o mamilo rosado, e fechou a boca ao seu redor.
Lillian ofegou e empurrou o corpo para cima, sentindo necessidade de envolvê-lo por completo. Procurou a cabeça de Marcus, seus dedos deslizando para os fartos cabelos pretos.
Entendendo a súplica silenciosa, ele lhe mordiscou o mamilo, usando a língua com torturante suavidade. Uma das mãos do conde ergueu a frente da camisola e depois deslizou até a barriga de Lillian, a ponta do dedo anelar circundando delicadamente o umbigo. Um desejo febril a consumiu enquanto ela se contorcia no lago de cores formado pela luz que vinha da janela. Os dedos de Marcus deslizaram mais para baixo, para a beira dos pelos encaracolados e sedosos, e ela soube que assim que ele tocasse a pequena saliência semioculta nas dobras de seu sexo, ela atingiria o clímax.
Subitamente, ele afastou a mão e Lillian gemeu em protesto. Praguejando, Marcus a escondeu sob seu corpo, puxando o rosto dela para seu ombro no instante em que a porta se abriu.
Por um momento de paralisado silêncio cortado apenas por sua respiração ofegante, Lillian espiou através do esconderijo do corpo de Marcus. Apavorada, viu que alguém estava em pé ali.
Era Simon Hunt. Ele segurava um livro contábil e algumas pastas presas com uma fita preta.
Chocado, Hunt olhou para o casal no chão. Louvavelmente, conseguiu se recompor, embora isso devesse ter sido difícil. O conde de Westcliff, eterno defensor da moderação e do autocontrole, era o último homem que Hunt esperaria ver rolando no chão do escritório com uma mulher de camisola.
– Desculpe-me, milorde – disse Hunt em uma voz controlada. – Não esperava que estivesse...
reunido... com alguém a esta hora.
Marcus lhe lançou um olhar feroz.
– Da próxima vez bata na porta.
– Tem razão, é claro. – Hunt abriu a boca para acrescentar algo, pareceu pensar melhor e depois pigarreou. – Vou deixá-lo terminar sua... conversa. – Mas ao sair da sala não conseguiu evitar olhar para trás e perguntar enigmaticamente a Marcus: – Uma vez por semana, foi o que disse?
– Feche a porta ao sair – disse Marcus, e Hunt obedeceu com um som abafado que pareceu o de uma risada.
Lillian manteve o rosto no ombro de Marcus. Por mais envergonhada que tivesse ficado no dia em que ele a vira jogando rounders em roupas de baixo, isso era dez vezes pior. Ela nunca mais conseguiria encarar Simon Hunt de novo, pensou, e gemeu.
– Está tudo bem – murmurou Marcus. – Ele vai ficar de boca fechada.
– Não importa para quem ele conte – conseguiu dizer Lillian. – Eu não vou me casar com você. Nem se me comprometer cem vezes.
– Lillian – disse ele com um súbito tremor de riso na voz –, eu teria o maior prazer em comprometê-la cem vezes. Mas primeiro gostaria de saber o que fiz de tão imperdoável esta manhã.
– Para começar, foi falar com o meu pai.
Ele ergueu de leve as sobrancelhas.
– Isso a ofendeu?
– Como poderia não ofender? Você se comportou do modo mais arrogante possível agindo pelas minhas costas e tentando acertar as coisas com meu pai sem me dizer uma única palavra...
– Espere – disse Marcus, rolando para o lado e se sentando agilmente. – Eu não estava sendo arrogante quando fui falar com seu pai. Estava seguindo a tradição. Um possível noivo costuma falar primeiro com o pai da moça antes de fazer o pedido de casamento formal. – Um tom levemente cáustico permeou sua voz quando ele acrescentou: – Até mesmo nos Estados Unidos.
A menos que eu esteja mal informado.
O relógio no console da lareira assinalou uma lenta passagem de trinta segundos antes de Lillian conseguir responder, contrariada:
– Sim, é assim que isso costuma ser feito. Mas julguei que você já havia assumido um compromisso de noivado, independentemente de isso ser o que eu quero ou não...
– Seu julgamento foi errado. Nós não discutimos nenhum detalhe de um noivado nem mencionamos nada sobre dote ou data de casamento. Tudo o que eu fiz foi pedir permissão ao seu pai para cortejá-la.
Lillian o olhou com envergonhada surpresa até lhe ocorrer outra pergunta:
– E quanto à conversa que acabou de ter com lorde St. Vincent?
Foi a vez de Marcus parecer envergonhado.
– Isso foi arrogante – admitiu. – Talvez eu devesse me desculpar, mas não vou. Eu não podia correr o risco de St. Vincent convencê-la a se casar com ele e não comigo. Então achei necessário avisá-lo de que deveria ficar longe de você.
Marcus fez uma pausa antes de continuar, e Lillian notou uma hesitação incomum nele.
– Alguns anos atrás – prosseguiu, sem olhar nos olhos de Lillian –, St.Vincent se interessou por uma mulher com quem eu estava... envolvido. Eu não estava apaixonado por ela, mas com o passar do tempo era possível que ela e eu...
Ele parou e balançou a cabeça.
– Não sei o que teria resultado desse relacionamento. Nunca tive a oportunidade de descobrir. Quando St. Vincent começou a persegui-la, ela me deixou por ele. – Seus lábios se curvaram em um sorriso triste. – Como era de esperar, St. Vincent se cansou dela algumas semanas depois.
Lillian olhou compassivamente para a linha severa do perfil dele. Não havia nenhum traço de raiva ou autopiedade naquela curta declaração, mas ela sentiu que a experiência o magoara. Para um homem que valorizava tanto a lealdade quanto Marcus, a traição de um amigo e a infidelidade de uma amante deviam ter sido difíceis de suportar.
– E ainda assim continuou amigo dele? – perguntou ela, suavizando a voz.
Marcus respondeu em um tom cuidadoso e monótono. Era óbvio que ele achava difícil falar sobre assuntos pessoais.
– Toda amizade tem suas cicatrizes. E acredito que se St. Vincent tivesse entendido a força dos meus sentimentos por ela, não a teria perseguido. Contudo, neste caso não pude deixar o passado se repetir. Você é... importante... demais para mim.
Lillian sentira ciúme do fato de Marcus ter sentimentos por outra mulher... e então seu coração deu um pulo ao se perguntar que significado deveria atribuir à palavra “importante”.
Marcus tinha a aversão inata dos ingleses a demonstrar emoções. Mas ela percebeu que ele estava tentando muito abrir seu coração. Talvez um pouco de encorajamento produzisse alguns resultados surpreendentes.
– Já que obviamente St. Vincent leva vantagem sobre mim em aparência e charme – continuou Marcus, calmo –, achei que eu só poderia equilibrar a balança com pura determinação.
Foi por isso que me encontrei com ele esta manhã para lhe dizer...
– Não, você está errado – protestou Lillian, incapaz de se conter.
Marcus lhe lançou um olhar indagador.
– O que disse?
– Ele não leva vantagem sobre você – informou-lhe Lillian, corando ao descobrir que não era mais fácil para ela do que para ele abrir seu coração. – Você é encantador quando quer. E quanto à sua aparência...
Corou ainda mais, a ponto de sentir que irradiava calor.
– ... Eu o acho muito atraente – disse num impulso. – Eu... eu sempre achei. Não teria dormido com você na noite passada se não o quisesse, não importa quanto tivesse bebido.
Um súbito sorriso curvou os lábios de Marcus. Ele estendeu a mão para a camisola aberta, fechou-a com gentileza e acariciou com os nós dos dedos a superfície rosada do pescoço de Lillian.
– Então devo presumir que suas objeções a se casar comigo se baseiam mais na ideia de ser forçada do que em rejeição pessoal?
Absorta no prazer das carícias dele, Lillian o encarou, confusa.
– Hum?
Ele deixou escapar uma agradável risada.
– O que eu estou perguntando é se você consideraria se tornar minha esposa se eu lhe prometesse que não seria forçada a isso?
Ela assentiu.
– Eu... eu poderia considerar. Mas se vier a se comportar como um homem da Idade Média e tentar me intimidar...
– Não, não vou tentar intimidá-la – garantiu Marcus, sério, embora Lillian visse um brilho de divertimento nos olhos dele. – É óbvio que essas táticas não funcionariam. Ao que parece, encontrei meu par perfeito.
Apaziguada pela afirmação, Lillian sentiu que relaxava um pouco. Não protestou nem quando Marcus estendeu o braço para pô-la no colo. Uma cálida mão deslizou por baixo de sua camisola até seu quadril em um toque mais confortador do que sensual. Marcus a olhou fixamente.
– Casamento é uma sociedade – disse. – E como nunca entrei em uma sociedade comercial sem primeiro negociar os termos, faremos o mesmo nesta situação. Só você e eu, em particular.
Sem dúvida, haverá alguns pontos de divergência, mas você descobrirá que sou muito bom em negociações.
– Meu pai insistirá em ter a palavra final sobre o dote.
– Eu não estava falando de assuntos financeiros. O que quero de você é algo que seu pai não pode negociar.
– Pretende discutir coisas como... nossas expectativas em relação um ao outro? E onde moraremos?
– Exatamente.
– E se eu lhe dissesse que não quero residir neste país... ou que prefiro Londres a Hampshire... concordaria em morar em Marsden Terrace?
Ele a olhou com ar indagador ao responder:
– Eu faria algumas concessões a respeito disso. Embora nesse caso tivesse de voltar frequentemente para administrar a propriedade. Devo deduzir que você não gosta de Stony Cross Park?
– Ah, não. É que... Eu gosto muito. Minha pergunta foi hipotética.
– Mesmo assim, está acostumada aos prazeres da vida urbana.
– Eu gostaria de morar aqui – insistiu Lillian, pensando na beleza de Hampshire, nos rios e nas florestas, nos prados onde podia se imaginar brincando com seus filhos, na vila com seus personagens excêntricos e lojistas e nas festas locais, que animavam o ritmo tranquilo da vida rural. E na própria mansão, grandiosa e ainda assim íntima, e em todos os nichos e cantos onde se aninharia em dias chuvosos... ou noites de amor.
Corou mais uma vez ao refletir que o dono de Stony Cross Park era, de longe, a atração mais irresistível do lugar. A vida com esse homem vigoroso nunca seria monótona, não importava onde eles morassem.
– É claro – continuou Lillian, enfática – que eu estaria mais do que disposta a residir em Hampshire se pudesse voltar a cavalgar.
A declaração foi seguida de uma risada incontida.
– Mandarei um cavalariço selar Estrelado para você esta manhã mesmo.
– Ah, obrigada – disse ela com sarcasmo. – Dois dias antes do fim dos festejos na propriedade me dará permissão para cavalgar. Por que agora? Porque dormi com você na noite passada?
Um lento sorriso curvou os lábios de Marcus e ele pôs a mão furtivamente no quadril de Lillian.
– Você deveria ter dormido comigo semanas atrás. Eu teria lhe transferido todo o controle da propriedade.
Lillian mordeu a parte interna de suas bochechas para não sorrir.
– Entendo. Nesse casamento eu seria obrigada a realizar favores sexuais sempre que quisesse algo de você.
– De forma alguma. Embora... – um brilho provocador surgiu nos olhos dele – ... seus favores me deixem de bom humor.
Marcus estava relaxado, flertando e brincando com ela como nunca o vira fazer. Lillian era capaz de apostar que poucas pessoas reconheceriam o honrado conde de Westcliff no homem deitado no tapete com ela. Quando ele a acomodou melhor em seus braços e lhe acariciou a panturrilha, terminando com um gentil aperto no fino tornozelo, ela sentiu um prazer que foi muito além da sensação física. Sua paixão por ele parecia residir dentro de seus ossos.
– Acha que nós nos daríamos bem? – perguntou Lillian em dúvida, ousando brincar com o nó da gravata dele e afrouxando a seda cinza com as pontas dos dedos. – Somos diferentes em quase tudo.
Marcus inclinou a cabeça e esfregou o nariz na parte interna macia do pulso dela, roçando os lábios nas veias azuis entrelaçadas como renda sob a pele.
– Estou começando a acreditar que me casar com uma mulher idêntica a mim seria a pior decisão que eu poderia tomar.
– Talvez tenha razão – ponderou Lillian, deslizando os dedos para os cachos curtos e brilhantes do conde. – Você precisa de uma esposa que não o deixe sempre fazer as coisas a seu modo. Alguém que...
Ela parou ao sentir um pequeno arrepio quando a língua de Marcus tocou em um ponto delicado na parte interna de seu cotovelo.
– ... que – prosseguiu, tentando ordenar seus pensamentos – esteja disposta a fazê-lo descer um pouco de seu pedestal quando for pretensioso demais...
– Eu nunca sou pretensioso – disse Marcus, afastando a camisola do pescoço de Lillian.
Ela prendeu a respiração quando ele começou a beijar sua clavícula.
– Como você se definiria quando se comporta como se soubesse tudo e achasse quem discorda de você um idiota?
– Na maioria das vezes, as pessoas que discordam de mim são idiotas. Não controlo isso.
Ela soltou uma risada ofegante e apoiou de novo a cabeça no braço de Marcus enquanto ele roçava a boca em seu pescoço.
– Quando vamos negociar? – perguntou, surpresa pela rouquidão na própria voz.
– Esta noite. No meu quarto.
Ela o olhou com ceticismo.
– Isso não seria uma artimanha para me pôr em uma situação em que se aproveitaria inescrupulosamente de mim?
Afastando-se para olhar para ela, Marcus respondeu, sério:
– É claro que não. Pretendo ter uma conversa importante com você que porá fim a quaisquer dúvidas que possa ter sobre se casar comigo.
– Ah.
– E depois me aproveitar inescrupulosamente de você.
O sorriso de Lillian ficou preso entre os lábios deles enquanto Marcus a beijava. Ela percebeu que era a primeira vez que tinha ouvido Marcus fazer um comentário devasso. Em geral ele era austero demais para exibir o tipo de irreverência que era tão natural para ela. Talvez esse fosse um pequeno sinal de sua influência sobre ele.
– Mas por enquanto – disse Marcus – tenho de resolver um problema logístico.
– Qual? – perguntou Lillian, mudando um pouco de posição ao se dar conta da excitação do corpo dele sob o seu.
Ele acariciou os lábios de Lillian, massageando-os em todo o seu contorno. Como se não conseguisse se conter, roubou um último beijo. As carícias profundas e sensuais da boca do conde causaram um formigamento nos lábios dela que se espalhou por todo o seu corpo até ela ficar ofegante e fraca nos braços dele.
– Levá-la de volta para o andar de cima antes que a vejam de camisola – sussurrou Marcus.
CAPÍTULO 20
Não ficou claro se tinha sido Daisy quem “abrira o bico”, como se dizia em Nova York, ou se a notícia fora espalhada por Annabelle, que talvez tivesse sido informada pelo marido da cena no escritório. Tudo o que Lillian teve certeza, ao se juntar às outras Flores Secas para um lanche leve na sala do café da manhã, foi de que elas sabiam. Dava para ver em seus rostos – no sorriso envergonhado de Evie, no ar conspirador de Daisy e na calma estudada de Annabelle. Lillian corou e evitou o olhar coletivo ao se sentar à mesa. Sempre mantivera uma fachada cínica, usando-a como escudo contra o constrangimento, o medo e a solidão... mas naquele momento se sentia estranhamente vulnerável.
Foi Annabelle que quebrou o silêncio:
– Até agora esta manhã foi tão tediosa! – Ela levou a mão graciosamente à boca para esconder um falso bocejo. – Espero que alguém consiga animar a conversa. Por acaso têm alguma fofoca para contar? – Seu olhar provocador se fixou no rosto desconcertado de Lillian. Um criado se aproximou para encher a xícara de Lillian com chá e Annabelle esperou até ele se afastar da mesa para prosseguir: – Você apareceu tarde esta manhã, querida. Não dormiu bem?
Lillian estreitou os olhos ao observar sua alegre e brincalhona amiga enquanto ouvia Evie tomar um gole do seu chá.
– Na verdade, não.
Annabelle sorriu, parecendo radiante.
– Por que não me conta suas novidades, Lillian, e depois contarei as minhas? Embora eu duvide que as minhas sejam tão interessantes.
– Parece que vocês já sabem de tudo – murmurou Lillian, tentando disfarçar o constrangimento com um longo gole de chá.
Depois de queimar a língua, ela pousou a xícara e se forçou a encarar Annabelle, cujos olhos tinham se suavizado e revelavam divertimento e solidariedade.
– Você está bem, querida? – perguntou a amiga, em tom gentil.
– Não sei – admitiu Lillian. – Não me sinto eu mesma. Estou feliz e animada, mas também com um pouco de...
– Medo? – murmurou Annabelle.
A Lillian de um mês atrás teria preferido ser torturada lentamente até a morte a admitir ter um momento de medo... mas ela se viu assentindo.
– Não gosto de me sentir vulnerável a um homem que não é conhecido por sua sensibilidade ou sua compaixão. É óbvio que nossos temperamentos não combinam muito bem.
– Mas você sente atração física por ele? – perguntou Annabelle.
– Infelizmente, sim.
– Por que infelizmente?
– Porque seria muito mais fácil me casar com um homem por quem eu sentisse uma amizade desinteressada em vez de... de...
As três mulheres se inclinaram para Lillian, atentas.
– E-em vez de quê? – perguntou Evie, com os olhos arregalados.
– Em vez de uma paixão ardente, dilacerante, assustadora e indecente.
– Ah, meu Deus – disse Evie, recostando-se em sua cadeira enquanto Annabelle sorria e Daisy olhava para ela com extasiada curiosidade.
– Isso por um homem cujos beijos eram apenas “passáveis”? – perguntou Annabelle.
Lillian curvou os lábios em um sorriso enquanto olhava para o fundo da xícara.
– Quem diria que um tipo tão rígido e conservador pode ser tão diferente no quarto?
– Com você, acho que ele não pôde evitar – observou Annabelle.
Lillian ergueu o olhar.
– Por que está dizendo isso? – perguntou com cautela, temendo por um momento que Annabelle estivesse se referindo aos efeitos de seu perfume.
– No momento em que você entra em uma sala, o conde fica muito mais animado. É óbvio que está fascinado por você. É difícil para qualquer pessoa ter uma conversa com ele quando está tentando ouvir o que você diz e observando todos os seus movimentos.
– Ele faz isso? – Satisfeita com a informação, Lillian tentou parecer indiferente. – Por que nunca me contou antes?
– Eu não queria me intrometer, porque parecia haver uma possibilidade de você preferir as atenções de lorde St. Vincent.
Lillian estremeceu e apoiou a testa na mão. Ela contou sobre a cena mortificante entre ela, Marcus e St. Vincent naquela manhã, enquanto elas reagiam com solidariedade e igual desconforto.
– A única coisa que me impede de sentir compaixão por lorde St. Vincent – disse Annabelle – é a certeza de que ele partiu muitos corações e causou muitas lágrimas no passado, por isso é justo que saiba como é ser rejeitado.
– Apesar disso, eu me sinto como se o tivesse enganado – disse Lillian, com uma pontada de culpa. – E ele foi muito elegante em relação a isso. Não disse nem uma palavra de reprovação.
Não pude evitar apreciá-lo.
– Tenha c-cuidado – sugeriu Evie suavemente. – Pelo que ouvi sobre lorde St. Vincent, não é típico dele ceder com tanta facilidade. Se ele se aproximar de você, prometa que não aceitará ir com ele sozinha a lugar nenhum.
Lillian olhou com um sorriso para sua amiga preocupada.
– Evie, você parece muito cética. Muito bem, eu prometo. Mas não há nenhuma necessidade de se preocupar. Não acredito que lorde St. Vincent seja tolo o suficiente para tornar inimigo alguém tão poderoso quanto o conde. – Desejando mudar de assunto, ela voltou sua atenção para Annabelle. – Agora que eu contei minhas novidades, está na hora de você contar as suas.
Com os olhos dançando e a luz do sol se movendo sobre seus cabelos claros e sedosos, Annabelle parecia uma menina de 12 anos. Ela olhou para o lado para confirmar que não seriam ouvidas.
– A melhor é que tenho quase certeza de que estou grávida – sussurrou. – Andei tendo sinais... náuseas e sonolência... e este é o segundo mês em que minha menstruação não vem.
Todas elas ficaram boquiabertas de alegria e Daisy estendeu o braço furtivamente sobre a mesa para apertar a mão de Annabelle.
– Querida, que notícia maravilhosa! O Sr. Hunt sabe?
O sorriso de Annabelle se tornou triste.
– Ainda não. Quero ter certeza absoluta antes de contar a ele. E quero esconder o máximo possível.
– Por quê? – perguntou Lillian.
– Porque, assim que ele souber, vai se tornar tão superprotetor que não me deixará ir a lugar algum sozinha.
Sabendo como Simon Hunt era e da apaixonada preocupação dele com tudo o que dizia respeito a Annabelle, as Flores Secas assentiram em silêncio. Quando Hunt soubesse da chegada do bebê pairaria sobre a esposa grávida como um falcão.
– Que vitória! – exclamou Daisy, mantendo a voz baixa. – Uma Flor Seca no ano passado e mãe este ano. Tudo está correndo muito bem para você, querida.
– E Lillian é a próxima – acrescentou Annabelle com um sorriso.
Os nervos de Lillian, que estavam à flor da pele, formigaram com uma mistura de prazer e alarme ao ouvir aquelas palavras.
– O que foi? – perguntou Daisy em voz baixa enquanto as outras duas conversavam animadamente sobre o bebê. – Você parece preocupada. Tem dúvidas? Acho que isso é natural.
– Se eu me casar com ele, com certeza, vamos brigar como cão e gato – disse Lillian, nervosa.
Daisy sorriu.
– Será que não está se fixando demais nas diferenças? Desconfio que você e o conde são mais parecidos do que imagina.
– E como poderíamos ser parecidos?
– Apenas reflita sobre isso – aconselhou-a sua irmã mais nova com um sorriso. – Estou certa de que pensará em algo.
Tendo chamado a mãe e a irmã para se reunirem com ele na sala Marsden, Marcus estava diante delas com as mãos cruzadas nas costas. Via-se na estranha posição de confiar em seu coração em vez de seguir a razão. Isso não era típico de um Marsden. A família era conhecida por sua longa linhagem de antepassados frios e práticos, com a exceção de Aline e Livia. Quanto a Marcus, havia seguido o padrão característico dos Marsdens... até Lillian Bowman entrar em sua vida com a sutileza de um furacão.
Mas o compromisso que estava assumindo com a obstinada jovem lhe dava uma sensação de paz que nunca tivera. Um sorriso divertido repuxou os pequenos músculos de seu rosto enquanto ele se perguntava como contar à mãe que ela enfim teria uma nora – que era a última moça que a condessa escolheria para essa posição.
Livia estava sentada em uma cadeira próxima enquanto a condessa, como sempre, ocupava o canapé. Marcus não pôde evitar se surpreender com a diferença nos olhares delas, o da irmã, cordial e esperançoso, e o da mãe, desagradável e desconfiado.
– Agora que interrompeu meu descanso do meio-dia – disse a condessa com sarcasmo –, peço-lhe que me diga o que deseja, milorde. Que notícias tem a dar? Que assunto é tão importante para me chamar em uma hora tão inconveniente? Uma carta inconsequente sobre aquele moleque da sua irmã, suponho. Bem, desembuche!
Marcus enrijeceu o maxilar. Toda a vontade de dar a notícia de um modo gentil desapareceu com a referência cruel ao seu sobrinho. Subitamente ele sentiu grande satisfação com a perspectiva de informar à mãe que todos os netos dela, inclusive o futuro herdeiro ao título, seriam meio americanos.
– Estou certo de que ficará feliz em saber que segui seu conselho e enfim escolhi uma noiva – disse em um tom calmo. – Embora ainda não tenha feito o pedido de casamento formal, tenho bons motivos para acreditar que ela aceitará quando o fizer.
A condessa pestanejou, surpresa, perdendo um pouco de sua compostura.
Livia o olhou com um sorriso indagador. Havia um súbito prazer perverso nos olhos dela que fez Marcus pensar que a irmã tinha um palpite sobre a identidade da noiva.
– Que ótimo – disse Livia. – Finalmente encontrou alguém que o aguentará, Marcus?
Ele lhe sorriu de volta.
– Parece que sim. Embora eu ache que convém apressar os planos do casamento antes que ela recupere o juízo e fuja.
– Besteira – disse a condessa, severa. – Nenhuma mulher fugiria à perspectiva de se casar com o conde de Westcliff. Você tem o título mais antigo da Inglaterra. No dia em que se casar, concederá à sua esposa mais dignidades aristocráticas do que qualquer outra cabeça não coroada na face da Terra. Agora, diga-me quem escolheu.
– A Srta. Lillian Bowman.
A condessa bufou de desgosto.
– Chega de brincadeiras bobas, Westcliff. Diga-me o nome da moça.
Livia se agitou de satisfação. Dando um sorriso radiante para Marcus, inclinou-se para a mãe e disse em um sussurro bastante audível:
– Acho que ele está falando sério, mãe. É mesmo a Srta. Bowman.
– Não pode ser! – A condessa pareceu horrorizada. Era quase possível ver os vasos capilares sob suas bochechas. – Exijo que desista dessa loucura, Westcliff, e recupere o juízo. Não aceitarei essa criatura detestável como nora!
– Terá de aceitar – disse Marcus, inexorável.
– Você poderia escolher qualquer moça daqui ou do continente... moças com linhagem e criação aceitáveis...
– É a Srta. Bowman que eu quero.
– Ela nunca se encaixará no molde de uma esposa Marsden.
– Então o molde terá de ser mudado.
A condessa deu uma risada áspera, e o som foi tão desagradável que Livia agarrou os braços da cadeira para não pôr as mãos nos ouvidos.
– Que loucura foi essa que o acometeu? Aquela garota Bowman é uma desclassificada! Como pode pensar em impor aos seus filhos uma mãe que solapará nossas tradições, desprezará nossos costumes e zombará das boas maneiras básicas? Para que lhe serviria uma esposa dessas? Meu Deus, Westcliff! – A enraivecida mulher fez uma pausa para tomar fôlego. Olhando para Marcus e para Livia, explodiu: – Qual é a fonte da obsessão infernal desta família por americanos?
– Essa é uma pergunta interessante, mãe – disse Livia. – Por alguma razão, nenhum de seus filhos suporta a ideia de se casar com alguém da nossa classe. Por que será, Marcus?
– Acho que a razão não seria lisonjeira para nenhum de nós – foi a resposta sarcástica dele.
– Você tem a obrigação de se casar com uma moça de boa estirpe – gritou a condessa, contraindo o rosto. – O único motivo da sua existência é preservar a linhagem familiar, o título e os bens para seus herdeiros. E até agora você fracassou totalmente nisso.
– Fracassou? – interrompeu-a Livia com os olhos chispando. – Desde que papai morreu, Marcus quadruplicou a fortuna da família, para não falar em como melhorou a vida de todos os criados e arrendatários nesta propriedade. Ele patrocinou causas humanitárias no Parlamento e gerou empregos para mais de cem homens no ramo de locomotivas. Além disso, é o melhor irmão que alguém poderia...
– Livia – murmurou Marcus –, não precisa me defender.
– Sim, eu preciso! Depois de tudo o que você fez para todo mundo, por que não deveria se casar com uma moça de sua escolha, e eu poderia acrescentar que é uma moça espirituosa e adorável, sem ter de aturar os discursos bobos de nossa mãe sobre linhagem familiar?
A condessa lançou um olhar malévolo para a filha mais nova.
– Você não está qualificada para participar de nenhuma discussão sobre linhagem familiar, menina, já que nem pode se considerar uma Marsden. Ou devo lembrá-la de que você foi o resultado de uma aventura de uma única noite com um lacaio? O finado conde não teve alternativa senão aceitá-la para não ser tachado de cornudo, mas ainda assim...
– Livia – Marcus interrompeu a mãe, lacônico, estendendo a mão para a irmã, que ficara pálida.
A notícia estava longe de ser uma surpresa para ela, mas até então a condessa nunca ousara dizer aquilo abertamente. Livia se levantou na mesma hora e se aproximou do irmão; seus olhos brilhavam no rosto pálido. Marcus pôs um braço protetor ao redor de suas costas e a puxou para perto enquanto murmurava em seu ouvido:
– É melhor você ir agora. Há coisas que precisam ser ditas, e não quero que seja apanhada no fogo cruzado.
– Está tudo bem – disse Livia com apenas um leve tremor na voz. – Não me importo com as coisas que ela diz... Há muito tempo ela perdeu o poder de me magoar.
– Mas eu me importo por você – respondeu ele, gentil. – Vá procurar seu marido, Livia, e deixe que ele a conforte enquanto eu cuido da condessa.
Livia ergueu os olhos para o irmão, com o rosto muito mais calmo.
– Farei isso – disse. – Embora não precise de conforto.
– Boa garota. – Ele lhe beijou o alto da cabeça.
Surpresa com a demonstração de afeto, Livia riu e deu um passo para trás.
– O que vocês estão cochichando? – perguntou a condessa, irritada.
Marcus a ignorou enquanto levava a irmã até a porta e a fechava silenciosamente atrás dela.
Quando se virou para encarar a condessa, sua expressão era severa.
– As circunstâncias do nascimento de Livia não refletem o caráter dela – disse. – Refletem o seu. Não me importo nem um pouco com seu caso amoroso com o lacaio ou a gravidez... mas me importo muito com o fato de envergonhar minha irmã por isso. Livia viveu a vida toda à sombra do seu erro e pagou caro por suas indulgências passadas.
– Não me desculparei por minhas necessidades – disparou a condessa. – Na ausência de afeto por parte de seu pai, tive de obter meus prazeres onde pudesse encontrá-los.
– E deixou Livia carregar o peso da culpa. – Os lábios de Marcus se contraíram. – Embora eu tenha testemunhado como ela foi maltratada e negligenciada quando era criança, na época não pude fazer nada para protegê-la. Mas agora posso. Esse assunto nunca mais será mencionado a ela. Nunca. Está me entendendo?
Apesar do timbre calmo de sua voz, a fúria vulcânica de Marcus devia ter sido transmitida para a mãe, porque ela não protestou nem discutiu. Só engoliu em seco e assentiu.
Um minuto se passou enquanto ambos punham em ordem suas emoções. A condessa foi a primeira a lançar uma ofensiva:
– Westcliff, já lhe ocorreu que seu pai teria desprezado essa garota Bowman e tudo o que ela representa?
Marcus a olhou inexpressivamente.
– Não – respondeu por fim –, não me ocorreu.
Seu finado pai estava ausente de seus pensamentos havia tanto tempo que Marcus não se perguntara que impressão lhe causaria Lillian Bowman. O fato de sua mãe achar que isso poderia ter importância para ele era espantoso.
Presumindo que tinha lhe dado um motivo para pensar melhor, a condessa o pressionou com crescente determinação:
– Você sempre quis agradá-lo e com frequência conseguiu, embora ele raramente tivesse reconhecido isso. Talvez não acredite em mim quando digo que, acima de tudo, seu pai queria o melhor para você. Queria transformá-lo em um homem digno do título, um homem poderoso de quem nunca ninguém tiraria vantagem. Um homem como ele. E em boa parte foi bem-sucedido.
As palavras visavam adular Marcus, mas tiveram o efeito oposto, como o de uma machadada no peito.
– Não, não foi – disse ele com a voz rouca.
– Você sabe que tipo de mulher ele desejaria que lhe desse netos – disse a condessa. – A garota Bowman é indigna de você, Westcliff, indigna de seu nome e de seu sangue. Imagine um encontro entre eles dois... ela e seu pai. Você sabe como ele a teria detestado.
Marcus de repente imaginou Lillian confrontando o demônio do seu pai, que aterrorizava todos que encontrava. Não tinha a menor dúvida de que Lillian teria reagido ao velho conde com sua costumeira irreverência. Ela não o teria temido nem por um segundo.
Diante do longo silêncio de Marcus, a condessa falou em um tom mais suave:
– É claro que ela tem seus encantos. Entendo muito bem a atração que aqueles de uma classe inferior podem exercer sobre nós. Às vezes despertam nosso desejo pelo exótico. E não é nenhuma surpresa o fato de você, como todos os homens, ansiar por variedade em suas buscas de mulheres. Se a quiser, pode possuí-la. A solução é óbvia. Depois que ambos estiverem casados com outras pessoas, poderão ser amantes até você se cansar dela. Pessoas da nossa classe social sempre encontram amor fora do casamento, e você verá que é melhor assim.
A sala estava incomumente silenciosa enquanto a cabeça de Marcus fervilhava com lembranças que lhe corroíam a alma e ecos amargos de vozes havia muito silenciadas. Embora ele desprezasse o papel de mártir e nunca tivesse se visto dessa forma, não podia evitar pensar que, durante a maior parte de sua vida, suas necessidades tinham sido desconsideradas enquanto ele carregava o peso das responsabilidades. Agora, enfim, encontrara uma mulher que oferecia todo o calor humano e o prazer que por tanto tempo lhe foram negados... e, droga, ele tinha o direito de exigir o apoio da família e dos amigos, independentemente das reservas que pudessem ter.
Seus pensamentos se aventuraram em um território mais sombrio enquanto ele pensava nos primeiros anos de sua vida, quando seu pai enviara para longe todos a quem Marcus se sentia ligado. Para ele não se tornar fraco. Para não depender de ninguém além de si próprio. Isso havia estabelecido um padrão de isolamento que regera toda a vida de Marcus até o momento. Só que agora não era mais assim.
Quanto à sugestão da mãe de que ele e Lillian fossem amantes quando ambos estivessem casados com outras pessoas, ela o ofendia até o fundo de sua alma. Isso não seria nada além de uma versão perversa do relacionamento honesto que ambos mereciam.
– Escute-me bem – disse ele quando enfim conseguiu falar. – Antes do início desta conversa, eu estava determinado a torná-la minha esposa. Mas se ainda fosse possível aumentar minha determinação, suas palavras conseguiram fazê-lo. Não duvide de mim quando digo que Lillian Bowman é a única mulher deste mundo com quem eu pensaria em me casar. Os filhos dela serão meus herdeiros ou a linhagem Marsden parará em mim. De agora em diante, minha maior preocupação será com o bem-estar dela. Qualquer palavra, gesto ou ato que ameace a felicidade de Lillian terá as piores consequências imagináveis. Você nunca dará motivos para ela achar que não aprova nosso casamento. A primeira palavra que eu ouvir que indique o contrário lhe garantirá uma longa viagem de carruagem para fora da propriedade. Fora da Inglaterra. Para sempre.
– Você não pode estar falando sério. Está nervoso. Mais tarde, quando se acalmar, nós...
– Não estou nervoso. E estou falando muito sério.
– Você enlouqueceu!
– Não, milady. Pela primeira vez na minha vida tenho uma chance de ser feliz. E não vou perdê-la.
– Idiota – sussurrou a condessa, visivelmente tremendo de raiva.
– Seja qual for o resultado disso, casar-me com ela será a coisa menos idiota que já fiz – respondeu ele, e saiu com uma pequena mesura.
CAPÍTULO 21
Mais tarde naquele dia Annabelle se desculpou, murmurando à sala do café da manhã:
– Estou sentindo náuseas de novo. Acho melhor me retirar um pouco para meu quarto. Por sorte o Sr. Hunt está cavalgando e não saberá que estou tirando um cochilo.
– Eu a a-acompanharei até seu quarto – disse Evie, preocupada.
– Ah, Evie querida, não precisa...
– Isso será a desculpa perfeita para evitar tia Florence, q-que provavelmente está me procurando.
– Bem, nesse caso, obrigada.
Contendo uma onda de náusea, Annabelle se apoiou gratamente no braço de Evie enquanto elas saíam.
Lillian e Daisy se prepararam para segui-las.
– Acho que ela não vai conseguir esconder as novidades do Sr. Hunt. E você? – sussurrou Daisy.
– Não nesse ritmo – sussurrou Lillian de volta. – Com certeza, ele deve suspeitar de alguma coisa, porque Annabelle tem uma saúde de ferro.
– Talvez. Mas ouvi dizer que os homens às vezes não prestam atenção nessas coisas...
Quando elas saíram da sala, viram Lady Olivia andando pelo corredor, com uma expressão perturbada em seu belo rosto. Era estranho vê-la com o cenho franzido, porque em geral era muito alegre. Lillian se perguntou o que a perturbara.
Erguendo os olhos, Lady Olivia viu as duas irmãs e seu rosto se iluminou. Um sorriso cordial surgiu em seus lábios.
– Bom dia.
Embora Lady Olivia fosse apenas dois ou três anos mais velha que Lillian, parecia muito mais amadurecida, com o olhar de uma mulher que enfrentara muita tristeza no passado. Era essa sensação de experiências desconhecidas, muito diferentes das suas, que sempre fizera Lillian se sentir um pouco desajeitada perto de Lady Olivia. Embora a irmã do conde fosse encantadora em seu modo de conversar, passava a impressão de que havia perguntas que não deveriam ser feitas e assuntos delicados.
– Eu estava indo para a estufa de laranjas – disse Lady Olivia.
– Então não vamos detê-la – respondeu Lillian, fascinada com a leve semelhança com Westcliff no rosto da mulher... nada significativo, mas algo nos olhos e o sorriso...
– Venha comigo – convidou Lady Olivia. Parecendo obedecer a um súbito impulso, ela estendeu a mão para a de Lillian, seus pequenos dedos envolvendo os muito maiores da jovem. – Acabei de ter uma conversa muito interessante com o conde. Gostaria muito de lhe falar sobre isso.
Ah, meu Deus! Então ele havia contado para a irmã. E provavelmente para a mãe. Lillian lançou um olhar furtivo de pânico para a irmã, que demonstrou não ser de nenhuma ajuda.
– Vou procurar um romance na biblioteca – anunciou Daisy, alegre. – O que estou lendo agora é um pouco decepcionante, e não pretendo terminá-lo.
– Vá até a última fileira à direita, a duas prateleiras do chão – aconselhou Lady Olivia. – E olhe atrás dos livros. Escondi meus romances favoritos lá: histórias pecaminosas que nenhuma garota inocente deveria ler. Eles a corromperão além da conta.
Os olhos escuros de Daisy se iluminaram à informação.
– Ah, obrigada! – Ela se afastou depressa sem olhar para trás enquanto Lady Olivia sorria.
– Venha – disse ela, puxando Lillian ao longo da sala do café da manhã. – Se seremos irmãs, há algumas coisas que precisa saber. Sou uma fonte valiosa de informações e neste momento estou me sentindo muito falante.
Alegre, Lillian foi com ela para a estufa de laranjas, contígua à sala do café da manhã. O lugar estava quente e perfumado, com o sol do meio-dia se aproximando e o calor vindo dos respiradouros gradeados no chão.
– Não estou totalmente certa de que seremos irmãs – observou Lillian, sentando-se ao lado de Lady Olivia em um canapé de vime com um espaldar curvo no estilo francês. – Se o conde insinuou que algo foi acertado...
– Não, ele não foi tão longe. Mas expressou intenções bastante sérias a respeito de você. – Os olhos cor de azeitona de Lady Olivia brilhavam de alegria e curiosidade, e ainda assim revelavam certa cautela. – Sem dúvida, eu deveria ser comedida e discreta, mas não aguento, tenho de perguntar... Vai aceitá-lo?
Lillian, a quem nunca faltavam palavras, se viu gaguejando como Evie:
– E-eu...
– Perdoe-me – disse Lady Olivia, apiedando-se dela. – Como aqueles que me conhecem bem podem atestar, adoro me intrometer nos assuntos alheios. Espero não tê-la ofendido.
– Não.
– Ótimo. Não costumo me dar bem com pessoas que se ofendem facilmente.
– Nem eu – confessou Lillian, relaxando os ombros enquanto ambas sorriam. – Milady, na atual situação, embora talvez não saiba os detalhes, a menos que o conde...
– Não – garantiu-lhe Lady Olivia, gentil. – Como sempre, meu irmão ficou de boca fechada sobre os detalhes. Ele é um homem irritantemente reservado que adora atormentar pessoas curiosas como eu. Continue.
– A verdade é que quero aceitá-lo – disse Lillian, com sinceridade. – Mas tenho algumas reservas.
– É claro que sim – respondeu Lady Olivia de pronto. – Marcus é um homem intenso. Ele faz tudo bem-feito e não deixa ninguém se esquecer disso. Você não pode realizar a mais simples das tarefas, como escovar os dentes, sem que ele lhe diga se deve começar pelos molares ou pelos incisivos.
– Sim.
– Um homem muito irritante – prosseguiu Lady Olivia –, que insiste em ver as coisas em termos absolutos: certo ou errado, bom ou mau. Ele é obstinado e dominador, para não falar na sua incapacidade de admitir que está errado.
Obviamente, Lady Olivia continuaria a falar sobre os defeitos de Marcus, mas Lillian sentiu uma súbita vontade de defendê-lo. Afinal, não era justo pintar um quadro tão desagradável do conde.
– Tudo isso pode ser verdade – falou –, mas é preciso dar crédito a lorde Westcliff por sua honestidade. Ele sempre mantém sua palavra. E até mesmo quando é dominador, só está tentando fazer o que acha que é melhor para os outros.
– Eu acho... – disse Lady Olivia dubiamente, o que incentivou Lillian a se estender no assunto:
– Além disso, a mulher que se casar com lorde Westcliff nunca precisará temer ser traída. Ele lhe será fiel. Fará com que ela se sinta segura, porque sempre cuidará dela e nunca perderá a cabeça em uma emergência.
– Mas ele é rígido – insistiu Lady Olivia.
– Na verdade, não...
– E frio – disse Lady Olivia, balançando a cabeça com pesar.
– Ah, não – retrucou Lillian. – De modo algum. Ele é o homem mais... – Ela parou de repente, corando ao ver o sorriso de satisfação de Lady Olivia. Acabara de ser encostada na parede.
– Srta. Bowman – murmurou Lady Olivia –, está parecendo uma mulher apaixonada. Espero mesmo que esteja. Porque demorou muito para Marcus encontrá-la e partiria meu coração ver o amor dele não ser correspondido.
Lillian se contraiu com o súbito pulo de seu coração.
– Ele não me ama – disse, trêmula. – Pelo menos, não me disse nada a respeito disso.
– Isso não me surpreende. Meu irmão tende a expressar seus sentimentos com ações em vez de palavras. Terá de ter paciência com ele.
– É o que estou descobrindo – disse Lillian, sombria, e a outra riu.
– Não o conheço tão bem quanto minha irmã mais velha, Aline, o conhece. Há pouca diferença de idade entre eles e Aline era sua principal confidente até partir para os Estados Unidos com o marido. Foi Aline quem me explicou muito sobre Marcus sempre que eu estava prestes a matá-lo.
Lillian ficou muito quieta enquanto ouvia com atenção a voz doce e suave de Lady Olivia. Até então não havia percebido quanto desejava entender Marcus. Antes não compreendia por que os namorados se preocupavam em colecionar lembranças: cartas, cachos de cabelo, uma luva perdida, um anel. Mas agora sabia como era estar obcecada por alguém. Sentia um desejo compulsivo de saber os mínimos detalhes sobre aquele homem que, embora parecesse totalmente franco, era uma grande incógnita.
Lady Olivia pôs um braço sobre o espaldar do canapé e olhou, pensativa, para a armação repleta de plantas ao lado delas.
– Há coisas sobre seu passado que Marcus nunca revelará a ninguém, porque considera fraqueza se queixar e preferiria morrer aos poucos a ser objeto de compaixão. E se algum dia ele descobrir que lhe contei algo, vai me degolar.
– Sou boa em guardar segredos – garantiu-lhe Lillian.
Lady Olivia lhe deu um rápido sorriso e depois estudou a ponta do próprio sapato que aparecia sob as bainhas de suas saias pregueadas.
– Então vai se dar bem com os Marsdens. Somos cheios de segredos. E nenhum de nós gosta de lembrar o passado. Marcus, Aline e eu sofremos de modos diferentes com as ações de meus pais, nenhum dos quais, na minha opinião, foi feito para ter filhos. Minha mãe nunca se interessou por ninguém além de si mesma ou algo que poderia afetá-la diretamente. E meu pai nunca se importou com nenhuma de suas filhas.
– Sinto muito – disse Lillian com sinceridade.
– Não, a indiferença dele foi uma bênção, e nós sabíamos disso. Foi muito pior para Marcus, que era a vítima das ideias insanas do meu pai de como criar o herdeiro Westcliff. – Embora a voz de Lady Olivia fosse tranquila e equilibrada, Lillian sentiu um calafrio percorrer seu corpo e esfregou as mãos nas mangas de seu vestido para acalmar a pele arrepiada de seus braços. – Meu pai não tolerava no filho nada menos que perfeição. Estabeleceu padrões ridiculamente altos em todos os aspectos da vida de Marcus e o punia de modo terrível se não os seguisse. Marcus aprendeu a aguentar surras sem derramar uma lágrima ou demonstrar um pingo de rebeldia, porque, se fizesse isso, a punição seria dobrada. E meu pai era impiedoso quando descobria qualquer fraqueza. Certa vez perguntei a Aline por que Marcus nunca havia gostado muito de cães... Ela me disse que, quando ele era criança, tinha medo de um par de sabujos que meu pai mantinha como animais de estimação. Os cães sentiram o medo de Marcus e se tornaram agressivos com ele, latindo e rosnando sempre que o viam. Quando meu pai descobriu quanto Marcus os temia, trancou-o sozinho em um cômodo com os cães para forçá-lo a enfrentar seu maior medo. Não posso imaginar o que deve ter sido para um garoto de cinco anos ser trancado com aqueles animais durante horas. – Ela deu um sorriso amargo. – Meu pai deu um sentido literal à expressão “atirar aos cães”. Quando devia ter protegido o filho, preferiu fazê-lo passar por um inferno.
Lillian a olhou sem pestanejar. Tentou falar, perguntar alguma coisa, mas sua garganta se apertara muito. Marcus sempre era tão confiante e seguro de si que era impossível imaginá-lo como uma criança assustada. Contudo, grande parte de sua reserva provinha da dolorosa lição aprendida na infância de que não havia ninguém para ajudá-lo. Ninguém para protegê-lo de seus medos. Ridiculamente, já que Marcus agora era um homem adulto, ela ansiou por confortar o garotinho que ele tinha sido.
– Meu pai queria que seu herdeiro fosse independente e tivesse um coração duro – continuou Lady Olivia –, para que ninguém jamais tirasse vantagem dele. Por isso, sempre que via Marcus começando a gostar de alguém, como de uma babá, por exemplo, imediatamente a despedia. Meu irmão descobriu que demonstrar afeição por alguém resultaria em essa pessoa ser mandada embora. Distanciou-se de todos que amava e não queria perder, inclusive Aline e eu. Pelo que me consta, as coisas melhoraram para Marcus quando ele foi enviado para a escola, onde seus amigos se tornaram sua nova família.
Então era por isso que Marcus continuava tão amigo de St. Vincent, pensou Lillian.
– Sua mãe nunca interferiu a favor dos filhos? – perguntou.
– Não, ela estava preocupada demais com os próprios assuntos.
Elas ficaram em silêncio por algum tempo. Lady Olivia esperou pacientemente que Lillian falasse, parecendo entender que a jovem estava tentando assimilar o que lhe fora contado.
– Deve ter sido um grande alívio quando o velho conde morreu – murmurou Lillian.
– Sim. É triste dizer isso, mas o mundo melhorou muito com a ausência dele.
– Ele não foi bem-sucedido em suas tentativas de tornar Marcus frio e de coração duro.
– Não mesmo – murmurou Lady Olivia. – Estou feliz por conseguir ver isso, minha querida.
Marcus chegou muito longe e ainda assim precisa muito de... alegria.
Em vez de diminuir a curiosidade de Lillian em relação a Marcus, a conversa só despertara mais perguntas, um monte delas. Contudo, sua relação com Lady Olivia ainda era muito recente e superficial para ter certeza de quão longe suas perguntas poderiam ir antes de serem gentilmente rechaçadas.
– Até onde sabe, milady – Lillian se atreveu a dizer –, lorde Westcliff já pensou a sério em se casar com alguém? Sei que houve uma mulher por quem ele nutriu sentimentos...
– Ah, aquilo... Na verdade, não foi nada. Marcus logo se cansaria dela se lorde St. Vincent não a tivesse roubado. Acredite em mim, se Marcus quisesse lutar por essa mulher, ela seria dele. O
que meu irmão nunca pareceu entender, e o resto de nós via, era que tudo havia sido uma trama da mulher para lhe provocar ciúmes e induzi-lo a se casar com ela. Mas o plano fracassou, porque Marcus não estava de fato interessado nela. Ela era apenas mais uma de uma série de mulheres que... bem, como deve imaginar, a Marcus nunca faltou atenção feminina. Nesse sentido, foi um pouco mimado. As mulheres praticamente caíam em seus braços desde que se tornou homem. –
Ela deu um olhar sorridente para Lillian. – Estou certa de que ele achou revigorante encontrar uma mulher que ousa discordar dele.
– Não sei se “revigorante” seria a primeira palavra que ele escolheria – respondeu Lillian, com ironia. – Mas quando não gosto de algo que ele faz não hesito em lhe dizer.
– Ótimo – respondeu Lady Olivia. – É disso mesmo que meu irmão precisa. Poucas pessoas, mulheres ou homens, o contradizem. Ele é um homem forte que precisa de uma esposa igualmente forte para equilibrar sua natureza.
Lillian se viu alisando sem necessidade as saias de seu vestido verde-claro enquanto dizia:
– Se lorde Westcliff e eu de fato nos casarmos... ele enfrentaria muitas objeções de parentes e amigos, não é? Sobretudo da condessa.
– Os amigos de Marcus nunca se atreveriam a fazer objeções – respondeu Lady Olivia de pronto. – Quanto à minha mãe... – Ela hesitou e depois disse com franqueza: – Ela já deixou claro que não a aprova, e duvido que algum dia vá aprovar. Mas isso a deixa muito bem acompanhada, porque ela desaprova quase todo mundo. O fato de se opor ao casamento a preocupa?
– Isso me tenta além da razão – disse Lillian, fazendo Lady Olivia irromper em uma risada.
– Ah, eu gosto de você – disse ela, ofegante. – Deve se casar com Marcus, porque eu adoraria acima de tudo tê-la como cunhada. – Voltando a ficar séria, ela olhou para Lillian com um sorriso afetuoso. – E tenho um motivo egoísta para esperar que o aceite. Embora o Sr. Shaw e eu não tenhamos planos imediatos de nos mudarmos para Nova York, sei que esse dia não demorará a chegar. E quando isso acontecer, ficarei aliviada em saber que Marcus está casado e tem alguém que cuide dele, com as irmãs morando tão longe. – Ela se levantou do canapé, alisando suas saias. – O motivo de eu lhe dizer tudo isso é que queria que soubesse como é difícil para Marcus se entregar ao amor. Mas não impossível. Minha irmã e eu finalmente conseguimos nos libertar do passado, com a ajuda de nossos maridos. Mas os grilhões de Marcus são os mais pesados. Sei que ele não é o homem mais fácil de se amar. Mas se conseguirem chegar a um meio-termo... talvez um pouco mais do que um meio-termo... creio que você nunca terá motivos para se arrepender.
A propriedade estava cheia de criados ocupados como abelhas em uma colmeia, cumprindo a difícil tarefa de fazer as malas de seus patrões e patroas. A maior parte dos hóspedes iria embora em dois dias, e alguns já se punham a caminho. Mas poucos estavam inclinados a antecipar a partida, porque ninguém queria perder o grande baile de despedida na última noite.
Lillian se viu frequentemente forçada a ficar perto da mãe, que estava supervisionando (ou, melhor, atormentando) duas criadas em seus esforços para dobrar e acomodar centenas de itens em grandes baús com tiras de couro que um lacaio levara para o andar de cima. Depois da surpreendente mudança no rumo dos acontecimentos um ou dois dias antes, Lillian esperava que a mãe vigiasse todas as suas palavras e ações para garantir o noivado com lorde Westcliff.
Contudo, Mercedes estava surpreendentemente quieta e indulgente, parecendo escolher suas palavras com extremo cuidado sempre que ela e Lillian conversavam. Além disso, nunca mencionava Westcliff.
– Qual é o problema com ela? – perguntou Lillian a Daisy, perplexa com a docilidade da mãe.
Era bom não ter de discutir com Mercedes, mas esperava que agora a mãe fosse persegui-la como uma brigada da cavalaria.
Daisy deu de ombros e respondeu em um tom travesso:
– Só podemos presumir que, como você fez tudo o que ela lhe disse para não fazer e ainda assim conquistou lorde Westcliff, ela decidiu deixar isso em suas mãos. Acho que se fará de surda e cega a tudo o que você fizer, desde que consiga manter o interesse do conde.
– Então... se eu escapar para o quarto de lorde Westcliff esta noite, ela não fará objeções?
Daisy riu baixinho.
– Acho que ela a ajudaria a ir para lá, se você pedisse. – Lançou um olhar indagador para Lillian. – O que exatamente você vai fazer sozinha com lorde Westcliff no quarto dele?
Lillian se sentiu corar.
– Negociar.
– Ah, é esse o nome?
Contendo um sorriso, Lillian estreitou os olhos.
– Não se faça de boba ou não lhe contarei os detalhes picantes depois.
– Não preciso ouvi-los de você – disse Daisy, alegre. – Tenho lido os romances que Lady Olivia recomendou... e agora ouso dizer que sei mais do que você e Annabelle juntas.
Lillian não pôde evitar rir.
– Querida, não estou certa de que esses romances são totalmente exatos em sua descrição dos homens ou... daquilo.
Daisy franziu as sobrancelhas.
– Em que não são exatos?
– Bem, na verdade, não há nenhum tipo de... você sabe, névoa cor de lavanda, desmaios e discursos floreados.
Daisy a olhou, decepcionada.
– Nem mesmo um pequeno desmaio?
– Pelo amor de Deus! Você não ia querer desmaiar, ou perderia alguma coisa.
– Sim, eu ia. Eu gostaria de ficar totalmente consciente no início e desmaiar durante o resto.
Lillian a olhou com surpresa e divertimento.
– Por quê?
– Porque parece muito desconfortável. Para não dizer repugnante.
– Não é.
– Não é o quê? Desconfortável ou repugnante?
– Nem uma coisa nem outra – disse Lillian em um tom prático, embora tentasse conter o riso.
– É verdade, Daisy. Eu lhe diria. É maravilhoso.
Sua irmã mais nova pensou um pouco e depois a olhou, cética.
– Se você está dizendo...
Sorrindo para si mesma, Lillian pensou na noite que tinha pela frente e sentiu uma pontada de ansiedade à perspectiva de ficar sozinha com Marcus. Sua conversa com Lady Olivia na estufa de laranjas a fizera entender como era incrível Marcus ter baixado a guarda com ela até o ponto em que o fizera.
Talvez o relacionamento deles não viesse a ser conflituoso. Afinal de contas, quando um não quer, dois não brigam. Talvez ela conseguisse encontrar meios de decidir quando valia a pena brigar por algo ou quando não deveria dar importância. E Marcus já dera sinais de que estava disposto a se ajustar a ela. Por exemplo, houvera aquele pedido de desculpas na biblioteca, quando Marcus poderia ter lhe esmagado o orgulho, mas não o fizera. Essas não eram atitudes de um homem intransigente.
Se ao menos ela fosse um pouco mais habilidosa, como Annabelle, poderia ter chance de lidar melhor com Marcus. Mas sempre fora franca e direta demais para possuir astúcia feminina. Ah, bem, pensou com ironia, cheguei até aqui sem nenhuma astúcia... acho que me sairei bem se apenas seguir em frente aos tropeções como tenho feito.
Procurando distraidamente alguns itens na penteadeira no canto do quarto, Lillian separou os que só poderiam ser guardados quando partisse, dali a dois dias. Sua escova de prata, grampos, um par de luvas limpas... Ela parou quando seus dedos se fecharam ao redor do frasco de perfume que o Sr. Nettle lhe dera.
– Ah, meu Deus – murmurou, sentando-se na cadeira de espaldar alto estofada de veludo. Ela olhou para o frasco brilhante na palma de sua mão. – Daisy... tenho de dizer para o conde que usei uma poção do amor com ele?
A irmã mais nova pareceu horrorizada com a ideia.
– Eu diria que não. Que motivo teria para dizer?
– Honestidade? – sugeriu Lillian.
– A honestidade é superestimada. Como alguém certa vez disse, “o segredo é o primeiro assunto essencial nos negócios do coração”.
– Foi o Duque de Richelieu – disse Lillian, que havia lido o mesmo livro de filosofia durante as aulas na escola. – E a citação correta é: “O segredo é o primeiro assunto essencial nos negócios de Estado.”
– Mas ele era francês – argumentou Daisy. – Estou certa de que também se referia aos assuntos do coração.
Lillian riu e olhou com carinho para a irmã.
– Talvez sim. Mas não quero ter segredos para lorde Westcliff.
– Ah, está bem. Mas preste atenção em minhas palavras: não será um romance de verdade se você não tiver alguns pequenos segredos.
CAPÍTULO 22
À noite, quando alguns hóspedes já haviam se retirado para seus quartos e outros permaneciam no andar de baixo, nas salas de carteado e bilhar, Lillian saiu furtivamente de seu quarto com a intenção de se encontrar com Marcus. Andou nas pontas dos pés pelo corredor e parou ao ver um homem encostado em uma parede na junção de dois largos corredores. Ele deu um passo à frente e ela logo reconheceu o criado pessoal de Marcus.
– Senhorita – disse ele calmamente –, milorde me pediu que lhe mostrasse o caminho.
– Eu sei o caminho. E ele sabe que eu sei. Que diabos está fazendo aqui?
– Milorde não queria que a senhorita perambulasse pela casa desacompanhada.
– Claro. Eu poderia ser interpelada por alguém. Até mesmo seduzida.
Parecendo acostumado com o sarcasmo, sendo totalmente óbvio que ela não estava indo para o quarto do conde para uma visita inocente, o criado se virou para conduzi-la.
Fascinada com a reserva dele, Lillian não pôde evitar perguntar:
– Então... o conde costuma lhe pedir que acompanhe mulheres solteiras até seus aposentos particulares?
– Não, senhorita – respondeu ele, imperturbável.
– Me diria se ele pedisse?
– Não, senhorita – respondeu ele no mesmo tom, e Lillian sorriu.
– O conde é um bom patrão?
– É um excelente patrão, senhorita.
– Suponho que diria isso mesmo que ele fosse um ogro.
– Não, senhorita. Nesse caso eu apenas diria que é um patrão aceitável. Mas quando falo que é um excelente patrão é exatamente isso que quero dizer.
– Hum. – Lillian foi encorajada pelas palavras do criado. – Ele conversa com seus criados?
Agradece-lhes por fazerem um bom trabalho, esse tipo de coisa?
– Não mais do que o apropriado, senhorita.
– O que significa nunca?
– Significa não com frequência, senhorita.
Como depois disso o homem não pareceu inclinado a falar, Lillian o seguiu em silêncio até o quarto de Marcus. Ele a acompanhou até a entrada, arranhou a porta com as pontas dos dedos e esperou por uma resposta.
– Por que faz isso? – sussurrou Lillian. – Arranhar a porta. Por que não bate?
– A condessa prefere assim, porque não irrita tanto seus nervos.
– O conde também prefere?
– Duvido muito que ele prefira um modo a outro, senhorita.
Lillian franziu as sobrancelhas, pensativa. No passado tinha ouvido outros criados arranharem as portas de seus patrões e isso sempre soara um pouco estranho aos seus ouvidos americanos... como um cão arranhando a porta para que o deixassem entrar.
A porta se abriu e Lillian teve uma sensação de pura alegria à visão do rosto moreno de Marcus. A expressão do conde era impassível, mas seus olhos brilhavam de calor humano.
– Isso é tudo – disse ele para o criado, olhando para o rosto de Lillian enquanto estendia o braço para ela passar.
– Sim, milorde. – O criado desapareceu discreta e rapidamente.
Marcus fechou a porta e fitou Lillian; o brilho em seus olhos se intensificou e um sorriso surgiu nos cantos dos lábios. Estava tão bonito com a luz do candelabro e da lareira incidindo em seu rosto que Lillian sentiu um arrepio de prazer. Em vez de usar seu costumeiro traje fechado, ele estava sem paletó e com a camisa branca aberta no pescoço, revelando um pouco da pele suave e morena. Ela havia beijado aquela cavidade triangular na base do pescoço... deixado sua língua brincar ali...
Tirando seus pensamentos daquela excitante lembrança, Lillian desviou o olhar. No mesmo instante sentiu os dedos esguios de Marcus subirem para suas bochechas quentes e guiarem seu rosto de volta para o dele. A ponta do polegar do conde deslizou por seu queixo.
– Eu a desejei hoje – disse ele.
O coração de Lillian disparou e as bochechas que os dedos acariciavam se esticaram com um sorriso.
– Você não olhou na minha direção nem uma vez durante o jantar.
– Tive medo.
– Por quê?
– Porque sabia que, se fizesse isso, não conseguiria evitar torná-la meu segundo prato.
Lillian abaixou os cílios enquanto o deixava se aproximar e ele passava a mão por suas costas.
Seus seios e sua cintura pareciam inchados dentro do apertado espartilho e ela desejou tirá-lo.
Respirando o mais fundo que a peça de roupa lhe permitia, sentiu um cheiro adocicado de especiarias no ar.
– O que é isso? – murmurou, inalando-o. – Canela e vinho...
Virando-se dentro do abraço do conde, olhou ao redor do espaçoso quarto para além da cama com colunas, onde uma mesinha fora posta perto da janela. Sobre ela havia uma travessa de prata tampada na qual ainda eram visíveis alguns traços de vapor adocicado. Perplexa, virou-se para olhar para Marcus.
– Vá até lá e descubra.
Curiosa, Lillian foi investigar. Segurou a alça envolta em um guardanapo de linho, levantou a tampa e um aroma inebriante se ergueu no ar. Momentaneamente intrigada, olhou e depois desatou a rir. A travessa de porcelana branca continha cinco peras perfeitas, todas posicionadas em pé e com as cascas brilhantes e vermelhas como rubi por terem sido cozidas em vinho.
Estavam sobre uma calda cor de âmbar-claro que cheirava a canela e mel.
– Como não consegui tirar a pera da garrafa para você – disse Marcus às suas costas –, essa foi a melhor alternativa.
Lillian pegou uma colher e a enterrou em uma das peras macias, levando-a aos lábios com satisfação. Um pedaço da fruta quente embebida em vinho se dissolveu em sua boca, e a calda de mel e canela fizeram cócegas em sua garganta.
– Hum... – Ela fechou os olhos, extasiada.
Parecendo achar graça, Marcus a virou de frente para ele. Olhou para o canto dos lábios dela, onde uma gota de calda brilhava. Abaixou a cabeça, beijou-a e lambeu a gota, e a carícia aumentou o desejo de Lillian.
– Deliciosa – sussurrou Marcus, cobrindo-lhe os lábios com mais firmeza até Lillian sentir seu sangue fluir como lava faiscante.
Ela ousou saborear o vinho e a canela com ele, explorando-lhe a boca com a língua, e a resposta foi tão encorajadora que ela pôs os braços ao redor do pescoço de Marcus para se aproximar mais. Ele era delicioso, a boca tinha um gosto doce e de limpeza e a sensação produzida pelo corpo masculino rijo era infinitamente excitante. Os pulmões de Lillian se expandiram com respirações trêmulas e quentes, contidas pelo corpete, e ela interrompeu o beijo, ofegante.
– Não consigo respirar.
Sem dizer nada, Marcus a virou e desabotoou seu vestido. Chegando ao espartilho, soltou os cordões com uma série de hábeis puxões até afrouxá-los e Lillian respirar aliviada.
– Por que estava tão apertado? – ouviu-o perguntar.
– Porque, se não estivesse, o vestido não fecharia. E porque, segundo minha mãe, os ingleses preferem mulheres de cintura fina.
Marcus riu enquanto a virava de novo para ele.
– Os ingleses preferem mulheres de cinturas mais largas às que fazem desmaiar por falta de oxigênio. Nesse ponto somos bastante práticos.
Notando que a manga do vestido desabotoado escorregara do ombro branco de Lillian, Marcus abaixou a boca até a curva suave. O roçar sedoso dos lábios dele contra sua pele fez Lillian tremer, e então ela se aconchegou a Marcus enquanto era agitada por sensações, como imagens em água aquecida pelo sol. Com os olhos fechados, estendeu as mãos para os cabelos dele, e seus dedos vibraram à sensação dos cachos grossos e sedosos. O ritmo de seu coração se tornou rápido e descontrolado e ela se moveu inquietamente nos braços de Marcus enquanto ele beijava seu pescoço.
– Lillian – a voz dele soou rouca e pesarosa. – É muito cedo. Eu prometi... – Parando, ele beijou a cavidade macia sob a orelha dela. – Prometi negociar os termos – continuou, obstinado.
– Termos? – perguntou ela vagamente, agarrando a cabeça dele com as mãos e puxando a boca de Marcus de volta para a sua.
– Sim. Eu... – Marcus se interrompeu para beijá-la com paixão.
Lillian lhe explorou o pescoço e o rosto, passando os dedos pelas linhas firmes das maçãs do rosto e do queixo e pelos músculos do pescoço. O cheiro da pele masculina a inebriava a cada respiração. Lillian desejou se apertar contra Marcus até não restar nenhum espaço entre eles. De repente, pareceu que não poderia beijá-lo o suficiente, por tempo bastante.
Ao sentir a crescente excitação dela, Marcus a afastou, ignorando-lhe o murmúrio de protesto. A respiração dele ardia na garganta e era muito difícil ordenar seus pensamentos.
– Menina... – Suas mãos traçaram suavemente círculos nas costas e nos ombros de Lillian para acalmá-la. – Devagar. Devagar. Você terá tudo o que deseja. Não tem de lutar por isso.
Lillian assentiu, irritada. Nunca estivera tão consciente da diferença em suas respectivas experiências, percebendo que ele era capaz de conter sua paixão intensa enquanto ela era totalmente dominada por esse sentimento. A boca de Marcus tocou sua testa ardente e seguiu o arco da sobrancelha.
– É melhor para você... para nós dois... fazer isso durar mais – murmurou ele. – Não quero possuí-la às pressas.
Ela se esfregou com força contra o rosto e as mãos de Marcus, como um gato pedindo que seja acariciado.
Marcus deslizou a palma de uma das mãos para as costas abertas do vestido dela, procurando a pele acima do espartilho, e deixou escapar um suspiro ao sentir a suavidade e a maciez.
– Ainda não – falou num sussurro rouco, embora não tivesse ficado claro se para si mesmo ou para ela.
Segurou com força o pescoço de Lillian e, com os lábios abertos, se inclinou para se deliciar com o queixo e a frente do pescoço dela.
– Você é tão doce – disse, rouco.
Lillian não pôde evitar sorrir, mesmo no ardor do desejo.
– Sou?
Marcus procurou os lábios da jovem para outro beijo ávido.
– Muito – confirmou ele. – Mas, se eu fosse um homem mais fraco, a esta altura você já teria arrancado a minha cabeça.
As palavras fizeram Lillian rir baixinho.
– Agora entendo a atração entre nós. Somos um perigo para qualquer pessoa, menos um para o outro. Como um par de porcos-espinhos mal-humorados. – Então um pensamento lhe ocorreu e ela parou e se afastou dele. – Falando em atração... – Estava com as pernas um pouco bambas e procurou o apoio da cama. Encostando-se em uma das grossas colunas de madeira entalhada, murmurou: – Tenho algo a confessar.
Marcus a seguiu, e a luz realçou o contorno soberbo e musculoso de seu corpo. As calças elegantemente largas, que marcavam de leve sua forma esguia, não ajudavam muito a esconder os músculos fortes por baixo.
– Isso não me surpreende. – Ele pôs uma das mãos na coluna logo acima da cabeça de Lillian e assumiu uma posição relaxada. – Vou gostar dessa confissão ou não?
– Não sei. – Ela procurou no bolso embutido em seu vestido, oculto nas vastas dobras das saias, e pegou o frasco de perfume. – Aqui.
– O que é isso? – Recebendo o frasco, Marcus o abriu e cheirou. – Perfume – disse e o devolveu, com um olhar indagador para o rosto de Lillian.
– Não é um perfume qualquer – respondeu ela, apreensiva. – É o motivo de sua atração inicial por mim.
Ele o cheirou de novo.
– Como assim?
– Eu o comprei de um velho perfumista em Londres. É um afrodisíaco.
Um súbito sorriso brilhou nos olhos de Marcus.
– Onde aprendeu essa palavra?
– Com Annabelle. E é verdade – disse-lhe Lillian, séria. – É mesmo. Tem um ingrediente especial que o perfumista me disse que atrairia um pretendente.
– Que ingrediente especial?
– Ele não quis me dizer qual era. Mas funcionou. Não ria, funcionou, sim! Eu notei o efeito em você no dia em que jogamos rounders, quando me beijou atrás da sebe. Não se lembra?
Marcus pareceu pensar naquilo, mas era óbvio que não acreditava que fora seduzido por um perfume. Ele o cheirou de novo e murmurou:
– Lembro-me de ter sentido o cheiro. Mas me senti atraído por você por muitos outros motivos bem antes daquele dia.
– Mentiroso – acusou-o Lillian. – Você me odiava.
Ele balançou a cabeça.
– Eu nunca a odiei. Você me incomodava, me aborrecia e me atormentava, mas isso não é ódio.
– O perfume funciona – insistiu ela. – Não só você reagiu a ele como Annabelle o experimentou com o marido, e ela jura que o resultado foi ele mantê-la acordada a noite toda.
– Querida – disse Marcus em um tom irônico –, Hunt se comporta como um javali excitado quando está perto de Annabelle desde o dia em que se conheceram. No que diz respeito a ela, esse é um comportamento típico dele.
– Mas não de você! Você não tinha nenhum interesse em mim até eu usar esse perfume, e na primeira vez que o cheirou...
– Está dizendo – interrompeu-a Marcus – que eu teria uma reação parecida com qualquer mulher que o usasse?
Lillian abriu a boca para responder e depois a fechou abruptamente ao se lembrar de que ele não demonstrara nenhum interesse quando as outras Flores Secas o usaram.
– Não – admitiu. – Mas parece que o perfume realmente fez um pouco de diferença comigo.
Os lábios de Marcus se curvaram em um sorriso preguiçoso.
– Lillian, eu a desejei desde o momento em que a segurei em meus braços pela primeira vez. E isso não tem nada a ver com seu maldito perfume. Mas... – ele o cheirou uma última vez antes de tampá-lo – sei qual é o ingrediente secreto.
Lillian arregalou os olhos.
– Não sabe!
– Sei – disse ele, convencido.
– Você é um sabe-tudo – exclamou Lillian, rindo com certa irritação. – Talvez tenha um palpite, mas lhe garanto que se eu não consigo descobrir qual é, você também não...
– Eu definitivamente sei qual é – informou ele.
– Então me diga.
– Não, acho que vou deixá-la descobrir sozinha.
– Diga-me!
Ansiosa, Lillian se lançou sobre ele, socando-o no peito. A maioria dos homens teria sido empurrado para trás pelos golpes, mas ele apenas riu e se manteve firme.
– Westcliff, se não me disser neste instante, eu vou...
– Me torturar? Sinto muito, mas não dará certo. A esta altura, estou bastante acostumado com isso.
Erguendo-a com chocante facilidade, ele a atirou sobre a cama como um saco de batatas.
Antes que Lillian pudesse se mover um centímetro, Marcus estava em cima dela, murmurando e rindo enquanto ela lutava com todas as suas forças.
– Vou fazê-lo se render!
Lillian enganchou uma perna ao redor de Marcus e empurrou com força o ombro esquerdo dele. Anos de infância brigando com seus impetuosos irmãos tinham lhe ensinado alguns truques. Contudo, Marcus bloqueou com facilidade cada movimento, sendo seu corpo uma massa de músculos fortes e flexíveis. Ele era muito ágil e surpreendentemente pesado.
– Você não é páreo para mim – provocou-a, permitindo-lhe ficar em cima dele por um instante.
Enquanto Lillian tentava imobilizá-lo, ele se contorceu e ficou por cima dela de novo.
– Não me diga que isso é o melhor que pode fazer.
– Desgraçado arrogante – murmurou Lillian, renovando seus esforços. – Eu poderia vencê-lo... se não estivesse de vestido...
– Seu desejo poderá ser satisfeito – respondeu Marcus, sorrindo.
Um instante depois ele a imobilizou no colchão, tomando cuidado para não machucá-la na brincadeira.
– Chega – disse. – Você está ficando cansada. Vamos declarar empate.
– Ainda não – disse Lillian, ofegante, ainda determinada a vencê-lo.
– Pelo amor de Deus, pequena selvagem – disse ele, achando graça –, está na hora de se dar por vencida.
– Nunca!
Ela lutou selvagemente; seus braços cansados tremiam.
– Relaxe.
O murmúrio de Marcus foi como uma carícia, e Lillian arregalou os olhos ao sentir a rigidez do corpo dele entre suas coxas. Ofegando, parou de lutar.
– Agora, devagar... – Ele abaixou a frente do vestido dela, aprisionando-a em seus braços por um momento. – Calma – sussurrou.
Lillian ficou imóvel enquanto o olhava, o sangue pulsando violentamente. Naquela parte do quarto, a luz era tênue e a cama ficava envolta em sombras. A forma escura de Marcus se movia sobre ela, as mãos dele virando-a de lado para lhe tirar o vestido e o espartilho. E então, de repente, a respiração de Lillian se tornou muito ofegante, e as carícias tranquilizadoras das mãos de Marcus na frente de seu corpo só a agitaram ainda mais.
A pele dela se tornara tão sensível que o ar frio parecia arder e fazer todo o corpo da jovem formigar. Lillian começou a tremer enquanto o conde lhe tirava a camisola, as meias e as calçolas, e se agitar ao ocasional roçar dos nós e das pontas dos dedos dele.
Marcus ficou ao lado da cama olhando-a com atenção e tirando lentamente as próprias roupas. O corpo esculpido do conde agora estava se tornando familiar para Lillian, como também a grande excitação que ele provocava em cada centímetro de sua pele. Lillian gemeu um pouco quando Marcus se deitou ao seu lado, aninhando-a contra seu peito quente. Sentindo os contínuos tremores de Lillian, ele acariciou as costas pálidas da jovem e lhe segurou as nádegas.
Em todos os lugares em que a tocava, Lillian sentia ondas de intenso alívio seguidas de um desejo mais forte e agradável.
Marcus a beijou lenta e profundamente, lambendo-lhe os recônditos sedosos da boca até ela gemer de prazer. Movendo-se para baixo na direção dos seios, cobriu-os com beijos suaves e acariciou os mamilos com toques fugazes da língua. Ele a seduziu e cortejou como se ela já não estivesse corada e tremendo de desejo, como se não estivesse ofegante em súplicas que o aplacasse. Quando estava com os seios inchados e os mamilos intumescidos, Marcus tomou um deles na boca e começou a puxá-lo enquanto deslizava a mão pela barriga da jovem.
Lillian sentiu uma contração por dentro, uma crescente urgência que a deixou louca. Sua mão tremeu violentamente ao agarrar a de Marcus e levá-la aos pelos encaracolados úmidos entre suas pernas. Ele sorriu contra o mamilo de Lillian e se dirigiu ao outro seio, puxando-o para a umidade aveludada de sua boca. O tempo pareceu parar quando ela sentiu os dedos de Marcus procurarem delicadamente afastar-lhe os pelos e depois roçarem a úmida saliência de seu sexo.
Ahhh... as carícias dele eram leves e insistentes, primeiro provocando, depois acalmando e provocando de novo, até ela gritar em impotente alívio, erguendo os quadris contra a mão dele.
Aconchegando-a protetoramente, Marcus lhe acariciou os membros trêmulos. Sussurrou palavras carinhosas à boca entreaberta de Lillian, palavras de adoração e desejo, enquanto lhe explorava o corpo com carícias. Ela não saberia dizer o exato momento em que o toque dele se tornou mais excitante do que tranquilizador, mas pouco a pouco o sentiu despertando-lhe uma sensação após outra. Seu coração começou a bater mais forte e ela se contorceu sob Marcus, ansiosa. Ele lhe abriu as pernas, puxou os joelhos dela um pouco para cima e a penetrou devagar.
Ela se contraiu à dor da invasão. Ele estava tão rígido, tão dentro dela, que a carne de Lillian se contraiu por instinto, mas nada poderia deter o poderoso e intenso deslizar. Ele manteve suas investidas calmas e profundas, acomodando-se no sexo contraído dela com absoluta ternura.
Cada movimento parecia provocar um arrepio de prazer nas profundezas do corpo de Lillian, e logo ela relaxou até a dor se transformar em uma pontada quase imperceptível. Ela se sentiu febril e desesperada com a aproximação de outro clímax. Então Marcus a surpreendeu recuando.
– Marcus – gemeu Lillian. – Ah, meu Deus, não pare, por favor...
Silenciando-a com um beijo, ele a ergueu e a virou com cuidado, deitando-a de bruços.
Confusa e trêmula, ela o sentiu pôr um travesseiro sob seus quadris, e depois outro até ela ficar elevada e aberta enquanto ele se ajoelhava entre suas coxas. Os dedos de Marcus acariciaram e abriram as dobras de seu sexo e, quando ele a penetrou de novo, os gemidos de Lillian se tornaram incontroláveis. Impotente, ela virou a cabeça para o lado, seu rosto contra o colchão enquanto contorcia os quadris e ele os segurava com firmeza. Marcus a penetrou ainda mais fundo que antes, investigando, acariciando e lhe dando prazer em um ritmo calculado... levando-a deliberadamente à beira da loucura. Ela implorou, soluçou, gemeu e até praguejou, e o ouviu rir baixinho enquanto a conduzia a uma explosão de prazer. O corpo de Lillian se fechou ao redor do sexo de Marcus em palpitantes contrações, conduzindo-o a um clímax que lhe arrancou um gemido profundo da garganta.
Ofegando, Marcus abaixou seu corpo contra o de Lillian, colando a boca em sua nuca, o sexo ainda dentro dela.
Descansando passivamente sob ele e passando a língua em seus lábios inchados, Lillian murmurou:
– E você chamou a mim de selvagem.
Ela prendeu a respiração enquanto Marcus ria, esfregando os pelos do peito em suas costas como veludo.
Embora Lillian estivesse agradavelmente cansada após o sexo, a última coisa que queria era dormir. Estava cheia de admiração com suas descobertas sobre o homem que um dia desdenhara como irritante e tedioso e se revelara não ser nem uma coisa nem outra. Começava a reconhecer que Marcus tinha um lado terno que poucos podiam ver. E sentia que ele se importava com ela, embora temesse especular sobre isso porque os sentimentos que pareciam transbordar de seu coração tinham se tornado alarmantemente intensos.
Depois de Marcus enxugar o corpo suado dela com um pano fresco e úmido, vestiu-a com a camisa que havia tirado e ainda tinha o cheiro de sua pele. Trouxe-lhe um prato contendo uma pera cozida e uma taça de vinho suave, e até se permitiu dar algumas mordidas na fruta macia como seda. Quando o apetite de Lillian estava saciado, ela pôs de lado o prato vazio e a colher e se virou para se aconchegar a Marcus. Ele ergueu um cotovelo e a olhou, acariciando seus cabelos.
– Lamenta que eu não tenha permitido que St. Vincent a tivesse?
Ela lhe deu um sorriso intrigado.
– Por que está perguntando uma coisa dessas? Certamente não está tendo crises de consciência.
Marcus balançou a cabeça.
– Eu só queria saber se você tinha algum arrependimento.
Surpresa e comovida com a necessidade dele de tranquilização, Lillian brincou com os cachos escuros no peito de Marcus.
– Não – respondeu. – Ele é atraente, e eu gosto dele... mas não o queria.
– Mas pensou em se casar com ele.
– Bem – admitiu Lillian. – Realmente passou pela minha cabeça que eu gostaria de ser duquesa, mas só para espezinhar você.
Um sorriso surgiu no rosto de Marcus. Ele se vingou com um pequeno beliscão no seio dela, fazendo-a dar um gritinho.
– Eu não suportaria vê-la casada com outro homem – admitiu.
– Acho que lorde St. Vincent não terá nenhuma dificuldade em encontrar outra herdeira para servir aos propósitos dele.
– Talvez. Mas não há mulheres com fortunas comparáveis à sua... e nenhuma com sua beleza.
Sorrindo ao ouvir o elogio, Lillian se arrastou um pouco para cima e pôs uma das pernas sobre a dele.
– Diga-me mais. Quero ouvi-lo recitar poesias sobre meus encantos.
Sentando-se, Marcus a ergueu com uma facilidade que a deixou boquiaberta e a acomodou sobre seus quadris. Passou a ponta de um dedo pela pele pálida exposta na abertura da camisa.
– Nunca recitei poesias – disse ele. – Os Marsdens não são poéticos. Contudo... – Marcus parou para admirar a visão da jovem de membros longos sentada sobre ele com cabelos emaranhados que lhe chegavam à cintura. – Eu poderia ao menos lhe dizer que você parece uma princesa pagã com seus cabelos escuros emaranhados e olhos escuros brilhantes.
– E? – encorajou-o Lillian, passando os braços ao redor do pescoço dele.
Marcus pôs as mãos na cintura fina dela e as desceu para agarrar as coxas fortes e lisas.
– E que todos os sonhos eróticos que já tive sobre suas magníficas pernas não eram nada, comparados à realidade.
– Você sonhou com minhas pernas?
Lillian se contorceu ao sentir as palmas das mãos dele deslizarem lenta e provocadoramente para a parte interna de suas coxas.
– Ah, sim. – As mãos de Marcus desapareceram sob a bainha da camisa. – Ao redor de mim –
murmurou, e o tom de sua voz se tornou mais profundo. – Apertando-me com força enquanto me montava...
Lillian arregalou os olhos ao sentir os polegares de Marcus acariciando as frágeis dobras externas de seu sexo.
– Como? – perguntou ela debilmente, ofegando quando o sentiu abri-la com suaves massagens.
Os dedos de Marcus estavam fazendo algo perverso, seus hábeis movimentos escondidos pela camisa. Lillian estremeceu e observou o rosto atento de Marcus enquanto ele os usava para brincar com ela, alguns penetrando-a e outros flertando habilmente com a pequena saliência sensível que parecia se incendiar ao seu toque.
– Mas as mulheres não... – disse Lillian confusa e ofegante. – Não desse modo. Pelo menos... ah... ah... Eu nunca soube...
– Algumas sim – murmurou ele, provocando-a de um modo que a fez gemer. – Meu anjo inquieto... acho que terei de lhe mostrar.
Em sua inocência, Lillian não entendeu até Marcus a erguer de novo, posicioná-la e ajudá-la a deslizar por todo o membro rígido dele até ficar totalmente encaixada. Chocada além do que podia expressar, Lillian fez alguns movimentos experimentais, obedecendo ao murmúrio de Marcus e à paciente condução das mãos dele em seus quadris. Depois de algum tempo, encontrou um ritmo.
– Isso – disse Marcus, agora ofegante. – Assim...
Pondo novamente a mão sob a camisa em busca da sensível saliência do sexo dela, circundou-a com o polegar em um eletrizante contraponto às investidas da jovem e com uma pressão suave que incendiou os nervos de Lillian outra vez. Olhou-a nos olhos, apreciando a visão do prazer dela, e ver como Marcus estava concentrado nela fez Lillian atingir o clímax, sendo sacudida por fortes e profundos espasmos com o corpo, o coração e a mente repletos dele. Agarrando-lhe a cintura, Marcus a segurou com força enquanto se projetava para cima, deixando o próprio prazer aumentar e inundá-la.
Sentindo-se esgotada e incapaz de pensar, Lillian desabou sobre ele, pousando a cabeça no centro do peito masculino. Sentiu o coração de Marcus bater forte em seu ouvido por longos minutos até alcançar um ritmo normal.
– Meu Deus – murmurou Marcus, passando os braços ao redor dela e depois os deixando cair como se até mesmo isso exigisse muito esforço. – Lillian. Lillian.
– Hum? – Ela pestanejou, sonolenta, sentindo uma profunda necessidade de dormir.
– Mudei de ideia sobre negociar. Você pode ter o que quiser. Quaisquer condições, tudo o que estiver ao meu alcance. Apenas acalme minha mente e diga que será minha esposa.
Lillian conseguiu erguer a cabeça e olhar nos olhos dele, que estavam com as pálpebras pesadas.
– Se isso é um exemplo da sua capacidade de barganhar – disse-lhe –, fico muito preocupada com seus negócios. Espero que não ceda tão facilmente às exigências de seus parceiros comerciais.
– Não. E também não durmo com eles.
Um lento sorriso se espalhou pelo rosto de Lillian. Se Marcus estava disposto a se arriscar, não seria ela a se esquivar.
– Então acalme sua mente, Westcliff... Sim, serei sua esposa. Embora deva preveni-lo... de que talvez lamente não ter negociado quando mais tarde souber das minhas condições. Por exemplo, posso querer uma posição no conselho da saboaria...
– Deus me ajude – murmurou Marcus.
E, com um grande suspiro de satisfação, ele adormeceu.
CAPÍTULO 23
Lillian ficou na cama de Marcus durante a maior parte da noite. De vez em quando acordava envolta no calor do corpo dele e nas macias camadas de linho, seda e lã. Marcus devia ter ficado exausto depois do sexo, porque não emitia nenhum som e quase não se mexia. Contudo, quando a manhã se aproximou, foi o primeiro a despertar. Perdida em satisfeita letargia, Lillian protestou quando ele a acordou.
– O dia está quase nascendo – sussurrou Marcus em seu ouvido. – Abra os olhos. Tenho de levá-la para seu quarto.
– Não – disse Lillian, sonolenta. – Daqui a alguns minutos. Mais tarde.
Ela tentou se aninhar novamente nos braços dele. A cama estava muito quente; o ar, frio, e ela sabia que o chão pareceria gelo sob seus pés.
Marcus beijou o alto da cabeça dela e a sentou.
– Agora – insistiu ele em um tom gentil, massageando-lhe as costas com movimentos circulares. – A criada virá acender a grelha... e muitos hóspedes vão caçar esta manhã, o que significa que acordarão cedo.
– Um dia – disse Lillian aborrecida, aconchegada ao peito forte dele – você terá de explicar por que os homens sentem uma satisfação maldosa em sair antes de o dia raiar e perambular por campos lamacentos para matar pequenos animais.
– Porque nós gostamos de nos testar contra a natureza. E, o que é ainda mais importante, isso nos dá uma desculpa para beber antes do meio-dia.
Lillian sorriu e se aconchegou ao ombro dele, esfregando os lábios na pele lisa.
– Estou com frio – sussurrou. – Deite-se comigo debaixo das cobertas.
Marcus gemeu à tentação que ela oferecia e se forçou a sair da cama. Lillian logo se cobriu e apertou as dobras suaves da camisa de Marcus com mais força contra seu corpo. Mas logo ele voltou, totalmente vestido, e a tirou de sob as cobertas.
– Não adianta reclamar – disse Marcus, enrolando-a em um de seus roupões. – Você tem de voltar para seu quarto. Não pode ser vista comigo a esta hora.
– Está com medo do escândalo? – perguntou Lillian.
– Não. Mas é da minha natureza ser discreto sempre que possível.
– Que cavalheiresco – zombou ela, erguendo os braços enquanto ele atava o cinto do roupão.
– Você deveria se casar com uma moça igualmente discreta.
– Ah, mas moças assim não são nem de longe tão divertidas quanto as perversas.
– É isso que eu sou? – perguntou ela, pondo os braços ao redor dos ombros de Marcus. –
Uma garota perversa?
– Ah, sim – disse ele baixinho, e a beijou.
Daisy acordou com o som de alguém arranhando a porta. Com os olhos semicerrados, viu pela luz que ainda era madrugada e a irmã estava à penteadeira, desembaraçando os cabelos.
Sentando-se e afastando os próprios cabelos dos olhos, perguntou:
– Quem pode ser?
– Vou ver.
Já com um vestido matutino de seda vermelho-escuro, Lillian foi até a porta e a entreabriu.
Pelo que Daisy pôde ver, uma criada viera trazer uma mensagem. Uma conversa baixa se seguiu e, embora Daisy não conseguisse distinguir bem as palavras, sentiu uma leve surpresa na voz da irmã seguida de certa irritação.
– Certo – disse Lillian. – Diga a ela que irei. Embora eu não veja necessidade de tanto segredo.
A criada desapareceu e Lillian fechou a porta, franzindo a testa.
– O que foi? – perguntou-lhe Daisy. – O que ela disse? Quem a enviou?
– Não foi nada – respondeu Lillian, e acrescentou com bastante ironia: – Não estou autorizada a dizer.
– Ouvi algo sobre segredo.
– Ah, é só um assunto chato do qual tenho de tratar. Eu lhe explicarei esta tarde. Sem dúvida, terei uma história muito pitoresca e divertida para contar.
– Tem a ver com lorde Westcliff?
– Indiretamente. – Lillian pigarreou e de repente pareceu muito feliz. Talvez mais do que Daisy jamais a vira. – Ah, Daisy, é revoltante o modo como desejo agradá-lo. Temo fazer algo muito idiota hoje. Começar a cantar ou algo desse tipo. Pelo amor de Deus, não me permita.
– Não permitirei – prometeu Daisy, sorrindo de volta. – Então vocês estão apaixonados?
– Essa palavra não deve ser mencionada – Lillian se apressou em dizer. – Mesmo que estivéssemos, e não estou admitindo nada, nunca seria a primeira a dizê-lo. É uma questão de orgulho. E há grande chance de ele não retribuir minha declaração, mas apenas responder com um polido “obrigado”, e nesse caso eu teria de matá-lo. Ou me matar.
– Espero que o conde não seja tão teimoso quanto você – comentou Daisy.
– Ele não é – garantiu-lhe a irmã. – Embora ele ache que seja. – Uma lembrança particular a fez rir, batendo com a mão na testa. – Ah, Daisy – disse com uma alegria diabólica. – Serei uma condessa abominável.
– Não vamos colocar isso dessa maneira – observou Daisy, diplomática. – Em vez disso, diremos “não convencional”.
– Posso ser o tipo de condessa que quiser – disse Lillian, com um pouco de prazer e surpresa.
– Westcliff me disse isso. E... realmente acho que foi sincero.
Depois de um café da manhã leve composto de chá com torradas, Lillian foi para o terraço dos fundos. Apoiando os cotovelos no balcão, olhou para os vastos jardins com caminhos cuidadosamente traçados margeados por sebes largas e baixas repletas de roseiras e teixos antigos podados que forneciam muitos lugares ocultos para explorar. Seu sorriso desapareceu ao pensar que naquele momento a condessa a esperava na Corte das Borboletas, depois de ter mandado uma criada chamá-la.
A condessa desejava falar em particular com Lillian... e não era um bom sinal que fosse tão longe da mansão. Como tinha dificuldade para andar e usava uma bengala ou preferia ser empurrada em uma cadeira de rodas, ir para o jardim secreto era uma tarefa árdua para ela. Teria sido muito mais simples e sensato se encontrarem na sala Marsden, no andar de cima. Mas talvez o que a condessa quisesse falar fosse tão particular – ou tão alto – que não estava disposta a se arriscar a ser ouvida. Lillian sabia bem por que ela lhe pedira que não contasse para ninguém sobre o encontro. Se Marcus descobrisse, insistiria em se aprofundar no assunto depois – algo que nenhuma delas queria. Além disso, Lillian não tinha nenhuma intenção de se esconder atrás de Marcus. Era capaz de encarar a condessa sozinha.
É claro que esperava um longo discurso de crítica. Sua relação com a condessa lhe ensinara que essa mulher tinha uma língua afiada e parecia não estabelecer nenhum limite a suas palavras ferinas. Mas isso não importava. Cada sílaba que a condessa pronunciasse deslizaria por Lillian como chuva em uma vidraça, porque ela estava segura de que nada poderia impedi-la de se casar com Marcus. E a condessa teria de perceber que era do seu interesse manter um relacionamento cordial com a nora. Caso contrário, elas seriam capazes de infernizar igualmente a vida uma da outra.
Lillian deu um sorriso triste ao descer o longo lance de escadas que levava ao jardim e sair para o ar frio da manhã.
– Estou indo, velha bruxa. Mostre-me do que é capaz.
Quando Lillian chegou à Corte de Borboletas, a porta estava entreaberta. Endireitando os ombros, ela assumiu uma expressão de fria tranquilidade e entrou. A condessa estava sozinha no jardim secreto, sem nenhum criado por perto para atendê-la, sentada no banco circular como se fosse um trono, a bengala cravejada de brilhantes pousada ao seu lado. Conforme o esperado, sua expressão era pétrea e, por um breve momento, Lillian ficou tentada a rir ao pensar que a mulher parecia uma diminuta guerreira preparada para aceitar nada menos do que uma indiscutível vitória.
– Bom dia – disse Lillian em um tom agradável, aproximando-se. – Que lugar lindo escolheu para nosso encontro, milady! Espero que a caminhada da mansão até aqui não a tenha cansado muito.
– Isso é da minha conta, não sua – respondeu a condessa.
Embora os olhos pretos achatados como os de um peixe fossem inexpressivos, Lillian sentiu um súbito arrepio. Não era exatamente medo, mas uma apreensão instintiva que nunca sentira em seus encontros anteriores.
– Eu só estava expressando meu interesse em seu conforto – disse Lillian, erguendo as mãos em um falso gesto de autodefesa. – Não a provocarei com mais tentativas de ser amigável, milady.
Vá direto ao assunto. Estou aqui para ouvir.
– Para seu próprio bem e o do meu filho, espero que ouça mesmo.
Uma gélida aspereza permeou as palavras da condessa, e ao mesmo tempo ela pareceu um tanto perplexa, como se não acreditasse na necessidade de dizer aquelas coisas. Sem dúvida, de todas as discussões que já tivera na vida, essa era uma que nunca esperara.
– Se eu imaginasse que o conde poderia se sentir atraído por uma moça rude como você, teria posto fim a isso antes. Ele não está em plena posse de suas capacidades mentais, ou nunca teria cometido essa loucura.
Quando a mulher de cabelos prateados parou para tomar fôlego, Lillian se viu perguntando em voz baixa:
– Por que chama isso de loucura? Algumas semanas atrás me considerou capaz de me casar com um aristocrata inglês. Por que não o próprio conde? Faz objeções a isso por antipatia pessoal ou...
– Garota estúpida! – exclamou a condessa. – Minhas objeções se devem ao fato de que, nas últimas quinze gerações de herdeiros Marsdens, nenhum deles se casou com alguém que não fizesse parte da aristocracia. E meu filho não será o primeiro conde a fazer isso! Você não entende nada sobre a importância do sangue. Vem de um país sem tradições, sem cultura e sem nenhum vestígio de nobreza. Se o conde se casar com você, será um desastre não só para ele como para mim, e a derrocada de todos os homens e todas as mulheres que ostentam o brasão dos Marsdens.
A soberba da afirmação quase arrancou uma gargalhada de Lillian... só não o fez porque pela primeira vez percebeu que a crença de Lady Westcliff na inviolabilidade da linhagem nobre dos Marsdens tinha um fervor quase religioso. Enquanto a condessa tentava recuperar a compostura, Lillian se perguntou como poderia levar o assunto para um nível pessoal e apelar para os sentimentos profundos da condessa pelo filho.
A sinceridade emocional não era fácil para Lillian. Ela preferia fazer comentários inteligentes ou cínicos, porque sempre parecera arriscado demais falar de coração aberto. Contudo, isso era importante. E talvez devesse tentar ser sincera com a mulher com cujo filho se casaria em breve.
Lillian falou com deliberada lentidão:
– Milady, sei que no fundo deseja a felicidade de seu filho. Gostaria que entendesse que desejo o mesmo. É verdade que não tenho sangue azul e não possuo as qualidades de que a senhora gostaria... – Ela fez uma pausa e, com um sorriso irônico, acrescentou: – E nem sei ao certo o que significa um brasão. Mas acho... acho que poderia fazer Westcliff feliz. Pelo menos poderia aliviar um pouco as preocupações dele... e juro que não me comportarei de modo totalmente impulsivo.
Se não acreditar em mais nada, por favor, saiba que eu nunca ia querer envergonhá-lo ou ofendê-la.
– Não vou ouvir mais essas bobagens e lamúrias! – explodiu a condessa. – Tudo em você me ofende. Eu não a aceitaria nem como criada em minha propriedade, muito menos como senhora dela. Meu filho não sente nada por você. Isso não passa de um sintoma dos problemas passados dele com o pai. Representa uma rebeldia, uma retaliação inútil contra um fantasma. E quando a novidade de sua esposa vulgar passar, o conde a desprezará como eu a desprezo. Mas então será tarde demais. A linhagem estará arruinada.
Lillian permaneceu com o rosto inexpressivo, embora sentisse que estava perdendo a cor.
Deu-se conta de que ninguém jamais a olhara com tanto ódio. Estava claro que a condessa lhe desejava todo o mal, exceto a morte, e talvez até isso. Mas, em vez de se encolher, chorar ou protestar, viu-se contra-atacando:
– Talvez ele queira se casar comigo como uma retaliação contra a senhora, milady. Nesse caso, eu ficaria feliz em servir de meio de represália.
A condessa arregalou os olhos.
– Não ouse! – grasnou.
Embora Lillian estivesse tentada a dizer mais, temeu que a condessa tivesse um ataque. E, pensou com sarcasmo, matar a mãe do homem não era um bom modo de começar um casamento. Contendo as palavras ferinas, Lillian estreitou os olhos e encarou a condessa.
– Acho que deixamos nossas posições claras. Embora eu esperasse um resultado diferente de nossa conversa, levarei em conta que a notícia foi um choque. Talvez com o passar do tempo possamos chegar a algum tipo de entendimento.
– Sim... chegaremos.
Houve um silvo na voz da mulher e Lillian teve de resistir a um impulso instintivo de retroceder ao ver a malevolência no olhar dela. Subitamente se sentindo arrepiada e suja com a horrível conversa, Lillian só queria ficar o mais longe possível daquela mulher. Mas lembrou a si mesma que a condessa não poderia fazer nada contra ela, já que Marcus a queria.
– Eu me casarei com ele – insistiu, calma, sentindo necessidade de deixar isso claro.
– Não enquanto eu viver – sussurrou a condessa.
Ela se levantou, pegou a bengala e a usou para se equilibrar. Consciente da fragilidade física da mulher, Lillian quase foi ajudá-la. Mas a condessa lhe lançou um olhar tão venenoso que ela se conteve, temendo ser atacada com a bengala.
O sol suave da manhã se infiltrava pelo delicado véu de névoa que pairava sobre o jardim de borboletas e algumas belas-damas abriram suas asas para pousar em flores semiabertas. Era um jardim muito bonito e incompatível com as palavras venenosas que haviam sido ditas ali. Lillian seguiu a mulher que se dirigia à saída da Corte de Borboletas.
– Permita-me abrir a porta – ofereceu.
A condessa esperou como se fosse uma rainha e depois atravessou o limiar.
– Poderíamos ter nos encontrado em um lugar mais conveniente – Lillian não resistiu a comentar. – Afinal de contas, poderíamos ter discutido de igual forma na mansão, onde não seria preciso que caminhasse tanto.
Ignorando-a, Lady Westcliff continuou a andar. E então disse algo estranho, sem se dar ao trabalho de olhar por cima do ombro, mas olhando para o lado, como se estivesse falando com outra pessoa.
– Pode prosseguir.
– Milady? – perguntou Lillian, intrigada, e se preparou para segui-la para fora do jardim secreto.
Com brutal rapidez, Lillian foi agarrada por trás. Antes que pudesse se mover ou falar, algo lhe foi posto sobre a boca e o nariz. Ela arregalou os olhos de medo e tentou lutar, sentindo os pulmões em uma dolorosa tentativa de respirar. A coisa que alguém segurava com força sobre seu rosto estava saturada de um líquido enjoativamente adocicado, cujos vapores lhe chegavam às narinas, à garganta, ao peito e à cabeça... fazendo-a desabar pouco a pouco, como uma torre de blocos de madeira pintada. Perdendo o controle dos braços e das pernas, ela mergulhou em uma insondável escuridão, e seus olhos se fecharam enquanto o sol se tornava negro.
Ao voltar de um café da manhã tardio servido no pavilhão ao lado do lago depois da caçada matutina, Marcus parou ao pé da grande escada nos fundos da mansão. Um dos participantes da caçada, um ancião amigo da família havia vinte anos, o procurara para se queixar de outro hóspede.
– Atirou quando não era a vez dele – disse o homem, irritado. – Não uma ou duas vezes, mas três. E o que é pior: disse que tinha acertado uma ave que eu acertei. Nunca em todos os meus anos de caçadas em Stony Cross Park vi tanta grosseria...
Marcus o interrompeu com seriedade e educação, prometendo que não só falaria com o hóspede ofensivo, como também que o ancião seria convidado a voltar na semana seguinte para caçar à vontade. Um pouco mais calmo, o ofendido deixou Marcus com alguns últimos resmungos sobre o mau comportamento de hóspedes sem nenhuma noção de cavalheirismo no campo. Com um sorriso triste, Marcus subiu os degraus para o terraço dos fundos. Viu Hunt, que também acabara de voltar, em pé com a cabeça inclinada para a esposa. Annabelle parecia muito preocupada com alguma coisa, sussurrando para Hunt e segurando a manga de seu casaco.
Ao chegar ao degrau de cima, Daisy Bowman se aproximou com a amiga Evie Jenner que, como sempre, não conseguia encará-lo. Fazendo uma breve mesura, Marcus sorriu para Daisy, por quem achava que poderia facilmente desenvolver uma afeição fraternal. O corpo esguio e o espírito doce e exuberante da moça o faziam se lembrar de Livia quando era mais jovem. Mas naquele momento a costumeira expressão alegre de Daisy desaparecera e ela estava com o rosto pálido.
– Milorde – murmurou. – Estou aliviada por ter voltado. Há... um encontro particular que está nos causando certa preocupação.
– Como posso ajudar? – perguntou Marcus.
Uma ligeira brisa lhe agitou os cabelos ao inclinar a cabeça sobre a dela.
Daisy pareceu ter dificuldade em explicar.
– É a minha irmã – disse, nervosa. – Não conseguimos encontrá-la em lugar nenhum. A última vez que a vi foi umas cinco horas atrás. Ela saiu para fazer algo e não quis explicar o que era. Como não voltou, fui procurá-la. E as outras Flores Secas, Evie e Annabelle, também foram.
Lillian não está em nenhuma parte da mansão nem nos jardins. Fui até o poço dos desejos para ver se ela por algum motivo tinha ido lá. Não é típico dela desaparecer dessa maneira. Pelo menos não sem mim. Talvez seja cedo demais para me preocupar, mas... – Ela parou e franziu o cenho, como se tentasse afastar sua preocupação, mas não conseguisse. – Há algo muito errado, milorde. Posso sentir isso.
Marcus manteve o rosto inexpressivo, embora por dentro sentisse uma violenta pontada de preocupação. Sua mente pensou nas possíveis explicações para a ausência de Lillian, das frívolas às extremas, e nada fazia sentido. Ela não era nenhuma boba capaz de se afastar da casa e se perder, e, apesar de gostar de pregar peças, nunca entraria nesse tipo de jogo. Também não parecia provável que tivesse ido fazer uma visita, porque não conhecia ninguém na vila e não sairia da propriedade sozinha. Estaria ferida? Teria se sentido mal?
O coração de Marcus batia ansiosamente, mas ele manteve a voz calma ao olhar o rosto pequeno de Daisy e o de Evie.
– É possível que ela tenha ido aos estábulos e...
– N-não, milorde – disse Evie. – Já fui perguntar. Todos os cavalos estão lá e nenhum dos cavalariços viu Lillian hoje.
Marcus assentiu.
– Organizarei uma busca meticulosa na casa e nos arredores – disse. – Vamos encontrá-la em menos de uma hora.
Parecendo confortada pela determinação do conde, Daisy deu um trêmulo suspiro.
– O que posso fazer?
– Fale-me mais sobre o que Lillian foi fazer. – Marcus olhou com atenção para os olhos redondos cor de gengibre de Daisy. – O que vocês conversaram antes de ela sair?
– Uma das criadas veio entregar uma mensagem para ela esta manhã e...
– A que horas? – interrompeu-a Marcus.
– Por volta das oito.
– Que criada?
– Não sei, milorde. Não pude ver quase nada, porque a porta estava apenas entreaberta quando elas falaram. E a criada usava uma touca, por isso nem posso lhe dizer a cor dos cabelos dela.
Durante a conversa, Hunt e Annabelle se juntaram a eles.
– Vou interrogar a governanta e as criadas – disse Hunt.
– Ótimo. – Com uma necessidade explosiva de agir, Marcus murmurou: – Começarei a busca pelos arredores.
Ele reuniria um grupo de criados e alguns hóspedes, inclusive o pai de Lillian, para ajudar.
Calculou rapidamente por quanto tempo Lillian estivera ausente e a distância que poderia ter percorrido a pé em um terreno acidentado.
– Começaremos pelos jardins e ampliaremos a busca para um raio de quinze quilômetros ao redor da mansão.
Encontrando o olhar de Hunt, apontou a cabeça para a porta e ambos se prepararam para sair.
– Milorde – disse Daisy, ansiosa, detendo-o por um instante. – Vai encontrá-la, não vai?
– Sim – disse ele sem hesitar. – E depois vou estrangulá-la.
Isso arrancou um sorriso tenso de Daisy, e ela o observou se afastar a passos largos.
Com o correr da tarde, o estado de espírito de Marcus mudou de grande frustração para insuportável preocupação. Thomas Bowman, bastante convencido de que aquilo fora uma travessura da filha, juntou-se a um grupo de cavaleiros que faziam a busca na floresta e nos prados próximos enquanto outro grupo de voluntários descia a ribanceira para o rio. A casa dos solteiros, a casa do guarda do portão, o depósito de gelo, a capela, o conservatório, a adega, os estábulos e o pátio dos estábulos foram meticulosamente inspecionados. Parecia que cada centímetro de Stony Cross Park fora coberto sem que tivesse sido encontrado nada, nem mesmo uma pegada ou luva perdida que indicasse o que poderia ter acontecido com Lillian.
Enquanto Marcus cavalgava pela floresta e pelos campos até Brutus ficar com os flancos suados e a boca espumando, Simon Hunt permaneceu na mansão para interrogar os criados. Era o único homem em que Marcus confiava para cumprir a tarefa com a mesma eficiência que ele próprio. Além disso, o conde não estava com disposição de falar pacientemente com ninguém.
Tinha vontade de bater cabeças umas nas outras e arrancar a informação que queria da garganta indefesa de alguém. Saber que Lillian estava em algum lugar lá fora, perdida ou talvez machucada, lhe provocava uma emoção desconhecida, ardente como um raio, fria como gelo... ,um sentimento que identificou como medo. A segurança de Lillian era importante demais para ele. Não podia suportar a ideia de ela estar em uma situação em que seria incapaz de ajudá-la. Ou até de encontrá-la.
– Ordenará que os tanques e lagos sejam dragados, milorde? – perguntou Willian, o mordomo, depois de um rápido relato da busca até aquele momento.
Marcus lhe lançou um olhar vazio enquanto um zumbido em seus ouvidos se tornava mais alto e profundo e os batimentos de seu pulso faziam suas veias doerem.
– Ainda não – ouviu-se dizer, com a voz surpreendentemente equilibrada. – Vou me reunir com o Sr. Hunt em meu escritório. Encontre-me lá se algo surgir nos próximos minutos.
– Sim, milorde.
Marcus andou a passos largos para o escritório, onde Hunt estivera interrogando os criados um a um, e entrou sem bater. Viu Hunt sentado à grande escrivaninha de mogno, a cadeira de frente para uma criada sentada em outra. Ao ver Marcus, ela se levantou para lhe fazer uma nervosa mesura.
– Sente-se – disse Marcus, e talvez pelo tom, pela expressão dura ou apenas pela presença dele, a criada explodiu em lágrimas.
Marcus olhou atentamente para Simon Hunt, que a encarava com uma calma e uma terrível insistência.
– Milorde – disse Hunt, sem desviar os olhos da mulher que chorava contra a manga de seu vestido. – Depois de interrogar por alguns minutos esta jovem, Gertie, parece evidente que ela pode ter alguma informação útil sobre a saída da Srta. Bowman esta manhã e seu posterior desaparecimento. Mas creio que o medo de ser despedida pode estar induzindo Gertie a se calar.
Se, como patrão dela, puder lhe fornecer alguma garantia...
– Você não será despedida – disse Marcus para a criada com uma voz dura – se me passar sua informação neste exato momento. Caso contrário não só a despedirei como providenciarei que seja processada como cúmplice do desaparecimento da Srta. Bowman.
Gertie arregalou os olhos para ele, parando imediatamente de chorar ao responder gaguejando, aterrorizada:
– M-milorde... Fui enviada para entregar uma mensagem à Srta. Bowman esta manhã, mas não podia contar para ninguém... era para um encontro secreto, na Corte das Borboletas, e ela falou que, se eu dissesse uma só palavra sobre isso para alguém, seria despedida.
– Enviada por quem? – perguntou Marcus, fervendo de raiva. – Para se encontrar com quem?
Droga, diga-me!
– Pela condessa – sussurrou Gertie, parecendo aterrorizada com algo que viu no rosto dele. –
Pela condessa de Westcliff, milorde.
Antes de ela proferir a última palavra, Marcus já havia saído da sala e disparado para a grande escada com uma fúria assassina.
– Westcliff! – gritou Simon Hunt, correndo atrás dele. – Westcliff... que inferno, espere...
Marcus acelerou o passo, subindo os degraus de três em três. Mais do que ninguém no mundo, sabia do que a condessa era capaz... e sua alma estava envolta em uma nuvem negra de horror sabendo que, de um modo ou outro, talvez já tivesse perdido Lillian.
CAPÍTULO 24
Lillian se sentiu sendo sacudida com irritante repetição. De repente percebeu que estava em uma carruagem em alta velocidade, balançando e sacolejando pela estrada. Um cheiro horrível saturava tudo... um tipo de solvente forte. Mexendo-se, confusa, deu-se conta de que seu ouvido estava comprimido contra um travesseiro duro recheado com um material altamente condensado. Sentia-se muito mal, como se tivesse sido envenenada. A cada vez que respirava, sua garganta ardia. As náuseas vinham em ondas. Ela gemeu em protesto enquanto sua mente embotada tentava se desvencilhar de sonhos desagradáveis.
Abrindo os olhos, viu algo acima dela... um rosto que parecia se projetar para a frente e desaparecer ao acaso. Tentou fazer uma pergunta, descobrir o que estava acontecendo, mas seu cérebro parecia desconectado do resto do corpo e, embora estivesse vagamente consciente de ter dito algo, as palavras que saíram de sua boa foram desconexas.
– Shh... – Dedos longos se moveram sobre a cabeça dela, massageando-lhe o couro cabeludo e as têmporas. – Descanse. Logo se sentirá melhor, doçura. Apenas descanse e respire.
Confusa, Lillian fechou os olhos e tentou usar seu cérebro em uma frágil imitação de seu processo normal. Depois de algum tempo, ligou a voz a uma imagem.
– Sanvincen... – murmurou, sem conseguir mexer direito a língua.
– Sim, amor.
A primeira sensação de Lillian foi de alívio. Um amigo. Alguém que a ajudaria. Mas o alívio desapareceu quando seus instintos entraram em alerta e ela virou a cabeça para o que parecia ser a coxa de St. Vincent. O cheiro nauseante em seu nariz e seu rosto, a ardência em seus olhos. Ela ergueu os dedos para sua pele em uma tentativa instintiva de arranhá-la.
St. Vincent lhe segurou os pulsos, murmurando:
– Não, não... Eu a ajudarei. Abaixe as mãos, amor. Boa garota. Beba um pouco disto. Apenas um gole, ou vomitará.
Um frasco, um cantil de couro, ou talvez uma garrafa, foi pressionado contra seus lábios, e a água fresca escorreu para sua boca. Ela engoliu, grata, e ficou parada enquanto um pano úmido lhe era aplicado nas bochechas, no nariz e no queixo.
– Pobrezinha – murmurou St. Vincent, enxugando-lhe o pescoço e depois se ocupando da testa. – O idiota que a trouxe para mim deve ter usado o dobro do éter necessário. Você deveria ter acordado há muito tempo.
Éter. O idiota que a trouxe para mim... Ela teve o primeiro vislumbre de compreensão e olhou para ele sem enxergar direito, percebendo apenas os contornos do rosto e a cor do cabelo dourado-escuro como um ícone eslavo antigo.
– Não consigo enxergar.
– Vai melhorar daqui a alguns minutos.
– Éter...
Lillian pensou na palavra, que lhe soava familiar. Já a ouvira, em alguma loja de produtos farmacêuticos. Éter... vitríolo doce... usado como intoxicante e, de vez em quando, como auxiliar em procedimentos médicos.
– Por quê? – perguntou, sem saber ao certo se seu tremor incontrolável resultava do envenenamento por éter ou da percepção de que estava deitada, indefesa, nos braços de um inimigo.
Embora ainda não pudesse ver com clareza a expressão no rosto de St. Vincent, ouviu o tom de desculpa na voz dele:
– Não tive escolha quanto ao modo de trazê-la, doçura, ou teria me certificado de que isso fosse feito com mais gentileza. Tudo o que me disseram foi que, se eu a quisesse, deveria vir buscá-la sem demora, ou você seria descartada de outro modo. Conhecendo a condessa, não ficaria surpreso se ela a afogasse como um gato em um saco.
– Condessa – repetiu Lillian debilmente, ainda com dificuldade em mexer sua língua grossa e inchada. A saliva lhe inundava a boca, um efeito colateral do éter. – Westcliff... diga-lhe...
Ah, como ela queria Marcus. Queria a voz profunda e as mãos amorosas dele, o calor do corpo dele contra o seu. Mas Marcus não sabia onde ela estava ou o que lhe acontecera.
– Seu destino mudou, doçura – disse St. Vincent em um tom suave, acariciando-lhe outra vez os cabelos. Parecia poder ler seus pensamentos. – Não adianta chamar por Westcliff... você está fora do alcance dele agora.
Lillian se debateu e tentou se sentar, mas tudo o que conseguiu foi quase rolar para o chão da carruagem.
– Calma – murmurou St. Vincent, mantendo-a no lugar com apenas uma leve pressão nos ombros dela. – Ainda não está pronta para se sentar sozinha. Não, não faça isso. Vai se sentir enjoada.
Embora se odiasse por isso, Lillian não pôde evitar um gemido de aflição ao desabar de novo no colo de St. Vincent com a cabeça pousando fracamente na coxa dele.
– O que está fazendo? – conseguiu dizer, ofegando e tentando conter o vômito. – Para onde estamos indo?
– Para Gretna Green. Vamos nos casar, doçura.
As náuseas e o pânico tornaram difícil para Lillian pensar.
– Não vou cooperar – sussurrou por fim, engolindo a saliva várias vezes.
– Acho que vai – respondeu ele, calmo. – Conheço vários métodos para forçar sua participação, embora prefira não lhe causar dor desnecessária. E, depois da cerimônia, uma consumação adequada tornará a união permanente.
– Westcliff não aceitará isso – grasnou Lillian. – Não importa o que você faça. Ele... ele me tirará de você.
A voz de St. Vincent foi suave:
– A essa altura ele não terá nenhum direito legal sobre você, doçura. E eu o conheço há muito mais tempo do que você, por isso sei que não a quererá depois que eu a tiver possuído.
– Não se tiver sido violação – balbuciou Lillian, encolhendo-se ao sentir a palma da mão de St. Vincent deslizar pelo seu ombro. – Ele não me culpará.
– Não será violação – disse ele, gentil. – Se há algo que eu sei, doçura, é como... bem, não vou me vangloriar. Mas, deixando de lado as questões técnicas, posso lhe garantir que, embora Westcliff não vá culpá-la, não arriscará a possibilidade de sua esposa ter um filho bastardo. E também não aceitará uma mulher deflorada. Irá, com relutância, é claro, informá-la de que provavelmente será melhor para todos os envolvidos deixar as coisas como estão. Então se casará com a moça inglesa apropriada que deveria ter escolhido desde o início. Quanto a você – ele passou um dedo pela curva da bochecha trêmula de Lillian –, me será útil. Ouso dizer que sua família se reconciliará comigo bem depressa. Eles são do tipo que aproveita as oportunidades.
Lillian não concordava com a análise do visconde, pelo menos não no que dizia respeito a Marcus. Tinha muita fé na lealdade dele. Contudo, não queria testar essa teoria, especialmente a parte indesejada da consumação. Ficou quieta por um longo minuto, percebendo, aliviada, que sua visão estava clareando e as náuseas tinham melhorado um pouco, embora a saliva amarga ainda se acumulasse em sua boca. Agora que a confusão e o pânico inicial tinham passado, podia forçar sua cabeça cansada a pensar. Embora parte dela desejasse explodir de raiva, não via o benefício que poderia resultar disso. Seria muito melhor recuperar seu julgamento e tentar ser racional.
– Quero me sentar – disse.
St. Vincent pareceu admirado e surpreso com a calma dela.
– Então sente-se devagar e me deixe apoiá-la até conseguir se recuperar.
Faíscas brancas e azuis encobriram a visão de Lillian quando ela o sentiu acomodá-la em um canto da carruagem. Mais saliva, mais uma sensação de fraqueza, e então conseguiu se recompor.
Viu que seu vestido estava aberto até a cintura, revelando a camisola amassada por baixo. Seu coração bateu ansiosamente e ela tentou sem sucesso juntar os dois lados do corpete. Lançou um olhar acusador para St. Vincent. Ele estava com uma expressão séria, mas os olhos alegres e sorridentes.
– Não, eu não a violentei – murmurou. – Ainda não. Prefiro que minhas vítimas estejam conscientes. Mas sua respiração estava fraca e temi que a mistura de uma overdose de éter e um espartilho muito apertado pudessem matá-la. Tirei o espartilho, mas não consegui fechar seu vestido.
– Mais água – disse Lillian, e tomou com cautela um gole do cantil de couro que ele lhe entregou.
Olhou para St. Vincent com frieza, procurando qualquer vestígio do companheiro encantador que conhecera em Stony Cross Park. Tudo o que pôde ver foram os olhos desapaixonados de um homem que não hesitaria em obter o que queria. Ele não tinha princípios, nenhum senso de honra, nenhuma fraqueza humana. Ela poderia chorar, gritar e implorar, e nada o comoveria. Ele não hesitaria em fazer qualquer coisa, até mesmo violá-la, para atingir seus fins.
– Por que eu? – perguntou num tom monótono. – Por que não outra moça rica?
– Porque você é a opção mais conveniente. E, financeiramente falando, é de longe a mais rica.
– E quer atingir Westcliff – disse Lillian. – Porque tem inveja dele.
– Doçura, isso é ir um pouco longe demais. Eu não trocaria de lugar com Westcliff e sua carga infernal de obrigações para com todo mundo. Só quero melhorar minha situação.
– E por isso está disposto a ter uma esposa que o odiará? – perguntou Lillian, esfregando os olhos embaçados e pegajosos. – Se acha que algum dia o perdoarei, é um idiota vaidoso e egocêntrico. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para torná-lo infeliz. É isso que quer?
– Neste momento, doçura, tudo o que quero é seu dinheiro. Mais tarde descobrirei como suavizar seus sentimentos por mim. Se não conseguir, sempre poderei mandá-la para um país distante onde seu único divertimento será ver vacas e ovelhas pela janela.
A cabeça de Lillian latejava. Ele passou os dedos pelas têmporas dela e as pressionou em um esforço para diminuir a dor.
– Não me subestime – disse Lillian com os olhos fechados e o coração parecendo uma pedra gelada em seu peito. – Tornarei sua vida um inferno. Posso até matá-lo.
Uma risada falsa se seguiu àquela afirmação.
– Sem dúvida, alguém fará isso um dia. Bem poderia ser minha esposa.
Lillian se calou, estreitando os olhos com mais força para conter lágrimas inúteis. Não ia chorar. Esperaria o momento oportuno... e se fosse preciso matá-lo para escapar, o faria de bom grado.
Quando Marcus chegou aos aposentos particulares da condessa com Simon Hunt logo atrás dele, a comoção atraíra a atenção de metade da casa. Decidido a encontrar a bruxa má que era sua mãe, Marcus mal notou os rostos chocados dos criados pelos quais passou. Ignorou as exortações de Simon Hunt a se acalmar, não se deixar levar pela fúria e ser racional. Nunca em sua vida Marcus se sentira tão longe da sanidade.
Chegando à porta dos aposentos da mãe, descobriu que estava trancada. Sacudiu violentamente a maçaneta.
– Abra! – gritou. – Abra agora!
Silêncio, e depois a resposta de uma criada, assustada, lá dentro:
– Milorde... a condessa mandou lhe dizer que está descansando.
– Eu a enviarei para seu maldito descanso eterno se esta porta não for aberta agora! – rugiu Marcus.
– Milorde, por favor...
Ele recuou três ou quatro passos e se atirou contra a porta, que balançou nas dobradiças e cedeu parcialmente com um som metálico. Houve gritos de medo no corredor de duas hóspedes que testemunharam o surpreendente ataque de fúria.
– Meu Deus! – exclamou uma para a outra. – Ele enlouqueceu!
Marcus recuou de novo e se lançou contra a porta, dessa vez mandando pedaços de madeira pelos ares. Sentiu as mãos de Simon Hunt o agarrarem por trás e se virou com a mão fechada, pronto para atacar todas as frentes que fossem necessárias.
– Jesus – murmurou Hunt, recuando um ou dois passos com as mãos erguidas em um gesto defensivo. Ele estava com o rosto tenso e os olhos arregalados, encarando Marcus como se fosse um estranho. – Westcliff...
– Saia do meu caminho!
– Com todo o prazer. Mas deixe-me ressaltar que, se eu estivesse no seu lugar, você seria o primeiro a me dizer para manter a calma...
Ignorando-o, Marcus se virou novamente para a porta e desferiu um golpe forte e certeiro com sua bota na fechadura desconjuntada. O grito da criada foi ouvido do outro lado da porta arruinada, que se abriu. Marcus se precipitou para o quarto, onde a condessa estava sentada em uma cadeira perto de uma pequena lareira. Totalmente vestida e envolta em cordões de pérolas, ela o olhou com divertido desdém.
Com a respiração pesada, Marcus avançou para a mãe com uma fúria assassina. Estava certo de que a condessa não tinha a menor ideia de que corria risco de morte, ou não o teria recebido com tanta calma.
– Está com um espírito animalesco hoje, não é? – perguntou ela. – Decaiu muito rápido de um cavalheiro para um bruto selvagem. Devo oferecer meus cumprimentos à Srta. Bowman por sua eficiência.
– O que fez com ela?
– Fiz com ela? – A expressão de inocente perplexidade da mãe foi um insulto para ele. – O
que diabos quer dizer, Westcliff?
– Vocês se encontraram na Corte das Borboletas esta manhã.
– Eu nunca me afasto tanto da mansão – respondeu a condessa, arrogante. – Que afirmação ridíc...
Ela deu um grito estridente quando Marcus a agarrou, segurando os colares de pérolas e os apertando ao redor de seu pescoço.
– Diga-me onde ela está ou quebrarei seu pescoço como se fosse uma ave!
Simon Hunt o segurou mais uma vez por trás, determinado a evitar um assassinato.
– Westcliff!
Marcus apertou mais. Sem pestanejar, olhou para o rosto da mãe e viu o brilho de triunfo e vingança nos olhos dela. Não deixou de encará-la nem mesmo quando ouviu a voz de sua irmã Livia:
– Marcus – disse ela com urgência. – Marcus, me escute! Você tem minha permissão para estrangulá-la mais tarde. Até o ajudarei. Mas pelo menos espere até descobrirmos o que ela fez.
Marcus aumentou a pressão até os olhos da mãe parecerem saltar das órbitas.
– Seu único valor para mim – disse ele em voz baixa – é saber onde Lillian Bowman está. Se eu não conseguir lhe arrancar isso, a mandarei para o inferno. Diga-me ou a estrangularei para descobrir. E acredite que tenho o suficiente do meu pai em mim para fazer isso sem pensar duas vezes.
– Ah, sim, você tem – disse a condessa, rouca. – Quando a pressão da mão de Marcus diminuiu um pouco, ela sorriu com malévola satisfação. – Vejo que todas as intenções que você tinha de ser mais nobre, melhor e mais sábio que seu pai desapareceram. Aquela criatura Bowman o aprisionou sem sequer...
– Agora – rugiu ele.
Pela primeira vez, ela começou a parecer desconfortável, embora não menos arrogante.
– Admito que me encontrei com a Srta. Bowman esta manhã na Corte das Borboletas, onde ela me falou sobre suas intenções de fugir com lorde St. Vincent.
– Isso é mentira! – gritou Livia indignada, enquanto uma explosão de vozes femininas agitadas veio da direção da porta... as Flores Secas, que pareciam negar de modo veemente a afirmação.
Marcus soltou a condessa como se tivesse sido queimado. Sua primeira reação foi de grande alívio por saber que Lillian ainda estava viva. Mas o alívio logo foi seguido pela consciência de que ela estava longe de estar a salvo. Diante da necessidade de St. Vincent de uma fortuna, fazia todo o sentido que ele sequestrasse Lillian. Marcus deu as costas para a mãe, sem querer olhar para ela de novo e incapaz de lhe dirigir a palavra. Seu olhar encontrou o de Simon Hunt.
Previsivelmente, Hunt já estava fazendo cálculos rápidos.
– Ele deve tê-la levado para Gretna Green, é claro – murmurou –, e terão de viajar para o leste até a estrada principal em Hertfordshire. Ele não se arriscará a pegar estradas secundárias e ficar atolado na lama, ou ter as rodas danificadas. De Hertfordshire, demorarão aproximadamente quarenta e cinco horas para chegar à Escócia... a uns quinze quilômetros por hora, com paradas ocasionais para troca de cavalos...
– Você nunca os alcançará – gritou a condessa com uma gargalhada estridente. – Eu lhe disse que faria prevalecer minha vontade, Westcliff!
– Ah, cale a boca, bruxa dos infernos – gritou Daisy Bowman da porta, impaciente e com os olhos arregalados em seu rosto pálido. – Lorde Westcliff, devo correr para os estábulos e pedir para selarem um cavalo?
– Dois cavalos – disse Simon Hunt, decidido. – Vou com ele.
– Quais?
– Ébano e Yasmin – respondeu Marcus.
Eram seus melhores árabes, criados para ser velozes em longas distâncias. Não eram tão rápidos quanto os puros-sangues, mas aguentavam um ritmo acelerado durante horas, movendo-se pelo menos três vezes mais rápido do que a carruagem de St. Vincent.
Daisy desapareceu em um segundo e Marcus se virou para sua irmã.
– Providencie para que a condessa não esteja mais aqui quando eu voltar – disse. – Arrume tudo de que ela precisa e a faça sair da propriedade.
– Para onde quer que eu a mande? – perguntou Livia, pálida mas serena.
– Não importa, desde que ela saiba que não deve voltar.
Percebendo que estava sendo expulsa, e provavelmente exilada, a condessa se levantou de sua cadeira.
– Não serei descartada dessa maneira! Não aceitarei isso, milorde!
– E fale para a condessa – disse Marcus a Livia – que se o menor dano for causado à Srta. Bowman, é melhor ela rezar para que eu nunca a encontre.
Marcus saiu do quarto a passos largos, abrindo caminho entre uma pequena multidão reunida no corredor. Hunt o seguiu, parando apenas por um instante para falar com Annabelle e lhe dar um beijo na testa. Ela o observou se afastar com as sobrancelhas franzidas de preocupação, mordendo os lábios para não gritar o nome dele.
Depois de uma longa pausa, ouviu-se a condessa murmurar:
– Não importa o que aconteça comigo. Estou feliz em saber que o impedi de manchar a linhagem da família.
Livia se virou para lhe lançar um olhar de lástima e desprezo.
– Marcus nunca fracassa – disse em voz baixa. – Passou a maior parte da infância aprendendo a superar coisas impossíveis. E agora que enfim encontrou alguém por quem vale a pena lutar... acha mesmo que deixaria algo impedi-lo?
CAPÍTULO 25
Apesar do medo e da preocupação, os últimos efeitos do éter fizeram Lillian dormir sentada com a cabeça apoiada no estofamento de veludo da carruagem. Uma interrupção do movimento a fez acordar. Suas costas doíam e seus pés estavam frios e dormentes. Esfregando os olhos doloridos, ela se perguntou se estivera sonhando. Desejou acordar no pequeno quarto tranquilo em Stone Cross Park... ou, melhor ainda, na cama espaçosa que dividira com Marcus. Abrindo os olhos, viu o interior da carruagem de St. Vincent e sentiu um baque em seu coração.
Seus dedos tremeram ao estender desajeitadamente a mão para erguer a cortina da janela.
Estava anoitecendo. O sol poente projetava seus últimos raios de luz em um bosque de carvalhos.
A carruagem havia parado na frente de uma estalagem com um letreiro pendurado na fachada.
Era uma estalagem grande, com estábulos capazes de abrigar uns cem cavalos e três prédios encostados um no outro para hospedar os muitos viajantes que usavam a estrada principal com pedágio.
Percebendo um movimento no banco ao seu lado, Lillian começou a se virar e se retesou ao sentir seus pulsos sendo presos em suas costas.
– O quê... – perguntou, enquanto frias argolas de metal eram colocadas em seus pulsos. Ela puxou os braços, mas estavam bem presos. Algemas, pensou. – Seu desgraçado. Maldito... – Sua voz foi abafada por um pano enfiado em sua boca e uma mordaça posta sobre ele.
– Desculpe-me – murmurou St. Vincent ao seu ouvido, sem parecer nem um pouco arrependido. – Você não deveria puxar seus pulsos, doçura. Vai machucá-los desnecessariamente. – Os dedos quentes dele se fecharam sobre os punhos gelados de Lillian. –
Esta é uma brincadeira interessante – murmurou ele, deslizando a ponta de um dedo para debaixo da algema e lhe acariciando o pulso. – Algumas mulheres que conheço gostam muito dela. – Virando o corpo rígido de Lillian em seus braços, sorriu ao ver a fúria e a perplexidade na expressão dela. – Minha inocente... será um grande prazer lhe ensinar.
Empurrando a mordaça com a língua seca, Lillian não pôde evitar pensar em quão bonito e traiçoeiro ele era. Um vilão deveria ter cabelos pretos, verrugas e ser tão monstruoso por fora quanto por dentro. Era muito injusto um desalmado como St. Vincent ser dotado de tanta beleza.
– Voltarei em um instante – disse ele. – Fique quieta... e tente não causar problemas.
Idiota arrogante, pensou Lillian com amargura, sentindo um crescente pânico lhe fechar a garganta. Observou sem pestanejar St. Vincent abrir a porta e descer da carruagem e foi envolta pela penumbra do cair da noite. Forçando-se a respirar de modo regular, tentou controlar seu medo e pensar. Sem dúvida, haveria um momento, uma chance de escapar. Tudo o que tinha de fazer era esperar.
Sua ausência em Stony Cross Park devia ter sido notada havia muitas horas. Eles a estariam procurando... perdendo tempo, se preocupando... enquanto a condessa esperava em silenciosa complacência, feliz em saber que despachara com facilidade pelo menos uma incômoda americana. O que Marcus estaria pensando naquele momento? O que ele... não, não podia se permitir pensar nessas coisas, porque isso fazia seus olhos arderem e não se permitiria chorar.
Não daria a St. Vincent o prazer de ver qualquer sinal de fraqueza.
Torcendo as mãos algemadas, Lillian tentou descobrir que tipo de mecanismo as prendia, mas em sua posição atual isso era impossível. Apoiou as costas no banco e olhou para a porta até que se abrisse de novo.
St. Vincent subiu na carruagem e fez um sinal para o condutor. O veículo sacolejou um pouco ao se dirigir ao pátio atrás da estalagem.
– Daqui a um instante eu a levarei para o andar de cima, para um quarto onde poderá satisfazer suas necessidades particulares. Infelizmente, não temos tempo para uma refeição, mas prometo um café da amanhã decente amanhã.
Quando a carruagem parou mais uma vez, St. Vincent agarrou a cintura de Lillian e a puxou para ele, e seus olhos azuis brilharam ao vislumbrar os seios da jovem através da fina camisola sob o vestido aberto. Cobrindo-a com seu casaco para esconder as algemas e a mordaça, ele a jogou sobre seu ombro.
– Nem pense em lutar ou chutar – Lillian o ouviu dizer, com a voz abafada pelo tecido de lã. –
Ou posso decidir adiar nossa viagem e demonstrar exatamente por que minhas amantes gostam tanto de algemas.
Diante da real ameaça de violação, Lillian ficou quieta enquanto era carregada para fora da carruagem e através do pátio dos fundos até uma escada externa. Alguém por quem St. Vincent passou devia ter lhe feito uma pergunta sobre a mulher em seu ombro, porque o visconde respondeu com uma horrível risada:
– Meu amor está um pouco embriagada. Tem um fraco por gim. A tolinha não aprecia um bom conhaque francês e prefere essa bebida ruim.
O comentário provocou uma gargalhada masculina e Lillian ferveu de raiva. Contou o número de degraus que St. Vincent subiu... vinte e oito, com um patamar entre os lances. Eles estavam no nível superior de um prédio com uma porta que levava a uma fileira de quartos.
Quase sufocando sob o casaco, Lillian tentou adivinhar por quantas portas poderiam ter passado enquanto St. Vincent prosseguia pelo corredor. Eles entraram em um quarto e o visconde fechou a porta com o pé.
Ele a deitou com cuidado na cama. Removeu-lhe o casaco e afastou os cachos que haviam caído sobre o rosto corado de Lillian.
– Quero me certificar de que eles nos fornecerão uma parelha de cavalos decente –
murmurou St. Vincent; seus olhos estavam brilhantes e frios como pedras preciosas. – Volto logo.
Lillian se perguntou se algum dia ele já tivera um sentimento verdadeiro por algo ou alguém ou se apenas passava pela vida como um ator em um palco, usando as expressões que serviam aos seus objetivos. Alguma coisa no olhar indagador dela fez o leve sorriso do visconde desaparecer, e ele ficou sério enquanto tirava algo de dentro de seu casaco. Com uma súbita pontada de agitação em seu peito, Lillian viu que era uma chave. Pondo-a de lado, St. Vincent abriu as algemas. Ela não pôde evitar um suspiro de alívio quando seus braços foram soltos. Mas sua libertação não durou muito. Agarrando-a pelos pulsos, ele lhe segurou os braços com enlouquecedora facilidade, erguendo-os até as barras de ferro da cama para prendê-la de novo. Embora Lillian tentasse tornar essa tarefa o mais difícil possível, ainda não havia recuperado as forças.
Esticada diante de St. Vincent na cama e com os braços presos acima da cabeça, Lillian o observou cautelosamente, movendo a boca sob a mordaça. St. Vincent lançou um olhar insolente para o corpo dela, deixando claro para ambos que Lillian estava à mercê dele. Por favor, Deus, não permita... pensou ela. Não desviou os olhos de St. Vincent, tampouco se encolheu, de algum modo percebendo que parte do que a mantivera a salvo dele até então era o fato de não ter demonstrado medo. Sentiu um doloroso nó na garganta quando St. Vincent pôs uma de suas mãos experientes na parte exposta do peito de Lillian e acariciou a beira da camisola.
– Quem dera tivéssemos tempo para brincar – falou alegremente.
Observando o rosto da moça, deslizou os dedos para a curva do seio dela e o acariciou até sentir o mamilo se enrijecer ao seu toque. Envergonhada e enfurecida, Lillian respirou depressa pelo nariz.
St. Vicente tirou a mão devagar e se levantou da cama.
– Em breve – murmurou, embora não tivesse ficado claro se estava se referindo à sua volta do pátio do estábulo ou à sua intenção de dormir com ela.
Lillian fechou os olhos e ouviu o som dos passos dele. A porta se abriu e se fechou com um clique ao ser trancada por fora. Mudando de posição no colchão, Lillian esticou o pescoço para olhar para as algemas que a prendiam à cama. Eram de aço, unidas no meio por uma corrente e com as palavras gravadas: Higby-Drunfries no 30, Totalmente Garantidas. Fabricação britânica.
Cada argola era presa por uma dobradiça e uma fechadura separada e fixada na corrente com travas inseridas nas extremidades da fechadura e presas no corpo das algemas.
Olhando mais para cima, Lillian conseguiu ver um dos grampos que havia restado em seus cabelos desgrenhados e conseguiu tirá-lo. Ela o esticou, curvou um dos lados com um giro dos dedos e o inseriu na fechadura, procurando uma diminuta alavanca interna. A ponta do grampo ficava escorregando da alavanca, o que tornava bastante difícil manuseá-la. Praguejando enquanto o grampo se dobrava com a pressão, Lillian o retirou, esticou e tentou mais uma vez, pressionando a parte posterior de um dos punhos contra a borda interna da algema. De repente ouviu um clique e a algema se abriu.
Ela se levantou de um pulo, como se a cama estivesse pegando fogo, e correu para a porta com as algemas penduradas em um dos pulsos. Arrancou a mordaça, cuspiu o pano úmido de sua boca, atirou-os para o lado e tentou abrir a porta. Com a ajuda de outro grampo, abriu a fechadura com a habilidade adquirida pela prática.
– Graças a Deus – sussurrou.
Ouvindo vozes e sons da taverna, calculou que suas chances de encontrar um estranho disposto a ajudá-la eram muito maiores dentro da estalagem do que no pátio do estábulo, onde criados e condutores se moviam de um lado para outro. Deu uma rápida olhada para o corredor para se certificar de que ninguém estava vindo e depois saiu correndo pela porta.
Consciente de suas roupas em desalinho e do corpete aberto, Lillian correu para o aposento principal da estalagem. Pessoas pararam no meio de conversas e se viraram para ela com expressões levemente surpresas. Olhando para um grande balcão e um grupo de cadeiras em um canto, com quatro ou cinco cavalheiros bem-vestidos em pé em um semicírculo próximo, Lillian correu para eles.
– Preciso falar com o estalajeiro – disse, sem preâmbulos. – Ou o administrador. Alguém que possa me ajudar. Preciso...
Ela se interrompeu de súbito ao ouvir seu nome sendo chamado e olhou por cima de seu ombro, temendo que St. Vincent tivesse descoberto sua fuga. Todo o seu corpo se enrijeceu, pronto para a batalha. Mas não havia nenhum sinal de St. Vincent, nenhum brilho daqueles cabelos cor de âmbar.
Ouviu a voz de novo, um som que penetrou em sua alma.
– Lillian.
Suas pernas tremeram ao ver o homem esguio de cabelos escuros vindo pela entrada. Não pode ser, pensou, piscando com força para clarear a visão, que certamente devia estar lhe pregando peças. Ela cambaleou um pouco ao se virar para ele.
– Westcliff – sussurrou, dando alguns passos vacilantes.
O resto da sala pareceu desaparecer. O rosto moreno de Marcus estava pálido e ele a olhou com grande intensidade, como se temesse que ela pudesse desaparecer. Marcus apressou o passo e, quando a alcançou, a abraçou com força, puxando-a para si.
– Meu Deus – murmurou, e enterrou o rosto nos cabelos de Lillian.
– Você veio – disse ela, ofegante, todo o seu corpo tremendo. – Você me encontrou.
Ela não podia imaginar como isso era possível. Ele cheirava a cavalos e suor e suas roupas estavam frias do ar lá fora. Sentindo-a tremer, Marcus a puxou mais para dentro de seu casaco, murmurando palavras carinhosas junto aos cabelos dela.
– Marcus – disse Lillian, rouca. – Eu enlouqueci? Ah, por favor, seja real. Por favor, não vá embora...
– Eu estou aqui – disse Marcus com voz baixa e trêmula. – Estou aqui e não vou a lugar algum. – Ele se afastou um pouco, e seus olhos escuros como a meia-noite a examinaram da cabeça aos pés, as mãos tatearam com urgência o corpo dela. – Meu amor... minha... você está ferida? – Ao deslizar as mãos pelo braço de Lillian, encontrou as algemas. Ergueu-lhe o pulso e olhou para elas, chocado. Respirou fundo e todo o seu copo começou a tremer com uma fúria primitiva. – Maldito! Vou mandá-lo para o inferno...
– Eu estou bem – Lillian apressou-se em dizer. – Não fui ferida.
Marcus beijou ansiosamente a mão dela, mantendo os dedos junto ao rosto enquanto respirava em um ritmo acelerado contra o pulso da jovem.
– Lillian, ele...
Lendo a pergunta no olhar atormentado de Marcus, as palavras que ele não conseguia proferir, Lillian sussurrou:
– Não, não aconteceu nada. Não houve tempo.
– Ainda assim, vou matá-lo.
O tom assassino na voz dele causou um arrepio na nuca de Lillian. Vendo a parte superior do vestido aberta, Marcus a soltou o suficiente para tirar seu casaco e lhe cobrir os ombros. Então subitamente parou.
– Esse cheiro... o que é?
Percebendo que sua pele e suas roupas ainda estavam impregnadas daquele cheiro nocivo, Lillian hesitou antes de responder:
– Éter.
Viu os olhos de Marcus se dilatarem até parecerem lagos negros e tentou fazer seus lábios trêmulos darem um sorriso tranquilizador.
– Na verdade, não foi ruim. Dormi durante a metade do dia. Fora um pouco de náusea, eu...
Um rugido animal veio da garganta de Marcus, que a puxou de novo para si.
– Sinto muito. Sinto muito. Lillian, meu doce amor... você está segura agora. Nunca deixarei que nada mais lhe aconteça. Juro pela minha vida. Você está segura.
Ele tomou a cabeça da jovem nas mãos e lhe deu um beijo breve e suave, e ainda assim tão intenso que ela ficou zonza. Fechando os olhos, Lillian se apoiou nele, ainda temendo que nada daquilo fosse real e que acordasse e se visse com St. Vincent de novo. Marcus sussurrou palavras de conforto contra os lábios entreabertos e o rosto de Lillian e lhe deu um abraço que pareceu gentil, mas não poderia ser desfeito nem pelos esforços conjuntos de dez homens. Espiando para fora das profundezas dos braços dele, Lillian viu a forma alta de Simon Hunt se aproximando.
– Senhor Hunt – disse, surpresa, enquanto Marcus roçava os lábios na testa dela.
Hunt a olhou com preocupação.
– Está tudo bem, Srta. Bowman?
Lillian teve de se contorcer um pouco para evitar a boca exploradora de Marcus e responder, ofegante:
– Ah, sim. Sim. Como pode ver, não estou ferida.
– Isso é um grande alívio – disse Hunt com um sorriso. – Seus parentes e amigos estavam muito preocupados com sua ausência.
– A condessa... – começou Lillian, mas parou imediatamente, pensando em como explicar a Marcus a magnitude daquela traição.
Mas ao encará-lo viu a infinita preocupação em seus olhos negros e profundos e se perguntou como um dia pôde tê-lo julgado insensível.
– Eu sei o que aconteceu – disse Marcus baixinho, ajeitando os cabelos desgrenhados dela. –
Você nunca mais a verá. Ela terá ido embora para sempre quando voltarmos para Stony Cross Park.
Mesmo cheia de perguntas e preocupações, Lillian foi dominada por uma súbita exaustão. O
pesadelo tinha chegado ao fim e por enquanto não havia mais nada que ela pudesse fazer.
Esperou docilmente, o rosto apoiado no ombro firme de Marcus, ouvindo apenas partes da conversa que se seguiu.
– ... tenho que encontrar St. Vincent... – disse Marcus.
– Não – disse Simon Hunt, enfático. – Eu o encontrarei. Cuide da Srta. Bowman.
– Precisamos de privacidade.
– Acho que há um pequeno quarto próximo; na verdade, é mais como um vestíbulo.
Mas a voz de Hunt falhou e Lillian sentiu uma nova e feroz tensão no corpo de Marcus. Com os músculos brutalmente contraídos, ele se virou para olhar na direção da escada.
St. Vincent estava descendo, depois de ter encontrado vazio o quarto alugado do outro lado da estalagem. Parando no meio da escada, o visconde se deparou com o curioso quadro diante dele... os grupos de observadores perplexos, o estalajeiro afrontado... e o conde de Westcliff olhando para ele com sede de sangue.
Naquele momento apavorante, toda a estalagem caiu em silêncio, tornando o rugido de Westcliff claramente audível.
– Por Deus, vou matá-lo.
Atordoada, Lillian murmurou:
– Marcus, espere...
Ela foi empurrada sem cerimônia para Simon Hunt, que a segurou instintivamente enquanto Marcus se precipitava para a escada. Em vez de rodear o corrimão, ele pulou para os degraus como um gato. Houve uma movimentação indistinta quando St. Vincent tentou fazer uma retirada estratégica, mas Marcus se precipitou para cima, agarrou as pernas dele e o arrastou para baixo. Eles se engalfinharam, praguejaram e trocaram socos até St. Vincent tentar chutar a cabeça de Marcus. Rolando para o lado para evitar a pesada bota, Marcus foi forçado a soltá-lo por um momento. O visconde subiu a escada cambaleando e Marcus correu atrás dele. Logo estavam fora de vista. Uma multidão de homens entusiasmados os seguiu, gritando conselhos, dando opiniões e demonstrando excitação com o espetáculo de dois aristocratas lutando como galos.
Com o rosto pálido, Lillian olhou para Simon Hunt, que esboçou um sorriso.
– Não vai ajudá-lo? – perguntou ela.
– Ah, não. Westcliff nunca me perdoaria por interferir. É sua primeira briga em uma taverna.
Ele a olhou de um modo amistoso. Lillian cambaleou e Hunt pôs sua grande mão no centro das costas dela e a guiou para um grupo de cadeiras próximo. Uma cacofonia de sons veio do alto da escada: estrondos que fizeram todo o prédio tremer seguidos de sons de móveis sendo quebrados e vidro estilhaçado.
– Agora – disse Hunt, ignorando o tumulto –, se eu puder dar uma olhada na algema restante, talvez possa fazer algo a respeito.
– Não pode – disse Lillian com desanimada certeza. – A chave está no bolso de St. Vincent e fiquei sem grampos.
Sentando-se ao lado de Lillian, Hunt segurou o pulso algemado, o olhou pensativamente e disse com uma satisfação que ela considerou um tanto inadequada:
– Que sorte. Uma Higby-Dumfries número 30.
Lillian lhe deu um sorriso sarcástico.
– Devo presumir que é um apreciador de algemas?
Ele torceu os lábios.
– Não, mas tenho um ou dois amigos que trabalham em órgãos de cumprimento da lei. E estas foram usadas pela Nova Polícia até ser descoberta uma falha no projeto. Agora podem ser encontradas em qualquer casa de penhores de Londres.
– Que falha?
Em resposta, Hunt virou para baixo a dobradiça e a fechadura da algema no pulso de Lillian.
Quando ouviu o som de mais móveis sendo quebrados no andar de cima, sorriu ao ver a testa franzida de Lillian.
– Eu vou lá – disse brandamente. – Mas primeiro...
Ele tirou um lenço do bolso e o inseriu entre o punho e a algema de aço como um acolchoamento improvisado.
– Pronto. Isso pode ajudar a amortecer o golpe.
– Golpe? Que golpe?
– Não se mexa.
Lillian deu um grito de espanto ao senti-lo erguer seu pulso sobre a mesa e abaixá-lo com força sobre a base da dobradiça. O golpe serviu para abalar a alavanca e a algema se abriu como num passe de mágica. Surpresa, Lillian olhou para Hunt com um meio sorriso enquanto esfregava seu pulso livre.
– Obrigada. Eu...
Houve outro estrondo, dessa vez sobre a cabeça deles, e um coro de gritos excitados dos observadores fez as paredes tremerem. Por cima disso tudo, ouviram o estalajeiro gritando que logo o prédio estaria reduzido a ruínas.
– Sr. Hunt – exclamou Lillian. – Realmente quero que tente ajudar lorde Westcliff!
Hunt ergueu as sobrancelhas.
– Teme mesmo que St. Vincent leve a melhor sobre ele?
– A questão não é se confio o suficiente na capacidade de lutar de lorde Westcliff – respondeu Lillian, impaciente. – É que confio demais nela. E prefiro não ter de atuar como uma testemunha em um julgamento por assassinato.
– Nisso tem razão.
Hunt se levantou, dobrou o lenço e o guardou no bolso do casaco. Deu um pequeno suspiro e se dirigiu à escada, murmurando:
– Passei a maior parte do dia tentando evitar que ele matasse alguém.
Lillian nunca se lembrou por completo do resto daquela noite, que passou apoiada em Marcus, num estado de semiconsciência. Ele manteve o braço firme ao redor de suas costas para sustentar o peso de seu corpo enfraquecido. Embora Marcus estivesse desgrenhado e um pouco machucado, irradiava a energia primitiva de um homem saudável que acabara de sair vitorioso de uma luta. Lillian percebeu que ele estava fazendo muitas exigências e todos pareciam ansiosos por agradá-lo. Ficou decidido que eles passariam a noite na estalagem e Hunt partiria para Stony Cross à primeira luz da manhã. Nesse meio-tempo, Hunt poria St. Vincent, ou o que restara dele, na carruagem do visconde e o mandaria para a residência dele em Londres. Aparentemente, St. Vincent não seria processado por seus atos, pois isso só serviria para transformar o episódio em um grande escândalo.
Com todos os arranjos feitos, Marcus carregou Lillian para o maior quarto do prédio, onde um banho e uma refeição foram arranjados o mais rápido possível. O quarto era parcamente mobiliado, mas muito limpo, e tinha uma cama ampla com lençóis de linho bem passados e colchas macias desbotadas. Uma velha banheira de cobre foi posta diante da lareira e enchida por duas camareiras que trouxeram chaleiras fumegantes. Enquanto Lillian esperava a água esfriar um pouco, Marcus insistiu em que ela tomasse uma tigela de sopa, que era bastante tolerável, embora não fosse possível identificar todos os ingredientes.
– O que são esses pedacinhos marrons? – perguntou Lillian, desconfiada, abrindo a boca com relutância enquanto ele lhe dava mais uma colherada.
– Não importa. Engula.
– É carne de carneiro? De boi? Tinha chifres? Cascos? Penas? Escamas? Não gosto de comer o que não sei o que é...
– Mais – disse ele sem admitir recusas, empurrando outa vez a colher para a boca de Lillian.
– Você é um tirano.
– Eu sei. Beba um pouco de água.
Resignando-se apenas por aquela noite com o jeito dominador dele, Lillian terminou a leve refeição. O alimento lhe deu novas forças e ela se sentiu revigorada quando Marcus a puxou para seu colo.
– Agora – disse ele, aconchegando-a ao peito – conte-me o que aconteceu, desde o início.
Não demorou muito para Lillian se ver falando animadamente, quase tagarelando, ao descrever seu encontro com Lady Westcliff na Corte das Borboletas e os acontecimentos que se seguiram. Ela devia estar parecendo muito ansiosa, porque Marcus de vez em quando interrompia o rápido fluxo de suas palavras com murmúrios tranquilizadores, de modo interessado e infinitamente gentil. Ele roçou a boca nos cabelos de Lillian, e o hálito quente chegou ao couro cabeludo dela. Pouco a pouco, Lillian relaxou encostada nele, sentindo seus membros moles e pesados.
– Como convenceu a condessa a confessar tão rápido? – perguntou ela. – Achei que ela fosse ficar calada durante dias. Ou que preferiria morrer a admitir alguma coisa.
– Foi essa a opção que eu lhe dei.
Lillian arregalou os olhos.
– Ah – sussurrou. – Sinto muito, Marcus. Afinal de contas, ela é sua mãe...
– Apenas no sentido mais técnico da palavra – disse ele, seco. – Nunca tive amor filial por ela, mas, se tivesse tido, certamente teria desaparecido depois de hoje. Acho que ela já fez maldades suficientes. Daqui em diante tentaremos mantê-la na Escócia, ou talvez em algum lugar no exterior.
– A condessa lhe contou o que nós conversamos? – perguntou Lillian, hesitante.
Marcus balançou a cabeça, torcendo os lábios.
– Ela me contou que você tinha decidido fugir com St. Vincent.
– Fugir? – perguntou Lillian, chocada. – Como se eu deliberadamente... como se eu o tivesse preferido a...
Ela parou, horrorizada ao imaginar como Marcus devia ter se sentido. Embora não tivesse derramado nenhuma lágrima durante todo o dia, a ideia de que Marcus poderia ter se perguntado por uma fração de segundo se outra mulher o deixara por St. Vincent... era muito difícil de suportar. Ela explodiu em grandes soluços que surpreenderam ambos.
– Você não acreditou nisso, não é? Meu Deus, por favor, diga que não acreditou!
– É claro que não. – Ele a olhou, perplexo, e se apressou em pegar um guardanapo na mesa para secar suas lágrimas. – Não, não, não chore...
– Eu amo você, Marcus. – Tirando o guardanapo dele, Lillian assoou o nariz ruidosamente e continuou a chorar enquanto falava. – Amo você. Não me importo se sou a primeira a dizer isso, nem mesmo se fui a única. Só quero que saiba quanto...
– Eu também amo você – disse ele. – Também amo você, Lillian... Por favor, não chore. Isso está me matando. Não chore.
Ela assentiu e assoou o nariz no guardanapo de linho outra vez; estava com manchas vermelhas na pele, os olhos inchados e o nariz escorrendo. Mas parecia que havia algo de errado com a visão de Marcus. Tomando a cabeça dela nas mãos, ele lhe deu um forte beijo na boca e disse:
– Você é tão linda!
A afirmação, embora sincera, fez Lillian rir em meio aos últimos soluços. Dando-lhe um abraço que quase a esmagou, Marcus perguntou com voz abafada:
– Meu amor, nunca lhe disseram que não é de bom-tom rir de um homem quando ele está se declarando?
Ela assoou o nariz com um último e deselegante ruído.
– Acho que sou um caso perdido. Ainda quer se casar comigo?
– Sim. Agora.
A afirmação a chocou e a fez parar de chorar.
– O quê?
– Não quero voltar com você para Hampshire. Quero levá-la para Gretna Green. A estalagem tem um serviço de carruagem. Alugarei uma de manhã e chegaremos à Escócia depois de amanhã.
– Mas... mas todos esperarão um casamento respeitável em uma igreja...
– Não posso esperar por você. Não dou a mínima para a respeitabilidade.
Um sorriso vacilante se espalhou pelo rosto de Lillian enquanto ela pensava em quantas pessoas ficariam chocadas ao ouvir isso dele.
– Isso vai parecer um escândalo, você sabe. O conde de Westcliff casando-se às pressas em Gretna Green.
– Então vamos começar com um escândalo.
Ele a beijou e ela respondeu com um gemido, se arqueando e se agarrando a Marcus até ele introduzir a língua mais fundo, beijando-a com mais força e se deliciando com o calor e a maciez da boca de Lillian. Com a respiração pesada, ele desceu os lábios para o pescoço trêmulo dela.
– Diga: “Sim, Marcus” – ele pediu.
– Sim, Marcus.
Os olhos escuros dele se incendiaram ao fitá-la e ela sentiu que havia muitas coisas que ele queria dizer. Mas falou apenas:
– Está na hora do seu banho.
Ela poderia ter feito isso sozinha, mas Marcus insistiu em despi-la e banhá-la como se fosse uma criança. Relaxando aos cuidados dele, Lillian observou o rosto moreno de Marcus através da nuvem de vapor que se erguia da banheira. Os movimentos do conde foram deliberadamente lentos ao ensaboá-la e enxaguá-la até ela ficar rosada e brilhante. Erguendo-a da banheira, ele a enxugou com uma grande toalha.
– Levante os braços – murmurou.
Lillian olhou, desconfiada, para a roupa com aparência de usada que ele segurava.
– O que é isso?
– Uma camisola da esposa do estalajeiro – respondeu ele, passando-a pela cabeça de Lillian.
Ela enfiou os braços nas mangas e suspirou ao sentir o cheiro de flanela limpa. A camisola era de uma cor indistinguível e grande demais para ela, mas sentiu-se confortada pelas suaves e amaciadas dobras.
Encolhida na cama, Lillian observou Marcus se banhar e se enxugar; ondulando os músculos das costas, o corpo soberbo era uma bela visão. Um sorriso irreprimível curvou seus lábios enquanto ela se dava conta de que aquele homem extraordinário lhe pertencia... e nunca saberia com certeza como conquistara seu bem guardado coração. Marcus apagou o lampião e quando deslizou para debaixo das cobertas Lillian se aconchegou a ele. O cheiro masculino a envolveu, fresco, uma mistura de sabão com toques de sol e sal. Ela desejou absorver esse cheiro delicioso, beijar e tocar cada centímetro do corpo dele.
– Faça amor comigo, Marcus – sussurrou.
O vulto de Marcus assomou sobre ela, acariciando seus cabelos.
– Meu amor – disse ele em um tom terno e risonho –, desde essa manhã você foi ameaçada, drogada, sequestrada, algemada e conduzida através da metade da Inglaterra. Não basta por este dia?
Ela balançou a cabeça.
– Eu estava um pouco cansada, mas agora me recuperei. Não conseguiria dormir.
Por algum motivo aquilo o fez rir.
O corpo de Marcus se afastou do dela. No início Lillian pensou que ele ia para o outro lado da cama, mas depois sentiu a bainha da camisola ser erguida. Suas pernas se arrepiaram com o ar frio. Sua respiração se tornou acelerada. A grossa flanela foi puxada mais para cima, mais para cima, até os seios ficarem expostos e os mamilos se enrijecerem. A boca de Marcus desceu quente e suavemente por sua pele, explorando e acariciando, despertando sensações em lugares inesperados: no ponto sensível ao lado das costelas, na curva aveludada dos seios, na borda delicada do umbigo. Quando Lillian tentou acariciá-lo, suas mãos foram gentilmente empurradas para os lados até ela compreender que Marcos queria que ficasse imóvel. Ela começou a respirar fundo, estremecendo os músculos da barriga e das pernas enquanto o prazer percorria seu corpo.
Marcus a mordiscou e a beijou até chegar ao ponto úmido secreto entre suas coxas, e suas pernas se abriram com facilidade ao toque dele. Ela estava totalmente vulnerável, com cada nervo ardendo de excitação. Um gemido fraco e profundo escapou de sua garganta quando ele lambeu o escuro triângulo, inundando-a de prazer a cada carícia na pele rosada e escorregadia. A língua de Marcos a excitou e a abriu, e então ele a provocou com carícias suaves e ritmadas, até ela sentir seus membros pesados e sua respiração vir em fracos gemidos. Por fim, ele deslizou os dedos para dentro dela, e Lillian gemeu, se debateu e atingiu o clímax, tremendo como se pudesse se desmanchar de prazer.
Atordoada, sentiu-o abaixar a camisola.
– Agora é a sua vez – murmurou Lillian com a cabeça no ombro de Marcus enquanto ele a abraçava. – Você não...
– Durma – sussurrou ele. – Minha vez chegará amanhã.
– Ainda não estou cansada – insistiu Lillian.
– Feche os olhos – disse Marcus, acariciando-lhe as nádegas em movimentos circulares. Ele roçou a boca na testa e nas pálpebras frágeis dela. – Descanse. Você precisa recuperar as forças...
Porque, quando estivermos casados, não conseguirei deixá-la em paz. Vou querer amá-la em todos os minutos do dia. – Ele a puxou mais para perto. – Não há nada mais bonito no mundo do que seu sorriso... nenhum som mais doce do que o da sua risada... nenhum prazer maior do que tê-la em meus braços. Hoje percebi que não poderia viver sem você, minha diabinha teimosa.
Nesta vida e na próxima, você é minha única esperança de felicidade. Diga-me, Lillian, meu amor... como conseguiu entrar tão fundo no meu coração?
Ele parou para beijar a pele sedosa e úmida dela... e sorriu quando um leve ronco feminino rompeu o tranquilo silêncio.
EPÍLOGO
À Muito Honorável Condessa de Westcliff
Marsden Terrace, Upper Brook Street, no 2
Londres
Cara Lady Westcliff,
Foi uma honra e um prazer receber sua carta. Permita-me felicitá-la por seu recente casamento. Embora tenha tido a modéstia de afirmar que foi a única beneficiada com sua união com lorde Westcliff, tomo a liberdade de discordar. Tendo tido a sorte de conhecê-la, posso atestar que o beneficiado foi o conde, ao desposar uma jovem tão encantadora e educada...
– Encantadora? – interrompeu-a Daisy, seca. – Ah, ele a conhece muito pouco.
– E educada – lembrou-lhe Lillian, em tom de superioridade, antes de voltar à carta do Sr.
Nettle. – E ele continua... Talvez se sua irmã mais nova fosse mais parecida com a senhora, também pudesse encontrar um marido.
– Ele não disse isso! – exclamou Daisy, pulando sobre uma poltrona e tentando pegar a carta enquanto Lillian se defendia com uma estridente risada.
Annabelle, que estava sentada em uma cadeira próxima, sorriu por sobre a borda da xícara de chá enquanto o sorvia na esperança de acalmar seu estômago. Ela já havia declarado sua intenção de contar ao marido sobre a gravidez naquela noite, porque ficava cada vez mais difícil escondê-la.
As três estavam sentadas no salão do Marsden Terrace. Alguns dias antes, Lillian e Marcus tinham voltado para Hampshire de seu “casamento sem proclamas”, como o chamavam em Gretna Green. Ela ficara secretamente grata por a condessa ter desaparecido da propriedade e todos os traços de sua presença terem sido removidos. A condessa viúva, corrigiu-se Lillian, que ficava um pouco nervosa sempre que se dava conta de que agora ela era a condessa de Westcliff.
Marcus a havia levado para Londres, onde estava visitando a fábrica de locomotivas com o Sr.
Hunt e resolvendo outros assuntos de negócios. Dali a poucos dias os Westcliffs partiriam para uma lua de mel planejada às pressas na Itália... o mais longe possível de Mercedes Bowman, que ainda não havia parado de se queixar de ter sido privada do grande acontecimento social que seria o casamento que desejara para sua filha.
– Ah, saia de cima de mim, Daisy – gritou Lillian de brincadeira, empurrando a irmã. – Admito que inventei essa última parte. Pare com isso, ou vai rasgar a carta. Onde eu estava? – Assumindo uma expressão de dignidade própria da esposa de um conde, Lillian ergueu a carta e continuou a lê-la: – O Sr. Nettle continua a me tecer elogios e me deseja felicidade junto à família Marsden...
– Contou para ele que sua sogra tentou se livrar de você? – perguntou Daisy.
– E depois respondeu à minha pergunta sobre o perfume – continuou Lillian, ignorando-a.
As duas jovens a olharam, surpresas. Annabelle arregalou os olhos azuis, cheia de curiosidade.
– Você lhe perguntou sobre o ingrediente secreto?
– Pelo amor de Deus, qual é? – quis saber Daisy. – Diga! Diga!
– Você poderia ficar um pouco desapontada com a resposta – disse Lillian, encabulada. – Segundo o Sr. Nettle, o ingrediente secreto é... nada.
Daisy pareceu indignada.
– Não há nenhum ingrediente secreto? Não é uma verdadeira poção do amor? Eu tenho me encharcado dela para nada?
– Aqui, vou ler a explicação dele: “Sua conquista do coração de lorde Westcliff foi apenas o resultado de sua própria magia e o ingrediente essencial do perfume era, na verdade, você mesma.” – Pondo a carta em seu colo, Lillian sorriu à expressão irritada da irmã. – Pobre Daisy.
Lamento que o perfume não seja realmente mágico.
– Maldição – grunhiu Daisy. – Eu devia ter sabido.
– O estranho – continuou Lillian, pensativa – é que Westcliff sabia. Na noite em que eu lhe falei sobre o perfume, ele disse que sabia definitivamente qual era o ingrediente secreto. E esta manhã, antes de eu lhe mostrar a carta do Sr. Nettle, disse-me qual seria a resposta dele, e estava certo. – Um sorriso surgiu em seu rosto. – O sabe-tudo arrogante – murmurou de um jeito amoroso.
– Espere até eu contar para Evie – disse Daisy. – Ela vai ficar tão desapontada quanto eu.
Annabelle a olhou com uma ruga franzindo sua bela testa.
– Ela já respondeu à sua carta, Daisy?
– Não. A família a trancou de novo. Duvido que a deixem enviar ou receber cartas. E o que me preocupa é que antes de partirem de Stony Cross Park, tia Florence dava sinais muito fortes de que planejava casá-la com o primo Eustace.
As outras duas gemeram.
– Só passando por cima do meu cadáver – disse Lillian. – Vocês percebem que teremos de tomar algumas medidas criativas para tirar Evie das garras de sua família e encontrar um bom marido para ela?
– Faremos isso – foi a resposta confiante de Daisy. – Acredite em mim, querida, se conseguimos encontrar um marido para você, podemos fazer qualquer coisa.
– Agora você passou dos limites – disse Lillian, e pulou para o canapé para avançar ameaçadoramente para a irmã, brandindo uma almofada.
Rindo, Daisy se escondeu atrás do móvel mais próximo e gritou:
– Lembre-se de que você é uma condessa! Onde está a sua dignidade?
– Eu a perdi – informou-lhe Lillian, e a perseguiu alegremente.
Enquanto isso...
– Lorde St. Vincent, há uma visita à porta. Eu disse que o senhor não estava em casa, mas ela insistiu muito em vê-lo.
A biblioteca estava fria e escura, exceto pela luz fraca que vinha da lareira. O fogo logo se apagaria e ainda assim Sebastian não parecia capaz de se levantar o suficiente para acrescentar um pouco de lenha, embora houvesse uma pequena pilha ao seu alcance. Um incêndio na casa não teria sido suficiente para aquecê-lo. Era um homem vazio e entorpecido, um corpo sem alma, e se orgulhava disso. Era preciso um raro talento para chegar ao seu nível atual de depravação.
– A esta hora? – murmurou Sebastian, desinteressado, olhando não para seu mordomo, mas para a taça de conhaque de cristal bisotado em sua mão.
Ele girou preguiçosamente nos dedos o pé da taça. Não havia nenhuma dúvida quanto ao que a mulher não identificada queria. Mas embora não tivesse planos para a noite, percebeu que pela primeira vez não estava com disposição de se deitar com ninguém.
– Mande-a embora – disse friamente. – Diga-lhe que minha cama já está ocupada.
– Sim, milorde.
O mordomo saiu e Sebastian voltou a se acomodar em sua cadeira, esticando suas longas pernas.
Terminou o conhaque na taça com um gole eficiente enquanto pensava em seu problema mais imediato... dinheiro, ou a falta dele. Seus credores estavam se tornando agressivos e ele não poderia ignorar por muito mais tempo suas dívidas. Agora que havia fracassado em seus esforços para obter a muito necessária fortuna de Lillian Bowman, precisaria obter dinheiro de outra pessoa. Conhecia algumas mulheres ricas que poderiam ser induzidas a lhe emprestar um pouco em troca dos favores pessoais que ele sabia prestar tão bem. Outra opção era...
– Milorde?
Sebastian ergueu os olhos com uma expressão ameaçadora.
– Pelo amor de Deus, o que é?
– A mulher não quer ir embora, milorde. Está decidida a vê-lo.
Ele deu um suspiro de exasperação.
– Se ela está assim tão desesperada, deixe-a entrar. Embora deva ser avisada de que sexo rápido e um adeus ainda mais rápido é tudo o que estou disposto a lhe oferecer esta noite.
Uma voz jovem e nervosa veio de trás do mordomo, revelando que a insistente visitante o seguira.
– Não era bem isso que eu tinha em mente.
Ela rodeou o mordomo e entrou no quarto; seus cabelos estavam escondidos por um pesado manto com capuz.
Obedecendo ao piscar dos olhos de Sebastian, o mordomo desapareceu, deixando-os a sós.
Sebastian encostou a cabeça nas costas da cadeira, observando a figura misteriosa com um olhar sem emoção. Ocorreu-lhe que ela poderia estar portando uma pistola sob o manto. Talvez fosse uma das muitas mulheres que já o haviam ameaçado de morte... uma que finalmente reunira coragem para cumprir a promessa. Pouco lhe importava. Ela poderia atirar nele com sua bênção, desde que fizesse o trabalho direito. Permanecendo relaxado em sua cadeira, murmurou:
– Tire o capuz.
Ela ergueu a mão pálida e obedeceu. O capuz deslizou sobre cabelos tão vermelhos que eclipsaram as brasas da lareira.
Sebastian balançou a cabeça, perplexo ao reconhecer a jovem. A ridícula criatura da festa em Stony Cross Park. Uma gaga tímida com cabelos ruivos e um corpo voluptuoso que poderiam torná-la uma companhia tolerável, desde que mantivesse a boca fechada. Eles nunca haviam se falado. A Srta. Evangeline Jenner, lembrou-se. Tinha os olhos maiores e mais redondos que ele já vira, como os de uma boneca de cera... ou uma criança pequena. Ela olhou suavemente para o rosto dele, sem deixar de notar os ferimentos resultantes da briga com Westcliff.
Idiota, pensou Sebastian com desprezo, perguntando-se se ela viera insultá-lo por ter sequestrado sua amiga. Não. Nem mesmo ela poderia ser tão estúpida, arriscar sua virtude ou até mesmo a vida indo à casa dele desacompanhada.
– Veio ver o covil do demônio? – perguntou-lhe.
Ela se aproximou, com uma expressão decidida e estranhamente destemida.
– Você não é um demônio. É apenas um homem. Com m-muitos defeitos.
Pela primeira vez em dias Sebastian sentiu uma leve necessidade de sorrir. Uma centelha de relutante interesse se agitou nele.
– Só porque a cauda e os chifres não são visíveis, menina, isso não significa que deveria descartar essa possibilidade. O demônio tem muitos disfarces.
– Então estou aqui para fazer um pacto de Fausto. – Ela falou muito devagar, como se tivesse de pensar em cada palavra. – Tenho uma proposta a lhe fazer, milorde.
Então se aproximou da lareira, emergindo da escuridão que os envolvia.
Do quarteto de amigas, Evangeline Jenner é certamente a mais tímida. E se tornará a mais rica quando receber a herança de seu pai, acamado com tuberculose. Mas Evie não se importa com o dinheiro. Tudo o que deseja é estar ao lado do pai em seus últimos dias.
Porém isso só será possível se ela puder escapar da casa dos tios que a criaram. E, para isso, sua única alternativa é casar-se – e rápido. Assim, ela foge no meio da noite para a casa do devasso lorde St. Vincent e lhe propõe casamento em troca de poder cuidar do pai.
Para um aristocrata que precisa de dinheiro, essa é uma excelente proposta. Afinal, é difícil conquistar uma moça rica e solteira quando se tem a reputação de Sebastian – trinta segundos a sós com ele arruinariam o bom nome de qualquer donzela.
Mas há uma condição na proposta de Evie: uma vez consumado o casamento, eles nunca mais dormirão juntos. Ela não será mais uma mulher descartada por ele com o coração partido. Se Sebastian realmente a deseja em sua cama, terá que se esforçar mais em sua sedução... ou entregar seu coração pela primeira vez na vida.
Neste terceiro livro da série As Quatro Estações do Amor, Lisa Kleypas nos apresenta o relacionamento de duas pessoas muito diferentes, mas igualmente obstinadas. E dessa relação tão peculiar pode nascer um desejo impossível de conter e um sentimento forte demais para esconder. Quem disse que os cafajestes não podem amar?